Rituais e Ética - Estruturando a participação de forma teatral

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RITUAIS & ÉTICA - Estruturando a Participação de Forma Teatral Beatriz A. V. Cabral/UFSC e UDESC "Ritual and Ethics - structuring participation in a theatrical mode", in Research in Drama Education (Oxfordshire, Carfax Publishing Company), Vol. 6, No 1, 2001, pp 55-68. "Etica e Rituais - struturando a participação de forma teatral", in Memória ABRACE III, Salvador, UFBA, 2001. Este projeto focaliza a função do ritual em Teatro na Escola e/ou Comunidades, como um recurso para ampliar e estruturar a participação individual e coletiva de forma teatral. A área temática escolhida foi ética por ser ela um dos maiores desafios dos Parâmetros Curriculares Nacionais – “como levar crianças a refletir sobre atitudes e moral sem determinar o que está certo ou errado?”- este parece ser a preocupação central dos professores com quem tenho trabalhado em oficinas sobre Teatro & Temas Transversais. A experiência analisada a seguir envolveu 24 crianças (de 9 a 10 anos de idade) e 10 adultos (5 professores e 5 estudantes de teatro), teve a duração de 3 horas e representou uma etapa de um processo teatral de 15 horas/aula, realizados no decorrer de uma semana, junto a uma escola pública de Florianópolis/SC. Ritual: Os rituais podem tomar várias formas, mas são geralmente descritos como manifestações coletivas,com movimentos padronizados em sequências que são caracterizadas pelo seu alto teor teatral, usualmente incluindo gestos, canções ou sons, cores ou luzes, e vozes, tudo coordenado e orquestrado em torno de um único tema. Tal coordenação é um mecanismo para criar uma experiência de identidade ou identificação grupal. O impacto que os rituais geralmente acarretam está relacionado com sua ressonância com a vida e necessidades de seus participantes. A hipótese aqui, é que além da orquestração e ressonância, que podem ampliar e intensificar oportunidades de aprendizagem, a eficácia pedagógica do ritual, para o Teatro Educação, também está relacionada com o espaço que ele abre para respostas individuais em trabalhos de grupo, para a expressão de valores antagônicos e diferentes leituras das circunstâncias sendo focalizadas. Este potencial do ritual teatral deriva de seus elementos constitutivos. (Vide Schechner,1993:12-13; Pavis, 1996: 1-21; e Counsell, 1996:143-178): - se caracteriza como uma experiência - incorpora um status simbólico - refere-se a um processo ou a um grupo de ações performáticas - contém estruturas com qualidades formais e relações definidas De um lado, o ritual representa o comportamento comum transformado através da condensação, exagero, repetição e ritmo. De outro lado, enquanto ação simbólica, o ritual é ambivalente, aponta para ações reais, e ainda permite que os participantes evitem uma confrontação direta com os eventos. Como tal, o ritual pode ser um espaço privilegiado para abordar questões de ética em atividades de ensino. Ética Mores (moral) e ethos (ética) possuem a mesma origem etimológica, costume. O desenvolvimento histórico, entretanto, diferenciou seus significados, e hoje a filosofia define moral como princípios, crenças e regras, que juntas dirigem o comportamento dos indivíduos em cada sociedade; e ética como o pensamento reflexivo sobre a moral. Os Parâmetros Curriculares Nacionais incluem ética como tema transversal, e acentuam que escolhas individuais não significam uma moral individual, uma vez que os seres humanos tomam decisões em face de outros seres humanos com os quais eles compartilham valores no contexto de seus relacionamentos. A liberdade depende da habilidade de se fazer escolhas e da possibilidade de fazê-las. Se as pessoas não podem escolher entre obediência e transgressão, não são responsáveis por suas ações. O cotidiano requer que critérios e valores sejam discutidos: É correto roubar um remédio se este é o único meio de salvar uma vida? Exemplos não tão extremos como este exigem a problematização de suas respostas e a verificação de sua consistência com seus fundamentos filosóficos.

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RITUAIS & ÉTICA - Estruturando a Participação de Forma Teatral Beatriz A. V. Cabral/UFSC e UDESC "Ritual and Ethics - structuring participation in a theatrical mode", in Research in Drama Education (Oxfordshire, Carfax Publishing Company), Vol. 6, No 1, 2001, pp 55-68.

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RITUAIS & ÉTICA - Estruturando a Participação de Forma Teatral Beatriz A. V. Cabral/UFSC e UDESC "Ritual and Ethics - structuring participation in a theatrical mode", in Research in Drama Education (Oxfordshire, Carfax Publishing Company), Vol. 6, No 1, 2001, pp 55-68. "Etica e Rituais - struturando a participação de forma teatral", in Memória ABRACE III, Salvador, UFBA, 2001.

Este projeto focaliza a função do ritual em Teatro na Escola e/ou Comunidades, como um recurso para ampliar e estruturar a participação individual e coletiva de forma teatral. A área temática escolhida foi ética por ser ela um dos maiores desafios dos Parâmetros Curriculares Nacionais – “como levar crianças a refletir sobre atitudes e moral sem determinar o que está certo ou errado?”- este parece ser a preocupação central dos professores com quem tenho trabalhado em oficinas sobre Teatro & Temas Transversais. A experiência analisada a seguir envolveu 24 crianças (de 9 a 10 anos de idade) e 10 adultos (5 professores e 5 estudantes de teatro), teve a duração de 3 horas e representou uma etapa de um processo teatral de 15 horas/aula, realizados no decorrer de uma semana, junto a uma escola pública de Florianópolis/SC.

Ritual: Os rituais podem tomar várias formas, mas são geralmente descritos como manifestações coletivas,com movimentos padronizados em sequências que são caracterizadas pelo seu alto teor teatral, usualmente incluindo gestos, canções ou sons, cores ou luzes, e vozes, tudo coordenado e orquestrado em torno de um único tema. Tal coordenação é um mecanismo para criar uma experiência de identidade ou identificação grupal. O impacto que os rituais geralmente acarretam está relacionado com sua ressonância com a vida e necessidades de seus participantes. A hipótese aqui, é que além da orquestração e ressonância, que podem ampliar e intensificar oportunidades de aprendizagem, a eficácia pedagógica do ritual, para o Teatro Educação, também está relacionada com o espaço que ele abre para respostas individuais em trabalhos de grupo, para a expressão de valores antagônicos e diferentes leituras das circunstâncias sendo focalizadas. Este potencial do ritual teatral deriva de seus elementos constitutivos. (Vide Schechner,1993:12-13; Pavis, 1996: 1-21; e Counsell, 1996:143-178): - se caracteriza como uma experiência - incorpora um status simbólico - refere-se a um processo ou a um grupo de ações performáticas - contém estruturas com qualidades formais e relações definidas De um lado, o ritual representa o comportamento comum transformado através da condensação, exagero, repetição e ritmo. De outro lado, enquanto ação simbólica, o ritual é ambivalente, aponta para ações reais, e ainda permite que os participantes evitem uma confrontação direta com os eventos. Como tal, o ritual pode ser um espaço privilegiado para abordar questões de ética em atividades de ensino.

Ética Mores (moral) e ethos (ética) possuem a mesma origem etimológica, costume. O desenvolvimento histórico, entretanto, diferenciou seus significados, e hoje a filosofia define moral como princípios, crenças e regras, que juntas dirigem o comportamento dos indivíduos em cada sociedade; e ética como o pensamento reflexivo sobre a moral. Os Parâmetros Curriculares Nacionais incluem ética como tema transversal, e acentuam que escolhas individuais não significam uma moral individual, uma vez que os seres humanos tomam decisões em face de outros seres humanos com os quais eles compartilham valores no contexto de seus relacionamentos. A liberdade depende da habilidade de se fazer escolhas e da possibilidade de fazê-las. Se as pessoas não podem escolher entre obediência e transgressão, não são responsáveis por suas ações. O cotidiano requer que critérios e valores sejam discutidos: É correto roubar um remédio se este é o único meio de salvar uma vida? Exemplos não tão extremos como este exigem a problematização de suas respostas e a verificação de sua consistência com seus fundamentos filosóficos.

Esta a razão para incluir ética nos currículos. A ética não possui um caráter normativo, pois ao se fazer uma reflexão ética se está perguntando sobre a consistência e a coerência dos valores subjacentes às ações; tenta-se esclarecer e questionar os princípios que regeram aquelas ações, de maneira a alcançar seu significado real no contexto no qual elas ocorreram. A moral já está presente na prática educacional – o cotidiano nas escolas está invadido de valores, traduzidos em princípios, regras, ordens, e /ou proibições. Ao privilegiar a ética no currículo pretende-se refletir sobre os princípios (seus fundamentos), regras (seus objetivos), ordens (os interesses aos quais elas atendem), e proibições (a que resultados elas levam), a fim de atingir uma democracia eficaz. A associação entre ética e rituais em processos dramáticos permite destacar, e consequentemente refletir, sobre as respostas individuais a dilemas morais, uma vez que o teatro focaliza conflitos e limitações, engajamento emocional e escolha individual, em trabalhos em grupo.

Metodologia A opção pelo ritual como foco desta investigação decorreu de sua dimensão simbólica, performática e educacional. Os rituais foram analisados sincronicamente – de acordo com suas estruturas teatral e educacional; diacronicamente – de acordo com seu processo e conexões (links); ideologicamente – de acordo com os julgamentos de valor que emergiram durante o processo; culturalmente – de acordo com o sentido de identidade ou identificação que eles promoveram. Examinar os rituais sincrônica e diacronicamente significa examiná-los vertical e horizontalmente e ao fazer isto é possível ampliar o entendimento do potencial das formas rituais como instrumento pedagógico (veja abaixo); ao examiná-los ideológica e culturalmente é possível articular os dilemas morais embutidos na experiência. A abordagem etnográfica foi definida como sendo a mais apropriada por permitir que professores e estudantes trabalhassem como outsiders e como insiders dos eventos dramáticos que emergiram no decorrer do processo. Como outsider cada um foi capaz de observar a performance dos demais: ações, atitudes, escolhas, habilidade para ouvir e aceitar as contribuições das crianças; como insider, cada um foi uma peça do ritual, e ao mesmo tempo, o único a ter conhecimento das interações e sugestões que aconteceram em seu grupo nos momentos em que foram preparados os enfrentamentos. A opção pela etnografia implica considerar as vozes de todos os participantes – crianças, professores/estudantes de teatro, e professores de classe (terceiro e quarto anos do ensino fundamental). Em Drama, particularmente, também implica a autonomia do aluno para decidir sobre os rumos do trabalho, isto é, requer uma parceria na construção do texto teatral. Entretanto, todos sabemos quão difícil é conseguir um equilíbrio na autoria de textos coletivos. Nas etapas anteriores desta pesquisa constatamos que não é possível registrar e discutir tudo o que ocorre nos trabalhos em pequenos grupos. Cada professor passou então a fazer as suas observações e anotações como `testemunho’ ou `exemplo’ para os focos da pesquisa. A reunião de 5 professores e 5 estudantes, para a realização desta experiência, responde assim, ao nosso entendimento de que este procedimento abre as fronteiras da abordagem sendo investigada. A antecipação de problemas, durante o planejamento da experiência, e o debate de trechos da bibliografia sobre rituais, funcionaram como diretriz para esta análise.

O Contexto Teatral “A melhor maneira de entender, animar, investigar, entrar em contato com, passar a perna em, lidar com, defender-se de, amar ... outros, outras culturas, o evasivo e íntimo ‘Eu Você’, o outro em nós mesmos, o outro oposto a nós, o temido, odiado, envejado, diferente ... é representar e estudar as representações e os comportamentos representativos em todos os vários gêneros, contextos, expressões e processos históricos (...) A representação teatral é amoral, tão útil aos tiranos quanto as práticas de teatro – guerrilha. Esta amoralidade decorre da matéria da representação teatral, a transformação: a habilidade fantástica dos seres humanos para criarem a si próprios, mudarem, tornarem-se – para o pior ou melhor – o que eles ordinariamente não são” (Schechner, 1993:1).

Um conto de tradição açoriana, “As Três Bruxas que se transformaram em três Galinhas Brancas”, foi a base do Drama. O conto serviu como pre-texto para envolver as crianças com o ambiente da narrativa, cujo conflito central, baseado em dilema moral familiar aos participantes, foi estruturado de forma a

requerer uma série de rituais a fim de ser solucionado. Os recursos utilizados para salientar a atmosfera teatral, e nutrir os rituais, incluíram narração de histórias, como ponto de partida para as improvisações e interpretações; um grupo de personagens, por estudantes de teatro, os quais apareceram através do processo, introduzindo informações, criando novos fatos ou desafiando o ponto de vista das crianças; uma ambientação cênica em espaço histórico cujo passado e presente possuem forte significação em relação aos eventos sendo investigados.

A Narração de Histórias Histórias ou narrativas, segundo Barthes (1988:79), são metáforas de nosso modo de vida, quer sejam criadas por nós, ou externas a nós. As histórias falam da cultura e da comunidade, explicam e confirmam nossa identidade ou identificação. Mesmo dentro dos limites de uma comunidade pode-se observar que os contatos e interações revelam backgrounds culturais complexos e múltiplos. Eles não só representam várias culturas, local e regionalmente, mas também a cultura global que o indivíduo absorve ao passar várias horas por dia em frente à televisão. Neste contexto as formas tradicionais se tornam embaçadas, causando uma desvalorização dos aspectos cultural, histórico e ambiental, e consequentemente, da dimensão pessoal. Ao introduzir referências culturais, as histórias podem representar uma maneira de preencher este espaço. Nestas circunstâncias, há um grande potencial educacional e estético para histórias que focalizem tanto as especificidades quanto as diferenças culturais. Ambientação Cênica

Uma ambientação cênica que também se caracterize como ambientação histórica pode ampliar sua significação para os participantes. Por ambientação histórica, entende-se as locações que sejam diretamente relacionadas com o conteúdo a ser explorado. A velha casa que sediou esta experiência é parte do patrimônio açoriano e esteve fechada nos últimos anos, a espera de apoio para sua restauração. As crianças da localidade costumam dizer que é assombrada ou embruxada. O cenário criado, dentro e fora da casa, para este evento (tochas, véus, ervas, garrafas com líquidos coloridos, etc.) acrescentou uma emoção extra à experiência.

Professor-Personagem Professores e alunos de teatro assumiram personagens de forma naturalista para liderar, intervir e orquestrar a narrativa. Este foi o quarto processo dramático com estas crianças, e elas estavam bem à vontade com o `professor-personagem’. Portanto, para incluir algum impacto e/ou algo inesperado, duas personagens-chave de uma experiência anterior, foram incorporadas com a mesma função, nome e figurino, acentuando nas atuais circunstâncias novos aspectos de seu caráter. Em contraste, os atores que representaram os antagonistas, não haviam encontrado as crianças anteriormente. Estas representaram, em parceria com outros alunos de teatro, o grupo de cidadãos que enfrentaram os antagonistas, principalmente a partir de rituais.

O Contexto da Ficção A professora de teatro está sentada aos pés de um marco histórico (uma cruz sobre um pedestal), em frente à igreja – o local em volta é preservado pelo patrimônio histórico, e mantém as características e atmosfera da época em que supostamente ocorreram os eventos a serem encenados. Chega o ônibus escolar e as crianças cercam a professora, curiosas com o que virá a seguir. Elas são convidadas a sentarem-se em volta, na grama, e ouvir uma história.

“A história que eu vou contar não está completa, está acontecendo aqui e agora, e sua conclusão depende de vocês. Os imigrantes açorianos chegaram a este local 250 anos atrás; vocês representaram o papel destes imigrantes nas últimas semanas, e na realidade, vocês são seus descendentes. Além de serem crianças. Por isso foram chamados aqui. Somente crianças com sangue açoriano podem nos ajudar. Agora escutem: Lá (a professora aponta uma velha casa abandonada) vive um agricultor e sua mulher. Este agricultor nasceu e viveu aqui, com sua mãe e irmãs até se casar. Sua mãe e irmãs são bem conhecidas na redondeza, como bruxas. Muitos eventos misteriosos e coisas estranhas ocorreram naquela casa. Mas ... o agricultor casou; e ele casou com uma mulher católica. E, uma vez que ele era o filho mais velho e o único homem, ele herdou a casa. Agora ele está com um problema: sua mulher não

admite nenhum tipo de bruxaria, nem sequer que se fale sobre isto em casa. O agricultor precisou pedir à sua mãe e irmãs que procurassem outro local para morar. Desde então sua mulher começou a enfraquecer e acabou ficando muito doente. Muitos médicos foram chamados e nenhum conseguiu resolver o problema. Finalmente ele chamou uma curandeira, destas que usam ervas locais para cura. Bem, ele é um tipo de bruxa também. O diagnóstico foi claro: sua mulher está embruxada e sómente crianças, às quais pertence o futuro e aquelas que descendem dos açorianos podem salvá-la.

Assim, esta será a tarefa de vocês hoje. A curandeira é uma velha amiga de vocês e prometeu ajudar. Ela está na igreja”. A professora pede a três rapazes, os mais inquietos, para irem buscá-la. Os três correm para a igreja e voltam com a ‘velha’ D. Mariana, ajudando-a cuidadosamente a se locomover. D. Mariana diz: “Então vocês vieram. Agora sei que poderemos salvar a filha de D. Milica. Vou lhes dar 3 poderes; se vocês fizerem bom uso deles, serão capazes de desfazer a bruxaria. Mas, prestem atenção: vocês não podem ferir ou destruir ninguém, nem mesmo as bruxas; vocês precisam convencê-las a desfazer a bruxaria. Se vocês as espantarem, a filha de D. Milica está perdida, pois só quem fez tem o poder de desfazer” D. Mariana abre um saco de linhagem e vai retirando lenços vermelhos, roxos e pretos, as cores que representam a magia da bruxas. Ela divide os participantes em três grupos; cada grupo recebe lenços de uma cor (para a cabeça ou ombro): “Agora nós somes 27 pessoas, protegidos pelas cores dos lenços, que juntas impedirão que qualquer mal nos atinja. Também lhes entrego uma planta protetora: Arruda, Espada de São Jorge e Comigo Ninguém Pode, um espécie para cada grupo. Elas serão seu segundo poder. O terceiro, os ajudará a convencer as bruxas a mudar de atitude: o Dom da Palavra. A cada grupo eu confiro uma palavra, que deverá ser usada de formas diversas quando vocês enfrentarem as bruxas, as quais aparecerão sob a forma de galinhas. A palavra para o grupo com lenços vermelhos é solidariedade; para o grupo em preto, respeito mútuo; para o grupo em roxo, diálogo. Juntos, os três grupos reivindicarão justiça.” Após receberem seus três poderes, cada grupo (6 crianças e 1 estudante) se reúne para criar suas palavras de ordem, slogans, movimentos e gestos correspondentes. D. Mariana e a professora de teatro passam de grupo em grupo com estímulos ou desafios. Após algum tempo de preparação, D. Mariana os convida a irem à casa do agricultor. Ela lidera o grupo, caminhando com o apoio de algumas crianças, os demais a seguem. Os visitantes chamam o dono da casa em côro, o `agricultor’ abre a porta, e eles se deparam com uma sala escura, uma mulher com aspecto doente em uma cama ao fundo, velas e ramos de arruda pendurados no teto. D. Mariana convida o grupo a rodear a cama e iniciar uma reza de proteção contra bruxas, em côro, liderados por ela. Em seguida, D. Mariana abre as três grandes janelas da sala (situadas lado a lado, característica açoriana), e os participantes se colocam de costas para as janelas, observando e protegendo a mulher doente contra possíveis males de fora. Continuam com o côro e desenvolvem movimentos incluindo as plantas. Subitamente um barulho chama a atenção do grupo, e surgem as galinhas, uma em cada janela – três atrizes caracterizadas como galinhas. Um ritual tem início: as galinhas falam suas palavras de ordem, individualmente e em côro; as crianças respondem e as desafiam da mesma forma. D. Mariana faz a orquestração do ritual. Este dura 20 minutos, e inclui movimentos das crianças, segurando as ervas, sons e movimentos típicos de galinhas. O ritual termina com o recuo das galinhas. As crianças então colocam as ervas no chão, ao lado da mulher doente, a qual, na sequência, começa a se recuperar. O casal se reúne com as crianças para decidir o que fazer com as bruxas. O grupo opta por perdoar e compartilhar o espaço no futuro.

Análise da Experiência Este conto foi escolhido por focalizar dois aspectos particulares aos padrões de papel social presentes na comunidade e na vida destas crianças: o do racionalismo da cultura moderna ocidental, representado pela religião oficial, o catolicismo; e o das crenças e práticas que representam o mundo mítico e mágico dos antigos habitantes da localidade: africanos, indígenas e açorianos. Ambos estão impregnados em nossas formas de pensar, caracterizando aquilo que é conhecido como o sincretismo religioso do brasileiro, e requerem especial atenção dos professores, ao lidar com dilemas morais. De um lado, o sincretismo pode ser considerado como uma tentativa de conciliar diferentes escolas de

pensamento; de outro, ele representa uma tendência não apenas das classes mais baixas, mas também das camadas ilustradas. O importante aqui, não é se isto significa apenas uma crença ou folklore, mas sim o fato de que tanto as crianças quanto os adultos recebem e respeitam ambas as influências. Duas das crianças desta experiência possuem tias que são curandeiras bem conhecidas na localidade. Daí o potencial do ritual para a prática do teatro na escola – a possibilidade de ouvir as vozes individuais em trabalhos de grupo, que façam emergir questões fundamentais aos hábitos e costumes da comunidade. “A sociedade moderna carece um sistema compartilhado de crenças. Porém, tal dimensão metafísica ainda pode ser encontrado na arte – onde nós nos engajamos com padrões os quais nós só podemos reconhecer quando eles se manifestam como ritmos ou formas...” (Brook, 1996:153). A problemática referida acima trata não apenas da falta de uma crença compartilhada, mas principalmente da presença de um sistema de crenças formal (catolicismo), paralelo a um sistema subliminar, mantido em segredo ou abertamente enquanto folklore (as práticas religiosas africanas). Neste contexto, os rituais podem representar uma experiência única, a qual dá voz às questões silenciosas, às formas não realizadas, às idéias que não estão claras. Ao usar este conto em um drama ritualizado e interativo, foi possível desvendar significados atuais e contraditórios, a partir das falas dos participantes (palavras de ordem e slogans criados ou escolhidos pelas crianças) e formas emergentes (gestos). Peter Brook vê no teatro um meio de transmitir o que nenhum outro meio é capaz, “Aqui está a responsabilidade do teatro: o que um livro não pode comunicar, o que um filósofo não pode explicar convincentemente, pode ser compreendido através do teatro. Traduzir o intraduzível é um de seus papéis”. (Brook, 1987:164). Segundo os professores das crianças envolvidas neste trabalho, eles aprenderam muito sobre seus alunos durante a experiência e logo após, através de seus comentários sobre os eventos anteriores. As situações ritualizadas foram um meio de unir adultos e crianças no ato de compreender e responder a uma vivência sócio-cultural.

A análise deste processo levou em consideração as opiniões dos professores e alunos de teatro, dos professores da escola das crianças, e das crianças. Estas avaliaram a experiência, individualmente, através do preenchimento de um caderno com fotos e questões sobre o contexto e os eventos encenados. Esta avaliação foi realizada um mês após a experiência, a fim de podermos identificar que aspectos da atividade foram lembrados com mais detalhes e causaram maior impacto nos participantes.

Quatro distintos focos de investigação foram considerados: Sincronicamente foram focalizadas as interações entre as estruturas teatral e pedagógica. Até que ponto cada uma delas foi realçada e fortalecida pela outra? De maneira geral, foi possível constatar que figurino e objetos provocaram envolvimento significativo com as situações dramatizadas e foram responsáveis pela decisão final sobre o destino das bruxas. A ambientação e objetos de cena sinalizaram, para as crianças, uma possível simpatia, por parte dos professores e monitores, em relação às bruxas. Esta não era a intenção original; o objetivo de se incluir xales coloridos, plantas, rituais e rezas era ampliar e intensificar a atmosfera teatral, além de facilitar e/ou proteger as crianças quanto às suas opiniões e posturas. O resultado também revelou que a dimensão teatral teve efeitos pedagógicos quanto ao exercício de habilidades orais (argumentos para enfrentar as bruxas, debates em grupos), à aquisição de conhecimentos sobre o conteúdo e o contexto (questionamentos e leituras sobre o poder das plantas, a história da casa e a imigração), ao pensamento reflexivo (sobre religiões e ética). Por outro lado, a dimensão educacional, caracterizada pela parceria entre adultos e crianças, o uso de um conto tradicional, a incorporação de personagens de experiências anteriores, palavras-chave e idéias pinçadas dos parâmetros curriculares para a área de ética, etc., certamente foram fatores fundamentais para a eficácia teatral, o que ficou evidente através de: disponibilidade física (para envolvimento nos rituais e para enfrentar as bruxas), falas convincentes (textos memorizados por decisão própria), foco e trabalho contextualizado ( sem necessidade de refocar a atenção). Diacronicamente a análise da experiência se concentrou no desenvolvimento do processo. Este foi planejado com atividades incluindo todos os participantes, alternadas com outras em pequenos grupos. O grande grupo reuniu-se quer em círculo, de forma a tornar todos visíveis por todos e manter o espaço central aberto a manifestações individuais; quer em linha ou sequência, em forma de procissão. Em pequenos grupos, os participantes tomaram decisões, definiram palavras de ordem e atitudes frente às situações expostas. Os pequenos grupos funcionaram como ensaio para os eventos principais e

garantiram as participações individuais. O processo dramático apresentou assim múltiplas narrativas, que foram sendo cruzadas durante o seu desenvolvimento, abrindo espaço para vozes diversas, e até antagônicas, sem dar a última palavra a nenhuma delas. Em decorrência, foi possível observar emoções conflitantes. A coerência da forma dramática nestas circunstâncias foi possível por te sido criado um padrão de “exploração e descoberta”, o qual deu forma às respostas antagônicas. Por exemplo, as crianças, divididas em três grupos, selecionaram palavras de ordem relacionadas com o conceito de ética recebido pelo seu grupo; na casa do agricultor cada grupo formou um semi-círculo frente a uma das janelas, para enfrentar as galinhas, uma delas em cada janela. As palavras de ordem, ditas individualmente ou em côro responderam aos desafios das galinhas, as quais também se manifestaram individualmente e em côro. A orquestração deste ritual, por D. Mariana, salientada pela performance das galinhas, foi o fator principal do engajamento das crianças nas discussões subsequentes sobre os dilemas morais em pauta. Ideologicamente, o grupo de pesquisa (professores e alunos de Teatro) examinaram os valores subjacentes ao texto, definiram um ponto de vista coletivo e questionaram suas implicações. A discussão dos sistemas de valor implícitos no texto ocorreu previamente à experiência, durante a análise do conteúdo do conto, das formas de focalizá-lo e relacioná-lo com as idéias correntes na comunidade; e posteriormente, ao ser criado o caderno com imagens e questionamentos onde as crianças puderam registrar suas opiniões sobre os conflitos representados. A tentativa de definir um ponto de vista coletivo, por parte dos professores, levou o grupo a dissecar o conto e as diferentes perspectivas de seus personagens, a fim de prever suas implicações e estarem preparados para argumentar com os participantes da experiência sem caírem na armadilha de alguma postura definitiva ou preconceituosa. Os conceitos de solidariedade, diálogo e respeito mútuo, podem implicar um entendimento comum dos eventos ou não. O ponto principal era que os professores deveriam evitar uma abordagem normativa, ou seja, a postura de uma “ação correta”. A justiça deveria ser decidida pelo grupo todo, através do voto se necessário, caso princípios contraditórios ainda prevalecessem. O pressuposto era de que ao considerar pontos de vista diversos dentro da família do agricultor, as razões e as implicações das posturas dos diversos personagens, as crianças teriam oportunidade de desenvolver suas próprias opiniões sobre o assunto. Os professores, então, poderiam contra-argumentar. Tal entendimento é expresso com clareza por Vetlesen, para quem “a habilidade moral é criada, alimentada e expressa dentro de ambientes de escala reduzida, onde haja proximidade de integração social e laços pessoais” (Allern, 1997). Culturalmente poderia-se dizer sobre o papel da ficção no processo dramático o mesmo que Janet Murray afirma sobre o virtual: “as experiências dramáticamente mais satisfatórias são aquelas que encorajam o internauta a aplicar raciocínios do mundo real ao mundo virtual” (Murray, 1997:139). A estrutura de ritual desta experiência permitiu aos participantes investigar e representar simbolicamente os padrões que dão significado à sua vida cotidiana.

Em síntese, a opinião dos professores e estudantes que integraram esta pesquisa foi que os rituais ofereceram um exercício seguro de questões que tem valor prático e comunitário – neste sentido, pode ser compreendido como um `ensaio para a vida real’. Sob este ponto de vista, dois aspectos foram discutidos: o do teatro participativo e o da autoria. O teatro participativo usualmente toma a forma de uma disputa entre oponentes – é a oposição a um determinado contexto, circunstância, ou personagem, que une as ações de um grupo heterogêneo. Nesta experiência a oposição `esposa católica X família bruxólica’ foi salientada pela sua atualidade no contexto real. “A oposição”, diz Murray, “é um dos mais difundidos e penetrantes princípios organizadores da inteligência e linguagem humana. Assim como nós automaticamente organizamos o mundo temporal e espacial em características opostas (noite/dia, alto/baixo, direito/esquerdo), também o fazemos com as coisas que acontecem no mundo: Deus/Diabo, macho/fêmea, Caim/Abel...” (Murray, 1997:145). Se o contexto real intensificou a estrutura dramática do conto `As Três Bruxas’, os rituais ampliaram a liberdade das crianças terem `voz’ no processo. Entretanto a autoria do texto, indiretamente, foi do(s) professor(es), uma vez que foi a narração da história, os personagens representados pelos adultos e a estrutura das atividades que em última instância definiram a atmosfera e o texto teatral. Adaptando uma das colocações de Murray sobre a autoria na mídia eletrônica para a área do Drama, é possível dizer que “autoria é aqui entendida como procedimento. Autoria procedimental significa escrever as regras pelas quais os textos aparecem tanto quanto escrever os próprios textos. Significa escrever as regras para o envolvimento interativo dos participantes. O autor procedimental cria um mundo de possibilidades narrativas. O interator faz uso deste repertório de possibilidades para improvisar uma situação particular

entre muitas outras que o autor colocou à sua disposição (Murray, 1997: 152-153). Nos rituais descritos acima, os professores, tal como o autor procedimental do texto eletrônico atuou como um coreógrafo que supriu os ritmos, o contexto, e a série de situações que foram representadas. Anteriormente a cada evento ou confronto, os professores no papel de parceiros das crianças, através de pistas, questionamentos, sugestões, introduziram as informações com as quais foi possível desenvolver os rituais. O importante aqui é que quando os rituais aconteceram, a excitação de exercer o poder durante as confrontações e fazer as galinhas reverterem a magia, fez com que as crianças deletassem a memória da ajuda anterior e se sentissem como verdadeiros autores do texto teatral. Ética esteve no centro de todo o processo uma vez que os participantes estiveram envolvidos com reflexão e resposta aos dilemas morais e padrões que circunscreveram o contexto da ficção, e consequentemente, o contexto real. O foco em ética em vez de moral acentuou o papel das crianças como donos dos critérios que definiram quais as atitudes que seriam corretas sob tal contexto e circunstâncias.

Referências Bibliográficas Allern, Tor-Helge. “Drama and aesthetic knowing in (late)modernity”. Paper. Victoria/CA conference, 1997. Atkinson, P. The Ethnographic Imagination: textual constructions of reality. London, Routledge, 1990. Brook, Peter. “The Culture of Links”, in Pavis (1996:63-67). Counsell, Colin. Signs of Performance – an introduction to twentieth-century theatre. London, Routledge, 1996. Haydon, Graham. Education and the Crisis in Values: should we be philosophical about it? London, The Tufnell Press, 1993. ______. Education and Values – The Richard Peters Lectures. London, Institute of Education, 1987. Murray, Janet H. Hamlet on the Holodeck – The Future of Narrative in Cyberspace. New York, The Free Press, 1997. Pavis, Patrice.The Intercultural Performance Reader. London, Routledge, 1996. Schechner, Richard. The Future of Ritual. New York, Routledge, 1993. Winston, Joe. Drama, Narrative and Moral Education. London, The Falmer Press, 1998.