Rudolf Steiner - O Cristian Ism

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    Rudolf Steiner

    O cristianismo como fato mstico

    e os mistrios da Antigidade

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    Traduo:Rudolf Lanz

    Prefcio segunda edio alem

    O cristianismo como fato mstico foi o ttulo dado a esta obra quando, h oito anos, nela

    condensamos o contedo de conferncias proferidas em 1902. Com esse ttulo tencionamosapontar o carter particular do livro. No procuramos apenas fazer uma exposio histrica docontedo mstico do cristianismo; quisemos, antes, descrever a origem do cristianismo a partirda contemplao mstica. A idia subjacente era que nessa origem haviam atuado fatosespirituais perceptveis apenas por meio de tal contemplao. Somente o contedo do livropoder evidenciar que no denominamos mstica uma contemplao mais voltada a vagosconhecimentos sentimentais do que a uma exposio estritamente cientfica. Com efeito,atualmente se entende a mstica, em muitos crculos, como um aspecto da vida psquicahumana que nada tem a ver com a autntica cincia. No esprito deste livro, emprega-se otermo mstica para descrever um fato espiritual cuja natureza s pode ser conhecida quandotal conhecimento decorre das prprias fontes da vida espiritual. Quem recusar uma forma de

    conhecimento que haure de tais fontes no poder alcanar posio alguma quanto a seucontedo. Somente quem admitir poder reinar na mstica a mesma clareza que caracteriza aexposio de fatos cientficos aceitar que se faa aqui uma descrio do contedo docristianismo como mstica. No importa apenas o contedo do livro, mas e antes de tudo os meios cognitivos pelos quais se chega sua exposio.

    Na poca atual ainda reina violenta antipatia contra tais meios de conhecimento,considerados como contrrios ao verdadeiro esprito cientfico. Assim pensam no apenas osque s aceitam uma concepo do Universo fundada em conhecimentos cientficosautnticos, mas tambm aqueles que, como adeptos do cristianismo, pretendem analisar suaessncia. O autor desta obra entende que as conquistas cientficas de nossa poca exigem quenos elevemos a uma verdadeira mstica, e que qualquer outra atitude perante o problema doconhecimento contraria os frutos da pesquisa cientfica. Com efeito, os fatos da CinciaNatural no podem ser abarcados com os meios cognitivos aos quais pensam poder limitar-seos que afirmam possuir o firme fundamento da cincia.

    S no desaprovar este livro quem puder admitir que a aceitao das descobertas toadmirveis de nossa cincia perfeitamente compatvel com um autntico misticismo.

    Por meio do que aqui ser chamado conhecimento mstico ser mostrado que a fonte docristianismo engendrou suas prprias premissas nos mistrios pr-cristos. Nessa mstica pr-crist se revelar o solo em que brotar o cristianismo como germe independente. Esse pontode vista permitir compreender o cristianismo em sua natureza autnoma, apesar de seacompanhar sua evoluo a partir da mstica pr-crist. Desprezando esse enfoque, chega-se a

    negar essa autonomia: o cristianismo, segundo esse ponto de vista, seria apenas a continuaodaquilo que j existia na mstica anterior. Caem nesse erro muitas opinies atuais, quecomparam o contedo do cristianismo com doutrinas pr-crists, vendo nele apenas um reflexodestas. Este livro pretende mostrar que o cristianismo pressupe a mstica anterior como ogerme vegetal pressupe seu solo. Longe de querer apagar o carter peculiar da essncia docristianismo pelo conhecimento de sua origem, procuraremos, ao contrrio, coloc-lo emrelevo.

    Para ns constitui motivo de profunda satisfao o fato de nossa interpretao daessncia do cristianismo ter merecido o assentimento de uma personalidade cujas notveisobras sobre a vida espiritual da humanidade enriqueceram de modo significativo a cultura denossa poca. Edouard Schur, autor de Les grands initis, concordou de tal maneira com os

    pontos de vista deste livro que se encarregou de sua traduo para o francs (com o ttulo: Les

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    mystres antiques et les mystres chrtiennes). Seja dito parte e s para mostrar queexiste real anseio de interpretar a essncia do cristianismo conforme o esprito deste livro que a primeira edio foi traduzida para vrias lnguas europias, alm do francs.

    No julgamos necessrio modificar nada de essencial no contedo da primeira edio.Alguns acrscimos foram feitos, assim como tentativas de expor alguns tpicos com maior

    preciso e maiores detalhes do que foi possvel oito anos atrs. Infelizmente, sobrecarregadosde trabalho, tivemos de deixar passar longo lapso de tempo entre o momento em que seesgotou a primeira edio e o aparecimento desta segunda.

    Rudolf SteinerMaio de 1910

    Pontos de vista

    A vida conceitual moderna foi profundamente influenciada pelo pensamento cientfico.Est-se tornando cada vez menos possvel falar das necessidades espirituais da vida daalma sem entrar em discusso sobre meios de representao e conhecimento das CinciasNaturais. Se muitos ainda procuram a satisfao dessas necessidades sem se deixar perturbarpela corrente cientfica, os que sentem o pulso de nossa poca tm de tomar rumo diferente.Os conceitos hauridos da cincia conquistam rapidamente crebros e, em seguida, os coraes,embora estes muitas vezes hesitantes e sem nimo. O que importa no apenas o nmero dosque se deixam convencer, mas a existncia de uma fora, inerente ao raciocnio cientfico,que d ao observador atento a convico de que nenhuma cosmoviso moderna podedefrontar-se com esse raciocnio sem receber impresses significativas. Certos exageros desseraciocniojustificam uma atitude de repulsa, mas no pode ser essa a reao definitiva numapoca em que muitos se dedicam a essa maneira de pensar, atrados por ela como que pormagia. Essa situao no se altera pelo fato de alguns j se terem convencido de que hmuito a verdadeira cincia ultrapassou a superficial sabedoria da energia e da matria domaterialismo. Parece que, antes, deveriam ser levados a srio os que valentemente afirmam oseguinte: uma nova religio tambm deveria ser alicerada em conceitos cientficos. Os queprofessam tal opinio podem parecer banais e superficiais a quem conhea os mais profundosinteresses espirituais da humanidade: mesmo assim este ter de dar-lhes ouvidos, pois a elesse dirige a ateno da atualidade, e h bons motivos para acreditar que sabero conquist-lade modo crescente, num futuro muito prximo. Tampouco convm ignorar as pessoas nas quais

    os interesses do corao permaneceram aqum dos interesses do crebro. So aquelas cujointelecto no soube resistir s idias cientfico-naturais. O fardo das provas lhes pesa, masessas idias no satisfazem s necessidades religiosas de seu corao, abrindo-lhes, aocontrrio, perspectivas deveras desoladoras. Ser que a alma humana, depois de seentusiasmar pelas alturas da Beleza, da Verdade e do Bem, destina-se a ser inexoravelmentevarrida para o nada, qual uma bolha de ar insuflada pelo crebro material? Eis uma sensaoque atormenta muitos como um pesadelo. Alm disso, os conceitos cientfico-naturaisoprimem tambm por impor-se com imensa fora autoritria. Tais indivduos, enquantopuderem, permanecero cegos disparidade em sua alma, indo at afirmao de que no sepode alcanar plena clareza em assuntos dessa espcie: eles raciocinam cientificamente,enquanto assim o exigem a experincia de seus sentidos e a lgica de seu intelecto; mas ao

    mesmo tempo conservam seus sentimentos religiosos, frutos de longa formao, preferindo

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    manter esses assuntos numa penumbra que obnubila o intelecto. No tm a coragem de pensarcom clareza.

    No pode, ento, pairar dvida: o pensamento cientfico a fora mais atuante na vidaespiritual de nosso tempo. No pode desprez-lo quem aborda os interesses espirituais dahumanidade. No h dvida, tampouco, de que sua maneira de satisfazer as necessidades

    espirituais superficial e pouco profunda. Seria triste se essa fosse a maneira correta. Seriamesmo constrangedor ter de concordar com algum que afirmasse: O pensamento umaforma de energia; usamos a mesma fora para caminhar e para pensar. O homem umorganismo que transforma vrias formas de energia em pensamento um organismo cujaatividade mantemos pela chamada alimentao, gerando o que chamamos de pensamentos.Que maravilhoso processo qumico foi aquele capaz de transformar certa quantidade dealimento na divina tragdia de um Hamlet!Ora, tudo isso consta de um escrito de Robert G.Ingersoll, intitulado O moderno crepsculo dos deuses. Pouco importa que tais pensamentos,pronunciados por um indivduo ou outro, encontrem apenas escassa ateno. Inmeras pessoas e esse o ponto capital adotam semelhante atitude em decorrncia da mentalidadecientfica atual, mesmo acreditando no faz-lo.

    A perspectiva seria, decerto, desoladora se realmente a cincia impusesse o credo quemuitos dentre seus profetas proclamam. Ele o seria sobretudo para o indivduo que, peloestudo das cincias, se haja convencido de que, em seu campo, seus mtodos e conceitos sorealmente inabalveis. Com efeito, esse indivduo dever admitir que, sejam quais forem asdiscrepncias sobre os vrios problemas, seja qual for o nmero de volumes publicados e deobservaes compiladas a respeito da luta pela sobrevivncia e sua insignificncia, sobre aonipotncia ou a impotncia da seleo natural, a prpria cincia se movimenta numadireo que, dentro de certos limites, tem de encontrar aceitao sempre maior.

    Contudo, sero os postulados da cincia realmente aqueles proclamados por seusdiscpulos? O prprio comportamento destes prova o contrrio, pois em seu prprio campo elesagem de modo bem diverso do que se descreve ou exige para outros domnios. Ser que Darwine Ernst Haeckel teriam feito suas grandes descobertas no campo da evoluo da vida se, emvez de observar a vida e a estrutura dos seres vivos, tivessem apenas realizado experinciasqumicas com um pedao de tecido cortado de um organismo? Ser que Lyell1teria sido capazde descrever a evoluo da crosta terrestre se tivesse analisado apenas quimicamenteinmeras rochas, sem investigar as prprias camadas da Terra e seu contedo? Ns realmentetrilhamos os caminhos percorridos por estes pesquisadores, que se erguem qual vultos monu-mentais na histria mais recente da cincia! Procederemos, pois, nas regies mais elevadas davida espiritual, da mesma forma como eles procederam na observao da natureza. Ento nin-gum acreditar que a essncia da divina tragdia Hamlet seja satisfatoriamente explicadapelo maravilhoso processo qumico que transformou em tragdia o alimento absorvido pelo

    autor. Acreditar nisso seria to impossvel quanto o seria, a qualquer cientista, acreditar que asimples observao do efeito do calor sobre o enxofre numa retorta qumica o fariacompreender o papel do calor na formao da Terra. Semelhantemente, ele no procurarentender a estrutura do crebro humano extraindo um fragmento da cabea e observandocomo este reage a uma soluo alcalina, e sim investigando como o crebro evoluiu nopassado, a partir de rgos de organismos inferiores.

    Constatamos, pois, a seguinte verdade: quem investiga a essncia do esprito s poderaprender muito das Cincias Naturais. Basta imit-las, mas sem deixar-se enganar por aquiloque alguns de seus adeptos lhe querem prescrever. Tal como as cincias pesquisam no campofsico, assim ele dever faz-lo no campo espiritual sem, todavia, adotar as opinies que elasformaram a respeito desse ltimo, obcecadas em pensar sobre o puramente fsico.

    1SirCharles Lyell (1797-175), gelogo ingls defensor da teoria do chamado atualismo na Geologia. (N.E.)

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    S se age de acordo com o esprito da cincia quando se encara a evoluo espiritual dahumanidade sem preconceitos, como o faz o cientista com o mundo fsico. Isso nos conduzir,no domnio espiritual, a uma maneira de ver que difere do mtodo puramente cientfico tantoquanto o ponto de vista geolgico difere do meramente qumico e a investigao da evoluobiolgica difere da pesquisa das leis meramente qumicas. Seremos levados a adotar mtodos

    superiores, distintos dos da cincia comum, embora imbudos do mesmo carter. Isso permitirmodificar ou corrigir, sob um novo ponto de vista, alguns aspectos unilaterais da pesquisa danatureza: dessa maneira, porm, continuaremos a obra dessas cincias, e de modo algumficaremos contra elas.

    S recorrendo a tais mtodos que se pode realmente penetrar em certas correntesespirituais, como o cristianismo ou outras formas religiosas. Quem os adota possivelmenteprovoca a oposio de alguns que pensam raciocinar cientificamente; no entanto, sabe queest em pleno acordo com uma atitude verdadeiramente cientfica.

    Um pesquisador, nesse sentido, deve tambm transcender o estudo exclusivamentehistrico dos documentos relativos vida espiritual. Deve faz-lo justamente em conseqnciade sua atitude decorrente da observao da natureza. Pouco valor tem, para a exposio de

    uma lei qumica, a descrio das retortas, recipientes e pinas que permitiram chegar suadescoberta. Da mesma forma, para explicar a origem do cristianismo no ter maior ou menorvalor a constatao das fontes das quais hauriu o evangelista Lucas, ou a descrio doselementos que empregou Joo para compilar o Apocalipse. A Histria constitui, aqui, apenasa ante-sala da verdadeira pesquisa. Nada se aprende sobre as idias dominantes dos escritosde Moiss, ou das tradies dos iniciados gregos, quando se perscruta a origem histrica dosrespectivos documentos, pois nestes encontramos apenas a expresso exterior. Tampouco ocientista que investiga a essncia do homem se apegar origem do vocbulo homem, nem sua etimologia: ele se concentra no objeto, e no napalavra que o expressa. Assim, pois, noestudo da vida espiritual teremos de ater-nos ao esprito, e no aos documentos exteriores.

    Os mistrios e sua sabedoria

    Como que encoberta por um vu misterioso assim se nos apresenta a maneira pelaqual, nas antigas civilizaes, eram satisfeitas as aspiraes espirituais dos que ansiavam poruma vida religiosa mais intensa e por conhecimentos mais profundos do que aqueles oferecidospelas religies populares. Procurando saber como essas necessidades eram satisfeitas, somosconduzidos penumbra de cultos enigmticos. Com efeito, todo indivduo que encontra essasatisfao se subtrai, durante algum tempo, nossa observao. Ns observamos como,inicialmente, as religies populares no lhe podem oferecer o que seu corao procura; ele

    reconhece a existncia dos deuses, mas sabe que os grandes enigmas da existncia no seresolvem pelas idias habituais a respeito desses deuses. Busca uma sabedoria zelosamenteguardada por uma comunidade de sacerdotes, onde sua alma anelante procura refgio. Se ossbios o julgarem suficientemente maduro, iro conduzi-lo gradualmente a conhecimentossuperiores, por caminhos ocultos a qualquer observao exterior. O que lhe acontece ento seoculta aos no-iniciados. Por algum tempo ele parece alheado do mundo terreno e como quetransportado para outro, misterioso.

    Quando ele reaparece luz do dia, temos diante de ns uma pessoa completamentetransformada, incapaz de encontrar palavras de suficiente categoria para exprimir quosignificativa foi a experincia vivida. Parece-lhe ter transposto, por assim dizer, o umbral damorte e renascido para uma vida nova e superior, e isso no apenas metaforicamente, mas na

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    acepo mais real. Outrossim, ele se d conta de que no pode entender corretamente suaspalavras quem no viveu experincia idntica.

    Assim acontecia s pessoas iniciadas nos mistrios, isto , no misterioso contedosapiencial que, subtrado ao povo, podia trazer luz sobre as perguntas mais elevadas. Ao ladoda religio popular havia, pois, essa religio oculta dos eleitos, cujos primrdios se perdem,

    para o olhar histrico, na penumbra da origem dos povos. At onde possvel pesquisar a talrespeito, isso encontrvel em todos os povos antigos, cujos sbios falavam nesses mistrioscom o maior respeito. O que se ocultava neles? O que revelavam eles a quem, ali, se tornavainiciado?

    Seu carter enigmtico fica realado pela constatao de que esses mistrios eramconsiderados pelos antigos como algo perigoso. O caminho que levava aos mistrios da vidapassava por um mundo de horrores. Infeliz daquele que quisesse alcan-los indignamente!

    No havia crime maior do que a revelao dos segredos a pessoas no-iniciadas. Otraidor era condenado morte e ao confisco de seus bens. Consta que o poeta Esquilo foiacusado de ter levado ao palco algo do contedo dos mistrios, s conseguindo salvar-se damorte por ter-se refugiado no altar de Dionsio e ter provado judicialmente que nem era um

    iniciado.O que os antigos dizem dos mistrios significativo, embora sujeito a vrias

    interpretaes. O iniciado estava convencido de estar cometendo um pecado ao revelar o quesabia; da mesma forma, escut-lo constitua um pecado para o no-iniciado. Plutarco fala dopavor dos nefitos, comparando seu estado aos preparativos para a morte. A iniciao deviaser precedida por um regime especial, destinado a submeter a sensualidade ao domnio doesprito por meio de jejuns, isolamento, mortificaes e certos exerccios anmicos. As coisasapreciadas pelo homem na vida comum deviam perder todo o valor. Uma reviravolta tinha deocorrer em toda a sua vida emotiva e sentimental.

    No pode pairar dvida sobre o sentido de tais exerccios e provas. A sabedoria oferecidaao nefito s podia agir sobre sua alma depois de radicalmente transformada sua vidaemocional inferior. Ele era admitido existncia do esprito; a ele se abria um mundo superiorcom o qual era impossvel entrar em relao sem os exerccios e provas preliminares. O queimportava era justamente essa relao. Para se terem idias corretas a esse respeito, torna-semister adquirir a experincia dos fatos ntimos da vida cognitiva. preciso ter em mente queexistem duas atitudes bem divergentes em relao ao que o conhecimento superior oferece.

    O mundo real do homem inicialmente aquele que o rodeia e cujos fatos ele apalpa,ouve e enxerga. Ele os chama de reais por perceb-los com os sentidos, e medita sobre elespara esclarecer-lhes as relaes recprocas. Por outro lado, aquilo que surge em sua alma nopossui o mesmo grau de realidade: trata-se de simples idias e pensamentos. Ele osconsidera no mximo imagens da realidade sensorial, que no possuem realidade intrnseca

    por serem impalpveis, inaudveis e invisveis.Existe, porm, outra atitude perante o mundo, incompreensvel para quem se agarra aotipo de realidade que acaba de ser descrito. Ela surge para certos indivduos, em determinadomomento de sua vida, como uma reviravolta em sua atitude anterior. Eles passam a atribuirautntica realidade a formas que lhes imergem na vida espiritual da alma, enquantoconsideram como menos real o que seus sentidos ouvem, apalpam e enxergam. Sabem nopoderem provar o que afirmam, sendo apenas capazes de comunicar o que vivenciaram encontrando-se desta forma, perante os outros, na mesma situao em que ficaria quemdescrevesse a um cego nato as percepes visuais. Decidem relatar suas experinciasinteriores, confiando em que outros ao seu redor, embora tendo ainda os olhos espirituaisfechados, possam chegar, pela prpria fora do que ouvem, a um entendimento do contedo

    dessas experincias. Tm f na humanidade e pretendem ser descerradores de olhos

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    espirituais. Podem apenas oferecer os frutos que seu prprio esprito colheu; o fato de o outroconseguir v-los depender de sua capacidade de compreender o que os olhos espirituaisenxergam.

    H algo, no homem, que inicialmente o impede de enxergar com os olhos espirituais. Aprincpio, isso no de seu feitio. Ele o que de acordo com seus sentidos, e seu intelecto

    serve apenas para interpretar e julgar os sentidos. Estes mal desempenhariam suas tarefas, seno insistissem na fidelidade e infalibilidade de suas informaes. Bem defeituoso seria o olhoque, de seu ponto de vista, no sustentasse a verdade absoluta de suas percepes. Por si oolho tem razo, e tampouco a perde diante do olho espiritual. Este, porm, permitecontemplar os objetos do olho sensorial sob uma luz superior, sem que nada se negue daquiloque este enxergou. O que foi visto passa a irradiar um brilho novo, antes no percebido. Sabe-se, ento, que inicialmente se viu apenas uma realidade inferior. Continuamos vendo omesmo, mas envolvido em algo superior, que o esprito. O que importa, nesta altura, ter asensao e o sentimento do que se v. Quem reage com sensaes e sentimentos vividosapenas no sensorial ver no superior apenas uma Fada Morgana, uma mera criaofantstica, pois seus sentimentos s visam o mundo sensvel. Querendo assimilar as formas

    espirituais, tatear no vcuo, porque estas recuam diante dele. Parecem apenas pensa-mentos, que ele elabora mas no vivncia. So, para ele, imagens mais irreais do que sonhosfugazes imagens que, diante de sua realidade, surgem como bolhas de espuma edesaparecem ante a solidez macia das percepes sensoriais.

    Algo diferente ocorre com quem modificou suas sensaes e seus sentimentos frente realidade, que para ele perdeu sua solidez absoluta e seu valor incondicional. Sem perder suaagudeza, seus sentidos e sentimentos comeam, porm, a duvidar de sua autoridadeincondicional, deixando espao para algo mais. O mundo do esprito comea a animar esseespao.

    Abre-se aqui uma possibilidade de funestas conseqncias: o homem poderia perder asensao e o sentimento da realidade imediata, sem que lhe aparecesse outra. Ficaria novcuo, como que inerte: os velhos valores teriam passado, sem que lhe houvessem surgidonovos. O mundo e o homem j no existiriam para ele. Longe de ser apenas uma possibilidade,essa situao se torna realidade para todo indivduo que busca conhecimentos superiores,chegando a um ponto em que o esprito lhe revela que toda vida morte. Ele no pertencemais ao mundo. Est sob ele, no reino das trevas. Realiza a descida ao Hades. Qui nosubmerja; que um novo mundo se lhe abra! Ou ele naufragar, ou ressurgir transfigurado.Neste caso, ter diante de si um novo Sol, uma nova Terra: todo o Universo ter renascido dofogo espiritual.

    Assim descrevem os iniciados os efeitos dos mistrios. Menipo conta que viajou Babilnia para ser levado pelos adeptos de Zoroastro ao Hades e depois voltar Terra. Relata

    que, no decurso de suas peregrinaes, atravessou a nado a Grande gua; que cruzou o fogo eo gelo; que os neftos eram amedrontados por uma espada desembainhada, enquanto jorravasangue. Tais palavras tornam-se inteligveis a quem conhece a passagem do conhecimentoinferior ao superior, experimentando a dissoluo de tudo o que material e sensorial e aperda de todo apoio. O que antes tinha vida tornou-se morto. O esprito atravessou a vidasensorial como uma espada transpassa um corpo vivo; viu-se escorrer o sangue dasensibilidade.

    Porm uma nova vida surgiu; ocorreu a volta das trevas, da qual fala o retorAristides:

    Eu tinha a impresso de tocar Deus, de sentir-lhe a proximidade, e estava entre o sono e aviglia; meu esprito estava to leve que no o poderia exprimir ou entender quem no fosse

    iniciado.

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    Essa nova existncia no est subordinada s leis da vida inferior; no a afetam onascimento e o perecimento. Pode-se falar muito no eterno, mas quem no o entender comoo entenderam os que voltaram do Hades ficar apenas numa parlenga. Os iniciados tm novanoo da vida e da morte, julgando-se autorizados a falar da imortalidade; sabem que no aentendem os que sobre ela falam antes de conhec-la pela iniciao, pois a atribuem a algo

    sujeito s leis do nascimento e da morte. Contudo, os iniciados no almejam apenas chegar convico da perenidade do cerne vital. Segundo a concepo dos mistrios, tal convico nopossuiria valor algum. Com efeito, o eterno, segundo a opinio deles, nem existiria no no-iniciado; pois este, ao falar de algo eterno, falaria do nada. E principalmente esse eterno queos nefitos buscam, s podendo falar dele depois de despert-lo em si mesmos. Por isso tempara eles plena realidade a dura palavra de Plato segundo a qual os no-iniciados afundam nolodo, s atingindo a eternidade quem passa por uma vida mstica. E apenas nesse sentido quepodemos interpretar um trecho de um fragmento de Sfocles:

    Bem-aventurados os iniciados que alcanam o reino das sombras. S eles vivem ali osdemais nada conhecem seno sofrimento e dissabores.

    No se descrevem perigos quando se alude aos mistrios? Levar algum ao umbral dosmundos inferiores no significa roubar-lhe a felicidade e at algo dos valores mais elevados daexistncia? Imensa seria a responsabilidade de quem assim procedesse. Mesmo assim, ser quetemos o direito de fugir a essa responsabilidade? Tais eram as perguntas que o iniciado fazia asi prprio. Ele achava que a crena popular estava para sua prpria sabedoria como as trevaspara a luz. Mas nessas trevas reside uma felicidade ingnua, na qual no se deveria interferirsacrilegamente. Ora, qual teria sido o significado de uma traio do segredo pelo iniciado?Ele teria pronunciado meras palavras, e nada mais, pois no existiriam as sensaes e os senti-mentos capazes de evocar o esprito a partir de tais palavras. Para tal eram essenciais ospreparativos, os exerccios e provas, assim como a reviravolta da vida sensorial, sem o qu oouvinte apenas iria encontrar o nada, o vcuo. Ter-lhe-iam tirado a felicidade em troca de

    nada. E nem isso, pois com meras palavras sua vida emotiva no teria sido modificada. Eleteria podido sentir, experimentarrealidade somente nos objetos de seu mundo sensorial. Ter-se-ia provocado nele nada mais do que um terrvel e mortal pressentimento, forosamenteconsiderado um crime. Na poca atual, tais consideraes no tm mais validade para aaquisio do conhecimento espiritual. Com efeito, este pode ser entendido conceitualmente,porque a humanidade atual possui uma capacidade conceituai inexistente na humanidadeantiga. Hoje em dia pode haver, de um lado, homens capazes de conhecer o mundo espiritualpor experincia prpria e, de outro, os que compreendem as experincias transpostas emconceitos, faculdade de que carecia a humanidade de ento.

    A velha sabedoria dos mistrios se assemelha a uma planta de estufa, que necessita de

    recluso para seu desenvolvimento. Transport-la para o mbito das opinies corriqueirassignificaria coloc-la numa atmosfera em que ela no pode evoluir. De fato, ela no resiste aojulgamento custico da mentalidade cientfica e da lgica moderna. Renunciemos, por algumtempo, a toda educao resultante do microscpio, do telescpio e da atitude intelectual dascin&as; limpemos nossas mos desajeitadas aps tantas experincias e dissecaesanatmicas, para entrar no templo puro dos mistrios. Isso, contudo, exige uma autnticaimparcialidade.

    Cabe ao adepto, em primeiro lugar, ter a disposio de nimo adequada ao se avizinhardaquilo que ele experimenta como o mais sublime, isto , como respostas aos enigmas daexistncia. Em nossa poca, considera-se como conhecimento apenas o que cientificamentecomprovado, tornando-se particularmente difcil admitir que se chegue a um consenso a

    respeito dos grandes problemas. Destarte, o conhecimento passaria a ser assunto ntimo doindivduo. Mas tal , precisamente, o caso do iniciado. Dar a algum a soluo dos grandes

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    enigmas universais, p-lo na palma de sua mo, seria apenas um palavreado sem sentido se oindivduo no pudesse enfrentar essa soluo de modo correto. A soluo em si nada ;volatiliza-se quando o sentimento no se empenha o necessrio. Imagina uma divindadesurgindo tua frente! Ela ser nada ou tudo. Ser nada se a enfrentares com a disposio denimo que te liga s coisas cotidianas. Ser tudo se estiveres preparado, afinado para

    enfrent-la. O que ela for por si no te toca: o importante se ela te deixa tal como s ou sefaz de ti outro homem. Mas isso depender exclusivamente de ti. As foras mais ntimas de tuapersonalidade devem ter sido educadas e adestradas para que possas acender e liberar o queuma divindade te possibilita. Tudo depende de como acolheres o que te for ofertado.Plutarco descreveu essa educao, e relatou a saudao dirigida pelo adepto divindade quelhe vem ao encontro:

    Pois Deus sada, por assim dizer, todos os que se aproximam dele com as palavras: Conhece-te a ti mesmo saudao em nada inferior ao ordinrio Salve!. Ns, porm, respondendocom as palavras: Tu s!, dirigimo-lhe a saudao do ser como a saudao autntica,primordial e pertencente exclusivamente Divindade. E que aqui no participamos, a rigor,desse ser; com efeito, toda criatura mortal, a meio caminho entre o nascer e o perecer,revela apenas uma aparncia, uma fraca e incerta iluso de si prpria; quando a razo seesfora por entend-la, acontece o mesmo que com a gua demasiadamente comprimida, quecoalha apenas pela compresso e estraga tudo o que contm; na realidade, quando a razochega a uma concepo perfeitamente ntida de um ser sujeito a acidentes e transformaes,desvia-se ora at sua origem, ora at seu fim, sem poder captar algo de permanente ou queverdadeiramente exista. Pois conforme j disse Herclito, no se pode nadar duas vezes namesma onda, nem captar um ser mortal duas vezes no mesmo estado: pela vivncia e pelarapidez do movimento, ele se destri e se reintegra novamente, nasce e morre, vai e volta.Por isso, tudo o que devm2 nunca alcana o verdadeiro ser: o surgimento nunca cessa ourepousa; a transformao j comea com o germe, plasmando um embrio, depois umacriana, um adolescente, um adulto, um velho e um ancio, destruindo os primeiros estados eidades pelos consecutivos. Nessas condies, seria absurdo termos medo de uma morte, seja

    morremos e continuamos morrendo de tantas formas. Com efeito, segundo Herclito, no apenas verdade que a morte do fogo seja o nascimento do ar e que a morte do ar seja onascimento da gua: podemos ver isso muito mais nitidamente no prprio homem, pois oadulto morre ao se tornar ancio, o adolescente ao tornar-se homem, o menino ao adolescere a criana ao se transformar em menino. O ontem morre no hoje, assim como o hoje morrerno amanh; nada se mantm ou nico, pois assumimos formas mltiplas pelo fato de amatria se agitar em redor de um modelo, de uma forma comum. Se permanecssemossempre os mesmos, como que poderamos apreciar presentemente coisas diferentes das queapreciamos no passado, amar e odiar, admirar e criticar coisas opostas; como poderamosemitir opinies novas, sucumbir a novas paixes, se no assumssemos aparncia nova, formasnovas, sentidos novos? Sem transformao no se pode alcanar um novo estado, e quem setransforma j no o mesmo: mas deixando de ser o mesmo deixa de existir, pois deixa paratrs a existncia antiga para tornar-se outro. Desconhecendo o verdadeiro ser somosinduzidos, pela percepo sensorial, a considerar como tal o que apenas aparncia. [Sobre oEI de Delfos, 17 e 18.]

    Plutarco fala freqentemente de si como de um iniciado, e a descrio precedenteaponta uma condio da vida do discpulo dos mistrios. O homem alcana uma sabedoria pelaqual o esprito constata o carter ilusrio da vida sensorial. O que os sentidos consideramcomo ser, como realidade, est como que imerso no fluxo do devir: o que se d com as outrascoisas do mundo acontece tambm ao homem. Diante de seu olho espiritual, ele prprio seesfuma; sua totalidade se decompe em fragmentos, em fenmenos passageiros. Perdendo seusignificado relevante, o nascimento e a morte ficam reduzidos a meros momentos no processoda formao e do perecimento, como tudo o que acontece. No se pode encontrar o Supremo

    2Traduzo aqui o verbo alemo werden por devir, galicismo oriundo de dvnir. (N.T.)

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    no processo do devir e perecer. Este s pode ser encontrado naquilo que realmente estvel,que rev o passado e antev o futuro.

    Alcanar esse grau de retrospeco e de previso significa atingir um grau superior deconhecimento. E o esprito que se manifesta no e ao sensorial. Nada possuindo em comum como mundo sensvel, o esprito no nasce nem morre ao modo dos fenmenos sensoriais. Quem

    vive apenas no mundo sensorial encerra o esprito em estado latente; quem conhece seucarter ilusrio o possui como uma realidade patente: ter desenvolvido novo rgo de suaentidade, realizando algo como a planta que, depois de possuir apenas folhas verdes, fazdesabrochar uma flor colorida. Decerto as foras que deram origem flor j se achavampreviamente na planta, mas encontraram sua realizao somente com esse surgimento. Domesmo modo, o homem sensorial j contm as foras divino-espirituais; estas se revelam, po-rm, apenas no iniciado, pois essa a transformao que nele se operou: ele acrescentou,pela prpria evoluo, algo novo ao mundo j existente. Cumprindo sua tarefa, o mundosensvel fez dele um homem sensorial e o abandonou prpria sorte. Esgotou suaspossibilidades de usar foras disponveis no homem; mas as prprias foras ainda no se achamesgotadas, pois jazem no homem natural como que encantadas, espera de seu

    desencantamento. Elas no podem redimir-se a si prprias; desvanecem-se no nada quando ohomem no as desenvolve, chamando verdadeira realidade o que repousa nele em estadolatente.

    A natureza evolui do mais imperfeito ao perfeito, conduzindo os seres, numa amplaescala, por todas as formas da vida at chegar ao homem. Este, ao abrir os olhos fsicos,percebe-se qual um ser sensrio-real, mutvel. Sente tambm em si as foras queengendraram tal situao sensorial, embora no constituam o elemento mutvel, pois por elasfoi gerado esse elemento. O homem as encerra como indcio de estar abarcando mais do quesensorialmente percebe. Ainda no existe o que essas foras possam produzir. O homem senteraiar em seu cerne algo que criou tudo, inclusive ele prprio, e que lhe dar asas para umacriatividade superior. Esse algo existe nele como existiu antes de sua manifestao sensorial, eexistir depois desta. Ele formou o homem, mas agora este pode capt-lo e participar de seutrabalho criador. Tais sentimentos permeiam o antigo iniciado aps a iniciao. Ele pressentiuo Eterno, o Divino, de cuja criao dever participar pelo prprio agir, podendo, pois, dizer asi prprio: Descobri em mim um eu superior, que transcende os limites de minha existnciasensvel, ou seja, nascimento e morte. Esse eu, atuando por toda a eternidade, criou minhapersonalidade sensvel. Incorporou-me a si prprio, cria em mim; eu fao parte dele. O queagora produzo superior ao sensorial. Minha personalidade apenas um instrumento dessafora divina que cria em mim. Dessa forma o adepto experimentou sua prpria divinizao.Os iniciados denominaram a fora que assim raiava em seu ntimo como seu verdadeiroesprito. Eles se consideravam seus produtos, e tinham a sensao de que um ser novo os havia

    penetrado, tomando posse de seus rgos; um ser intermedirio entre eles personalidadesdo mundo sensorial e o Divino, poder universal que tudo abarca. Era esse seu verdadeiroesprito que o adepto procurava. Tornei-me homem dentro da grande natureza, assim dizia asi mesmo. Mas essa natureza no terminou sua criao; sou eu quem deve termin-la. Noposso faz-Io dentro do imperfeito reino da natureza, ao qual tambm perteno com meucorpo. Neste reino, tudo o que se pode desenvolver desenvolvido. Por isso tenho de sairdele, continuando no mundo espiritual o trabalho construtor no ponto onde a natureza parou.Preciso proporcionar a mim mesmo uma atmosfera vital que no se encontra na naturezafsica. Era essa atmosfera que os adeptos encontravam nos templos de mistrios. Era a quese lhes despertavam as foras latentes, que se realizava a transformao em seres espirituais,criadores, superiores. Essa transformao era um processo delicado, imprprio para suportar o

    ar rijo do mundo exterior. Contudo, uma vez plenamente acabada, fazia do homem um

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    rochedo firmado na eternidade e capaz de resistir a qualquer tempestade. S que o iniciadono devia ter a iluso de poder relatar a outros, de maneira direta, o que experimentara.

    Plutarco informa que nos mistrios se podem encontrar as mais profundas revelaes einterpretaes da verdadeira essncia dos demnios. E de Ccero lemos que nos mistrios seaprende mais sobre a essncia das coisas que sobre a dos deuses, desde que haja uma

    interpretao correta e uma indagao sobre seu sentido (Plutarco: Sobre a decadncia dosorculos; Ccero: Sobre a natureza dos deuses). Tais comunicaes mostram que o adeptopodia ter revelaes mais profundas, sobre a essncia do mundo, do que aquelas oferecidaspela religio popular. Constatamos que at os prprios demnios, isto , as entidades espiri-tuais, assim como os prprios deuses, precisavam ser explicados. Remontava-se, portanto, aseres ainda superiores a demnios e deuses o que era do mbito dos mistrios. O povorepresentava demnios e deuses sob forma de imagens calcadas no mundo sensrio-real. Acasono havia de ter srias dvidas, quanto a eternidade de tais deuses, aquele que perscrutava aessncia do eterno? Como que o Zeus da imaginao popular podia ser uma entidade perene,se possua as qualidades de um ser perecvel?

    Os iniciados sabiam perfeitamente que o homem chega a seu conceito dos deuses de

    modo diferente do que ao conceito de outras coisas. Um objeto material compele-me a fazerdele uma representao bem definida. Em comparao, a maneira como se fazemrepresentaes de seres divinos livre, quase arbitrria: falta a compulso do mundo externo.A reflexo nos mostra que representamos, com os deuses, algo para o qual no h controleexterior algum. Isto coloca o homem numa incerteza lgica. Ele passa a considerar-se a siprprio o criador de seus deuses, e pergunta-se como pode, ao criar seu mundo derepresentaes, transcender a realidade fsica. O adepto tinha de dedicar-se a taisconsideraes, fontes de dvidas perfeitamente justificadas. Vejam-se, assim lhe era lcitopensar, as representaes de deuses: no se parecem com seres do mundo material? Ohomem no os ter inventado juntando ou tirando essa ou aquela qualidade do ser do mundosensvel? O homem primitivo, que gosta de caar, imagina um cu onde se realizam as maismagnficas caadas; e o grego povoa o Olimpo de personalidades divinas, cujos prottipos tiroude seu ambiente grego.

    O filsofo Xenfanes (575-480 a.C.) apontou esse fato com uma lgica rude.Sabemos que os filsofos gregos mais antigos estavam imbudos da sabedoria dosmistrios, o que demonstrado em particular a partir de Herclito. O seguinte trechode Xenfanes deve, portanto, sem vacilao ser considerado opinio de um iniciado:

    Os homens que imaginam criar os deuses sua imagem devem possuir seus sentidos, sua voz eseu corpo. Contudo, se os bois e os lees tivessem mos para com elas trabalhar ou pintarcomo os homens, dariam a seus deuses a forma de seus prprios corpos: deuses-cavalos paraos cavalos, deuses-bois para os bois.

    Certamente tal opinio pode induzir o homem a duvidar de tudo o que for divino,rejeitando os mitos divinos e admitindo como real apenas o que suas percepes sensoriais lheimpem. Mas por tal dvida o iniciado no passou, pois sabia que quem duvidasse seassemelharia a uma planta que dissesse: Estou limitada s minhas folhas verdes; minha florcolorida apenas ilusria e no existe, pois tudo o que eu acrescesse s folhas no poderiapassar de iluso. Tampouco o iniciado pode limitar-se aos deuses criados, aos deusespopulares. Pudesse a planta raciocinar, chegaria concluso de que as foras que lhe criaramas folhas verdes destinavam-se tambm a dar-lhe a flor, e no deixaria de indagar dessasforas at enxerg-las. Assim se relacionava o adepto com os deuses populares: no os negavanem os declarava ilusrios, embora soubesse que eram criaes humanas. As mesmas foras

    naturais, os mesmos elementos divinos que atuam na natureza atuam tambm nele, criando-

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    lhe representaes do divino. Ele quer ver essa fora criadora de deuses. Ela no se assemelhaaos deuses populares; algo mais elevado ao qual Xenfanes tambm alude:

    Um Deus o maior entre deuses e homens,no se parecendo com os mortaisnem em corpo nem tampouco em pensamentos.

    Esse Deus tambm era o Deus dos mistrios; podia ser chamado de Deus abscndito,pois em lugar algum podia ser encontrado pelo homem meramente sensorial. Dirige teu olharpara as coisas: no encontrars nada divino. Esfora teu intelecto: poders entender as leisque regem o nascer e o morrer das coisas; mas tua razo te indicar algo de divino. Impregnatua fantasia com sentimentos religiosos: poders conceber imagens de seres que considerarsdivinos; mas tua razo as desfolhar, provando que so criaes tuas e feitas com elementostirados do mundo material. Enquanto olhares para teu mundo ambiente como homem racional,ters de negar a existncia de Deus. Pois Deus no existe para teus sentidos e para tua razo,intrprete das percepes sensveis: est encantado no mundo. Para ach-lo, ters dedespertar em ti a sua prpria fora. Estes eram os ensinamentos recebidos pelo antigo

    nefito. Principiava ento, para ele, o grande drama csmico, com o qual ele se achava vital-mente entrelaado, o que tinha por objeto nada menos que a redeno do Deus encantado.Onde est Deus? Esta era a pergunta que o nefito propunha sua alma. Deus no est, mas anatureza est. Tendo sido sepultado misteriosamente na natureza, nela dever serreencontrado. O iniciado entendia as palavras Deus o Amor num sentido mais elevado, poisDeus realizou esse amor at o extremo, sacrificando a si prprio num ato de infinito amor;derramou-se, despedaou-se na multiplicidade das coisas criadas: estas vivem, e ele no vivenelas repousa nelas; porm vive em todo homem. E o homem pode experimentar em si avida de Deus. Para faz-la chegar ao conhecimento ter de redimir esse conhecimentoativamente.

    Nessa altura, o homem olha para dentro de si prprio. Em sua alma atua o elementodivino ainda sem existncia. Nessa alma est o local em que o divino, encantado, podereviver. A alma a me que pode conceber o divino a partir da natureza. Deixe-se a almafecundar pela natureza, e dar nascimento a um ser divino! Mas, desta vez, o divino no sermais oculto, e sim manifesto, possuindo uma existncia que se revelar ao homem. E oesprito desencantado no humano, o rebento do Deus encantado. No precisamente o Deusque foi, que e que ser; mas poder ser considerado, em certo sentido, sua manifestao. OPai fica escondido; o Filho nasceu da prpria alma do homem. O conhecimento msticoconstitui, portanto, um real acontecimento dentro da evoluo csmica. o nascimento de umrenovo divino, ou seja, um fato to real quanto qualquer outro processo material, embora emnvel superior. Eis o grande mistrio do adepto; ele prprio, ativamente, redime seu rebento

    divino, preparando-se antes para reconhec-lo. Ao no-iniciado falta perceber o Pai desserebento, pois esse Pai repousa no encantamento. O rebento parece ter nascido de uma virgem,pois a alma parece t-lo parido infecundada. Todos seus outros partos foram concebidos pelomundo sensvel, onde se v ou se adivinha o pai dotado de vida sensorial. S o rebento divinofoi concebido pelo prprio Deus-Pai eterno e oculto.

    Os sbios pr-platnicos luz da sabedoria inicitica

    Muitos fatos nos ensinam que a sabedoria filosfica dos gregos tinha o mesmo fundamentoespiritual que o conhecimento mstico. S possvel compreender os grandes filsofos

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    abordando-os com os sentimentos obtidos na observao dos mistrios. Com que respeitoPlato fala das doutrinas ocultas em seu Fdon!

    Parece-me at que os que nos ordenaram a disciplina inicitica, longe de serem homensmaus, j nos indicaram h muito tempo que quem chegar ao mundo das trevas no-iniciado eno-purificado ser jogado na lama; o purificado e iniciado, porm, a chegando, morar com

    os deuses. Pois os entendidos em iniciao dizem que muitos carregam o tirso, sendo pormpoucos os verdadeiramente inspirados. A meu ver, estes so os que procuravam a sabedoriaseguindo o caminho correto; sempre trabalhei para ser um deles, fazendo mesmo todos osesforos nesse sentido.

    Portanto, s pode falar de iniciao aquele cuja busca de sabedoria est totalmenteimbuda da prpria atitude moral produzida pela iniciao. E sem dvida as palavras dosgrandes filsofos gregos parecero iluminadas por uma nova luz se as considerarmos desseponto de vista.

    A conexo de Herclito de feso (535-475 a.C.) com os mistrios resulta diretamente deuma assero confirmada a seu respeito, segundo a qual seus pensamentos constituiriam uma

    trilha intransitvel coberta de escurido e trevas para quem a empreendesse sem iniciao,sendo porm mais clara que o Sol para quem fosse introduzido por um iniciado. E quando seconta que ele depositou seu livro no templo de Artmis, isso significa apenas que s osiniciados tinham capacidade para entend-lo.3 Herclito foi chamado O Tenebroso, porque sa chave dos mistrios trazia luz s suas idias.

    Herclito nos aparece como impregnado da maior seriedade perante a vida. Procurandoimaginar seus traos, ver-se-ia neles a expresso de conhecimentos ntimos que todas aspalavras podiam apenas esboar e no transmitir. Fruto dessa atitude sua clebre afirmao"Tudo est em fluxo", proposio comentada por Plutarco nestes termos:

    No se pode entrar duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes qualquer substnciaperecvel. Por sua rapidez e por seu impulso, o rio se dispersa e se rene de novo imedia-

    tamente, avanando e retrocedendo.

    O homem que assim pensa perscrutou a natureza das coisas transitrias, pois sentiu-seimpelido a caracteriz-la em termos incisivos. Tal caracterizao s possvel a quem sabemedir o transitrio pelo eterno; no pode ser estendida ao homem, a no ser que se tenhapenetrado em seu mago. Herclito, sim, estendeu essa caracterizao ao homem: Idnticosso vida e morte, viglia e sono, juventude e velhice, pois cada estado se transforma em outroe vice-versa. Nessa sentena encontramos a plena noo do carter ilusrio da personalidadeinferior. E continua ele, acrescentando mais firmemente: H vida e morte tanto em nossoviverquanto em nosso morrerNo significa isso que s o ponto de vista da transitoriedadejustifica atribuir vida valor maior que morte? A morte um perecerque deixa lugar paranova vida; mas nesta, como na vida anterior, vive o eterno, que se revela idntico tanto navida transcorrida como na morte. Se o homem o tiver captado, olhar com o mesmosentimento para a morte e para a vida. Somente se no conseguir despertar em si esse eterno que a vida possuir para ele um valor especial. Podemos recitar mil vezes a sentena Tudoest em fluxo; se no o fizermos com esse sentimento, o efeito ser nulo. O conhecimento dodevir eterno no tem valor quando no suprime nossa inclinao para o mundo transitrio.Herclito preconiza o abandono de um instinto vital que apenas visa o efmero. Comopodemos afirmar de nossa vida consciente: Existimos!, se sabemos que, do ponto de vista daeternidade, existimos e no existimos? (Vide Herclito, fragmento n 81.) Hades e Dionsio

    3O fundo histrico das relaes de Herclito com os mistrios j foi exposto por Edmund Pfeiderer; veja-se sua obraDie Philosophie des Heraklit von Ephesus im Lichte der Mysterienidee [A filosofia de Herclito de feso luz da idiados mistrios] (Berlim, 1886).

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    so idnticos, diz um dos fragmentos de Herclito. Dionsio, Deus do instinto vital, dagerminao e do crescimento, objeto das festas dionisacas, , para Herclito, o mesmo queHades, Deus da destruio, da aniquilao. Somente quem percebe a morte na vida e a vidana morte e em ambas o eterno transcendendo-as que poder julgar serenamente os mritose defeitos da existncia. Achar uma justificativa at para os defeitos, j que neles reside o

    eterno. S de um ponto de vista limitado os defeitos se apresentam como tais:No convm aos homens conseguir tudo o que querem: a doena torna doce e boa a sade, afome faz apreciar a saciedade, e o trabalho o descanso. [...] O mar a gua mais pura eimpura, potvel e boa para os peixes, impotvel e prejudicial para os homens.

    Contudo Herclito aponta menos a efemeridade das coisas terrenas do que o brilho e amajestade do eterno.

    Herclito pronunciou palavras violentas contra Homero, Hesodo e os sbios em voga,criticando-lhes a maneira de pensar inclinada para o mundo transitrio. No queria deusesdotados de qualidades tiradas do mundo material, e tampouco podia valorizar uma cincialimitada a pesquisar as leis das coisas que surgem e perecem. Do transitrio lhe fala a voz doeterno, para o qual ele encontra um smbolo profundo: A harmonia do Universo volta a si

    mesma, como a da lira e do arco. Que imagem rica de contedo! A unidade se consegue peladisperso e subseqente harmonizao das foras. Um som contradiz o outro, mas juntosambos perfazem uma harmonia. Aplicando isso ao mundo espiritual, teremos o pensamento deHerclito: Os imortais so mortais, os mortais so imortais, vivendo a morte daqueles emorrendo a vida desses.

    Constitui opecado primordial do homem o fato de ele limitar seu conhecimento ao que transitrio, com isso se afastando do eterno. A vida se lhe torna um perigo e provoca osincidentes de sua existncia. Mas esses incidentes perdero seu aguilho se ele no maisvalorizar incondicionalmente a vida. Ele recupera ento sua inocncia, como se pudesse voltarda seriedade da vida para o reino da infncia. O adulto leva a srio o que para a criana motivo de brincadeira. O sbio, porm, volta a ser como a criana. O srioperde seu valor,

    do ponto de vista da eternidade. A vida parece ento um brinquedo. A eternidade, dizHerclito, uma criana que brinca, o predomnio de uma criana. Em que consiste, pois,a culpa primordial? Consiste em levar a srio o que no merece tanta seriedade. Deus se derra-mou no mundo criado. Quem aceita esse mundo sem Deus leva-o a srio qual uma sepulturade Deus. Deveria brincar com ele como uma criana, concentrando, porm, a seriedade deseus esforos em desencantar o Divino adormecido em seu mago. A contemplao do eternoincendeia e at queima o costumeiro julgar das coisas. O esprito dissolve os pensamentosacerca do mundo sensvel, levando-os fuso. Constitui um fogo abrasador, e esse o sentidomais profundo do pensamento heraclitiano: o fogo a matria-prima de todas as coisas. claro que esse pensamento deve ser levado em conta primeiramente no sentido de um

    esclarecimento fsico comum dos fenmenos do mundo. Ningum, contudo, compreendeHerclito sem pensar a seu respeito como Flon (que viveu na poca da origem do cristianismo)opinou sobre as leis da Bblia:

    H pessoas que vem nas leis apenas metforas de doutrinas espirituais, e limitam-se abuscar cuidadosamente estas ltimas, desprezando aquelas; s posso censur-las, poisdeveriam ter ambas as coisas em mente: tanto conhecer o sentido oculto quanto observar oaparente.

    Seria deturpar o pensamento de Herclito discutir se seu conceito de fogo se referia aofogo fsico ou simbolizava apenas o esprito eterno em seu trabalho de dissolver e reconstituiras coisas materiais. Na realidade significava ambos ou tambm nenhum dos dois, pois para eleo esprito vivia tambm no fogo comum. A fora que atua fisicamente no fogo vive, em grausuperior, na alma humana, que dissolve em seu crisol o conhecimento sensorial, fazendo surgira contemplao do eterno.

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    Herclito, justamente, pode ser mal interpretado. Ele considera a guerra o pai dascoisas. Mas apenas das coisas, e no do eterno. No existissem s divergncias no mundo e osmais variados interesses opostos entre si, no haveria o mundo da transformao, datransitoriedade. Contudo, aquilo que se revela nessa disputa como elemento subjacente no a guerra, mas a harmonia. Havendo luta no mundo das coisas, o esprito do sbio deve

    impregn-las qual um fogo e transform-las em harmonia.Aqui raia uma idia grandiosa da sabedoria heraclitiana. O que o homem como serindividual? Partindo deste ponto, a pergunta fornece resposta a Herclito. O homem umamlgama dos elementos divergentes em que a divindade se transfundiu. Assim ele encontra asi prprio, ao mesmo tempo em que se torna cnscio do esprito oriundo da eternidade. Paraele, o esprito nasce da luta dos elementos, devendo, porm, harmoniz-los. No homem, anatureza transcende a si prpria, pois nele que a fora universal, que engendrou o amlgamae o conflito, deve apaziguar sabiamente esse conflito. Temos aqui a eterna dualidade quereina no homem, a eterna divergncia entre o temporal e o eterno. O eterno fez dele um serbem determinado, e a partir dessa determinao ele deve criar algo superior. Ele dependen-te e autnomo. Participa do Esprito Eterno, mas somente de acordo com o amlgama que este

    efetuou nele. Cabe-lhe, pois, dar forma ao eterno, partindo do temporal. O esprito operanele, mas de um modo peculiar, a partir do temporal.

    O fato de algo temporal atuar como algo eterno e de, como este, impelir e fortalecer, oque caracteriza a alma humana, fazendo-a assemelhar-se simultaneamente a um Deus e a umverme. O homem se acha, portanto, entre Deus e o animal. O elemento impulsionador efortalecedor dentro dele sua poro demonaca, que procura transcend-lo. Herclitoinsistiu neste ponto: O demnio do homem o seu destino. (Demnio se entende aqui nosentido grego; o significado moderno seria esprito.) Assim, para Herclito, aquilo que animao homem transcende o mbito pessoal. Este elemento pessoal o veculo de algo demonaco,que no est encerrado nos limites da personalidade, e para o qual morte e nascimento doelemento pessoal no tem significado algum. Qual a conexo entre esse elemento demonacoe a personalidade sujeita a nascer e a perecer? Esta apenas uma manifestao daquele.Quem alcana esse conhecimento transcende os limites de sua prpria personalidade ao olharpara o passado e para o futuro. Experimentar o elemento demonaco dentro de si testemunhasua prpria eternidade. E ele no pode mais atribuir ao demonaco apenas a funo depreencher sua personalidade, pois esta constitui apenas uma das manifestaes daquele. Odemnio no pode fechar-se dentro de uma personalidade; ele tem poder para animar muitaspersonalidades, transfundindo-se de uma em outra.

    Das premissas heraclitianas, surge como que naturalmente o grande conceito dareencarnao. E no apenas o conceito, mas a experincia da reencarnao, que o conceitoapenas prepara. Quem vivncia em si o elemento demonaco no o encontra sob forma

    primitiva, em estado inocente, mas sim dotado de propriedades. De onde procedem elas? Porque tenho eu certas qualidades? Porque outras personalidades j colaboraram em modelar meudemnio. E se devo presumir que a misso do demnio no se limita minha personalidade,como devo encarar o futuro daquilo que opero nele? Eu fao um trabalho preparatrio parauma personalidade futura. Entre mim e a unidade csmica vem interpor-se algo que metranscende, algo que no chega a ser idntico divindade: o meu demnio. Como o meuhoje o resultado do meu ontem, e o meu amanh ser o resultado do meu hoje, assim minhavida atual a seqncia de outra, passada, e constitui a base para outra, futura. A alma dosbio abarca mltiplas existncias no passado e no futuro, assim como o homem comumabrange muitos dias de ontem e muitos dias de amanh. O que ontem assimilei empensamentos e aptides serve-me no dia de hoje. No se verifica o mesmo com a vida? No

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    chegam os homens ao umbral da vida dotados das mais variadas capacidades? De onde vemessa diversidade? Do nada?

    Nossa cincia natural orgulha-se de ter banido a noo de milagre de nossas concepesda vida orgnica. David Friedrich Strauss (veja-se Alter und neuer Glaube [A velha e a novaf]) considera uma das grandes conquistas da atualidade no pensarmos mais que um

    organismo perfeito possa ser criado do nada por um milagre. Entendemos a perfeioexplicando-a pela evoluo a partir do imperfeito. A estruturao do macaco no constituimais um milagre se pudermos presumir os peixes primordiais como precursores dos macacos,tendo sofrido uma transformao gradativa. Mas temos de aplicar a mesma medida tanto aoesprito quanto natureza! Ser que o esprito perfeito ter as mesmas premissas que oimperfeito? Ser que um Gethe existe pelas mesmas precondies que um hotentotequalquer? To pouco quanto um peixe possui as mesmas premissas que um macaco, o espritogoethiano possui as mesmas premissas espirituais que o do selvagem. A linhagem espiritual doesprito goethiano diferente da ascendncia do esprito selvagem. O esprito, como o corpo, fruto de um vir-a-ser. Em Gethe, o esprito tem mais antepassados do que no selvagem.Considerada neste sentido, a doutrina da reencarnao deixar de ser julgada anticientfca.

    O que se encontra na alma dever ser interpretado com critrio, sem ser denominado milagre.Minha capacidade de escrever decorre do fato de eu t-lo aprendido. Ningum pode sentar-see escrever sem nunca antes ter segurado uma caneta. Mas, para explicar a viso genial deum ou outro homem, recorre-se logo ao milagre. No: tambm a viso genial tem de seradquirida, aprendida. Chamamo-la de faculdade espiritual por surgir numa personalidade. Mas,como tal, foi apreendida pelo esprito; o que o esprito adquiriu numa existncia se tornaaptido em outra posterior.

    Foi assim, e somente assim, que Herclito e outros sbios gregos conceberam a noo deeternidade. Eles nunca falaram na continuao da existncia da personalidade imediata. Veja-se um discurso de Empdocles (490-430 a.C.), onde este diz, a respeito dos que sempredenominam milagre o que manifesto:

    Tolos, por no irem longe com seus pensamentos,so os que crem poder vir a ser o dantes nunca existente,ou algo morrer e desaparecer completamente.Do no-existente impossvel algo surgir,como impossvel o total perecimento do que existe,pois permanecer onde veio a chegar.Nunca o entendido imaginarque s enquanto vivem, seja l o que se chame vida,s enquanto existem, sentindo dor e alegria,os homens vm a ser, e morrendo nada so.

    O sbio grego nem pergunta se existe algo de eterno no homem, mas apenas em queconsiste esse eterno e como o homem pode cultiv-lo. De antemo, ele no tinha dvida deque o homem ocupa uma posio intermediria entre o terreno e o divino. No se cogitava dequalquer elemento divino fora ou alm do mundo; o divino mora no homem, e isso de umamaneira especificamente humana, pois se revela como a fora que impulsiona o homem paratornar-se sempre mais divino. S quem assim pensa dir, como Empdocles:

    Quando deixares o corpo, elevando-te ao ter, sers um deus imortal, livre damorte.

    O que poderia ocorrer a uma vida humana, de tal ponto de vista? Ela pode ser iniciada nocrculo mgico do eterno, pois a existncia puramente natural no faz evoluir certasfaculdades que jazem escondidas no homem. A vida passaria inaproveitada, no fossem essasfaculdades desenvolvidas. Revel-las para assemelhar o homem ao Divino era justamente a

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    tarefa dos mistrios, tarefa que tambm os sbios gregos consideravam sua. Assim podemoscompreender a sentena de Plato:

    [...] quem chegar ao mundo das trevas no-iniciado e no-purificado ser jogado na lama; opurificado e iniciado, porm, morar com os deuses.

    Fica estabelecida a conexo com um conceito de imortalidade, cujo significado seencerra dentro do Universo em sua totalidade. Tudo o que o homem faz para despertar em si oeterno serve para aumentar o valor da existncia csmica. Quando procura conhecer o mundo,ele no apenas um espectador ocioso, representando a imagem daquilo que existiria tambmsem ele. Seu poder cognitivo uma fora criadora superior. As idias que raiam em seuesprito constituem um elemento divino, originalmente oculto, que sem seu esforo cognitivoteria ficado adormecido, esperando por outro libertador do encanto. Desta forma, apersonalidade humana no existe em si e por si: existe para o mundo. Considerada sob estengulo, a vida transcende a existncia individual. Dentro de tal concepo chegamos acompreender pensamentos como o seguinte, de Pndaro, que abre novos horizontes para oeterno:

    Bem-aventurado aquele que os vislumbrou e depois procurou o vazio subterrneo; eleconhece o fim da vida e o princpio prometido por Zeus.

    Podemos compreender os traos de orgulho e a natureza solitria de sbios comoHerclito. Eles podiam jactar-se de seus conhecimentos, pois consideravam-nos como obra deseu demnio eterno, e no de sua personalidade passageira. Seu orgulho era temperado pelaatitude simultnea de humildade e modstia que se refletia nestas palavras: todo saber dascoisas transitrias est em eterno fluxo, como as prprias coisas passageiras. Herclito chamao mundo eterno de brinquedo; com igual razo poderia cham-lo de sumamente srio. Mas apalavra seriedade sofreu desgaste pela aplicao a eventos terrenos. O aspecto ldico doeterno deixa ao homem a segurana vital, que lhe tira a seriedade, fruto do transitrio.

    Outro tipo de cosmoviso, diferente daquela de Herclito, mas tambm baseada nosmistrios, originou-se da comunidade fundada por Pitgoras na Itlia meridional, no sculo VIa.C. Os pitagricos viam o fundamento das coisas em nmeros e figuras, cujas leis exploravampela matemtica. Aristteles diz, a respeito deles:

    Eles aperfeioaram em primeiro lugar a matemtica, com a qual se identificaram a ponto deconsiderar seus princpios como sendo tambm o de todas as coisas. Julgavam que oelemento primordial da matemtica eram os nmeros, e viram nestes muitas analogias comas coisas e sua evoluo muito mais, alis, do que no fogo, na terra e na gua; por isso,uma propriedade dos nmeros lhes significava a justia, outra a alma e o esprito, outraainda o tempo, e assim por diante. Eles encontravam nos nmeros as propriedades epropores da harmonia, de modo que tudo, conforme sua espcie, parecia ser um reflexodos nmeros, e estes o elemento primordial da natureza.

    A interpretao matemtico-cientfca dos fenmenos sempre tem de levar a um certopitagorismo. Quando se toca uma corda de comprimento definido, surge um som definido.Encurtando-se a corda em propores numricas, outros sons so emitidos, cujas alturaspodero tambm ser exprimidas em propores numricas. A fsica d valor numrico tambms relaes das cores. Quando dois corpos qumicos se combinam para formar uma substncia,sempre h igualmente uma relao fixa entre as quantidades de cada um. O espritoobservador dos pitagricos estava sempre atento a tais relaes, de medida ou de nmero, nosfenmenos da natureza.

    Papel anlogo est sendo desempenhado, na natureza, pelas figuras geomtricas. Aastronomia, por exemplo, uma matemtica aplicada aos corpos celestes. O que importava ao

    pensamento dos pitagricos era que o homem, s pela atividade intelectual, investigasse asleis dos nmeros e das figuras, para constatar em seguida, ao olhar do mundo exterior, que

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    este obedecia s mesmas leis que ele, por si, descobrira em sua alma. O homem chegou, por simesmo, ao conceito da elipse e s suas leis. E os corpos celestes se movem de acordo com alei por ele definida. (Aqui no vm ao caso as teorias astronmicas dos pitagricos, pois, doponto de vista que aqui nos interessa, o que se pode dizer a seu respeito poderia ser afirmado,com igual razo, a respeito das teorias de Coprnico.)

    Disto se conclui, de imediato, que as atividades da alma humana no se desenrolam forado mundo, mas em concordncia com a ordem harmnica que se reflete em sua estrutura. Opitagrico raciocinava da seguinte forma: Os sentidos revelam ao homem os fenmenossensveis, mas sem apontar as ordens harmoniosas observadas pelas coisas. Estas devemprimeiro ser descobertas pelo homem dentro de si prprio, caso ele as queira observar nomundo exterior. O sentido mais profundo do Universo, aquilo que tem carter de necessidadeeterna e regular, aparece na prpria alma humana, onde se torna uma realidade presente. Osentido do Universo se manifesta na alma, pois reside naquilo que ela haure de suas prpriasprofundezas, e no das percepes da vista, do ouvido ou do tato. As harmonias eternas jazemno mago da alma. Aprofundando-nos na alma, encontraremos o eterno. Deus e a harmoniaperene do Universo esto na alma humana. O elemento anmico no se limita ao que est

    contido na epiderme humana, pois o que nasce na alma so as harmonias segundo as quais osastros giram no espao celeste. A alma no reside na personalidade: esta fornece apenas orgo pelo qual se pode manifestar a ordem csmica. Encontramos algo de pitagrico nestasentena de Gregrio de Nissa, um dos Pais da Igreja:

    A natureza humana, como dizem, apenas algo pequeno e limitado: a Divindade, porm, infinita; ora, como possvel o finito abarcar o infinito? E quem diz que o infinito daDivindade pode ser contido nos limites da carne como num vaso? Pois no apenas uma vezque, em nossa existncia terrena, a natureza espiritual se acha confinada nos limites dacarne; a matria do corpo limitada pelo que lhe contguo, mas a alma se dilatalivremente, pelo movimento do pensar, para toda a Criao.

    A alma no a personalidade; pertence ao infinito. Os pitagricos, conforme esse pontode vista, tinham de considerar tolos os que julgavam o anmico limitado personalidade.Tambm para eles, era mister despertar o eterno dentro da personalidade. Conhecimentosignificava-lhes convivncia com o eterno. Para eles, o valor de um homem aumentava naproporo em que este conseguia realizar esse eterno. Cultivar a comunho com o eternoconstitua a vida de suas comunidades, e sua educao se destinava a levar seus membros aessa comunho, constituindo, portanto, verdadeira iniciao filosfica. E aos pitagricos eralcito afirmar que essa maneira de viver tinha o mesmo objetivo que os cultos dos mistrios.

    Plato como msticoA cosmoviso de Plato revela o grau de importncia que os mistrios tiveram na vida

    espiritual grega. Para realmente compreend-lo s h um meio: temos de situ-lo na luz queirradia dos mistrios. Os discpulos ulteriores de Plato, os neoplatnicos, atribuem-lhe umadoutrina secreta cujo acesso era reservado apenas aos que ele julgava dignos, e isso sob oselo do sigilo. Sua doutrina foi considerada arcana no mesmo sentido em que o foi asabedoria dos mistrios. Mesmo que a stima epstola platnica no seja de sua autoria, comoalguns alegam, isso no importa para o fim que aqui visamos: com efeito, pouco nos interessase foi ele ou outro que expressou a atitude moral manifesta nessa epstola. Essa atitude moralrepousava na essncia de sua cosmoviso. Encontramos nessa epstola o seguinte trecho:

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    Posso apenas dizer que no se deve dar o menor crdito queles que escreveram ouescrevero como se tivessem cincia de quais eram minhas metas. Pouco importa se dizemt-lo aprendido de mim ou de outrem, ou se o apresentam como de sua prpria elaborao.No existe nem poderia existir escrito meu sobre esses assuntos, pois estes no podem, demaneira alguma, ser expressos em palavras como poderiam s-lo outras doutrinas. precisodemorado estudo e convivncia com a matria para que, finalmente, raie uma centelha e se

    acenda na alma uma luz que, no futuro, se conserve por si prpria.Estas palavras poderiam apenas revelar uma impotncia no uso das palavras, isto , um

    defeito pessoal, se no encontrssemos nelas uma aluso aos mistrios. O assunto sobre o qualPlato nunca escreveu nem queria escrever devia ser tal que seria impossvel fazer dele oobjeto de palavras escritas. Devia tratar-se de uma experincia, de uma sensao que seadquire por vivncia introspectiva, e no por comunicao instantnea. Plato faz aluso educao ntima que podia ministrar aos eleitos. Para estes, suas palavras lanavam fogo; paraos demais, apenas pensamentos.

    Com efeito, no indiferente a maneira como se abordam os dilogos de Plato.Conforme o estado espiritual de quem os l, podem ter maior ou menor significado. O prprio

    Plato transmitiu a seus discpulos mais que o sentido verbal de seus argumentos. Quando eleensinava, os ouvintes viviam como que numa atmosfera de mistrios. As palavras tinham sonsharmnicos, cuja vibrao simultnea necessitava da atmosfera dos mistrios, caso contrriopassava despercebida.

    No centro dos dilogos platnicos ergue-se a personalidade de Scrates. Podemos deixarde lado aqui os aspectos histricos, concentrando nossa ateno na figura de Scrates tal quala encontramos em Plato. Scrates uma personalidade consagrada por sua morte em prol daverdade. Ele morreu como s pode morrer um iniciado, para quem a morte apenas um ins-tante da existncia como qualquer outro. Comportou-se de tal maneira que nem mesmo seusdiscpulos tiveram os sentimentos que costumam surgir em semelhantes ocasies. Fdon diz,no Dilogo sobre a imortalidade da alma:

    Pois bem, minhas reaes eram muito estranhas: no senti a compaixo que domina quempresencia a morte de um querido amigo. Ele era to sereno em seu comportamento e seusdiscursos, morreu com tamanha coragem e dignidade, que eu estava intimamenteconvencido: ele no desceria ao mundo inferior sem ter uma misso divina, e l se sentiriaat to bem quanto normalmente seria possvel a um homem sentir-se. Por isso, no fuitomado de piedosa ternura, como s acontece em circunstncias tristes, nem fiquei particu-larmente alegre como costumo estar em meus afazeres filosficos, embora nossas conversasfossem desse tipo; achei-me, ao contrrio, num estado extraordinrio, e numa estranhamistura de prazer e tristeza, quando ponderei que esse homem iria morrer logo.

    E Scrates, moribundo, d a seus discpulos uma lio sobre a imortalidade. Essapersonalidade, com sua experincia do desvalor da vida, constitui, nessa situao, um tipo de

    prova bem diverso do que o oferecido por toda a lgica e por todos os raciocnios. Quem falano parece ser um homem: est no limiar da morte; parece, antes, que fala a prpria Verdadeeterna, escolhendo como moradia um ser mortal. Onde um elemento temporal se desintegrano nada parece haver o ambiente propcio para a manifestao do eterno.

    No encontramos provas, no sentido comum, acerca da imortalidade. Todo o dilogo visaa conduzir os amigos at o ponto em que enxerguem o eterno. A, no h mais necessidade deprovas. Ser que quem v a rosa precisa de uma prova de sua cor vermelha? E quem teve seusolhos abertos para o esprito, ser que carece ainda de uma prova de sua eternidade?

    O que Scrates aponta so experincias, vivncias. Primeiro, a prpria sabedoriaconsiderada como experincia. O que almeja quem aspira sabedoria? Deseja libertar-se damensagem que lhe trazem os sentidos em sua percepo corriqueira! Procurar o esprito

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    dentro do mundo sensvel! No essa uma contingncia comparvel morte? Assim opinaScrates:

    Os que se dedicam Filosofia de maneira correta tm, na realidade, uma propenso paramorrer, e isso sem que os outros o percebam. Ora, sendo essa a verdade, seria deverasabsurdo que ficassem aborrecidos ao acontecer naturalmente o que durante toda a vida

    almejaram.A guisa de confirmao, Scrates pergunta a um dos amigos:

    Parece-te prprio de um filsofo interessar-se pelos prazeres sensuais, como a boa comida ea boa bebida? Ou pela satisfao do instinto sexual e todas as demais preocupaes do corpo?Achas que eles importam muito a tal homem? Pensas que ele aprecia ou despreza, alm doque manda a extrema necessidade, possuir belas vestes, sapatos e tudo o que serve paraembelezar o corpo? De um modo geral, no achas que esse homem vai desinteressar-se, namedida do possvel, de seu corpo e desprez-lo, para dedicar-se sua alma? E nisso, pois, quese revela o filsofo: mais do que qualquer outro homem, ele far sua alma desprender-se dacomunho com o corpo.

    Isso autoriza Scrates a dizer que a busca da verdade e a morte tm em comum o fato de

    o homem abandonar seu elemento corporal. Mas pra onde se volta ele? Para o espiritual.Contudo, poder exigir do esprito o mesmo que dos sentidos? Scrates diz a esse

    respeito:

    O que ocorre com o entendimento racional? Se, ao almej-lo, o homem escolher comocompanheiro o corpo, constituir este um obstculo ou no? Em outras palavras: a vista e oouvido fazem com que o homem alcance algumas verdades? Ou tero razo os poetas,sempre cantando que nada vemos nem enxergamos com exatido?

    Mas quando que a alma capta a verdade? Pois quando se serve do corpo paracontemplar algo, este evidentemente a trai.

    Tudo o que percebemos com os sentidos fsicos nasce e morre. E esse nascer e morrer nosinduz ao erro. Quando, porm, nos aprofundamos nas coisas por meio do entendimentoracional, temos a revelao do elemento eterno que elas contm. Os sentidos, portanto, nooferecem o eterno em sua autntica forma. Enganam-nos no momento em que neles confiamosincondicionalmente, deixando de faz-lo quando apelamos ao entendimento racional esubmetemos ao controle deste suas informaes. Como, porm, poderia a razo julgar ossentidos, se no contivesse algo transcendente s percepes destes? Portanto, sobre o que hde verdadeiro e falso nas coisas s poder opinar algo, dentro de ns, que se oponha ao corpofsico e no esteja submetido s suas leis. Antes de mais nada, deve esse algo independer porcompleto das leis do nascimento e do perecimento, pois contm em si o verdadeiro. Este,porm, no pode ter um ontem nem um amanh; tampouco pode ser uma vez isto, outra vezaquilo, como os objetos sensoriais. O verdadeiro deve, pois, ser eterno. Ao virar as costas ao

    mundo sensorial para enfrent-lo, o filsofo encontra ao mesmo tempo um elemento eternoque reside nele. Submergindo totalmente no esprito, viveremos inteiramente no verdadeiro. Omundo sensvel deixa ento de existir apenas em sua forma fsica. Scrates afirma:

    Quem melhor o consegue aquele que, na medida do possvel, aborda tudo apenas com arazo, sem recorrer vista quando pensar ou a qualquer outro sentido quando refletir,servindo-se, pois, apenas do raciocnio puro e procurando considerar todos os objetos por siprprios, isolando-os dos olhos e ouvidos, ou, em curtas palavras, de todo esse corpo queapenas perturba a alma, impedindo-a, por sua presena, de chegar verdade e aoentendimento. [...] Ora, a morte no significa a redeno da alma e sua separao do corpo?Procuram conseguir essa redeno, mais do que quaisquer outros, os verdadeiros filsofos;sua tarefa, portanto, libertar a alma e desvincul-la do corpo. [...] No passar de um toloo indivduo que durante toda a vida se esforar para chegar o mais perto possvel da morte,

    para depois, quando esta chegar de fato, revelar-se recalcitrante. [...] De fato, os que

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    realmente buscam a verdade procuram morrer e, entre todos os homens, so eles que menostemem a morte.

    Scrates tambm baseia toda a tica superior em libertar-se do corpo. No virtuosoquem segue apenas os mandamentos de seu corpo. Quem corajoso? pergunta Scrates.Corajoso aquele que no obedece a seu corpo, mas antes s ordens de seu esprito, mesmo

    que ponham em perigo o corpo. E quem ponderado? Ser ponderado no significa no sedeixar dominar pelas cobias, ficando, ao contrrio, indiferente a elas; no compete, pois, aponderao apenas aos que prezam menos o corpo e vivem animados pelo amor sabedoria? Omesmo se d, segundo Scrates, com todas as virtudes.

    Em seguida, Scrates tenta caracterizar o prprio entendimento racional. Que significaconhecer? No h dvida de que chegamos ao conhecimento formando juzos. Pois bem, formoum juzo a respeito de um objeto dizendo, por exemplo: isso que est minha frente umarvore. Como posso emitir tal juzo? Somente se j sei o que uma rvore. Tenho de lembrarminha representao da rvore. Sendo a rvore um objeto sensorial, eu me lembrarei de umobjeto sensorial ao lembrar-me da rvore. Posso afirmar, de um objeto, que se trata de umarvore caso se parea com outros objetos anteriormente percebidos, dos quais sei que eramrvores. A recordao faculta-me o conhecimento, tornando possvel a comparao dos vriosobjetos sensoriais entre si. Mas o ato de conhecer no se reduz apenas a isso. Vendo doisobjetos idnticos, fao o juzo: esses objetos so iguais. O conceito de igualdade surge emmim sem que exista na realidade sensvel, e me faculta o juzo, assim como o faz arecordao. Assim como uma rvore me lembra outra, dois objetos observados em certascondies me lembram a noo de igualdade. Vejo, pois, surgir em mim pensamentos, quallembranas no formadas a partir do mundo sensvel. Todos os conhecimentos que no foramhauridos da realidade fsica baseiam-se em tais pensamentos, como, por exemplo, toda amatemtica. Pssimo gemetra seria quem somente pudesse estabelecer relaes geomtricasa respeito do que pudesse enxergar com os olhos ou apalpar com as mos. Fica, pois,

    estabelecido que temos pensamentos no surgidos na natureza transitria, mas do esprito; eso esses pensamentos que levam o cunho de uma verdade eterna. Sempre ser verdade o quea matemtica ensina, mesmo se todo o nosso Universo se desintegrar para dar lugar a outro.Poderia acontecer que as circunstncias em tal Universo no permitissem a aplicao dasverdades matemticas atuais; mas estas permaneceriam intrinsecamente verdadeiras. Apenasquando a alma est s consigo mesma que pode produzir tais verdades eternas, o que mostraser ela afim com o verdadeiro e o eterno, e no com o temporal e o ilusrio. Da estaafirmao de Scrates:

    Quando a alma reflexiona de moto prprio, apega-se ao que puro, sempiterno, imortal esempre igual a si mesmo; sempre que puder, ficar nessa convivncia por causa de suaafinidade; isenta de seus erros, permanecer igual a si prpria, e a esse estado d-se o nome

    de racionalidade. No resulta de tudo isso estar a alma semelhante ao que divino, imortal,racional, unvoco, indissolvel e sempre igual, enquanto o corpo afim ao que humano emortal, ao irracional, multiforme e perecvel? Sendo assim, a alma procurar o que lhe aparentado o divino, o imortal, o racional no dotado de forma fsica , e l estar feliz,livre de erros e incertezas, do medo, das paixes e de todos os males humanos. Convivertodo o resto do tempo com Deus, como dizem os iniciados.

    No pode ser nossa tarefa aqui indicar os caminhos pelos quais Scrates conduz seus amigos aoque eterno. Todos so impregnados do mesmo esprito. Todos mostram que o homemencontrar uma coisa se trilhar os caminhos da percepo sensorial e outra se deixar seuesprito entregue a si prprio. Scrates aponta a seus ouvintes essa natureza primordial doesprito: se o encontrarem, seus olhos espirituais lhes revelaro o que eterno. No limiar da

    morte, Scrates no prova a imortalidade; simplesmente expe a essncia da alma. V-se,ento, que devir e perecer, nascimento e morte so alheios a essa alma; a essncia da alma

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    reside na verdade, que imutvel e imperecvel. A alma est para o devir como o par para ompar. Mas a morte tem afinidade com o devir. Portanto, a alma nada tem a ver com a morte.H tanta incongruncia entre o mortal e o imortal quanto existe entre o par e o mpar.Scrates acrescenta:

    Se o imortal tambm imperecvel, impossvel a alma perecer no momento da morte, pois

    no pode aceitar a morte nem morrer, assim como o nmero trs no pode tornar-se umnmero par.

    Recapitulemos toda a evoluo desse dilogo, em que Scrates leva seus ouvintes aentrever o eterno na personalidade humana. Eles escutam suas idias e indagam se haveria emsuas prprias experincias ntimas algo que lhes permitisse identificar-se com elas; fazem asobjees que lhes surgem. Mas o que lhes aconteceu ao terminar a conversa? Encontraram emsi algo que antes no tinham. Passaram por uma evoluo, em vez de simplesmente teremassimilado uma verdade abstrata. Algo que antes no vivia neles passou a ter vida prpria. Nopoderia tudo isso ser comparado a uma iniciao? No aparece agora sob nova luz acircunstncia de ter Plato exposto sua filosofia sob forma de dilogos? Esse tipo de

    conversao pretende constituir a forma literria para o que acontecia nos santurios dosmistrios. Plato fornece uma prova convincente disso em muitos trechos de sua obra. Elepretendia ser, como mestre de Filosofia, o que nos mistrios era o sacerdote que presidia ainiciao, mas na medida em que isso fosse compatvel com a forma filosfica dacomunicao. Como Plato se sente em harmonia com os processos seguidos nos mistrios!Como considera sua prpria maneira de ensinar correta apenas quando leva o discpulo aondeo nefito deve chegar! A esse respeito, explica no Timeu:

    Todos os mais ou menos bem-intencionados costumam invocar os deuses em todos seusempreendimentos pequenos ou grandes. A ns, que pretendemos falar sobre o Universo, suaorigem e sua decomposio, tal obrigao cabe em grau mais alto, a no ser que nostenhamos afastado completamente do caminho divino; devemos, pois, rogar para que nosseja dado ensinar tudo, conforme o Esprito Divino e em harmonia conosco mesmos.

    Aqueles que procuram tal caminho, Plato promete:

    Qual um salvador, Deus far culminar a investigao, to sujeita a erros e desvios, numateoria de fcil compreenso.

    O carter inicitico da cosmoviso platnica revela-se especialmente no Timeu, onde logono incio se fala de uma iniciao. Slon iniciado, por um sacerdote egpcio, na gnesedos mundos e na maneira como as mitologias tradicionais revelam verdades eternas sob formade imagens. Assim ensina o sacerdote egpcio a Slon:

    Muitas vezes e de muitas maneiras houve exterminaes de homens, e haver outras asmaiores pelo fogo e pela gua, outras menores por inmeros outros meios. Pois aquilo quecontam em seu pas, isto , que Faton, filho de Hlio, subiu no carro de seu pai, masincendiou tudo na Terra e veio a morrer fulminado por no saber seguir os caminhos pater-nos, parece uma fbula; contudo, contm uma parcela de verdade, pois se refere a umamodificao do movimento dos astros girando ao redor da Terra e destruio de tudo o queexistia na Terra, em conseqncia de um grande incndio que ocorre a grandes intervalos.

    Nessa passagem do Timeu fica realada a interpretao dos mitos populares peloiniciado: ele fica conhecendo as verdades veladas em suas imagens.

    No Timeu representado o drama da gnese do mundo. Quem seguir os rastros que levama essa gnese chegar ao pressentimento da fora primordial que deu origem a tudo.

    difcil descobrir o Criador e Pai desse Universo; e, se for encontrado, ser impossvel falar aseu respeito de forma inteligvel a todos.

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    O iniciado sabia a significao dessa impossibilidade, com a qual se faz referncia aodrama de Deus. Este no existe para ele no mundo sensrio e inteligvel; existe apenas sobforma de natureza, estando oculto nela. S poder aproximar-se dele, de acordo com a velhadoutrina inicitica, quem despertar o Divino dentro de si prprio. Deus no pode, pois, tosimplesmente tornar-se inteligvel a todos. E mesmo a quem o aborda ele no se revela

    diretamente. isso o que est implcito no Timeu. O Pai fez o mundo com o corpo e a almauniversais. Misturou, em propores perfeitas, os elementos que se formaram quando,derramando-se a si prprio, sacrificou sua existncia individual. Assim ele engendrou o corpocsmico. E foi sobre esse corpo csmico que a Alma Csmica foi estendida, sob forma de cruz;ela o elemento divino no mundo, e submeteu-se crucificao para dar-lhe origem. Platopode pois, com razo, chamar a natureza de sepultura do Divino. Contudo essa sepultura nocontm algo morto, e sim um ser eterno, ao qual a morte apenas fornece a oportunidade demanifestar a onipotncia da vida. Essa natureza, porm, s revelar sua essncia a quem aabordar para libertar de seu encanto a Alma Csmica crucificada. Como deve ela ressurgir desua morte, de seu encanto, e onde? Somente na alma do iniciado. desse modo que asabedoria encontra sua devida relao com o Cosmo. A ressurreio e a libertao de Deus: eis

    o conhecimento. A evoluo do Universo progride, no Timeu, do imperfeito ao perfeito,apresentando um processo ascendente no qual Deus se revela, ressurgindo do tmulo. Duranteessa evoluo o homem aparece, e Plato indica o significado especial que isso tem. OUniverso todo divino, e o homem no mais divino que os outros seres; mas enquanto Deusreside neles de modo latente, sua presena no homem manifesta. No fim do Timeu, lemos:

    Podemos afirmar que nossas discusses sobre o Universo chegaram a um termo: depois deter ficado repleto, como foi exposto, de seres vivos mortais e imortais, o prprio Universoconverteu-se num ser do mesmo gnero, que abarca o mundo visvel, numa imagem doCriador, num Deus perceptvel aos sentidos; esse Universo tornou-se uno e unignito, o maior,o melhor, o mais belo e perfeito que pode haver.

    Mas esse Universo uno e unignito no ficaria perfeito se no contivesse, entre as outrasimagens, a do prprio Criador, a qual s pode ser produzida pela alma humana. Contudo, estano pode engendrar o Pai, e sim o Filho, rebento divino que vive na alma e igual a seu Pai.

    Flon, de quem diziam ser uma reencarnao de Plato, usa o termo Filho de Deus paradesignar a sabedoria oriunda do homem, que mora na alma e tem por contedo a razoexistente no mundo. Essa razo csmica, o Logos, aparece como o livro em que est anotadoe gravado tudo o que existe. Aparece ainda como o Filho de Deus que, seguindo os caminhosdo Pai, cria as formas de acordo com os arqutipos. Bem dentro do pensamento platnico,Flon refere-se ao Logos como sendo o Cristo:

    Sendo Deus o primeiro e nico rei do Universo, o caminho que a ele conduz foiacertadamente chamado o Caminho Real; que a Filosofia encare como tal o caminho

    seguido pelo coro dos antigos ascetas, que se afastaram da atrao mgica dos prazeres paracultivar o Belo, digna e abnegadamente; a lei denomina esse Caminho Real, que para nsconstitui a verdadeira Filosofia, Verbo e Esprito de Deus.

    Trilhar esse caminho , para Flon, como uma iniciao; nele ele encontrar o Logos que,para ele, Filho de Deus:

    No receio tornar pblico o que repetidamente me ocorreu. Vrias vezes, querendo anotar daforma costumeira minhas idias filosficas e vendo nitidamente o que queria fixar, meuesprito se revelou estril e rgido, obrigando-me a desistir do que pretendia fazer e dando-me a impresso de estar preso a iluses fteis; ao mesmo tempo, fiquei admirado da fora dopensamento dependendo desta, o receptculo da alma se abre ou se fecha. Outras vezescomecei no vazio e cheguei, de imediato, plenitude, pela abundncia das idias que

    desceram sobre mim qual flocos de neve ou gros de semente; fiquei arrebatado eentusiasmado como que por fora divina e perdi a noo de quem era, onde estava, quem

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    estava comigo e o que estava dizendo e escrevendo: senti o fluxo da exposio dospensamentos, uma clareza maravilhosa, um olhar agudo, um domnio perfeito da matria,como se o olhar interno pudesse abranger tudo com a maior nitidez.

    Esta a descrio de um caminho inicitico, feita de tal maneira que se sente no iniciadoa conscincia de que o Logos vivificado em sua alma se torna uno com o Divino. Essa experin-

    cia ressalta tambm do seguinte trecho:Quando o esprito voa para o que mais sagrado, tomado de amor, inspirado por Deus eanimado de profunda alegria, esquece tudo, inclusive a si prprio, pois est repleto apenasdaquele cujo companheiro e servo pretende ser, ofertando-lhe em sacrifcio a virtude maissagrada e casta.

    Existem para Flon apenas dois caminhos. Trilhando o sensorial, ao qual serve o intelecto,o homem se limita prpria personalidade, subtraindo-se ao Cosmo; pelo outro, o homem setorna consciente da fora universal, vivenciando em si o eterno.

    Quem quiser evitar Deus cair vtima de si prprio; pois existem apenas dois elementos emquesto: o Esprito Universal, ou Deus, e o esprito individual; este se refugia no EspritoDivino, pois quem transcende seu prprio esprito percebe sua nulidade e liga tudo a Deus;quem, porm, foge de Deus suprime-o como causa primordial e coloca-se em seu lugar, comofundamento de tudo o que acontece.

    A cosmoviso platnica pretende constituir um conjunto de conhecimentos que, por suascaractersticas, uma religio. Relaciona o conhecimento com o que de mais alto o homempode atingir por seus sentimentos. Plato considera vlido o conhecimento apenas quando osentimento encontra nele sua mais profunda satisfao. No constitui, nesse caso, um saberimaginativo, mas contedo da existncia, qual um homem superior dentro do homem. Apersonalidade apenas um decalque desse homem superior, arquetpico,nascido dentro dohomem. Com isso se evidencia mais um segredo inicitico na filosofia platnica, do qualHiplito, Pai da Igreja, declara o seguinte:

    Trata-se do grande segredo dos homens da Samotrcia [guardies de um determinado cultoinicitico], segredo que nem se deve pronunciar e que conhecido somente pelos iniciados. Estes,porm, falam det