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RAIOS VIOLETAS NUM CÉU DE CHUMBO Personagens: A B ATO I Cena 1 PALCO VAZIO. A Como você pode ficar assim, com toda esta calma? Estou me roendo de ansiedade. B Eu já disse: relaxa. Ele sempre aparece. A Mas eu não consigo relaxar, nunca vou conseguir. Como você pode ficar deitada, esperando... B Ele é um bom sujeito. Ele sempre vem.

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RAIOS VIOLETAS NUM CÉU DE CHUMBO

Personagens:

A

B

ATO I

Cena 1

PALCO VAZIO.

A

Como você pode ficar assim, com toda esta calma? Estou me roendo de ansiedade.

B

Eu já disse: relaxa. Ele sempre aparece.

A

Mas eu não consigo relaxar, nunca vou conseguir. Como você pode ficar deitada, esperando...

B

Ele é um bom sujeito. Ele sempre vem.

A

Ansiedade é uma ratazana medonha, devorando tudo. Mas este cara, como ele é?

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B

Como todos os caras.

A

Jovem, velho?

B

Sei lá.

A

Como sei lá? Você não sabe quando uma pessoa é velha ou jovem?

B

Ele é careca.

A

E dai? Um jovem pode ser careca.

B

Eu só disse que ele era careca.

A

E daí?

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B

Sei lá. A gente nunca sabe a idade destes carecas.

A

Ele tem barriga?

B

Merda! Todo mundo tem barriga.

A

Quero saber se ele tem pança.

B

Tem uma barriguinha.

A

Maior do que a minha?

B

Você não tem barriga. Você tem fome.

A

Você sabe que tenho fome.

B

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Não devia ter.

A

Não devia ter fome?

B

Sim, eu não tenho fome, eu não tenho sono.

A

Você é você. Eu sou eu.

B

E daí?

A

E daí que tenho fome.

B

Você tá me irritando.

A

Você também me irrita.

B

O sol também me irrita. E daí?

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A

E daí que preciso comer alguma coisa, nem que seja uma cenoura.

B

Hoje é terça-feira, hoje é dia de feira. Tem uma ali na rua de cima. Vai lá.

A

Não.

B

Vai comprar um pastel.

A

Com que dinheiro?

B

Vende a periquita.

A

Sem graça!

pausa

A

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As pessoas ficam nos olhando quando os carros param.

B

Estamos na esquina de um farol e você quer que as pessoas não olhem?

A

Mas algumas olham perplexas...

B

E daí? Muitas olham indiferentes, outras olham com luxúria, outras nem olham...

A

Por falar nisso por que você anda com essas roupas?

B

O que tem as minhas roupas?

A

São muito curtas, indecentes.

B

Você parece uma velha falando.

A

Os homens ficam te olhando.

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B

E daí? Sou jovem, bonita.

A

Você tá muito magra.

B

Espera que você também vai ficar magra.

A

Com certeza. Há horas que eu não como...

B

E nem é comida! (RI)

A

Ás vezes, você me assusta. Tão grosseira, como um homem.

B

Eu não tive a sorte de estudar no Sacré-Coeur como você.

A

Eram bons tempos. Papai, Mamãe...

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B

Filhinha, Cachorro...que saco!...Agora você tá na rua...não tem mais Papai, nem Mamãe.

A

Credo! A sua brutalidade me assusta...

B

Que foi, garota? Resolveu ficar sensível agora. Jacaré vira bolsa. Se liga! Fica quieta! Espera o sinal fechar, pede dinheiro...

A

Não, jamais. Eu não vou fazer isso...

B

Então fica quieta. Vamos esperar por ele.

A

Como ele se chama?

B

Sei lá.

A

Você não sabe o nome do cara?

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B

Você sabe o meu nome?

A

Não é Loira?

B

Você acha que alguém se chama Loira?

A

Verdade. Como é seu nome?

B

Não te interessa.

A

Você sabe o meu.

B

Esqueci.

A

O meu nome é...

B

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Não quero saber. Aqui ninguém tem nome: é tio, é tia, é Loira, é Preta...

A

Mundo triste este!

B

Ai! Existe algum mundo alegre?

A

Os que moram lá em cima?

B

Só se for no céu.

A

Lá em cima, num destes prédios.

B

O cara mora num deles.

A

Sério?

B

Já vi ele entrando num deles. Claro que ele não me viu. Estava com uma mulher e com duas crianças.

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A

O cara é casado?

B

Deve ser.

A

Ele é bonito.

B

Ele é careca.

A

Você já disse que ele era careca. Tem careca bonito e tem careca feio...

B

Pra mim, não me importa.

A

O que ele falou de mim?

B

Nada.

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A

Nada?

B

O que ele iria falar? Ele nem te conhece.

A

Mas você falou de mim pra ele?

B

Que saco! Você não para de falar.

A

Eu não gosto disso.

B

Por que veio?

A

Você sempre me deixa sozinha. Eu tenho medo.

B

Você tem medo de ficar sozinha?

A

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Tenho.

B

Você já é sozinha.

A

Eu nunca fui. Eu tinha...

B

Papai, mamãe. Ixe, a mesma lenga-lenga de sempre.

A

E você?

B

O que tem eu?

A

Não tem família?

B

Saco. O que deu em você hoje? Eu não devia ter te trazido. Devia ter arrumado outra...

A(em pânico)

Olha, olha... um carro da polícia...vem vindo...

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B

E daí? Você fez alguma coisa?

A

Eu vou me esconder.

A se encolhe, mas fica visível.

B

Ridícula! Eles já se foram. Nem olharam pra nós...eles nunca olham, sua idiota.

A

Mas aquele dia, eles...

B

Aquele dia eles queriam se divertir. Só isso.

A

Mas eles pareciam lobos famintos...

B

E daí? Eu não dei conta dos lobos famintos?!... Sozinha!

A

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Puxa! Você é mesmo muito corajosa...

PAUSA

A suspira. B brinca com os cabelos e cantarola.

A

Como você pode ser tão calma assim?

B

Eu não tenho uma ratazana comendo as minhas entranhas. (dá risada)

A

Como eu queria sair desta vida. Sou tão jovem e já me sinto tão velha...

B

Merda! Merda! Merda! Você quer que eu arrebente a sua boca?

A

O que foi?

B

Não aguento mais o seu blá-blá-blá...Vai filosofar lá no meio do mato.

A

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Hoje você tá tão cruel.

B

"Hoje você tá tão cruel". É a vida que é cruel de segunda a segunda, e nem feriado tem.

A

E eu que estou filosofando?

B

Isto não é filosofia, não é teatro: é a vida.

A

Loira, o que nos fizemos com nossas vidas?

B

Fodemos a nossa vida é isto que você quer ouvir?

A

Será que não restou nada no seu coração? Nem um fio de esperança.

B

Que coração! Há muito tempo que não tenho coração, sou apenas um corpo.

A

Eu não quero ser só um corpo.

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B

Pra ele, você é só um corpo.

A

Eu tenho alma.

B

Uma alma bem chapada, né, minha filha?

A

Meu Deus, onde eu vim parar?

B

No hospício, no inferno, na puta que o pariu.

A

Não fala assim. Eu fico triste. Fico com vontade...

B

Ah, não... não vai chorar...não agora, não desta vez.

A

Eu nunca choro. Eu acho que se chorasse, ia ter um pouco de alívio.

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B

O nosso alívio é outro.

A

Por isso temos que pagar este preço?

B

Ô anjinho, por que você não vai procurar uma nuvem? Aqui até um copo d'água tem preço...

A

Por que as coisas não podiam ser diferentes?

B

Uma casinha de tijolinho pra cada um, um cachorro pulguento na sala, uma televisão tela plana com um monte de programa idiota; um marido imbecil e alguns pentelhinhos torrando o seu dinheiro... Pronto!... Tá aí a sua vida diferente...

A

Ao menos, um coração compreensivo...

B

Se começar a falar de Deus, eu me levanto e vou embora.

A

Não, Loira. Nós precisamos do dinheiro que ele vai trazer.

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B

Ah, bom!... Agora estamos começando a nos entender...

PAUSA

A

Daqui a pouco o sol vai se por...

B

Não esquenta. Ele vem antes da noite...

A

Ele vem de carro?

B

A pé.

A

Por que?

B

Porque ele tem um carro bacana, que chama a atenção... E ele não quer chamar a atenção...

A

Olha aquele cara naquele carro... ele tá olhando pra gente com uma cara...

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B

E daí? Homem é assim mesmo: não pode ver duas garotas.

A

Mas estamos tão sujas...

B

Sujas? Nós estamos cheirando a lavanda.

A

Mesmo que eu tome um banho de perfume, este cheiro de lodo vai ficar comigo.

B

Não suporto quando você entra numas de "bonequinha de luxo".

A

Você sabe que já fui rica. Que eu morava naquele casarão que está demolindo...

B

...onde um monte de drogados se reúne todas as noites.

A

E daí? Aquela era a minha casa, aquela era a minha vida. E agora não sobrou nada, nem o cachorro.

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B

Então se conforma, baby. Daqui a pouco você vai tá bem alegrinha.

A

O sol tá se pondo. Deve estar um por de sol lindo. Pena que os prédios não deixam ver...

B

Imagina, então... Imagina um por do sol com raios violetas num céu de chumbo...não é lindo?

A

É lindo. Tudo é lindo. Até as ruínas...

B

Pior que é! Até as ruínas podem ter a sua beleza...

A

Ele não vem mais.

B

Eu também tô achando.

A

Vamos embora.

B

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Pra onde?

A

Pra algum lugar deserto, por um caminho de estrelas e ternura...

B

Você com suas poesias...

A

A poesia foi a única coisa que me restou...

B

Ah, ele vem vindo...

A

Onde?

B

Na subida.

A

Aquele cara?

B

É aquele cara.

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A

Tenho mesmo que ir com ele?

B

Tem.

A

Eu vou.

B

Assim é melhor.

A

Sabe por que? Porque eu te amo e você quer que eu vá.

B

Eu quero o dinheiro, só isso. Eu quero o dinheiro para o meu coração viciado.

A

Eu vou te dar o dinheiro.

B

Vamos. Eu pego o dinheiro e mais tarde a gente se encontra no mesmo lugar de sempre...

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A

Na ponte, perto do córrego...

B

Isso... Agora vamos, minha criança...a noite ainda nem começou...

A

Vamos... A noite nem começou...

ELAS SE DÃO A MÃO E VÃO SAINDO BEM LENTAMENTE, COMO SE AMBAS ESTIVESSEM INDO PARA O CADAFALSO. BARULHO DE TRÂNSITO. CIDADE GRANDE NO INÍCIO DA NOITE.

F I M

Autor: Paulo Mohylovski

2014