Rodrigo Rezende - Ciência Nazista

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  • 7/23/2019 Rodrigo Rezende - Cincia Nazista

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    Ttulo: Cincia Nazista

    Autor: Rodrigo Rezende

    Sumrio: - Doutores da Agonia - Cincia e nazismo - Hitler domina a cincia - Laboratrios do inferno - Outra Viso - Dados da discrdia - Anexo 1 - A cincia sob Hitler - Anexo 2 - Concentrao de cobaias Cincia Nazista Rodrigo Rezende Cincia Nazista Primeira Edio So Paulo, 2014

    Superinteressante Cincia Nazista

    Doutores da agonia "Camarada, por favor, pea ao oficial que acabe conosco com uma bala", suplicouo soldado russo. Depois de 3 horas dentro de um tanque de gua gelada, ele j

    no suportava mais a sensao de congelamento no corpo. "No espere compaixo daquele cscista", respondeu o colega que dividia o tanque com ele. Quando o cientistaresponsvel pelo experimento descobriu o significado das palavras de suas cobaias,retirou-se para o escritrio. Voltou com um revlver na mo. No para atenderao pedido do soldado, mas para ameaar seus assistentes na experincia. "No se intrometam. Nem se aproximem deles!" Passaram-se mais 2 horas de agonia antes queo alvio da morte chegasse para os russos. Assim como eles, pelos menos outros 300prisioneiros dos nazistas foram usados em experimentos destinados a entender osefeitos do frio no corpo humano - a hipotermia. A maioria no teve a sorte de um final rpido. Ao chegarem ao limite entre a vida e a morte, eram reanimados e expostosnovamente a temperaturas baixas.

    As descries acima so apenas um exemplo de como alguns cientistas alemes se adaptram ao iderio nazista sob o governo de Adolf Hitler. E no deixam qualquerdvida de que, eticamente, a cincia produzida na Alemanha entre as dcadas de 1930 e1940 foi repugnante. Os experimentos causaram dor, humilhao e mortes terrveiss pessoas confinadas em campos de concentrao - fossem elas judias, ciganas, homossexuais ou qualquer tipo de inimigo do regime. Acontece que os responsveis poressas "pesquisas" podiam ser sdicos, mas no eram leigos. Pelo contrrio. Muitos foram formados nas escolas mais tradicionais do planeta - antes da chegada dosnazistas ao poder, a Alemanha era um dos lderes mundiais em inovao cientfica. Metds como s pesquisadores alemes podem ser, eles sistematizaram as experincias,coletaram dados, chegaram a concluses. E geraram informaes que, alm de inditas na , nunca mais foram reproduzidas em testes srios - afinal de contas,e ainda bem, no todo dia que aparece algum propondo jogar cido na pele de um ser h

    mano para entender como nosso corpo reage substncia. As pesquisas sobre hipotermia, por exemplo, alm de matar centenas de prisioneiros do campo de Dachau, produziram dados que existem at hoje - e que alguns cientistasgostariam de usar em pesquisas atuais. O mdico Robert Pozos, diretor do Laboratriode Hipotermia da Universidade de Minnesota, nos EUA, um deles. Ele estudacomo nosso corpo responde ao frio para descobrir a melhor maneira de reanimar pessoas que cheguem quase congeladas aos hospitais. Mas o trabalho de Pozos enfrentaum srio problema: muitas de suas pesquisas no podem ser concludas, pois h risco de

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    orte quando a temperatura dos voluntrios do estudo cai abaixo de 36 oC.A nica fonte conhecida de dados sobre seres humanos nessas condies so os experiments nazistas. tico utiliz-los com o intuito de salvar vidas? Pozos respondeuque sim. Em seguida, viu a New England Journal of Medicine, uma das mais respeitadas revistas mdicas do mundo, se recusar a publicar a pesquisa. E voc, o que faria se estivesse no lugar de Pozos? Para enfrentar essa delicada questo, necessrio encarar o extenso legado cientfico que o nazismo deixou.At h pouco tempo, esse universo era bastante desconhecido. Estudos recentes, porm,lanaram nova luz em direo ao que sabemos sobre a cincia no perodo. Afinal,houve experimentos de qualidade no nazismo? O que acontece com a cincia sob um regime to desumano? Cincia e nazismo Plancie de Ypres, fronteira entre Blgica e Frana, 17h do dia 22 de abril de 1915, Primeira Guerra Mundial. Entrincheirados, soldados do Exrcito francs observam,atnitos, um inimigo desconhecido se aproximar. Alguns compreendem logo que impossvel combat-lo e batem em retirada. Outros permanecem parados, sem saber o quefazer. No tm ideia de como lutar contra o oponente mais letal que j enfrentaram: uma espessa nuvem verde-amarelada, de 1,5 m de altura. Dez minutos antes de a arma mortal varrer o ar, uma tropa que parecia sada deum filme de fico cientfica havia tomado a dianteira do Exrcito alemo. O Pionierkomdo36 era um batalho formado por cientistas com uniforme militar e mscaras protetoras, liderados por nada menos que um ganhador do Prmio Nobel de Qumica, o alemoFritz Haber. Ao sinal de Haber, foram abertos 730 cilindros, com 100 quilos cada

    um, de gs cloro em forma lquida. Assim nasceu a nuvem que, carregada pelo vento,partiu em direo tropa inimiga, corroendo pulmes e cegando. Quando a bruma esverdeaa se dissipou, os nicos integrantes do Exrcito aliado que permaneceraminclumes em seus postos foram 50 canhes. O saldo de estreia do novo gnero de combate: 10 mil mortos e 5 mil feridos. A qualidade dos cientistas envolvidos no projeto cientfico-militar alemo d a dimenso da importncia e complexidade da parceria. Fritz Haber, por exemplo,foi responsvel por uma descoberta que no s permitiu Alemanha prolongar a Primeira uerra, mas hoje nos permite produzir alimento para 6 bilhes de pessoas:a tcnica de fixao da amnia a partir do nitrognio do ar serviu tanto criao de equanto ao desenvolvimento de fertilizantes baratos. Otto Hahn, outrolaureado com o Nobel que liderou um ataque com gs, foi um dos descobridores do processo de fisso nuclear, que usado em bombas atmicas, mas tambm em usinas

    de energia. "O Exrcito alemo se convenceu de que a cincia desenvolveria armas superiores, que compensariam as restries produo de armamento impostas peloTratado de Versalhes", diz o pesquisador do Instituto Max Planck, Helmut Maier."Aps a guerra, a elite cientfica levou o pas liderana nos ramos de balstica,qumica, aviao e construo de foguetes." Veterano da Primeira Guerra, Adolf Hitler cecia bem o poder dessa cincia militar - ele chegou a ser internado comcegueira temporria aps um ataque com gs nos campos de batalha. E sabia que, caso alcanasse o poder, faria da cincia um dos pilares da nova Alemanha. Mas o interesse do fhrer trazia um problema. Ele podia at admirar a cincia, masno entendia nada do assunto. "Hitler no era devidamente instrudo em cincia.Ele apenas seguia seu instinto, seu feeling", diz o historiador alemo Joachim Fest, um dos mais importantes bigrafos do lder nazista. Na cpula nazista, a situaono era melhor. Heinrich Himmler, segundo homem na hierarquia, mandava cientistas

    investigar a relao entre os canhotos e a homossexualidade ou pesquisar a genealogiados cavalos dos antigos reis nrdicos. "Himmler era a verdadeira encarnao da pseudocincia", diz Michael Kater, autor de Doctors Under Hitler ("Doutores de Hitler",sem traduo em portugus). Naturalmente, Hitler no via problema nessas ideias. Na verdade, ele se considerava um cientista de vanguarda - era um entusiasmado adepto da teoria da higieneracial, doutrina "cientfica" que prega a eliminao dos genes no arianos do povo alemEm seu livro Mein Kampf ("Minha Luta"), de 1925, ajudou a disseminar uma

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    metfora bastante til para o progresso da nova doutrina: "O povo alemo um s corpo,s a sua integridade est ameaada. Para manter a sade do povo, precisocurar o corpo infestado de parasitas". Os parasitas eram os judeus. O que h de cientfico nisso? Nada. Mas, s vsperas da ascenso de Hitler, j estava bem difcildiscernir o que era ou no cincia. "Desenvolveu-se uma relao simbitica entre ideoloe cincia. A cincia, nessa poca, comeou a funcionar como legitimaodas ideias racistas do nazismo", diz Helmut Maier. E era essa mistura inslita queos cientistas teriam de enfrentar, se quisessem permanecer na Alemanha aps 10de janeiro de 1933, dia em que Hitler tomou o poder. Hitler domina a cincia Em 6 de maio de 1933, um dos mais importantes cientistas da Alemanha bateu porta do escritrio de Hitler, em Berlim. Foi bem recebido pelo fhrer, que ouviucom ateno sua tentativa de abrandar a perseguio a pesquisadores judeus: "H diversoipos de judeus, alguns valiosos e outros inteis para a humanidade", argumentouo pesquisador. Hitler respondeu: "Se a cincia no pode passar sem judeus, teremos de nos haver sem a cincia!" E comeou a berrar, falando cada vez mais rpidoe tremendo de raiva. Com isso, o visitante se calou e despediu-se, desapontado.Naquele dia, Max Planck, pai da fsica quntica e presidente do Kaiser Wilhelm Institute(hoje Instituto Max Planck), no conseguiu o que queria: evitar a demisso do amigojudeu Fritz Haber, aquele mesmo que comandara a primeira tropa de gs da histria. Planck foi um dos cientistas que optaram por continuar na Alemanha nazista, mesmo no concordando com os ideais do novo regime. O fsico Max von Laue, que costumava

    sair de casa com um embrulho debaixo de cada brao para no ter de fazer a saudao nazsta, tomou a mesma deciso. Planck e Laue encorajavam colegas a no deixaro pas, dizendo que deveriam esperar por dias melhores. Nem todos no mundo da cincia, porm, compartilhavam da mesma opinio. "A conduta dos intelectuais alemescomo grupo no foi melhor que a de uma ral", afirmou Albert Einstein a respeito dareao de seus pares ao nazismo. Einstein, que era judeu, foi criticado por Lauequando decidiu abandonar a Alemanha rumo aos EUA, em 10 de maro de 1933 - um ms antes de uma lei expulsar todos os descendentes de judeus do funcionalismo pblico,fazendo cerca de 1 mil cientistas de elite perderem o emprego. Passariam-se mais30 dias at que universitrios alemes sassem s ruas para aplaudir as chamas queconsumiram mais de 10 mil livros em praas pblicas por toda a Alemanha. Se Einsteinainda estivesse no pas, seria apenas um desempregado observando suas obrassobre a Teoria da Relatividade desaparecerem nas fogueiras do Reich. Mais um pou

    co de tempo e talvez o prprio Einstein cumprisse a profecia do poeta alemo HeinrichHeine: "Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas". Se alguns cientistas foram culpados por silenciar, outros no hesitaram em aderir ao iderio racista. Um ramo em especial aceitou com bons olhos a limpeza dos"parasitas" judeus: a medicina. Em 1933, 44,8% dos mdicos alemes eram filiados aopartido nazista. Era a maior proporo de representao entre todas as profisses.Os advogados, que vinham em segundo lugar, no passavam de 25%. Alm de profundamente anti-semita, a classe mdica alem era, em geral, favorvel s polticas dahigiene racial. Quando a lei de esterilizao compulsria de doentes fsicos e mentais oi lanada, em 1934, os mdicos a implementaram imediatamente. Tampouco seopuseram quando a prtica foi estendida populao no ariana. Com isso, mais de 350 mpessoas foram esterilizadas fora no perodo de 1934 a 1945. Era a cincia

    ajudando a concretizar a nova sociedade sonhada por Hitler. Mas nem todos tiveram estmago para embarcar no projeto do fhrer. Max Planck, por exemplo, no suportouo clima no pas e deixou seu emprego em 1937. J no estava na Alemanha quando seu filho Erwin foi executado por envolver-se num plano para matar Hitler. Seu amigoFritz Haber teve um enfarto e morreu em 1934. Nunca soube que muitos de seus parentes seriam mortos pelo gs que ajudou a desenvolver. Na iminncia das batalhasda Segunda Guerra Mundial, em 1939, apenas os cientistas considerados "mais fortes" pelos nazistas permaneceram no pas. Se voc pretende continuar lendo esta reportagem,saiba que, a partir deste ponto, tambm precisar ser forte.

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    Laboratrios do inferno "Escutem, colegas, j que vocs vo matar toda essa gente, pelo menos arranquem oscrebros deles", disse, em 1939, o professor de medicina Julius Hallervordenaos encarregados da eutansia de doentes mentais, um programa que exterminava quemrecebesse dos mdicos o diagnstico de lebensunwertes leben, ou "vida indignade viver". Foi assim que Hallervorden formou uma coleo que, em 1944, contava com 697 crebros. Entre seus favoritos, estava o de uma menina cuja me fora envenenadaacidentalmente por gs enquanto estava grvida. August Hirt, mdico da Universidade deEstrasburgo (ento na Alemanha, hoje na Frana), no queria s crebros, mascabeas inteiras. E no poderiam ser entregues quaisquer cabeas, tinham de ser de judeus. Logo ele percebeu que, se conseguia cabeas sem problemas, por que nopedir corpos inteiros? Encomendou 115 prisioneiros a Auschwitz, que foram prontamente executados em junho de 1943 e enviados para Estrasburgo. Em agosto, chegououtro carregamento com cerca de 80 cadveres, todos usados para estudos sobre a superioridade anatmica do povo ariano. Mas mdicos como Hirt e Hallevorden aindano tinham as mesmas possibilidades que Sigmund Rascher, responsvel pelo campo de concentrao de Dachau: usar cobaias humanas vivas. "Sou, sem dvida, o nicoque conhece por completo a fisiologia humana, porque fao experincias em homens e noem ratos", costumava dizer com orgulho aos colegas. Rascher era admirado eprotegido por Himmler, entusiasta das pesquisas "cientficas" a ponto de assistiraos terrveis experimentos em cmaras de baixa presso, para os quais forneceuprisioneiros em maio de 1941. Das cerca de 200 cobaias que passaram pelas cmarasde presso at maio de 1942, 80 morreram durante os testes. Algumas tiveram o crebro

    dissecado enquanto ainda estavam vivas para que o mdico pudesse observar as bolhas de ar que se formavam nos vasos sanguneos. Em seguida, Rascher comeou as experinciassobre hipotermia. Era ele o mdico responsvel pelo experimento com os soldados russos do incio desta reportagem. Rascher foi um dos pioneiros entre os 350 mdicos que oficialmente se envolveram em experincias nos campos de concentrao. Se considerarmos o nmero de pacientesassassinados, Rascher no foi preo para o mais sanguinrio dos doutores de Hitler: Joseph Mengele, cujas experincias foram responsveis pelo extermnio de 400mil pessoas em Auschwitz. Mengele injetou tinta azul em olhos de crianas, uniu asveias de gmeos, jogou pessoas em caldeires de gua fervente, amputou membrosde prisioneiros, dissecou anes vivos e coletou milhares de rgos em seu laboratrio. epois da guerra, conseguiu escapar e viveu escondido no Brasil at sua morte,

    em 1979. Oficialmente, comprou sua fuga com anis de casamento e dentes de ouro que retirava dos cadveres. Segundo o cientista alemo Benno Mller-Hill, a histriano bem essa. "Muito embarao teria sido causado se ele tivesse revelado para onde mandou o material humano", diz o autor de Murderous Science ("Cincia Assassina",sem traduo em portugus), livro precursor da nova onda de estudos sobre a cincia nazsta. Se voc chegou at aqui, deve estar h algum tempo com uma questo incmoda:"O que se passava na cabea desses mdicos?" O psiquiatra Robert Lifton tem uma teoria a respeito: um processo psicolgico que chamou de doubling. "O doubling a dissociao do eu, que leva formao de uma espcie de segundo eu", diz. Professor rvard e autor de The Nazi Doctors ("Os Doutores Nazistas", sem traduoem portugus), Lifton percebeu as caractersticas do doubling em muitos dos "doutores" que entrevistou para seu livro. Na rua, eram ticos, carinhosos e respeitadores.

    Nos campos de concentrao, monstros. "Eles falavam do que fizeram sem envolvimentoemocional, como se estivessem narrando os atos de outra pessoa", diz. O horrornazista transformava a mente dos mdicos. Mas e as vtimas? Na tentativa de entendero trauma causado pelas experincias, a Super procurou em So Paulo a judia polonesaBluma Reicher, de 83 anos. Ao ouvir um pedido para descrever as cirurgias a sangue-frio pelas quais passou em Auschwitz h mais de 60 anos, a nica resposta queBluma deu foram lgrimas. A entrevista acabou a. Karl Hoellenrainer, um cigano, respondeu de outra maneira. Ao encontrar no tribunal de Nuremberg o homem que oobrigou a tomar gua salgada por 4 semanas e depois arrancou pedaos do seu fgado, sa

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    cou uma adaga e pulou o balco que separava testemunhas e rus. Queria matarseu algoz ali mesmo. No teve sucesso e foi sentenciado no mesmo dia, 27 de junhode 1947, a 3 meses de priso. A exposio de tantos atos desumanos cometidos deixa a impresso de que, em pleno sulo 20, o nazismo levou a cincia de volta idade das trevas. At bem recentemente,era exatamente essa a viso que a maioria dos historiadores tinha do perodo. Novosestudos, porm, esto revelando a realidade muito mais complexa que se escondiasob um manto de atrocidades e absurdos cientficos. Outra viso Naquela cidade, era preciso pacincia para conseguir acender um cigarro. O fumoestava proibido em todas as reas pblicas, incluindo escritrios e salas de espera.No trem, havia risco de multa para quem no prestasse ateno e puxasse um isqueiro novago de no-fumantes. At dentro do prprio carro era arriscado fumar. Seum guarda sentisse cheiro de fumaa em um automvel envolvido numa batida, o dono poderia ir direto para a cadeia. Apesar de uma certa semelhana com as metrpolesatuais, a cidade em questo a Berlim da dcada de 1940. E as medidas antitabagistas,s comparveis s existentes nos nossos dias, foram implementadas pelos nazistas,os nicos que tinham acesso ao conhecimento cientfico necessrio para desenvolv-las. "Os nazistas foram os primeiros a fazer estudos estatsticos rigorosos que provaram a relao entre o hbito de fumar e o cncer de pulmo", afirma Robert Proctor,historiador da cincia e professor da Universidade Stanford, nos EUA, e autor de The Nazi War on Cancer ("A Guerra Nazista contra o Cncer", sem traduo em portugus). uma ironia que a origem de uma das maiores descobertas mdicas do sculo 20 esteja relacionada a um efeito psicolgico da doutrina de higiene racial. A esse efeito

    Proctor deu o nome de paranoia homeoptica. "Os nazistas tinham pavor de agentes minsculos que poderiam corromper o corpo alemo. Eram obcecados por ar limpo, comidanatural e um estilo de vida saudvel." E foi justamente a obsesso que empurrou a cincia alem em direo aos mais avanados estudos anticncer. "O mesmo fanatismoque nos deu Mengele tambm nos deu a preciosa pesquisa antitabagista. A verdade que a poltica cientfica nazista foi muito mais complexa que a maioria das pessoasimagina." Proctor no exatamente uma unanimidade no mundo cientfico. Pelo contrrio.Pesquisadores com muitos anos de experincia contestam os resultados de seusestudos sobre a cincia nos tempos de Hitler. "Proctor afirma que os nazistas fizeram boa cincia, ainda que com propsitos malignos. Isso uma bobagem. Tenho estatstiasem meus livros que mostram que os nazistas no chegaram nem perto de derrotar o cnc

    er. Na poca em que as publiquei, Proctor ainda era um bebezinho recm-sadodas fraldas", diz o historiador Michael Kater. O professor de Stanford, porm, estlonge de ser um acadmico isolado por seus pares. Matrias favorveis a respeitode seu trabalho foram publicadas nas conceituadas revistas cientficas Nature, Science e New Scientist. Proctor acredita que a viso que se tem do nazismo ainda simplificadora e estereotipada. "A cincia nazista tem de ser estudada em toda a sua complexidade", afirma. Lanar um novo olhar sobre a cincia alem no perodonazista foi exatamente o objetivo do mais ambicioso projeto histrico j feito pelaSociedade Max Planck, que controla 80 dos mais importantes institutos de pesquisada Alemanha. O resultado do estudo, que consumiu mais de 6 anos de trabalho, foidivulgado no ano passado e chacoalhou tudo que sabamos a respeito da cincia nazista.

    A antiga tese de que os laboratrios eram controlados por um punhado de monstros impiedosos e desumanos, que no produziram nenhum conhecimento valioso para a humanidade,caiu por terra. A nova pesquisa revelou que muitos dos ento melhores cientistas da Alemanha viram o regime nazista no como uma ameaa, mas como uma oportunidadede adquirir status pessoal e financiamento para seus estudos. Para isso, eles deliberadamente procuraram fazer cincia sobre os temas que mais interessavam aos chefesnazistas e se engajaram em experimentos antiticos que seguiam rigorosamente as regras dos mtodos cientficos mais avanados da poca. O estudo da Sociedade Max

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    Planck provou que as fronteiras que separaram os cientistas comuns dos torturadores nos campos de concentrao no so to claras e ressuscitou um espinhoso dilemaque permanece em aberto na comunidade cientfica internacional: o que fazer com osresultados obtidos nas experincias?

    Dados da discrdia "Eu no queria ter de usar os dados nazistas. Mas no existem outras opes para a mnha pesquisa. Nem nunca existiro num mundo tico", diz o mdico John Hayward,da Universidade de Victoria, no Canad, que estuda os efeitos do frio no corpo humano. Apesar da defesa contundente de Hayward, a validade cientfica dos experimentosque ele usou criticada por alguns pesquisadores. "Os dados so pssimos. No havia liros de controle, mtodos estatsticos nem repetio de experimentos em condiessimilares. Eles no tm uso nenhum para a cincia", afirma Michael Kater, reconhecidamente uma das maiores autoridades mundiais no assunto. Robert Lifton, que entrevistouos doutores nazistas, tambm diz ter razes para duvidar da validade das experincias.Mesmo assim, defende sua utilizao pela cincia. "Os mdicos nazistas usavamcomo assistentes prisioneiros do campo, gente muito mais preocupada com a prpriasobrevivncia do que com a acuidade das pesquisas", diz. "Mas qualquer dado quesirva para poupar sofrimento humano deve ser usado." Mas afinal, que dados so esses? Robert Proctor d um exemplo: "Todos os coletessalva-vidas hoje em dia so desenhados para aquecer o pescoo justamente porqueos nazistas provaram que isso aumenta as chances de sobrevivncia dos nufragos em gua gelada".

    Outro caso polmico envolveu a Agncia de Proteo Ambiental dos EUA (EPA). Em 1989,seus especialistas foram chamados a definir regras para a utilizao do fosgnio,um gs txico usado na fabricao de plsticos e pesticidas. O problema que no havias detalhados sobre o efeito do fosgnio em humanos - os nicos dadosconhecidos sobre o assunto foram produzidos em experincias nazistas durante a Segunda Guerra. Entre utilizar essas pesquisas e arriscar a vida da populao americanacom uma legislao perigosa, a EPA no hesitou em escolher a segunda opo. Mas h razo para descartar sumariamente os dados? Segundo um editorial do jornalcientfico Nature, no deveramos decidir precipitadamente. "O estudo da SociedadeMax Planck descobriu que grande parte das pesquisas mais criminosas conduzidas pelos nazistas no era pseudocincia - na verdade, elas seguiam mtodos cientficostradicionais e estavam na vanguarda dos estudos produzidos no perodo." Dentro des

    sa reviso histrica e metodolgica das pesquisas, no esto excludas nem as domdico mais sanguinrio que j passou pela face da Terra. "Agora ficou claro o que osrelatos macabros que demonizaram Mengele tendiam a encobrir: seus experimentosno eram baseados em puro sadismo, e sim em interesses cientficos que, levando-se em considerao os conhecimentos da poca, no eram totalmente implausveis",afirma a alem Susanne Heim, lder do estudo da Sociedade Max Planck. Se ainda no h uanimidade em torno da criteriosa pesquisa nazista sobre o cncer, compreensvelque o uso dos dados obtidos de maneira antitica continue sendo polmico. Mas negara existncia de progressos cientfico no perodo nazista no parece ser uma atitudeque v contribuir para uma melhor compreenso da histria. Olhar para o lado positivo,se que ele existe, do perodo mais desumano pelo qual a cincia j passou difcil para ns, que vivemos 60 anos depois de todas essas pesquisas macabras. Quedizer, ento, para pessoas que passaram a vida debruadas em estudos exaustivos

    sobre as atrocidades ou convivendo diariamente com os traumas que elas deixaram."No h cincia no inferno de Dante", diz o historiador Michael Kater. Mas talvez,por mais duro que seja, tenhamos de admitir que existiu cincia mesmo no inferno.Se isso acontecer, ser preciso refletir sobre uma nova e inquietadora questo: justo usarmos o sofrimento de Bluma Reicher e dos milhares que passaram pelas mosdos doutores de Hitler para tentar evitar que mais pessoas sofram no mundo dehoje? Para essa pergunta, infelizmente no existe frmula, equao, experimento ou qualuer outro meio cientfico de obter uma resposta exata. "Pacientes bebiamdos baldes de despejo dos ordenanas ou, quando ningum via, drenavam gua dos baldesde proteo antiarea no saguo. Alguns chegavam a lamber a gua usada para

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    lavar o cho. Eu pesava os homens que faziam parte do teste todo dia e observei que a perda de peso diria era de at um quilo." Enfermeiro de Dachau, sobre experimentosde ingesto de gua salgada. "Vi um prisioneiro suportar o vcuo at que os pulmes rebaram. Certas experincias provocaram tal presso na cabea dos pacientesque eles enlouqueceram, arrancando os cabelos no esforo para aliviar o tormento.Dilaceravam as faces com as unhas, Batiam nas paredes, uivavam no intuito de aliviara presso nos tmpanos. Esses casos de vcuo absoluto terminavam geralmente com a morte do paciente." Anton Pacholegg, prisioneiro de Dachau, assistente de experimentosna cmara de baixa presso. "Trouxeram de volta do laboratrio dois gmeos ciganos, queMengele havia costurado um ao outro. Ele tinha tentado criar irmos siamesesunindo os vasos sanguneos e rgos deles. Os gmeos gritaram de dor dia e noite at qugangrena comeou. Depois de 3 dias, morreram." Eva Mozes-Kor, vtima deexperincias de Mengele. "Aps cerca de 10 horas comeavam a aparecer queimaduras no corpo todo. Havia feridas onde quer que o vapor desse gs houvesse alcanado.Alguns dos homens ficaram cegos. As dores eram to fortes que era quase impossvel permanecer perto de tais pacientes." Testemunha de experimento com inalao eexposio ao gs mostarda no campo de Natzweiler. A cincia sob Hitler: QUMICA No existia rival altura da qumica alem antes das guerras. O pas inventaspirina e a novocana (anestesia usada por dentistas) e desenvolveufertilizantes, corantes e microscpios muito mais baratos e eficientes. O setor fo

    i um dos que mais se envolveram com o nazismo - a ponto de o maior conglomeradofarmacutico do mundo na poca (e que depois da guerra se dividiria nas empresas Bayer, Hoechst e Basf) instalar uma fbrica dentro do campo de concentrao de Auschwitz. MATEMTICA Sob o regime de Hitler, o raciocnio matemtico abstrato foi associado aos judeus e substitudo pela "verdade emprica concreta" e a "intuio nrdica".Perguntado certa vez sobre quanto a matemtica havia sofrido, o alemo David Hilbert, um dos matemticos mais importantes do sculo 20, respondeu: "Sofreu? No sofreu,no. Ela simplesmente deixou de existir". BIOLOGIA Entre 1933 e 1938, o financiamento para pesquisas aumentou em 10 vezes. Bilogos trabalhavam com relativa tranquilidade - apenas 14% deles foram perseguidos.Mas a profunda ligao dos nazistas com a gentica faz o ramo ser visto com reservas at hoje na Alemanha. "Uma perseguio completamente irracional gentica ainda

    existe", afirma o cientista Benno Muller-Hill. FSICA A Alemanha foi o bero das ideias mais revolucionrias da fsica terica: a mca quntica e a relatividade. Mesmo assim, esse foi o ramo da cinciamais prejudicado pela ascenso do nazismo: 25% do total de fsicos deixou o pas - entre eles 6 vencedores de prmios Nobel. Concentrao de cobaias: as experincias que aconteciam em cada um dos campos: 1. Auschwitz-Birkenau (abril de 1940 a janeiro de 1945) Nmero de mortos - 1,1milho a 1,5 milho. Experincias - Pesquisas com gmeos e anes; infeco combactrias e vrus; eletrochoque; esterilizao; remoo de partes de rgos; ingesto driao de feridas para testar novos medicamentos; operaes e amputaesdesnecessrias. 2. Buchenwald (julho de 1937 a abril de 1945) Nmero de mortos - 56 mil. Experincias - Operaes e amputaes desnecessrias; contaminao com febre amarela,

    clera e tuberculose; ingesto de comida envenenada; queimaduras com bombas incendirias. 3. Ravensbrck (maio de 1939 a abril de 1945) Nmero de mortos - Mnimo de 90 mil.Experincias - Pesquisas fisiolgicas, com remoo e transplante de nervos,msculos e ossos; esterilizao; fuzilamento com balas envenenadas. 4. Dachau (maro de 1933 a abril de 1945) Nmero de mortos - Mnimo de 30 mil. Experincias - Testes de hipotermia com exposio ao frio; cmeras de baixa presso;infeco com vrus da malria; privao de lquidos com ingesto de gua salgada. 5. Sachsenhausen (julho de 1936 a abril de 1945) Nmero de mortos - 100 mil. Experincias - Inalao e ingesto de gs mostarda; infeco forada pelo vrus da

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    hepatite; fuzilamento com munio envenenada. 6. Natzweiller-Struthof (maio de 1941 a setembro de 1944) Nmero de mortos - 25mil. Experincias - Utilizao de prisioneiros como "viveiros" de bactrias evrus como os do tifo, varola, febre amarela, clera e difteria.