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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ROCK BRASIL: DA JUNVENTUDE PARA A JUVENTUDE FÁBIO DANTAS AMARAL LISBÔA DA SILVA CURITIBA 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ROCK BRASIL: DA JUNVENTUDE PARA A JUVENTUDE

FÁBIO DANTAS AMARAL LISBÔA DA SILVA

CURITIBA

2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ROCK BRASIL: DA JUVENTUDE PARA A JUVENTUDE

FÁBIO DANTAS AMARAL LISBÔA DA SILVA

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Universidade Federal do Paraná, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Licenciatura em História.

Orientador: Clóvis Mendes Gruner

CURITIBA

2015

Dedicado aos sons que ecoaram em minha casa,

desde muito cedo, vindos da agulha e do vinil.

Por causa deles a música tornou-se o meu principal fundamento,

atravessando as barreiras da idade, do tempo e do espaço.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao orientador, professor e amigo Clóvis,

por oportunizar o trabalho.

Agradeço a cada amigo que esteve presente

ao longo desta jornada acadêmico-musical.

RESUMO

A década de 80 abrigou no Brasil o surgimento de um coletivo de bandas de rock

embalado pelo ceticismo da juventude para com o contexto da abertura política.

Canções com tendências informais, acordes simplificados e ironias afiadas formularam

o que se convencionou chamar de Rock-Brasil. Ao analisar a natureza desse

movimento, este trabalho busca enaltecer o conteúdo artístico das letras compostas por

tais bandas e reconhecer a relevância da linguagem jovem visando a crítica social e

política da época. Para tal fim, apresenta-se também o desenvolvimento do mercado

cultural jovem no contexto brasileiro, assim como a imprensa crítica musical do rock

brasileiro.

Palavras-chave: Anos 80, Rock-Brasil, Juventude.

ABSTRACT

The 80’s housed in Brazil the emergence of a rock bands collective motivated by the

skepticism of youth towards the context of political openness. Songs with informal

trends, simplified chords and sharp ironies formulated the so-called Rock-Brazil. In

analyzing the nature of this movement, this work seeks praise the artistic content of the

lyrics composed by such bands and recognize the importance of young language aimed

at social and political criticism of the time. To this end, it presents also the development

of youth cultural market in Brazil as well as the musical critical press of Brazilian rock.

Key-words: 80’s, Rock-Brazil, Youth.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 2

1. IDENTIDADE E JUVENTUDE .................................................................................. 5

1.1. JUVENTUDE COMO FENÔMENO SOCIAL ........................................................ 5

1.2. CONTRACULTURA E JUVENTUDE .................................................................... 6

1.3. A JUVENTUDE BRASILEIRA OITENTISTA ....................................................... 8

2. ABORDAGEM DE MÍDIA: DEMANDA JOVEM .................................................. 10

3. ANÁLISE DE LETRAS: METALINGUAGEM GERACIONAL ............................ 15

3.1. EXAGERADO – CAZUZA (1985) ........................................................................ 15

3.2. QUÍMICA – LEGIÃO URBANA ........................................................................... 16

3.3. RÁDIO PIRATA RPM (1985) ................................................................................ 18

3.4. EU SOU FREE - SEMPRE LIVRE ........................................................................ 19

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 22

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 23

2

INTRODUÇÃO

A melhor maneira de encaixar a espontaneidade de qualquer canção em um

artigo se apresenta quando se admite o elemento principal de sua criação também entre

as linhas do rigor acadêmico da escrita. Porém, para além de encaixar a musicalidade do

Rock-Brasil 80 neste trabalho, busca-se compreendê-lo de todo. Ou seja, não apenas

pelo som ou pela letra, mas também pela conjuntura que o fez surgir.

Vamos seguir a estrela e o brinquedo de Star1, acompanhando o

desenvolvimento artístico de uma geração. Toda geração, usualmente, deixa sua marca

no tempo em que vive se retro-alimentando e produzindo, à sua própria maneira,

registros e impressões sobre tudo aquilo que o faz ser o que é.

Sem rumo determinado, ou fixação imutável de roteiro, há de se manter aqui, os

olhos fixos no retrato2 que servirão para esmiuçar as diversas nuances que consolidaram

o Rock nacional na década como protagonista de em termos de sucesso, apreciação e

vendagem, simultaneamente.

Ocorreu à custa do Rock Brasil, o ressurgimento de um estilo de música capaz

de alcançar a juventude, por isso, antes de constatá-lo como instrumento de politização

social ou ênfase de outros ideais, é preciso reconhecer que sua relevância se deu, porque

assim como ele próprio fizera redimensionar o mercado fonográfico brasileiro, o Rock

nacional também chacoalhou as estruturas mais “formais” da dita MPB, filha da Bossa

Nova.

O Rock historicamente foi fruto da rebeldia de crianças que amadureciam

circundadas de uma incontrolável ânsia de expressão, fosse nos anos 50 com Bill Haley,

nos 60, com Elvis, ou nos 70 com Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix e o

chamado psycho-rock, que reverberou descendentes até o fim da década.

No Brasil dos anos 80, os jovens sentiam o gosto da liberdade em diversos

sentidos, visto que o país caminhava gradativamente em direção à redemocratização

política (1985). Portanto, via-se ali postada e nova, uma juventude cujo ressentimento

não era com a repressão propriamente, nem com as cicatrizes dela. A relação das

músicas do Rock-80 com a política e a sociedade era original, essencialmente porque o

panorama também era fresco e inédito.

1 FREJAT, Roberto, CAZUZA, Bate Balanço, Barão Vermelho II, Som Livre, 1983. 2 TOLLER, Paula. Fixação, Seu Espião, Warner Music, 1984.

3

Foi sobretudo o Rock-Brasil o responsável por redimensionar o impacto que a

música jovem teve no país, demonstrando sua força e potência tanto sonoras, quanto

comerciais, sendo o canal por onde ressoou uma nova musicalidade representativa da

identidade e comportamento da juventude oitentista a nível político-social.

Sem dúvida alguma, o motor da pesquisa será a música. Será explicitada, por

meio de letras das canções, a formatação deste tão citado estilo característico. O Rock

Brasil 80 é o protagonista do retrato musical que se pretende delinear e enaltecer aqui,

num exercício culturalmente esclarecedor que irá emergir da sonoridade produzida por

uma geração, capaz de evidenciar seus traços e suas noções de ironia crítica do

cotidiano, buscando captar o olhar único que apenas um jovem com uma guitarra nas

mãos pode disseminar.

O engajamento visto nas canções do Rock Brasil é igualmente incisivo frente a

outros momentos musicais ocorridos no Brasil, como a Bossa Nova3 e a Tropicália4,

porém acrescentou-se ao Rock Brasil uma dose de humor exacerbado, elemento que

diferenciou aquela linguagem das demais tomadas por formais e politizadas. Temas

aparentemente cotidianos e banais foram tão bem aceitos e assimilados, tornando-se

enormes sucessos nas rádios.

Perspectivas podiam, portanto, se voltar a traços mais cotidianos, aparentemente

mais banais do que o engajamento demonstrado em movimentos musicais anteriores.

Aliás, o Rock-Brasil, mostrou-se tão denso em seu conteúdo e linguagem que conseguiu

cavar lugar nos anais historiográficos da musica brasileira, mesmo diferindo

completamente de caminhos mais formais, intencionalmente politizados.

Percebe-se que nos anos 80, o poder de crítica era colocado de outra maneira, os

posicionamentos irônicos sobre panoramas sociais misturavam-se à contestação do que

nos anos seguintes, até o fim da década, ainda pareceria ser nada além do que a

caricatura da democracia. Tudo isso, feito com extrema propriedade e singularidade.

A constante mudança introduz um novo estilo. Tudo novo. Um novo amanhecer

como aquele que Cazuza gritou a plenos pulmões no palco principal do Rock in Rio 85,

3 Gênero musical que recebeu influência do samba e do jazz americano. A bossa nova surgiu no Brasil no final da década de 50, na intimidade dos apartamentos e boates da Zona Sul do Rio de Janeiro, reduto da classe média - estudantes e jovens em geral. Inicialmente o termo era apenas usado como um novo modo de cantar e tocar naquela época. 4Tropicália ou Tropicalismo foi um movimento cultural brasileiro que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira (como o pop-rock e o concretismo); mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960.

4

amanhecer anunciado pela recente eleição de Tancredo Neves, que naquele contexto

parecia marcar uma nova etapa na história do Brasil5:

Todo dia a insônia me convence que o céu Faz tudo ficar infinito

E que a solidão é pretensão de quem fica Escondido fazendo fita

Todo dia tem a hora da sessão coruja Só entende quem namora

Agora "vão bora" Estamos meu bem por um triz

Pro dia nascer feliz O mundo acordar e a gente dormir, dormir

Pro dia nascer feliz Essa é a vida que eu quis

O mundo inteiro acordar e a gente dormir Todo dia é dia e tudo em nome do amor

Essa é a vida que eu quis Procurando vaga uma hora aqui, a outra ali

No vai-e-vem dos teus quadris Nadando contra a corrente só pra exercitar

Todo o músculo que sente Me dê de presente o teu bis

Pro dia nascer feliz O mundo inteiro acordar e a gente dormir, dormir

Pro dia nascer feliz O mundo inteiro acordar e a gente dormir Todo dia é dia e tudo em nome do amor

Essa é a vida que eu quis Procurando vaga uma hora aqui, a outra ali

No vai-e-vem dos teus quadris Nadando contra a corrente só pra exercitar

Todo o músculo que sente Me dê de presente o teu bis

Pro dia nascer feliz O mundo inteiro acordar e a gente dormir, dormir

Pro dia nascer feliz O mundo inteiro acordar e a gente dormir6

5 CARNEIRO, Luiz Felipe. Rock in Rio: A História do Maior Festival de Todos os Tempos. Rio de Janeiro, Editora Globo, 2011. p. 109-110. 6 FREJAT, Roberto; CAZUZA. Pro dia nascer feliz. Barão Vermelho 2, Som Livre, 1983.

5

1. IDENTIDADE E JUVENTUDE

Entre as diversas definições de juventude, há poucas que destacam o seu caráter

social. O que predomina na esfera das representações cotidianas, dos meios de

comunicação e das ciências naturais é a concepção biologicista ou psicologista. No

entanto, já há muito tempo historiadores, antropólogos, sociólogos, entre outros

cientistas sociais, vêm apresentando um amplo material informativo e diversas reflexões

e análises que desmentem as concepções biologicistas e psicologistas. Apesar de não

haver unanimidade neste grupo sobre a questão da juventude, pelo menos houve um

avanço comum na superação dos obstáculos ideológicos e na compreensão de que a

juventude é um fenômeno social.

1.1. JUVENTUDE COMO FENÔMENO SOCIAL

Dentro de uma perspectiva que compreende a juventude como um fenômeno

social é preciso encontrar uma definição que permita avançar no processo de análise da

identidade da juventude. A definição que servirá de base para a tal análise é a que

considera a juventude um “grupo etário composto pelos ‘jovens’, isto é, indivíduos

inseridos no processo de re-socialização7.

Identificação é uma urgência sentida. É o primeiro traço a ser desenhado para

delinear a humanidade de um indivíduo e, a partir daí, conferir a este alguém, a exata

noção do que é existir entre outros iguais sem ter que, necessariamente, anular desejos

ou pretensões com o exclusivo propósito de ocupar um espaço no grande coletivo de

gente que é a sociedade.

Na juventude, manifestam-se todos os anseios de uma vida futura, como numa

bomba fenomenal de proporções gigantescas. Na constituição do epicentro explosivo

desta bomba, forja-se, num embaraço de utopias, convicções e tendências, a identidade

jovem, do jovem e para o jovem.

No contexto brasileiro dos anos 80, a reformulação pulsante de governo e a

constatação tentadora de padrões de cerceamento cultural decrescentes - em comparação

às duas décadas anteriores – fomentaram o panorama ideal para o surgimento de uma

7 VIANA, Nildo. Juventude e Identidade, Revista Estudos, n° ½, Goiânia, 2009. p. 146.

6

linguagem musical capaz de reverberar nas almas e mentes de uma juventude sedenta

por voz própria.

O esforço de constituição de identidade é um fenômeno singular, mas que logo

necessita de empatia com o outro para que possa, efetivamente, se firmar como fator

relevante dentro do processo macro-perspectivo . O movimento classificado por Marcos

Napolitano como massificação, espalha-se, transmutando um elemento cultural em

protagonista da identidade de toda uma geração, por uma quantidade quase incontável

de empatias pontuais que gera com o cotidiano não só individual da juventude, mas

especialmente do coletivo comportamental e sócio-político de um tempo8.

Esta concepção do adulto-padrão toma o jovem como um ser incompleto, um ser

transitório que deve chegar ao modelo ideal, sem questionar se tal modelo corresponde à

realidade, se é adequado, se é socialmente constituído e, por conseguinte, não sendo

universal e nem meta desejável. Assim, a concepção evolucionista-cumulativa do

adulto-padrão reproduz o processo das relações sociais tomando o indivíduo adulto e

integrado na sociedade moderna.

A juventude enquanto grupo, pois, carrega a incumbência de se reinventar para

promover as mudanças mais dramáticas em cena. A cena varia, Há uma lógica de

interação entre o jovem e o rock, um não existiria pleno, não fosse o outro. A música

tem essa propriedade.

1.2. CONTRACULTURA E JUVENTUDE

No contexto da segunda metade do século XX, surge a nível internacional um

movimento de caracterização da juventude, denominado “contracultura”. A

contracultura nasce essencialmente da contestação. Na procura por identidade, as

movimentações contraculturais miram seus questionamentos nas autoridades e

regulações implícitas que tolhem, em nome da ordem e da tradição, distorções

comportamentais que ameaçam a excitabilidade e criam a manutenção perene de seus

valores. Segundo Martin Cezar Feijó, contracultura foi um movimento cultural

específico, surgindo a partir de um grupo pequeno de jovens americanos na década de

1960:

8 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: Utopia e Massificação (1950-1980). Contexto, São Paulo: 2001.

7

Contracultura foi o nome que recebeu a rebelião de jovens na segunda metade da década de 60 do século XX, principalmente jovens universitários norte-americanos de classe média que se recusavam a cumprir serviço militar em função da Guerra do Vietnã. Buscando uma vida alternativa, também criavam uma nova música e negavam uma sociedade de alta tecnologia e sociedade de consumo correspondente.9

Desta forma, contracultura seria um evento histórico e mais especificamente

“uma criação norte-americana”, enquanto proposta cultural de alternativa à Guerra Fria.

Trata-se não de uma ausência de cultura, mas uma confrontação a uma cultura

específica em busca de uma alternativa cultural dentro da mesma, ou seja, a

contracultura faz parte da cultura, mesmo a negando. Este movimento foi “um ato de

rebeldia contra as normas vigentes em todos os níveis: intelectuais, morais e

estéticos”10. Ao mesmo tempo, porém, tal rebeldia surgiu a partir de elementos internos

à própria cultura.

A contra cultura pode ser definida como um ideário altercador que questiona

valores centrais e vigentes e instituídos na cultura ocidental. Por tal motivo essas

pessoas costumavam se excluir socialmente. Na década de 1950 surge nos Estados

Unidos um dos primeiros movimentos de contracultura: os Beats. Os beats – que deram

origem aos beatnicks11 – eram jovens intelectuais que contestavam o consumismo e o

otimismo do pós-guerra americano, o anticomunismo e a falta de pensamento crítico.

Na década de 60 o mundo conheceu o principal e mais influente movimento de

contracultura já existente, o movimento Hippie12

.

Os Hippies se opunham radicalmente aos valores culturais considerados

importantes na sociedade: o trabalho, o patriotismo, o nacionalismo, a ascensão social e

até os padrões estéticos, rejeitando as ideias de progresso e segurança econômica pós-

guerra e suas conseqüentes ideias. As principais características deste movimento são: a

valorização da natureza, a vida comunitária, a luta pela paz, a busca de uma alimentação

natural, o respeito às minorias, o anti-consumismo, as criticas aos meios de

9 FEIJÓ, Martin Cezar. “Cultura e Contracultura: relações entre conformismo e utopia”, Revista FACOM, nº 21, 1º Semestre de 2009. p. 4. 10 Idem, p. 5. 11 SOSSMEIER, Luana Caroline; PARIZOTTO, Larissa Cristina. “Anos 60, o avanço da contracultura e a influência do rock no movimento hippie”, I Congresso Internacional de Estudos do Rock, Cascavel – Paraná, 25, 26 e 27 de Setembro de 2013. 12 Da mesma forma que há quem aponte o movimento hippie como o maior ou mais influente movimento de contracultura, que aqui defendemos junto a , também há quem proponha o nome de Bob Dylan enquanto maior representação deste movimento no campo da música (SILVA, 2010).

8

comunicação, a apropriação de práticas religiosas orientais, a experiência com drogas

psicodélicas e a liberdade nos relacionamentos amorosos.

A contracultura foi um movimento “contra a cultura dominante, a favor de uma

nova cultura, em todos os níveis, uma cultura alternativa”13. A contracultura se

“contrapõe à corrente através de uma gama de dimensões”14 mas se torna uma “cultura

minoritária marcada por um conjunto de valores, normas e padrões de comportamento

que contradizem aos mesmos da sociedade dominante”15.

Além de tirar elementos de dentro da cultura dominante, a própria alternativa

cultural da contracultura não se dissociava completamente da cultura dominante, se

tornando uma espécie de subcultura, uma vez que com o tempo o movimento hippie e

demais elementos contraculturais eram “absorvidos” a uma indústria da moda e

sociedade de consumo16, por estes criticada. O que era criticado passava a ser repetido

em formas e de modos diferentes: recusava-se a cultura dominante da moda e do

militarismo, mas se criava no lugar dos trajes militares um novo uniforme, uma nova

moda – a moda dos cabelos cumpridos e roupas coloridas.

1.3. A JUVENTUDE BRASILEIRA OITENTISTA

Algo semelhante pôde ser percebido na cultura jovem brasileira rockeira dos

anos 80, tendo como um grande símbolo deste processo o famoso Circo Voador:

No verão de 82, uma novidade na praia do Arpoador: um circo. Uma idéia maluca de Perfeito Fortuna, ex-Asdrúbal, com Maurício Calvão e o cenógrafo Mauricio Sette. Um Circo de verdade, em frente ao mar, armado na areia da praia dos roqueiros e surfistas, um circo com bichos muito loucos e sem trapezistas, um circo de teatro e música – e naturalmente muitos malabarismos e acrobacias. (...) seria só durante o verão e seria uma alegria para a cidade, prometia Perfeito ao prefeito. Não só cumpriu como foi além: o Circo Voador foi a grande atração do verão carioca, com cursos de teatro e aulas de dança e acrobacia de dia e peças de teatro e shows de música à noite.17

13 Idem, p. 5. 14 DESMOND, John; McDONAGH, Pierre; O'DONOHOE, Stephanie. “Conter-Culture and Consumer Society”, Consumption, Markets & Culture, Volume 4, Number 3, 2000. P. 245. 15 BATZELL apud DESMOND, John; McDONAGH, Pierre; O'DONOHOE, Stephanie. “Conter-Culture and Consumer Society”, Consumption, Markets & Culture, Volume 4, Number 3, 2000. p. 245. 16 A pesquisa de Desmond, McDonagh e O'Donohoe (2000) trabalha justamente no estabelecimento de links entre a contracultura e o consumismo, relação que segundo os autores é muito forte, apesar da falta de estudos sobre o assunto. 17 MOTTA, Nelson. Noite Tropicais: solos, improvisos e memórias tropicais. Rio de Janeiro: Editora Objetivo, 2000. p. 342.

9

Um grande Circo firmado na areia da praia, se analisado sob um ponto de vista

metafórico, potencialmente representa o espaço no qual jovens se sentiam livres para

colocar em prática suas expressões contraculturais. O Circo Voador, portanto, pode ser

considerado o grande e principal palco de acolhimento e expressão para a juventude

brasileira dos anos 80, abrigando não apenas os cariocas, mas a grande maioria de

bandas e demais artistas que viriam depois a se firmar como partícipes do Rock Brasil.

10

2. ABORDAGEM DE MÍDIA: DEMANDA JOVEM

Em um momento prolífico no qual a música se reinventa e acaba atingindo os

jovens com força, surge uma demanda que não encontraria paralelo e que desvelaria

uma tendência que prossegue até os dias de hoje: a demanda jovem. Se antes havia um

gap entre a mídia voltada às crianças e aos adultos – afinal, num país carente de

recursos básicos, os jovens freqüentemente tinham de ‘encurtar’ sua juventude e

assumir responsabilidades ainda cedo, o que gerava um salto da infância para uma vida

adulta precoce – agora os jovens consumiam, divulgavam, trajavam e estabeleciam

tendências específicas para um novo segmento de mercado.

No epicentro da efervescência do Rock Brasil, era esperado que, naturalmente

surgisse um veículo midiático voltado para ele. Tal veículo foi a Revista Bizz18, fundada

em 1985, representante da imprensa, que veio contemplar o movimento, ao

desempenhar o preenchimento de um espaço vazio por se dispor a produzir em papel a

repercussão de tudo que ocorria e era relacionado às bandas e à musicalidade em

extratos musicais, sociais e comportamentais, configurando-se, pois, como um

interlocutor para aquela geração.

Aproveitando o momento e enxergando uma mina de ouro nesse novo panorama

que se abria, a indústria – especialmente a fonográfica – investiu nesse segmento. É um

momento musicalmente rico: além da afluência de sucessos internacionais que voltam a

tocar nas rádios – em um movimento também oriundo da abertura econômica após anos

de controle estrito da economia – a indústria fonográfica nacional se renova para

atender às demandas de um novo tipo de ouvinte e passa a investir no rock nacional na

tentativa de se livrar da crise econômica pela qual passava o país – e a própria indústria.

Se nos anos 60 e 70 as músicas de militância e crítica social tornaram-se o topos entre a

juventude militante esnobe que se considerava esclarecida, com uma politização intensa

da cultura, os anos 80 viram a juventude se afastar desses comprometimentos

ideológicos. Segundo Groppo,

O início dos anos 1980, no que se refere à juventude de classe média e à indústria fonográfica, apresentou duas importantes mudanças. Os jovens e adolescentes estavam cada vez mais distantes dos discursos nacional-populistas da esquerda e direita que, no terreno musical, nos

18 GUERRA, Renan Machado; FINARDI, Tamara; RIBEIRO, Mara Regina Fernandes. “Na batida do som: Bizz e o Jornalismo de revista”, VIII Encontro Nacional de História da Mídia, Unicentro, Guarapuava, 28 a 30 de abril de 2011.

11

anos 1960 e 70, cultivavam a MPB esclarecida e rejeitavam o pop-rock considerado alienado. A juventude urbana de classe média não era mais aquela dos movimentos estudantis, das novas esquerdas, dos festivais, das canções de protesto e da luta contra a ditadura. Tratava-se de jovens mais desenraizados de motivos, valores e obrigações nacionalistas, populistas e da politização da cultura. (ORTIZ, 1994). Ao mesmo tempo, a indústria fonográfica brasileira enfrentou, com um pouco de atraso em relação à internacional, a crise de mercado - as baixas significativas de vendagem de produtos fonográficos. Crise agravada pela própria depressão econômica geral que a sociedade brasileira vinha enfrentando no fim do último governo militar e no início da “Nova República”. O mercado de produtos fonográficos que até pouco tempo antes era um dos melhores negócios no Brasil, entrou nos anos 1980 em meio a uma incógnita. A solução acabou sendo o rock nacional, que nada mais fez do que atingir e mobilizar aquela juventude e adolescência desenraizada da cultura nacionalista e das preocupações populistas características da juventude de classe média das décadas anteriores.19

Sendo assim, estava preparado o palco para o surgimento de diversas bandas que

sorviam influências de seu próprio momento e das inovadoras cenas musicais que

apareciam. Nesse sentido é importante destacar o papel da cultura punk que, surgida

uma década antes nos EUA e na Inglaterra, estabelecia nos anos 80 uma cena

underground no Brasil que, a despeito de não ter espaço nas gravadoras, iria influenciar

pesadamente o som do rock brasileiro à época. Segundo Bahiana,

Essas bandas (de punk) não tinham espaço nas gravadoras, nos canais de televisão, ou nas danceterias, que então proliferavam, mas que apresentavam apenas as bandas já consagradas. Por isso, começaram a buscar locais menores, menos equipamentos (...) na maior parte das vezes porões, bares e boates com frequência mais marginal e montaram um circuito referido como Underground, denominação que servia também para designar o grupo.20

Grande parte desse espírito do punk nacional acabou influenciando e permeando o

surgimento do rock brasileiro dos anos 80, dando origem ao chamado B-Rock. Esse é

um termo criado por Arthur Dapieve, jornalista e crítico musical, para designar o

fortalecimento do rock nacional na década de 80 e o despertar de uma nova linguagem,

um novo estilo, permeado de novas influências e que, além de exercer papel decisivo no

estabelecimento de uma cultura jovem nacional, gerou intensa mobilização de parte da

juventude e ajudou a firmar de maneira mais efetiva a produção brasileira de rock. Com 19 GROPPO, Luís Antônio. Gênese do rock dos anos 80 no Brasil: ensaios, fontes e o mercado juvenil. Artigo científico. Música Popular em Revista, Campinas, ano 1, v. 2, p. 172-96, jan-jun 2013. P. 174. 20 BAHIANA apud BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 80. Rio de Janeiro, Record, 2004, p.128.

12

um ritmo atraente para a juventude e com letras que traduziam os momentos difíceis

pelos quais passava o país naquele momento, o apelo e o sucesso foram imediatos, a

despeito das críticas dos ‘engajados’:

A geração de 1980, que cresceu durante os anos de ditadura militar, foi educada em um momento de desarticulação política. A escola transformava-se no lugar de aprendizagem, no qual o Estado pretendia fixar sua ideologia e organizar os jovens para suprir suas próprias necessidades. O cantor Léo Jaime caminha neste mesmo sentido ao reconhecer essa nova forma de comportamento em relação ao processo político do país. Segundo ele, a esquerda os odiava, quase tanto quanto a direita. Eram os filhotes da ditadura, os burgueses sem religião, a geração coca-cola. A censura os proibia e a esquerda os achincalhava nos jornais: “E mesmo assim tudo o que a gente fazia resultava em um sucesso inexplicável e espetacular. Depois acho que foram entendendo que não éramos nem terroristas e nem defensores do imperialismo ianque. Éramos uma legião.21

Esse rock, que rejeitava politizações e tendia às visões anárquicas no sentido mais

simples do termo, mandava às favas a linguagem cifrada das músicas de protesto e a

complexa pretensão das ‘poesias’ politizadas das décadas anteriores, assumindo uma

linguagem jovem, popular e despudorada, em conjunto com um ritmo dançante e

frenético que atingiu em cheio a geração do final da ditadura e refletiu um momento

social bastante característico. O B-Rock apropriou-se da linguagem, dos problemas e das

dúvidas da juventude da época e fez com que esses jovens se sentissem como parte de

um coletivo, de algo maior, de um movimento que pensava, agia, tinha vez e voz; não à

toa, as manifestações em prol da democratização do país na segunda metade da década

de 80 estavam repletas de jovens e permeadas por esse entusiasmo e espírito coletivo

característico daquele momento e daquele gênero musical que se estabelecia. O B-Rock

foi, portanto, também um catalisador e incentivador das movimentações jovens no país,

influenciando não apenas a produção musical, mas também a cultura e sociedade como

um todo, como evidencia Rochedo:

As formas de expressão artísticas, cinematográficas, televisivas e impressas registraram as novas idéias que chegaram com o rock. Para o cantor Léo Jaime: "Era preciso inventar um Brasil colorido depois dos anos de chumbo". O rock dispunha de seus próprios discursos, segundo a época no qual se desenvolve e de acordo com ideologias expressas dentro de cada sociedade. Para Dapieve, o rock foi uma

21 ROCHEDO, Aline do Carmo. “Os Filhos da Revolução”: A Juventude Urbana e o Rock Brasileiro dos anos 1980. Dissertação de Mestrado. UFF, 2011. p.34.

13

conquista dos artistas e do público, pois "conseguiu provar que o rock podia ser um gênero de música brasileira e não meramente uma coisa tomada emprestado de americanos e ingleses. Dessa forma, o B-Rock enfatiza como os jovens descobriram no rock uma opção de vincular seu cotidiano à arte musical. A possibilidade de fazer música, de montar uma banda suscitou um movimento de procura, de um espaço próprio no seu tempo. Assim, poderiam experimentar o protagonismo, construindo referência para sua identidade e sua atuação social. A juventude dos anos de 1980 pôde, através dos elementos do rock, se reconhecer e compartilhar o sentimento de fazer parte de um universo destacado dos demais, com seus próprios códigos e significados num momento de riqueza e questionamentos.22

Um grande marco desse momento, que teve – e exerceu – grande influência

midiática foi o Rock in Rio, realizado em 1985. Foi o primeiro evento musical de

grandes dimensões ocorrido em solo nacional, bem como o primeiro a reunir atrações

nacionais e internacionais; para isso, foi montada uma estrutura com ambições

megalomaníacas em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, chamada ‘Cidade do Rock’. O

evento teve ampla cobertura midiática e extenso investimento de empresários nacionais

e estrangeiros, sedentos por divulgar e vender seus produtos entre uma juventude

disposta a pagar para ver os maiores nomes do rock mundial:

Mesmo com as críticas, o evento Rock in Rio alçou o rock como a grande atração para a mídia do período, levando a cultura jovem para o horário nobre e à TV Globo ficou imbuída a responsabilidade de cobrir o evento. Durante a programação, a emissora exibiu flashes ao vivo e realizou reportagens nos telejornais. Foi o suficiente para obter uma média de 30 pontos no Ibope, em maratona que, segundo a direção da emissora, não cansava o público. Alcançando os meios televisivos e também os cinematográficos, atraiu a atenção do público admirador do rock nacional e internacional.23

O evento marcou uma época, estabeleceu estilos e mostrou que, finalmente, o

país estava aberto à expansão musical. A despeito da participação estelares das maiores

bandas internacionais da época, o B-Rock saiu fortalecido como fenômeno midiático,

dando o passo que faltava para assumir um papel significativo nas rádios e programas

de televisão e mostrando a força desse público jovem que, agora, tinha seus anseios

refletidos e atendidos na música e na mídia. A cobertura do evento pela Rede Globo de

televisão marcou uma nova etapa na abertura de espaço deste gênero de cultura na TV

22 Idem, p. 42. 23 Idem, p. 87.

14

aberta, algo praticamente sem precedentes, o que evidencia quão rápida a mídia foi

contagiada e mesmo tomada pelo ritmo frenético do rock brasileiro.

É possível, portanto, através da análise aqui realizada nas fontes midiáticas sobre

o movimento – particularmente em mídias impressas e revistas em geral – destacar a

importância do Rock Brasil, explorando o fato de que mídias específicas surgiram para

contemplar exclusivamente a música jovem nacional dos anos 80 que ganhava cada vez

mais força. Através das mídias – TV, rádio, revistas, etc –, portanto, pode-se também

enxergar o impacto da atuação daquelas bandas que, através de um estilo irreverente e

inovador, produziram uma música que acabou por traduzir uma geração.

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3. ANÁLISE DE LETRAS: METALINGUAGEM GERACIONAL

Nesta etapa da jornada por entre as origens, intenções e naturezas do Rock 80,

iremos voltar o olhar ao conteúdo das letras das canções, tendo, assim, um instrumento

factual para aferir a mentalidade de parte dos jovens compositores que arrastaram

multidões de iguais, quando vistos através das retinas ansiosas de seus fãs.

Muitos desses jovens se transformaram em ícones dessa geração, pilares

fundamentais do estilo. Em uma seleção de quatro canções, visa-se traçar o perfil

ideológico de ambos os elementos – compositor e letra – para reconhecer o tom das

canções que caíram no gosto popular da década. Cada uma destas canções contempla

um aspecto diferente do que contribuiu para o arrazoado de fatores que caracterizam

tanto a linguagem quanto a mentalidade jovem do período.

3.1. EXAGERADO – CAZUZA (1985)

Amor da minha vida Daqui até a eternidade

Nossos destinos Foram traçados na maternidade

Paixão cruel, desenfreada Te trago mil rosas roubadas

Pra desculpar minhas mentiras Minhas mancadas

Exagerado Jogado aos teus pés

Eu sou mesmo exagerado Adoro um amor inventado Eu nunca mais vou respirar

Se você não me notar Eu posso até morrer de fome

Se você não me amar E por você eu largo tudo

Vou mendigar, roubar, matar Até nas coisas mais banais

Pra mim é tudo ou nunca mais Exagerado

Jogado aos teus pés Eu sou mesmo exagerado

Adoro um amor inventado...24

24 CAZUZA. Exagerado, Exagerado, Som Livre, 1985.

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Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, é o maior representante do Rock 80.

Sua personalidade e fraseado liberto de frescura, faz com que ele sintetize em si, o

espírito do Rock-80.

O Jovem Caju era o perfeito poeta do cotidiano. Simboliza o que vem sendo

reiterado ao longo do trabalho, já que as letras da parceria Cazuza-Frejat, se atinham

primordialmente às questões existenciais da juventude, como numa análise bem-

humorada e jocosa, muitas vezes auto-sabotada de si mesmos. Cazuza, por exemplo,

sempre encontra uma maneira leve de lidar com a sua própria realidade, não tendo

vergonha alguma em admitir o rótulo de “filhinho de mamãe”.

Desde as origens do Barão Vermelho25, a banda teve de lidar com a

desconfiança geral da indústria fonográfica, tendo em vista que seu líder era filho do

dono da Som Livre, João Araújo. Porém, sempre armado de ironias acrescidas das

harmonias geniais de seu parceiro Roberto Frejat, Cazuza nunca se deixou abater por

este detalhe. Este não-abatimento demonstra-se finalmente e claramente no grande hit

de seu primeiro disco solo, também intitulado “Exagerado”.

As bebedeiras, exageros sexuais e dependência quase infantil de seus pais –

tanto financeiramente quanto estruturalmente – viravam piada em suas letras. Este foi

um elemento chave para o sucesso e a empatia perante uma juventude que também

lutava para encontrar seus rumos e nem sempre se encaixava no padrão formal de

encaminhamento profissional e comportamental.

A canção Exagerado é uma daquelas que exala a liberdade tão jovem quanto a

própria juventude. Neste aspecto, a linguagem hiperbólica contida na letra contempla

não só o estilo de seu compositor, mas também pode ser exacerbada para o contexto

social instaurado no Brasil da década de 1980, visto que os jovens deste tempo eram

como a linguagem de Cazuza, ou seja, buscavam uma liberdade que não se via no

cotidiano nacional há pelo menos duas décadas.

3.2. QUÍMICA – LEGIÃO URBANA

Estou trancado em casa e não posso sair Papai já disse, tenho que passar

Nem música eu não posso mais ouvir E assim não posso nem me concentrar

25 Barão Vermelho é uma das principais bandas brasileiras fundadas na década de 1980. Criada em 1981 na cidade do Rio de Janeiro, contou com a participação de Cazuza, Frejat, Guto Goff, Maurício Barros e Dé Palmeira.

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Não saco nada de Física Literatura ou Gramática

Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química

Não posso nem tentar me divertir O tempo inteiro eu tenho que estudar Fico só pensando se vou conseguir

Passar na porra do vestibular Não saco nada de Física Literatura ou Gramática

Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química

Química Química Química!

Chegou a nova leva de aprendizes Chegou a vez do nosso ritual

E se você quiser entrar na tribo Aqui no nosso Belsen tropical Ter carro do ano, TV a cores Pagar imposto, ter pistolão

Ter filho na escola, férias na Europa Conta bancária, comprar feijão

Ser responsável, cristão convicto Cidadão modelo, burguês padrão

Você tem que passar no vestibular Você tem que passar no vestibular Você tem que passar no vestibular

Você tem que passar no vestibular.26

A emblemática história da canção “Química” está intimamente ligada aos rumos

tomados pelo rock nacional e seu dito boom. No começo dos anos 80 quando a Legião

Urbana ainda era o Aborto elétrico que depois viria a se diluir e dar origem também ao

Capital Inicial.

Quando ainda em âmbito regional, o Aborto Elétrico ainda tocava em locais

pequenos em Brasília e região, quando Herbert Viana, líder do recém afamado Os

Paralamas do Sucesso, ouve esta canção e logo entra em contato com Renato Russo

para gravá-la. A partir daí, Renato vislumbra a possibilidade de formar uma banda

própria e alcançar posteriormente o status de nada menos que ícone primordial da

musicalidade oitentista com a Legião Urbana.

“Química” exala ceticismo juvenil27, numa crítica-espelho de Russo à sua

própria natureza, e, conseqüentemente, a natureza daqueles que compartilhavam das

mesmas angústias, expectativas e pressões sociais com as quais ele se confrontava. O 26 RUSSO, Renato. Química, Que País é Esse, EMI, 1987. 27 RAMOS, Eliana Batista. “Crises nos Anos 80: o ceticismo juvenil traduzido nas canções do Rock brasileiro”, Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, Vol. 2, No.4, Dezembro de 2010.

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clima de drama adolescente é o fator que desencadeia a empatia com o público não

deixando de, no maior estilo Renato Russo de ser, carregar a letra de crítica aprofundada

às normatividades da sociedade (“Ser responsável/ cristão convicto/ cidadão modelo/

burguês padrão”) que se dismilinguia em termos não apenas políticos mas também

reiterava valores que, segundo implícito na canção, mereciam serem achincalhados, pois

representavam nada mais do que hipocrisia aos olhos do sempre atento e ferino Renato.

3.3. RÁDIO PIRATA RPM (1985)

Abordar navios mercantes Invadir, pilhar, tomar o que é nosso

Pirataria nas ondas do rádio Havia alguma coisa errada com o rei

Preparar a nossa invasão E fazer justiça com as próprias mãos

Dinamitar um paiol de bobagens E navegar o mar da tranquilidade

Toquem o meu coração Façam a revolução

Que está no ar Nas ondas do rádio

No submundo repousa o repúdio E deve despertar

Disputar em cada frequência O espaço nosso nessa decadência

Canções de guerra Quem sabe canções do mar

Canções de amor ao que vai vingar Toquem o meu coração

Façam a revolução Que está no ar

Nas ondas do rádio No underground repousa o repúdio

E deve despertar!28

O RPM capitaneado por Paulo Ricardo e Luiz Schiavon, pode ser considerado o

primeiro super-conjunto do rock nacional. Com o disco Revoluções por Minuto,

lançado em 1985, a banda já experimentou o gênero rock consolidado como principal

estilo musical do país. Fora isto, o RPM ganhou proporções maximizadas por contar

com um suporte de produção como nunca antes havia se testemunhado no Rock-Brasil

até então.

28 RICARDO, Paulo, SCHIAVON, Luís. Rádio Pirata, Revoluções por Minuto, CBS, 1985.

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A banda foi “fabricada” já visando à penetração e aceitação massificada de seu

público-alvo, ou seja, a juventude brasileira. Três belos rapazes executando música

eletrônica – ao menos para os padrões que se tinha na época em que a estrutura musical

das bandas era tradicional (voz, guitarra, baixo e bateria). O RPM foi precursor no uso

de sintetizadores em sua música. A sonoridade inédita atenuada pelos fatores acima

citados, fez com que a banda fosse a explosão dentro da explosão. Fenômeno de mídia e

venda, o disco Revoluções por Minuto estabeleceu novo patamar no que se entendia por

“sucesso”, mesmo dentro de um panorama já consagrado musicalmente para grande

número das bandas que se envolviam e se propunham a compartilhar do rock 80.

A canção “Rádio Pirata”, mesmo antes de chamar a atenção pelo conteúdo

crítico de sua letra, já escancarava a originalidade sonora que vinha acompanhando o

RPM. Os sintetizadores e teclados eram elementos novos no rock, conforme já

explicado anteriormente. “Rádio Pirata” exalta a necessidade de reação e reinvenção por

parte daqueles que participam (ou porventura, se enxergam) num cenário que repete as

suas próprias falhas. Não é apenas o pedido por revolução que chama a atenção, mas a

quantidade de sentidos literais e metafóricos que a palavra ganha no contexto da

composição em que está.

Fazer-se notar não apenas pela força, irreverência ou mesmo originalidade, mas

por uma presença relevante na sociedade, era a missão proposta por Paulo Ricardo e

Schiavon à juventude, que deveria tomar consciência de sua unidade em um contexto de

conflito: “Disputar em cada frequência/ um espaço nosso nessa decadência”. Sobretudo

o desafio era redimensionar não apenas o sub-universo jovem, mas olhar para o todo e

ter a força necessária para redimensioná-lo.

A idéia de clandestinidade implícita na canção remete a duas esferas: esta em

que o coletivo jovem teria de promover uma espécie de “levante” e outra, em que mais

literalmente enxerga-se nas entrelinhas uma suave ironia em que o jogo de espaços,

apesar de supostas resistências conservadoras, havia dado definitivamente voz para o

rock, que nem por isso havia deixado seu espírito crítico de lado.

3.4. EU SOU FREE - SEMPRE LIVRE

Só estudei em escola experimental Meu pai era surfista profissional

Minha mãe fazia mapa astral legal Minha mãe fazia mapa astral...

20

Passei a infância em Cochabamba Transando Muamba

Driblando a alfândega Não sou do tipo que faz comício Tenho horror a compromisso...

Você pode fazer O que quiser comigo

Eu não ligo! Você pode fazer

O que quiser comigo Eu não ligo!...

Eu Sou Free (Eu sou Free!) Sempre Free (Sempre Free!)

Sou Free Demais Eu Sou Free (Free!)

Sempre Free (Sempre Free!) Sou Free Demais...

Mas você não tem muita chance Não me venha com romance

Porque eu sou free Free Lance!

Ah! Ah! Ah! Ah! Free Lance!

Ah! Ah! Ah! Ah!29

“Eu sou free” condensa diversos aspectos do que já vem sendo exposto ao longo

deste trabalho. Mais uma vez entra em cena a empáfia e o ceticismo juvenil perante as

demandas formais de seus pais ou de qualquer outro, que não fosse jovem e não

compartilhasse do mesmo espírito libertário da geração.

Os primeiros versos da canção já sugerem que a mentalidade mais

“desencanada” era a ideal, emprestando imagens representativas no surfista30 e na

astróloga. Logo em seguida, o constante jogo de palavras faz com que a idéia de

liberdade contida na palavra “free” produza um trocadilho perspicaz com o verbo

“sofrer”, novamente sugerindo que as amarras do conservadorismo não serviam àquele

estilo de vida. Em novo trocadilho, surge a expressão “free lance”, remetendo à

dinâmica profissional do autônomo, que combina e corrobora com as análises, ironias,

utopias, convicções e constatações colocadas por toda a geração 80.

Embora divirjam pelo estilo de cada compositor, o ímpeto jovem é o elo que

mantém as quatro canções analisadas em um mesmo grupo. A partir deste ponto em

comum, pode-se caracterizar a voz da juventude sendo proferida, exigindo, criticando,

posicionando-se, enfim. Tudo é alvo de ponderação e relativização constante, buscando 29 TRAVASSOS Patrícia, RUBAN. Eu sou Free, Avião de Combate, RCA Victor, 1984. 30

No filme “Menino do Rio”, de Antônio Calmon (1981), inaugurou-se a representação da praia e do surf como símbolos máximos da juventude rockeira carioca dos anos 80.

21

desconstruir ou pelo menos expor e problematizar convenções vigentes na sociedade. A

linguagem, cheia de gírias e estereótipos, clama, finalmente, por lugar e reconhecimento

como parte pensante do todo.

22

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho se verificou as características marcantes da juventude

oitentista brasileira. A sede por revolução, tão enfatizada nas letras musicais do Rock

Brasil se apresentava em um contexto de delineamento da personalidade jovem em um

panorama de abertura política em que, conforme explorado nos capítulos anteriores,

liberdades individuais e coletivas encontraram espaço para florescer. Neste movimento

de expansão o Rock representou a via pela qual transitavam expressões e intenções da

juventude. O ganho de espaço no mercado fonográfico foi conseqüência comercial mas

também chancela definitiva para que o estilo se firmasse e reverberasse um legado que

até os dias atuais não se esgotou.

Neste sentido, juntamente com o mercado fonográfico, vimos que a grande

explosão do Rock 80 motivou o surgimento de mídia impressa especializada para suprir

a demanda de interesse gerada pela música, sendo que a relação entre crítica, artista e

repercussão por vezes mostrou-se elemento de suma importância para o transcorrer dos

acontecimentos que giraram em torno de um processo de construção e definição de uma

cultura jovem brasileira da época. Por meio de análise do conteúdo das letras expostas

no trabalho, pôde-se esmiuçar a efetivação deste processo. A linguagem é o canal mais

fiel para que se possa identificar a evolução da transmissão e configuração das críticas

sociais, políticas e mesmo individuais.

O primeiro capítulo debruçou-se sobre a constituição da identidade jovem para

que posteriormente se pudesse destacar as maneiras com que dentro do contexto

proposto – Brasil anos 80 – se configurou as expressões da cultura jovem mediante as

músicas do Rock Brasil.

No segundo capítulo, explorou-se mais pontualmente a mídia impressa que

surgiu especificamente para tratar do Rock. Este movimento essencialmente

retroalimentar constitui-se como pilar entre público e artista, uma vez que desempenha

o papel quase que exclusivo de interlocutor entre um e outro e, por conseqüência,

interfere na formação de opinião nesta relação.

Por fim, efetivou-se o esforço de análise das letras de quatro canções do período

– Exagerado (Cazuza), Química (Legião Urbana), Rádio Pirata (RPM), e Eu sou Free

(Sempre Livre) – para a constatação da teoria proposta pelo trabalho, ou seja, a

constituição da linguagem e da identidade jovem ao longo da década de 80 e seus

impactos sobre a sociedade em que se encontravam inseridos.

23

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FREJAT, Roberto, CAZUZA. Bate Balanço, Barão Vermelho II, Som Livre, 1983.

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