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COMPANHIA DE JESUS E O PADROADO PORTUGUÊS: conflito de nacionalidades no seio jesuítico * . Renato Pereira Brandão ** Resumo Associado ao poder político da Coroa de Portugal no Ultramar estava o poder do Padroado da Ordem de Cristo. Apesar de mais presente junto ao clero secular, o poder do Padroado também se estendia ao clero regular, colocando a atuação de uma determinada ordem missionária no ultramar português sob o poder não só civil, mas também eclesiástico da Coroa. Apesar da ação missionária da Companhia de Jesus ter uma orientação internacionalista e transnacional, o nosso objetivo é demonstrar que interesses nacionais diversos ao da Coroa de Portugal geraram conflitos entre jesuítas portugueses com os de outras nacionalidades no ultramar português. Discutimos aqui três casos. O primeiro é referente à negociação de participação de jesuítas franceses na invasão da Guanabara comandada pelo “calvinista” Villegaignon. O segundo aborda a ação do padre flamengo Verbiest na China procurando favorecer interesses mercantis da Coroa de França em detrimento aos de Portugal. O último trata do conflito entre os jesuítas da Província do Paraguai e os do Colégio do Rio de Janeiro frente às consequências do trabalho demarcatória do Tratado de Madri. O Tratado de Tordesilhas, o Padroado da Ordem de Cristo e a Divisão do Mundo Ao emitir em 3 de maio de 1493 a bula Inter Coetera, com intuito de reservar para os reinos de Castela e Aragão, posteriormente unidos sob a denominação de Espanha, o domínio exclusivo das Índias Ocidentais, recém descobertas por Colombo e reivindicada pelo rei de Portugal D. João II, por força do Tratado de Alcáçovas 1 , o papa aragonês Alexandre VI não só criou um problema político de fundamentação cartográfica, nunca verdadeiramente resolvido, como interveio indiretamente nos termos da bula de mesmo nome promulgada em 1456 pelo papa Calisto III, tio e mentor da nomeação de Rodrigo Bórgia, nome original de Alexandre VI, como cardeal. No Tratado Álcacer-Toledo estava estabelecido que a raia divisória entre Castela e Portugal seria as ilhas Canárias. As terras e ilhas por descobrir “para baixo” isto é, * Versão integral do texto apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História Anpuh-Brasil. Natal, UFRN, 2003. ** LESCON/PPGA - UFF 1 Tratado de paz perpétua celebrado entre o rei de Portugal Afonso V e os reis de Castela e Aragão; assinado em Alcáçovas, Portugal, em 4 de Setembro de 1479, e ratificados em Toledo, 6 de março de 1480. (Cf. RAMOS-COELHO, 1892: 42-5).

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COMPANHIA DE JESUS E O PADROADO PORTUGUÊS: conflito de nacionalidades no seio jesuítico*.

Renato Pereira Brandão**

Resumo Associado ao poder político da Coroa de Portugal no Ultramar estava o poder do Padroado da Ordem de Cristo. Apesar de mais presente junto ao clero secular, o poder do Padroado também se estendia ao clero regular, colocando a atuação de uma determinada ordem missionária no ultramar português sob o poder não só civil, mas também eclesiástico da Coroa. Apesar da ação missionária da Companhia de Jesus ter uma orientação internacionalista e transnacional, o nosso objetivo é demonstrar que interesses nacionais diversos ao da Coroa de Portugal geraram conflitos entre jesuítas portugueses com os de outras nacionalidades no ultramar português. Discutimos aqui três casos. O primeiro é referente à negociação de participação de jesuítas franceses na invasão  da  Guanabara  comandada  pelo  “calvinista”  Villegaignon.  O  segundo  aborda  a  ação do padre flamengo Verbiest na China procurando favorecer interesses mercantis da Coroa de França em detrimento aos de Portugal. O último trata do conflito entre os jesuítas da Província do Paraguai e os do Colégio do Rio de Janeiro frente às consequências do trabalho demarcatória do Tratado de Madri.

O Tratado de Tordesilhas, o Padroado da Ordem de Cristo e a Divisão do Mundo

Ao emitir em 3 de maio de 1493 a bula Inter Coetera, com intuito de reservar

para os reinos de Castela e Aragão, posteriormente unidos sob a denominação de

Espanha, o domínio exclusivo das Índias Ocidentais, recém descobertas por Colombo e

reivindicada pelo rei de Portugal D. João II, por força do Tratado de Alcáçovas1, o papa

aragonês Alexandre VI não só criou um problema político de fundamentação

cartográfica, nunca verdadeiramente resolvido, como interveio indiretamente nos termos

da bula de mesmo nome promulgada em 1456 pelo papa Calisto III, tio e mentor da

nomeação de Rodrigo Bórgia, nome original de Alexandre VI, como cardeal.

No Tratado Álcacer-Toledo estava estabelecido que a raia divisória entre Castela

e  Portugal  seria  as   ilhas  Canárias.    As   terras  e   ilhas  por  descobrir  “para  baixo”   isto  é,   * Versão integral do texto apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História Anpuh-Brasil. Natal, UFRN, 2003. ** LESCON/PPGA - UFF 1 Tratado de paz perpétua celebrado entre o rei de Portugal Afonso V e os reis de Castela e Aragão; assinado em Alcáçovas, Portugal, em 4 de Setembro de 1479, e ratificados em Toledo, 6 de março de 1480. (Cf. RAMOS-COELHO, 1892: 42-5).

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para sul, seriam portuguesas. Associada à questão da divisão do espaço de domínio

político entre as Coroas ibéricas existia outra de suma importância, apesar de

negligenciada pela maior parte dos estudiosos, a questão do Padroado. O direito do

padroado consistia em um conjunto de privilégios eclesiásticos a ser exercido,

usualmente, por uma ordem religiosa. Dentre estes privilégios constavam a nomeação

de bispos e demais dignidades eclesiásticas e o direitos de recolher o dízimo dos fiéis.

O direito do padroado das terras a serem descobertas ao sul do cabo Bojador foi

concedido por Calisto III a Ordem de Cristo, ordem monástica militar herdeira e

sucessora da Ordem dos Templários em Portugal (Cf. AVELAR, 1975:175-6).

Como a latitude  do  Cabo  Bojador  (26º  07’  00”  N)  é  muito  próxima  ao  das  Ilhas  

Canárias   (Ilha  do  Ferro  27º  46’  15”  N),  os   termos  do  Tratado  de  Álcacer-Toledo, que

reservava para Portugal o domínio político das ilhas e terras descoberta ao sul das

Canárias, acabaram por estar associados aos termos da bula que concedeu o padroado à

Ordem  de  Cristo  “da  Guiné  até  as  Índias”.    Observa-se que, tanto para o tratado quanto

para a bula, era latitude a referência de espacialidade. O domínio técnico da

determinação astronômica da latitude (a distância angular contada a partir do Equador

em direção ao Polo) na época permitia que esta fosse calculada com a precisão

necessária para não haver dúvidas a que esfera de poder político ou eclesiástico

pertencia um determinado local no ultramar. Já o mesmo não acontecia com a longitude,

de difícil determinação na época.

Hoje sabemos que esta divisão acabaria por beneficiar enormemente a Portugal,

pois ao sul do paralelo das Canárias estavam as maiores riquezas do continente

americano. Apesar de, a princípio, não se saber o que o continente americano reservava

aos reinos ibéricos, Alexandre VI, por pressão de Fernando de Aragão, promulgou em 3

de maio de 1493 a segunda bula denominada Inter Coetera. Nesta concedia aos reis de

Aragão e Castela o domínio das terras a serem descobertas dos Açores e Cabo Verde

cem léguas para o ocidente e o meio-dia. Ou seja, a referência deixou de ser norte-sul

para ocidente-oriente. Contudo, a transferência da raia divisória de paralelo para

meridiano criou um problema praticamente insolúvel para a época, por envolver

determinação de longitude2.

2 Até o início do século XVIII, a determinação da longitude estava fora de alcance dos navegadores, que conseguiam somente estimá-la com pouca precisão em função da distancia percorrida em um determinado rumo. Em terra, era feita por um complexo processo de determinações simultâneas do momento exato de uma determinada conjunção planetária,

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Ao intervir, Alexandre VI procurou anular os termos do Tratado de Álcacer-

Toledo, garantindo a posse das Indias Ocidentais para o futuro reino de Espanha, e

conectar   “los Reyes Católicos com las gracias pontificiais concedidas por la recien

instaurada   Iglesias  de  Granada” (GALMÉS, 1993:612). Ao assim fazê-lo, Alexandre

VI interveio no espaço eclesiástico reservado ao padroado da Ordem de Cristo sem se

voltar diretamente contra a bula Inter Coetera promulgada por Calisto III. Deste modo,

o padroado da Ordem de Cristo acabaria por ser definido espacialmente não mais pelo

termo bula Inter Coetera original, mas sim pela de mesmo nome promulgada

posteriormente por Alexandre VI.

Na recusa de D. João II em aceitar os termos desta bula, os representantes dos

reis ibéricos se reuniram na cidade de Tordesilhas, a fim de se chegar a um consenso.

Surpreendentemente, os representantes de Portugal não questionaram a maneira

improcedente de se estipular a divisão, mas, aceitando a referência da longitude,

propuseram que a linha divisória fosse deslocada para oeste, passando de 100 para 370

léguas de Cabo Verde. Como para os representantes espanhóis este avanço se daria

somente sobre o mar, a proposta encaminhada em nome do rei de Portugal foi aceita,

resultando na assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 7 de junho de 1494.

Este tratado, apesar de prejudicial a Portugal no tocante à América, acabou por

pouco alterar no que tange ao Oriente. Caso mantidas as raias das Canárias e Bojador, a

maior parte dos domínios orientais estariam igualmente sob o domínio político da Coroa

e o eclesiástico do Padroado da Ordem de Cristo. A única exceção expressiva seria

Pequim, que ficaria fora da área abrangida originalmente.

No que tange ao Padroado da Ordem de Cristo, este deveria ter como autoridade

maior o prior do mosteiro de Tomar. Contudo, este acabou por ter o poder obliterado

pelos monarcas portugueses, principalmente após 1550, quando foi concedido pelo papa

Júlio III o mestrado desta ordem militar a D. João III e seus sucessores. Assim, o

padroado monástico da Ordem de Cristo passou a ser, em verdade, Padroado Real.

principalmente da Lua. A longitude era então calculada em função das diferenças horárias locais. No mar, o problema só ficou resolvido em 1762, quando o inglês John Harrison inventou um relógio que, mesmo oscilando, mantinha um erro de apenas um segundo por mês.

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Por essa via [do Padroado da Ordem de Cristo] confirmada por breve papal de 1516, a Coroa provia os respectivos bispos e demais benefícios eclesiásticos e recebia os correspondentes dízimos, em particular no Brasil, o que lhe servia não apenas para fornecer côngruas aos párocos, mas ainda para sustentar as despesas da administração da Coroa em cada capitania (RAMOS, 2009:233)

Além disso, o poder do Padroado, por ser concessão papal, foi um importante

instrumento de preservação dos domínios ultramarinos da Coroa de Portugal frente ao

questionamento de legitimidade, por parte de outras monarquias católicas.

Os termos do Tratado de Tordesilhas, que preservava o controle da rota Atlântico

Sul-Índico para Portugal, praticamente isolou a Espanha do acesso ao Oriente. Na

procura, bem sucedida, de uma passagem direta Atlântico-Pacífico, em setembro 1519

Fernão de Magalhães, português a serviço de Espanha, partiu de Sevilha no comando de

uma pequena expedição em demanda ao arquipélago das Molucas, importante centro

produtor e distribuidor de especiarias. A expedição espanhola conseguiu chegar ao

almejado arquipélago em novembro deste mesmo ano. Contudo, somente dezoito

homens em uma única embarcação, sob o comando de Sebastião Del Cano,

conseguiram retornar à Espanha, em 1522, realizando a primeira viagem de

circunavegação da Terra.

Sabedor da presença espanhola nas Molucas, D. João III, rei de Portugal,

questionou junto a Carlos V, seu primo e rei de Espanha, o direito dele em tomar posse

deste arquipélago. Alegava que o estabelecido por este Tratado não se restringia

unicamente à partilha das Índias Ocidentais. Devido à esfericidade da Terra, o

prolongamento deste meridiano, o contra meridiano, dividiria o espaço de domínio

português e espanhol também no Oriente. Apesar de não haver como fazer, na época,

observações astronômicas para determinar se o contra meridiano de Tordesilhas passava

aquém, ou além, das Ilhas Molucas, os monarcas ibéricos estabeleceram um novo

tratado, formalizado na cidade de Saragoça em 22 de Abril de 1529. Neste ficou

acordado que a Espanha desistiria temporariamente de suas pretensões às Molucas em

troca de 350 000 ducados de ouro, até que peritos pudessem determinar a qual Coroa

pertenceria de fato. Caso viesse a constatar a procedência da reivindicação de D. João

III, Portugal, seria reembolsado da soma estipulada (FERREIRA, 1963:791-2).

Contudo, a Espanha se manteve em outro arquipélago descoberto por Magalhães,

situado ao norte das Molucas, posteriormente denominado Filipinas.

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Em 1548, D. João III estabeleceu o Governo-Geral no Brasil, nomeando Tomé

de Sousa para o cargo. No ano seguinte, Tomé de Sousa chega ao Brasil acompanhado

do jesuíta Manuel de Nóbrega, superior da missão formada por mais cinco religiosos.

Em 1553, desembarca na Bahia o noviço José de Anchieta, logo enviado à Capitania de

São Vicente. Sucedendo Nóbrega na direção missionária da Companhia de Jesus no

Brasil, Anchieta representa o pilar onde assentou a obra de conversão dos indígenas à fé

cristã.

O Apoio Jesuístico a Invasão do Frei Hospitalário Francês.

Em 10 de novembro de 1555, entrou na baía da Guanabara uma esquadra de

naus francesas, logo ocupando uma ilhota próxima à sua barra. Essa ilha, denominada

pelos índios de Serigipe, guarda até hoje o nome do comandante desta expedição

militar, Villegaignon. Usualmente apresentado como um nobre cavaleiro da corte do rei

Henrique II de França que teria se convertido ao calvinismo por influência do almirante

Coligny, para cá teria vindo com objetivo de fundar uma nova colônia francesa na

América, a França Antártica, onde cristãos conviveriam em paz, independente de seu

credo.

Contudo, seu título de Cavaleiro da Ordem de Malta não era de cunho

honorífico, como se costuma supor, mas referente à sua filiação monástica à Ordem de

São João de Jerusalém, onde era frei. Esta ordem militar foi fundada na Palestina,

durante as cruzadas, sendo então conhecida como Ordem do Hospital, e seus cavaleiros

como hospitalários. Após a expulsão dos cristãos da Terra Santa e do fim das cruzadas

passou a ser conhecida como Ordem de Rodes e, posteriormente, por Ordem de Malta.

Apesar de as ordens missionárias serem, a princípio, de cunho ecumenico e

internacionalista, diversas sofreram a influência da nacionalidade de seu fundador,

algumas vezes predominantes na escolha de seus priores ou superiores. No caso da

Ordem de Malta, a predominância francesa se fez presente, desde a sua fundação.

Não nos cabe aqui entrar na discussão da relação de Villegaignon com os

calvinistas, mas convém lembrar que a relação dos católicos com estes ainda não tinha o

carácter   antagônico   conforme   chegado   na   “Noite   de   São   Bartolomeu”,   ocorrida   em  

1572. Por outro lado, sabemos pela narrativa de Lery que, após instalados na

Guanabara, Villegaignon passou a persegui-lo, assim como aos outros calvinistas. Em

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seu livro Histoire d´vn voyage fait em la terre dv Bresil, dite Amerique, publicado em

1578, Lery acusa o comandante da França Antártica de ter traído Coligny ao perseguir

implacavelmente os calvinistas, que se viram obrigados logo a retornar para França. (Cf.

LERY, 1960.)

Em 1560, ao retornar a França na busca de apoio para a colônia estabelecida na

Guanabara, Villegaignon negociou a participação de jesuítas franceses. Em seis de

março de 1560 o padre Nicolau Liétard encaminhou uma carta ao Geral da Companhia

solicitando autorização para jesuítas franceses estabelecer um Colégio no Brasil por

intermédio de Villegaignon.

Por muitas vias se nos vão acrescentando as esperanças de alevantarmos muito cedo Colégio, por meio de um cavaleiro principal de Rodes, homem assim nas letras gregas e latinas como em virtudes assinalado, o qual haver cinco anos que, por mandado do Cristianíssimo Rei, foi à Ilha América para conquistar. E conquistando perto de duzentas léguas, parte com boas obras que fazia, parte à força de armas, haver três meses que chegou, não com outro intento senão buscar Bispo e sacerdotes para cultivar esta Ilha e reduzirem a nossa santa Fé. O Ilustríssimo Cardeal Lotarigiense, lhe prometeu que lhe daria alguma gente da nossa Companhia. Com esta confiança veio este cavaleiro a Paris. [...] Em América há assaz grande lugar, e acomodado, para se exercitarem nossos ministérios. Há perto de duzentas léguas, onde há muitos infiéis, que se podem reduzir ao grêmio da igreja, nem faltam lá mancebos franceses, que entendem já a língua da terra, os quais nos podem servir, na obra do catecismo, de intérpretes, como tenho entendido de um deles que de lá veio. As naus se ficam aviando em um porto daqui perto. O nome deste Cavaleiro é Nicolau Villegaignon. Rogue Vossa Reverência ao Senhor que mande operários para sua messe. (In WETZEL, 1972:77-8)

Esta negociação está também registrada no manuscrito jesuítico português

denominado Informações do Brasil e De Suas Capitanias, datado de 1584.

Encontrado na Biblioteca de Évora sem indicação de autoria, acabou atribuído a José de

Anchieta por Capistrano de Abreu

Daí a muito tempo, que parece que foi no ano de 1567, começara [os franceses] a fazer povoações no Rio de Janeiro, e então se fez aquela fortíssima torre com baluartes e muita artilharia e casas de moradores, cujo autor foi Nicolau de Villegaignon, cavaleiro de Malta, e fundou-a em uma ilha que está a entrada da barra no princípio daquela baía, a qual ficou com o nome de Villegaignon. (...) De Nicolau de Villegaignon

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afirmavam todos eles ser catolico e muito douto e grande cavalheiro (...). No ano de 60 ou 61 segundo parece, vieram sete ou oito frades de habitos brancos, Franceses, ao Rio de Janeiro depois da fortaleza destruída, porque como Nicolau de Villegaignon era catolico, tornando á França trabalhou de mandar religiosos ao Rio de Janeiro, assim para redução dos hereges como para conversão do gentio. Com êste desejo se foi a um Colegio da Companhia em França onde, depois de confessado e comungado, pediu Padres para este empreza, dizendo que tinha na Índia o Brasil 200 leguas de terras povoadas de gentio sujeito e pacífico: os Padres muito alvoraçados com esta nova, responderam que mandariam recado ao Padre Geral a pedir licença para isso e, como isto não se efetuou pela Companhia, trabalhou de mandar êstes outros religiosos como já disse. In ANCHIETA, 1988: 319, 321.

Contudo, em 1562, o Geral da Companhia de Jesus decidiu impedir a

participação de jesuítas neste empreendimento.

A proposta de Villegaignon não foi aceita pelo Pe. Geral. Os fatos vieram a comprovar o acerto de sua decisão, pois a essa data já a armada de Mém de Sá ancorava na Guanabara e com ela o Pe. Nóbrega. De Roma escrevia o Geral Laynez ao Provincial de Portugal, a 18 de abril de 1561: "En lo de aquel cavallero de Rodas, y la empresa de América no hay más que tratar. Émonos conSolado no poco con lo que scriven del Brasil acerca de aquella gente que tenia tomado la fortaleza ..." (Archivum Romanum Societatis Jesu, Roma, Hisp. 66, f. 169r" (WETZEL, idem:78).

Não sabemos as razões que levaram o P. Laynez, Superior da Companhia,

impedir a participação de jesuitas franceses no empreendimento comandado pelo frei

hospitalário, mas, certamente, a questão do Padroado esteve presente. Contudo, no

momento em que Villegaignon negociava o apoio jesuítico na França, Nóbrega se

refere, em carta datada de 1º de junho de 1560, aos franceses estabelecidos na

Guanabara como se fossem “todos  Lutheranos”  e  Villegaignon  como um calvinista que

já se intitulava Rei do Brasil.

Estes Francezes seguiam as heresias da Allemanha, principalmente as de Calvino (...) vinham a esta terra a semear estas heresias pelo Gentio; e segundo soube tinham mandados muitos meninos do Gentio a aprendel-as ao mesmo Calvino e outras partes para depois serem mestres, e destes levou alguns a Villagalhão que era o que fizera aquella fortaleza, e se intitulara  Rei  do  Brazil”.  Deste  se  conta  que  dizia  que,  quando El-Rei de França o não quisesse favorecer para poder ganhar esta terra, que se havia de ir confederar com o Turco, prometendo-lhe de dar por esta parte

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a conquista da India, e as naus dos Portuguezes que de lá viessem, porque poderia aqui fazer o Turco suas armadas com a muita madeira da terra (...) (In NÓBREGA, 1988: 226).

Dada à erudição de Nóbrega e a importância que tinha na Companhia, nos

parece improvável que não tivesse conhecimento da filiação monástica de Villegaginon

e, mesmo estando no Brasil, das negociações que naquele momento ocorriam com o

Provincial de França referentes a ida de jesuítas franceses para a Guanabara.

O mais surpreendente está na referência de uma possível negociação de

Villegaignon com os turcos, já que a Ordem de Malta era afamada como baluarte naval

da cristandade contra a tentativa da marinha otomana em fazer do Mediterrâneo um

“mar  mulçumano”.  Em  1565,  quando  os  franceses  ainda  estavam  no  Rio  de  Janeiro,  os  

otomanso fizeram um grande cerco à Ilha de Malta. A defesa dos Cavaleiros de Malta é

considerada um dos mais importantes feitos da história militar ocidental. O temor do

controle turco do Mediterrâneo somente cessou em 1571, quando a frota turca foi

derrotada na batalha de Lepanto. Nesta, a Ordem de Malta teve importante e decisiva

participação.

O Jesuíta Astrônomo Flamengo Como Agente de França na China

Pouco após de Villegaignon fundar a França Antártica na Guanabara, os

portugueses conseguiram no Oriente o importante, e único dentre as nações ocidentais,

privilégio de estabelecer uma colônia na China. Concedida aos portugueses em 1557,

Macau encontra-se situada no sul da China, na parte meridional da ilha de Hiasan, no

Golfo de Cantão. Sua importância estava não só como entreposto mercantil, mas

também por funcionar como base de apoio da soberania e do comércio português nas

ilhas de Solor e Timor, na Oceânia.

Durante a União Ibérica, em 1622, os holandeses prepararam uma grande

expedição para tomar Macau. Contudo, os portugueses conseguiram resistir aos

diversos assaltos. Apesar dos holandeses, em 1624, terem conseguido se instalar em

Formosa, em 1661 o célebre corsário Coxinga expulsa-os definitivamente, deixando

aos portugueses o privilégio único de ter uma colônia na China. (Cf. CLEMENTS,

2005). Com a Restauração, apesar da tentativa do governador das Filipinas em manter o

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arquipélago sob a autoridade espanhola e da ameaça holandesa, os macauenses

conseguiram permanecer unidos à Coroa de Portugal.

Concomitante ao desenrolar destes acontecimentos, Galileu, após aperfeiçoar as

lunetas de observação astronômica, desenvolveu um método prático e preciso de

determinação da longitude, tendo por base as observações das previsíveis eclipses dos

satélites de Júpiter. Seu trabalho teve continuidade por outro italiano, Domenico

Cassini, que adotou a nacionalidade francesa ao ser nomeado astrônomo e astrólogo do

rei Luís XIV. Posteriormente, Cassini organizou e fundou o Observatório Astronômico

de Paris, vindo a ser seu primeiro diretor.

Ao dominar a técnica de determinação da longitude por observações de eclipses

dos satélites de Júpiter, os astrônomos matemáticos da Companhia de Jesus,

principalmente italianos e franceses, passaram a ser solicitados pelos monarcas

europeus, a fim de refazer os mapeamentos de seus domínios.

Estando a China na órbita do Padroado Português, em 1659 o jesuíta flamengo

Ferdinand Verbiest, astrônomo de grande prestígio, obteve autorização do rei de

Portugal Pedro II para partir de Lisboa para Macau. Ali chegando, instalou-se

inicialmente no Colégio da Companhia de Jesus de Madre de Deus. Já no ano seguinte

foi transferido para Pequim. Em 1667 é integrado à missão diplomática enviada pelo rei

de   Portugal   a   corte   do   imperador   Kangxi.   “A   actuação   do   Pe.   Verbiest,   nessas  

negociações, saldou-se para Portugal deveras positivamente na medida em que ele tinha

um particular reconhecimento pela acção missionária que a Coroa portuguesa vinha

implementando   também   em   terra   da   China”.   (MATOS,   1999:   158-9). Ao ganhar

confiança e admiração do imperador, é nomeado, em 1669, Presidente do Tribunal das

Matemáticas de Pequim. A partir de 1672 acumula a direção do observatório

astronômico de Pequim.

No ano seguinte, em 1673, o jesuíta português Antonio Viera alerta, em carta de

Roma, ao representante português em Paris de que o rei de França estava agindo junto a

Santa Sé para obstruir os privilégios da Coroa de Portugal, concedidos pelo Padroado.

Já disse a Vossa Senhoria que elRey Christianissimo com os seus exércitos a primeira cidade que tem conquistado he Roma, onde lhe concederão, quanto seus ministros quizerem sobre os Bispos Franceses mandados ao Oriente pella Propaganda querem agora que para se evitarem discórdia se lhes dividão Diecesis, e se

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revoguem as Bullas antigas de Portugal. Roma, 8 de Agosto de 673. (In MONIZ, 1910: 158).

Cedendo a pressão de Luís XIV, neste mesmo ano o papa Clemente X emite um

breve autorizando os membros das ordens religiosas de embarcarem para as regiões sob

o domínio do Padroado Português em navios e portos que não fossem necessariamente

portugueses. Desta maneira, a Santa Sé retirava do rei de Portugal a prerrogativa de

escolher os missionários que partiriam para seus domínios ultramarinos.

A partir de então, Verbiest passa agir como um verdadeiro agente do rei de

França na China. Contando com seu apoio, Luís XIV encarregou Cassini, diretor do

Observatório Astronômico de Paris, de preparar uma missão científica, que veio a ter à

frente o padre matemático jesuíta De la Chaise, a quem Colbert outorgou, por decreto de

28 de janeiro de 1683, o titulo de Matemático do Rei. Esta missão científica partiu do

porto de La Rochelle em 3 de março de 1685, dela fazendo parte, além de De la Chaise,

mais seis matemáticos e astrônomos jesuítas, dos quais cinco chegaram à China (Cf.

MATOS, idem: 167-8).

A razão do envolvimento pessoal de Colbert neste projeto, a princípio de cunho

exclusivamente científico, se revela na participação de Verbienst, já como superior da

Companhia de Jesus em Pequim, na participação de jesuítas nas negociações entre a

China e Rússia que resultaram na assinatura do Tratado de Nerchinsk. Este tratado, que

delimitava a fronteira entre estes impérios e punha fim a uma série de conflitos entre

comunidades fronteiriças russas e chinesas, era de suma importância no estabelecimento

de uma nova rota mercantil da Europa Ocidental, principalmente a França, com a China

via Sibéria. Assim, a França não mais ficaria na dependência da rota náutica Lisboa-

Goa-Macau, dominada pelos portugueses.

O trabalho de mapeamento e de determinações das coordenadas geográficas de

diversas regiões do Império Celeste era de fundamental importância não só para o

Imperador aumentar o controle de seus domínios como para a concretização do plano de

estabelecer uma nova rota mercantil com o Oriente. Tendo Cassini à frente do

Observatório Astronômico de Paris, associado aos astrônomos jesuítas franceses

liderados por Verbiest, responsável pelo Observatório Astronômico de Pequim,

nenhuma outra nação europeia poderia concorrer com a França na realização deste

trabalho cartográfico.

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Contudo,   a   “infiltração”   de   jesuitas   franceses   na   China   não   ficou   restrita   aos  

astrônomos.  “Em  resultado  das  diligências  que   faz   junto  de  Luis  XIV  e   em  Roma,  os  

primeiros 5 jesuítas franceses (entre eles Gerbillon) chegam à China em 1687 à revelia

do   controle   português   e   contra   a   vontade   dos   jesuítas   do   Padroado”   (MIRANDA,  

1993:112). D. Polycarpo de Sousa, bispo de Pequim, passou então a dividir a

preocupação da ação dos franceses e outros, seguidores do plano concebido por

Ferdinand   Verbiest   com   os   jesuitas   portugueses   estabelecidos   na   China,   “defensores  

incondicionais da exclusividade que assitiam ao seu rei na qualidade de patrono da

missionação católica desde a região do golfo pérsico aos mares territoriais da imensa

China”  (Ibid.  121).  

Apesar do objetivo maior de Verbiest, o estabelecimento de uma rota mercantil

com a China através da Sibéria, não ter sido atingido (Cf. Ibid. 111), mesmo após a

morte de Verbiest em 1688, o trabalho de determinação de coordenadas e mapeamento

teve continuidade. Do mesmo modo, teve também continuidade a tensão e o

antagonismo entre jesuítas portugueses e franceses que missionavam na China. Os

mapas da China feitos por estes jesuítas franceses acabaram por publicados em Paris

em 1735.

Os Mapas da China dos Jesuítas Franceses e Conflito na Demarcação da Fronteira Meridional Estabelecida pelo Tratado de Madri.

A impossibilidade de demarcação da linha divisória, além da imprecisa maneira

em que o tratado foi redigido (Cf. Tratado de Tordesilhas. In CORTESÃO, 1956: 3-21),

possibilitou o avanço dos portugueses não só sobre áreas onde se havia dúvidas a qual

Coroa pertenceria, como também sobre territórios que, incontestavelmente, estavam

dentro dos domínios da Espanha. A Colônia de Sacramento, núcleo populacional

formado por luso-brasileiros estabelecidos em 1680 no estuário do Rio da Prata, se

encontrava, indubitavelmente, em território hispânico, razão de ter sua legalidade

prontamente contestada por parte de Espanha, instaurando, a partir de então, uma zona

de permanente conflito.

Pouco após, em 1700, a Europa se vê em estado de beligerância com a Inglaterra

em decorrência da crise instaurada com a morte do rei de Espanha Carlos II sem deixar

sucessor direto. O conflito se estendeu até 1713, quando é assinada o Tratado de

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Utrecht, onde é reconhecido o direito de Felipe de Anjou ocupar o trono de Espanha

como Felipe V.

Contudo, para ter seu neto no trono da Espanha, o Rei Sol fez grandes

concessões à Inglaterra. Portugal, aliado desta, acabou também beneficiado em questões

de fronteiras na América. Com a França obteve o reconhecimento do rio Oiapoque

como a fronteira natural entre o Brasil e a Guiana. Por parte da Espanha, obteve a

devolução da Colônia de Sacramento.

Apesar do estabelecido no Tratado de Utrecht, a posse luso-brasileira de

Sacramento permaneceu como ponto de discórdia com Espanha. Em 1735, um incidente

menor com o embaixador de Portugal em Madri, resultando em tensão entre as duas

Coroas, foi motivo para que o Governador de Buenos Aires sitiasse Sacramento.

Em 1746 o rei de Espanha Felipe V veio a falecer, sendo sucedido por seu filho

Fernando VI, por sua vez casado com Maria Bárbara, filha de D. João V de Portugal.

Por intermediação da rainha portuguesa de Espanha, as duas Coroas ibérica,

estabelecem negociações para redefinir a fronteira entre a América Espanhola e

Portuguesa, já que esta nunca fora demarcada por dificuldades no cálculo da longitude.

Tendo como objetivo maior retomar o controle do estuário do Rio da Prata, o

negociador por parte da Coroa de Espanha, o Marques de Carvajal, argumentava que,

mesmo com a dificuldade em se materializar o meridiano estabelecido pelo Tratado de

Tordesilhas, era evidente o avanço feito pelos portugueses nos territórios espanhóis.

Contudo, em nome da estabilidade política entre as Coroas ibéricas, não reivindicava,

como seria de direito, o retorno ao limite original, apresentando, em contrapartida, uma

proposta a princípio generosa e conciliadora. Esta seria a troca da posse da Colônia de

Sacramento pela região das minas de Cuiabá e Goiás, apesar de todas as áreas em

questão estarem, evidentemente, dentro da reservada ao domínio da Espanha.

O brasileiro Alexandre de Gusmão, desembargador do Conselho Ultramarino e

secretário do Rei, assume então a responsabilidade pelas negociações, se

correspondendo diretamente com Carvajal. Lança ele, então, mão de uma argumentação

inesperada e desconcertante. Os mapas da China feitos pelos jesuítas franceses,

publicados em Paris em 1735, demonstravam que o arquipélago das Filipinas, principal

entreposto mercantil da Coroa de Espanha no Oriente, estava indubitavelmente, dentro

dos limites estabelecidos para Portugal pelo contra meridiano do Tratado de Tordesilhas,

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referendado ainda pelo Tratado de Saragoça. De posse, então, destes mapas, pode

Alexandre de Gusmão sustentar sua reivindicação do princípio do utis-possidetis,

conforme comunica a Carvajal.

Os dittos Jezuitas pois (como sepode ver nos seis Mapas da descripção da China impressa em Paris em 1735) situarão a ponta Meridonal da Ilha de Formosa em 138 graos contados do primeiro Meridiano da Ilha do Ferro p.a o Oriente. Ora a extremidade occidental da Ilha de Luçon fica mais ao Poente que a ditta ponta de Formosa quatros grãos Meridianos como mostra a mayor parte dos Mapas Modernos. ( In CORTESÃO, 1950: 175)

Despido o Marques de Carvajal do recurso de uma contra argumentação

tecnicamente consistente, a proposta apresentada por Gusmão foi finalmente aceita. Esta

consentia em trocar a posse das Filipinas e da Colônia de Sacramento por um novo

espaço territorial para a América Portuguesa que, em sua porção meridional, teria como

limite oriental o rio Uruguai. Esta nova configuração fazia com que uma parte das

missões jesuítas da Província do Paraguai, os Sete Povos das Missões, passassem para a

jurisdição do Padroado Português.

O processo de demarcação da fronteira sul teve início em outubro de 1752, sendo

designado como Comissário por parte de Portugal Gomes Freire de Andrade e, por parte

de Espanha, o Marquês de Valdelirios. Foram dadas aos indígenas missioneiros as

alternativas de permanecer no local sob a autoridade da Coroa de Portugal, o que

colocaria os jesuítas missioneiros sob o poder do Padroado Português, ou transferir as

missões para a margem oriental do Uruguai. A negativa a estas propostas acabou por

deflagra, no ano seguinte, a Guerra Guaranítica.

Em decorrência dos resultados desta guerra, os jesuítas que atuavam nas missões

hispânicas, espanhóis em sua maioria, acabaram por retratar Gomes Freire como

sanguinário, inimigo dos índios e da Companhia de Jesus. Contudo, o governador do

Rio de Janeiro era próximo aos jesuítas do Padroado Português, especialmente do

Colégio do Rio de Janeiro. Pouco antes da partida de Gomes Freire para o Sul, um

padre da Companhia de Jesus participou de uma cerimônia na qual o governador havia

sido calorosamente homenageado (Cf. CAVALCANTI, 2004: 69).

Neste contexto, a Guerra Guaranítica desaguou na situação de contraponto, ou

mesmo de conflito direto entre os jesuítas do Colégio do Rio de janeiro e os das missões

hispânicas. Enquanto estes instaram os índios a reagirem belicamente, aqueles se

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fizeram presente estabelecendo novos aldeamentos para acolher os índios missioneiros

que aceitassem se estabelecer sob a égide do Padroado Português.

A esta data [1751] já se tinha assinado o Tratado de Permuta de 1750 e sobreviveram todas as lutas, debates, e carnificinas de que anda cheia a história dos Sete Povos das Missões. Para ter mão nos Índios, da parte do exército Português, foram chamados alguns Jesuítas do Brasil, (...) No dia 2 de Fevereiro de 1755 já estavam na Candelária, o P. Francisco Bernardes, que fez aí a profissão solene, e o Padre Bernardo Lopes, que a recebeu, dois anos depois, o Catálogo assinala, dependente do Colégio do Rio de Janeiro, (o grifo é nosso) a Aldeia do Rio Grande com o mesmo P. Francisco Bernardes por Superior e um terceiro Padre, Francisco da Silva, como companheiro. Em 1757 aparecem duas residências: Na Aldeia de Nossa Senhora da Conceição do Estreito, ao norte do Pôrto do Rio Grande, o Padre Bernardo Lopes como pároco dos Índios, à requisição de Gomes Freire de Andrade; e na Fortaleza e Acampamento de Rio Pardo, o P. Francisco Bernardes, que ali passou da Aldeia do Estreito. (LEITE, 1945:531)

Reconhecendo a existência do conflito de nacionalidades no seio da Companhia,

assim o padre Serafim Leite procura justificá-la:

Na história da Colónia de Sacramento aparecem Jesuítas de Portugal e Jesuítas de Espanha, a saber, Jesuítas da Província do Brasil e Jesuítas da Província do Paraguai. Todos da Companhia, mas com deveres políticos oposto. Num ponto, os mesmo: na unidade da doutrina e da moral, unidade substancial, religiosa, a mesma em todo o mundo, como no Universo são unidos na Fé e na Moral todos os católicos cultos, conscientes e dignos de tão grande nome e honra. Mesmo assim como no resto do mundo, em tempo de guerra, se encontram Católicos nos dois campos opostos, assim também neste, os Jesuítas do Brasil defendiam a bandeira portuguesa, os Jesuítas do Paraguai a bandeira espanhola. Era a estrita obrigação de cada qual, como cidadãos e patriotas. (Ibidem: 535)

No entanto, na questão da Guerra Guaranítica, Espanha e Portugal não estavam

em campos opostos, conforme nos faz supor Serafim Leite. Neste caso, não cabe aludir

à guerra como razão do comportamento conflitante entre os jesuítas do Colégio do Rio

de Janeiro com os missioneiros do Paraguai. Devemos ainda lembrar que, também no

caso de Villegaignon como no de Verbiest não havia estado de guerra entre Portugal e

França, o que invalida a justificativa apresentada pelo célebre historiador jesuíta. A

nosso ver, o que estava em jogo eram interesses nacionais e locais, principalmente

mercantis, e não propriamente estado de guerra entre nações.

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Considerações Finais Cientes que o conjunto dos casos abordados engloba o longo espaço temporal

de dois séculos, do meado do XVI ao do XVIII, refirmamos a pertinência da questão da

nacionalidade, atentos, porém, aos contornos diversos que esta toma ao longo do tempo.

Em relação direta ao abordado, sabe-se que a transformação do Condado

Portucalense em reino independente se fez em função da construção de uma identidade

nacional consolidada ao longo do século XIII. Não havendo esta, a estreita faixa

litorânea atlântica teria sido igualmente sugada pelo processo incorporador dos diversos

reinos ibéricos que desaguou na formação de Espanha. Para tal, concorreu o fato da

primeira dinastia de reis portugueses ter tido origem não na Península Ibérica, mas em

Borgonha. Contudo, se hoje os filhos da Borgonha têm a nacionalidade francesa, o

mesmo não ocorria quando da sagração de Afonso Henriques como rei de Portugal.

Apesar de ducado, a Borgonha tinha então uma identidade nacional própria, em

contraposição à de França. Obliterada posteriormente a manu militari, a identidade

nacional borgonhesa tomou rumo inverso àquela fundada em solo português, cada vez

mais cônscio de sua independência do caldeirão ibérico.

Com a expansão ultramarina no século XVI, a identidade nacional portuguesa

ganha dimensão transcontinental, extrapolando o espaço reinol. Usamos hoje o artifício

de antepor o termo luso para identificar a diversidade dentro da unidade: luso-

brasileiros, luso-angolanos, luso-macauense etc... Contudo, documentalmente tal

diferenciação não existe: são todos portugueses. Serafim Leite cita, em nota, o

levantamento estatístico feito em 1688 pelo P. João Antonio Andreoni das entradas e

saídas de noviços no Brasil. Para o período de 1566 a 1608, do total de 248 noviços

“portugueses” que ingressaram na Companhia 131 vieram de Portugal, 63 eram

nascidos no Brasil, 42 vieram das Ilhas e 11 “de  outros  Reynos”, ou seja, dos diversos

outros domínios ultramarinos, acreditamos que principalmente asiáticos. (Cf. LEITE,

1938: 437, t. 2)

Esta dimensão possibilitará que a Restauração não tenha ficado restrita ao

processo de resgate da independência política do reino e de sua identidade nacional.

Tendo como suporte a diversidade étnica, esta excêntrica identidade nacional

multiespacial possibilitou que o movimento separatista se espraiasse do próximo espaço

ilhéu atlântico ao Extremo Oriente.

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Assim, ao longo do tempo esta questão, mesmo ganhando tons variáveis, é

persistente. No século XVI, os jesuítas envolvidos, contra ou a favor, com o

empreendimento de Villegaignon eram franceses e portugueses natos. Contudo,

diferentemente no século XVIII, diversos dos jesuítas do Colégio do Rio de Janeiro,

assim como alguns das missões hispânicas, tinham nascidos em solo americano, e não

necessariamente de origem étnica exclusivamente ibérica. Não pode passar

despercebido o fato do protagonista maior do Tratado de Madri, Alexandre de Gusmão,

ter tido não só formação jesuítica como ter nascido no Brasil, na cidade de Santos.

No caso do Rio de Janeiro, a ação de jesuítas franceses no Padroado da Ordem

de Cristo não passou de uma intensão, abortada pelo Superior da Companhia. Numa

visão maior de conflito interno no seio da Igreja, é interessante observar que, durante as

cruzadas, foram intensas e constantes as hostilidades entre a Ordem dos Templários,

matriz da Ordem de Cristo, e a Ordem dos Hospitalários, a qual pertencia Villegaignon.

No caso da China, contudo, a ação dos jesuítas franceses agindo contra os

direitos do Padroado Português foi real e efetiva, apesar de não ter sido concretizado o

projeto de implantação da rota mercantil França-China via Sibéria. Neste caso, ressalta

o fato de ter sido o resultado do mapeamento da missão francesa, patrocinada pela

aliança de Verbiest com Luís XIV, o instrumento utilizado por Gusmão para desenhar

uma nova fronteira. A demarcação desta acabou por desaguar na Guerra Guaranítica,

de resultados tenebrosos para a Companhia de Jesus, por trazer repercussões que irão se

mostrar presentes no processo de expulsão de Portugal e de Espanha.

Destaca-se ainda a maneira como Nóbrega procurou ocultar a proximidade de

Villegaignon com jesuítas franceses ao apresentar o frei da Ordem de São João de

Jerusalém como calvinista. Por outro lado, apesar do compreensível melindre ao

abordar tal espinhosa questão para um jesuíta, Serafim Leite não se omite em revelar a

constante hostilidade que intermediava a relação entre religiosos portugueses e

espanhóis, obrigados ao convívio no Brasil durante a União Ibérica (LEITE, 1938:440-

3). Com o fim desta, que resultou no impedimento para os espanhóis, somente os

jesuítas italianos e alemães continuaram a não sofrer restrições, por parte da corte de

Lisboa, para se estabelecerem no Brasil.

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