Rosi Braidotti - A Ética Da Diferença Sexual (o Caso Foucault)

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A ética da diferença sexual: o caso Foucault Rosi Braidotti espaço michel foucault – www.filoesco.unb.br/foucault 1 A ética da diferença sexual: o caso Foucault Rosi Braidotti O presente texto é a tradução da parte inicial do capítulo 4 de Sujetos nómades de Rosi Braidotti, publicado em Barcelona pela Editora Paidós em 2000. Traduzido por wanderson flor do nascimento. Há mais de um século, Nietzsche declarava que todas as culturas decadentes, enfermas e corruptas adquiriam um gosto pelo "feminino" se já não pelo efeminado. Esse "feminino", como já manifestei, não é mais do que uma metáfora muito elaborada ou um sintoma do profundo descontentamento que aumenta no coração da cultura falogocêntrica. É um mal masculino que expressa a crise da auto-legitimação, a qual, segundo Lyotard, 1 é a marca das sociedades pós-modernas. Esse "feminino" não mantém uma relação imediata, nem sequer direta, com as mulheres da vida real. É uma atitude tipicamente masculina que transforma os transtornos masculinos em valores femininos. Se pensamos no presidente Schreber de Freud 2 quem, em seu delírio, declarava que era tanto homem como mulher e tanto mais feminino quanto era o favorito de Deus, mais podemos nos maravilhar ante as profundidades da tendência do "devir mulher", no pensamento moderno: uma tendência da que Derrida é na França o principal porta-voz 3 . Parece-me que a relação entre as metáforas do feminino e o discurso e a prática feminista deve ser estudada atendendo ao poder e às estratégias. A questão real é a colisão frontal entre os pressupostos patriarcais acerca do feminino e a realidade existencial das vidas e o pensamento das mulheres, que o feminismo tem nos ajudado a pensar. Esta discrepância pode ser vista como a tensão entre as imagens e as representações da "mulher" construídas pelo homem e as experiências das mulheres da vida real em sua grande diversidade. Para mim, é isto o que está em jogo no debate pós-moderno, pós-estruturalista, "pós-carta postal" 4 . Para demonstrá-lo, decidi deslocar o debate para uma questão lateral que é em alto grau significativa: a questão da ética e o extraordinário interesse que está despertando na filosofia francesa contemporânea. Por que voltou a se instalar a questão da ética na agenda filosófica depois de muitos anos durante os quais a "política" encabeçava o desfile das idéias? A absoluta importância que adquiriu a questão da ética na obra de alguns filósofos homens é uma conseqüência da crise do sujeito racional que sacudiu até os alicerces mesmos do sistema falogocêntrico. A questão da alteridade, da condição de "outro", está

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espaço michel foucault – www.filoesco.unb.br/foucaultO presente texto é a tradução da parte inicial do capítulo 4 de Sujetos nómades de Rosi Braidotti, publicado emBarcelona pela Editora Paidós em 2000. Traduzido por wanderson flor do nascimento

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  • A tica da diferena sexual: o caso Foucault Rosi Braidotti

    espao michel foucault www.filoesco.unb.br/foucault

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    A tica da diferena sexual: o caso Foucault

    Rosi Braidotti

    O presente texto a traduo da parte inicial do captulo 4 de Sujetos nmades de Rosi Braidotti, publicado em Barcelona pela Editora Paids em 2000. Traduzido por wanderson flor do nascimento.

    H mais de um sculo, Nietzsche declarava que todas as culturas decadentes,

    enfermas e corruptas adquiriam um gosto pelo "feminino" se j no pelo efeminado. Esse

    "feminino", como j manifestei, no mais do que uma metfora muito elaborada ou um

    sintoma do profundo descontentamento que aumenta no corao da cultura falogocntrica.

    um mal masculino que expressa a crise da auto-legitimao, a qual, segundo Lyotard,1 a

    marca das sociedades ps-modernas. Esse "feminino" no mantm uma relao imediata,

    nem sequer direta, com as mulheres da vida real. uma atitude tipicamente masculina que

    transforma os transtornos masculinos em valores femininos. Se pensamos no presidente

    Schreber de Freud2 quem, em seu delrio, declarava que era tanto homem como mulher e

    tanto mais feminino quanto era o favorito de Deus, mais podemos nos maravilhar ante as

    profundidades da tendncia do "devir mulher", no pensamento moderno: uma tendncia

    da que Derrida na Frana o principal porta-voz3.

    Parece-me que a relao entre as metforas do feminino e o discurso e a prtica

    feminista deve ser estudada atendendo ao poder e s estratgias. A questo real a coliso

    frontal entre os pressupostos patriarcais acerca do feminino e a realidade existencial das

    vidas e o pensamento das mulheres, que o feminismo tem nos ajudado a pensar. Esta

    discrepncia pode ser vista como a tenso entre as imagens e as representaes da "mulher"

    construdas pelo homem e as experincias das mulheres da vida real em sua grande

    diversidade.

    Para mim, isto o que est em jogo no debate ps-moderno, ps-estruturalista,

    "ps-carta postal"4. Para demonstr-lo, decidi deslocar o debate para uma questo lateral

    que em alto grau significativa: a questo da tica e o extraordinrio interesse que est

    despertando na filosofia francesa contempornea. Por que voltou a se instalar a questo da

    tica na agenda filosfica depois de muitos anos durante os quais a "poltica" encabeava o

    desfile das idias?

    A absoluta importncia que adquiriu a questo da tica na obra de alguns filsofos

    homens uma conseqncia da crise do sujeito racional que sacudiu at os alicerces

    mesmos do sistema falogocntrico. A questo da alteridade, da condio de "outro", est

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    suscitando renovada ateno precisamente por causa da problematizao que sofrem as

    estruturas da subjetividade no pensamento moderno. Creio firmemente que o movimento

    das mulheres uma das fontes primrias da deslocalizao do sujeito racional5.

    Minha hiptese que a chamada "crise" do sujeito racional e a inflao do conceito

    do feminino relacionada com ela tiveram efeitos benficos em certos filsofos homens.

    No eplogo do livro de Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism and

    Hermeneutics, Foucault definia o perfil geral de seu pensamento e declarava que o tema

    central era a anlise crtica, histrica, dos modos de constituio do sujeito: formas em que

    nossa sociedade converte os seres humanos em sujeitos. Em seu enfoque analtico do

    sujeito, Foucault se compromete a revelar, denunciar e, em ltima instncia, anular a forma

    especfica de violncia, isto , as formaes de poder que operam no jogo filosfico. O que

    na verdade interessava a Foucault era a materialidade das idias, o fato que elas existam em

    um espao de intermdio, apanhadas em uma rede de condies materiais e simblicas

    entre o texto e a histria, entre a teoria e a prtica, e nunca em nenhum desses plos. Sua

    filosofia uma filosofia das relaes, dos espaos intermedirios e, neste sentido, Foucault

    representa a anttese absoluta da sociologia.

    A preocupao central da obra de Foucault a crtica do poder desptico exercido

    pelo texto filosfico e pela histria da filosofia como um bloco monoltico de

    conhecimento. Tenho a impresso de que esta crtica d uma unidade geral a seu projeto

    intelectual.

    Como ele mesmo declara em sua introduo ao segundo volume da Histria da

    Sexualidade: O uso dos prazeres:

    Existe sempre algo de irrisrio no discurso filosfico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde est sua verdade e de que maneira encontr-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingnua; mas seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu prprio pensamento, atravs do exerccio de um saber que lhe estranho. O "ensaio" - que necessrio entender como uma experincia modificadora de si no jogo da verdade, e no como apropriao simplificadora de outrem para fins de comunicao - o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerccio de si, no pensamento.6

    A escolha deste lugar de enunciao implica uma redefinio da filosofia, "o

    exerccio de si mesmo na atividade do pensamento", "uma prova no jogo da verdade".

    uma pratica que implica uma relao consigo mesmo e com a alteridade e,

    consequentemente, uma postura tica.

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    A anlise da subjetividade feita por Foucault perfila trs modos principais que

    transformam os seres humanos em sujeitos. Esses modos correspondem a etapas de sua

    obra.

    Na primeira fase, Foucault analisa o tipo de discurso que pretende a condio de

    cincia, especialmente no campo das cincias humanas; esta etapa de sua obra, na qual se

    destacam As palavras e as coisas e A arqueologia do saber, o leva a criticar o papel que

    corresponde ao "sujeito cognoscente" na histria da filosofia ocidental.

    O segundo perodo da obra de Foucault aquele no qual o autor aborda a constituio do

    sujeito em virtude daquilo que ele chama "as praticas divisrias": excluso, separao e

    dominao dentro de si mesmo assim como a respeito aos demais. Esta parte de sua

    reflexo comea com a Histria da Loucura e o Nascimento da Clnica e continua atravs de A

    ordem do discurso e Vigiar e Punir. O conceito central que os modos em que se transformam

    os seres humanos em sujeitos em nossa cultura se sustentam em uma completa rede de

    relaes de poder, que Foucault define como "a microfsica do poder". Sendo o "poder" o

    nome que damos a uma complexa situao estratgica em uma sociedade dada, o corpo o

    alvo privilegiado dos mecanismos das relaes de poder. Foucault desenvolve uma

    economia poltica do corpo, um corpo definido em termos de materialidade, isto , como

    matria inclinada a experimentar uma variedade de operaes simblicas e materiais: deve

    fazer-se dcil, submissa, ertica, utilizvel, produtiva, etc.

    Estas tcnicas de controle e codificao do corpo vivo como o lugar da

    subjetividade tambm produzem "efeitos de verdade", portanto gerariam tipos especficos

    de conhecimentos acerca do sujeito e de sua inscrio social. Os aspectos normativos das

    relaes de poder nas quais fica preso o corpo so, consequentemente, positivos, isto ,

    produtivos em termos de conhecimento, no sentido de verdade sobre o sujeito vivo. Da

    que a noo de sujeito se baseie, para Foucault, em uma tecnologia do corpo conectado

    com a natureza racional do poder e com o carter normativo da razo.

    Esta idia estabelece, alm disso, um vnculo entre a segunda e a terceira etapas da

    obra de Foucault; na ltima, o autor se concentra nos modos pelos quais os seres humanos

    se transformam em sujeitos: entende a sexualidade como o campo no qual proliferam com

    maior fora em nossa cultura as prticas discursivas e, portanto, os efeitos de verdade

    normativos. No primeiro volume de sua Histria da Sexualidade, Foucault define a cultura

    ocidental como "sexo-cntrica": somos os nicos que inventamos a scientia sexualis, fazendo

    da sexualidade o lugar da auto-revelao e a verdade sobre si mesmo. As perguntas que se

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    faz Foucault so: o que essa sexualidade que preocupa tanto a todos? e por que meios nos

    tornamos sujeitos sexuais?

    No segundo e terceiro e volumes da Histria da Sexualidade, Foucault analisa as

    prticas do discurso e o controle da sexualidade entre os antigos gregos e romanos; e

    assinala que as prticas que reunimos sob o rtulo geral de "sexualidade" constituam o que

    a cultura greco-romana chamou de "artes da existncia", ou seja, "essas prticas refletidas e

    voluntrias mediante as quais os homens no somente se fixam regras de conduta, como

    tambm procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma

    obra que seja portadora de certos valores estticos e responda a certos critrios de estilo"7.

    Foucault sustenta que o conjunto das "artes da existncia", no sentido de "tcnicas de

    si" foram absorvidas nos comeos da Cristandade pelo exerccio do poder sacerdotal e logo

    pelos educadores e mdicos, entre outros. Parece-me que a evoluo do pensamento de

    Foucault mostra a sexualizao progressiva dessas prticas discursivas; a interseco da fase

    arqueolgica com a decodificao genealgica das praticas de si - que foi produzida por

    sua Histria da Sexualidade - tambm marca uma conscincia cada vez maior da postura

    masculina de falante que havia adotado, a de um filsofo homem. Por exemplo, podemos

    argumentar que nos primeiros textos evidente sua tendncia androcntrica; Foucault

    utiliza o termo homem como uma forma universal, com o qual manifesta sua cegueira

    diante da diferena sexual. Contudo, em suas ltimas obras o autor consciente do fato de

    que o controle da sexualidade que est analisando se baseia em uma profunda assimetria

    entre os sexos. Ao falar das "prticas de si", Foucault declara: "as mulheres so adstritas,

    em geral [...], contudo, no s mulheres que essa moral endereada; no so seus

    deveres, nem suas obrigaes que so ai lembrados, justificados ou desenvolvidos. Trata-se

    de uma moral de homens: uma moral pensada, escrita, ensinada por homens e endereada a

    homens, evidentemente, livres"8.

    O que Foucault quer assinalar aqui no tanto a excluso, mas a desqualificao

    das mulheres enquanto agentes ticos e, consequentemente, enquanto sujeitos. Foucault

    insiste na interconexo entre as condies para alcanar uma hierarquia moral e o direito a

    ser um cidado no sentido social, poltico, moral e judicial do termo. As regras e preceitos

    de uma vida moral - que tambm transformam ao sujeito em uma substancia tica - esto

    implicitamente conectados com os direitos scio-polticos e as mulheres se mantiveram

    margem de ambos.

    Sustentando que o governo de si mesmo, o manejo do patrimnio prprio e a

    participao na administrao da cidade eram trs prticas do mesmo tipo, Foucault destaca

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    o valor chave da "virilidade tica" como o ideal sobre o qual se baseia o sistema em seu

    conjunto. Isto, por sua vez, implica uma coincidncia perfeita entre o sexo anatmico de

    algum - masculino - e a construo imaginria da sexualidade masculina; alm do mais,

    Foucault pe acento na concordncia de ambos com as representaes sociais dominantes

    do que devia ser a norma tica universal: a virilidade simblica. Da que o corpo masculino

    forme um todo com o corpo poltico.

    Se lemos os projetos de Foucault a partir desta perspectiva, podemos entend-lo

    como a anatomia crtica das estruturas falocntricas do discurso; a prtica da "virilidade

    tica", na realidade, assenta tambm as bases do jogo filosfico como tal, isto , que oferece

    os parmetros bsicos da economia poltica da verdade, como entidade submetida

    autoridade do logos.

    Alm disto, a economia falogocntica assim analisada revela tambm o vnculo

    homossexual masculino que constitui a base do contrato social, assim como das prticas

    discursivas que a sociedade adota para si: um mundo para homens, feito por homens.

    Como pode ter sido o "uso do prazer" feminino e que efeitos de verdade e produo

    de conhecimento houve sobre o sujeito feminino, continua sendo matria de especulao.

    A brecha discursiva se traduz em ausncia histrica; da que toda a histria da filosofia,

    como chegamos a herd-la, foi conjugada no modo masculino e viril. A histria - antes que

    a anatomia - o destino.

    De acordo com esta leitura de Foucault, se pode argumentar que estamos diante de

    um filsofo homem que reproduz as regras em alto grau sexuadas que governam o discurso

    filosfico. Longe de ser universal, o escrnio da filosofia se apia nas premissas mais

    especificamente sexuais: aquelas que postulam a primazia da sexualidade masculina como

    lugar do poder social e poltico. Na ltima obra de Foucault, o discurso falogocntrico

    uma economia poltica e libidinal especfica: uma economia que designa aos sexos papis

    especficos, plos e funes em detrimento do feminino.

    A verso foucaultiana da tica clssica grega e romana, do uso do prazer e da

    aprendizagem das artes da subjetividade com todas suas conotaes polticas e simblicas -

    diferente da forma crist da tica -, no deve ser entendida como uma apologia de um

    sistema discursivo ou outro. Sua obra sobre a tica se concentra na descontinuidade entre a

    crise de valores moderna e as ticas anteriores, tanto a crist como a clssica;

    descontinuidade que inspirara histrica e conceitualmente a crise ps-moderna. Foucault

    volta seu olhar para o passado s para encontrar prticas que se ajustem ao aqui e agora de

    nosso lugar de enunciao. A pergunta a seguinte: como podemos ir mais alm da

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    historicidade de nossa condio moderna? Foucault sustenta que na era da modernidade

    no h moral possvel; estamos historicamente condenados a reconceber as bases de nossa

    relao com os valores que herdamos, especialmente do sculo XIX.

    ________________

    1 Jean Franois Lyotard. La Condition Post-Moderne. Paris, Minuit, 1979; "One of the Things

    at Stake in Women Struggle", Substance, n. 20, 1980. 2 Sigmund Freud, "Psycho-analytic Notes on an Autobiographical Account of a Case of Paranoia,

    Dementia Paranoides" (1911); reeditado em The Pelican Freud Library, vol. 9. Londres,

    Penguin, 1979. 3 Jacques Derrida, L'criture et la diffrence, Paris, Seuil, 1967; Marges, Paris, Minuit, 1972;

    Eperons, Paris, Flammarion, 1978. 4 A referncia corresponde a um dos livros de Jacques Derrida, La carte postale. 5 Minha anlise sobre a interseco entre o feminismo e a modernidade est de acordo com

    a diagnose ps-moderna como, por exemplo, em Alice Jardine, Gynesis: Configurations of

    Woman in Modernity. Ithaca, Cornell University Press, 1985. 6 Michel Foucault, O uso dos prazeres, Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 13. 7 Ibid., p. 15. 8 Ibid., p. 24.