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PERDA DE SENTIDO E CONSTRUÇAO DESENTIDO NO PENSAMENTO HISTÓRICO NA

VIRADA DO MILÊNIO

}Ôm RiisCIl

RESUMO

A historiografia, ge~de Q século XIX, trabalhou com variadas concepçõesde sentido histórico. Essas concepções de sentido enfrentaram 'diversas clises,

mas .a idéia de sentido na história sofreu uma crise fundamental diante dosacontecimentos traumáticos do século XX, como o Holocausto. Como pode ser

mantido um sentido para ;1história frente à essa realid;1de~

ABSTRACT

Since the beginning of the 19'1> century, different conceptions or historicalsense have been used in hisloriography. These different conceptions \Vere

confronted with various problems, but lhe idea of historical sense enlered a

fundamental crisis as consequence of the traumatic events of 20'1> century, like

Holocaust. Is it possible to rnantain a sense in History in front of lhis realily"

Palavras.chave: Pensamento histórico, sentido histÓlico, crise da história.

Key words: Historical thinking. Historical sense. Crisís af hi5tory.

Somos um sinal, sem interpretação,

estamos sem dor e quase perdemos a

fala longe de casa.

PaulCelan

[. ..}ainda há canções a cantar para

além dos homens.

Friedrich H61derlin

Ex-professor das universidades de Bochum e de Bielefeld. Alemanha. Desde 1997, presidente doKulturwissenschaftliches InstitUI no Wissenschaftszentrum Nordrhein-Westfalen. em Essen. A tradução cio

texto, o resumo, o obslJ'CICI. as palavras-chave e key H'ords são de René E. GeJ1z.

História: debates e tendênciasl Passo Fundo p.9-22 dezembro de 2001

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10 Hi.:,1ória: debates e tendências 11

1O sentido faz de negócios história

Semido da história significa que o processo histórico - ';anstOlTw,C;{:'f:;S mundohumano rio passado - tem uma qualidade subjetiva que o leva a da

prática atual da vida. I lji.~'ló.ria, como processo que se desenrola no (em sentidoCjlJnl1da~Íljfp6i1âllte e significativa para se entender e para se lidar com circ;unst~ncias de

vida contemporâneas. Em geral. essa importância consiste no fato de que o passado oferece

a experiência de que se necessita para orientar-se no presente e para desenvolver uma

sólida perspectiva de futuro ..Essa expeliência faz sentjdo q!lal1.c1CJP0cl~S~Lu!iliza~~J~~I!l'l..

cOllfiguraç~.9_cléll?rºPl'ii.lvida •.O que está erlljogÓ"riesse contexto detelminadó-por um sen'tid9(eq).le llQllleSmoten1Po define um sentido) envolvendo uma experiência e .uma orientação

(pOdelia falar-se de empiria e teleologia, se entender por telos uma detelminação subjetiva.

intencional. um objetivo da ação)?

Sentido est'!be!ece, por assim dizer. uma ponte entre a expeliência e a intenção, ouentão - na linguagem da técnica - entre um inpuI de fora e um output dé 'clérÚrõ''-Õ estabe­J.ecimentqçlessa p.onte resulta de uma peculiar constituição do homem que determina sua.

relaç}\o. çom ..o tempo: a consciência humana é básica e permanentemente desafiada porvivências.contingentes, as quais deve transformar, por meio da interpretação. em 111'i'énç6es,

através das quais os sujeitos dão fOlma à sua vida, à sua relação com o mundo. à sua relaçãocQllsigQllle$P1oS e,ainda, à sua relação com os outros. Sentido$ignifIcacÇl,ntingência sob

controle no âmbito do trato com o passado (lembrança, memóriaéê~~mteçimento).

.1\ p.a!.ª.ynlsentido tem muitos significados e pode levar a mal-entendidos.' Ela designa

uma capacitação para a percepção e tem a ver com os cinco sentidos, mas tal1lbém des!gnaum procedimento mental envolvendo a percepção e tem a ver com o jogo deidé.í!ls apa!1.!r

dos cinco sentidos. A unidade ou a relação das duas coisas é.o que interessa. Isso deteqJlina.o sentido para f\ históri~,já que ela também representa as duas cois.as: o acontecid() ..!:.<?..

passado e o relato a seu respeito; ~.!:lnpalavra sentido designa a unidade ou a relação entre

ambos. É evidente que essa relaç.ãl) ~§.l?r.9.çe.ssa_~obretu~g.rlºj[lt~Ijº!~,c!.o.slJj\ito. Essa rela.~.ção é considerada - antes de qualquer reflexão sõbl~ea atividade do sujeito em atribuirsentido - como dada, mas não como uma coisa morta e, sim, como uma fl)rça v !::,ª.s;m.â.i •. ,

mesma, que estabelece uma relação com o presente, d~JaLfºrma que para o.sujeito se abreuma persp_~ct.iYade futuro para sua vid~, agual passa aqri5ênt;JLSua ..a窺. ~~ri.tjç(Q.fiiJl:çL.

'~çõniécido.no.passactº.(Droysen falava dos "negÓci~~·;;i~·m.~história para o pl'es~!1te; aq\tlt9 ..que a consciência.histórica realiza pode ser caractetizado como' "C(iO'stl:U-ç:ã'ó de sentido ~m

.. relação à percepção do tempo".'

I Cf. a respeiro RÜSEN, Jeim. Was heísstSinn der Geschichte'l (M/teinem Ausbtick aufVernufÚt und Wídersinn).

ln: MÜLLER. Klaus E.: RÜSEN, Jom (Ed.). Historische Sillnbildwlg. Problemstellungen. Zeitkonzepte.

Wahrnehmungshorizonte. Darstellungsstrategien. R~inbek. 1997. pp. 17-47.

, Cf. HI;:ROEMOLLER, Bemd-Ulrich. >VedeI'- Noch. Traktat über die Sinnfrage. Hamburgo. 1985. p. 5 e sego

) CL RÜSEN. Jom. Historische Oriellfienlllg. Über die Arbeit des Geschicht,bewusstseins. sich in der Zeitzurechtzufinden. Colônia, J 994.

.•....

':.

Se ex.aminarmos rnais de peno os procedimentos mentilis por meio dos quais negócios

se transformam em his;Óriil, poderemos distinguirquatro operações dil mente humana: per·

cepção, inteqJretação. G.':~eD.t~~tTd'Cf~J.nieilzaessZis quatro ope'liiçÕes num"'_,_,._~_. _ •.,.._..•..••_. _, .._~.....,.,~"••_.,._.•' - .,.'_,._ '. , " .._.'0'0

pyocesso inter,relacionado, gilra.l1,~indosuãcoerência. ConstruçãO de seniiôollahistórí:l re-

fef~ ..sé'7qJ-ercepçaoe"Y inrerpretaç:ao'àu"lnudànçá con~~nte n~_!!'a_nscurso do tempo,refl~:0êJãll:1tvTvencià"dC)passãdo~"a'ôi'iê'ritáçiío da vídâatual no '(~ontexto da mucliln~'a e ilmotivaçãoda ação Ín'ienClonaI iÍiótivada por essa mudança.

~!.·cePt~oÍlislóri~a .~..~.l.~ia.:AYEêi1Ciada mlld~.~~ate;lllPOral dos mundos externo

ejutemo; cria sel1s~~ilidãde' para as difere.nçãSteinpol:ais que dão contil de que o presente

tenlr~tencial para serêlífêrenteeque lança~~?s,,~aízes nas profundezas ,de uma dinqmiça

J~ií:poral de"Illuôança. A illtel7Jretação hist?l;c(( apl:eseilÚla múdança peIS.d.Úd..'Lçomo"h,is"i5$t:!,?:é-nquâ&ando,a em meidelos-Irltéi-pretativos do tr~l]:;çurso ôo tempo, tO..l.·nando-o

compreensível epir~sível de serrelacionada a ll1tenç6es-(í;:;~ orie~tai;;'ã aç.ã9; A onellloç;ãohjÚ9Jjca. dádiLeçi!º.a procedinlen'tos p'iatrcos-aã""viÕã-ãPãrtirde"~o~cepçõêSCJetetÍ1po'alime,nt~das por vivências e estabelece. assim, pertencimentos ou diferenciações dos SUJei,

tos frente a outros emsUZiáut()compreensão dentro de uma perspediva temporal. A mot;·vação histórica, por sua vez, mobiliza forças de vontade a paÍ'tir das lembranças e das

persP~Zt;vas deJutÚro apropriadas via interpretação do passado. Semido representa a coe­

reriélã-aes-sã;;;pe'l1\ÇOeS édas"configurações' mentais responsáveis por elas.

Es~e papel de estabelecer uma coerênciad? ..s.e[ltid9.poçle,§cr exerl!plifiçado. no quetangé111ístói:;â·,j1~~é~~é1a ..ij1ãtrlz discipjIrÜu:GO~ que a consiituiçãoprofissional da ciênciahistórica pod&~~intelJ2X~tªdª no contexto. geraL9 ..ª"<::l!.1turahistórica.ge" uma época" OpeJ:1..samentohistÓl;CO é determinado por cinco fatQ.n~s, O.Squ,ais,éada um por si só é ncces:

_ •••• _~_~_. __ ._. •••••• , •.•.•• _.~, ",_,." ••• , .' " ._", "",o- ,,~"'.

~~:;.()et()dos juntos são s\1E~ientespara defini-]o como proces':;2:mecessi~acjes de olientaçã,o,objetiyosdeinterpretação, métodos de utilização das vivências:{formas de representaçãge

. funções de orientarão ~ão.r<;Ji!;!!Acl()l·esfun~al11~l1tais do processo-[TÍélÍtalJ.l6r'mei~ndCí.qualnegÓl::í9~ do passado se transforl11am'em histórias do presente. Sem ido é~In'p.onto de vista

_.0,,'°" "0" ' •. , .••..•..•. ,...•• ,no" --'_ .•.. ~,

"S?_b.~':.<;.s~.~P~?~~~SO,q,ll.<::.:~~:ãngee fundamenta os cinco fatores, de tal forma que eles sei' relacionam entre si e os efeitos da consciência histórica por eles determinados se completam

:) em um processo unitálio e internamente sintonizado, Uma expressão desse sentido está

presente na unidade da "história" como representação mental do passado no contexto da

prática e no ordenamento funcional de uma cultura.

~~,n_tidohistórico çomo condição e como resultado de coerênciil no trato Ínterpretalivoe...9rjel1tildor com o passado também pode ser estabelecido e explicitado na relação das

, CL a respeito RÜSEN. Jom. HiSlorische Vem/lnft (Grundzüge einer Historik I: Die Grundlagen der

GeschichtswissenschaFt). Gottingen. 1983. p. 21 e seg.: uma concepção ampUada está em RUSEN. 10m

Historische Sinnbildung durch Erzáhlen. Eine Argumentationsskizze zum narrativistischen Paradigma derGeschichlswissenschaft und der Geschichtsdidaktik illl Blick auf nicht·narrative Faktoren. II/remwio//ole

Schlllbucl(forsclurng, n° j 8, 1996. pp. 501·543: RÜSEN. Jorn. Historik - Überlegungen zur metalheoreti.\chen

Selbstauslegung und Interpretarion des historischen Denkens im Historismus [und ausserhalb J. Tn: KUTfLER.

Wolfgang: RÜSEN. 10m: SCHULIN. Emst (Ed.). Gescllichtsdiskllrs !li; Die Epoche der Historislerung.

Frankfurt/M, 1997. pp. 80·99. em especial p. 86 e sego

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12 História: debates e tendénciciSr,",, __ . __ ~7._.~~~~ _-._...."..~~~_~. __ ~,,_

1.3

dime'lsões mentais mjS quais a dlí'eré;nça a relação se

sese flJf}çé)es mediadas pela estratégia política e ética coletivamotriz cultu~alda vida humana; objetivos de interpretação cf'étoCiOS lidarsão fornecidos pela estratégia cognitiva do conhecimento através pensamenw fonnas

de representação e as funções de orientação são fomecidas pela estratégia estética da

poética e da retórica da representação histólica. Também essa diferenciação das dimensõesmentais da consciência histórica e de suas práticas culturais se fundamenta e mantém sua

unidade através de um "sentido da história" que as perpassa.

Até aqui descrevi esse sentido somente de maneira formal, como um conjunto formado

por vivências, interpretação, orientação e motivação, e também como fator de coerência narelação dos constituintes básicos do pensamento histórico e das dimensões da cultura histó­rica. Seu conteúdo, naturalmente, aparece sob as formas mais diversificadas. Cito dois exem­

plos extremamente diferentes: o mito congela a contingência da vivência no mundo e no

tempo através da imagem de uma ordem cósmica numa era primitiva; o pensamento histó­rico modemo, com suas categOlias de progresso e desenvolvimento, busca um ordenamento

do mundo que orienta a ação a partir dos acontecimentos ligados às mudanças espaço­

temporais contemporâneas.No que segue, procuro descrever aquelas concepções de sentido que têm importãncia

no pensamento histólico atual. Trata-se de um amplo feixe de abordagens diferenciadas, que

aparecem sob formas exc!udentes, mas também mistas, e que podem ter tanto absorvido

quanto rejeitado ou modificado formas mais antigas. Não estou interessado numa discussãonu~elicamente exaustiva dessas concepções, mas pretendo apontar para uma tendência e.

junto com ela, para algumas deficiências e para algumas perspectivas futuras. A tendênciaque vislumbro está representada num processo de longo prazo de problematização crescen­te do sentido histórico; as perspectivas, por sua vez, gostaria de relacionar com a possibilida­de - ou o fracasso - do pensamento histórico em não eliminar a falta de sentido, mas em

suponá-la.

2 A categoria do sentido indica perda de sentidoA próplia categoria de "sentido da história" caracteliza um problema. Ela aparece no

final do século XIX e sinaliza uma perda radical de significado nas até então concepções

dominantes de história como fator de ordenamento de primeira grandeza no âmbito de

orientação cultural das práticas de vida.5 A nova forma de "sentido" sinaliza o fim de uma

filosofia de história que garantia a coerência da relação das três dimensões de tempo, que

dava força ao pensamento histórico em sua tarefa orientadora. "Sentido", que respondia

pela qualidade subjetiva do contexto histólico das mudanças feitas pelo homem no mundo,

era expresso através da categoria do Espírito (Hegel) ou da Idéia (Humboldt, Droysen), e

a categoria do Progresso ou do Desenvolvimento (Hegel. Ranke) designava a direção

, CL STÜCKRATH, Jom. 'Der Sinn der Geschichte'. Eine moderne Wortverbindung und Vorstellung? In:

MÜLLER: RÜSEN (Ed.), HislOrische Sillllbildul1g. pp. 48-78.

mundo através eia ação e do sofrimento humanos guiados

de sentido para a obra dos historiadores está documentada na preleçã,"acadêmica de Humboldt "Sobre a tarefa do historiador" (1821) - paradigmáticil pilra a filse

constitutiva da ciência histórica6 Humboldt apresenta a subjetividade do historiador, que semanifesta nos interesses de conhecimento subjacentes à sua atividade investigativa, como

parte constitutiva das forças motoras das mudanças humanas do mundo e de suaautoprodução, e elas constituem o mundo da história. "Toda a apreensão de uma coisa

pressupõe, como condiçãô de sua possibilidade, a existência prévia, naquele que apreende,de algo análogo àquilo que depois é realmente apreendido. uma prévia coincidência primária

entre o sujeito e o objeto. O apreender. de fonna alguma. significa um simples desenvolver a

partir do primeiro, nem um simples retirar do último, mas ambas as coisas ao mesmo tem­pO".7 Os processos reais da histólia encontram nos processos de conhecimento dos historia­dores mais do que um simples reflexo: eles revelam para o pensamento histólico a naturezaintelectual das forças modificadoras do mundo das realizações culturais do homem e, comisso, fixam a direção da prática de vida e a identidade dos sujeitos no ceme do movimento

temporal do mundo humano. Essa definição ideal de sentido vigorou durante muito tempo,século XX a dentro, e garantia à histoliografia acadêmica uma relevância cultural dentro da

esfera pública política.

Esse pressuposto do pensamento histórico, que definia sentido na forma de urna filoso­fia da histólia, evidentemente sofreu,já no final do século XIX. significativas perdas em SUJ

plausibilidade. Essa perda decorria, por um lado, da expeliência de uma crise crescente, tal

qual eJa sé expressava da forma intelectualmente mais elaborada na filosofia de· FriedrichNietzsche, e que, com Jacob Burckhardt, foi transformada numa variante clitico-cultural dohistorismo. Os meios tradicionais de garantir um sentido histólico, a ligor baseados numa

fundamentação religiosa, não conseguiam dar conta dessa crise no processo de moderniza­

ção das sociedades ocidentais. O espírito constitutivo de histó,ia da burguesia letrada reve­

lou-se muito fraco para dar conta das crises de modernização que se manifestavam nas. mazelas sociais do capitalismo industrial e na agressividade política dos Estados nacionais

europeus e em seu ataque imperialista em todo o mundo.' Mas as bases do historismo, que

garantia um sentido, não foram questionadas somente a partir "de fora", a partir das novasvivências dos conflitos sociais e políticos e das crises econômicas. Sua própria prática

epistemológica teve conseqüências destrutivas sobre o pressuposto e culturalmente difundi­do sentido do conhecimento histórico.

6 HUMBOLDT, Wilhelm Yon. Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers (1821). In: HUMBOLDT. Wilhelm

Yon. IVerke ill fÜllf Sanden. Y. I: Schr!fren :ur Anrhmpologie lmd CeschiclIle. Darmstadt, 1960. pp. 585,606

(Editado por Andreas Flinter e Klaus Giel - Gesammelte SchriftenlAkademie Ausgabe. [JV. pp 35·56J).

7 Ibid .. p. 596 e sego [IV, p. 47].

, CL a respeito JAEGER. Friedrich. Siirger/iche Modemísier/lngskríse /llld hisrorisc/,,' Sillnhi/d/lllg.

KlIlr/lrgeschíchre I)('i Droysell, B/lrckhardr IIlld Max IVeber [Bürgertum. Beitrhge zur europliischen

Gesellschaflsgeschichte. v. 5J. Gotlingen. 1994.

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14

Isso se deu de duas ronnas. Por lado. atf2vés

pesquisa histórica, o sentido interno do mundo::)! nasimples correlação de fatos. O sentido que a vida h'1iT1U:il

transformou-se na facticidade de informações contidas u,s foe,:es. A

o sentido. Isso se tomou muito palpável no rechaço incisivo, por parte dos hístoriado;-es

profissionais, de toda e qualquer interpretação históIÍco-filosófica do passado, A pesquisaprofissionalizada acabou com os pressupostos religiosamente fundamentados, segundo os

quais o conhecimento histórico era iluminado pela luz de um Espírito, a partir do qual o

passado era apresentado como um movimento temporal que se estendia em direção aofuturo e se manifestava em ações finalísticas e concepções de pertencimento reflexos na

sociedade. A queixa do final do século XIX era que a ciência histórica produzia conjuntos deconhecimentos que não tinham um sentido que estimulasse a vida e que um sentido centradoexclusivamente na produção de conhecimentos não era mais suficiente para o estímulo e a

legitimação dessa produção. Isso mostra a maciça perda de sentido da produção acadêmicade conhecimento.9

Mas não foi só a facticização metodologicamente necessária da expeliência histórica

que abalou a confiança no sentido histórico do historismo. A historicização generalizada darelação do homem com sua própria cultura que o historismo propõe projeta uma sombra derelativismo. Ataca a orientação da vida em valores, que está na base do pensamento histó­rico. O Sonho de Dilthey (1903) constitui um claro exemplo de que o arcabouço que abarca

aS,dimensões temporais da interpretação histólica. onde o presente consegue encontrar umfundamento sólido na transformação do tempo, se dissolve.'o Coisa semelhante se constata,sintomaticamente, na obra de Emst Troeltsch. Sua tentativa de encontrar uma "síntese cul­

tural" que orientasse o agir e contribuísse para a constituição de uma identidade, ao passarem revista todo. o leque da produção do saber da pesquisa histórica realizada sob regrasmetodológicas, falhou. A busca de sentido do pensamento histórico, ao final do século XIX,

não podia mais ser satisfeita a partir da tradição idealista do historismo.O marxismo. como clítica da ideologia, pode ser derivado dessa perda de sentido. Ele

assume a herança da filosofia da história ao criticar a qualidade do sujeito da histólia ressuposta

pelo idealismo, um produto da\ sociedade burguesa, como pura ideologia, como aparência

que se sobrepõe para ocultar uma realidade sem sentido. Simultaneamente, porém, superaessa qualidade do sujeito, transformando-a em uma nova olientação do transcurso histórico,ao recomendar como imperativo de ação revolucionária o passo da necessidade da aliena­

ção para a liberdade do homem de tornar-se sujeito. Explicação histórica e orientação práti­

ca correm paralelos e, com isso, o sentido histórico se reconstrói.Mas também essa tentativa de salvação do sentido da histólia não pôde impedir seu

desaparecimento, Em primeiro lugar, ela fracassa na prática, desmentindo as promessas de

Q PoreJ\emplo, HEUSSl, Karl. Die Krisis des HislOrisl1H1s. Tübingen, 1932; mais tarde através de HEUSS, Alfred.Verlust der Geschichte. Gótlingen, 1959.

10 DILTHEY. Wilhelm. Trauin (1903). In: DILTHEY. Wilhelm. WelranscllCllll/llgslehre. Abhandlungen zur

Philosophie der Philosophie [Gesammelle Schriften, \'01. 8]. Góttingen, 1960. pp. 220-226.

})

e:tabelecioils vivêncla do sentido do

a vida prática no dogmatismo de um" ideologiCl que:c:ev;wve!menle sua credibilidade em função da dinâmica interna do conhecimento

cíer:lff~co adquirido via pesquisa. Por fim, a qualidade do sujeito dos transcursos históricos,

fUl1darnental para o sentido histólÍco, pel111aneCe teoricamente subdeterminada no marxis­mo: dentro do influente teorema base-superestrutura. o sentido aparece como uma grandeza

derivada e, com isso, fica aprioristicamente desarmada.Os tradicionais recursos de sentido do pensamento histórico, o qual havia atingido sua

forma moderna no historismo, parecem ter se esgotado, pOl1anto. As expectativas geradas

com base na interpretação histólÍca não se concretizaram. A qualidade de sujeito do trans­

curso do tempo, sua orientação teleológica num objetivo, foi refutada pelas conseqüênciasatravés da ação comprometida por essa própria teleologia (por exemplo, a perspectiva na­cional durante a guelTa mundial ou a perspectiva social do "socialismo real"). A cientificidade

pura do procedimento metodológico não só não consegue neutralizar essas perdas, maschega a anulá-Ias fonnalmente. Karl Popper expressou isso mais tarde, através da lese de

que a história não tem sentido, mas que se precisa dar-lhe um. II

3 De que recursos de sentido a historiografia dispõe noséculo XX?

As tradições histórico-filosóficas do iluminismo e do historismo continuam exercendo suainfluência no século XX. Apesar da crise de sentido do histOlismo, a idéia de progresso e de

evolução não perdeu de todo a sua força. A teOlia da modernização está aí como exemplo maisdestacado para prová-Ia. Ela assumiu a garantia por um sentido da idéia de progresso após afase crítica das guenas mundiais e deu ao paradigma científico da histólia das sociedades e dahistólia social uma grande consistência teólico-conceitual e metodológico-empírica."

Fora da disciplina, tais modelos de interpretação histórica podem ser complementados

por considerações que argumentam dentro da tradição da filosofia da história e que se apre­sentam claramente com a pretensão de exercer um papel orientador: a interpretClção de

Francis Fukuyama sobre a virada pós-1989 segue a estratégia de constituição de sentido d~lfilosofia da história de Hegel.'! A interpretação de Samuel Huntington sobre a situação

contemporânea retoma o modo de pensar da filosofia de história de Spengler.'JAmbas as concepções, naturalmente, não caracterizam a fonna de pensar da ciência

histórica, que é muito mais cautelosa no recurso à filosofia da história. Aqui domina uma

" POPPER. Karl R. Selbstbefreiung durch das Wissen. In: REIMSCH. Leonhard. Der Sillll der Gcschichli!.

Munique. 1961. pp. 100-116.

" Cr. WEHLER, Hans-Ulrich. Modcl'/1isierlil1gstheoric lIlId Geschichti!. Góttingen, 1975: KOCKA. JLirgen.

So:;algeschiclue: Begriff - Entwicklung - Probleme. 2. ed. Góuingen. 1986.

1.\ FUKUYAMA. Francis. O fim da história e ° Último homem. Rio de Janeiro, 1992.

" HUNTINGTON. Samuel. O choque de ci\'Í/blções e a recomposiçào da ordem n1lmdiClI. Rio de J~neíro. 1997.

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di,ssociação de prazo dos ,hs elementos semic'o his:5rioo Sirt!ei.iú!dc

idealista da história: subjetividade que guia a ação e occansceJSO temporalperceptível. Por um lado, o sentido subjetivo emigrou para objetividade de lmr:scursostemporais reais. No marxismo-Ieninismo isso assumia a forma de uma regularidade objetiva.

A subjetividade da definição de objetivos que orientassem a ação no decurso do tempo

aparecia como simples função de um contexto de vida objetivo; sentido subjetivo era deriva­do de circunstâncias objetivas da vida e, com isso. em última análise, encarado como secun­

dário - mesmo que a relação reconhecida como objetiva fosse empregada. depois, ideologi­camente como contexto de orientação para intenções subjetivas da ação.

Uma variante metodologicamente moderada desse objetivismo é constituída pelas con­cepções de história das ciências sociais que se definem como nomológicas. Elas retiram

sentido dos contextos objetivos da vida e de suas modificações no decon'er do tempo e o

transformam em objeto de posturas puramente subjetivas. O conhecimento histórico nãofornece mais nenhuma competência para a ação com vistas a uma racional idade de sentidodas intenções da ação, mas fornece uma base empírica para a racionalidade final do agir.Através do reconhecimento, via história, das regularidades objetivamente determinadas do

agir humano ao longo do tempo, o sujeito da ação no presente capacita-se para agir em

direção ao futuro. Isso pode ser compreendido tecnicamente, porém não como capacitaçãopara uma elaboração global com vistas ao futuro, mas. sim, só no sentido de que a experiên­

cia histórica apropriada por via cognitiva e transformada em uma nomologia fornece as"competentes regras, sem as quais a ação humana é impossível. Um prognóstico sobre o

futuro no sentido de uma direção geral e abrangente da transformação do mundo humano

está excluído porrazões lógicas, como Popper mostrou de forma incontestávelYTambém a Escola dos Annales mais antiga pode ser localizada nesse contexto. A

concepção da longue durée compensa a vivência incômoda das transformações cada vezmais aceleradas da modemidade pela concepção da permanência imóvel. O sentido fica,

nesse caso, sepultado nas profundezas da história das estruturas e, assim. transforma-se

numa compensação às esperanças frustradas de poder influir na direção da modernização apartir da compreensão da história. 16

A variante mais recente de uma dissolução do sentido subjetivo em movimentos obje­

tivos de sistemas complexos de condições do agir dá-se através de um recurso consciente à

interpretação não teleológica da história da natureza de Charles Darwin. A partir desse

paradigma, busca-se a força argumentativa de uma reconstrução sistemática de mudançastemporais das condições de vida humanas dentro de uma perspectiva de desenvolvimento

global que abre mão de todo e qualquer conteúdo de sentido subjetivamente impulsionado. I]Com isso, chegamos à segunda direção da citada dissociação do conceito tradicional

de sentido: sentido migra para a subjetividade dos valores culturais e de seu livre estabeleci­mento ("descoberta", "construção"). Dessa perspectiva, tomaram-se fundamentais e clás-

" POPPER. Karl R. A miséria do hisloric/sl11o. São Paulo. 1980.

Ib CL BRAUDEL, Fernand. Personal testemony. Joul71al of Modem Hisrory, n. 14. 1972. pp. 448-467.

IJ LLOYD. Christopher. The slruClures of h/sIO/). Oxford, 1993.

r

17

,eórico-culturais de \lJeber sobre a fUl1dameLSçd) conheci·

\istórico: "Pressuposto transcendel1\21 de qualquer ciência da cultura nZioé o fato de

atribuirmos valor a uma determinada ou a quaiquer 'cultura'. mas o fato de sermos homens

de cu.ltma, equipados com a capacidade e a vontade de nos posicionarmos conscientementefrente ao mundo e an;buir-lhe um sentido".I' Cultura aparece aqui como resultado da Clia­

ção de sentido pelos homens, e o próprio conhecimento histórico é compreendido como umacriação de sentido. no qual o conjunto das experiências do passado é iluminado com idéias devalor e, assim. tornado compreensível. A f0l'ça para a ação. nesse caso, não é extraída dessa

experiência, no máximo, lhe é atribuída. "'Cultura' representa um recorte finito. feito a partirde um posicionamento do homem e caITegado com sentido e significado. do infinito semsentido do devi r do mundo".19 Weber faz uma rígida separação entre va1idade subjetiv;] de

concepções de sentido culturalmente construídos, por um lado. e validade objetiva da expe­riência histórica para a explicação de formas de vida e realizações humanas, dc outro.'o A

rebção intema entre ambas - na essência. nunca negada por ele -. no entanto. foi poucodesenvol vida.

Entre essas duas possibilidades de sentido histÓl;CO. isto é. o refúgio na objetividade de

relações nomotéticas que condicionam a vida humana. ou o refúgio na pura subjetividade devalores ou sentidos estabelecidos pelo homem. existe um grande número de formas mistas.

que determinam a multiplícidade de formas de pensar. de abordagens teóricas e de procedi­mentos metodológicos da ciência histórica. Todas elas nos levam. por vias diferentes. à

mesma conclusão: sentido histórico só é efetivamente concebível quando as duas forças da

história que sofreram um afastamento recíproco - a objetividade de seu transcurso e a

subjetividade do significado atribuído - forem vistas como dois lados de uma mesma realida-de e forem relacionadas entre si.

Para exemplíficar, alTolo três tentativas de determinar a relação entre vivência e inter-

pretação, entre dados objetivos do passado e atribuições subjetivas de sentido para o presen­te, a fim de, assim, construir um sentido histórico: a) o linguistic rum na teoria da histól;a; b)o estabelecimento de sentido a partir dos mundos culturais do passado através da hennenêutica

profunda; c) a procura de sentido via lembrança e memória.a) A variante mais destacada do subjetivismo é a da prática historiográfica que argu­

menta a partir da lingüística. Max Weber ainda via as ciências da cultura comociências empíricas; a cultura, como vivência. era constituída a panir de valores. Éverdade que a cultura objetivada no conteúdo vivido da pesquisa não possuía vali­

dade para projetos de ação fundamentados em normas e para a constituição deidentidades, mas as ciências da cultura tratavam de explicações genéticas ele rela,

., WEBER. Max. A objetividade do conhecimenw nas ciências e na polilica sociais. ln: WEBER. Max, So!1rc a

ICO/'ia da ciências sociais. Lisboa. 1979. pp. 7·111: aqui especificamente p. 61

19 Ibíd .. p. 61. [Em ambas as citações. a tradução foi feita diretamente do original alemào - N. T].

:0 CL a respeito BARRELMEYER. Uwe. Gesclzichr/iclle Wirklichkeir ais Problel11, lInlersuchungen zu

geschichtstheoretischen Begründungen hislOrischen Wissens bei Johann Gustav Droysen. Georg Simmel undMax Weber. MünSler. 1997.

Page 6: Rusen - Perda de sentido e construção de sentido no pensamento histórico na virada do milênio.pdf

111

, ,HL<;rória:debates e tendências

ções efetivas da vida e os fatos culturais objetivos relil(iotlavam-se as repre-

sentações subjetivas das ciências da cultura através dn do estabe-

lecimento de uma relação de valores.2! A ml.er[JI'e'ti

desencantamento universais fazia uma ponte entre os procedimentos

das ciências da cultura e os processos reais de transformação vividos. sim. que

marcavam o "destino"22 e que tinham uma dimensão planetária, de tal forma que ainterpretação histórica se apresentava como a resposta subjetiva a uma questão

formulada de forma objetiva.Em contrapar1ida. no linguistic rum da historiografia, a história perdeu sua relação

com a vivência como elemento constitutivo da criação de sentido histórico. Os

acontecimentos do passado transformam-se em história para o presente através de

procedimentos lingüísticos. onde a estética e a retórica são fundamentais para de­terminar o que representa "história", na sua configuração de sentido com função

orientadora cultural. A distância dessas configurações de sentido em relação à

vivência é expressa pela categoria da ficcionalidade. História como produto de

uma construção literária do passado tem tanto sentido quanto o caráter estético da

arte é ficciona!. A manifestação empírica do passado que se faz presente nosresíduos da vivência histórica não é vista como capaz de fornecer - nem potencial­

mente - qualquer sentido (mesmo que as vozes dos atingidos sejam perceptíveis).Mas se o sentido histórico está vinculado ao fato de que o significado histórico do

passado se reflete no presente naquilo que lá efetivamente aconteceu, a constru­ção de sentido através de meios ficcionais configurados esteticamente acima davivência constitui um sentido sem sentido.

b) A variante histórico-cultural ou antropológica do pensamento histórico considera

essa restrição. O sentido é tematizado como realidade social, o qual pode ser apre­endido de forma hermenêutica nos mundos do passado transmitidos simbolicamen­

te. A vivência histórica transforma-se em fonte de um sentido que o presente pare­

ce ter perdido com as contingências da racionalização da modemidade. O sentido

histórico é transmitido das fantasmagorias de uma subjetividade criadora da produ­

ção cultural contemporânea para os mundos perdidos do passado, onde ele eraconquistado de forma simbólica peJos homens que sofriam e agiam dentro de suas

condições de vida adversas. O passado se abre à perscrutação etnologicamente

treinada para perceber o outro como origem perdida do próprio sentido. Ele não

mais desapareceu objetivamente dentro dos condicionamentos sistêmicos do agir edo sofrer do passado, mas oferece-se como cosmos de mundos simbólicos para a

apropriação compreensiva. O passado se comporta de forma compensatória frente

Hi'){ória. deÍJates c tendénC7~'L' 1')

às necessidades de orientação do presente: os mundos de sentido do passado são

mantidos no enfoque etnológico da antropologia histórica na distância de um passa­

do que se tornou estranho. As conseqüências da racionalização no processo demodernização aparecem, assim, como perda de sentido, o qual só pode ser histori­

camente compensado através da memória (e, assim, ser recuperado de forma indi­

reta). Essa função compensatória. já a vejo presente na tese de Weber sobre n

função maiêutica do protestantismo no surgimento do capitalismo. O enfoque hist6­

rico a partir dn jaula de fen'o de um racionalismo relacionndo a fins que se auto­

reproduz lamenta a perda do fundamento da racional idade relacionada a um senti­

do ou a um valor de sua próplia forma de vida.'! A vivência histórica transforma­

se no espelho do sentido perdido e só admite a esperança de que ns coisas podem

ficar diferentes porque já foram diferentes.c) No discurso em tomo da memólia nas ciências da cultura, esse sentido perdido da

apropriação simbólica do mundo é recuperado para a prática cultural do presente.

A própria memólia é tematizada como poderoso gerador de sentido no trato com a

vivência histórica. O pensamento histórico encontra suas origens nas práticas cul­

turais sempre renovadas da lembrança coletiva no contexto de sua vida presente,Nesse caso. o sentido está dado e vive do fluxo irrestrito da produção e da trans for­

mação contínuas. Aqui a história se torna útil para a vida, atuando nos procedimen­tos culturais da Olientação temporaL quando os homens se apropriam do mundo e

se autoproduzem. É natural que a história, como ciência, não pode aceitar essa

produção de sentido histólico, útil para a vida através da lembrança coletiva e Slli1

utilização pública: seus procedimentos metodológicos no conhecimento histórico

racional através da pesquisa são obrigados a distanciar-se criticamente frente aoarbítrio com que a memória se aproxima de um wishJÚI thinkil1g que deforma efalsifica a vi vênciu_ chegando a "inventar" mentiras vividas. Razão metodológica e

vontade de vivenciar um sentido parecem poder concretizar-se somente um às

custas do outro. Aquilo que em Humboldt e Droysen se f0l1alecia reciprocamente

(3 confiança no sentido da vivência histórica e a esperança racional de sua apreen­são metodológica em um saber verdadeiro) transforma-se, agora. numa contradi­

ção entre mentiras vividas e apreensão sem ilusões. A utilização innacionada de

conceitos como "descoberta" ou "construção" para interpretar um sentido útil para

a vida na orientação cultural mostra a falta de força dissuasória do pensamento

histórico no contexto da própria vida do presente.

4 Qual o sentido histórico que tem algum futuro?" lbid.

"Weber designa o capitalismo como ~ "força mais decisiva [schicksa/!'nllsre] da nossa vid~ modem~". WEBER.M~x. Ge.\Cl/11melreAufsiir:e :111' Relioginl/ssrÔologie!li. Tübingen. 1922. p. 4. [O adjetivo schic/wall'oll derivado substantivo Schicksal. que signifíc~ "destino": schicksa/!'oll - aqui no superlativo - significa. portanto.literalmente, "cheio de destino" - N. T.].

As grandes transformações ocolTidas no estabelecimento de um sentido históriCO não

devem obscurecer o fato de que uma fonte de sentido sempre se mantém quando se trata da

apropriação intelectual da expeliência do passado através do pensamento histórico: a lem-

'.1 CL ~s descrições sobre Weber em JAEGE. op. cil.

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2f} H istóría. debates e tendéncias21

os LlEBSCH. BurkJlard. GeschichlC im Zeichen des Abschieds. Munique. 1996. p. 298.

"Cf. RÜSEN. Jorn: The logic of historization - nletahistorical reflexions on the dehate between Friedlander and

Broszat. /n: ARAD. Gulie Ne 'eman rEd.). Passing illlo His101Y: nazism and the holocaust beyond memory. ln

honour of Saul Friedlander on his sixty-fifth birthday. Bloomington. 1997 [HislOrv "nd memory. v. 9. n. l-c.

1997J. pp. 113-144.

'o SHAKESPEARE. Ham/el. Ato I. cena 5. p. 189 e sego

.11 Um exemplo impressionante de como se foge u essa pressão da contingência encontrei em'uma entrevista com

Richard Rorty: "Minha impressão simplesmente é a de que as coisas. desde a Revolução Francesa - caso se

abstrair de algumas illlerrupçães. como Hitler e outros -, sempre foram avançando um pouco mais. Em todos

os países que não sofreram sob ditaduras ou que não foram vítimas de uma guelTa. ocorreu em cada nova geração

um pouco mais de igualdade. um pouco mais de liherdade etc. Nós. portanto, não precisamos desenvolver

nenhuma desconfiança em relação à evolução. Na verdade, precisamos de mais daquilo que já tínhamos. Para

muita gente isso soa como tremendamente supetticiaJ: não sei muito bem por quê". Tages~eilllf1g, Berlim. 16 de

junho de 1997.

\, NORA, PielTe. Z,,'ischcn Gcschichre wld Gediiclllnis. Berlim. 1990.

medida. que se tomou em nossocon.stl'tlJ! 3 ousên::::i-a

quando se transfere esse desafio da falta de medida da vivência histÓnca do século

XX para âmbitos transistóricos e não palpáveis ao conhecimento (que então costumam serchamados de "míticos"). as estratégias desenvolvidas na modernidade para lidar com um

sentido na experiência histórica podem ser mantidas. Exatamente a pal1ir do caráter trDu­mático dessa etapa o enfoque deve ser desviado para o todo histórico, caso se LJueira tematÍzar

adequadamente a vivência histórica. ,Y

As conhecidas palavras de Hamlet servem perfeitamente para um diagnóstico de nos­

so tempo: 'The world is out of joint: o cursed spite that ever I was bom to sent it right".:'"Essa desafiante contingência histórica fica mais bem caracterizada como a de uma catástro­

fe. Essa catástrofe rebate no próprio pensamento histórico: precisam ser desenvolvidos no­

vos modos de criação de sentido histórico para enfrentar esse caráter catastrófico." Osinomináveis crimes do século exigem mudanças no nível das categorias do pensamentohistórico. Lembrar e nalTar não podem ser simplesmente pressupostos como base antropo­

lógica do trabalho científico com a histótia, mas precisam ser repensados de forma metaistóticildesde suas bases. Em primeiro lugar, eles precisam ser reconhecidos como base também

pelo trabalho historiográfico científico profissionalmente organizado. A consagrada oposiçãoentre lembrança e memória, por um lado. e "histólia" como prática cognitiva da pesquisa

~istórica,l: por outro. deve ser abandonada e substituída pelo reconhecimento de uma com­plexa relação de constituição e condicionamento recíprocos. Lembrança constitui história.Sem as fontes de sentido da lembrança e suas práticas narrativas simbólica e lingüisticamente

al1iculadas, os procedimentos teóricos e metodológicos do pensamento histórico profissionalficariam sem base. Elas não estariam enraizadas na vida, não teriam fontes de inspiração

para questionamentos e interpretações e lhes faltariam perspectivas configuradoras de uma

perspectivação histórica. A história, por seu lado, como campo do pensamento metodolÓgico.

"Cf. RÜSEN. Historische Sinnbildung durch Erztihlen.

'l KULKE, Hermann. Geschichtsschreibung ais Heilung eines. Traditionsbruchs7 Überlegungen zu

spatmittelalterlichen Chroniken Südasiens. In: RÜSEN. J6m: GOTTLOB. Michael: M/TrAG. Achim rEd.).

Die Vielfall der Kulruren (Erinnerung. Geschichte, /dentitát - v. 4). Frankfurt/M. 1998. pp. 422-440.

"FR/EDLÃNDER. SauJ. Auseinandersetzung mit der Shoah: einige Überlegungen zum Thema Erinnerung und

GESCHICHTE. In: KÜTTLER, Wo/fgang; RÜSEN, J6rn: SCHUUN. Ernst CEd.). Geschichrsdiskurs - Bd. 5:GLOBALE Konflikle. Erinnen/llgsarbeir wld Neuoriell!ienlllgen sei11945. FrankfurtlM, 1999. pp. 15-29. a

referência está na p. 28.

:1 D/NER. Dan. Zwischen Aporie und Apologie. Über Grenzen der Historisierbarkeit des Nationalsozialismus.

In: DINER, Dan (Ed.). ISI der Narionalsozialism!ts Gcschichle? Zu Historisierung lInd Historikerstreit.

Frankfurt/M. 1987. pp. 62-73.

bnmça e sua ativação através relato históríco. Ele dádesconf0l1áveis do presente através uma presentificação

abre uma perspectiva de ação para o futuro. Essa interpreC8ção se dá de

concepção de tempo na qual passado, presente e futuro são integrados em uma direçãodesse transcurso. Essa concepção de transcurso do tempo possui. simultaneamente, uma

qualidade empírica e normativa, isto é, sentido. Se constitui sentido e se pode tê-lo, isso

depende das vivências do tempo com que se precisa lidar. Trata-se, basicamente, de umacrise, de uma alteração do transcurso temporal do mundo que precisa ser colocado em

ordem através de uma interpretação. História significa "cura de uma ruptura da tradição"(Hermann Kulke),"' ou melhor, eliminação de contingência.

Tais distúrbios de orientação através da vivência do tempo podem ser "normais" - e,

ne.sse caso, podem ser controlados através da aplicação de estratégias já configuradas daconstrução de sentido histórico. Mas eles podem também colocar em xeque essas própriasestratégias, de tal forma que vêm a se constituir novos critérios de sentido histórico e modos

cOlTespondentes de lembrança e de natTativa. Nesse caso, seriam "críticos". Mas eles tam­bém podem questionar de forma radical- e até destruir - as potencialidades de sentido dalembrança e da narrativa. Nesse caso, são "traumáticos".

A situaçãb atua!, na virada do milênio, me parece configurada de tal forma que preci­samos ativar de forma renovada as fontes de sentido da lembrança e da nalTativa, já que as

experiências dominantes de tempo são "críticas" e "traumáticas". Elas não podem ser sana­

'.das pela ativação e aplicação dos modelos de interpretação histórica da vivência do tempoaté aqui dominantes, pois as questionam de fonna radical. Sau! Friedlãnder expressou issoatravés' da tese de que, frente ao Holocausto, os fundamentos antropológicos do modemo

pensamento histórico precisam ser revisados e deve-se perguntar de fonna completamentenova o que, efetivamente, é o homem."6 A conhecida tese de Dan Diner sobre o Holocausto

como ruptura da civilização"7 tem o mesmo efeito para o pensamento histórico: suas basescivilizatórias, suas premissas culturais que lhe conferem sua peculiar configuração contem­

porânea não se sustentam mais. Elas sofrem um colapso sob o peso da contingência exerci­do sobre a orientação histórica pelos inomináveis crimes de massa do último século. "A'medida' das vivências e, simultaneamente, seu mais radical questionamento, frente ao qual

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pode influenciar a lembrança e~.no mínimo, assurne frente uma

possibiI ila uma experiência de CC!.lI['()le metodológico.No contexto consÜtutivo do pensamento histórico, importa abrir esp8í;o forma sis··

temática, para a não-narratividade de vivências traumáticas. No trabalho te;~~Ji'·eu,t: com

aquilo que aconteceu, seria necessário abrir espaço para o contra-senso como qualidadevivenciada. A interpretação deveria trabalhar com "buracos negros" que arrastam os fatos

investigados para a rede de suas significações históricas. Os gritos das vítimas não podemser abafados pela seqüência dos acontecimentos e dos processos que esclarecem como se

chegou até eles; evidentemente, também não podem permitir que o pensamento histórico

perca a compostura de sua racional idade metodológica nem que a força interpretativa desua capacidade de interpretar seja reduzida. O pensamento deve ser exigido ao máximo

para tentar descobrir como se chegou a essa situação. Somente na forma racional de umaexplicação histórica o contra-senso de vivências históricas traumáticas ou catastróficas podeser comprovado e tomado compreensíveL Para chegar a isso, é necessária a forma "aberta"

da interpretação e da representação históricas, isto é, a admissão por parte dos procedimen­tos metodológicos e da representação historiográfica dos resultados da pesquisa de que aS

perspectivas de interpretação utilizadas e as formas de representação não conseguem darconta dos fatos abordados, apontando para além, para uma ruptura "insanável" na relação

temporal entre este passado, o próprio presente e o próprio futuro.)"Tal abe11ura _ poder-se-ia falar também de uma franscendência negativa da consti­

'tuição histórica de sentido - representa uma forma peculiar de relacionamento com a práti­

cá por parte do conhecimento histórico - uma indicação sobre a contingência do agir assimorientado pela história, que transforma. de maneira pré-pensada, espontânea, o contra-sensoda lembrança em um estímulo para evitá-Io, para sua contenção e para sua superação.

Até então, a concepção histórica do transcurso do tempo formando sentido "coincidia"

com o modelo interpretativo dominante da vivênda histórica, com os fatos do passado. Da

mesma fOlma que se falou do covering law da explicação histórica, poder-se-ia falar do"modelo do transcurso de tempo coincidente", que faz dos acontecimentos do passado uma

história para o presente. "Uma", ou até, "a" histólia designa essa relação abrangente do acon­tecimento e de sua interpretação. Se ela aparece na forma de uma teoria, esse caráter "coin­

cidente" como tal é tematizado. O acontecimento se dissolve numa tal interpretação. Contra­senso, como elemento integral (mesmo que não único) da interpretação, não permite mais uma

tal diluição. Acontecer e interpretar transcendem-se mutuamente e adquirem, justamente porisso, um sentido. Nesse caso, a ausência de sentido adquire sentido através da interpretação e

da representação históricas, que se esforçam por se Olientar em ct'itérios de sentido.

"CL RICOEUR,PauLGedtichtnis- Vergessen- Geschichte.In:MÜLLER:RÜSEN.HiSlOrische Si/lllbildll/lg.

pp. 433-454.

.u Uma tentativaa respeitoestáem MANEMANN,JÜrgen.Wei/ es /lichf nllr Geschíchre is. DieBegründungderNotwendigkeiteiner fragmentarischenHistoriographiedes Nationalsozialismusaus politisch-theologischerSicht. Hamburgo/Münster. J 995. Além disso. SANDKÜHLER.Thomas. Aporetische Erinnerung undhistorischesErztihlen.In:LOEWY.Hanno(Ed.).HoloCQIISf. die Gren:ell des Versfehens. EineDebatleüberdieBeselzungder Geschichte.Reinbek, 1992. pp. 144-159.

AÇÃO COMUNICATIVA E TEORIA DA HISTÓRIAAproximação de Habermas e Rüsen

Sérgio Duarre '

RESUMO

A idéia das ciências da cultura aproxima o filósofo J. Habermas e' ohistoriador Jom Rüsen. Os dois possuem propostas sobre o papel 'doconhecimento dos fenômenos simbólicos hüje.

ABSTRACT

The idea of the sciences of culture approximate the philosopher JlirgenHabermas and the histo\;an Jom Rüsen. 80th have propositions about thefunction of the knowledge of simbolic phenomena today.

A filiação a uma mesma teoria do conhecimento (que afirma a especificidade ontológicados fenômenos simbólicos com a cOlTespondente singulmidade dos procedimentos das ciências

socioculturais) e a assunção do caráter conservador dessas ciências no nosso tempo (a

afinuação da função essencialmente reflexiva, entendida como resistência à barbárie. das

condições de produção e reprodução de sentido) são temas que aproximam as obras dofilósofo Jourgem Habermas e do historiador Jorn Rüsen. Esse textO. na forma de ensaio.

seguido da tática da aproximação controlada, tem por objetivo comunicar a hipótese quedirige uma pesquisa em andamento sobre consciência histórica e teoria da modernidade.

A consciência da modernidade radicaliza-se opondo-se à tradição. à história. Sabe­

mos que esse movimento pode ser reconstruído e é paralelo à afirmação da consdênciahistórica no século XIX. Esse é mais um exemplo do que Weber denominou "paradoxo das

conseqüências": a atualidade do espírito do tempo espontaneamente se renova dependeu.em seu movimento de afirmação, da deSCOberta do vínculo essencial que une humanidade e

temporalidade.Os plincípios da revolução histórica e da individualidade (a idéia de que a humanidade

se constitui como manifestação de um núcleo de qualidades a ela inerentes, configurando

um processo de desenvolvimento em que cada estado se institui em especificidade irredutível)forjam-se concebendo-se em contradição com os princípios do direito natural e da razãouniversal (aistoricidade da essência humanLl passível de explicação regular).

Professorna UniversidadeFederalde Goiània.

dezembro de 2001