Robert A. Johnson - FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

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    FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

    Robert A. Johnson

    Tradução de Júlia Bárány Bar tolomel

    MERCURYO

    Titulo original: Femininity Lost And Regained

    Robert A. Johnson - 1990

    1991

    Todos os direitos reservados à Editora Mercuryo Ltda. Al. dos Guaramomis, 1267 - CEP

    04076 Fone (011) 530.1804/531.8222 - Fax: (011) 530.3265 São Paulo - SP - BRASIL

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Johnson, Robert A., 1921 -

    Feminilidade perdida e reconquistada / Robert A. Johnson ; tradução Julia BárányBartolomel].  —  São Paulo : Mercuryo, 1991.

    1. Damayanti (Mitologia hindu) 2. Édipo (Mitologia grega) 3. Feminilidade (Psicologia) 4. Nala (Mitologia hindu) I. Título.

    CDD-155.333

    -292.08 91-2544 -294.513

    Índices para catálogo sistemático

    1. Damayanti : Mitologia hindu 294.513 2. Édipo : Mitologia grega 292.08 3.Feminilidade : Psicologia sexual 155.333 4. Nala: Mitologia hindu 294.513

    Capa: Eduardo Piochi

    Sylvia Bolonha

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    ÍNDICE

    1. O Problema Atual 09

    PRIMEIRA PARTE —  O FEMININO NA CULTURA OCIDENTAL

    2. A Herança Grega 193. A Voz de Sófocles 234. A História de Édipo 295. O Significado Interior do Incesto 356. O Destino de Antígone 477. O Legado de Édipo 538. A Saga Continua 57

    SEGUNDA PARTE —  O FEMININO NA MITOLOGIA HINDU9. Uma Atitude Diferente 6710. A História de Damayanti 71

    11. Duas Histórias de Amor 75

    TERCEIRA PARTE —  QUE REALMENTE QUER A MULHER?12. A Feminilidade Perdida 8713. A Feminilidade Reconquistada 9514. A Tarefa Heróica 105

    APÊNDICE 113

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    FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

    1 O Problema Atual

    A perda das qualidades e da energia femininas na sociedade de hoje constitui um problema psicológico premente. Aflige dolorosamente a vida emocional tanto dos homensquanto das mulheres. Esta perda de algo tão essencial para a mulher força-a a questionar sua própria feminilidade, consolidando o longo debate histórico acerca da posição das mulheresna sociedade. Para um homem, a perda da energia feminina é menos óbvia, porém reduzas profundezas emocionais de sua personalidade e é a fonte da maior parte do seudescontentamento, solidão, sensação de falta de sentido e mau humor. Para um homem é umchoque descobrir que seus humores e grande parte de sua natureza sentimental sãofemininos! Ser presa de humores

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    é ser dominado por um aspecto interior feminino do seu caráter, e é somente ao aceitar e

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    compreender esta feminilidade que ele entenderá com clareza sua natureza masculina. Perderou danificar as qualidades femininas interiores afeta o nosso bem-estar emocional,modificando de imediato nossa felicidade e contentamento. Se as qualidades femininasestiverem em ordem, a pessoa se sentirá segura e protegida.

    Uma vez entendido que a feminilidade não é privilégio da mulher, nossa primeira

    tarefa consiste em aprender a considerá-la um ente que tem influência sobre a identidadefeminina central da mulher e sobre a capacidade e a habilidade de sentir e valorizar dohomem.

    Seria mais fácil entender esta dimensão vital se nossa língua não fosse tão preconceituosa e empobrecida. Faltam-nos palavras multifacetadas e ricas para expressar oaspecto feminino da vida. Freqüentemente as línguas possuem vários termos para descreveros elementos culturais altamente respeitados. Se, ao contrário, uma língua dispõe de poucostermos ou mesmo de um só para descrever um elemento de sua vida cultural, às vezes istoindica que o elemento é pouco considerado ou valorizado. Por exemplo, o sânscrito, base para a maioria das línguas da Índia, tem noventa e seis termos para o amor. O persa antigotem oitenta, o grego tem quatro e o inglês apenas um. O inglês não possui a amplitude, oalcance e a diferenciação para o feminino e para o sentir como o sânscrito e o persa. Caso possuísse, haveria uma palavra específica para expressar nossos sentimentos com relação a pai, mãe, pôr-do-sol, esposa, casa, amante, Deus. Havendo uma única palavra para

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    estes vários níveis de experiência, torna-se difícil entender a complexidade das emoções e denossa vida interior. A língua esquimó tem trinta palavras para a neve. Isto reflete anecessidade de clareza num complexo relacionamento com a neve. Quando o relacionamentoe a feminilidade nos interessarem tanto quanto a neve interessa ao esquimó,desenvolveremos uma língua diferenciada e enfocada para essa dimensão da nossa vida.

    O estudioso de mitologia Joseph Campbell tentou ampliar nossa discussão sobrefeminilidade evocando os seguintes termos:

    a esquerda —  o lado do coração, o lado do escudo  —  tem sido símbolo tradicional em todolugar das virtudes e dos perigos femininos: maternidade e sedução, os poderes da Lua sobreas marés e sobre as substâncias do corpo, os ritmos das estações; gestação, nascimento,alimentação e criação de filhos; no entanto, igualmente malícia e vingança, irracionalidade,fúria tenebrosa, magia negra, venenos, feitiçaria e engano; mas também encanto, beleza,enlevo e êxtase. A direita, assim, é do macho: ação, armas, feitos heróicos, proteção, força bruta, justiça cruel e justiça complacente; as virtudes e os perigos masculinos: egoísmo eagressão, raciocínio lúcido e luminoso, poder criativo como o Sol mas também maldade friae insensível, espiritualidade abstrata, coragem cega, dedicação à teoria, força moral sóbria eséria.1

    1 Joseph Campbell, Creative Mythology (New York: Viking, 1968), pp. 288-89.

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    A língua molda o nosso pensamento mesmo quando pensamos que estamos sendoreceptivos. Uma amiga minha estava preparando o trabalho final do curso preparatório para

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    a ordenação sacerdotal anglicana. Arrebatada por um daimon inspirador, decidiu escrever deuma perspectiva inteiramente feminina —  isto em face da rígida estrutura patriarcal daIgreja. Seus amigos aconselharam-na com veemência que não o fizesse, mas ela insistiu. Eescreveu:

    Sendo uma mulher a escrever um depoimento pessoal, escolhi o termo “mulher” parausar neste trabalho, mas desejo que fique claro que neste trabalho o termo “mulher”inclui os homens também, sem nenhuma intenção de excluir o gênero masculino(exceto onde o contexto o indica claramente) da minha visão da antropologiateológica e da natureza da Igreja, e especialmente da obra de salvação de JesusCristo. Isto não é feito na mais completa inocência, é claro. Em parte, estou tentandoinverter, para mim mesma e para os meus leitores, a experiência de ler teologia, quereivindica incluir meu gênero, porém, raramente o faz.

    Escrevendo sobre a noção de pessoa na teologia, ela diz:

    O que sinto da natureza humana é que a mulher é uma criatura finita (ser criado porDeus), racional, espiritual, imaginativa e criativa, ou, segundo formula o Livro daOração Comunitária:

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    “abençoada... com memória, razão e habilidades”. Ela possui o livre-arbítrio(limitado, mas real) e o potencial para se tornar uma verdadeira filha de Deus,transcendendo a si mesma enquanto amadurece. Ao compreendê-la teologicamente,devemos lutar continuamente para manter o equilíbrio entre a sua natureza espirituale a natureza material, às vezes “superespiritualizada” pelas comunidades religiosas.Seu objetivo é amar: a si mesma, outras mulheres e, o mais importante, a Deus.

    ...Penso que conseguimos uma imagem melhor dos propósitos para os quais a mulherfoi criada e as possibilidades inerentes à sua natureza na pessoa de Jesus Cristo.Somente conseguiremos uma compreensão correta de quem a mulher é após vermosquem é o Cristo... porque somente à luz da cruz podemos ver o verdadeiro pecado damulher, assim como o seu destino latente.

    ...Dentre todas as criaturas criadas sobre a Terra, apenas a mulher (até onde sabemos)tem o poder da razão e da memória.

    Além disso, existe na mulher o que Karl Rahner chama de “transcendental”(manifestado em Jesus de maneira eminente), o salmista chama de “um poucoinf erior que os anjos” e o Genesis chama de “à imagem de Deus.”2

    A palavra “homens”, significando toda a humanidade, usada nas Escrituras e emoutros lugares

    2 Das respostas dadas por Jean Dalin, Clift às perguntas que lhe foram feitas durante o examede ordenação.

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    levou-nos a distorções durante muito tempo. O peso semântico se inclina para amasculinidade a despeito de todos os esforços feitos para incluir as mulheres no termo

    “homem” .Devemos investigar esta qualidade fugaz —  a feminilidade —  e achar alguma coisade sua história, apesar da pobreza de nossa língua. Duas atitudes, uma grega, a outrahindu, irão ajudar-nos a entender as raízes da feminilidade na civilização moderna. O mito deÉdipo abrange o ponto de vista grego, nossa herança mais próxima; o mito de Nala eDamayanti, do Mahabharata, transmite a atitude da Índia.

    UMA NOVA PERSPECTIVA

    As atitudes ocidentais com relação à feminilidade estão tão profundamente arraigadasque se torna impossível olhá-las objetivamente sem nos distanciarmos totalmente de nossa própria cultura. Foram as viagens à Índia que me despertaram para uma visão muito diferentede tudo o que é feminino. A modulação do sentir, a apreciação da feminilidade ocupamlugares infinitamente elevados no caráter do povo hindu. Caminhar simplesmente por umarua na Índia tradicional já é caminhar imbuído de um sentir válido. Experienciar como oshindus experienciam as cores, os ritmos, os sons, a sensualidade, a afinidade, a modéstia e aatemporalidade é ser lembrado do Feminino Divino.

     Nossas heróicas conquistas ocidentais causam inveja ao resto do mundo, porém, sãoganhas à custa de nossa capacidade de calor, sentimento, contentamento e serenidade. Somostão ricos em

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    coisas materiais e tão pobres em valores femininos! Na Índia vi paz e felicidade nos lugaresmais inesperados! Como é que essas pessoas, não tendo quase nada para se contentar, são tãofelizes? Em troca das modernas conquistas tecnológicas, essas pessoas conservaram seusvalores femininos.

    O mito de Nala e Damayanti soa estranho aos ouvidos ocidentais, mas essaestranheza é a própria qualidade de que necessitamos para completar nosso modo de vidaocidental desastrosamente unilateral. Neste mito hindu as mulheres de forte identidadefeminina evitam o desastre. Inevitavelmente, a força feminina é o herói. As histórias hindussimplesmente não funcionariam sem o poder de suas mulheres, ou seja, o poder do feminino, pois não se restringe somente às mulheres.

     Nós, os ocidentais, sabemos instintivamente que há um ingrediente essencial noOriente do qual precisamos para curar a pobreza emocional de nossa cultura. Começamos aconhecer a filosofia e a religião orientais desde os anos sessenta, seja por intermédio dosradicalistas da política, ou dos cientistas eminentes. O livro de J. Robert Oppenheimer quedescreve o desenvolvimento da primeira bomba atômica foi intitulado Brighter Than aThousand Suns, uma citação do Upanishad. Obras de ficção tais como Sidarta, de HermannHesse, e O Fio da Navalha, de Somerset Maugham, exploraram aspectos curativos do pensamento oriental. É desta maneira que podemos aprender com a história de Nala eDamayanti.

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    PRIMEIRA PARTE

    O FEMININO NA CULTURA OCIDENTAL

    2A Herança Grega

    Uma grande parte de nossa herança cultural e filosófica tem sua origem na Gréciaantiga; nossa ciência, nossas idéias políticas, uma boa parte de nossa língua e muitos dosnossos costumes advêm daquele grande florescimento que foi a glória de Atenas por volta doano 500 a.C. Muitos dos bens culturais que tanto estimamos levam nomes gregos:democracia, aristocracia, psicologia, política, êxtase, mistério; e numerosos termos

    médicos e científicos são de origem grega. Diz se que toda a filosofia desde a época greganão passou de uma nota de rodapé para Platão.Existe, porém, uma nota escura na nossa herança grega raramente reconhecida ou

    entendida. A glória da Grécia que ainda ilumina nossa civilização foi

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    comprada a um preço muito alto, um preço pago diariamente por cada um de nós e raramenteatribuído à fonte.

    Começamos a questionar a forma patriarcal da cultura ocidental desafiando assim pela primeira vez a nossa herança grega. É verdade que os gregos honravam o feminino na

    figura de sete deusas correspondentes aos sete deuses; mas a vida do dia-a-dia na Gréciatinha uma estrutura patriarcal e a feminilidade sofreu um golpe tão doloroso que ainda nãoconseguiu recuperar-se. Grande parte de nossa vida emocional é constituída pela dor destaferida ainda aberta.

    É inevitável que uma civilização “elevada” como a grega pagasse um preçoigualmente elevado ou profundo. O feminino, desonrado em seu sofrimento, pagou o preço,enquanto o masculino recebia as glórias de suas conquistas. Talvez uma raça mais sábiativesse pago este preço de sangue de uma maneira melhor, mas isto seria pedir o que ahumanidade como um todo não conseguiu realizar até hoje. Cabe agora a nós, a humanidadeno atual estágio de evolução, pagar o preço e evoluir de uma maneira mais saudável do que asmaneiras concebidas por nossos ancestrais.

    A Grécia não era a única a degradar o feminino. O mundo hebraico também negava ofeminino, e culturas menores mal chegaram a reconhecê-lo. Os hebreus, assim como osgregos, teoricamente prestigiavam o feminino. O Shekinah, a presença de Deus no mundo,era nada menos que a metade feminina de Deus. Mas, na prática, o judaísmo era umainstituição patriarcal que fazia o feminino pagar o preço pela portentosa realizaçãomasculina.

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    Podemos agradecer por estas conquistas, pois o nosso mundo ficariaconsideravelmente mais pobre caso fossem destruídas. A ciência seria derrubada; a medicinae todas as maravilhas mecânicas da nossa época desapareceriam. Estaríamos “adubando ocampo arado”, de acordo com Mefistófeles no  Fausto de Goethe. Embora tenhamoscomeçado a restabelecer o lugar da mulher no nosso mundo moderno, ainda não fizemos o

    suficiente para restaurar os valores femininos: o sentir, a paz, o contentamento e a perspectiva. Atualmente há vozes na nossa sociedade que —  para reduzir o sofrimento e aalienação —  pleiteiam o retorno à natureza. Gandhi, os amish, Rousseau, Thoreau, assimcomo os hz’ppies dos anos sessenta defendiam modos de vida mais simples para ficarmosmais próximos da mãe protetora, a Terra.

    Assim talvez aliviássemos a dor, mas perderíamos o que temos de melhor no mundoocidental. Um jeito melhor seria pagar de maneira mais consciente o preço do queganhamos e por esse preço consciência ganhar o que há de melhor no gênio masculino e nofeminino. Caso venha uma era melhor, um milênio, ela emergirá desta apreciação conscientede ambos os valores e não do balanço violento do pêndulo de um extremo a outro.

    3A Voz de Sófocles

    A busca da consciência à qual aspiramos começa com uma investigação dahistória do atual desequilíbrio masculino-feminino. A cultura grega registrou suas atitudes nahistória de Édipo, que exemplifica o que há de melhor e de pior na Grécia. Se pudermosentender esta história de trágica nobreza, estaremos melhor equipados para enxergar nosso próprio dilema. O mito hindu de Nala e Damayanti, embora contenha muitos elementos emcomum, desenrola-se de maneira bem diferente: o feminino também é maltratado, mas oresultado é o oposto da história ocidental. Ao justapor as duas histórias, a intenção não é

     provar que uma delas seja a certa e a outra errada, e sim expandir a consciência.

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    O único meio de nos tornarmos mais responsáveis é adquirirmos maior consciência psicologicamente, através de um trabalho interior que custa muito sofrimento. Masdevemos pagar este preço para garantir a evolução da nossa maturidade individual e oflorescimento intelectual e emocional de nossa cultura. A história de Édipo foi dramatizadanas peças tebanas por Sófocles. Nascido em 496 a.C., o dramaturgo grego viveu numa dasépocas mais conturbadas da História: a Grécia no apogeu de seu poder, as GuerrasPeloponesas que sangraram esta civilização avançada quase até o fim, e o início do declínio

    que logo varreu a Grécia para a guerra civil e a ruína. O tema das peças gira em torno da casareal de Tebas e a imposição da lei masculina à custa do amor feminino e da afinidade. Estacatástrofe reverbera através da História até os dias de hoje.

    De acordo com a lenda, Cadmo, o pai do império tebano, funda uma cidade, mas umdragão devora os primeiros cidadãos. Cadmo mata o dragão de um só golpe de sua espada esemeia seus dentes dentro dos muros da cidade. Os dentes imediatamente ressurgem naforma de gigantes tão ferozes que se põem a matar-se uns aos outros. Sobram apenas cinco,que serão os fundadores de Tebas. Um mito de criação puramente masculino!

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    Várias gerações depois, nasce Édipo, futuro rei de Tebas. Um oráculo diz que elematará seu pai e desposará sua mãe. Com isso os pais de Édipo são forçados a matá-lo, masem vez disso, movidos pela bondade e humanidade, eles trespassam seus pés com umaagulha de ferro e ordenam a um servo que

    24o deixe no lugar tradicional de abandono.3 O servo, um pastor, não consegue abandonar acriança à morte e a entrega a um outro pastor que leva o banido a um reino vizinho. O reideste reino não tem filho e adota a criança, dando-lhe o nome de Édipo, “pé inchado”.

     No início de sua juventude, Édipo fica sabendo da premonição do oráculo e foge desua pátria para evitar o destino predeterminado. Após perambular por algum tempo, chega aTebas, seu lugar de nascimento. Num confronto na estrada mata um homem. Este homem éseu pai, e a primeira parte da profecia se cumpre. Édipo se estabelece na cidade mas aencontra conturbada. Seu rei tinha sido morto (por Édipo) e a Esfinge, um monstro híbrido,apoderou se do país. A Esfinge propõe um enigma que ninguém consegue responder, emuitos são mortos por fracassarem. Édipo responde ao enigma, salva o país da Esfinge erecebe como recompensa a rainha viúva por esposa. A segunda parte da profecia assim secumpre. O casal real tem dois filhos e duas filhas, e Tebas vive um período de paz.

    O DESTINO DA FEMINILIDADE

    O psicólogo suíço Jung observou que a dimensão inconsciente da nossa psique nosmostra a mesma face que lhe mostramos primeiro. Se fomos hostis para com ela, ela seráhostil para conosco. Grande parte da nossa vida psicológica é um diálogo

    3. Era costume na Grécia Antiga deixar num lugar determinado as crianças indesejadas ou

    deformadas para que morressem abandonadas caso ninguém viesse procurá-las para adotar.25

    entre o nosso mundo consciente, ou seja, todas as coisas que sabemos sobre nós mesmos, e oinconsciente, ou seja, o embaçado mundo da nossa vida interior, que constitui um grandemistério para nós.

    O primeiro ato humano nessa história provoca uma resposta imediata das forçasctônicas* femininas do mundo interior. Quando Cadmo, o rei legendário, funda a cidade, ahumanidade impõe a ordem masculina, que associamos com cultura e lei civil.4 Mas amasculinidade impõe forma e ordem ao país sem levar em conta os elementos femininos damatéria e terrenalidade, e a Terra contra-ataca na forma de um dragão que quase destrói acidade. Cadmo mata o dragão, semeia seus dentes no solo da nova cidade, e surge a primeirageração de cidadãos —  gigantes que imediatamente se põem a matar-se uns aos outros. Oscinco sobreviventes são os fundadores da cidade, que agora é povoada pelos filhos daordem e da forma (o legado de Cadmo) e pelo elemento terra, na forma dos dentes de dragão.Restabelece-se o equilíbrio e a cidade pode continuar o seu desenvolvimento.

    Esta é uma receita maravilhosa para remediar a tensão na vida de quase todas as pessoas do mundo de hoje. Trabalhamos muito duro (e os ocidentais trabalham mais do que

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    qualquer povo conhecido na História) para a nossa realização masculina patriarcal. Istosignifica “fundar a cidade” e é uma conquista especificamente masculina. É o orgulho e a

    * Relativo aos deuses e demônios que habitam as profundezas da terra. 4. É interessante areceita para se fundar uma cidade grega: cave um poço que será o centro da cidade. Em

    seguida corte uma pele de boi numa tira contínua, estendendo-a em círculo ao redor do poço.A circunferência do círculo constituirá os limites da cidade.

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    alegria do mundo ocidental! Mas o mito nos diz que isto é apenas a metade da realidade e ofeminino, esse aspecto ilimitado, sem forma, da realidade, destruirá a nova criação masculinase não for honrado e incluído na criação. O feminino excluído, transformado num dragão porter sido ofendido, ameaça arruinar o projeto inteiro. Um amigo meu, imensamenteorgulhoso pelo seu recente sucesso numa difícil situação de negócios, comportava-se comoum galo de briga e vangloriava-se da sua vitória. Mas sua esposa, forçada a desempenhar o papel de dragão, instintivamente cutucava sua arrogância masculina.

    Cadmo usa de grande sabedoria ao fundar sua cidade com forma (o poço e a tira de pele de boi) e caos (os dentes de dragão). Esta sabedoria antiga é uma receita adequada paraas nossas realizações masculinas de todo o dia. Acrescente dentes de dragão aos seus triúnfos para que ocorra a verdadeira criação. Homens e mulheres que acrescentam a energiafeminina interior à realização patriarcal beiram a genialidade. O catalisador pode tomar aforma de uma meia hora de quietude, um presente, uma cerimônia, ou uma libação à metadefeminina da criação patriarcal.

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    4 A História de Édipo

    O rufar dos tambores do destino ressoa como um fio condutor através da história deÉdipo. O oráculo anuncia que o rei e a rainha de Tebas gerarão um filho que matará seu paie desposará sua mãe. Do nosso ponto de vista, não há desastre pior. Lembremos, porém, queestes são um rei e uma rainha, e, o que é mais difícil, tenhamos em mente que é a história daconsciência interior, contendo as leis e medidas de segurança necessárias para o adventodesta consciência. Um dos heróis, Édipo, age corretamente e introduz a idade de ouro deAtenas. Outro, Creonte, age de maneira errada e acaba completamente só, deixando asmulheres da história pagarem por seu erro.

    Ao ficarem cientes da profecia, o rei e a rainha compreensivelmente tentam contornaro desastre.

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     Ninguém quer a consciência. A consciência só pode vir pelo destino, com a condiçãode participarmos do processo e pagarmos o preço integral. Eles ferem o filho trespassandoseus tornozelos com uma agulha de ferro e mandam um servo levá-lo ao local de abandono

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    onde crianças indesejadas ou deformadas são deixadas para morrer. Isto é um toque sutil, pois deixa uma brecha por onde o destino pode falar. Eles não matam a criança, masdeixam-na para morrer.

    O servo não suporta deixar a criança morrer abandonada. Entrega o menino a um pastor, que o leva a outro país. Eis um ato bondoso e humano, uma das delgadas linhas

    femininas que se entrelaçam aos fios do destino. O rei e a rainha do novo país não têm filho eadotam Édipo como se fosse seu filho. Ele cresce feliz. Com o passar dos anos, surgemhistórias perturbadoras sobre seu nascimento. Ele finalmente deixa seus pais adotivos (que julga serem seus pais verdadeiros) para fugir da sentença terrível, mas este ato apenas setorna o fio seguinte do destino.

    Uma história árabe mostra claramente como a arte da fuga é freqüentemente o fioseguinte do destino encaixando-se no lugar determinado. Um homem rico de Meca consultouuma cartomante, que ao olhar dentro da sua bola de cristal pôs-se a gritar e caiu desmaiada.Isto não era nada reconfortante, e o homem ficou alucinado de preocupação quandofinalmente conseguiu reanimar a adivinha. Recuperando a fala, ela lhe informou que a Morteiria ao seu encontro no porto leste de Meca, ao amanhecer. O homem, usando de todo o poder de sua riqueza, alugou uma caravana naquela noite e estava no porto leste de Agra pelamanhã. Lá estava a Morte, esperando

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     por ele. “Mas pensei que você estaria esperando por mim no porto de Meca!”, balbuciou ohomem. “Não”, disse a Morte, “há milhares de anos está escrito que nós nos encontraríamosno porto de Agra esta manhã” . Usando de todo o poder de sua riqueza e por causa doequívoco leviano da cartomante, ele chegou ao lugar da sua morte, convencido o tempo todode que estivesse fugindo dela.

    Assim fizeram o rei e a rainha de Tebas, tentando livrar-se do seu filho marcado pelodestino, e Édipo, procurando escapar do seu destino ao fugir de seus pais adotivos. Estas duasfugas apenas colocam Édipo exatamente onde deveria estar para cumprir o terrível eassombroso destino anunciado antes de seu nascimento.

    O peso da consciência vai caindo sobre Édipo no decurso de sua vida. Ele controla osdetalhes, mas o destino detém os fios principais e governa com mão de ferro, assim comoantes o ferro tinha prendido seus pés. Ele deve pagar sua dívida. Na medida em que o faz,surge a consciência e ele segue o caminho da nobreza para criar uma idade de ouro emAtenas. Sua fuga, porém, forma a escuridão e faz subir o preço.

    O PROFETA CEGO

    A história vai tecendo seu padrão enquanto Édipo foge de seu país adotivo e acabasem saber tomando o rumo de Tebas, seu país natal. Ao entrar na sua verdadeira pátria, ogentil Édipo é desafiado por um bando de viajantes e, em defesa própria, mata o líder do bando. Não sabe que este homem é seu pai, Laio, rei de Tebas.

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    Ao chegar à cidade, Édipo encontra Tebas sob o encanto de um monstro implacável, a

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    Esfinge, que destrói todos aqueles que não conseguem responder ao astuto enigma proposto por ela. A Esfinge tinha dominado o país porque o grande rei Laio fora morto. Ela é o estágioseguinte do monstro feminino que quase destruíra Tebas quando de sua fundação. Ofeminino renegado, antes um dragão devorador, se tinha transformado num teste daconsciência. Imploram a Édipo recém-chegado que encontre a resposta ao enigma da

    Esfinge. Ele consegue e livra o país da opressão da Esfinge. O povo designa o rei e dá-lhe poresposa a viúva do seu antecessor. Assim se cumpre a terrível profecia de que Édipo matariaseu pai e esposaria sua mãe.

    Durante quinze anos reinam a paz e a harmonia sob o sábio governo de Édipo. Sob asuperfície ilusória esconde-se, porém, a vergonha hedionda do segredo de Édipo, do qual elesabe apenas uma parte. Outra tirania oprime o país, na forma de inundações e pestes, pois osdeuses não podem permitir que tanta treva permaneça sem solução por muito tempo.

    Édipo pede aos deuses que lhe mostrem a causa do sofrimento de Tebas e o oráculoconta o sórdido assassinato do seu rei, Laio. É por isso que o país sofre opressão. Édipo juraque será feita a justiça com aquele que matara Laio para limpar o país deste ato tão tenebroso.

    Mandam chamar um profeta cego para revelar sua visão interior. De início ele serecusa a comentar o que sabe. “Recuso-me a expor os pesados segredos da minha alma e dasua.”

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    E prossegue: “Não me culpes; põe em ordem tua própria casa” .O profeta cego finalmente conta a história de Édipo, filho de Laio e Jocasta, expulso

     para um país estrangeiro, que retorna para matar seu pai e esposar sua mãe, agora acusador eacusado, o rei de Tebas.

    O assassino de Laio —  este homem está aqui: Aparentemente um estrangeiro, umviajante entre nós; Mas como será esclarecido, alguém nascido em Tebas,

    Para a, sua desgraça. Chegou em plena posse da visão, mas partirá cego; Agora rico,depois um mendigo; bastão na mão, tateando seu caminho

    Para um país de exílio; como iremos ver, irmão e pai, ao mesmo tempo, dos filhos queacalenta; filho e marido da mulher que o gerou; assassino de seu pai,

    E aquele que derrubou seu pai. Vai e pensa sobre isto. Se conseguires provar queestou errado, chama me de cego.

    Jocasta é chamada e ao ser interrogada percebe que Édipo, seu marido atual, é seufilho. Édipo reconhece seus terríveis, porém, inconscientes atos e exige ser exilado de Tebas.

    Ao perceber sua participação involuntária na tragédia, Jocasta enforca-se redimindoassim sua culpa. Édipo, impulsionado por sua própria culpa,

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    arranca os broches de ouro de seu vestido e fura com eles os próprios olhos para apagar avisão da mulher-mãe que o revolta. Derramando o próprio sangue realiza o primeiro ato deredenção por sua culpa de incesto.

    Édipo é expulso de Tebas, em cumprimento de sua própria ordem, e Creonte, irmãode Jocasta, sobe ao trono.

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    5O Significado Interior do Incesto

    Para entendermos o tremendo impacto desta história devemos tornar bem claro que éuma história interior, que tem pouco a ver com o fato literal. Encontraremos o seu plenosignificado ao interpretarmos os eventos como acontecimentos profundos de uma cultura e,se tivermos a coragem, de nossa própria história psíquica. Esta história e outras semelhantes

    que surgiram no mundo inteiro em várias épocas da História são mapas psíquicos paraorientar a alma humana na sua perigosa aventura rumo à consciência.O conto não trata das proibições contra o incesto literal mas é como um sonho que

    oferece orientação e proteção para que a consciência se estabeleça. Dizendo da maneira maissimples possível, o

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    incesto é o ato psicológico de criar consciência. Criamos consciência, a capacidade do selfem ver a si mesmo, quando revertemos o fluxo da nossa energia natural sobre nós mesmos. Éassim que ganhamos toda a nossa consciência. Toda a vez que nos disciplinamos,

    sentamo-nos e desejamos crescer, estamos cometendo incesto num sentido interior —  acasalando-nos conosco mesmos. Tomamos uma parte de nós mesmos, a abraçamos, e nosdedicamos ao divino ato de nos tornarmos conscientes. Temos um retrato impressionantedisto no Egito dos faraós. As pessoas comuns eram terminantemente proibidas nesta culturaantiga de casarem-se com parentes, sob ameaça de morte imediata. Mas o faraó devia casar secom sua irmã! Ele não podia casar-se com nenhuma outra mulher. Isto era para forçar aaristocracia à conscientização e proteger o povo desta experiência tão intensa, a qual poderianão suportar. A maioria das culturas recomenda a consciência para sua aristocracia, masestabelece proibições cuidadosas contra esta faculdade para as pessoas comuns. Portanto, anossa parte aristocrática é destinada a alcançar a consciência, enquanto que a parte “plebéia”obedece às leis básicas e permanece dentro dos padrões convencionais.

    Toda a introversão (esta tendência psicológica que se ocupa mais com a vida interiorque com o mundo externo) é incestuosa, razão pela qual é tão suspeita no mundo de hoje. Naverdade, “mórbido” e “introspecção” são muitas vezes associados no pensamentomoderno. Foi Jung que cunhou os termos “introvertido” e “extrovertido”. Descrevemdiferentes tipos de personalidades ou modos de

    36encarar a vida. Numa sociedade basicamente extrovertida como a dos americanos, a maioria

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    dos introvertidos é considerada “fora de sintonia”.Quando você se retira para meditar ou simplesmente para espairecer depois do

    trabalho ou porque deseja ficar sozinho, você está acasalando-se consigo mesmo. Umacorrente de energia é apresentada a outra corrente de energia, e desta fusão nasce umrebento, que, como uma criança física, possui as características das duas energias parentais,

    sendo no entanto independente delas e freqüentemente superior a ambas.Submeter-se a qualquer disciplina, afastar-se do fluxo natural de energias éacasalar-se consigo mesmo. Há um provérbio alquímico: “Olhei para mim mesmo,acasalei-me comigo mesmo, gerei a mim mesmo, dei à luz a mim mesmo, eu sou eu mesmo”.Este é o ato da “autogeração”.

    É uma atividade extremamente perigosa, que exige muito cuidado, com o risco deocorrer uma destruição especialmente maligna em vez do nascimento da consciência. Ovelho ditado “O diabo se aproveita das mãos ociosas” serve para todo aquele que nãoconsegue obedecer às leis da consciência. A tomada de consciência é uma prerrogativaaristocrática e deve ser cercada de todos os cuidados possíveis. Desobedecer às leis naturaisde energia exogâmica é permitido apenas aos que estão destinados à consciência superior. O preço pago em forma de compromisso e sofrimento psicológico é tratado pela maioria doslivros acerca da arte do crescimento pessoal e do amadurecimento.

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    Se a era na qual estamos entrando puder ser caracterizada por uma nova consciência,não é de surpreender que o incesto venha a ser muito importante para essa nova consciênciacomo uma metáfora para o crescimento interior consciente. O uso do incesto como um atosimbólico, como uma metáfora para a visão interior, é tão novo para nós e nossa época quenão enxergamos esta dimensão de criatividade. Por isso acontecem graves mal-entendidossobre esta realidade psíquica. A explosão súbita do incesto na sua forma literal e crua gritanos meios de comunicação e abarrota nossos consultórios. Nunca antes a infiltração ecrescente incidência do incesto chamaram tanta atenção. O incesto, o molestamento e aexploração do sexo são exemplos vívidos do toque dourado de uma consciência interioremergente, manifestando-se inconscientemente em atos patológicos e destrutivos. Éabsolutamente essencial que nossa capacidade para o “incesto” seja usada num nívelcriativo, o de criar consciência e cultura. Deveria ser protegida de expressar-se literalmente,o que é tão destrutivo para a psique humana.

    O cerne da história de Édipo é o custo da desobediência às leis do fluxo natural deenergia. A busca do herói é a jornada interior em direção da crescente consciência. Aquelesque empreendem esta jornada contribuem para o crescimento de uma cultura. Aqueles queentendem mal ou trapaceiam, recusando ou deixando de pagar o preço do crescimentointerior, em vez disso pagam com a moeda da solidão, ansiedade e alienação. O feminino équem paga principalmente este preço inautêntico.

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    O EXÍLIO

    Édipo finalmente é banido do seu reino. Seus dois filhos nada fazem para ajudar o

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     pai, simplesmente o repudiam. A sede de poder consome-os. Um deles, Etéocles, rebela-secontra Creonte, sucessor de Édipo, e tenta arrebatar-lhe a soberania do reino. O outro,Polinice, vai até o reino vizinho, casa-se com a filha do rei e guerreia contra sua pátria paraconquistar o trono de Tebas.

    As duas filhas de Édipo permanecem leais. Enquanto Ismena fica em Tebas,

     procurando estabelecer a ordem, Antígone acompanha seu pai até o pequeno reino deColonus, próximo a Atenas, onde eles esperam viver em paz e aliviar seu sofrimento. Édipoobserva que “Três mestres: a dor, o tempo e o sangue real ensinaram-me a paciência”.

    Édipo fica sabendo que seus dois filhos estão lutando pelo poder, primeiro contraCreonte e depois um contra o outro. Travando uma batalha de morte pela pátria, os filhosdeclaram abertamente que preferem apoderar-se de Tebas a conseguir o retorno do pai. Édiporesponde:

    Somente estas duas, minhas filhas, Fizeram tudo o que as mulheres podem, dandome o que preciso, Alimento e orientação segura e carinho afetuoso. Seus irmãos venderam o pai por um trono, Preferiram o cetro e o poder real.

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    O oráculo de Delfos tinha ordenado que Édipo fosse sepultado nos arredores deAtenas, para que seu poder trouxesse um grande florescimento cultural para a cidade.Ismena, a filha mais nova, vai a Colonus e transmite a seu pai o decreto do oráculo. Édipo pergunta: “Fazem de mim um homem no momento em que eu deixo de existir?”. Ismenaresponde: “Embora os deuses te derrubassem, agora te erguem”. Édipo promete seu corpo aAtenas.

    Creonte, que antes fizera cumprir o exílio de Édipo, agora vem exigindo o seu corpo para trazer a paz a Tebas. Com a recusa de Édipo, Creonte anuncia que uma das filhas deÉdipo está em seu poder como refém e que irá seqüestrar a outra para realizar o seu plano. Numa cena tenebrosa, Édipo, cego, ouve indefeso enquanto Creonte rapta Antígone usandode força bruta.

    CREONTE (para seus homens): Prendei-a [Antígone]. Forçai-a se não quiser vir.ANTÍGONE: Oh, ajudai! Oh, ajudai-me, deuses e homens.CORO: Pára, senhor.CREONTE: O homem pertence a vós; mas ela é minha.CORO: Tu não tens o direito.CREONTE: Tenho.CORO: Que direito?CREONTE: Ela é minha. (Ele a agarra. Os guardas levam-na embora.)

    Creonte tenta em seguida prender Édipo. Teseu, rei de Atenas, aparece em cena, salvaÉdipo, resgata

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    as duas filhas dos soldados de Creonte e as traz de volta a Édipo.Édipo dirige a palavra às suas filhas antes de morrer:

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    Este é o fim de tudo o que fui e o fim de vossa longa tarefa de cuidar de mim. Sei oquanto isto foi difícil. No entanto, tornou-se mais leve por causa de uma palavra  —  amor.Eu vos amei como ninguém jamais amou.

    Elas choram abraçadas. Em seguida, o silêncio, até que se ouve uma voz, uma vozmedonha que faz todos tremerem com os cabelos em pé. “Édipo! Édipo!”, grita repetidas

    vezes. “É chegada a hora, não demores.” Édipo reconhece o chamado divino. Pede a presença do rei Teseu, e quando este se aproxima, Édipo dirige-lhe as seguintes palavras:“Caro amigo, dá-me tua mão e promete a estas crianças. Crianças, vossas mãos na dele.Promete nunca abandonálas por tua própria vontade, e sim fazer de boa vontade tudo o queachares melhor para o bem delas”. E sem nenhum lamento o nobre Teseu jura cumprir avontade de seu amigo. Édipo pode morrer em paz.

    CORO (comentando a morte de Édipo): Foi um ato divino? Sem dor alguma?MENSAGEIRO: Foi um milagre.

    Após o enterro de Édipo, Antígone deseja ver a sepultura de seu pai, mas Teseuexplica-lhe que ninguém pode ver a sepultura de alguém que doou sua

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    vida pelo enriquecimento cultural de um país. Esta morte é inteiramente impessoal, semnenhum valor ao nível humano comum.

    Os trechos acima desvelam o âmago da história. Um homem foi chamado pelodestino para criar a consciência através do ato interior de “autogeração” , e por ser um nobre, paga o preço. Primeiro ele assume a responsabilidade pelos seus atos, em seguida sofre asconseqüências. Sua cegueira, a extinção voluntária da visão para ganhar visão interior, é o preço principal; mas o pagamento inclui também ser exilado do seu reino anterior, perder amaioria dos elementos masculinos que o haviam sustentado antes e romper os laçoshereditários tradicionais.

    A pessoa que passa por um processo de evolução da consciência é imediatamenteassaltada por um senso de abandono e excomunhão da maioria dos valores que asustentavam. O antigo reino dissolve-se sob os seus pés, restando-lhe sentir-se exilado e semnenhum parâmetro para a vida. Os elementos masculinos são especialmente hostis a qualquermudança de consciência. Dizia-se que Jesus não tinha problema algum com as mulheres aoseu redor mas a lei e a ordem dominantes na sua época deram-lhe trabalho.

    O primeiro vislumbre de esperança de que o sofrimento de Édipo não fora em vãoadvém do oráculo de Delfos. Édipo deve ser enterrado nos arredores de Atenas em favor dogrande enriquecimento da cidade. Que toque irônico! Ele não deve ser enterradocerimoniosamente dentro da cidade, e sim

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    à beira dela, onde seu espírito guiará Atenas rumo à idade de ouro sem as honras de um heróioficial.

    Eis o âmago da história. Se alguém destinado a alcançar um grau de consciência paga por isto, sucede um grande florescimento cultural. A conquista da consciência não eleva oego a grandes alturas criativas e sim causa uma eflorescência nas proximidades. Édipo não

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    faz quase nada além de sofrer; é Atenas que floresce.Édipo tinha jurado descobrir o culpado pela calamidade do reino de Tebas.

    Permaneceu fiel a sua palavra mesmo quando descobriu que esta pessoa era ele mesmo.Experimenta-se muita culpa coletiva quando se embarca na vereda individual daconscientização. É necessário distinguir a culpa coletiva da culpa individual. Devemos

    responsabilizar-nos por nossa própria culpa, mas recusar a culpa originária de fora. Todoscarregamos o pesado fardo dos pecados de nossos antepassados ou da cultura na qualvivemos, mas não devemos responsabilizar-nos pessoalmente por isto. A teologia básica nosensina claramente que somos culpados apenas das coisas que originamos. A escuridão dessahistória não se originou com Édipo, portanto ele não precisava assumir a responsabilidade por isto.

    Mas Édipo provoca sua própria cegueira ao saber de sua culpa. Isto indica que a visãoantes focalizada para fora, para o mundo cotidiano, fora transferida para o insight,focalizando a criatividade cultural, que é o verdadeiro significado da história. A glória deAtenas derivou da nobreza de um homem escolhido pelo destino para o processo cultural, umhomem disposto a pagar o preço e cumprir a profecia. Fazendo-se uma interpretação interna,como é

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    necessário para desvelar as verdadeiras dimensões de uma história ou mito, isto significa queo centro do ser é enriquecido pelo trabalho realizado pela personalidade consciente. Ao ego,que pagou o preço para que a transformação ocorresse, atribui-se pouco valor. Atenasflorescerá em criatividade porque um homem pagou o preço da consciência.

    A FUGA DA RESPONSABILIDADE

    Testemunhamos a nobreza de um homem destinado a ajudar as pessoas a conseguirentendimento e evoluir para um nível superior de consciência. Este homem sofreterrivelmente, mas conquista uma criatividade que vale mais que o ouro. Essa criatividadeultrapassa os limites de propriedade individual, pois segundo o mito, Atenas inteira se tornamagnífica porque ele criou a consciência. A responsabilidade espiritual e emocional é o quecausa este crescimento criativo na consciência. Édipo pagou por esta nova consciência ecriou nele mesmo uma idade de ouro, espelhada na glória de Atenas.

     Nós ocidentais ainda temos de aprender que toda a ação provoca uma reação do ladooposto da balança. É como se vivêssemos em cima de uma gangorra, com seu ponto de apoioexatamente no centro. Qualquer ação do lado direito da gangorra no mesmo instante provocará uma ação contrabalanceada do lado esquerdo. Uma grande realização culturalgerará uma escuridão correspondente. Uma criação coloca em movimento uma destruiçãocorrespondente. O ato cultural ou criativo será preservado se o oposto correspondente forrespeitado e receber consciência igual. Ignoramos tão

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     profundamente esta lei que nem temos palavras adequadas para isto. Como você pode dizerque deve destruir tanto quanto criar sem parecer que está negando o processo cultural inteiro?

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    Criar sem pagar tributo à destruição é tão impossível quanto tentar inspirar sem expirar. Ésignificativo que a sabedoria coloque a Sexta-Feira Santa antes do Domingo de Páscoa.

    O legado de criação deixado por Édipo é a glória de Atenas, com toda a sua nobrezade pensamento e sua filosofia, seus insights políticos e trabalho artístico. Não houveflorescimento cultural maior que esse na face da Terra em nenhuma época da História. Mas

    nenhum tributo correspondente ao lado escuro da realidade o acompanhou. A falha emcompreender este lado escuro é que causou a existência de tantas trevas desde então. A raizdo nosso problema está no fato de não termos palavras ou conceitos referentes à escuridãoque lhe dêem tanta dignidade como os referentes à luz. Sentado frente ao teclado, sinto-meincapaz de dar beleza e nobreza à outra metade da criação.

    A TRANSFERÊNCIA

    Chegamos agora a uma passagem escura na nossa história. Édipo revela sua nobrezaao pagar o preço de sua evolução, mas outros três homens não pagam o preço e transferem-noa mulheres. Este subterfúgio propaga-se pela História e está presente em nossa época. As

    mulheres de hoje se ressentem da carga injusta de algo que não fizeram. Elas são sensíveis aeste subterfúgio que constitui a parte escura da nossa herança grega. Um grupo de pessoasempreendedoras ergueu uma civilização avançada, a Idade de

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    Ouro de Atenas, mas não pagou o preço por ela, deixando-nos por herança tanto agenialidade como a feminilidade danificada.

    A história dos outros três homens é elucidativa. Creonte, que manifestou pouquíssimacompaixo por Édipo durante o seu julgamento, aproveitou se imediatamente de seusofrimento e nomeou-se rei de Tebas logo após exilar o soberano anterior. Quando o amor

     precisa competir com o poder, perece o amor. Faltou compaixão a Creonte por ele estarenlouquecido pelo poder. Embora arrependido no final, tentou ajudar Antígone, mas já eratarde.

    Os dois filhos de Édipo, mal vêem seu pai na sepultura, já brigam pelo direito aotrono. Eles lutam e matam-se um ao outro no espaço de um único dia.

    Cada um dos três homens fere as mulheres que estão próximas. Creonte toma umcaminho de poder que provocará a morte de sua mulher e sua futura nora. Os dois filhos deÉdipo negam amor ao pai e às irmãs, e matam-se um ao outro engalfinhados numa luta pelo poder. É neste momento que um caminho nobre degenera numa negação dos valoresfemininos. Essa negação nos persegue até os dias de hoje. A busca de poder é o perigo maissério com que se defrontam os valores femininos. Creonte, Polinice e Etéocles derrubamÉdipo e transformam nossa história nobre sobre a evolução da consciência num conto sobredesejo de poder que destrói o relacionamento, o amor e a devoção.

    As duas filhas fazem escolhas de vida mais sábias. Antígone se mantéminquestionavelmente fiel a seu pai e Ismena permanece próxima dele o quanto seu senso de praticidade o permite. Seguiremos estas duas mulheres enquanto modelam os valoresfemininos.

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    6O Destino de Antígone

    Como muitas vezes acontece na história humana, estoura a guerra por causa dadisputa pelo poder. Etéocles —  que deseja o trono de Tebas —  defende a cidade contraPolinice, que tenta apoderar-se dela. Os irmãos matam-se um ao outro, deixando Creontesoberano incontestável de Tebas. Ele decreta que Etéocles deve ser honrado e receber umenterro apropriado, mas qualquer um que tentar recolher o corpo de Polinice do campo de batalha será morto. Polinice deve ser deixado em desonra no campo de batalha para sercomido pelos abutres. A cidade obedece ao decreto.

    Antígone pede a ajuda de Ismena para sepultar Polinice, seu irmão, mas esta recusa;não seria prático. Antígone diz: “Vive, se quiseres; vive, e despreza

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    as mais sagradas leis do céu”. Ismena retruca: “Que os mortos me perdoem, não posso fazernada além de obedecer; mais que isso seria loucura”.

    Creonte descobre que o corpo de Polinice fora sepultado, e ordena ao mensageiro danotícia que descubra o perpetrador, sob pena de tortura. Antígone é pega cuidando do corpode seu irmão e é trazida à presença de Creonte.

    CREONTE: Dize-me agora, em poucas palavras se puderes, Sabias da proibição de tal ato?ANTÍGONE: Sabia, naturalmente. Estava bastante claro.CREONTE: E mesmo assim tu ousaste transgredila?ANTÍGONE: Sim. Essa ordem não veio de Deus. A justiça Que mora com os deusesacima não tem conhecimento de tal lei. Não considerei suficientemente fortes os vossoseditaisPara desdizer as inalteráveis leis não escritasDe Deus no céu, sendo que vós não passais de um homem.Elas não pertencem ao ontem nem ao hoje, pois são eternas,Embora nenhum de nós possa dizer de onde vêm.Ser culpada perante Deus por transgredi-las Não posso, por nenhum homem sobre a Terra.Sabia que deveria morrer, é claro,Com ou sem vossa ordem. Se for logo,

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    Tanto melhor. Viver atormentada todos os diasComo vivo, não ficaria contente eu em morrer?Este castigo não será sofrimento.Se eu tivesse deixado o filho de minha mãePermanecer sem sepultura, eu não o suportaria.

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    Isto posso suportar. É tolice o que estou dizendo?Ou sois vós que cometeis a tolice de me julgar assim?Minha conduta é partilhar o amor, não o meu ódio.

    CREONTE: Vai, então, e partilha teu amor entre os mortos.

     Não prevalecerá aqui nenhuma lei de mulher enquanto eu viver.Eis uma colisão direta do ponto de vista masculino dominante, o poder, e a

    capacidade feminina de amor e devoção. Houvesse prevalecido o amor, a História doOcidente teria tomado um rumo muito diferente. Talvez o resultado fosse inevitável naqueleestágio do desenvolvimento humano, quando a sede masculina pelo poder provou ser maisforte que a visão feminina de afinidade. Creonte decreta a morte das duas irmãs.

     No início da história Antígone tinha sido prometida em casamento a Hêmon, filho deCreonte. Como o destino de Antígone o afeta, Hêmon é convocado.

    CREONTE: Filho, penso que ouviste sobre o nosso julgamento final de tua noiva.Sem palavras de raiva, eu espero?

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    Amigos ainda, apesar de tudo, meu filho?HÊMON: Sou vosso filho, senhor; vossas sábias decisõesGovernam minha vida, e a estas sempre obedecerei. Não posso valorizar nenhum laço de casamentoAcima de vosso bom conselho.CREONTE: Disseste bem.A vontade de teu pai deve ocupar o primeiro lugar no teu coração.Os pais pedem que os filhos sejam apenas isso,Obedientes, leais, prontos a derrubarOs inimigos e amar os amigos de seu pai...Aquele que o Estado escolheu deve ser obedecido Nos mínimos assuntos, sejam eles corretos ou errados.

    Aqui um homem fraco é coagido pela autoridade masculina e, embora discorde (elogo mostrará seus verdadeiros sentimentos, tarde demais), não protesta em face dadesprezível crueldade de seu pai. É um exemplo para as gerações seguintes, inclusive anossa. Este sentimento, ou a falta dele, tem sido usado muitas vezes na História recente. Aresposta predominante dos acusados nos julgamentos de guerra de Nuremberg era: “Euestava apenas cumprindo ordens”. O sentimento humano é persistentemente eclipsado pela autoridade.

    Creonte manda abandonar Antígone numa tumba na rocha, com suprimentos para ummês, para morrer à míngua. Assim é feito para que a culpa de sangue não recaia sobre o rei deTebas.

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    Creonte consulta um oráculo, que o avisa das conseqüências de sua crueldade. Ele

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    enterra o corpo de Polinice acompanhado de todo o ritual devido. Em seguida vai até acaverna onde tinha aprisionado Antígone, mas chegando lá descobre que ela se haviaenforcado. Hêmon, enfurecido com a perda de sua amada, tenta matar seu pai. Não conseguee volta a espada contra si mesmo. A mulher de Creonte, Eurídice, tira a própria vida ao saberda morte de seu filho.

    A peça termina com Creonte, responsável pela morte do filho e conseqüentemente pela morte da mulher, em pé no centro do palco, completamente só, destruídos todos oselementos femininos, morta a sua família inteira e Tebas em ruínas. Ele fala:

    Sou nada. Não tenho vida. Levai-me embora, Eu que matei sem pensarMeu filho, minha mulher. Não sei para onde devo ir,Onde buscar ajuda.Minhas mãos cometeram falhas, minha cabeça está caída,Com o peso do destino pesado demais para mim.

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    7O Legado de Édipo

    O mito de Édipo, o mito fundamental da mitologia grega, conta-nos de uma formacurta e simples sobre o legado maravilhoso e terrível que herdamos do nosso progenitorespiritual, a Grécia. É a história de um momento crucial na vida da humanidade, quandoaparece pela primeira vez o conjunto-mentalidade moderno. O destino decretara que ohomem deve aprender os segredos do incesto e, pagando o preço emocional e físico por

    esse conhecimento, colocar a pedra fundamental para a glória de Atenas. O nobre Édipo pagou o preço e entregou sua oferenda a Atenas, Atenas que não é tanto uma cidade e simum modo de vida, uma atitude, um tipo específico de consciência. Na melhor das hipóteses,somos cidadãos de Atenas até hoje.

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    Outro homem, Creonte, tivera a mesma oportunidade porém falhara. Os dois nosensinam como lidar com nosso legado dual de luz e escuridão, nobre e trágico, amoroso ecruel.

    A grande lição que devemos aprender tem a ver com responsabilidade humana. Édipo

     pagou o preço por esta nova consciência. Creonte fez com que as mulheres e os elementosfemininos a sua volta pagassem o preço. Nada nos parece mais desonroso ou desumano doque obrigar uma outra pessoa, um inocente, a pagar por nossos erros ou faltas. Seja numa briga familiar ou num incidente internacional, freqüentemente a questão é o preço. O homemtem uma falha, fatal, a não ser que ele se aperceba disso, de arrumar cuidadosamente suavida de maneira que o feminino pague o preço de sua criação masculina. Ele é capaz de terseu momento culminante de sexualidade e ir embora, deixando a mulher cuidar da parte prática, ou é capaz de usar os materiais do mundo para os seus propósitos e deixar o planeta

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    devastado, desequilibrado e desordenado. O pior de tudo é que, por isto ser tão sutil, ele podelevar a parte superior da consciência e deixar a parte feminina dentro dele mesmo pagar o preço: escuridão interior e falta de sentido. Devemos investigar a última.

    Édipo reconhece sua visão interior (incesto, na nossa história) e toma aresponsabilidade para si. Anuncia claramente que trará o responsável pelo declínio de

    Tebas perante a justiça. Quando descobre ser ele mesmo, pede para ser exilado e sofre oimpacto todo da perda de sua pátria, isto é, da consciência que conheceu antes do insight.Adquirir uma nova visão exige o sacrifício da antiga. Édipo destrói

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    dolorosamente sua visão antiga e dirige sua energia numa nova direção, via insight.Se tomarmos ao pé da letra esta parte da história, perderemos o seu significado mais

     profundo. A cegueira de Édipo tem por objetivo ilustrar uma verdade interior, como o fazemos símbolos de um sonho. Ele é afastado do enfoque e das atitudes antigas. Fausto passa pelo mesmo redirecionamento próximo do final de sua história, quando a SenhoraPreocupação o cega.5 Um dos atos mais nobres que um homem pode realizar é manter suaconsciência e suas atitudes no nível e na direção apropriados ao seu atual estágio deevolução. Fingir que é mais evoluído do que realmente é resulta em rupturas psicológicas. Noentanto, recusar-se a crescer sempre força uma outra pessoa a pagar pelas suas dívidas psicológicas. Como já disse, esta é uma das mais escuras capacidades humanas.

    Creonte falha exatamente onde Édipo atesta sua nobreza. Creonte deseja o poder àmaneira antiga e dirige sua energia segundo os padrões antigos, assumindo o controle doreino, lutando com os dois filhos de Édipo, tomando as duas filhas como reféns. Seguindo os padrões desgastados pelo tempo, ele faz com que uma série de mulheres paguem o preço doseu erro. Um aspecto positivo é quando ele responde à voz do oráculo, mas aí já é tardedemais. Antígone morre no cativeiro imposto por ele; seu filho morre pela perda deAntígone; sua mulher morre por causa da perda de tudo o que lhe é precioso.

    Poucos momentos na mitologia feriram de maneira tão trágica os valores femininos.

    5. Ver meu próximo livro sobre o desenvolvimento da consciência masculina com referênciaaos vários paralelos entre Fausto e Édipo.

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    8A Saga Continua

    Há ilustrações na mitologia e na literatura que demarcam a contínua ausência do valorfeminino na cultura ocidental. Esta atitude unilateral prevalece pouco desafiada até o nossoséculo.

    Tanto o cristianismo quanto o judaísmo defenderam pontos de vista extremamente patriarcais da natureza da humanidade. É um choque descobrir que o concílio de Mâcon (uma

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     província da França ao norte de Lyon) da Igreja do século dezesseis manteve um longodebate sobre a questão se as mulheres possuíam ou não uma alma. Na contagem final dosvotos a decisão foi afirmativa, por um único voto! Pouco tempo antes Santo Agostinho tinhadito que não se podia outorgar mais poder para as mulheres

    57 porque elas já possuíam poder demais. Embora seja um tributo torto ao poder inato dasmulheres, e da feminilidade, isto mostra uma incapacidade de integrar o respeito pelo valorfeminino na vida humana do dia-a-dia.

    Outro conto sobre a perda da feminilidade é o romance de Tristão e Isolda.Originário do século XII, junto com o mito do Graal, é fundamental para grande parte do pensamento moderno. O início desta história é frio e vazio de sentimento, chegando até a serdesumano.

    O rei Marcos da Cornuália tinha recebido ajuda de seu amigo o rei Rivalen deLyonesse, numa batalha desesperada. Marcos, por sua vez, oferece ao seu amigo sua irmãBranca Flor em casamento. Este é o primeiro golpe na feminilidade: ela, a flor branca, édoada como uma peça de propriedade numa transação política. A feminilidade sendo tão pouco valorizada, não é de surpreender que a história evolua para uma falha de amor.Qualquer troca ou início que não dê à feminilidade um lugar honrado não pode prosperar.Com a continuação do conto, Branca Flor descobre que seu marido fora morto em algumaempreitada masculina justamente um dia antes do nascimento de seu filho. Desesperada comestes repetidos golpes na sua dignidade e valor, Branca Flor dá a seu filho o nome de Tristão,que significa “o triste”, e em seguida morre de tristeza.

    A história prossegue a partir deste início errado e perpetua o erro em episódiosinfindáveis até acabar na morte sem sentido do próprio Tristão. O baixo valor conferido àfeminilidade no início da história tem seu ponto culminante no final com a perda da vida emsi.

    58

    O mito de Tristão e Isolda ainda exerce profunda influência sobre o nosso pensamento e costumes coletivos: apaixonar-se é a suprema experiência humana. Mesmoque uma pessoa nunca tenha ouvido esta história sobre o poder do amor romântico, seusvalores reverberam no mais profundo do inconsciente, afetando as atitudes em relação aocasamento, posição, poder, riqueza. Enquanto esta busca ilusória do perfeito parceiroromântico não for esclarecida em nosso pensamento coletivo, não poderemos fazer as pazescom o lado feminino de nossa natureza.6

     Nosso exemplo seguinte de estupro da feminilidade pela masculinidade encontra-seem Romeu e Julieta de Shakespeare. Ali descobrimos quão pouco as coisas mudaram desdeque Creonte afirmara: ”Não prevalecerá aqui nenhuma lei de mulher enquanto eu viver”. Nãohaverá nenhum amor enquanto preponderarem valores masculinos exclusivos. O poder éfreqüentementeexercido à custa do amor, então o amor perece.

     Romeu e Julieta começa com a rixa entre duas famílias, os Montecchios e os Capuletos.Prevalecem os valores patriarcais de poder, domínio, prestígio e autoridade, que colocam asduas famílias aristocráticas uma contra a outra. A aristocracia, que deveria ser a base para a

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    consciência superior, é marcada freqüentemente demais pelas mais amargas rixas e lutas pelo poder.

    6. Ver no meu livro WE (editado pela Editora Mercuryo, 1987) uma abordagem do tema deTristão e Isolda.

    59

    Os dois jovens amantes, cada um representando uma das famílias oponentes,carregam o fardo de sanar esta contenda. O prólogo monta a cena arquetípica:

    Duas famílias, ambas da mesma dignidade, Na bela Verona, onde localizamos a nossa cena,Rivais antigos se lançam num novo motim,Onde sangue civil mancha as mãos civis.Do seio fatal destes dois inimigosDois amantes marcados pelas estrelas tiram suas vidas;Suas derrotas desafortunadas e comoventesCom sua morte enterram a luta de seus pais.O tenebroso acontecimento de seu amor marcado pela morte,E o ódio sempiterno de seus pais,Que nada removia, somente o fim de seus filhos,Agora serão o assunto durante duas horas em nosso palco;Que se ouvirdes com ouvidos pacientes,O que faltar, procuraremos consertar com afinco.

    Romeu e Julieta aproximam-se um do outro com amor delicado, cercados pela maréde mil anos de poder, propriedade e domínio do mundo patriarcal. O jovem Mercúcio pronuncia enfaticamente falas perversas aconselhando Romeu a entregar-se ao prazer eesquecer-se do custo ou do compromisso.

    O macaco está morto, e eu devo conjurá-lo. Eu te conjuro pelos lindos olhos deRosalina, Pelo seu semblante altivo e pelo seus lábios rubros,

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    Pelo seu pé delicado, perna esbelta, e coxa trêmula,E as regiões contíguas a ela,Que apareça tua imagem diante de nós!

    Mercúcio queria fazer-nos crer que o amor nada mais é do que “uma coxa trêmula, eas regiões contíguas a ela”. A genialidade de Shakespeare colocou e sta fala degradanteimediatamente antes da declaração de amor de Romeu a Julieta, a maior declaração de amor jamais escrita.

    Romeu fala de Mercúcio: ”Um cavalheiro, ó ama, que adora ouvir sua própria voz, efala, durante um minuto, mais do que poderia fazê-lo durante um mês”. A ama de Julieta éuma personificação feminina mais velha da mesma opinião, pois aconselhaa a seguir o plano

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    de seus pais casando-se por conveniência com Paris, a quem ela detesta. A ama diz a Julietaque é sábio casar-se conforme foi ordenado e ao mesmo tempo permitir-se o prazer dosencontros furtivos com o/ seu amado Romeu.

    Bem, fizeste uma escolha simplória; não sabes escolher um homem. Romeu! não, nãoele. Seu rosto até que é mais bonito que o de qualquer homem, mas suas pernas suplantam as

    de todos eles; as mãos, os pés, o corpo, embora não se deva mencioná-los, estão além dequalquer comparação. Embora não seja a flor das boas maneiras, garanto-te, é delicado comoum cordeiro. Vai, moça, serve a Deus.

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    Julieta deveria realizar um casamento político e esquecer seus sentimentos. “Serve aDeus”, a ama aconselha. Ela blasfema o amor de Julieta por Romeu: ”as mãos, os pés, ocorpo, embora não se deva mencioná-los...” —  Ela relata: “Teu amor fala como umcavalheiro honesto, e cortês, e gentil e belo e, garanto, virtuoso” —  descrevendo Paris, ohomem com quem os pais de Julieta exigem que ela se case. Na mentalidade da ama, adevoção não passa de uma perna, uma mão, um pé e um corpo, enquanto a conveniência étudo. Não é conversa de alcova. É o assassínio de tudo o que é feminino.

    Se alguém duvidara que o feminino divino (neste caso, amor e devoção) pudesse serferido tanto pela mulher como pelo homem, eis a prova. Ouvimos a pior das blasfêmias da boca de uma mulher, embora Mercúcio esteja em segundo lugar.

    A peça segue seu caminho tenebroso. Romeu e Julieta levaram seu amor ao FreiLourenço, e por seu intermédio mais um golpe mortal é desferido na feminilidade. Se osacerdote, que deveria representar o amor e a devoção, fosse autêntico, teria honrado oamor existente entre os dois. Mas ele se curva ante a pressão política dominante e tenta, porum meio escuso, conseguir o que considera justo, dentro de sua limitada capacidade. Eleinstrui Julieta a beber uma poção e dormir fingindo estar morta, de maneira que Romeu possasalvá-la da sepultura e levá-la para um país onde seu amor pudesse estar seguro. Mas outro personagem falha não seu papel e, amedrontado pelas possíveis conseqüências, não transmiteas instruções necessárias a Romeu, que, chegando desinformado à sepultura da moça,fracassa no seu

    62

    amor cometendo suicídio. Julieta desperta para encontrar não o seu amado mas o seucadáver, matando-se em seguida. Mais um fracasso no amor.

    O drama arquetípico expõe a condição psicológica da Europa conforme a visão deShakespeare. Todos os envolvidos fracassam em proteger o valor feminino que poderia tersanado a ruptura entre as duas famílias em guerra. Primeiro, as famílias nobres caíram naheresia medieval de rivalidade pelo poder. Em seguida, o amigo Mercúcio aconselha Romeua seguir uma filosofia hedonística. Até a ama, que por ser mulher deveria estar mais próximados valores femininos, aconselha a duplicidade. O sacerdote deixa de defender o valor doamor, que deveria estar em primeiro lugar para ele. Um mensageiro falha na transmissão damensagem por causa do medo. Menos culpados, mas seguindo a mesma linha de valores, osdois amantes falham um com o outro.

    Através da história inteira, entretanto, soa a nota da redenção: as duas casas nobresfinalmente se reconciliam, pondo um fim à rixa no funeral dos dois amantes. Esta peça é uma

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    avaliação que Shakespeare faz da interação de uma masculinidade enlouquecida pelo poder euma feminilidade submersa, atuante na sua época.

     Nossas atitudes em relação à feminilidade estiveram tão profundamente enraizadasem nosso pensamento e em nossa língua durante os últimos três ou quatro milênios que perdemos de vista nosso questionamento. Mesmo questionar é um aspecto masculino que

     pode direcionar esta investigação na direção errada.63

    SEGUNDA PARTE

    O FEMININO NA MITOLOGIA HINDU

    9

    Uma Atitude DiferenteAo explorar outra cultura podemos adquirir uma visão mais clara de como não

    sacrificar nem a graça nem o calor humano.Uma história indiana semelhante ao mito de Édipo revela uma atitude bem diferente

    em relação à feminilidade. Novamente é o mito que fornece insight psicológico de umaatitude cultural. Mahabharata, o livro sagrado dos hindus, data aproximadamente do mesmo período dos nossos Antigo e Novo Testamentos. É três vezes mais extenso que os dois juntos.Um pequeno segmento de Mahabharata, a história de Nala e Damayanti, oferece-nos umaoutra perspectiva do equilíbrio entre os valores masculinos e femininos. Os personagens do Mahabharata conseguem proteger melhor o princípio da feminilidade e a afinidade que os

    nossos heróis ocidentais.

    67

    Uma advertência: não apresento esta cultura oriental como se fosse superior à nossa. No entanto, podemos aprender com ela sobre o feminino. A falta do desenvolvimentotecnológico empurrou a sociedade da índia em direção à crise econômica e ambiental.Manteve no entanto uma valorização dos relacionamentos humanos que ultrapassa emmuito a da sociedade ocidental.

    A Índia tradicional recusou-se a adotar qualquer tecnologia que direta ouindiretamente pudesse colocar em risco os relacionamentos humanos e os valores femininos.

    As técnicas de linhas de montagem, deslocamento das famílias para as cidades, ruptura delaços familiares com o envio do assalariado para um lugar de trabalho distante eram práticas consideradas perigosas demais. Para resguardar os valores femininos a Índiasacrificou o progresso industrial. Nenhum indiano tradicional desafiaria esta escolha.

     Nossa cultura ocidental incentiva a industrialização em detrimento dos nossosrelacionamentos, tanto entre nós mesmos, como com o mundo ao redor. Como resultado,estamos num grande perigo de destruir a vida dos relacionamentos, assim como a Índia está

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    em perigo de ser afogada pela pobreza e fome. A ameaça ao sentimento de afinidadeindiano cresce na medida em que eles abandonam seus costumes tradicionais adotandoatitudes ocidentais. As histórias de terror que se ouvem sobre a ruptura de relacionamentosna Índia moderna freqüentemente parecem ser atribuíveis à sua adesão aos costumesocidentais.

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    A história terá de fornecer um veredicto sobre quem serviu melhor à humanidade: oOcidente materialista ou o Oriente que dá importância ao relacionamento. Provavelmente oúnico veredicto inteligente aprovará o empenho que serve tanto aos valores masculinosquanto aos femininos, resguardando cada um deles.

    69

    10A História de Damayanti

    O conto de Nala e Damayanti merece ser estudado com certa reverência. Naqualidade de mito, esta história fala inevitavelmente da condição interior psicológica dacultura que a produziu. Contos sobre reis e rainhas, deuses e demônios são o meioconsagrado pelo tempo de examinar as características psicológicas e padrões docomportamento humano. Não é possível reproduzir a magnificência da língua arcaica na quala história foi escrita, mas um segmento de uma tradução inglesa do século dezenove estáanexado no final deste livro para comprovar sua beleza atemporal.

    Era uma\vez um rei que era a flor da virtude mas possuía uma falha gritante: não

    conseguia resistir ao impulso de jogar. Estava tão cegado por esta sua paixão

    71

    que podia ser facilmente seduzido a jogar e igualmente a ser enganado. Finalmente, perdeuseu reino e foi exilado para a floresta da pobreza. Seu filho, Nala, subiu ao trono e usando desua sabedoria e força restaurou o poder do reino.

    Bem, um rei vizinho tinha uma filha em idade de casar, de incomparável beleza enobreza. Mensageiros e cortesãos se incumbiram de espalhar a notícia das virtudes deDamayanti. Logo as conversas uniram o par, Damayanti e Nala, por excelência. Não é deestranhar que os dois viessem a amar-se como se fossem destinados a isso, embora nunca se

    tivessem visto fisicamente. O assunto parecia impossível já que Nala não podia vê-la. Masum certo dia, Nala, por acaso, capturou um cisne dourado que negociou sua liberdade emtroca da promessa de cortejar Damayanti para ele.

    O pai de Damayanti anuncia um torneio, um Swayamvara, para os pretendentes desua filha. Os deuses, até o próprio Indra, o deus soberano de toda a Índia, inscrevem-se notorneio. Indra encontra Nala na estrada a caminho do torneio e ordena-lhe que cortejeDamayanti em seu nome. Nala, num terrível dilema entre a lealdade para com o deus e para

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    com o próprio coração, corteja Damayanti abertamente para Indra mas declara em silêncioseu próprio amor. Damayanti revela seu amor por Nala e decide escolher Nala em público por ocasião do festival.

    O momento crítico chega. Os concorrentes sentam-se em círculo e ela deveescolher. Mas todos parecem deuses aos seus olhos! Que fazer? Alguém lhe sussurra que

    o único humano presente, Nala,72

     pode ser reconhecido porque é obrigado a piscar os olhos vez por outra. Damayantiencontra Nala desta maneira e anuncia sua escolha. Todos os deuses, mais generosos que oshumanos, abençoam o jovem casal.

    Mas as coisas não ficam assim. Kali, o deus da ira e da destruição, ouve que ummero mortal havia preterido os deuses por outro mortal para ser seu cônjuge. Kali manifestasua ira mas é obrigado a esperar doze anos até encontrar um ponto vulnerável no caráter de Nala. Um dia Nala esquece de lavar os pés antes de rezar e Kali ganha o controle sobre ele.Isto pode parecer um assunto de menor importância para um ocidental, mas qualquer quebrade forma é considerada perigosa na índia. Espionando os antepassados de Nala, Kaliinflama-o com a necessidade insana de jogar.

    Apesar dos conselhos de seus amigos que tentam protegê-lo, Nala perde no jogo seureino e até a última roupa de Damayanti. Resta a ela um pequeno pedaço de pano para secobrir, e a ele nada. Nala nada pode fazer a não ser partir para a floresta com Damayanti elevar a vida de um mendigo asceta.

     Nala cai na depravação e rouba metade da modesta roupa de Damayanti enquanto eladorme. Agora ele tem algo a colocar no jogo. Ele perde até mesmo esta última propriedade.Presa de terrível vergonha, ele abandona Damayanti ainda adormecida.

    Ao acordar, Damayanti fica inconsolável na sua solidão e perda. Ela é feita prisioneira dos anéis de uma serpente gigante, mas é salva por um jovem. Durante três diasvagueia sem rumo. Um bando de ascetas diz4he que logo encontrará seu marido, livre de sualoucura e restituído à sua dignidade real. Os ascetas desaparecem; tinha sido apenas umavisão.

    73

    Damayanti se junta a um bando de mercadores a caminho de Suvahu, a Cidade daVerdade. Acampam ao lado de um lago de lótus. No meio da noite uma manada de elefantesselvagens destrói o acampamento, indignados com o que o homem tinha feito ao domesticarseus irmãos. Damayanti viaja sozinha à Cidade da Verdade, onde a rainha a reconhece e lheoferece proteção.

     Nala deu-se um pouco melhor. Ele vê um incêndio na floresta e ouve Naga, a serpentedo mundo, gritar do meio das chamas pedindo ajuda. Nala salva a serpente, mas érecompensado com uma mordida. Naga explica que esta mordida é a única cura para sualoucura, mas o pagamento por esta cura será a perda de sua juventude, beleza e graça. Nala,transformado, vai à Cidade da Verdade para trocar sua habilidade em lidar com cavalos pelahabilidade com os dados.

    Damayanti é encontrada por seus pais na Cidade da Verdade e levada para casa. Seus pais se põem a procurar Nala por meio de uma armadilha: eles anunciam outro Swayamvara

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     para Damayanti. Ao saber disso, Nala fica agoniado. Trabalha para um homem que planejacompetir no Swayamvara. O senhor lhe pede que lide com os cavalos e fica tãoimpressionado com a habilidade precisa de Nala que lhe oferece trocar sua própria habilidadecom os dados pela habilidade de Nala com os cavalos. Nala pode agora expurgar sua loucura.

     No Swayamvara, ao lidar com os cavalos, Nala faz sons que são caracteristicamente

    só dele. Damayanti reconhece Nala pela audição, mas não ainda pela visão. Ao toque deDamayanti, Nala recebe de volta sua posição de rei.

    74

    11Duas Histórias de Amor

    Enquanto viajamos pela mitologia será instrutivo mostrarmos mais duas breveshistórias de amor do Mahabharata. Elas ressaltam a importância central da força do amor e

    da afinidade na vida hindu. Em ambas as histórias o personagem principal é uma mulher,Shakuntalal e Savitri.

    SHAKUNTALAL E O ANEL

    Shakuntalal é a enteada de um sábio que mora num singelo ashram na floresta. Umdia, o rei vai à caça e encontra-a colhendo flores na floresta. É claro que eles se apaixonamimediatamente. Casam-se e o rei dá a Shakuntalal um anel com o seu selo. O rei

    75

     parte para reassumir seus deveres reais, dizendo a Shakuntalal que venha ao seu encontrologo que possível. Com o anel ela poderá entrar na corte. O sábio, seu padrasto, tinha estadoausente, e na volta descobre Shakuntalal grávida. Ele se alegra com o casamento com o rei e promete ajudá-la a partir quando a criança estiver em idade de viajar com segurança. Masenquanto o pai de Shakuntalal esteve ausente, outro sábio veio visitá-los. Tão embevecida noseu amor pelo rei estava ela que ofendeu o sábio, esquecendo-se das formalidades devidas aum iogue visitante. Ele a amaldiçoou, dizendo que a pessoa que causava a sua distração iriaesquecê-la. Ela implorou-lhe que assim não fosse, e então ele modificou a maldição, prometendo que se o homem visse o anel que estava usando, iria lembrar-se dela. Eis queela perde o anel durante sua viagem até o rei. Certamente ele a esquecerá.

    Shakuntalal exprime sua fúria e angústia por ter sido esquecida. Seu monólogo na

    corte sobre a irresponsabilidade dos homens tomados pelo desejo ardente, escrito pelomaior dramaturgo da Índia, Kalidasa, é uma heróica defesa do domínio dos valores femininosno mundo: estabilidade, conforto, afinidade e amor singelo.

    Shakuntalal é levada pelos deuses ao céu para lá viver enquanto o rei pondera sobreo estranho curso dos fatos, este algo” que esquecera. Finalmente um pescador encontra nolago o anel com o selo real e o leva ao rei, que então se lembra de tudo. Parte em busca deShakuntalal, encontrando-a e a seu filho numa montanha celestial, e todos se reúnem.

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    SAVITRI NA FLORESTA

    Savitri é a forma feminina de uma das muitas palavras que designam o sol em

    sânscrito. Um rei e uma rainha que não tinham filhos, depois de oferecerem um grandesacrifício ao sol, são recompensados com uma maravilhosa filha. Savitri cresce e se tornauma mulher tão esplêndida que nenhum homem ousa pedi-la em casamento. Então seu paisugere que ela vá pelo mundo afora numa carruagem, acompanhada de um séquito, à procurade um marido.

    É o que ela faz. Após longas jornadas pela maravilhosa terra da Índia, ela vislumbraum belo jovem à beira da floresta. No mesmo instante sua vida muda. Satyavan é o filho deum rei exilado que vive a vida simples de um asceta na floresta, porque ao se tornar cegonão podia mais desempenhar suas tarefas reais.

    Savitri volta ao reino de seus pais para contarlhes sua escolha. Narada, o mensageiroe músico divino, aparece para informar à corte reunida que Savitri fez uma perfeita escolha.Mas existe um problema: Satyavan morrerá transcorrido um ano após o casamento. Arainha fica perturbada e pede que Savitri reconsidere. Savitri, porém, insiste já ter feito suaescolha. O casamento se realiza e Savitri vai à floresta para viver com o seu marido e seus pais. Ela os serve bem e todos a amam. Continua bela e graciosa apesar da vida difícil nafloresta.

    Com a aproximação do dia em que Satyavan deve márrer, Savitri começa a jejuar para ganhar força interior. O dia fatal chega e ela pede ao marido

    77

    que a leve junto para cortar lenha para o fogo. Ele concorda. Satyavan morre ao golpear omachado.

    A Morte se aproxima para levar sua alma enquanto Savitri segura a cabeça deSatyavan no colo. Incansavelmente, ela segue a Morte até o reino infernal e para livrar-sedela, a Morte oferece vários dons para Savitri escolher: a visão para o seu sogro cego, oretorno do rei para o seu lugar de direito, uma centena de filhos para ela, o que fora suaescolha. A admiração que nutre por Savitri faz com que a Morte esqueça que, para ela poderter filhos, Satyavan deve permanecer na Terra. A Morte liberta a alma de Satyavan. Savitri, portanto, conquistara a morte por meio do amor.

    REFLEXÕES

     Nestas duas belas histórias, assim como na nossa história principal, é na força dofeminino, na mulher-herói, que reside o fator da redenção. Em todas, os homens nãoconseguem por qualquer razão o enfoque da feminilidade para complementar a sua forçaexterna. Ocorre assim uma crise divisora que pode ser resolvida somente pelo heroísmofeminino.

    A tradição ocidental oferece três contos que nos surpreendem por inverter as trêshistórias do Mahabbarata no seu trágico desfecho. O conto de Orfeu e Eurídice é umainversão da busca de Savitri. Uma figura masculina usa sua força feminina, representada pelamúsica, para chegar ao inferno e convencer Plutão a libertar sua mulher. Esta feminilidade,

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     porém, não resiste até o fim, e ele fracassa. O problema de Medéia com Jasão é análogo ao deShakuntalal

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    com seu rei. Mas Medeia mata seus dois filhos por vingança e o amor se perde. Romeu eJulieta são amantes adolescentes como Nala e Damayanti. Julieta, no entanto, cai vítima deum sacerdote bem intencionado mas ineficiente, e os amantes morrem.

    Todas as mitologias apresentam sempre o mesmo tema, isto é, a interação entre asfiguras arquetípicas e/ou humanas. Passamos a maior parte de nossa vida no jogo horizontalentre forças oponentes, o perpétuo cabo-de-guerra entre eventos pessoais tais como eles sãoe como desejaríamos que fossem. Isto gera energia humana, fonte daquilo que fazemos naqualidade de humanos. Podemos chamar a isto de drama da vida. Existe ainda o jogo verticalque é o drama de níveis, a interação de deuses e pessoas. Este é o reino da mitologia, todo umnível de drama superior ao jogo humano comum. A palavra com a qual designamos estadimensão de experiência é destino.

    O destino desempenha um papel igualmente poderoso no mito de Édipo e nashistórias hindus. Édipo cumpre um destino que lhe foi designado bem antes do seunascimento e por isso não podemos culpá-lo por sua herança. O destino também figura nomito de Nala e Damayanti, onde as circunstâncias fazem com que eles se encontrem e ondeos deuses intervêm e desejam modificar o comportamento humano.Somente a mitologia e odestino são suficientemente fortes para resolver o dilema de Nala e Damayanti quando elesquerem se casar, mas os deuses desejam Damayanti para si. A inteligência humana comum, projetada para trabalhar com o jogo humano do gostar e não gostar, do bem e do mal,

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    não consegue lidar com esta brecha vertical, e assim a história deve continuar o seu cursodestinado para encontrar a solução.

     Não podemos ser responsabilizados pelo destino, pois não o criamos; mas a maneiracomo prosseguimos com este destino é de nossa inteira responsabilidade. Embora a históriatenha escapado das dimensões humanas ao fazer sua brecha vertical, ainda assim, são asações nobres ou ignóbeis dos humanos que levarão a história a um final nobre ou desastroso.Édipo comprovou o poder da nobreza humana; Creonte provocou o desastre dele mesmo e dacasa de Tebas. Nos limites do seu destino, Édipo agiu com humanidade e afinidade; Creonte jogou jogos de poder e destruiu tudo que estava ao seu alcance. Um trouxe o maiorflorescimento cultural jamais registrado na História, a Idade de Ouro de Atenas; o outroestabeleceu um padrão de relacionamentos deficientes, atuante até os dias de hoje. É estaação humana que chama nossa atenção nos dois mitos. É esta ação que determina a nobrezaou o desastre da história.

    Primeiro, é triste ver como os homens agem mal tanto no mito grego quanto no hindu.As mulheres, porém, mantêm-se firmes no mito da Índia, coisa que as mulheres no mitogrego são incapazes de fazer. Este tema de jogo entre os elementos masculino e femininodesafia cada um de nós. Podemos aprender com isto. Se o elemento feminino se mantiverfirme, a história fatídica pode chegar a uma solução de afinidade positiva. Qualquer que sejao nosso destino, mesmo se for muito tenebroso, estaremos seguros se o feminino conseguir se

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    manter firme.

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     Nossa história hindu fala do impacto dos deuses sobre a vida humana quando os

    indivíduos são arrebatados dos caminhos comuns de comportamento convencional. Desde oinício o elemento masculino é engolido pelo seu lado obscuro, o jogo de dados. O jogo podeser considerado como uma dimensão profundamente arraigada do comportamentomasculino. O pai de Nala perde seu reino porque não consegue controlar sua paixão pelo jogo. Os deuses sabem exatamente onde atingir Nala para castigá-lo por sua interferênciaem seu reino divino. Para se ver este comportamento na nossa época, basta ouvir uma mãetentando dissuadir seu filho de participar de uma perigosa corrida de motos. Uma amigatelefonou-me outro dia dizendo que estava tentando manter-se calma aquela tarde enquantoseu filho tinha ido saltar de pára-quedas. O jogo de dados possui seus equivalentes nas maisdiferentes épocas.

     Nala e Damayanti seguem um curso normal de vida humana quando os deusesintervêm, um sinal seguro de evolução iminente. Nala é obrigado a suportar a tensão de estardividido entre sua lealdade para com os deuses e seus próprios desejos com relação aDamayanti. Uma ruptura desse tipo pode ser curada somente por uma ação heróica. Nalafinalmente realiza esta ação e traz a cura. Damayanti permanece firme na sua lealdade,devoção e insight,  possibilitando a Nala que prossiga no seu caminho heróico. Istotambém é heroísmo, no seu aspecto feminino.

    Damayanti é a figura-chave da história, pois é sua força e sabedoria que a levam auma conclusão feliz. Primeiro, ela tem a capacidade da persistência.

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    Espera na casa de seu pai até que seu príncipe a encontre. Em seguida, porém, ela escolhe,isto é, mantém uma perspectiva humana realista quando lhe oferecem um deus por marido.Isto é extremamente importante e representa um momento na feminilidade (e um momentona vida de uma mulher) em que uma mulher permanece fundamentada no seu aspectohumano. Ela evita a fantasia romântica de um amante divino. Isto requer uma sutileza bemsintonizada para fazer distinções psicológicas e emocionais. Ela sabe que somente o homem precisa piscar os olhos, característica inexistente nos deuses. Ela está ciente dos limites e prefere um ser humano limitado, que precisa piscar os olhos, a um divino, que seria eterno eimortal. Ela é capaz de ver que a condição humana é preferível à divina num momentoespecífico de sua vida.

    Então Damayanti deve esperar e agüentar durante um tempo que parece não ter fim.Observa seu homem, Nala, mergulhar na sua loucura do jogo e mesmo assim permaneceleal a ele. Fosse isto tomado ao pé da letra, poderíamos pensar que uma mulher deve seguirseu homem como uma escrava, por mais insensatas que sejam suas atividades. Estamosdiscutindo, porém, a masculinidade e feminilidade interiores, o q