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MAGAZINE pág 30 Evento | Algarve Chefs Forum Rota atlântica “O Atum e a Ria Formosa” ligaram, uma vez mais, os pro- dutos locais à melhor cozinha nacional e internacional, com particular atenção à matéria-prima não trabalhada, coroada no desmancho ao vivo de um peixe de 80 quilo- gramas. pessoas de outras áreas, como biólogos e académicos, que nos possam transmitir conhecimentos que nós não temos, para podermos evoluir na nossa profissão”, defendeu referindo-se especificamente ao enquadramento teórico do atum, apresentado por Pedro Bastos, da Nutrifresco (e transformada em texto nesta e na próxima edições da IM), e, na prática, ao desmancho ao vivo de um exemplar de 80 quilogramas, um dos pontos altos do evento. “De facto, é algo que os cozinheiros não vêem todos os dias, foi bastante interessante”, avaliou o chefe Fausto Airoldi, ressalvando ainda o nível da prestação criativa dos colegas em palco, “hoje, os cozinheiros saíram daqui com mais ideias para trabalhar este peixe, e que toda a gente entendeu a sua nobreza e tipos em que se divide”, surpreendeu-se. Neste espírito de partilha, Hans Neuner, chefe de cozinha do Ocean, inaugurou as demonstrações ao melhor estilo Tavira voltou a receber o Algarve Chefs Forum na quarta edição do evento organizado pelas Edições do Gosto. Cerca de 130 profissionais assistiram às demonstrações no hotel Vila Galé Albacora, partilhando o que de melhor se faz com aquele pescado. Bertílio Gomes programador do Allgarve e moderador do encontro, sublinha o Algarve enquanto “região com condições para ser representante da gastronomia nacional, devido ao produto, localização, cliente e presença de chefes internacionais”. E se continua a ser importante celebrar-se o produto? “É importantíssimo. Ainda mais tendo a colaboração de | Texto Margarida Reis | Fotografia Humberto Mouco Interpretações do atum, por Hans Neuner, Nuno Diniz, Sá Pessoa e José Cordeiro (da esq. para a dta.).

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Artigo publicado na INTER Magazine 229 - Maio de 2011.

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Rota atlântica“O Atum e a Ria Formosa” ligaram, uma vez mais, os pro-dutos locais à melhor cozinha nacional e internacional, com particular atenção à matéria-prima não trabalhada, coroada no desmancho ao vivo de um peixe de 80 quilo-gramas.

pessoas de outras áreas, como biólogos e académicos, que nos possam transmitir conhecimentos que nós não temos, para podermos evoluir na nossa profissão”, defendeu referindo-se especificamente ao enquadramento teórico do atum, apresentado por Pedro Bastos, da Nutrifresco (e transformada em texto nesta e na próxima edições da IM), e, na prática, ao desmancho ao vivo de um exemplar de 80 quilogramas, um dos pontos altos do evento. “De facto, é algo que os cozinheiros não vêem todos os dias, foi bastante interessante”, avaliou o chefe Fausto Airoldi, ressalvando ainda o nível da prestação criativa dos colegas em palco, “hoje, os cozinheiros saíram daqui com mais ideias para trabalhar este peixe, e que toda a gente entendeu a sua nobreza e tipos em que se divide”, surpreendeu-se.Neste espírito de partilha, Hans Neuner, chefe de cozinha do Ocean, inaugurou as demonstrações ao melhor estilo

Tavira voltou a receber o Algarve Chefs Forum na quarta edição do evento organizado pelas Edições do Gosto. Cerca de 130 profissionais assistiram às demonstrações no hotel Vila Galé Albacora, partilhando o que de melhor se faz com aquele pescado. Bertílio Gomes programador do Allgarve e moderador do encontro, sublinha o Algarve enquanto “região com condições para ser representante da gastronomia nacional, devido ao produto, localização, cliente e presença de chefes internacionais”. E se continua a ser importante celebrar-se o produto? “É importantíssimo. Ainda mais tendo a colaboração de

| Texto Margarida Reis | Fotografia Humberto Mouco

Interpretações do atum, por Hans Neuner, Nuno Diniz, Sá Pessoa e José Cordeiro (da esq. para a dta.).

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dashi de verbena, caldo básico japonês feito com alga kombu e um litro de água gelada, usando também o vácuo e banho-maria para maximizar os sabores (até aos 75ºC, temperatura em que se desenvolve o umami, considerado quinto gosto básico). Ao preparado, o chefe juntou flocos de bonito – o atum seco –, verbena e, no final, favinhas cruas, acompanhadas por “peixinhos da horta de Monchique”, ou seja, lingueirão e flor de courgette em tempura – técnica que “os portugueses levaram para o Japão”, lembra. O atum salteado, por fim, juntou-se a um pó de amêndoas, pinhões e sal caramelizado; um molho de beterraba e gel de bacalhau (usaram-se as peles) ajudaram a finalizar e no prato, já os salty fingers previstos deram lugar à salicórnia, produto que “cresce selvagem e existe em toda a costa portuguesa, nos estuários e sapais… Há que aproveitar”, afirmou combativo contra as importações da erva a preços elevados, nomeadamente da Holanda e Israel.

Do oriente para o ocidente, ou vice-versa Henrique Sá Pessoa, protagonista da quarta apresentação, assume ter um fascínio especial pelo atum. Tendo havido um decréscimo do produto na carta do Alma (Lisboa), por

da cozinha do Michelin do Vila Vita Parc: produto local privilegiado como base da cozinha internacional. Em Portugal há três anos, o austríaco, que usa o produto apenas um mês por ano pela sua sustentabilidade, trouxe da carta actual do Ocean, um atum dos Açores com caviar de truta, gelatina de soja, streusel de sésamo e salicórnia, casando ingredientes portugueses (atum, flor de sal, azeite) e japoneses (molho de soja preto kikoman, wasabi). O prato é uma versão de rolo japonês de atum, com um arroz muito cozido e crumble fixos com azeite, em espiral. Seguiu-se Lagostim com cabeça de vitela, pérolas de cous-cous, trufas de Inverno e malto de amendoins, outro “residente” no menu. Já Nuno Diniz, chefe na York House (“uma casa clássica”, Lisboa), aproveita estas oportunidades para dar azo à criatividade. “As minhas apresentações são sempre novas e morrem no momento em que as acabo”, disse o chefe. Preparou um Atum recheado com foie gras e figos, com o peixe em três utilizações – cru, salteado e seco. O elemento cru cruzou uma terrina de foie gras, figos secos algarvios e medronho, enrolada depois em atum cortado em fatias muito finas, cozidas em banho-maria e temperada com flor de sal e concentrado de laranjas. O Japão fez-se representar no

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Jorge Botelho, presidente da Câmara Municipal de Tavira, ambiente vivido no Vila Galé Albacora e o desmancho do atum ao vivo (da esq. para a dta.).

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do Lombo de atum “mantêm-se todos, mas apresentados de forma diferente”, exemplifica com o tártaro de tomate “transformado” agora em água de tomate. No atum, repetiu a técnica do tataki que “em 2005 não era muito utilizada”, e das sobras dos pedaços cortados aproveita-os em aparas, mousses, creme para amuse-bouche, entre outros – “nada se desperdiça”, adianta.

Futuro sustentadoAinda na trilha do Oriente, vez ao Aveludado de espargos com gyozas de atum à Chefe Cordeiro. Os pastéis de atum fresco Rabilho e creme de espargos verdes frescos devem ser servidos quente, lembra o chefe do Feitoria (Lisboa). No segundo prato, uma mistura de quente (“em baixo”) e frio (“em cima”): bife de atum chapeado com maionese de trufas pretas sobre rúcula salteada e salada fria. O Rabilho repetiu-se, em lombo, num prato simples que revela parte da filosofia culinária de José Cordeiro: “gosto cada vez mais de comer robalo a saber a robalo, de atum a saber a atum. A cozinha é isso.” A fechar o dia, directamente de Budapeste, Miguel Rocha Vieira rumou ao Algarve para mostrar o que se faz no Costes, o primeiro estrela Michelin na Hungria. Da carta, Vieiras salteadas, endívias cruas e cozidas, redução de laranja e coentros, e alinhado ao tema Lombo de atum da

razões de sustentabilidade, Sá Pessoa garante que é um peixe de que não prescinde, mas recorda: “o Japão elevou o consumo e isso teve consequências drásticas. É importante estarmos conscientes; temos um papel fundamental porque influenciamos pessoas.” Via Austrália, Sá Pessoa aproximou-se da cozinha asiática e revelou a evolução desse percurso num Tataki de lombo de atum com caldo de galinha perfumado com alga kombu, cogumelos e enoki. A ligação terra-mar no primeiro prato, combinou atum cozinhado dentro da técnica japonesa, laminado e frito em manteiga de cacau em pó, aguentando assim temperaturas mais elevadas sem queimar e mantendo o centro do peixe praticamente cru (“o cliente ainda pede tudo bem passado, mas há-de mudar”). Contrabalançou o atum com um caldo de galinha, obtido por asas fritas em óleo vegetal e soja adocicada (muito usada na Malásia, lembra um balsâmico reduzido), água fria e erva-príncipe. Ideal para a Primavera, a quase sopa usa espargos, ervilha torta, cogumelos enoki e shitake, ervilhas frescas bringidas rapidamente, salicórnia (mais sabor a mar), rebentos de coentros, folha de ostra, alga kombu e alga wakame, resultando numa textura “interessante quase de pastilha.” Na segunda proposta, Sá Pessoa reinterpretou o prato com que venceu o Chefe Cozinheiro do Ano 2005, actualmente na carta do Alma. Os sabores

Hans Neuner, Nuno Diniz (em cima), Henrique Sá Pessoa, José Cordeiro e Miguel Rocha Vieira foram os chefes em palco (da esq. para a dta.).

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pág 33Beba Com | Casa Ferreirinha

INGREDIENTES

Raia 4kgEspargos verdes muito grossos 2mlhBatata farinhenta 200gFarinha “00” Q.b.Azeite 100gSagu 20g

Raia Confitada em Azeite, gnocchi e espargos

PREPARAÇÃO

Limpar as asas de raia e cortar cada um dos filamentos da parte superior das asas.Descascar os espargos até terem só um talo branco.Escaldar e liquidificar as partes verdes.Cortar os talos em fósforos.Escaldar os talos brancos.Montar uma asa com filamentos de raia e fósforos de espargos.Pode usar-se uma gelatina que aguente calor, como gelburguer, ou gelan.Cozer ao vapor, coberto com película aderente e regado com azeite.Aquecer o sumo de espargos e ligar o sagu escaldado.Cozer as batatas com pouca água e muitos aromáticos.Reduzir a puré e ligar a farinha até secar.Moldar os gnocchi e cozer em água abundante.Empratar a asa de raia e os espargos.Regar ao lado o sagu com molho e os gnocchi ao lado também.

Elegante, com cor brilhante e nuances esverdeadas, Casa Ferreirinha Vinha Grande Branco tem aroma intenso e complexo, onde sobressaem frutos brancos (melão e pêra), notas florais e a madeira, que discretamente se integram. Na boca, boa acidez e estrutura, com presença dos frutos brancos e os aromas florais e a madeira bem envolvida, com final longo e complexo. Produzido a partir de castas tradicionais do Douro, como Malvasia Fina, Viosinho e Gouveio, Casa Ferreirinha Vinha Grande Branco deverá ser servido fresco, entre 12ºC a 15 ºC.

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Ria Formosa “ao natural”, tomate em texturas, onde o chefe deu destaque ao atum por manipular. “Este produto é incrível, quis mantê-lo o mais natural possível”, respeitou, mostrando ainda as amêndoas algarvias que serviram para a sopa. Miguel Vieira, que tal como José Cordeiro se disse adepto da cozinha simples, desenvolvida ”à medida que vai ganhando experiência”, segue a via internacional de quem sempre trabalhou fora do País, mas não dispensa o bacalhau fresco, a flor de sal e o azeite nacionais. “Há sempre lugar para os produtos portugueses, na Hungria ou em qualquer outra parte do mundo.” E vai mais longe: pretende incluir o resultado do ACF na carta. A concretizar-se, é mais um pouco de Portugal fora de portas, já à promoção interna, espera-a uma grande tarefa. “Estivemos muitos anos a fazer uma promoção turística errada; do sol, da praia e do golf, esquecendo a gastronomia. Agora que começámos a promovê-la, temos de saber por onde vamos”, explicou Fausto Airoldi. E desenhou-se uma possível solução ou pelo menos uma vontade, na voz de Henrique Sá Pessoa. “O Algarve foi durante muitos anos o único destino turístico de praia na Europa mas hoje em dia temos competição. Devemos agradar os turistas pela qualidade do nosso serviço, da nossa cozinha e produto. Quem é que sabe que em Portugal nós temos a rota do atum, que por aqui passa o melhor atum do mundo? Que temos acesso à flor de sal, à salicórnia, quando muitas vezes estes produtos são maltratados e nem sequer constam das ementas dos restaurantes?”. Desafio lançado. ∞

Doce SulEmbora tenha tentado o atum, Joaquim de Sousa decidiu “não brincar com um produto tão nobre” nas suas abordagens doces. Assim, escolheu laranja, alfarroba e queijo de figo algarvios para se sentir em casa e partilhar parte do seu trabalho como chefe pasteleiro no The Oitavos. Torta de laranja, creme de requeijão e gelado de ameixa e Figo, mousse de alfarroba e gelado de arroz doce antecederam a muito aplaudida versão de 2011 do Charuto de chocolate criado aquando da proibição da ASAE. À “decadência” da provocação nem faltou whisky (o conteúdo do copo é geleia da bebida), onde o charuto é enterrado, e malte a fazer de cinza.

Miguel Vieira pondera levar o prato do ACF até Budapeste.