Ritmo e Mtricidade

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO RITMO, MOTRICIDADE, EXPRESSÃO: O TEMPO VIVIDO NA MÚSICA Alberto Andrés Heller CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC LINHA DE PESQUISA: EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO ORIENTADOR: PROF. DR. ARI PAULO JANTSCH CO-ORIENTADOR: PROF. DR. MARCOS JOSÉ MÜLLER

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Arquivo sobre ritmo relacionado a motricidade

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  • DISSERTAO DE MESTRADO

    RITMO, MOTRICIDADE,

    EXPRESSO:

    O TEMPO VIVIDO NA MSICA

    Alberto Andrs Heller

    CENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC

    LINHA DE PESQUISA: EDUCAO E COMUNICAO

    ORIENTADOR: PROF. DR. ARI PAULO JANTSCH

    CO-ORIENTADOR: PROF. DR. MARCOS JOS MLLER

  • 2

    NDICE

    Introduo .................................................................................. 06

    Parte I Fenomenologia da experincia musical Captulo 1 Do objeto musical ..................................................................... 09 Captulo 2 Ritmo e metro: espacializao da experincia musical ............ 17 Captulo 3 Ritmo e motricidade .................................................................. 38 Captulo 4 Motricidade e expresso ........................................................... 51 Captulo 5 Expresso e temporalidade ....................................................... 65

    Parte II Crtica fenomenolgica da experincia de educao musical Captulo 6 Desconstruo da representao do corpo-prprio na educao musical A questo da tcnica ........................... 86 Captulo 7 A percepo do corpo-prprio e a redescoberta do tempo vivido A questo do ritmo ....................................... 113 Captulo 8 A compreenso do tempo vivido e a expresso musical A questo da interpretao ...................... 136 Concluso .................................................................................. 164 Bibliografia .................................................................................. 167

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    RESUMO / RESUMEN / ZUSAMMENFASSUNG

    A presente dissertao examina criticamente alguns dos fundamentos da ao

    musical, especialmente no que se refere tcnica, ao corpo e expresso, bem como

    sua interligao. Atravs do mtodo fenomenolgico e de alguns de seus principais

    conceitos (como os de intencionalidade, corpo-prprio, esquema corporal, expresso e

    tempo vivido) pretende-se tentar compreender a essncia da experincia artstica.

    Acredita-se, a partir de tal compreenso, tornar possvel ultrapassar a mentalidade de

    reproduo comumente encontrada no apenas na educao musical como na educao

    de uma forma geral.

    La presente dissertacin analiza criticamente algunos de los fundamentos de la

    accin musical, especialmente en lo que se refiere a la tcnica, al cuerpo y a la expresin,

    as como a su interligacin. Atravs del mtodo fenomenolgico y de algunos de sus

    principales conceptos (como los de intencionalidad, cuerpo-prprio, esquema corporal,

    expresin y tiempo vivido) se pretende tratar de comprender la esencia de la experiencia

    artstica. Se piensa, a partir de tal comprensin, tornar posible ultrapasar la mentalidad de

    reproduccin normalmente encontrada no solamente en la educacin musical como

    tambin en la educacin de una forma general.

    Der folgender Text analysiert en kritischer Art einige der Fundamente des

    musikalischen Aktes, besonders was die Technik, der Krper und den Ausdruck betrifft, so

    wie die Verbindung zwischen diese Elemente. Durch die fenomenologische Methode und

    einige ihren wichtigsten Konzepte (wie die Intentionalitt, den eigenen Krper, den

    Ausdruck und die gelebte Zeit) will man versuchen die Essenz des knstlerischen

    Erlebnisses zu verstehen. Dieses Verstehen soll das berwinden der

    Reproduktionsmentalitt (die wir nicht nur in der musikalischen sondern auch in der

    allgemeinen Erziehung finden) ermglichen.

    Palavras-chave: Fenomenologia; educao; msica; expresso; arte.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, em primeiro lugar, ao meu orientador, Prof. Dr. Ari Paulo

    Jantsch, no apenas pela orientao do trabalho, mas principalmente pela

    aceitao do projeto desta dissertao no programa do curso - um projeto

    inicialmente de difcil adaptao, dado seu carter interdisciplinar.

    Agradeo enormemente ao meu co-orientador, Prof. Dr. Marcos Jos

    Mller, por suas valiosssimas contribuies ao longo destes dois anos de

    convvio, que resultaram, mais que numa dissertao de mestrado, numa

    experincia de vida. Erros ou falhas de interpretao no que diz respeito

    fenomenologia neste trabalho devem ser inteiramente computados ao autor da

    dissertao, no sua brilhante orientao.

    Agradeo ao Prof. Dr. Lucdio Bianchetti, sempre fonte de inspirao e

    entusiasmo, que esteve presente, de corpo e alma, ao longo de todo o percurso.

    Agradeo, enfim, a todos os que compartilharam destes meses, meses que

    passaram, infelizmente, muito rpido, mas que abriram caminhos pelos quais

    continuaremos caminhando juntos.

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    Haver um ano em que haver um ms em que haver uma semana

    em que haver um dia em que haver uma hora

    em que haver um minuto em que haver

    um segundo

    e dentro do segundo

    haver o no-tempo sagrado

    da morte transfigurada.

    Clarice Lispector

    Wer den Ernst einer Melodie empfindet, was nimmt der wahr? Nichts, was sich

    durch Wiedergabe des Gehrten mitteilen liesse.1

    Wittgenstein

    1 Quem sente a seriedade de uma melodia, que percebe ele? Nada que se deixasse compartilhar atravs da reproduo do que se ouviu. (WITTGENSTEIN, 1990, p.546)

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    INTRODUO

    Aps mais de quinze anos atuando na rea de educao e pedagogia

    musical no Brasil e na Alemanha, foi impossvel deixar de constatar entre os

    estudantes das escolas de msica (tanto nas de nvel fundamental e mdio quanto

    nas de nvel superior) e mesmo entre os msicos profissionais, uma certa crise,

    crise observvel em vrios nveis, desde o humano at o artstico.

    Para compreender essa situao conveniente lembrar que o estudo

    acadmico e formal da msica historicamente bastante novo at o sculo XIX

    a msica era ou transmitida de pais para filhos ou ento dada apenas a

    determinadas pessoas, geralmente nas igrejas e nos palcios. O livre acesso da

    populao a ela, bem como a instituio de cursos universitrios para sua

    profissionalizao, so pois fatos extremamente recentes.

    Mesmo com uma histria to recente, a pedagogia musical tem se

    desenvolvido de forma impressionantemente rpida. Resta-nos, porm, analisar

    criticamente em que sentido se deu tal desenvolvimento. O primeiro fato que nos

    deveria chamar a ateno a nfase atualmente dada reproduo de obras de

    arte em detrimento da produo. Se at o sculo XIX a figura do instrumentista

    no se separava da figura do compositor, o mesmo no se d hoje: com a

    especializao, separaram-se ambos. A figura do compositor foi idealizada e

    romantizada: trataria-se de um dom divino, que a pessoa nasce com ele ou no

    (falcia que inibiu e inibe ainda milhares de alunos). Em funo disso, as escolas

    centraram seus esforos no na criao, mas no aprendizado da recriao ao

    instrumento (faz-se aulas hoje de piano, de violo, e com isso subentende-se

    que se estudar o repertrio para piano, o repertrio para violo).

    Aprende-se nas escolas de msica a interpretar as obras de Bach,

    Beethoven, Chopin e todos os outros compositores consagrados pela tradio

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    musical. A princpio isso no apresenta problema algum fundamental conhecer

    as obras maravilhosas que esses autores produziram. O problema que no se

    ensina a fazer o que eles fizeram criar; apenas se ensina a reproduzir o que eles

    fizeram. como se nas escolas se ensinasse a ler mas no a escrever.

    Isso no significa que se pretenda que todos os estudantes de msica se

    tornem compositores assim como no se pretende que quem aprende a

    escrever se transforme necessariamente num grande escritor o que no nos

    isenta obviamente da necessidade de aprender a expressar-nos por meio da

    escrita.

    Os primeiros tratados musicais com fins didticos datam do sculo XVIII,

    como o caso do famoso tratado de Carl Philipp Emanuel Bach (filho de Johann

    Sebastian Bach), Ensaio sobre a verdadeira arte de se tocar instrumentos de

    teclado (Versuch ber die wahre Art das Clavier zu spielen), de 1753. Os tratados,

    desde ento, foram se especializando cada vez mais em tentar aprimorar a

    tcnica do instrumentista. A maioria dos mtodos de ensino instrumental se guiam

    pelo critrio de eficincia: como aprender a tocar o instrumento x ou y melhor e

    mais rapidamente - como ironiza o compositor John Cage, hoje podemos ir

    rapidamente de um canto ao outro do planeta; o que temos que nos perguntar

    porm : queramos afinal ter ido para l? (CAGE,1985, p.12). A facilidade dos

    meios nos fez esquecer ou confundir os fins, sobre os quais precisamos sempre

    voltar a discutir.

    A diferenciao entre um criar e um tocar deve ser transposta: no h

    tocar sem criao, nem criao sem tocar. preciso voltar aos fundamentos do

    fazer em msica e resgatar o que o artstico da expresso musical. Nesse

    sentido, estaremos discutindo no a msica em si, mas as formas, os modos

    como nos relacionamos com ela. H uma essncia no fazer musical que no

    propriamente um produzir, mas um deixar aparecer. Essa diferena est

    implcita nos diferentes sentidos da tcnica, um dos principais conceitos a serem

    aqui tratados (no conceito vulgar de tcnica imperam as leis da causalidade:

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    atravs da tcnica meu intelecto controla o corpo para que este produza uma

    obra, finalidade da ao. Como pretendemos demonstrar, a experincia do

    fenmeno expressivo no se d de forma alguma assim).

    Para melhor compreender a expresso musical, veremos as relaes que

    se estabelecem entre corpo (falaremos em motricidade, compreendendo o corpo

    como movimento), ritmo (compreenso corporal das relaes espao-temporais-

    expressivas), expresso, tempo e conscincia.

    Em funo da natureza da pesquisa, o referencial terico que utilizaremos

    ser a fenomenologia, especialmente atravs de seus principais autores: Husserl,

    Heidegger e Merleau-Ponty (principalmente Merleau-Ponty, cujas pesquisas sobre

    a percepo so particularmente importantes para nossos fins). Guiando-nos por

    meio de alguns conceitos da fenomenologia como os de intencionalidade, corpo-

    prprio, esquema corporal, expresso e tempo vivido (citando apenas alguns

    exemplos) esperamos poder chegar aos fundamentos da ao musical.

    Isso no quer dizer, porm, que este trabalho se pretenda filosfico. Se

    dialoga com a filosofia, apenas para melhor compreender seu objeto de estudo.

    Apesar desta dissertao ser uma pesquisa direcionada primeiramente a

    musicistas (intrpretes, educadores, alunos de msica), torna-se de interesse

    geral uma vez que discute os fundamentos da ao humana.

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    Parte I Fenomenologia da experincia musical

    Captulo 1

    Do objeto musical

    Situao corriqueira numa aula de msica: o aluno toca uma determinada

    obra e o professor o censura, alegando que este no a compreendeu. Nos

    perguntamos: o que este compreender? O que se compreende da msica,

    quando dizemos que a compreendemos?

    Com estas perguntas nos situamos na questo da definio do objeto

    sonoro, questo ampla e delicada que nos leva a perguntas importantes da

    esttica musical, como por exemplo: sob quais critrios uma seqncia sonora

    passa a receber o estatuto de msica? O que qualifica um som como artstico?

    Trata-se de questes j muito discutidas, que no pretendemos abordar aqui (a

    no ser indiretamente).

    Constatemos, antes de mais nada, que qualquer som , em si, o que ele .

    Nem mais, nem menos. O som da gua corrente de um riacho no triste nem

    alegre: apenas . Mas nossa cultura outorgou a esse som uma srie de

    significados que nos remete a determinados padres emocionais, e qualquer som

    que se lhe assemelhe pode tambm nos remeter, mesmo que inconscientemente,

    a esses mesmos padres.

    Trata-se, portanto, de uma dificuldade considerar o som simplesmente em

    si mesmo dentro de um certo contexto cultural. Segundo John Cage, grande

    revolucionrio da msica, tal contexto teria afetado nossa percepo real do som,

    de forma que, dentro do sistema criado (referindo-se aqui msica ocidental), um

  • 10

    som deixara de ser um som para se tornar uma idia. Em seu estilo sempre

    mordaz e irnico, afirma que

    se um som tiver a desgraa de no ter um smbolo ou se ele parecer complexo demais, ejetado do sistema: um rudo ou no-musical. Os sons privilegiados que se salvam so arranjados em modos e escalas ou, hoje, em sries2 e se inicia um processo abstrato chamado composio. Isto , um compositor usa os sons para expressar uma idia ou um sentimento ou uma integrao de ambos. No caso de uma idia musical, dizem que os sons em si j no so importantes; o que conta a relao entre eles. Na verdade essas relaes so bem simples: um cnon como brincar de pegador. A fuga um brinquedo mais complicado; mas pode ser quebrada por um nico som: digamos, de uma sirene de bombeiro, ou de um apito de um barco que passa. O mximo que qualquer idia musical consegue mostrar quo inteligente foi o compositor que a teve; e o modo mais fcil de descobrir o que era a idia musical voc se colocar num tal estado de confuso que voc passe a pensar que um som no algo para se ouvir, mas sim, algo para se olhar (CAGE, 1985, p.97).

    Cage critica, e com toda a razo, a intelectualizao da experincia

    musical, e conclama, principalmente em outros textos, que a arte volte ao que lhe

    prprio, vida, e que voltemos a perceber os sons como eles so, destituindo-

    os de seu significados culturalmente agregados (o que mais difcil do que se

    possa imaginar).

    De toda sorte, ao falarmos em compreender uma msica ou uma

    seqncia sonora no podemos pensar em termos de d maior significa alegria,

    r menor significa tristeza, etc (o que no significa, claro, que no possam ser

    acrescentados a essa nota d outros fatores que, com eles sim, possamos falar

    numa alegria e numa tristeza). preciso, pois, distinguir o que o em-si sonoro do

    que atributo ou, usando a terminologia de Saussure, distinguir no signo sonoro

    o significante do significado. Conforme Jakobson,

    desde a Antigidade, essa conexo constituiu, para a cincia da linguagem, um eterno problema. O total esquecimento em que, entretanto, o haviam deixado os lingistas do passado recente, pode ser ilustrado pelos freqentes louvores dirigidos pretensa novidade da interpretao que Ferdinand de Saussure fez do signo, particularmente do signo verbal, como unidade indissolvel de dois constituintes o significante e o significado -, quando essa concepo, como

    2 Cage refere-se msica serial e ao dodecafonismo, sistemas criados no incio do sculo XX por Arnold Schnberg (durante certo perodo professor de Cage).

  • 11

    tambm a terminologia na qual se exprimia, fra inteiramente retomada da teoria dos esticos, a qual data de mil e duzentos anos atrs. Essa doutrina considerava o signo (smeion) como uma entidade constituda pela relao entre o significante (smainon) e o significado (smainomenon). O primeiro era definido como sensvel (aisthton) e o segundo como inteligvel (noton), ou ento, para utilizar um conceito mais familiar aos lingistas, traduzvel. Alm disso, a referncia aparecia claramente distinguida da significao pelo termo tynkhanon (JAKOBSON, 1995, p.98).

    Uma distino entre o sensvel e o inteligvel no , portanto, nem nova,

    nem restrita ao signo verbal. Ao utilizar, porm, tal nomenclatura no mbito

    musical (e isso j se tornou comum), estamos tratando a msica como linguagem.

    O que nos autoriza a isso? Fala-se em linguagem corporal, linguagem das cores,

    linguagem dos sinais etc. Em seu sentido mais amplo, a linguagem poderia ser

    vista como uma forma de comunicao e isso, sem dvida, a msica o faz,

    independentemente de seu grau de sistematizao e de estruturao.

    Os significados atribudos dentro dessa estruturao variam, claro,

    conforme a cultura - dificilmente um aborgene australiano ouviria na Nona

    Sinfonia uma ode humanidade -, o que nos remeteria velha discusso sobre a

    msica enquanto linguagem universal.

    De qualquer forma, preciso lembrar que linguagem no o mesmo que

    lngua; preciso distinguir entre as relaes intrnsecas dos significantes (no caso,

    a produo musical em si) e as possveis associaes a um sistema de

    referncias. Da mesma forma, preciso distinguir a significao intrnseca de uma

    seqncia musical da reflexo que ela possa vir a provocar (podemos, por

    exemplo, refletir sobre os efeitos que a msica produz em ns e formular

    verbalmente o que eles nos evocam: por exemplo, uma paisagem, uma atmosfera,

    uma imagem, um sentimento).

    Tal verbalizao , porm, secundria ao momento da percepo - o que

    no quer dizer que no seja necessria numa posterior anlise dessas

    percepes. Ela o que chamamos de uma representao. fundamental para a

    nossa discusso que se distinga a percepo original da percepo representada.

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    Mesmo concordando quanto ao carter pessoal, cultural e histrico da

    comunicao, podemos nos perguntar o porqu da associao de um sentimento

    ou de uma imagem a uma dada forma musical. Poderamos nos contentar com a

    explicao de que h sculos temas tristes so tratados, no sistema tonal3,

    preferencialmente no modo menor, e que por isso tendemos a associar o modo

    menor tristeza. Mas mesmo no sistema tonal (to codificado que j quase o

    poderamos tratar como a uma lngua) os mesmos acordes assumem inmeras

    conotaes e nuances diferenciadas, gerando uma complexidade que contradiz o

    aparente simplismo da explicao anterior, complexidade essa que se acentua ao

    tomarmos outros sistemas como referncia, como a msica atonal, a serial ou a

    msica eletrnica.

    Seja como for, a msica comunica. Comunica o qu? A abertura do signo

    musical plena: imagem acstica no corresponde um significado determinado.

    Algum poderia neste momento intervir e argumentar: mas geralmente h um

    contedo a ser transmitida pelo msico: se ele toca uma sonata de Mozart,

    reconheo os momentos afetuosos, os momentos trgicos, os momentos

    patticos, e numa conversa com o intrprete descubro que ele quis passar

    exatamente esses sentimentos, ou seja: houve uma mensagem, e ela foi

    compreendida.

    Correto. Realmente, um bom intrprete deve ter clareza em suas intenes

    musicais, atravs das quais exprime sua interpretao da obra. Porm, o que foi

    comunicado (no exemplo usado, a afetuosidade, a tragdia, o pattico) estava nos

    sons em si ou na inteno do intrprete?

    3 A tonalidade um princpio de estruturao musical que relaciona os signos musicais com um centro de convergncia denominado tnica trata-se de um sistema eminentemente ocidental, baseado na hierarquia entre os sons de uma escala e de uma tonalidade (a partir da renascena, privilegiam-se na msica ocidental as tonalidades maiores e menores).

  • 13

    Vejamos. O compositor faz na partitura diversas anotaes atravs das

    quais ele mostra ao intrprete como ele pensa e como ele deseja que aquela

    msica seja interpretada. Essas anotaes podem eventualmente ser mal

    compreendidas ou mal interpretadas. Se a questo de uma tal incompreenso

    da escrita musical residisse meramente na no obedincia s determinaes do

    compositor, poderamos supor que um computador faria uma interpretao

    perfeita da obra, j que executaria exatamente o que est na partitura.

    Comparemos por um momento um computador de ltima gerao, servido dos

    mais modernos e completos softwares de msica, a um msico.

    Fizemos a experincia (experincia informal e sem nenhum rigor cientfico,

    constando aqui, portanto, apenas a ttulo de ilustrao) de submeter uma platia

    audio de vrias msicas tocadas ora por um computador, ora por um msico,

    sendo que a platia no tinha acesso visual fonte sonora. Obviamente sabiam

    quando era um e quando era o outro devido diferena de timbre. Mas a nossa

    pergunta platia foi: o que vocs sentiram? Sem exceo, a msica no

    computador foi percebida como qualitativamente inferior msica feita pelo

    homem fria, impessoal, sem graa, chata, mecnica, sem emoo, quadrada

    foram apenas alguns dos termos usados para definir a msica computadorizada.

    Segundo os relatos, as pessoas no se sentiram tocadas pela msica vinda da

    mquina; reconheceram as obras, mas no houve uma vivncia da experincia

    musical, ocorrendo o contrrio com a execuo humana.

    Colocando a questo sob outro ngulo: podemos dizer que a ltima sonata

    de Beethoven, a Sonata para piano Opus 111, uma grande obra de arte; mas,

    executada por um computador, continua sendo uma grande obra de arte?

    Obviamente reconheceremos a obra e diremos: esta a Sonata Opus 111 de

    Beethoven, que uma grande obra de arte. Mas provavelmente no estaremos

    vivenciando essa grandeza atravs do computador. Ao afirmar isso no estamos

    condenando a tecnologia ao contrrio: que bom que ela existe! O que nos

    interessa aqui buscar a essncia do objeto sonoro, que, acreditamos, no se

  • 14

    encontra nas notas em si - motivo pelo qual um computador pode decodificar

    perfeitamente uma partitura mas que, ao ouvirmos, nos d a ntida impresso de

    que falta algo, algo essencial. Insistamos portanto: o que esse algo?

    Se olharmos do ponto de vista da preciso tcnica e da fidelidade ao texto,

    o computador perfeito, respeitando absolutamente cada valor e tocando cada

    nota exatamente no momento certo. E mesmo assim no nos convence

    musicalmente. No nos comunica o que gostaramos que tivesse comunicado.

    Poderamos perguntar: mas como no comunicou o que deveria ser

    comunicado, se a msica foi corretamente executada, nota por nota, e a obra foi

    perfeitamente reconhecida?

    De onde deduzimos que comunicao artstica se sobrepe outros tipos

    de comunicao e informao que no constam da partitura musical, mas que so

    to importantes quanto as notas ou talvez mesmo mais (poderamos, nesse

    sentido, fazer uma analogia prtica psicoteraputica, na qual a informao

    relevante no est necessariamente no que o paciente diz, mas muito mais no

    como diz, ou ainda: no que no diz).

    A prpria palavra interpretao nos ilumina esse fato: inter petras entre as

    pedras. na expressividade humana do gesto que une as notas que reside o

    artstico da msica: na abertura entre as notas, que se preenche em ato. esse

    ato que assegura a vivncia e a espontaneidade do fazer musical.

    Quando falamos em msica falamos em arte, e quando falamos em arte

    falamos em criao. A criatividade vulgarmente compreendida como inventar

    coisas novas em msica, o compositor considerado o representante por

    excelncia da capacidade criativa. Mas ser criativo no significa que todos

    devamos tornar-nos compositores nem escritores nem inventores. Trata-se

    simplesmente de uma forma de lidar com as coisas e consigo mesmo. No se

  • 15

    trata de produzir arte, mas de ser artstico. uma ao, no um produto. E

    sobre essa ao que pretendemos discutir neste trabalho.

    Comeamos perguntando pelo objeto sonoro. O objeto sonoro ,

    obviamente, o som. Seu estudo seria, conseqentemente, a acstica. Porm, para

    que esse som adquira um sentido (um sentido para mim, para o outro, um sentido

    at mesmo em relao aos outros sons), deve ter uma inteno, inteno

    expressa no para...

    Interessa-nos aqui esse som para a conscincia: como ambos se envolvem.

    por isso que no faremos esta discusso a partir da esttica, nem da acstica,

    nem da histria, nem da psicologia, mas a partir de uma fenomenologia da

    experincia musical. Queremos compreender o objeto sonoro na experincia que

    dele temos. Como percebo o som? Atravs do pensamento? Atravs de uma

    representao intelectual? Atravs do meu corpo?

    Uma vez que o prprio som decorrente do ritmo (o som produzido por

    vibraes e freqncias) e que s posso perceb-lo porque tenho um corpo,

    comearemos nossa discusso tratando, nos prximos captulos, exatamente

    desses dois elementos, bem como de suas relaes com o fenmeno sonoro.

  • 16

    Parte I Fenomenologia da experincia musical

    Captulo 2

    Ritmo e metro: espacializao da experincia musical

    Provavelmente seja o termo Ritmo um dos mais incompreendidos no mbito

    musical. Costuma ser entendido como uma espcie de pulsao, ou seja, como

    uma ordenao da msica em batidas ou pulsos - peridicos e regulares (o que

    caracteriza, na verdade, a diviso mtrica). Neste captulo, examinaremos mais

    detalhadamente essa diferena, bem como suas implicaes, muito mais srias e

    profundas do que possa parecer num primeiro momento. Vejamos primeiramente

    algumas definies de ritmo no Novo Dicionrio Aurlio da lngua portuguesa:

    ritmo . [Do gr. rhytms, 'movimento regrado e medido', pelo lat. rhytmu.] S. m. 1. Movimento ou rudo que se repete, no tempo, a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos: o ritmo das ondas, da respirao, da oscilao de um pndulo, do galope de um cavalo. 2. No curso de qualquer processo, variao que ocorre periodicamente de forma regular: o ritmo das mars, das fases da Lua, do ciclo menstrual. 3. Sucesso de movimentos ou situaes que, embora no se processem com regularidade absoluta, constituem um conjunto fluente e homogneo no tempo: o ritmo de um trabalho. 4. Nas artes, na literatura, no cinema, etc., a disposio ou o desenvolvimento harmonioso, no espao e/ou no tempo, de elementos expressivos e estticos, com alternncia de valores de diferente intensidade: o ritmo de uma escultura, de uma pea de teatro. 5. Arte Pot. Num verso ou num poema, a distribuio de sons de modo que estes se repitam a intervalos regulares, ou a espaos sensveis quanto durao e acentuao. 6. Ms. Agrupamento de valores de tempo combinados de maneira que marquem com regularidade uma sucesso de sons fortes e fracos, de maior ou menor durao, conferindo a cada trecho caractersticas especiais. 7. Ms. A marcao de tempo prpria de cada forma musical: ritmo de marcha, de valsa, de samba. 8. Ms. O conjunto de instrumentos de percusso e outros similares que marcam o ritmo (6) na msica popular; bateria. 9. Bras. O conjunto de ritmistas [v. ritmista (1 e 2)]. Ritmo circadiano. Biol. 1. Ritmo espontneo, prprio de cada espcie animal ou vegetal, a partir de certa fase evolutiva, observado em condies ambientais constantes, mas no influencivel por iluminao, e que se manifesta de acordo com o momento do dia, por variaes peridicas das funes biolgicas (respirao, circulao, digesto, secrees endcrinas, etc.); pode ser observado at mesmo em nvel celular. Ritmo de galope. Card. 1. Desdobramento da primeira bulha cardaca, de modo que, pela ausculta, se ouvem trs rudos cardacos, separados por

  • 17

    pausas; rudo de galope. Em ritmo de Braslia.

    preciso esclarecer primeiramente nessas definies por que idia

    original de ritmo enquanto movimento foram acrescentadas as idias de

    periodicidade e de regularidade, bem como esclarecer de que forma e sob quais

    parmetros esses termos devem ser compreendidos. O movimento regrado e

    medido do rhytms pode facilmente induzir o leitor a uma concepo simtrica de

    tempo e de espao, mas a possvel mensurabilidade destes no implica nem

    numa regularidade em termos de igualdade nem numa regularidade em termos de

    simetria. Segundo Lorenzo Mammi,

    ritmo uma palavra grega que deriva de reo, fluir. No seu primeiro e mais amplo significado, o ritmo portanto a maneira com que um evento flui no tempo. No h nesse termo nenhuma referncia necessria a regularidades peridicas ou a relaes matemticas entre intervalos. Todavia, o ritmo se torna mais interessante, para o pensamento grego de origem pitagrica ou platnica, na medida em que se descobre nele uma regularidade e uma proporo que o aproxime dos movimentos perptuos. A teoria rtmica dos gregos ser portanto um esforo contnuo para a regularizao e a matematizao das duraes. (...) Os latinos absorveram a teoria musical grega numa fase j avanada de matematizao, tanto que cometeram um erro de traduo revelador: interpretaram a palavra ritmos no como um derivado do verbo reo, fluir, mas como uma deformao do substantivo artmos, nmero, e verteram no latim numerus. A conseqncia foi uma mudana de perspectiva: para os gregos, os valores numricos eram algo que podia e devia ser extrado do fluir dos eventos, mas no era dado de antemo; para os latinos, ao contrrio, so rtmicas apenas aquelas duraes que j se apresentam como quantidades regulares, numricas. Todos os movimentos irregulares ficam com isso fora do campo do conhecimento (MAMMI, 1994, p.46).

    Esse fato de fundamental importncia para que possamos compreender a

    dificuldade existente em relao compreenso do ritmo, termo geralmente usado

    muito mais em sua concepo de regularidade (artmos) que de fluxo (reo). No

    caso da msica, a simetria perfeita entre a durao dos pulsos apenas aparente.

    Mesmo um elemento rtmico que se repita de forma aparentemente igual nunca

    exatamente igual. Como j foi apontado por Herklito (fragmento 91),

    em rio no se pode entrar duas vezes no mesmo, nem substncia mortal tocar duas vezes na mesma condio; mas pela intensidade e rapidez da mudana dispersa e de novo rene (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo), compe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se (HERKLITO, 1978, p.88).

  • 18

    No caso da msica, a iluso de simetria especialmente evidente na

    notao musical: escritos, todos os valores e duraes so aparentemente iguais

    entre si: semibreves, mnimas, colcheias etc. Uma srie de fatores intervm,

    porm, durante a execuo, diferenciando-os mesmo que imperceptivelmente.

    Uma igualao na prtica entre as duraes musicais consideradas

    teoricamente como iguais no nem possvel nem mesmo desejvel, pois as

    sutis diferenciaes, conscientes ou inconscientes, desejadas ou involuntrias,

    so na verdade responsveis por um incalculvel valor informativo e expressivo. A

    simetria perfeita entre as duraes musicais acarretaria em total redundncia e

    conseqente monotonia e empobrecimento do discurso musical. Todo discurso,

    seja ele oral ou musical, evita sistematicamente a repetio vazia de novas

    informaes (a no ser nos raros casos onde precisamente a falta de novas

    informaes a informao desejada, ou onde a repetio tem uma funo

    esttica por si, como no caso da msica minimalista oua-se Steve Reich, por

    exemplo).

    E realmente, durante sculos a msica ocidental foi regida pelos preceitos

    da retrica, da ars bene loquendi, tanto que falamos em retrica musical (o ponto

    de partida quase sempre a retrica de Aristteles, assim como de Ccero,

    Quintiliano, Bocio e outros). A retrica num discurso busca, entre outras coisas,

    meios para a obteno de um bom equilbrio entre informao e redundncia

    pois, assim como a falta de informaes pode incorrer em monotonia, o excesso

    pode acarretar confuso.

    A fim de garantir tal equilbrio, Mattheson, em sua obra Der vollkommene

    Capellmeister (O exmio mestre de capela), de 1739, uma das principais fontes

    sobre retrica musical, expe como componentes de um discurso o inventio (o

    contedo, as idias), a dispositio ou elaboratio (a organizao das idias), a

    decoratio (a ornamentao do discurso) e a pronuntiatio ou elocutio (a execuo, a

    interpretao do discurso). Em outras palavras, tambm se poderia dizer que

  • 19

    a retrica um conjunto de desvios suscetveis de autocorreo, isto , que modificam o nvel normal de redundncia da lngua, transgredindo regras, ou inventando outras novas. O desvio criado por um autor percebido pelo leitor graas a uma marca, e em seguida reduzido graas presena de um invariante. O conjunto dessas operaes, tanto as que se desenvolvem no produtor como as que tm lugar no consumidor, produz um efeito esttico especfico, que pode ser chamado ethos e que o verdadeiro objeto da comunicao artstica (DUBOIS, 1974, p.126).

    na sutil diferenciao das duraes e nfases do discurso que

    encontramos a expresso artstica em msica. O que e o como da comunicao

    se combinam num grande complexo informativo, no qual o como assume uma

    funo essencialmente expressiva e qualitativa (na verdade, o que e o como

    fundam-se mutuamente na expresso, como veremos).

    Ao falarmos em diferenciao das duraes estamos nos referindo a

    dilataes e contraes temporais: a expresso requer no discurso diferenciaes

    quantitativas - ora mais, ora menos tempo e qualitativas. nesse sentido que

    podemos falar num carter temporal do discurso.

    O desafio ltimo, tanto da identidade estrutural da funo narrativa quanto da exigncia da verdade de toda obra narrativa, o carter temporal da experincia humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa sempre um mundo temporal. Ou: o tempo torna-se tempo humano na medida em que est articulado de modo narrativo; em compensao, a narrativa significativa na medida em que esboa os traos da experincia temporal (RICOEUR, 1994, p.57).

    Repetimos: a narrativa significativa na medida em que esboa os traos

    da experincia temporal. Ricoeur nos fala em experincia temporal; o tempo

    experienciado, o tempo vivido (expresso to querida da fenomenologia). As

    variaes temporais (qualitativas e quantitativas) da narrativa no so mero

    ornamento, mas fazem parte integrante do seu contedo.

    Mas e quanto a esse tempo, que se vive: que tempo esse? o tempo do

    relgio, o tempo psicolgico ou um terceiro tempo, algo como um tempo em si?

    Podemos dizer que a msica se estende no tempo ou seria mais apropriado dizer

  • 20

    que, porque a msica se estende, h tempo? Perguntas delicadas, que vm

    entretendo h sculos filsofos e cientistas.

    Comecemos considerando a msica no tempo a msica no deixa de ser

    uma narrativa, e, assim como esta, se estende no tempo. por isso que podemos

    dizer que uma msica dura sete minutos enquanto outra dura quarenta, sendo a

    primeira relativamente curta e a segunda relativamente longa, assim como se

    pode dizer o mesmo de um discurso ou de uma pea teatral ou mesmo de um

    filme. Nesses casos, h um tempo concreto de enunciao, um tempo mensurvel

    - o tempo do relgio; o enunciador precisou de um tempo x para transmitir a

    mensagem e o observador/ouvinte precisou desse mesmo tempo para receb-la.

    O mesmo no se pode dizer do tempo psicolgico, onde obviamente os

    sete minutos de uma pea no so igualmente longos para dois ou mais

    ouvintes/observadores: uns diro que o tempo passou rpido, outros diro que o

    tempo demorou a passar. Sobre isso a relatividade e a psicologia j nos deram

    numerosas anlises.

    A questo que nos interessa aqui no simplesmente a constatao

    (bvia) da relatividade da percepo temporal, mas sim compreender como o

    fenmeno temporal e o fenmeno perceptivo se relacionam. Ou ainda:

    analisar o tempo no tirar as conseqncias de uma concepo preestabelecida da subjetividade; ter acesso, atravs do tempo, sua estrutura concreta (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 550).

    Ao tentarmos compreender o tempo na msica, precisaremos distinguir

    entre dois termos: ritmo e metro, o metro enquanto medida objetiva e mensurvel

    do tempo, o tempo do relgio (Kronos), e o ritmo enquanto movimento expressivo

    no espao originando um tempo prprio, comumente denominado subjetivo, mas

    que, cremos, tambm objetivo, e no psicolgico, sendo sua objetividade

    baseada, porm, em outro tempo que no o cronolgico um tempo ao qual

    poderamos talvez chamar de Ain.

  • 21

    Nome prprio, Ain , na mitologia grega, filho de Kronos e Filira. Enquanto

    nome comum, ain pode assumir dois sentidos: o primeiro o de tempo sem

    idade, eternidade, que posteriormente se associou ao aevum latino; o segundo

    o de medula espinhal, substncia vital, esperma, suor. A entidade alegrica

    pode, segundo Jos Cavalcante de Souza em sua traduo do termo tempo nos

    fragmentos de Herklito (1978, p.84), ser compreendida nos dois sentidos. Porm

    no nos interessa tentar batizar cada um desses tempos com algum nome, de

    forma que no nos utilizaremos de nenhuma espcie de contraposio entre

    Kronos e Ain, contraposio que envolveria o risco de uma simplificao

    perigosa. Mais til, nos parece, partir de nossas experincias cotidianas do

    tempo, talvez comeando pelo tempo que nos mais costumeiro: o tempo do

    relgio.

    Que experienciamos ns do relgio sobre o tempo? O tempo algo no qual um ponto-agora pode ser fixado, de tal forma que sempre h dois pontos temporais, um antes, outro depois. Nisso no esto distinguidos no tempo um ponto de agora do outro. Ele enquanto agora o possvel antes de um depois, enquanto depois o depois de um antes. (...) Medida nos d o de-quando-at-quando. Um relgio mostra o tempo agora so nove horas; trinta minutos desde que aquilo ocorreu. Em trs horas ser meio-dia. Porm o tempo agora, no qual olho para o relgio: o que esse agora? (...) Disponho eu sobre o agora? Sou eu o agora? qualquer outro o agora? Ento seria o tempo eu mesmo, e qualquer outro seria o tempo. (...) Sou eu o tempo, ou apenas aquele que o diz? (HEIDEGGER, 1995, p.9).

    Em todas essas perguntas aparece um eu: o tempo para mim. Como

    bem observou Merleau-Ponty, se a metfora de Herklito sobre o rio funcionou at

    hoje, foi porque sempre colocamos um observador margem desse rio

    testemunhando seu curso. O tempo supe uma viso sobre o tempo; ele no

    um processo real, nem uma sucesso efetiva que eu me limitaria a registrar; ele

    nasce de minha relao com as coisas (MERLEAU-PONTY, 1994, pg.551).

    A sucesso efetiva que eu me limitaria a registrar refere-se percepo do

    tempo relacionada mudana: sei que passou o tempo porque o sol no est

    mais no mesmo lugar; atravs do movimento e da mudana que tenho a

  • 22

    percepo da passagem e, conseqentemente, do tempo. Quando Aristteles

    relacionou tempo com movimento, porm, no escreveu que o tempo era o

    movimento; ele escreveu que o tempo era uma das determinaes essenciais do

    movimento, isto , sua medida. Se o mesmo movimento acontece com duraes

    diferentes, simplesmente ele no mais o mesmo movimento (CASTORIADIS,

    1992, p.268). No pode ser o mesmo movimento, pois cada movimento envolve

    outra relao, outra temporalidade, outra expresso.

    A expresso se d no movimento poderamos talvez at dizer: ela o

    movimento. Compreender o movimento ter acesso s nossas relaes

    espaciais, compreender nossa vida como espacialidade expressiva. A prpria

    vida, segundo Mrio de Andrade,

    se manifesta pelo movimento. O homem para compreender o movimento o organizou. O organizou de duas maneiras: uma abstrata consciente a que a gente d o nome de tempo (minutos, horas, dias, semanas, etc.) e outra expressiva subconsciente que tem o nome de ritmo. O tempo a organizao abstrata do movimento. O ritmo a organizao expressiva do movimento (ANDRADE, 1983, p.78).

    No trecho acima, Mrio de Andrade diferencia ritmo de tempo, este ltimo

    subentendido por ele como metro, como diviso regular, peridica, simtrica,

    cronolgica. O metro define uma quantidade, um nmero. Vou de uma nota

    outra, por exemplo, a cada segundo, ou a cada meio segundo. J o ritmo implica

    em que eu saiba como ir de uma nota outra: com que tenso, com que carter,

    com que intensidade (com que intencionalidade!), e com que durao, pois, por

    motivos expressivos, algumas notas precisam de mais tempo que outras (em

    msica, o termo tcnico para essa flutuao do tempo rubato, que, em italiano,

    significa roubado: rouba-se uma certa durao do tempo provocando uma

    acelerao e conseqente intensificao e compensa-se depois desacelerando,

    devolvendo o tempo roubado. O termo rubato caracterizou-se como tal durante o

    sculo XIX, mas na prtica existe, certamente, desde sempre no perodo

    barroco, por exemplo, era denominado aggica).

  • 23

    justamente no ir de uma nota outra que reside o grande problema

    musical, e no no trabalho braal do produzir notas. No caso do piano, mesmo

    um beb tem fora suficiente para abaixar as teclas. A dificuldade musical no se

    encontra no baixar as teclas nem nas notas isoladas, mas sim entre as notas, na

    relao de uma para com as outras (veremos mais detalhadamente no captulo 4

    desta dissertao a questo da relao entre o todo e as partes, tratada por

    Husserl na sua Terceira Investigao Lgica - Sobre a teoria do todo e das partes

    -, onde ele explicita seu conceito de fundao, no qual uma parte est fundada na

    outra, havendo uma no-independncia entre as partes, qual ele chama de

    relao de fundamentao ou relao de enlace necessrio).

    no ir de uma nota outra - subentende-se nesse ir um deslocamento

    espacial e temporal - que observamos o movimento. Alis, importante que

    ampliemos nosso conceito de movimento, no considerando como tal apenas o

    deslocamento fsico; qualquer inteno expressiva j realiza em si um movimento.

    Podemos, portanto, dizer que a expressividade em msica no se encontra nas

    notas isoladas, mas no movimento que as une. nesse sentido que podemos

    falar numa espacializao da experincia musical.

    Na verdade, tal espacializao j se encontra explcita no prprio

    movimento de uma onda sonora:

    o som o produto de uma seqncia rapidssima (e geralmente imperceptvel) de impulses e repousos (que se representam pela ascenso da onda) e de quedas cclicas desses impulsos, seguidas de sua reiterao. A onda sonora, vista como um microcosmo, contm sempre a partida e a contrapartida do movimento num campo praticamente sincrnico (j que o ataque e o refluxo sucessivos da onda so a prpria densificao de um certo padro do movimento, que se d a ouvir atravs das camadas de ar). No a matria do ar que caminha levando o som, mas sim um sinal de movimento que passa atravs da matria, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, o seu desenho (WISNIK, 1993, p.15).

    O som, enquanto sinal de movimento propagando-se no ar, pode assim ser

    tambm compreendido entre os fenmenos espaciais (muitos gostam at mesmo

    de ver, metafrica e poeticamente, o som como fruto da dana: a dana da

  • 24

    matria, o movimento gerando a msica). E, por mais parecidos que sejam esses

    movimentos de onda, nunca so exatamente iguais: mesmo que vrios

    instrumentos toquem uma mesma nota l, cada uma apresentar diferenas (s

    vezes sutis, s vezes nada sutis) entre si.

    O estudo da acstica nos mostra que justamente na impreciso de uma

    onda sonora que residem seu carter, sua cor, seu timbre; os sinais sonoros no

    so simples e unidimensionais, mas complexos e sobrepostos. As diferentes

    freqncias se alternam e se misturam, freqncias que no escutamos como tais,

    mas cujo produto reconhecemos enquanto timbre. Os sons

    entram em dilogo e exprimem semelhanas e diferenas na medida em que pe em jogo a complexidade da onda sonora. o dilogo dessas complexidades que engendra as msicas (Idem, Ibidem, p.23).

    A escrita musical simplifica por razes de praticidade a real complexidade

    da msica: uma notao absolutamente precisa, que pudesse refletir fielmente

    todas as sutilezas rtmicas e expressivas de uma msica, seria praticamente

    impossvel de se escrever e mais impossvel ainda de se ler. Tambm em funo

    da liberdade do intrprete feita tal simplificao, pois justamente nessa

    complexidade de assimetrias e imperfeies que se expressa o pessoal, o

    artstico individual e a espontaneidade do momento.

    Encontramos j na antiga Babilnia tentativas de registrar de forma

    permanente a experincia musical, tentativas que foram sendo aperfeioadas

    pelos hebreus, pelos gregos e pelos romanos. Mas como transmitir atravs de

    smbolos num papel uma experincia to complexa e rica como a informao

    musical? Pois uma informao musical envolve, como estamos vendo, um

    complexo informativo muito maior que a simples combinao altura/

    durao/intensidade.

    Uma significativa tentativa de sistematizao da escrita musical foi feita na

    Idade Mdia pelo Papa Gregrio, entre os anos 590 e 604, sistematizao que

  • 25

    teve o intuito de unificar a liturgia catlica, dando origem ao que hoje conhecemos

    como canto gregoriano. Nele a notao se d mediante neumas (em grego, sinal,

    gesto), que remontam quironomia e aos signos da prosdia grega (esses signos

    mostravam combinaes de duraes maiores [--] e menores [u]; as combinaes

    mais importantes eram: iambos: u -- ; trochaeos: -- u ; anapaest: u u -- ; dactylos:

    -- u u ; spondeos: -- -- ; baccheos: u -- -- ; creticos: -- u -- ; ionicos: u u -- -- ;

    choriambos: -- u u -- ).

    Nesse tipo de notao, a diferenciao e a combinao entre duraes

    curtas e longas era apenas aparentemente um sistema restrito de possibilidades;

    no nos esqueamos que, em primeiro lugar, no havia uma definio exata de

    quo longo era o som longo, nem de quo curto era o som curto; em segundo

    lugar, a msica era sempre elaborada sobre um texto, de forma que era

    inevitavelmente adaptada s necessidades declamatrias do cantor ou do orador.

    Essas necessidades podiam ser de cunho tcnico (respirao), estrutural

    (pontuao e pausas para melhor compreenso do texto), expressivas (nfases

    interpretativas) ou mesmo acidentais.

    O primeiro instrumento humano foi sem dvida alguma a voz; canto e fala

    provavelmente no se encontravam separados em sua origem (entre as

    conjecturas sobre a origem das lnguas esto as onomatopias, as imitaes dos

    sons da natureza). Seja qual for a origem, o fato que as lnguas vo muito alm

    das imitaes, o que no as desprende dos sons e melodias naturais, pois no h

    lngua que no contenha em si uma melodia ou uma mnima entonao que seja.

    Atravs dela reconhecemos expresses e sentimentos, reconhecemos a

    procedncia da pessoa pelo seu sotaque, reconhecemos estados conscientes e

    inconscientes da pessoa que fala (geralmente na melodia da voz que, dizemos,

    as pessoas se traem e revelam seus verdadeiros sentimentos).

    Joachim Quantz, um dos maiores tratadistas e tericos musicais do perodo

    barroco, fez importantes comparaes entre a arte musical e a arte da

  • 26

    declamao em seu tratado Versuch einer Anweisung, die Flte traversire zu

    spielen (Ensaio de um mtodo para se tocar a flauta transversa), de 1752:

    a execuo musical pode ser comparada ao discurso de um orador. Ambos, o orador e o msico, tm o mesmo objetivo: conquistar os coraes, excitar ou acalmar as paixes e transportar o ouvinte ora em um, ora em outro afeto. para os dois de grande utilidade ter conhecimento sobre os procedimentos um do outro. Exige-se do orador que ele tenha uma voz forte e clara, e uma dico ntida, precisa e pura; que ele no confunda nem engula letras; que ele tenha uma agradvel variedade na voz e na pronncia do idioma; que ele evite monotonia no discurso; de preferncia que o som das slabas e das palavras seja ora forte e ora suave, ora rpido e ora lento; que eleve sua voz nas palavras que exijam maior intensidade e faa o contrrio nas outras; que ele expresse cada afeto com outro timbre; que ele saiba diferenciar de forma apropriada o tom do seu discurso dependendo do local, dos ouvintes e do contedo do discurso, seja ele um discurso fnebre, festivo, engraado ou qualquer outro; e, finalmente, que ele assuma exteriormente uma boa postura (QUANTZ citado por BADURA-SKODA, 1990, P.136).

    Em todos os conselhos de Quantz, um elemento em comum aparece: a

    mudana. O empenho total em evitar a repetio redundante, a repetio bvia,

    ou, mesmo em no se tratando de uma repetio, em evitar a todo custo uma

    previsibilidade no discurso. A qualidade de cada tempo deve ser diferenciada,

    vivenciada de forma nica, cada momento inscrevendo seu prprio tempo no

    tempo, expresso de um ser no tempo, expresso que, como veremos, o prprio

    tempo (captulo 5, Expresso e Temporalidade).

    Nossa percepo de durao est intimamente ligada ao movimento e

    mudana. Se o tempo cronolgico tem suas relaes estruturadas em movimentos

    invariveis e determinados, os movimentos expressivos justamente por serem

    expressivos necessitam de tempos variveis, no apenas na durao (durao

    no sentido quantitativo) como tambm na qualidade, na intensidade desses

    diversos tempos. Pois a relao do movimento expressivo essencialmente com

    o ser, no com o relgio. O movimento expressivo pode at submeter-se a uma

    mtrica musical, aparentando uma coincidncia entre metro e ritmo, mas so

    sempre diferentes.

  • 27

    Alis, importante observar que o rigor da mtrica musical no inibe de

    forma alguma a liberdade rtmica, muito pelo contrrio: graas imposio de

    uma estrutura regular que a mudana pode ser reconhecida enquanto mudana e

    que o ethos pode ser reconhecido enquanto ethos.

    A liberdade e a impreciso (espontaneidade na variao dos movimentos)

    do ritmo no devem de forma alguma induzir-nos a uma idia de caos; por mais

    paradoxal que parea, quanto maior a limitao, maior a liberdade.

    Um caso verdico do meio musical (que acabou se transformando numa

    anedota, mas que nos altamente instrutivo), o relato do compositor norte-

    americano John Cage, que fala do episdio no qual uma aluna lhe apareceu certo

    dia querendo aprender a compor. Como primeira lio, pediu ento a ela que

    compusesse uma msica utilizando apenas uma nota. Uma semana depois ela

    retornou sem ter feito a tarefa, alegando que apenas uma nota era demasiado

    pouco material para uma composio. Cage respondeu-lhe que, sendo assim,

    seria melhor que ela desistisse, pois se no conseguira compor com uma nota,

    como pretendia compor com doze (CAGE, 1985, p.145)?

    A limitao que a diviso mtrica impe ao ritmo apenas aparente. Sua

    presena impede a instabilidade determinando regras, que o ritmo ento

    infringe, infrao que percebida como mudana expressiva. Na verdade no h

    regras nem infraes, apenas um sistema de equilbrio entre estrutura e liberdade,

    entre disciplina e espontaneidade.

    Outro exemplo da relao entre estrutura e liberdade encontra-se na

    cerimnia do ch japonesa: trata-se de uma cerimnia com regras muito

    precisamente definidas, to definidas que aparentemente no deixam margem

    alguma espontaneidade. Joseph Campbell, perito em mitologias comparadas,

    escreve a esse respeito:

  • 28

    pois assim como a arte imita a ao da natureza, assim tambm a cerimnia do ch. A natureza gera espontaneidade, mas ao mesmo tempo tambm ordem. A natureza no , em primeira linha, nenhum mero protoplasma. E quanto mais complexa a ordem, tanto mais abrangente e forte pode vir luz a espontaneidade. A cerimnia mestra do ch , portanto, a maestria no manuseio da liberdade (impulso prprio) no campo de relaes de uma cultura altamente complexa, rgida e com regras claras, na qual, por tudo que a um sucede, se deveria sentir apenas gratido, to logo se esteja disposto a viver como ser humano (CAMPBELL, 1996, p.578).

    Entre as mil folhas de uma rvore no encontramos duas iguais, por mais

    parecidas que sejam; entre as milhares de formigas de um formigueiro no

    encontramos duas iguais, por mais iguais que paream. Nossas duas orelhas no

    so iguais nem totalmente simtricas, o mesmo ocorrendo com nossos braos,

    nossas pernas, nossos olhos.

    Seguindo essa lgica, constatamos que a diviso mtrica exige o

    impossvel: exige que duas notas de mesma durao tenham realmente a mesma

    durao. Tambm os professores de msica exigem isso veementemente de seus

    alunos, obrigando-os para tanto a horas interminveis de exerccios e treinos. No

    que a insistncia com o senso mtrico esteja errada! Mas trata-se simplesmente

    de um artifcio pedaggico a fim de que o aluno tenha uma conscincia muito clara

    sobre a estrutura em que se encontra, exatamente para que possa ento mud-la,

    conforme suas necessidades expressivas (a liberdade rtmica pressupe uma

    conscincia mtrica).

    Dependendo do estilo musical, seja em msica erudita (uma obra

    renascentista ou barroca, clssica ou romntica, impressionista ou expressionista),

    seja em msica popular (uma obra de jazz ou bossa nova, uma cano folclrica

    ou rock), cada um desses estilos pertence a uma tradio que define parmetros e

    limites para a liberdade rtmica. O que no quer dizer que tais parmetros sejam

    rgidos ou definitivos! Infelizmente, vrios mtodos oferecem atualmente

    receiturios perigosamente simplificados e cannicos para a interpretao dos

    diversos estilos (Bach se toca assim, Mozart assado). Atravs de tais

    ensinamentos, muitas vezes os alunos so levados a idias errneas, como por

  • 29

    exemplo: que o estilo romntico permite uma flexibilidade rtmica maior que o

    estilo barroco o que no correto! Trabalha-se com clichs, perigosos para a

    compreenso musical, levando freqentemente os alunos a idias estereotipadas

    sobre os diferentes estilos e fazendo com que se atenham a receitas de como

    tocar, quando o processo deveria ser muito mais de pesquisa diferenciada para

    cada obra. No se pode dizer Bach se toca assim; cada obra de Bach tem

    peculiaridades muito prprias que obedecem a relaes internas, constituindo

    assim um organismo nico.

    Seria ento desnecessrio o estudo da histria da msica? De forma

    alguma! fundamental que se conhea a fundo o estilo de cada poca, bem como

    os costumes, a cultura, a biografia do compositor, as artes contemporneas a ele -

    a literatura, a pintura, o teatro, a dana etc. Mas uma iluso crer que tais

    conhecimentos nos faro entender uma determinada obra. como estudar o

    comportamento de um brasileiro e achar que se conhece a partir da o

    comportamento de todos os brasileiros, pelo simples fato de que vivem no mesmo

    pas e na mesma poca.

    Nesse sentido, a fenomenologia prestou-nos um enorme favor ao

    apresentar como mtodo o no se contentar nunca com os conhecimentos

    descobertos e guardados do passado: a compreenso deve ser sempre nova e

    atual. Existe uma histria, porm ela sempre tem que comear de novo. A

    fenomenologia no pode ter seguidores porque preciso sempre chegar a novas

    visualizaes, a novas anlises do fenmeno; o fenmeno no pode ser

    conservado, ele tem que ser sempre revisto, sempre recriado. A literatura

    fenomenolgica

    somente pode ter um carter de exemplificao e de ilustrao do mtodo fenomenolgico; falar de um acervo de conhecimentos fenomenolgicos to absurdo como dizer que o conhecimento das letras do alfabeto significa saber ler (GREUEL, 1996, p.12).

  • 30

    Nosso contato com a coisa deve ser um contato com a coisa, no com a

    idia da coisa (da a insistncia fenomenolgica num retorno s coisas mesmas).

    Alis, a palavra contato uma palavra muito interessante para os propsitos deste

    trabalho, pois contm a idia do sentir enquanto percepo tctil: com tato. No

    se trata, portanto, de uma tentativa de compreenso mental, representacional do

    fenmeno, mas antes de uma intuio (ou, melhor, compreenso) fsica, corprea,

    motriz. preciso transcender o senso comum, ou, como Husserl costumava dizer,

    transcender a atitude natural em relao s coisas. De acordo com Heidegger,

    esse modo de pensar, que h muito se tornou corrente, antecipa-se a toda a experincia imediata do ente. A antecipao veda a meditao sobre o ser do ente, de que cada vez se trata. assim que os conceitos dominantes de coisa nos barram o caminho. (...) Mantendo afastadas as antecipaes e os atropelos desse modo de pensar, deixar a coisa, por exemplo, repousar no seu ser-coisa. Que haver de mais fcil do que deixar o ente ser o ente que ? Ou com esta tarefa no estaremos perante o mais difcil, sobretudo se um tal projeto deixar ser o ente como ele representar exatamente o contrrio da indiferena que vira as costas ao ente a favor de um conceito de ser que no foi posto prova? Devemos voltar-nos para o ente, pens-lo em si mesmo, no seu ser, mas, ao mesmo tempo, deix-lo repousar em si mesmo, na sua essncia. (...) O que h de mais discreto, a coisa, o que mais obstinadamente escapa ao pensar. (...) necessrio que caiam primeiro as barreiras do que bvio e que os ilusrios conceitos habituais sejam postos de lado. (...) Mas a obra alguma vez acessvel em si? Para tal se conseguir, seria preciso retirar a obra de todas as relaes com aquilo que outro que no ela, a fim de a deixar repousar por si prpria em si mesma. Mas isso que visa j o mais autntico intento do artista. Atravs dele, a obra deve ser libertada para o puro estar-em-si-mesma. Justamente, na grande arte, e s ela est aqui em questo, o artista permanece algo de indiferente em relao obra, quase como um acesso para o surgimento da obra, acesso que a si prprio se anula na criao (HEIDEGGER, 1991, p.23 e 31).

    .

    Sobre a questo do artista permanecer algo de indiferente em relao

    obra, a que se refere Heidegger no texto acima, falaremos posteriormente (no se

    trata de uma indiferena gerada pela passividade, mas de uma ao que visa a

    no-ao: um deixar acontecer).

    Que caiam as barreiras do bvio. Como no tratar como bvio aquilo que

    nos sucede continuamente? No bvio que o sol se ponha diariamente? Como

    evitar que a presena do parceiro num casamento de vinte anos no se

  • 31

    transforme numa presena bvia? Como fazer para que as repeties no

    amorteam nossa capacidade de percepo?

    Ao deixar que as coisas repousem nelas mesmas no estamos nos

    rendendo ao bvio nem tautologia (onde a=a), mas efetuando uma reduo do

    objeto, reduo aqui pensada nos moldes fenomenolgicos de acordo com

    Husserl (vide captulo 5)).

    Um dos primeiros autores a sugerir uma espcie de reduo no mbito

    musical foi Edward Hanslick, em seu livro Do belo musical, de 1854:

    as idias expressas pelo compositor so, antes de mais nada, puramente musicais. sua fantasia, apresenta-se uma bela melodia determinada. Esta no deve ser nada alm dela mesma (HANSLICK, 1989, p.146).

    Hanslick nos mostra assim uma viso praticamente fenomenolgica da

    msica. Lembremos que a poca desse escrito ainda a poca dos grandes

    arroubos do alto romantismo, sendo portanto compreensvel o desejo do autor de

    enxugar a msica dos excessos e do sentimentalismo, bem como dos clichs

    musicais do tipo tonalidades menores so tristes, tonalidades maiores so

    alegres, escalas cromticas descendentes representam a dor, ritmos que

    lembrem o toque do clarim so triunfais; antes de qualquer associao, seja uma

    associao cultural, seja uma associao com uma tradio, sons so sons.

    Pode parecer natural, principalmente aps tantas audies, o tema da

    Quinta Sinfonia de Beethoven: sol sol sol mi bemol. To natural que j nem

    nos perguntamos como devem soar essas quatro notas, ou mesmo se poderiam

    soar diferente. No nos fazemos perguntas tais como: em que diferem as trs

    notas sol?; com que intensidade devo tocar cada uma dessas notas?; existe uma

    hierarquia de intensidade entre elas que direcione o fraseado?; qual o gesto mais

    apropriado para dar-lhes o carter apropriado?; qual a velocidade apropriada para

    que a frase soe dramtica?; e se for feito em outras velocidades, como fica? A

  • 32

    tendncia energtica do tema aumenta ou diminui em direo ao mi bemol?;

    acelera ou desacelera?

    Perguntas como essas e muitas outras ampliam (ou amplificam, como diria

    C. G. Jung) as perspectivas e possibilidades de interpretao em relao a algo

    to simples como um tema de quatro notas. O tema adquire uma profundidade e

    uma pluridimensionalidade antes no cogitada. Criamos um dilogo com o tema:

    fazemos perguntas, propomos alternativas e novas possibilidades, o olhamos de

    baixo, de cima e dos lados, experimentamos, inventamos. Aps tal processo

    desenvolvemos com o tema uma familiaridade que antes no tnhamos,

    familiaridade que nos permite optar por uma interpretao com conhecimento de

    causa, e no porque foi a nica possibilidade que nos ocorreu, muito menos por

    estarmos acostumados a ouvir a msica desta ou daquela forma. Desenvolvemos

    assim, de forma lenta e progressiva, uma compreenso das relaes expressivas,

    temporais e motrizes que envolvem a obra e sua execuo, relaes sempre

    abertas e flexveis, natureza de sua liberdade.

    No nos basta, porm, afirmar simplesmente que o ritmo tem uma enorme

    liberdade de movimento atravs do qual se dissocia do metro: essa liberdade deve

    ser conquistada e merecida; devemos saber usar a liberdade sem abusar dela.

    Esse o grande diferencial de uma interpretao profissional e madura de uma

    interpretao aleatria ou amadora: a compreenso e a vivncia da relao entre

    expresso e movimento.

    Por que falamos em compreenso e no em controle, como estamos

    acostumados dos livros de tcnica instrumental? Como veremos no captulo 3

    (Ritmo e Motricidade), controlar o movimento no significa que nossos

    movimentos se do perante ordens e comandos mentais, mas sim que h uma

    intencionalidade e uma pr-intencionalidade que coordenam, harmnica e

    organicamente, esses movimentos. Ao tocar h, antes e durante a execuo, uma

  • 33

    inteno musical que guia os movimentos; a interpretao est na relao de

    mtua fundao entre gesto e inteno musical.

    Convm relembrar aqui mais uma vez a etimologia da palavra

    interpretao: inter petras entre as pedras. A msica no est nas notas, mas

    entre as notas. Est no espao entre elas, no vazio, campo de possibilidades,

    nada do qual emerge e se cria o ser.

    Mas como devemos compreender esse vazio, esse nada? No ensaio

    Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia, Marilena Chau fala do Nada como uma

    presena habitada por uma ausncia que no cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual no poderia vir a ser (CHAU, 2002, p.156).

    Ou ainda Sartre, em O ser e o nada:

    no movimento de interiorizao que atravessa todo o ser que o ser surge e se organiza como mundo, sem que haja prioridade do movimento sobre o mundo ou do mundo sobre o movimento. Mas esta apario do si-mesmo para alm do mundo, quer dizer, alm da totalidade do real, uma emergncia da realidade humana no nada. somente no nada que pode ser transcendido o ser (SARTRE, 1998, p.59).

    Causa-nos uma certa confuso tentar pensar a realidade desse vazio - se

    que um vazio. Seria o vazio um espao sem nada dentro, pronto para ser

    ocupado por objetos fsicos? Esbarramos aqui no problema da materialidade do

    espao-tempo. Em relao a isso, Einstein

    quis mostrar que o espao-tempo no necessariamente algo a que possamos atribuir uma existncia separada e independente dos objetos da realidade fsica. Objetos fsicos no esto no espao. Estes objetos esto espacialmente estendidos. Assim, o conceito de espao vazio perde seu significado (EINSTEIN, 2000, p.7).

    Tambm Heidegger pergunta pelo espao da presena: que lugar esse

    do ser-a (Dasein)? o a um espao real, material, ou apenas uma distenso da

  • 34

    alma, com diria Agostinho? Ou o a define antes um tempo, um ser-a-no-tempo,

    nesse tempo e no noutro?

    O ser-a (Dasein), compreendido em suas mximas possibilidades de ser, o tempo mesmo, no no tempo (HEIDEGGER, 1995, p.25).

    O prprio Freud se ocupou desse problema numa pequena nota escrita

    em 22 de agosto de 1938 (um ano antes de sua morte), ele cogita:

    a espacialidade poderia ser a projeo da extenso do aparelho psquico. Nenhuma outra derivao provvel. Em lugar do a priori kantiano, as condies de nosso aparelho psquico. A psiqu extensa, mas disso nada sabe (FREUD, 1996, p.3432).

    Mas por que estamos discutindo a questo da espacialidade na msica?

    Porque queremos chegar a uma compreenso mais ampla do movimento, da

    motricidade, espontaneamente organizados intencionalmente. Quando um

    ouvinte se diz emocionado pela msica, geralmente ele est emocionado no pela

    msica em si, mas pela intencionalidade do intrprete, que se faz ouvir junto a

    cada som. No inter petras, nesse vazio entre as notas, o que liga uma nota

    outra a inteno do intrprete (que pode ou no estar de acordo com a inteno

    do compositor mas isso outro problema). Essa inteno ato, e o ato se

    atualiza atravs do corpo atravs do movimento. O movimento

    constitui o fator que a msica tem em comum com os estados sentimentais e aos quais ela pode dar forma, criativamente, em milhares de gradaes e contrastes. O conceito de movimento tem sido, at aqui, negligenciado de modo surpreendente nos estudos sobre a essncia e o efeito da msica; este conceito afigura-se-nos como o mais importante e o mais produtivo (HANSLICK, 1989, p.38).

    Nos dicionrios o termo movimento vem sempre ligado idia de mudana,

    de deslocamento no espao; mas, como afirmamos anteriormente, o movimento j

    se inicia na inteno, no se remetendo, portanto, ao princpio de causalidade (no

    qual o movimento seria o efeito de uma causa, de uma inteno). O que significa

    que estamos sempre em movimento, sempre num agir.

  • 35

    Mas poderemos denominar toda ao como ato? Heidegger define ato a

    partir do conceito de intencionalidade, remetendo-nos a Husserl:

    aos comportamentos da vida designa-se tambm atos: percepes, juzos, amor, dio... Que quer dizer aqui ato? No algo como trabalho, processo ou alguma outra fora, mas o significado de ato subentende simplesmente relao intencional (HEIDEGGER, 1988, p.47).

    nessa relao intencional que gesto e msica se fundam mutuamente, e

    que chamamos aqui de expresso. A expresso no se encontra, portanto

    (insistimos), nas notas, mas sim no movimento, que uma ao espacialmente

    estendida. Essa ao no est no tempo, ela mesma o tempo, instituindo um

    tempo prprio, um tempo interno e orgnico (Ain), diverso do tempo cronolgico.

    Essa sensao temporal a qualidade mesma do movimento, e caracteriza-se

    como ritmo.

    H pouco falvamos do espao entre uma nota e outra. Que espao

    esse? Uma durao temporal? Sem dvida, o tempo cronolgico entre uma nota e

    outra pode ser medido o que nos d a sensao de um espao temporal entre

    elas. Quando se olha uma partitura v-se uma distncia que separa uma nota da

    outra, o que nos d tambm uma impresso visual de distncia, de espao. Mas,

    na prtica, nenhum intrprete pode nos dizer exatamente quanto dura o intervalo

    entre duas notas, nem por quanto tempo esteve tocando uma pea. freqente

    seu espanto quando, aps haver estudado um certo tempo com grande

    concentrao, pensa haver passado uma hora, quando na verdade se passaram

    trs ou quatro.

    Isso ocorre porque, durante a execuo de uma obra, o intrprete est

    entregue expresso da msica; sua percepo no a percepo de algo, mas

    confunde-se com a prpria expresso. O intrprete no mede o tempo: ele o vive.

    Claro, sua msica est inserida (pelo menos na maior parte das msicas

    existentes) num contexto mtrico, o qual ele tem presente e ao qual se reporta.

  • 36

    Mas trata-se apenas de uma referncia em torno da qual gravita: assim como

    quem vive uma experincia intensa no mede o tempo de durao de sua

    experincia (pois se estivesse medindo estaria tendo acesso a uma representao

    a posteriori, a uma lembrana, e no a uma vivncia da experincia), da mesma

    forma o ritmo no pergunta pelo metro. Seu tempo o tempo do movimento, e o

    tempo o movimento o tempo da expresso.

    Enquanto a expresso durar, durar o presente (eterno enquanto dure). O

    estar sendo uma atividade sempre presente; quando dizemos foi, j no mais:

    um presente que v a experincia no passado na qualidade de lembrana. A

    disciplina necessria ao intrprete a de estar sempre no presente: ele uma

    expresso que se transforma continuamente e que por isso nunca morre. Em sua

    msica podem at haver pausas e respiraes, mas essas pausas e respiraes

    no sero percebidas como interrupes nem como um deixar de ser se estiverem

    inseridas num fluxo gestual expressivo num ritmo. por isso que devemos

    compreender o ritmo como um fenmeno expressivo temporal (o que se tornar

    mais claro nos prximos captulos).

    Metro e ritmo no so excludentes: simplesmente agem de formas

    diferentes, complementando-se. A sensao rtmica deve ser necessariamente

    uma vivncia espontnea, no representada. Deve ser uma compreenso

    primeira, uma inteno anterior a qualquer verbalizao, uma organizao do todo

    em funo de uma inteno musical. Pois o ritmo uma compreenso primitiva do

    tempo que ns exercemos com o corpo, antes mesmo de represent-la com o

    pensamento.

    Essa compreenso primitiva (ou Urerfahrung, experincia primeira) no

    um ato deliberativo da conscincia, nem um fruto da vontade, mas uma

    organizao espontnea. Representar-me essa compreenso (ou mesmo meu

    corpo) tiraria essa espontaneidade e mudaria completamente meus movimentos,

  • 37

    de forma que no mais estaria vivenciando uma experincia rtmica, mas sua

    representao.

  • 38

    Parte I Fenomenologia da experincia musical

    Captulo 3

    Ritmo e motricidade

    O ritmo uma compreenso primitiva do tempo que ns exercemos com o

    corpo, antes mesmo de represent-la com o pensamento. Voltemos a essa frase.

    Nela encontramos duas palavras importantes para os prximos raciocnios: corpo

    e pensamento. Existe um grande nmero de figuras de linguagem que parecem

    contrapor ambos como se fossem opostos ou mesmo antagnicos: mente e corpo;

    cabea e corao; razo e emoo; lgica e sensibilidade. Distines que do a

    entender a existncia de mundos separados e distintos: um mundo exterior,

    material, e um mundo interior, abstrato. Nessa imagem, um ser interior pensa e

    d comandos a um corpo, tal qual algum manipula uma marionete. O corpo ,

    visto sob esse ngulo, um instrumento do pensamento: o que est dentro (um

    eu, que pensa e que d ordens) comanda o que est fora, um objeto neutro que

    apenas executa as ordens recebidas.

    Seguindo essa lgica, se o corpo mero instrumento, ento um

    instrumento atravs do qual entro em contato com o mundo. O corpo seria ento

    um intermedirio entre o eu e o mundo, matria que permitiria ao eu experimentar

    o mundo.

    Lembremos a observao de Einstein citada no captulo anterior: objetos

    fsicos no esto no espao: os objetos so espacialmente estendidos. Da

    mesma forma, nosso corpo no tem um lugar no espao: ele espao. Ou, como

    diz Merleau-Ponty,

    longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espao, para mim no haveria espao se eu no tivesse corpo (MERLEAU-PONTY, 1999, p.149).

  • 39

    Foi principalmente como decorrncia da tradio cartesiana que distinguia

    entre res extensa e res cogitans, cabendo a esta ltima uma quase exclusividade

    na consecuo do saber sobre si e sobre aquele que o corpo passou a ser

    considerado um simples objeto exterior. Nessa qualidade de objeto, as

    experincias que por meio dele (do corpo) lograramos passaram a ser vistas com

    desconfiana. Somente medida que filtradas pelo pensamento que, supunha-

    se, as experincias corporais poderiam dar a conhecer algo (Merleau-Ponty atribui

    a Husserl a tentativa de reabilitao ontolgica do sensvel).

    A conseqncia dessa excluso da experincia foi o encobrimento da

    gnese dos fenmenos em proveito de uma tese sobre essa gnese, a qual no

    tem a ver com nossa vivncia, mas com uma idia de ser como se o que meu

    corpo me revelasse no tivesse dignidade epistmica. De certa forma, a tradio

    filosfica

    jamais conseguiu suportar que a experincia seja ato selvagem do querer e do poder, inerncia de nosso ser ao mundo. Fugindo dela, ou buscando domestic-la, a filosofia sempre procurou refgio no pensamento da experincia, isto , representada pelo entendimento e, portanto, neutralizada: tida como regio do conhecimento confuso ou inacabado, a experincia como exerccio promscuo de um esprito encarnado s poderia tornar-se conhecvel e inteligvel se fosse transformada numa representao ou no pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento de pensar. Assim procedendo, a tradio, tanto empirista como intelectualista, cindiu o ato e o sentido da experincia, colocando o primeiro na esfera do confuso e o segundo na do conceito. Compreender a experincia exigia sair de seu recinto, destacar-se dela para, graas separao, pens-la e explic-la, de sorte que, em lugar da compreenso da experincia, obteve-se a experincia compreendida, um discurso sobre ela para silenci-la enquanto fala prpria (CHAU, 2002, p.162).

    E na recuperao dessa fala silenciosa que nos deparamos com a

    experincia primeira, anterior a qualquer representao ou idia. Ao reabilitar o

    sensvel no estaremos ignorando o pensamento, mas constatando outros modos

    do pensar, ou melhor, uma concepo mais ampla do pensar, que inclua um

    Cogito anterior ao Cogito, um Cogito silencioso anterior ao Cogito falado: o

    Cogito tcito. No Cogito tcito no h a experincia de algo, mas a experincia

    de mim por mim (MERLEAU-PONTY, 1999, 541), uma experincia silenciosa da

  • 40

    presena a si. Assim, o Cogito propriamente dito no o ponto mximo da

    reflexo e sim um irrefletido (CHAU, 2002, p.47).

    Mas que tipo de saber esse, que no uma reflexo, nem uma fala, nem

    uma representao? Como pensar esse Cogito silencioso sem transform-lo num

    Cogito verbal4? Pois a que reside a dificuldade e o perigo: transformar a

    experincia num pensamento de experincia, numa experincia derivada. A

    experincia o que em ns se v quando vemos, o que em ns se fala quando

    falamos, o que em ns se pensa quando pensamos; o contato do meu

    pensamento comigo mesmo.

    O Cogito tcito no , portanto, um produto de nossos pensamentos, muito

    menos uma entidade anterior a eles (pens-lo como entidade seria pens-lo como

    objeto). O Cogito tcito se revela na ao, na inteno, no movimento. Pois o

    sujeito um sujeito motor. Isso significa, em primeiro lugar, que

    nosso corpo no um objeto, nem seu movimento um simples deslocamento no espao objetivo, sem o que problema s seria deslocado, e o movimento do corpo prprio no traria nenhum esclarecimento ao problema da localizao das coisas, j que ele mesmo seria uma coisa. preciso que exista, como Kant o admitia, um movimento gerador de espao, que o nosso movimento intencional, distinto do movimento no espao, que aquele das coisas e de nosso corpo passivo. Mas h mais: se o movimento gerador do espao, est excludo que a motricidade do corpo seja apenas um instrumento para a conscincia constituinte. (...) O movimento do corpo s pode desempenhar um papel na percepo do mundo se ele prprio uma intencionalidade original, uma maneira de se relacionar ao objeto distinta do conhecimento. preciso que o mundo esteja, em torno de ns, no como um sistema de objetos dos quais fazemos a sntese, mas como um conjunto aberto de coisas em direo s quais ns nos projetamos (MERLEAU-PONTY, 1999, p.517).

    Sem a intencionalidade, nosso corpo seria um objeto, e seus movimentos

    desprovidos de qualquer direo. A espacialidade do corpo no , como a dos

    objetos exteriores ou a das sensaes espaciais, uma espacialidade de posio,

    mas uma espacialidade de situao, pois na ao que a espacialidade do corpo

    se realiza (Idem, ibidem, p.146).

    4 Denominamos esse Cogito de verbal dado que se nos apresenta como uma fala para si: eu digo para mim que isso quer dizer isso.

  • 41

    Quando escrevo no tenho a conscincia de todos os movimentos

    necessrios escrita: sei o que quero escrever e simplesmente escrevo; no

    penso o ato de escrever: a situao do ato de escrever que direciona minhas

    aes. Enquanto ando no fico pensando perna direita, perna esquerda, levantar

    o joelho, abaixar o joelho se pensasse nisso, provavelmente meu movimento

    seria completamente antinatural e desengonado, e acabaria tropeando em

    poucos passos. Tambm no penso para respirar: a respirao acontece.

    Certa vez, durante uma aula de dana uma aula de tango, mais

    especificamente -, eu e meu par devamos executar um determinado passo ao

    chegar ao fim do salo para retornar ao meio dele. O passo era complicado, e

    aps vrias tentativas frustradas e nada graciosas nas quais minhas pernas

    pareciam querer fazer um n (eu estava tentando comandar cada movimento)

    chamei o instrutor para pedir sua ajuda. Ele me sugeriu que no pensasse nos

    movimentos das pernas nem dos ps nem dos braos nem do tronco, mas que

    simplesmente tivesse presente durante a dana que eu queria voltar para o meio

    do salo. Fiz isso e o sucesso foi imediato. Parei ento e me questionei: mas

    como fiz isso? Que movimentos fiz agora que deram certo e antes no? No

    sabia. O corpo se organizara sozinho em funo de uma meta. A situao

    coordenara os movimentos para um determinado fim.

    Enquanto estava tendo dificuldades com o movimento eu no estava

    entregue ao ato de danar: eu estava pensando o ato de danar. Tal pensamento

    constitui uma representao do movimento, no o movimento mesmo, razo pela

    qual a motricidade espontnea foi, nesse exemplo, inibida. Quando tal fato ocorre,

    dizemos do movimento que ele no harmonioso, no orgnico, no rtmico.

    A compreenso do ritmo indissocivel de uma experincia perceptivo-

    motriz primitiva, na qual podemos diferenciar experincias primitivas do corpo-

    prprio e do mundo de experincias derivadas ou representadas do corpo e do

    mundo como objetos. por isso que podemos dizer que o ritmo uma

  • 42

    compreenso primitiva do tempo que ns exercemos com o corpo, antes mesmo

    de represent-la com o pensamento.

    O ritmo, assim como a viso, a audio e a compreenso da profundidade,

    so relaes espontneas de equilbrio entre as partes sensveis da experincia

    corporal. As experincias de nossos sentidos se entrelaam e se confundem umas

    com as outras, intercomunicando-se e irradiando-se no corpo e em sua relao

    com as coisas. Dessa forma, podemos falar em palpao pelo olhar ou em tato

    visual, bem como numa motricidade do ver e do tocar. O olhar no a causa da

    viso, assim como o ouvido no a causa da audio. Causa e efeito se

    confundem na intencionalidade perceptiva (no h uma percepo seguida de um

    movimento, como se uma fosse a causa do outro; a percepo e o movimento

    formam um sistema que se modifica como um todo). As partes de meu corpo

    no esto desdobradas umas ao lado das outras, mas envolvidas umas nas outras. (...) Meu corpo inteiro no para mim uma reunio de rgos justapostos no espao. Eu o tenho em uma posse indivisa e sei a posio de cada um de meus membros por um esquema corporal em que eles esto todos envolvidos (Idem, ibidem, p.193).

    graas a esse esquema corporal que podemos falar numa transitividade,

    reversibilidade e irredutibilidade dos sentidos. Em se tratando da experincia de

    percepo de minha extenso corporal, por exemplo,

    eu no preciso representar para mim os movimentos que devo executar para alcanar com a mo a regio da cabea que sinto comichar. (...) Na experincia de mim mesmo, estabeleo espontaneamente a sinergia das minhas partes, assim como a implicao das diversas dimenses de minha existncia no tempo (MLLER, 2001, p.181).

    Dizemos de um gesto musical que ele rtmico quando o corpo todo se

    envolve com a inteno sonora; o intrprete tem uma inteno precisa e o corpo,

    como um todo indivisvel, se organiza em funo dessa inteno, gerando assim

    uma relao de equilbrio. O ritmo a totalidade expressa no mbito desta relao

    de equilbrio.

  • 43

    O aparecimento de um movimento rtmico no se d por comandos nem por

    ordens; o movimento rtmico no um querer, mas um poder; no da ordem do

    eu penso, mas do eu posso. O corpo no coisa nem idia, mas espacialidade e

    motricidade.

    E por isso que surge a diferena, sutil mas poderosa, entre mover o corpo

    e deixar que o corpo se mova. No primeiro caso h a presena de um comando:

    um Cogito falante ordena a um corpo-objeto que este se movimente de uma

    determinada forma. Segue-se assim que a ateno fica voltada para o movimento

    do corpo, no para o fim ao qual se destina o movimento. como andar em

    direo a uma rvore, mas olhando e comandando os ps em vez de olhar para

    ela, correndo ento o risco de s perceber que se chegou rvore ao esbarrar ou

    ao ter passado por ela.

    Porm, quando deixamos que o corpo se mova, no queremos dizer que o

    corpo deve ser abandonado, mas que devemos permitir que o corpo se organize

    sem que ele precise seguir um conceito imposto pelo intelecto. Aqui os

    pensamentos no se impe ao movimento: eles so simultneos. por isso que

    o orador no pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua fala seu pensamento (MERLEAU-PONTY, 1999, p.241).

    Quando a mente discursiva analisa e d ordens ao movimento no tem

    como estar plenamente atual a eles. A anlise um procedimento a posteriori:

    analisa-se o que j ocorreu passado representado. Ordens e comandos so

    expectativas que se projetam no futuro e que modificam subitamente um estado

    presente.

    Nesse sentido, a filosofia oriental frisa constantemente a necessidade de

    um silncio da mente, silncio esse geralmente mal compreendido, como alerta

    Daisetz Suzuki:

  • 44

    alguns filsofos e telogos aludem ao Silncio oriental em contraste com o Verbo ocidental, que se fez carne. Mas no compreendem o que o Oriente realmente quer dizer com silncio, pois este no se ope ao verbo, o prprio verbo (SUZUKI/FROMM, 1989, p.78).

    Especialmente o Zen demonstra grande preocupao com as diferentes

    formas de interferncia da mente sobre o corpo. Suzuki d como exemplo disso

    (op. cit.) o mestre Dogo, do sculo VIII, que recomendava: Logo que comeas a

    pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas v-la imediatamente, sem

    raciocinar, sem hesitar. E oferece como ilustrao a histria de um grande

    espadachim, Takuan, que aconselhava seus discpulos a manter a mente sempre

    em estado de fluncia, pois, dizia ele, quando ela se detm em algum ponto isso

    significa que o fluxo est interrompido e a interrupo nociva ao bem-estar da

    mente - no caso do espadachim, pode significar a morte:

    quando o esgrimista enfrenta o adversrio, no deve pensar no adversrio, nem em si mesmo, nem nos movimentos da espada do inimigo. Limita-se a estar l, empunhando a espada, que, esquecida de toda tcnica, seguir apenas, em verdade, os ditames do inconsciente. O homem se apagou como manejador da espada. Quando golpeia, no o homem, seno a espada nas mos do inconsciente que golpeia. Contam-se histrias em que o prprio homem no se advertiu do fato de haver derrubado o adversrio tudo inconscientemente. Em muitos casos, o funcionamento do inconsciente simplesmente milagroso (SUZUKI/FROMM, 1989, p.31).

    Quando golpeia, no o homem, seno a espada nas mos do

    inconsciente que golpeia. Em relao a essa afirmao, a pergunta que nos

    fazemos, enquanto ocidentais, : como pode o inconsciente movimentar a

    espada?

    Quem se faz essa pergunta est provavelmente acostumado a pensar o

    movimento como fruto da vontade, como um ato reflexivo - e quem reflete a

    conscincia. Mas ser a conscincia responsvel pela sinergia espontnea entre

    as partes de meu corpo? Certamente no, j que o corpo se organiza sozinho

    em funo de uma inteno, como vimos nos exemplos acima. Claro que aqui

    adentramos um terreno perigoso, tanto para a filosofia quanto para a psicologia e

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    a cincia, que exigiria uma incurso nos domnios do consciente e do

    inconsciente, incurso essa que fugiria ao mbito do presente trabalho.

    De toda sorte, se Freud foi um dos primeiros a tentar estruturar e

    sistematizar o inconsciente, isso no significa que, antes dele (mesmo que com

    outras palavras), este no tenha sido tratado. Especiais contribuies para o tema

    foram dadas por Schopenhauer e Nietzsche, e, muito antes deles (e de forma

    bastante elaborada), na antiga filosofia oriental.

    Em O mundo como vontade e representao (Die Welt als Wille und

    Vorstellung) Schopenhauer coloca, entre outras questes, que, se a vontade

    proviesse do intelecto, como se explicaria o fato de que nos animais inferiores,

    junto a um mnimo de conhecimento, houvesse uma vontade to forte? preciso,

    pois, diferenciar a vontade humana, que revela a atuao do intelecto, da Vontade

    tomada como algo em-si-mesmo. Essa Vontade

    s capaz de revelar-se na experincia interior que cada um de ns tem do seu prprio corpo em ao. Sendo o corpo a objetivao da Vontade, o ato de vontade um ato corporal. O ato de vontade jamais pode consistir na mera deliberao, pois esta corresponde mera representao intelectual do seu objeto, um mero desejo, sinnimo de aspirao. Na metafsica de Schopenhauer instaura-se definitivamente a precedncia da vontade sobre o intelecto ou, melhor dizendo, sobre as representaes intelectuais. (...) No homem, s em indivduos muito bem dotados que o intelecto pode ter a supremacia; neles que o intelecto se separa da vontade e no afetada por ela. Eles so chamados gnios e o seu saber o espelho objetivo do mundo (CACCIOLA, 1991, p.17 e 20).

    Mais tarde Nietzsche ir noutra direo, e, no lugar do gnio citado por

    Schopenhauer, apresentar a idia do bermensch, presente no Zarathustra (em

    portugus bermensch geralmente traduzido como super-homem, mas

    consideramos como traduo mais apropriada homem superior, termo, alis,

    freqente na filosofia oriental, cujas primeiras tradues comeavam ento a

    circular pela Europa, e que fortemente influenciaram, como o declararam os

    prprios autores, Schopenhau