Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

6
196 A Neolitização do Portugal Meridional. Os exemplos do Maciço Calcário Estremenho e do Algarve Ocidental – António Faustino Carvalho 5.6. ROCHA DAS GAIVOTAS 5.6.1. O complexo arqueológico da Rocha das Gaivotas e Armação Nova Localizado administrativamente na freguesia de Sagres, concelho de Vila do Bispo, o complexo arqueológico da Rocha das Gaivotas e Armação Nova está situado sobre a arriba imediatamente a Norte do Cabo de S. Vicente (Fig. 76), a qual atinge aqui uma cota de cerca de 50 metros a.n.m. O estudo deste complexo incidiu, até ao momento, na escavação de dois loci distintos: a Armação Nova, que se situa junto ao re- bordo Sul da baía com o mesmo nome, e a Rocha das Gaivo- tas, situada em frente do ilhote de onde retira o nome, sendo este último locus objecto de análise no presente capítulo. A primeira intervenção arqueológica teve lugar em 1991

Transcript of Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

Page 1: Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

196

A Neolitização do Portugal Meridional. Os exemplos do Maciço Calcário Estremenho e do Algarve Ocidental – António Faustino Carvalho

5.6. ROCHA DAS GAIVOTAS

5.6.1. O complexo arqueológico da Rochadas Gaivotas e Armação Nova

Localizado administrativamente na freguesia de Sagres,concelho de Vila do Bispo, o complexo arqueológico da Rochadas Gaivotas e Armação Nova está situado sobre a arribaimediatamente a Norte do Cabo de S. Vicente (Fig. 76), a qualatinge aqui uma cota de cerca de 50 metros a.n.m. O estudodeste complexo incidiu, até ao momento, na escavação dedois loci distintos: a Armação Nova, que se situa junto ao re-bordo Sul da baía com o mesmo nome, e a Rocha das Gaivo-tas, situada em frente do ilhote de onde retira o nome, sendoeste último locus objecto de análise no presente capítulo.

A primeira intervenção arqueológica teve lugar em 1991

Page 2: Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

197

Algarve ocidental

no primeiro daqueles loci, dirigida por J. Soares e C. T. Silva.De acordo com as informações já publicadas por estes auto-res (Soares e Silva, 2003, 2004), na Armação Nova identifi-caram-se duas ocupações de cronologia mesolítica, conclu-são para a qual concorrem quatro datações sobre conchasque revelaram uma cronologia compreendida entre 7.700 e7.000 BP, após correcção do “efeito de reservatório” (ICEN-1229: 7.120 ± 70 BP; ICEN-1230: 7.150 ± 70 BP; ICEN-1227:6.970 ± 90 BP; ICEN-1228: 7.740 ± 70 BP). A sua ocupaçãoter-se-á especializado na exploração do sílex local (activida-de da qual resultou o abandono de numerosos restos de ta-lhe) e no marisqueio do percêve, que predomina largamentesobre os restos de mexilhão e de lapa. As estruturas de ha-bitat identificadas são bolsas de areias carbonosas e termo-clastos que corresponderão a lareiras em fossa e/ou a cinzei-ros resultantes da limpeza das primeiras.

Em 1998, durante trabalhos de prospecção levados acabo por N. F. Bicho no âmbito do projecto “A ocupação hu-mana paleolítica do Algarve” (1996-2001), foram descobertosrestos de talhe e conchas de moluscos numa superfície de-flaccionada a Sudoeste do sítio acima referido, ou seja, nolocus designado por Rocha das Gaivotas. Foi desencadeadalogo nesse ano uma campanha de sondagens e recolhas ex-tensivas de superfície, cujos principais resultados seriam pu-blicados pouco depois, tendo a sua ocupação sido atribuídaao Mesolítico, na sequência da obtenção de uma datação deconchas de mexilhão (Wk-6075: 6.890 ± 75 BP, após correc-ção do “efeito de reservatório”) e perante a ausência de ce-râmica (Bicho et al. , 2000; Stiner, 2003; Stiner et al. , 2003).

A descoberta do concheiro da Rocha das Gaivotas pro-porcionara-se pela abertura de um acesso à arriba em 1998por mariscadores locais, que, ao destruir parte da duna, trou-xe à luz vestígios dessas ocupações humanas. Porém, oconstante atravessamento do local por veículos e pessoas,e sobretudo a acção erosiva da chuva e dos ventos fortesque se fazem sentir na região, foram factores que estiveramna origem de trabalhos de escavação em extensão, que de-correram em 2003 e 2004 como intervenção de salvamento.Estes trabalhos enquadraram-se no projecto de investigaçãoNEOALG, tendo já sido publicadas breves notícias em vá-rias ocasiões (Carvalho e Valente, 2005; Carvalho et al.,2005; Valente e Carvalho, s.d.). Em termos de estratégia deabordagem, e tendo presente o enquadramento da interven-ção, os trabalhos de 2003-04 incidiram apenas sobre a áreaafectada pela abertura dos referidos acessos, e tiveram comoobjectivos gerais a documentação da sequência estratigráfica,a recolha de material artefactual e ecofactual que permitissea caracterização das ocupações pré-históricas, assim comoa tomada de medidas elementares de protecção das áreassujeitas a escavação. Desse modo, metodologicamente op-tou-se pela realização de cortes estratigráficos mais ou me-nos amplos, abertura de sondagens em profundidade em lo-

cais seleccionados, e escavação de níveis superficiais cujopotencial ainda justificasse a intervenção. Para estes objec-tivos recuperou-se a quadriculagem instalada aquando dostrabalhos de 1998.

Dado o carácter de descontinuidade espacial das inter-venções de 2003-04, o locus da Rocha das Gaivotas aca-bou subdividido em cinco sectores diferentes, designados pornumeração romana (Fig. 77). As profundidades atingidas pelaescavação, por um lado, e os factores erosivos supramen-cionados, por outro, não permitiram sempre o registo total detodo o depósito dunar. No Quadro 99 sumariam-se as ocu-pações registadas e presumidas em cada um dos sectores,indicam-se os quadrados correspondentes e o seu posiciona-mento estratigráfico. Como se pode verificar nesse quadro,nos sectores III e V não se registaram ocupações mesolíticasou neolíticas, pelo que doravante se fará referência somen-te aos restantes.

5.6.2. Estratigrafia geral eocupações humanas

A escavação teve início no Sector I e incidiu numa por-ção do corte do caminho onde era visível em perfil uma la-reira denunciada pelos termoclastos expostos. Escavou-seentão uma área de cerca de 6x4 metros ao longo do corte, aqual corresponde aos quadrados A-D/26-31 da quadrículageral da jazida (Fig. 77). A camada superior, correspondenteà parte móvel da duna estéril arqueologicamente, foi remo-vida de forma expedita; atingida a camada de concheiro, asareias foram integralmente crivadas e recolheram-se todasas conchas completas ou com dimensões superiores a 1 cm.Esta metodologia de abordagem seria empregue na escava-ção dos restantes sectores.

Deste modo, a estratigrafia da Rocha das Gaivotas foi pri-meiramente identificada no Sector I – onde, aliás, havia sidoaberta uma das sondagens de 1998 (designada por Test I) –,tendo-se verificado depois que as observações estratigráfi-cas aqui efectuadas poderiam ser transpostas para os res-tantes sectores, diferindo apenas em função da maior oumenor profundidade atingida pela escavação ou pelo diferen-te estado de conservação do depósito arenoso. A sequênciaestratigráfica da Rocha das Gaivotas é, em suma, a seguin-te (Fig. 78):

• Camada 1. Camada correspondente à duna moderna,móvel, de espessura muito variável em função da suatopografia. Trata-se de areias brancas, soltas, na qualse desenvolve o coberto vegetal típico destes camposdunares, apresentando-se afectada pelas bioturbaçõescaracterísticas destes meios.

• Camada 2. Horizonte sedimentar com uma espessuramédia em torno dos 40 cm, e que se define por areiasmais compactadas e de colorações acastanhadas. Nos

Page 3: Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

198

A Neolitização do Portugal Meridional. Os exemplos do Maciço Calcário Estremenho e do Algarve Ocidental – António Faustino Carvalho

sectores onde se encontra mais bem conservada, estacamada pode subdividir-se em três subunidades: a“camada 2a”, de topo, com uma espessura média de10-12 cm, e que inclui muita matéria orgânica (o quelhe confere uma cor enegrecida) e intrusões moder-nas infiltradas a partir da camada 1 (plástico, metais),tratando-se muito provavelmente de um paleo-solo decronologia indeterminada; a “camada 2b”, que con-siste num nível arenoso de cerca de 10 cm, de coresbeges, quase estéril arqueologicamente e sem intru-sões; e, finalmente, a “camada 2c”, que forma o corpoprincipal deste conjunto estratigráfico, composto porareias acastanhadas com 30-35 cm de espessura,onde se encontram dois níveis de concheiro imediata-mente sobrepostos, datados do Neolítico antigo e doMesolítico (ver adiante).

• Camada 3. Consiste no pacote sedimentar arenoso queassenta directamente nos calcários dolomíticos queconstituem o substrato geológico local, tendo portantouma espessura muito variável, mas sempre significati-va. Trata-se de areias esbranquiçadas, ocasionalmen-te intercaladas por formações carbonatadas descon-tínuas, as quais, aliás, permitiram no Sector III a suasubdivisão em unidades estratigráficas distintas. Nestacamada existem quatro níveis epipaleolíticos, datadosno seu conjunto do intervalo de tempo de 8.600-8.000BP (Carvalho e Valente, 2005; Valente e Carvalho,s.d.), que por essa razão não são aqui estudados.

O facto, acima mencionado, de as ocupações neolíticase mesolíticas se encontrarem materializadas através de ní-veis de concheiro no interior da camada 2c foi denunciadoapenas através da distribuição vertical dos restos cerâmicosrecolhidos em escavação no Sector I. Com efeito, a cerâmi-ca recolhida neste sector da Rocha das Gaivotas é relativa-mente rara (soma apenas 44 cacos, com um peso total de261 g) e é formada por fragmentos de pequenas dimensões.A distribuição vertical do peso dos fragmentos, representa-da no gráfico da Fig. 79, indica que esta classe artefactualnão estaria associada à parte basal da acumulação conquí-fera, ao contrário do que fora admitido no início do estudodeste sítio (Carvalho e Valente, 2005; Carvalho et al., 2005).De facto, como se pode observar naquela figura, a cerâmicaapresenta um claro pico no nível artificial 4, enquanto que aparte mais densa do nível conquífero se concentra no nívelartificial 6. No mesmo sentido, a inventariação dos restos líti-cos associados indicou também a existência de significativasdiferenças entre ambos os níveis arqueológicos no que res-peita à economia de matérias-primas (ver adiante). A únicaconclusão possível destes exercícios é a de que se está pe-rante dois horizontes arqueológicos distintos: um, mais anti-go, formado pelo nível conquífero compacto com cerâmicaintrusiva e atribuído ao Mesolítico; outro, mais recente, que

representa uma reocupação do local, desta feita com cerâ-mica in situ , talhe de rochas de naturezas diferentes e faunamalacológica mais rara, atribuída ao Neolítico.

O Sector II (Fig. 77) localiza-se na parte Sul da crateraproduzida aquando da abertura dos acessos ao pesqueiro.Na sequência estratigráfica geral da jazida, a superfície destesector corresponde ao topo erodido da camada 3. A interven-ção consistiu na escavação e crivagem dos sedimentos sol-tos. Dados os processos de deflacção que claramente afec-tam o Sector II, o material malacológico e lítico corresponderáà mistura de peças originalmente depositados na camada 2(erodida) e na camada 3 (exposta), razão pela qual não seprocedeu à sua análise. Esta acção, contudo, permitiu indi-vidualizar uma estrutura de combustão mesolítica (ver adi-ante) incrustada no topo da camada 3 (designada por Larei-ra 3), cuja existência se antevia através dos termoclastosacima referidos.

No Sector IV (Fig. 77) escavou-se apenas a parte rema-nescente da camada 2 (afectada pela abertura de um cami-nho nesse local) e o topo da camada 3. A opção pela esca-vação deste sector resultou da descoberta, nas areias emcurso de erosão, de materiais arqueológicos atribuíveis aoNeolítico antigo (cerâmica, adornos e pedra afeiçoada), su-posição que a identificação de um único nível arqueológicoatribuível a este período permitiu confirmar.

5.6.3. Ocupação do Mesolítico

Como se referiu nos parágrafos anteriores, o Mesolíticoestá presente nos sectores I e II (Quadro 99), na base dacamada 2c.

Em termos artefactuais, a pedra lascada mesolítica (Qua-dro 100) é formada principalmente por rochas locais (sílex ecalcário dolomítico). O talhe do sílex deu origem a uma in-dústria de lascas, por vezes de grandes dimensões, de boafactura e, por regra, sem retoque (Est. 70). Os núcleos deonde estes materiais terão sido debitados não foram encon-trados, talvez porque a área de talhe no interior do habitatnão foi identificada. A componente lamelar está representa-da por poucas peças. Os utensílios retocados são de tipolo-gias muito simples, estando a componente geométrica repre-sentada apenas por um segmento.

Dos restos faunísticos desta ocupação, foram estudadosapenas os da sondagem de 1998, designada por Test 1 (Sti-ner, 2003). Aqui foi possível verificar o predomínio do mexi-lhão (Mytilus sp.), com 82% do total do NRD (Quadro 101).Entre o restante material, em curso de estudo por M. J. Va-lente, destacam-se as grandes quantidades de percêve (Polli-

cipes pollicipes), lapa (Patella sp.) e mexilhão (Mytilus sp.),às quais se adiciona ainda a púrpura (Thais haemastoma);contudo, não estando estes restos faunísticos estudados, nãoé possível avançar com dados quantitativos acerca da varia-

Page 4: Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

199

Algarve ocidental

ção relativa entre as espécies presentes, nem a sua lista ta-xonómica completa.

Nesta ocupação da Rocha das Gaivotas foram identifi-cadas três estruturas de combustão (Fig. 80), duas contidasna camada 2 do Sector I (Lareira 1 e Lareira 2) e uma in-crustada no topo da camada 3 do Sector II (Lareira 3). Es-tas estruturas descrevem-se do seguinte modo:

• Lareira 1. Estrutura circular, com cerca de 2 metros dediâmetro, composta por grandes blocos que formamuma coroa exterior, preenchida com blocos lajiformesno interior. Todos estes blocos, de calcário ou arenito,apresentam estalamentos térmicos, indicando a acçãode combustões sucessivas e/ou temperaturas muitoelevadas. Um corte através desta estrutura permitiuobservar que esta consiste num único nível pétreo eassenta junto (ou seja, não directamente) ao contactoentre a camada 2 (que embala a estrutura) e a cama-da 3 (que lhe subjaz). No interior da lareira e na suaperiferia imediata existiam carvões de zimbro (Juni-

perus sp.) (Figueiral e Carvalho, 2006). A fauna mala-cológica, calcinada, é muito numerosa, sendo compos-ta principalmente por lapa ( Patella sp.) e percêve (Polli-

cipes pollicipes). Uma amostra de conchas da primeiraespécie recolhida no interior da estrutura foi datada de6.712 ± 60 BP (Wk-13692), após correcção do “efeitode reservatório”.

• Lareira 2. Trata-se de um pequeno conjunto de lajesde arenito (cerca de 50 cm de diâmetro) dispostas nahorizontal, à qual estavam associados carvões e faunamalacológica calcinada. A realização de um corte trans-versal revelou uma ligeira depressão preenchida comareias carbonosas e carvões de zimbro (Juniperus sp.)e de zambujeiro (Olea europaea var. sylvestris) de di-mensões apreciáveis. Uma amostra de carvões resul-tantes da queima de ramos de zimbro foi datada de6.862 ± 43 BP (Wk-14797) e outra de conchas de lapa(Patella sp.) de 6.737 ± 50 (Wk-14793), após correc-ção do “efeito de reservatório”.

• Lareira 3. A sua escavação passou, num primeiro mo-mento, pela realização de um corte estratigráfico, op-ção que permitiu observar a estruturação interna destalareira. Trata-se de uma lareira em cuvette aberta nasareias da camada 3, mas correlacionável com a cama-da 2 que lhe estaria sobrejacente, com o topo cobertopor uma carapaça de termoclastos. O seu interior e asua periferia imediata continham areias carbonosas,alguns fragmentos de carvão – de zimbro (Juniperus

sp.), aroeira e/ou cornalheira (Pistacia sp.) e zambujeiro(Olea europaea var. sylvestris) – e restos de conchascalcinadas, principalmente de percêve (Pollicipes polli-

cipes). A datação de carvões de aroeira recolhidos noseu interior resultou em 6.820 ± 51 BP (Wk-14798).

5.6.4. Ocupação do Neolítico antigo

O Neolítico antigo está representado no Sector I (níveisartificiais 1 a 5) e no Sector IV, podendo ter sido destruído,ou nunca ter existido, nos restantes sectores (Quadro 99).Ao contrário do verificado nas ocupações mesolíticas, não seidentificaram até ao momento estruturas habitacionais desteperíodo.

A cerâmica forma um pequeno conjunto (Quadro 103),quase todo liso: há a assinalar somente um bojo com cane-luras e um bordo com uma linha incisa horizontal sobrepos-to por impressões circulares (Est. 71, n.os 1 e 5), ambos pro-venientes do Sector IV. A julgar pelas suas espessuras, es-tar-se-á perante vasos de volumetrias pequenas. A presen-ça de apenas um pequeno fragmento de bordo impede adeterminação do NMR, que deveria, no entanto, ser diminu-to. As características macroscópicas das pastas indicam co-zeduras redutoras e consistências friáveis, com ENP quart-zosos e calcários numerosos, resultando em pastas de tex-tura arenosa.

A pedra lascada associada à ocupação neolítica (Qua-dro 103) denota um leque muito variado de rochas, mas ondepredomina largamente o sílex. O talhe desta matéria-primaé, tal como o das restantes, incaracterístico, sendo compos-to essencialmente por lascas. Do mesmo modo, também osrespectivos utensílios retocados são de tipologias poucoespecializadas (Est. 71).

Em termos de utensílios em pedra afeiçoada ou com si-nais de uso, há apenas a registar o achado de um percutorsobre seixo e de uma laje de grauvaque cinzento com umaconcavidade que evoca um “almofariz”, ambos provenientesdo Sector IV.

Na ocupação neolítica da Rocha das Gaivotas encontra-ram-se também elementos de adorno, no Sector IV: umaconcha de Glycymeris insubrica possivelmente perfurada noumbo e um pendente oval em calcário polido que evoca ostípicos pendentes em forma de canino de veado (Est. 71, n.os

3 e 4). Embora o carácter intencional da perfuração da pri-meira peça não seja óbvio, saliente-se que se trata do únicoexemplar daquela espécie identificado na Rocha das Gaivo-tas (não deverá, portanto, tratar-se de resto de consumo ali-mentar) e que, por outro lado, esta espécie tem como habitatsactuais as costas arenosas meridionais a Leste de Portimão,o que sugere que se tratará, pelo menos, de um processode manuporte.

As faunas neolíticas (análise por R. M. Dean) são com-postas quase exclusivamente por restos de invertebradosmarinhos (Quadro 104), tendo surgido apenas três pequenosfragmentos de ossos de mamíferos indeterminados no Sec-tor I. Neste sector, o percêve (Pollicipes pollicipes) representa47% do NMI, só depois seguido da lapa (Patella sp.) e domexilhão (Mytilus sp.), com 35% e 17%, respectivamente. No

Page 5: Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

200

A Neolitização do Portugal Meridional. Os exemplos do Maciço Calcário Estremenho e do Algarve Ocidental – António Faustino Carvalho

que respeita ao Sector IV, a principal característica do es-pectro faunístico é o predomínio das cracas (Balanus sp.),espécie sem qualquer valor alimentar, estando portanto poresclarecer as razões desta presença. Se excluída esta es-pécie, predominam o percêve e a lapa, com 17% do NMI ca-da, só depois seguido pelo mexilhão, com 14%. Contudo, atentativa de datação de uma amostra de conchas de mexi-lhão resultou moderna (Wk-18702: 131,8 ± 0,6% M), signifi-cando que existem intrusões recentes que obrigam a aceitaras quantificações faunísticas deste sector com cautela.

A dispersão vertical das três principais espécies malaco-lógicas do horizonte neolítico do Sector I, por seu lado, pare-ce indicar a existência de duas ocupações distintas, aindaque em ambas seja sempre predominante a apanha do per-cêve. Como se pode constar na Fig. 81, nos níveis artificiais1-4, o mexilhão mantém-se nos 12-14% do total; o percêvecresce de importância da base para o topo, compreendendo58% do total no nível mais alto e apenas 41% no nível basal;e, por seu lado, a lapa decresce continuamente de importân-cia, de 35% no nível 5 para 26% no nível 1. O facto maisimportante, no entanto, é verificar-se que este declínio não égradual, ocorrendo entre os níveis artificiais 3 e 2, em que apercentagem desce de 35% para 29%. Esta tendência écorrelativa de uma redução das dimensões médias tanto dospercêves como das lapas, o que sugere a presença de umfenómeno de sobre-exploração destes recursos.

5.6.5. Crono-estratigrafia einterpretação funcional

Como ficou patente na descrição da sequência estrati-gráfica da jazida e das datações de radiocarbono obtidas paraa mesma, pode concluir-se que a Rocha das Gaivotas com-porta uma complexa sucessão de ocupações humanas. Sese adicionar a estes dados os provenientes do locus da Ar-mação Nova obtém-se uma imagem mais completa que dei-xa antever o que eventuais futuras escavações no local po-derão vir ainda a revelar. Com efeito os diversos sectores daRocha das Gaivotas e o locus da Armação Nova, é possívelretirar as seguintes conclusões acerca das três fases deocupação representadas:

• Epipaleolítico. Os quatro níveis epipaleolíticos da ca-mada 3 balizam-se no período de tempo de 8.600-8.000 BP (Carvalho e Valente, 2005). Calibrado, trata-se grosso modo da segunda metade do VIII milénioa.C.

• Mesolítico. De acordo com as seis datas obtidas parao locus da Rocha das Gaivotas, este período está da-tado de 6.800-6.700 BP, ou seja, de meados da primei-ra metade do VI milénio a.C. A cronologia do locus daArmação Nova, por seu lado, é mais antigo, situando-se em torno de 7.100-7.000 BP, portanto sobre a tran-

sição do VII para o VI milénio a.C. O significado da dataICEN-1228 (7.740 ± 70 BP, após correcção do “efeitode reservatório”) da Armação Nova é de difícil avalia-ção no estado actual de estudo deste sítio mas pode-rá respeitar a uma ocupação epipaleolítica residual.

• Neolítico antigo. O Neolítico antigo foi datado crono-metricamente apenas no Sector I, de c. 6.400 BP, combase numa única datação que, calibrada, se insere noterceiro quartel do VI milénio a.C.

A estilística da cultura material da ocupação neolítica,tanto quanto os parcos elementos permitem concluir (princi-palmente a cerâmica canelada e o adorno em calcário poli-do) aponta desde o início para o Neolítico antigo (Carvalhoet al. , 2005). Porém, a escassez de materiais de diagnósticoé compensada pela referida datação, que confirma aqueladedução e que torna esta ocupação contemporânea de síti-os como a Cabranosa, Padrão ou a última ocupação doCastelejo, onde ocorrem também cerâmicas caneladas e,ocasionalmente, adornos semelhantes àquele tipo.

Em termos de economia de subsistência, as ocupaçõesmesolíticas e neolíticas do complexo arqueológico da Arma-ção Nova e Rocha das Gaivotas estão claramente especia-lizadas na captura de invertebrados marinhos, as quais, pelovolume de conchas abandonadas, permite utilizar com todaa propriedade a definição de “concheiro”, sobretudo nos ní-veis mesolíticos, onde a densidade do material conquífero énotoriamente maior. O Mesolítico do locus da Armação Novaé, segundo os autores da escavação (Soares e Silva, 2003),especializado na apanha de percêve (Pollicipes pollicipes);na fauna mesolítica e neolítica da Rocha das Gaivotas pre-domina, por seu lado, o mexilhão (Mytilus sp.) e o percêve(Pollicipes pollicipes), respectivamente. O facto de não seterem encontrado restos alimentares de outros tipos permiteconcluir que se está perante uma economia de curto espec-tro, pois a ausência de evidência de captura de peixes, ma-míferos ou aves, ou de recolecção de plantas comestíveis,não pode ser imputada a razões de ordem tafonómica. Nes-te sentido, os invertebrados marinhos devem ser considera-dos como o reflexo fiel do comportamento económico dosgrupos que sucessivamente ocuparam este local.

Uma das razões aventadas por vários investigadores paraexplicar o estacionamento destes grupos na região do Cabode S. Vicente tem sido a exploração das jazidas de sílex queaqui abundam (Soares e Silva, 2003; Bicho et al. , 2003;Carvalho et al. , 2005). Sendo aparentemente este o caso naArmação Nova, não foram, contudo, reconhecidas em esca-vação nos níveis meso-neolíticos da Rocha das Gaivotasquaisquer áreas de talhe que possam justificar esta interpre-tação no que a este locus diz respeito. No caso da ocupa-ção mesolítica deste locus, aliás, os dados de terreno pare-cem até indicar a estada relativamente prolongada (sazonal?)destes grupos humanos (estruturas de combustão de cons-

Page 6: Rocha das Gaivotas, Sagres, Vila do Bispo

201

Algarve ocidental

trução elaborada; nível conquífero espesso e denso); a reocu-pação em época neolítica, por seu lado, parece bastante maisefémera (não há estruturas de habitat; as acumulações con-quíferas são menos espessas e densas) e resultar de repe-tidas estadas episódicas materializadas através de dois finosníveis de ocupação que terão sido talvez formados no Outo-no e/ou Primavera, as estações do ano mais favoráveis paraa recolha do percêve que constitui a espécie predominanteno inventário faunístico.