Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O...

103
Elementos da Teoria dos Conjuntos Rog´ erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013

Transcript of Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O...

Page 1: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Elementos da Teoria dos Conjuntos

Rogerio Augusto dos Santos Fajardo

24 de Novembro de 2013

Page 2: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

2

Page 3: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Conteudo

1 Aprendendo a contar 5

2 O paradoxo de Russell 13

3 A linguagem da teoria dos conjuntos 173.1 O alfabeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183.2 Formulas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183.3 Unicidade de representacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193.4 Omissao de parenteses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203.5 Variaveis livres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203.6 Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213.7 Sistema de axiomas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233.8 Notas sobre sımbolos relacionais e funcionais . . . . . . . . . . . . . . 253.9 Notas sobre a semantica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

4 Axioma da extensao 31

5 Axiomas do vazio, par e uniao 37

6 Axiomas das partes e da separacao 43

7 Axioma da infinidade 47

8 Relacoes e funcoes 538.1 Pares ordenados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 538.2 Produto cartesiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 548.3 n-uplas ordenadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 548.4 Funcoes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

9 Aritmetica dos numeros naturais 599.1 Aritmetica dos numeros naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

10 Axioma da regularidade 63

11 Construcao dos conjuntos numericos 6511.1 Relacao de equivalencia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6511.2 Construcao do conjunto dos numeros inteiros . . . . . . . . . . . . . . 66

3

Page 4: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

4 CONTEUDO

11.3 Construcao do conjunto dos numeros racionais . . . . . . . . . . . . . 6811.4 Construcao do conjunto dos numeros reais . . . . . . . . . . . . . . . 69

12 Axioma da substituicao 71

13 Relacoes de ordem 77

14 Axioma da escolha 83

15 Conjuntos equipotentes 93

16 Comparacao entre conjuntos 99

Page 5: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 1

Aprendendo a contar

A matematica e formada por conceitos abstratos que, muitas vezes, nossa intuicao as-simila com certa facilidade, mas encontramos dificuldade em formaliza-los. A maioriadas pessoas ja esta familiarizada com os conceitos de conjuntos, funcoes e relacoes,mesmo sem fazer qualquer ideia sobre como explicar esses conceitos, ou sequer com-preender uma explicacao sobre eles. Esse abismo entre intuicao e formalizacao seevidencia quando estudamos a historia da matematica, e descobrimos que conceitoscom os quais a humanidade lida desde os primordios so foram formalizados – e demaneira surpreendentemente simples – no seculo passado.

Para ilustrar isso, imaginemos a seguinte situacao cotidiana. George e um me-nino que esta comemorando seu aniversario com os amiguinhos. Apos cantarem osparabens, sua mae lhe pede para ajudar a cortar o bolo e distribuir para os amigos.Para ninguem ficar sem bolo e nao haver desperdıcio, George conta quantas pessoasestao presentes na festa – digamos que foram vinte – e separa vinte fatias de bolopara distribuir uma para cada pessoa presente.

Vamos detalhar como e esse processo de contagem, que aparenta ser tao simples.Primeiro, George ergue a mao e aponta cada uma das pessoas que estao na festa(inclusive ele, se tambem quiser comer bolo). Cada vez que ele aponta alguem, elefala, em voz alta um numero, comecando do numero 1 e segue, na sequencia, ate onumero 20. O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo.

Quando George conta as pessoas, ele esta, na realidade, estabelecendo uma funcaoque associa a cada numero natural – no caso, ate 20 – uma pessoa na festa. Alem dese preocupar em pronunciar os numeros na sequencia correta, ele toma o cuidado denao contar duas vezes a mesma pessoa (isto e, a funcao tem que ser injetora) e de naodeixar ninguem de fora da contagem (isto e, a funcao tambem precisa ser sobrejetora).Ou seja, George sabe, intuitivamente, o que significa uma funcao bijetora. Mais doque isso, quando ele conta o numero de pessoas e o numero de pedacos de bolo –chegando no mesmo valor – ele sabe que podera distribuir um pedaco para cadaconvidado, sem faltar ninguem (desde que cada um so coma um pedaco). Portanto,ele sabe que a composicao de funcoes bijetoras e bijetora.

Por tras desse conceito de funcao, George possui uma ideia intuitiva do que sig-nifica conjunto: o conjunto das pessoas que estao na festa, o conjunto dos pedacos debolo, o conjunto dos presentes que ele ganhou, e assim por diante. Desde o momento

5

Page 6: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

6 CAPITULO 1. APRENDENDO A CONTAR

que ele aprende a contar, ele consegue abstrair a ideia de conjuntos equipotentes, ouseja, conjuntos com a mesma quantidade de elementos.

Conjunto e um conceito abstrato, e desse conceito podemos derivar todos os ou-tros da matematica. Por exemplo, os numeros naturais – uma das primeiras ideiasabstratas construıdas pela matematica – surgem na tentativa de comparar o tama-nho de conjuntos formados por objetos concretos (no caso de George, o conjunto depessoas na festas e o conjunto de pedacos de bolo cortados). Segundo alguns his-toriadores da matematica, a palavra calculo – vinda do latim calculus, que significapedra – surgiu do habito dos pastores, na antiguidade (antes da humanidade criar –ou descobrir – os numeros naturais) de utilizar pedras para verificarem se nao perde-ram alguma ovelha, associando cada ovelha a uma pedrinha. Com o surgimento dosnumeros naturais, passamos a utilizar eles proprios para a contagem de tamanhos deconjuntos, em vez de um saquinho de pedrinhas.

Dessa forma, os conjuntos, que, inicialmente, eram abstratos mas possuıam, comoelementos, objetos concretos, podem ser formados por objetos abstratos, como osnumeros naturais. Mas dessa ideia de conjuntos de objetos abstratos surge um novoconceito que contraria a nossa intuicao e tem assombrado a mente dos melhoresmatematicos: o infinito. Quando nos limitamos a investigar conjuntos formados porobjetos concretos, nunca nos deparamos com a infinitude. Mesmo o conjunto detodas as estrelas no ceu, ou mesmo de todos os atomos do universo, nao importa oquao imenso seja esse conjunto, ele possui uma quantidade limitada de elementos.Mas os numeros naturais – sendo esses objetos abstratos, criados pela mente humana(segundo algumas correntes filosoficas da matematica) – sao ilimitados. Isso porque,se existisse o maior numero natural possıvel, somarıamos 1 a esse e obterıamos umnumero maior do que esse que seria o maximo.

O processo de contagem para conjuntos finitos, com a qual estamos acostumadose que explicamos no exemplo do menino George, segue alguns princıpios que perce-bemos intuitivamente. Primeiro: nao importa a ordem que seguimos na contagem deum conjunto, encontraremos sempre o mesmo numero na quantidade de seus elemen-tos, contanto que tonhamos o cuidado de nao contarmos duas vezes o mesmo elementoe de nao esquecermos de nenhum. Segundo: se tirarmos qualquer elemento de umconjunto, obteremos, na nova contagem, um numero menor de elementos (conformediz um axioma de Euclides, de que a parte e menor que o todo).

Porem, quando alguns matematicos quiseram comparar tamanho de conjuntosinfinitos, comecaram a ver que essas “regras”, que valem para conjuntos finitos,deixam de valer. Galileu Galilei (1564–1642) foi um dos primeiros, que se tem notıcia,a usar esse conceito de funcoes bijetoras para comparar conjuntos infinitos. Eleconsiderou a funcao que associa, a cada numero natural, o seu dobro, conforme odiagrama seguinte:

0 ←→ 01 ←→ 22 ←→ 43 ←→ 6

. . .

Page 7: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

7

Com isso, Galilei mostrou que o conjunto dos numeros naturais “tem o mesmo ta-manho” que o conjunto dos numeros pares, mesmo havendo muitos numeros naturaisque nao sao pares.

O hotel de Hilbert O matematico alemao David Hilbert (1862–1943) deu umexemplo parecido. Se chegamos em um hotel e todos os quartos estao ocupados,entao sabemos que nao ha vaga nesse hotel, a menos que uma famılia saia. Agoraimaginemos um hotel com infinitos quartos – um para cada numero natural – sendoque todos estao ocupados. Chega uma nova famılia querendo se hospedar e o dononao quer despejar nenhum hospede, mas tambem nao quer recusar quarto para osrecem-chegados. Como ha infinitos quartos – mesmo que todos ocupados – e facilresolver o problema. Basta passar cada hospede para o quarto ao lado. Assim, quemesta hospedado no quarto 0 vai para o quarto 1, e do quarto 1 para o 2, e assim pordiante, sobrando o quarto 0 para os novos hospedes.

O problema do dono do hotel parece se complicar quando chega um onibus comuma infinidade de hospedes, um hospede para cada numero natural. Mas a solucaoainda e simples: ele passa cada hospede de um quarto para outro cujo numero e odobro do primeiro. Sobra, assim, todos os numeros ımpares para colocar os novoshospedes.

E se chegarem infinitos onibus – cada onibus marcado por um numero naturaldiferente – com infinitos passageiros cada um – cada passageiro tambem marcadopor um numero – podera ainda o dono do hotel hospedar todo mundo? Sim. Epodera faze-lo de forma que nao fique nenhum quarto vazio. Basta colocar o n-esimopassageiro do m-esimo onibus no quarto 2n · (m + 1) (para simplificar, desta vezassumimos que o hotel esta vazio – fica como exercıcio verificar o que se faria se ohotel estivesse lotado).

O paraıso de Cantor Aparentemente o paradoxo criado por Galilei nao causoutanto impacto na matematica e na filosofia, nem foi devidamente explorado durantealguns seculos. Foi so no seculo XIX que o assunto foi trazido novamente a tona pelomatematico alemao Georg Cantor (1845–1918). Dessa vez, o impacto transformoutotalmente o rumo da matematica moderna e deu inıcio a teoria dos conjuntos, quesera estudada neste curso.

Cantor nao so criou um paradoxo ou uma discussao filosofica atraves dessa ideiade comparar tamanho de conjuntos infinitos: ele de fato resolveu um problema ma-tematico usando esse conceito. Enquanto outros matematicos tiveram uma grandedificuldade para provar que numeros como π e e sao transcendentes (isto e, nao saoraızes de equacoes polinomiais de coeficientes inteiros), Cantor provou, de maneira re-lativamente simples, que existem muitos numeros transcendentes, mesmo sem exibirum sequer. Vamos aqui tratar brevemente dessa demonstracao.

O conjunto dos numeros algebricos (os nao transcendentes) aparentemente emuito maior que os numeros naturais. Para comecar, esse engloba todos os raci-onais, uma vez que a fracao a

be raiz da equacao bx − a, e quase todos os numeros

reais que conhecemos. Os transcendentes parecem ser estranhas excecoes dentro doconjunto dos numeros reais. Se os irracionais ja parecem aberracoes, mais ainda

Page 8: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

8 CAPITULO 1. APRENDENDO A CONTAR

os numeros transcendentes. Pois Cantor provou justamente o contrario: ha muitomais numeros transcendentes do que algebricos. De fato, o conjunto dos numerosalgebricos tem o mesmo tamanho que o conjunto dos numeros naturais.

Estabelecer uma bijecao entre os numeros naturais e os algebricos nao e difıcil.Primeiro, precisamos estabelecer uma bijecao entre os numeros naturais e os po-linomios de coeficientes inteiros, ou seja, colocarmo-los numa sequencia, como umafila infinita.

O inıcio da sequencia deve ser constituıda pelos polinomios de grau 1 e cujoscoeficientes tem modulo menor ou igual a 1. Esta claro que existe apenas umaquantidade finita desses polinomios. Podemos dispo-los em ordem lexicografica, comoa usada em dicionarios, conforme descrevemos abaixo.

−x− 1−x−x+ 1x− 1x

x+ 1

Continuamos a sequencia escrevendo os polinomios de grau menor ou igual a 2,cujos coeficientes tem modulo menor ou igual a 2, e que nao estao na lista anterior.Usamos a mesma ordem lexicografica dos coeficientes, comecando com os polinomiosde grau menor (ou maior, como queiram). Prosseguimos esse processo para 3, 4 eassim por diante, e isso ira contemplar todos os polinomios de coeficientes inteiros,conforme ilustra o seguinte diagrama:

Page 9: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

9

0 ←→ −x− 11 ←→ −x2 ←→ −x+ 13 ←→ x− 14 ←→ x5 ←→ x+ 16 ←→ −2x− 27 ←→ −2x− 18 ←→ −2x9 ←→ −2x+ 110 ←→ −2x+ 211 ←→ −x− 212 ←→ −x+ 213 ←→ x− 214 ←→ x+ 215 ←→ 2x− 216 ←→ 2x− 117 ←→ 2x18 ←→ 2x+ 119 ←→ 2x+ 220 ←→ −2x2 − 2x− 2

. . .

Agora, para “colocarmos em fila” os numeros algebricos basta substituirmos cadapolinomio pelas suas raızes (em ordem crescente), suprimindo os que ja foram listados.Fazendo assim obtemos:

0 ←→ −1 (raiz do polinomio −x− 1)1 ←→ 0 (raiz do polinomio −x)2 ←→ 1 (raiz do polinomio −x+ 1)3 ←→ −2 (raiz do polinomio −x− 2)4 ←→ 2 (raiz do polinomio −x+ 2)5 ←→ −1

2(raiz do polinomio −2x− 1)

6 ←→ 12

(raiz do polinomio −2x+ 1)

7 ←→ 1−√3

2(primeira raiz de −2x2 − 2x+ 1)

8 ←→ 1+√3

2(segunda raiz de −2x2 − 2x+ 1)

. . .

Com isso Cantor mostrou que o conjunto dos numeros algebricos “tem o mesmotamanho” que o dos numeros naturais. Isso significa dizer que o conjunto dos numerosalgebricos e enumeravel, ou seja, podemos enumerar todos seus elementos numa listainfinita, indexada com os numeros naturais.

E facil intuir 1 que um subconjunto infinito de um conjunto enumeravel e enu-meravel. Assim, os conjuntos dos numeros inteiros, racionais e algebricos sao todosenumeraveis.

1A demonstracao rigorosa desse fato e mais trabalhosa, como veremos posteriormente.

Page 10: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

10 CAPITULO 1. APRENDENDO A CONTAR

A essa altura comecamos a imaginar que todos os conjuntos sao enumeraveis.Talvez por isso o aparente paradoxo de Galilei nao tenha impactado tanto os ma-tematicos. Infinito e infinito e parece natural que todos os conjuntos infinitos te-nham o mesmo tamanho. Parece que, se nos esforcarmos bem, como fizemos com osnumeros algebricos, conseguimos colocar qualquer conjunto infinito numa sequenciabem comportada. Porem, Cantor surpreende a todos ao provar que o conjunto dosnumeros reais nao e enumeravel.

Vejamos a prova de Cantor da nao-enumerabilidade dos numeros reais. Seja fuma funcao de N em R. Mostraremos que f nao pode ser sobrejetora.

Para cada n natural, consideremos an a parte inteira de f(n) e (anm)m∈N asequencia dos algarismos apos a vırgula na representacao decimal 2 de f(n).

f(0) = a0, a00, a01, a02, a03 . . .f(1) = a1, a10, a11, a12, a13 . . .f(2) = a2, a20, a21, a22, a23 . . .f(3) = a3, a30, a31, a32, a33 . . .

. . .

Agora mostremos que existe um real r que nao pertence a essa lista. Definimosr da seguinte forma: a parte inteira pode ser qualquer numero (0, por exemplo) ea n-esima casa decimal de r sera 1 se ann for 0 e sera 0 caso contrario. Portanto,para todo n teremos que a n-esima casa de f(n) difere da n-esima casa de r, de ondeconcluımos que r nao esta na imagem de f .

Ou seja, escolhemos um numero real que “evita” a diagonal da matriz infinitaformada pelas casas decimais de cada numero real da sequencia. Essa prova ficouconhecida como argumento diagonal de Cantor 3.

Com isso Cantor mostrou que o conjunto dos numeros reais e nao-enumeravel,isto e, realmente a quantidade de numeros reais e maior que dos numeros naturais.Ora, se o conjunto dos numeros algebricos e enumeravel, e o conjunto dos numerosreais e nao-enumeravel, concluımos que existem infinitos numeros reais que nao saoalgebricos.

Concluımos tambem que ha uma bijecao entre os numeros reais e os transcen-dentes. De fato, considere em R uma sequencia (xn)n∈N de numeros transcendentesdistintos (por exemplo, xn pode ser π+n) e (an)n∈N a sequencia de todos os numerosalgebricos (lembre-se que os algebricos sao enumeraveis). Podemos definir uma funcaobijetora do conjunto dos numeros reais nos transcentendes da seguinte forma: cadaan e mapeado para x2n, cada xn e mapeado para x2n+2, e os demais numeros saomapeados para eles mesmos.

A demonstracao de Cantor causou uma das maiores controversias da historia damatematica. Para alguns, essa prova desvirtua o proposito da matematica e perderelacao com o mundo real. Uma corrente filosofica da matematica – os construti-vistas – nao aceitou o argumento de Cantor pois ele prova a existencia de diversos

2Aqui assumimos que a representacao decimal e aquela que nunca utiliza uma dızima de perıodo9. Ou seja, a representacao decimal de 1 que consideraremos e 1, 000 . . ., e nao 0, 999 . . ..

3Um argumento semelhante foi usado por Godel em uma parte crucial da demonstracao doTeorema da Incompletude.

Page 11: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

11

numeros transcendentes sem ser capaz de exibir (a partir da prova) sequer um numerotranscendente.

Para outros matematicos, no entanto, a prova de Cantor foi uma inovacao nopensamento abstrato e um grande passo para a Rainha das Ciencias. O matematicofrances Henry Poincare (1854–1912) chegou a dizer que “o cantorismo e uma doencada qual a matematica precisa se curar´´, enquanto, por outro lado, David Hilbertreagia as crıticas a Cantor dizendo que “ninguem nos tirara do paraıso criado porCantor´´.

Exercıcios

1. Mostre uma bijecao entre o conjunto dos numeros inteiros e os naturais.

2. Prove que qualquer subconjunto infinito dos numeros naturais e enumeravel.

3. Na bijecao que construımos entre os numeros naturais e os polinomios, encontreo polinomio associado ao numero 30.

4. Na bijecao que construımos entre os numeros naturais e os numeros algebricos,encontre o numero natural associado ao numero

√2

5. Suponha que, em um conjunto infinito, existe uma forma de representar cada ele-mento do conjunto como uma sequencia finita de sımbolos, dentre um conjunto finitode sımbolos. Mostre que esse conjunto e enumeravel e use esse resultado diretamentepara mostrar que os conjuntos dos numeros racionais e dos numeros algebricos saoenumeraveis.

Page 12: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

12 CAPITULO 1. APRENDENDO A CONTAR

Page 13: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 2

O paradoxo de Russell

O que e conjunto? Todos tem uma nocao intuitiva do que e um conjunto, mas, comosempre ocorre na matematica (e ocorreu com o proprio Euclides, quando tentoudefinir o que era ponto e reta), qualquer tentativa de definicao seria circular ouinsatisfatoria. Portanto, como costuma ocorrer na matematica moderna, em vez detentarmos explicar o que sao os conjuntos, nos limitaremos a descrever como sao osconjuntos, enunciando os axiomas que os regem, e discutindo o conceito intuitivo quetais axiomas procuram formalizar.

Inicialmente, o conceito de conjuntos estava diretamente ligado ao das formulasda linguagem de primeira ordem com uma variavel livre. Por exemplo, a formula∃y(x = 2 · y) tem x como variavel livre (veremos isso no proximo capıtulo) e, sepensarmos no universo dos numeros naturais, representa o conjunto dos numerospares. Um conjunto, entao, e determinado por uma propriedade.

Gottlob Frege (1848–1925) tentou levar essa ideia adiante, propondo uma forma-lizacao da matematica em que logica e conjuntos eram praticamente indissociaveis.Porem, Bertrand Russell (1872–1970) encontrou uma inconsistencia nessa forma-lizacao, atraves do seu famoso paradoxo 1.

Se qualquer propriedade determina um conjunto, entao podemos definir um con-junto X como o conjunto de todos os conjuntos que nao pertencem a si mesmos 2

Se permitirmos livremente a construcao de conjuntos atraves de uma expressaoque descreve todos seus elementos, e ainda utilizarmos a linguagem natural, cheiade auto-referencias, podemos definir o conjunto de todos os objetos que podem serdescritos com menos de vinte palavras. Certamente esse conjunto, se assim existisse,pertenceria a ele proprio. Ou, um exemplo mais simples, se existir o conjunto detodos os conjuntos, ele pertence a si proprio.

Surge a pergunta: X pertence a si mesmo? Se sim, entao, pela sua definicao, ele

1Esse paradoxo possui uma varianca popular conhecido como paradoxo do barbeiro, que diziaque havia numa cidade um barbeiro que cortava o cabelo de todas as pessoas que nao cortavam seuproprio cabelo, e apemas dessas.

2Podemos nos perguntar se e possıvel um conjunto pertencer a si proprio. Nota-se que ha umadiferenca entre pertencer a si proprio e estar contido em si proprio. Essa confusao entre as duasrelacoes e muito comum, devido a uma falha classica do ensino de matematica no nıvel basico, quesera discutida melhor durante a disciplina. Um conjunto sempre esta contido nele proprio, maspodera pertencer a si proprio?

13

Page 14: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

14 CAPITULO 2. O PARADOXO DE RUSSELL

nao pode pertencer. Se nao pertence a si mesmo, novamente usando sua definicao,concluımos que ele pertence. Chegamos numa inevitavel contradicao, que so se resolvenao permitindo a existencia de tal conjunto.

Isso derruba a proposta de Frege de unificar conjuntos e logica, relacionandoum conjunto com uma sentenca que descreve seus elementos. Para contornar esseproblema surgiram varias alternativas. O proprio Bertrand Russell criou uma for-malizacao da aritmetica usando teoria dos tipos. Nela, os objetos sao classificadoshierarquicamente. Os objetos de primeiro tipo sao os numeros naturais. Os objetosde segundo tipo sao os conjuntos de numeros naturais. Os de terceiro tipo sao osconjuntos de conjuntos de numeros naturais, e assim por diante. Nessa formalizacao,a pertinencia so poderia ser usada entre um objeto de um determinado tipo e outrodo tipo subsequente. Por exemplo, entre numeros e conjuntos de numeros.

Ernest Zermelo (1871–1953) e Abraham Fraenkel (1891–1965) propuseram umaoutra formalizacao mais eficaz e mais simples. Diferente da proposta de Russell, nosistema de Zermelo e Fraenkel – conhecido como ZFC, quando consideramos o axiomada escolha (do ingles choice, ou como ZF, quando nao consideramos tal axioma – tudoe conjunto, e podemos agrupar varios objetos matematicos em um mesmo conjunto.Como tudo e conjunto, em particular, os proprios numeros naturais sao conjuntos, eos elementos de conjuntos sempre sao conjuntos. Nao ha a distincao absoluta entre“elementos” e “conjuntos”, como erroneamente nos ensinaram alguns professores deensino medio, nem tampouco ha uma hierarquia entre “tipos” de conjuntos, comoformalizou Bertrand Russell.

Para resolver o problema do paradoxo de Russell, a solucao foi a seguinte: pode-mos definir um conjunto atraves de uma propriedade, como queria Frege, desde queessa propriedade seja estabelecidada a partir de um conjunto previamente fixado. Porexemplo, nao podemos definir o conjunto de todos os conjuntos finitos, pois nao estaclaro qual e o universo que estamos considerando, mas podemos definir o conjuntodos numeros reais que sao maiores que 2. Ou seja, dentro de um conjunto previa-mente fixado, separamos aqueles que tem a propriedade desejada. Esse e o axiomada separacao, que iremos falar, com mais detalhes, em algumas aulas.

Essa restricao criada pelo axioma da separacao em relacao a proposta inicialde Frege cria uma dificuldade na axiomatizacao: o axioma da separacao nao nospermite criar um conjunto “do nada”, sendo necessarios outros axiomas que garantema existencia de certos conjuntos. Assim, enquanto na teoria intuitiva dos conjuntos– que mais se aproxima da concepcao de Frege – basta definirmos um conjunto paragarantir sua existencia, na teoria axiomatica precisamos provar que ele existe, atravesdos axiomas.

Podemos separar os axiomas de ZFC em tres grupos. O primeiro deles e formadopelos axiomas que garantem a existencia de um conjunto, em particular. Sao eles: oaxioma do vazio e o axioma da infinidade. Como os nomes sugerem, eles garantem aexistencia, respectivamente, do conjunto vazio e de um conjunto infinito.

O segundo grupo de axiomas e formado por aqueles que nos permitem construiruns conjuntos a partir de outros. Sao eles o axioma do par, o axioma da uniao,o axioma das partes, o axioma da escolha, o axioma da separacao e o axioma dasubstituicao. Na realidade, esses dois ultimos nao sao, propriamente, axiomas, mas

Page 15: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

15

esquemas de axiomas (isto e, sequencias infinitas de axiomas dadas por alguma regraespecıfica), pois, conforme vimos (e veremos com mais detalhes quando estudarmos alinguagem da teoria dos conjuntos), cada propriedade nos dara uma versao diferentedo axioma da separacao. O axioma da substituicao e uma generalizacao do axiomada separacao.

O terceiro grupo de axiomas de ZFC sao aqueles que descrevem a natureza dosconjuntos. Sao eles: o axioma da extensao e o axioma da regularidade. O primeiroserve para determinar quando dois conjuntos sao iguais, e o segundo garante quetodos os conjuntos sao construıdos sequencialmente a partir do vazio, evitando cir-cularidades como “um conjunto pertencer a ele proprio”.

A versao atual do axioma da separacao impede que o paradoxo de Russell gereuma contradicao no sistema. Porem, o argumento de Russell mostra um teoremaimportante de ZFC: nao existe o conjunto de todos os conjuntos. De fato, se existisse,o axioma da separacao garantiria a existencia do conjunto de todos os conjuntos quenao pertencem a si mesmos, gerando, novamente, o paradoxo. Retornaremos a esseassunto quando falarmos, formalmente, do axioma da separacao.

Na tentativa de resgatar a conceitologia de Frege – de definir colecoes de objetos apartir de uma propriedade, sem impor alguma limitacao no universo, como ocorre como axioma da separacao – alguns matematicos criaram outras teorias dos conjuntosonde e apresentado o conceito de classe. Todos os conjuntos sao classes, mas algumasclasses – chamadas de classes proprias – sao “grandes demais para formarem umconjunto”. Por exemplo: classe de todos os conjuntos, classe de todas as funcoes, eassim por diante. As teorias que formalizam o conceito de classe dentro da teoriados conjuntos sao NGB (Neumann-Godel-Bernays) e KM (Kelley-Morse). Porem,dentro de ZFC podemos trabalhar com o conceito de classe identicando-a com umaformula. Apesar dessas tres teorias adotarem formalizacoes diferentes, os resultadossao essencialmente o mesmo.

Como o axioma da separacao depende de escrevermos uma propriedade, nao po-demos axiomatizar a teoria dos conjuntos valendo-se apenas da imprecisa linguagemnatural. Faz-se necessario criarmos uma linguagem de sintaxe controlada e livre decontexto – como idealizou Frege – que nao deixe duvidas sobre quais frases possamser consideradas “propriedades”. Para isso, o proximo capıtulo discorrera sobre alinguagem da logica de primeira ordem, que sera usada na teoria dos conjuntos.

Page 16: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

16 CAPITULO 2. O PARADOXO DE RUSSELL

Page 17: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 3

A linguagem da teoria dosconjuntos

Ha um cırculo vicioso entre logica de primeira ordem e teoria dos conjuntos. A for-malizacao de uma depende da formalizacao da outra. Seja como for que lidemoscom essa dicotomia, em algum momento precisamos apelar para a abordagem intui-tiva da outra. Ou seja, podemos desenvolver toda a teoria dos conjuntos de formaaxiomatica mas utilizando a linguagem natural (tal como Halmos faz em seu livro,e tambem como e feito nas disciplinas de Analise Real e Algebra) para, posterior-mente, formalizarmo-la com a logica de primeira ordem (que possui a vantagem deser muito proxima a argumentacao que costumamos fazer na linguagem natural, paraprovarmos teoremas matematicos). Ou podemos estudar logica primeiro, utilizandonocoes intuitivas de teoria dos conjuntos – tais quais aprendemos no Ensino Medio– para depois desenvolvermos a teoria dos conjuntos axiomaticamente. Seguiremosaqui uma terceira opcao: apresentar apenas uma parte da logica de primeira ordem(a sintaxe) – que requer apenas uma parcela mınima de nocoes intuitivas de conjuntose aritmetica – para depois formalizar a teoria dos conjuntos com o rigor da logica.

Podemos separar a logica de primeira ordem em tres aspectos: a linguagem,o sistema de axiomas e a semantica. Os dois primeiros constituem a sintaxe dalogica de primeira ordem, que trata da manipulacao dos sımbolos atraves de regrasbem definidas, livre de contexto e de significado. A semantica trata justamente dosignificado das expressoes logicas. E justamente na semantica que o uso de teoriados conjuntos e mais evidente e, por essa razao, trataremos aqui apenas da partesintatica, fazendo apenas alguns comentarios a respeito da semantica.

A logica de primeira ordem pode se adaptar a varios contextos, apresentandosımbolos especıficos de algum assunto que quisermos axiomatizar. Assim, para axi-omatizar a aritmetica utilizamos alguns sımbolos especıficos da aritmetica, como +,×, 0 e 1. Na teoria dos conjuntos, o sımbolo especıfico sera o de pertinencia (∈).Por isso, muitas vezes, em vez de dizermos a logica de primeira ordem, dizemos umalogica de primeira ordem, ou uma linguagem de primeira ordem.

Aqui trataremos especificamente da linguagem da teoria dos conjuntos. Naodemonstraremos nenhum dos teoremas aqui enunciados 1. Como referencia recomen-

1Os teoremas a respeito da logica de primeira ordem fazem parte do que chamamos de meta-

17

Page 18: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

18 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

damos o livro Set Theory and Logic, de Robert Stoll.

3.1 O alfabeto

Os sımbolos utilizados na linguagem da teoria dos conjuntos sao os seguintes:

Variaveis: representadas pelas letras minusculas: x, y, z, . . .. Eventualmente, saoindexadas pelos numeros naturais: x1, x2, x3, . . ..

Conectivos: ¬ (negacao – “nao”), → (condicional – “se. . . entao”), ∧ (conjuncao –“e”), ∨ (disjuncao – “ou”), ↔ (bicondicional – “se, e somente se”).

Quantificadores: ∀ (quantificador universal – “para todo”), ∃ (quantificador exis-tencial – “existe”).

Parenteses: sao os parenteses esquerdo e direito: ( e ).

Sımbolo de igualdade: =

Predicado binario: ∈ (pertence).

3.2 Formulas

Formulas sao sequencias finitas de sımbolos do alfabeto que seguem as seguintesregras:

1. Se x e y sao variaveis, x ∈ y e x = y sao formulas.

2. Se A e B sao formulas, ¬(A), (A) → (B), (A) ∧ (B), (A) ∨ (B) e (A) ↔ (B)sao formulas;

3. Se A e formula e x e uma variavel, entao ∀x(A) e ∃x(A) sao formulas.

4. Todas as formulas tem uma das formas descritas nos itens 1, 2 e 3.

Por exemplo, pela regra 1, temos que x ∈ y e uma formula. Pela regra 1, x = ztambem e uma formula. A regra 2 nos garante que (x ∈ y) → (x = z) e umaformula. Logo, a regra 3 nos garante que ∀x((x ∈ y) → (x = z)) e uma formula.

matematica, isto e, a matematica utilizada para formalizar a matematica. A logica de primeiraordem e a linguagem utilizada na matematica. Entao nos perguntamos qual e a linguagem utilizadaquando formalizamos a logica de primeira ordem. Obviamente, utilizamos a linguagem natural,mas podemos, posteriormente, formaliza-la utilizando a propria ordem de primeira ordem. A essalinguagem que utilizamos para descrever a logica de primeira ordem chamamos de metalinguagem.

Em seu livro Uma Breve Historia do Tempo, Stephen Hawking menciona uma historia que servecomo uma curiosa alegoria para entendermos o que e metalinguagem e metamatematica: de acordocom algumas pessoas, a Terra era achatada e estava apoiada no casco de uma tartaruga gigante,sendo que essa tartaruga, por sua vez, estava apoiada no casco de uma outra tartaruga gigante, eassim sucessivamente.

Page 19: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

3.3. UNICIDADE DE REPRESENTACAO 19

De fato, e uma expressao que “faz sentido” (ou seja, entendemos o que ela significa,independente de ser verdadeira ou nao). Traduzindo para a linguagem natural, seriao seguinte: “para todo x, se x pertence a y entao x e igual a z”. Ou, simplesmente,“z e o unico elemento de y”.

As formulas usadas no processo de construcao de formulas mais complexas saochamadas de subformulas. Por exemplo, A e B sao subformulas de (A) → (B). Nocaso do nosso exemplo, as subformulas de ∀x((x ∈ y) → (x = z)) sao x ∈ y, x = z,(x ∈ y) → (x = z) e, para alguns efeitos praticos, consideramos a propria formula∀x((x ∈ y)→ (x = z)) como subformula dela mesma.

As formulas que constam no item 1 sao chamadas de formulas atomicas, porquenao podem ser divididas em subformulas menores.

3.3 Unicidade de representacao

A regra 4 nos diz que as unicas formulas sao aquelas que se enquadram numa dastres anteriores. Ou seja, toda formula e da forma x ∈ y, x = y, ¬(A), (A) → (B),(A) ∧ (B), (A) ∨ (B), (A) ↔ (B), ∀x(A) ou ∃x(A), onde x e y sao variaveis e Ae B sao formulas. Uma questao importantıssima para evitarmos ambiguidades nalimguagem e: toda formula pode ser escrita em apenas uma dessa maneira? Isto e,olhando para uma sequencia de sımbolos que representa uma formula, existe apenasuma maneira de lermos essa sequencia de sımbolos como uma dessas formas?

A resposta e sim: se escrevemos uma formula de duas possıveis maneiras, tanto osımbolo quanto as variaveis e formulas envolvidas sao as mesmas, nas duas maneiras.Nao demonstraremos isso aqui. Apenas ressaltamos que esse e o papel dos parentesesna formula. Por exemplo, se nao houvesse parenteses, considere a formula x ∈ y →x = z∨z ∈ x. Podemos cosidera-la como da forma A→ B, onde A e a formula x ∈ ye B e a formula x = z ∨ z ∈ x, ou como da forma A ∨ B, onde A e a formula x ∈y → x = z e B e a formula z ∈ x. Assim, sem os parenteses nao sabemos se se tratade uma disjuncao ou de uma implicacao, gerando uma ambiguidade que, inclusive,fara diferenca na interpretacao da formula. Porem, com a regra dos parenteses naformacao das formulas, ou a escrevemos (x ∈ y) → ((x = z) ∨ (z ∈ x)) – quenao ha outra forma de descrevermo-la senao da forma (A) → (B) – ou escrevemos((x ∈ y)→ (x = z))∨(z ∈ x) – que e uma formula exclusivamente da forma (A)∨(B).

Ha uma notacao que dispensa o uso de parenteses e, mesmo assim, e livre deambiguidades. Chama-se notacao pre-fixada, ou notacao polonesa, que consiste emcolocar os sımbolos na frente das formulas e variaveis. Por exemplo, no lugar dex ∈ y escreverıamos ∈ xy, no lugar de x = y seria = xy, em vez de (A) ∧ (B)terıamos ∧AB. As formulas que acabamos de escrever ficariam →∈ xy∨ = xz ∈ zxou ∨ →∈ xy = xz ∈ zx. Essa notacao e elegante e evidencia a questao da unicidade,pois basta observarmos o primeiro sımbolo para reconhecermos o formato da formula.Porem, como o leitor deve ter percebido, a leitura e compreensao das formulas escritasnessa notacao nao sao nada intuitivas, e se tornam piores para formulas longas 2.

2Quem ja usou a calculadora financeira HP12C deve se lembrar que ela usa uma notacao seme-lhante, so que pos-fixada, em vez de pre-fixada. Ou seja, nessa calculadora pressionamos primeiro

Page 20: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

20 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

3.4 Omissao de parenteses

Como uma especie de abuso de notacao, as vezes omitimos alguns parenteses des-necessarios para a correta compreensao da formula. Por exemplo, embora a formacorreta seja (x = y)∧ (¬(x ∈ y)), podemos escrever simplesmente (x = y)∧¬(x ∈ y),sem prejuızo da compreensao da formula. Outra situacao e que evitamos o uso deparenteses e em torno de um quantificador, como no exemplo ∀x(x ∈ y)→ ∃x(x ∈ y).

Em sequencia de conjuncoes ou de disjuncoes tambem omitimos os parenteses.Por exemplo, podemos escrever simplesmente (x = y) ∨ (x ∈ y) ∨ (y ∈ x). Emboraessa notacao seja ambıgua a respeito do formato – pois, apesar de sabermos quee uma formula do tipo (A) ∨ (B), nao tem como sabermos se A e x = y e B e(x ∈ y) ∨ (y ∈ x), ou se A e (x = y) ∨ (x ∈ y) e B e y ∈ x – as duas possıveis formassao logicamente equivalentes, ou seja, expressam o mesmo significado.

3.5 Variaveis livres

Cada lugar que surge uma variavel dentro de uma subformula atomica de uma formulachamamos de ocorrencia de tal variavel. Por exemplo, a formula (x = y) ∨ (x ∈ z)apresenta duas ocorrencias da variavel x, e uma de cada uma das variaveis y e z.Na formula ∀x(x = y), nao consideramos o primeiro sımbolo x como uma ocorrenciada variavel, pois nao esta numa subformula atomica. Ou seja, nao consideramoscomo ocorrencia de uma variavel quando tal sımbolo esta imediatamente apos umquantificador.

Dizemos que uma ocorrencia de uma variavel y numa formula A esta no escopode uma variavel x se a A apresenta uma subformula da forma ∀x(B) ou ∃x(B), e essaocorrencia de y esta em B. Por exemplo, na formula (x ∈ y) ∧ ∃x(y = x), a segundaocorrencia de y esta no escopo da variavel x, mas a primeira, nao.

Dizemos que uma ocorrencia de uma variavel x numa formula A e livre se talocorrencia nao esta no escopo dela mesma. Chamamos de variaveis livres de umaformula A aquelas que apresentam pelo menos uma ocorrencia em que e livre. Umasentenca e uma formula que nao apresenta variaveis livres.

Por exemplo, a formula ¬(x ∈ y) (x nao pertence a y) apresenta duas variaveislivres: x e y. Nao podemos, portanto, julgar tal formula como verdadeira ou falsa,pois nao conhecemos quem e x ou quem e y. As variaveis correspondem ao pronome,na linguagem cotidiana. Se falarmos Ele foi a feira, a pergunta que naturalmentesurge e: Ele quem? Se falarmos Joao foi a feira, ou alguem do predio foi a feira, outodo mundo do predio foi a feira, entao a frase fica mais completa, e ganha o statusde sentenca, que permite averiguar se a frase e verdadeira ou falsa.

Digamos, entao, que acrescentemos um quantificador no nosso exemplo. A formula∀x¬(x ∈ y) tem apenas uma variavel livre: que e y. A variavel x nao ocorre livre, poisso ocorre no escopo dela propria. A formula significa “para todo x, x nao pertencea y”, ou, colocada de outra forma, “y nao possui elementos”, ou, simplesmente “y eum conjunto vazio”. Observamos que, para julgarmos a formula como verdadeira ou

os numeros (separados pela tecla “enter”) e depois pressionamos a operacao para obtermos os re-sultados.

Page 21: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

3.6. ABREVIATURAS 21

falsa, basta agora conhecermos quem e y. Em outras palavras, a formula em questaonos dita uma propriedade a respeito de y, enquanto a formula ¬(x ∈ y) dita umapropriedade a respeito de x e de y.

Se, porem, escrevemos ∃y∀x¬(x ∈ y), nao ha mais variaveis livres nessa formula.Essa e uma sentenca, cujo significado nao depende mais de interpretarmos as variaveis.Essa sentenca diz que existe um conjunto vazio, que veremos ser verdadeira. Se es-crevessemos ∀y∀x¬(x ∈ y) terıamos um significado totalemnte diferente, que seriatodo conjunto e vazio. Claramente essa e uma sentenca falsa. Mas e uma sentenca,pois os sımbolos estao dispostos numa ordem que faz sentido e nao apresenta variaveislivres.

Se A e uma formula e x e y sao variaveis, denotamos por Ayx a formula obtida ao

substituirmos toda ocorrencia livre da variavel x pela variavel y. Por essa notacao,A e sentenca se Ay

x e igual a A, para todas variaveis x e y.

Frequentemente denotamos por P (x) uma formula que tem x como (unica) variavellivre, ou por P (x, y) uma formula que tem duas variaveis livres, x e y (e analogamentepara outras quantidades de variaveis livres). Nesse caso, P (y) denota P (x)yx.

O motivo de utilizarmos a letra P nessa notacao e justamente pelo fato de P (x)designar uma propriedade de x. Veremos mais para frente como criar formulas pararepresentar propriedades como “x e um conjunto infinito”, ou “x e enumeravel”.

3.6 Abreviaturas

A medida que desenvolvemos assuntos mais complexos, as formulas vao se tornandodemasiadamente longas e ilegıveis. Para resolver isso, introduzimos novos sımbolosque funcionam como abreviaturas para expressoes maiores. O importante e que oprocesso de conversao da linguagem abreviada para a linguagem da logica de primeiraordem seja perfeitamente claro.

Comecemos a exemplificar isso com o sımbolo de inclusao. Dizemos que x estacontido em y se todo elemento de x pertence a y. A formula para designar inclusaoe ∀z((z ∈ x) → (z ∈ y)). Observe que essa formula tem duas variaveis livres, x e y.Abreviamos essa formula como x ⊂ y.

Assim como o sımbolo de pertinencia, a inclusao e um predicado binario (ousımbolo relacional binario), pois relaciona uma propriedade entre dois objetos douniverso (no caso, o universo dos conjuntos). Poderıamos ter introduzido o sımbolode inclusao entre os sımbolos primitivos, como o de pertinencia. Mas como a inclusaoe perfeitamente definıvel a partir da pertinencia e dos demais sımbolos logicos, etecnicamente mais facil utilizarmos o sımbolo de inclusao apenas como abreviatura.

Outras abreviaturas sao um pouco mais sutis na transcricao. Por exemplo, oconjunto vazio e denotado por ∅. A rigor, para utilizarmos a expressao o conjuntovazio e denota-lo por um sımbolo, antes precisarıamos mostrar que ele existe e e unico.Aceitemos esse fato, por enquanto, antes de o provarmos num momento oportuno.

Saber utilizar corretamente essa abreviatura requer um pouco mais de atencao.Primeiro notemos que, ao contrario da inclusao, o conjunto vazio nao se refere a umarelacao entre objetos, mas a um objeto em particular, e, ao contrario das variaveis,

Page 22: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

22 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

se refere a um objeto bem definido. Corresponde a um nome proprio na linguagemcotidiana. A esse tipo de sımbolo, na logica, chamamos de constante.

Assim como as variaveis, as constantes sao termos, isto e, se referem a objetosdo universo. Podemos utiliza-las no lugar de uma variavel em formulas atomicas.Por exemplo, ∅ ∈ x e uma formula na linguagem abreviada. Para encontrarmoso correspondente na linguagem original, precisamos explicar quem e ∅. Para isso,tomamos uma variavel que nao esta na formula (y, por exemplo) e escrevemos daseguinte forma:

∀y((∀x¬(x ∈ y))→ y ∈ x)

Um importante detalhe da formula acima e que a ocorrencia nao-livre da variavelx nao mantem qualquer relacao com a ocorrencia livre que ocorre a seguir (se quise-rem, podem substituir x por z, tanto na primeira ocorrencia, em x ∈ y quanto aposo ∀). A formula significa, numa interpretacao literal, “para todo y, se y nao possuielementos, entao y e pertence a x”, ou, “para todo y, se y e vazio, entao y pertencea x”, ou, simplesmente, “o conjunto vazio pertence a x”. Notem que essa formulaapresenta x como a unica variavel livre.

Descrevemos, a seguir, o processo formal dessa abreviatura:

Seja B a sequencia de sımbolos obtida ao substituirmos todas asocorrencias livres de uma variavel x numa formula A pelo sımbolo ∅.Entao B designara a formula ∀x((∀y¬(y ∈ x))→ (A).

Outro exemplo que citaremos aqui e da uniao de conjuntos. A expressao x ∪ yrepresenta o conjunto formado pelos elementos que pertencem x ou a y. Ou seja,∀z(z ∈ x ∪ y ↔ ((z ∈ x) ∨ (z ∈ y)).

Desta vez, essa abreviatura trata-se de um sımbolo funcional binario, pois associaa cada dois objetos do universo um terceiro. Outros exemplos de sımbolos funcionaisbinarios sao as operacoes + e × na aritmetica. Eis o detalhamento do processo deabreviatura:

Sejam A uma formula e x, y, z variaveis distintas. Seja B a sequenciade sımbolos obtida ao substituirmos toda ocorrencia livre de z em A porx ∪ y. Entao B designa a formula

∀z(∀w((w ∈ z)↔ ((w ∈ x) ∨ (w ∈ y)))→ A)

Para algumas finalidades – como no estudo da metamatematica ou na elaboracaodo sistema de axiomas, como sera feito na secao seguinte – convem reduzirmos ossımbolos primitivos ao mınimo possıvel. A partir de agora, passaremos a considerarcomo sımbolo primitivo da linguagem apenas as variaveis, os parenteses, o sımbolode pertinencia ∈, o sımbolo de igualdade =, o quantificador universal ∀, a negacao ¬e a implicacao →.

Definiremos a partir desses sımbolos os demais anteriormente descritos: ∨, ∧, ↔e ∃. Eis as regras:

Page 23: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

3.7. SISTEMA DE AXIOMAS 23

(A) ∨ (B) e abreviatura para (¬(A))→ (B);

(A) ∧ (B) e abreviatura para ¬((¬(A)) ∨ (¬(B));

(A)↔ (B) e abreviatura para ((A)→ (B)) ∧ ((B)→ (A));

∃x(A) e abreviatura para ¬(∀x(¬(A))).

Fica como exercıcio ao leitor entender, a partir da concepcao intuitiva dessessımbolos, o porque dessas abreviaturas.

3.7 Sistema de axiomas

O sistema de axiomas da logica de primeira ordem e composto de sete axiomas eduas regras de inferencia. Na verdade, sao cinco esquemas de axiomas, pois cada umrepresenta uma lista infinita de axiomas.

Uma demonstracao matematica e uma sequencia de formulas onde cada uma oue um axioma ou e obtida das formulas anteriores atraves de uma regra de inferencia.Um teorema e qualquer formula que conste em uma demonstracao.

Os axiomas apresentados aqui sao os axiomas logicos, que valem em qualquerteoria que utiliza a logica de primeira ordem. Esses axiomas traduzem os argumen-tos comuns que utilizamos em demonstracoes matematicas. Nos outros capıtulosestudaremos os axiomas especıficos da teoria dos conjuntos.

Lembramos que e virtualmente impossıvel demonstrar teoremas complicados uti-lizando estritamente o rigor logico apresentado aqui. Na pratica, utilizamos os argu-mentos usuais que estamos acostumados em cursos como Analise Real ou Algebra.Mas conhecer o processo formal de demonstracao logica nos da uma base de sus-tentacao, evitando as armadilhas da linguagem cotidiana. Isto e, devemos, em cadamomento, tomar o cuidado de saber como formalizarıamos cada trecho de uma argu-mentacao matematica, caso fosse necessario.

Os tres primeiros esquemas de axiomas sao puramente proposicionais. Lembra-mos que utilizamos as abreviaturas apresentadas na secao anterior, para os conectivos∧, ∨, ↔ e o quantificador ∃.

Se A, B, C sao formulas, as seguintes formulas sao axiomas:

A1 (A)→ ((B)→ (A));

A2 ((C)→ ((A)→ (B))→ (((C)→ (A))→ ((C)→ (B)));

A3 ((¬(A))→ (¬(B)))→ ((B)→ (A)).

Os outros quatro esquemas de axiomas tratam da natureza dos quantificadores(ou melhor, do quantificador, ja que reduzimos o quantificador existencial a abrevia-tura). Nesses esquemas e preciso prestar atencao as regras quanto as variaveis livres(lembre-se da Secao 3.5)

A4 (∀x((A) → (B))) → ((A) → (∀x(B))), se A e B sao formulas, e x nao possuiocorrencia livre em A;

Page 24: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

24 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

A5 (∀x(A))→ (Ayx), se A e uma formula e x e uma variavel que nao ocorre livre no

escopo de y, em A;

A6 x = x e um axioma, para qualquer variavel x;

A7 (x = y) → ((A) → (B)), sempre que x, y sao variaveis, A e uma formula, e Be obtido de A substituindo alguma ocorrencia livre de x por uma ocorrencialivre de y.

As regras de inferencia sao duas:

Modus Ponens: Se A e (A)→ (B) sao teoremas entao B e teorema.

Generalizacao: Se A e um teorema e x e uma variavel, entao ∀x(A) e teorema.

Agora que descrevemos os axiomas e regras de inferencia, faremos alguns co-mentarios e exemplos para esclarecer o sistema.

Os tres primeiros axiomas, juntamente com o Modus Ponens, sao suficientes paraprovar todas as instancias de tautologia 3. Isto e, se pegarmos uma tautologia dalogica proposicional, e substituirmos cada proposicao por uma formula de primeiraordem (devidamente cercado de parenteses, como mandam nossas regras de formacaode formulas), a formula obtida e um teorema da logica de primeira ordem, que podeser deduzida a partir dos tres primeiros axiomas e do Modus Ponens. Esse surpre-endente resultado e conhecido como teorema da completude do calculo proposicional.A verificacao de que uma formula e uma instancia de tautologia – construindo umatabela-verdade – e bem mais simples que uma demonstracao axiomatica.

O axioma A5 requer uma explicacao especial. Primeiro, vejamos, como exemplode aplicacao, que (∀y(y ∈ x)) → (z ∈ x) e um axioma do esquema A5, pois subs-tituımos a variavel livre y por z na formula y ∈ x. Propositalmente utilizamos yno lugar de x e z no lugar de y, na forma como enunciamos o esquema de axiomas,para deixar claro que, na forma como esta enunciada, x e y representam quaisquervariaveis.

Se tomamos A como a formula (y ∈ x)→ ∀y(y = x), precisamos tomar um certocuidado na aplicacao do esquema de axiomas A5. A formula Az

y e (z ∈ x)→ ∀y(y =x). Ou seja, nao substituımos a segunda ocorrencia de y porque essa ocorrencia naoe livre. Esse detalhe na definicao de Ay

x (ou Azy, como queiram) e essencial.

Por fim, outro cuidado que devemos tomar e com a ultima condicao: a variavelsubstituıda nao pode estar no escopo da variavel nova. Vamos dar um exemplo deporque existe essa condicao e, novamente, para nao viciar o leitor com alguma ideiaerrada, vamos fazer a substituicao da variavel y por z, na aplicacao de A5. ConsidereA a formula ∃z¬(y = z). Vamos utilizar o axioma A5 para a formula A e as variaveisy e z. Teremos o seguinte (ja omitindo o excesso de parenteses):

(∀y∃z¬(y = z))→ (∃z¬(z = z))

3Aqui, assumimos que o leitor esta familiarizado com nocoes de logica proposicional e tabelaverdade. Se nao estiver, isso nao e absolutamente essencial para o curso, mas e aconselhavel estudarum pouco sobre o assunto, especialmente para melhor compreender a logica.

Page 25: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

3.8. NOTAS SOBRE SIMBOLOS RELACIONAIS E FUNCIONAIS 25

Ora, num sistema em que ∀y∃z¬(y = z) e um teorema (nao e difıcil um sistemaassim, pois basta uma teoria em que existem dois objetos diferentes), por modusponens e essa aplicacao de A5 concluımos que ∃z¬(z = z), o que e um absurdo (porA6, regra da generalizacao e a definicao de ∃, temos que a negacao dessa formulae um teorema). Portanto, poderıamos ter uma inconsistencia na logica de primeiraordem se nao declarassemos que essa substituicao e proibida: y esta no escopo dez, na formula A, e, portanto, nao podemos fazer essa substituicao na aplicacao doesquema A5.

No esquema de axiomas A7 lembramos que a substituicao pode ser feita emapenas uma ocorrencia da variavel livre, diferente dos axiomas A4 e A5, em que asubstituicao precisa ser feita em todas as ocorrencias.

Um exercıcio nao trivial e mostrar que, se podemos fazer uma substituicao, emA7, podemos fazer quantas quisermos.

E bom observar que, no esquema A5, podemos escolher uma variavel para subs-tituicao que nao ocorra em A. Dessa forma, como caso particular temos que, paratoda formula A, (∀xA)→ A e um axioma.

3.8 Notas sobre sımbolos relacionais e funcionais

Aqui nos limitamos a sistematizar apenas a linguagem da teoria dos conjuntos, quepossui apenas um sımbolo relacional (tambem chamado predicado), que e o sımbolo∈. Dizemos que e um sımbolo relacional binario porque tem dois argumentos, istoe, relaciona dois termos. A rigor, a igualdade poderia ser considerado tambem umsımbolo relacional binario, mas costuma entrar na lista dos sımbolos obrigatorios dalogica de primeira ordem (mas isso depende da formalizacao que seguimos).

Os sımbolos relacionais correspondem ao verbo da linguagem cotidiana. Porexemplo, quando dizemos “o pai de Joao” nao estamos enunciando nenhuma afirmacao.A frase “o pai de Joao” nao esta passıvel a julga-la como verdadeira ou falsa, poisapenas se refere a algum indivıduo, e nada diz sobre ele. Mas se dissermos “o pai deJoao conhece o pai de Joaquim”, entao aı, sim, temos uma frase completa. O verboconhecer relaciona duas pessoas, e, se soubermos quem sao os indivıduos relacionadospelo verbo conhecer, seremos capazes de julgar se a frase e verdadeira ou falsa.

“O pai de Joao” e “o pai de Joaquim” correspondem aos termos da logica deprimeira ordem, pois se referem a indivıduos do universo que estamos considerando.“Joao” e “Joaquim” seriam constantes, pois se referem a indivıduos especıficos, di-ferentemente das variaveis (os pronomes, como ele, ela, alguem, correspondem asvariaveis). A expressao “O pai de” e, na logica, sımbolos funcionais unarios, poisrepresenta uma funcao que associa a cada indivıduo do universo um outro indivıduodo mesmo universo. Assim, se criarmos uma logica para formalizar relacoes entrepessoas, nosso universo sera o conjunto de todas as pessoas, e “pai de” sera umafuncao que associa a cada indivıduo um outro indivıduo.

Observe que so e possıvel estabelecermos “pai de” como sımbolo funcional porquecada pessoa possui um unico pai biologico (ainda que nao esteja mais vivo ou sejadesconhecido). Se a clonagem vingar, ja nao poderemos tratar “pai de” como sımbolofuncional. Da mesma forma, a expressao “o irmao de” nao pode ser usada como

Page 26: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

26 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

sımbolo funcional, pois nem todas pessoas tem irmaos, e algumas tem mais queum irmao. A expressao “o irmao de” pressupoe que o indivıduo tem apenas umirmao, e, na logica, so poderıamos usar algo semelhante se isso acontecesse a todosos indivıduos. Por outro lado, nada impede de considerarmos “e irmao de” comosımbolo relacional binario, assim como “e pai de” como sımbolo relacional binario. Aformalizacao do “pai” permite escolhermos entre sımbolo funcional e relacional, mas“irmao” necessariamente sera um sımbolo relacional.

Na aritmetica, ha dois exemplos classicos de sımbolos funcionais binarios: asoperacoes + e ×, que representam funcoes que associam a cada dois numeros um ter-ceiro. Tambem podemos considerar como constantes os numeros 0 e 1 (as constantestambem podem ser vistas como sımbolos funcionais 0-ario, ou seja, sem parametronenhum). Ja a relacao de ordem < e um sımbolo relacional binario.

A sucessiva aplicacao de sımbolos funcionais (como em 1× (x+ 0), ou “a mae dopai de Joaquim”) constroi termos cada vez mais complexos, e os sımbolos relacionais(e a propria igualdade) passam a relacionar termos, e nao apenas variaveis. Emboraa preferencia de notacao, para sımbolo funcional ou relacional binario, e colocar osımbolo no meio dos termos, se o grau desse sımbolo for diferente de dois precisamosmudar a notacao, e, para isso, acrescentamos, no alfabeto, a vırgula. A definicao determos passa a ser recursiva, semelhante a de formulas, conforme as regras:

1. As variaveis sao termos;

2. As constantes sao termos;

3. Se t1, . . . , tn sao termos e F e um sımbolo funcional n-ario, entao F (t1, . . . , tn)e um termo;

4. Todos os termos tem uma das formas acima.

Mudamos tambem a definicao de formula atomica. Para as formulas mais com-plexas, continuam as regras anteriores.

1. Se t1 e t2 sao termos, t1 = t2 e uma formula;

2. Se t1, . . . , tn sao termos e R e um sımbolo relacional n-ario, entao R(t1, . . . , tn)e uma formula.

O sistema de axiomas muda, tambem, quando introduzimos sımbolos funcionais.Por exemplo, no axioma A5 fazemos a substituicao da variavel x por um termo t,que nao necessariamente e uma variavel, e precisamos tomar cuidado para que x naoesteja no escopo de nenhuma variavel que ocorra em t. O axioma A6 passa a sert = t, para todo termo t, e, no axioma A7, novamente substituımos as variaveis portermos. Tambem acrescentamos o seguinte axioma:

(t = s)→ F (t1, . . . , tk−1, t, tk+1, . . . , tn) = F (t1, . . . , tk−1, s, tk+1, . . . , tn),

para todo F sımbolo funcional n-ario.

Page 27: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

3.9. NOTAS SOBRE A SEMANTICA 27

Se preferirmos, podemos dispensar o uso de sımbolos funcionais no sistema,transformando-os em sımbolos relacionais. Por exemplo, o sımbolo de +, na aritmetica,pode ser transformado num sımbolo relacional ternario R(x, y, z) que significa x+y =z. Precisamos, porem, tomar mais cuidado na axiomatizacao especıfica.

Embora na teoria dos conjuntos so contamos com um sımbolo relacional, se es-tendermos a linguagem com as abreviaturas que utilizaremos ao longo da disciplina,podemos pensar em uma serie de sımbolos funcionais e constantes que utilizamos.Temos as constantes ∅ (conjunto vazio), ω (o conjunto dos numeros naturais, quesera explicado posteriormente) etc. Dentre os sımbolos funcionais unarios adiciona-dos teremos P(X) (o conjunto dos subconjuntos de X), {x} (o conjunto que temcomo unico elemento o conjunto x), e assim por diante. A uniao e a interseccao deconjuntos podem ser vistos como sımbolos funcionais binarios, e a inclusao como umnovo sımbolo relacional binario.

3.9 Notas sobre a semantica

Para falarmos sobre a semantica da logica de primeira ordem, a rigor precisarıamosprimeiro desenvolver a teoria dos conjuntos. Porem, nesta secao apresentamos umabreve explicacao da semantica, a partir da nocao intuitiva de conjuntos que o leitorprovavelmente adquiriu no ensino medio e nas outras disciplinas do curso de ma-tematica. Mas, como prometemos anteriormente, essa parte nao sera necessaria paraaprender a teoria dos conjuntos axiomatica, e nada impeca que o leitor so leie estasecao (ou retorne a ela) apos o fim do livro (ou, pelo menos, apos o capıtulo 11).Nao ha, portanto, circularidade nessa apresentacao. Mas entendermos um pouco dasemantica ajuda a tornar mais intuitiva a sintaxe da logica de primeira ordem.

Seja L uma linguagem de primeira ordem. Um modelo M para a linguagem L euma estrutura constituıda das seguintes componentes:

• Um conjunto nao-vazio D, que chamaremos de domınio, ou universo, de M;

• Para cada sımbolo relacional n-ario R uma relacao RM em D (isto e, RM e umsubconjunto de Dn);

• Para cada constante c um elemento cM de D;

• Para cada sımbolo funcional n-ario F uma funcao FM de Dn em D.

Uma atribuicao de variaveis e uma funcao σ que associa a cada variavel umelemento de D.

Dados um modeloM e uma atribuicao de variaveis σ, a interpretacao de termossob a atribuicao σ e uma funcao σ∗ que estende a funcao σ a todos os termos, conformeas seguintes condicoes:

• Se x e variavel σ∗(x) = σ(x);

• Se F e um sımbolo funcional n-ario e t1, . . . , tn sao termos, entao σ∗(F (t1, . . . , tn)) =FM(σ∗(t1), . . . , σ

∗(tn)).

Page 28: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

28 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

SeM e um modelo, σ e uma atribuicao de variaveis e A e uma formula, denota-mos por (M, σ) |= A quando A e verdadeira no modelo M para uma atribuicao devariaveis σ, que definimos atraves das seguintes propriedades:

• Para quaisquer termos t1 e t2, (M, σ) |= t1 = t2 se, e somente se, σ∗(t1) = σ∗(t2);

• Se R e um sımbolo relacional n-ario e t1, . . . , tn sao termos, entao (M, σ) |=R(t1, . . . , tn) se, e somente se, (σ∗(t1), . . . , σ

∗(tn)) ∈ RM;

• (M, σ) |= ¬(A) se, e somente se, nao ocorre (M, σ) |= A;

• (M, σ) |= (A)→ (B) se, e somente se, (M, σ) |= B ou nao ocorre (M, σ) |= A;

• (M, σ) |= ∀x(A) se, e somente se, para toda atribuicao de variaveis θ tal queθ(y) = σ(y), para toda variavel y diferente de x, temos (M, θ) |= A.

Vamos dar um exemplo para entender melhor o significado de modelo. Considerea linguagem da aritmetica, com dois sımbolos funcionais binarios + e ×, as constantes0 e 1 e o sımbolo relacional binario <.

Podemos tomar a estrutura dos numeros naturais como modelo para a aritmetica.Isto e, o domınio e o conjunto dos numeros naturais N, as constantes 0 e 1 saointerpretadas pelos numeros correspondentes (isto e, 0M = 0 e 1M = 1, notando adiferenca entre os sımbolos 0 e 1 e os numeros 0 e 1). Os sımbolos +, × e < tambemsao interpretados pelas operacoes e relacao correspondentes.

Uma atribuicao de variaveis σ associa a cada variavel um numero natural. Porexemplo, imagine que σ associa x ao numero 1 e y ao numero 2. Entao o termox + y e associado a 3, isto e, σ∗(x + y) = 1 + 2 = 3. De acordo com essa atribuicaode variaveis, (M, σ) |= x < y. Agora, considere a formula ∀y(x × y = y). Semodificarmos σ apenas na variavel y, teremos x × y = y verdadeiro no modelo Mpara essa nova atribuicao de variavel (pois 1× y = y vale para qualquer y).

Observe que, se A e uma sentenca (isto e, nao contem variaveis livres), a veraci-dade de A num modeloM nao depende da atribuicao de variaveis. Isto e, se tivermos(M, σ) |= A teremos (M, θ) |= A, para toda atribuicao de variaveis θ. Quando issoacontece (A e verdadeira em M para qualquer atribuicao de variavel), denotamosM |= A. Observe tambem que, quando A e uma sentenca, ou M |= A ou M |= ¬A(esse e o princıpio do terceiro excluıdo).

Quando M |= A, tambem dizemos que o modelo M satisfaz a formula A.

Consequencia sintatica e consequencia semantica: Sejam L uma linguagemde primeira ordem e Γ um conjunto de formulas de L. Dizemos que uma formula A econsequencia sintatica de Γ (que denotaremos por Γ ` A) se existe uma demonstracaode A a partir das formulas de Γ (isto e, se incluirmos as formulas pertencentes a Γentre os axiomas da logica de primeira ordem, podemos provar A). Dizemos queuma formula A e consequencia semantica de Γ (que denotaremos por Γ |= A) se todomodelo que satisfaz todas as formulas em Γ tambem satisfaz A.

Page 29: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

3.9. NOTAS SOBRE A SEMANTICA 29

Teoremas fundamentais: Os tres principais teoremas metamatematicos a res-peito da logica de primeira ordem sao os teoremas da completude, da compacidade ede Loweinhein-Skolen.

O teorema da completude diz que Γ ` A se, e somente se, Γ |= A. Ou seja, con-sequencia sintatica e equivalente a consequencia semantica, provando que o sistemade axiomas que construımos e suficiente para provar tudo que podemos provar pelosargumentos usuais da linguagem cotidiana.

O teorema da compacidade diz que, se para todo Γ′ subconjunto finito de Γ existeum modelo que satisfaz todas as formulas de Γ′, entao existe um modelo que satisfaztodas as formulas de Γ.

O teorema de Loweinhein-Skolen pode ser enunciado da seguinte maneira: seexiste um modelo que satisfaca todas as formulas de um conjunto Γ, entao, paraqualquer conjunto infinito X, existe um modelo cujo domınio e X e que tambemsatisfaz Γ. Em geral, as linguagens de logica de primeira ordem que utilizamos temuma quantidade enumeravel de sımbolos. Senao, precisamos assumir que X temcardinalidade maior ou igual a cardinalidade do alfabeto. Uma versao do teoremadiz que todo modelo possui um modelo equivalente (isto e, ambos possuem as mesmasformulas como verdadeiras) cujo domınio e enumeravel.

Exercıcios

1. Usando a linguagem de primeira ordem da teoria dos conjuntos, escreva formulaspara representar as seguintes frases:

a) Nao existe conjunto de todos os conjuntos.

b) Existe um unico conjunto vazio.

c) x e um conjunto unitario.

d) Existe um conjunto que tem como elemento apenas o conjunto vazio.

e) y e o conjunto dos subconjuntos de x.

2. Marque as ocorrencias livres de variaveis nas formulas abaixo.

a) (∀x(x = y))→ (x ∈ y)

b) ∀x((x = y)→ (x ∈ y))

c) ∀x(x = x)→ (∀y∃z(((x = y) ∧ (y = z))→ ¬(x ∈ y)))

d) ∀x∃y(¬(x = y) ∧ ∀z((z ∈ y)↔ ∀w((w ∈ z)→ (w ∈ x))))

e) (x = y)→ ∃y(x = y)

Page 30: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

30 CAPITULO 3. A LINGUAGEM DA TEORIA DOS CONJUNTOS

3. Na linguagem da aritmetica dos numeros naturais (com os sımbolos funcionais +e × e as constantes 0 e 1) escreva as formulas de primeira ordem que correspondemas frases abaixo.

a) x e numero primo.

b) x e menor do que y.

c) A soma de dois numeros ımpares e par.

d) A equacao x3 + y3 = z3 nao tem solucoes inteiras positivas.

e) Todo numero par maior do que dois pode ser escrito como soma de dois numerosprimos.

4. Julgue se cada uma das formulas abaixo e verdadeira em cada um dos seguintesmodelos: N, Z, Q, R.

a) ∀x∀y∃z(x+ y = z)

b) ∀x∀y(¬(y = 0)→ ∃z(x× y = z))

c) ∃x(x× x = 1 + 1)

5. E possıvel uma axiomatizacao de primeira ordem para os numeros reais? Justi-fique, tentando descobrir o que significa uma “logica de segunda ordem”.

Page 31: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 4

Axioma da extensao

O primeiro dos axiomas que estudaremos e quase uma definicao de conjuntos, poisnos diz que um conjunto e caracterizado exclusivamente pelos seus elementos.

Axioma 1 (da extensao) Dois conjuntos sao iguais se, e somente se, eles tem osmesmos elementos.

∀x∀y((x = y)↔ (∀z(z ∈ x↔ z ∈ y))

Ha essencialmente duas maneiras de representar um conjunto: descrevendo oselementos do conjunto atraves de uma propriedade comum a todos eles ou descre-vendo cada elemento, entre chaves e separados por vırgulas. Por exemplo, numaabordagem informal, considere os seguintes “conjuntos”:

{Uruguai, Italia, Alemanha, Brasil, Inglaterra, Argentina, Franca, Es-panha}

Conjunto dos paıses que ja venceram alguma Copa do Mundo de fu-tebol

Ambos os conjuntos possuem os mesmos elementos. Cada elemento do primeiroconjunto tambem e um elemento do segundo, e vice-versa. Logo, os dois conjuntossao iguais, isto e, sao o mesmo conjunto.

Considere agora o seguinte conjunto:

{Alemanha, Argentina, Brasil, Espanha, Franca, Inglaterra, Italia,Uruguai, Brasil}

O axioma da extensao nos garante que esse conjunto e o mesmo que o anterior.Ou seja, vale aquela maxima que aprendemos no ensino basico: em um conjunto naoimporta a ordem dos elementos nem contamos as repeticoes.

E claro que nao estamos falando de conjuntos matematicos, existentes em ZFC.Mas e bom ressaltar que, sendo esse o primeiro axioma que enunciamos (o que enecessario, pois esse axioma e fundamental para a compreensao do conceito de con-junto), nao podemos provar, neste momento, a existencia de qualquer conjunto. Por

31

Page 32: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

32 CAPITULO 4. AXIOMA DA EXTENSAO

enquanto trabalharemos com a teoria ingenua dos conjuntos, de forma semelhantea concepcao fregeana, em que um conjunto e definido simplesmente pela descricaode seus elementos ou das propriedades que os delimitam. Assumiremos tambem aexistencia dos numeros naturais, mesmo que ainda nao tenhamos sequer os definido.Isso sera necessario para discutirmos alguns conceitos apresentados a seguir.

Sımbolo de inclusao: Apresentamos o conceito de subconjuntos, introduzindo umnovo sımbolo relacional binario que, no ensino basico, costuma ser bastante confun-dido com o sımbolo de pertinencia.

Definicao 4.1 Dizemos que x esta contido em y – ou x e subconjunto de y – se todoelemento de x pertence a y. Denotamos por x ⊂ y quando x esta contido em y.

Com essa definicao, introduzimos ⊂ como um novo sımbolo relacional binariona linguagem, chamado de sımbolo de inclusao. Podemos enxerga-lo como apenasuma abreviatura. Ou seja, onde esta escrito x ⊂ y le-se “todo elemento de x e umelemento de y”, ou “para todo z, se z pertence a x entao z pertence a y”. Ou ainda,na linguagem de primeira ordem, podemos escrever x ⊂ y como ∀z(z ∈ x→ z ∈ y).Isto e, vale a seguinte formula:

(x ⊂ y)↔ ∀z(z ∈ x→ z ∈ y)

Por exemplo, o conjunto {1, 2, 3} esta contido no conjunto {2, 1, 3, 4}, uma vez quetodos os elementos do primeiro conjunto tambem sao elementos do segundo. Se doisconjuntos sao determinados por propriedades, um ser subconjunto do outro significaque a segunda propriedade e mais geral do que a primeira. Por exemplo, o conjuntodos numeros transcendentes esta contido no conjunto dos numeros irracionais, poisser transcendente implica ser irracional (isto e, a propriedade de ser irracional e maisgeral que a de ser transcendente).

Com essa simbologia e atraves de uma simples manipulacao logica (faca comoexercıcio), podemos reescrever o axioma da extensao da seguinte maneira:

Afirmacao: Dois conjuntos x e y sao iguais se, e somente se, x ⊂ y ey ⊂ x.

Em partiular, x ⊂ x, para todo conjunto x.Dizemos que x e um subconjunto proprio de y se x ⊂ y mas x 6= y. Ou seja,

todo elemento de x pertence a y, mas existe pelo menos um elemento de y que naopertence a x.

Conjuntos de conjuntos: Difundiu-se pelo ensino basico uma maneira erronea dedistinguir os sımbolos de pertinenia e de inclusao. Dizem que o sımbolo de inclusaoso relaciona conjuntos, enquanto o de pertinencia e utilizado apenas entre elementoe conjunto, e nunca entre dois conjuntos.

Ora, alem de ignorar a possibilidade dos elementos de um conjunto serem, elesproprios, conjuntos, esse “macete” foge da real definicao dos dois conceitos. A in-clusao de conjuntos e definida de uma maneira simples, a partir do sımbolo de per-tinencia e de conceitos elementares de logica. Os dois sımbolos tem significados

Page 33: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

33

completamente distintos, e, se alguem ainda os confunde, e porque ainda nao com-preendeu as notacoes conjuntısticas. Vamos reforcar a explicacao que fizemos sobrea notacao das chaves: representamos um conjunto descrevendo seus elementos entrechaves e separando-os por vırgulas. Dessa forma, cotinuando com a nossa suposicaode que existem os numeros naturais e os conjuntos que iremos descrever, analisemosquem sao os elementos do seguinte conjunto:

X = {1, {1, 2}, {1, 3}, 3}

O primeiro elemento representado no conjunto X (lembrando que a ordem doselementos de um conjunto nao importa, e, por esse motivo nao devemos chama-lode primeiro elemento de X) e o numero 1. A seguir, como manda nossa notacao,escrevemos uma vırgula e comecamos a representar outro objeto matematico, que eo proximo elemento que representamos em X. Se a notacao {1 representasse algumacoisa, poderıamos ter duvida sobre a notacao, achando que {1 seria o segundo ele-mento descrito em X. Mas, como nao e o caso, fica claro que o proximo elementodescrito no conjunto X e um outro conjunto: {1, 2}; que bem sabemos ser o conjuntoformado pelos numeros 1 e 2.

Assim, os elementos de X (supondo que ele existe) sao:

1

{1, 2}{1, 3}

3

Portanto, podemos escrever 1 ∈ X, o que nao deve causar nenhum impacto a umestudante secundarista. Mas tambem podemos escrever

{1, 2} ∈ {1, {1, 2}, {1, 3}, 3}

Temos aı a pertinenia entre dois conjuntos e, se compreendemos bem a notacao daschaves, nao ha motivo algum para nos assustarmos com isso.

Podemos tambem dizer que {1, 2} e um subconjunto de X? Vamos analisar issocom calma, usando a definicao logica da inclusao de conjuntos. Precisamos verificarse todo elemento de {1, 2} e, tambem, um elemento de X. Quais sao os elementosde {1, 2}? A resposta e facil: 1 e 2. O numero 1 pertence a X? Sim, vimos acimaque 1 e um dos elementos do conjunto X. E o 2, pertence a X? Nao! Na descricaodos elementos de X nao consta o numero 2. Encontramos, portanto, um elementode {1, 2} que nao pertence a X. Denotamos isso como

{1, 2} 6⊂ {1, {1, 2}, {1, 3}, 3}

Vimos que um conjunto pode pertencer a outro e nao estar contido nele. Seraque pode um conjunto ser subconjunto e elemento de outro, ao mesmo tempo? Ve-rifiquemos o conjunto {1, 3}. Ele e um elemento de X. Vale, portanto:

{1, 3} ∈ {1, {1, 2}, {1, 3}, 3}

Page 34: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

34 CAPITULO 4. AXIOMA DA EXTENSAO

Sera que {1, 3} esta contido em X? Os numeros 1 e 3 sao ambos elementos deX, e esses sao todos os elementos de {1, 3}. Ou seja, todo elemento de {1, 3} e umelemento de X. Logo, vale o seguinte:

{1, 3} ⊂ {1, {1, 2}, {1, 3}, 3}

E importante ressaltar que essa analise foi feita na teoria ingenua dos conjuntos,assumindo que os numeros naturais nao sao conjuntos. Se definıssemos, por exemplo,o numero 2 como o conjunto {1, 3}, terıamos {1, 2} ∈ X. Mas esse nao e o caso,mesmo na construcao que faremos dos numeros naturais. Na construcao de Venn-Euler, o numero 2 sera definido como o conjunto {0, 1}.

Os detalhes apresentados nessa discussao talvez tenham sido exagerados e exaus-tivos, mas um vıcio de aprendizagem e algo que requer muito esforco e cuidado paraser superado. Os exercıcios apresentados a seguir sao imprescindıveis para a continui-dade do curso. Lembrem-se sempre: nao esperem a vespera das provas para fazeremos exercıcios e tirarem as duvidas!

Exercıcios

Para esses exercıcios, assumimos que os conjuntos enunciados existem, e nao trata-remos os numeros como conjuntos. Em particular, supomos que um numero nuncapertence a outro 1.

1. Usando o axioma da extensao, verifique se os conjuntos de cada um dos itensabaixo sao iguais. Justifique

a) {1} e {{1}}.

b) {1, 3, 2, 4, 2} e {4, 3, 2, 1}.

c) {x ∈ N : x < 3} e {0, 1, 0, 2}.

d) {1, 2, 4, 3} e {1, 1, 3, 4}.

2. Para cada par de conjuntos abaixo, decida qual(is) dos sımbolos ∈ e ⊂ tornama formula verdadeira. Lembre-se que a resposta tambem pode ser ambos os sımbolosou nenhum deles. Justifique cada resposta.

a) {1} . . . {1, {1}}

b) {0} . . . {{0}}

c) {1, 2, 3} . . . {{1}, {2}, {3}}

d) {1, 2, 3} . . . {{1}, {1, 2}, {1, 2, 3}}1Quando virmos a construcao dos numeros naturais, veremos que essa suposicao e, em geral,

falsa.

Page 35: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

35

e) {1, 2} . . . {1, {1}, 2, {2}, {3}}

f) {{1}, {2}} . . . {{1, 2}}

g) {{1}} . . . {1, {1}}

h) {{1, 2}, {1}} . . . {x ⊂ N : x e finito }.

i) {{1}, {{1}}} . . . {x ⊂ N : x e finito }.

j) {{{1}}} . . .Conjunto dos subconjuntos dos subconjuntos de N.

3. Seja x o conjunto {0, {0}, 0, {0, {0}}}.

a) Quantos elementos tem o conjunto x?

b) Descreva todos os subconjuntos de x.

c) Descreva, utilizando chaves e vırgulas, o conjunto de todos os subconjuntos de x.

d) Quantos elementos o conjunto dos subconjuntos de x possui?

4. Prove que x ⊂ x, para todo x.

5. Prove que x ∈ y se, e somente se, {x} ⊂ y.

Page 36: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

36 CAPITULO 4. AXIOMA DA EXTENSAO

Page 37: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 5

Axiomas do vazio, par e uniao

Vimos no capıtulo anterior o axioma da extensao, que caracteriza quando dois con-juntos sao iguais. No entanto, conforme frisamos nos exercıcios e exemplos, apenascom o axioma da extensao nao podemos garantir a existencia de qualquer conjuntoespecıfico. Por isso, nosso proximo axioma garante a existencia de um conjunto bemespecial.

Axioma 2 (do vazio) Existe um conjunto vazio.

∃x∀y¬(y ∈ x)

Usando a notacao /∈ para nao pertence, o axioma do vazio pode ser reescrito como

∃x∀y(y /∈ x)

Na verdade, o axioma do vazio e dispensavel, pois veremos que ele pode serprovado a partir do axioma da separacao, desde que assumamos que existe pelo menosum conjunto. Assim,podemos reescrever o axioma do vazio como existe um conjunto 1

Teorema 5.1 Existe um unico conjunto vazio.

Demonstracao: A existencia de um conjunto vazio e ditada pelo axioma do vazio.Mostremos a unicidade. Suponhamos que existem x e y conjuntos vazios diferentes.Pelo axioma da extensao, existe um elemento de x que nao pertence a y ou existe umelemento de y que nao pertence a x, o que, em ambos os casos, contradiz que x e ysao vazios. �

Como o conjunto vazio e unico, podemos adicionar uma constante na linguagemque o represente. O sımbolo adotado para o conjunto vazio e ∅.

Teorema 5.2 O conjunto vazio esta contido em qualquer conjunto.

1Na verdade, a formulacao que aqui apresentamos da logica de primeira ordem nao permite queo domınio (vide a secao sobre semantica, no Capıtulo ??) seja vazio. Logo, a rigor, o axioma dovazio – ou da existencia de conjuntos – e dispensavel. Porem, mantemos esse axioma por motivoshistoricos e didaticos.

37

Page 38: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

38 CAPITULO 5. AXIOMAS DO VAZIO, PAR E UNIAO

Demonstracao: Seja x um conjunto. Se ∅ nao esta contido em x, isso significa queexiste um elemento de ∅ que nao pertence a x, contradizendo que o conjunto vazionao possui elemento. �

O proximo axioma e o primeiro que nos permite construir um conjunto a partirde outros.

Axioma 3 (do par) Para todos conjuntos x e y existe um conjunto cujos elementossao x e y.

∀x∀y∃z∀w((w ∈ z)↔ ((w = x) ∨ (w = y)))

Pelo axioma da extensao, podemos provar que o conjunto formado por x e y eunicamente determinado por x e y. Isto e, se z e z′ tem como elementos x e y, eapenas esses, entao z = z′. Isso justifica introduzirmos a notacao do capıtulo anterior:{x, y} denota o conjunto formado por x e por y. Essa notacao pode ser vista comoum sımbolo funcional binario, apesar de seguir uma regra de formacao um poucodiferente do padrao. A saber, podemos introduzir a seguinte regra de formacao determos: se t e s sao termos, {t, s} e um termo.

Notemos que, pelo axioma da extensao, a ordem dos elementos nao importa. Ouseja, {x, y} = {y, x}. Por esse motivo, costumamos chamar esse conjunto de parnao-ordenado, para diferenciar do par ordenado, que sera visto posteriormente.

Se x = y, o par {x, y} – que passa a ser o par {x, x} – possui, na verdade, apenasum elemento, e denotaremos por {x}. Vista como um sımbolo funcional unario,essa notacao pode ser formalizada pela seguinte regra: se x e um termo entao {x}e um termo. Ou seja, usando os axiomas do par e da extensao, podemos garantir aexistencia de um conjunto unitario.

Teorema 5.3 Para todo x, existe um conjunto formado so pelo elemento x.

∀x∃y∀z(z ∈ y ↔ z = x)

Com o axioma do par e o Teorema 5.3 podemos formar varios conjuntos a partirdo vazio. Aplicando o Teorema 5.3 tomando x como ∅ obtemos o conjunto {∅}. Peloaxioma da extensao, esse conjunto e diferente de ∅, pois ∅ ∈ {∅} mas ∅ /∈ ∅. Comaplicacoes sucessivas do axioma do par (e do Teorema 5.3) criamos varios outrosconjuntos (ou melhor, provamos a existencia de varios outros conjuntos), a partir dovazio: {∅, {∅}}, {{∅}}, {{{∅}}}, {{∅}, {{∅}}}, e assim por diante. Usando o axiomada extensao podemos provar que todos esses conjuntos sao diferentes.

No entanto, o axioma do par nao e o bastante para construirmos conjuntos commais de dois elementos. O proximo axioma – que tambem pertence ao grupo deaxiomas de construcao – permite-nos construir todos os conjuntos finitos e heredi-tariamente finitos. Isto e, conjuntos finitos cujos elementos sao, tambem, conjuntosfinitos, e os elementos de seus elementos tambem sao finitos, e assim por diante.

Axioma 4 (da uniao) Para todo conjunto x existe o conjunto de todos os conjuntosque pertencem a algum elemento de x.

∀x∃y∀w((w ∈ y)↔ ∃v((w ∈ v) ∧ (v ∈ x)))

Page 39: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

39

Repare que o axioma da uniao nao garante, a princıpio, a uniao de dois conjuntos,mas, sim, a uniao de uma famıla de conjuntos. Se pensarmos em um conjuntode conjuntos como uma caixa cheia de pacotes menores, a uniao desse conjuntode conjuntos corresponde a despejarmos todo o conteudo dos pacotes menores nacaixa maior. Vejamos, como exemplo (assumindo que existe – visto que ainda nemexplicamos o que sao os numeros naturais), o seguinte conjunto:

{{1, 2}, {1, 3}, {4}}

A uniao do conjunto acima e o conjunto formado por todos os numeros que pertencema pelo menos um de seus elementos, a saber:

{1, 2, 3, 4}

Em outras palavras, a uniao de x e o conjunto dos elementos dos elementos dex.

Denotamos a uniao de um conjunto x por⋃x. O axioma da extensao garante

que a uniao e unica. Isto e, dado qualquer conjunto x, nao existem dois conjuntosdiferentes que, no lugar de y, tornariam a sentenca correspondente ao axioma dauniao verdadeira. O axioma da uniao determina unicamente um conjunto a partir dex. Isso justifica introduzirmos

⋃como um sımbolo funcional unario.

Deixamos ao leitor a tarefa de mostrar as seguintes igualdades:⋃∅ = ∅⋃{∅} = ∅⋃{∅, {∅}} = {∅}⋃{{∅}} = {∅}

Com o axioma do par e o axioma da uniao em maos podemos definir a uniao dedois conjuntos.

Teorema 5.4 Dados dois conjuntos x e y existe o conjunto formado por todos osconjuntos que pertencem a x ou a y.

∀x∀y∃z∀w((w ∈ z)↔ ((w ∈ x) ∨ (w ∈ y)))

Demonstracao: Dados dois conjuntos x e y, aplicamos o axioma do para paraobtermos o conjunto {x, y}. Aplicando o axioma da uniao sobre o conjunto {x, y}obtemos o conjunto z =

⋃{x, y}. Observe, pela definicao da uniao de uma famıla de

conjuntos, que, para todo w, w ∈ z se, e somente se, existe u ∈ {x, y} tal que w ∈ u.Mas, se u ∈ {x, y}, temos que u = w ou u = y, provando que z satisfaz o enunciadodo teorema. �

Novamente notamos que a uniao de dois conjuntos e unica, pelo axioma da ex-tensao, o que nos permite introduzir a seguinte definicao.

Page 40: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

40 CAPITULO 5. AXIOMAS DO VAZIO, PAR E UNIAO

Definicao 5.5 Definimos a uniao de x e y como o conjunto formado por todos osconjuntos que pertencem a x ou a y, e denotaremos esse conjunto por x ∪ y.

Combinando o axioma do par e da uniao, podemos construir as triplas (nao-ordenadas) de conjuntos.

Teorema 5.6 Para todos conjuntos x, y e z existe um unico conjunto cujos elemen-tos sao x, y e z.

∀x∀y∀z∃u∀v(v ∈ u↔ (v = x ∨ v = y ∨ v = z))

Demonstracao: Pelo axioma do par existe o conjunto {x, y}. Pelo Teorema 5.3existe o conjunto {z}. Aplicando o Teorema 5.4 aos conjuntos {x.y} e {z} obtemosum conjunto u formado por x, y e z. �

Assim, introduzimos mais uma notacao: se t, s e u sao termos da linguagem dateoria dos conjuntos, entao {t, s, u} tambem e um termo, que corresponde ao conjuntoformado exatamente por t, s e u. Ao definirmos essa notacao para termos, em vezde variaveis, permitimos construir, formalmente, conjuntos como {∅, {x}, {∅}.

Seguindo o mesmo raciocınio, podemos usar os axiomas do par e da uniao paraprovarmos a existencia de conjuntos com quatro, cinco ou mais elementos, utilizandoa mesma notacao das chaves. Isso justifica a notacao que temos usado ate agora, derepresentar um conjunto finito (apesar de nao termos definido ainda o que e conjuntofinito) indicando seus elementos entre chaves. Formalmente, podemos pensar nessanotacao como uma colecao infinita enumeravel de sımbolos funcionais da linguagem,sendo um sımbolo n-ario para cada n ≥ 1.

Exercıcios

1. Para cada par de conjuntos abaixo, decida qual(is) dos sımbolos ∈ e ⊂ torna(m)a formula verdadeira. Lembre-se que a resposta tambem pode ser ambos os sımbolosou nenhum deles. Justifique cada resposta e prove que os conjuntos abaixo existem.

(a) {∅} . . . {{∅}}

(b) {∅} . . . {∅, {{∅}}}

(c) {∅, {∅}} . . . {∅, {∅}, {∅, {∅}}}

(d) {{∅}} . . . {∅, {{{∅}}}}

2. Defina 0 como o conjunto vazio, 1 como o conjunto {0}, 2 como 1∪{1} e 3 como2 ∪ {2}.

(a) Prove que 0, 1, 2 e 3 existem e sao diferentes um do outro.

(b) Prove que existe o conjunto x = {{0}, {0, 1}, {{1}}, {1, 2}, {{1, 2}}} e diga quaisdos conjuntos 0, 1, 2 e 3 pertencem a x.

Page 41: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

41

(c) Calcule⋃x, descrevendo seus elementos entre chaves.

(d) Sem usar os sımbolos 0, 1, 2 e 3, mas apenas o sımbolo do conjunto vazio, aschaves e as vırgulas, descreva os conjuntos

⋃(⋃x) e

⋃(⋃

(⋃x)).

3. Considere x o conjunto{∅, {∅}, {∅, {∅}}}

(a) Prove que o conjunto x existe.

(b) Descreva, com a notacao das chaves, o conjunto⋃x.

(c) Descreva o conjunto⋃

(⋃x).

(d) Escreva todos os subconjuntos de x e prove (com os axiomas que temos ateagora) que existe o conjunto de todos os subconjuntos de x. Isto e, existe z talque z ∈ y se, e somente se, z ∈ x

4. Prove que⋃∅ = ∅ e

⋃{x} = x.

5. Prove que, se x ⊂ y, entao⋃x ⊂

⋃y.

6. Dizemos que um conjunto x e transitivo se z ∈ y e y ∈ x implicam que z ∈ x,para todos y e z.

(a) Prove que x e transitivo se, e somente se, y ∈ x implica y ⊂ x, para todo y.

(b) Prove que x e transitivo se, e somente,⋃x ⊂ x.

(c) Mostre que o conjunto x do exercıcio 3 e transitivo.

(d) Suponha que x e transitivo. Prove que x ∪ {x} e transitivo.

7. Usando apenas os axiomas que temos ate agora, podemos provar que x 6= {x}?Justifique.

Page 42: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

42 CAPITULO 5. AXIOMAS DO VAZIO, PAR E UNIAO

Page 43: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 6

Axiomas das partes e da separacao

O axioma seguinte ja foi discutido, de alguma forma, nos exercıcios do capıtuloanterior.

Axioma 5 (das partes) Para todo conjunto x existe o conjunto dos subconjuntosde x.

∀x∃y∀z((z ∈ y)↔ (z ⊂ x))

Se quisermos transformar a formula acima sem usar o sımbolo de inclusao, bastaescolhermos uma variavel nova que nao consta na formula (w, por exemplo) e substi-tuirmos z ⊂ x pela formula ∀w((w ∈ z)→ (w ∈ x)). E importante que o leitor estejafamiliarizado com essas abreviaturas e com o processo de converter essas abreviaturaspela formula completa.

O conjunto definido pelo axioma das partes e unico, para cada x. Isto e, fixadoum conjunto x, existe um unico conjunto formado exatamente pelos subconjuntosde x. A demonstracao disso e, mais uma vez, uma simples aplicacao do axioma daextensao, e deixamo-la por conta do leitor. A existencia e unicidade do conjunto dossubconjuntos de um conjunto nos permite introduzir a seguinte definicao:

Definicao 6.1 Definimos o conjunto das partes de x como o conjunto dos subcon-juntos de x, e denotaremos por P(x).

O proximo axioma da separacao resgata a concepcao inicial de Frege de definirum conjunto atraves de uma formula logica que descreve seus elementos. Mas, paraevitar o paradoxo de Russell, na formulacao do axioma da separacao e necessarioestabelecer um conjunto do qual iremos “separar” os elementos que satisfazem umadeterminada propriedade.

Assim, para cada formula P (x), temos que, para todo conjunto y, existe o con-junto formado por todos x ∈ y tais que P (x) e verdadeiro.

Formalmente, o axioma da separacao e um esquema de axiomas, isto e, uma listainfinita de axiomas, conforme abaixo:

Axioma 6 (Esquema de axiomas da separacao) Para cada formula P em quez nao ocorre livre a seguinte formula e um axioma:

∀y∃z∀x((x ∈ z)↔ ((x ∈ y) ∧ P ))

43

Page 44: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

44 CAPITULO 6. AXIOMAS DAS PARTES E DA SEPARACAO

O conjunto z, como no axioma, sera denotado por

{x ∈ y : P (x)}

Notemos que a unica restricao sobre a formula P e nao conter z como variavel li-vre. Essa restricao e necessaria porque utilizamos essa variavel no axioma para definiro conjunto {x ∈ y : P (x)}. Se permitirmos que a mesma variavel que define o con-junto dado pelo axioma da separacao tambem ocorra livre em P , poderıamos tomarP como a formula x /∈ z e terıamos a seguinte instancia do axioma da separacao:

∀y∃z∀x((x ∈ z)↔ ((x ∈ y) ∧ (x /∈ z)))

Se tomassemos, por exemplo, y = {∅} e x = ∅, terıamos x ∈ y verdadeiro e,portanto, terıamos

(x ∈ z)↔ (x /∈ z)

o que e uma contradicao.Nao precisamos impor qualquer outra restricao sobre as variaveis livres em P .

Em todas as aplicacoes do axioma da separacao, a variavel x ocorre livre em P (porisso utilizamos a notacao P (x) para a formula P ). Mas se x nao ocorrer livre emP , isso nao causara inconsistencia no sistema. Apenas a aplicacao do axioma daseparacao seria trivial, pois o conjunto z seria vazio ou o proprio y (ja que a validadede P , nesse caso, nao depende da variavel x, que nao ocorre livre em P ).

Podemos ter outras variaveis livres em P alem de x. Isso ocorre, por exemplo,na definicao de interseccao de conjuntos:

a ∩ b = {x ∈ a : x ∈ b}

A propria variavel y (que reservamos para o – digamos – “conjunto universo”)pode ocorrer livre em P , como na seguinte definicao:

{x ∈ y : x ⊂ y}

Com essa formulacao do sistema de Zermelo-Fraenkel o Paradoxo de Russell ga-nha um novo significado, conforme o teorema seguinte.

Teorema 6.2 (Paradoxo de Russell) Nao existe conjunto de todos os conjuntos.

∀x∃y(y /∈ x)

Demonstracao: Suponha que exista um conjunto y tal que, para todo x, x ∈ y.Pelo axioma da separacao para a formula x /∈ x, existe z tal que, para todo x,

(x ∈ z)↔ ((x ∈ y) ∧ (x /∈ x))

Como x ∈ y e verdadeiro para todo x temos que

(x ∈ z)↔ (x /∈ x))

Page 45: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

45

Tomando z no lugar de x temos

(z ∈ z)↔ (z /∈ z)

chegando numa contradicao. �

O axioma do vazio segue como consequencia do axioma da separacao, pois, pelosaxiomas logicos podemos provar a sentenca ∃y(y = y) (ou seja, a formulacao logicaaqui apresentada garante que existe algum conjunto). Usemos o axioma da separacaopara esse y e para a formula x 6= x. Obtemos o conjunto

{x ∈ y : x 6= x},

que e o conjunto vazio.A partir do axioma da separacao podemos definir as operacoes conjuntısticas.

Comecemos pela interseccao de uma famılia de conjuntos.

Teorema 6.3 (Interseccao de uma famılia de conjuntos) Dado um conjunto naovazio x existe o conjunto formado por todos os conjuntos que pertencem simultanea-mente a todos os elementos de x.

∀x(∃y(y ∈ x)→ ∃y(∀z((z ∈ y)↔ ∀w((w ∈ x)→ (z ∈ w)))))

Denotaremos esse conjunto por⋂x.

Demonstracao: Seja z um elemento de x. Defina o conjunto y como

{v ∈ z : ∀w((w ∈ x)→ (v ∈ w))}

O axioma da separacao garante a existencia do conjunto y. Agora verifiquemos quey satisfaz as condicoes do teorema. Seja v ∈ y. Pela definicao de y, para todo w ∈ xtemos v ∈ w. Reciprocamente, se para todo w ∈ x temos v ∈ w, entao, em particular,v ∈ z e, portanto, v ∈ y. Isso prova que, para todo v, v ∈ y se, e somente se, v ∈ w,para todo w ∈ x.

�E bom notar que, diferente da uniao de uma famılia de conjuntos, na interseccao

precisamos impor a restricao de que a famılia e nao-vazia. A uniao de uma famıliavazia e o conjunto vazio. Mas se fizessemos a inteseccao de uma famılia vazia ob-terıamos o “conjunto de todos os conjuntos”, ja que todo conjunto x satisfaz, porvacuidade, a condicao “para todo y pertencente ao conjunto vazio x ∈ y”.

Agora aplicaremos o axioma da separacao para definir diversas operacoes binariasentre conjuntos. A saber, sao elas:

Interseccao: x ∩ y = {z ∈ x : z ∈ y}

Subtracao: xr y = {z ∈ x : z /∈ y}

Diferenca simetrica: x∆y = {z ∈ x ∪ y : z /∈ x ∩ y}

Page 46: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

46 CAPITULO 6. AXIOMAS DAS PARTES E DA SEPARACAO

Quando x ∩ y = ∅, dizemos que x e y sao disjuntos.A interseccao de conjuntos esta relacionado ao operador booleano e, pois perten-

cer a x ∩ y significa pertencer a x e a y. A uniao significa ou, pois pertencer a x ∪ yseginifica pertencer a x ou pertencer a x. A diferenca simetrica e ou ou exclusivo(pertencer a x ou a y, mas nao a ambos). A uniao de uma famılia de conjuntosesta relacionada ao quantificador existencial, pois pertencer a

⋃x significa pertencer

a algum elemento de x, enquanto a interseccao de uma famılia de conjutos repre-senta o quantificador universal, porque pertencer a

⋂x significa pertencer a todos os

elementos de x.

Exercıcios

1. Escreva o conjunto P({∅, {∅}}).

2. Prove que⋃P(x) = x.

3. Prove que nao existe o conjunto de todos os conjuntos unitarios.Dica: Assuma, por absurdo, a existencia do conjunto de todos os conjuntos

unitarios e prove a existencia do conjunto de todos os conjuntos.

4. Prove que, para todo conjunto X existe o conjunto

{{x} : x ∈ X}

5. Sendo x um conjunto nao vazio, prove que

∀y(y ∈ x→ (⋂

x ⊂ y))

6. Sendo x um conjunto nao vazio, prove que

x ⊂ y →⋂

y ⊂⋂

x

7. Escreva na linguagem da logica de primeira ordem, sem abreviaturas, a seguinteformula:

x ∈⋃⋂

(y ∪ (w r z))

Page 47: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 7

Axioma da infinidade

O axioma da infinidade e, ao lado do vazio, um axioma que garante a existenciade um conjunto especıfico. No caso, de um conjunto infinito. Ha varias formas deapresentar o axioma da infinidade. Uma delas enuncia a existencia do conjunto dosnumeros naturais, conforme a concepcao de von Neumann. Outra forma, utilizadaaqui, e enunciar a existencia de um conjunto do qual deduzimos a existencia (edefinimos) do conjunto dos numeros naturais. A terceira simplesmente enuncia aexistencia de um conjunto infinito (embora ainda nao tenhamos definido o que eum conjunto infinito), e a construcao do conjunto dos numeros naturais torna-se umpouco mais complicada e utiliza o axioma da substituicao, semelhante ao que serafeito na construcao dos ordinais.

Na definicao dos numeros naturais atribuıda a von Neumann, pensamos em umnumero natural como o conjunto dos numeros naturais menores que ele. Assim, o 0e o conjunto dos numeros naturais menores que 0. Como nao existe numero naturalmenor que 0, entao 0 sera representado pelo conjunto vazio. O numero 1 e o conjuntoformado pelos numeros menores que 1. Ou seja, 1 e o conjunto {0}, que e igual a{∅}.. O numero 2 e o conjunto {0, 1}, ou seja, o conjunto {∅, {∅}}, e assim por diante.

Note que o numero 3, que e o conjunto {0, 1, 2}, pode ser escrito como {0, 1}∪{2},assim como 1 = ∅ ∪ {0} e 2 = {0} ∪ {1}. Ou seja, o sucessor de um numero naturaln e o resultado de acrescentarmos o proprio n ao conjunto n. Isto e, n+ 1 = n∪{n}.Isso justifica a seguinte definicao de sucessor:

Definicao 7.1 Dado um conjunto x, definimos x+ como x ∪ {x}. Isto e,

∀y(y ∈ x+ ↔ (y ∈ x ∨ y = x))

Quando um conjunto possui o vazio como elemento, e e fechado pela operacao desucessor, entao dizemos que tal conjunto e indutivo, conforme segue a definicao.

Definicao 7.2 Dizemos que um conjunto x e indutivo se, e somente se, ∅ ∈ x e, paratodo y, se y ∈ x entao y+ ∈ x.

O axioma da infinidade nada mais diz que a existencia de algum conjunto indu-tivo.

47

Page 48: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

48 CAPITULO 7. AXIOMA DA INFINIDADE

Axioma 7 (da infinidade) Existe um conjunto indutivo.

∃x(∅ ∈ x ∧ ∀y(y ∈ x→ y+ ∈ x))

Note que um conjunto indutivo precisa possuir o vazio e todos os sucessoresobtidos a partir do vazio. Ou seja, um conjunto indutivo precisa conter o conjuntodos numeros naturais (conforme sera provado no teorema 7.4, parte (b)), mas podeter elementos a mais. Usando o teorema 6.3 e os axiomas da separacao, das partes eda infinidade, definimos o conjunto dos numeros naturais da seguinte forma:

Definicao 7.3 Definimos o conjunto dos numeros naturais – que sera denotado porω – como o seguinte conjunto:

ω =⋂{x ∈ P(I) : x e indutivo}

onde I e o conjunto indutivo determinado pelo axioma da infinidade.

Notemos que a interseccao e permitida porque a famılia de subconjunts de Ique sao indutivos nao e vazia, dado que pelo menos o proprio conjunto I e indutivo.Agora, resta-nos mostrar que o proprio conjunto ω e indutivo, e que segue da definicaoque ele e o menor conjunto indutivo que existe. Fica como exercıcio provar – a partirdo teorema seguinte – que a definicao de ω nao depende da escolha de I.

Teorema 7.4 (a) ω e um conjunto indutivo.

(b) Se A e um conjunto indutivo entao ω ⊂ A.

Demonstracao: Seja I o conjunto indutivo dado pelo axioma da infinidade. Vamosprovar que ω e indutivo. Primeiro, provemos que ∅ ∈ ω. De fato, se A e umsubconjunto de I que e indutivo, entao ∅ ∈ A. Logo ∅ pertence a interseccao detodos os subconjuntos indutivos de I. Agora, suponha que x ∈ ω. Isso significa quex ∈ A, para todo A suconjunto indutivo de I. Mas isso implica que x+ ∈ A, paratodo A ⊂ I indutivo. Logo, x+ ∈ A, provando a parte (a) do teorema.

Agora provemos a parte (b). Seja A um conjunto indutivo. Repetindo o argu-mento do paragrafo anterior, concluımos que A ∩ I e indutivo. Como A ∩ I ⊂ I,temos, pela definicao de ω, que todo elemento de ω tambem pertence a A ∩ I. Ouseja, ω ⊂ A ∩ I e, portanto, ω ⊂ A. �

Observe que segue da demonstracao do Teorema 7.4, que a definicao de ω inde-pende da escolha do conjunto indutivo I. Para verificarmos isso, tome J qualqueroutro conjunto indutivo e defina A =

⋂{x ∈ P(J) : J e indutivo}. A demonstracao

do Teorema 7.4 pode ser aplicada para A, no lugar de ω, e concluımos que A e indu-tivo e, pelo item (b) (aplicado duas vezes) temos que A ⊂ ω e ω ⊂ A. O teorema daextensao nos garante, entao, que A = ω.

Mostraremos agora algumas propriedades do conjunto ω. Antes, enunciaremosuma definicao que ja foi mencionada em alguns exercıcios do Capıtulo 5:

Page 49: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

49

Definicao 7.5 Dizemos que um conjunto x e transitivo se todo elemento de x e umsubconjunto de x. Isto e, se y ∈ x implica y ⊂ x.

Lema 7.6 (a) ω e um conjunto transitivo.

(b) Se n ∈ ω entao n e transitivo.

(c) Para todo n ∈ ω, temos n /∈ n.

(d) Se n ∈ ω e m ∈ n entao n /∈ m.

Demonstracao: Usando o axioma da separacao, considere o conjunto

S = {n ∈ ω : n ⊂ ω}

Mostraremos que S e indutivo. Pelo Teorema 7.4, parte (b), isso e suficiente paramostrar que S = ω.

Claramente, ∅ ∈ S. Assumindo que n ∈ S, provaremos que n+ ∈ S. Ou seja,mostraremos que, se n ⊂ ω, entao n ∪ {n} ⊂ ω. De fato, se x ∈ n ∪ {n}, temos duaspossibilidades. Ou x ∈ n, o que, por hipotese, implica que x ∈ ω, ou x = n, quepertence a ω.

Provamos, assim, que S = ω e, portanto, todo elemento de ω e um subconjuntode ω, o que prova o item (a).

Para o item (b), considere S o conjunto dos elementos transitivos de ω. Ou seja

S = {n ∈ ω : ∀m(m ∈ n→ m ⊂ n)}

A existencia de S segue do axioma da separacao. Provemos que S e indutivo. Defato, ∅ ∈ S, pois a implicacao m ∈ ∅ → m ⊂ ∅ e verdadeira por vacuidade, ja que oconjunto vazio nao possui elementos. Suponha que n ∈ S. Mostremos que n+ ∈ S,isto e, n+ e transitivo. Seja m ∈ n+. Temos m ∈ n ou m = n. Se m ∈ n, pelahipotee n ∈ S temos m ⊂ n e, portanto, m ⊂ n+, uma vez que n ⊂ n+. Pelo mesmomotivo, se m = n, entao m ⊂ n+. Concluımos que n+ ∈ S e que S e indutivo.

Portanto, pelo Teorema 7.4, item (b), ω ⊂ S. Como S ⊂ ω, por definicao, temosS = ω, e concluımos que todos os elementos de ω sao transitivos.

Para a parte (c), use novamente o axioma da separacao para definir o seguinteconjunto:

S = {n ∈ ω : n /∈ n}

Mostraremos que S e indutivo.Como ∅ /∈ ∅, temos ∅ ∈ S. Suponhamos, por absurdo, que n ∈ S e n+ /∈ S. Isto

e, n /∈ n e n+ ∈ n+. Temos, portanto, n+ ∈ n ou n+ = n. No primeiro caso, peloitem (b), vale n+ ⊂ n e, portanto, n ∈ n, contrariando a hipotese. No segundo caso,pelo axioma da extensao, de n ∈ n+ e n+ = n segue n ∈ n.

Concluımos o item (c) do lema. Para a parte (d) definimos o conjunto

S = {n ∈ ω : ∀m(m ∈ n→ n /∈ m)}

Page 50: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

50 CAPITULO 7. AXIOMA DA INFINIDADE

Como m ∈ ∅ e sempre falso, temos que ∅ ∈ S. Suponha que n ∈ S. Mostraremosque n+ ∈ S. Isto e, se m ∈ n+ entao n+ /∈ m. De fato, suponha que m ∈ n ∪ {n} en∪{n} ∈ m. Pela parte (b) essa ultima assercao implica que n∪{n} ⊂ m e, portanto,n ∈ m. Como m ∈ n ∪ {n} temos m ∈ n ou m = n. O primeiro caso contradiz ahipotese de que n ∈ S e n ∈ m. O segundo caso contradiz o item (c), uma vez quen ∈ m.

Provamos que S e indutivo e, portanto, igual a ω, concluindo o item (d) do lema.�

Os itens (c) e (d) do teorema anterior sao verdadeiros para quaisquer conjuntos,e nao apenas para os elementos de ω, pois seguem do axioma da regularidade, queveremos posteriormente. A saber, mostraremos que nao pode ocorrer x ∈ x nempodem ocorrer, simultaneamente, x ∈ y e y ∈ x. Porem, e interessante percebermosque, no caso do conjunto ω, podemos provar essas propriedades sem usar o axiomada regularidade. E bastante comum, nessa area, estudarmos a interdependencia dosaxiomas, analisando quais sao realmente necessarios, em cada teorema que provamos,o que justifica nosso esforco extra para provar esses itens que seriam consequenciasfaceis do axioma da regularidade.

Agora veremos por que convem chamarmos ω de “conjunto dos numeros na-turais”. Primeiro, vamos enunciar os axiomas de Peano, sobre numeros naturais.Adotamos como conceitos primitivos zero e sucessor de. Sao esses os axiomas:

1. Zero e um numero natural.

2. O sucessor de um numero natural e um numero natural.

3. Numeros naturais distintos nunca tem o mesmo sucessor.

4. Zero nao e sucessor de qualquer numero natural.

5. Se uma propriedade vale para zero e, valendo para um dado numero natural,tambem vale para o seu sucessor, entao valera para todos os numeros naturais.

O quinto axioma de Peano e o que conhecemos como princıpio da inducao finita.Uma formalizacao precisa dos axiomas de Peano, usando logica de primeira or-

dem, e a seguinte: introduzimos 0 (zero) como uma constante e s (sucessor de)como um sımbolo funcional unario da linguagem. O primeiro e o segundo axi-oma tornam-se desnecessarios. O terceiro e o quarto axioma sao respectivamente∀x∀y(¬(x = y)→ ¬(s(x) = s(y))) e ∀x(¬(s(x) = 0)). O quinto axioma torna-se umesquema de axiomas, em que, para cada formula P , a formula

(P 0x ∧ ∀x(P → P s(x)

x ))→ ∀xP

e um axioma.O proximo teorema diz que o conjunto ω serve como domınio de um modelo para

os axiomas de Peano, interpretando 0 como ∅ e s(n) como n+.

Teorema 7.7 O conjunto ω satisfaz os axiomas de Peano, identificando “zero” como conjunto vazio e o sucessor de n com n+.

Page 51: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

51

Demonstracao: Os dois primeiros axiomas seguem do fato de ω ser indutivo. Paraprovarmos o terceiro axioma, suponhamos, por absurdo, que n 6= m e n+ = m+.Temos que n ∈ n+, logo, pela hipotese, n ∈ m+. Como m+ = m ∪ {m}, e n 6= m,entao n ∈ m. Analogamente provamos que m ∈ n, contradizendo o Lema 7.6, parte(d).

O quarto axioma segue do fato de que n ∈ n+. Logo, nao podemos ter, paranenhum n, n+ = ∅.

Para provarmos o princıpio da inducao finita, seja P uma formula tal que P ∅xe ∀x(P → P x+

x ) sao verdadeiros. Usando o axioma da separacao, considere A oconjunto {x ∈ ω : P}. Pela hipotese sobre P e facil verificar que A e indutivo. Logo,pelo Teorema 7.4, parte (b), temos que ω ⊂ A, provando que todo elemento de ωsatisfaz P . �

Teorema 7.8 Para todos n e m pertencentes a ω temos:

(a) n ∈ m, m ∈ n ou m = n.

(b) n ⊂ m ou m ⊂ n.

(c) m ∈ n se, e somente se, m ⊂ n e m 6= n.

Demonstracao: Provaremos o item (a) por inducao em n. Ou seja, tomamos P (n)a seguinte formula:

∀m(n ∈ m ∨ n = m ∨m ∈ n)

Como ∅ ∈ n, para todo numero natural n 6= ∅ (veja exercıcio no final destecapıtulo), temos P (0) verdadeiro. Supondo que P (n) e verdadeiro mostraremosP (n+).

Antes, provaremos, por inducao em m, para um n fixado 1, a seguinte formula,que chamaremos de Q(m):

n ∈ m→ (n+ ∈ m ∨ n+ = m)

Como ∅ ∈ m e sempre falso, a implicacao e sempre verdadeira. Logo, vale Q(0).Suponha que Q(m) e verdadeiro. Provemos Q(m+).

Suponha que n ∈ m+. Isso significa que n ∈ m ou n = m. No primeiro caso,pela hipotese de inducao temos n+ ∈ m e, portanto, n+ ∈ m+ (pois m ⊂ m+). Nosegundo caso, temos n+ = m+. Em ambos os casos, concluımos que vale Q(m+) e,portanto, pelo princıpio da inducao, concluımos que Q(m) e verdadeiro, para todom ∈ ω.

Voltemos a prova de P (n+) a partir de P (n). Seja m ∈ ω. Pela hipotese P (n)temos tres possibilidades: m ∈ n, m = n ou n ∈ m. No primeiro caso, temos m ∈ n+.No segundo caso, de m = n e n ∈ n+ segue tambem m ∈ n+. Analisemos o terceirocaso. Como mostramos que Q(m) e verdadeiro, para todo m, temos n+ ∈ m oun+ = m. Provamos, assim, P (n+) e, pelo princıpio da inducao, concluımos a parte(a) do teorema.

1Esse e um tıpico exemplo de prova por inducao dupla

Page 52: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

52 CAPITULO 7. AXIOMA DA INFINIDADE

Pelo Lema 7.6, parte (b), se n ∈ m, entao n ⊂ m, e, se m ∈ n, entao m ⊂ n.Logo, o item (b) deste teorema segue do item (a).

O item (c) segue facilmente dos itens (a) e (b), e do Lema 7.6. Deixamos osdetalhes da prova como exercıcio ao leitor.

Exercıcios:

1. Prove, a partir dos axiomas de Peano, os seguintes teoremas:

(a) Todo numero natural e diferente do seu sucessor.

(b) Zero e o unico numero natural que nao e sucessor de algum numero natural.

2. Prove que, para todo n ∈ ω, ∅ ∈ n ou ∅ = n.

3. A uniao de dois conjuntos indutivos e necessariamente um conjunto indutivo?Justifique sua resposta.

4. Prove a existencia do conjunto dos numeros pares.Observacao: Lembre-se de que ainda nao temos definida a aritmetica!

5. Prove que⋃ω = ω.

6. Prove que ω ⊂ P(ω).

7. Prove ou de um contra-exemplo para a seguinte afirmacao: se n ∈ ω entaoP(n) ⊂ ω.

8. Prove que, se n,m ∈ ω, entao n ∩m e n ∪m pertencem a ω.

9. Prove que, se x e transitivo, entao x+ e transitivo.

10. Descreva – usando apenas o conjunto vazio, as chaves e a vırgula – o conjunto⋃P(3 r 1).

Page 53: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 8

Relacoes e funcoes

As definicoes neste e no proximo capıtulo sao fundamentais para enunciarmos oaxioma da escolha. Comecamos definindo pares ordenados, produto cartesiano erelacoes.

8.1 Pares ordenados

O axioma do par nos garante construirmos, a partir de dois conjuntos a e b, o par{a, b}. Porem, nessa definicao de par a ordem dos elementos nao importa, de modoque {a, b} = {b, a}. Na definicao de par ordenado, a igualdade so vale quando aordem e a mesma.

Definicao 8.1 Dados dois conjuntos a e b, definimos o par ordenado (a, b) como oconjunto {{a}, {a, b}}. Ou seja,

∀x(x ∈ (a, b)↔ ∀y((y ∈ x↔ y = a) ∨ (y ∈ x↔ (y = a ∨ y = b))))

E facil verificar que o par ordenado entre quaisquer conjuntos existe (aplicandotres vezes o axioma do par: uma para formar o conjuntoi {a}, outra para o conjunto{a, b} e outra para o conjunto {{a}, {a, b}}) e e unico (aplicacao padrao do axiomada extensao).

Assim, podemos introduzir a notacao (a, b) como mais um sımbolo funcionalbinario na nossa linguagem estendida da teoria dos conjuntos (ou mais uma abrevi-atura).

Notemos que, quando a = b, o par ordenado (a, b) e igual ao conjunto {{a}}.

Teorema 8.2 Dois pares ordenados (a, b) e (c, d) sao iguais se, e somente se, a = ce b = d.

Demonstracao: Um dos lados da equivalencia e trivial: se a = c e b = d entao ospares ordenados (a, b) e (c, d) sao iguais. Mostraremos o outro lado.

Suponha que (a, b) = (c, d). Como {a} ∈ (a, b) temos que {a} ∈ (c, d). Logo{a} = {c} ou {a} = {c, d}. Em ambos os casos temos que a = c.

53

Page 54: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

54 CAPITULO 8. RELACOES E FUNCOES

Para provarmos que b = d, separemos em dois casos. No primeiro caso, supomosque a = b, o que implica que (a, b) = {{b}}. Teremos que {c, d} ∈ (a, b) e, portanto,{c, d} = {b}, provando que b = d. No segundo caso, supomos que a 6= b. Como{a, b} ∈ (c, d) temos {a, b} = {c} ou {a, b} = {c, d}. Como {c} ⊂ {c, d}, em ambosos casos o axioma da extensao garante que b ∈ {c, d}. Nao podemos ter b = c, poisprovamos que a = c e assumimos que a 6= b. Portanto, b = d.

8.2 Produto cartesiano

O proximo teorema nos garante a existencia do produto cartesiano entre dois con-juntos.

Teorema 8.3 Dados dois conjuntos A e B, existe o conjunto de todos os pares or-denados (a, b) que satisfazem a ∈ A e b ∈ B.

Demonstracao: Usando os axiomas do par, da uniao, das partes e da separacao,definimos o conjunto

X = {x ∈ P(P(A ∪B)) : ∃a∃b(a ∈ A ∧ b ∈ B ∧ x = (a, b))}

Para verificarmos que X atende as condicoes do teorema, so resta verificarmos quetodo par ordenado (a, b), onde a ∈ A e b ∈ B, pertence a P(P(A ∪B)).

De fato, {{a}, {a, b}} ∈ P(P(A ∪ B)) e equivalente a {{a}, {a, b}} ⊂ P(A ∪ B),que ocorre se, e somente se, {a} ∈ P(A ∪ B) e {a, b} ∈ P(A ∪ B), o que e verdade,pois {a} ⊂ A ∪B e {a, b} ⊂ A ∪B. �

O conjunto estabelecido pelo Teorema 8.3 e chamado de produto cartesiano de Ae B, e sera denotado por A×B. Introduzimos essa notacao como outra abreviatura,desempenhando o papel de um sımbolo funcional binario.

A partir do produt cartesiano definimos o conceito de relacao, como um subcon-junto de um produto cartesiano.

Definicao 8.4 Dizemos que R e uma relacao (ou relacao binaria) entre A e B se eum subconjunto de A×B. Quando R e uma relacao, utilizamos a notacao xRy comoabreviatura de (x, y) ∈ R.

8.3 n-uplas ordenadas

Podemos definir uma tripla ordenada (a, b, c) como o par ordenado ((a, b), c). Ob-servem que vale o analogo ao Teorema 8.2 para triplas ordenadas. Isto e, (a, b, c) =(d, e, f) se, e somente se, a = d, b = e e c = f .

O conjunto das triplas ordenadas (a, b, c) tais que a ∈ A, b ∈ B e c ∈ C coincidecom o conjunto (A×B)×C, que denotaremos, simplesmente, por A×B ×C. Noteque a operacao × nao e associtiva. Os conjuntos (A × B) × C e A × (B × C) sao

Page 55: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

8.4. FUNCOES 55

diferentes. Mas, para efeito do Teorema 8.2, e seu analogo para triplas, sao identicos.De fato, poderıamos definir, sem problemas, (a, b, c) como (a, (b, c)), e terıamos amesma propriedade de duas triplas serem iguais se, e somente se, as coordenadascorrespondentes sao iguais.

Podemos estender essa definicao para n-uplas ordenadas. Formalmente (mas nemtanto), definimos (a1, . . . , an) como ((a1, . . . , an−1), an). E bom lembrarmos que essadefinicao recursiva ainda nao pode ser feita rigorosamente na linguagem de primeiraordem, pois utiliza o teorema de recursao sobre classes, que ainda nao vimos.

Para n ≥ 2 definimos An o conjunto das n-uplas (a1, . . . , an) tais que ai ∈ A, paratodo i entre 1 e n. Na metalinguagem, formalizamos An como An−1 × A, sendo queA1 e, por definicao, o proprio conjunto A. Vemos, por essa definicao, que A2 = A×A.

Outra maneira, mais precisa, de definirmos An e como o conjunto das funcoes(como veremos daqui a pouco) de n em A.

8.4 Funcoes

Uma funcao de A em B e uma relacao que associa a cada elemento de A um unicoelemento de B. Posto isso formalmente temos a seguinte definicao:

Definicao 8.5 Dizemos que uma relacao F entre A e B e uma funcao de A em Bse para todo x ∈ A existe um unico y ∈ B tal que (x, y) ∈ F . Isto e, F e uma funcaode A em B se a seguinte formula e verdadeira:

(F ⊂ A×B)∧∀x(x ∈ A→ ∃y((x, y) ∈ F ))∧∀x∀y∀z(((x, y) ∈ F∧(x, z) ∈ F )→ (y = z))

. Notemos que a formula dada e uma conjuncao de tres subformulas. A primeiradiz que uma funcao de A em B e uma relacao entre A e B. Ou seja, para todo parordenado (x, y) ∈ f temos x ∈ A e y ∈ B. A segunda subformula diz que todoelemento de A e contemplada pela funcao F (quando nao exigimos essa condicao,dizemos que f e uma funcao parcial de A em B). Finalmente, a terceira subformulanos diz que a funcao so relaciona um elmento de B, para cada elemento de A.

Denotamos por AB o conjunto das funcoes de A em B. Deixamos como exercıcioao leitor provar a existencia de AB, pois e uma simples aplicacao do axioma daseparacao. Essa notacao funciona como um sımbolo funcional da linguagem.

Mantendo a tradicao, usaremos preferencialmente letras minusculas para denotarfuncoes.

Se f e uma funcao de A em B, dizemos que A e o domınio de f – que seradenotado por dom(f) – e o conjunto {b ∈ B : ∃a((a, b) ∈ f)} e chamado de imagemde f – que sera denotada por im(f).

Normalmente se utiliza o termo contradomınio de uma funcao para designar oconjunto B, quando a funcao e de A em B. Todavia, esse termo nao e muito adequadona definicao aqui adotada de funcao, ja que, dada uma funcao f , nao e possıvel“recuperar” o contradomınio. Por exemplo, se tomarmos o conjunto (supondo que jatemos construıdos os numeros reais) {(x, y) ∈ R2 : y = x2}, esse pode tanto ser vistocomo uma funcao de R em R quanto uma funcao de R em R+ (os reais nao-negativos).

Page 56: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

56 CAPITULO 8. RELACOES E FUNCOES

Por outro lado, essa ambiguidade nao existe ao definirmos o domınio e a imagema partir da funcao. E possıvel “recuperar” o domınio e a imagem de uma funcao.Abaixo seguem as definicoes do domınio e imagem a partir da funcao, e a tarefa demostrar que essas definicoes cumprem o prometido e deixada ao leitor:

dom(f) = {a ∈⋃⋃

f : ∃b((a, b) ∈ f)}

im(f) = {b ∈⋃⋃

f : ∃a((a, b) ∈ f)}

Nessas definicoes e bom notar em como os axiomas do par e das partes “empa-cotam” os conjuntos, enquanto o axioma da uniao “desempacota”.

Tambem notamos que as mesmas definicoes podem ser aplicadas para relacoesbinarias quaisquer.

Como uma funcao associa a cada elemento do domınio um unico elemento daimagem, podemos introduzir a seguinte notacao: se (x, y) pertence a uma funcao f ,denotamos y por f(x). Essa notacao so e possıvel, pois, para x ∈ dom(f), existeum unico y satisfazendo (x, y) ∈ f . Porem, precisamos ser mais cautelosos com essanotacao do que somos com outras como a do par ({a, b}), da uniao de dois conjuntos(a ∪ b) e do par ordenado. Isso porque, enquanto as outras notacoes valem paraquaisquer termos, f(x) so esta bem definido quando f e uma funcao e x pertence aodomınio de f . Logo, nao podemos desavisadamente introduzir essa notacao como umsımbolo funcional binario da linguagem, pois f(x) nao esta definido para quaisquerconjuntos f e x.

Outra notacao que podemos introduzir – comum na linguagem cotidiana da ma-tematica – e f : A −→ B para designar que f e uma funcao de A em B, ou, emoutras palavras (ou melhor, sımbolos), f ∈A B. A notacao f : A −→ B deixaimplıcito que f e uma funcao, o domınio de f e A e a imagem de f esta contida emB. Se escrevemos que f : A −→ B e sobrejetora, isso significa que f e sobrejetora emrelacao a B. Ou seja, que a imagem de f e B. Da mesma forma, quando escrevemosque f : A −→ B e bijetora, dizemos que f e bijetora em relacao a B, isto e, e injetorae tem imagem igual a B.

Suponha que f e uma funcao de A em B e que C e um subconjunto de A.Definimos

f |C = (C ×B) ∩ fa restricao de f ao conjunto C. Fica como exercıcio ao leitor mostrar que f |C e umafuncao de C em B.

Dizemos que uma funcao f : A −→ B e injetora se, para todo x, y ∈ A temosque, se x 6= y, entao f(x) 6= f(y). Ou seja, quando dois elementos distintos dodomınio nunca sao mapeados para o mesmo elemento da imagem. Dizemos que f esobrejetora em relacao a B se para todo y ∈ B existe x ∈ A tal que f(x) = y. Ouseja, quando B e a imagem de f . A necessidade de relativizarmos a B a definicao desobrejetora vem daquele problema anteriormente mencionado, sobre a impossibilidadede “recuperarmos” o contra-domınio de uma funcao. Quando esta claro no contextoqual contradomınio esta sendo considerado (quando, por exemplo, escrevemos que“f e uma funcao de A em B”) dizemos apenas que a funcao e sobrejetora, mas enecessaria uma cautela extra para esse tipo de nomenclatura.

Page 57: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

8.4. FUNCOES 57

Uma funcao f : A −→ B e bijetora (ou bijetora em relacao a B) quando einjetora e sobrejetora (em relacao a B). Nesse caso tambem dizemos que A e umabijecao entre A e B. No capıtulo sobre conjuntos equipotentes discutiremos melhor apropriedade de existir uma bijecao entre dois conjuntos (lembram-se da introducao,sobre como comparar tamanhos de conjuntos infinitos?)

Ainda ha algumas definicoes a serem introduzidas, com as quais o estudante dematematica deve estar bem acostumado. Se f e g sao funcoes, e im(g) ⊂ dom(f),entao definimos a funcao composta de f e g da seguinte forma:

f ◦ g = {(x, z) ∈ dom(g)× im(f) : ∃y((x, y) ∈ g ∧ (y, z) ∈ f}

Novamente, e preciso tomar cuidado com essa notacao, pois ela so faz sentidodentro das hipoteses estritas apresentadas acima.

Exercıcios

1. Encontre uma definicao alternativa para par ordenado de modo que o Teo-rema 8.2 continue valendo. Justifique.

2. Prove que A×B = ∅ se, e somente se A = ∅ ou B = ∅.

3. Prove que, se A ⊂ C e B ⊂ D, entao A×B ⊂ C ×D.

4. Vale a recıproca do exercıcio 3? Justifique.

5. Descreva todos os elementos de P(2× 2).

6. Escreva uma formula de primeira ordem, de tres variaveis livres, sem abreviaturasda linguagem de teoria dos conjuntos, que significa “x e uma funcao de y em z”.

7. Prove que, se f e g sao injetoras, entao f ◦ g e injetora. Mostre, atraves de umcontra-exemplo, que a recıproca nao e verdadeira.

8. Em quais condicoes temos AB ⊂C D? Justifique.

9. Dada uma relacao R, definimos a inversa de R – que sera denotada por R−1 –como o conjunto {(y, x) : (x, y) ∈ R}. Com base nisso, prove as seguintes assercoes:

(a) Para toda relacao R existe R−1.

(b) Se f e uma funcao, f−1 e uma funcao se, e somente se, f e injetora.

(c) Se f e g sao funcoes injetoras tais que im(g) ⊂ dom(f), entao (f◦g)−1 = g−1◦f−1.

10. Prove que existe uma funcao injetora de ω em ω que nao e sobrejetora (emrelacao a ω).

Page 58: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

58 CAPITULO 8. RELACOES E FUNCOES

Page 59: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 9

Aritmetica dos numeros naturais

Ja definimos o conjunto dos numeros naturais e mostramos que esse satisfaz os axi-omas de Peano. Vamos, agora, definir as operacoes de adicao e multiplicacao, comofuncoes de ω × ω em ω. Para isso, precisamos, antes, definir o teorema da recursao.

Teorema 9.1 (da recursao) Sejam X um conjunto, x um elemento de X e g umafuncao de X em X. Entao existe uma unica funcao f de ω em ω tal que

• f(0) = x;

• f(n+) = g(f(n)), para todo n ∈ ω.

Demonstracao: Usando o axioma da separacao, defina o conjunto

C = {R ∈ P(ω ×X) : (0, x) ∈ R ∧ ∀n∀y((n, y) ∈ R→ (n+, g(y))) ∈ R}.

Claramente ω ×X ∈ C. Logo, C e nao-vazio. Podemos, portanto, definir o conjunto

f =⋂C

Precisamos provar que f e uma funcao e que satisfaz a condicao para pertencer a C.

Afirmacao 1: f ∈ C

O procedimento da demonstracao da afirmacao 1 e analogo a demonstracao queω e um conjunto indutivo. Como (0, x) ∈ R, para todo R ∈ C, entao (0, x) ∈ f . Se(n, y) ∈ f , entao (n, y) ∈ R, para todo R ∈ C. Logo, pela hipotese sobre os elementosde C, (n+, g(y)) ∈ R, para todo R ∈ C. Logo, (n+, g(y)) ∈ f , concluindo a prova daafirmacao.

Afirmacao 2: f e uma funcao de domınio ω

Vamos provar, por inducao, que para todo n ∈ ω vale a formula P (n), definidaabaixo:

P (n) ≡ ∃y((n, y) ∈ f) ∧ ∀y∀z(((n, y) ∈ R ∧ (n, z) ∈ R)→ (y = z))

59

Page 60: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

60 CAPITULO 9. ARITMETICA DOS NUMEROS NATURAIS

Vamos provar P (0). Pela afirmacao 1, (0, x) ∈ f . Vamos provar que, se (0, y) ∈ f ,entao y = x. Suponha, por absurdo, que existe y 6= x tal que (0, y) ∈ f . ConsidereR = f r {(0, y)}. Vamos verificar que R ∈ C. De fato, (0, x) ∈ R, pois (0, x) ∈ fe x 6= y. Se (n, y) ∈ R, entao (n, y) ∈ f , pois R ⊂ f . Logo, (n+, g(y)) ∈ f (pelaafirmacao 1). Como n+ 6= 0 (axioma 4 de Peano), temos que (n+, g(y)) ∈ f e diferentede (0, y) e, portanto, pertence a R.

Portanto, concluımos que R ∈ C, o que implica que f ⊂ R. Como R ⊂ f , temosf = R, absurdo, pois (0, y) ∈ f e (0, y) /∈ R.

Vamos agora provar que P (n) implica P (n+).Assumindo P (n) como verdadeiro, temos que existe y tal que (n, y) ∈ f . Logo,

como f ∈ C, temos que (n+, g(y)) ∈ f , provando a “primeira parte” de P (n+).Agora supomos, por absurdo, que existe z 6= g(y) tal que (n+, z) ∈ f . Defina

R = f r {(n+, z)}. Vamos verificar que R ∈ C,Como n+ 6= 0, continuamos tendo (0, x) ∈ R. Suponha que (m, v) ∈ R. Como

f ∈ C e R ⊂ f temos que (m+, g(v)) ∈ R. Se m 6= n, o axioma 3 de Peano nosgarante que m+ 6= n+, logo, (m+, g(v)) 6= (n+, z), provando que (m+, g(v)) ∈ R. Sem = n, pela hipotese indutiva P (n) temos que v = y (pois (n, y) ∈ f), e ja vimosque (n+, g(y) ∈ f . Como z 6= g(y), tambem temos que (n+, g(y) ∈ R. Provamos,com isso, que R ∈ C o que novamente contradiz com o fato de R estar contidopropriamente em f . Isso conclui a demonstracao da afirmacao 2.

Das afirmacoes 1 e 2 segue imediatamente o teorema. Sendo f uma funcao dedomınio ω e satisfazendo as condicoes da famılia de conjuntos C, temos que (0, x) ∈ f ,o que significa que f(0) = x. Como, para todo n, temos, pela propria definicao defuncao, (n, f(n)) ∈ f , da afirmacao 1 segue que (n+, g(f(n)) ∈ f , o que significa quef(n+) = g(f(n)).

A unicidade da funcao f pode ser provada por inducao. Suponha que existeh satisfazendo as mesmas condicoes do teorema estabelecidas para f . Temos quef(0) = h(0), pois ambos sao iguais a x. Se f(n) = h(n), entao g(f(n)) = g(h(n)), eambos sao iguais a f(n+) e h(n+). Logo, por inducao, f = h.

9.1 Aritmetica dos numeros naturais

Ja definimos ω como o conjunto dos numeros naturais, e mostramos que ele satisfazos axiomas de Peano. Falta definir a aritmetica. Ou seja, precisamos definir duasfuncoes de ω × ω em ω que correspondem as operacoes de soma e produto.

A ideia geral da definicao da soma e utilizar o teorema da recursao para definir,para cada numero natural m, uma funcao sm : ω −→ ω tal que

sm(0) = m

sm(n+) = (sm(n))+

e definimos m + n como sm(n). Utilizando novamente o teorema da recursao e adefinicao das funcoes acima podemos definir, para cada numero natural m, uma

Page 61: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

9.1. ARITMETICA DOS NUMEROS NATURAIS 61

funcao pm : ω −→ ω tal quepm(0) = 0

pm(n+) = pm(n) + n

e definimos m · n como pm(n).Essa definicao de soma e produto ainda precisa ser melhor justificada, para po-

demos construı-la axiomaticamente. Facamos isso.

Teorema 9.2 Existe uma funcao s de ω em ωω tal que s(m)(0) = m e s(m)(n+) =(s(m)(n))+, para todos n,m ∈ ω.

Demonstracao: Usando o axioma da separacao defina

s = {(m, f) ∈ ω ×ω ω : ∀n((f(0) = m) ∧ (f(n+) = (f(n))+))}

Pelo teorema da recursao, utilizando-o para a funcao g = {(n, n+) : n ∈ ω},para cada m existe uma unica f satisfazendo as condicoes descritas na definicao des. Logo, s e uma funcao.

Definicao 9.3 Definimos a operacao de soma em ω como a funcao + : ω×ω −→ ωdada por +((m,n)) = s(m)(n). Denotamos +((m,n)) por m+ n.

Teorema 9.4 Existe uma funcao p de ω em ωω tal que p(m)(0) = 0 e p(m)(n+) =p(m)(n) +m, para todos n,m ∈ ω.

Demonstracao: Usando o axioma da separacao defina

p = {(m, f) ∈ ω ×ω ω : ∀n((f(0) = 0) ∧ (f(n+) = (f(n) +m)))}

Tomando a funcao g = {(i, j) ∈ ω×ω : i+m = j}, o teorema da recursao garanteque p e uma funcao. �

Definicao 9.5 Definimos a operacao de produto em ω como a funcao · : ω×ω −→ ωdada por ·((m,n)) = p(m)(n). Denotamos ·((m,n)) por m · n.

Da definicao de soma e produto seguem os seguintes axiomas da aritmetica dePeano, quando adicionamos os sımbolos funcionais binarios + e · a linguagem daaritmetica:

m+ 0 = m

m+ n+ = (m+ n)+

m · 0 = 0

m · n+ = (m · n) + n

Eventualmente usaremos a notacao xy para representar x · y.

Page 62: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

62 CAPITULO 9. ARITMETICA DOS NUMEROS NATURAIS

Exercıcios

1. Use o teorema da recursao para definir a funcao f(n) = 2n, para n ∈ ω.

2. Use o teorema da recursao para definir a potenciacao entre os numeros naturais(adote 00 = 1).

3. Prove a propriedade comutativa da adicao no conjunto dos numeros naturais.

4. Prove a existencia do conjunto dos numeros primos.

Page 63: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 10

Axioma da regularidade

Ate agora, todos os axiomas que vimos garantem a construcao de alguns conjuntospartindo apenas do conjunto vazio. O proximo axioma garante que todos os conjuntossao construıdos a partir do vazio. Tambem ira evitar coisas como x ∈ x e sera utilem teoria dos modelos para fazermos inducao sobre a relacao de pertinencia.

Axioma 8 (da regularidade) Para todo conjunto x nao-vazio existe y ∈ x tal quex ∩ y = ∅.

∀x(x 6= ∅ → ∃y(y ∈ x ∧ x ∩ y = ∅))

Teorema 10.1 Nao existem x e y tais que x ∈ y e y ∈ x.

Demonstracao: Sejam x e y conjuntos quaisquer. Vamos provar que x /∈ y ouy /∈ x.

Usando o axioma do par, tome z = {x, y}. Como z nao e vazio, pelo axioma daregularidade existe w ∈ z tal que w ∩ z = ∅. Se w = x, isso implica que y /∈ x. Sew = y, isso implica que x /∈ y, provando o teorema. �

Corolario 10.2 Nao existe x tal que x ∈ x.

Demonstracao: Aplique o teorema anterior para x = y. �O axioma da regularidade garante que nao existe uma sequencia infinita de-

crescente na relacao de pertinencia. Ou seja, nao existe uma sequencia da forma. . . x3 ∈ x2 ∈ x1 ∈ x0. E claro que essa expressao nao esta de acordo com a “normaculta” da linguagem logica. Formalizando essa afirmacao, deixamos como exercıcoao leitor provar o seguinte fato:

Afirmacao: Nao existe uma funcao f de domınio ω tal que f(n+) ∈f(n), para todo n ∈ ω.

Concluımos desse resultado que, para qualquer conjunto x, se tomarmos umelemento de x, e um elemento de um elemento de x, e um elemento de um elementode um elemento de x, assim sucessivamente, chegaremos, apos uma quantidade finitade passos, no conjunto vazio.

63

Page 64: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

64 CAPITULO 10. AXIOMA DA REGULARIDADE

E bom notar que se, por um lado, nao existe uma sequencia infinita decrescente,na relacao de pertinencia, por outro lado, como veremos no proximo capıtulo, epossıvel existir uma sequencia infinita crescente. Ou seja, sequencias infinitas daforma x0 ∈ x1 ∈ x2 . . . existem (os numeros naturais, por exemplo).

Exercıcios

1. Usando o axioma da regularidade, prove que nao existem x, y, z tais que x ∈ y,y ∈ z e z ∈ x.

2. Usando o axioma da regularidade, prove que nao existem w, x, y, z tais que w ∈ x,x ∈ y, y ∈ z e z ∈ w.

3. Use o axioma da regularidade para provar que o conjunto vazio pertence a todoconjunto transitivo nao-vazio.

4. Prove que nao existe x tal que P(x) = x.

5. Prove que existe um modelo para teoria dos conjuntos em que valem os axiomasdo par, da uniao e das partes, mas nao valem os axiomas do vazio e da regularidade.

Dica: Considere um modelo formado por um unico elemento x tal que x ∈ x.

Page 65: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 11

Construcao dos conjuntosnumericos

Ja temos construıdos os numeros naturais e as funcoes de soma e produto entrenumeros naturais. Neste capıtulo aprenderemos a construir os conjuntos dos numerosinteiros, racionais e reais.

11.1 Relacao de equivalencia

Para construirmos o conjunto dos numeros inteiros a partir do conjunto dos numerosnaturais, e o conjunto dos numeros racionais a partir do conjunto dos numero inteiros,precisamos, antes, desenvolver o conceito de relacao de equivalencia.

Definicao 11.1 Dizemos que uma relacao R ⊂ X×X e uma relacao de equivalenciaem X se satisfaz as seguintes propriedades, para todos x, y, z ∈ X:

• Reflexividade: xRx;

• Simetria: se xRy entao yRx;

• Transitividade: se xRy e yRz entao xRz.

Definimos o conjunto das classes de equivalencia de R como

X/R = {Y ∈ PX : ∃x∀y(y ∈ Y ↔ xRy)}

Os elementos de X/R sao, obviamente, chamados de classes de equivalencia,tambem denotado do seguinte modo:

X/R = {[x] : x ∈ X}

onde[x] = {y ∈ X : xRy}

Teorema 11.2 Seja R uma relacao de equivalencia em um conjunto X. As seguintesafirmacoes sao verdadeiras:

65

Page 66: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

66 CAPITULO 11. CONSTRUCAO DOS CONJUNTOS NUMERICOS

(a)⋃X/R = X;

(b) ∅ /∈ X/R;

(c) Para todos Y, Z ∈ X/R, se Y 6= Z entao Y ∩ Z = ∅;

(d) Se x ∈ Y e todo Y ∈ X/R, para todo y ∈ X temos que xRy se, e somente se,y ∈ Y .

Demonstracao: Usaremos a notacao [x] para o conjunto {y ∈ X : xRy}.Dado x ∈ X, temos que x ∈ [x], uma vez que, pela propriedade reflexiva, xRx.

Isso prova (a). Como todo elemento de X/R e da forma [x], para algum x ∈ X, issoprova tambem a parte (b)

Para provar (c), assumindo que Y e Z sao dois elementos de X/R que nao saodisjuntos, mostraremos que Y = Z. Sejam x ∈ Y ∩ Z e y0, z0 ∈ X tais que Y = [y0]e Z = [z0]. Dado y ∈ Y , temos, por definicao, que y0Ry. Logo, pela simetria, yRy0.Mas como x ∈ Y , temos y0Rx. Pela transitividade temos yRx. Mas, como x ∈ Z,temos z0Rx e, pela simetria, xRz0. Logo, a transitividade nos da yRz0 e, novamentepela simetria, z0Ry, o que prova que y ∈ Z. Isso conclui que Y ⊂ Z e um argumentoanalogo mostra que Z ⊂ Y , provando que Y = Z.

Mostremos a parte (d). Se Y ∈ X/R, existe y0 ∈ X tal que Y = [y0]. Comox ∈ Y , temos que y0Rx e, portanto, xRy0. Se yRx, por transitividade e simetriatemos yRy0 e y0Ry, de onde temos que y ∈ Y . Por outro lado, se y ∈ Y , temos y0Rye, portanto, xRy, concluindo a prova do teorema. �

Em outras palavras, o Teorema 11.2 parte (d) nos diz que duas classes de equi-valencia [x] e [y] sao iguais se, e somente se, xRy.

11.2 Construcao do conjunto dos numeros inteiros

A construcao dos numeros inteiros a partir dos naturais se assemelha muito a cons-trucao dos racionais a partir dos inteiros, sendo essa ultima mais conhecida.

Iremos identificar pares de numeros naturais que “possuem a mesma diferenca”.Por exemplo, identificaremos o par (5, 3) com os pares (4, 2), (6, 4) etc. Assim, onumero inteiro 2 e o conjunto {(2, 0), (3, 1), (4, 2), . . .} (sendo esses pares ordenadosformados por numeros naturais), enquanto −2 e o conjunto {(0, 2), (1, 3), (2, 4), . . .}.

Definimos R ⊂ (ω×ω)2 como o conjunto dos pares ((a, b), (c, d)) tais que a+d =b+ c. Deixamos como exercıcio ao leitor provar o seguinte fato:

R e uma relacao de equivalencia

Defina o conjunto dos numeros inteiros como

Z = (ω × ω)/R

Falta definirmos as operacoes de soma e produto em Z. Para nao sobrecarregaro texto, abusaremos a notacao utilizando os mesmos sımbolos + e · para a soma e

Page 67: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

11.2. CONSTRUCAO DO CONJUNTO DOS NUMEROS INTEIROS 67

produto de numeros inteiros. Uma definicao informal seria

[(a, b)] + [(c, d)] = [(a+ c, b+ d)]

[(a, b)] · [(c, d)] = [(ac+ bd, ad+ bc)]

Porem, tal definicao nao pode depender da escolha do representante. Nesta primeiravez que fazemos esse tipo de construcao seremos mais rigorosos, definindo explicita-mente as funcoes de soma e produto. Como mais um abuso de notacao, denotaremos(Z×Z)×Z por Z×Z×Z, ou, simplesmente, Z3, e o par ((x, y), z) pela tripla (x, y, z).Definimos:

S = {(x, y, z) ∈ Z3 : ∃a∃b∃c∃d((a, b) ∈ x ∧ (c, d) ∈ y ∧ (a+ c, b+ d) ∈ z}

P = {(x, y, z) ∈ Z3 : ∃a∃b∃c∃d((a, b) ∈ x ∧ (c, d) ∈ y ∧ (ac+ bd, ad+ bc) ∈ z}

Teorema 11.3 Sejam S e P definidos como acima. Temos que

(a) S e P sao funcoes;

(b) Para todos a, b, c, d em ω temos que S([(a, b)], [(c, d)]) = [(a+ c, b+ d)];

(c) Para todos a, b, c, d em ω temos que P ([(a, b)], [(c, d)]) = [(ac+ bd, ad+ bc)].

Demonstracao: Para as tres partes do teorema precisamos mostrar a independenciaem relacao a escolha dos representantes. Isto e, mostraremos a seguinte afirmacao:

Afirmacao: Se (a, b)R(a′, b′) e (c, d)R(c′, d′) entao (a+c, b+d)R(a′+c′, b′ + d′) e (ac+ bd, ad+ bc)R(a′c′ + b′d′, a′d′ + b′c′).

Provaremos a afirmacao assumindo as propriedaes conhecidas da aritmetica: co-mutatividade, associatividade, lei do cancelamento etc.

Suponha que (a, b)R(a′, b′) e (c, d)R(c′, d′). Isso significa que a + b′ = b + a′

e c + d′ = d + c′. Logo, a + b′ + c + d′ = b + a′ + d + c′, o que significa que(a+ c, b+ d)R(a′ + c′, b′ + d′).

Agora veremos que (ac+ bd, ad+ bc)R(a′c′ + b′d′, a′d′ + b′c′).Como a+ b′ = a′+ b e c+ d′ = c′+ d, temos que, para todos x, y, z, w em ω, vale

a seguinte igualdade:

(a+ b′)x+ (c+d′)y+ (a′+ b)z+ (c′+d)w = (a′+ b)x+ (c′+d)y+ (a+ b′)z+ (c+d′)w

Tomando x = c + c′, y = a + a′, z = d + d′ e w = b + b′, utilizando as propriedadesoperatorias de numeros naturais, provamos que ac+bd+a′d′+b′c′ = ad+bc+a′c′+b′d′

e, portanto, (ac+bd, ad+bc)R(a′c′+b′d′, a′d′+b′c′). Deixamos os detalhes das contaspara o leitor completar.

Vejamos como isso ajuda a provar o teorema. Para provar que S e uma funcaode Z2 em Z, primeiro temos que provar que, para todo (x, y) ∈ Z2, existe z tal que

Page 68: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

68 CAPITULO 11. CONSTRUCAO DOS CONJUNTOS NUMERICOS

(x, y, z) ∈ S. Mas isso e verdade, pois pelo Teorema 11.2, parte (b), existe x e y saonao-vazios. Logo, existem (a, b) ∈ x e (c, d) ∈ y. Pela parte (a) do mesmo teorema,existe z tal que (a+ c, b+ c) ∈ z, o que nos da, pela definicao de S, que (x, y, z) ∈ S.O mesmo argumento mostra que, para todo (x, y) ∈ Z2, existe z tal que (x, y, z) ∈ P ,tomando, desta vez, z contendo (ac+ bd, ad+ bc).

Isso ja prova, quando concluirmos que S e P sao funcoes, as partes (b) e (c) dopresente teorema.

Agora vejamos a unicidade. Suponha que (x, y, z) ∈ S e (x, y, z′) ∈ S. Peladefinicao de S, (x, y, z) ∈ S implica que existem numeros naturais a, b, c, d tais que(a, b) ∈ x, (c, d) ∈ y e (a+ c, b+ d) ∈ z, e (x, y, z′) ∈ S implica que existem numerosnaturais a′, b′, c′, d′ tais que (a′, b′) ∈ x, (c′, d′) ∈ y e (a′ + c′, b′ + d′) ∈ z′.

Note que nao podemos, a princıpio, assumir que os numeros a, b, c, d que teste-munham que (x, y, z) ∈ S sao os mesmos que testemunham que (x, y, z′) ∈ S.

Porem, como (a, b) e (a′, b′) ambos pertencem a x, o Teorema 11.2, parte (d),nos garante que (a, b)R(a′, b′). Da mesma forma temos (c, d)R(c′, d′). Logo, pelaafirmacao, (a + c, b + d)R(a′ + c′, b′ + d′). Logo, o Teorema 11.2, parte (d), tambemnos assegura que (a′+ c′, b′+d′) ∈ z. Portanto, (a′+ c′, b′+d′) ∈ z∩z′, o que implica,pela parte (c) do Teorema 11.2, que z = z′, como querıamos provar.

A demonstracao de que P e uma funcao e analoga.�

Sendo x e y numeros inteiros, denotamos S((x, y)) por x + y, e P ((x, y)) porx · y ou, simplesmente, xy. Como estamos usando os mesmos sımbolos em conjuntosdiferentes, estamos fugindo um pouco do rigor da logica, e precisamos estar atentosao contexto. O importante e nunca perder a conexao com a linguagem logica estrita,estando ciente de como cada uma dessas notacoes funciona como abreviatura.

Definir funcao em classes de equivalencia atraves de um representante, para de-pois mostrar que a definicao independe da escolha do representatne, e uma praticabastante comum no cotidiano da matematica, com a qual o estudante deve ter sedeparado diversas vezes. Aqui foi apresentada a formalizacao desse processo, que,como podemos notar, nao e trivial, apesar de ser bem intuitivo. Reparem que todosos itens do Teorema 11.2 foram utilizados e, na demonstracao desse, foram utilizadastodas as tres propriedades de relacao de equivalencia.

11.3 Construcao do conjunto dos numeros racio-

nais

A construcao de Q a partir de Z se assemelha muito a construcao de Z a partir de ω.Primeiro definimos o numero inteiro 0 (eventualmente denotado por 0Z, quando

houver possibilidade de confusao com o numero natural 0) como a classe [(0, 0)].Definimos uma relacao R em Z× (Z r {0Z}) como

R = {((a, b), (c, d)) ∈ (Z× (Z r {0Z}))2 : ad = bc}

Fica como exercıcio verificar que R e uma relacao de equivalencia.

Page 69: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

11.4. CONSTRUCAO DO CONJUNTO DOS NUMEROS REAIS 69

DefinimosQ = (Z× (Z r {0Z}))/R

Obviamente, a classe de equivalencia representada pelo par (a, b) corresponde aonumero racional representado pela fracao a

b, e R e a equivalencia de fracoes.

Definimos a soma e o produto de numeros reais da seguinte forma:

[(a, b)] + [(c, d)] = [(ad+ bc, bd)]

[(a, b)] · [(c, d)] = [(ac, bd)]

Deixamos como exercıcio ao leitor provar que essa definicao independe da escolhado representante. Os demais detalhes para a formalizacao sao iguais aos que foramfeitos anteriormente.

11.4 Construcao do conjunto dos numeros reais

A construcao que sera feita nesta secao deve-se a Richard Dedekind (1831–1916).Para construirmos os numeros reais a partir dos racionais, precisamos, antes,

introduzir uma serie de definicoes para podermos falar da ordem em Q.Dizemos que um numero inteiro x e positivo se existe n ∈ ω tal que n 6= 0 e

(n, 0) ∈ x.Dizemos que um numero racional x e positivo se existe (a, b) ∈ x tal que a e b

sao numeros inteiros positivos.Definimos uma relacao < em Q da seguinte forma: a < b se, e somente se, existe

um numero racional positivo c tal que a+ c = b.Dizemos que um subconjunto C de Q e um corte se satisfaz as seguintes propri-

edades:

• e nao-vazio: ∃x(x ∈ C);

• nao contem todos os racionais: ∃x(x ∈ Q ∧ x /∈ C);

• nao tem maximo: ∀x∃y : x < y;

• e fechado para baixo: ∀x∀y((x ∈ C ∧ y < x)→ y ∈ C).

Definimos o conjunto dos numeros reais como:

R = {C ⊂ Q : C e um corte}Intuitivamente, pensamos em um numero real, nesta construcao por cortes, como

o conjunto dos racionais menores do que ele.Dados dois numeros reais A e B (ou seja, dois cortes em Q) definimos a soma e

o produto de A e B como:

[A] + [B] = {a+ b : a ∈ A ∧ b ∈ B}[A] · [B] = {x ∈ Q : ∃a∃b(a ∈ A ∧ b ∈ B ∧ x < a · b)}

Deixamos como exercıcio provar que as definicoes acima estao boas. Ou seja, queos subconjuntos de Q definidos acima sao cortes. Ao leitor mais paciente indicamos atarefa de provar todos os axiomas de corpo ordenado completo – com a ordem dadapela inclusao – que sao estudados em Analise Real.

Page 70: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

70 CAPITULO 11. CONSTRUCAO DOS CONJUNTOS NUMERICOS

Exercıcios

1. Seja X um conjunto e sejam x0 e y0 dois elementos distintos de X. Considere aseguinte relacao em X:

R = {(x, y) ∈ X ×X : x = y} ∪ {(x0, y0), (y0, x0)}

(a) Prove que R e uma relacao de equivalencia em X.

(b) Descreva os elementos de X/R.

2. Considere C um conjunto nao-vazio de conjuntos nao-vazios tal que, para todosx e y pertencentes a C, se x 6= y entao x ∩ y = ∅. Seja X =

⋃C. Defina em X a

relacao:R = {(x, y) ∈ X : ∃z(z ∈ C ∧ x ∈ z ∧ y ∈ z)}

(a) Prove que R e uma relacao de equivalencia em X.

(b) Mostre que C = X/R.

(c) Prove que duas relacoes de equivalencia diferentes possuem classes de equi-valencias diferentes.

3. Como fica uma relacao de equivalencia sobre ∅? Ela satisfaz o Teorema 11.2?

4. Prove a propriedade comutativa da soma de numeros inteiros.

5. Prove que a relacao R definida na Secao 11.2 e uma relacao de equivalencia(podendo assumir as propriedades usuais da soma de numeros naturais, como asso-ciatividade e a lei do cancelamento).

Page 71: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 12

Axioma da substituicao

Veremos agora o ultimo axioma (ou melhor, esquema de axiomas) de ZF (isto e, osistema de Zermelo e Fraenkel sem o axioma da escolha).

Axioma 9 (da substituicao) Seja P (x, y) uma formula e suponha que, para todox, y, z temos que P (x, y) e P (x, z) implicam y = z. Entao, para todo conjunto X,existe o conjunto

{y : ∃x(x ∈ X ∧ P (x, y))}.

A condicao sobre a formula P diz que, para todo x, existe no maximo um y parao qual P (x, y) vale. Ou seja, P exerce o papel de uma funcao parcial em X, e oaxioma da substituicao garante que existe a imagem dessa “funcao”.

Para simplificar a notacao, introduzimos alguns sımbolos logicos que serao utili-zados neste capıtulo. O sımbolo ∃′ significa “existe no maximo um” e e definido daseguinte forma:

∃′xP ≡ ∀y(P yx → (x = y))

O sımbolo ∃! significa “existe um unico” e e definido como

∃!xP ≡ (∃xP ) ∧ (∃′xP )

Formalmente, utilizando essa notacao, o esquema de axiomas da substituicao dizque para toda formula P em que v nao ocorre livre a seguinte formula e um axioma:

∀x∃′yP → ∀X∃v∀y((y ∈ v)↔ ∃x(x ∈ X ∧ P ))

O motivo da restricao de v nao ocorrer livre em P e o mesmo que foi discutido noaxioma da separacao: reservamos a variavel v para definir o conjunto que o axiomaconstroi, e a ocorrencia livre de v em P poderia resultar em um paradoxo.

Poderıamos suprimir o axioma da separacao da lista de axiomas de ZFC, e prova-lo como teorema, a partir do axioma da substituicao. Para isso basta tomarmos aformula P (x) ∧ (x = y), escolhendo y uma variavel que nao ocorre livre em P (lem-brando que, utilizando os axiomas logicos, e sempre possıvel substituirmos uniforme-mente as variaveis livres de uma formula). O axioma da separacao nos garante queexiste o conjunto

{y : ∃x(x ∈ X ∧ P (x) ∧ (x = y))},

71

Page 72: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

72 CAPITULO 12. AXIOMA DA SUBSTITUICAO

o que coincide com o conjunto

{x ∈ X : P (x)}.

Classes de conjuntos: Para entendermos melhor o axioma da substituicao, pre-cisamos compreender a nocao intuitiva de classes de conjuntos. A grosso modo, umaclasse propria e um conjunto (intuitivamente falando) “grande demais para ser con-junto”. Por exemplo, vimos que nao existe o “conjunto de todos os conjuntos”, nemo “conjunto de todos os conjuntos unitarios”. Entao falamos, intuitivamente, da“classe de todos os conjuntos”, ou da “classe dos conjuntos unitarios”.

Outras axiomatizacoes para a teoria dos conjuntos – como a de Neumann, Bern-nays e Godel (NGB) e a de Kelley e Morse (KM) – formalizam o conceito de classes.Nessas teorias, existem dois tipos de objetos matematicos: as classes e os conjuntos.Todo conjunto e uma classe, mas nem toda classe e um conjunto. Classes que naosao conjuntos sao chamadas de classes proprias.

Em ZFC, nao existem classes, mas podemos reproduzir os argumentos usados emNGB e KM “interpretando” corretamente o conceito de classe, na metalinguagem.Para isso, basta identificarmos classes com uma variavel livre que ocorre em umaformula. Por exemplo, podemos escrever a formula “x e unitario”. Entao pensamosna classe de todos os conjuntos x que satisfazem essa formula. Se C e a “classe” detodos os conjuntos unitarios, entao escrevermos (por um abuso de notacao) x ∈ C e omesmo que escrever “x e unitario”. A primeira frase nao pode ser escrita formalmenteem ZFC (apenas em NGB e KM), mas a segunda, pode, e tem o mesmo significadoque a primeira.

Assim, dentro de ZFC o conceito de classes pode ser considerado um modo deenxergarmos alguns argumentos e teoremas que, de outro modo, seria menos intuitivopara compreendermos.

Sob esse ponto de vista, vamos explicar o que significa o axioma da substituicao.A condicao que temos sobre a formula P (x, y) e a mesma que temos para uma relacaoser funcao (parcial). Ou seja, P pode ser vista como uma “funcao entre classes”. Oaxioma da substituicao diz que, se o domınio de P e um conjunto (ou esta contidoem um conjunto), entao a imagem de P tambem e um conjunto. Ou ainda, quandorestringimos P a um conjunto, a imagem de P restrita a esse conjunto tambem e umconjunto.

Para aplicarmos o axioma da substituicao precisamos enunciar uma nova versaodo teorema da recursao finita. Antes, convem discorrermos sobre as diferencas entreessa versao e aquela que vimos no Capıtulo 9, e como aplicaremos para obtermos ofecho transitivo de um conjunto.

O fecho transitivo de x e o menor conjunto transitivo que contem x. Para conse-guirmos isso, iteramos uma sequencia infinita de unioes. Isto e, o fecho transitivo dex sera o conjunto

⋃z, onde z e “definido” como

z = {x,⋃

x,⋃⋃

x,⋃⋃⋃

x, . . .}

E claro que essa definicao nao esta boa. Alem de definirmos rigorosamente o conjuntoz acima, sem usarmos as reticencias, precisamos provar que ele existe, e e nesse pontoque entrarao o axioma da substituicao e o teorema da recursao “para classes”.

Page 73: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

73

Vejamos como poderıamos usar o teorema da recursao finita para provarmos aexistencia de z. Retome o enunciado do Teorema 9.1. O conjunto x sera o mesmodo enunciado, e g a funcao g(y) =

⋃y. Pelo teorema da recursao existe uma unica

funcao f de domınio ω tal que f(0) = x e f(n+) = g(g(n)). Isto e, f(n+) =⋃f(n).

O conjunto z procurado e justamente a imagem de f .Porem, ha uma falha nos argumentos do paragrafo anterior, que e justamente

a definicao de g. Falta definirmos o domınio e contradomınio de g (o conjunto Xdo enunciado do Teorema 9.1). Se tivessemos o “conjunto de todos os conjuntos”,bastarıamos tomar esse como X.

Para contornarmos esse problema, trocamos a funcao g, no enunciado do teoremada recursao, por uma “formula funcional” G. Exigimos, entao, que a formula possuapelo menos duas variaveis livres, x e y, e que, para cada x existe um unico y tal queG(x, y) e verdadeira. Ou seja, poderıamos escrever y = G(x) e, nessa concepcao, aformula G(f(n), f(n+)) escrita no enunciado do teorema seguinte equivale a f(n+) =G(f(n)).

Teorema 12.1 (recursao finita “para classes”) Sejam x0 um conjunto e G(x, y)uma formula tal que ∀x∃!yG(x, y) seja verdadeira. Existe uma unica funcao f dedomınio ω tal que f(0) = x0 e G(f(n), f(n+)) e verdadeira.

Demonstracao: Seja F (n, f) a seguinte formula:

n ∈ ω e f e uma funcao de domınio n+ satisfazendo f(0) = x0 eG(f(k), f(k+)), para todo k ∈ n.

Primeiro notemos que as expressoes f(0), f(k) e f(k+) da formula acima estaobem definidas. Isto e, 0, k e k+ pertencem ao domınio de f . De fato, ja vimos que0 ∈ n+, para qualquer n, e e facil ver que k ∈ n implica que k+ ∈ n+.

Esta claro, pela maneira como definimos a formula F (n, f), que essa nunca serasatisfeita quando n nao e um numero natural. A proxima afirmacao, que sera pro-vada por inducao em n, assegura que F (n, f) satisfaz as condicoes do axioma dasubstituicao, e tem como “domınio” o conjunto ω.

Afirmacao 1: Para cada n ∈ ω existe um unico f tal que F (n, f) everdadeiro.

A afirmacao e verdadeira para n = 0. De fato, f = {(0, x0)} e a unica funcao dedomınio 0+ que satisfaz f(0) = x0. Como nao existe k ∈ 0, a condicao G(f(k), f(k+))e automaticamente satisfeita, para todo k ∈ 0.

Suponha que a afirmacao vale para n. Mostraremos para n+. Seja f satisfazendoF (n, f). Pela hipotese, existe y tal que G(f(n), y) e verdadeiro. Defina

g = f ∪ {(n+, y)}

Ou seja, g restrita a n+ e igual a f , e g(n+) = y. Mostremos que vale F (n+, g).Como dom(f) = n+, temos que g e uma funcao de domınio n+ ∪ {n+}. Isto e,

dom(g) = (n+)+. De 0 ∈ n+ e n+ = dom(f) segue que g(0) = f(0) = x0.

Page 74: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

74 CAPITULO 12. AXIOMA DA SUBSTITUICAO

Falta mostrar a “ultima parte” de F (n+, g). Seja k ∈ n+. Temos k ∈ n ouk = n. Se k ∈ n, temos k+ ∈ n+, que e o domınio de f , e, portanto, g(k) = f(k) eg(k+) = f(k+). Logo, de G(f(k), f(k+)) segue G(g(k), g(k+)).

Analisemos o segundo caso: k = n. Temos g(k+) = g(n+) = y e g(k) = f(k).Logo, de G(f(n), y) segue G(g(k), g(k+)).

Concluımos que F (n+, g) e verdadeira. Mostremos a unicidade. Isto e, se valeF (n+, g′) entao g = g′.

Seja g′ uma funcao de domınio (n+)+ satisfazendo F (n+, g′). Considere f ′ arestricao de g′ a n+. Isto e, definimos f ′(k) = g′(k), para todo k ∈ n+. Vejamos quevale F (n, f ′).

Temos f ′(0) = g′(0) = x0. Se k ∈ n, de F (n+, g′) segue G(g′(k), g′(k+)). Logo,como k+ ∈ n+, vale G(f ′(k), f ′(k+)). Concluımos que F (n, f ′) e verdadeira.

Portanto, da hipotese indutiva sobre a unicidade de f , segue que f ′ = f . Emparticular, g′(k) = g(k), para todo k ∈ n+. Para mostrarmos que g = g′, basta verifi-carmos que g(n+) = g′(n+). Mas ambas as formulas G(g(n), g(n+)) e G(g′(n), g′(n+))sao verdadeiras. Como g(n) = g′(n), pois n ∈ n+, da hipotese sobre G segue queg(n+) = g′(n+).

Concluımos, dessa forma, que a existencia de uma unica f tal que F (n, f) everdadeira implica na existencia de uma unica g tal que vale G(n+, g). Portanto,provamos a afirmacao 1 por inducao sobre n.

Usando o axioma da substituicao, garantimos a existencia do seguinte conjunto:

Y = {g : ∃n(n ∈ ω ∧ F (n, g))}

Ou seja, g ∈ Y se, e somente se, vale F (n, g) para algum n ∈ ω. Definimos

f =⋃

Y

Afirmacao 2: f e uma funcao de domınio ω satisfazendoG(f(n), f(n+)),para todo n ∈ ω.

Para provarmos a afirmacao 2, primeiro notamos que todos os elementos de f saoelementos de alguma funcao g de domınio contido em ω. Logo, f e um conjunto depares ordenados da forma (n, y), para n ∈ ω.

Seja n ∈ ω. Existe g que satisfaz F (n, g). Como n ∈ dom(g), existe y tal que(n, y) ∈ g e, portanto, (n, y) ∈ f . Agora, suponha que exista y′ tal que (n, y′) ∈ f .Temos que (n, y′) ∈ g′, para algum g′ ∈ Y . Como n ∈ dom(g′), repetindo o argumentofeito no final da afirmacao 1 concluımos que a restricao de g′ a n+ e igual a g e,portanto, y′ = g′(n) = g(n) = y. Provamos que f e uma funcao de domınio ω.

Vejamos que G(f(n), f(n+)) vale para todo n. Seja n ∈ ω e tome g tal que valeF (n+, g). Temos g ∈ Y e vale G(g(n), g(n+)). Como f(n) = g(n) e f(n+) = g(n+),temos G(f(n), f(n+)).

Com isso, concluımos a afirmacao 2 e a existencia da f , como no enunciado. Faltaprovar a unicidade.

Seja f ′ uma funcao de domınio ω satisfazendo f ′(0) = x0 e G(f ′(n), f ′(n+)), paratodo n. Provemos, por inducao em n, que f ′(n) = f(n), para todo n.

Page 75: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

75

Vale f ′(0) = f(0) pois ambos sao iguais a x0. Suponha f ′(n) = f(n). Pelahipotese sobre G, e por valer G(f ′(n), f ′(n+)) e G(f(n), f(n+)), isso significa quef ′(n+) = f(n+), como querıamos.

Uma das aplicacoes do Teorema 12.1 e a definicao do fecho transitivo de umconjunto. Dizemos que y e o fecho transitivo de x se y e transitivo, x esta contidoem y e, para qualquer conjunto transitivo z, se x ⊂ z entao y ⊂ z. Ou seja, o fechotransitivo de x e o menor conjunto transitivo que contem y. Esta claro que o fechotranstivio, quando existe, e unico. A existencia segue do teorema anterior.

Corolario 12.2 Para todo x existe o fecho transitivo de y.

Demonstracao: Usando o Teorema 12.1, para x0 = x e G(x, y) a formula y =⋃x,

defina f de domınio ω tal que f(0) = x e f(n+) =⋃f(n).

Tome y =⋃im(f). Mostraremos que y e o fecho transitivo de x.

Esta claro que x ⊂ y, pois x ∈ im(f). Se z ∈ y, existe n ∈ ω tal que z ∈ f(n).Logo, z ⊂

⋃f(n) = f(n+). Portanto, z ⊂ y.

Agora suponha que existe um conjunto transitivo z tal que x ⊂ z. Vamos mostrarque y ⊂ z. Para isso, basta mostrar que f(n) ⊂ z, para todo n ∈ ω. Mas notemosque, pela transitividade, se w ⊂ z temos

⋃w ∈ z. Assim, como x ⊂ z, por inducao

provamos que f(n) ⊂ z, para todo n ∈ ω.�

Exercıcios

1. Prove o Teorema 9.1 como corolario do Teorema 12.1.

2. Prove que existe um conjunto x satisfazendo a seguinte condicao: ∅ ∈ x e, sey ∈ x entao {y} ∈ x.

3. Prove a existencia de um conjunto indutivo ao qual ω pertence. Discuta o usodo axioma da substituicao.

Page 76: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

76 CAPITULO 12. AXIOMA DA SUBSTITUICAO

Page 77: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 13

Relacoes de ordem

Ja vimos dois tipos importantes de relacao: as funcoes e as relacoes de equivalencia.Veremos, agora, um terceiro tipo de relacao: as relacoes de ordem.

Definicao 13.1 Uma relacao ≤⊂ X ×X e chamada de ordem em X se satisfaz asseguintes propriedades, para todos x, y, z ∈ X:

• Reflexividade: x ≤ x;

• Transitividade: se x ≤ y e y ≤ z entao x ≤ z.

• Anti-simetria: se x ≤ y e y ≤ x entao x = y;

Chamamos de conjunto ordenado um par (X,≤), onde ≤ e uma ordem em X, edizemos que X e o domınio da ordem ≤.

Uma relacao de ordem tambem e chamada de ordem parcial, para diferenciar daordem total, que veremos daqui a pouco.

Um exemplo de ordem em um conjunto X e a relacao de inclusao. Isto e, oconjunto {(x, y) ∈ X ×X : x ⊂ y}. De fato, todo conjunto esta contido nele mesmo,se x esta contido em y e y esta contido em z entao x esta contido em z, e o axiomada extensao nos garante que x = y toda vez que x esta contido em y e y esta contidoem x. Por abuso de notacao, usaremos, eventualmente, o sımbolo ⊂ para designar arelacao de inclusao, como conjunto de pares ordenados.

Veremos que toda relacao de ordem pode ser vista como uma relacao de inclusao.Para explicar o que isso significa, introduzimos a seguinte definicao:

Definicao 13.2 Sejam ≤1 e ≤2 duas ordens em X1 e X2, respectivamente. Dizemosque ≤1 e ≤2 sao ordens isomorfas (ou que os conjuntos ordenados (X1,≤1) e (X2,≤2)sao isomorfos) se existe uma funcao f : X1 −→ X2 bijetora em X2 tal que x ≤1 yse, e somente se, f(x) ≤2 f(y).

Nesse caso, dizemos que a funcao f e um isomorfismo de ordens.

O proximo resultado diz que toda ordem e isomorfa a relacao de inclusao sobrealgum conjunto.

Teorema 13.3 Seja (X,≤) um conjunto ordenado. Existe um conjunto ordenado(Y,�) isomorfo a (X,≤) tal que

�= {(x, y) ∈ Y × Y : x ⊂ y}

77

Page 78: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

78 CAPITULO 13. RELACOES DE ORDEM

Demonstracao: Defina f : X −→ P(X) como

f(x) = {y ∈ X : y ≤ x}

Tome Y a imagem de f . Mostraremos que f e injetora, o que basta para provarmosque e bijetora em Y .

Suponha que f(x) = f(y). Pela reflexividade, como x ≤ x e y ≤ y, temosx ∈ f(x) e y ∈ f(y). Como f(x) e f(y) sao iguais, temos x ∈ f(y) e y ∈ f(x). Peladefinicao de f isso nos da x ≤ y e y ≤ x, que, pela anti-simetria, implica que x = y,provando que f e bijetora em Y .

Agora resta-nos mostrar que x ≤ y se, e somente se, f(x) ⊂ f(y). Suponha quex ≤ y. Seja z ∈ f(x). Temos que z ≤ x e, por transitividade, z ≤ y. Logo, z ∈ f(y).Reciprocamente, suponha que f(x) ⊂ f(y). Como x ∈ f(x), temos x ∈ f(y), o quesignifica que x ≤ y. �

Listamos agora uma serie de definicoes usadas para conjuntos ordenados.

Definicao 13.4 Seja ≤ uma relacao de ordem em um conjunto X. Para todo x ∈ Xe todo S ⊂ X nao-vazio dizemos que

• x e limitante superior de S se y ≤ x, para todo y ∈ S;

• x e limitante inferior de S se x ≤ y, para todo y ∈ S;

• S e limitado superiormente se possui um limitante superior;

• S e limitado inferiormente se possui um limitante inferior;

• x e maximo de S se x ∈ S e y ≤ x, para todo y ∈ S;

• x e mınimo de S se x ∈ S e x ≤ y, para todo y ∈ S;

• x e maximal se nao existe y ∈ X tal que x 6= y e x < y;

• x e minimal se nao existe y ∈ X tal que x 6= z e y < x;

• x e supremo de S se x e o mınimo dos limitantes superior de S;

• x e ınfimo de S se x e o maximo dos limitantes inferior de S;

• S e uma cadeia se, para todos y, z ∈ S temos y ≤ z ou z ≤ y.

Essas definicoes dependem da ordem. Portanto, quando nao estiver claro nocontexto qual e a ordem que estamos considerando sobre o conjunto X, devemosmencionar a qual ordem nos referimos. Ou seja, para ser mais preciso devemosescrever x e o maximo de X em relacao a ≤. Eventualmente, tambem usamos anotacao ≤-maximo, ≤-maximal etc.

Notemos – pela definicao e pela antissimetria da relacao de ordem – que nemsempre um conjunto possui um elemento maximo, mas, se possuir, esse e unico. Omesmo vale para mınimo, supremo e ınfimo. Porem, podemos ter varios limitantessuperiores e inferiores de um conjunto e elementos maximais e minimais da ordem.

Agora podemos enunciar os principais tipos de ordem usados na matematica:

Page 79: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

79

Definicao 13.5 Dizemos que uma ordem ≤ sobre um conjunto X e uma(um):

• ordem total (ou ordem linear) se, para todos x, y ∈ X temos x ≤ y ou y ≤ x;

• boa ordem se todo subconjunto nao-vazio de X possui elemento mınimo;

• arvore se, para todo x ∈ X, o conjunto {y ∈ X : y ≤ x} e uma cadeia em X;

• reticulado se, para todos x, y ∈ X, o conjunto {x, y} possui supremo e ınfimo.

Aplicamos os termos acima tambem para o conjunto ordenado (X,≤) e, por abusode notacao, para o domınio X.

Uma ordem total tem esse nome porque todos os elementos do domınio podemser comparados. Tambem a chamamos de ordem linear porque podemos visualizartodos os elementos da ordem como se estivessem numa mesma reta. As ordens usuaisnos numeros naturais, inteiros, racionais e reais sao exemplos de ordens totais.

Nota-se que toda boa ordem tambem e uma ordem total, uma vez que o conjunto{x, y} tem mınimo, o que nos da x ≤ y ou y ≤ x.

Uma arvore e uma ordem que pode “bifurcar”, mas nunca “juntar”, como na copade uma arvore, em que o tronco se ramifica em galhos, que se ramificam em galhosmenores, mas os galhos nunca se reajuntam. Alem das numerosas aplicacoes emteoria dos conjuntos, as arvores sao usadas em computacao e em teoria dos jogos. Porexemplo, as possıveis sequencias de jogadas a partir de uma posicao numa partida dexadrez formam uma arvore, que um programa de computador (ou o cerebro humano,de uma maneira mais intuitiva) analisara para poder decidir o melhor lance.

Uma ordem total e uma arvore, ja que todo o conjunto e uma cadeia e, portanto,todos seus subconjuntos sao cadeias.

Se considerarmos a ordem da inclusao em uma famılia de conjuntos fechada pelasoperacoes de uniao e interseccao, essa ordem sera um reticulado, onde o ınfimo de{x, y} e x∩y, e o supremo e x∪y. Esse tipo de ordem e particularmente interessantenos estudos de algebras de Boole. O reticulado e um pouco mais geral, pois temos asoperacoes de supremo e ınfimo (que correspondem as operacoes booleanas “e” e “ou”)mas nao precisamos do complemento (correspondente a operacao booleana “nao”).

Tambem e evidente que toda ordem total e um reticulado, ja que o proprio x e oproprio y serao um deles o ınfimo e o outro o supremo do conjunto {x, y}.

Por abuso de linguagem, se (X,≤) e uma boa ordem dizemos que X e um conjuntobem-ordenado. Obviamente, isso so faz sentido quando, no contexto, esta claro qual ea ordem ≤. Por exemplo, nos numeros naturais, sabemos que a ordem usual coincidecom a ordem da inclusao. Mostraremos, entao, o seguinte teorema:

Teorema 13.6 (ω,⊂) e uma boa-ordem.

Demonstracao: Primeiro provaremos, por inducao em n, que todo natural n ebem-ordenado com a ordem da inclusao. O passo inicial n = 0 e trivial, ja que0 nao contem sub-conjunto nao-vazio. Supondo que n e bem-ordenado, considereS um subconjunto nao-vazio de n+. Seja S ′ = S r {n}. Observe que S ′ ⊂ n. Se

Page 80: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

80 CAPITULO 13. RELACOES DE ORDEM

S ′ = ∅, entao S = {n}, que possui n como elemento mınimo. Se S ′ 6= ∅, pela hipoteseindutiva existe m que e o mınimo de S ′. Como m ∈ S ′, temos que m ∈ n. Logo, peloTeorema 7.8, parte (c), m ⊂ n, provando que m e o mınimo tambem de S.

Seja agora S ⊂ ω nao-vazio. Seja k ∈ S e n0 = k+. Temos k ∈ S∩k+ e, portanto,S ∩ n0 6= ∅. Como n0 e bem-ordenado, seja m o mınimo de S ∩ n0. Mostremos quem e o mınimo de S. Seja n ∈ S. Pelo item (a), temos n ∈ n0, n = n0 ou n0 ∈ n. Noprimeiro caso, de n ∈ S∩n0 segue que m ⊂ n, pois e o mınimo de S∩n0. No segundocaso, como m ∈ n0, por (b) temos que m ⊂ n0 e, portanto, m ⊂ n. No terceiro caso,como m ∈ n0 e n0 ∈ n, pelo Teorema 7.8, parte (c), segue que m ⊂ n0 e n0 ⊂ n, deonde concluımos que m ⊂ n, provando que (ω,⊂) e bem-ordenado.

Conjuntos bem-ordenados nos permite fazer um tipo especial de inducao e re-cursao. Suponha que X e bem-ordenado e provamos que, para todo x ∈ X, se umadeterminada propriedade vale para todos os elementos menores que x, entao essapropriedade vale para x. Concluımos, entao, que essa propriedade vale para todoelemento de X. De fato, sejam (X,≤) um conjunto bem-ordenado e P (x) uma pro-priedade tal que, para todo x ∈ X, se vale P (y), para todo y ≤ x diferente de x,entao vale P (x). Suponha, por absurdo, que existe x0 ∈ X tal que nao valha P (x0).Considere Y = {x ∈ X : ¬P (x)}. Por hipotese, Y 6= ∅, pois x0 ∈ Y . Como Xe bem-ordenado, Y possui um mınimo (digamos, x1) em relacao a ordem ≤. Issosignifica que todo elemento de X menor que x1 nao pertence a Y e, portanto, satisfaza propriedade P . Logo, por hipotese, vale P (x1), contradizendo que x1 ∈ X.

Como sempre, onde podemos fazer provas por inducao podemos fazer definicoespor recursao. Em particular, se temos um conjunto bem-ordenado e queremos definiruma funcao que tem como domınio esse conjunto, podemos definı-la em cada elementox usando, recorrentemente, sua definicao nos elementos menores que x.

Para formalizar esse argumento, anunciamos e provamos o proximo teorema, quee mais uma versao do teorema da recursao. Desta vez, ela e transfinita, pois pode seraplicada a conjuntos arbitrariamente grandes, a partir de uma boa ordem (veremosuma aplicacao do axioma da escolha que mostra que todo conjunto pode ser bem-ordenado, isto e, para todo X existe ≤ tal que (X,≤) e bem-ordenado) e, a exemplodo Teorema 12.1, utiliza o axioma da substituicao para que nao precisemos “tercontrole” sobre a imagem da funcao usada no passo indutivo.

Para o proximo teorema, usaremos a seguinte definicao: se (X,≤) e um conjunto

bem-ordenado e x ∈ X, denotamos por←x o conjunto dos elementos de X menores

do que x, isto e, o conjunto {y ∈ X : (y ≤ x) ∧ (y 6= x)}.

Teorema 13.7 (recursao transfinita) Seja F (x, y) uma formula tal que ∀x∃!yF (x, y)seja verdadeira. Seja (X,≤) um conjunto bem-ordenado. Existe uma unica funcao fcujo domınio e X e que satisfaz, para todo x ∈ X,

F (f | ←x, f(x))

Demonstracao: Considere G(x, f) a seguinte formula:

(x ∈ X) ∧ (f e funcao) ∧ (dom(f) =←x ∪{x}) ∧ ∀y(y ≤ x→ F (f |

←y , f(y)))

Page 81: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

81

Afirmacao 1: Para todo x ∈ X, se valem G(x, f) e G(x, g) entaof = g.

Provemos a afirmacao 1 por inducao em x. Suponha que a afirmacao vale para

todo y ∈←x. Se G(x, f) e G(x, g) sao verdadeiras, esta claro, pela definicao de G(x, f),

que G(y, f |(←y ∪{y})) e G(y, g|(

←y ∪{y})) tambem valem, para todo y < x. Logo, pela

hipotese de inducao, temos, para todo y < x.

f |(←y ∪{y}) = g|(

←y ∪{y})

Em particular, f(y) = g(y), para todo y ∈←x.Portanto, das hipoteses G(x, f) e G(x, g) seguem que

F (f | ←x, f(x)) ∧ F (f | ←x, g(x)),

o que implica, pela hipotese sobre F (x, y), que f(x) = g(x), concluindo que f = g.

Afirmacao 2: Para todos x, y ∈ X, se y ≤ x e valem G(x, f) e

G(y, g), entao f |(←y ∪{y}) = g.

Nessas hipoteses, esta claro, pela definicao de G, que G(y, f |(←x ∪{x}) e verda-

deira. Portanto, da afirmacao 1 segue que f |(←x ∪{x}) = g.

Afirmacao 3: Para todo x ∈ X existe f tal que G(x, f).

Suponha, por inducao transfinita, que a afirmacao seja verdadeira para todoy < x. Considere o conjunto

Z = {g : ∃y(y ∈←x ∧G(y, g))}

A existencia do conjunto Z e assegurada pelo axioma da substituicao, lembrando quea afirmacao 1 nos grante que G satisfaz as hipoteses do axioma da substituicao.

As afirmacoes 2 e 3 provam que⋃Z e uma funcao cujo domınio e

←x.

Pela condicao sobre F , sabemos que existe um unico t tal que F (⋃Z, t) e verda-

deira.Defina

f = (⋃

Z) ∪ {(x, t)}

Como f | ←x=⋃Z e t = f(x), esta claro que

F (f | ←x, f(x))

Pela definicao de Z e pela afirmacao 2 temos que G(y, f |←y ∪{y}) vale, para todo

y ∈←x.

Em particular, para todo y ∈←x temos

F (f |←y , f(y))

Page 82: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

82 CAPITULO 13. RELACOES DE ORDEM

o que conclui a afirmacao.

Se (X,≤) possui maximo, entao as afirmacoes 1 e 3 ja provam o teorema, poisbasta tomar f a unica funcao tal que G(x, f) e verdadeira, onde x e o maximo deX. Se nao possui maximo, temos duas maneiras de encerrar a prova. A primeira,repetimos o argumento usado na afirmacao 3, usando o axioma da substituicao paradefinir como f a uniao de todas as funcoes g que satisfazem G(x, g), para algumx ∈ X.

Outra maneira e acrescentarmos um maximo ao conjunto (X,≤), obtendo umconjunto bem-ordenado (X ′,≤′) onde X ′ = X ∪ {x′} e x ≤′ x′ para todo x ∈ X.Como mostramos que existe uma unica f tal que G(x′, f) vale, e facil ver que f |Xsatisfaz as condicoes do teorema

Exercıcios

1. Considere X o conjunto das funcoes f tais que dom(f) ∈ ω e im(f) ⊂ ω. Proveque (X,⊂) e uma arvore.

2. Considere X o conjunto dos subconjuntos finitos de ω. Isto e,

X = {S ⊂ ω : ∃n∃f((n ∈ ω) ∧ (f e funcao injetora de S em n))}

Prove que (X,⊂) e um reticulado. Assuma, sem provar, que uniao e interseccao deconjuntos finitos sao finitas.

3. Considere X o conjunto dos subconjuntos finitos ou cofinitos de ω. Isto e,

X = {S ⊂ ω : ∃n∃f((n ∈ ω)∧((f e funcao injetora)∧(dom(f) ∈ {S, ωrS})∧(im(f) ⊂ n))}

Prove que (X,⊂) e um reticulado.

4. Seja C uma cadeia no conjunto ordenado (X,⊂) do exercıcio 2. Prove que C ebem-ordenado. O mesmo vale para a ordem do exercıcio 3? Justifique.

5. De exemplos ou prove que nao existe:

(a) Uma ordem total que nao e uma boa ordem;

(b) Uma arvore que nao e uma ordem total;

(c) Um reticulado que nao e arvore;

(d) Uma arvore que e um reticulado mas nao e totalmente ordenado.

Page 83: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 14

Axioma da escolha

O axioma da escolha enuncia que, dada uma famılia de conjuntos nao-vazios, existeuma funcao que a cada conjunto pertencente a essa famılia seleciona um elementodesse conjunto.

Axioma 10 (da escolha) Para todo conjunto x de conjuntos nao-vazios existe umafuncao f : x −→

⋃x tal que, para todo y ∈ x, f(y) ∈ y.

∀x(∅ /∈ x→ ∃f((f e funcao) ∧ (dom(f) = x) ∧ ∀y(y ∈ x→ f(y) ∈ y)))

A funcao f garantida pelo axioma da escolha e chamada de funcao de escolha.Esse e certamente o axioma mais controverso da teoria dos conjuntos, rejeitado

por algumas correntes filosoficas da matematica, como os construtivistas. Por issoalguns matematicos preferem tomar um cuidado especial quando utilizam o axiomada escolha, evitando-o a todo custo, referindo-se por ZF ao sistema de axiomas deZermelo e Fraenkel sem o axioma da escolha e por ZFC ao sistema ZF com o axiomada escolha (a letra C vem de choice, da sigla em ingles).

Para entendermos melhor por que esse axioma e tao controverso, precisamosentender para quais construcoes ele e necessario. Ou seja, precisamos entender paraquais conjuntos x a existencia da funcao de escolha depende do axioma da escolha epara quais podemos prova-la em ZF.

Primeiro notemos que, se x for finito (isto e, se existe uma funcao bijetora entre xe um numero natural) entao a existencia de uma funcao de escolha e garantida pelosoutros axiomas. Por exemplo: se x e o conjunto {a, b, c}, sendo seus tres elementosnao-vazios, sabemos que existem a0 ∈ a, b0 ∈ b e c0 ∈ c. Usando sucessivas vezes oaxioma do par, da uniao, das partes e da separacao (como fizemos quando mostramosa existencia de pares ordenados) construımos o conjunto {(a, a0), (b, b0), (c, co)}, quee precisamente uma funcao de escolha no conjunto x.

Formalizando o argumento geral, temos o seguinte: provaremos por inducao emn que, dados x um conjunto de conjuntos nao-vazios, n um numero natural e suma funcao bijetora de n em x, existe uma funcao de escolha em x. Se n = 0, xnecessariamente sera o conjunto vazio e, portanto, o conjunto vazio e uma funcao deescolha em x (verifiquem que, de acordo com a definicao dada neste livro, ∅ e umafuncao de ∅ em ∅). Suponha que a hipotese de inducao e verdadeira para algum

83

Page 84: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

84 CAPITULO 14. AXIOMA DA ESCOLHA

natural n, e provaremos para n+. Sejam x um conjunto de conjuntos nao-vazios e suma funcao bijetora de n+ em x. Como n+ = n ∪ {n}, defina t a restricao de s a n,isto e, t = {(m, s(m) : m ∈ n}. Defina y = im(t). Claramente t e uma bijecao de nem y. Logo, pela hipotese indutiva, existe g : y −→

⋃y tal que g(z) ∈ z, para todo

z ∈ y. Como s(n) 6= ∅, pois s(n) ∈ x, existe a ∈ s(n). Defina f = g ∪ {(s(n), a)}.Como x = y ∪ {s(n)} e facil verificar que f e uma funcao de escolha em x.

Ou seja, se substituirmos “para todo x” pela expressao “para todo x finito” noenunciado do axioma da escolha, teremos um teorema que e valido em ZF.

Outro caso bem significativo em que nao precisamos lancar mao do axioma daescolha para provarmos a existencia de uma funcao de escolha e quando existe umaformula que desempenha esse papel de selecionar exatamente um elemento de cadaconjunto que pertence a x.

De fato, suponha que existe uma formula P (y, z) tal que, para todo y ∈ x, existeum unico z em y para o qual P (y, z) e verdadeira. Isto e, suponha que existe umaformula P para a qual conseguimos provar que

∀y(y ∈ x→ ∃!z(z ∈ y ∧ P )),

onde o sımbolo ∃! e definido da seguinte forma:

∃!zA ≡ ∃z(A ∧ ∀w(Awz → (z = w)))

Nesse caso, provamos a existencia da funcao de escolha usando o axioma da separacao:

f = {(y, z) ∈ x×⋃

x : (z ∈ y) ∧ P}

Por exemplo, suponha que x e um conjunto formado por subconjuntos nao-vaziosde ω. Vimos em um exercıcio do capıtulo anterior que ω e bem-ordenado pela relacaode inclusao (que coincide com a relacao de ordem usual dos numeros naturais), o quesignifica que cada subconjunto nao-vazio de ω possui um unico elemento que estacontido em todos os demais (isto e, o mınimo desse subconjunto). Logo, podemosdefinir a seguinte funcao de escolha

f = {(y, n) ∈ x× ω : (n ∈ y) ∧ ∀m(m ∈ y → n ⊂ m)}

O fato de (ω,⊂) ser bem ordenado garante que f e uma funcao cujo domınio ex, e e claramente uma funcao de escolha.

Vimos, portanto, dois casos particulares do axioma da escolha que sao teoremasde ZF. Entao surge a pergunta: quando precisamos do axioma da escolha para provara existencia de uma funcao de escolha em x? A resposta e: quando x e infinito enao existe uma maneira explıcita e bem determinada de escolher um unico elementode cada elemento de x.

Bertrand Russell forneceu uma comparacao bastante interessante e curiosa paraexplicar o axioma da escolha: para escolhermos uma meia de cada par de meias,dentre uma colecao infinita de pares de meias, precisamos usar o axioma da escolha;se forem sapatos, nao precisamos. Isso porque, no caso dos sapatos, podemos escolhero pe direito de cada par, e, no caso das meias, os pes de cada par sao indistinguıveis.

Page 85: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

85

Portanto, os objetos matematicos cuja existencias dependem do axioma da es-colha nao podem ser construıdos explicitamente, de forma que possamos determinarprecisamente quais sao os seus elementos. Quando dizemos que ha uma funcao deescolha em um conjunto x e, para isso, foi essencial o uso do axioma da escolha,isso significa que ha, na verdade, uma infinidade de possıveis funcoes de escolha,e que nao podemos precisar qual funcao nos estamos considerando. Tais objetosmatematicos sao ditos nao-construtıveis e, para alguns matematicos, nada vale pro-varmos a existencia de um objeto que nao conseguimos explicar exatamente quemele e.

Porem e certo que, desde o inıcio, como mostramos na introducao, a teoria dosconjuntos nao agradou os construtivistas. A prova de Cantor de que existem muitosnumeros transcendentes independe do axioma da escolha e, mesmo assim, e altamentenao-construtiva. Ainda assim, ha muitos que aceitam ZF como algo suficientementeconstrutivo, mas recusam trabalhar em ZFC.

Um dos resultados dependentes do axioma da escolha e que mais agravarama polemica em torno dele e o paradoxo de Banach-Tarski: existe uma forma departicionar uma bola no espaco em uma quantidade finita de partes e remontar essaspartes para formar duas bolas disjuntas, identicas a primeira. Para muitos, esseresultado apenas prova que nao existe uma medida universal finitamente aditiva emR3. Para outros, no entanto, essa e uma evidencia de que as aplicacoes do axiomada escolha sao inuteis, sem nenhuma conexao com a realidade.

Por outro lado, muitos resultados importantes da matematica dependem do axi-oma da escolha, como a existencia de uma base em qualquer espaco vetorial e oTeorema de Hahn-Banach. Mas a maior aplicacao do axioma da escolha e na teoriados cardinais. O fato de podermos atribuir a qualquer conjunto um “tamanho” – aoqual chamamos de cardinalidade – depende do axioma da escolha.

Feita essa pequena discussao filosofica sobre o axioma da escolha, enunciamos,agora, suas principais aplicacoes. Comecamos mostrando a forma equivalente aoaxioma da escolha mais utilizada na matematica.

Teorema 14.1 (Lema de Zorn) Se (X,≤) e uma ordem parcial em que toda ca-deia admite limitante superior, entao (X,≤) admite um elemento maximal.

Demonstracao: Primeiro vamos discutir um pouco a ideia intuitiva desse teorema(que, por motivos historicos, recebeu essa alcunha de lema). Suponha que (X leq)nao admita um elemento maximal. Notemos que a hipotese do teorema implica queX e nao-vazio (por que?). Tomamos, entao, algum x0 ∈ X. Como x0 nao e maximal,encontramos algum x1 estritamente maior que x0. Da mesma forma podemos encon-trar algum x2 maior que x1 e assim por diante (aqui podemos imaginar que o axiomada escolha e necessario para tomarmos sempre um elemento maior do que outro).Apos chegarmos em infinitos elementos de X atraves desse processo, notamos queesses formam uma cadeia, e, entao, pela hipotese, tomamos y um limitante superiordessa cadeia, e iniciamos novamente o processo. A ideia intuitiva e que, em algummomento, esse processo tem que parar, chegando num elemento maximal. Como,infelizmente, nao tem como formalizarmos essa ideia, nao nos resta outra solucao a

Page 86: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

86 CAPITULO 14. AXIOMA DA ESCOLHA

nao ser procurar uma demonstracao rigorosa, que e ardua, trabalhosa e pouco intui-tiva. A discussao precedente so serve para dar ao leitor uma vaga nocao sobre o quesignifica o lema de Zorn e por que ele vale.

Vamos a demonstracao formal, que e adaptada do livro de Halmos, que, por suavez, atribui a Zermelo a criacao dessa prova.

Comecamos definindo X o conjunto das cadeias em X, ordenado pela inclusao.Mostraremos que X tem um elemento maximal, e isso sera suficiente para mostrarque X tem um elemento maximal, conforme a seguinte afirmacao:

Afirmacao 1: Se X possui um elemento maximal entao X possui umelemento maximal.

De fato, suponha que A e um elemento maximal de X. Pela hipotese sobre X,seja x ∈ X um limitante superior de A, ou seja, a ≤ x para todo a ∈ A. Temosque x ∈ A pois, caso contrario, terıamos que A ∪ {x} seria uma cadeia que contempropriamente A, contradizendo a maximalidade de A. Temos que x e maximal emX, pois, se existisse y ∈ X tal que x ≤ y e x 6= y terıamos novamente que A ∪ {y}seria uma cadeia maior que A. Isso conclui a prova da afirmacao.

Afirmacao 2: Se C e uma cadeia em X entao⋃C ∈ X.

Como⋃C e claramente um subconjunto de X, para mostrarmos a afirmacao

basta provarmos que⋃C e uma cadeia em X. Sejam a e b pertencentes a

⋃C.

Sejam A,B ∈ C tais que a ∈ A e b ∈ B. Como C e uma cadeia, temos que A ⊂ Bou B ⊂ A, o que significa que a, b ∈ A ou a, b ∈ B. Como C ⊂ X, tanto A quanto Bsao cadeias, o que significa que a ≤ b ou b ≤ a.

Seja f uma funcao de escolha em P(X)r{∅}. Definimos uma funcao s : X −→ Xcomo

s(A) =

{A ∪ {f({x ∈ X r A : A ∪ {x} ∈ X})} , se A nao e maximal;A , se A e maximal;

A funcao s faz o seguinte: seA e uma cadeia nao-maximal, s estendeA acrescentando-lhe um unico elemento. Se A e uma cadeia maximal, s(A) = A. Se A e uma cadeianao-maximal, existira x /∈ A tal que A ∪ {x} e uma cadeia, pois o subconjunto deuma cadeia e uma cadeia. Reparem a necessidade de usar o axioma da escolha parapodermos escolher um elemento para estender a cadeia A.

Com essa definicao e pela afirmacao 1, nossa tarefa de demonstrar o lema de Zornse reduz, agora, a tarefa de mostrar que existe A ∈ X tal que s(A) = A.

Antes de prosseguirmos a demonstracao, precisamos de mais algumas definicoes.Dizemos que um subconjunto T de X e uma torre se satisfaz as seguintes condicoes:

• ∅ ∈ T ;

• se A ∈ T entao s(A) ∈ T ;

Page 87: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

87

• se C e uma cadeia em (T,⊂) entao⋃C ∈ T .

Existe pelo menos uma torre, pois claramenteX e uma. Logo, podemos introduzira seguinte definicao:

X0 =⋂{T ⊂ X : T e uma torre}.

Afirmacao 3: X0 e uma torre e esta contida em qualquer outra torre.

Deixamos a cargo do leitor provar essa afirmacao, que e bem semelhante a de-monstracao de que ω e um conjunto indutivo. Pela minimalidade de X0 iremosfazer algumas provas utilizando uma especie de inducao, onde s desempenha o papelde sucessor. Na verdade, pela terceira condicao sobre torres, essa inducao mais seaproxima da inducao transfinita, que veremos posteriormente.

Nosso proximo objetivo sera mostrar que X0 e uma cadeia em X. Feito isso, naoteremos dificuldades em mostrar que

⋃X0 e maximal em X, isto e, e uma cadeia em

X que nao esta contida propriamente em nenhuma outra cadeia. Pela afirmacao 1isso sera suficiente para provarmos o lema de Zorn.

Dizemos que um elemento C de X0 e comparavel se, para todo A ∈ X0, temosA ⊂ C ou C ⊂ A. Mostrar que X0 e uma cadeia e o mesmo que mostrar que todoelemento de X0 e comparavel.

Introduzimos agora mais uma definicao provisoria (a ultima!): uma funcao g :X0 −→ P(X0) dada por

g(C) = {A ∈ X0 : (A ⊂ C) ∨ (s(C) ⊂ A)}

Se o leitor teve paciencia de acompanhar ate aqui, anime-se, pois a demonstracaoesta chegando no fim. Faltam ainda mais algumas afirmacoes.

Afirmacao 4: Se C e comparavel entao g(C) = X0.

A prova dessa afirmacao usa uma especie de inducao, como dissemos anterior-mente. Precisamos apenas mostrar que g(C) e uma torre e seguira da afirmacao 3que g(C) = X0.

Esta claro que ∅ ∈ g(C), pois ∅ ⊂ C. Seja S uma cadeia em g(C). Temos duaspossibilidades: ou todo A ∈ S esta contido em C ou existe pelo menos um A ∈ Stal que s(C) ⊂ A. No primeiro caso, temos

⋃S ⊂ C e, portanto,

⋃S ∈ g(C). No

segundo caso, como A ⊂⋃S, temos s(C) ⊂

⋃S e, novamente,

⋃S ∈ g(C). Para

mostrar que g(C) e torre so falta mostrar que, se A ∈ s(C) entao s(A) ∈ g(C).Seja A ∈ g(C). Temos tres casos. Ou A = C, ou A esta contido propriamente

em C ou s(C) ⊂ A.No primeiro caso, temos s(A) = s(C). Em particular, s(C) ⊂ s(A), o que prova

que s(A) ∈ g(C).No segundo caso, supomos que A esta contido propriamente em C. Como C

e comparavel, temos C ⊂ s(A) ou s(A) ⊂ C. Se s(A) ⊂ C temos s(A) ∈ g(C).Assumimos, entao, que C ⊂ s(A). Se C = s(A) caımos no caso s(A) ⊂ C. SeC 6= s(A) existe x ∈ s(A) r C. Mas, pela hipotese de A estar contido propriamente

Page 88: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

88 CAPITULO 14. AXIOMA DA ESCOLHA

em C, existe y ∈ C rA. Portanto, x e y sao elementos distintos (pois um pertence aC e outro nao) de s(A) r A, contradizendo que s(A) tem, no maximo, um elementoque nao pertence a A.

No terceiro caso, se s(C) ⊂ A, como A ⊂ s(A) temos s(C) ⊂ s(A), o que nos das(A) ∈ g(C). Concluımos, assim, a prova da afirmacao.

Afirmacao 5: X0 e uma cadeia em X.

Vamos provar “por inducao” que todo elemento de X0 e comparavel. Ou seja,mostraremos que o conjunto dos elementos comparaveis de X0 e uma torre e, por-tanto, coincide com todo o conjunto X0.

Como ∅ ⊂ A, para todo A, temos ∅ e comparavel. Seja S uma cadeia em X0

formada de elementos comparaveis. Mostraremos que⋃S e comparavel. De fato,

seja A ∈ X0. Se existe C ∈ S tal que A ⊂ C, temos, em particular, A ⊂⋃S. Caso

contrario, como todo elemento de S e comparavel, temos C ⊂ A, para todo C ∈ S,o que nos da

⋃S ⊂ A.

Falta mostrar que, se C e comparavel, s(C) e comparavel. Seja A ∈ X0. Pelaafirmacao 4 temos que A ∈ g(C). Ou seja, A ⊂ C ou s(C) ⊂ A. Como C ⊂ s(C),temos A ⊂ s(C) ou s(C) ⊂ A, provando que s(C) e comparavel.

Isso conclui que o conjunto dos elementos deX0 e uma torre, provando a afirmacao.

Afirmacao 6:⋃X0 e maximal em X.

Seja C =⋃X0. Provemos que s(C) = C. Como, pela afirmacao 5, X0 e uma

cadeia, a afirmacao 3 – que diz que X0 e uma torre – nos garante que C ∈ X0.Portanto, novamente pela afirmacao 3, s(C) ∈ X0. Isso implica que s(C) ⊂

⋃X0.

Ou seja, s(C) ⊂ C. Como C ⊂ s(C) concluımos que s(C) = C, provando a afirmacao.Portanto X tem um elemento maximal e, pela afirmacao 1, X tambem possui,

provando o lema de Zorn.�

Como uma consequencia simples do lema de Zorn, mostramos que todo conjuntopode ser bem-ordenado. Embora a prova detalhada desse resultado seja um poucolonga, sao argumentos bem comuns e corriqueiros, sem tantos “truques” como nademonstracao do lema de Zorn.

Teorema 14.2 (Princıpio da Boa Ordem) Para todo conjunto X existe uma relacao≤ tal que (X,≤) e uma boa ordem.

Demonstracao: A demonstracao do princıpio da boa ordem e uma aplicacao stan-dard do lema de Zorn. Diversos resultados classicos da matematica – como a existenciade base em espacos vetoriais e o teorema de Hahn-Banach – utilizam argumentos bemparecidos. A ideia e simples: se quisermos mostrar que uma propriedade vale paraum conjunto X, consideramos todos a ordem parcial constituıda dos subconjuntosde X que satisfazem tal propriedade (no caso, ser bem-ordenado). Verificamos que ahipotese do lema de Zorn e atendida e tomamos Y um elemento maximal dessa ordem

Page 89: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

89

parcial. Se Y nao for todo o conjunto X, mostramos que esse pode ser estendido umpouco mais, contradizendo sua maximalidade.

Quando a propriedade que queremos mostrar para X envolve alguma estrutura– neste caso, uma ordem – e natural que, nessa ordem parcial que criamos, conside-remos algo a mais que os subconjuntos de Y . No caso deste teorema, o domınio daordem parcial e formada pelos conjuntos bem-ordenados (Y,≤) tais que Y ⊂ X, ena definicao da ordem, precisamos respeitar a compatibilidade entre esses conjuntosordenados.

Vamos a demonstracao.

Definimos uma ordem parcial (X,�) da seguinte forma: X e o conjunto de todosos conjuntos bem-ordenados (Y,≤) tais que Y ⊂ X, e (Y1,≤1) � (Y2,≤2) se, esomente se, as seguintes condicoes sao satisfeitas:

1. Y1 ⊂ Y2;

2. x ≤1 y se, e somente se, x ≤2 y, para todos x, y ∈ Y1;

3. se x ∈ Y1 e y ∈ Y2 r Y1 entao x ≤ y.

Fica como exercıco ao leitor mostrar que (X,�) e um conjunto ordenado. Pro-varemos que ele satisfaz a hipotese do lema de Zorn.

Seja S uma cadeia em X. Definimos

Y =⋃{Y ′ : ∃ ≤′: (Y ′,≤′) ∈ S}

e

≤=⋃{≤′: ∃Y ′ : (Y ′,≤′) ∈ S}

Afirmacao: (Y,≤) ∈ X e e um limitante superior de S.

Para provar a afirmacao, primeiro verifiquemos que ≤ e uma boa ordem sobre X.Como S e uma cadeia, dados x, y, z ∈ Y existe (Y ′,≤′) ∈ S tal que x, y, z ∈ Y ′ e,para todos u, v ∈ Y ′, temo u ≤ v se, e somente se, u ≤′ v. Portanto, as propriedadesde ordem sao satisfeitas para ≤, pois sao satisfeitas para ≤′. Portanto, ≤ e umaordem.

Para verificar que ≤ e uma boa ordem, considere Z ⊂ Y um conjunto nao-vazio.Portanto, existe (Y1,≤1) ∈ S tal que Z ∩ Y1 6= ∅. Por hipotese, existe z ∈ Z ∩ Y1 quee mınimo, em relacao a ordem ≤1. Vamos mostrar que tambem e o mınimo de Z, emrelacao a ≤.

Suponhamos, por absurdo, que existe w ∈ Z tal que w 6= z e w ≤ z. Como z emınimo de Z ∩ Y1, temos que w /∈ Y1 Tome (Y2,≤2) tal que w ∈ Y2. Como S e umacadeia, vale (Y2,≤2) � (Y1,≤1) ou (Y1,≤1) � (Y2,≤2). Mas o primeiro caso nao epossıvel, pois w ∈ Y2 r Y1.

Temos, entao, (Y1,≤1) � (Y2,≤2). Da condicao 3 da ordem � segue que z ≤2 w.Porem, como w ≤ z, da definicao de ≤, do fato de S ser uma cadeia e da condicao 2da ordem � seguem que w ≤2 z (deixamos os detalhes dessa passagem como exercıcio

Page 90: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

90 CAPITULO 14. AXIOMA DA ESCOLHA

ao leitor). Portanto, a antissimetria de ≤2, nos da que w = z, contradizendo nossahipotese e provando a afirmacao.

Agora, aplicamos o lema de Zorn para obter (Y,≤) maximal em X. Tudo queprecisamos para concluir o teorema e provar que Y = X. De fato, suponha queY 6= X. Tome x ∈ X r Y . Considere Y ′ = Y ∪ {x} e defina uma ordem ≤′ em Y ′

acrescentando a condicao y ≤ x, para todo y ∈ Y . Isto e, ≤′=≤ ∪{(y, x) : y ∈ Y }.Claramente (Y ′,≤′) e um conjunto bem-ordenado, diferente de (Y,≤) e tal que (Y ≤) � (Y ′,≤′), contradizendo a maximalidade de (Y,≤).

Os dois teorema anteriores sao, na verdade, formas equivalentes ao axioma daescolha, como mostra o seguinte resultado:

Teorema 14.3 Em ZF, sao equivalentes:

(a) Axioma da escolha;

(b) Lema de Zorn;

(c) Princıpio da boa ordem.

Demonstracao: Ja provamos que (a) implica (b) e que (b) implica (c), lembrandoque a demonstracao do princıpio da boa ordem nao utiliza diretamente o axioma daescolha, mas apenas o lema de Zorn. Resta mostrar que (c) implica (a), cuja ideiada demonstracao ja foi discutida no inıcio deste capıtulo.

Seja X um conjunto de conjuntos nao-vazios. Aplicando o princıpio da boaordem, considere ≤ uma boa ordem no conjunto

⋃X. Definiremos uma funcao de

escolha que a cada elemento x de X associa o mınimo de x, isto e:

f = {(x, y) ∈ X ×⋃

X : (y ∈ x) ∧ ∀z(z ∈⋃

X → y ≤ z}

Pela propriedade de boa ordem e pelo fato de ∅ /∈ X, para todo x ∈ X existey ∈

⋃x tal que (x, y) ∈ f . A unicidade do elemento mınimo, como ja foi discutido

anteriormente, segue da antissimetria da ordem (se y e z fossem “dois mınimos”,terıamos y ≤ z e z ≤ y, o que implica que y = z).

Portanto f e uma funcao, e e justamente uma funcao de escolha em X.�

Exercıcios

1. Discuta a seguinte afirmacao: sempre que a existencia de uma funcao de escolhasobre um conjunto vale em ZFC mas nao e assegurada em ZF, temos, em ZFC, maisde uma funcao de escolha sobre esse conjunto.

2. Seja f uma funcao de domınio A e imagem B. Prove que existe uma funcao ginjetora de domınio B tal que f ◦g(b) = b, para todo b ∈ B. Discuta o uso do axiomada escolha nessa demonstracao. Se A for o conjunto ω, e necessario o uso do axiomada escolha para provar esse resultado?

Page 91: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

91

3. Prove que todo espaco vetorial sobre R possui uma base (algebrica).

4. Prove em ZF (sem assumir o axioma da escolha) que ω × 2 e ω × ω podem serbem-ordenados.

Page 92: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

92 CAPITULO 14. AXIOMA DA ESCOLHA

Page 93: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 15

Conjuntos equipotentes

Este capıtulo aborda o assunto discutido na introducao, que deu origem a toda ateoria dos conjuntos: a comparacao entre conjuntos infinitos pela “quantidade” deelementos. Comecamos a falar quando dois conjuntos sao “iguais”, em termos detamanho. No proximo capıtulo discutiremos o que significa um conjunto ser “menor”do que outro.

Definicao 15.1 Dizemos que dois conjuntos X e Y sao equipotentes se existe umafuncao bijetora de X em Y . Usamos a notacao X ≈ Y para denotar que X e Y saoequipotentes.

Esta claro que X ≈ X e que X ≈ Y se, e somente se, Y ≈ X. Tambem efacil verificar (pois a composta de funcoes bijetoras e bijetora) que X ≈ Y e Y ≈ Zimplica X ≈ Z. Ou seja, ≈ e uma especie de relacao de equivalencia sobre a classede todos os conjuntos. E claro que, como nao existe conjunto de todos os conjuntos,nao podemos considerar ≈ como uma relacao (a menos quando o restringimos a umafamılia particular de conjuntos), mas, sim, como um sımbolo relacional binario queadicionamos a linguagem, que satisfaz as propriedades de uma relacao de equivalencia(reflexividade, simetria e transitividade).

Definicao 15.2 Dizemos que um conjunto e finito se e equipotente a algum numeronatural, e infinito se nao e finito. Dizemos que um conjunto X e enumeravel se efinito ou equipotente a ω, e nao-enumeravel se e infinito e nao equipotente a ω.

O proximo teorema nos oferece outras tres definicoes alternativas para conjuntosfinitos (e, consequentemente, para conjuntos infinitos).

Teorema 15.3 Para um conjunto X, sao equivalentes:

(a) X e infinito;

(b) Nao existem n ∈ ω e uma funcao de domınio n e imagem X;

(c) Existe uma funcao injetora de domınio ω e imagem contida em X;

(d) X e equipotente a um subconjunto proprio de X.

93

Page 94: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

94 CAPITULO 15. CONJUNTOS EQUIPOTENTES

Demonstracao: Provaremos as implicacoes circularmente: (a) implica (b), (b) im-plica (c), (c) implica (d) e, finalmente, (d) implica (a). Usaremos o axioma da escolhana parte (b) implica (c).

(a)⇒ (b) Provaremos pela contrapositiva. Isto e, assumimos que existem n ∈ ωe uma funcao f : n −→ X sobrejetora. Mostraremos que X e finito. Isto e, existemm ∈ ω e uma funcao g : m −→ X sobrejetora.

Antes, provaremos uma afirmacao:

Afirmacao 1: Se n ∈ ω e S ⊂ n, entao S e finito.

Provaremos a afirmacao por inducao em n. Seja P (n) a formula “todo subconjuntode n e finito”. Por argumentos de vacuidade, o conjunto vazio e uma funcao bijetorano conjunto vazio (verifique). Logo, vale P (0), ja que 0 e o unico subconjunto de 0.Supondo que vale P (n) mostraremos P (n+).

Seja S ⊂ n+. Consideremos dois casos. Se n /∈ S, entao S ⊂ n e, pela hipotesede inducao, S e finito. Se n ∈ S, considere S ′ = S r {n}. Temos que S ′ ⊂ n e,por hipotese indutiva, S ′ e finito. Sejam m ∈ ω e f : m → S ′ uma funcao bijetora.Claramente, f ∪{(m,n)} e uma funcao bijetora de m+ em S, provando que S e finito.Provamos, assim, que vale P (n+) e que, por inducao, vale P (n), para todo n ∈ ω.

Agora usaremos a afirmacao para provarmos a primeira parte do teorema. Sejamn ∈ ω e f : n −→ X sobrejetora. Para cada x ∈ X definimos

f−1[x] = {k ∈ n : f(k) = x}.

ConsidereS = {k ∈ n : ∃x(x ∈ X ∧ k = minf−1[x])}

Ou seja, escolhemos, para cada x ∈ X, apenas um k ∈ ω tal que f(k) = n. Repareque, neste ponto, nao precisamos usar o axioma da escolha, pois ja sabemos que ω ebem-ordenado.

Seja f ′ = f |S a restricao de f a S. Isto e, f ′ e uma funcao de S em X definidacomo f ′(k) = f(k), para todo k ∈ S. E facil verificar que f ′ e bijetora em relacao aX.

Pela afirmacao, existem m ∈ ω e g : m −→ S bijetora. Tomemos h = f ′ ◦ g.Como composicao de funcoes injetoras e injetora, concluımos que h e uma bijecaoentre m e X, provando que X e finito.

(b) ⇒ (c) Suponha que vale (b), isto e, nao existe uma funcao sobrejetora dealgum numero natural em X. Provaremos a existencia de uma funcao h : ω −→ Xinjetora.

A ideia da construcao e simples. Definimos h recursivamente. Se temos definidaa funcao h ate n − 1, definimos h(n) como qualquer elemento de X que nao estana imagem de h restrito a {0, . . . , n − 1}. Tal elemento existe pela hipotese de quenenhuma funcao de n em X e sobrejetora. Fazendo isso sucessivamente, definimos hpara todo numero natural.

O problema e formalizar esse argumento, usando o teorema da recursao. Nasaplicacoes que fizemos ate agora, definimos f(n+) a partir de f(n). Nesse caso,

Page 95: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

95

h(n+) depende nao apenas de h(n), mas de h(i), para todo i ≤ n. Usaremos umartifıcio para adaptar o teorema da recursao simples para aquele que conhecemoscomo recursao completa.

Tambem precisaremos usar o axioma da escolha para escolher um elemento deX que nao esta na imagem de uma funcao parcial de ω em X. Comecamos a de-monstracao desta parte do teorema fixando s uma funcao de escolha de domınioP(X)r {∅}. Isto e, s e uma funcao definida em todos os subconjuntos nao-vazios deX que satisfaz s(A) ∈ A, para todo A ⊂ X nao-vazio.

Seja Y o conjunto de todas as funcoes que tem como domınio um numero naturale imagem contida em X. Isto e

Y = {f ⊂ ω ×X : (f e funcao) ∧ (dom(f) ∈ ω)}

Tome y0 = ∅ e g : Y −→ Y a funcao definida por

g(f) = f ∪ {(dom(f), s(X r im(f))}

Isto e, se f e uma funcao de domınio n, g(f) e uma funcao f ′ de domınio n+ definidada seguinte forma: f ′(k) = f(k), para k ∈ n, e f ′(n) = s(X r im(f)). Lembre-sede que X r im(f) e nao-vazio pela hipotese, que garante que f nao e sobrejetora emrelacao a X, e s(X r im(f)) e um elemento de X r im(f), garantindo que f ′(n) naopertence a imagem de f .

Pelo teorema da recursao, existe uma funcao F : ω −→ Y tal que F (0) = y0 eF (n+) = g(F (n)).

Ou seja, cada F (n) e um “pedaco” da funcao h, que queremos definir, restrita an. Definimos

h =⋃

im(F )

Para ficar mais clara a definicao de h, uma outra definicao equivalente a essa seria:h e uma funcao de ω em X tal que h(n) = f(n), tomando f = F (n+).

A funcao h e injetora. De fato, se n 6= m, podemos assumir, sem perda degeneralidade, que m ∈ n. Sejam f1 = F (m+) e f2 = F (n+). E facil verificar, porinducao, que F (m+) ⊂ F (n). Como, pela construcao, f2(n) /∈ imF (n), temos quef1(m) 6= f2(n). Logo, h(m) 6= h(n).

(c)⇒ (d) Suponha que existe uma funcao f : ω −→ X injetora. Provaremos queexistem Y ⊂ X diferente de X e g : X −→ Y bijetora. Para isso, basta provarmosque existe g : X −→ X injetora e nao sobrejetora, e tomamos Y a imagem de g.

Defina g : X −→ X do seguinte modo: g(x) = x, quando x /∈ im(f) e g(f(n)) =f(n+). Formalmente, definimos

g = {(x, x) ∈ X ×X : x /∈ im(f)} ∪ {(f(n), f(n+)) ∈ X ×X : n ∈ ω}

Provemos que g e uma funcao, e injetora, e nao sobrejetora, em relacao a X.Sejam (x, y) e (x, z) elementos de g. Se x /∈ im(f), entao ambos y e z sao iguais

a x, pela definicao de g. Se x ∈ im(f), de (x, y) ∈ g segue que existe n ∈ ω tal quex = f(n) e y = f(n+), e de (x, z) ∈ g segue que existe m ∈ ω tal que x = f(m) ez = f(m+). Como f(n) e f(m) sao ambos iguais a x, da injetividade em f segue que

Page 96: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

96 CAPITULO 15. CONJUNTOS EQUIPOTENTES

m = n e, portanto, y = z, pois ambos sao iguais a f(n). Provamos, assim, que g euma funcao.

Mostremos, agora, que g e injetora. Sejam (x, z) e (y, z) elementos de g, e mos-remos que x = y. Analisemos tres casos. Se ambos x e y nao pertencem a im(f),pela definicao de g temos z = x e z = y, de onde concluımos que x = y. Se am-bos x e y pertencem a im(f), existem numeros naturais n e m tais que f(n) = x ef(m) = y. Pela definicao de g, temos que z = f(n+) e z = f(m+). Da injetividadede f segue que n+ = m+, o que implica que n = m e, portanto, x = y. O terceirocaso a ser analisado seria quando x ∈ im(f) e y /∈ im(f). Mas isso e impossıvel, pois,por um lado, terıamos z = y e, em particular, z /∈ im(f). Por outro lado, terıamosque x = f(n), para algum n ∈ ω, e, portanto, z = f(n+), contradizendo que z naopertence a imagem de f .

Falta mostrar que g nao e sobrejetora em relacao a X. De fato, mostraremosque f(0) nao pertencem a imagem de g. Suponha o contrario. Seja x ∈ X tal queg(x) = f(0). Se x /∈ im(f), temos que g(x) = x, o que e uma contradicao, visto quef(0) pertence a imagem de f . Se x ∈ im(f), entao x e da forma f(n), para algumn ∈ ω. Nesse caso, como g(x) = f(n+), terıamos f(n+) = f(0). Como f e injetora,isso implica que n+ = 0, de onde segue que n ∈ 0, chegando a um absurdo.

(d) ⇒ (a) Mostraremos pela contrapositiva. Isto e, se X e finito, entao X naoe equipotente a um subconjunto proprio. Provaremos, primeiro, que essa afirmacaoe verdadeira para os proprios elementos de ω. Ou seja, mostraremos a seguinteafirmacao:

Afirmacao 2: Se n ∈ ω e S esta contido propriamente em n, entaoS nao e equipotente a n.

Provemos a afirmacao por inducao em n. Vale para 0, pois 0 nao possui subcon-junto proprio. Suponhamos que nenhum subconjunto proprio de n e equipotente an. Mostraremos que o mesmo vale para n+.

Suponha, por absurdo, que existem S ⊂ n+ diferente de n+ e uma funcao bijetoraf de S em n+. Assumiremos, sem perda de generalidade, que n /∈ S. De fato, sen ∈ S, como S 6= n+, existe m < n que nao pertence a S. Podemos “trocar”n com m, mantendo o mesmo valor de f . Ou seja, no lugar de S consideramosS ′ = (Sr{n})∪{m} e no lugar de f consideramos f ′ = (fr{(n, f(n))})∪{(m, f(n))}.Esta claro que S ′ continua sendo um subconjunto proprio de n+ (porque n /∈ S) e f ′

ainda e uma bijecao de S ′ e n+.Feita essa suposicao de que n /∈ S, seja m < n tal que f(m) = n. Considere

S ′ = S r {m} e f ′ a restricao de f a S ′. Temos que f ′ e uma bijecao de S ′ emn. De fato, sendo a restricao de uma funcao injetora, f ′ e uma funcao injetora, e,como o unico elemento que tiramos da imagem de f foi n, da sobrejetividade de fem relacao a n+ segue a sobrejetividade de f ′ em relacao a n. Alem disso, S ′ estacontido propriamente em n, visto que m e n nao pertencem a S ′, contradizendo ahipotese indutiva.

Usando a afirmacao 2, mostraremos que um conjunto finito X nao pode serequipotente a um subconjunto proprio. De fato, suponha, por absurdo, que existe

Page 97: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

97

uma funcao f : X −→ X injetora e nao sobrejetora, em relacao a X. Ou seja, setomarmos Y a imagem de f , temos que X e equipotente a Y , que e um subconjuntoproprio de X. Seja g : X −→ n uma funcao bijetora e considere h a restricao de Xa Y (isto e, h(y) = g(y), para todo y ∈ Y ).

Seja S a imagem de h. Como Y esta contido propriamente em X e f e injetora,temos que S e um subconjunto proprio de n. De fato, se x ∈ X r Y , entao f(x) naopertence a S.

Note que g−1 e uma bijecao de n em X, f e uma bijecao de X em Y e h euma bijecao de Y em S. Como composicao de funcoes bijetoras e bijetora, a funcaoh ◦ f ◦ g−1 (isto e, a funcao h ◦ (f ◦ g−1), para ser mais preciso) e uma bijecao de nem S, contradizendo a afirmacao 2.

Da equivalencia entre (c) e (a) fica claro que ω e um conjunto infinito. Alias,fica facil ver que qualquer conjunto indutivo e infinito (finalmente justificamos onome do axioma da infinidade!). Como, dados dois numeros naturais diferentes, umesta contido em outro, a afirmacao 2 feita dentro da demonstracao do Teorema 15.3garante que dois numeros naturais distintos nunca sao equipotentes.

A pergunta que surge e: os conjuntos infinitos sao sempre equipotentes, entreeles? Como vimos no comeco do livro, isso nao e verdade, pois os numeros reais saoum exemplo de conjunto nao-enumeravel, isto e, infinito e nao equipotente a ω. Oargumento de Cantor pode ser copiado para provar que P(ω) e nao-enumeravel. Demodo geral, Cantor mostrou que o conjunto das partes de X nao e equipotente aX. Reparem a semelhanca do argumento utilizado por Cantor com o Paradoxo deRussell.

Teorema 15.4 (Cantor) O conjunto P(X) nao e equipotente a X.

Demonstracao: Seja f uma funcao de X em P(X). Considere

Z = {x ∈ X : x /∈ f(x)}.

Vamos mostrar que Z /∈ im(f).Suponha que existe z ∈ X tal que f(z) = Z. Se z ∈ Z entao, por definicao,

z /∈ f(z), o que significa que z /∈ Z. Se z /∈ Z isso significa que z /∈ f(z), o queimplica que z ∈ Z. Chegamos, assim, numa contradicao. �

Exercıcios

1. Mostre que um conjunto X e infinito se, e somente se, existe uma boa ordem emX em relacao a qual X nao possui maximo.

2. Prove que, se X e enumeravel entao X × X e enumeravel (pode usar, sem de-monstrar, fatos basicos de aritmetica).

3. Prove que a uniao e a interseccao de conjuntos finitos sao finitas.

Page 98: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

98 CAPITULO 15. CONJUNTOS EQUIPOTENTES

4. Prove que um subconjunto de um conjunto finito e finito.

5. Prove que P(X) e finito se, e somente se, X e finito.

Page 99: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

Capıtulo 16

Comparacao entre conjuntos

Terminamos o capıtulo anterior mostrando o teorema de Cantor, que afirma que oconjunto das partes de um conjunto X nao e equipotente a X. Ora, se X e P(X)“nao sao iguais”, quanto ao tamanho, entao qual deles “e o maior”? Nossa intuicaonos diz que P(X) tem muito mais elementos. De fato, o conjunto {{x} : x ∈ X}e um subconjunto proprio de P(X) equipotente a X, atraves da funcao f(x) ={x} (a injetividade dessa funcao segue do axioma da extensao). Como P(X) nao eequipotente a X, mas contem um subconjunto equipotente a X, e sensato dizermosque P(X) possui um tamanho maior que o conjunto X.

Sendo assim, definimos dessa forma a comparacao entre tamanhos de conjuntos:Y “e maior ou igual a” X se existe um subconjunto de Y equipotente a X. Isso eequivalente a existir uma funcao injetora de X em Y (a imagem dessa funcao seria osubconjunto de Y equipotente a X).

Quando Y “for maior ou igual a” X, diremos que Y domina X. Se Y “e maiorque” X, diremos que Y domina estritamente X, conforme a definicao a seguir.

Definicao 16.1 Dizemos que um conjunto Y domina um conjunto X se existe umafuncao injetora de X em Y . Dizemos que Y domina estritamente X se Y dominaX mas X nao domina Y . Denotamos por X � Y quando Y domina X e X ≺ Yquando Y domina estritamente X.

De acordo com essa definicao, o teorema de Cantor diz que o conjunto das partesde X domina estritamente X. Ainda de acordo com essa definicao, o item (c) do Te-orema 15.3 nos diz que ω e “o menor” conjunto infinito que existe. Em particular, osconjuntos nao-enumeraveis sempre dominam estritamente os conjuntos enumeraveis.

A pergunta natural a fazer depois de vermos o enunciado do Teorema de Cantor esobre a existencia de alguma coisa intermediaria entre ω e P(ω), ou, mais geralmente,entre X e P(X). Essa conjectura de que nao existe nada entre ω e P(ω) e conhecidacomo hipotese do contınuo e foi colocada por Hilbert no topo dos problemas maisimportantes na virada do seculo XIX para o seculo XX.

Hipotese do contınuo: Se ω � X e X � P(ω) entao X e equipo-tente a ω ou a P(ω).

99

Page 100: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

100 CAPITULO 16. COMPARACAO ENTRE CONJUNTOS

Esse problema foi provado ser independente de ZFC, isto e, nao pode ser provadonem refutado utilizando os axiomas usuais de teoria dos conjuntos. Pelo teorema dacompletude da logica de primeira ordem, isso significa que existem um modelo parateoria dos conjuntos que satisfaz os axiomas de ZFC e a hipotese do contınuo, e outromodelo para teoria dos conjuntos que satisfaz os axiomas de ZFC e a negacao dahipotese do contınuo.

Como dissemos, o problema foi postado por Hilbert em 1900 na sua famosa listados 22 problemas mais importantes do seculo XIX. A consistencia da hipotese docontınuo so foi mostrada em 1940 por Kurt Godel, e a consistencia da negacao dahipotese do contınuo foi provada em 1964 por Paul Cohen.

A seguinte generalizacao da hipotese do contınuo tambem foi provada ser inde-pendente de ZFC.

Hipotese generalizado do contınuo: Se X � Y e Y � P(X) entaoY e equipotente a X ou a P(X).

A ideia de compararmos conjuntos pelo seu tamanho remete a ideia de ordem.De fato, queremos que a “relacao” � (que seria uma relacao na classe de todos osconjuntos) satisfaca as condicoes de uma relacao de ordem.

E facil verificar que X � Y e Y � Z implicam que X � Z, pois a composicaode funcoes injetoras e injetora. Tambem e imediato que X � X, pois a funcaoidentidade e injetora. Para podermos dizer que � estabelece uma relacao de ordemna classe de todos os conjuntos, precisarıamos ter que X � Y e Y � X implicaX = Y . Obviamente, isso nao vale, pois existem conjuntos equipotentes diferentes, econjuntos equipotentes dominam um o outro. Porem, e de se esperar que se X � Ye Y � X entao X ≈ Y . Mostraremos que isso e verdadeiro, pelo teorema de Cantor-Schroder-Bernstein, e esse resultado nao depende do axioma da escolha.

Outro resultado importante (e esse depende do axioma da escolha) e podermoscomparar dois conjuntos quaisquer. Isto e, dados dois conjuntos, ou os dois saoequipotentes ou um domina estritamente o outro. Pelo teorema de Cantor-Schroder-Bernstein, para mostrarmos isso basta verificarmos que, dados dois conjuntos, umdeles domina o outro. Antes de provarmos esse resultado, provaremos um lemaimportante, que diz que a existencia de uma funcao injetora de X em Y e equivalentea existencia de uma funcao sobrejetora de T em X.

Lema 16.2 Sejam X e Y conjuntos nao-vazios. Temos que X � Y se, e somentese, existe uma funcao sobrejetora de Y em X.

Demonstracao: Suponha que existe f : X −→ Y injetora. Tome x0 ∈ X um ele-mento qualquer. Defina g : Y −→ X como g(y) = f−1(y), se y ∈ im(f) (lembrandoque f e bijetora sobre sua imagem) e g(y) = x0 se y ∈ Y r im(f).

Suponha agora que existe g : Y −→ X sobrejetora. Considere a funcao h : X −→P(Y ) dada por

h(x) = {y ∈ Y : g(y) = x}

Page 101: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

101

Como g e sobrejetora, h(x) 6= ∅, para todo x ∈ X. Usando o axioma da escolhadefina uma funcao s : im(h) −→ Y tal que s(A) ∈ A, para todo A ∈ im(h). Definaa funcao f : X −→ Y por

f(x) = s(h(x))

Notemos que h(x) ∩ h(x′) = ∅, sempre que x 6= x′. Logo, f e injetora, provando oque querıamos. �

Teorema 16.3 Para todos conjuntos X e Y , ou X � Y ou Y � X.

Demonstracao: Podemos assumir que tanto X quanto Y sao nao-vazios, pois,nesse caso, o resultado seria trivial, uma vez que qualquer conjunto domina o conjuntovazio.

Supomos que X nao domina Y . Pelo Lema 16.2 isso significa que nao existe umafuncao sobrejetora de X em Y . Vamos mostrar que Y domina X.

Sejam ≤ uma relacao de boa ordem sobre o conjunto X e h uma funcao de escolhaem P(Y ) r {∅}. Defina uma funcao

g :⋃{←xY : x ∈ X} −→ Y

dada por

g(s) = h(Y r im(s)).

Notemos que s nao e sobrejetora em Y , pois o domınio de s esta contido em X e setivessemos im(s) = Y poderıamos facilmente estender s para uma funcao sobrejetorade X em Y , que assumimos nao existir. Portanto, h esta bem definida.

Pelo teorema da recursao (vide teorema 13.7), existe f : X −→ Y tal que, paratodo x,

f(x) = g(f | ←x),

lembrando que←x denota o conjunto dos elementos de X menores do que x.

Mostremos que f e injetora. Suponha que nao seja. Tome x e y em X tais quex 6= y e f(x) = f(y). Como boa ordem implica ordem total, temos x ≤ y ou y ≤ x.Podemos assumir que y ≤ x, sendo o outro caso totalmente analogo. Temos que

y ∈←x, contradizendo que g(f | ←x) /∈ im(f | ←x) e f(x) = f(y). �

Notemos que usamos o axioma da escolha duas vezes na demonstracao acima:uma para bem ordenar o conjunto X e outra para definir a funcao h. O uso doaxioma da escolha e necessario. De fato, o teorema da comparabilidade dos conjuntose equivalente ao axioma da escolha, em ZF.

O proximo lema sera usado na demonstracao do teorema de Cantor-Schroder-Bernstein.

Lema 16.4 (teorema do ponto fixo de Tarski) Seja F uma funcao de P(X) emP(X) tal que z ⊂ w ⊂ X implica F (z) ⊂ F (w). Entao existe w ⊂ X tal queF (w) = w.

Page 102: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

102 CAPITULO 16. COMPARACAO ENTRE CONJUNTOS

Demonstracao: Sendo F e X como na hipotese do lema, considere o conjunto

A = {z ∈ P(X) : z ⊂ F (z)}

e tomew =

⋃A.

Se z ∈ A, como z ⊂ F (z) e z ⊂ w, temos z ⊂ F (w). Como w =⋃A isso implica

quew ⊂ F (w).

Agora notamos que, se z ∈ A, entao z ⊂ F (z) e, pela hipotese do lema, F (z) ⊂F (F (z)), o que implica que F (z) ∈ A. Em particular, F (w) ∈ A, o que implica que

F (w) ⊂ w,

provando que F (w) = w.�

Teorema 16.5 (Cantor-Schroder-Bernstein) Se X � Y e Y � X entao X ≈ Y .

Demonstracao: Sejam g : X −→ Y e h : Y −→ X funcoes injetoras. Mostraremosque existe f : X −→ Y bijetora.

A ideia da demonstracao e dividir X em duas partes, X1 e X2, e Y em duaspartes, Y1 e Y2, de modo que g restrita a X1 seja sobrejetora em relacao a Y1 e hrestrita a Y2 seja sobrejetora em relacao a X2. Em seguida, basta “colar” as funcoesg restrita a X1 e a inversa de h restrita a Y2. Usaremos o teorema de ponto fixo deTarski para achar as particoes de X e Y .

Usaremos a notacao g[A] para denotar o conjunto im(g|A), e o mesmo tambempara a funcao h.

Defina a funcao F : P(X) −→ P(X) dada por

F (A) = X r h[Y r g[A]]

Notemos que, se A ⊂ B, g[A] ⊂ g[B]. Logo, Y r g[B] ⊂ Y r g[B] e h[Y r g[B]] ⊂h[Y r g[B]], concluindo que F (A) ⊂ F (B).

Logo, F satisfaz a hipotese do teorema do ponto fixo de Tarski. Tome X1 ⊂ Xtal que F (X1) = X1. Defina Y1 = g[X1], X2 = X rX1 e Y2 = Y r Y1.

Mostraremos que h[Y2] = X2 o que equivale a mostrar que

h[Y r g[X1]] = X rX1.

E facil verificar que a expressao acima e equivalente a

X r h[Y r g[X1]] = X1,

que e exatamente a expressao F (X1) = X1, que vale pela definicao de X1.Tomamos agora

f = (g|X1) ∪ (h|Y2)−1,que e claramente uma funcao bijetora de X em Y .

Page 103: Rog erio Augusto dos Santos Fajardo 24 de Novembro de 2013fajardo/Elementos_Conjuntos.pdf · O mesmo processo ele usa para contar as fatias de bolo. ... conta o numero de pessoas

103

Exercıcios

1. Prove que, se X e Y sao infinitos, entao X∪Y e equipotente a X ou a Y . Assumao seguinte resultado: se X e infinito entao X e equipotente a X ×X.

2. Seja X um conjunto infinito. Prove que, se X domina Y e domina Z, entao Xdomina Y ∪ Z. Mostre que isso nem sempre vale quando X e finito.

3. Prove que, se ω domina estritamente X, entao X e finito.

4. Prove que, dados dois numeros naturais n e m, temos que n domina estritamentem se, e somente se, m < n.

5. Prove que, se Y e nao-vazio, X × Y domina X.