RITUALIDADES E VIDA COTIDIANA NA CULTURA DIGITAL · Programa de Estudos Pós-Graduados em...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica Doutorado em Comunicação e Semiótica RITUALIDADES E VIDA COTIDIANA NA CULTURA DIGITAL Uma investigação sobre os processos de comunicação e ritualização no ciberespaço Priscila Gonçalves Magossi Orientador: Prof. Dr. Eugênio Trivinho 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica

Doutorado em Comunicação e Semiótica

RITUALIDADES E VIDA COTIDIANA

NA CULTURA DIGITAL

Uma investigação sobre os processos

de comunicação e ritualização no ciberespaço

Priscila Gonçalves Magossi

Orientador: Prof. Dr. Eugênio Trivinho

2014

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PRISCILA GONÇALVES MAGOSSI

RITUALIDADES E VIDA COTIDIANA

NA CULTURA DIGITAL

Uma investigação sobre os processos

de comunicação e ritualização no ciberespaço

Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora, em

atendimento a exigência para a obtenção do título de Doutor em

Comunicação e Semiótica pelo Programa de Estudos Pós-Graduados

em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo (PEPGCOS/PUC-SP).

Área de Concentração: Signo e significação nas mídias

Linha de Pesquisa: Cultura e ambientes midiáticos

São Paulo

2014

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BANCA EXAMINADORA

___________________________________

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DEDICATÓRIA

A meu pai, Adilson José Magossi (in memoriam),

por ter sido a estrela-guia da minha vida e grande

incentivador deste trabalho de pesquisa.

"Existem momentos na vida da gente, em que as palavras

perdem o sentido ou parecem inúteis e, por mais que a gente

pense numa forma de empregá-las, elas parecem não servir.

Então a gente não diz, apenas sente".

(Sigmund Freud).

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pelo incentivo

à pesquisa.

“Importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim, pensar o que ninguém nunca

pensou sobre algo que todo mundo vê.” (Schopenhauer)

Ao Prof. Dr. Eugênio Trivinho, pelo apoio exponencial, amadurecimento intelectual,

comprometimento filosófico e orientações focadas.

“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja

apenas outra alma humana.” (Carl Gustav Jung)

Ao Prof. Dr. Fernando Salinas, pela confiança generosa.

"O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê." (Platão)

Ao Prof. Dr. Jorge Miklos, pelo forte incentivo.

“A única finalidade da vida é mais vida.” (Anísio Teixeira)

À Profª. Drª. Malena Segura Contrera, pela inspiração de toda uma vida.

"Minha alma escolhe a imagem que eu vivo." (James Hillman)

À minha mãe, Suely Gonçalves Magossi, por sua dedicação e compreensão.

“Os dois maiores presentes que podemos dar aos filhos são raízes e asas.” (Hodding Carter)

Aos meus irmãos, Fabíola Gonçalves Magossi e Filipe Gonçalves Magossi, por serem o

tempero e o colorido do meu mundo, respectivamente.

“É um amor pobre aquele que se pode medir.” (William Shakespeare)

Ao meu companheiro Thiago Alberto Gusmão Corrêa, por ter acreditado nesta pesquisa e

acompanhado cada passo do seu desenvolvimento com paciência e otimismo, além de ser

minha metade mais bonita.

“Não pertencer a ninguém é não se tornar ninguém.” (Boris Cyrulnik)

Ao amigo Rodrigo Fontanari, pela cumplicidade ímpar.

"Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor

possível." (Roland Barthes)

Ao Maurício Garrote, por seus conselhos sóbrios.

"Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida, e você vai chamá-lo de

destino." (Carl Gustav Jung)

À Cíntia Dal Bello, pela revisão cuidadosa.

“O único conhecimento válido é o que se alimenta de incerteza e o único pensamento que

vive é o que se mantém na temperatura de sua própria destruição.” (Edgar Morin)

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“Viver é fazer algo a despeito da evidente futilidade de tudo.

Viver é, portanto, negar a futilidade evidente de tudo.

E por que é evidente essa futilidade?

Pela morte.

Viver é tentar negar a morte.

Viver é fazer de conta que não há morte.

Mas há”.

Villém Flusser, 2002, p. 97

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SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................................ 9

ABSTRACT.........................................................................................................

10

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11

CAPÍTULO I

COMUNICAÇÃO E CULTURA...................................................................... 17

1.1 Da consciência da morte à imaginação............................................................. 18

1.2 Da imaginação ao mito...................................................................................... 22

1.3 Do mito ao rito.................................................................................................... 26

1.3.1 Manipulação dos símbolos sagrados...................................................... 29

1.3.2 Formato do ritual primitivo.................................................................... 30

1.3.3 Vínculo.................................................................................................. 32

1.3.4 Construção da realidade......................................................................... 33

1.4 Do ritual primitivo às ritualidades contemporâneas...................................... 36

CAPÍTULO II

PROCESSOS SOCIOMEDIÁTICOS CONTEMPORANEOS..................... 41

2.1 O desencantamento do mundo e as origens da mudança cultural................. 42

2.1.1 A dinâmica social do capitalismo atual................................................... 44

2.2 A mudança cultural e cultura pós-moderna.................................................... 48

2.2.1 Introdução à pós-modernidade................................................................ 48

2.2.2 A condição pós-moderna......................................................................... 50

2.2.3 A sociedade do espetáculo e a informação-mercadoria........................... 60

2.2.4 A liquidez das relações pós-modernas..................................................... 63

2.3 A cibercultura como categoria de época.......................................................... 67

2.3.1 O fenômeno glocal e a visibilidade mediática........................................ 70

2.3.2 Velocidade e dromocracia....................................................................... 73

2.3.3 Violência invisível e melaconlia do único.............................................. 77

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CAPÍTULO III

VIDA COTIDIANA E RITUALIDADES NO CIBERESPAÇO................... 81

3.1 A emergência das redes sociais......................................................................... 82

3.1.1 As redes sociais no ciberespaço.............................................................. 83

3.1.2 Os sites de redes sociais no ciberespaço................................................. 88

3.2 O impacto na vida cotidiana.............................................................................. 91

3.2.1 O presente interminável.......................................................................... 96

3.3 Os hábitos cotidianos e as ritualidades contemporâneas................................ 98

3.3.1 Ritualidades na era digital....................................................................... 100

3.3.2 Ritualidades no ciberespaço.................................................................... 101

3.3.3 Ritualidades nas redes sociais................................................................. 102

3.4 Ritualidades no Facebook e no Twitter............................................................. 106

3.4.1 Ritualidades típicas do Facebook............................................................ 106

3.4.2 Ritualidades típicas do Twitter................................................................ 109

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 112

REFERÊNCIAS................................................................................................. 118

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RESUMO

A presente pesquisa versa sobre as relações entre comunicação, ritualidades e cultura digital.

Nesse quadro temático, o objeto de estudo coincide com o recorte específico dos rituais

cotidianos no ciberespaço. Com efeito, os elementos teóricos e práticos da pesquisa

pressupõem definições mais cuidadosas. O conceito de ritualidade refere-se ao padrão de

ações concretas, empreendidas em ocasiões particulares, para determinada finalidade. A

cultura digital, por sua vez, é marcada pela cultura pós-moderna, caracterizada pela

visibilidade mediática e articulada pelo contexto glocal (a saber, nem local, nem global, antes

vertente híbrida de grandeza própria). Os traços prioritários dos processos sociomediáticos

contemporâneos referem-se à lógica do excesso e da fragmentação, à ausência de finalidade e

à incerteza estrutural. Já o ciberespaço é compreendido como território virtual de

deslizamento de signos em tempo real, resultante do processo de digitalização da informação,

esteio do capitalismo atual. Com base em tais elementos teóricos e práticos, o problema de

pesquisa diz respeito justamente à questão sobre como os rituais cotidianos são estruturados

nessa ou por vinculação a essa rede digital. A hipótese principal é a de que essas

ritualizações fragmentárias são provenientes de; e confirmam um processo psicossocial

(individual ou coletivo) de representação, motivação, organização e visibilidade, que se traduz

nos modos de sentir, pensar e agir do sujeito na vida cotidiana. Objetiva-se, portanto,

investigar de que maneira os rituais se estabelecem no ciberespaço. Para tanto, o corpus da

pesquisa privilegiará as redes sociais Facebook e Twitter. Os procedimentos metodológicos

envolvem pesquisa bibliográfica e/ou documental, com acompanhamento e reflexão crítica

de processos, em atendimento ao perfil exclusivamente teórico da pesquisa. A articulação

temática entre comunicação, ritualidades, cultura digital e ciberespaço foi cumprida com

base no referencial epistemológico das teorias da comunicação, da mídia, do pós-moderno,

da cultura virtual e do imaginário. Entre os autores vislumbrados destacam-se Anderson,

Baudrillard, Bauman, Contrera, Eliade, Harvey, Morin, Peirano, Recuero e Trivinho. Com

essas características, a relevância da pesquisa justifica-se pela contribuição ao campo de

estudo da comunicação e da cibercultura, a partir de um ponto de vista necessariamente

tensional, vale dizer, mais criterioso e profundo, dentro do mencionado ramo temático.

Palavras-chave: comunicação; cultura digital; ciberespaço; ritualidades; vida cotidiana.

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ABSTRACT

This research paper discusses the relationships between communication, ritualism and digital

culture. Within this broad thematic spectrum, the object of study focuses on the specific

boundaries of the organization of daily rituals in cyberspace. Indeed, the theoretical and

practical elements of this research call for more careful definitions. According to this analysis,

the concept of ritualism refers to a standard of concrete actions undertaken in particular

situations for a given purpose. Digital culture, in turn, is marked by postmodern culture,

which is characterized by mediatic visibility and organized by a glocal context (i.e., neither

local nor global, but rather, a hybrid context with its own magnitude). Sociomediatic

processes today are characterized mainly by the logic of excess and fragmentation, by the

absence of purpose, and by structural uncertainty. Cyberspace, on the other hand, is seen as a

virtual territory where information is transmitted in real time. This territory is comprised of a

set of telecommunication networks that are managed by the information digitizing process.

Based on these theoretical elements, this research paper addresses the question of how daily

rituals are organized in cyberspace. The primary hypothesis is that contemporary humans

engage in ritualization on a collective scale, which is developed in cyberspace. It is believed

that postmodern times give rise to a group of fragmented rituals that play the role of

organizing and instigating ways of thinking in order to create or maintain identities and

generate visibility. The objective, therefore, is to understand how the processes of

communication and ritualization are established in cyberspace. To this end, the corpus of this

research focuses on the social networks Facebook and Twitter. The methodological

procedures involve a bibliographic and/or documentary research allied to a critical review of

processes, in line with the exclusively theoretical approach of this research (eventual

complementary methodological instruments will be defined in a context-oriented analysis).

The thematic link between communication, ritualism, digital culture and cyberspace will be

established based on the theoretical framework of the theories of communication,

postmodernism, media, virtual culture and the imaginary, put forward by authors such as

Anderson, Baudrillard, Bauman, Contrera, Eliade, Harvey, Morin, Peirano, Recuero and

Trivinho. With these characteristics, this essay intends to contribute to the study of

communication and cyberculture, from a necessarily tensional point of view, i.e., more

exacting and comprehensive, within the aforementioned thematic field.

Keywords: digital culture, cyberculture; cyberspace; ritualism; everyday life.

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INTRODUÇÃO

A presente Tese de Doutorado está dedicada à compreensão dos processos de

comunicação e ritualização no ciberespaço, com foco na organização da vida cotidiana. A

pesquisa pressupõe que o ciberespaço tem rituais típicos que exercem função de ordenar e

motivar mentalidades, ao criar ou manter identidades, gerando visibilidade. De base crítica e

interdisciplinar, o estudo objetiva refletir sobre rituais de escala coletiva na cultura digital, a

fim de compreender o modo pelo qual os rituais cotidianos são organizados no ciberespaço.

A paulatina substituição dos rituais ancestrais pela mídia de massa e a aplicação de

seus elementos simbólicos foram objeto de estudo durante o Mestrado desta signatária. Com

orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Jr., essa pesquisa foi desenvolvida entre 2006 a 2008,

com apoio da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Doravante, a proposta de Doutorado é aprofundar a reflexão sobre essa temática (no que se

refere aos processos de ritualização como vetores de ordenação da experiência coletiva),

mediante um deslocamento de monta, relacionada ao corpus da pesquisa, a saber: ao invés de

mídia de massa, interessa agora, exclusivamente, a cultura digital. Ao contrário de investigar a

sobrevivência de modelos ancestrais na era vigente, será fundamental compreender de que

maneira as ritualidades, desenvolvidas no ciberespaço, interferem na vida cotidiana, no

comportamento e nas escolhas do sujeito contemporâneo. Esta é, portanto, uma pesquisa

aberta a um novo horizonte, em matéria de contexto social-histórico e mediático de inserção

do objeto, em linha de continuidade amplamente diferenciada da pesquisa desenvolvida no

Mestrado, sem, no entanto, romper por completo com a fase pregressa de estudos.

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Nessa perspectiva, a pesquisa atual preserva epicentro prioritário na área de

Comunicação e estende sua articulação para as teorias da comunicação, da mídia, da

cultura virtual e do imaginário. Procura-se, assim, apreender o estado da arte da cultura

digital, mediante tratamento teórico de conceitos fundamentais, tais como ritualidades no

ciberespaço e vida cotidiana, processos de comunicação e ritualização, cultura pós-

moderna e convergência digital, os vetores espacial e temporal, visibilidade mediática e

sociedade unidimensional, processos de glocalização e lógica do conformismo,

melancolia do único e violência invisível, e assim por diante.

O fenômeno da ritualidade é compreendido como um padrão de ação sequencial e

ordenado, de atos e gestos, caracterizados por diferentes graus de convencionalidade, rigidez,

fusão e repetição. A cibercultura, por sua vez, é tomada como conceito válido para nomear a

época em curso, recobrindo, portanto, a recente fase de desenvolvimento digital do capitalismo.

Como tal, essa cultura digital é marcada pelas características da cultura pós-moderna,

destacando-se, sobretudo, a lógica do excesso e da fragmentação, ausência de finalidade e

incerteza estrutural. Nesse contexto, o ciberespaço, palco estrutural da construção de parâmetro

coletivo de sentido, se configura como um território virtual de circulação e produção simbólica,

que apresenta seus próprios ritos de periodicidade e previsibilidade.

O estudo detém-se no que recorta as ritualidades da vida cotidiana ciberespacializada,

com base na percepção de que os processos de ritualização são imanentes ao modus vivendi do

social-histórico do gênero humano, e estão entrelaçados por relações sociais de alta complexidade.

Os rituais de socialização desempenham papel de inclusão do indivíduo em determinado grupo

social a exclusão dos demais. Na cibercultura, as ritualidades exercem a mesma função de

agregação simbólica (isto é, de vincular o indivíduo ao coletivo).

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Recortado o objeto de estudo conforme a argumentação acima, a delimitação da

temática refere-se a investigação sobre as ritualidades da vida cotidiana e ao seu modo de

reprodução na cultura digital. Trata-se da reflexão centrada no ciberespaço e em seus

impactos social-históricos na contemporaneidade, tendo como ponto de intersecção

inextricável os processos comunicativos e semióticos. O destaque passa a ser analisar o ritual

e a sua racionalidade de base, no contexto do ciberespaço, para decodificação das ritualidades,

dos fluxos de informação e das construções sociais e simbólicas prevalecentes a partir das

redes sociais: Facebook e Twitter.

Considerando todos os aspectos que integram o conceito de ritual, a pesquisa

objetiva compreender os processos de ritualização não em sua concepção tradicional, como

mítico e sagrado, mas como modalidade de pensamento técnico, descartando por completo a

ideia de transcendência (isto é, a experiência religiosa na qual o homem ultrapassa o limiar da

mortalidade e se assemelha ao modelo divino da perfeição criadora). Em sentido estrito, a

argumentação procura identificar as principais ritualidades que se evidenciam na cultura

pós-moderna, e definir, do modo mais preciso possível, o conceito de ritual compatível com

o ciberespaço, a fim de, por esse movimento de identificação e definição, apreender as

consequências sociais e culturais dos principais paradigmas do ritual na cultura digital.

A preocupação prioritária da pesquisa centra-se no questionamento sobre o modo

pelo qual os rituais cotidianos se organizam no ciberespaço. Apesar de o ciberespaço ser um

substrato da cultura pós-moderna, é possível encontrar inúmeros processos de ritualização

que organizam a vida cotidiana do sujeito contemporâneo nessa rede digital. Sendo assim, o

problema de pesquisa se traduz nas seguintes indagações: como se pode realmente

demonstrar a existência de estruturas ritualísticas no ciberespaço? Como se organizam e de

que maneira são de fato reproduzidos os rituais cotidianos no ciberespaço, este território

cibernético de deslizamento de signos? Considerada essa perspectiva válida, esses rituais

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são idênticos aos encontrados na vida presencial sem mediação tecnológica? Em caso

diverso, o que os diferencia?

Estando o desenvolvimento da Tese vinculado ao problema de pesquisa nos termos

acima, a hipótese a seguir, de caráter básico e geral, é uma resposta antecipada (que foi

evidentemente checada) para o conjunto de indagações dirigido ao objeto de estudo: sob o

pressuposto de que as ritualidades são culturalmente intrínsecas ao gênero humano e estão

entrelaçadas em complexas relações sociais, acredita-se que o ciberespaço esteja povoado de

rituais fragmentários, aleatórios, precários, mutantes e pouco lógicos, que se traduzem em

atitudes, valores e comportamentos característicos do processo psicossocial – online e off-line

– de formação de identidades efêmeras e de representação do indivíduo no meio social.

A ênfase no conjunto de conhecimentos teóricos encontrado nos autores de

referência caracteriza a natureza da pesquisa, sobrelevando o seu aspecto teórico, no interesse

exclusivo de fomentar a crítica conceitual sobre as ritualidades da vida cotidiana e sobre seu

modo de reprodução na cultura digital. Por essa razão, não foram feitos estudo de caso e

pesquisa empírica. Além disso, a Tese não teve por objetivo realizar investigações

antropológicas, como as desenvolvidas em campo, para compreensão do pensamento mítico e

do ritual primitivo. De acordo com as metas propostas, o foco do estudo abarca o labor de

conceitos gerais a partir de interpretações feitas com base nos autores selecionados.

Conforme visto acima, o mosaico das teorias fundamentais para o desenvolvimento

da pesquisa apresenta seu epicentro prioritário na área de Comunicação e abrange as teorias

da comunicação, da mídia, da cultura virtual e do imaginário. Além disso, foram empregadas

perspectivas e definições referentes às demais áreas do conhecimento, tais como

Antropologia, Ciência da Informação, Filosofia, História da Religião, Semiótica e Sociologia,

a fim de se atingir os objetivos propostos na Tese.

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Para compreensão do conceito de ritual, a pesquisa apoiou-se nos estudos

antropológicos de Lévi-Strauss, Turner e Peirano sobre a estrutura antropológica do ritual

arcaico, no estudo da mitologia e religião comparativa de Campbell e no pensamento mítico de

Cassirer, além de nos conceitos de sagrado e profano de Eliade e de transcendente e imanente

de Boff. No que tange a estrutura do pensamento mítico, serão empregados o conceito de

cultura e sua teia de significados descritos por Geertz e Lévi-Strauss, e a consciência da morte,

o enfeitiçamento pela imagem e o imaginário cultural definidos por Morin.

O desencantamento do mundo e suas direções, traçados por Weber e Miklos, são

conceitos fundamentais no que se refere à compreensão do processo de decadência ritual e

irrupção da nova sociedade que emerge em seu lugar. O entendimento a respeito do caminho

trilhado pela sociedade atual baseou-se nas perspectivas de Contrera sobre a deteriorização da

religiosidade, assim como na visão de Chauí a respeito da tensão entre os novos valores

sociais, entre o real e o virtual, e a sociedade do espetáculo e a informação-mercadoria

trabalhadas por Sevcenko.

No que se refere ao estudo dos processos sociomediáticos contemporâneos, foram

utilizadas as perspectivas de Boaventura Souza Santos, Anderson e Harvey para traçar o

percurso das mudanças da origem cultural à pós-modernidade. A crise da função estésica, a

nítida e íntima relação entre o homem pós-moderno e as novas tecnologias da comunicação são

descritas por Maffesoli e fundamentais para se compreender a lógica da sociedade vigente, tão

indispensáveis quanto os impactos do desenvolvimento da tecnologia tratados por Baudrillard.

Ao considerar a cibercultura como categoria de época, foram trabalhados os

conceitos de visibilidade mediática, glocal, velocidade e dromocracia cibercultural,

melancolia do único e violência invisível, trabalhados por Trivinho e Virilio, além das

análises a respeito do ciberespaço e da realidade virtual, realizadas por Benedikt e Lévy.

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No intuito de investigar o modo pelo qual ocorre a incorporação das manifestações

rituais pelo território virtual, foi investigada a emergência das redes sociais a partir dos

estudos de Recuero, passando pela crítica dos seus impactos à vida cotidiana com base na

leitura das obras de Marcuse, Sfez, Morin, Hillman, Bauman, Contrera e Baudrillard, e

finalizando com o mapeamento das ritualidades encontradas no ciberespaço, mais

especificamente, no Facebook e no Twitter.

Com tais características, a pesquisa justifica-se em seu modesto intuito de

acrescentar conhecimento e percepção renovadas às teorias da comunicação e da cibercultura,

mediante estabelecimento de relação tensional entre ritualidades e ciberespaço, vinculando

comunicação, cultura digital e vida cotidiana. Trata-se, portanto, de modesta contribuição

crítica à teoria da reprodução cultural do processo civilizatório, articulado sob condições

glocais na cultura pós-moderna.

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CAPÍTULO I

COMUNICAÇÃO E CULTURA

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Nada é tão insuportável para o homem como estar em sossego

absoluto, sem paixões, sem ocupação, sem distração,

sem tarefa. Então ele sente o seu nada, seu abandono,

sua insuficiência, sua impotência, seu vazio.

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 131).

Este capítulo parte do pressuposto de que a insatisfação do ser humano diante da sua

condição mortal exige constante exercício de esquecimento. No intuito de vencer a morte, o

homem primordial encontra no mito e nos ritos das religiões primitivas uma maneira de dar

sentido para sua existência e apaziguar a ansiedade contida. Ao considerar a contingência fator

de ameaça para a natureza humana desde tempos imemoriais, acredita-se que os ritmos de

regularidade atuam como antídoto dessa angústia ancestral. Para além do caráter sagrado, as

ritualidades são compreendidas como vetores essenciais de ordenação da experiência coletiva,

imprescindíveis para o entendimento do comportamento simbólico, socialmente padronizado e

repetitivo do homem contemporâneo.

1.1 Da consciência da morte à imaginação

A lógica da complexidade, diagnosticada por Morin (1973, 1988) define a

experiência de vida humana como um sistema de reorganização permanente, que se constrói

e se contradiz no paradoxo da desordem. O conceito de desordem refere-se às condutas

aleatórias, competições e conflitos que, apesar de constituírem a ordem social por

intermédio da diversidade e da variedade, das relações hierárquicas (dominação/submissão)

e das crises, ameaçam o grupo social de desintegração. Sendo assim,

A Complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos inseparavelmente

associados: coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. A complexidade é efetivamente

o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que

constituem o nosso mundo fenomenal. Mas então a complexidade, apresenta-se com

os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da

incerteza... Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr em ordem os fenômenos

ao rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de selecionar os elementos de

ordem e de certeza, de retirar a ambiguidade, de clarificar, de distinguir, de

hierarquizar [...]. (MORIN, 1973, p. 20).

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Seguindo a teia de questões desatadas até então, Vieira (2006, p. 47-48) define a

crise como uma das predisposições sensíveis do sistema complexo1 na busca por

permanência e autonomia. Partindo do pressuposto de que não há reorganização sem

conflito, a crise apresenta-se como força motriz da busca por respostas que reorganizem,

simbolicamente, um organismo. Conclui-se, portanto, que o grau de complexidade de um

sistema é determinado por suas cicatrizes.

Em seus estudos sobre o tema, Morin propõe o surgimento da consciência como

conquista da complexidade no homem genérico2, que evoluiu de maneira gradativa e gerou

sua hipercomplexidade. De acordo com o autor, a hipercomplexidade humana é responsável

por distinguir o imaginário do real por intermédio das relações estabelecidas entre imagens

internas e imagens do ambiente.

Nesse sentido, um sistema hipercomplexo é um sistema que diminui as restrições ao

mesmo tempo em que aumenta as suas aptidões organizacionais, designadamente, e

sua aptidão para a transformação. Portanto, o sistema hipercomplexo é, em

comparação com um sistema menos complexo, fracamente hierarquizado,

fracamente especializado, não estritamente centralizado, mas fortemente dominado

pelas competências estratégicas e heurísticas, mas fortemente dependente das

intercomunicações e, por todas estas características, mas fortemente submetido à

desordem, ao “ruído” e ao erro. (MORIN, 1988, p. 155).3

1 A Teoria Geral dos Sistemas (TGS), elaborada por Uyemov (1975) e reelaborada por Jorge de Albuquerque

Vieira (2006), consiste em um conjunto de hipóteses que procura estabelecer as características comuns entre

todos os sistemas. No caso dos sistemas complexos, um dos parâmetros básicos/fundamentais é a permanência,

definida por Vieira (2006) como sendo a tendência do organismo de reagir de acordo com necessidades internas

(do próprio sistema) e externas (impostas pelo ambientes). A autonomia, por sua vez, é encarada como estratégia

de sobrevivência e pode ser compreendida como a capacidade que o sistema tem de estocar matéria e energia,

assimilando-as como informações. A elaboração dessas informações ao longo do tempo cria a função memória,

que pode tornar-se mais complexa conforme aumenta o nível de complexidade do sistema (ibid., p. 47-48).

2 Inspirado nos estudos de Hegel e Marx, Morin utiliza o termo “homem genérico” para designar o homem pensado

como unidade (a natureza humana, a matriz de princípios geradores e organizacionais) e, ao mesmo tempo, em sua

diversidade (atualizações dessa matriz geradora em relação a fatores ecológicos, culturais e sociais). Por assim

dizer, "o ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente

cultural. O cérebro, por meio do qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são

órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente culturais. O que há de mais biológico – o sexo, o

nascimento, a morte – é, também, o que há de mais impregnado de cultura" (MORIN, 2003, p. 40).

3 Tendo em vista que todo sistema vivo é, simultaneamente, parasitado pela entropia e parasita dela, o ruído está

vinculado não somente ao funcionamento de um sistema vivo, mas à sua evolução, uma vez que "a mutação é

uma perturbação que pode ser assimilada a um ruído no momento da transmissão da mensagem genética por

duplicação. Ruído esse que, por sua vez, deveria provocar uma degenerescência no novo sistema vivo. Ora

acontece que, em certos casos, o ruído provoca o aparecimento de uma inovação e de uma complexidade mais

rica. Nesse caso, o erro, em vez de degradar a informação, enriquece-a. O ruído, em vez de provocar uma

desordem fatal, suscita uma ordem nova. O acaso da mutação, em vez de desorganizar o sistema, desempenha

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Assim, há, com a emergência da consciência, o reconhecimento da condição mortal e,

por conseguinte, a inserção do homem em um contexto de percepção e representação, ou seja,

numa dupla realidade. O duplo refere-se à dualidade primária como consequência da nova

condição humana de dissociação (MORIN, 1973, p. 75). A divisão instaurada entre o sujeito

(eu) e a percepção da alteridade (os outros) inicia um conflito de consciência objetiva (o

reconhecimento de uma morte inevitável), subjetiva (a não aceitação da morte e crença na

imortalidade) e temporal (a consciência da transformação de um estado em outro). Tendo em

vista que a perda da inocência é um ponto sem volta (BAUMAN, 2003, p. 15), a longa história

da humanidade passa a ser movida por duas necessidades simultâneas e conflitantes: (1) com a

liberdade e o estímulo de saber que vive, (2) reina o medo e a insegurança de não saber o

porquê de viver e do que há após a morte. Nas palavras de Morin:

O encontro entre a consciência de si e a consciência do tempo determina a

consciência de viver no tempo e de ter que vivenciar a morte. A consciência da

morte introduz no âmago da identidade do ser e no âmago do seu universo o

anúncio da perda irremediável da identidade, do ser e do universo, abre a fissura

absoluta no âmago da consciência de si [...] Por mais, a zona de incerteza entre o

cérebro e o ambiente também é a zona de incerteza entre a subjectividade e a

objectividade, entre o imaginário e o real, e fica ainda mais aberta pela existência

da brecha antropológica da morte e pela irrupção do imaginário na vida diurna.

(MORIN, 1988, p. 135-138).

Durand concorda com a proposta de Morin a respeito do surgimento da imaginação

quando diz que “a imaginação simbólica é dinamicamente negação vital, negação do nada da

morte e do tempo” (1993, p. 97). Ainda sobre essa questão, o tema do duplo envolve uma

representação e, em seu núcleo, vive uma imagem:

Desde então a imagem não é uma simples imagem, mas contém a presença do

duplo do ser representado e permite, por seu intermédio, agir sobre esse ser; é

esta ação que é propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de

invocação à imagem, rito de possessão sobre a imagem (enfeitiçamento).

(MORIN, 1988, p. 133).

papel organizador" (MORIN, 1973, p. 113-114). Portanto, o ruído é fonte de complexidade, produto de uma

desordem enriquecedora.

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Jung (1990, p. 87), por sua vez, declara que uma descrição completa da realidade

inclui a presença da psique humana e um elemento de significação. Sendo assim, a formação

de um universo imaginário e o questionamento sobre segredos e mistérios da existência são as

primeiras tentativas de gerenciamento das crises de inadaptação oriundas da consciência da

morte. De acordo com o autor, as qualidades dos arquétipos (imagens do inconsciente

coletivo) surgem espontaneamente nos símbolos, nos mitos e nas religiões, e se manifestam

na psique tanto individual quanto coletiva como imagens. Tendo em vista que "a imagem é

uma expressão concentrada da situação psíquica como um todo [...] tanto inconsciente quanto

consciente" (ibid., 1990, p. 88), é na evasão do mito e do ritual que o homem encontra um

caminho para apaziguar sua angústia, impotência e ansiedade diante do enigma da vida.

Ligado à consciência da morte e à consciência temporal de finitude, encontramos um

ser devorado pela ansiedade, a crise, a neurose, as tentativas de conjurar, superar ou

adaptar-se à morte: uma tentativa de adaptação que desembocará numa inadaptação

radical que se irá fixar de maneira mágica, ritual, sempre incerta, crítica. (ROGER,

1999, p. 100).

Sem as práticas rituais, que testemunham sobre o caráter gregário da espécie de modo

a reforçar a sociabilidade, os indivíduos não se vinculariam nem fortaleceriam seus

vínculos, já que estas práticas criam novos vínculos e mantêm a memória dos vínculos

já existentes. Considerando que os vínculos comunicativos alimentam-se do universo

simbólico e mítico partilhado, bem como das linguagens e de suas codificações, cabe

ao ritual ser o ato de alimentar-se, o acontecimento da refeição partilhada desses

alimentos. O ritual confirma, re-atualiza e reforça o caráter social e partilhado dos

códigos culturais. Por isso as práticas rituais são tão fundamentais nas relações

comunicativas, em especial nos momentos de estranhamento e transição, momentos

nos quais os vínculos precisam ser criados e/ou reforçados ou o grupo estará sob

ameaça. (CONTRERA, 2005, p. 3).

Conforme proposto por Contrera, os vínculos desempenham o importante papel de

sustentação da comunicação humana. Entende-se por vínculo o mecanismo complexo, múltiplo

e vivo de apropriação (conquista) do outro, capaz de evocar memórias passadas (lembranças) e

memórias futuras (desejo). A linguagem4, por sua vez, nasce como meio de representação do

real para um universo cultural que deve, necessariamente, ser partilhado, ou seja, vinculado.

4 O conceito de “linguagem” será discutido com maior profundidade no tópico seguinte.

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Ou, na voz de Morin (1973, p. 74), “é mais sensato pensar que foi a linguagem que criou o

homem e não o homem que criou a linguagem”. Sobre o tema, Cyrulnik diz:

Os seres organizados são forçados a interagir de modo constante com seu meio para

viver. Essa atividade intencional, como tem a vida por projeto, exige uma busca de

informação. Essa intenção de viver leva a filtrar, selecionar e organizar o percebido

em função do que é necessário para viver. (CYRULNIK, 1995, p. 17).

Partindo da premissa de que a comunicação (interação com o outro) é um ato

intencional e de cumplicidade, Jung defende o mesmo ponto de vista que Cyrulnik e diz que

“o homem como indivíduo é um fenômeno suspeito, cujo direito à existência poderia ser

combatido sob o ponto de vista biológico, segundo o qual o indivíduo só tem sentido como

ser coletivo, como elemento integrante da massa” (JUNG, 1989, p. 162).

Assim, posta esta reflexão sobre o surgimento da consciência, constata-se que à

medida que o homem desperta para a busca da reunificação de modo consciente, ele perde,

gradativamente, a tranquilidade da sua inconsciência. A conscientização de perda de unidade

da psique (consciente/ inconsciente) envolve uma questão social e cultural que fundamenta a

história da humanidade. Trata-se de um processo antropológico sem volta diante do qual o

homem, a partir de então, é o homem e a morte.

1.2 Da imaginação ao mito

O arcabouço teórico de Morin (1973, p. 117) propõe a consciência da morte como

fator viabilizador da criação de um universo imaginário. Definido por Morin, o imaginário

cultural refere-se ao processo pelo qual o corpo social compartilha os mesmos códigos que

compõem a realidade. Essa memória comum, formada a partir da socialização, o autor

chamou de linguagem. Lévi-Strauss (1975, p. 75) descreve a linguagem e a cultura como duas

modalidades de uma atividade mais fundamental: o espírito humano. Ainda segundo Lévi-

Strauss, os fenômenos da linguagem e da cultura resultam “do jogo de leis gerais”, que

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correspondem a realidades de ordens distintas, porém, de mesma natureza, sendo, portanto,

interpretáveis a partir de um método comum. Para Geertz (1978, p. 44), a cultura é uma "teia

de significados" que o homem tece ao seu redor e que o amarra na busca pela apreensão do

seu significado, da sua densidade simbólica. Baitello Jr. (1997, p. 72), por sua vez, argumenta

que a linguagem não desempenha o simples papel de transmitir significados mediante formas

significativas, mas, também, a função de apontar a identidade cultural e os elementos do

social que integram o indivíduo ao grupo. Segundo Contrera,

É por isso que não podemos pensar em nenhuma realidade humana possível sem que a

cultura e seus processos da comunicação social (as imagens partilhadas) desempenhem

papel central na formação dessa realidade, ou, pelo menos, na forma como os homens

a concebem e com ela interagem. (2002, p. 39).

Em outras palavras, a linguagem é vista como um sistema cultural, e a cultura é

reconhecida como parte de um universo criado pelas faces dos pensamentos, símbolos e rituais

do imaginário de determinada época e de determinado povo. Portanto, “é preciso ter bem

consciência de que a cultura não assenta no vazio, mas sim sob uma primeira complexidade pré-

cultural que é a da sociedade dos primatas e que foi desenvolvida pela sociedade dos primeiros

hominídeos” (MORIN, 1988, p. 76). Sobre o tema, ouça-se Morin (2000):

A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, normas, proibições,

estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se transmite de geração em geração, se

reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a

complexidade psicológica e social (p. 56).

Na mesma linha, Baitello Jr. (1997, p. 20) diz que da cultura

fazem parte o vestir, os gestos, as artes, as danças, os rituais, a literatura, os mitos, o

morar e suas formas individuais e sociais, os hábitos (ao comer, ao beber, ao

cumprimentar, ao relacionar-se), as religiões, os sistemas políticos e ideológicos, os

jogos e os brinquedos. Assim é que a cultura se organiza como um complexo

sistema comunicativo, semiótico, portanto, que coordena todas essas atividades.

Enquanto o autor (1997, p. 72) sublinha que a própria cultura, ao criar mitos, rituais

mágicos e similares, é responsável por elaborar mecanismos de superação para a dualidade

nascimento-morte, Morin afirma que a tarefa da cultura é realizar os mitos, desembaraçando

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as revelações profundas e arquetípicas em relação às potencialidades e conflitos do desejo

humano, uma vez que “o homem somente se realiza plenamente como ser humano pela

cultura e na cultura” (1988, p. 52).

Conforme definição de Campbell (1994, p. 33), o mito é o relato de um conto sagrado,

de representação primordial, no qual repousam os paradigmas das experiências e condutas

humanas. Antes de formulado e fixado como narrativa, o mito é a palavra e a imagem que

circunscrevem determinada experiência através dos sentidos. Vividos por personagens míticas

ao invés de humanas, os mitos revelam os mistérios da criação ao tratar de questões

fundamentais e eternas, tais como identidade, vida e morte. Por isso, não se pode considerar ou

analisar os mitos como “histórias divertidas” (BAUMAN, 2003, p. 14). De acordo com Bauman

(ibidem), o objetivo do mito é “ensinar por meio da reiteração sem fim de sua mensagem: um

tipo de mensagem que os ouvintes só podem esquecer ou negligenciar se quiserem”.

Para o homem mítico (o homem que é regido por mitos) a chave que desvenda os

mistérios do mundo está na palavra, “dotada de poderes mágicos e sobrenaturais”, conforme

aponta Cassirer (1946, p. 25). Uma vez pronunciado, o mito é revelado e interpretado

como revelação divina. Por isso, a palavra no mito é responsável pelo domínio dos

fenômenos da natureza e controle tanto do real quanto do sobrenatural. Segundo Brandão

(1991, p. 73), o pensamento mítico diz respeito a uma visão de mundo na qual não existe

separação e tudo está interligado, o que significa que a distinção entre os reinos (vegetal,

animal e mundo humano) é ignorada pela mente primitiva. Sobre o tema, Campbell (1992, p.

94) diz que toda narrativa mítica comporta em sua totalidade uma interpretação

psicologicamente simbólica que conduz o homem a paradigmas mais elevados. O autor diz

que o mito possui um poderoso “recurso”, que amplia a consciência humana e a direciona para

forças que pulsam no inconsciente. Combinando elementos de criação imagética e

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representação do real, os símbolos têm a função de dirigir o homem para o caminho de acesso

ao mistério, protegendo-o do “terror do caos” que habita seu mundo. Por isso, o mito, a

linguagem da experiência humana diante do mistério da vida, pode apenas ser expresso pelo uso

dos símbolos (CASSIRER, 2005, p. 23). Os símbolos, por sua vez, representam as vias de

comunicação que se estabelecem por meio de configurações que lhe proporcionam sentido. No

caso das religiões primitivas, os símbolos englobam o universo das representações da tribo,

refletindo as inter-relações homem/natureza, humano/sobrenatural, de acordo com a capacidade

de entendimento coletivo. Sobre essa questão, Eliade declara:

Tentemos compreender a situação existencial daquele para quem todas essas

correspondências são experiências vividas e não simplesmente ideias. É evidente

que sua vida possui uma dimensão a mais: não é apenas humana, é ao mesmo

tempo “cósmica”, visto que tem uma estrutura trans-humana. Poder-se-ia chamá-la

uma “existência aberta”, porque não é limitada restritivamente ao modo de ser do

homem. Uma existência “aberta” para o Mundo não é uma existência inconsciente,

enterrada na Natureza. A “abertura” para o mundo permite ao homem religioso

conhecer-se conhecendo o Mundo – e esse conhecimento é precioso para ele porque

é um conhecimento religioso, refere-se ao Ser. (ELIADE, 2001, p. 136-137).

Por pertencerem a uma instância emocional, os mitos não podem ser compreendidos

quando reduzidos a processos intelectuais, ou seja, não podem ser classificados, explicados ou

minimizados em esquemas (BRANDÃO, 1991, p. 73). Portanto, as coerências do mito e da

religião primitiva dependem muito mais de unidades de crenças do que de regras lógicas, o

que faz deste “exatamente o caráter da fé: uma esperança que transforma evidência contrária

em prova” (FLUSSER, 2002, p. 31). Tendo em vista que essa unidade é um dos impulsos

mais fortes e profundos do pensamento primitivo, o pensamento mítico aponta para uma visão

de mundo relacionada a uma vivência, que é percebida e sentida pela dimensão transcendente

do ser humano (CASSIRER, 2005, p. 48).

O pensamento de Cassirer, Flusser e Brandão parecem confluir ou aproximar-se do

complexo teórico de Jung (2005, p. 93), que declara que os símbolos e sua cadeia de

significados fazem com que a tudo seja dado um sentido e uma explicação, o que permite ao

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homem interagir com o ambiente que o cerca de modo conectivo. Tanto os conteúdos da

existência individual (inconsciente pessoal) quanto os arquétipos (imagens do inconsciente

coletivo) são camadas psíquicas que se manifestam através dos símbolos – por detrás de cada

símbolo existe um sentido profundo, que representa sempre muito mais do que seu significado

imediato. Assim, Jung também conclui que a natureza humana conduz tanto à formação da

cultura quanto à criação de símbolos, que originam tanto o mito quanto o ritual primitivo.

1.3 Do mito ao rito

Está ele (o homem primordial) jogado no meio das coisas que

sobre ele se precipitam para esmagá-lo. Surgem as coisas, uma

após outra ou em grupos, da penumbra que forma o horizonte

da situação, e invadem, ameaçadoras, a chaleira a qual o

homem primordial habita. As coisas advêm das sombras e cada

uma é uma aventura assombrosa, seja ela uma fera ou um

trovão, uma árvore ou outro homem.

(FLUSSER, 2002, p. 91).

Na história da humanidade, a prática do êxtase é a mais antiga das tentativas de

supressão do profundo vazio existencial causado pela dissociação da psique com o surgimento

da consciência. Em busca da integridade psíquica, a primeira manifestação de codificação

simbólica foi desenvolvida pelo homem primitivo sob a estrutura do pensamento mítico.

Tendo como base a imaginação, o homem primitivo construiu uma linguagem capaz de

controlar a realidade e dar sentido à existência: a linguagem dos símbolos e dos mitos

(CASSIRER, 2005, p. 23). Enraizados no imaginário coletivo e nas relações do homem com o

mundo, as práticas místicas, criadas com embasamento no pensamento mítico, nos estados

alterados da consciência, na fé empírica e coletiva, foram encontradas nas civilizações de todo

planeta como instrumentos de reorganização simbólica (ELIADE, 2001, p. 129).

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Dando continuidade a esteira conceitual de Eliade (2001, p. 136-138), o autor propõe

que, enquanto o mito tem por objetivo dar sentido à vida, o ritual tem por finalidade

comemorar aquilo que o mito rememora. O conceito de ritual foi descrito por Turner (1974, p.

69) como uma cerimônia padronizada, na qual predominam elementos míticos, simbólicos,

religiosos, irracionais e sagrados em detrimento do comportamento prático, técnico, racional,

científico e profano. Como reafirmação do mito e ação direta de transcendência, o ritual

aponta um caminho de conexão ao Cosmos, quando homem e sacralidade estabelecem uma

relação de unidade. Em outras palavras, é pelas práticas arcaicas do êxtase que o homem

primordial deixa de ser profano, religa-se ao sagrado e alcança, durante o rito, a totalidade

procurada desde o surgimento da sua consciência e hipercomplexidade.

Conforme visto até então, as criações do imaginário cultural, representadas pelo mito e

comemoradas no ritual das tribos primitivas, surgem como primeira manifestação de estrutura

simbólica. De acordo com Eliade (2001, p. 85), por detrás de cada símbolo, existe sempre um

mito, que só sobrevive por meio do ritual, onde é encenado, relembrado e comemorado. Na

perspectiva de Cassirer (2005, p. 23), a imaginação (a capacidade de conceber imagens)

permite ao homem mergulhar em um terreno específico de irrestrita criatividade.

Segundo Eliade (2001, p. 88), o ritual, por si só, é criativo, e o mito alimenta-se desta

configuração de sentido. No entanto, a eficácia do verdadeiro ritual depende do conhecimento

e uso correto dos quatro elementos básicos de composição5, conforme abaixo:

1. Como primeiro elemento, está a manipulação dos símbolos sagrados. Operada pelos

mestres de poder, a utilização desses símbolos opera como manifestação de mistificação e

legitimidade. Os objetos mágicos, utilizados durante o ritual, atuam como portais que adormecem

os filtros da consciência para a “abertura do coração e da alma” (ELIADE, 2001, p. 89).

5 A sequencia da argumentação foi inspirada nas seguintes obras: “O sagrado e o profano”, de Eliade (2001),

“Mitologia Grega”, de Brandão (1994) e “As máscaras de Deus”, de Campbell (1992).

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2. O segundo aspecto de representação ritual diz respeito ao seu formato. Constituído por

hierarquias e regras de atuação e posicionamento, o ritual formula o contato entre o povo e os

donos de poder. Os mestres reivindicam sua autoridade através do uso de seus poderes especiais,

intermediando mundo humano e mundo divino. Como unidade de observação e experiência

concreta, o rito possui tempo de ocorrência e espaço específico, ambos sinalizados pelos Deuses,

além de participantes previamente preparados e iniciados.

3. Com caráter de solidariedade e cumplicidade, o ritual proporciona a vinculação como

terceira premissa para a sua realização. A identidade entre os membros e a sensação de

aceitação vem da unidade final: em uma prática de rito, todos os membros do grupo estão

unidos em prol de um objetivo comum.

4. Como último elemento, estão a classificação do mundo e a construção da realidade,

desencadeando uma única vivência de sentido em todos os participantes da cerimônia do culto

de mistério. A cosmovisão – a visão cognitiva da vida e do mundo – não limita sua compreensão

às regras lógicas da racionalidade; o pensamento mítico proporciona ao homem primordial um

mundo de sentidos comprovado pela sua experiência criativa.

Devido à relevância do conceito de ritual para a presente pesquisa, os elementos

fundamentais de composição – que configuram a unidade ritual – serão detalhados,

individualmente, nos tópicos subsequentes, sendo eles: (1) manipulação dos símbolos

sagrados, (2) formato, (3) vínculo e (4) construção da realidade.

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1.3.1 Manipulação dos símbolos sagrados

Nas lendas de Cristo e a Virgem, a cujo mistério as catedrais foram edificadas, e

também nas lendas, as quais os gongos dos templos ressoam, percebe-se o

conhecimento de uma semente ou de um elemento dentro de nós e de todas as coisas

que antecedem o tempo e o espaço, uma parte integrante da eternidade, e que, tal como

a luz interminável que no sol, na lua e na estrela matutina parece se por de acordo com

as leis, jamais morre, mas sempre se renova. Gerado como se fosse de fogo e de

vento, nascido como se fosse de água e de terra, é o que vive em todas as vidas, mas

também o que as antecede e a elas sobrevive.

(CAMPBELL, 1994, p.178).

Em continuidade à análise da proposta de Eliade (2001), a credibilidade do ritual e a

difusão da "verdade absoluta" no social provêm da validade do símbolo durante a

performance, o que ocorre quando o Mediador – o “Dono do Poder” – sacraliza o espaço e

tempo profanos, promovendo a fusão entre o mundo humano e o mundo divino. Segundo o

autor, tal revelação de poderes divinos para o líder religioso ocorre por meio das hierofanias6,

que podem tanto se manifestar em objetos inanimados (hierofania elementar), parte integrante

do mundo profano, quanto em seres humanos (hierofania suprema).

Além disso, os manuscritos sagrados e a força da palavra mágica seguida do direito

de pronunciá-la também constituem elementos simbólicos de composição do ritual,

reconhecidos pelo homem mítico como revelação divina. Em sua análise sobre o tema, Geertz

sintetiza como as práticas rituais solidificam crenças religiosas através dos artefatos rituais:

É no ritual [...] que, de alguma maneira, se gera a convicção de que as concepções

religiosas são verídicas e as diretrizes religiosas são sólidas. É em alguma forma de

cerimonial [...] que os humores e motivações que os símbolos sagrados induzem nos

homens [...] encontram-se e reforçam-se mutuamente. (GEERTZ, 1968, p. 669).

6 Conforme definição de Eliade (2001), a hierofania representa uma das modalidades da experiência religiosa

que consiste em enxergar a santificação do real no natural a partir de um ato de manifestação do sagrado. “Diante

da divindade a criatura só pode se sentir fraca, incapaz, totalmente dependente. Nem a pedra, nem a árvore, nem

o animal, nem o homem são sagrados e sim aquilo que revelam; a hierofania faz que o objeto se torne outra

coisa, embora permaneça o mesmo. Um objeto ou uma pessoa não é „apenas‟ aquilo que se vê; são sempre sinais

sensíveis de algo que está por trás das aparências sensíveis”. (ELIADE, 2001, p.18).

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De acordo com Boff (2000, p.34), isso ocorre porque o ser humano apresenta um

dimensão imanente7 e outra dimensão transcendente

8, que geram a sua totalidade:

Somos seres de enraizamento e de abertura. A raiz que nos limita é nossa dimensão de

imanência. A abertura que nos faz romper barreiras e ultrapassar todos os limites,

impulsionando a busca permanente por novos mundos, é nossa transcendência. [...]

Numa palavra, eu diria que o ser humano é um projeto infinito. Um projeto que não

encontra neste mundo o quadro para sua realização. Por isso é um errante, em busca

de novos mundos e novas paisagens. [...] O ser humano é um projeto ilimitado,

transcendente, não dá para ser enquadrado. [...] Nessa experiência emerge aquilo que

somos: seres de imanência e de transcendência, como dimensões de um único ser

humano. Imanência e transcendência não são aspectos inteiramente distintos, mas

dimensões de uma única realidade que somos nós. (BOFF, 2000, p. 31-34).

Por meio das experiências dos sentidos corporais o homem torna-se presente na

realidade imanente, que o permite receber informações do mundo exterior pelos sentidos,

promovendo a expressão e a ação no mundo físico – em outras palavras, é pela dimensão

imanente que o homem manipula os símbolos sagrados, participa do rito de dimensão coletiva

e se vincula aos membros da cerimonia. Contudo, como ser transcendente, o homem vai além

dessa realidade e se mostra capaz de superar a imanência daquilo a que se contrapõe. A

dimensão transcendente (espiritual) do ser humano testemunha para o fato de que, por trás das

aparências do mundo visível, existe um desejo primordial de retorno à unidade perdida.

1.3.2 Formato do ritual primitivo

O padrão de organização ritual (formato) é composto por hierarquias e definição de

papeis (funções) entre os membros da cerimônia. Tais regras atuam como leis que obrigam,

permitem ou interditam determinadas ações em detrimento de outras. Durante a performance, os

participantes deixam o tempo presente, abdicam das respectivas trajetórias pessoais e eventos

7 O conceito de Imanência relaciona-se à vivência do homem em um mundo material, que foi chamado por

Bystrina de “primeira realidade”.

8

Neste momento, compreende-se por transcendência um estado de totalidade do Ser, quando o homem

ultrapassa os limiares da matéria, e se encontra em busca da unificação das suas esferas humana e espiritual, da

psique consciente e inconsciente.

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do mundo profano para retornar à Eternidade. Reunidos em Tempo primordial, a escada ritual9

permite o reencontro dos homens com Deuses e Antepassados míticos. Entretanto, a experiência

concreta de repetição de um acontecimento sagrado singular só se torna possível a partir da

preparação prévia dos membros que o compõem. Por isso, todo ritual é constituído por

hierarquias, nas quais cada participante possui um papel específico.

Antes da realização da cerimônia, todos os participantes precisam passar pelo processo

de Iniciação, por intermédio do qual o homem testemunha uma dimensão divina dentro do

mundo humano. Por essa razão, esses rituais apontam para um estado sobre-humano do Ser e

para a revelação das verdades superiores. No entanto, para atingir o êxtase e viajar para o outro

mundo é preciso vencer as “provas estabelecidas pelos senhores da iniciação: a sacralidade

cósmica” (CAMPBELL, 1992, p. 402). Formulados pelos deuses, heróis civilizadores ou

antepassados míticos, os rituais de iniciação têm origem divina, apesar de mais explicitamente

apresentarem função social.

Segundo Campbell (1992, p. 402), a peregrinação à “realidade absoluta”10 permite ao

homem mítico desvendar os mistérios da religiosidade obscurecida. Nesse momento, o

iniciado aprende os verdadeiros nomes dos deuses da sua tribo, passa a ter permissão para

manipular os objetos mágicos e compreende a função de cada símbolo utilizado. Após

ultrapassar o limiar do rito de passagem, o candidato reconhece-se em integridade, recusa as

situações de vivência terrena e profana, e renasce para a experiência de vida santificada. O

papel da iniciação é oferecer um lar espiritual para a alma do iniciado, que agora caminha

para além da experiência de vida profana.

9 O conceito de “escada ritual” é utilizado por Campbell em “As máscaras de Deus” (1992) e equivale à subida

da escadaria de um santuário, que conduz o iniciado ao Céu, a uma dimensão inacessível, fazendo com que o

sujeito abdique da sua condição mortal de uma maneira ou de outra e passe a fazer parte da condição divina. 10

Campbell relata a passagem por três estágios na ascensão mística (“realidade absoluta”): (1) Purificação, (2)

Iluminação e (3) Unificação; ou (1) Purificação, (2) Ascensão e (3) Advento. Esses estágios refletem o caráter

celestial e as proezas sobrenaturais do iniciado.

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32

1.3.3 Vínculo

É preciso, pois, pertencer.

Não pertencer a ninguém é não se tornar ninguém.

(CYRULNIK, 1995, p. 75).

Tanto os símbolos sagrados quanto o padrão de organização (formato) são elementos

básicos de composição do ritual primitivo, cuja articulação ocorre com base na vinculação.

Segundo Cassirer (1946, p. 54), no pensamento mítico reside um intenso desejo de os

indivíduos identificarem-se tanto com a vida da comunidade quanto com a vida da natureza.

Os rituais religiosos satisfazem esse desejo do homem mítico na medida em que os indivíduos

fundem-se em um todo homogêneo. Nas palavras do autor,

Os sujeitos do mito e os atos rituais são de uma infinita variedade; na verdade são

incalculáveis e insondáveis. Mas os motivos do pensamento mítico e da

imaginação mítica são, em certo sentido, sempre os mesmos. Em todas as

atividades e em todas as formas de cultura humana encontramos uma “unidade na

diversidade”. (CASSIRER, 1946, p. 53).

Nesse sentido, o vínculo é compreendido como a ponte estabelecida entre a

consciência que nasce e o sentimento primordial de unidade (que é perdido com o surgimento

da consciência, conforme visto nos tópicos anteriores), que gera a sensação de pertencimento –

sem esta comunhão, nenhuma prática ritualística seria possível, pois nenhum símbolo seria

mantido e nenhum padrão de organização faria sentido. Em outras palavras, o poder dos

símbolos, a força do imaginário, a crença nas religiões e a rememoração dos mitos nos ritos

apontam para a construção de uma realidade comum, que é completamente dependente das

convicções partilhadas, isto é, dos vínculos em questão.

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33

1.3.4 Construção da realidade

A vida só é suportável para o homem se ela fizer sentido.

(JUNG, 1990, p. 414).

Conforme Campbell (1994, p. 171), o homem das civilizações arcaicas foge do terror

do Caos que habita seu mundo e constrói sua realidade tendo como necessidade básica o

reencontro com o divino, o mágico, o mítico, o sobrenatural. Existir realmente para o homem

primitivo significa caminhar de mãos dadas com o Cosmos e a esfera transcendente, o que é

apenas possível se vivenciado a partir da estrutura que o mundo religioso comporta, ou seja, a

partir de uma estrutura erguida com base no conceito de “sistema do mundo” das sociedades

tradicionais. Esse sistema é constituído a partir do espaço delimitado que representa a abertura

das vias que conduzem os homens aos deuses, promovendo a comunicação com os três níveis

cósmicos da existência: Terra, Céu e mundo dos mortos (regiões inferiores). Por isso, a

necessidade de o homem religioso “viver o mais perto possível do centro do Mundo” (ELIADE,

2001, p. 43)11

. Em outras palavras, a realidade, para a mente primitiva, é dividida em duas

esferas, transcendente e imanente, e tem como critério discriminatório, entre uma realidade e

outra, o tempo sagrado (cíclico e heterogêneo) e o tempo profano (linear e homogêneo).

Ainda segundo Campbell (1994), o espaço é compreendido como “arquétipo celeste

e modelo transcendente” (p. 177) por não ser escolhido livremente pelo homem, mas indicado

pelos deuses durante a performance ritual. Uma vez reconhecido, o espaço precisa ser

consagrado – ou seja, deixar de ser profano e se tornar sagrado – para, posteriormente, ser

habitado. A escolha e a ritualização do espaço têm a função original de imitar o mito

primordial da criação, quando o caos é transformado em Cosmos pelos antepassados míticos.

11

Eliade (2001) define o “Centro do Mundo” como o espaço (consagrado) em que se vive (p. 64). As crenças

sobre o “Centro do Mundo” e sua articulação com os níveis cósmicos traduzem a importância da localização dos

templos e santuários sagrados, auxiliando a “tornar visíveis aos olhos mortais as grandes linhas da ordem da

natureza” (CAMPBELL, 1994, p. 176).

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Para o autor, “a ideia de um lugar sagrado é onde as paredes e as leis do mundo profano

possam se dissolver para depois revelar alguma maravilha” (CAMPBELL, 1994, p. 179).

Entretanto, para transformar a terra deserta em território sagrado é preciso seguir as normas

que organizam o Caos e o transforma “simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição

ritual da cosmogonia” (ELIADE, 2001, p. 34).

Tendo em vista que o mundo dos homens é uma réplica do modelo divino da

Criação e o homem deve-se manter o mais próximo possível do sagrado, a terra descoberta é

recriada, renovada e santificada, fazendo do mundo humano, criação divina (ibidem). De

acordo com Eliade (ibid., p. 35), criar novamente o território, renovando as energias locais,

significa consagrar este lugar. Essa espécie de repetição da cosmogonia é responsável por

estabelecer a íntima relação entre Cosmos e consagração territorial que fundamenta toda

estrutura do pensamento mítico. Assim, o homem religioso habita “o coração do real” (ibid.,

p. 36), participa do ser, integra-se à realidade absoluta, distancia-se do Caos, da desordem e

do horror de estar no vazio, diante do nada.

Diante da divindade a criatura só pode se sentir fraca, incapaz, totalmente dependente.

Nem a pedra, nem a árvore, nem o animal, nem o homem são sagrados e sim aquilo

que revelam; a hierofania faz que o objeto se torne outra coisa, embora permaneça o

mesmo. Um objeto ou uma pessoa não é “apenas” aquilo que se vê; são sempre sinais

sensíveis de algo que está por trás das aparências sensíveis. (ELIADE, 2001, p. 18).

Em suma, a construção de uma atmosfera impregnada de santidade inicia-se com a

escolha do território para habitação e realização dos rituais. Posteriormente, a performance

ritual continua com a delimitação temporal, que completa “agora os preparativos que

conferem àquele espaço consagrado sua estrutura visível” (TURNER, 1974, p. 45). Assim

como o espaço, que precisa ser consagrado, o tempo também se divide em dois intervalos de

periodicidade: o tempo sagrado e o tempo ordinário.

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Conforme visto anteriormente, os rituais primitivos apresentavam como premissa básica

solucionar, entre outros aspectos, a questão da continuidade temporal. Separando o tempo sagrado

do profano, o homem revive um tempo mítico primordial, sentindo-se uno com a Eternidade

(ELIADE, 2001, p. 20). Conforme Campbell (1994, p. 175), o tempo sagrado12

é um tempo

circular, criado pelo homem e sacralizado pelos deuses durante a performance ritual. A fusão

do mundo humano com a esfera transcendente é encarada pelo homem religioso como uma

espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos

ritos. Sobre a importância das festas para o homem mítico, Eliade diz:

Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada da Vida, experimenta-se a

santidade da existência humana como criação divina. No resto do tempo, há sempre

o risco de esquecer o que é fundamental: que a existência não é “dada” por aquilo

que os modernos chamam “natureza”, mas sim, que é uma criação dos Outros, os

Deuses ou os seres semi-divinos. (ELIADE, 2001, p. 64).

Assim, ao comemorar periodicamente o calendário sagrado, o homem primordial

evita que sua festa comemorativa se desvaneça, uma vez que o calendário traz a possibilidade

de repetir anualmente os mesmos eventos, nas mesmas festas rituais, como uma “sucessão

infinita de eternidades” (ibid, p. 66). Por essa razão, a oportunidade de retornar ao Cosmos,

reviver acontecimentos míticos, transcender o limiar da mortalidade e assemelhar-se ao

modelo da perfeição criadora salva a experiência de vida do Caos e do fim permanente, dando

sentido à existência e vinculando uns aos outros.

12

Para exemplificar essa concepção arcaica de tempo mítico, Eliade (2001) cita a festa de Ano Novo. O ritual de

Ano Novo representa a recriação do Mundo a partir de um recomeço cíclico dos meses que o compõem. Para as

civilizações ocidentais, o ano começa em janeiro, potencialmente puro e virgem, mas, com o passar dos meses,

começa a acumular angústias sucessivas até atingir o ápice do desgaste psicológico e ansiedades do tempo

cíclico. Por isso, o mês de dezembro é visto pelo autor como “o mais tenso do ano”, pois é o momento do Caos,

que simboliza a regressão à cosmogonia: a destruição seguida da sua total regeneração criativa.

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36

1.4 Do ritual primitivo às ritualidades contemporâneas

Não é apenas tal ou tal faceta de nosso ser que é social,

é toda a existência humana.

(TODOROV, 1996, p. 151)

Após essa detalhada explanação sobre o ritual primitivo, cabe salientar que o

conceito de ritual não se restringe ao seu aspecto mágico e religioso. Estudos sobre a

experiência ritual são desenvolvidos tradicionalmente pela Antropologia Cultural, História

das Religiões, Sociologia de Campo e Psicologia Dinâmica, a partir dos quais os rituais são

compreendidos como fenômenos complexos, que ocorrem nos mais diversos ambientes

sociais e englobam os mais diversificados comportamentos humanos. Entretanto, apesar da

sua diversidade, existem elementos que se relacionam tanto a sua estrutura quanto ao seu

conteúdo que são comuns em todos os modelos de comportamento ritual. De acordo com a

pesquisa desenvolvida por Rook:

O termo ritual refere-se a um tipo de atividade expressiva e simbólica construída de

múltiplos comportamentos que se dão numa sequência fixa e episódica e tendem a se

repetir com o passar do tempo. O comportamento ritual roteirizado é representado

dramaticamente e realizado com formalidade, seriedade e intensidade interna.

(ROOK, 2007 p. 83).

Essa definição incorpora tanto os elementos estruturais (que caracterizam o

comportamento ritual) quanto os componentes qualitativos (que distinguem o ritual de modos

de comportamento semelhantes, como os hábitos, por exemplo). Despido da restrição da

experiência ritual vinculada a contextos religiosos ou místicos, o sociólogo Frederick Bird

(1980, p.25) aponta três características fundamentais para uma definição completa do ritual.

(1) Sequência: a experiência ritual se constitui em torno de uma sequência de eventos

comportamentais, seguida da apreciação desses episódios que compõem o ritual. Rook

aprofunda as características em questão e exemplifica dizendo que um ritual religioso pode

iniciar-se com uma procissão, ser seguido de uma invocação, de hinos, de um sermão, de uma

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oferta e, finalizado, com um recolhimento. O autor também assinala que uma experiência ritual

pode ser relativamente breve e simples, tais como os rituais de saudação e despedida, ou mais

elaborada, assim como as cerimônias cívicas, entretanto, é indispensável que todos os elementos

que envolvem a cena sejam apreciados para a validade do rito (ROOK, 2007, p. 83).

(2) Ligação entre as sequências: a segunda característica dos rituais definida por Bird é

que um elemento de ação é quase sempre seguido ou precedido de uma série de eventos que

não varia. Apesar de alguns rituais permitirem maior maleabilidade do que outros em relação

a este aspecto, a ação ritual exige adequação a roteiros estereotipados, de tal modo que agir de

acordo com o roteiro prescrito é seguido da invasão de um sentimento extremamente

recompensador. No caso de uma festa de aniversário infantil, apesar de ser especificado com

menor rigidez, há ideias comuns sobre o momento apropriado para abrir os presentes, cortar o

bolo, participar das brincadeiras etc (ROOK, 2007, p. 83).

(3) Repetição: a terceira e última característica fundamental do comportamento ritual é a

repetição da mesma sequência de eventos ao longo do tempo. De acordo com Mead (1956,

p.66), um ritual tende a se realizar da mesma maneira a cada vez que é observado a fim de

trazer à tona pensamentos e sentimentos específicos no sujeito que o realiza.

Sob esse aspecto, os rituais são semelhantes aos hábitos e costumes comportamentais.

Os rituais têm outras características em comum com os hábitos comportamentais; de

fato, alguns rituais são realizados mais ou menos habitualmente (serviços religiosos,

cuidados pessoais). Os rituais e hábitos comportamentais representam conjuntos

sobrepostos: nem todos os hábitos envolvem rituais, e nem todos os rituais

representam necessariamente uma atividade habitual [...]. Embora alguns hábitos

sejam complexos e altamente envolventes (como os vícios), muitas vezes são menos

significativos pessoalmente do que os rituais, e seria depreciar um ritual descrevê-lo

como meramente habitual. (ERIKSON, 1977, apud ROOK, 2007, p. 83).

Neste momento, é importante deixar clara a diferença entre hábitos e rituais. De

acordo com Rook (2007, p. 83), um ritual pode se diferenciar do hábito por ser mais longo, ter

experiências coletivas, seguir um roteiro, e ter uma dimensão mais dramática e maior

envolvimento psicológico, como, por exemplo, uma festa de casamento é um ritual social, não

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um hábito. Já os hábitos são comportamentos singulares, realizados com regularidade, sempre

da mesma forma, com menor envolvimento e significado pessoal, como simplesmente tomar

certo remédio em certo horário todos os dias.

Os grandes ritos de passagem, como formaturas e casamentos, marcam importantes

transições de status social e estimulam grande envolvimento psicológico e forte

ansiedade. Até a festa de aniversário de uma criança envolve preocupações sérias para

os participantes envolvidos: Quem veio? Quem não veio? Os presentes são numerosos

ou insuficientes? Observou-se reciprocidade? E os rituais servem para incluir ou

excluir pessoas da família ou da comunidade. Isso se vê de forma mais acentuada em

ambientes religiosos, fraternos e cívicos, onde os rituais muitas vezes são bastante

solenes. Finalmente, os rituais desencadeiam uma resposta comportamental imediata.

O ritual é uma linguagem corporal que opera como um símbolo natural, facilitando as

interações entre pessoas. (LEACH, 1976, apud ROOK, 2007, p. 83-84).

Sendo assim, o fenômeno da ritualidade (sagrada ou profana, primitiva ou

contemporânea) é compreendido como um padrão de ação sequencial e ordenado, de atos e

gestos, caracterizados por diferentes graus de convencionalidade, rigidez, fusão e repetição,

prescrevendo um comportamento cultural (PEIRANO, 2003, p. 53). Para Eliade:

O homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Isto

significa que o homem a-religioso se constitui por oposição a seu predecessor,

esforçando-se por se “esvaziar” de toda religiosidade e de todo significado trans-

humano. Ele reconhece a si próprio na medida em que se “liberta” e se “purifica” das

“superstições” de seus antepassados. Em outras palavras, o homem profano, queira ou

não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado

dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro. (ELIADE, 2001, p. 166).

A proposta da presente pesquisa é fielmente ilustrada na citação acima, uma vez que se

parte do pressuposto de que os processos de ritualização representam vetores de ordenação da

experiência coletiva independentemente da época em curso. Considerando que as ritualidades

relacionam-se ao que há de mais arcaico e constante no comportamento entre os seres vivos,

nota-se que a vida cotidiana, na era contemporânea, também é permeada de ritos, que, no

entanto, são profanos. Exemplos dessas ritualidades profanas são facilmente encontradas em

eventos cotidianos, tais como concertos de música, eventos esportivos, premiação no trabalho,

ingresso à universidade, formaturas, além dos ritos familiares (nascimento, morte, casamento,

aniversário etc.) e dos feriados da cultura local (no caso do Brasil: vestir-se de branco na festa

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de Ano Novo, sambar no Carnaval, trocar ovos de chocolate na Páscoa, iluminar a cidade,

montar árvore e trocar presentes no Natal etc).

Reflexões sobre a sobrevivência de elementos do ritual primitivo na comunicação e

na mídia contemporâneas foram elaboradas anteriormente por outros pesquisadores

(CONTRERA, 1995, 2002, 2004, 2005; FAUSTO NETO, 2001; FONTELES, 2007;

RIBEIRO, 2000) e seguem caminhos diferentes à proposta desta pesquisa. As contribuições

das teorias da comunicação até o presente momento estão voltadas para a defesa de que há um

núcleo sagrado nas ritualizações contemporâneas que se manifesta por intermédio dos meios de

comunicação (tanto os de massa, quanto os digitais/interativos). Trata-se da crença de que os

rituais da mídia são pálidas releituras do ritual primitivo. Nessa perspectiva, a mídia ocupa

“uma espécie de materialidade mística” (MAFESSOLI, 1996, p. 263) e, assim, o ritual de

unificação apresenta-se como evento espetacular, o herói mítico manifesta-se como modelo

de consumo e o arquétipo mitológico surge como estereótipo, em uma sociedade que não é

mais mágica, mas ainda procura o encantamento perdido.

A presente argumentação, entretanto, deseja explorar outra hipótese: a de que as

ritualidades no contemporâneo não necessariamente buscam um sentido religioso, efetuando-

se como vetor profano de ordenação coletiva, de apaziguamento de ansiedade e de imposição

de ritmo para o cotidiano. Em outras palavras, esta Tese aventura-se na perspectiva de que os

rituais contemporâneos estão amplamente livres da ideia de transcendência ou de

reencantamento do mundo (ainda que simulado) pela sociedade vigente.

A percepção de que o que mantém o formato do ritual intacto no presente não é o

diálogo imperfeito e incompleto entre conteúdo arcaico e mídia contemporânea, mas a

constatação de que os processos de ritualização são intrínsecos ao gênero humano e estão

intricados em complexas relações sociais independentemente da época em curso, é oriunda da

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leitura das obras de Morin a respeito da sociologia do homem. As rotinas envolvidas nas

ritualidades configuram, por sua vez, um fenômeno comunicacional, na medida em que

afetam o modo pelo qual a cultura se molda: os ritos refletem a maneira pela qual os grupos

sociais celebram, mantêm e renovam o mundo em que vivem, além de controlar e organizar

aspectos sociais da vida cotidiana. Assim, constata-se que os rituais também se relacionam às

questões de gênero e poder, reforçando-as, além de ilustrar a unidade dos participantes como

grupo social, ao combinar a prática e o simbólico em cenários específicos.

O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá sentido do que é

importante e do que é secundário. O rito nos permite viver num mundo organizado

e não-caótico, permite-nos sentir em casa, num mundo que, do contrário,

apresentar-se-ia a nós como hostil, violento, impossível. (TERRIN, 2004, p. 19).

O compromisso do presente estudo com a crítica permite considerar as ritualidades

com maior interesse do que de costume, a partir da percepção de que duas funções

primordiais permanecem ativas na contemporaneidade: a necessidade de segurança e a

orientação de grupos sociais, uma vez que os rituais são responsáveis pelo fortalecimento dos

vínculos comunicativos, reforçando a sociabilidade e mantendo a memória dos vínculos já

existentes. Considerando todos os aspectos que integram o conceito de ritual, os capítulos

seguintes estão dedicados à análise do ritual e da sua racionalidade de base, a fim de

decodificar construções sociais e simbólicas prevalecentes na atualidade. Para tanto, inicia-se,

no próximo capítulo, uma reflexão em torno dos processos sociomediáticos contemporâneos,

no que se relaciona ao desencantamento do mundo e às origens da mudança cultural, à

dinâmica social do capitalismo atual e à condição pós-moderna, à sociedade do espetáculo e

à informação-mercadoria, à liquidez das relações interpessoais e à cibercultura como

categoria de época, a outros aspectos relevantes.

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CAPÍTULO II

PROCESSOS SOCIOMEDIÁTICOS

CONTEMPORÂNEOS

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Ninguém poderá prever as revoluções que se aproximam.

Entretanto, a evolução da técnica decorrerá cada vez mais rapidamente

e não será possível detê-la em parte alguma.

Em todos os domínios da existência as forças dos equipamentos técnicos

e dos autômatos apertarão cada vez mais o cerco.

(HEIDEGGER, 2000, p. 20).

O presente capítulo remete aos impactos da comunicação e das mídias na cultura

contemporânea, estabelecendo interconexões entre economia e política, entre cultura e sociedade,

a fim de apreender o modus operandi da civilização atual. Após investigar as origens da mudança

cultural, trabalha-se a condição pós-moderna e a sociedade mediática avançada a partir da

convergência digital. Considerando a cibercultura como categoria de época, elabora-se um estudo

da sociedade vigente, com foco no estado da arte do espaço e do tempo, para, posteriormente – no

capítulo seguinte –, apreender as ritualidades cotidianas vividas e representadas no ciberespaço.

2.1 Do desencantamento do mundo às origens da mudança cultural

Desencantamento do mundo, Die Entzauberung der Welt, nasce no ideário de

Friedrich Von Schiller (1759 – 1805) e aponta para o conceito-chave deste capítulo. A

expressão, conforme indica Pierucci (2003, p. 62), aparece pela primeira vez em setembro de

1913, nas páginas de artigo publicado na “revista Logos”, quando Weber (apud Pierucci,

2003, p. 62-70) discursou sobre religião e descreveu dois modos distintos de relação com o

sagrado: (1) o mágico, anterior ao religioso, promoveria afinidade eletiva13

com o homem

animista, imerso num mundo de espíritos, diretamente acoplado ou sobreposto à esfera

material, (2) a religião, doutrina institucionalizada e institucionalizadora, conduziria o

momento “cultural de racionalização [por que não dizer também desencantamento?] teórica,

13

Johann Wolfgang Von Goethe, um dos líderes do Romantismo alemão, ao lado de Schiller, usa a expressão

“afinidades eletivas”, Wahlverwandtschaften, para designar certo tipo de atração ou magnetismo transcendente e

íntimo entre seres/elementos.

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de intelectualização com nítidas pretensões de controle sobre a vida dos le/igos, querendo a

constância e a fidelidade à comunidade de culto” (ibid., p. 70; grifos nossos). A extensão e a

direção da racionalização, tal como aponta a introdução dos organizadores de “From Max

Weber: essays in sociology”14

(1952, p. 51) pode ser mensurada negativamente pelo

desalojamento dos elementos mágicos do pensamento, ou, positivamente, “à proporção em

que as ideias vão adquirindo coerência sistemática e consistência naturalista” (ibidem), em

oposição à imaginação. Apesar da força do conceito weberiano e do seu potencial heurístico

para a compreensão da dinâmica social instituída pelo binômio positivismo/capitalismo, é

preciso fazer um alerta:

Se o desencantamento ressoa por trás de cada página de Weber, se ele se insinua em

cada entrelinha como se percorresse a obra toda, travejando-a de ponta a ponta e

perpassando cada um de seus estudos, fincando sempre ali em sua escrita, assim, o

tempo inteiro, isso se deve antes à força da ideia que à presença física da palavra. Do

termo em si, da expressão vocabular, é só aparência de onipresença. Efeito ilusório.

Muito mais do que pelo emprego frequentíssimo do termo, muito mais do que pela

ocorrência material do significante no fluxo caudaloso da pena weberiana, a

impressão de onipresença é causada pela importância e significação estratégicas que

esse conceito [...] vai assumir, inclusive retroativamente, na temática substantiva da

sociologia comparada de Marx Weber ― a emergência do racionalismo ocidental

em meio a um processo de racionalização generalizado, mas heterogêneo.

Mas tem outra. Tem algo mais. Entra aí também, e contando pontos, a beleza da

expressão em si, com a sua capacidade e reverberar e sugerir efeitos de sentido que

ultrapassam largamente seus pontos de aplicação autorais. (PIERUCCI, 2003, p. 27-

28; grifos nossos).

Tal efeito estésico guarda, além da poesia, os perigos da deturpação do ideário

weberiano em função de interpretações exclusivamente metafóricas e, por isso mesmo,

descomprometida com a proposta do sociólogo, uma vez que seu significado stricto sensu

refere-se ao racionalismo ocidental, oposto ao mítico. A mencionada rubrica será explorada,

sobretudo, no que se relaciona à desconstrução das ideias ou imagens do mundo pré-industrial

efetivadas pelo projeto sociocultural moderno-positivo, e às suas sequelas pós-modernas. Não

ao acaso, o processo de modernização confunde-se com o desencanto anotado por Weber.

14

Conhecida coletânea dos escritos de Weber em versão inglesa.

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Na experiência estésica – esse momento em que [...] as coisas se revelam na sua

“essência”, “sem buscar outra justificação que a sua própria perfeição” –, pode

ocorrer que a realidade faça sentido de um modo quase fusional, como se o contato

com o “perfume” dos objetos bastasse para tornar o sujeito plenamente presente ao

mundo – e o mundo imediatamente significante. A convocação do sujeito pelas

qualidades imanentes das figuras do mundo sensível parece então coincidir com a

revelação do sentido. Desse ponto de vista, não é possível opor conceitualmente o

sentir, com o seu caráter imediato, à reflexividade do conhecer, nem separá-los

analiticamente. Deve-se, ao contrário, procurar dar conta da maneira pela qual o

sensível e o inteligível, essas duas dimensões constitutivas da nossa apreensão do

real, essas duas formas complementares de um único saber sobre o mundo,

misturam-se e, provavelmente, até se reforçam uma a outra. Não somente o sensível

“se sente” (por definição), mas ele próprio faz sentido, assim como, inversamente, o

sentido articulado incorpora alguma coisa que emana diretamente do plano sensível:

enquanto, por um lado, a significação está já presente naquilo que os sentidos nos

permitem perceber, por outro, o contato com as qualidades sensíveis do mundo fica

ainda presente no plano onde o sentido articulado se constrói. (LANDOWSKI,

2005, p.15).

A definição de estésico, o sentido do sentir, relaciona-se ao esvaziamento do sagrado

e à sociedade que surge em seu lugar. Segundo Miklos, "a crescente racionalização do

Ocidente, abarcando campos como a música, o direito e a economia, implicava, em sua visão,

um alto custo para o homem moderno" (2012, p. 23). De acordo com o autor, essa "escalada

da razão", implicou na substituição da imaginação pelo saber, que trouxe, como consequência,

a perda da magia (dos mitos e dos ritos) e dos aspectos intuitivos (tanto do pensamento,

quanto da existência) (ibid., p.23).

2.1.1 A dinâmica social do capitalismo atual

Boaventura de Souza Santos (1995, p. 78) aponta que a modernidade – projeto

sociocultural – foi desenhada entre os séculos XVI e XVIII a partir de dois princípios:

1. a regulação, expressa pelo Estado, Mercado e Comunidade; e,

2. a emancipação, apoiada sobre três lógicas racionais:

a) a estética expressiva da arte e da literatura (a Comunidade);

b) a moral prática da ética e do direito (o Estado); e, por fim,

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c) a racionalidade instrumental da ciência e da técnica (o Mercado).

Não é difícil, desde já, vislumbrar conexões entre o desencanto weberiano e o projeto

Moderno conforme Boaventura o articula: se três lógicas racionais apoiam Estado, Mercado e

Comunidade não há, nestas instâncias, lugar para a magia, mas apenas para um espírito

exclusivamente lógico. Sobre isto, a epígrafe flusseriana que introduz esta argumentação é

bastante elucidativa, motivo pelo qual se repete aqui: “a expressão mais perfeita do

pensamento lógico são os enunciados [assépticos] da matemática pura” (FLUSSER, 2002, p.

33). Nessa esteira, os milagres do primitivismo e a necessidade de seu alcance pelas práticas

do êxtase, negativados, são, deste modo, substituídos pelo mecanismo da fé fundada

exclusivamente nas leis que regem a tecnologia e o progresso material. Vale ressaltar que

essas leis não são estáticas, mas transformam-se no decorrer de três grandes momentos.

(1) Primeiro momento da modernidade: ainda segundo Boaventura (1995), inicia-se no

século XIX, fortemente influenciado pela razão positivista de Augusto Comte. Em oposição

ao idealismo, a filosofia positiva encontra-se:

Dividida em cinco ciências fundamentais, cuja sucessão é determinada pela

subordinação necessária e invariável, fundada independentemente de toda opinião

hipotética, na simples comparação aprofundada dos fenômenos correspondentes: a

astronomia, a física, a química, a filosofia, enfim, a física social. A primeira

considera os fenômenos mais gerais, mais simples, mais abstratos e mais afastados

da humanidade, e que influenciam todos os outros sem serem influenciados por

estes. Os fenômenos considerados pela última são, ao contrário, os mais particulares,

mais complicados, mais concretos e mais diretamente interessantes para o homem,

dependem, mais ou menos, de todos os precedentes, sem exercer sobre eles

influência alguma. Entre esses extremos, os graus de especialidade, de complicação

e de personalidade dos fenômenos vão gradualmente aumentando, assim como sua

dependência sucessiva. Tal é a íntima relação geral que a verdadeira observação

filosófica, convincentemente empregada, ao contrário de vãs distinções arbitrárias,

nos conduz a estabelecer entre as diversas ciências fundamentais. (Comte, 1988

[1830/1842], p. 33).

Não ao acaso, Comte (ibid., p. 39) defende que a matemática, exatidão numérica,

deva “constituir o verdadeiro ponto de partida de toda educação científica racional, seja geral,

seja especial, o que explica o uso universal, que se estabelecem desde a muito a esse

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propósito” (ibidem). Mais importante para esta argumentação, porém, é examinar a

classificação que o filósofo francês estabelece para a evolução humana, certa progressão

linear expressa pela lei dos três estágios:

a. o primeiro desses momentos, nomeado estágio teológico ou fictício, desdobra-se da

Antiguidade à Idade Media. Nesse intervalo de tempo, a humanidade, segundo Comte,

explica a realidade por intermédio da mitologia, recorrendo, para tanto, à entidades

mágicas/imaginárias.

b. o segundo estágio evolutivo, de breve intervalo, é o metafísico ou abstrato. Esse

estágio é fundado na crença de um Deus onipotente e em conhecimentos oriundos da

sabedoria popular, que, apesar de desprovidos da exatidão científica, abalam o saber

teológico.

c. por fim, há o estágio científico ou positivo, cuja expressão refere-se ao triunfo da

ciência, capaz de traduzir toda complexidade da experiência humana e natural.

O século XIX – para muitos considerado o início da materialização do estágio

positivo – estabelece, pois, certa tecnocracia. Conforme Boaventura (1995, p. 80-82) esse é

um período no qual as esferas pública (sociedade civil) e privada (indivíduo livre) são

seccionadas, e a racionalidade estético-expressiva separa arte e cotidiano, instituindo a cultura

técnica das massas. Num extremo, a subjetividade individual encontra ressonância no

mercado e na propriedade individual; no outro, emerge o Estado concebido para regular a vida

e os costumes (ibid., p. 130-140).

(2) Segundo momento da modernidade: realiza-se na primeira metade do século XX, no

período entre guerras. Pós-euforia maquínica, inicia-se o processo de separação entre as

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idealizações modernas e as suas possibilidades de execução reais frente ao modelo capitalista. O

estágio científico ou positivo define um cenário no qual as ilusões cedem lugar à visita da

verdade: o Estado impõe-se tanto como regulador das transformações mercadológicas e

societárias quanto mediador das relações empresas/trabalhador. Todas as formas de consumo

relativas à esfera pública (sociedade civil), tais como transporte, educação, saúde etc., tornam-se

responsabilidades estatais. A indústria cultural, por sua vez, surge como aparelho ideológico ideal

para disseminar e controlar, na escala dos milhares e milhões, as informações de interesse público

(ibid., p. 83-86).

(3) Terceiro período da modernidade: refere-se à crise do pensamento positivista, e é

tipificado por Boaventura (ibid.: p. 87-92) como última articulação entre regulação/

emancipação. Tal período inicia-se na década de 1960 e relaciona-se àquilo que o geógrafo

britânico David Harvey (1992) batizou como “condição pós-moderna”. Nesse contexto, o

Estado detém menor controle sobre os investimentos, o capital financeiro ultrapassa as

fronteiras nacionais, que original as Multinacionais, instituindo, assim, o fim da crítica à

mercadoria de consumo, além da constante retroalimentação do sistema econômico-social

com tudo aquilo que poderia subvertê-lo. Isso acontece, precisamente, pela falência do

“Estado-Providência”, antigo moderador ou mediador social, e pela sua substituição por um

capitalismo desorganizado, quase oposto ao desencanto weberiano. Em outras palavras, o que

se reconhece hoje é a ausência de uma instituição centralizadora, dotada de valores fixos,

claros e impositivos.

O que Boaventura (1995) tratou como terceiro período da modernidade, a presente

pesquisa tratará, de modo diferenciado, como condição pós-moderna, a partir deste

momento. Na seção seguinte será realizada uma investigação sobre o debate inicial (por

intermédio dos principais estudiosos sobre o tema) acerca da pós-modernidade, a fim de

realizar seu exame crítico e situá-la como condição reveladora da atual época história. Feita

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a investigação inicial, a argumentação embasar-se-á fortemente na perspectiva de Jameson

(apud ANDERSON, 1999) sobre a pós-modernidade, ponderando sua reflexão com a

análise que Harvey (1992) faz sobre a condição pós-moderna.

2.2 A mudança cultural e a pós-modernidade

Carpe diem, no future – Aproveite o dia de hoje, o futuro não existe.

(MAFFESOLI, 2004, p. 83).

2.2.1 Introdução à pós-modernidade

Tendo em vista o objetivo deste capítulo, que é apreender o modus operandi da

civilização atual, os tópicos pregressos perpassaram o processo de desencantamento do mundo e

as origens da mudança cultural. Isto posto, cabe, neste momento, focar as questões econômicas,

sensíveis, culturais, sociais e políticas da época em curso, atinentes à condição pós-moderna.

De acordo com ampla pesquisa realizada por Anderson (1999, p. 10), o termo “pós-

moderno” foi utilizado pela primeira vez ainda em 1934. Seu curioso uso se deu em uma

antologia de poetas de língua espanhola organizada por Federico de Onís, que chamou de

“pós-moderno” aquilo que identificava como um refluxo conservador diante do modernismo

literário. Contrapondo-se a esta visão, estava o “ultramodernismo”, uma vertente progressista

e universal que radicalizava os paradigmas presentes no modernismo.

Apesar do uso prematuro do termo “pós-moderno”, foi apenas no início da década de

1970 que seu uso ganhou grandes projeções. Entretanto, em vez de ganhar destaque no mundo

literário, foi na arquitetura que as principais discussões acerca de “pós-modernidade”

ganharam fôlego. Em 1972, Robert Venturi, Danise Scott Brown e Steven Izemour

publicaram o manifesto mais importante da década “Learning from Las Vegas” (aprender com

Las Vegas). Tratava-se, pois, de afirmar uma arquitetura com viés mais decorativo e menos

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idealista. Isto é, segundo os autores, a arquitetura modernista é utópica e purista, tendo,

portanto, o desejo de transformar as condições existentes; enquanto que, por oposição, uma

arquitetura pós-moderna não se preocupa com o que deveria ser, mas sim com o que é. Nesse

sentido, “Learning from Las Vegas” significa observar a estética arquitetônica de seus

arredores e reconhecer que simplesmente as pessoas gostam daqueles ambientes: gostam de

sua heterogeneidade porque se reconhecem nesta heterogeneidade. O contraste entre o projeto

modernista e o pós-modernista fica claro, segundo os autores, na seguinte dicotomia:

“construção para o Homem” versus “construção para homens (mercados)”. Como bem

observa Perry Anderson, a simplicidade dos parênteses diz tudo (ANDERSON, 1999, p. 29).

Embora boa parte dos valores que marcariam o debate pós-moderno ao longo dos anos

70 já esteja presente em “Learning from Las Vegas”, propriamente o termo “pós-moderno”

ainda não se incluía no manifesto. O termo só apareceria em 1974, por meio de um discípulo de

Venturi, Robert Stern. No entanto, a obra mais destacada sobre o pós-modernismo na

arquitetura, incluindo aí de forma significativa o termo “pós-modernismo”, viria em 1977 com

“Language of Post-modern Architecture” (“A Linguagem da Arquitetura Pós-Moderna”) de

Charles Jencks (ibid., p. 30). Jencks, ao criticar a arquitetura modernista, apoia-se fortemente

nos valores manifestos em “Learning from Las Vegas”. E, alguns anos mais tarde, para

afirmar positivamente estes valores, inverte a oposição apresentada por Onís, considerando o

“ultramodernismo” uma retaguarda, um avanço que, a despeito de suas qualidades, se

restringia aos valores já obsoletos do modernismo, enquanto que o pós-modernismo

representaria uma “resposta à necessidade contemporânea de uma nova espiritualidade”. E

que espiritualidade seria essa? A espiritualidade de uma comunidade tolerante, em que já não

seria possível polarizações do tipo “esquerda e direita, capitalista e classe operária”

(ANDERSON, 1999, p. 30 e 31). Em suma (ainda que não estivesse explícito): a criação do

mito do “fim da história” para tornar obsoletos de vez os mitos modernos.

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2.2.2 A condição pós-moderna

Seguindo com a análise de Anderson (1999, p. 32), embora o debate arquitetônico da

década de 70 já desse o tom dos valores defendidos pelos pós-modernistas, foi em 1979 que a

primeira contribuição filosófica de fôlego procurou analisar as perspectivas de uma condição

pós-moderna como categoria de época. Esta contribuição é justamente “A condição pós-

moderna” de Jean-François Lyotard. Neste momento, é interessante notar que a concepção

desta obra se deu por encomenda do governo de Quebec, que objetivava que fosse

apresentado um relatório acerca do estado do conhecimento contemporâneo.

Entretanto, a investigação que Lyotad empreende não se resume a delimitar as

fronteiras da ciência da época, mas, antes disso, a especificar em que condições os novos

conhecimentos são obtidos e quais seus parâmetros epistemológicos. Tais reflexões levam

Lyotard a tomar como ponto de partida a preocupação modernista com a linguagem. Para o

autor, a linguagem define todo o vínculo social, que, em vez de tecida por um único fio, é

composta por uma multiplicidade de jogos de linguagem. A fim de tornar mais clara a

compreensão do que se tratam tais jogos de linguagem e seus vínculos com a pós-

modernidade, cabe reproduzir a metáfora de Wittgenstein (pioneiro da teoria dos jogos de

linguagem), utilizada por Lyotard para situar o conhecimento pós-moderno:

A nossa linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de ruelas e

pracinhas, de velhas e novas casas, e de casas com acréscimos de diferentes

períodos; e tudo isso cercado por uma multiplicidade de novos burgos com ruas

regulares retas e casas uniformes. (HARVEY, 1992, p. 51)

Ao identificar a pós-modernidade na esteira da “sociedade pós-industrial”, teorizada

por Daniel Bell e Alain Touraine, Lyotard reconhece o conhecimento como principal força de

produção econômica. Deve-se, portanto, situar o novo poder do conhecimento, uma vez que

submetido à heterogeneidade dos jogos de linguagem. Neste sentido, para o autor, a ciência

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passa a ser compreendida como um jogo de linguagem, o que significa que já não pode ser

reconhecida como única forma legítima de conhecimento, tal como o foi na modernidade.

Assim, em vez de se legitimar pela noção de “verdade”, a ciência, na pós-modernidade, passa

a legitimar-se pela noção de “eficiência”. Eis aqui o ponto chave para compreensão da

condição pós-moderna, segundo Lyotard, pois para o autor a pretensão da ciência, durante a

época moderna, de se estabelecer como guardiã da verdade em detrimento de outros estilos

narrativos, escondia a base de sustentação de sua própria legitimação enquanto tal. Essa base

de sustentação situa-se nos mitos fundadores da modernidade, que são:

1. “a humanidade como agente heroico de sua própria libertação através do

conhecimento” (ANDERSON, 1999, p. 32): mito que descende da Revolução

Francesa;

2. “o espírito como progressiva revelação da verdade” (ibid., p.32): mito que descente do

idealismo alemão.

Por conseguinte, a pós-modernidade encontra-se propriamente na falência de tais

mitos. Mais importante: na falência de todas as metanarrativas. O fim das metanarrativas seria

consequência, para o autor, do próprio desenvolvimento das ciências: “por um lado, através de

uma pluralização dos argumentos, com a proliferação do paradoxo e do paralogismo” (ibid., p.

32); por outro, “por uma tecnificação da prova” (ibid., p.33), reduzindo a “verdade” ao

desempenho. Ou, nas palavras de Lyotard:

A função narrativa perde seus grandes atores, os grandes heróis, os grandes perigos... e

o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos,

mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo

validades pragmáticas sui generis. (1986, p. 16).

O atestado de óbito que Lyotard dá às metanarrativas corrobora com a opinião dos

autores pós-modernistas de que não podemos aspirar a uma explicação totalizante do mundo.

Na verdade, segundo os pós-modernistas (inclusos aqui os autores tratados no tópico 2.2.1),

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uma ação guiada por uma visão unificada de mundo tende a ser repressiva e ilusória, posto

que a compreensão do todo se estabelece através da heterogeneidade de fragmentos em

permanente mudança. Logo, “o pragmatismo (do tipo de Dewey) se torna a única filosofia de

ação possível” (HARVEY, 1992, p. 55). Por conseguinte, a ação política passa a ser

concebida nos marcos da localidade, em detrimento do universal, e em prol de reformas

institucionais específicas, em detrimento da mudança global.

Esse relativismo e derrotismo leva Jürgen Habermas a fazer sua defesa do projeto

iluminista (ibid., p. 56). Neste momento, cabe ressaltar que, apesar de normalmente colocar-se

em oposição às teses de Lyotard e Habermas acerca da pós-modernidade, é provável que em

sua primeira contribuição para o tema, Habermas ainda não havia lido a obra de Lyotard. Na

verdade, o discurso de Habermas “Modernidade – Um projeto incompleto”, proferido em

1980, por ocasião do recebimento do prêmio Adorno, foi uma reação à Bienal de Veneza

ocorrida no mesmo ano e que serviu de vitrine para que Jencks expusesse suas concepções

sobre a pós-modernidade (ANDERSON, 1999, p. 44).

O que Habermas compreende por projeto moderno situa-se precisamente no esforço

iluminista por desenvolver a ciência, a moral e a arte autonomamente, governadas pela lógica

internas de cada uma delas. A partir desta interpretação weberiana do projeto moderno, o

autor reconhece que, no início da década de 80, a modernidade estética encontrava-se em

franco declínio. Tratava-se, pois, de não conseguir, em seus próprios termos, dar conta da

sensibilidade contemporânea de tempo sem o sentido de progresso.

Entretanto, a resposta que Habermas encontra para o problema do declínio da

modernidade estética não está na percepção de que houve uma falência completa do projeto

moderno e que, portanto, deve-se aceitar a ascensão de uma condição pós-moderna. Pelo

contrário, o que Habermas diz é que o projeto moderno encontra-se bloqueado, mas não

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extinto. Na verdade, segundo o autor, nossa época é marcada por uma superespecialização dos

domínios da ciência, da moral e da arte de tal forma que estas esferas não conseguem mais

penetrar no fluxo subjetivo da vida cotidiana. Aqui, fica claro que, para Habermas, o pleno

desenvolvimento do projeto moderno requer não apenas da autonomia da ciência, da moral e

da arte, mas também a interação destes domínios na vida cotidiana, enriquecendo-a (ibid., p.

45). No entanto, a possibilidade de que o projeto moderno retome seu desenvolvimento,

tornando possível a fruição social de todas as esferas, é vista com bastante pessimismo pelo

autor. No que concerne à arte, especialmente, o declínio modernista é reconhecido nos termos

das contradições da modernização capitalista, mas as condições de sua superação não podem

ser encontradas na planificação (aliás, a excessiva planificação é também compreendida como

causa do declínio do modernismo estético).

Nesse sentido, apesar do autor ser pessimista quanto às condições de superação da

interdição do projeto moderno, a ideia de pós-modernidade enquanto categoria de época é

descartada por sua concepção conservadora, uma vez que assevera a falência do projeto

moderno, embasando-se em um antimodernismo cultural que louva o avanço econômico, mas

rejeita suas consequências culturais. Neste momento, a ideia de pós-modernidade tal como

Habermas a concebe vem, sobretudo, das afirmações de Jencks sobre a nova “espiritualidade

da época”. Não é à toa que os marxistas rejeitarão em bloco, pelo menos até aqui, as teses do

surgimento da pós-modernidade.

A primeira voz marxista dissonante é a de Fredric Jameson. Caberá a este autor a

concepção da primeira grande obra a acolher com vigor a ideia de pós-modernidade sob uma

perspectiva crítica. Em 1982, durante uma conferência proferida no Museu Whitney de Artes

Contemporâneas, Jameson publica seu primeiro texto acerca da pós-modernidade: “A

Guinada Cultural” oferece já naquele ano as coordenadas principais da tese que estará

presente em seu mais renomado ensaio “Postmodernism: the Cultural Logic of Late

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Capitalism” (“Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio”) de 1984.

Seguindo ainda a análise de Anderson, cinco lances decisivos marcaram este ensaio e abriram

uma nova e inovadora vereda para a compreensão da pós-modernidade:

1. Economia

O primeiro e mais fundamental vinha com o título – a ancoragem do pós-

modernismo em alterações objetivas da ordem econômica do próprio capital. Não

mais uma mera ruptura estética ou mudança epistemológica, a pós-modernidade

torna-se o sinal cultural de um novo estágio na história do modo de produção

reinante. (Ibid, p. 66).

Aqui se pode verificar a enorme influência que o texto “Capitalismo avançado” de

Ernest Mandel exerceu sobre a obra de Jameson, uma vez que abriu caminho para que se

identificasse no capitalismo contemporâneo um novo estágio da trajetória do modo de

produção capitalista. Esse novo estágio configura-se por intermédio de uma profunda

mudança na divisão internacional do trabalho, em que:

a) as multinacionais passam a ter papel fundamental, deslocando geograficamente o

parque de produção (de países de industrialização avançada para países de

industrialização tardia) em busca de menores custos trabalhistas;

b) a eletrônica moderna desempenha o principal papel no vetor de lucro e inovação;

c) a dinâmica das transações bancárias mundializadas, tornando marcante o papel da

especulação financeira;

d) as formas de inter-relacionamento da mídia e o surgimento de enormes conglomerados

de comunicação.

Todas essas características são marcantes de uma etapa do modo de produção

capitalista fundamentalmente diferente de sua etapa predecessora: o antigo imperialismo.

Diante de mudanças tão profundas e globais torna-se possível perceber que, diferentemente da

modernidade – em que a ideia de moderno sempre teve força exatamente porque ainda eram

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vastos os territórios em que resistiam arcaísmos pré-capitalistas –, a modernização estava

agora praticamente concluída.

Num universo assim purgado de natureza, a cultura necessariamente expandiu-se ao

ponto de se tornar praticamente coextensiva à própria economia, não apenas como

base sintomática de algumas das maiores indústrias do mundo – com o turismo

agora superando todos os outros setores em emprego global – mas de maneira muito

mais profunda, uma vez que todo objeto material ou serviço imaterial vira, de forma

inseparável, uma marca trabalhável ou produto vendável. A cultura nesse sentido,

como inevitável tecido da vida no capitalismo avançado, é agora a nossa segunda

natureza. Enquanto o modernismo extraía seu propósito e energias da persistência do

que ainda não era moderno, do legado de um passado ainda pré-industrial, o pós-

modernismo é a superação dessa distância, a saturação de cada poro do mundo com

o soro do capital. (Ibid., p. 67).

Entretanto se, ao perder sua autonomia e passar a estar submetida à lógica da

mercadoria, a cultura passa a ser uma espécie de “segunda natureza”, cabe-se questionar seus

impactos na vida cotidiana, ou, mais propriamente, os pressupostos psíquicos da pós-

modernidade. Neste momento, Jameson empreende seu segundo lance.

2. Sensibilidade/Identidade15

A forte ideia de fragmentação, heterogeneidade e instabilidade presente na própria

concepção de linguagem vigente na pós-modernidade leva a um novo entendimento da

personalidade. Aqui Jameson empresta de Lacan a ideia de esquizofrenia como desordem

linguística para compreender a natureza de uma sensibilidade própria do sujeito pós-

moderno. Para Lacan, na esquizofrenia há uma ruptura na cadeia de sentido de uma frase

simples, tornando-a um encadeamento de significantes sem relação entre si. Mas se a

identidade do sujeito depende da união psíquica entre passado, futuro e presente e se as frases

também são formadas por este sentido temporal, então uma ruptura no sentido temporal da

frase implica, consequentemente, em uma ruptura da própria estrutura temporal da identidade.

15

O modo como ocorrem as conexões/vínculos/relações interpessoais entre os sujeitos na presentidade será

retomado no item 2.4 (A liquidez das relações pós-moderna) deste capítulo.

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Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com o significante, e não com o

significado, com a participação, a performance e o happening em vez de com um

objeto de arte acabado e autoritário, antes com as aparências superficiais do que com

as raízes. O efeito desse colapso da cadeia significativa é reduzir a experiência à “uma

série de presentes puros e não relacionados no tempo”. (HARVEY, 1992, p. 56).

Sendo assim, os efeitos desta concepção de personalidade esquizofrênica (não

necessariamente no sentido clínico) são bastante interessantes para que se possa compreender

o esmaecimento do sentido histórico, bem como o domínio da ideia de espaço – diante da

percepção e interação com a simultaneidade dos acontecimentos – e do enfraquecimento da

ideia de tempo – posta a eternização do presente – na pós-modernidade. De fato, para

Jameson (e de forma ainda mais significativa para Harvey) a compressão do espaço-tempo é

marca significativa da sensibilidade pós-moderna.

3. Cultura

A ruptura do sentido temporal, especialmente no que se refere à ideia de progresso

(bastante presente na modernidade), provoca uma relação peculiar, na pós-modernidade, com o

passado, que passa a ser concebido como um amontoado de acontecimentos históricos

relacionados com o presente. Não é à toa que Jameson é o primeiro autor a dar grande destaque

ao cinema para compreender o campo cultural na pós-modernidade. Nesta perspectiva, são

significativas as análises que Jameson realiza dos filmes de “nostalgia do presente”, em que o

senso de passado aparece perdido e o presente, em vez de prenhe de futuro (como na

modernidade), aparece prenhe de si mesmo, bloqueada qualquer possibilidade de fuga. Por

outro lado, se a sensibilidade pós-modernidade é a do espaço, em detrimento do tempo

(reduzido ao eterno presente), a “falta de profundidade planejada” (impacto do instantâneo)

passa a ser característica reveladora da arquitetura pós-moderna. Não seria mais necessário

enxergar traços essenciais diante do que é heterogêneo, mas apenas resignar-se à efemeridade

sem fundo, fixando-se nas aparências e nas superfícies, em detrimento da sustentação.

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No entanto, essas mudanças não ocorreram apenas no que se refere às artes: os

discursos ligados à cultura, especialmente na academia, também foram marcados pela ruptura.

A própria compreensão da história passa, como está presente tanto na análise de Jameson

como, mais tarde, na de Harvey, a estar vinculada muito mais com uma arqueologia dos

acontecimentos passados (aqui o centro da análise é claramente Michel Foucault) do que com

uma ciência que reconhece os sentidos essenciais e, portanto, universais da trajetória histórica.

Em contrapartida, ainda tendo Foucault como destacado exemplo, as antigas divisões

de disciplinas passam a ser substituídas pelo discurso da “teoria”. Dessa forma, disciplinas

que até então apresentavam uma separação muito bem definida (tais como história da arte, da

crítica literária, da sociologia, da ciência política etc.), passaram a se cruzar de tal maneira que

não podiam mais ser classificadas com facilidade como assunto de um domínio ou de outro.

Para Anderson, "não poderia haver sintoma mais sinistro de ruína do moderno do que a

ruptura dessas divisões duramente conquistadas" (ibid., p.74).

4. Sociedade

A diluição do tempo histórico na eternização do presente, vista de forma clara na

sensibilidade das novas identidades pós-modernas, também trazem impactos para a dinâmica

social: se na modernidade a diferença de classes era evidente, na pós-modernidade ela já não é

mais (a própria ideia de burguesia – como afirma Anderson, indo além das considerações de

Jameson – perde seu peso na pós-modernidade). Assim, na medida em que há flexibilização

das formas de produção (nos termos de Harvey, também indo além de Jameson) no novo

estágio do desenvolvimento capitalista, diminui-se a clareza sobre a separação de classes. Isto

é, a flexibilização dos contratos de trabalho, bem como da forma de produzir as mercadorias,

ou a própria mundialização dos meios de produção tornam porosas a antiga rigidez das

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relações de classes bem definidas. Não à toa, os sindicatos perdem bastante de seu poder. Por

outro lado, uma vez que os arcaísmos pré-modernos são substituídos por uma completa (ou

quase completa) modernização global, há integração no mercado mundial, promovendo o

consumo também dos objetos da indústria cultural e reforçando uma queda na elitização da

cultura (típica da modernidade).

Nessa esteira, na perspectiva de Jameson, enfraquecidas as tradicionais formações de

classe, multiplicavam-se, em seu lugar, identidades segmentadas e grupos localizados (baseados

em diferenças étnicas e/ou sexuais), provocando um súbito alargamento horizontal do sistema,

responsável pela integração de todo o planeta no mercado mundial. Com a entrada de novos

povos no palco global, o pós-modernismo se contrapõe ao modernismo e se apresenta como

uma era fortemente marcada pela hegemonia do sistema (ibid., p. 75-76).

5. Posição Política

Desde Onís (1934), percebe-se que tratar de pós-modernidade é necessariamente

tomar uma posição. Contudo, se Onís era crítico ao que ele considerava um refluxo

conservador ao modernismo, quando a pós-modernidade entra em pauta nos principais meios

artísticos, já no início da década de 70, a postura é de sua defesa como uma superação ao

modernismo. As posturas filosóficas de Lyotard e de Habermas são paradigmáticas neste

sentido, pois enquanto o primeiro aceita a condição pós-moderna, o segundo a nega, inclusive,

como categoria de época. Jameson, neste momento, apresenta uma posição peculiar e bastante

inovadora nos termos deste debate, pois, sem deixar de reconhecer a pós-modernidade, dá

uma guinada à esquerda no que se refere à orientação de sua compreensão. Aqui sua

orientação clara é a de evitar o moralismo e procurar a superação das ideologias que marcam

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a pós-modernidade através, não de sua negação, mas de uma profunda consciência sobre ela,

guiando-se via um detido exame crítico.

Posto isso, as análises aqui presentes sobre o debate em torno da pós-modernidade

procuraram dar conta de sua efetiva aceitação como categoria de época. Essa aceitação inicia-

se pela ruptura estética com o modernismo, mas, a partir de Jameson, também se verifica que

a condição pós-moderna é um novo estágio econômico e social do desenvolvimento

capitalista. As manifestações culturais da pós-modernidade ancoram-se na passagem para esse

novo estágio econômico e social, mas também se sustentam de maneira ainda mais direta nos

desenvolvimentos tecnológicos que tanto possibilitaram como foram possibilitados por esse

novo estágio. Assim, a primazia da imagem (superfície) sobre o objeto (profundidade, viga de

essência), típica da estética e da sensibilidade pós-moderna, pode ser atribuída, em grande

medida, à popularização da televisão e do computador pessoal. Ou, da mesma forma, a ideia

de hiperespaço combinada ao tempo instantâneo. Deve-se muito ao papel plasmador da

televisão e, sobretudo, aos recursos multimídia, global e simultaneamente, conectados via

computador pessoal. Vale ressaltar que não se trata, portanto, de cair em um determinismo

tecnológico, mas de perceber as condições de inter-relação sobre como tais tecnologias criam,

mas também são criadas por esta nova condição de época. A tarefa de situar as maneiras pelas

quais essas tecnologias realizam o fluxo informacional, promovendo novos sinais culturais,

diante do novo estágio do desenvolvimento capitalista, é abordada no próximo tópico.

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2.2.3 A sociedade do espetáculo e a informação-mercadoria

No que tange as relações entre pós-modernidade e meios de comunicação, a

percepção do mundo ao redor altera-se drasticamente a partir da segunda metade do século

XX e o espetáculo passa a concentrar o modo dominante da vida em sociedade

(SEVCENKO, 2001, p. 78). Capaz de ofertar o império da novidade, do entretenimento, do

esquecimento e do sonho, a ordem da sedução torna-se a lei. Neste momento, o espetáculo

vincula-se ao universo mediático: firmando-se sobre o princípio do encanto, a comunicação

vigente depende do ritual do espetáculo para seguir seu rumo e aumentar a competitividade

no mercado consumidor.

É assim que o gosto que o público popular manifesta pelos espetáculos mais

espetaculares (“músic-hall”, teatros de “boulevard”, circo, grandes produções

cinematográficas, etc.) e pelo aspecto mais espetacular desses espetáculos, trajes,

música, ação, movimento fantástico e, sobretudo, a paixão por todas as formas de

cômico e notadamente por aquelas que tiram seus efeitos da paródia ou da sátira dos

"grandes" (imitadores cançonetistas, etc.) são dimensões do ethos da festa, da franca

diversão, riso livre que libera, colocando o mundo social de cabeça para baixo,

invertendo as convenções e as conveniências. (BOURDIEU, 1983, p. 91).

Ou seja, a indústria do espetáculo se esforça para compensar a perda do convívio

social e o empobrecimento cultural, direcionando o tecido social para uma celebração

permanente das mercadorias, vislumbradas como novidade, como quantidade, como consumo,

como espetáculo enfim. A fascinação pelo entretenimento (espetáculo) e pelas construções

mediáticas corresponde aos estigmas de realização social propostos pela época em curso, na

qual a sociedade busca a cura para suas carências (tanto em âmbito emocional quanto

econômico e/ou cultural).

O pano de fundo dessa revolução do entretenimento, que redefine o padrão cultural das

sociedades urbanas do século XX, é a dissolução da cultura popular tradicional,

causada pela migração em massa dos trabalhadores das áreas rurais para as grandes

cidades [...] Seu fim não é o êxtase espiritual dos rituais populares tradicionais, mas

propiciar a seres solitários, exauridos e anônimos, a identificação com as sensações do

momento e com os astros, estrelas, personalidades do mundo glamouroso das

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comunicações. Além, é claro, de preencher o vazio de suas vidas emocionais e o tédio

das rotinas mecânicas com a vertigem dos transes sensoriais e experiências virtuais de

potencialização, multiplicação e superação dos limites de tempo e espaço.

(SEVCENKO, 2001, p. 78-79).

Assim, o entretenimento adormece a consciência crítica pelo artifício da sedução,

direcionando o sujeito contemporâneo para o constante desejo e vontade de consumo, onde está

“tudo calculado, compactado e servido ao custo de um tostão” (SEVCENKO, 2001, p. 79). O

mesmo fenômeno acontece com a informação, que surge como principal produto do mercado

consumidor na pós-modernidade. Na era nossas tecnologias da informação, toda notícia

veiculada pelos meios de comunicação (de massa e/ou digitais/interativos) transformaram-se em

mercadoria, valorizada pela quantidade, onde “o excesso abala a informação quando estamos

sujeitos ao rebentar ininterrupto de acontecimentos sobre os quais não podemos meditar porque

são logo substituídos por outros” (MORIN, 1986, p. 31).

Em uma sociedade guiada pela lógica do consumo, o equívoco atual confunde

quantidade com qualidade, fazendo com que a explosão da informação descontextualizada,

bombardeada diariamente gere a chamada “saturação da informação”, conforme diagnóstico de

Morin (1986, p. 31). Baudrillard (1991) também trabalha o tema e apresenta três hipóteses que

justificam a saturação da informação (definindo-a como a existência de cada vez mais

informação e cada vez menos sentido):

a) ou a informação produz sentido, mas não consegue compensar a perda brutal de

significado em todos os domínios;

b) ou a informação não tem nada a ver com o significado, trata-se de um modelo

operacional de outro tipo, exterior ao sentido e à circulação do sentido propriamente dito;

c) ou então, pelo contrário, existe correlação rigorosa e necessária entre os dois, na

medida em que a informação é diretamente destruidora ou neutralizadora do sentido e do

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significado, sendo que a perda do sentido está diretamente ligada à ação dissolvente e

dissuasiva da informação, dos media e dos mass media.

Para o autor, a terceira hipótese é a mais adequada. Nesse contexto, a informação devora

o seu próprio conteúdo, aniquila a comunicação e o social, o que ocorre por dois motivos:

(1) em vez de fazer comunicação, esgota-se na encenação da comunicação. Em vez de

produzir sentido, esgota-se na encenação do sentido. A informação é cada vez mais invadida

por uma espécie de conteúdo fantasma. Essa é a hiper-realidade da comunicação e do sentido,

“mais real que o real”, anulando-se, assim, o real.

(2) a informação dissolve o sentido e dissolve o social, em uma espécie de nebulosa

voltada à entropia total. Os medias, por sua vez, são produtores não da socialização, mas do

seu contrário, da implosão do social nas massas.

Baudrillard acredita que todos vivem de um idealismo furioso do sentido e da

comunicação, isto é, o idealismo da comunicação pelo sentido, e que:

Para além do sentido, há o fascínio, que resulta da neutralização e da implosão do

sentido. Para além do horizonte do social há as massas, que resultam da neutralização

e da implosão do social [...] Os mass media estão ao lado do poder da manipulação das

massas ou estão ao lado das massas na liquidação do sentido, na violência exercida

contra o sentido e o fascínio? (BAUDRILLARD, 1991, p. 109-110).

Jung (1990, p. 99), por sua vez, declara que a faculdade humana de auto-organização e

desenvolvimento da memória proporciona ao homem mapeamento e combinação dos

acontecimentos separados pela distância temporal entre um evento e outro. A condição de

contextualizar relaciona-se a capacidade de conexão entre a informação nova e o conteúdo de

memória psíquica já registrada. É por isso que a informação, quando saturada, não cumpre sua

função de orientar o cidadão e ainda produz uma queda na competência conectiva da relação

homem/sociedade – não é à toa que se pode dizer que “em todos os lugares em que os media

dão um a representação de realidade, a informação se esconde e se cala” (MORIN, 1986, p. 41).

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Sob a ótica do psicanalista Jurandir Freire Costa16

, na visão freudiana, a cultura do

presente resume-se em três eixos fundamentais: (1) a lei do mercado; (2) o hábito do

consumo; e (3) a ânsia pelo sucesso publicitário. Esses três traços unidos configuram uma

revolução na organização da vida social, onde o sentimento de insegurança cresce e as

relações interpessoais tornam-se um “verdadeiro círculo de horror”, conforme aponta o

psicanalista. Obcecados pelo lucro, poder e sucesso, os media descuidam dos processos éticos

e culturais da sua sociedade, proporcionando a erupção de uma opinião pública dirigida pelos

meios de comunicação, e a formação de uma mídia subordinada pelas leis do mercado.

Nada nos espanta porque nada é novo. Não estamos jogados no meio das coisas, mas

no meio dos instrumentos. Esses instrumentos são, no fundo, prolongamentos e

projeções do nosso próprio eu. As máquinas são nossos braços prolongados, os

veículos nossas pernas prolongadas, e o mundo em geral é uma projeção do nosso eu

sobre a superfície calma e abismal do nada [...] E o “outro” que compartilha conosco

esse mundo instrumental é, ele próprio, instrumento, sendo fornecedor ou consumidor,

parceiro ou concorrente. (FLUSSER, 2002, p. 92).

A informação-mercadoria simboliza, portanto, uma matéria perecível que busca

despertar a identificação do indivíduo com uma pessoa, com uma sociedade, com um

desejo, com uma espécie de erro, enfim. Vive-se, portanto, em um mundo onde tudo o que o

compõe (do entretenimento à informação) deixa de ser valorizado pelo seu sentido real para

ser vangloriado pelo seu valor no mercado – o que se aplica, inclusive, às relações humanas,

tema do próximo tópico da pesquisa.

2.2.4 A liquidez das relações pós-modernas

Bauman (2007) defende que a natureza humana na pós-modernidade (ou

modernidade líquida, conforme o autor classifica o período em curso) é marcada tanto pela

angústia quanto pelo mal-estar constante, pela consciência de fracasso e pela intensidade do

16

A partir de relatos feitos no Seminário "Mídia e Violência Urbana", realizado na FAPERJ (Fundação de

Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro) nos dias 1º e 2 de julho de 1993. Maiores referências e informações sobre

o Seminário podem ser encontradas no site oficial da FAPERJ: http://www.scielosp.org.

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viver (vetor compatível com a aceleração pós-moderna), entre sujeitos que se conectam a

partir de laços frágeis, volúveis e fugazes, cuja máxima noção de identidade é o estilo, e a

ideia de eficácia afasta a reflexão moral. De acordo com análise de Bittencourt (2014), tendo

como referências leituras de Bauman sobre a liquidez do homem pós-moderno, a humanidade

vive hoje a dor da sua finitude de modo tão intenso como aparentemente nunca se foi vivido

na história até então. A prova disso está na constatação de que:

Buscamos de todas as maneiras meios de escaparmos das experiências dolorosas e

tristes, vislumbrando acima de tudo a aquisição de um utópico estado de prazer

eterno. Com efeito, os avanços tecnológicos nos proporcionaram em muitas

circunstâncias um aprimoramento da qualidade de vida, favorecendo assim a

dinamização do tempo para o seu uso em atividades mais aprazíveis. Porém, será

que sabemos fazer uso adequado do tempo livre que dispomos para a realização de

atividades que efetivamente ampliam a nossa potência de agir, tornando-nos mais

criativos e solidários? Talvez não, e esse é o paradoxo inscrito no seio de nossa

sociedade tecnologizada. Simultaneamente ao fato de termos obtido um considerável

desenvolvimento material, ao mesmo tempo nos diluímos enquanto pessoas, pois

pretendemos adequar todas as nossas interações apenas àquilo que de alguma

maneira nos proporcionará vantagens imediatas. (BITTENCOURT, 2014, p.1).

O pensamento de Baitello Jr. (2005) segue o mesmo raciocínio, dialogando com a

leitura de Bittencourt sobre proposta de Bauman a respeito do modo pelo qual as novas

tecnologias da informação afetam os vínculos sociais:

Quanto mais se aperfeiçoam os recursos, as técnicas e as possibilidades que o homem

tem de se comunicar com o mundo, com os outros homens e consigo mesmo,

aumentam também, em idêntica proporção, as suas incapacidades, suas lacunas, seu

boicote, seus entraves ao mesmo processo, ampliando um território tão antigo quanto

esquecido, o território da incomunicação humana. (BAITELLO, 2005, p. 9).

Portanto, pode-se dizer que a era em que se vive hoje é a da liquidez, ou, da

modernidade líquida. Para Bauman (2007. p.15), um dos sintomas mais evidentes desta

"modernidade líquida" é o modo pelo qual as relações humanas foram afetadas: tanto a

subjetividade quanto a singularidade do outro foram esquecidas (no sentido de que o sujeito

contemporâneo passou a desenvolver profunda resistência/intolerância) para ser valorizado em

seu lugar a maneira que a alteridade se apresenta para este indivíduo. A substituição do "ser"

pelo "parecer" representa a incapacidade da sociedade atual de se relacionar com a alteridade de

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maneira plena, instaurando, em seu lugar, relacionamentos instáveis, superficiais, descartáveis,

marcados pela "utilidade" do momento, e não mais pela cumplicidade e pela entrega.

Seguindo com a reflexão de Bittencourt (2014) sobre o tema, outro ponto a se

considerar é a "lógica excludente da neurótica sociedade pós-moderna", cujos valores,

extremamente conservadores, impedem que seus indivíduos estejam aptos para interagir com

a diversidade de perspectivas. Uma vez que a alteridade não é reconhecida em totalidade, as

relações interpessoais apresentam-se cada vez mais empobrecidas. Nessa perspectiva, o outro,

quando diferente, é proclamado como inimigo de antemão, e, nesta visão distorcida da

diferença, instaura-se o medo crônico de uma sombra ameaçadora que, à priori, nada mais é

do que a subjetividade e singularidade da alteridade. Ou, nas palavras de Bauman, "as

importantes contradições (...) são falsamente apresentadas como problemas filosóficos e

dilemas a serem resolvidos pelo refinamento do raciocínio – em lugar de serem apresentadas

como produto dos genuínos conflitos sociais que na realidade são" (2003, p. 68).

[...] talvez seja por isso que, em vez de relatar suas experiências e expectativas

utilizando termos como “relacionar-se” e “relacionamentos”, as pessoas falem cada

vez mais (auxiliadas e conduzidas pelos doutos especialistas) em “conexões”, ou

“conectar-se” e “ser conectado”. Em vez de parceiros, preferem falar em “redes”.

(BAUMAN, 2004, p.12).

Para o autor, a obliteração do social presencial no social mediático, ou seja, nas redes,

é o principal reflexo do esvaziamento dos laços interpessoais, já que os relacionamentos

vivenciados a partir dos meios digitais são capazes de evocar o sentimento do pertencer a uma

comunidade, sem, no entanto, promover o desconforto do compromisso (BAUMAN, 2003, p.

66). Em continuidade a esta reflexão, Bauman lamenta:

Sentimos falta da comunidade porque sentimos falta de segurança, qualidade

fundamental para uma vida feliz, mas que o mundo que habitamos é cada vez menos

capaz de oferecer e mais relutante em prometer. Mas a comunidade continua

teimosamente em falta, escapa ao nosso alcance ou se desmancha, porque a maneira

como o mundo estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos

aproxima de sua realização; em lugar de ser mitigada, nossa insegurança aumenta, e

assim continuamos sonhando, tentando e fracassando. (Ibid., p. 129).

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Lévy (1999, p.128) contribui para a reflexão ao dizer que "conectadas ao universo, as

comunidades virtuais constroem e dissolvem constantemente suas micrototalidades

dinâmicas, emergentes, imersas, derivando entre as correntes turbilhonantes do novo dilúvio".

Nessa esteira, é possível dizer que a realidade virtual, instituída pela comunicação digital, é

uma realidade mito, no melhor espírito de ambiguidade barthesiano, trazendo, em sua própria

rubrica, a negação antinômica: se é real, pode, ao mesmo tempo, ser virtual? Marilena Chauí

responde a esta questão com clareza:

Então o que significa virtual? Para compreendermos este conceito vale à pena

mencionar outro conceito com o qual ele tende a ser indevidamente confundido, o

conceito de possível. O modo de relação entre o possível e o real, e entre o virtual e

o real também não é o mesmo. Na tradição filosófica o possível é aquilo que pode

vir a existir se houver um agente ou circunstâncias que o façam passar a existência.

O real é o que existe efetivamente. O possível é o que pode vir a existir. Também na

tradição filosófica tendia-se a identificar o possível e o virtual. A semente é a árvore

virtual. Ou a árvore possível. Isto é, considerava que o possível e o virtual eram

simplesmente potencialidades latentes que poderiam vir à existência se houvesse um

agente ou condições favoráveis ao acontecimento. Na perspectiva da tradição, uma

expressão como realidade virtual é um não senso, pois o virtual, para a tradição, é

irreal. É um mero possível e ainda inexistente, algo irreal. A revolução da

informática e a cibernética modificaram o conceito de virtual. O virtual já é real e já

existe. Ele não se opõe ao real, ele se opõe ao atual. Agora se entende por virtual

algo real e existente que aguarda uma atualização. É aquilo que pode ser

infinitamente atualizado. O virtual é o que não pode ser determinado por

coordenadas espaciais ou temporais porque ele existe sem estar presente em um

espaço ou tempo determinados. Ou seja, para o virtual a atopia e a acronia são o seu

modo de ser. É o seu modo de existir. A atualização é o modo de relação dos

indivíduos humanos como sistemas informacionais. (CHAUÍ, 2010).

Ao ter em vista que a cultura do virtual perpassa a cultura pós-moderna, Levy

acrescenta à temática novamente e afirma que: “a virtualização reinventa uma cultura

nômade, não por uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas

fazendo surgir um meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com um

mínimo de inércia" (1996, p. 20).

Em suma, entre os vetores internacionais de articulação do processo social da pós-

modernidade, destacam-se a fragmentação, a incerteza estrutural e a precariedade do conteúdo,

além do excesso de toda e qualquer produção (tudo nasce excessivo, saturado) e da hipertelia

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dos fenômenos (isto é, perda das finalidades, processo civilizatório que não aponta para onde

vai) e do retorno da religião (em uma sociedade em que cada um tem seu próprio Deus).

Entretanto, os paradigmas acerca das relações interpessoais merecem destaque devido ao foco

desta pesquisa, que é o mapeamento das ritualidades contemporâneas no ciberespaço, isto é,

desvelar o modo como os vínculos sociais são estabelecidos e mantidos na rede. No intuito de

oferecer subsídios teóricos para análise do objeto de pesquisa, a cibercultura e seus impactos

na sociedade vigente serão abordados no tópico a seguir.

2.3 A cibercultura como categoria de época

Conforme visto acima, a cultura digital (ou do virtual) é marcada pela cultura pós-

moderna, nomeadamente, e, sobretudo, pela saturação da informação, lógica da fragmentação,

ausência (total ou parcial) de finalidade e incerteza estrutural. Subordinada ao imperativo da

velocidade, a cibercultura, neste momento, é tomada como conceito válido para nomear a época

em curso, recobrindo, portanto, a recente fase de desenvolvimento digital do capitalismo. De

acordo com Trivinho, a “cibercultura designa a configuração material, simbólica e imaginária da

vida humana correspondente à predominância mundial das tecnologias e redes digitais avançadas,

na esfera do trabalho, tempo livre e do lazer” (2007, p. 116). Para o autor, a cibercultura é

“propriamente, o mundo em curso, em todos os setores” (ibidem), estruturada por vetores básicos

cuja regra fundamental não é a inclusão, mas a exclusão:

(1) informatização: refere-se à adaptação de métodos tradicionais de trabalho ou

atividade ao uso de sistemas computadorizados;

(2) virtualização: define-se como a face sofisticada e avançada do processo atual de

informatização;

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(3) ciberespacialização: é uma manifestação da virtualização, que se dá através do

desdobramento internacional em tempo real;

(4) hipertextualização: diz respeito à apresentação e organização do que configura o

ciberespaço;

(5) cibericonização: trata-se tanto um meio gráfico eficaz presente no ciberespaço

quanto uma otimização da gramática hipertextual, tornando mais fácil a

interatividade;

(6) interatividade: é um modelo sociomediático que promove a relação com a interface

gráfica, incluindo o outro virtual e demais possibilidades do ciberespaço; ainda mais

do que isso, a interatividade é um imperativo que dá um sentimento de

pertencimento e nivelamento a lógica do mundo-rede.

Nesse contexto, o ciberespaço configura-se como um território virtual de circulação e

produção simbólica, regido pelas leis do mercado corporativo e das audiências (TRIVINHO,

2007, p. 118). O termo ciberespaço (cyberspace, no original) foi evocado pela primeira vez pelo

escritor norte-americano e canadense Willian Gibson, no conto “Burning Chrome”, de 1982,

mas tornou-se conhecido em seu livro “Neuromancer”, de 1984. O conceito também foi

trabalhado e definido por Lévy (1999):

Eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela interconexão

mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o

conjunto de sistemas de comunicação eletrônicos [...] na medida em que transmitem

informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização. (Ibid., p. 92).

Assim, o ciberespaço, palco estrutural da construção de parâmetro coletivo de

sentido, apresenta seus próprios ritos de periodicidade e previsibilidade, o que gera nova

noção de tempo. Essa noção de tempo e espaço na cibercultura é flutuante, o que sugere uma

mutação antropológica gigantesca. Sobre o tema em questão, Lucrécia D'alessio Ferrara

(2008) traz a seguinte proposta:

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Deslocando-se sem sair do lugar ou projetando-se para o futuro para reencontrar o

passado, o ciberespaço encontra sua escritura no modo de se situar no tempo e no

espaço: um modo desencontrado e divergente, disperso e hetero, diferente daquilo

que se viveu e poderá ser vivido, porque o tempo não é real, pois não existe o irreal,

e o espaço não é perto ou distante, porque sem se deslocar, simplesmente é. Esse

espaço-tempo heterodoxo constitui não uma unidade, mas o discurso do espaço

sobre o tempo ou as nuances do tempo através da fala do espaço ou pelo que essa

fala sugere sobre si mesma ao dizer o tempo. Essa fala assinala o fim do tempo

como narrativa da duração que situava e classificava historicamente a vida entre

“antes” e “depois”.

Essa fala apresenta um novo paradigma epistemológico que aponta a dúvida sobre a

concepção que entendia o tempo e o espaço como realidades simétricas ou, no

máximo, como realidades dialéticas. Ao contrário, sem sínteses, as contradições se

impõem e o tempo e o espaço se tornam heterodoxos e, sem medidas estáveis,

produzem o conhecimento do indeterminado, do ambíguo, do indecidível. Na

realidade, o conhecimento ciber parece ter decretado a incapacidade da cultura para

produzir sua narrativa. Apesar de sua fragilidade, tem sido possível entender sua

gênese, sua arqueologia e tecer o prognóstico de seu desenvolvimento. (FERRARA,

2008, p. 75).

De acordo com Ferrara (2008), a cibercultura é o “contínuo acelerado” que aponta

para a incapacidade da cultura contemporânea em produzir narrativas, além de sinalizar o

modo pelo qual o sujeito se situa no espaço e no tempo através do ciberespaço. Tendo em

vista que a cibercultura, como categoria de época, é subordinada à aceleração, tanto o tempo

quanto o espaço apresentam-se sobrepostos no presente, isto é, deixam de ser compreendidos

como a relação cronológica (no sentido de parâmetro ordenador) entre passado e futuro, e

passam a ser compreendidos como “continuidade de instantes aqui e agora” que precisam ser

vividos em ritmos acelerados (FERRARA, 2008, p. 75).

Na cibercultura, é urgente compreender esse engano e atentar para a percepção do

presente sempre difuso, mas que pode ser adivinhado ou imaginado na

caracterização imprevista de um tempo/espaço do presente. A dificuldade de

interpretar o contínuo presente está em desistir do tempo como parâmetro ordenador

do espaço vivido e em admitir que é possível viver, em aceleração e intensidade

contínuas, todos os tempos e espaços. [...]

[...] Transformam-se o tempo, o espaço e o mundo do vivido que asseguravam o

comunicar pré-ciber. Não há tempo para programas, porque o espaço é líquido e a

informação não se oferece como produto acabado, mas exige ser produzida de modo

sempre novo. O tempo se concentra no presente e todos os territórios parecem ser

equivalentes em todos os lugares, se for mantida a insistência em compará-los com os

lugares do passado recente do mundo em deslocamento e velocidade. (FERRARA,

2008, p.75- 76).

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Segundo a argumentação de Ferrara, o que se vive hoje é a aceleração continua.

Entretanto, existe uma forte tendência a compreender a cibercultura como o domínio do

tempo sobre o espaço, que, no entanto, é falsa. A cibercultura é, na verdade, uma “mudança

de paradigma epistemológico da cultura”, na qual se misturam tempo e espaço, emissor e

receptor, consumo passivo e critica seletiva, de modo que o presente seja eterno17

, tempo e

espaço estejam sobrepostos e todos os lugares se confrontem mundialmente.

2.3.1 O fenômeno glocal e a visibilidade mediática

A abordagem dessa temática passa, necessariamente, pelo contexto do processo

civilizatório instituído ao longo do século XX, marcado pelo fenômeno glocal, ou seja, por

uma existência inteiramente condicionada pela visibilidade mediática.

O termo "glocal" é um neologismo formado a partir da fusão das palavras "global"

e "local", que foi trabalhado, criticamente, pela primeira vez, por Paul Virilio (1995), e foi

aprofundado por Trivinho (2007, 2009, 2010). O conceito refere-se a “um processo social

mediatizado e sincrético, nem global, nem local, situado e realizado tanto além quanto

aquém de ambos, como vertente de terceira grandeza” (TRIVINHO, 2009, p. 3). Em outras

palavras, o contexto glocal é uma hipermercadoria da sociedade mediática, que conduz a um

paradigma de vida cuja experiência passa a ser mediada tecnologicamente.

Já a visibilidade mediática configura o imperativo comunicacional da necessidade em

aproximar-se do foco mediático a partir da encenação do si-próprio e dos pertences e interesses

comuns (TRIVINHO, 2009, p. 3). De acordo com Trivinho (2010, p. 4), a “evidência da

existência” a sua condicionante mediática encerra o “ethos” da civilização glocal avançada, de

17

A eternização do presente (ou o presente interminável) será retomada e abordada mais detalhadamente no

capítulo seguinte: Vida Cotidiana e Ritualidades no Ciberespaço.

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tal modo que é preciso existir de alguma forma para a alteridade (isto é, fazer-se visível),

independentemente de ela conceder ou não a atenção desejada. A insuficiência da existência em

condições não-mediáticas pressupõe um modo específico de posicionamento no mundo,

correspondente às necessidades da irreversível e socialmente inquestionável reprodução social-

histórica na civilização contemporânea. Nas palavras do autor:

Segundo a fleuma autocrática desse axioma cultural epocal, hipostasiado em

habitus cotidiano indiscutido, um existente (indivíduo, grupo, objeto, marca etc.)

não subsiste per se; vige, como tal, se, e somente se, nos e através de media, sejam

eles de massa, interativos ou híbridos, fixos ou móveis. (TRIVINHO, 2010, p.3,

grifo do autor).

Trata-se, portanto, de um fenômeno invisível – não apreensível em sua essência,

mas passível de compreensão por seus efeitos –, marcado pela lógica operacional de três

culturas: (1) cultura dromocrática18

(reconhecida pela velocidade); (2) cultura pós-moderna

(reconhecida pela fragmentação, excesso e hipertelia); e, (3) cibercultura (reconhecida pelo

digital, hipertextual). As três macroconfigurações caracterizadoras são articuladas pelo

contexto glocal, que se estabelece em dois paradigmas fundamentais: (1) condição glocal da

existência humana; e, (2) contexto glocal da sociabilidade das trocas. Sendo assim, tanto o

glocal (fragmentário, aleatório, imprevisível, precário, totalitário, híbrido) quanto a

visibilidade mediática estruturam-se na glocalização.

O fenômeno da glocalização funda a recriação do espaço, que não se perde, mas se

desloca para um ambiente virtual. O corpo humano é fisicamente suspenso, remodelando a

significação sensorial a partir de informações digitais, coletivas e imediatas (TRIVINHO,

2010, p. 120). A troca do mundo físico (concreto) pelo virtual (imaterial) inverte a

codificação do real: a realidade torna-se imagética, construída mentalmente em um universo

virtual, que repousa em ligações tênues, sobre eixos delicados (BAUDRILLARD, 2001, p.

61). Toda economia, cultura e política do século XXI passam por um processo de

18

A cultura dromocrática ou dromocracia cibercultural será tema do próximo tópico deste Capítulo.

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negociação, distorção e apropriação dessa dimensão espaço-temporal, que se alimenta de

uma vida imaginária, voltada para a mercadoria (BENEDIKT, 1991, p. 62).

Marilena Chauí debateu o tema em questão no seminário "Tecnologia e Poder19

",

afirmando que se durante a primeira e a segunda Revolução Industrial, o corpo se estendeu

no espaço – com o uso de máquinas a vapor, rádio e TV –, na presentidade mediática é o

cérebro humano que se expande até ressignificar a experiência do espaço e do tempo.

Segundo a filósofa e pesquisadora, vive-se a destruição do espaço e do tempo pelas novas

tecnologias da informação, que desenham um novo ser humano. “Uma síntese de carbono e

silício, mescla de terminais nervosos e semicondutores. No futuro seremos ciborgues,

híbridos… No futuro faremos download de nossas mentes”, prevê Chauí. Em outras

palavras, a velocidade norteia as experiências cotidianas de tal maneira na

contemporaneidade que tanto o espaço quanto o tempo estão subordinados à aceleração. O

novo ser humano previsto por Chauí (os ciborgues, que farão back up das próprias mentes)

ainda fazem parte de mera especulação e não há previsão para sua existência, entretanto, o

sujeito dromoapto, isto é, o sujeito apto para lidar com toda velocidade exigida na época em

curso, já existe, e é tema do tópico seguinte da pesquisa.

19

O Seminário aconteceu na Biblioteca Mario de Andrade em 25 de março de 2014 e teve como debatedores os

professores Sergio Amadeu (UFABC), Langdon Winner (Rensselaer Polytechinic Institute – New York) e

Marilena Chaui (USP). A mesa teve mediação do editor da Fórum, Renato Rovai.

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73

2.3.2 Velocidade e dromocracia20

cibercultural

Para compreender a cibercultura como categoria de época – tema desta seção da

pesquisa – é imprescindível compreender o conceito de dromocracia, considerado por

Trivinho (2007) como motor invisível da cibercultura. O conceito de dromocracia foi

apresentado pela primeira vez por Virilio (1977) e diz respeito à nítida e íntima relação entre

os vetores da velocidade, da política e da guerra. Trivinho, por sua vez, traz o conceito para a

o campo da cibercultura e o define como “fenômeno antropológico e sociotranspolítico que

aflora apenas em condições históricas especiais, infotecnológicamente saturadas"

(TRIVINHO, 2007, p. 218). Para o autor, a dromocracia representa lógica da vida humana na

civilização mediática avançada:

[...] a dromocracia se tornou, mais que tudo, a lógica exponencial específica da

cibercultura. Dito de maneira inversa, a cibercultura, em sua natureza, dinâmica mundial e

consequências, se apresenta como uma sociodromocracia tecnológica em sua forma mais

definida e irradiada. Em miúdos, se a dromocracia é o reino da velocidade e se a

cibercultura como categoria de época (substituta do conceito de sociedade) é o reino do

interativo e do virtual, a dromocracia cibercultural equivale ao processo civilizatório

longitudinal fundado na e articulado pelo usufruto diuturno da velocidade digital em todos

os setores da experiência humana, horizonte no qual e a parti do qual a união realidzada pelo

processo aleatório, via mercado, da informatização, virtualização e ciberespacialização como

indexador prioritário da experiência de mundo. (TRIVINHO, 2007, p. 23, grifos do autor).

A dromocracia cibercultural é, a rigor, um regime transpolítico - invisível como a

violência da velocidade - erigido no contexto de um regime político tradicional e

visível, a democracia (aqui tomada no sentido formal e abstrato, em seu modelo

tipicamente estatal herdado do direito burguês). Nessa perspectiva, a dromocracia

cibercultural comparece, em palavras precisas, como um regime eclipsado na

dinâmica tecnológica da democracia contemporânea. (TRIVINHO, 2007, p. 101).

Para Trivinho, a dromocracia não marca uma nova era, mas, antes, confunde-se com ela:

é a própria. (2007, p. 217). Trata-se, portanto, de um fenômeno implicitamente ligado aos media e

às redes digitais, cuja velocidade tecnológica envolvida altera dramaticamente os fluxos sociais e

culturais, atingindo todos os aspectos da vida cotidiana. A dromoaptidão, por sua vez, é um

20 Dromos, prefixo grego que significa velocidade, agilidade, rapidez.

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conceito inspirado no prisma dromológico de Virilio (1977), que diz respeito à facilidade ou

predisposição para lidar com o que é veloz.

[...] a velocidade como valor a partir do advento da revolução técnica e de sua

conexão com a revolução política. Nesse sentido, se a lógica da riqueza se expressa

numa economia política, a lógica da corrida se explicitaria numa concepção teórica

capaz de articular velocidade e política. (VIRILIO, 1977, p. 10 e 11).

A cultura pós-moderna exige que o sujeito seja dromoapto, em sentido múltiplo, em

todas as práticas recomendadas, em todas as operações exigidas, em todos os conhecimentos

demandados; exige do sujeito que, se possível, se antecipe ao funcionamento do sistema

tecnológico e da (respectiva) cultura mediática que financiam sua própria identidade. Além

disso, na dromocracia cibercultural, a riqueza é inseparável da velocidade, e, se assim se

percebe, velocidade se põe como poder. Em outras palavras, ser veloz significa ter a

possibilidade de ser incluso, e sendo a natureza humana essencialmente gregária, pode-se

dizer que o desejo de ser incluído é um desejo legítimo e genuíno. A questão da velocidade

como vetor de dominação (poder) também é tratada por Bauman, que diz:

O jogo da dominação na era da modernidade líquida não é mais jogado entre o

“maior” e o “menor”, mas entre o mais rápido e o mais lento. Dominam os que são

capazes de acelerar além da velocidade de seus opositores. Quando a velocidade

significa dominação, a “apropriação, utilização e povoamento” do território se torna

uma desvantagem – um risco e não um recurso. (BAUMAN, 2000. p 115).

Marx (1980) mostra que a sociedade está dividida em classes antagônicas que estão

em constante atrito – seja de modo velado ou abertamente –, e que esses embates resultaram

na destruição das classes em luta ou na transformação revolucionária da sociedade. Virilio

(1977) lembra a influência da velocidade desde os primórdios da civilização, que envolvia

questões de estratégia e logística usadas no campo bélico, em dois aspectos simultâneos: o

mapeamento cognitivo e o domínio prático do espaço e de suas possibilidades. O autor

também relaciona velocidade com violência (concreta e/ou simbólica), uma vez que a

aceleração nem sempre se configurou com legitimidade social-histórica e nunca atingiu a

maioria. No que tange a desigualdade vinculada à velocidade, Trivinho usa a expressão

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“dromoaptidão propriamente cibercultural” (TRIVINHO, 2001, p. 209) para caracterizar a

nova lógica de desigualdade digital, designada como capital simbólico necessário para a

“manifestação” individual, grupal, empresarial e institucional do social em rede.

A velocidade não é, portanto, um acontecimento. Ela é, pelo contrário, o que

caracteriza a própria presentidade: tempo irreversível de imediatez, inexorável

em sua natureza e em sua tendência a complexização progressiva. (TRIVINHO,

2007, p. 91).

Na presentidade, as grandes corporações e demais controladores das novas

tecnologias praticamente obrigam seus usuários a reciclagens estruturais constantes, fazendo

com que indivíduos, instituições e países que não disponham (ou que disponham de maneira

insatisfatória) do capital dromocrático cibercultural estejam fadados à exclusão. Segundo o

autor, para ser veloz – ou obter velocidade – e acompanhar a lógica da reciclagem estrutural,

implantada pelas grandes organizações do setor, são necessárias competências tanto de ordem

econômica quanto cognitiva. Para dominar a lógica vigente é preciso, primeiramente, ter

condição econômica para consumir as novas mudanças (como a compra da versão mais

sofisticada dos aparelhos já existentes, por exemplo), para, em seguida adquirir um novo

conhecimento (isto é, um novo poder cognitivo), diante do qual basta apenas um curto

período distante das novidades para que o sujeito esteja completamente “fora do mercado” e,

consequentemente, das fora das “condições de igualdade” em relação àqueles que dominam as

“senhas infotécnicas de acesso”. Forma-se, assim, uma espécie de “pirâmide social” de

domínio, divida em:

a) topo: no topo da pirâmide reside a elite cibercultural dromoapta, que opera com a

máxima capacidade e condições fornecidas pelas novas tecnologias de informação;

b) centro: no centro estão aqueles cujo contato com as novas tecnologias é limitado e

ocorre através de acessos públicos ou privadamente compartilhados, tais como lan

houses e cybercafés, escolas (públicas e/ou privadas), órgãos governamentais, ONGS,

sindicatos etc;

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c) base: na base encontra-se a maioria da população – os desprovidos de qualquer

recurso, sejam eles de ordem econômica ou cognitiva, para acompanhar a velocidade

das transformações sociotecnológicas.

A nova lógica da desigualdade gira em torno do imperativo da dromoaptidão

propriamente cibercultural (TRIVINHO, 2007, p. 199), isto é, esta nova lógica da

desigualdade dita que aquele que for mais veloz terá acesso às tendências majoritárias da

época em curso, tais como uma posição tecnicamente mais qualificada no mercado de

trabalho, acesso tanto ao universo interativo da informação quanto as novas formas de

atividades de lazer virtual etc. A perversidade desta desigualdade está, especificamente, no

fato de que esta hierarquia não garante estabilidade alguma para aqueles que atingem

determinado patamar: hoje incluído, mas se amanhã longe do meio, então o posto do sujeito

na pirâmide social será outro, uma vez que as exigências de atualizações não são apenas

constantes, mas frenéticas.

Na hierarquia cibercultural dos acessos, o usuário que, conectando-se a partir de base

externa ao domo, sendo ela, ainda de propriedade alheia (e tanto mais defasada, se for o

caso), se encontra inapelavelmente em posição inferior à daqueles que contemplam

totalmente o modus operandi da cibercultura a partir do domo [...]. Não obstante,

convém lembrar, com ênfase, que o acesso primário e derivado, uma vez conquistado,

não se subordina a nenhuma cláusula de estabilidade ou garantia de preservação de

direitos: dissipa-se com relativa brevidade, como o ar puro quando atacado por dióxido

de carbono. O tempo de vida do domínio de um objeto infotecnológico completo e

atualizado vê-se tão periodicamente comprometido quanto o acesso a determinados

rincões do cyberspace, quando as corporações do ramo, consagradas pelo mercado,

materializam, a cada ciclo de pouco mais de dois semestres, a lógica da reciclagem

estrutural do parque informático instituído, ao liquidar a versão 13 anterior (daquele

objeto) (na numerológica de praxe: 4.0, 5.0, 5.1, 5.2 etc) por meio do lançamento de

versão de maior potência (7.0. 8.0 etc), em termos de velocidade operacional,

processamento e armazenamento de dados e facilitação ampliada da interatividade.

(TRIVINHO, 2003. p. 111).

A cada nova mudança elimina-se parcial ou totalmente a capacidade cognitiva e/ou

econômica de um grande número de usuários de poder acompanhar as mudanças, estabelecendo,

portanto, uma modalidade renovada de segregação social: aqueles que podem acompanhar as

reciclagens estruturais constantes da tecnologia distanciam-se, cada vez mais, dos que não tem esta

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condição. Tal constatação determina que “a violência da velocidade tornou-se, simultaneamente, o

lugar e a lei, o destino e a destinação do mundo” (VIRILIO, 1996, p. 137).

2.3.3 Violência invisível21

e melancolia do único

Movendo a tudo e a todos, a violência da velocidade pertence à categoria dos

fenômenos invisíveis, ou seja, não se deixa apreender como violência propriamente dita.

De acordo com Trivinho, “de todas as formas de violência atualmente existentes, talvez a

mais silenciosa e invisível e, por isso, a mais implacável, seja a violência da velocidade”

(2007, p. 89).

Incapazes de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou

controlar sua direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder

ou somos assegurados de que podemos influenciar; tentamos calcular e reduzir o

risco de que nós, pessoalmente, ou aqueles que nos são mais próximos e queridos no

momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o mundo opaco

e seu futuro incerto supostamente tem guardado para nós. (BAUMAN, 2007, p.17).

Nessa perspectiva, a violência que está acoplada à aceleração e ao conceito de

dromocracia sinaliza que a velocidade tecnológica – que gera o ritmo estonteante da mudança –

representa vetores que não apenas organizam e/ou desorganizam relações e valores sociais, mas

reescalonam permanentemente a produção de sentido na sociedade vigente (TRIVINHO, 2007,

p. 69). Segundo Trivinho, a violência invisível manifesta-se atualmente (2007, p. 39):

(1) como o modelo de civilização propriamente mediático, tendo como eixo

articulatório a glocalização da existência humana pelo tempo real.

21

Também são utilizados termos como “violência da técnica”, “violência simbólica”, “violência transpolítica”,

“violência sutil/sofisticada”, “violência estrutural-ciberespacial” para designar a violência invisível (/obliterada),

tema central deste tópico (TRIVINHO, 2007, p. 435).

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(2) como bunker glocal22

e como bunkerização glocalizada, isto é, como

fundamento mediático do processo civilizatório da era vigente que apreende a

militarização velada da vida social na cibercultura (TRIVINHO, 2008, p. 11)

(3) como o próprio reconhecimento do corpo que está atrelado à "estética

cibericonocrática hipertextual", de tal modo que o aparato mediático

manifesta-se como uma espécie de prótese (e/ou extensão) do corpo humano.

(4) como pressão social que direciona o sujeito para a dromoaptidão cibercultural;

(5) como nova hierarquia social que se baseia na dromoaptidão. Entretanto, muito

mais do que uma simples hierarquia ligada à aptidão, trata-se de um

pressuposto relacionado à premissa de "quem vale mais" a partir de “quem

possui mais”;

(6) como produção de segregação simbólica, no sentido de criar uma

“dromoproletarização progressiva e massificada”;

(7) como não reconhecimento do outro enquanto alteridade que existe e que se

manifesta, ocasionando uma degeneração mediática da relevância do outro na

sociedade tecnológica atual.

A violência invisível é a violência que se reveste de e se oblitera por todos os foros

da normalidade convivial (em âmbito presencial ou virtual), com nuances peculiares.

Seu índice de coação é nulo no seio das relações sociais. Por isso, vige, em regra,

imperceptível [não somente para as subjetividades em contexto (em especial,

22 Conforme Trivinho, “o bunker glocal é a utopia paradoxal do resguardo socialmente produtivo, aquela de

uma interatuação desimpedida sob confinamento material compulsório na inverificável “linha de fronteira” com

a rede virtual, utopia de apropriação do mundo mediato, do espaço imediato e da alteridade levada às últimas

consequências no frágil tecido social de um planeta efetiva ou potencialmente devassável em todos os setores. O

bunker glocal encarna, no âmbito do cyberspace, o recrudescimento do desejo de liberdade de circulação

simbólica e imaginária plena sob garantias de custódia física supostamente totais, numa época em que,

bagatelizadas as alfândegas culturais e políticas herdadas da modernidade, recrudesceu-se a moral da

(possibilidade de) invasão, em tempo real e em escala ampliada, do terreno alheio. De par com seus congêneres

espaciais, subjetivos e comportamentais, o bunker interativo - em evocação a um esquema psicanalítico

conhecido – repõe, na ordem do dia, por assim dizer, a fantasia melancólica das condições intra-uterinas

irreversivelmente perdidas”. (TRIVINHO, 2008, p. 27-28, grifo do autor).

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aquelas mais fortemente articuladas pelo desejo do único), mas também aos olhos

dos observadores externos. Imaterial, ela se subtrai, com efeito, ao quadro das

formas de violência simbólica (cf. BOURDIEU, 2002). Quando muito, nessa esteira,

desdobra-se em zona proto ou pré-simbólica: não se insere, direta ou explicitamente,

na linguagem, nem se vale necessariamente de quaisquer outros símbolos.

(TRIVINHO, 2010, p. 9).

No arco de caracterização da violência invisível, o imperativo da presença

mediática constitui esteio de um drama social silencioso da alteridade que se apresenta

como desejo do único (TRIVINHO, 2010, p. 4). Esse desejo corresponde ao desejo de

domínio do centro da cena mediática como forma de demonstração de certa “potência”, em

certo raio de alcance social. Sendo assim, o desejo do único relaciona-se a uma

manifestação dramática do sujeito na civilização mediática avançada, que se destina à

compensação de uma incômoda ausência de poder em dado contexto de pertencimento. A

melancolia do único, por sua vez, é um fenômeno comunicacional resultante do desejo do

único, que contém, em seu âmago, a ânsia pelo ofuscamento da alteridade por medo do

ofuscamento do si-próprio da cena mediática. Trata-se de um “procedimento de defesa

antecipada, em razão da presunção de existência de condições sociais competitividade

latente, típica da realidade capitalista” (TRIVINHO, 2010, p.10).

O desejo de domínio do centro da cena não esconde, assim, a sua propensão

denegatória de base: o objetivo precípuo jamais é a eliminação material do outro ou

a destruição literal de sua imagem (…); o objetivo é o seu enquadramento na

sombra, o seu deslocamento (tanto mais duradouro quanto possível) para a periferia

do foco da cena mediática. A vocalização precisa da melancolia do único tem

poucas variações: vida longa à alteridade, desde que turvada. Essas observações não

evidenciam senão os pressupostos bélicos imperscrutáveis e inexpugnáveis da

melancolia do único. O princípio da guerra [...] sobrevive intacto onde menos se

suspeita: nos ares civis da vida cotidiana, a partir do avesso esquecido da

subjetividade democrática (TRIVINHO, 2010, p. 10 apud VIRILIO, 1984;

TRIVINHO, 1999, 2007, p. 279-320).

Segundo a pesquisa de Morin, "as sociedades domesticam os indivíduos através de

mitos e ideias que, por sua vez, domesticam as sociedades" (1998, p. 157). Nessa

perspectiva, se a cibercultura nomeia o atual movimento histórico e é regida pela aceleração

contínua, é possível concluir que tanto a violência invisível quanto a melancolia/desejo do

único são produtos da sociedade tecnológica avançada, que atuam como mitos justificadores

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do período vigente, capazes de domesticar – no sentido de exercer poder/influência (sobre) –

o sujeito contemporâneo.

Conforme visto em linhas pregressas, esta pesquisa assenta um ângulo específico de

análise do ciberespaço como entidade complexa, na qual repousam processos de comunicação e

ritualização, imprescindíveis para a compreensão do comportamento simbólico, socialmente

padronizado e repetitivo do homem contemporâneo. O foco debruça-se, desta maneira, para a

investigação das ritualidades cotidianas, na presentidade mediática específica da cibercultura,

vale dizer, relacionada às tecnologias digitais e à interatividade, no que ambas se articulam com

o ciberespaço. Serão privilegiadas, nesses recortes, as redes sociais na Internet, reconhecidas

como agrupamentos complexos, cuja formação ocorre a partir de interações sociais, apoiadas

em tecnologias digitais de comunicação. Acredita-se que esse instrumental revele padrões de

conexão fundamentais para o mapeamento das ritualidades contemporâneas no ciberespaço, que

serão trabalhadas no próximo capítulo desta pesquisa.

Ao ter em vista que a argumentação tem como objeto de estudo a relação entre

comunicação, processos de ritualização e essa rede de telecomunicações na cultura digital, o

trabalho minucioso de compreensão dos processos sociomediáticos contemporâneos é essencial

para compreensão da maneira pela qual se organiza a dinâmica tanto das relações quanto dos

valores sociais, políticos e culturais na presentidade. Para tanto, a argumentação caminhou do

desencantamento do mundo às origens da mudança cultural, da condição pós-moderna à

cibercultura como categoria de época (caracterizada pela visibilidade mediática e articulada

pelo contexto glocal, ambos subordinados à lógica da velocidade). Finalizado esse

embasamento teórico, realizado para situar o objeto de pesquisa em seu contexto social-

histórico, o último capitulo da Tese abordará a emergência das redes sociais, seus impactos na

vida cotidiana, os hábitos cotidianos e as ritualidades contemporâneas, e, por fim, as

ritualidades no Facebook e no Twitter.

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CAPÍTULO III

VIDA COTIDIANA E

RITUALIDADES NO CIBERESPAÇO

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"Existo porque sou acessível" –

tudo isso não acaba com a minha solidão, pelo contrário, intensifica-a.

(HILLMAN, 1995, p. 95).

Este último capítulo da Tese acena para uma abordagem interdisciplinar de problemas

do mundo tecnológico avançado, no que concernem às macrorrelações entre elementos da

cultura pós-moderna e processos de ritualização na vida cotidiana, aplicados nas redes sociais

do ciberespaço. Tendo em vista o caráter apaziguador da ansiedade das ritualidades, procura-se

apreender o estado da arte dos rituais contemporâneos por intermédio do corpus da pesquisa: o

Facebook e o Twitter.

3.1 A emergência das redes sociais

O conceito de redes sociais surgiu na Sociologia e na Antropologia Social, no final

do século XX, e passou a ser considerado fator-chave para a compreensão da lógica da ação

coletiva e da sua evolução, sendo, atualmente, aplicado e desenvolvido também nos estudos

de Comunicação, Psicologia Social, Ciências da Informação, Sociolinguística, Serviço Social,

Economia etc. O termo foi usado pela primeira vez em 1954, pelo antropologista social John

Arundel Barnes, para designar um conjunto complexo de relações estabelecidas entre

membros de um sistema social a fim de determinar sistematicamente o raio de alcance da

dimensão desses laços, cuja variação poderia ser do nível interpessoal ao internacional. Para

mostrar os padrões dos laços criados, Barnes incorporou conceitos usados tanto pela

sociedade e pelos cientistas sociais (tribos, famílias) quanto por categorias sociais (gêneros,

grupos étnicos) e concluiu que as redes sociais são formadas por três elementos básicos: (1)

atores (indivíduos envolvidos na rede em questão); (2) vínculos/laços (fortes ou fracos); e (3)

fluxos de informação (unidirecional ou bidimensional). Pesquisas como as de Whitaker

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(1993), Watts e Strogatz (1998), Barabási e Albert (1999), Barabási (2003) e Watts (2003)

expandiram e difundiram o uso sistemático da análise de redes sociais:

Uma estrutura em rede – que é uma alternativa à estrutura piramidal – corresponde

também ao que seu próprio nome indica: seus integrantes se ligam horizontalmente a

todos os demais, diretamente ou através dos que os cercam. O conjunto resultante é

como uma malha de múltiplos fios, que pode se espalhar indefinidamente para todos os

lados, sem que nenhum dos seus nós possa ser considerado principal ou central, nem

representante dos demais. Não há um “chefe”, o que há é uma vontade coletiva de

realizar determinado objetivo. (WHITAKER, 1993, p. 48).

Em suma, abertura e porosidade são características essenciais para a construção de

relacionamentos horizontais – em oposição aos verticais/hierárquicos – entre seus membros nas

redes sociais. Os primeiros estudos referentes à conexão desses conceitos com o ciberespaço

foram realizados pelo sociólogo Barry Wellman em 2002, na Universidade de Toronto, e se

expandiram rapidamente entre seus alunos. A tese de Welman defendia a ideia de que redes

sociais complexas sempre existiram, mas os desenvolvimentos tecnológicos recentes

permitiram sua emergência como uma forma dominante de organização social (WELLMAN,

2002, p.2). No Brasil, apesar deste enfoque ainda ser pouco abordado, a pesquisadora Raquel

Recuero (2008) trabalha minuciosamente o impacto das novas tecnologias da informação nas

relações sociais contemporâneas, pensando as redes sociais como agrupamentos complexos,

instituídos por interações sociais, apoiadas em tecnologias digitais de comunicação. Seus

esforços foram essenciais para o desenvolvimento da temática neste capítulo, uma vez que as

redes sociais no ciberespaço reestruturam a vida na civilização mediática avançada não apenas

em seu aspecto social, mas cultural, comunicacional e político.

3.1.1 As redes sociais no ciberespaço

De acordo com o modelo criado por Barnes, os atores são o primeiro elemento das redes

sociais, cuja função é modelar a maneira pela qual os vínculos (ou laços) e os fluxos de

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informação operam nas estruturas sociais. No entanto, Recuero (2008, p. 25) explica que quando

se trabalha com redes sociais no ciberespaço, os atores são constituídos de modo diferenciado:

Por causa do distanciamento entre os envolvidos na interação social, a principal

característica da comunicação mediada por computador é que os atores não são

imediatamente discerníveis. Assim, neste caso, trabalha-se com representações dos

atores sociais, ou com construções identitárias do ciberespaço. Um ator pode ser

representado por um weblog, por um fotolog, por um twitter ou mesmo por um perfil

no Orkut. (Ibidem, grifo da autora).

4

A “criação” seguida da “validação” da identidade no ciberespaço é essencial para que

o vínculo com o outro seja estabelecido. Para Recuero, a “individualização dessa expressão,

de alguém „que fala‟ através desse espaço, é que permite que as redes sociais sejam expressas

na Internet” (ibid., p. 27).

Sobre o processo articulatório da civilização atual, Trivinho (2010) define a

visibilidade mediática como vetor fundamental que responde pelo modus operandi pelo qual

esta civilização, de base capitalista, se reproduz no campo histórico, a partir da Segunda

Guerra Mundial. O imperativo da visibilidade leva o sujeito à busca permanente do olhar do

outro para si através da exposição pessoal. Ou, nas palavras do autor,

Esse imperativo mediático – mais propriamente, a adesão a ele – leva geralmente o

sujeito ao flerte permanente com o centro do cenário das atuações conjuntas; fá-lo,

pois, cedo ou tarde, (a querer) atrair para si o foco prioritário da vez (temporário,

intermitente ou duradouro), ou melhor, a (a aspirar) aproximar-se do foco mediático

(das redes de massa e/ou do cyberspace), para prevalecer como eixo da percepção

ou atenção por parte de alguma audiência. Em outras palavras, a assunção do

imperativo da presença espectral conduz o sujeito a “torcer” a circulação do

simbólico e do imaginário mediáticos correntes, a (tentar) entretecê-los nessa

aspiração projetiva no reino reciclável das abstrações espectrais, para fazê-los

passar necessariamente pela encenação do si-próprio e dos pertences e interesses

consortes. (TRIVINHO, 2009, p. 4, grifos do autor).

A respeito do tema em questão, Rosen acrescenta:

Em websites de redes sociais como MySpace e Facebook, nossos modernos

autorretratos apresentam fundo musical, fotografias cuidadosamente manipuladas,

torrentes de meditações e listas dos nossos amigos e passatempos preferidos. Eles

são interativos, convidando os observadores não meramente a olhar, mas também

responder ao retrato da vida online. Nós o criamos para encontrar amizades, amor e

essa ambígua coisa moderna chamada conexão. Como pintores constantemente

retocando seu trabalho, alteramos, atualizamos e reprogramamos nossos

autorretratos; mas como objetos digitais eles são muito mais efêmeros do que óleo

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sobre tela. [...] é o eterno desejo humano de atenção que emerge como o tema

dominante dessas vastas galerias virtuais. (2007, p.15).

No que se relaciona ao desejo de ser reconhecido, Sergio Amadeu (2014) aborda a

questão das “tecnologias de modulação, economia da intrusão e relações de poder” no

Seminário "Tecnologia e Poder". De acordo com o pesquisador, um dos grandes problemas

na expansão das redes sociais é a dificuldade em ser percebido. Isto é, a Internet derrubou

as fronteiras da fala, mas trouxe, em contrapartida, o desafio de ser ouvido, de ser

reconhecido como sujeito, em sua individualidade, o que contribui para um contexto

dramático, de realidade fragmentada, cuja principal marca é o reducionismo dos valores

humanos essenciais e uma forte crise nos laços sociais.

Nesse contexto, constata-se que as redes sociais emergem no ciberespaço

fundamentalmente por conta do seu caráter pessoal de expressão – ou seja, de apresentação –,

por intermédio do qual seus atores estabelecem vínculos (laços) com o outro. Há, portanto,

um processo permanente de construção e validação da identidade dos atores nas redes sociais

uma vez que, como não há comunicação face a face, os indivíduos são reconhecidos por suas

palavras, posts, atualizações em geral. Essas atualizações, por sua vez, são responsáveis por

legitimar o conteúdo no grupo social e estabelecer a interação social.

A interação no ciberespaço também pode ser compreendida como uma forma de

conectar pares de atores e de demonstrar que tipo de relação esses atores possuem.

Ela pode ser diretamente relacionada aos laços sociais [...]. Outro fator característico

da interação mediada por computadores é sua capacidade de migração. As interações

sociais entre atores sociais, podem, assim, espalhar-se entre as diversas plataformas

de comunicação, como, em uma rede de blogs e mesmo entre ferramentas, como

entre Orkut e blogs. (RECUERO, 2008, p. 34-36)

De acordo com Wasserman e Faust (1994, p.7), a relação é considerada a unidade

mínima de análise de uma rede social, que é formada por um conjunto de interações sociais. A

ideia de vínculo ou laço refere-se à conexão entre os atores envolvidos nas interações, sendo,

portanto, resultado da sedimentação das relações estabelecidas entre atores. Ou, nas palavras

de Recuero, “laços são formas mais institucionalizadas de conexão entre atores, constituídos

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no tempo e através da interação social” (2008, p. 38). Tais laços podem ser fortes ou fracos,

de acordo com o grau de intimidade (presença ou ausência de confiança mútua), intensidade

emocional, persistência no tempo, fluxo de informação (conteúdo das mensagens trocadas)

etc. Outro ponto a se considerar é a reciprocidade: nem todos os laços a possuem, o que

significa que, por exemplo, é possível que o ator A considere B seu melhor amigo (laço forte),

mas que B, em retorno, não se importe da mesma forma com A. Entretanto,

As atuais redes sociais online são uma acumulação de vínculos majoritariamente

fracos – ninguém que liste milhares de “amigos” no MySpace pensa nessas pessoas

da mesma forma que pensa em seus parentes distantes, por exemplo. Certamente não

é coincidência, então, que as atividades que os sites de redes sociais promovem são

justamente aquelas que os vínculos fracos fomentam, como rumores, boatos,

mexericos, busca de pessoas e a trilha dos efêmeros movimentos da cultura popular

[no sentido da cultura de massa] e das modas passageiras. (ROSEN, 2007, p. 20).

Bauman dialoga com Rosen no que tange a fragilidade dos vínculos das relações

formadas a partir das redes interativas e declara:

Diferentemente de “relações”, “parentescos”, “parcerias” e noções similares – que

ressaltam o engajamento mútuo ao mesmo tempo em que silenciosamente excluem

ou omitem o seu oposto, a falta de compromisso –, uma “rede” serve de matriz tanto

para conectar quanto para desconectar; não é possível imaginá-la sem as duas

possibilidades. Na rede, elas são escolhas igualmente legítimas, gozam do mesmo

status e têm importância idêntica. Não faz sentido perguntar qual dessas atividades

complementares constitui “sua essência”! A palavra “rede” sugere momentos nos

quais “se está em contato” intercalados por períodos de movimentação a esmo. Nela

as conexões são estabelecidas e cortadas por escolha. A hipótese de um

relacionamento “indesejável, mas impossível de romper” é o que torna “relacionar-

se” a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma “conexão indesejável” é

um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece

a detestá-las. (BAUMAN, 2004, p.12).

Sendo assim, as redes sociais no ciberespaço caracterizam-se, fundamentalmente, por

relações esparsas, que não se traduzem em proximidade e intimidade23

, cujas conexões podem

ser facilmente rompidas. No que tange aos elementos de constituição das redes sociais, para

além dos atores e dos vínculos ou laços, está o capital social. Com pano de fundo

profundamente marxista, o conceito de capital social desenvolvido por Bourdieu (1983)

refere-se a um valor constituído a partir das interações entre os atores sociais:

23

Vale ressaltar que, apesar do consenso entre os pesquisadores da área sobre a predominância de laços fracos

nas redes sociais, relacionamentos verdadeiramente intensos e íntimos (laços fortes), não somente são possíveis,

como existem no ciberespaço.

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O capital social é o agregado dos recursos atuais e potenciais, os quais estão

conectados com a posse de uma rede durável, de relações de conhecimento e

reconhecimento mais ou menos institucionalizadas, ou em outras palavras, à

associação a um grupo – o qual prove cada um dos membros com o suporte do

capital coletivo. (p. 248-249).

Dando continuidade ao pensamento do autor, Bourdieu explica que há três grandes

tipos de capital que permeiam os campos sociais: (1) o capital econômico; (2) o capital

cultural; e (3) o capital social, e, em meio aos três há o capital simbólico, capaz de legitimar a

posse de cada um dos demais como recurso. O conceito de capital social teria, portanto, dois

componentes: um recurso (determinado pelas relações de pertencimento do sujeito a

determinado grupo social) e o conhecimento/reconhecimento mútuo dos participantes deste

grupo. Sendo assim, o conhecimento/reconhecimento mútuo seria o fator responsável pela

transformação do capital social em simbólico (BOURDIEU, 1983, p. 10-12).

Além disso, vale ressaltar que o conceito de capital social para Bordieu não está nos

indivíduos per se, mas nas relações sociais estabelecidas entre eles. No entanto, assim como as

outras formas de capital, o capital social é tratado como recurso individual, passível de ser

utilizado e instrumentalizado por aquele que o detém. Ou seja, embora se origine a partir de

uma rede relacionamentos, é um atributo individual que permite o acesso a recursos

diferenciados não apenas de natureza econômica, mas também aqueles referentes a status social

(capital simbólico) e bens culturais (capital cultural). Portanto, o capital social pode ser

percebido pelos indivíduos a partir da interação social e, igualmente, através da sua integração

às estruturas sociais. Trata-se de um recurso essencial para a conquista de interesses individuais.

Para compreender como se processam as profundas mudanças experimentadas em

todos os aspectos da vida social decorrentes das novas tecnologias da informação, é

indispensável entender como ocorrem não apenas as conexões entre os atores na Internet, mas

apreender o conteúdo dessas conexões. Se compreender a existência de valores nessas conexões

sociais é fundamental para compreender as redes sociais, a busca por padrões é essencial para

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mapear as ritualidades compatíveis com o contexto do ciberespaço. Sendo assim, o capital

social opera como elemento-chave para o estudo dos padrões de conexão entre os atores sociais

no ciberespaço, que dão origem às ritualidades nas redes sociais24

.

3.1.2 Os sites de redes sociais no ciberespaço

As pesquisadoras de tecnologia e mídias sociais da Universidade de Michigan,

Danah Boyd e Nicole Ellison (2007, p.123) definem os sites de redes sociais como aqueles

sistemas que permitem:

(1) a construção de uma persona através de um perfil ou página pessoal;

(2) a interação de um usuário com outro através de comentários, comunidades etc; e

(3) a exposição pública da imagem de cada ator na rede social.

Nesse contexto, a grande diferença entre sites de redes sociais e demais formas de

comunicação mediada por computador está na maneira pela qual esses sites permitem

visibilidade, além da articulação dos laços sociais em ambientes off-line. Quando

questionados sobre os motivos pelos quais os atores faziam uso dos sites de redes sociais, a

pesquisa de Recuero (2008, p. 105), apontou as seguintes motivações pelos entrevistados:

(1) criação de um espaço pessoal;

(2) interação social;

(3) vontade de compartilhar conhecimento;

(3) desejo de gerar autoridade; e

24

As ritualidades nas redes sociais foram mapeadas e definidas no item 3.3 (Os hábitos cotidianos e as

ritualidades no ciberespaço) deste capítulo.

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(4) ânsia por popularidade.

Um dos elementos mais relevantes para o estudo da apropriação dos sites de redes

sociais é a análise dos valores construídos nesses ambientes a partir da percepção do capital

social e da sua influência na construção e na estrutura das redes sociais. O estudo de Recuero

(2008, p. 108-115) aponta para o seguinte diagnóstico de valores mais comumente associados

aos sites de redes sociais: visibilidade, reputação, popularidade e autoridade. Os quatro

valores serão definidos abaixo.

a. Visibilidade: trata-se de um valor por si só, decorrente da própria presença do usuário

no site. Entretanto, a visibilidade também é matéria-prima para todos os demais valores que

seguem logo abaixo na hierarquia das redes sociais;

b. Reputação: é compreendida como a percepção construída de determinado usuário

pelos demais atores e, portanto, envolve três elementos: o “eu”, o “outro” e a relação entre

ambos. Relaciona-se, portanto, a uma percepção qualitativa, que está relacionada a outros

valores, que são (1) capital social, (2) capital relacional (pois é uma consequência das

conexões estabelecidas entre os atores) e (3) capital cognitivo (porque está relacionada ao tipo

de informação publicada). Em síntese:

O conceito de reputação implica diretamente no fato de que há informações sobre

quem somos e o que pensamos, que auxiliam outros a construir, por sua vez, suas

impressões sobre nós. Um dos pontos-chaves da construção de redes sociais na

Internet é, justamente, o fato de que os sistemas que as suportam permitem um

maior controle das impressões que são emitidas e dadas, auxiliando na construção da

reputação. Assim, uma das grandes mudanças causadas pela Internet está no fato de

que a reputação é mais facilmente construída através de um maior controle sobre as

impressões deixadas pelos atores. Ou seja, as redes sociais na Internet são

extremamente efetivas para a construção de reputação. (RECUERO, 2008, p. 109).

c. Popularidade: facilmente medida no ciberespaço, a popularidade é um valor diretamente

ligado à audiência, relativo à posição de um ator dentro de sua rede social. Para a autora (ibid., p.

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112), este também é um valor mais relacionado aos laços fracos do que aos fortes, uma vez que a

popularidade está associada à quantidade de conexões e não a sua qualidade.

d. Autoridade: refere-se ao poder de influência de um sujeito na rede social. Apesar de

estar relacionada à reputação, a autoridade é um valor per se, decorrente tanto do capital

social relacional (ou seja, da conectividade do indivíduo na rede) quanto do capital social

cognitivo (isto é, da credibilidade das informações publicadas).

Posta esta análise, é importante ressaltar que redes sociais são sistemas complexos e,

como tais, estão sujeitos a processos de caos e ordem, cooperação e competição, ruptura e

agregação, adaptação e auto-organização. Em síntese, a dinâmica das redes sociais está

diretamente ligada aos processos de interação entre seus atores e são largamente influenciadas

por essas relações. Seguindo a reflexão de Recuero,

Outro aspecto importante da dinâmica das redes sociais diz respeito a sua emergência.

Trata-se de uma característica dos sistemas complexos (Johnson, 2003) e envolve o

aparecimento de comportamento em larga escala, que não são necessariamente

terminados em microescala [...]. A emergência aparece como comportamentos

coletivos, não centralizados. Como sistema complexo, o sistema social também

tenderá a mostrar comportamentos emergentes, coletivos, nessa dinâmica. Assim, todo

processo dinâmico nas redes sociais será considerado como emergente e capaz de

impactar a estrutura [...]. A ideia de processo social é intimamente ligada à ideia de

interação no tempo. (Ibid., p. 80, grifo da autora).

Considerando que as redes sociais não permanecem estáticas no espaço e no tempo, a

justificativa de uma pesquisa do gênero centra-se menos na perenidade do seu corpus de

análise (as ritualidades no Facebook e no Twitter, no caso) e mais na demonstração de como

as redes sociais são categoriais de uma época (isto é, produtos que explicam simbolicamente a

era vigente). Essa demonstração será realizada através do mapeamento das ritualidades no

ciberespaço e da crítica a respeito do impacto das redes sociais na vida cotidiana (temas que

serão abordados logo na sequência deste capítulo).

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3.2 O impacto na vida cotidiana

Marcuse (1979, p. 59) afirma que os avanços tecnológicos prescrevem uma nova

ideologia baseada na "mecânica do conformismo", que submete a racionalização individual

em prol da imposição de uma racionalidade institucional, a partir de um falso modelo de

liberdade de escolha: define-se um modelo de consumo, instaura-se um estilo de vida, cria-se

uma sociedade alienada. O autor utiliza o termo “sociedade unidimensional” para demonstrar

o poder de influência (controle) social que este tipo de sociedade exerce sobre as consciências

humanas. Assim, a autonomia da razão encontra seu túmulo nesse sistema de controle,

produção e consumo padronizado.

O discurso de Sfez (2007), por sua vez, dialoga com a proposta de Marcuse, no qual o

autor define a comunicação atual como um labirinto de confusões, que tem o Frankenstein

como metáfora e o tautismo25

como conceito. Em um universo no qual a tecnologia rege a visão

de mundo e o sujeito só existe por meio do objeto técnico, já não existem mais hierarquias e

definição de papeis: a mensagem, o sujeito emissor e o sujeito receptor desapareceram, sujeito e

objeto, produtor e produto se confundem, e a criatura se volta contra seu criador. A

comunicação morre pelo excesso, caracteriza-se pela repetição constante do mesmo e culmina

em uma agonia de espirais. A tautologia faz do sujeito um indivíduo preso ao silêncio,

encerrado em sua fortaleza interior (autismo) e captado a uma totalidade sem hierarquia. Trata-

se do embaralhamento total das referências, em um movimento que anula todo tipo de direção:

perde-se a realidade, o sentido e a identidade.

25

Tautismo é o neologismo obtido da união entre os tautologia e autismo. Tauto, do gregro tautus, significa "o

mesmo", e logia, de logos, dá origem à "fala do mesmo". O conceito de tautologia refere-se à repetição lógica,

em que o resultado de um raciocínio que é idêntico à sua proposição (exemplo: a mulher é fêmea). O autismo,

por sua vez, caracteriza-se por um distúrbio mental que isola o ser em um mundo próprio com pouco ou

nenhum contato com o mundo exterior. “A fusão desses dois elementos leva ao tautismo, modelo de

comunicação marcado pela autorrefencialidade, circularidade, impossibilidade de troca e, consequentemente,

por totalitarismo” (SFEZ, 2007 p.78).

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O tautismo faz parte de um esquema triádico formado por “representação”,

“expressão” e “confusão”. Cada um desses três modelos engendra sua própria

epistemologia, sua visão de mundo e de comunicação. E produz, respectivamente

suas próprias tecnologias. Os dois primeiros, embora antagônicos, são de certa

forma complementares. Mas a confusão – terceiro modelo – vem como resposta ao

embaralhamento da representação com expressão, dando origem ao tautismo.

(SFEZ, 2007, p. 77).

Conforme aponta Morin (1986, p. 46), não se sofre apenas com o ritmo alucinado e

com a falta de organização na pós-modernidade, sofre-se também pelo apetite compulsivo, de

exigências sem fim. Tamanha inquietação fez com que a solidão se tornasse a lei regente de

um sentimento em massa, e o vazio instaurado pela falta de comunicação já pode ser

considerado um fenômeno cultural da atualidade. Diagnosticada por Hillman (1995, p. 33),

esta é a “síndrome da desconexão”, que traz as crises íntimas de depressão, abandono e vazio

existencial como complementos básicos da euforia do progresso tecnológico. Maffesoli

(1996), por sua vez, foca no processo de distanciamento do contato corporal e enfatiza a

maneira pela qual o convívio intermediado pelos aparatos tecnológicos deixa clara a crise da

função estésica vivida pela sociedade vigente. Sobre o tema em questão, Flusser (2002, p. 88)

ressalva que “a sensação que nos invade ao contemplarmos o aparelho em seu funcionamento

é a sensação do absurdo”.

Afinal, se os sentidos estão no corpo, quem vai abdicando da comunicação primária

(em prol das maravilhas da comunicação virtual) vai perdendo também a capacidade

semiótica, e passa a se mover num mundo em que tudo, literalmente, não tem nem faz

sentido. E o argumento de que a sinestesia provocada pelas linguagens visuais seria

capaz de recontactar a homem a essa estética viva sobre a qual vimos falando resulta

muito duvidoso. Nossa sociedade segue rejeitando a idéia de que há algo de único que

perdemos ao abdicarmos da presentidade corporal. (CONTRERA, 2002, p. 68).

A forma como essas operações se dão (por meio da imagem na rede) traz a suposta

sensação da presença física de uma pessoa, de contato social e da possível construção de

vínculo afetivo. Entretanto, Hillman (1993) e Contrera (2002) defendem que essa teia de

relações virtuais apresenta-se destronada do universo do significado, pois a “revolução da

comunicação” resume-se na abstração do real, onde o sentido da orientação por meio da

corporeidade está perdido. Sobre a questão da perda da presença corporal na sociedade atual,

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Hillman (1995) questiona a pós-modernidade sobre a natureza da virtualização e sua relação

direta com a perda do convívio social: “percebe que a hipercomunicação e a hiperinformação

participam do que mantém a alma à distância?” (HILLMAN, 1995, p. 44).

O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido, porém,

pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação proveniente do

transporte de corpos [...]. De agora em diante, toda homogeneidade deve ser

“pinçada” de uma massa confusa e variada por via de seleção, separação e exclusão;

toda unidade precisa ser construída; o acordo “artificialmente produzido” é a única

forma disponível de unidade. (BAUMAN, 2003, p. 19).

Este início de século XXI já representa uma era na qual a cada dia que passa

declinam ainda mais as práticas de vinculação da natureza humana em função da emancipação

da comunicação realizada pelas mensagens sem corpos. O encontro é promovido sob a forma

de impulsos eletrônicos, onde as mensagens são invisíveis e a delimitação temporal é

instantânea. Esta é uma sociedade que descarta a proximidade sensorial, alimentando-se do

imaginário da rede, que “enquanto nos concede a ilusão de estarmos seguros, sustentados

pelas redes de informação, entorpece nossos sentidos” (CONTRERA, 2002, p. 29).

De acordo com Baudrillard (1991), vive-se em uma nova fase da história, em um

novo mundo organizado em torno de simulacros e simulações, o que transforma radicalmente

as experiências de vida, destrói os sentidos e as significações, e esvazia completamente o

conceito de realidade, de tal modo que qualquer distinção entre “real” e “irreal” tornou-se

impossível. No limite, o próprio mundo em que se vive é substituído por um mundo-cópia,

onde o sujeito procura estímulos simulados e nada mais, afinal, “livre do real, você pode fazer

algo mais real que o real: o hiper-real” (ibid., p. 20). Nesse contexto, Baudrillard define o

conceito de simulacro como modelos de um fato real que, no entanto, não apresentam origem

ou vínculo com a realidade. Ou seja, simulacro não significa irrealidade, isto é, não é como se

o real estivesse de um lado e o virtual de outro, pois não se trata de uma oposição entre a

simulação e a realidade.

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A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio da equivalência, parte da

negação do radical do signo como valor, parte do signo como reversão e

aniquilamento de toda referência. Enquanto a representação tenta absorver a simulação

interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o edifício da

representação como simulacro. (BAUDRILLAD, 1991, p. 11).

Já o conceito de hiper-real nasce da análise da relação do indivíduo com o meio, em

um contexto cultural que se caracteriza: (1) pelo consumismo desenfreado; (2) pela mediação

tecnológica, e; (3) pelo estímulo de tornar a realidade "mais real do que o real". Assim, a

hiper-realidade é entendida como consequência da época em curso, e é caracterizada por dois

itens básicos: (1) como inabilidade do homem contemporâneo de distinguir o que é real do

que não é; (2) como otimização da realidade. Um dos exemplos que Baudrillard utiliza para

ilustrar o conceito é a Disneylândia, que o autor considera “modelo perfeito de todos os tipos

de simulacros confundidos”, “jogo de ilusões e de fantasmas, embalsamados e pacificados”,

constituído de modo a fazer crer que tudo em volta é real, enquanto toda Los Angeles e a

América que a rodeia já não são reais, mas domínio do hiper-real (p. 21-23).

O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão

encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real. Daí a debilidade deste

imaginário, a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil para fazer crer que

os adultos estão noutra parte, no mundo “real”, e para esconder que a verdadeira

infantilidade está em toda a parte, é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são

crianças para iludir a sua infantilidade real. (Ibid., p. 21).

O que está em jogo para este autor já não é a simulação de um ser referencial, de

um território (como, por exemplo, o mapa, que é construído em função do território que

pretende simular), mas da criação de um real sem origem, nem referências. Ou seja, este

modelo de um real que não tem origem ou finalidade é, justamente, o hiper-real (neste

momento o mapa passa a preceder o território). Tal reprodução do real acontece em

qualquer esfera do sistema – tudo se tornou um simulacro: o mundo do trabalho, o capital,

o teatro, a arte, a política, o sexo e assim por diante.

Organize um falso assalto. Verifique-se bem a inocência das armas e faça-se o refém

mais seguro para que nenhuma vida humana fique em perigo (pois aí cai-se sob a alçada

do direito penal). Exija-se um resgate e proceda-se de maneira que a operação tenha toda

a repercussão possível. Em suma, seja o mais fiel possível à “verdade” a fim de testar a

reação do aparelho a um simulacro perfeito. Não será possível: a rede de signos artificiais

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vai se entrelaçar com os elementos reais - a polícia vai realmente disparar à vista; um

cliente do banco vai desmaiar e morrer de um ataque cardíaco; vai ser realmente pago o

resgate fingido. Ou seja, mesmo sem querer, seremos, imediatamente, devolvidos ao

real. (Ibid., p. 30-31).

A hipotética situação acima levanta o seguinte questionamento: o que diferencia o

hiper-real do real? Para Baudrillard, aparentemente nada. O grande acontecimento da época

em curso (entre as duas Guerras e a Guerra Fria) é a perda dos referenciais fortes, a agonia

do real e do racional (conforme visto no Capítulo II – Processos Sociomediáticos

Contemporâneos). Esse trauma, descrito por Baudrillard como tão grave, tão profundo e tão

irreversível, justifica a era de simulação mediática: não importa em que níveis se dão essas

simulações, elas não são mais alheias à realidade, são elas as suas próprias realidades. Hoje

em dia, por toda parte, são memórias artificiais que não somente apagam a memória dos

homens, mas que apagam os homens da sua própria memória (ibid., p.75). No que diz

respeito aos simulacros, Baudrillard os define em três categorias distintas:

(1) simulacros naturais: correspondem ao imaginário da utopia, são baseados na

imagem, na imitação e no fingimentos, são harmoniosos, otimistas e visam a

reprodução de uma natureza à imagem e semelhança de Deus;

(2) simulacros produtivos: correspondem à ficção científica, são baseados na energia, na

força, na sua materialização pela máquina e em todo o sistema de produção – o desejo

faz parte das utopias desta categoria de simulacros;

(3) simulacros de simulação: são baseados na informação, no modelo e no jogo

cibernético, estão relacionados à operacionalidade total, à hiper-realidade, ao objetivo

de controle total.

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Na visão do autor, se não há esperança para o equilíbrio entre o abstrato e o

concreto, o real e o virtual, então também não há esperança para o sentido. O que passa a

existir, portanto, é a imposição de um reino efêmero, um reino de aparências – e as

aparências, sim, são imortais e nada vulneráveis ao sentido ou a ausência de sentido. No que

se refere às redes sociais, o simulacro que opera é o simulacro de simulação e o ciberespaço,

nesse contexto, é compreendido como a primazia deste simulacro; o palco estrutural dos

ritos contemporâneos, a subjetividade da época, uma realidade híbrida que reproduz o

capitalismo em sua fase avançada.

Assim, entender como os atores constroem esses espaços de expressão é também

essencial para compreender como as conexões são estabelecidas. É através dessas

percepções construídas pelos atores que padrões de conexões são gerados (..) Por

conta dessas observações, os atores no ciberespaço podem ser compreendidos como

indivíduos que agem através de representações performáticas de si mesmos, como

seus fotologs, weblogs e páginas pessoais, bem como através de seus nicknames.

(RECUERO, 2008, p. 27-28, grifo da autora).

3.2.1 O presente interminável

Conforme visto no Capítulo I – Comunicação e Cultura, a insatisfação humana

diante da sua condição mortal exige um constante exercício de esquecimento. Na atualidade,

outra forma de vida é montada sob a materialidade deste conflito. O ciberespaço, palco

estrutural de construção da realidade social, traz como proposta de superação uma nova noção

de tempo. Ao considerar a contingência fator de ameaça para a natureza humana desde os

tempos primordiais, os ritmos de regularidade atuam como antídoto desta angústia ancestral.

A dinâmica temporal (isto é, a instantaneidade e a eternidade) com a qual o ciberespaço opera

fornece para o grupo social uma fonte de constância (praticamente) infalível, apaziguando a

ansiedade do indivíduo quando conectado a rede. A repetição, seguida do caráter de

legitimação, representa uma função verdadeiramente ritual, que permanece intacta no

ciberespaço ao estabelecer ritmo para o cotidiano.

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O tempo é visto a partir de uma perspectiva de entropia – a exaustão de todas as

possibilidades –, da perspectiva de uma contagem regressiva... para o infinito [...] A

ilusão final da História. A utopia final do tempo não existe mais, já que ela agora está

registrada como algo potencialmente calculado, em tempo digital. (BAUDRILLARD,

2001, p. 41).

Se compararmos as análises de Maurice Merleau-Ponty sobre o nosso corpo a situação

contemporânea de atopia e acronia, podemos dizer que há um mundo novo, um mundo

virtual desprovido de espessura temporal e espacial. Um mundo no qual o nosso corpo

e reduz: de um lado à percepção visual de imagens planas e fugazes e de outro à

atividade mecânica de controle de operações e sinais propostos pelos autômatos. Um

mundo sem lugares, distâncias, profundidades, qualidades - O mundo da atopia. Um

mundo sem tempo no qual nada passa e nada fica, pois tudo coexiste sem passado num

presente interminável - O mundo da acronia. (CHAUI, 2010, 49:10 – 50:20).

A eternização – ou o presente interminável – é uma estratégia de fuga da morte que

somente se torna possível pela utilização do espaço virtual em detrimento do espaço físico

(concreto). A ideia de se eternizar a partir das imagens no ciberespaço faz com que o sujeito

contemporâneo abdique do instante do presente e deixe a vida passar sem se vincular a ela. A

necessidade de se viver num presente interminável, jamais alcançado sensorialmente – apenas

virtualmente –, gera a ansiedade como complemento básico da pós-modernidade. Em outras

palavras, o homem deixa de sentir para poder projetar, e encontra numa das principais buscas

da atualidade sua agonia contínua: a eternização.

A repetição constante, a incompetência contextual, a saturação da informação, a crise

da percepção concreta e o novo universo das indagações unilaterais acrescentam ao caráter do

sujeito pós-moderno, o comportamento obsessivo. Os vínculos comunicativos, enquanto base

de toda comunicação, precisam ser ritualizados para seus elos serem fortalecidos, e "quanto

mais ritualizada e regulamentada, maior a sedução pelo espírito desafiador de 'agon'26

e sua

força desagregadora" (BAITELLO JR., 1997, p. 92).

26

Termo originário do grego antigo, Ágon significa luta, disputa, conflito, discussão, jogo. De acordo com a

Teoria dos Jogos, Ágon integra o conjunto dos quatro princípios que orientam a atividade lúdica, juntamente

do illynx (busca pelo desafio), o alea (papel do acaso/destino) e a minesis (gosto pela imitação) (CALLIOIS,

1990, p. 87).

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98

Assim, a pesquisa desenvolvida nos tópicos seguintes investigou os rituais cotidianos,

com ênfase no ciberespaço. Foram privilegiadas, nesses recortes, relações tensionais entre

ritualidade, cultura digital e organização da vida cotidiana (valores e comportamentos que se

processam na época em curso), a partir do conhecimento analítico e crítico dos processos

comunicativos e semióticos em questão. A argumentação procurou identificar as principais

ritualidades que se evidenciam na cultura pós-moderna, e definir, do modo mais preciso

possível, o conceito de ritual compatível com o ciberespaço, a fim de, por esse movimento de

identificação e definição, apreender as consequências sociais e culturais dos principais

paradigmas do ritual na cultura digital.

3.3 Os hábitos cotidianos e as ritualidades contemporâneas

A delimitação do espaço (virtual) e do tempo (instantâneo), a construção do real (por

intermédio da visibilidade mediática articulada pelo glocal), a conectividade (o deslizamento de

signos de um contexto glocal a outro) e a manipulação dos símbolos (textos, imagens e sons)

compõem a estrutura típica das ritualidades contemporâneas, vivenciadas no ciberespaço.

Neste momento, vale lembrar que todo ritual comemora aquilo que o mito rememora para não

cair no esquecimento e que a forma mais antiga e permanente de exercício do poder é o

controle do tempo. Conforme visto no Capítulo II (Processos sociomediaticos

contemporâneos), segundo Lyotard (1986), os dois grandes mitos justificadores da

modernidade eram: (1) a humanidade como agente heroico da sua própria libertação através

do avanço do conhecimento; e (2) a progressiva revelação da verdade (isto é, a crença nos fios

condutores). No caso da pós-modernidade, seu mito definidor relaciona-se à perda da

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99

credibilidade das metanarrativas27

, o que faz deste um processo civilizatório que não aponta

para onde vai, uma vez que não existe mais a crença de se estar caminhando para algum lugar.

A eternização do presente – ou o presente interminável – é a principal razão para o

prognóstico desse mito, que – não apresenta sentido bem definido justamente por ser eterno –

traz diversas micro-histórias que correm em paralelo e desembocam na fragmentação do

cotidiano. As ritualidades contemporâneas, por sua vez, legitimam essa fragmentação do

presente através da dispersão, pressuposição e compulsão do acesso, por exemplo. Essas

ritualizações fragmentárias são provenientes de um processo psicossocial (individual ou

coletivo) de representação, motivação, organização e visibilidade que se traduz nos modos de

sentir, pensar e agir do sujeito na vida cotidiana, além de confirmá-lo. As ritualidades

mapeadas foram divididas em três categorias distintas:

a) ritualidades na era digital: em escopo geral, referem-se a todas as ritualidades que se

relacionam à tecnologia da civilização mediática avançada, sem necessariamente fazer

uso da rede;

b) ritualidades no ciberespaço: restringindo o escopo da apresentação das ritualidades,

inserem-se aqui aquelas que estão fundamentalmente vinculadas ao ciberespaço, ou

seja, que dependem da rede para existirem;

c) ritualidades nas redes sociais: de forma ainda mais restrita, trata-se das ritualidades

presentes no contexto das redes sociais.

Abaixo, segue uma definição mais cuidadosa de cada uma das três categorias das

ritualidades mapeadas da vida cotidiana:

27

A essa perda de credibilidade das metanarrativas, Lyotard (1986) diagnosticou como fim das grandes narrativas

e Fukuyama (1992) definiu como fim da história.

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100

3.3.1 Ritualidades na era digital

(1) fobia da desconexão em tempo real: pode ser descrito como o medo desvairado de

ficar desconectado – seja por ter esquecido o celular em casa, pelo descarregamento da

bateria, pelo não funcionamento da rede no momento (ou vir a não funcionar num

curto/médio/longo intervalo de tempo) – a aflição de se perder a conexão já é tão

frequente que se tornou caso clínico, tema do Diagnostic and Statistical Manual of

Mental Disorders e conta com programas de recuperação para os afetados;

(2) uso simultâneo de mídias: trata-se do uso simultâneo de mídias sociais combinadas

com televisão (segunda tela) e/ou rádio – segundo estudos realizados pela E.Life

Market Research (2013), o uso simultâneo de mídias se mostra maior a cada ano;

(3) síndrome do toque fantasma: trata-se da sensação de sentir o celular vibrando no bolso

da calça, sem que haja nenhuma chamada – segundo afirma o doutor Larry Rosen

(2012) em seu livro iDisorder, este fenômeno ocorre com cerca de 70% dos heavy

users, ou seja, os usuários mais intensos. Segundo o autor, esta sensação pode estar

ligada a uma ansiedade ou mesmo ao prazer em atender a chamada do celular. O mais

leve formigamento já pode fazer com que o cérebro interprete como o vibrar do celular;

(4) imediatismo do enquadramento depreciativo: diz respeito ao interesse imediatista

do sujeito em precisar que o aparelho funcione sem se importar com a tecnologia

envolvida – trata-se da invisibilidade social e valorização zero do processo científico

de desenvolvimento do aparelho, que não tem direito a ter uma ausência.

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3.3.2 Ritualidades no ciberespaço

(1) dispersão hipermediática: relaciona-se a um quadro de hiperatividade no qual o

indivíduo acessa a rede no intuito de realizar determinada atividade, mas sua atenção é

facilmente desviada para outros contextos, sem que haja relação com a tarefa que o

sujeito se propôs a executar inicialmente;

(2) pressuposição do acesso imediato: trata-se da disponibilidade do acesso no exato

instante em que o sujeito deseja se conectar à rede;

(3) compulsão do acesso: define-se pela dependência do indivíduo em se manter conectado à

rede compulsivamente sob a penalidade de se sentir “desligado” ou “distante” do mundo

real; em outras palavras, é o uso irracional da Internet e que ocorre quando se possui

uma vontade compulsiva em acessar a Internet, mesmo que não se saiba exatamente o

que fazer na rede;

(4) delonga compulsiva na rede: refere-se à permanência online; o sujeito passa a viver

uma vida na qual não é mais possível a desconexão – a conexão tornou-se o ar;

(5) efeito Google: é a ritualidade que afeta o cérebro humano em reter cada vez menos

informações, uma vez em que existe a convicção de que tanto os endereços e telefones

de contatos pessoais assim como informações mais complexas tais como datas

históricas, conhecimentos geográficos, regras de gramática etc. estarão a poucos

cliques de acesso;

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(6) hipocondria digital: é bastante comum nos dias de hoje que o Google se torne o

primeiro médico, no sentido de que logo no primeiro sinal de mal estar físico, ao invés

de um posto de saúde, o sujeito recorra ao Google e digite todos os sintomas que esteja

sentindo; compreende-se por hipocondríaco digital aquele que pensa estar com a

doença sobre a qual leu na Internet;

(7) compulsão por jogos online: refere-se à necessidade irracional de se participar de

sessões muito longas de jogos online. Na Coréia do Norte, por exemplo, há uma lei

própria para o assunto apelidada de “Lei Cinderella”, que corta o fornecimento de

Internet para todos os jovens menores de 16 anos no período entre a meia-noite e seis

horas da manhã. A situação dos jogadores compulsivos é tão grave que a Associação

Psiquiátrica Americana já inclui a dependência no índice III, o que significa que a

dependência dos viciados em jogos online é equipara a outros vícios não vinculados ao

consumo de substâncias químicas, como ocorre com os viciados em jogos de azar.

3.3.3 Ritualidades nas redes sociais

No que tange a um recorte do ciberespaço com mais especificação em relação às suas

ritualidades, depara-se com as redes sociais, fundamentalmente caracterizadas pela sua

habilidade de se fazer e desfazer com velocidade ímpar. O estudo desenvolvido por Bauman

(2003) observou que a cultura pós-moderna (chamada de “modernidade líquida” pelo autor,

conforme visto no capítulo anterior) favorece a comunidade de ocasião em oposição ao

pertencimento a uma comunidade de origem. Como essas comunidades de ocasião não são mais

constituídas a partir do contato de corpo presente, os vínculos tornam-se efêmeros, criados,

desenvolvidos e mantidos por intermédio da rede. Nesse contexto, as redes sociais realizam o

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milagre do virtual: evocam o sentimento do pertencer a uma comunidade, sem que essa

comunidade realmente exista, despertando a alegria do fazer parte sem ter de arcar com o

desconforto do compromisso (BAUMAN, 2003, p. 66). Percebe-se então que a Internet não

representa mais um termo técnico relacionado à tecnologia e à conexão de máquinas, mas

justamente o contrário: a Internet hoje é um conceito que diz respeito ao estabelecimento dos

vínculos afetivos. Desta forma, o ambiente virtual é compreendido como a primazia do simulacro;

o palco estrutural dos ritos contemporâneos, a subjetividade da época, uma realidade híbrida que

reproduz o capitalismo em sua fase avançada. Na busca pela informação instantânea,

reconhece-se como ritualidades típicas das redes sociais subordinadas ao ciberespaço (em

âmbito espacial) e à aceleração da vida cotidiana (em âmbito temporal):

(1) voyerismo hiperinterativo: refere-se ao hábito reativo de ler e comentar publicações

(mensagens, fotos e/ou vídeos) dos demais usuários da rede com tamanha frequência

que o sujeito chegue a desenvolver um sentimento de vinculação/ participação/

relevância na vida do outro;

(2) publicização recorrente de momentos da vida privada: relaciona-se a postagens

que mencionam localização (onde), companhia (com quem) e atividade (o quê),

desenvolvidas pelo sujeito em tempo real;

(3) selfies: trata-se do desejo obsessivo-compulsivo de tirar fotos de si mesmo e publicá-

las em redes sociais, que pode ser classificado em três níveis28

:

a. selfies borderline: tirar fotos de si mesmo em média três vezes por dia, mas

não publicá-las em mídias sociais;

28

A distinção entre os níveis de selfies foi diagnosticada pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), que

considera o “fazer selfies” um transtorno mental.

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b. selfies aguda: tirar fotos de si mesmo em média três vezes por dia e publicá-las

em redes sociais;

a. selfies crônica: desejo incontrolável de tirar inúmeras fotos de si mesmo ao

longo do dia e postá-las em mídias sociais mais de seis vezes por dia.

(4) visibilidade social compulsória: é gerada pela aprovação e reconhecimento oriundos

da necessidade de volatilização a todo o momento;

(5) cyberbullying em tempo real: caracteriza-se pela frequência (constante) das

mensagens difamatórias ou ameaçadoras que circulam nas redes sociais e afetam

emocionalmente o alvo da ofensa;

(6) melancolia do único: refere-se ao ritual de se fazer único na rede através da violentação

obliterada do outro (isto é, ter sua imagem em evidencia ao eclipsar a imagem do outro);

(7) sensibilização social hipermediática: trata-se da solidariedade de rede típica de

comunidades virtualizadas – ou seja, norteadas pela instantaneidade –, que pode ser

exemplificada por ações relacionadas à doação de dinheiro por motivos nobres, adoção

de cães e gatos, divulgação de maus tratos de animais, homenagem a celebridades e

pessoas queridas.

A pesquisa anual "Hábitos e comportamento dos usuários de redes sociais no Brasil",

realizada pela E.Life Market Research, traça o perfil do brasileiro na rede tendo como base a

aplicação de 650 questionários. Sua quarta edição, referente ao ano de 2013, constatou as

seguintes tendências de comportamento:

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105

a) o Facebook é a rede social com maior percentual de cadastros e maior utilização -

81,6% dos entrevistados apontam como a rede social acessada em 1º lugar;

b) as redes sociais que mais se destacaram foram o Google+ e o Linkedln - o Google+

cresceu 14% em relação à pesquisa do ano anterior e o Linkedln cresceu 21% em

cadastros e 5% em utilização;

c) o Orkut29

foi a rede social que mais decresceu - 18% em cadastros e 14% em

utilização (a rede ainda é bastante utilizada para jogos online);

d) o Instagram foi a rede que mais arrecadou usuários recentes: 22% se cadastraram no

site nos 3 meses anteriores à realização da pesquisa;

e) o acesso via celular em qualquer local é o principal local de acesso para 10,7% e a

segunda principal fonte para 53,9% dos brasileiros, em comparação com o desktop

(74,7%) e com o notebook (65,7%); o acesso pelo celular é quase tão frequente

(61,8%);

f) 71,1% assiste TV enquanto navega na rede (20% acima do último ano) e 50,5%

ouvem rádio (12% acima da pesquisa anterior);

g) 93,3% dos usuários do Facebook curtem páginas de empresas, produtos ou serviços

para saber das novidades e apoiar as marcas que admiram, sendo que 48,5% passaram

a admirar mais determinada marca depois de curti-la no Facebook;

h) 66,9% dos usuários acompanham as páginas dos perfis de empresas, produtos e

serviços em redes sociais para ter atendimento online caso necessário – metade dos

entrevistados entrou em contato com alguma empresa nos últimos seis meses por

intermédio deste canal.

29

A decadência do Orkut em comparação aos demais sites de redes sociais ao longo do ano foi tamanha que seu

encerramento ocorreu em 30 de setembro de 2014.

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Em uma avaliação geral sobre redes sociais, pode-se dizer que assim como Gutenberg

fez dos homens comuns leitores, as máquinas xerox permitiram a otimização do trabalho dos

editores, a eletrônica e os computadores em rede transformam seus usuários em autores

(McLUHAN, 1967, p. 87). A interatividade tornou-se uma exigência típica da época em curso,

de tal modo que existir significa aparecer, e que aparecer significa poder. Sobre o tema,

Trivinho (2009, p. 1) afirma que os alicerces em que os critérios de participação e

pertencimento se apoiam apresentam-se vinculados à procura incessante por reconhecimento,

prestígio e fama difusa. Em outras palavras, é como se a vida passasse, necessária e

problematicamente, por redes sociais e a existência atual estivesse, fatalmente, vinculada a esse

tipo de visibilidade.

3.4 Ritualidades no Facebook e no Twitter

3.4.1 Ritualidades típicas do Facebook

O Facebook30

foi lançado em 4 de fevereiro de 2004, pelo americano Mark

Zuckerberg, estudante da Universidade de Havard, e seus três colegas de faculdade, Eduardo

Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. O foco inicial do site era criar uma rede de

contatos em um momento crucial na vida de um adolescente: o ingresso na universidade.

Dessa forma, o sistema estava apenas disponível para os alunos de Havard, sendo,

posteriormente, ampliado e expandido para outras faculdades. O site gradualmente adicionou

suporte para alunos do ensino médio, até ser aberto ao publico em geral (isto é, qualquer

indivíduo a partir dos 13 anos de idade). Os usuários devem se registrar antes de utilizar o

30

http://www.facebook.com

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107

Facebook, após isso, podem criar um perfil pessoal, adicionar outros usuários como amigos e

trocar mensagens. Além disso, os usuários podem participar de grupos de interesse comum, e

categorizar seus amigos em listas personalizadas (tais como “melhores amigos”, “trabalho”,

“família”, “faculdade” etc). O sistema é considerado por seus usuários como mais privado que

os outros sites de redes sociais, pois apenas usuários que fazem parte da mesma rede de

“amigos” podem ver o perfil uns dos outros (RECUERO, 2008, p. 184). Atualmente, o

sistema funciona através dos seguintes recursos:

a) mural: trata-se de um espaço na página de perfil do usuário que permite aos amigos

postar mensagens que estarão visíveis para qualquer pessoa com permissão para ver o

perfil completo do usuário. As mensagens privadas, por sua vez, são salvas em

"Mensagens", que são enviadas à caixa de entrada do usuário e são visíveis apenas ao

remetente e ao destinatário, assim como em um e-mail tradicional.;

b) botão "Curtir" (“like”): é um recurso onde os usuários podem gostar de (dar likes em)

certos conteúdos, tais como atualizações de status, comentários, fotos, vídeos, links

compartilhados por amigos etc;

c) marketplace: em maio de 2007, o Facebook introduziu o Facebook Marketplace, que

permite aos usuários publicar classificados gratuitamente dentro das seguintes

categorias: For Sale (à venda), Housing (imóveis), Jobs (emprego) e Other (outros);

d) cutucar: trata-se de uma maneira de atrair a atenção de outro usuário;

e) status: permite aos usuários informar a seus amigos atualizações sobre o que acha

interessante, tais como vídeos, fotos e links;

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f) eventos: esta é uma sessão do site criada para que os usuários organizem encontros

sociais (presenciais) e convidem seus amigos (virtualmente);

g) aplicativos: atualmente, o Facebook disponibiliza mais de 10.000 jogos para que seus

membros interajam no site;

h) facebook Vídeo: permite aos usuários adicionar vídeos por meio de um arquivo do

computador, do telefone celular ou utilizando um recurso de gravação direta de uma

webcam; além disso, é possível "taggear" (marcar) os amigos nos vídeos a fim de

gerar mais interação entre os membros;

i) facebook Móvel: em 2010, o Facebook lançou o serviço de acesso gratuito ao site;

j) facebook Messenger: no ano seguinte, em 2011, o site criou o Facebook Messenger

para celulares Android, iOS e BlackBerry, facilitando o acesso ao chat.

Dada essa explicação sobre o funcionamento do website (histórico e recursos),

abaixo, seguem as ritualidades encontradas exclusivamente no Facebook:

(1) validação obsessiva da identidade verdadeira: é um processo de reconhecimento de si

mesmo e dos outros em ambiente virtual, e das relações entre eles, de tal modo que seja

preciso que o outro, ser digital, valide a existência do primeiro em suas publicações

online diariamente (fotos, mensagens, status de compromisso etc.);

(2) validação obsessiva da identidade construída: é o processo no qual e pelo qual o

indivíduo se empenha obsessivamente em adaptar seu perfil online, a fim de aparentar

viver uma realidade nem sempre verdadeira;

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(3) depressão de Facebook: ocorre em função das interações sociais dentro da rede ou da

falta dessas relações. Compreende-se pela brusca irrupção do sentimento de culpa por

não estar “aproveitando a vida como deveria” após visualizar (e se comparar com)

atualizações dos amigos, comumente repletas de fotos de festas, viagens, com família,

namorado/a e amigos, aparentemente alegres e sorridentes, uma vez que a principal

violência obliterada das redes sociais é a felicidade e a sociabilidade.

3.4.2 Ritualidades típicas do Twitter

O Twitter31

surgiu em 21 de março 2006 como um projeto da empresa Odeo, nos EUA,

a partir de ideia inicial dos seus fundadores de criar uma espécie de "SMS da Internet" com a

limitação de caracteres similares a de uma mensagem de celular (como acontecia nos aparelhos

da época). Jack Dorsey, Biz Stone, Evan Willians e Noah Glass criaram um site de rede social

popularmente denominado de microblogging, que permite aos seus usuários que sejam escritos

textos de até no máximo 140 caracteres a partir da seguinte pergunta: “o que você está

fazendo?”. O Twitter é estruturado com seguidores e usuários a seguir, sendo que a cada

mensagem (“tweets”) o usuário pode tanto escolher quem deseja seguir como passar a ser

seguido por outros usuários do site. Há também a opção de enviar mensagens privadas para

outros membros, além de mensagens direcionadas a partir do uso do caractere “@” antes do

nickname do destinatário. Além disso, cada página pessoal pode ser personalizada a partir da

construção de um pequeno perfil (RECUERO, 2008, p.186). O Twitter também permite

conectividade com diversas redes sociais, entre elas o Facebook, o que torna possível que todo

conteúdo postado no Twitter seja compartilhado no Facebook e vice-versa. Abaixo, seguem as

ferramentas disponíveis no sistema:

31

http://www.twitter.com

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a) retweet: consiste em replicar determinada mensagem de um usuário para a lista de

seguidores, dando crédito a seu autor original;

b) Twitter list ou lista do Twitter: permite ao usuário criar listas compartilháveis de

usuários, otimizando a leitura dos tweets;

c) trending topics (TTs) ou assuntos do momento: são uma lista em tempo real das frases

mais publicadas no Twitter pelo mundo todo (valem para essa lista os marcadores,

também conhecidos como hashtags, (#) e nomes próprios).

Assim, para encerramento desta análise, apresenta-se os resultados do mapeamento

das ritualidades específicas do Twitter:

(1) divulgação de conteúdo próprio: refere-se à criação e divulgação de conteúdo

próprio na rede; diferentemente das demais redes sociais, o Twitter é um canal cujo

texto sobrepõe a imagem, que fica em segundo plano (apesar do limite de 140

caracteres por mensagem);

(2) sofisticação de conteúdo: ao ter em vista que o Twitter é um canal muito mais textual

do que imagético, esta ritualidade diz respeito à inclinação de seus usuários em se

empenharem muito mais na elaboração do conteúdo para postagem do que nas demais

redes sociais (cujo principal vetor de visibilidade é a imagem – fotos e/ou vídeos);

(3) criação e preservação de personas32

: configura-se como expressão de várias facetas

32

Embora também existam perfis fakes no Facebook, esta ritualidade assume-se como típica do Twitter devido

às exigências (restrições) do Facebook em relação à abertura de um perfil em sua plataforma: o número de vezes

em que o usuário pode alterar seu nome/sobrenome é limitado, além de, muitas vezes, o site pedir confirmação

de identidade (ao desconfiar que o perfil não é real), o que não acontece no Twitter, tornando, portanto, a criação

e preservação de personas uma ritualidade muito presente no Twitter.

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da personalidade do sujeito na rede, representada pela criação e preservação de novas

identidades/fakes (que podem ser perfis de celebridades, políticos, animais de

estimação, desenhos animados etc).

Apesar de tanto o Facebook quanto o Twitter serem redes sociais, e, portanto,

apresentarem ritualidades comuns (conforme descritas no tópico 3.3.3 Ritualidades nas redes

sociais), ambas as ferramentas possuem diferenças técnicas. Nesse contexto, constata-se que a

maneira como a página do Facebook é organizada favorece a comunicação entre os usuários

via bate-papo (entre dois ou mais usuários) ao contrário do Twitter, que limita as conversas

por número de caracteres. Além disso, outro exemplo que mostra como a estrutura do

Facebook está focada em relações está no fato de que vários usuários podem participar de

uma discussão (postagem), sem precisar usar o "@" para se comunicar com o outro (o que

dificulta a interação). Em suma, o que é possível concluir, após o estudo da estrutura de

ambas as redes sociais, seguidas do mapeamento das suas ritualidades, é que enquanto o

Facebook se apresenta como um canal de relacionamentos, o Twitter surge como uma

plataforma de divulgação de conteúdo pessoal.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa, dividida em três capítulos, defende a tese de que as ritualidades

presentes no ciberespaço rememoram mitos profanos, completamente despidos do vinculo

com o sagrado – que representam vetores essenciais de ordenação da experiência coletiva –,

a fim de compreender o modo como a comunicação com o outro se estabelece no século

XXI. Ritualidades, por sua vez, são compreendidas como formas de especificação de

processos repetitivos, laudatórios, cíclicos, que estabelecem sentido às práticas culturais, em

determinado espaço e tempo. Ao partir do pressuposto de que os processos de ritualização são

imanentes ao modus vivendi do social-histórico do gênero humano, e estão entrelaçados por

relações sociais de alta complexidade, conclui-se que, na cibercultura, as ritualidades exercem a

mesma função de agregação simbólica (isto é, de vincular o indivíduo ao coletivo). Desvelar o

modo pelo qual os processos de comunicação e ritualização são estabelecidos no ciberespaço

significa desvendar a fronteira pela qual a sociedade atual redefine as noções de tempo e

espaço, natural e artificial, real e virtual, público e privado, próximo e distante, ficção e

realidade, e assim por diante. Essa explanação tem a máxima importância para a compreensão

do modo pelo qual os vínculos sociais são estimulados e fortalecidos, o parâmetro de sentido

coletivo, construído, e os valores, constituídos, uma vez que ciberespaço e cotidiano são

termos inseparáveis na era pós-moderna.

A argumentação desenvolvida ao longo do Capítulo I – Comunicação e cultura

incide na função do ritual, condicionando definições e aspectos temáticos a serem

utilizados na reflexão de sequência, focada nos rituais contemporâneos. Neste capítulo,

consta o texto de referência para sustentação dos conceitos-chaves da pesquisa, isto é, a

base para o conteúdo que permeará os demais capítulos. Dessa forma, a pesquisa realizada

apontou que, em toda a história da humanidade, não se encontrou o sujeito isolado, o que

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significa que a coletividade preexiste à individualidade e que a sociabilidade não se trata

de um acaso ou de simples tendência, mas da própria definição de natureza/condição

humana. Nessa esteira, a sociabilidade leva à irrupção da comunidade, que criam mitos e

rituais para supressão da ansiedade (porque oferecem previsibilidade) decorrente da

consciência da morte. Vale ressaltar que a exploração do conceito de ritual não foi feita

por mera especulação teórica, mas porque é fundamental o entendimento rigoroso da sua

origem para compreender com maior precisão a argumentação que foi desenvolvida logo

adiante. Nesse sentido, é importante fixar que a finalidade do ritual (a de apaziguar a

ansiedade devido à consciência da morte e estabelecer ritmo para o cotidiano) não sofreu

modificação com o passar do tempo, o que mudou (e que também é essencial que seja

compreendido) é aquilo que o ritual representa, que não é mais sagrado e sim profano. Em

seguida, a proposta foi demonstrar que as ritualidades prescindem o mítico, isto é, existem

para além do mítico e, portanto, estão presentes mesmo em uma sociedade desencantada.

Destaca-se, neste momento, o ineditismo deste trabalho, uma vez que as pesquisas sobre o

tema continuam a associar os rituais contemporâneos à ideia de transcendência religiosa.

Finaliza-se o capítulo fazendo a passagem do conceito de ritual para seu mapeamento

dentro da rede, justificando a importância do entendimento das ritualidades para

compreensão do ciberespaço e dos seus impactos na vida cotidiana.

Em síntese, o Capítulo II – Processos sociomediáticos contemporâneos mostra que o

glocal está relacionado com cultura mediática, a fragmentação com a cultura pós-moderna, e a

velocidade com a cultura dromocrática. O processo de glocalização inicia-se no final do

século XIX, a era mediática no inicio do século XX, e a pós-modernidade em meados do

século XX. A condição pós-moderna advém do projeto moderno e designa fundamentalmente

as crises ideológicas das sociedades ocidentais e a condição sociocultural prevalecente no

capitalismo contemporâneo, após o final da Segunda Guerra Mundial e o colapso da Guerra

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Fria, simbolizado pela queda do Muro de Berlim em 1989. Enquanto a modernidade era uma

época histórica marcada pela crença de que a transformação do social só seria possível com a

adesão de uma visão de mundo essencialmente vinculada à revolução de massas, a pós-

modernidade segue caminho inverso, sugerindo uma sensibilidade confusa, sem caminho, órfã

de qualquer luta de emancipação. Sendo assim, o pós-moderno é uma reflexão crítica cuja

maior imagem é a de uma civilização sem rumos, marcada pelo consumo. Neste momento,

vale lembrar que todo ritual comemora aquilo que o mito rememora para com que, assim, não

caia no esquecimento, e que enquanto os dois mitos definidores da modernidade eram a

crença na libertação através do conhecimento e a crença nos fios condutores, no caso da época

em curso, a pós-modernidade, seu grande mito definidor é o da perda das metanarrativas ou

falência dos metarrelatos. Com a morte da função narrativa, ocorre também o

desmoronamento dos fios condutores e das categorias universais (tais como: o Homem, a

Humanidade, o Ser), e o saber contemporâneo passa a ter a mesma relevância que qualquer

outra mercadoria. Se a modernidade designa uma época histórica marcada pela busca do

progresso por intermédio das metanarrativas da ciência positivista, do marxismo e do

estruturalismo, já a pós-modernidade é reconhecida pela desfuncionalização dos objetos

técnicos (no sentido de que o objeto ganha status, valor sígnico, acoplamento humano/máquina,

mas não é valorizado pela técnica envolvida), espetacularização e esvaziamento da política,

neutralização sistemática das dialéticas (neutralização da classe trabalhadora), recusa de

narrativas longas, crença na razão e na vida administrada. Nesse contexto, a cibercultura é tida

como categoria de época, nomeando, portanto, a fase contemporânea da civilização

tecnológica, fincada nas tecnologias do virtual e em redes interativas.

Neste ponto da reflexão, adentra-se o Capítulo III – Vida cotidiana e ritualidades

no ciberespaço. Ao considerar que, com a perda das grandes narrativas, diversas micro-

histórias passam a correr em paralelo, desembocando na fragmentação do cotidiano, as

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ritualidades contemporâneas, consequentemente, também refletem a lógica vigente, e

apresentam-se como fragmentárias, aleatórias precárias e mutantes. Nessa esteira, a

pesquisa revelou que a estrutura básica das ritualidades contemporâneas é formada a partir

da delimitação espaço-temporal virtual (em detrimento ao presencial) – regida pela

instanteneidade e pela eternização do presente –, da construção da realidade (que se

manifesta por intermédio da visibilidade mediática em contexto glocal), além da

conectividade entre os atores (cujas conexões são formadas a partir de laços frágeis e

quantitativos, que vivenciam relações líquidas) e da manipulação dos símbolos (que se

traduzem em textos, fotos e vídeos publicados).

Assim, reconhece-se que a tecnologia define a sociedade, e o foco de atenção recai

sobre o impacto das redes sociais nas relações estabelecidas entre os sujeitos na

contemporaneidade. Se, por um lado, a tecnologia é produto de intenções pré-determinadas,

por outro, o modo pelo qual a sociedade apropria-se dessas tecnologias é capaz de reinventar

suas funções originais. Isso significa que é completamente insuficiente fazer uma análise

crítica e reflexiva sobre redes sociais e avaliar exclusivamente aspectos tecnológicos ou

propósitos iniciais, embora seja imprescindível considerar a complexidade do sistema como

um todo, que mescla aspectos humanos e tecnológicos aliados ao momento vigente, uma vez

que as redes interativas ocupam eixo prioritário nas profundas mudanças experimentadas em

diversos aspectos da vida social cotidiana. Nesse sentido, as redes sociais devem ser

reconhecidas como agrupamentos complexos, formados por interações sociais, apoiadas em

tecnologias digitais, que desenvolvem padrões de conexão (comunicação). Esses padrões de

comunicação uma vez mapeados, permitem que se reconheçam e sejam mapeados os grupos

de ritualidades contemporâneas no ciberespaço, que visam apaziguar a ansiedade humana

através da rede. Dessa forma, as ritualidades mapeadas foram divididas em três categorias

distintas: (1) ritualidades na era digital, (2) ritualidades no ciberespaço, e (3) ritualidades nas

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redes sociais. A argumentação realizou uma definição mais cuidadosa das ritualidades

encontradas em cada uma das categorias, entre as quais, destacam-se:

(1) ritualidades na era digital: fobia da desconexão em tempo real, uso simultâneo de

mídias, síndrome do toque fantasma, imediatismo do enquadramento depreciativo.

(2) ritualidades no ciberespaço: dispersão hipermediática, pressuposição do acesso

imediato, compulsão do acesso, delonga compulsiva na rede, efeito google, hipocondria

digital, compulsão por jogos online.

(3) ritualidades nas redes sociais: voyerismo hiperinterativo, publicização recorrente de

momentos da vida privada, selfies, visibilidade social compulsória, cyberbullying em

tempo real, melancolia do único, sensibilização social hipermediática.

Estreitando ainda mais a análise, depara-se com o corpus da pesquisa: o Facebook e o

Twitter, cujas ritualidades peculiares foram descritas e analisadas ao longo da argumentação,

mas neste momento serão apenas citadas como efeito conclusivo do que fora descoberto:

Ritualidades típicas do Facebook: validação obsessiva da identidade verdadeira,

validação obsessiva da identidade construída, depressão de Facebook.

Ritualidades típicas do Twitter: divulgação de conteúdo próprio, sofisticação de

conteúdo, criação e preservação de personas.

Apesar das diferenças técnicas no que se refere à estrutura de ambas as redes sociais, o

mapeamento realizado apontou para um diagnóstico comum no que tange os valores mais

comumente associados aos sites de redes sociais. Tanto o Facebook (cuja estrutura de sua

página se apresenta como um canal de relacionamentos) quanto o Twitter (que surge como uma

plataforma de divulgação de conteúdo pessoal) apresentam suas ritualidades estruturadas sob o

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princípio da visibilidade mediática, da popularidade (fama difusa), da melancolia do único, da

reputação e da autoridade, independentemente desta manifestação ocorrer por texto ou por

imagem (fotos e/ou vídeos). Constata-se, portanto, que a interatividade tornou-se uma exigência

da época em curso, de tal modo que existir é sinônimo de aparecer, e que aparecer é sinônimo

de poder, exprimindo, assim, a sensação de que a vida, na contemporaneidade, só tem validade

(sentido) quando passada por redes sociais, e que a existência atual está, fatalmente, vinculada a

esse tipo de visibilidade.

Destarte, o estudo desenvolvido ao longo dos últimos quatro anos de pesquisa

investigou os rituais cotidianos, acenando para uma abordagem interdisciplinar de problemas

do mundo tecnológico avançado, principalmente no que concernem às macrorrelações entre

o ciberespaço e seus impactos socioculturais. Foram privilegiadas, nesses recortes, relações

tensionais entre ritualidade, cultura digital e organização da vida cotidiana (valores e

comportamentos que se processam na época em curso), a partir do conhecimento analítico e

crítico dos processos comunicativos e semióticos em questão. A argumentação procurou

identificar as principais ritualidades que se evidenciam na cultura pós-moderna, e definir, do

modo mais preciso possível, o conceito de ritual compatível com o ciberespaço, a fim de, por

esse movimento de identificação e definição, apreender as consequências sociais e culturais dos

principais paradigmas do ritual na cultura digital. Tratou-se, portanto, de uma contribuição

crítica para a diversidade da produção de conhecimento no campo de estudos da comunicação e

da cibercultura. Nesse amplo espectro temático, o objeto de estudo residiu, especificamente, no

recorte da organização dos rituais cotidianos no ciberespaço.

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