Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a...

285
Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida. As relações como chave de integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Orientador: Prof. Joel Portella Amado Rio de Janeiro Setembro de 2016

Transcript of Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a...

Page 1: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Rita de Cássia Rosada Lemos

A busca pelo sentido da vida. As relações como chave de integração da vida na

esteira teológica de Leonardo Boff

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção

do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em

Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Joel Portella Amado

Rio de Janeiro Setembro de 2016

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 2: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Rita de Cássia Rosada Lemos

A busca pelo sentido da vida. As relações como chave de integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Pro. Joel Portella Amado Orientador

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Profa. Lúcia Pedrosa de Pádua

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Luiz Fernando Ribeiro Santana

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Romildo Henri Pinas

SPSCJ

Prof. Dorival Souza Barreto Júnior

UNIMONTES

Profa. Monah Winograd Coordenadora Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro

de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2016.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 3: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução

total ou parcial do trabalho sem a autorização da

universidade, da autora e do orientador.

Rita de Cassia Rosada Lemos

Graduou-se em Ciências pela Univale (Universidade

Vale do Rio Doce) em 1989. Concluiu o curso de

Teologia no ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino)

em 2005. Fez o Mestrado em Teologia pela PUC-Rio

(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)

em 2011. Participou de diversos congressos e eventos

na área de Teologia e Catequética. Atua na formação

teológica e espiritual.

Ficha Catalográfica

CDD: 200

Lemos, Rita de Cássia Rosada A busca pelo sentido da vida : as relações como chave de integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff / Rita de Cássia Rosada Lemos ; orientador: Joel Portella Amado. – 2016. 285 f. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2016. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Vida. 3. Relação. 4. Sentido da vida. 5. Ser humano. 6. Cuidado. I. Amado, Joel Portella. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 4: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

A todas as pessoas que, impulsionadas pelo desejo de encontrar sentido em tudo,

buscam o conhecimento do Mistério de religação invisível e universal, integrador

e ético.

À Leonardo Boff, em cuja ‘esteira teológica’ apreende-se que Deus é o mistério

de transcendência presente em todas as coisas existentes e possíveis,

absolutamente além de qualquer horizonte real e possível. Este mistério antecipa e

adentra qualquer desejo e ação humana, por ser transcendente em qualquer

situação na vida, Dele jamais saímos. Sempre estamos nele. Embora dentro, Ele

está para além de tudo. Nele estamos, movemo-nos e somos, e nos relacionamos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 5: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Joel Portella Amado pela sabedoria entrelaçada à

competência e a amabilidade. Suas instruções propiciaram segurança no trajeto da

pesquisa.

A CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, possibilitando esta pesquisa.

Ao Mistério, Deus-Trino, que transcende e perpassa toda existência, e confere pleno

sentido à vida humana.

A minha mãe e irmãos pelo incentivo e compreensão em tantos momentos durante

minha caminhada, e pela vivência ética cheia de ternura e respeito.

Ao mestre Leonardo Boff que me inspirou a colocar nos pés na sua esteira teológica,

rumo ao Mistério Trino.

A Profa. Lina Boff que esteve presente, de diferentes maneiras, desde o início do

doutorado, e incentivadora de meu percurso teológico. À profa. Tereza Maria

Cavalcanti pela preciosa colaboração no início da pesquisa.

Aos professores e professoras do Departamento de Teologia da PUC-Rio pelos

conhecimentos compartilhados e pela experiência adquirida. À profa. Bárbara

Bucker, da CRE PUC-Rio, pela presença qualificada de religiosa e teóloga.

Aos professores, da Banca Examinadora pelas questões valiosas durante a defesa

da tese.

Ao professor Paulo Augusto da Silva, pelas aulas de Inglês, acrescidas de

experiência teológica e pelas discussões transdisciplinares sobre a vida e seu

sentido.

As Irmãs da Congregação de Nossa Sra. do Cenáculo meu obrigada.

As catequistas da Paróquia Santo Antônio de Brás de Pina, Rio de Janeiro, pelas

partilhas de fé e pela amizade construída ao longo destes anos.

A todas as pessoas, por este mundo de Deus, que buscam um sentido que permita a

vida viver com integridade para com todas suas relações.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 6: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Resumo

Lemos, Rita de Cássia Rosada; Amado, Joel Portella. A busca pelo sentido

da vida. As relações como chave de integração da vida na esteira

teológica de Leonardo Boff. Rio de Janeiro, 2016. 285p. Tese de Doutorado

– Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro.

A busca pelo sentido da vida é a interrogação existencial do ser humano. A

pesquisa entende ser esta uma sua tarefa essencial, que implica dar significação a

uma rede de relações conectada, aberta e em evolução. Na pós-modernidade, a vida

tem sido subordinada às coisas, relegada a segundo plano, e pior, simplesmente

denegada. O contexto atual é de uma crise fragmentadora e desperdício da

abundância de vida, na qual proliferam “promessas” de vida, oriundas de uma visão

como relativista e descartável. No entanto, é notável que o ser humano em seu

dinamismo interno afirma um a priori de sentido endógeno, uma exigência maior

de sentido, que perpassa todas suas relações. A concepção de vida na teologia de

Leonardo Boff convida a ver a vida na esteira de um permanente inter-retro-

relacionamento, tendo sua origem na inter-relação do mistério do Deus-Trino. Sua

concepção é nutrida pelo cuidado, ternura e esperança com respeito à vida. No

contexto pós-moderno em que o logos-razão se apresenta como a única via geradora

de sentido da existência, a busca pelo sentido da vida supõe uma concepção que

não apenas se lhe contraponha, mas questione a coisificação da vida e seu

encerramento em si. Esta tarefa toma uma forma específica na qual são

fundamentais o resgate e a humanização da vida. Há que se resgatar e proclamar a

palavra primeira: “Vida” (Gn 1,1ss), confirmada na vinda do Filho: “Alegra-te” (Lc

1,28) que se faz encontro comunicante na história e a transcende em amor e cuidado

de vida.

Palavras-chave

Vida; relação; sentido da vida; ser humano; cuidado.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 7: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Résumé

Lemos Rosada, Rita de Cássia; Amado, Joel Portella (Conseiller). La

recherche du sens de la vie. Les relations comme clé d'intégration de la

vie dans le sillage théologique de Leonardo Boff. Rio de Janeiro, 2016.

285p. Thèse de Doctorat – Departamento de Teologia, Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro.

La recherche du sens de la vie est une question existentielle pour l’être

humain. Cette recherche estime que ça c’est pour lui une tâche essentielle, qui

consiste à donner du sens à un réseau de relations connectées, ouvertes et en

évolution. Dans la postmodernité, la vie est subordonnée à des choses, reléguée à

l'arrière-plan, et pire encore, tout simplement niée. Le contexte actuel est celui

d’une crise qui fragmente et de gaspillage de l'abondance de vie dans laquelle

prolifèrent différentes «promesses» de vie, qui proviennent d'une vision relativiste

et jetable de la vie. Cependant, il est remarquable que, dans l’être humain un

dynamisme interne affirme un a priori endogène de sens, une plus grande demande

de sens, qui imprègne toutes ses relations. La conception de la vie dans la théologie

de Leonardo Boff invite à voir la vie à la suite d'une inter-rétro-relation permanente,

ayant son origine dans l'interrelation du mystère du Dieu Trine. Sa conception est

nourrie par le soin, la tendresse et l'espoir par rapport à la vie. Dans le contexte

postmoderne dans lequel le logos-raison se présente comme le seul générateur de

sens pour la vie, la recherche du sens de la vie réclame une conception qui non

seulement s’oppose, mais qui met en question la réification de la vie et de sa

fermeture sur elle-même. Cette tâche prend une forme particulière dans laquelle

sont fondamentaux le rachat et l'humanisation de la vie. Il faut récupérer et

proclamer le premier mot, "Vie" (Gen. 1,1ss), qui se trouve confirmée dans la venue

du Fils «Réjouis-toi» (Luc 1:28) qui se fait rencontre de communication dans

l'histoire et la transcende en amour et soin pour la vie.

Mots clefs

Vie; relation; sens de la vie; être humain; soin.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 8: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

Sumário

1Introdução 9

2 O sentido da vida humana 23

2.1. A experiência humana da existência 31 2.2. A vida do ser humano em chave de compreensão pós-moderna 40

2.2.1. Mudança de época, mudança de sentidos 55 2.2.2. Crise fragmentadora do sentido da vida 60

2.2.3. O desperdício da abundância da vida 74 2.3. O ser humano grita pela experiência do sentido da vida 84

2.4. Conclusão 92

3 Na esteira teológica de Leonardo Boff 94

3.1. A trajetória teológica de Leonardo Boff 98

3.1.1. O lugar histórico 99 3.1.2. O lugar eclesial 110

3.1.3. Interlocutores do pensar teológico 116 3.1.4. Evolução e revolução no pensamento teológico 121

3.2. Concepção teológica da vida em seu sentido 126 3.2.1. O pensar evolutivo sobre a vida 130

3.2.2. A vida do ser humano presencia dualidades 138 3.2.3. A vida do ser humano como um nó de relações 145

3.2.4. A história humana como convocação a uma compreensão inclusiva da vida 155

3.3. Apreender o sentido da vida na teologia de Leonardo Boff 162 3.3.1. Jesus, o divino no humano e o humano em Deus 163

3.3.2. A ontologia do ser humano 167 3.3.3. Marcos que geram e nutrem a vida 171

3.4. Conclusão 177

4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181

4.1. O ser humano: partícipe e construtor do sentido da vida 186

4.2. A relação enquanto realidade construtora de vida 199 4.3. Três dinamismos reveladores do sentido da vida 212

4.3.1. Ser de existência – antropogênese – cosmogênese 215 4.3.2. Mistério de transcendência – transparência – imanência 225

4.3.3. Sentido de relação – comunhão – pericórese 236 4.4. O caráter absoluto da busca do sentido da vida. No princípio a relação, o movimento e o encontro 246 4.5. Conclusão do capítulo 254

5 Conclusão 260

6 Referências Bibliográficas 273

6.1. Documentos da Igreja 273

6.2. Obras do autor 273 6.3. Obras de outros autores 275

6.4. Sites 283

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 9: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

1 Introdução

A busca humana pelo sentido da vida é a indagação pela própria vida. O

ponto de partida desta reflexão é o ser humano, enquanto ser de relação, que por

sua vez, constitui o espaço de integração da busca pelo sentido da vida, na esteira

de Leonardo Boff.

Quando o ser humano se pergunta pelo sentido de sua vida na situação

histórica em que se encontra, inevitavelmente tem diante de si uma vivência

determinada e concreta. A vida é para ser vivida, e de maneira abundante. Ainda

que difícil sua conceituação, é a partir dela que se fala. Esta pesquisa tem, como

ponto de partida e como princípio norteador, a vida. No entanto, o vocábulo ‘vida’,

enquanto descreve o processo bio-cosmológico, não contempla a totalidade da

existência.

A abordagem pós-moderna da vida herda, com perplexidade e sofreguidão,

o gerenciamento de seu próprio existir. A rigor, a pós-modernidade se liga

diretamente à modernidade, exasperando suas opções, mostrando seu esgotamento

e exaustão. A modernidade fez surgir o sujeito autônomo que afirma superar a

tradição e ser o artífice do mundo pelo uso de suas próprias faculdades e

potencialidades. A razão assume para si a tarefa de pensar exaustivamente o mundo.

Por essa hegemonia, toda esperança viria da razão discursivo-instrumental. De sua

parte, a pós-modernidade escancara o fracasso da razão moderna em sua confiança

absoluta num progresso que se pretendia ilimitado, e eficientemente estruturado. O

sujeito pós-moderno já não mais procura por um projeto único e de sentido para o

futuro. Desafiado pelos limites da razão, experimenta a decepção de um mundo sem

sentido, e se entrega ao culto do fortuito e à fruição do presente.

A pós-modernidade não é mero dado cronológico, mas um conceito. Ela não

possui uma definição clara, mas liga-se pelos fatos diretamente à modernidade. O

elemento realmente novo neste “pós” é uma leitura crítica da modernidade

propiciada pela distância cronológica, embora ainda não muito grande. Enquanto a

modernidade acreditava caminhar para a ascensão a uma verdade suprema e a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 10: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

10

homogeneização dos saberes, a pós-modernidade, ao contrário, caracteriza-se pela

contestação de toda verdade única, permanente, trans-histórica. Suscetível às

rápidas mudanças, o pós-moderno não se apega a nada, pois nem tem certezas

absolutas. Nada o surpreende em suas opiniões provisórias. Sem fundamentos para

a construção da existência, o sentido da vida torna-se opaco.

Entre modernidade e pós-modernidade há uma radicalização teórica. Com o

advento da modernidade, a autocompreensão do ser humano adquire novos

contornos. Ao fazer a experiência de ser sujeito, ele se coloca como centro do

mundo e referência pela qual tudo é julgado. A história continua tendo valor na

medida em que propicia ao sujeito uma perspectiva dos acontecimentos. Brota uma

forte rejeição à realidade como se dada pelo destino ou pelo Deus-providência.

Desconstrói-se a visão de um criador que intervenha no funcionamento dos

elementos mundânicos em contínua interferência com suas leis, sempre realizáveis

e sempre autônomas. Esta desconstrução pretende abrir um caminho para se

achegar ao sentido vida.

Frequentemente coloca-se Descartes como inaugurador do modo de pensar

o sujeito moderno. Ao fazer da dúvida o critério fundante para se chegar à verdade,

ele opera o deslocamento centro do universo, de Deus, para o sujeito pensante. No

entanto, este sujeito nunca foi unificado, visto que ele também poderia estar

enganado. A nova visão antropológica, surgida a partir de Descartes, século XVII,

reconfigura a questão da busca do sentido, unificador e integrador da vida, tendo

em vista o progressivo e rápido abandono da dimensão transcendental do ser

humano e seu mergulho na imanência.

Se o estudo a ser feito, ficar preso nos parâmetros pós-modernos, cairá no

círculo vicioso, que consistirá em tentar resolver um problema, com os dados que

o provocaram. O caminho é cotejar esta experiência com outra, que a questione e

provoque. Para isso, urge aproximar a mensagem bíblica ao pós-moderno e

examinar a responsabilidade e participação que ele carrega na construção de um

sentido maior da vida, na história. O texto bíblico conserva um valor simbólico e

existencial, quando lido na ótica da relação gratuita e amorosa do Criador com sua

criatura. Ele torna-se absurdo se tomado como explicação do funcionamento factual

do processo evolutivo da vida.

A fé na providência e no governo divino não é, em princípio, incompatível

com a visão evolutiva da natureza. Contudo, a descoberta do caráter evolutivo do

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 11: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

11

universo provoca a (re) descoberta da imagem de Deus e a consequente elaboração

de uma nova teologia da natureza: o Deus relacional, revelado em Jesus Cristo e

compreendido a partir da kenosis e da promessa é o fundamento para a compreensão

do surgimento e da manutenção de um mundo em contínuo movimento e evolução.

Este mundo, por definição, incompleto e imperfeito, avança em direção a um futuro

que lhe advém como possibilidade de salvação cósmica.

A pós-modernidade postula na imanência o não-sentido da transcendência,

por entender que a verdade está limitada ao conhecimento e ao feitio do homem.

Apresenta-se, então, que o reino da verdade é o reino da técnica e de um futuro

imanente, que não irá além da história e dos acontecimentos. Descarta-se a divisão

temporal entre o aqui e o além, substituindo-o pelo aqui presente e o futuro

imanente, relacionados com o progresso humano. Nesta qualidade, a transcendência

simplesmente não tem lugar.

A grande utopia imanentista pós-moderna difusamente apregoa que o

paraíso será construído aqui na terra, pelo emprego maciço da tecnologia. A fruição

pessoal deste paraíso é medida pela meritocracia. Quem não atinge o topo é porque

não mereceu. Trata-se de uma ideologia extremamente cruel, pois coloca no

excluído a responsabilidade por sua exclusão. Nesta leitura, a existência humana

toma um caráter opaco, no qual, pelo menos na teoria, não há abertura à

transcendência, pelo que não haveria espaço para a pesquisa e, nem, sobretudo, para

a experiência, de uma busca de sentido, pois a vida é organizada em função do

sujeito humano.

O ser humano pós-moderno tem dificuldade de pensar na inaudita e absoluta

proximidade do Deus de Jesus Cristo, pois afeiçoou-se a um conhecimento

demonstrável e científico e, de preferência, gerador de novas tecnologias. Inserida

nesta perspectiva, surge uma nova leitura da realidade. Esta leitura, antes

dicotômica e provocando cisão no ser humano, passa a uma visão dual e integral da

vida.

No dinamismo da história, o ser humano tem dentro de si o desejo de amor,

de justiça, de beleza, de estabelecer relações saudáveis, que orientem suas escolhas.

Ele está inserido na civilização pós-moderna na qual proliferam ‘promessas’ de

vida, que trazem dela uma visão relativista e descartável, que constituem verdadeiro

atentado contra ela e que quer impor-se a qualquer preço. O ser humano está, pois,

submerso em um emaranhado de propostas de sentido, no horizonte da imanência.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 12: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

12

No entanto, e é notável, dentro de sua própria vida anuncia-se uma

experiência de inigualável intimidade e confiança, uma expectativa de uma

existência humanizante. Esta circula numa atmosfera intensa de vida, alegria e

movimento. É um lado de sua experiência que transcende toda crise fragmentadora

e as definições instrumentalizadas da vida, pela festa, pela dança, numa trajetória

alegre de liberdade e gratuidade, na dimensão de um Mistério maior, que habita seu

interior.

Neste horizonte, a questão do sentido manifesta-se como problema central

da crise na civilização pós-moderna. A crise de sentido evidencia a fragilidade do

projeto da modernidade em dar respostas totalizantes pela razão. Pois a

racionalidade matemático operacional termina por se converter na negação de toda

ética pondo em risco a casa comum dos humanos. Sem uma ética da vida, o sentido

atribuído a ela é particular: ele existe para alguém ou para algo. A época pós-

moderna traz consigo um divórcio profundo entre vida e sentido.

Este novo delineamento que caracteriza a pós-modernidade, resulta na

fragmentação da vida. Assim, a crise de sentido na pós-modernidade decorre do

impulso humano de estabelecer significados ser colocado a serviço de interesses

individuais, sem integrar valores comuns para o agir em comum ou mesmo,

desconsiderando haver uma realidade única para todos.

Aqui emergem questões, frente à afirmação da busca humana pelo sentido

da vida enquanto integração. Como pensar um sentido na história sujeita a contínuas

mudanças? Haverá um ‘a priori endógeno’ de sentido na existência ou ele tem sua

origem numa realidade exógena, exterior à vida? A consciência humana da

existência do sentido já não bastaria para encontrar o sentido da vida? Haverá uma

unidade de sentido, que concentre e irradie passando do pessoal ao interpessoal, a

uma universal solidariedade integrada para todos, vinda de Deus e alcance as

demais criaturas? Qual o sentido mais verdadeiro de estar em relação? Que palavra

verdadeiramente humana responde à busca humana pelo sentido da vida? Qual a

relevância da busca por um sentido perante uma civilização, pós-moderna, que tem

não somente questionado os conceitos e sentidos, como também transformado ou

relativizado seu significado? Que significado tem, se o ser humano já está submerso

em um emaranhado de propostas de sentido no horizonte da imanência? E a vida

tem sido associada em ampla escala, à violência, à subordinação às coisas, e pior,

simplesmente denegada? Qual o contributo da fé cristã em tempos de pós-

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 13: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

13

modernidade? Tais questionamentos terão alguma incidência na busca pelo sentido

presente no sujeito pós-moderno?

A civilização pós-moderna coloca sérios desafios à teologia. Entre eles está

a questão do sentido da vida como um dos mais notáveis. Frente a esta situação, a

antropologia teológica, tematizando a originalidade da existência humana,

apresenta uma resposta que perpassa e transcende sua história, e quer reconduzir a

vida a seu profundo sentido. Supõe resgatar a experiência do Mistério uno-trino no

contexto pós-moderno e, na experiência do indivíduo. Supõe apontar caminhos para

a superação do relativo da história, mediante o encontro com o relacional. A

experiência cristã, portanto, precisa ser cada vez mais encarnada, e menos

exclusivamente racional. Deus não é o bem que se conceitua, mas o Bem que se

oferece. Diante desta oferta, abre-se a possibilidade de uma relação com o absoluto,

que nasce da gratidão e tende para o amor.

No horizonte da vida humana, a compreensão de sentido expressa uma

busca que perpassa, porém ultrapassa a sinonímia mais chã de ter sensibilidade ou

comunicação com a realidade, pela via dos cinco sentidos. Também, considera e

extrapola a acepção de sentido enquanto direção, pois é de grande valia para o ser

humano direcionar sua vida tendo à sua frente um sentido. Afinal, ninguém sabe

por onde ir, se não sabe aonde quer chegar. A direção comunica um caminho para

o objetivo. Na perspectiva antropológica, a orientação de um deslocamento é

comunicação que se estabelece entre aquele que busca e outro que compartilha o

dom do encontro.

Neste prisma de interpretações, há uma terceira compreensão do vocábulo

‘sentido’ que mais se aproxima da pesquisa. Sentido pode ser significação, aquilo

que uma coisa quer dizer, uma valoração. Sem excluir, esta acepção é mais profunda

e considera as duas anteriores, pois supõe um caminho e supõe a plenitude, vivida

hoje e alcançada na eternidade.

Uma aparente manifestação da cultura desta época é a deterioração

semântica, a que nela estão submetidos alguns termos de rica significação para a

vida. Tais termos, lançados no jargão dos Meios de Comunicação Social e sem que

seus consumidores tenham condições de os conceituar, servem apenas para dar uma

aparência de respeitabilidade às linguagens convencionais. Um caso exemplar

desse esvaziamento semântico dá-se com o termo ‘ética’. Também o termo ‘vida’

caiu no gosto da mídia. E não é só questão de mudança da semântica. Trata-se de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 14: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

14

banalizar ou negar reconhecimento de valor e sentido real ao pensamento que se

pretenda vital para uma existência bem aventurada. Neste arcabouço, urge situar o

ser humano como criatura de Deus dentro do quadro maior da criação e interpretar

a sua experiência histórica como pessoa de uma dignidade incomensurável aberta

ao mistério de Deus Trino pela fé e graça. Tornar-se-á então necessária a consulta

a fontes de referência especializada em etimologia, para escolher palavras que

falem ao sujeito pós-moderno, sem cair num vanilóquio, e, principalmente, abrir

espaço, pela esteira de L. Boff, ao mistério comunicante na vida e da vida.

Esteira evoca caminho, direção. Na perspectiva teológica, esteira significa

ter um fundamento e horizonte. Significa, portanto, ter os pés fincados no chão da

realidade a partir de um Deus-amor, criador, companheiro, prenhe de um futuro de

promessa de vida com sentido de plenitude. Neste compasso, encontra-se L. Boff

que, em sua teologia, convida a pensar o mundo à luz do Deus-Trino. Nesta direção,

ele convida a passar por sua teologia, mas sem se quedar nela. Antes, ele provoca a

pessoa a construir a própria pisada na existência que permita viver a vida como

celebração na força do Espírito, pois é esse o desígnio do Criador.

Assim, a pesquisa sobre a busca pelo sentido da vida quer situar seu

vocábulo para falar de um sentido que brote da experiência de integridade e

plenitude de vida. Supõe, no presente, uma realidade indicativa de um futuro

auspicioso para a vida.

Circundado de todas estas interpretações do sentido, contudo, o ser humano

é mais. Ele não se deixa enquadrar simplesmente nesta estrutura. Em sua história

pessoal, compreende o tempo passado que se pergunta pelo sentido de sua

existência, o tempo no futuro que se pergunta até quando a vida, além do presente

que se pergunta sobre o para que a vida. O que se discute aqui não é apenas a

existência do sentido. A discussão aceita ser provocada pelas propostas de sentidos

que se apresentam fugazes descompromissadas com a história humana, conquanto

encerradas na ordem da imanência.

Neste novo tempo, a humanidade está dividida entre a afirmação da

transitoriedade nas concepções e a exclusão da coexistência de crenças contrárias

em situações ou pessoas. No entanto, é notável que dentro do fluir de sua própria

vida anuncia-se uma exigência maior de sentido, uma expectativa de humanização

mais profunda, que leve em conta a dimensão de um Mistério maior, que habita seu

interior. A concepção de vida, que encontramos no teólogo Leonardo Boff, convoca

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 15: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

15

a ver a vida em todas as suas dimensões. Ele fala da permanente evolução da vida,

fala do inter-retro-relacionar-se, o fio primário do sentido da vida, ao Mistério,

Deus. Sua concepção é marcada pelo cuidado, ternura e esperança com respeito à

vida. L. Boff apresenta Jesus como a realização do ser humano, aquele que dá

sentido à vida, pois nele manifesta-se o divino no humano e o humano em Deus.

No contexto pós-moderno esta tarefa toma uma forma específica na qual são

fundamentais o resgate e a humanização da vida.

Jesus quer ser a resposta de Deus à vida de modo a ultrapassar os limites do

interesse egocêntrico, a lógica fechada da razão instrumental, com vistas à nova

criação. Sua práxis subverte a lógica pós-moderna onde a satisfação individual

destitui o bem do outro, a fragmentação substitui a totalidade do ser. Jesus causou

um impacto muito forte sobre os seus contemporâneos. Os Evangelhos relatam em

tom de admiração: Quem é este homem? Há um mistério em sua pessoa que a

ninguém fica despercebido. Que é isto? Há um ensinamento com autoridade que

desperta seus ouvintes. Em que Jesus se diferencia? Há um gesto e palavra que

encontram sentido. Em sua palavra-ação transparece o sentido mesmo da pessoa de

Jesus. Em Jesus, Deus vê, ouve, sente os nossos clamores e desce fazendo-se

verdadeiramente humano. Nele, Deus faz-se encarnação, envolto em pele humana

e assume a história humana. Nele, Deus permanece oferta e diálogo a todas as

pessoas.

A fé cristã busca uma linguagem para falar do inaudito mistério de Deus,

revelado no Filho. A tamanha proximidade humana de Deus, em Jesus, torna-se

resposta proclamada de fé e de afeto humano. Encontrado em ‘pele’ humana, ele é

o ‘rosto’ de Deus; morando na história humana, Jesus é ‘Palavra feita carne’; ele é

a culminância da ‘autocomunicação de Deus’. Na verdade, tais expressões são

tentativas do ser humano, no esforço para falar do mistério da vida divina que se

entrelaça com a criatura humana. Fazendo-se solidário à humanidade na

encarnação, Cristo associa o ser humano ao mistério de sua relação amorosa com o

Pai. Jesus Cristo quer ser em sua própria pessoa, a resposta de Deus à condição

humana.

Jesus, o Cristo, o Verbo encarnado, é o lugar do encontro e da experiência

de Deus. Falar de Deus numa perspectiva cristã significa falar a partir de uma

experiência. Esta experiência, por ser divina, é profundamente humana desde o

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 16: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

16

momento em que Deus entrou na história da humanidade e fez a experiência da

carne humana, tornando-se Verbo Encarnado, em Jesus de Nazaré.

Na esteira do teólogo, Leonardo Boff, Jesus é por excelência o ecce homo,

compreendendo assim, a profunda intimidade de Jesus com o Pai. Trata-se de uma

relação radical a ponto de esvaziar-se de si mesmo, para ser completamente repleto

da realidade do Outro, Deus Pai. Para este autor, Jesus adquire o sentido de sua vida

e sua história, nesse voltar-se para uma alteridade, para alguém com o qual possui

familiaridade; para Deus, a quem chama de Pai. Em Jesus, integram-se presente e

futuro. Por esta compreensão, supera-se o paradoxo humano entre imanência e

transcendência. Jesus Cristo não sendo nada para si, mas tudo para os outros e para

Deus, quer ser a resposta de Deus à vida humana. Ele, não só afirma ser o futuro,

mas o realiza em sua vida.

A fé cristã se firma em um Deus que, amando o ser humano e sua história,

impulsiona-o a viver com dignidade e abundância, com sentido e valor. Intima-o a

agir eticamente no mundo, e a recusar toda definição fechada em si mesma e

fatalista, decorrente de uma leitura no trilho do racionalismo instrumental

despersonificante.

Denunciado por L. Boff, o logos-razão, que se quer como a capacidade

universal e única da criação de sentido, tem sido apresentado como o discurso

imperante sobre as demais dimensões da vida. Este imperativo fragmenta a

dignidade do ser humano, pois o indivíduo é valorizado apenas na dimensão de

homo faber, isto é, naquilo que ele produz. Ele deixa em segundo plano o cuidado,

a ternura e o feminino.

Para se apreender o sentido da vida na esteira teológica de L. Boff há que se

resgatar e proclamar a palavra primeira: “Vida” (Gn 1,1ss), confirmada na vinda do

Filho: “Alegra-te” (Lc 1,28). Ele é crítico da hegemonia do logos-razão, assim

como de qualquer realidade que se proponha hegemônica sobre as demais

dimensões da existência. Para ele, reconhecer o lugar de Deus não significa dar as

costas à racionalidade discursiva. Teólogo excepcionalmente marcado pela

esperança, acolhe a crise de sentido do logos, como momento de revalorizar as

relações em todas as dimensões da vida humana. Ele usa a busca do sentido da vida,

para provocar relações que brotem da experiência do Mistério de Deus. Deste modo,

a vida se torna o lugar de realização da utopia, e a morte, a passagem para a

plenitude do Reino de Deus.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 17: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

17

Em sua visão, ele constata a presença de uma crise de civilização,

concomitante com os debates dos últimos tempos que visam esclarecer o sentido

nesta nova época da humanidade. Diante da crise urge encontrar uma saída

libertadora, um caminho de integração e de resgate do próprio logos, ao lado das

demais dimensões da vida. Urge encontrar um centro capaz de preencher e dar

unidade à vida em meio à relativização do sentido. Para L. Boff, a espiritualidade é

este centro de relação e de irradiação que desestrutura a ordem estabelecida para

inventar o novo. Assim urge captar a presença do Espírito em todas as coisas.

Os escritos de Leonardo Boff transpiram, antes de tudo, um conteúdo que

passa, pela experiência de quem deseja aproximar-se do Absoluto e irradiá-lo a

outros. Sua análise abre-se para a busca do sentido da vida, presente também na

civilização pós-moderna.

Em seus textos, L. Boff não aborda diretamente o tema do sentido da vida.

Assim, levantar o tema em seus trabalhos é como pesquisar pérolas preciosas. Uma

pérola no interior da ostra não se forma de uma hora para outra. Mister se faz buscar

suas colocações, dar-lhes tempo para maturação. É preciso ouvir seus gemidos

vitais e deixar que venha à tona realizar sua vocação. A pérola é a vida que também

não está pronta. Ela segue também um processo de maturação, chamada

continuamente a realizar sua vocação num aparente emaranhado de relações, que,

no entanto, revelam-se plenas de sentido. Suas palavras transbordam uma

concepção de vida, em sintonia com a busca humana, grávida de um sentido.

Seu pensamento global e sua capacidade de comunicação fazem brotar

estudos que extrapolam a teologia. Assim, a copiosidade de seus escritos, a

pluralidade de seus interlocutores, bem como a abrangência de seu pensamento, sua

capacidade de apropriar de várias ciências, sem perder de vista a fé cristã, requerem

uma delimitação de tema, a quem queira tratar de seu patrimônio intelectual e

místico. Tal delimitação naturalmente balizará esta pesquisa.

A teologia de Leonardo Boff vincula atualização com continuidade. Sua

concepção de vida aproxima-se da interrogação existencial do ser humano. Não há

corte epistemológico em sua elaboração. Isto mostrar-se-á ao tomar a vida no

contexto pós-moderno a partir de suas primeiras obras editadas.

Não se trata aqui de dar uma definição, isto é, de dizer do fim, nem de

delimitar, isto é, dizer do limite da vida pura e simples. O que se visa é tratar do

sentido da vida. Busca-se uma teologia em diálogo com pensadores que levam em

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 18: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

18

consideração a vida como realidade de sentido. Por detrás de todas as questões ele

percebe o grito pulsante pelo centro de sentido que irradia e ilumina, e para si atrai

toda a vida.

Com frequência se fala hoje em humanização das relações. Assunto curioso.

Tema que está na moda. A pós-modernidade, com a quebra de valores e

relativização do sentido, tem excluído, eliminado, ignorado a existência do ser

humano. Aparece uma forte separação entre humano e relação, restando um vazio

sem palavras e sem brilho. Na perspectiva bíblica este tema está sempre na ordem

do dia. Ali, do princípio ao fim, a humanidade e a jovialidade de Deus criativamente

humaniza relacionando e relaciona humanizando.

Em conformidade com o tema da pesquisa – A busca pelo seu sentido toma

as relações como chave de integração da vida, e, na esteira teológica de Leonardo

Boff – assinala-se que o ‘sentido da vida’ exige um nível mais profundo, uma leitura

humana da vida em processo de construção das suas relações. Trata-se de um

dinamismo vital, no qual o homem e a mulher experimentam-se não ser somente

um elemento a mais nesse mundo. O humano é um ser ativo, capaz de compreender

e transformar as relações históricas, de distanciar-se, simbolicamente, do seu

mundo e voltar sobre si. Nesta qualidade, coloca-se a pergunta pelo profundo

sentido da própria vida.

O sentido da vida e a vida em seu sentido: o ser humano em busca de sua

plenitude: Eis é o tema desta pesquisa. Assis ela navegará pela obra de Leonardo

Boff. Não terá, no entanto, a pretensão de circunavegá-lo, nem de investigar todos

seus horizontes. A pesquisadora ater-se-á aos textos que se irão descortinando, à

medida que a esteira do pensamento do autor lhe indique que por ali tratou-se do

tema, de maneira mais explícita. Com certeza obra alguma de nosso autor seria

enquadrada no âmbito do sem sentido. Mas ali onde o tema estiver tratado, pensado

de maneira explícita ali a pesquisa se posta em atitude de quem escuta, acolhe,

reflete e ousa sintetizar, coligir e propor avanços.

O pensamento de L. Boff é marcado por uma cosmovisão ainda recente,

cujo início está no século XX. É uma cosmovisão não somente nova, mas

questionante. Os novos desenvolvimentos das ciências físicas afirmam que o

cosmos está em evolução. Doravante, o tempo é categoria para explicar tudo que

seja cósmico, físico, biológico, humano. Fora do tempo, entretanto, adivinhamos

uma Realidade originadora e fundadora do universo, sem a qual o universo seria

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 19: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

19

um monólogo vazio: seria palavra de ninguém e expressar-se-ia para ninguém. Esta

Realidade mais profunda confere sentido e unidade a todo existente. Ela se faz

presente na história, sem a determinar. Realidade velada, mistério transparente,

apresenta-se como palavra que cria, resgata e dá sentido, permitindo que o cosmos

seja diálogo, ou seja, expressão com sentido e experiência de sentido.

O ser humano é um buscador de sentidos, por isso mesmo busca as relações,

busca sair de si mesmo. A busca de sentido comporta não só a dimensão relacional,

como também a dimensão da liberdade. Em outras palavras, pode-se dizer que ele

busca sua libertação. O contrário, também é verdade: a libertação orienta a busca e

o encontro do sentido da vida. Na presença radicalmente gratuita de Deus, a

humanidade é chamada, incondicionalmente, a realizar uma existência histórica

criadora de sentido e liberdade.

A atualidade e a importância do tema do sentido da vida têm recebido

fermento renovador por diversos pesquisadores, desde a ética, a filosofia, a

sociologia, a psicologia, a pedagogia, a biologia, para citar somente algumas

principais dentre elas. Elas refletem a crise da civilização pós-moderna. Trata-se de

uma temática de longo e diversificado itinerário, por isto urge discernir as

interferências, entroncamentos, bifurcações do conhecimento imediato, em

consonância às experiências contidas na Sagrada Escritura.

No que tange à antropologia teológica será útil recordar que a noção de

sentido, cuja problemática segue atual na pós-modernidade, tem diferentes

concepções que afetam todas as relações humanas. Desde então se compreende a

busca do sentido horizontalizada para o infinito à luz da realidade histórica, a qual

é sempre interpessoal, se é verdadeiramente humana. Com isto quer se evitar a

banalização da dignidade humana que aconteceria se fosse considerada unicamente

como um ‘dado’ isolado, como outros dados isolados do universo.

As várias ciências e abordagens tangenciadas por esta pesquisa manifestam

a amplidão incomensurável contida na palavra vida. Impossível seria, aqui,

aprofundar suas especificações, comparações e diferenciações. Entende-se que uma

leitura, breve sobre a vida em sede científica será útil. Sua importância para a

pesquisa se deve a descoberta de uma configuração nova do mundo, que compõe a

matriz geradora de uma nova cultura, influenciando todos os âmbitos da vida

humana, nisso que se convenciona chamar de pós-modernidade. Contudo há que

ressaltar que as ciências modernas como a matemática, a astronomia, a física, a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 20: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

20

química, a geologia, a biologia, a bioquímica e as ciências humanas, têm seu próprio

campo formal e objeto de estudo, não sendo, de um lado, teológicos, e de outro, não

cabe à teologia julgar seu valor científico. Neste terreno, buscar-se-á a contribuição

de quem é do ramo, como quem aprende, sem mergulhar nas discussões próprias

daqueles saberes, o que sobrecarregaria a pesquisa.

O saber pós-moderno é multifacetado. A aquisição de conhecimentos

demanda interligações com outros campos de pesquisa. Isto corresponde à

pluralidade de abordagens com a teologia, isto é, a transdisciplinaridade. Para ser

uma palavra atualizada, e não cair na armadilha de dar respostas cristalizadas, urge

que a teologia escute as outras abordagens, dialogue com suas afirmações, sem

perder de vista seu ponto de partida escriturístico; Jesus, a Palavra de Deus, é o

critério de discernimento.

A vida traz consigo desde o começo um sentido que leva a um limiar, que

marca um mais de integração, de relações pluridimensionais, de um Mistério que

se faz próximo. Neste quadro da busca pelo sentido da vida, a pesquisa pergunta se

a concepção antropológica de L. Boff apresenta um aporte e mesmo um novo

paradigma teológico para que o ser humano encontre seu sentido mais profundo.

Para tratar da busca pelo sentido da vida no tecido das relações como chave de

integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff, será necessário ver, isto

é, abrir os olhos internos para ver a realidade a partir da perspectiva da fé, sem, no

entanto, deixar de construir a própria pisada na força do Espírito de Deus. Em seu

modo de viver as relações, Jesus nos ensina um ver que desce até a história para

cuidar da vida em sua inteireza, manifestando solidariedade efetiva e afetiva em

direção a mais vida.

Para estruturar a pesquisa, o primeiro ver apresentará o sentido da vida

humana, sob três pressupostos. A compreensão da categoria existência, que por si

permite resgatar a dignidade inerente a vida. O segundo pressuposto, a vida do ser

humano em chave de compreensão pós-moderna, isto é, como mudança de época,

crise fragmentadora e desperdício da abundância da vida. E em decorrência, o

terceiro, uma reflexão sobre o grito de súplica do ser humano por experiências que

promovam o sentido da vida.

O próximo passo é o ver a realidade do sentido da vida humana, agora na

esteira de Leonardo Boff. Neste percurso, torna-se indispensável conhecer sua

história, marcada ainda hoje pela luta por libertação da opressão a partir de uma fé

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 21: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

21

em Jesus Cristo libertador de toda alienação que estigmatiza a existência humana,

e que faz brotar uma pluralidade de interlocutores. Em seguida será abordada sua

concepção teológica da vida em seu sentido. Leonardo Boff tem uma visão dual

para a vida. Ele inclui o outro, o diferente e considera a positividade da crise, até

mesmo para a morte. Nesta leitura, a vida do ser humano consiste em ser um nó de

relações de abraçamento em todas as direções. Em suma, apreender o sentido da

vida em sua teologia, significa considerar a jovialidade eterna de Deus, revelada em

Jesus, e a busca contínua do ser humano ‘hoje’.

A busca humana pelo sentido da vida tem em vista sua orientação e

identidade. Este terceiro ver torna-se mais profundo, pois considera e amplia o

sentido da vida humana, seguindo a leitura teológica de L. Boff. O chamado do ser

humano à vida implica uma relação com o seu Criador, relação esta de participação

no seu modo de ser. Destaca-se também um dinamismo revelador de vida que será

lido numa trilogia: resumidamente, trata-se do dinamismo de ser humano polo de

diálogo com a natureza, com o outro e com Deus; de ser pessoa, possibilidade de

relação, de ser o outro de algum modo; de sentido, ter a experiência de lucidez,

significação e finalidade. E para concluir, o caráter absoluto da busca do sentido da

vida quer encontrar uma palavra discursiva humana, mas que também seja

expressão de encontro de sensibilidade, força, inteligibilidade, discernimento e

ética.

A pesquisa, assim, quer introduzir a busca de um profundo sentido da vida,

a qual implica dar significação a uma rede de relações conectada, aberta e em

evolução. O ser humano encontra sua realização em uma ordem de grande

complexidade, pericorética, integradora, presente na relação do Mistério-Trino.

Esta busca supõe uma concepção que não apenas contrapõe, mas busca superar a

antropologia moderna tanto do tipo cartesiano, quanto dos moldes do monismo

materialista, e questiona a coisificação da vida humana e a ideia de uma aparente

ausência de Deus.

A linha desta pesquisa tem como pressupostos Deus e o ser humano como

sujeitos de palavra e linguagem. Nesta interação, o ser humano fala humanamente

de Deus, que fala divinamente do ser humano. As palavras, portanto precisam ser

pensadas e pesadas. Pela mesma razão, a busca do ser humano pelo sentido da vida

revela o ser humano como um projeto infinito, de um abraçamento de ternura e

cuidado no interior de um círculo infinito, sem circunferência.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 22: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

22

Esta pesquisadora quer somar-se a outros e outras em sua busca pelo sentido

da vida, e que ao procurar deixam-se encontrar pelo mistério de Deus-Trino, fonte

de toda, busca, de vida. Parafraseando a primeira carta de João: Buscamos porque

Deus nos busca por primeiro; encontramos porque Ele é o próprio encontro;

vivemos porque Ele é viver eterno na vida; amamos porque Deus nos amou por

primeiro (cf. 1Jo 4,19).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 23: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

2 O sentido da vida humana

Acreditar e creditar são verbos que dão impulso para tratar da vida. Neste

diapasão, a vida será abordada na dinâmica de quem vive e aposta ser ela aberta a

um futuro promissor de relações cada vez mais solidárias e inclusivas. Se por um

lado há dificuldade em encontrar-se uma definição para ‘vida’, ou mesmo a

impossibilidade de sua apreensão por palavras, há o risco de ser compreendida de

maneira genericamente superficial pela falta de um conceito. Como primeiro passo,

pode-se explicitar a vida como característica própria aos seres vivos que possuem

estruturas complexas, capazes de resistir a diversas modificações, aptas a se

renovar, a crescer e a se reproduzir.

As mudanças pós-modernas têm não somente questionado os conceitos e

sentidos, como também transformado ou relativizado seu significado. Na realidade,

vida tem sido associada em ampla escala, à violência, à subordinação às coisas, e

pior, simplesmente denegada.

A vida é central no anúncio de Jesus. Ela acontece no horizonte de um

processo contínuo que tende para a eternidade. A grande travessia é a morte,

acontecimento biológico e pessoal que não está isolada da vida, nem está projetado

para um futuro remoto. A morte acontece continuamente e cada instante pode ser o

último. A vida é para ser vivida, ela é mistério, assim como também a morte. Vida

tem dimensão temporal, de chegar ao termo de uma caminhada, e dimensão

espiritual, de possibilidade de plena realização da identidade mais profunda do ser

humano, isto é, a Ressurreição.

As ciências revelam a precariedade das decisões terrestres. Ficam as

perguntas: como construir no tempo uma eternidade? Como decidir dentro de tanta

precariedade o destino eterno? Experiência universal e inexorável no ser humano,

a morte é apenas o fim do começo, isto é, a semente de eternidade plantada em nós

no tempo pode finalmente germinar e florir.

A temática da vida é bastante ampla e abrangente. É uma discussão

infindável, condenada a ser antinômica a desembocar sempre na aporia dos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 24: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

24

conceitos. No entanto, o ilimitado dos discursos, nada mais faz que revelar o infinito

que é sua explicitação, seu significado, seu sentido que, justamente, ultrapassa toda

narrativa humana. A linguagem racional humana não esgota o fenômeno ou

experiência da vida, quando constrói dela uma definição. De fato, ela tem sido

objeto de indagações minuciosas e incessantes, que procuram compreender desde

processos de auto-organização e de autocomplexificação do universo, até aqueles

da evolução e das inter-relações, dos seres vivos uns com os outros e com o mundo

que os cerca. O irredutível processo da vida implica uma análise não só teórica, mas

reveladora de um modo de ser, cuidado. O cuidado mostrar-se-á como princípio e

constituinte de humanização e desvelará o afeto como modo de co-existir com os

outros.

O ser humano, que se constitui a priori como ser de linguagem, tem

necessidade de racionalizar suas experiências. Esta exigência de racionalidade não

esgota as relações, mas é expressão válida da vida mesma. Na busca de esclarecer,

em forma de linguagem, o processo da vida, L. Boff expressa que “a vida consiste

na auto-realização de um ex-istente1”. Com estas palavras, ele sublinha que a vida

“possui interioridade”. Ela chama a realizar seu processo a partir de um “de dentro”.

Implica o Ser em plenitude e a participação ativa de convivialidade com o outro,

nesta via, “captamos o sentido da vida”. A ex-istência comporta uma relação

dialética de ser que “a partir de dentro (interioridade) se relaciona para fora (ex),

para outros seres, estabelecendo comunhão e relações de dar-e-receber”. Assim,

existência na esteira teológica de Leonardo Boff tem caráter de sentido da vida, e

exige uma leitura mais ampla de seu pensamento.

Quando a pessoa se confronta com a vida, acontece a procura por um sentido

que seja absolutamente importante, que, ao mesmo tempo, perpasse e ultrapasse

todas as suas vivências pessoais e coletivas. Para ser pleno deverá ser um sentido

último e transcendente a tudo. Neste instante, emerge do mais profundo do ser

humano uma espécie de voz que quer abarcar a globalidade da realidade e que se

destaca de todas as outras. É uma voz que gostaria de expressar em uma única

palavra a totalidade da experiência humana, a totalidade da realidade e a relação

entre as duas. Os artistas buscam-na, os céticos negam-na. Sempre incompleta,

continua desejada, mesmo quando negada. Qual seria a grande palavra da vida?

1 BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 159.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 25: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

25

A vida irradia sua transcendência e encontra seu centro de sentido, por vezes

esquecido ou perdido, no interior da espiritualidade. Ela é o espaço interior do

alimento e do cuidado de todas as experiências, a partir do qual todas as coisas se

relacionam. Ter um sentido para a vida tem alcance existencial antropológico. Por

conseguinte, o pluralismo de opções de sentido produzidos e ofertados mais conduz

de o ser humano a estabelecer um “eixo articulador para a existência”2 a partir de

sua realidade histórica.

Lima Vaz afirma que o tema do sentido ocupa lugar privilegiado no

pensamento contemporâneo. A busca pelo sentido é uma questão de caráter

existencial. Esta questão configura toda experiência humana da existência e brota

pela necessidade de viver a verdade de seu ser na verdade do conhecer. É o ser

humano que conhece e sabe que conhece, que se pergunta pelo sentido da sua vida

e de toda a vida. Outrossim, não se pergunta pelo sentido sem haver referência a

um fim, mas se norteia por um horizonte sempre mais amplo. A questão do sentido,

portanto, é sempre antropológica, na explicitação deste filósofo.

Descobrir o sentido na floresta dos sentidos possíveis é, pois, a tarefa por

excelência do ser humano enquanto portador do lógos, pois só a ele, aberto constitutivamente ao ser e à verdade, é oferecido o supremo risco de enunciar o

sentido verdadeiro e, assim, de interpretar as razões do ser em razões do seu próprio

viver3.

A questão do sentido da vida do ponto de vista histórico, tem itinerário desde

a filosofia grega e é transversal na Sagrada Escritura. Destas duas chega à

espiritualidade cristã, alcançando atualidade e emergência no clima intelectual pós-

moderno4. A razão filosófica impõe à teologia refletir “o fundo ontológico dos

conceitos teológicos”5.

Por esta afirmação, a perspectiva primeira é: No princípio, Deus cria a vida

(cf. Gn 1,1ss). As criaturas são efeito da Palavra de Deus. Esta expressão é repetida

2 Cf. AMADO, J. P., “Entre Deus e Darwin: contenda ou envolvimento?”, pp. 85-87. 3 LIMA VAZ, H. C., Escritos de Filosofia III, p.167. 4 Cf. Id., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 5. Seria necessário explicitar que o

que Lima Vaz faz é perceber que a mudança gnosiológica surgida na modernidade, longe de ser

mera mudança metodológica, altera todo o processo de se pensar o conhecimento, sua construção,

seu influxo na história e, portanto, na vida da civilização e das pessoas dentro dela. Deste

pressuposto, a pesquisa, ao refletir sobre o sentido, considera sempre um ser humano que de modos

diversos empenha-se em plurais buscas, mas cuja orientação é a vida como horizonte último da

existência. 5 BOFF, C., Teoria do método teológico, p. 68.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 26: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

26

no Evangelho o qual também visa o começo pelo Absoluto: No princípio o Verbo

existe em Deus. O Verbo é a vida para o ser humano, fundamento pleno de sua

existência (cf. Jo 1,1ss). O vocábulo original em grego λóγος traz muitos

significados: “recolhimento, colheita, unificação, palavra, discurso, colóquio,

diálogo, expressão do pensamento”6. Esta polissemia tão intensa aponta a vida, e já

a vida terrena é projeto ilimitadamente aberto ao infinito e quer ser vida plenificada

em Deus. No entanto, embora seja projeto supra-humano, não é projeto sobre-

humano. Pela fé nos vem um socorro: o Espírito Santo que comunica vida.

Diante do projeto criador de Deus, levanta-se outro projeto, o da anti-

criação: a morte. Em oposição à luz e vida, apresenta-se um projeto de morte e

trevas. É o caminho da escravidão. Nele, o ser humano se faz ‘como deus’, na

concepção da divindade como força arbitrária. Ora aquilo que é arbitrário age

justamente na obscuridade do não-sentido. É contra isso que se busca um processo

de libertação, pois libertação consiste em sair das trevas e ir para a luz.

Vida e morte não são, para nós humanos, simples acontecimentos

biológicos. À diferença dos animais, o ser humano é consciente que existe a morte.

Ele sabe que vive e morre, isto é, existe. A certeza da morte está sempre presente

de algum jeito no horizonte da vida: a consciência da vida vai unida à consciência

da morte. Em sede filosófica lemos: “Viver e morrer são a descoberta da finitude

humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha e minha,

a morte”7. A experiência da ‘finitude’ gera diferentes propostas de vida. Alguns por

fingir ‘infinitude’, eternidade construindo impérios ‘definitivos’, sejam de caráter

territorial, nacional, sejam impérios econômicos. Outros optam pela ‘infinitude’ da

partilha de amor e ternura.

Nessa perspectiva, a afirmação de uma teologia da criação é antinômica,

uma vez que é possível sustentar-se a ideia de um universo eterno e incriado8. Desde

o nascimento da filosofia surge a pergunta intrínseca ao ser humano sobre sua

6 SCHENKL, F.; BRUNETTI, F., Dizionario greco-italiano-greco, p. 517. Transcrito do verbete

λóγος . Tradução minha. 7 CHAUÍ, M., Convite à Filosofia, p. 471. 8 A cosmologia no período Pré-socrático tem um de seus principais filósofos, Anaximandro de

Mileto. Para ele, a gênese do cosmo é explicada como um movimento que é eterno. “Como o

princípio é infinito, também infinitos são os mundos que se geram do princípio. E os mundos são

infinitos não só na sucessão temporal, no sentido de que o mundo morrerá e depois renascerá

infinitas vezes”. O universo seria resultado de modificações ocorridas num princípio originário. Esse

princípio seria o ápeiron, que se pode traduzir por infinito. Ele estaria animado por um movimento

eterno, que ocasionaria a separação dos pares de opostos. E não há explicação de como as coisas

foram se constituindo. REALE, G., História da Filosofia Antiga, p. 56.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 27: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

27

origem bem como sobre o lugar que lhe é próprio neste universo. Na história da

filosofia, um primeiro período denominado ‘cosmológico’ tem por base a

investigação de um princípio universal, imutável que tivesse gerado todas as coisas

e seres e para onde tudo retorna.

No período pré-socrático ou cosmológico,

Cada filósofo encontrou motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e de suas transformações. Assim, Tales

dizia que o princípio era a água ou o úmido; Anaximandro considerava que era o

ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes, que era o ar ou o frio; Heráclito afirmou que era o fogo; Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos. E

assim por diante9.

Portanto, nesta visão, não existe criação do mundo. O mundo é eterno e dele

tudo brota, nele tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer.

A perspectiva de um mundo estático encontra sua crítica numa concepção

pós-moderna de evolução do mundo. Também aqui se fala de um início do universo,

mas não de criação. Este início (o Big Bang) seria mera constatação, não sendo

possível um discurso científico para além dele.

Contudo, o significado da criação do mundo escapa às ideias claras e

distintas, e denuncia a ignorância acerca da visão de Deus sobre o universo, ao passo

que revela um projeto divino na própria estrutura do mundo, projeto divino no

interno ao mundo, desde, mas não exclusivamente no momento da criação ou

surgimento.

Tanto os Padres da Igreja, como os teólogos das épocas posteriores, sempre se aplicaram em formular do modo mais exato possível as relações entre Cristo e o

mundo. Mas o mundo que eles tinham em vista era um mundo estático, unido a

Cristo numa relação antes jurídica e acidental. Porém, numa concepção evolutiva do universo, tais laços tendem a adquirir um vigor não mais puramente extrínseco,

mas orgânico10.

O século XIX presencia um estudo semelhante ao do período pré-socrático.

O eterno retorno do mesmo, o fluxo perene que está em toda parte, é a pedra de

toque da filosofia de Nietzsche. O eterno retorno substitui a metafísica e a religião.

É o incondicionado e infinito movimento circular de todas as coisas. Se há um

sentido, ele é sempre insatisfatório e mutável conforme circunstâncias e interesses.

9 CHAUÍ, M., Convite à Filosofia, pp. 41-42. 10 STORCK, J. B., Teilhard de Chardin, p. 40.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 28: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

28

O único sentido é, para Nietzsche, a aceitação de não existir nenhum destino, ou a

ser o eterno retorno do idêntico. Seu impulso crítico, pelo qual propõe a demolição

de todo valor, de todo ser que fundamente a verdade, está em fundar a moral no

próprio homem, exaltando sua liberdade. Sua originalidade pressupõe uma moral

alicerçada no próprio homem, encarado na ótica da pós-modernidade, do qual

tornou-se lugar comum dizer, justamente por isso, que é o homem “pós-tudo”.

Nietzsche coloca sob suspeição a ideia de conhecimento (filosofia grega), de

verdade (cristianismo) e de sujeito (modernidade, idealismo alemão). Esta postura

acarreta a destruição de valores ou de um ser que fundamente a verdade das coisas.

Então os animais disseram: ‘Zaratustra, para os que pensam como nós, todas as coisas bailam; vão, dão-se as mãos, riem, fogem... e tornam. Tudo vai, tudo torna:

a roda da existência gira eternamente. Tudo morre; tudo torna a florescer, correm

eternamente as estações da existência. Tudo se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se separa, tudo se saúda

outra vez; o anel da existência conserva-se eternamente fiel a si mesmo. A todos

os momentos a existência principia; em torno de cada aqui, gira a bola acolá. O

centro está em toda a parte. A senda da eternidade é tortuosa’11.

Em primeiro lugar, o homem, segundo Nietzsche, encontra-se diante do

desafio de criar constantemente novos valores, numa atitude de aceitação e

afirmação deste mundo como eterno retorno e inocência do devir12. Com a

relativização dos imperativos e a instauração do humano, ser criador de si mesmo

a partir do nada, verifica-se, por lógica, que Deus morreu. Para sobreviver, faz-se

necessário descobrir o humano sem referi-lo a nada, que não seja ele mesmo,

exaltando a sua liberdade13. “Para Nietzsche, todo o processo do niilismo é

assumido na morte de Deus, ou na ‘desvalorização dos valores supremos”14. Uma

nova forma de vida, cuja existência é intramundana, isto é, sem transcendência.

Observa-se que Nietzsche ao anunciar a morte de Deus, mira primeiramente

a morte de um ser divino construído pela filosofia, pela ontoteologia, na expressão

11 NIETZSCHE, F., Assim falava Zaratustra, Apud NOGARE, P. D., Humanismos e anti-

humanismos, p. 163. 12 Cf. HÉBER-SUFFRIN, P., Nietzsche ou la probité, p. 7. 13 Segundo Lima Vaz, o pensamento de Nietzsche não deixa claro se o fundamento da fé no próprio

homem, o “super-homem”, está em continuidade ao homem histórico ou um ser distinto e superior

de vida. Esta pesquisa, não discutirá tal questão. Atém-se somente em considerar a crítica radical ao

seu conceito de verdade, na via de estruturar o indivíduo como ato criador de si mesmo e definir o

sentido mais profundo do ser humano. Cf. LIMA VAZ, H. C., Antropologia Filosófica, p. 145. 14 VATTIMO, G., O fim da modernidade, p. 22.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 29: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

29

de Heidegger, bem como pelas religiões e, portanto, esvaziado de Mistério. Por esta

vacuidade ele é incapaz de conferir sentido à vida e criar relações fraternas.

Em segundo lugar, o anúncio da morte, na verdade, revela que Deus foi

morto pelo ser humano quando este negligenciou sua orientação para o

transcendente, detendo-se no deus, ser postulado por questões filosóficas e

divorciado do Deus da revelação e que se apresenta como Deus amor. O amor é

capaz de novas relações. Um conceito filosófico, não. Deus permanece presente.

Cabe ao ser humano mergulhar na experiência de transcendência, que vai além do

ser e mergulha no mistério de amor.

A contraposição entre o postulado nietzschiano de quem não crê mais em

nada e sua fundamentação no humano em quem se crê acima de tudo quando não

tem mais a força de crer no que quer que seja, não parece abrir sendas para uma

indagação sobre sentido da vida? Como ainda crer em ideais que mal resistem à

desvalorização de todos os valores, à imanentização e à relativização de tudo? O

legado que Nietzsche deixa desafia todo pensamento pós-metafísico que não quer

soçobrar no niilismo. Outras questões se impõem. Pode a presença de um Absoluto

preencher o esvaziamento do sentido, mediante uma presença concreta, palpável,

real? Na contraposição de quem decide dissolver o sentido último, poderia pôr-se a

questão de se em última instância o sentido nada mais fosse do que a projeção de

representações subjetivas? De ambos os lados, estas questões impulsionam a

avançar pela via do sentido, mesmo que haja tropeços (erros?), na caminhada em

direção a uma meta que mal se chega a vislumbrar, mas que não cessa de se

apresentar, pelo menos como um interrogar-se por um horizonte de sentido. De fato,

trata-se de questões válidas e intrínsecas à busca do sentido da vida, que não podem

ser negligenciadas, nem se contentar com respostas abstratas de silogismos e

inferências, ou concretas, de cunho reducionista. Este tipo de referência ao sentido

do ser circunscreve, na verdade, o não-sentido, pois o sentido, aqui, está no domínio

da aparência, justamente na imanência absolutizada do sujeito15.

A questão do sentido está em referência a um ser humano concreto, situado

na história, ao mesmo tempo aberto e desejante de totalidade, de plenitude. Por

causa disso, o ser humano planeja manipular o futuro. No entanto, a busca pela

autenticidade anuncia/denuncia que toda manipulação é falsificação. O ser humano

15 Cf. LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 10.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 30: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

30

é ser projeção para sempre mais, mas a vivência do Mistério supõe o não controle

ou manipulação. A abertura ao Mistério supõe abertura à surpresa para o que está

fora de sua pré-visão, para o Ainda-não. A busca de um horizonte de sentido que

engloba o ser humano, mas está além dele, indica-lhe não possuir o centro em si

mesmo, mas fora, isto é, em expectativa que ainda não se deu, mas que, para quem

crê, já se encontra realizada em Jesus Cristo.

O ser humano experimenta o vazio e a insatisfação, vive a angústia da busca,

constata a insuficiência da empeiria (ἐμπειρία), e deseja a integração que supere sua

fragmentação. A Filosofia Antiga, com Anaximandro, Século VI a. C, e a

contemporânea, com Nietzsche, Século XIX d. C., têm em comum o desejo humano

de encontrar-se o princípio universal e eterno que gera todas as coisas e de onde

tudo retorna. Este mesmo desejo reveste a época atual, pós-moderna, embora sob

formas originais e sob muitos aspectos inquietantes. Levanta a interrogação

fundamental sobre o sentido da vida humana, individual e coletiva. Concerne, pois,

à civilização humana e à forma de orientar seu viver.

A questão do sentido é independente da ideia de um universo eterno. Como

se sabe, recentemente, abre-se um período novo na cosmologia16. Não há como

desconhecer as descobertas do Século XX que apontam que o universo teve um

começo, ele é finito em idade e extensão.

O fato de o universo continuar a se expandir espacialmente só pode significar que

deve ter havido um começo em algum momento do longínquo passado. Como a gravidade tudo atrai, se o universo tivesse existido sempre, todo corpo material

nele existente ter-se-ia agrupado a outros17.

Deste pano de fundo científico, portanto, sabe-se que o universo não tem

idade infinita, ou seja, ele teve um começo. Afirmar a criação do universo, por seu

lado, implica não ser este começo um absoluto, ou seja, implica não ser ele auto-

originado, nem necessário; antes, contingente, carente da graça ilimitada de Deus.

O questionamento da auto-origem não está tanto no plano dos fatos, quanto neste

16 Consoante a este pensamento, temos Tanzella-Nitti o qual afirma que a cosmologia física hoje

abre horizontes, que permitem afirmar que o universo possui dimensão histórico-evolutiva. Sendo a

historicidade uma característica densa da humanidade, seria possível uma leitura antropo-teológica

da evolução cósmica? Urge, então, que a teologia acolha os novos conhecimentos advindos da

cosmologia, a fim de crescer na inteligência da fé e examinar as eventuais implicações que ela traz

para a compreensão da Revelação. Cf. TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 154. Tradução

minha. 17 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 165.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 31: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

31

plano da graça. Seja qual for a história última do universo, do ponto de vista da

facticidade, é a graça que, no ato de humilde amor de Deus permite a existência de

uma alteridade relacional que se desenvolva em liberdade. A relacionalidade

inerente à vida trinitária liga-se à razão implícita à noção de mundo inacabado, ou

seja, em processo.

Com o contributo da ciência, a antropologia teológica pode compreender

melhor o ser humano como criatura num mundo em criação, consequentemente um

significativo aumento na compreensão de suas relações. Por esta via, seriam

valorizadas as “ressonâncias cristológicas de uma centralidade teleológica, não

mais geométrica, da vida e do homem, no cosmos”18.

A questão do sentido da vida, assegura Lima Vaz, é tarefa humana por

excelência, pois sendo “portador do logos, aberto ao ser e à verdade, é dado o

supremo risco de enunciar o sentido e de traduzir, assim, as razões do ser em razões

do viver”19.

A antropologia teológica, ao tratar do sentido da existência da vida, amplia

e lança luzes ao sentido do ser como o sentido que subjaz a todo e qualquer sentido.

A filosófica jamais cessou de interrogar o sentido da vida, o Ser, a vida em comum.

Se ela, em dado momento, respondeu sob a forma de um dualismo insustentável,

como tal, não é, de modo algum, certo que não haja outros recursos à disposição de

uma razão sensata.

2.1. A experiência humana da existência

Num primeiro momento, seria bastante dizer que a vida é o comum e o

trivial da existência neste mundo: fala-se a partir da vida e para a vida. Isso, no

entanto, seria uma assertiva fechada e empobrecedora do seu significado, por

desconsiderar as possibilidades e reflexões que dela se podem fazer. Despoja-se a

antropologia da existência e a vida fica esvaziada, quando a análise das estruturas

de base que geram os fenômenos observáveis é deixada em aberto, inconclusiva,

sem respaldo prático. Neste processo a vida é analisada em suas relações sociais

18 TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 161. Tradução minha. 19 LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 9.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 32: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

32

somente em termos de estruturas relacionais altamente abstratas. Esta concepção

nega o caráter histórico da vida e sua subjetividade, vendo-a como resultado de

forças estruturantes e determinísticas20.

Numa ótica que só a considera em seu aqui e agora, o presentismo, a vida é

relativizada, banalizada, o que a leva a vários tipos de fim: fim da espécie, da

alegria, da utopia, da história, das relações, da esperança da terra da Promessa, fim

do sentido de viver. A vida humana em sua curva cronológica é também tempo no

passado que se pergunta pelo sentido de sua existência, e tempo no futuro que se

pergunta até quando a vida, além do presente que se pergunta sobre o para que a

vida. As dimensões temporais fazem parte da vida e deve incluir uma quarta: a vida

eterna. Esta dimensão em nada se assemelha ao futurismo, mas inclui e está incluída

nas outras21.

A vida é lugar da encarnação de Deus e de sua revelação aos homens e

mulheres. As libertações experimentadas nesta vida já são começo da vida que vem

de Deus. Não há hiato nem oposição, e sim passagem entre a vida terrena e a vida

eterna. A vida eterna não dá seu sentido à vida presente de maneira extrínseca.

Longe de ser uma evasão, a esperança da vida eterna fecunda a história da liberdade

humana e as escolhas éticas que decidem seu destino eterno. No agir de Jesus não

há duas libertações, uma na história outra para a vida eterna, pois, “Transcendência

e imanência são dimensões de uma realidade global única. A Salvação já está na

História e em seu processo de Libertação para a plenitude escatológica”22.

Na verdade, o falar da vida traz o risco de quedar-se em lugares comuns, e

questiona-se ou mesmo torna-se inválido o falar dela, pois só se pode falar a partir

20 Em linhas gerais, o estruturalismo sustenta que o sentido da realidade não tem um fenômeno

original, mas é redutível a um não-sentido. Cf. OUTHWAITE, W., Dicionário do pensamento social do século XX, p. 275. Para Giddens, a pós-modernidade tem origem no pensamento estruturalista.

Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, p. 52. 21 O estudo aqui sobre a existência e a vida não está na linha do existencialismo. Ou seja, não se

trata de um conjunto de teorias formuladas no Século XX, com forte influência do pensamento de

Kierkegaard. Este pensamento ao dar maior importância ao finito, ao que surge e desaparece, define

o homem como ‘um ser para a morte’, isto é, um ser que sabe que termina e que precisa encontrar

em si mesmo o sentido de sua existência. Há uma bibliografia extensa no âmbito geral ou específico

sobre o existencialismo e filósofos existencialistas. Uma boa compreensão pode ser encontrada em:

ABBAGNANO, N., Introdução ao existencialismo. Quanto aos existencialistas, como Kierkegaard,

Sartre e outros a obra de PRINI, P. Existencialismo. 22 VIGIL, J. M., “Crer como Jesus”, pp. 945-946.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 33: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

33

da vida. Todos falam a partir da vida, mesmo que fragmentada ou interpretada como

líquida23. Nesta perspectiva, vida é nada interessante.

O interesse da ciência física pelo significado da vida, não se concentra em

afirmar que o universo é vivo, antes, interessa-se em dizer das características das

coisas vivas e suas interações, relações entre si. Sobre isto argumenta o físico, Lee

Smolin.

Nos manuais de biologia lemos que uma coisa viva é algo que partilha as

características do metabolismo, reprodução e crescimento. No entanto, há dois problemas com esta definição. O primeiro é que ela não é muito intuitiva. Ela nada

nos diz a respeito de por que estas características são frequentemente encontradas

juntas ou por que coisas com estas características são encontradas no universo. O segundo problema é que qualquer definição de vida que possa ser aplicada a um

organismo único dá a falsa impressão de que uma coisa viva isolada, solitária

poderia existir em nosso universo 24.

Outro risco é considerar-se a vida muito trivial em seu cotejo com a morte:

para que a vida se há a morte? Ou seja: para que tanto esforço por algo fadado a se

extinguir? É uma postura que dilui o valor e o sentido da vida, de modo que se a

pode tirar ou manter, indistintamente. Nesta perspectiva, vida é desimportante, é

banal. O sentido que muitas vezes se lhe atribui é anulado. Isso conduz ao vazio e

à incredulidade, com inevitável contaminação de outros aspectos e categorias do

pensar a existência e a vida.

A vida ultrapassa a metafísica, valendo, independentemente, por suas

determinações de interpretação do mundo, onde o real e o racional se identificam

reciprocamente, onde o ser é identificado com o logos25.

A pós-modernidade se torna metafísica, recusando embora a metafísica, ao

exigir uma razão particular para justificar cada coisa. Nada escapa às suas

23 Esta é a discussão de Z. Bauman em várias de suas obras. Em sua obra Modernidade líquida ele

inicia com um sucinto percurso do significado de fluidez e liquidez nos processos químicos e conclui

que ambas são metáforas adequadas para ler a história da modernidade. Posteriormente, em outra

obra, Vida líquida, ele liga as duas obras argumentando que a vida líquida tem sido a compreensão na modernidade líquida. Nesta última ele escreve “numa sociedade líquido-moderna, as realizações

individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os

ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades”. BAUMAN, Z., Vida

líquida, p. 7. Id., Modernidade líquida, pp. 7-9. 24 SMOLIN, L., The life of the cosmos, pp. 145-146. Tradução minha. 25 Será feito uso em itálico da palavra logos, a fim de ser mais próximo de seu significado original.

A explicação desta palavra toma certa distância do seu sentido primeiro em dicionários. O mais

comum é sua etimologia do grego logos, significando linguagem ou definição; e ainda, palavra,

razão, juízo, explicação; outras vezes, para dizer do divino como a razão. Mais aproximativa desta

pesquisa é a compreensão filosófica a qual denomina o logos como o conteúdo que dá a razão de

alguma coisa. Cf. BRUGGER, W., Dicionário de filosofia, p. 255.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 34: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

34

tentativas: a história, a economia, a religião26, e até o inconsciente são feitos

candidatos a dar a razão de sua existência27. Ao se considerar a vida apenas em seu

aspecto racional, extrínseco, aliado à queda dos valores integradores, e

principalmente, como se dá na pós-modernidade, que se constitui justamente nesta

mudança de época assim caracterizada, dá azo ao surgimento da experiência do

vazio. A razão discursiva não abarca a totalidade do ser. A instrumental, menos

ainda.

A complexidade da vida induz a falar de sua existência com reverência e

cuidado. Esta será a sentinela, e a via da negação será o caminho até aqui, porque

as ideias não abarcam seu conteúdo e as palavras não externam sua inteireza. A

preocupação será com o sentido da vida, sobre o qual pesquisar, vendo-a – a vida -

enquanto relações na esteira teológica de Leonardo Boff. O ser humano é um ser de

relações. Estes dois termos “ser” e “relações” exprimem dois polos cruciais de

preocupação. De um lado, chama a atenção para um pensamento metafísico

fechado, que fala do ser humano como algo pronto, do qual poderíamos, quando

muito, burilar algumas virtudes e cinzelar alguns defeitos. De outra parte, é

angustiante ver como pensadores, desejosos de captar o ser humano em sua

dinâmica de ser mais que si mesmo, de se superar, esvaziam-no de toda

substancialidade, para destacar seu construir-se histórico.

26 Em tempo de pós-modernidade os perigos ecológicos, catástrofes na natureza, epidemias, fome, morte, e outras ameaças à vida, que outrora tinha a religião como o depósito de suas explicações,

hoje o contraste é muito nítido. A cosmologia religiosa é substituída pela observação empírica e

conhecimento científico. Uma realidade estruturada sobre os perigos e explicações tem muito pouco

lugar para o Transcendente. Este desaparecimento da religião não parece resultar por completo numa

secularização. Em meio a muitas críticas, constata-se a dimensão religiosa voltar com muita força,

porém com acentos diferenciados. A volta ao sagrado é caracterizada pela construção autônoma de

um sistema de fé individual, personalista, livre de uma tradição religiosa herdada. Nesse contexto,

misturam-se elementos e aspectos velhos com os novos. Verifica-se entre a religião e pós-

modernidade um processo pelo qual uma modela a outra, e vice-versa. Danièle Hervieu-Léger,

socióloga francesa, estuda o fenômeno religioso na realidade atual. Em seu livro -

La religion en mouvement - chama a atenção para a busca frenética por experiências religiosas e a criação de um cosmo sagrado pelo ser humano; crer sem pertencer. Como ilustração, no Brasil,

podemos citar as multidões que se reúnem em torno de um padre para uma missa-show. HERVIEU-

LÉGER, D., La religion en mouvement. 27 O naturalismo científico crê que a ciência pode explicar tudo em última instância. HAUGHT, J.

F., Cristianismo e ciência. Nesta obra o autor analisa a relação entre teologia e naturalismo.

Contrabalança as relações entre a teologia e o meio acadêmico, e critica fortemente o materialismo

científico que, segundo ele, é de natureza tão dogmática quanto os mais fervorosos núcleos

religiosos. Convida a refletir sobre o reducionismo da natureza, que pela própria metodologia

científica, não fará o ser humano possuir uma compreensão mais adequada do meio natural e do

universo somente por si; e que a busca pelo conhecimento do universo não pode e nunca poderá

deixar de lado as questões de ordem metafísica, espiritual, teológica.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 35: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

35

Deste modo, o ser humano é sem ser estático, é movimento, é ser de

relações, sem deixar de ser alguém. Deve-se procurar contemplar simultaneamente

seu ser e seu vir a ser, embora se saiba que as características do discurso racional

obriguem a distinções e enumerações. Mas são importantes os dois polos desta

concepção.

Para entender o que é a vida, especialmente vida humana, será útil reportar

primeiramente à perspectiva de Aristóteles. Este pensador parte de uma perspectiva

empírica e chega a um pensamento metafísico. Esta trajetória permite partir da

convivência concreta conosco mesmos, enquanto seres humanos, tendo, no entanto,

uma abertura para se ir além da simples experiência, à sistematização. Ou seja:

Aristóteles propõe-se a partir do concreto, o que é muito a gosto também da

modernidade. No entanto, uma progressiva interiorização, tende a levar da vida

biológica à vida propriamente humana e desta à vida espiritual (imortal) 28.

Na verdade, há uma dificuldade a ser enfrentada, e esta consiste em

elaborar-se um discurso de caráter científico, que apreenda o ser humano, na sua

realidade de ser que é, mas também se faz. Para indicar esta realidade, será

empregado o termo “existência”.

No que tange a existência, Aristóteles compreende como “a ciência dá a

razão de ser tanto de uma coisa quanto da sua privação, embora de modo diferente;

a razão de ser é de ambas as coisas, mas especialmente aquilo que existe”29, aquilo

que na realidade é de fato, a razão de ser de uma coisa. A antropologia aristotélica

é estritamente uma filosofia das coisas humanas. O que distingue o homem de todos

os outros seres é sua racionalidade, ele é um zôon logikón30. Enquanto ser dotado

28 O pensamento platônico compreende a vida num dualismo alma e corpo, mundo sensível e mundo

inteligível. Esta ideia tem ainda enorme influência no pensamento e na cultura ocidentais. No

entanto, fragmenta a vida e retoma as concepções de vida citadas anteriormente. Por outro lado, o

pensamento de Aristóteles permite uma discussão mais real para com a vida. Com Descartes abre-

se um novo prisma: o conhecimento constrói seu objeto, a inteligência humana torna-se criadora e

o espetáculo grandioso dos seres não passa de uma projeção da espontaneidade pura do seu espírito. No parecer de Kujawski, o racionalismo encontra um limite intransponível, pois desconsidera a

singularidade, criatividade, individualidade única e insubstituível na vida individual, a qual é

histórica e sempre em movimento no tempo. A radicalidade do racionalismo conduziu a uma

experiência irracionalista, caindo no niilismo. Cf. KUJAWSKI, G., M. A crise do século XX, pp.

118-121. Hoje, parece predominar mais uma visão dualista, seja no pensamento platônico ou no

pensamento cartesiano. 29 ABBAGNANO, N., Dicionário de Filosofia, p. 399. 30 Cf. LIMA VAZ, H. C., Antropologia Filosófica, pp. 44-51. A antropologia aristotélica tem bem

assinalado o seu lugar na estrutura hierárquica da physis, mas tem a capacidade de pensar além das

fronteiras de seu lugar no mundo e elevar-se pela teoria à contemplação das realidades

transcendentes e eternas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 36: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

36

do logos, ou seja, da fala e do discurso, ele é aquele que tem a possibilidade de

construir um sentido para a sua existência, que a torne razoável, justificada pela

razão. Em suma, a existência manifesta o que uma coisa é. Trata-se do existir de

uma coisa, independente de ser pensada ou imaginada. E ela é em si e por si, na

realidade, antes que se possa elaborar sobre ela um discurso filosófico, teológico ou

científico. Torna-se, então, uma violência gritante a atitude humana de anular outro

ser humano, pela discriminação seja física ou psicológica, que só pode ser

desintegradora da vida. As experiências de indignação ou de horror expressam sua

discordância para com tal processo de desintegração. Como profecia e exaltação da

vida, cada ser vivo grita diante do injusto e intolerável. A valoração da vida opõe-

se à violência em vista de fazer a pessoa crescer em humanidade e de criar relações

entre os seres humanos.

A existência é, então, o postulado básico e indispensável. Pode-se dizer que

há na vida um elemento dado, que está para além do apreço ou da hostilidade para

com ele. Entende-se que a abordagem da existência deve encontrar aberto um

discurso que nem mesmo está delimitado pela consciência de considerar, como

única realidade, só o espacialmente visível. Pois há que se considerar um existente,

que não se reduza ao espacial, visível, nem se prenda à experiência imanente da

história. Por exemplo, o Mistério Divino excede toda experiência. Ele existe na

imanência mais intensamente que qualquer outro ser, e existe também na supra

temporalidade, ou seja, ultrapassa o tempo histórico.

A existência é inerente à vida. É palavra feminina portadora da ternura, da

bondade, da sensibilidade, da esperança conectada com toda a criação e igualmente

da carência. Ela é possuída da perspectiva da positividade e da abertura. Ritmada

pela comunicação, pela criatividade, pela expressividade, pela atividade, ela se

caracteriza pela presença que prenuncia a sabedoria, a fidelidade, a interioridade, a

exterioridade, a leveza, a saúde. Configurada pela opção pela cruz e pela

experiência da Ressurreição, gestada para a vida eterna, a existência se mostra não

anti-história, mas trans-histórica, no sentido da possibilidade de se decidir contra as

evidências da força, quando se é levado pela força da evidência. A existência é

categoria integradora, que supõe a convergência do animus e da anima.

O ser humano é impregnado pela busca, almeja sempre superar o dado já

instituído, finito. Sua existência é marcada pela tensão desafiadora entre o finito e

o infinito, o horizontal e o vertical, a imanência e a transcendência. Confessa a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 37: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

37

grandeza e beleza do finito ao experimentar o infinito. Lê os acontecimentos e

reconhece que tudo é Graça. É deste reconhecimento que brota o louvor ao Deus da

criação, a quem a vida humana, particulazinha da criação, deseja louvar. Como diz

Santo Agostinho extasiado pela sabedoria de Deus: “Vós o incitais a que se deleite

nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto,

enquanto não repousar em Vós”31.

Em suas buscas e realizações transparece o esforço pelo avanço técnico, que

igualmente será colorido com atitudes profundamente humanas. Por exemplo,

simultaneamente com os grandes avanços da ciência empírica e das tecnologias dela

derivadas, temos, num nível macro, a Declaração dos direitos humanos, a abolição

dos sistemas escravistas, a ascensão social da mulher, a valorização das crianças,

ou, de uma maneira geral, a luta pela defesa de toda vida combinada com atitudes

de ternura e cuidado. E no nível cotidiano podemos constatar a busca do saber aliada

à beleza e à arte, o zelo pelas relações fraternas.

No entanto, em outro patamar, a ânsia pelo sucesso, a lógica do capitalismo

consumista alimenta-se desta sede de busca. A voracidade consumista de nossas

sociedades é também um sinal da sede de infinito. Mas é também sinal de que esta

sede pode ser desatendida, e por isso nunca há descanso, não há saciedade. Na busca

de satisfação, os bens de consumo têm de ser sempre outros, outra versão, outro

modelo, outro etc. Isso alerta para a dimensão do fracasso, da carência, do vazio,

do não-sentido.

A existência humana aparece, pois, como vocação à busca e que as

respostas, na realidade, abrem novas questões. O encontro da resposta não esgota

sua criatividade. É necessário afirmar que o ser humano em todas as suas relações

está em processo de vir-a-ser. Não se trata de um vazio, de mera possibilidade: é

um ser, o ser humano. No entanto, também não se trata de algo como, que se possa

dizer, uma mônada, encerrada em si mesmo: é um vir-a-ser mais humano. Há um

ser em tensão para o futuro. E mais, o ser humano qualifica sua busca. Os mais

belos argumentos, as mais santas doutrinas ou as leis mais éticas não são senão

desencarnados preceitos moralizantes de comportamento, se não forem expressão

de uma busca pelo sentido da vida.

31 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro I, 1), p. 27.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 38: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

38

Assim, homem e mulher ao procurarem um sentido para a vida nos

acontecimentos, quando não o encontram, experimentam uma perda da vitalidade

e da alegria. Toda ação carente de sentido torna-se aborrecedora. E isto se dá

também, quando o sujeito constata que todas as formas e fundamentos que ergueu

como base de sentido da vida revelam-se desprovidos de valor, por estarem

confiados em alcançar uma meta, que se encerrava em si mesma, sem futuro, sem

pretensão de ser além de si. Pode tratar-se de conseguir algo, num prazer de investir

sem ética, isto é, erigir em valor algo extrínseco a sua vida. Nestes casos, toda

hipótese de unidade, valor supremo e sentido é anulada, pois não há uma

interpretação de caráter global da existência; a multiplicidade dos acontecimentos

carece de unidade, pois carece de valor intrínseco.

Temos, pois na Modernidade, diversos sinais de busca de valor e sentido.

Em todo o período moderno há autores que negam a validade do discurso e da busca

sobre o sentido. De Thomas Hobbes a Hume, de Auguste Comte a Freud, muitos

são os autores, que trilham por esta via. No entanto, abordada de outra maneira,

podemos assinalar pelo menos três vias, pelas quais a modernidade busca sentido

para a vida e o ser humano. Dois já foram apontados. Fala-se da simultaneidade do

discurso filosófico que nega sensatez a esta busca, e atribui valor cognoscitivo tão

somente à ciência empírica com a busca de valores tais como a defesa de direitos,

a luta pela democracia, etc. Igualmente, assinalou-se que o consumismo, situando-

se no final da cadeia de produção de ciência, técnica, bens de consumo, pode ser

lido como sintoma e grave, de que o sentido é negado no discurso, mas continua

latente, no dia a dia32. O terceiro caminho apontado para localizar a questão do

sentido na modernidade é que, esta postura de sua negação, pura e simples, jamais

foi universal, mesmo no Ocidente. O Ocidente produziu e regou uma cultura

secularizada, que alegava ter superado as “pseudo-questões” metafísicas. No

entanto, não consegue simplesmente esquecê-las de um lado e de outro sempre

32 Há uma distinção necessária a ser feita entre consumo e consumismo. Em qualquer modo de

produção e organização social, o consumo é uma realidade presente no tecido de todas as formas de

vida, podendo expressar algo de positivo e até necessário. Diferente é o consumismo, o qual indica

algo negativo por ferir a condição humana. Governado por ‘vontades’, o consumismo se tornou o

propósito da existência quando a capacidade de querer, desejar, ansiar por alguém/algo, passou a

sustentar a economia (grego oikonomía, gestão da casa) mediando o convívio humano. Bauman

afirma ser um modo de arranjo social transformando e transmutando a principal força cultural

humana, e estabelece parâmetros específicos de convivências ao mesmo tempo manipula escolhas e

condutas individuais e coletivas. BAUMAN, Z., Vida para consumo, pp. 37-69.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 39: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

39

existiram aqueles que nunca sequer admitiram pensar coerentemente com estas

propostas.

A experiência instrumentalizada, ou melhor, de destruição do valor e do

sentido da vida conduz ao sentido trágico da existência. Outrossim, a experiência

tem aberto caminhos que levam a viver a fundo a tensão conflitiva entre o real e o

ideal, o extrínseco e o intrínseco, o acaso e o sentido, a sensibilidade e o

racionalismo, o feminino e o masculino, simultaneamente. Entre a visão unilateral

e niilista da vida, o ser humano experimenta, no interior de si mesmo, que algo flui,

que a vida não se encerra na experiência empírica; a vida horizontaliza para um

mais, ser humano é ser para além.

É próprio da vida o automovimento em direção ao aperfeiçoamento de seu

próprio ser. Vista desde seu interior, em um primeiro momento, centra-se,

concentra-se, toma conhecimento de si. Em seguida, a vida transborda em

movimento exterior: cresce, multiplica, evolui continuamente, desdobra-se

inesgotavelmente de dentro para fora; em oposição aos corpos inanimados sempre

rígidos e uniformes, próprio dos artefatos. A vida humana comporta a ideia de uma

força, de um dinamismo que se manifestam ligados sua duração, a seu desdobrar-

se. Esta concepção carece de uma visão que não se restrinja e transponha o dado

empírico.

A fé cristã impulsiona homem e mulher, a lutar pela vida que tenha sentido

e valor, e a rejeitar toda definição fechada em si mesma e fatalista que busca apenas

identificar a vida pela categoria do logos científico ou a vida como propriedade dos

seres vivos. Postura ainda mais nociva seria o empenho em colocar meios,

empenhar recursos de natureza discursiva ou outras, para negar sua dimensão

existencial. A vida na pós-modernidade está sendo questionada em seus

fundamentos. Urge enfrentar esta situação e dar uma resposta, com linguagem

atualizada, condizente ao seu próprio fundamento. Frente a esta situação, a

antropologia teológica possibilita reconduzir a vida a seu profundo sentido.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 40: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

40

2.2. A vida do ser humano em chave de compreensão pós-moderna

Para explicitarmos a categoria de existência, aplicada ao sentido da vida no

quadro geral do aparato conceitual filosófico, principalmente torna-se importante

agora, caracterizar a relação entre pós-modernidade – categoria bem trabalhada

pelos sociólogos, sobretudo, e as demais ciências humanas – com suas influências

na vida hoje.

A ‘pós-modernidade’ é tema de muitas discussões e preocupações de

autores em diversas áreas do conhecimento. Vislumbra-se, no presente ciclo

civilizatório, que doravante será denominado “pós-modernidade”, justamente uma

trajetória social que transmuta os parâmetros conceituais, estruturantes e

ideológicos da modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordenamento

histórico-cultural. Esta transição repercute muito na maneira de vivermos uma

época de nítida diferenciação com relação ao passado. Anthony Giddens argumenta

que a pós-modernidade,

Afora o sentido geral de se estar vivendo um período de nítida disparidade do passado, o termo com frequência tem um ou mais dos seguintes significados:

descobrimos que nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os

“fundamentos” preexistentes da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a “história” é destituída de teleologia e consequentemente nenhuma versão de

“progresso” pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e

política surgiu com a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral33.

No bojo deste fenômeno erige-se nova maneira de ler a vida. Há que se

perguntar pelo peso desta mudança na compreensão do sentido da vida e em que

medida ela marca a construção da experiência humana. É notório que não se trata

tão somente de uma época de mudanças, mas de mudança de época. No primeiro

caso, manter-se-iam as estruturas fundamentais de organização, por exemplo, na

economia, na política e na cultura em geral. A atenção focalizaria mudanças

conjunturais. Seu estudo seria mais simples, pois seria suficiente listá-las e mostrar

sua relação com a estrutura básica subjacente.

33 GIDDENS, A., As consequências da modernidade, p. 52.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 41: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

41

Já mudança de época é algo mais complexo. Mais que mera sucessão dos

períodos históricos, trata-se de profunda transformação do caráter central e

determinante de um período histórico. A mudança de época, aqui, está na linha do

deslocamento de processos centrais da civilização planetária e do abalo dos quadros

de referência que, na modernidade, forneciam ao homem e à mulher uma

ancoragem estável e tranquila.

As mudanças na pós-modernidade de um lado manifestam otimismo ao

considerar o potencial exponencial de inovação em relação ao futuro. O amplo

acesso à tecnologia, por exemplo, permite que todas as pessoas realizem tarefas

antes só eram possíveis a governos ou grandes corporações. É um processo que

possibilita resolver muitos dos desafios da humanidade. Trocas de saberes

compartilhados em redes sociais resultam em realizações concretas. Estima-se que

dados genéticos estarão disponíveis para pessoas em todo mundo. Uma catástrofe

acontecida a muitos quilômetros de distância movimenta recursos humanos e

financeiros em todo planeta em poucos minutos.

O lado perverso desta época é sua concentração de capital e de saber.

Quando se colocam a tecnologia e a ciência a serviço do lucro, e da concentração

de poder agrava-se o dinamismo da dominação em todas as dimensões da vida. A

promoção do crescimento econômico que visa objetivos estratégicos, ilimitados

ignora as necessidades humanas reais e os limites dos recursos da Terra.

A vida pós-moderna é caracterizada pela crescente interligação entre

extensividade e intensividade. Isso quer dizer que, ao lado de tendências

globalizadoras temos relações sociais desenraizadas da situação concreta das

pessoas, bem como uma intensa reorganização do tempo e do espaço. A pós-

modernidade atinge a vida de maneira notável. Pode-se falar de uma crise que,

muitas das vezes, implica mesmo perda de sentido, crise fragmentadora e

desperdício de recursos humanos e materiais. Destas três características duas

revelam e agravam aquela que tem trazido sérios desafios e questionamentos no

âmbito da terceira, que se tornou tema desta pesquisa, a saber, a questão do sentido

da vida.

Uma nova concepção de vida transforma, e com velocidade nunca antes

experimentada, a civilização neste Século XXI. As transformações mudam

reorientam o sentido da vida e abalando a ideia e certezas do ser humano moderno.

Poderão também resgatá-lo? Em todos os casos, e cada vez menos, os velhos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 42: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

42

padrões modernos já não satisfazem, por não fornecerem ao ser humano aquilo que

prometiam. Como observa o sociólogo Zygmunt Bauman

A ausência de felicidade, ou uma felicidade insuficiente, ou menos intensa que o

tipo proclamado como alcançável por todos que tentaram o bastante e usaram os meios e habilidades adequados, é todo o motivo de que se precisa para recusar o

“eu” que se tem e embarcar e prosseguir numa viagem de autodescoberta (ou auto-

invenção)34.

A descrição da civilização pós-moderna já indica que o ser humano é

também ‘pós’ frente ao arcabouço conceitual, que desde o Iluminismo ambiciona

definir racionalmente o ser. A explicitação do conceito de pós-modernidade é feita

por comparação em relação com a modernidade. Como ensina o pensamento

contemporâneo, “pós-modernidade deve ser considerado termo simplesmente

heurístico. Ser obrigado a recorrer a ele implica numa grande humilhação, porque

o prefixo pós revela que, por enquanto, hoje, é a modernidade a autêntica

substantividade”35.

Mas de fato a ideia de pós-modernidade não significa simplesmente este

tempo que vem depois da modernidade. Não se trata de um aspecto meramente

cronológico. Na verdade, a pós-modernidade quer ressaltar o fracasso do projeto da

modernidade. Longe de romper com os parâmetros da modernidade propriamente

dita, há, na pós-modernidade, uma radicalização de suas características

fundamentais.

A modernidade surge basicamente da solução do conflito, havido a partir do

século XIV, quando, de maneira generalizada, nas universidades da Europa, uma

rejeição das explicações racionais a partir da ordem do ser, por uma busca de outras

teorias a serem construídas a partir do acontecer, do fazer, de tudo que tivesse

caráter de concretude. Esta nova maneira de dar explicação racional para tudo, de

não admitir contradição, alimentava uma confiança inabalável no progresso

ilimitado da humanidade. Não debalde fala-se de cultura moderna, expressão que

marca fortemente o aspecto de ruptura com o período antigo-medieval. No plano

do conhecimento, o método empírico formal possibilita a ciência físico-matemática,

cujo elogio julga-se dispensável. Também no campo da ética, o utilitarismo e

34 BAUMAN, Z., A arte da vida, p. 24. 35 MORENO VILLA, M., Dicionário de pensamento contemporâneo, p. 608.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 43: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

43

assemelhados prometem resultados mais rápidos e eficazes que a antiga moral

cristã.

No entanto, o mesmo padrão científico e tecnológico que gerou bem-estar e

produção em níveis nunca antes imaginados, gerou também violência nos mesmos

níveis. Aqui poderíamos colocar como exemplos as duas grandes guerras do século

XX. Mas infelizmente já cabe perguntar se seu pavor não começa pelo menos a ser

igualado por aquele das novas formas de guerra, a saber, o terrorismo, o

contraterrorismo, o tráfico, etc. Assim o descumprimento das promessas da

Modernidade, a descrença em suas possibilidades, as falhas em suas previsões, o

enfraquecimento da ética, dos costumes e do ser humano, da era do consumo de

massa, a emergência deste modo de socialização e de individualização, tudo isso

fomentou nova ruptura com o que foi instituído nos séculos precedentes. Temos

assim, em linhas bem gerais, a caracterização daquilo que dá azo ao surgimento da

pós-modernidade.

Lipovetsky acentua esta transformação histórica

A sociedade pós-moderna é a sociedade em que reina a indiferença de massa, em

que domina o sentimento de saciedade e de estagnação, em que a autonomia privada é óbvia, em que o novo é acolhido do mesmo modo que o antigo, em que

a inovação se banalizou, em que o futuro deixou de ser assimilado a um progresso

inelutável. A sociedade moderna era conquistadora, crente no futuro, na ciência e

na técnica; instituiu-se em ruptura com as hierarquias de sangue e a soberania sacralizada, com as tradições e os particularismos, em nome do universal, da razão,

da revolução36.

Enquanto este autor afirma uma sociedade moderna fundada numa obsessão

pela produção e pela revolução, a época pós-moderna está obcecada pelo consumo,

pela informação e pela expressão. Neste panorama, a existência, a identidade do ser

humano até então descrita como unificada e estável agora é deslocada. Com

frequência, sua descrição é adjetivada como fragmentada, composta de várias

identidades, contraditória37.

As relações são caracterizadas por mudanças abrangentes e contínuas. Mas

também o são formas de reflexão sobre a vida. As práticas sociais são

constantemente examinadas e reformadas radicalmente à luz de novas informações,

alterando constitutivamente seu caráter. Não há compromisso ou promessa de

36 LIPOVETSKY, G., A era do vazio, pp. 10-11. 37 Cf. HALL, S., A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 10-13.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 44: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

44

fidelidade. Não há certezas absolutas. Nada surpreende, pois, as opções e as

opiniões, marcadas pela provisoriedade são suscetíveis de rápidas modificações.

Em todas as esferas da vida presencia-se uma mudança do maiúsculo para o

minúsculo. E não é só questão de mudança da linguística ou vocábulo. Trata-se

antes do reconhecimento de valores e, consequentemente, do aporte do sentido real

no pensamento que se pretenda categorial38. As maiúsculas que permanecem,

permanecem para cada pessoa. Por exemplo, as categorias religião, história, deus,

vida, que outrora eram escritas em maiúsculas, não mais o são. Do ponto de vista

teológico, poderíamos dizer que se trata do exercício da liberdade recebida desde o

ato criador, mas teria de completar dizendo que, pelo destronamento da razão, o ser

humano pós-moderno atribui-se o poder de delimitar o que seja valor e, mais ainda,

eliminar sua existência.

Na Religião, por exemplo, especialmente, vem à luz o aspecto da

Transcendência. O encontro com o Sagrado é o ato de transcendência por

excelência. Ocorre que o ser humano atribui-se o poder de conceber uma religião

sem o sagrado e sem uma experiência pessoal. Para a socióloga, Hervieu-Léger,

“analisar a religião na modernidade conduz ao mesmo tempo ao processo pelo qual

a religião modela a modernidade e a modernidade produz, ela mesma, a religião”39.

Há, é claro, o fenômeno de uma proliferação do religioso. No entanto, o que

se vê é uma religiosidade em dimensão individual, que, ao mesmo tempo acarreta

a extinção da religião no plano da inserção social. Como definir este elemento

religioso fora da religião? A religião é apenas um ‘lugar de trânsito’. Para o teólogo,

J. Moingt em nenhum outro tempo a humanidade viveu sem religião ou ao menos

sem sinais religiosos, como agora. Para ele, o papel da religião, quando bem

entendido, consiste em dar a Deus visibilidade mediante a adoração, e dar

testemunho de sua existência e de ter existido em nosso mundo, no caso do

38 Aqui se trata da mesma palavra ter variados, e às vezes, sentidos contraditórios em diferentes

situações. Ou seja, diante da mesma palavra, uns a consideram fundamental, outros irrelevante. Por

exemplo, há uma grande diversidade de compreensões à palavra ‘sentido’, muitas até contraditórias

entre si. No entanto, aqui não se aplica a uma palavra que tem um significado e posteriormente há

mudança para melhor ser compreendida. Um exemplo clássico, na teologia do século III, os Santos

Padres, até o contato com os Modalistas utilizavam da palavra ‘prósopon’ para traduzir a experiência

do Mistério Trino, posteriormente, mudaram para ‘Hypóstasis’. A circunstância histórica obrigou a

mudança de palavra, com o intuito de não deturpar a linguagem para compreensão da Trindade. Ver

também: VORGRIMLER, H., Karl Rahner, p. 282. 39 HERVIEU-LÉGER, D., "Les manifestations contemporaines du christianisme et la modernité",

p. 302. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 45: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

45

cristianismo. Logo, religião, sem visibilidade, é como se Deus não existisse40. Em

outras palavras, o ser humano (aparentemente) retira Deus da sua existência.

Outra categoria colocada em minúsculo é a vida. Manifestar seu sentido é

objetivo em toda esta pesquisa. A categoria existência, conforme explicitado,

compreende aquilo que existe de fato. A teologia cristã bíblica afirma que a vida é

dom gratuito e amoroso de Deus que dá a vida (cf. Jo 10,10), e vida eterna (cf. Mt

19,29), pois é Ele, o amigo da vida (cf. Sb 11,26).

Seria por demais extenso falar dos benefícios que o avanço técnico e

científico trouxe à humanidade. Começando pela acessibilidade e rapidez

tecnológica, produção de alimentos em larguíssima escala, passando pelas viagens

e contatos facilitados, até a leveza e a graça dos novos meios de produção e difusão

de informações, que são a menina de nossos olhos, são estas conquistas encomiadas

por todos os lados e por todos os modos. No entanto, a abordagem proposta quer

ser crítica. Por quê?

Na verdade, as fragilidades e feridas físicas e psíquicas têm gerado

violências, ceifado vidas. Esta nova civilização apodera-se do direito de determinar

quem deve viver. Os meios de comunicação social explicam os motivos que

ocasionaram o linchamento de uma pessoa, por exemplo, mas pouco falam que esse

ato gerou novas violências e mais sofrimentos. Não se discorre sobre o valor da

vida, não se considera a dor dos amigos. Em breve palavras, o ser humano coloca-

se como senhor da vida, portanto alienado dela.

A religião e a vida, assim como a história deixam transparecer que não são

ocorrências meramente naturais, que pudessem ser isoladas. O ser humano ‘não é

uma ilha’, não tem em si o fundamento da própria totalidade. Relação e relacionar

são duas palavras aplicadas ao ser humano, para dizer que cada pessoa fala a partir

de alguém ou de algo. Consequentemente, o ‘eu’ não é ponto final, nem uma ilha.

O ser humano é um ser de relação interior e exterior.

Pela relação, a pessoa se dá a conhecer e conhece o mundo, num processo a

partir de dentro que irrompe para relações de fora. Trata-se de um movimento

contínuo, progressivo ou regressivo. Relação é processo, e não mero conceito. É

chamado permanente: para o melhor, a abertura, o diferente, o mais, o eterno,

marcado pela esperança e perseverança, por que habitado por uma Presença: o

40 Cf. MOINGT, J., Dios que viene al hombre, pp. 75-118. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 46: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

46

mistério trino de Deus. Esta ótica é um modo de compreender e direcionar a história

de vida e, sobretudo, uma forma de se posicionar frente a ela. Situação histórica

ordinária que faz emergir a concepção de vida como relação, não só teórica, mas

particularmente, uma concepção que parte da busca do sentido da própria vida.

Vale destacar, entre outros, três aspectos da época pós-moderna, que

sobressaem pela constância com que os cientistas da teoria social os realçam e,

parecem estar relacionados com a busca do ser humano pelo sentido da vida, e a

leitura feita pela antropologia teológica41.

O primeiro é uma característica da sociedade moderna, que pode ser

chamado de ausência de um centro articulador ou organizador. Por esta ausência,

falta também o desenvolvimento de uma lei única. Com frequência, a pessoa é

descentrada por forças que lhe são exteriores. Configura-se um movimento

cambaleante e inseguro. Um processo inerentemente contraditório. De um lado, há

o rompimento, ainda que parcial, com a ordem tradicional. Ao mesmo tempo há

uma promoção da autonomia pessoal, de modo a se perder a sensação de firmeza

das coisas. Na ausência de uma autoridade definitiva, ao indivíduo é que cabe

escolher e decidir em que acreditar. A identidade é múltipla, dispersa42. O ser

humano deve empregar suas forças e recursos em consumir. A ideologia lhe diz que

assim irá realizar-se. E se ainda não se sentiu realizado é lhe atribuída à culpa por

ter tido cautelas em suas escolhas. Nesta lógica, sua atenção deve estar sempre

voltada para a última novidade, que na verdade nunca será a última, mas sempre a

mais recente, e é imprevisível e transitória.

Um segundo aspecto sublinhado nesta época pós-moderna está relacionado

à concepção de espaço e tempo. A civilização pós-moderna prima por mudanças

constantes, rápidas e permanentes, caracterizadas pela profundidade com que

afetam as práticas sociais e os modos de comportamento preexistentes. Giddens

descreve que

Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados

porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência

41 Poderiam ser citados outros aspectos também importantes, mas não se dispõem de tempo aqui,

como: o progresso, a história, confiança nos mecanismos de descontextualização, risco e perigos,

identidade cultural, etc. 42 Aqui não se trata do processo mental complexo trabalhado pela psiquiatria denominado

“Transtorno dissociativo e de identidade” ou denominado “Transtorno de Personalidade Múltipla”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 47: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

47

particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são

estruturados por práticas sociais recorrentes43.

Presencia-se uma “compressão espaço-tempo e identidade” nas palavras de

Stuart Hall. Assiste-se a uma aceleração dos processos globais, donde surge o

sentimento de que o micro anula o macro. O mundo parece menor e as distâncias

mais curtas. Os acontecimentos em um determinado lugar têm ressonâncias

imediatas para a vida e os lugares, independente da distância em que se

encontram44. A relação espaço e tempo reconfigura a imagem do ser humano em

suas relações, e tem efeitos profundos sobre a forma como sua existência é

localizada e representada. Uma boa ilustração são as pinturas cubistas de Pablo

Picasso45. Nelas a pessoa se vê a si própria espelhada nos rostos fragmentados.

A dicotomia do tempo e do espaço, que se associa à descontextualização das

relações sociais, contribui para explicar o fato de que, na civilização pós-moderna,

tais relações deixam de ser pautadas por códigos normativos rígidos e localizadas.

Incentivado pelos Meios de Comunicação Social, particularmente a Internet, os

indivíduos constroem modos de agir no plano social e no íntimo, passando a

constituir um elemento da construção da realidade social e individual. A tecnologia

com seu excedente de informações socializa dessocializando e submete o ser

humano ao enquadramento de um ser social pulverizado e glorificando o reino da

dispersão46.

Devido ao excesso de apelos e de estímulos, o espaço e o tempo esvaziam-

se de durabilidade e profundidade. O ser humano perde suas referências e sua

unidade. As relações pessoais deixam de ser pautadas por critérios de valores que

se querem universais ou pelo menos gerais. Tais critérios, conquanto possam ser

externos à pessoa, em seu nascedouro, tais como – tradição, lei, obrigação, ética,

princípios – podem, no entanto, ser interiorizados e assumidos pela pessoa.

43 GIDDENS, A., As consequências da modernidade, p. 18. Ideia que o autor retorna na página 58. 44 Cf. HALL, S., A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 69-73. 45 O Cubismo é um estilo artístico e movimento iniciado na primeira década do século XX, em Paris,

com base em obras de Georges Braque e Pablo Picasso. Tratava as formas da natureza por meio de

figuras geométricas, representando as partes de um objeto no mesmo plano. A representação do

mundo passava a não ter nenhum compromisso com a aparência real das coisas, é menos

representação do que sugestão da estrutura dos corpos ou objetos. Sob este pensamento, parece que

o ser humano não só não tem uma existência, uma concretude, ou uma representação, mas é visto

como algo que sugere, sem definição e identidade, sem ter um ser. Fica restrito à sugestão num

eterno vir a ser, sem futuro e sem destino algum. 46 Cf. LIPOVETSKY, G., A era do vazio, pp. 51-57.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 48: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

48

Diferentes dessas são as relações que tendem a ser baseadas em critérios

exclusivamente internos, isto é, ancorados exclusivamente na subjetividade e no

sentimento de confiança, o que as torna bem vulneráveis, por negarem justamente

no estabelecer relações sua natureza relacional. Em ambas as situações, constata-se

uma busca desenfreada e interminável de si mesmo, que é uma espécie de busca

pelo sentido da vida, mas com sinal invertido.

A diluição do espaço e do tempo proporciona, no dizer de Gilberto de Mello

Kujawski, a deterioração do cotidiano. A experiência de que a razão não explica

toda a existência pode ser associada ao sentimento cósmico do ser humano pós-

moderno “aturdido e niilista, pisando num mundo que corcoveia a seus passos,

posto aí como autêntica excrescência, sem quê nem para quê, cada vez mais absurdo

e contingente”47.

Nesta esteira, o cotidiano com sua rotina é altamente benéfico. O espaço e

tempo estão implicados diretamente nas atividades vividas. Das atividades

rotineiras que residem no respeito e na reverência faz surgir o ritual. Ele impregna

um conjunto de práticas que as confere uma qualidade sacramental. Assim, a

valorização do cotidiano em sua rotina contribui para a segurança ontológica na

medida em que mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro.

O renomado sociólogo Zygmunt Bauman, recentemente deu a conhecer sua

tese central sobre a dialética dos relacionamentos humanos na pós-modernidade.

Ele chama a atenção para a substituição da palavra ‘relacionar-se’ por ‘conectar-

se’. Na mesma linha e em vez de ‘amigos’ prefere-se falar em ‘redes’, como uma

das linguagens da geração do século XXI. O espaço e o tempo são criados e

controlados pela própria pessoa, intercalados por períodos de movimentação

aleatórias e esporádicas, diferentemente dos relacionamentos vividos em

comunidade, com seus costumes, crenças e contextos. Hoje, as relações se dão em

rede, movidas por duas possibilidades: conectar e desconectar. O atrativo é conectar

com novas amizades. Mas paralela está a grande atração: a facilidade de

desconectar, excluir aqueles que eram tidos por amigos48. Na relação frente a frente

47 KUJAWSKI, G., M. A crise do século XX, pp. 60-61. O autor explana mais detalhadamente o que

ele denomina de deterioração do cotidiano como desdobrando-se numa tríplice crise, crise de

identidade, de familiaridade e de segurança, nesta mesma obra nas páginas 54-61. 48 Cf. BAUMAN, Z., Amor líquido, pp. 9-13.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 49: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

49

e olho no olho, quebrar as relações é traumático, porque é preciso dar razões. Na

internet sempre se pode, com um único toque, apertar a tecla ‘DEL’.

Enquanto na civilização pré-moderna, espaço e tempo eram coincidentes e

dominados pela presença, na pós-moderna predomina a separação, as relações à

distância, sem o face a face. O novo espaço, agora regido pelo virtual, oblitera as

relações verdadeiras e profundas. Espaço e tempo podem ser eliminados num piscar

de olhos – uma viagem de avião, satélite ou pelo Instagram, Facebook, WhatsApp.

Espaço e tempo tornaram-se entrelaçados. As pessoas continuam com seus

sentimentos de identificação que, no entanto, estão desencaixados. Com isso quer-

se dizer que eles já não expressam apenas práticas e envolvimentos locais, pessoais,

mas que sem a dimensão espacial, isto é, corpórea, e sem sequência no tempo,

encontram-se salpicados de influências dos quatro cantos do mundo e que retomam

questões já passadas, configurando um questionamento intemporal e não

propriamente atemporal, ou seja, com a vista na eternidade.

Por falar em eternidade, visto ser uma pesquisa teológica, há que examinar,

nesta mesma perspectiva de espaço e tempo, a relação de Jesus com os

acontecimentos, com as pessoas e com o Pai. À primeira vista Jesus parece dar

pouca importância a estas duas categorias. Contudo seu diferencial está na

centralidade que ele dá a vida. Exemplar é sua relação com o Templo. Para Jesus,

o Templo não tem valor absoluto e não constitui uma garantia de salvação. Ele

supera a distinção clássica entre sagrado e profano. Sagrado, sobretudo, é o espaço

humano. A vida é sacralizada: não as ideias ou categorias. Sua denúncia não é

contra o lugar do culto, mas a absolutização do relativo. Deus é o sentido absoluto

que tudo abarca, tudo origina, tudo supera e aponta para a vida plena.

O terceiro aspecto a destacar na pós-modernidade é a globalização, de

alguma forma já presente na relação entre espaço e tempo. A globalização conecta

comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o

mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado49. Envolve o domínio

econômico, mas também o da mobilidade da população e da informação, sobretudo

49 Globalização é um termo polissêmico. Há autores que diferenciam globalização de mundialização.

Esta retorna a ideia de uma unificação do tempo e do espaço, enquanto aquela sugere universalização

dos desafios, trata-se dos efeitos transformadores sobre as vidas das pessoas e suas relações sociais.

Globalização refere-se ao processo pelo qual a vida social e cultural nos diversos países do mundo

é cada vez mais afetada por influências internacionais, devido à informatização, ao fácil acesso dos

meios de comunicação social. Aplicado também ao mercado financeiro mundial a partir da união de

diferentes países e da quebra de fronteiras.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 50: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

50

pela Internet. Influencia o acesso de cada um na busca de si mesmo. Altera a

compreensão de sua relação com o mundo, interfere nas mentalidades, nas culturas.

Fala-se em mundo virtual, mundo da Internet, devido a sua forte influência nas

mentalidades e nas culturas.

Favorecido pela globalização, o mundo da comunicação social exerce

grande poder no conhecimento e nos relacionamentos, por vezes, enterrando vidas.

Uma notícia se torna boato que se converte em informação, e resulta em movimento

para curtir, saber dos últimos eventos, e das novidades que deve seguir, com um

perfil bem construído50. Realidade que se converte em todos os lugares,

independente de cultura, classe social, sexo, idade, profissão. Um fato pode

possibilitar retratar o mecanismo vigente através dos meios de comunicação social.

Entre outros, pode-se exemplificar com um caso de maio de 2014. Um boato

rapidamente espalhado nas redes sociais resultou em tragédia no Estado de São

Paulo51. Fabiane, dona de casa, 33 anos, mãe de dois filhos, foi ferida até a morte,

após ser acusada de praticar rituais demoníacos com crianças. A agressão aconteceu

a partir de uma postagem no perfil “Guarujá alerta” que provocou alvoroço em

questão de segundos. Segundo o marido de Fabiane, tudo começou a partir de um

boato gerado por uma página em uma rede social. Ao saber dos últimos eventos,

vários faceiros (internautas) curtiram a mensagem e se puseram a seguir esta

postagem, com revolta.

O processo de globalização vê-se hoje profundamente afetado pela dinâmica

do domínio. A questão para o âmbito em estudo é a ocorrência de um engate com a

tecnociência que, ao ganhar vida própria, passa a concorrer com as buscas e

aspirações mais profundas no ser humano, sobretudo através dos fenômenos

econômicos que a acompanham. O mundo humano se vê cada vez mais

racionalizado, fechado e planificado. A tecnociência invade todos os âmbitos da

vida. Prevalece o tempo do projeto e o polo do futuro, com a desvalorização de

relações fraternas, de atos gratuitos, do encontro para celebrar a alegria ou o luto,

50 Glossário de termos no Facebook. Curtir “é uma forma de expressar uma opinião positiva e se

conectar com o que é importante para você”. Eventos “é um recurso que permite organizar reuniões,

responder a convites e manter-se a par do que os seus amigos estão fazendo”. Seguir “é uma maneira

de obter novidades das pessoas pelas quais você se interessa, mesmo que não sejam suas amigas. O

botão Seguir também é uma maneira de refinar seu Feed de notícias para obter os tipos de

atualizações que você deseja ver”. Perfil “é um conjunto de fotos, histórias e experiências que

contam a sua história”. FACEBOOK. “Glossário de termos”. 51 Cf. ROSSI, M., Mulher espancada após boatos em rede social morre em Guarujá, SP.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 51: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

51

da escuta ao outro, do respeito e da sensibilidade à vida. A ideia de interconexão

entre sistemas operacionais especializados, para formar sistemas interconectados

cada vez mais abrangentes, delineia, enfim, o processo da globalização pela

tecnologia, como nova instituição autônoma do mundo moderno.

Conforme Giddens, a globalização pode ser definida como a intensificação

das relações sociais em escala mundial, que modela os acontecimentos locais, num

processo que fragmenta o ser humano, ao tornar móvel sua identidade e introduzir

novas formas de interdependência mundial52. Um pouco por toda parte, as fronteiras

são dissolvidas, e as identidades deslocadas. A globalização, afirma Stuart Hall,

“tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de

possibilidades e novas posições de identificação”53.

A busca do ser humano no sentido de recuperar sua unidade, escopo desta

pesquisa, demonstra que um elo foi perdido e desencadeado um movimento externo

à própria vida. Ora, o sentido, mais pleno, não encontra seu fundamento em algo

externo à própria vida. Trata-se antes de processo que parte de dentro e irrompe

para relações de fora. Ser pessoa é buscar sempre estar integrada em si mesma e,

para fora, autocomunicar-se e voltar a si mesma, à semelhança do Deus-Trino.

Esta sociedade configura-se também a partir da dilatação do consumo,

fazendo dele seu momento apoteótico. Nela, garante García Rubio, há uma

acentuada valorização da experiência religiosa. Nela está a possibilidade ilimitada

de procura do divino. Cada um é agente vital, não receptor passivo de uma doutrina,

na qual o ser humano é divino. Deus é pensado de maneira impessoal, sendo

descrito por termos como: energia, vibração, etc. A experiência religiosa consiste

de exercícios de meditação e de interiorização, mas não propriamente oração. Neste

registro, tem muita importância o transe, o êxtase religioso, da ampliação da

consciência54, mas não o diálogo, a escuta, a conversão. J. Moingt distingue

experiência religiosa da fé cristã. Enquanto a experiência religiosa nasce numa

cultura onde já existem crenças e por ela é influenciada, a fé cristã não se identifica

52 Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, pp. 69-70. 53 HALL, S., A identidade cultural na pós-modernidade, p. 87. França Miranda acena que a

sociedade moderna e pós-moderna caracterizam-se também como pluralistas. Em sua exigência em

respeitar a liberdade de cada um, configura-se, por isso mesmo, como pluralista. Daí o enfrentar

hoje o problema de alcançar uma homogeneidade e regulamentação entre as liberdades plurais

tornando possível a convivência de seus membros. Cf. FRANÇA MIRANDA, M., A Igreja numa

sociedade fragmentada, p. 51. 54 Cf. GARCIA RUBIO, A., Elementos de antropologia teológica, pp. 138-141.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 52: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

52

de uma maneira absoluta com a religião que a transmite, sua origem não constitui

um fato religioso propriamente dito. “A razão teológica disto é que, o cristianismo

não é só religião, mas também e, sobretudo Evangelho”55. Com isto quer chamar

atenção para o fator fundante que é a Boa Nova de Jesus Cristo.

A globalização possibilita uma pluralidade de opções e de estilos de vida,

mas, também acrescenta incertezas e ansiedade. A globalização tornou-se

extremamente agressiva com respeito à natureza. Além disso, revelou forte caráter

de contradição ao incluir uns poucos em detrimento de muitos, no universo do

consumo, em delimitar a abundância de saberes para alguns privilegiados, em

descartar a sensibilidade e a criatividade que pertencem a própria vida.

Uma constatação parcial referente aos três aspectos citados, ausência de um

centro articulador, processos de mudanças na concepção de espaço de tempo e na

globalização, podem ser descritos como ambiguidade e ambivalência. A pós-

modernidade é ambígua, contraditória, em seu discurso de promoção de um ser

humano livre, por ser o centro de si mesmo. Ela simula que espaço e tempo podem

ser destituídos de significado através de uma tecla do computador, e anuncia a boa

nova da globalização como “a prima rica” que se deve imitar para existir. Em

termos mais concretos, as ações e atitudes serão consideradas válidas, se servirem

ao projeto global de construção e manutenção do poder econômico.

A busca por um centro único depara com propostas falseadas de inovadoras

centralidades para o ser humano, que na verdade, promovem verdadeira

descentração da vida. Entretanto, a permanência de Deus, como centro organizador,

consistente e vital, confere emergente importância para a experiência do sentido da

vida.

A cultura moderna fala de uma tríplice descentração do ser humano. A

primeira deu-se com Copérnico, que o remove do centro do universo. A segunda,

com Darwin, que o remove do centro da biosfera. Finalmente, Freud elimina de vez

a noção de centro, ao mostrar que a consciência governa o ser humano muito menos

do que se acreditava, por causa das pulsões inconscientes. Estas postulações sempre

foram apresentadas como críticas ao cristianismo, por causa de antigas percepções

antropológicas. Mas se se mantiver a ideia de Deus como centro, ver-se-á que os

55 MOINGT, J.. Dios que viene al hombre, p. 112.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 53: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

53

‘centros’ perdidos são secundários, a incluir, neste aspecto, a própria consciência

individual.

Agostinho dá uma chave de leitura para se perceber que a vida, em todas as

suas relações, dimensões e sentido, convergindo seu centro em Deus, não estará

fora do ser humano, já que Deus é intimeor intimo meo. Por esta via mística, de

nada vale um falar distante da compreensão do outro, a palavra é exterior, a

compreensão é interior. É experiência sensível envolvendo o exterior e o interior,

para chegar-se à Verdade.

É no interior de si mesmo que o ser humano tem a possibilidade de descobrir

Deus, ao mesmo tempo, em que descobre a relatividade de seu ser e de todas as

coisas criadas. Neste ato de interioridade, interroga todas as coisas, a terra, o mar,

os abismos, os répteis viventes, o céu, se elas são Deus, o centro vital donde tudo

irradia. E ouve a mesma resposta uníssona, “Foi Ele quem nos fez”. A partir deste

momento, constata que a beleza das coisas está patente para todos, mas só a verdade

interior revela sua expressão exterior. E a Verdade diz a pessoa: “digo-te que és

superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo

pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida”56.

De seu lado, a antropologia teológica, como toda a teologia cristã, assume

estes aspectos pós-modernos buscando resgatar neles o sentido maior presente nos

acontecimentos e nas criaturas. Buscar encontrar Deus em todas as coisas supõe

encontrar Deus em todas as coisas. Encontrar Deus supõe experimentar o cuidado

e a ternura que Ele coloca ao criar a vida. Isto reconduz todas as coisas, seja aquilo

que parece o bem, seja o que parece o mal, para a sua unidade em Deus.

No afã de cumprir uma agenda da qual a modernidade não deu conta e que

preconiza a razão como fundamento da certeza e substitutiva da tradição da

sabedoria humanizada, a pós-modernidade, deixou de lado a preocupação

ecológica. Este esquecimento pode ter uma de suas razões no cientificismo. Em

épocas pré-modernas havia uma leitura do mundo, bem como de seus elementos,

numa perspectiva de mistério. Hoje o mistério foi retirado e deu lugar a uma

explicação empírico-matemática e funcional das coisas. Num primeiro momento,

isso dá uma impressão de segurança. Imagina-se que, conhecendo a natureza das

coisas e como operam pode-se intervir e controlar tal operação em proveito próprio.

56 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro X, 6) p. 244.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 54: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

54

No entanto, ainda que relativamente mais protegida da atuação das forças naturais

do que em tempos pré-modernos, a vida está submetida a outros riscos. Temos, por

exemplo, a pluralidade de interpretação e muitos desacordos ao se falar de um

mesmo produto mesmo entre especialistas. Temos também a impotência do

especialista diante das decisões políticas Pode-se citar, à guisa de exemplo, a

situação de um perito em logística de armas a quem resta apenas a possibilidade de

“torcer” para que não haja guerra conforme um esquema que ele estabeleceu, mas

sem certeza que não acontecerá. É incerto que mais conhecimento seja

automaticamente proporcional ao controle do destino 57.

A pós-modernidade interfere na compreensão do sentido da vida. Ela

estabelece como centro de significação uma realidade objetiva, externa, exógena.

O próprio ser humano é visto como um elemento, melhor, um produto do universo,

dele totalmente dependente, para existir e para deixar de existir. Nesta perspectiva,

surge a constante necessidade de novas experimentações frente à frustração pelo

objetivo não alcançado. Há sempre a carência de outro carro, outro celular, outro

amigo, pois a insatisfação continua. É neste momento que se verifica a busca

contínua do ser humano pelo sentido da vida, que emerge de dentro de sua realidade

histórica concreta, em processo a partir de dentro que irrompe para relações de fora,

num movimento endógeno, a que a pós-modernidade não responde. Ela suscita a

consciência das pseudo-compreensões que ela mesma apresenta.

A vida do ser humano na compreensão desta pós-modernidade eleva o risco

de a existência ser transformada em mero vocábulo ou realidade para uns poucos.

Por outro lado, o ser humano que exclui o outro exclui a si mesmo da possibilidade

de diálogo com este outro. Neste ínterim o sentido que plenifica toda a vida em

Deus, a integração da vida a qual o ser humano é chamado, a vida em abundância

conferida no ato criador, pode estar volatizada pela dispersão do sentido, pela

geração de crises e que tornam escassa a vida.

57 Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, pp. 144-149. Sobre ecologia, o autor

apenas sinaliza que foi deixada de lado a preocupação ecológica. A preocupação por critérios de

qualidade de vida coloca em questão o problema do sentido da nossa existência individual e coletiva,

local e global.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 55: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

55

2.2.1. Mudança de época, mudança de sentidos

A mudança de época que desemboca na constituição da pós-modernidade

revoluciona concepções, multiplica os léxicos e dá novos significados aos

relacionamentos. De maneiras e intensidade diferentes, todos são afetados, estamos

todos no mesmo globo. A mudança de época, da moderna para a pós-moderna,

radicaliza a mudança do eixo das preocupações, aprofundando o desinteresse pela

pergunta, intrínseca ao ser humano, pelo sentido da vida. Mais que nunca, ele

concentra sua atenção em outras esferas, quando comparado ao espírito antigo-

medieval. É o que se pode chamar de mudança de sentidos, nesta mudança de época.

A pós-modernidade proporciona uma pluralidade de opções e oportunidades.

Baseadas no desejo do ser humano, e, sem medo da redundância, criadas para serem

desejadas. Há ofertas para todos os tipos e gostos. Tudo se torna mercado e

consumo: saúde, educação, religião, a vida58.

Mister se faz afirmar que o ser humano é um ser em constante busca,

chamado a se ultrapassar, a sair de si e de seu mundo a fim de estabelecer relações.

Cientes disso, ditadores da publicidade são diligentes em propagar inumeráveis

ofertas baseadas, talvez, menos naquilo que o ser humano deseja, e mais em ele ser

um ser de desejo, um ser de carência.

Veja-se o caso da publicidade. Ela elabora seu projeto conectada com o

desejo que habita o ser humano e que, ao propagandear seu produto, alia e dá

primazia ao ter sobre o ser. Nesta lógica, quanto mais se quer ser, mais é preciso

adquirir, inovar, acumular, em suma, consumir. Daqui se justifica a necessidade de

sempre criar novos produtos e de consumir ao máximo. O excesso do consumo

proveniente da multiplicação dos objetos e bens materiais conduz à criação de um

58 É a sociedade do bem-estar consumista. Com o acesso ao crédito e a superabundância de ofertas

de consumo, edificou-se uma nova civilização na qual os desejos não são refreados, muito pelo

contrário, existe um incentivo para levá-los a uma exacerbação extrema. “A fruição do momento

presente, o culto de si próprio, a exaltação do corpo e do conforto passaram a ser a nova Jerusalém

dos tempos modernos” (LIPOVETSKY, G., A sociedade pós-moralista, p. 29). A excessiva

preocupação com o corpo cria uma cultura de obsessão pela saúde perfeita e eterna juventude,

propagada pelos conselhos dietéticos, estéticos e esportivos como modelo de vida, confiando a eles

seu bem-estar e felicidade, pois não há lugar para a ascese e a tristeza. Estabelece-se uma relação de

dependência entre o produto e a pessoa. O incentivo ao consumo é feito de forma gradativa, em

pequenas e infinitas doses induzindo a pessoa à compulsão irreflexiva pelo consumo e ao vazio. Não

há escolha pessoal, há, sim, escolha ditada, na qual a liberdade está na etiqueta e na grife.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 56: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

56

mundo de relação com os objetos, de modo que se vive o tempo dos objetos. Estes

parecem possuir uma autonomia com relação ao ser humano.

Surge uma dupla alienação social como consequência da falta de

discernimento desses mecanismos. De um lado, as pessoas não se reconhecem

como sujeitos determinantes da vida social, corroborando a massificação dos seres

humanos. De outro lado e ao mesmo tempo, homens e mulheres julgam-se

plenamente livres, sujeitos das mudanças. É a ilusão de que mudando o penteado,

o carro ou a decoração do apartamento, que as pessoas fazem como e quando

quiserem, muda-se o próprio valor da vida, apesar das condições históricas.

O poder influenciador do consumo atinge as pessoas injetando a

preocupação de adquirir e/ou manter uma destacada posição social. Nesta lógica,

afirma Bauman, “‘mostrar caráter’ e ter uma ‘identidade’ reconhecida, assim como

descobrir e obter os meios de assegurar a realização desses propósitos inter-

relacionados, tornam-se preocupações centrais na busca de uma vida feliz”59.

A sedução da propaganda nega a sabedoria adquirida na vida e mesmo destrói todas

as considerações filosóficas sobre felicidade, fraternidade, solidariedade,

sensibilidade e durabilidade. Os produtos exigem máxima atenção, pois há

minuciosas diferenças entre os modelos, e sua escolha ocupa o espaço do

conhecimento e o tempo para escolher o ideal60. O antigo tempo do discernimento

dos espíritos torna-se o tempo de outro tipo de noviciado, que se emprega no

aprendizado do uso do último modelo dos produtos (carros, notebooks,

smartphones, etc.). Quem domina seu novo produto não se torna, no entanto,

59 BAUMAN, Z., A arte da vida, p. 21. 60 Favorecido pela inclusão digital que possibilita o acesso de todos na sociedade da informação,

todos os produtos são disponibilizados na mídia. De forte influência no imaginário social, os meios

de comunicação têm divulgando a falsa receita de como ser aceito pelos outros, controlando as

subjetividades de cada um para ser seguida por todos. Nem sempre se sabe o significado e a utilidade

do produto para a vida pessoal, o importante é tê-lo na mão para poder mostrar o último lançamento

tecnológico, ainda que se saiba que instantes depois uma outra e mais sofisticada versão será

lançada. Torna necessário, então, um agente que responda qual o melhor produto, do momento. Num

mesmo lugar se encontra ‘resposta para tudo’, esse lugar é o Google, uma empresa que executa milhões de servidores, processa bilhões de pesquisa, vinte pentabytes de dados, oferece softwares,

possui produtos, lidera desenvolvimentos para sistemas operacionais (cf. SIGNIFICADOS, Site.

“Significado de Google”.) e rastreia o interesse do cliente criando um perfil. Uma colossal

enciclopédia de busca dentro de busca, ou uma Desciclopédia. Os meios de comunicação social,

particularmente a Internet, torna-se o centro da vida cotidiana, vendendo seus sonhos, ideias e

valores, levando ao monopólio e ditando o que seja beleza, felicidade, sabedoria, humanidade, vida,

morte. Este projeto diz respeito a uma sociedade cada vez mais constituída de informação e não de

modos preestabelecidos de conduta, em que a pessoa orienta seu viver a partir de escolhas contínuas

que passam a compor a sua narrativa de identidade, sempre aberta a revisões, interações, recomeços;

e mais agravante, perde-se a visão de ser humano, que é ser de ternura, cuidado, portador de um

projeto sagrado e infinito.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 57: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

57

necessariamente um mestre, já que, logo em seguida terá outro novo modelo para

dominar.

O discurso sobre o ser ideal confunde-se com o ser real. Com o

favorecimento pelos modernos meios de comunicação social, as subjetividades

passaram a ser construídas rapidamente em espaços supranacionais. Os

intercâmbios internacionais têm remodelado a configuração das sociedades

receptoras, produzindo novas identidades em escala planetária. A tecnologia é vista

como um instrumento do corpo e da mente. A rede mundial de computadores, como

um ambiente onde se vive. Em grande escala, os meios tecnológicos tornam-se

parte importante da experiência da realidade.

Esta situação gera novos significados. O objeto em si muda sua lógica, por

deixar de estar ligado à sua função original e necessidade definida. Mais que seu

objetivo primeiro de comunicar com outras pessoas, o celular deve ter muitas

músicas, jogos, etc. Mais que função de transporte de passageiros, o carro deve ser

signo de status e ‘liberdade’, logo para cada pessoa um carro. Antes que ser

estrutura física do organismo ou expressão de pessoalidade, o corpo deve ser

investimento divinizado. Antes que para manter a boa saúde, a alimentação deve

estar em conformidade com a receita exótica. Há uma mudança no modo de pensar

e de viver, uma manipulação do ser pessoa e do seu poder de decisão. Os discursos

de liberdade e soberania são apenas mistificações. A própria política é manipulada.

As eleições, quando transcorrem tranquilas, são cantadas e encomiadas como sendo

a festa da democracia. Mas são enviados sempre ingentes esforços para que não se

elejam partidos que apresentem alternativas em economia e política.

Este movimento apresenta uma espécie de reciprocidade, em que a pessoa

é, ao mesmo tempo, afetada e promotora de influências sociais com consequências

e implicações globais. Nele se estabelece uma relação prodigiosa entre pessoas e

objetos. A relação, de utilidade que outrora se estabelecia com os objetos é, agora,

transportada para as pessoas. Estas tornam-se, como que uma pluralidade de objetos

e de abundância virtual, mas, paradoxalmente, de ausência mútua umas das outras.

Portanto, não se trata tanto da falta de relações, mas a qualidade delas. Isto

deve ser um ponto de atenção para examinar no como estão se dando as relações,

pois podem estar no nível do possível e da abstração, sem laços duradouros e

seguros, sem compromisso e bem querer do outro, em suma, como uma relação

líquida. Que altera minimizando o sentido real de relação.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 58: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

58

Os relacionamentos sociais são tecnologicamente facilitados entre pessoas

muito distantes, em razão da expansão dos meios tecnológicos de comunicação e

dos efeitos da globalização, concomitante a quebra de fronteiras61. Nesta lógica,

homem e mulher têm renunciado a sua autonomia, de modo que o tempo dos objetos

determina e delimita o tempo das pessoas e entre as pessoas. “É o ser humano que

é definido como ser de consumo, e não somente a sociedade que é vista como

consumista”62. Esta inversão de ordem e de valor provoca a sensação de existir e de

viver na pessoa, simultaneamente, põe em perigo o sentido de sua existência e de

sua realização como ser humano. Consumismo e individualismo conjugam-se, e

excluem o caráter relacional e de abertura, coerente com a existência humana.

A atitude de exclusão significa ausência da espiritualidade, pois

descentraliza, fragmenta e estanca a vida. Além de promover o individualismo, gera

personalidades áridas, hostis e antissociais. As pessoas são encaradas como

empecilhos à satisfação dos desejos individuais. Nesta ótica, o ser humano fica

desprovido de relação e de certeza, e consequentemente, desprovido de sentido.

A quebra das relações faz lembrar o Mito de Procusto. Diz um relato que

viajantes que transitavam entre as cidades de Atenas e Megara, deparavam-se com

um bando de salteadores liderados por Procusto. Este bando tinha uma

característica cruel: obrigavam os viajantes a deitarem-se na “cama do castigo” feita

por Procusto. Essa cama tinha uma medida exata. Se a pessoa fosse maior, teria

suas pernas e pés mutilados e se fosse menor seria esticada. Todos teriam que caber

no tamanho exato da cama, mesmo que isso lhes custasse a vida63. A não aceitação

do outro, do diferente, do irmão, fragmenta o ser humano, quando não fisicamente,

pior talvez, psicologicamente devido seu esquecimento. Ao construir a cama do

castigo, a intenção foi de acabar com as diferenças, colocar todos dentro de um

mesmo padrão. A solução é imediata: se sobrar, corta-se. Se faltar, estica-se64.

Neste mundo carente de certezas, a dúvida tem efeitos para muito além do

campo científico e assume uma dimensão existencial. Nesta ótica, o ser humano já

61 PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ". Compêndio da doutrina social da Igreja, p. 100. 62 BAUDRILLARD, J., A sociedade de consumo, pp. 51-67. 63 Cf. BRANDAO, J. S., Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, p. 327. 64 A intolerância e a violência tem sido os ‘procustos’ desta época pós-moderna. Hoje, permanece a

luta oculta para mobilizar as pessoas tidas como ameaça à identidade, assim cresce o tipo de

exclusão: raça, sexo, idade, nacionalidade, time de futebol, digital, etc. (Cf. HALL, S., A identidade

cultural na pós-modernidade, p. 56). O índice de homicídio cresce a cada dia e ocupa as manchetes

dos jornais.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 59: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

59

não se conhece, não se experimenta. É um aspecto da já mencionada mudança na

concepção de civilização. Como foi dito, configura-se uma nova civilização e

antigos valores foram substituídos por novos. Esta nova configuração percebe-se

também na linguagem, pois dos antigos para os novos valores, muda-se a expressão,

o vocábulo. De pessoas, o ser humano torna-se consumidor. No lugar dos direitos,

tem-se a aquisição de bens de consumo. Do esforço coletivo, passa-se ao esforço

individual. Da admiração pela experiência de vida passa-se à preocupação com a

competência técnica. Da solidariedade, para a competição e a meritocracia. Passa-

se da honestidade, para a eficácia; de atender às necessidades básicas, para pagar

dívidas; de ética, para os fins justificam os meios.

Esta civilização ocasiona profundas feridas nas relações sociais. Nela a

violência selvagem encontra ambiente propício para se desenvolver e assumir o

controle da vida65.

Também já foi dito que a mudança de época da pós-modernidade, em sua

ambiguidade com relação ao passado e sua adesão ao ceticismo arrasta consigo uma

mudança de sentido. Por isso mesmo a pesquisa assume a tarefa de perguntar de

que sentido se trata. Ora, como já foi explicitado, a mudança de época, a pós-

modernidade, altera a compreensão do sentido da vida. As mudanças estão abalando

a concepção de ser humano integrado. Uma perda de sentido, por vezes,

denominada deslocamento ou descentração do sujeito. A ausência de sentido com

65 Os diferentes âmbitos da vida são tocados por uma nova chave de leitura, segundo a qual riqueza

e pobreza são realidades independentes. O pobre é pobre porque é incompetente e rico é rico porque

é competente não pode ser responsabilizado pela pobreza; aumentando assim o abismo entre ricos e

pobres. Os direitos passam a ser desqualificados pela nova ideologia que os traduz por privilégios,

forma sutil de os invalidar. A luta por direitos, mais básicos como moradia, é denunciada como

corporativismo. O imenso território brasileiro tem tanta terra, mas mesmo aqui se deve lutar pela

moradia. A população se divide. Para uns a luta por direitos significa vagabundagem. Outros são

indiferentes, outros ainda aproveitam da situação para requisitar mais moradia para si próprio. Os

direitos sociais são substituídos por bens de consumo: os indivíduos não são mais pessoas com

direito à saúde, à educação, por exemplo, mas são consumidores. Saúde, educação se tornam mercadorias a serem consumidas, podendo ser vendidas e compradas. E quem não pode comprar

está fora, não existe para o sistema. O direito à vida passa a depender do fator da competência.

Sobreviverá quem for capaz de competir. “Quem for competente vencerá”. Este é o argumento, esta

é a “lei da vida”. A nova civilização se diz bem preocupada com as questões ecológicas e denomina

de catástrofe natural quando o resultado de seus projetos arquitetônicos fugiu do seu controle ou

nem foi previsto. Assim, por exemplo, o acidente nuclear de Chernobil (1986) a nuvem radioativa

ultrapassou a extensão da central nuclear atingindo outras terras ou mesmo o acidente do metrô em

São Paulo (2008) cujo relatório descrevia que as causas eram imprevisíveis, como também, o

rompimento da barragem em Mariana/MG (2015). Nesta hora, as causas são investigadas e novos

recursos são aplicados, as vítimas e seus familiares só aparecem em números estatísticos. Neste

ambiente, os jovens estão no meio do “tiroteio”, sem referências.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 60: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

60

o qual se pode identificar ocasiona a desconstrução de identidades e a retirada da

transcendência.

Torna-se claro que a mudança de sentidos geradora de crise, nesta mudança

de época, aplica-se a sentidos que se limitam à ordem da imanência, criação do

humano pensante. O sentido da vida está para além da imanência, está para o

transcendente, o infinito. Só o infinito - que é Deus - sacia uma ânsia infinita – que

habita o interior humano; o infinito da abertura infinita do ser humano. A

predominância do logos empírico-matemático-operacional sobre as demais

dimensões da vida fragmenta o ser humano. Entretanto, não extingue o impulso

pelo mais, melhor e eterno que nele habita.

2.2.2. Crise fragmentadora do sentido da vida

Neste item, o primeiro passo será um esforço de compreender a crise pós-

moderna e, em seguida, anotar alguns caminhos possíveis de abordar a crise do

sentido da vida. Que queremos dizer com crise? A crise faz parte da vida? Se não

faz, resulta que ela é fragmentação da vida. Mas se faz, porque a vida se fragmenta?

A experiência revela que as perguntas refletem o dinamismo humano e abrem ao

diálogo.

Uma das dificuldades encontradas ao abordar o tema do sentido da vida na

pós-modernidade advém do falar de uma época na qual ainda vivemos. Assim, os

assuntos tratados terão sempre perspectivas em aberto e em processo de acontecer.

Ademais, presencia-se uma discrepância entre os autores ao distribuir adjetivos a

seu nome, fruto da riqueza de compreensões. Nesta época histórica, inconclusa e

humana, faz-se necessário, uma delimitação de cada termo e uma explicitação,

objetiva e atenciosa.

A crise do sentido da vida na pós-modernidade possui conotação ora como

fragmentação ora como oportunidade de vida. Isso torna mais relevante e urgente

tratar desta questão, visto que há compreensões de tendência a distanciar a vida de

seu sentido. Para abordar a crise que fragmenta o sentido da vida, consoante ao

objetivo desta pesquisa, será feito um esforço de compreensão das suas questões e

apresentar algumas abordagens.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 61: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

61

Neste início de século talvez a palavra mais repetida seja ‘crise’. Ora crise

não é palavra nova. Como a pessoa é um ser historicamente situado, o foco que, em

dado momento, coloca-se em direção a ela pode fazê-la parecer bem maior que

todas suas antecessoras e todas suas sucedâneas. Igualmente outras palavras lhe

estão ligadas, tais como colapso, distúrbio, eclipse, etc. para de outras maneiras

dizer: crise.

Este século XXI, data justamente um período de mudanças essenciais em

todo o mundo. Em escala global verifica-se a ampliação do processo de

globalização da informação, potencializado, sobretudo pela revolução digital. A

humanidade delira com suas descobertas e realizações as quais cada vez mais

ampliam em eficácia em comparação às antigas, enquanto também estabelecem

novas aplicações e possibilidades.

No entanto, e por outro lado, o progresso, parece, desmitificou-se ao não

cumprir suas promessas. Destas promessas, umas das mais encomiadas foi que o

acúmulo de conhecimentos traria sempre novas práticas para melhoria da

civilização humana. O pensamento científico superaria toda forma de

obscurantismo e aprimoraria todos os seres humanos, as ciências, as artes, as

técnicas. De modo sempre ascendente, o presente superaria o passado. O futuro

seria, naturalmente, melhor e superior ao que o presente. Esta ideia tem se

demonstrado não ser toda verdadeira.

A ciência moderna nasce da ideia de intervir na natureza, de conhecê-la para

obter seu controle e domínio. Com este objetivo, formula teoria baseada nos dados

empíricos, devendo assim ser confirmada pela experiência. Em outra modalidade,

a ciência moderna elabora sua base no conhecimento apriorístico, isto é, ela tem

como base a estrutura interna da própria razão. A pós-modernidade ambiciona

ultrapassar a época anterior em todos os sentidos, justamente por ter dado à

civilização humana um novo sentido. Esta pesquisa sobrevoa as questões

filosóficas, no sentido estrito de um pensar filosófico, e as questões existenciais que

brotam da interioridade do ser humano66. O sentido da vida fragmentado pela crise

tem na filosofia uma de suas escoras.

René Descartes é considerado ponto de referência para o início da era

moderna pela forma peculiar com que exalta a razão humana, como forma de pensar

66 A questão existencial pode ser entendida em um filosofar como busca radical de sentido para a

vida e de sabedoria para o nosso tempo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 62: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

62

o mundo. A razão alcança a realidade em si. Para ele, o conhecimento racional é

válido para todos os objetos. Seu método é absoluto. Conhecer equivale a ordenar

e encadear em nexos contínuos as ideias. Este procedimento deverá ser o mesmo

em todos os conhecimentos, pois é o modo próprio do pensamento, seja qual for o

objeto a ser conhecido. O racionalismo funda na razão operando por si mesma a

fonte do conhecimento verdadeiro, assim descarta qualquer conhecimento

experiencial67.

Na sua filosofia, Emmanuel Kant expõe que a razão humana deve submeter-

se à crítica a fim de indagar sobre as condições que tornam possível o conhecimento

a priori. Kant inaugura e revoluciona a concepção de conhecimento crítico. Com

ele a ciência moderna foi acometida pela concepção de homem e natureza, na qual

o indivíduo era o referencial, ao exigir que, antes de qualquer afirmação sobre as

ideias, houvesse o estudo da própria capacidade de conhecer, isto é, da razão. Para

Kant, o objeto do conhecimento se constitui no fato de que não conhecemos o real,

“a coisa em si mesma”, mas sempre o real em relação com o sujeito que conhece,

isto é, o real enquanto objeto. Passa a distinguir, dessa forma, o mundo dos

fenômenos, a realidade da experiência, do mundo da realidade considerada em si

mesma, a qual pode ser pensada, mas não conhecida. Em suma, a estrutura da razão

é a priori, ou seja, vem antes da experiência e não depende dela. As condições de

possibilidade da experiência são dadas pelo sujeito, são a priori68. Nesse contexto,

qualquer tentativa de pensar a vida e as relações integradamente se torna falha, pois

a separação não se efetua apenas no nível do pensamento, mas também da

"realidade objetiva" construída pelo indivíduo.

Do outro lado, oposto ao racionalismo, o empirismo afirma que a razão é

adquirida através da experiência. Ela é elevada a máxima potência, de modo que o

conhecimento somente pode ser adquirido por meio da experiência. Responsável

pelas ideias da razão e controlando o trabalho da própria razão, o empirismo tem

como fonte todo e qualquer conhecimento, experiência sensível. A experiência é o

67 Na leitura de Lima Vaz, o despontar da modernidade data do século XVII com Descartes. Um

pensar que difere radicalmente daquele medieval que primava pelo polo metafísico da razão,

passando a primazia ao polo lógico e de um novo sujeito criador do próprio mundo. Cf. OLIVEIRA,

C. M. R., Metafísica e ética, pp. 31-46. 68 Desse modo, Kant acaba com o Deus dos filósofos ao fundar uma metafísica racionalista que faz

de Deus objeto. O único que resta deste Deus é só uma ideia da razão. Daí decide afirmar que, porque

há uma ideia de Deus, se pode chegar à crença em Deus. Há que suprimir o saber para dar lugar à

crença. Cf. KANT, I., Crítica da Razão Prática, 1959.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 63: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

63

critério, logo o reconhecimento da verdade pode e deve ser posto à prova, podendo

ser modificada ou abandonada.

O impasse entre o racionalismo, particularmente de Descartes, e o

empirismo, particularmente de Locke e Bacon, fizeram surgir a dúvida de que o

conhecimento racional, como conhecimento inquestionável, seria possível. A

verdade seria apenas aparência, pois ficaria despossuída de validez absoluta ou ao

menos permanente. Neste diapasão, se há conhecimento, ele é sempre passível de

questionamentos e mudanças, se há verdade, ela é relativa, ela é isolada da

totalidade. No fundo, não há verdade nem universal e muito menos absoluta.

Bem diferente, a concepção aristotélica afirma o conhecimento das

totalidades dos conhecimentos e práticas humanas, como também estabelece uma

diferenciação entre os conhecimentos. Para os modernos, a verdade só se torna

verdade para o sujeito; a verdade é subjetiva. Não há qualquer garantia quanto a sua

objetividade. Avesso ao racionalismo e ao empirismo surge o cético. Para ele, a

dúvida instala-se toda vez que a razão tem a pretensão de um conhecimento

verdadeiro do real. Tem como fundamento que se deve renunciar a verdade, devido

à incapacidade humana de conhecer a realidade.

Estas concepções representam esforços de construção de um discurso

racional e sistemático sobre o real, isto é, uma filosofia, que dê conta da existência,

isto é, da vida humana. Ora, as correntes filosóficas deste período, que tão ufanista

se mostra da capacidade humana, revela um fracasso do ser humano em se

compreender a si mesmo. As filosofias da época, de um lado expressam uma

compreensão limitada, portanto fragmentada do ser humano. Aqueles pensadores

que partem da razão não conseguem alcançar os sentidos. Os empiristas

desorientam-se ao abordar a razão. Como resultado, o ceticismo apresenta-se como

solução comum, mas na verdade como renúncia a todo e qualquer tipo de solução.

O ser humano, porém, é mais. Ele vive no presente, alicerça-se no presente

com sonhos de futuro. Ele experimenta-se aberto a um outro que não si mesmo. Sua

existência está situada entre a finitude e a infinitude. No pensar de Rahner, é a

própria experiência de ser limitado que faz questionar tudo, chegando ao ilimitado,

ao Transcendente. “Ao afirmar a possibilidade de horizonte meramente finito de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 64: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

64

questionamento, essa possibilidade já se vê ultrapassada e o homem se manifesta

como ser de horizonte infinito”69. A consciência do limite já é sua ultrapassagem.

A razão vista como atividade puramente intelectual, fecha as portas para a

revelação divina, pois nesta, a verdade é dada pela fé, ou seja, não depende, a priori,

do conhecimento intelectual. Também se pode aferir que nesta ótica, a fé na

revelação de Deus é irracional. Irracional é também a ideia de pensar que o ser

humano é determinado tão somente pela razão, pela experiência ou tão somente,

pela dúvida. Poderia perguntar-se se há espaço neste ser, humano, para a busca, o

desejo, a fragilidade, etc. Por isso talvez fosse necessário matizar este logos e dizer

que ele é tão somente o logos que circula pela imanência da história, acreditando a

priori que este horizonte é insuperável. Sua forma mais difundida é o logos

empírico-matemático. Mas ele mesmo deve ser compreendido por uma dimensão

muito mais abrangente do logos humano integral. Sobre o valor da atividade

intelectual, a Igreja afirma:

Longe de pensar que as obras do engenho e poder humano se opõem ao poder de

Deus, ou de considerar a criatura racional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar convencidos de que as vitórias do gênero humano manifestam

a grandeza de Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais aumenta

o poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária70.

A ideia de progresso é denunciada pela pós-modernidade como enganadora,

reflexividade sociologizada e psicologizada71. As promessas da modernidade

manifestam-se num futurismo de uma visão de mundo que se pretendia capaz de

conjugar perfeitamente os propósitos e ideais a soluções reais. No entanto, a deusa

da razão caiu do trono. O conhecimento não trouxe a tranquilidade e o poder sobre

a vida social. Ou este poder só consegue viger para determinados momentos

históricos.

A inauguração da pós-modernidade acontece quando a razão percebe sua

impotência. O ser humano experimenta-se não ser tão onipotente, quanto pensaria

de si mesmo e de suas fenomenais invenções. Neste momento, a civilização humana

vê-se assediada pela pós-modernidade que lhe abala os alicerces. A palavra crise

69 RAHNER, K., Curso fundamental da fé, p. 46. 70 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium Spes”, n. 34, p. 177. 71 Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, pp. 43-51.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 65: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

65

povoa o vocabulário. Há muito tempo fala-se em crise econômica72, política73,

cultural74, religiosa75, ecológica76. Estes são os arcos maiores da crise. O

crescimento nos diversos setores da sociedade, muitas das vezes, não tem

equivalência com o desenvolvimento humano.

Na acepção mais ampla e genérica, o conceito de crise está associado a

transição e a um estado de incertezas, do qual pode resultar algo benéfico ou

pernicioso para a vida, pode prejudicar, mas traz também possibilidades de

renovação.

A etimologia no grego liga crise à crítica. Sobre a crise, pode-se dizer:

De múltiplas maneiras pode manifestar-se a crise e, do ponto de vista filosófico e sociológico, é particularmente importante a crise histórica que se pode traduzir em

crise na vida espiritual de um povo, quando as formas de arte, literatura, filosofia,

moralidade, etc., entram em declínio, devido ao enfraquecimento das crenças em que repousam e despontam novas formas correspondentes a aspirações e

necessidades que começam a fazer-se sentir77.

Para os sociólogos Berger e Luckmann, a crise na civilização pós-moderna

apresenta-se como problema central na questão do sentido da vida. A crise de

72 A materialidade da crise econômica e sua relação com as necessidades básicas, como comer,

beber, morar, estudar, comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade. A Crise da

especulação imobiliária-financeira já levou à falência, ou quase, vários bancos e financeiras. 73 A crise política manifesta-se com mais força quando interesses partidários resolvem fazer

denuncias de corrupção e/ou mesmo quando a sociedade se reúne organizando manifestações de luta

em contra a injustiça social e política. 74 Memorável foram os acontecimentos da década de 70 e 80. Considerado como crise por instituir uma nova formação social, que modelou corpos, corações e mentes. A compreensão de cultura

conheceu estágios diferentes, provocando uma crise, devido sua concepção dicotômica. Ela deixa

de ser vista entre pessoas cultas ou incultas, ou de uma coletividade que possui uma atividade

cultural que possa ser comparada à de outras. Agora, a civilização está diante da ideia de que pode

haver dois tipos de Cultura: a de massa e a de elite. Muitas das vezes, a cultura é usada como

instrumento de discriminação social, econômica e política. 75 A religião através da sacralização cria a ideia de espaço sagrado. Os céus, as montanhas, o deserto,

o templo e a igreja são moradas do Transcendente. O espaço da vida comum separa-se do espaço

sagrado. A crise religiosa revela-se como perda do sentido do sagrado, uma insensibilidade para o

transcendente. Em outro extremo, há o retorno do sagrado arrastado pela existência individual

entregues apenas a si própria. A crise manifesta por ser uma religião à la carte, um sincretismo individual. Reduz a relação com o Divino a cultos exteriores e/ou momentos isolados da semana ou

do mês. Culto do Ego à custa do sentido maior da vida humana, a unidade da diversidade, com o

outro e com todas as formas de vida. Apegos a verdades absolutas, arrogância intelectual e ética.

Isso esvazia de sentido tanto a relação viva e dinâmica com o Transcendente quanto à ação pela

transformação do mundo. 76 Crise ecológica expressa, por exemplo, no aquecimento global cuja aceleração exponencial

aproxima o planeta de uma crise global grave. A escassez crescente de água priva hoje cerca de um

terço da humanidade do direito humano à vida. O desmatamento tem se acelerado com a política

exportadora. Poderíamos também citar outras crises, como a crise da militarização provocada pelo

aumento dos conflitos e dos gastos bélicos. 77 Verbete Logos. Enciclopédia Luso-brasileira de Filosofia, p. 1229.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 66: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

66

sentido está diretamente relacionada aos processos de modernização e

secularização. Estes processos já não permitiriam uma leitura homogênea da vida,

nem das percepções estáveis de sentido na sociedade. O sentido é particular. Assim,

crise de sentido e pós-modernidade associam-se pelo fato de não encontrarem no

indivíduo valores comuns que determinam o agir, nem uma realidade única para

todos78.

A crise pós-moderna tem desencadeado um processo profundo de

deslocamento das estruturas e abalo nos quadros de referência que, anteriormente

permitiam às pessoas certa estabilidade, certa orientação com padrões claros e

definidos. Estas transformações bruscas fragmentam a vida existencialmente

assumida, a identidade da pessoa humana, de modo a perturbar a concepção que se

tem de sujeitos integrados. A identidade do ser humano, outrora, estava acomodada

num sujeito autônomo e senhor de si, num movimento permanente do devir do

sujeito, cuja mudança obedecia a leis determinadas.

A situação hoje está muito mudada. Há uma fragmentação, perda de

consistência que questiona e dissolve toda afirmação do ser, toda teoria, toda

verdade. A pós-modernidade questiona a identidade pelas reações antagônicas que

ela provoca. A ideia de relação é paradigmática desta época. Relação implica

permanência, mudança, alteridade. A dificuldade consiste em compreender como

as relações se constituem numa realidade que prima pela fluidez, constante

novidade, descentramento de si, que expulsa toda proposição de eternidade e

transcendência.

Aparece, então, a crise com toda sua virulência e erradicação da vida. De

fato, desconstruir a relação é desnortear o ser humano, privando-o de um horizonte

de sentido da vida. A relação implica duas identidades diferentes que se reconhecem

na alteridade, adaptando-se a novas situações históricas. O mundo virtual

possibilitou este tipo de contato que pode se intitular conexão. A comunicação

virtual, melhor dizendo, a conexão virtual entre pessoas é criada, mas também

fechadas arbitrariamente. Para isso basta um DEL para eliminar um amigo, uma

conversa, um contato (virtual) afetivo, sexual. Bauman sinaliza com clareza as

características destas conexões na pós-modernidade.

78 Cf. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T., Modernidade, pluralismo e crise de sentido.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 67: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

67

A palavra ‘rede’ sugere momentos nos quais ‘se está em contato’ intercalados por

períodos de movimentação a esmo. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas

por escolhas. A hipótese de um relacionamento ‘indesejável, mas impossível de

romper’ é o que torna ‘relacionar-se’ a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma ‘conexão indesejável’ é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas,

e o são, muito antes que se comece a detestá-las. Elas são ‘relações virtuais’ [...]

numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de ‘ser a mais satisfatória e a

mais completa’79.

Todo ser humano deseja realizar-se em harmonia com a própria identidade,

em atitude de respeito à dignidade dos outros e, no entanto, experimenta-se muitas

das vezes fragmentado. Ele vive a experiência de não estar presente a si mesmo,

porque puxado de um lado pelo outro pelas exigências extrínsecas a si. Ausente de

si mesmo torna-se incapaz de reconhecer sua dignidade pessoal. Esvaziado de sua

interioridade e identidade, e por esse motivo, não respeita a dignidade humana dos

demais: eis uma faceta violenta e cruel da crise humana.

As conexões tendem para o prazer e o descompromisso. Trata-se de um

prazer individual, momentâneo, fugaz, por isto descompromissado com a história,

a utopia. Importa viver o hoje, pois amanhã tudo pode mudar. A mudança traz

incertezas, inseguranças. Ela é indício de perda de controle e domínio da situação.

Por esta via, mudanças devem ser excluídas, deletadas80. Acentua a ideologia do

prazer e do presentismo, a qual afeta fortemente o sentido de ser pessoa humana.

Estas conexões não são de todo negativas, nem de todo positivas. De um lado,

reage-se contra a repressão ao prazer. O indivíduo moderno jamais quer adiar a

felicidade para a eternidade. Sua concepção de vida não tem espaço para a dor.

79 BAUMAN, Z., Amor líquido, p. 12. 80 Esta realidade virtual, não é menos sofrida para vida de muitas pessoas, do que quando levada

para a vida concreta. A morte dá lugar à vida, por exemplo, em situações de matar uma criança por

jogar bola no jardim alheio ou equiparar a vida de um jovem a produto de consumo, morto e exposto

no carrinho de supermercado. Na primeira, “uma criança é morta a facadas por ter deixado a bola cair no quintal do vizinho em Pernambuco. Um menino de apenas 10 anos de idade foi morto a

facadas pelo vizinho, em Camaragibe, no interior de Pernambuco, porque a bola de futebol caiu no

quintal da casa dele. De acordo com familiares de Cauã, o vizinho conhecido por Armando não teria

gostado da presença do menino no quintal dele. Irritado, deu vários golpes de faca na criança”.

DIÁRIO DE PERNAMBUCO., “vizinho mata menino de 10 anos por causa de telha quebrada”.

Outro exemplo narra um jovem transformado em consumo morto. “E a vida se esvai qual produto

de supermercado. PM acha corpo dentro de carrinho de supermercado no Morro dos Macacos.

Segundo o comandante do 41º BPM (Irajá), coronel Alexandre Fontenelle, neste domingo a unidade

fez uma operação no Juramento. O oficial negou que tenha havido registro de feridos ou mortos.

Ainda segundo o coronel, a ação foi de rotina”. BARRETO FILHO, H., “Polícia encontra dois

corpos no Morro do Juramento”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 68: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

68

Qualquer contenção do corpo é vista como maniqueísmo, salvo para dar mais corpo

ao corpo, com exercícios e dietas diversas.

Viver o presente proporciona certa estabilidade, certa trégua que reduz a

imprevisibilidade dos conflitos. Por outro lado, decreta-se que os sentidos foram

feitos para o prazer. O prazer está no centro de atenção dos sentidos. A satisfação

deve ser aqui e agora. Caso contrário, muda-se o foco de atenção ou desliga-se o

programa. A depressão surge quando não se obtém o prazer. A concepção cristã de

sacrifício, de ascese é descartada. A solidariedade e ajuda gratuita são atitudes

reservadas aos masoquistas. A univocidade do cotidiano foi quebrada devido à

adequação às constantes e aceleradas mudanças da realidade.

Curiosamente, os estudiosos dos temas ligados aos processos culturais e

históricos falam da pós-modernidade como de um programa civilizatório ainda a se

instalar. Na verdade, mesmo o nome a se atribuir a este novo período da epopeia

humana é ainda controverso. No entanto, já se fala de sua crise. Um bom índice

deste mal-estar da civilização são as obras de Z. Bauman, que lhe apontam as

inconsistências.

De fato, do ponto de vista antropológico, a pós-modernidade corre o risco

de ser um elenco de promessas não cumpridas. Por causa disso, a depressão surge

quando não se obtém o prazer, surgindo a instalação dos questionamentos. Instala-

se de pronto uma crise, que pode favorecer a apropriação de novas possibilidades

de ação, a revisão de hábitos que se vão enraizando, mas, ao mesmo tempo, não

correspondem à reconstrução criativa e respeitosa dos laços que ligam as pessoas

com toda a criação, com outras pessoas e com Deus. Importa assumir a crise, e com

esperança, caso contrário a vida estará à margem da história e a surpresa do

momento futuro estará ofuscada.

A crise aparece mais dolorosa, devido apresentar uma visão de um mundo

imprevisível, sem definições, maleável, como que tendo autonomia e determinação

sobre os seres humanos. Do tipo exemplar, temos o sistema econômico, sem rosto,

mas que fala e dita normas, sem corpo, mas persuade a segui-lo à risca, sem coração,

mas aconchega a quem o idolatra.

O deus da idolatria, argumenta G. Gutierrez, exige vítimas humanas. A

violação do ser humano é maior das idolatrias, “O deus da idolatria é um deus

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 69: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

69

assassino. Muito é o sangue que se derrama no afã do lucro”81. No Brasil, o tráfico

humano tem aumentado82 a vida é comercializada. Há os que dizem, “eu sou dono

da minha vida”. Estes esquecem-se do seu Criador e Senhor, que dá vida e quer a

vida. Pior desempenho têm os que se portam como donos da vida dos outros. Trata-

se aqui do indivíduo que “na ânsia de riqueza e poder, não se detém diante de nada,

atropela o direito dos demais e pisoteia os mandamentos do Deus que exige a defesa

do pobre e do oprimido”83.

O capitalismo pós-moderno tem grande capacidade de transformar desejos,

posturas, expectativas e atitudes em objetos de consumo. Se um grupo ou

movimento especializa-se em protestos, logo surgirá quem lhe venda o melhor “kit”

para a manifestação. Conseguindo lucrar com praticamente qualquer coisa, a pós-

modernidade revela um processo de indiferença na medida em que todos os gostos

e comportamentos podem coexistir, embora sem interagir. Para a pessoa normal, o

cidadão comum como o mais esotérico, a vida simples e a vida sofisticada, a religião

e o ateísmo convivem num tempo atemporal, desvitalizado, e sem referência

estáveis. As fervorosas discussões e manifestações sociais das questões públicas,

incluindo questões como ecologia, corrupção, violência humana, ocupam lugar da

atmosfera, mobilizam por algum tempo, mas desaparecem tão rápido como

apareceram.

A deterioração do cotidiano, na expressão de Kujawski é o ponto de partida

da crise do século XX. O autor compreende que a realidade humana constitui o

âmbito no qual todas as outras esferas da realidade, e as crises, manifestam-se. O

81 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 90. 82 De maneira exemplar, a Pastoral da Mulher Marginalizada tem trabalhado a serviço e em defesa

da vida. Uma de suas iniciativas é a conscientização da população sobre situações de prostituição e

o trabalho junto a mulheres que estão sendo traficadas para fins de exploração sexual, iludidas por

uma situação de promessa de vantagem. O seminário, DIÁLOGOS pela liberdade, realizado em 23-

24 de setembro de 2014 em Belo Horizonte, debateu as diferentes causas do Tráfico de Seres

Humanos, na sua maioria de mulheres, e analisou criticamente as políticas de enfrentamento.

Considerado notória a experiência dos palestrantes e sua sensibilização em prol da vida humana,

particularmente do ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Dr. Joelson Dias ao falar sobre: Tráfico de Mulheres e Exploração Sexual – Liberdade não se compra. Dignidade não se

vende. Em sua exposição, disse que a eliminação do projeto pessoal de vida tem vitimado milhões

de pessoas e que há uma descrença da realização pessoal a partir das oportunidades oferecidas em

sua própria comunidade. “Chegamos à lua, construímos aviões... não conseguimos consolidar o

projeto de ser, humano”. Outra palestra bem discutida foi da Jornalista e autora de livros sobre o

tráfico, Priscila Siqueira que fez refletir que o tráfico humano é gente vendendo gente. Que cerveja

e mulher estão na mesma linha de escolha. “De que cerveja você gosta: Skol, Brahma?... de que

mulher você quer: negra, loira?...”. Diante dos dados estatísticos que os Meios de comunicação

social apresentam, Priscila chamou atenção para olhar e escutar esta realidade para além dos

números, pois o tráfico é de vidas humanas. 83 GUTIERREZ, G., op. cit., p. 80.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 70: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

70

ser humano é afetado diretamente por sua situação imediata, sua realidade concreta,

tal como ela se apresenta. Entre realidade cultural e ser humano não há separação.

O ser humano afeta e é afetado pelo meio no qual vive.

O cotidiano faz parte integrante e constitutiva de mim mesmo; eu sou o que ele faz

de mim e o que eu faço dele. Se o cotidiano se fragmenta e se desintegra, sou eu

que me fragmento e me desintegro. Já não sei quem sou, nem mesmo se sou alguém. Talvez eu não passe de um flato, sopro dessa massa humana imensa e

disforme que me oprime por todos os lados e na qual vago perdido84.

Este ensaísta localiza a crise que afeta a vida em seu alicerce: o cotidiano.

A crise, não é então só no plano econômico, político, cultural ou religiosa, antes de

tudo ela perpassa o que há de mais profundo na vida: o sentido da vida. O cotidiano

da vida é nosso referencial, no comum da vida manifesta-se o ordinário e o

extraordinário, a banalidade e o excêntrico. A crise afeta este lado tão humano, tão

nosso.

Lipovetsky fala da crise pós-moderna como a era do vazio do sentido. O

autor argumenta que diante do sistema operante que insiste em desconectar as

pessoas dos desejos coletivos, em controlar as indignações sociais, é forte convite

ao desengajamento emocional. Sem que haja consciência, e em corroboração com

este processo, presencia-se no ser humano uma apatia, como nova forma de

socialização, cuja lógica se assenta em não reclamar, nem se revoltar. Nos

relacionamentos, vigora uma apatia emocional. Os sentimentos foram esvaziados e

os ideais desmoronados, sem que isso acarretasse revolta ou angústia.

Sociologicamente, temos uma apatia de massa.

Nisto consiste a crise do sentido, que na verdade, prenuncia sua ausência.

Os antagonismos coabitam sem divergências. “A oposição do sentido e do não-

sentido deixou de ser dilacerante e perde a sua radicalidade perante a frivolidade ou

a futilidade da moda...”85. A experiência mais radical da crise, como descreve Lima

Vaz, consiste no ato consciente da civilização humana que, “ao fazer do próprio

homem o princípio imanente do sentido, ela eleva à dignidade ontológica de um

absoluto a liberdade antropocêntrica”86. O sujeito humano encerra em si o sentido,

84 KUJAWSKI, G., M. A crise do século XX, p. 55. O autor subdivide a crise do cotidiano em três:

crise de identidade do homem contemporâneo, crise de familiaridade com o mundo e crise de

segurança. Trabalhar todas aqui seria alongar demais este tópico sobre a crise fragmentadora da

vida, a pesquisa se delimita a primeira parte. 85 LIPOVETSKY, G., A era do vazio, p. 37. 86 LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 13.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 71: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

71

coloca-se a si mesmo como o reino do sentido. Assim, a crise do sentido e do não-

sentido ocupa lugar privilegiado no pensamento pós-moderno. O tema torna-se

dominante e, segundo o filósofo jesuíta, “é provável que tenhamos atingido aqui a

raiz mais profunda, a raiz propriamente espiritual da crise da modernidade. [...]. O

homem se glorifica de ter enfim instalado o seu reino”87.

Crise não é sinônimo de desastre e pode bem ser indício de uma nova e boa

vida, polarizada pela reflexão e pela transformação. A crise pode ser momento de

saídas, de alternativas, de criatividade. Trazendo para mais perto, a teologia da

América Latina tem compreendido seu compromisso libertador na ótica segundo a

qual a opção pelos excluídos e a crise ecológica, são faces de uma mesma realidade,

pois ambas ligam-se ao meio ambiente. A crise interpela a pessoa cristã a ser

coerente com sua origem, a acolher a crise com atitudes criativas, a ir na contramão

de toda e qualquer proposta individualista, a sair da mesmice. Outrossim, a crise

pode ser uma chance única para modificar ou mesmo abandonar alguns conceitos

ampliando a esfera da experiência da existência e definindo um uso convivial das

coisas para o bem-estar da vida.

A superação da crise é possível. Ela não é o fim de tudo. Pode-se aprender

isso, estudando a aparição e superação de outras e diferentes crises na história.

Entretanto, Lima Vaz assegura que não haverá saída desta crise pós-moderna

“enquanto não se universalizar a experiência da inanidade ou do não-sentido do

humanismo antropocêntrico”88.

A indagação é parte integrante saudável do ser humano. Questionar suas

origens é sentir-se vivo. O questionamento revela o ser de desejo, que lhe é

constitutivo, desejo de viver sua humanização plenamente. A busca pelo sentido, a

partir da reflexão sobre a origem é causada pela desproporção interior, pela busca

de integrar-se a si mesmo, e pela suspeita de ser mais do que se é. Como ser de

desejo, abre-se para o ser humano a possibilidade de ser pessoa de desejo, de ser

para Deus, desejo que é ao mesmo tempo seu foco e sua origem. O desejo é reflexo

da tensão entre incompletude de fato e completude de horizonte. Toda a experiência

da história situa o horizonte da existência humana na tensão do ser finito que tende

para o infinito, da síntese ativa do temporal e do eterno. De modo lapidar, os

místicos ensinam que o ser humano encontra expressões do mistério cristão unidas

87 Ibid., p. 13. 88 Ibid., p. 14.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 72: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

72

ao mistério da pessoa. Descortina-se “a presença no ser humano do desejo do Mais,

de algo que o supera, sua condição de estar habitado por um excesso que o inunda

e o transborda”89.

Como se tem visto, marca de nosso tempo, não é raro que estudiosos

sustentem que a realidade contemporânea traz consigo uma crise do sentido. Esta

afirmação também presente no documento da Igreja chama a atenção para a crise

enquanto perda de identidade de ser humano.

Nosso tempo traz em si uma ambiguidade. Estamos num tempo de muitas falas,

muitos ruídos, muito barulho, incertezas e crise de referências. O mundo fala, mas

tem sede de palavra que guia, tranquiliza, impulsiona, envolve, ajuda a discernir90.

Brota a pertinente reflexão elaborada por Maria Clara Bingemer sobre como

situar a questão Deus na pós-modernidade em crise. A teóloga parte da premissa

que nos séculos passados era corrente a opinião de que o cristianismo constituía o

centro religioso mundial em torno do qual girariam as outras religiões ou tradições

religiosas. Hoje o centro gravitacional de todas as religiões, a começar do próprio

cristianismo, é Deus. A noção de Deus, embora possa haver diferentes nomes como

Trindade, Transcendente, Realidade Última, está na base de todo sistema religioso

como realidade doadora de sentido para o mundo e para a existência humana.

Todavia, uma das pretensões da modernidade foi e para a pós-modernidade

continua sendo, justamente, retirar do horizonte humano a questão Deus e todo

rastro de sua existência. Movida por um ideal secularizador, julgava-se capaz de

forjar uma “civilização da racionalidade, da emancipação em todos os níveis, em

que a humanidade, saída da infância, não necessitaria mais de um Ser supremo ou

de um Sujeito absoluto que lhe fosse normativo para guiar-se e organizar-se”91. Ora,

também o cristianismo recusa o absoluto, como algo que anule o ser humano. Na

fé cristã, o absoluto apresenta-se quenoticamente ao diálogo.

Imerso em um generalizado ceticismo, o ateísmo pós-moderno desfigura

também o humanismo, em sua atitude de questionar os fundamentos da sociedade

e a globalidade do real. Preso na teia de um absoluto, que não se deixa entender, o

ser humano moderno fica cindido entre aceitar tal absoluto, na obediência da fé, ou

89 VELASCO, J. M., El fenómeno místico, p. 253. 90 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL., Diretrizes gerais da ação

evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015, n. 48, p. 20. 91 BINGEMER, M. C. L., Alteridade e Vulnerabilidade, p. 54.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 73: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

73

colocar-se a si mesmo como “absoluto”. Percebem-se três estágios, nesta

caminhada histórica. O primeiro passo foi o absoluto das religiões, que não

dialogavam, mas guerreavam entre si. Neste particular, pode-se dizer que o

cristianismo, por exemplo, e o islã, não se diferenciavam muito um do outro. Cada

um tentou conquistar o outro, manu militari e, conforme tinham maior ou menor

sucesso, o derrotado era oprimido, mais ou menos na mesma medida pelo vencedor.

Depois tivemos o absoluto dos estados nacionais, com todo o aluvião de guerras

dos séculos XVIII, XIX e XX.

Agora tem-se o absoluto das consciências individuais. Ao não aceitar as

certezas de outrora, pela relativização de todo arcabouço cultural e conceitual, o

pensamento pós-moderno põe em questão toda tentativa de nomear o Absoluto,

julgando inadequadas as pretensões universalistas do discurso religioso. Mas,

justamente aí, devolve à reflexão cristã uma antiga perspectiva, ou seja, aquela que

desemboca no mistério e na pluralidade como reconhecimento da impossibilidade

de pensar e dizer completamente o Ser em quaisquer dos seus aspectos. Por

conseguinte, todo modo de falar de Deus é posto em xeque e recordada sua radical

inadequação. A experiência radical do mistério questiona um discurso moderno que

pretendia ter muito claras todas as coisas, inclusive a ‘retirada’ de Deus e sua

‘morte’.

Seria a ‘morte de Deus’, da modernidade a ‘morte’ do absoluto, que oblitera

o ser humano? Maria Clara responde não se tratar tanto de negação de Deus pelo

pós-moderno, mas da indiferença religiosa. A busca do Transcendente verifica-se

no sujeito moderno, ainda que sem a agitação das manifestações populares.

No plano da comunicação, o silêncio sobre Deus condiz mais com a

experiência de Deus que a própria palavra: silêncio que fala, silêncio do sabor, da

compreensão íntima, do amor desfrutado. "Há um mistério de morte imanente à

consciência e à linguagem humana, quando se trata de expressar Deus"92. Mas este

silêncio é invadido por uma Palavra Nova, reveladora do Grande Silêncio: Deus se

fez carne em Jesus de Nazaré! Em sua experiência religiosa, unem-se

indissoluvelmente dois polos humanamente irreconciliáveis: o Absoluto e o Pai, na

gratuidade misteriosa de quem ama para sempre. Ambas as vias parecem falar de

92 BINGEMER, M. C. L., Alteridade e Vulnerabilidade, p. 64.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 74: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

74

um Deus, que se relaciona com a história humana, por um viés todo especial, que

não só não lhe põe limites, como lhe descortina infinitas possibilidades.

As crises com suas dificuldades, impasses e desafios mostram o oposto do

dogmatismo. Antes, indicam atitude reflexiva e livre, própria da racionalidade

humana. A saída da crise fragmentadora da vida não pode ser outra senão pôr-se a

ouvir o sentido que ecoa na própria realidade. A experiência da crise da existência

está radicada em se querer vivê-la alienada da própria raiz, centrada em si, perdida

do elo originante da vida. A crise fragmentadora do sentido da vida na compreensão

da pós-modernidade pode ser acolhida como oportunidade de revalorização das

relações como caminho de integração das dimensões da vida humana. De fato, há

uma busca, pelo ser humano, intrínseca e maior que todas as outras, do profundo

sentido da vida, de Deus. Mas “Deus” aqui se compreende como companheiro de

diálogo e participação e não como conceito de elucidação.

2.2.3. O desperdício da abundância da vida

O vocábulo desperdício liga-se ao verbo desperdiçar93. De imediato, evoca

uma vertente negativa do esbanjamento, desaproveitamento, extravio, perda.

Implica possuir algo e fazer mau uso de forma consciente, gastar com exagero e

desequilíbrio. Segue uma trajetória cujo caminho é a perda.

Associado ao verbo abundar, o substantivo abundância tem uma vertente

positiva. Abundância expressa a fartura, o sobressair-se de uma qualidade dentro

do comumente medido ou necessário. Implica opulência, fartura. Insinua um

caminho de dentro para fora, ou seja, da profusão para a liberalidade, do excesso

faz-se prodigalidade, do dom para a partilha.

Desperdício não é sinonímia de abundância, ou vice-versa. À parte suas

ambivalências, ambas têm bem configurado a vida. A mudança de época própria da

pós-modernidade tem evidenciado que o desperdício e a exuberância também têm

fragmentado e fragilizado a vida. Por princípio, o desperdício deteriora e mata a

93 Desperdiçar une-se primeiramente à ideia de gastar com exagero; esbanjar. Enquanto o termo

desperdícios está unido a sobras, restos. Desperdício é, então, o ato de usar sem proveito; possuir e

deitar a perder, a destruir, desaparecer. O antônimo de desperdício é a abundância.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 75: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

75

vida, enquanto a abundância a releva e plenifica. O jogo da abundância versus

desperdício mostra que aquilo que poderia ser uma assertiva consensual na

sociedade, manifesta, na verdade, projetos abalados. Urge, portanto, examinar seus

fins.

Após elucidar os vocábulos ‘desperdício’ e ‘abundância’, cabe agora

examinar o vocábulo ‘vida’. No que tange à vida, ela se apresenta sob três aspectos.

Primeiro como estado de atividade dos animais e das plantas, outro como o tempo

que vai do nascimento à morte, e o terceiro como energia, vibração. Em todos,

sempre ligado à duração da vida humana, há um conjunto de acontecimentos

históricos que se sucedem nesta existência. Numa explicação primeira a vida, o que

caracteriza própria os seres vivos é sua capacidade de resistir a diversas

modificações, sua aptidão em renovar, em crescer e se reproduzir. Também da parte

da física, busca-se uma definição para a vida, que privilegia sua dimensão físico-

química. Vejamos o que diz Lee Smolin. Este físico, que já conceituara vida, pode

ajudar, agora, com sua definição de sistemas vivos94.

Eu gostaria de dizer que um sistema auto-organizado ou um sistema afastado do

equilíbrio é: Uma porção de matéria distinguível, com limites reconhecíveis, que tem um fluxo de energia e, provavelmente de matéria, que a perpassa, enquanto

mantém uma configuração estável, afastada do equilíbrio termodinâmico, por

escalas de tempo que podem ser consideradas longas em comparação com escalas

de tempo da dinâmica de seus processos internos95.

Esta compreensão estendida a todo organismo vivo alcança ainda muitos

sistemas como os animais, plantas, biosfera, e também os seres humanos. Ela

manifesta uma similitude entre os seres vivos, tais como, organização que pode ser

lida como intencional, com seus limites explícitos, sua relação de energia ad-intra

e ad-extra, relação consigo mesmo, com outros da mesma espécie e com outras

94 A vigência destes dois vocábulos - desperdício e abundância - desafia a vida existencialmente

experimentada e impulsiona ao estudo das ciências das bases da vida. Ao tratar da vida, a pesquisa quer alertar para a falsa impressão de que poderia algo/alguém viver isoladamente, numa ilha, e

morto para tudo o mais, e para a falsa ideia de um viver movido pela mesmice e mera repetição do

passado, deixando escapar o caráter intrínseco da evolução, que pela Sabedoria, continuamente gera

novidades e renova todas as coisas (cf. Sb 7,27). Há muitas teorias sérias que estudam o surgimento

da vida no universo. Sem privilegiar uma teoria em relação a outra e, na impossibilidade de abarcar

a todas, a pesquisa traz presente o pensamento de Lee Smolin devido sua seriedade científica e

porque possibilita um diálogo antropológico cristão, a partir de um viés que não seja

tendenciosamente teológico. Seus argumentos sinalizam para uma realidade que exige atenção ao

existente processo complexo dos seres, isto é, a realidade que se apresenta como relações e conexões

em todas as direções. 95 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 155. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 76: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

76

espécies. Este processo e busca permanentes, de forma a sempre alterar-se, bem

como modificar e ser modificada pelo seu ambiente, o que faz ver que ela necessita

de certo desequilíbrio96.

Só se experimenta a vida como um sistema dentro de sistemas mais amplos.

Esta experiência permite concluir existencialmente que tudo está interligado,

interconectado. Cada ser é responsabilidade e cuidado com a vida. Nós, homens e

mulheres, pelo fato de escolher, de ter um propósito, fosse vil ou altruísta, nossa

vida se diferencia. O animal, a pedra e o vegetal estão no mundo, mas são

indiferentes. Ao ser humano é dado escolher como vivenciar a vida.

A descrição da vida como fenômeno físico-químico não faz referência

qualquer a uma transcendência, hipotética que fosse. Embora não ignore as

diferenças próprias dos seres vivos, a proposição de Lee Smolin fala dos diferentes

sistemas vivos como sistemas que compartilham muitas características comuns,

ainda que não todas. Aceita esta tese, o antropocentrismo deixa de existir, o ser

humano sai do seu pedestal, do vínculo piramidal, que ele mesmo criou, para estar

em relação circular com todo ser vivente. O humano e a terra inteira são relação de

uns para com os outros, mas relação que explica dentro dos padrões da físico-

química.

Subjaz no mais profundo de todo ser humano a tensão permanente entre

interioridade e exterioridade, entre a concretude do espaço e tempo, e o impulso

para o ilimitado, a abertura para o transcendente. O ser humano é vida, e a

consciência de ter vida capacita-o à transcendência da vida. O Espírito Santo,

doador da vida, confere este dom à consciência humana.

A exuberância de vida é concretizada para além de um coração em bom

funcionamento, mais que a beleza de um corpo bem trabalhado, mais que a última

e, quem sabe, colossal descoberta científica. Como descoberta do segredo da

origem da vida, a ciência apresentou o DNA considerado, até o momento, o

composto orgânico responsável pelo fenômeno da vida por definir o código

genético.97 Em torno desta descoberta erguem-se enormes expectativas. De seu

controle, espera-se mais que a conquista da perfeição na saúde, no vigor físico.

96 Afirmar que os sistemas vivos estão afastados do equilíbrio tem consonância com a 2ª. Lei da

termodinâmica. 97 O DNA, ácido desoxirribonucleico é uma descoberta científica datada dos anos 60. Ele contém as

instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento dos seres vivos e

possibilita conhecer as características hereditárias de cada ser vivo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 77: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

77

Espera-se melhorar biologicamente o corpo e prolongar vida, possivelmente, de

maneira ilimitada.

Na leitura teológica, a abundância da vida pode ser ilustrada na imagem do

Pastor que bate à porta e entrega-se como oferta gratuita e abundante de vida.

Enquanto o desperdício pode ser atribuído à imagem de dominação da vida,

verdadeiros ladrões e assaltantes que se fazem passar por messias e salvadores da

pátria. Trata-se mais de um movimento de propagação vertical, onde há dominação

de uns sobre outros. Podem até proporcionar uma salvaguarda da vida para uns

poucos em detrimento de muitos outros. Mas nunca será vida plena, nem na história

nem depois dela.

No que tange a vida do ser humano, não seriam os ladrões na pós-

modernidade este movimento de socialização que, no centro do deserto social,

ergue um indivíduo informado, livre, administrador da sua vida, e cujo processo de

personalização é baseado no capital estético, afetivo e libidinal? Não será um

processo de massificação e repressão da criatividade e liberdade? Que ser humano

resultará de um processo de personalização assentado na aceleração das

tecnologias, no consumo de massa, no psicologismo? Será de fato sustentável a

reivindicação pelos pós-humanistas de uma humanidade apoiada na construção de

um organismo transformado através de próteses tecnológicas ou intervenções

genéticas (cyborg), como humanidade, ou realmente como já não humana?98 No

momento, são perguntas que ficam em aberto. Entretanto, podem ser decisivos, para

uma resposta eficiente, tanto o tempo para discernir os efeitos destes movimentos

como a atitude para com a vida.

O movimento Jesus traz à cena a Encarnação. Os antigos gregos partiam da

sua realidade concreta humana, como a medida de todas as coisas99. No centro da

reflexão antiga achava-se sempre o homem e o seu destino: em relação consigo

mesmo, em relação com o mundo e em relação com a divindade. O pensamento

grego desconhecia o sujeito particular, concreto, individualizado, que se conhece a

98 Esta última questão foi bastante discutida durante o simpósio sobre o humano e o pós-humano.

Para uma leitura das conferências na íntegra, consultar: “Anais do Simpósio X Simpósio

internacional filosófico”. 99 A proposta basilar do pensamento de Protágoras era: “o homem é a medida de todas as coisas,

daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são” (princípio do

‘homo mensura’). Por “medida”, Protágoras entendia a “norma de juízo”, enquanto por “todas as

coisas” entendia todos os fatos e todas as experiências em geral. Tornando-se muito célebre, o

axioma foi considerado — e efetivamente é — quase a magna carta do relativismo ocidental. Cf.

SOUZA, J. C., Os Pré-socráticos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 78: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

78

si mesmo, um ser individual, não marcado ainda pela percepção da interioridade,

legado do cristianismo nem, muito menos, da individualidade, construção moderna.

O humano pós-moderno não se compreende mais como a medida de todas

as coisas, na acepção grega, nem na acepção cristã de pessoa e nem mesmo na

acepção moderna de sujeito da história. Emerge uma nova subjetividade: o

indivíduo quer apenas usar a tecnologia em seu proveito, estar no controle. É a

informação é que propicia os nutrientes para sua existência. A tecnologia será a

salvação dos limites. Ela é a medida de todas as coisas, e promessa da imortalidade.

Naturalmente não se pode dizer que todos estes “benefícios” são destinados ao

indivíduo. Mas a questão é que o indivíduo, renunciando a suas escolhas e aceitando

fazer o que lhe dita a tecnologia, renuncia, em última instância, à própria

individualidade. O individualismo, levado ao extremo, destrói o indivíduo. O

simples lazer já deixa de ser criativo para ser cada vez mais competitivo e

segregado. Na política, a única opção considerada é a que respeite as regras do jogo

econômico. Inaugura-se uma nova regra de ouro a ser obedecida: “não gastar mais

do que arrecadam”100, mas isso sem questionar o que vai para o desperdício ou o

que vai para o cuidado com a vida.

Neste cenário, a encarnação é irrelevante. Ela é por demais imprevisível.

Marcada pela historicidade, presa à temporalidade, ela deve ser desprezada,

manipulada, suprimida. A promessa de um futuro encantável provém da técnica,

não de Deus.

Como sequência, o ser humano acredita não ser mais criatura de Deus. Mas,

assegura sua salvação no conhecimento. Assim, para obter êxito, procura adquirir

um ‘conhecimento’ de certo misticismo, quiçá gnosticismo religioso, abandonando

a base de um conhecimento teológico e volatizando o conteúdo da Sagrada

Escritura. Neste horizonte, acredita que um deus transcendente comunica-se por

emanações que no conjunto constituem a plenitude da divindade. Apenas alguns

seriam capazes de, pelo conhecimento gnóstico, dar um sentido pleno à vida

presente. Em síntese, este ser humano acredita ser o criador de deus. Como dizia

Voltaire, o homem cria deus à sua imagem e semelhança. O ser humano privado da

100 JORNAL NACIONAL., “Governadores abusam dos gastos e empurram contas para o futuro”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 79: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

79

sua identidade e unicidade tem se colocado refém de um processo de massificação,

habitando um reino do sem-sentido101.

São, pois, dois reinos desconexos. O primeiro, construído pelo ser humano,

busca esconder sua existência aberta ao transcendente, baseado em um projeto pós-

humano de criar-se. O outro tem Deus em sua liberdade e amor como fundamento

da criação de pessoas humanas. Em suma, como compreender a Encarnação de

Deus, que se faz verdadeiramente um como todos os humanos, se o ser humano não

aceitar as limitações, a doença, a mortalidade?

A civilização pós-moderna regozija-se de sua exuberância. A pletora de

bens, os avanços técnico-científicos, a multiplicação de meios de comunicação

social, evidenciam uma evolução profunda e rápida em um curto período de tempo.

É gratificante constatar o poder da inteligência humana e seus projetos de

superação. Patenteia-se a tendência do ser humano sempre orientado para o mais e

o melhor, indefinidamente. Por todos são reconhecidas as grandes descobertas

marítimas, que garantiram o conhecimento de novos céus, novas terras e novas

gentes. O contato com outras culturas deflagrou processos críticos da visão de sua

própria sociedade. A expansão dos meios de comunicação social, conectando

pessoas em frações de segundos, quebram as barreiras da distância, valorizam

novos arranjos de trabalho, aproximam culturas e gentes. A evolução e o acesso

tecnológico podem resolver muitos dos grandes desafios da humanidade, a partir de

múltiplas fontes, como nos campos de energia, alimentação, purificação e reuso de

água a baixo custo, etc.

Por exemplo, o mapeamento genético possibilita a descobrir correlações

entre doenças e o nosso DNA. Acredita-se que, num futuro próximo, será possível

prescrever medicações personalizadas de acordo com o DNA específico, ou seja,

desenvolver medicamentos para cada indivíduo baseado em sua informação

genética. Com as impressoras 3D será possível a produção de peças, como

brinquedos, joias, implantes médicos e até mesmo vestuário. A forma de compra e

venda será inovada, diferente até mesmo do ‘e-commerce’ destes inícios do Século

XXI.

101 Donna Haraway explicita que a subjetividade é uma construção em ruínas e a unidade do humano

está dissolvida, pois a integração agora passa por uma máquina. HARAWAY, D., A cyborg

manifesto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 80: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

80

Em suma, o vínculo entre ciência e conhecimento tecnológico fez surgirem

objetos que não só facilitam a vida humana, mas aumentaram a expectativa de vida.

E esses são apenas alguns pontos a ilustrar a afirmação de evolução e progresso.

Cada pessoa encontra-se rodeada de objetos, de fartura virtual e, paradoxalmente,

sofre-se com a ausência mútua uns dos outros. Hoje, como nunca, as relações,

podem ser muito próximas entre pessoas muito distantes, em razão da expansão dos

meios tecnológicos de comunicação social e dos efeitos da globalização com a

queda de fronteiras. No entanto, dentro do processo mesmo da globalização vigora

um processo de exclusão, considerado inevitável. Surgem novas formas de

alienação e exploração das massas. Para ilustrar, bastaria, por exemplo, levantar

estatísticas da baixa participação no processo eleitoral. O acesso às riquezas fica

somente para alguns indivíduos. Para as multidões fica a alegria de ter adquirido o

último modelo do dispositivo eletrônico lançado mais recentemente.

Que valores justificariam, ideologicamente, um sistema tão perverso com

relação à vida? Como resultante do processo de desenvolvimento, impõe-se,

globalmente, uma cultura de classe e um ambiente hostil ao outro. Trata-se de uma

política com objetivo estratégico ilimitado, que ignora as necessidades e desejos

humanos reais e os limites dos recursos da terra. Com efeito, a pós-modernidade

evidencia a crise de um paradigma102, de um sistema de crenças e certezas.

Conforme visto, a modernidade consistiu em dar explicação à realidade, a colocar

sua confiança no progresso ilimitado e lançar um discurso de secularização dos

conteúdos básicos da teologia, toda esperança tinha que vir da razão. E a pós-

modernidade pode ser caracterizada como descumprimento de tais promessas,

conforme afirma Lipovetsky, uma época em que o futuro deixou de ser assimilado

a um progresso103. Há uma deslegitimação da esperança na razão, não há razão para

esperar. A falta de fundamentos ou mesmo a renúncia ao sentido é o que melhor

define o momento atual pós-moderno. A pós-modernidade, portanto, mais parece a

manifestação concreta de uma crise de anomalias que recusam o modelo anterior,

do que o estádio de aparecimento de um novo modelo majoritariamente aceito.

102 Para uma leitura sobre paradigmas e suas interferências na civilização humana e no pensamento

teológico ver: KÜNG, H. Teologia a caminho, pp. 150-191; QUEIRUGA, A. T., Fim do

cristianismo pré-moderno, pp. 12-57. 103 Cf. LIPOVETSKY, G., A era do vazio, pp. 10-11.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 81: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

81

A ideologia do progresso pensa a produção em função do máximo lucro;

tecnologias sempre mais sofisticadas, independente do seu impacto social e

ambiental, para aumentar a produtividade do capital; máximo consumo, que gera

diversas doenças sociais, o desperdício, o excesso de lixo, a distorção dos valores

culturais e humanos.

Nesta lógica, abundância e desperdício se coadunam e se amalgamam

desequilibradamente. Em se tratando do consumo, a sociedade defende seu existir

e seus valores no excessivo consumo. O consumo é colocado para além da

necessidade. O supérfluo ocupa o lugar do necessário. A abundância demasiada faz-

se necessidade, subordinando e governando o que seja necessário, supérfluo, e até

o viver. Desperdiçar a abundância, gastar passa a ser o único fim. Esta sociedade

de consumo necessita dos objetos para existir e sente, sobretudo, a necessidade de

os destruir, como sinal de renovação. O ideal de haver excesso da abundância para

desperdiçar constitui a referência absoluta de uma vida feliz.

Homem e mulher têm renunciado a sua autonomia, de modo que o tempo

dos objetos determina e delimita o tempo dos sujeitos e das relações intersubjetivas.

O ser humano é agora definido como ser de consumo, e compõe uma sociedade

consumista. O consumo intenso, sofisticado provoca na pessoa a sensação de existir

e de viver. Na verdade, a questão que se coloca é a do princípio fundamental,

norteador da vida, nesta sociedade: O ser humano deve organizar sua vida em

função do possuir, do consumir ou em função do profundo sentido, pessoal e

comunitário, que dá a sua própria vida. O sentido da vida está em comunicar-se.

Quando se opta pela primeira via, os interesses mudam, caem os princípios

teológicos, a luta pela existência é compreendida como luta pelo prazer, pelo poder

e pelo ter. Quanto mais, melhor, mais rápido e permanentemente. Inaugura-se uma

tenebrosa fragilidade das relações humanas. O ser humano deixa de ser visto de

forma integrada e globalizante, e passa a uma forma dualista, fragmentada. Esta

visão confunde a unidade sagrada do ser humano, e prorroga, indefinidamente, a

promessa de ser a resposta às questões vitais do homem e da mulher. Escamoteia-

se de maneira sedutora e escravizadora. Contudo, subjacente a estas relações

descartáveis está a busca pelo sentido maior de sua vida, o princípio de tudo.

Bauman concebe que a vida é uma obra de arte, onde somos incansáveis

artistas da esperança em meio às incertezas humanas. Não há padrões estabelecidos,

nem prognósticos fidedignos determinantes. No decurso da vida, o impossível pode

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 82: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

82

tornar-se o possível. Ele estabelece um paralelo entre a busca da felicidade humana

e o crescimento econômico, e conclui ser bastante ambíguo o tornar-se rico para ser

uma pessoa feliz.

Qualquer que seja a sua condição em matéria de dinheiro e crédito, você não vai

encontrar num shopping o amor e a amizade, os prazeres da vida doméstica, a

satisfação que vem de cuidar dos entes queridos ou de ajudar um vizinho em dificuldade, a autoestima proveniente do trabalho bem feito, a satisfação do

“instinto de artífice” comum a todos nós, o reconhecimento, a simpatia e o respeito

dos colegas de trabalho e outras pessoas a quem nos associamos104.

A felicidade humana fundamentada no progresso econômico protela

infindavelmente sua realização última. Ela fracassa em fazer sobressair o sentido

da vida, substituído pela angustiante e permanente necessidade de adquirir,

consumir, conectar, atualizar, ter, correr. Os meios se tornam fins, mas não existe

limite, nem ponto de chegada. O exemplo claro podem ser as redes sociais. De certa

forma elas permitem à pessoa comunicar-se com o mundo inteiro. Mas sem

conteúdo próprio, a pessoa limita-se a repetir piadinhas de outrem ou encaminhar

mensagens piegas ou assemelhados. O ser humano experimenta-se sem lugar no

universo que seja seu próprio, um ser errante. Nenhum lugar é sua casa. Configura-

se a assimetria e o nada, sem conferir algum sentido à sua existência. O universo

infinito é destituído de valor e sentido. Está sempre à deriva, sem poder conhecer

seu princípio e o seu fim. Neste estágio, sente estar em uma ilha habitada pelo nada.

É a total ausência de relação e de fuga do próprio eu.

Esse modelo de civilização incentiva o patriarcalismo, remetendo a relações

sociais de competição, agressividade, comandadas pela consciência egológica. Sua

urdidura dá por justificada a necessidade de desigualdade econômica, social,

política, religiosa, cultural. Faz da lógica do lucro o legitimar a vida. Isso inclui a

corrupção política, o narcotráfico, a prostituição, inclusive infantil, o tráfico de

órgãos, o trabalho escravo, destruição de ecossistemas. Sua lógica se faz persuasiva,

pelo discurso da eficiência: Ela mostra resultados. O fruto desta lógica persuasiva

é a degradação humana, a perda de sentido ético, a autodesvalorização, a alienação,

a doença, o suicídio, a degradação ambiental que põe em risco a própria vida na

terra.

104 BAUMAN, Z., A arte da vida, p. 12.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 83: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

83

A pessoa busca pela vida que se realiza na imanência da história, no entanto,

esta concretização não a exaure. É a tensão aberta pela orientação para o absoluto e

o inadequadamente realizado. Alimenta-se a esperança por um amanhã melhor. A

esperança é um dinamismo não objetivável, mas experienciável. É um princípio:

transcende cada ato e não pode ser aprisionado por nenhuma articulação concreta.

A utopia parte de uma experiência e anseio humanos105.

O ser humano é um ser de relações com direções múltiplas, que incluem o

Infinito. Ele quer sempre mais que sua realidade concreta, por isso, nenhum ato,

nenhuma dimensão concreta, esgota o dinamismo do seu querer. Espera, planeja e

deseja manipular o futuro. É projeção para um sempre mais, para a surpresa que

está fora de sua pré-visão, para o Ainda-não. Isto indica que não possui o centro em

si mesmo, mas fora, no Transcendente.

O contraste entre o progresso contemporâneo, com seus recursos e sua

exuberância, transforma a ausência de sentido, imposta a milhões de seres humanos,

numa violência e escândalo para a dignidade humana. Por isto homem e mulher

protestam contra a corrupção e massificação da vida. Parafraseando a música

“Comida” da banda de rock brasileira Titãs, a vida não é só comida, diversão e arte.

A vida humana não é só bios. Trata-se de um dinamismo vital que não é só um

elemento a mais nesse mundo. Há que se pensar também nas obliterações das

identidades sociais, geradas muitas das vezes pelos ditames do consumismo. A

consciência de ser vida impele a pessoa a falar por meio de suas relações. No

entanto, a linguagem não contempla todo seu sentido. Relação torna-se uma

categoria, importante, embora frágil, para contemplar a totalidade da experiência

da vida. A atitude adequada para a vida é a do cuidado, fruto da experiência do

Mistério do Deus-Trino. A Trindade revela de si mesma o mistério do ser de Deus

como superabundância de comunicação.

A interrogativa do ser humano pelo sentido da vida põe a questão do

desperdício de abundância de vida, não só humana, e de suas variações segundo os

tempos e as culturas. O ser humano é submetido a condicionamentos biológicos,

sociológicos, psicológicos, mas não se trata nunca de determinações absolutas. O

ser humano realiza-se como pessoa na medida em que reconhece os

condicionamentos, julgando-os em função do que considera seu ímpeto de fazer o

105 Cf. SOBRINO, J., A fé em Jesus Cristo, p. 32.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 84: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

84

bem e evitar o mal, de agir de maneira sensata, justa e responsável. E isso no

horizonte de um Transcendente, que a ama na total gratuidade e liberdade.

O ser humano é constantemente provocado a fazer escolhas que o orientam

ou não para a vida. O caminho se faz caminhando, orientados por um jovial e pleno

sentido de viver. Importa fazer da vida uma verdadeira casa humana de modo a

propiciar o cuidado face à complexidade das relações. O ser humano é um ser ativo,

capaz de compreender e transformar as relações históricas, de distanciar-se do seu

mundo e voltar-se sobre si. Nesta qualidade, cria a comunicação com os outros,

canta sua experiência, denuncia a morte, busca pela sua humanização. Em seu grito

pela vida, coloca-se a questão do sentido da vida.

2.3. O ser humano grita pela experiência do sentido da vida

Ao trabalhar o sentido da vida urge um aprofundamento na realidade da vida

concreta, como a realidade do significado das palavras. As palavras são sempre

polissêmicas e precisam ser situadas segundo seus diversos campos semânticos,

históricos e acadêmicos, e, particularmente, porque esta pesquisa direciona-se à

experiência vivida pelo ser humano. A experiência é vivida no mais íntimo da

consciência, ou ainda, no coração, empregando a linguagem bíblica. Ao ser

comunicada, sempre alguma coisa estará sujeita a interpretação. No momento em

que é vivida, tem tempo e espaço precisos. Sua interpretação constrói uma reflexão

maior, um pensamento teórico que preserva os ganhos adquiridos, as etapas

vencidas. Ela mostra desejos, êxitos, alegrias, conflitos, injustiças, frustrações,

anseios de felicidade, compromissos de justiça, solidariedade, busca de

santidade106. Na pós-modernidade, a densidade da experiência pode ser descrita

como o resultado de profundas e rápidas mudanças. Portanto, focalizar uma

experiência no horizonte do sentido da vida implica examiná-la, comprovar sua

intensidade, integrando-a no caminho do ser humano.

Dizer ser humano implica sempre uma definição em aberto. Implica ser de

dignidade e de inteligência, de cuidado e sensibilidade. O humano é capaz do

106 BRANDÃO, M. L. R., Evangelho e experiência humana, pp. 70–72.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 85: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

85

desumano: capaz de produzir violência e barbáries contra si mesmo e outras

criaturas. Conhece a dor da ferida e da fragmentação em sua dignidade. Vive a

tensão da ambivalência. Com os pés no chão da realidade, tem sua vista para o

passado que lhe assegura a esperança de chegar à terra da Promessa e vai atrás do

futuro de desejos que o impulsionam a construir-se na história, rumo à sua plena

humanidade.

Em todos os tempos verificam-se mudanças. O que faz a pós-modernidade

é acentuar sua rapidez e pôr em questão os fundamentos que pareciam consolidados,

atingindo a própria construção da existência. Ela produz, igualmente, uma

substantivação do múltiplo, ao lado de uma dessubstantivação das diversas

realidades, além da negação de qualquer princípio unificador da realidade, enquanto

conjunto. Ela considera insignificante a pergunta pelo sentido das coisas, pois a

verdadeira realidade acontece no suceder de eventos, sem fundamento no ser, para

finalmente desembocar no horizonte do nada.

Contudo, talvez neste tempo mais que em outros, presencia-se uma súplica

desesperada que brota do interior do ser humano, revelando que as brasas se

mantêm acesas por uma experiência humana, no horizonte da plenitude, que

considere o sentido de sua existência. Não estará aqui a busca de uma realidade

unificadora diante da multiplicidade das vorazes mudanças e ambivalências

prementes do ser humano? O grito de súplica da criatura não será eco da voz do

próprio Deus? Um grito prenuncia alerta, clamor, emergência. Sinaliza desordem.

Reclama uma escuta unida a uma ação que capacite seu autor à restituição de seus

direitos. O ser humano grita pela experiência do sentido da vida. E não só ele:

gritam também outras criaturas107.

Favorecidas pela pós-modernidade, por todos os lados chegam vozes que

atingem toda sua existência: o que vale é o impulso científico-tecnológico. As

teorias da evolução, da relatividade, da física quântica, da psicanálise ganham

espaço. Ao lado disso, impera a razão instrumental. A utilização dos meios de

comunicação virtual avança enormemente. As ciências médicas progridem. A

humanidade chega mesmo a sonhar com sua transformação num ser pós-humano,

107 “O barulho causado pelos quase 8 bilhões de humanos está atrapalhando a comunicação de outras

espécies. Segundo uma pesquisa científica, macacos, baleias, peixes e várias outras espécies animais

estão sendo obrigadas a falar mais alto para superar a balbúrdia humana, de acordo com a revista

Science Mag. Esse fenômeno é chamado de efeito Lombard. É a primeira vez que ele acontece

debaixo d’água”. YAHOO., “Barulho humano obriga peixes a gritarem uns com os outros”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 86: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

86

no qual a longevidade substituiria a eternidade e a transmissão de dados ofereceria

uma espécie de ubiquidade. Assim, “o principal fator dessa transformação é a

superação dos limites do tempo e do espaço, provocados pela corporeidade do

humano. Nesse sentido, a tecnologia possibilita o decisivo passo para o pós-

humano” 108. Disto advêm o desenvolvimento e a crise, com seus benefícios e

malefícios da crescente globalização. Eclodem os problemas ambientais; as

ciências humanas e da natureza elevam a voz. Grita a terra, gritam os pobres.

Muitos debatem em torno do valor que tem sido dado à vida, o que de per

si, já é sintoma de que a vida, não só humana, grita por seu valor. Importa, então,

examinar alguns dos fatores, mais interessantes e prioritários para esta pesquisa, a

fim de apontar caminhos que visem libertar a vida do jugo da escravidão. Este

exame deve dar-se numa escuta efetiva e afetiva do ser humano, de modo a

proporcionar a reintegração de sua dignidade e voltar seus pés para a terra onde

corre leite e mel; terra onde habita o sentido da vida.

Eclodem na pós-modernidade, as ideologias que ditam o modo de viver e de

conviver. Apontam o indivíduo, como referência central e colocam seus desejos e

impulsos, a satisfação de suas necessidades individuais como medida da felicidade.

Aliado a isso está o interesse técnico que dá a primazia ao que pode ser medido,

calculado e comprovado. A pós-modernidade esquece a comunicação109, ou seja,

desfaz as dimensões humana, afetiva, social, cultural, subjetiva e transcendental

para concentrar-se em acúmulo de informação e vivências líquidas.

Os reflexos deste quadro sobre a vida são imediatos e impactantes. Espaços

novos e artificiais substituem o convívio humano. Estabelece como prioridade viver

na ‘rede virtual’, sob o comando eletrônico dos detentores do poder da comunicação

e, o mais das vezes, sem dar-se conta disso. Há um encanto com a imagem, tudo

numa imitação da vida real.

108 MANUEL DUQUE, J., “Realidade, virtualidade e relação”. 109 A origem etimológica da palavra comunicação é de auxílio para compreender não apenas seu

significado e abrangência, mas principalmente, ao grito humano por uma experiência que confere

sentido a vida. ‘Comunicação’ deriva do latim. Compreende o ato de repartir. Tornar comum,

communis. Vincula-se à palavra ‘comunhão’. Comunicação e comunhão implicam menos uma ação

de oferecimento, sendo mais uma resposta com outro, pois parte de um dom já dado. Nesta vertente,

comunicação é o estar unido pela/na comunhão; é dom partilhado, reconhecimento mútuo assentado

numa relação gratuita, firmada pela abundância do coração, do reconhecer o outro, não pelas

categorias que se estabelece sem o outro, mas pelo que o outro também apresenta. É uma relação

envolvente, configurando uma dimensão da pessoa que se abre à alteridade e se descobre em direção

ao Mistério. Na ótica do sentido da vida, desprezar a comunicação é caminho de não integração nas

dimensões constituintes da relação humana, é não encontrar o sentido da vida.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 87: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

87

A cultura da imagem transforma a realidade social, econômica, política e

cultural em realidade virtual. As técnicas de marketing influem fortemente sobre a

capacidade de decisão. As tecnologias informáticas e cibernéticas redimensionam

o sentido da realidade e as noções de espaço e tempo. O virtual e o real se

confundem formando um “espaço antropológico interconectado na fonte com os

outros espaços da vida” 110. Uma vivência fluída da vida diária forja um novo

contexto existencial. Enquanto até a Modernidade, podia-se ainda dizer que, apesar

de toda contradição, as culturas visavam criar o espaço humano da comunicação, o

virtual agora gera o espaço desumanizado da transmissão de dados. “A nossa época

é uma época de comunicação global, onde muitos momentos da existência humana

se desenrolam através de processos midiáticos, ou pelo menos, se devem confrontar

com eles”111.

A tecnologia e mídias digitais exibem tanto perspectivas do futuro quanto o

desejo humano premente de comunicar-se, conhecer e relacionar-se. Nesta lógica,

viver e conectar são sinônimos. As ferramentas midiáticas são disponibilizadas para

responder antes de terminar a pergunta. É o caso, por exemplo, dos sites de buscas

onde as respostas são definidas já na digitação. Não há tempo de terminar a pergunta

e já chegam as respostas prontas, orientadas e programadas. Talvez até se pudesse

fazer uma analogia deste fato, comparando com o amante, que se antecipa aos

desejos da amada, como a escritura diz que o Senhor faz com relação a seu povo.

Mas o fato de serem as respostas programadas, dizem antes, infelizmente, que se

trata de mecanismo, nem sempre sutis de imposição de valores.

O volume de informação disponível pelas tecnologias é maior do que a

imaginação possa examinar. Na verdade, seu objetivo é ser interminável. Isso cria

uma necessidade de estar dia e noite no controle da informação, online, mas que na

verdade jamais poderá ser satisfeita. Numa paráfrase, sempre “tornará a ter sede”

(cf. Jo 4, 13) de outra informação.

As páginas dos jornais são bem abastecidas com análises sociais, políticas,

econômicas, culturais, todos os dias. Presencia-se um frenesi pelos últimos:

números, descobertas, acontecimentos, dos últimos milésimos de segundos, ou

como habitualmente se diz, em tempo real. Os dados são atualizados por iniciativa

do próprio servidor, sem necessidade de pensar-se ou executar-se um gesto. A vida

110 SPADARO, A., Ciberteologia, p. 18. 111 JOÃO PAULO II., Carta apostólica ‘O rápido desenvolvimento’, n. 3, p. 6.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 88: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

88

é envolvida numa reprodução sistêmica e fechada. Um verdadeiro organismo, mas

sem corpo; uma voz dominante, mas sem boca; um elemento presente na vida, mas

sem aparência; união germinada nas imagens e nas vozes projetadas por um

programa operacional duro e frio. Esta sim, uma verdadeira idolatria.

Da idolatria, surge o desequilíbrio vital. Há inversão na orientação de

valores, prioridades e necessidades. A vida é envolvida numa hipertrofia de valores

materiais e numa atrofia de valores humanos e espirituais. Em decorrência, há a

sensação de vazio existencial. A tentativa de compensação por meio de

transferência inconsciente de significação, isto é, a transferência do afeto, para algo

que não pode dar afeto, mais reduz o direito e fere o valor de ser humano. A vida

fica deserdada.

Bem arquitetado, o ídolo justifica seu discurso a partir do interior da própria

vida, difunde falsos bons propósitos. Esta ação que traz o risco de fracasso, de

desvio e de perversão do verdadeiro sentido da vida. O grito pela vida humana

precisa ser entendido em termos de humanização. A dimensão ética da vida abrange

uma profundidade maior a ser situada dentro do horizonte cristão. Urge identificar

as respostas que verdadeiramente dão sentido à existência em sua totalidade. Urge

encontrar um centro forte capaz de dar unidade à fragmentação das mensagens.

Urge escutar os gritos a uma vida de sentido dentre os quais denunciam os ídolos

que fragmentam a vida.

Por exemplo, o desejo pelo bem, intrínseco ao humano, é manipulado e

coisificado, de tal forma, que pode voltar-se contra si mesmo. Como ser de desejo

e direcionado para o infinito, o ser humano não se contenta com sua realidade

presente. Quer ser o construtor de sua própria vida, não bastando, quer ser o

absoluto de todas as vidas. A realidade gritante da denúncia da Igreja na América

Latina aponta para o caminho de absolutizar o que não é absoluto. Esta via destaca

um problema de suma importância para o sentido da vida, pois é esta absolutização

a fonte de tanta corrupção, tantos desajustes emocionais, tanta exploração e falta de

perspectiva expostos a olho nu. Na linguagem mais tradicional, esta absolutização

é o pecado.

No desejo de ser o absoluto, que leva o ser humano a colocar em seu lugar

realidades as mais diversas, como foi apontado, uma primeira questão que se coloca

é o fato de o ser humano trazer também em si desejos de morte. Nele perpassam as

sombras, o não-sentido, as limitações, as preferências que excluem. É relevante

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 89: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

89

assinalar as duas forças que habitam em toda pessoa, no dizer paulino. “O querer o

bem está a meu alcance, não, porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que

eu quero, mas pratico o mal que não quero” (Rm 7,18-19).

Brevemente, vale trazer aqui, uma leitura religioso-psicológica deste

dualismo que palpita, permanentemente, no ser humano. Na linha de Jung, citado

por Anselm Grün, sombra é tudo aquilo que a pessoa rejeita por não corresponder

ao ideal que faz si mesma. Já a humildade é resposta de acolhida interpessoal de

seu real e seu ideal de vida. A integração passa pelo caminho de reconciliação entre

a realidade e a idealidade que a pessoa e os outros têm de si. Afinal, “sozinhos ainda

não somos o palácio; somos o estábulo das coisas corriqueiras e cotidianas, e

estábulo nem sempre cheiroso, onde também há bagunça, há coisas que gostaríamos

de esconder do olhar das outras pessoas”112.

Assim, o ser humano não tem só desejos do bem, da promoção humana, da

fraternidade, de vida. Habita nele, também, o mal, a exclusão, o egoísmo, a morte.

Buscar ser pessoa é assumir estas duas forças, pois esta é sua identidade e beleza.

Ignorar esta dualidade leva a atitudes como o rigorismo moral. Nele as normas

morais são absolutizadas e, como tal, tornam-se idolátricas. A outra é a atitude que

foi apontada: estatuir como doador de sentido da vida aquilo que é apenas uma

particularidade. Somente adentrando esta história, de luzes e sombras, experimenta-

se Aquele que veio até a sua própria terra anunciar o Reino de Vida.

Uma segunda, e mais preocupante questão, é que ao desejar ser o Absoluto,

o ser humano quer ser outro que não ele mesmo. Em suma, nega sua existência. Em

seu desejo de conhecer Deus, busca menos manifestar o ser de Deus, o qual é

sempre maior, e mais manifesta a limitação humana diante do ilimitado. Descuida

que “a revelação de Deus em Jesus, a revelação cristã do Deus uno e trino, é um

confronto com um mistério cada vez maior”113. A Encarnação de Deus, acontecida

em Jesus, não explica racionalmente a totalidade do ser de Deus ou seu mistério. O

conhecimento de Deus é sabido dentro do conhecimento humano. Deus revela antes

de tudo o mistério de seu próximo e infinito amor. Revela-se na história, mas esta

112 GRUN, A., Amadurecimento espiritual e humano na vida religiosa, p. 23. O autor compreende

que as pessoas que possuem humildade conseguem reconciliar-se com Deus e consigo mesmas, e

sabem acolher o diferente no respeito e no perdão. Adquirem a integridade pessoal viabiliza

aproveitar as oportunidades para crescer nas relações. 113 LADARIA, L. F., O Deus vivo e verdadeiro, p. 24.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 90: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

90

não esgota o ser de Deus. Na frase célebre de K. Rahner “A Trindade que se

manifesta na economia da salvação é a Trindade imanente e vice-versa”114.

É consenso que o possuir bens e o desejo de construir a vida, não são em si

negativos. Mas sua conversão em absoluto perverte a vida em todos seus aspectos,

pois gera riqueza de um lado e miséria do outro. Bens tornam-se ídolos, que por sua

natureza ou seu dinamismo histórico, geram fome, desemprego, doenças,

violências, feridas na dignidade humana, na medida em que geram acúmulo,

exclusividade e outras provas de egoísmo. Desejos que buscam sua satisfação pela

via da comercialização, ou seja, não pela via do contato dialógico de pessoa a

pessoa, mas pela intermediação do dinheiro, culminam, na verdade em uma fuga

do encarnar-se na realidade. Eles induzem ao vazio e ao hedonismo como sinônimo

de felicidade. São como uma roupa que ostentasse em sua etiqueta: serás feliz se

assim consumires! O ato de assumir esta forma de absoluto produz a inversão dos

meios pelos fins, do caminho pela porta de chegada, da orientação pelo efeito

resultante. Isso é, no fim das contas, escamotear sua humanidade.

Voltando ao homem medida de Protágoras: “o homem é a medida de todas

as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo

que não são”115. Com o princípio do ser humano-medida, este filósofo negava a

existência de um critério absoluto que discriminasse o ser e não-ser, e todos os

valores. Modernamente, a exacerbação deste relativismo, estabelece como critério

único somente o indivíduo. Assim, as coisas existem tal como aparecem para cada

um. Então, sendo assim, ninguém está no erro, mas todos estão com a verdade, isto

é, a sua verdade.

Aquele que grita pela dignidade de uma existência com sentido, denuncia a

realidade de exploração que o torna pobre, na qual a violência e a morte são

114 RAHNER, K., Dieu trinité, p. 29. Não cabe aqui discutir a compreensão posterior da Teologia

no que tange ao “vice-versa”, ou seja, a Trindade imanente é a que se manifesta na Trindade econômica. Entretanto, um breve esclarecimento dado por Ladaria sobre este axioma fundamental

rahneriano “A identidade entre Trindade econômica e Trindade imanente deve ser entendida no

sentido de que por uma parte, Deus se nos dá e se revela tal como é em si mesmo, mas que o faz

livremente, isto é, seu ser não se realiza nem se aperfeiçoa nessa autocomunicação; e que por outra

parte nessa revelação Deus mantém seu mistério, sua maior proximidade significa a manifestação

mais direta de sua maior grandeza”. LADARIA, L. F., O Deus vivo e verdadeiro, p. 49. Nesta mesma

explicitação à formulação de K. Rahner pode ser encontrada, por exemplo, em: LADARIA, L. F., A

Trindade, pp. 11-64; VORGRIMLER, H., Karl Rahner, pp. 281-289. SESBOÜE, B., Karl Rahner,

pp. 68-72. 115 REALE, G., História da Filosofia Antiga, pp. 200-202. Ideia similar encontra-se no Mito de

Procusto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 91: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

91

noticiadas, muitas das vezes, a olho nu. Isso leva à percepção de um tremendo

contraste: da riqueza com a pobreza, da vida de uma minoria com a morte das

maiorias. Seu grito não é pelo supérfluo, nem pelo luxo, mas por aquilo que é

inerente à própria existência.

Todos anseiam por uma vida, cheia de sentido. No entanto, o grito do

excluído difere do grito daqueles que têm garantidos seus privilégios. Para estes,

abastados a busca pelo sentido da vida reduz a ações como a busca por uma carreira

agressivamente construída e pelo bem-estar individual. Na verdade, nem a família,

por exemplo, entra em seus cálculos, pois, muitas vezes, se a família ‘atrapalha’ o

divórcio ‘resolve’. Algum apelo de espiritualidade, ou equivalente “é resolvido

pelas fórmulas da fé ou pelas propostas alternativas da indústria de propaganda”116.

A vida é exaltada por poetas e compositores, discutida por diversas correntes

de pensamento, investigada por diversas ciências. Tematizada por diversos autores,

associada à ideia de valor, vida evoca espontaneidade, fenômeno, duração, história,

força. Num rigor especulativo mais profundo, vida não se define: ela é

essencialmente princípio interno.

Portanto, o grito pela experiência do sentido da vida advém não

originalmente do próprio ser humano, com todos seus bons desejos e propósitos,

nem das coisas, nem de qualquer criatura. Ele provém do Mistério que tudo centra

e irradia vida em abundancia para todos. Nele está o sentido que questiona e

interpela a vida. Este Mistério torna-se palpável na existência original do ser

humano, em sua relação para com o Absoluto, que faz despertar a memória daquilo

que cada ser humano deveria ser diante dos outros, do mundo e de Deus.

Portanto, o grito pelo sentido da vida evoca a busca do ser humano em sua

acepção primária e fundante de vida, da qual todas as demais acepções decorrem.

Pelo viés da antropologia teológica, constata-se que a pessoa humana está em si

mesma, mas também fora de si, nas outras criaturas e no coração de Deus. É um ser

que tem fome de Sentido.

116 BLANK, R., “Recuperar o projeto visionário de Jesus de Nazaré para recuperar o sentido da

vida”, p. 85.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 92: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

92

2.4. Conclusão

A exigência da busca pelo sentido da vida está inscrita na própria

experiência da existência e no dinamismo da civilização pós-moderna, quando não,

por sua aparente negação. A dialética dessa exigência, pelo viés da antropologia

teológica, impele situar o ser humano à luz da fé cristã.

O Concílio Vaticano II, pela Gaudium et Spes, coloca o olhar a condição do

ser humano na realidade atual, como dever da Igreja “para que assim possa

responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens

acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas”117.

A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, não somente porque

existem mudanças, mas porque são transformações caracterizadas por serem

rápidas, profundas e estendem-se progressivamente a todo o planeta. O novo fica

velho num espaço de tempo cada vez menor num ritmo alucinante. Trata-se dum

fenômeno que vai muito além da revolução tecnológica. Os acontecimentos

perturbam profundamente o curso da vida. Alteram a visão do ser pessoa, bem como

de seus valores, necessidades, prioridades e inauguram uma nova linguagem. Por

causa do processo de globalização, o universo ao mesmo tempo em que parece ter

ficado pequeno, maximiza as vantagens de quem está no centro, enrijecendo ainda

mais a situação dos excluídos. As tecnologias incentivam mais a conexão do que a

relação interpessoal. Favorecem mais o acúmulo de informação do que a troca de

comunicação. Há uma planetarização de informações. Nessa seara, “as mudanças

de época atingem os próprios critérios de compreender a vida, tudo o que a ela diz

respeito, inclusive a própria maneira de entender Deus”118.

As mudanças oriundas do progresso humano-científico deslancham também

na experiência do niilismo. Este progresso resulta na opulência de bens e recursos,

mas também em feridas na existência da humanidade. Ele exige uma racionalidade

pragmática e calculadora, que, no entanto, declara-se aética e amoral,

desumanizando o comando das decisões.

117 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 4, p. 145. 118 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL., Diretrizes Gerais da Ação

Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015, n. 25, p. 39.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 93: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

93

Esta mentalidade estabelece como ideal o excesso, a exuberância de vida,

mas constitui o desperdício como referência absoluta de uma vida feliz. A

permanente instabilidade na vida permite o nascimento de relações sociais sem

precedentes e sem compromissos, contribuindo para a crise desintegradora da vida.

A ausência de fundamentos ou a renúncia ao sentido da vida é o que melhor define

o momento atual das mudanças na pós-modernidade.

Muito ajudaram a filosofia aristotélica e a sociologia a situar o significado

e os entendimentos do termo existência. Tomado como ponto filosófico de

compreensão, para Aristóteles a existência significa “existe, apresenta-se”. Para ele,

o humano só é plenamente humano na polis. Pertence à constituição humana a

impossibilidade de viver isolado. A fim de preservar o que lhe é mais próprio, há

sempre a necessidade de estabelecer relações sociais com os seus semelhantes

durante toda a sua existência. A sociologia capta diferentes compreensões de

existência, e por vezes, sua nulidade. O ser humano pós-moderno arroga-se o poder

de delimitar o que seja valor para tudo o que existe: bens materiais, pessoas,

natureza, criaturas e o Criador. E mais ainda, concede-se o poder de eliminar a

existência, até mesmo retira Deus do horizonte de preocupação.

Para focar a concepção de vida, em sede científica, esta reflexão valeu-se da

colaboração de Lee Smolin. Pertence ao interesse da ciência física pelo fenômeno

da vida dizer das características das coisas vivas e suas relações entre si. Esta

concepção, se bem compreendida pelo viés da antropologia teológica, abre espaço

para a libertação de uma visão que sustenta que a vida irreversivelmente dissipará,

isto é, a entropia.

A fé cristã afirma que o ser humano é a coexistência de duas curvas: a curva

da vida e a curva da morte. Foi aludido, que a fé cristã remete a pessoa à alteridade

e à relacionalidade. Pertence a ela, a condução da vida para o Absoluto, perante

outros seres que querem colocar-se como absoluto exigindo adorá-los.

Assim, fica demonstrada pela razão humana a existência do sentido da vida

humana. Isto não seria o suficiente? Não bastaria ao ser humano retornar ao

conceito aristotélico de existência, e assim as relações, para encontrar o sentido da

vida? Qual a contribuição original de Leonardo Boff para a existência da vida? Para

isso torna necessário, então, conhecer sua história e concepção teológica, e analisar

algumas concepções que lhe são particulares.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 94: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

3 Na esteira teológica de Leonardo Boff

Os escritos de Leonardo Boff expressam uma reflexão teológica cristã

elaborada a partir da experiência humana do Mistério divino. Trata-se de uma

teologia nascida conceitualmente a partir do Concílio Vaticano II. De fato,

conquanto ele mesmo faça remontar seu pensamento a suas raízes, na infância, o

período da maturidade coincide com a realização e com as discussões e conclusões

deste Concílio. O Concílio é considerado o maior acontecimento eclesial do Século

XX, e naturalmente intercambia influência com realidades circundantes. Uma breve

explicitação faz-se necessária, então, das suas conclusões e primeiras

concretizações para ver os elementos que L. Boff recepciona e a maneira como faz

sua aplicação.

O Concílio Vaticano II opera a passagem de uma Igreja que se entendia

como ‘fora do mundo’, para uma Igreja imersa na história, lugar próprio de sua

missão. A história é compreendida como o locus theologicus, lugar da

autocomunicação de Deus. Constituída na história como Povo de Deus, ela é

sacramento, sinal terrestre que revela uma presença transcendente119. A Igreja é

então vista como mistério, sacramento histórico da graça libertadora.

Da história humana, perpassada não apenas pelo dinamismo do pecado, mas

também pelo dinamismo da Graça, Deus fala à humanidade e, em seu interior, à

Igreja. O mundo, a história, a sociedade humana não são, pois, realidades estranhas

à Igreja. A própria Igreja começa agora a se compreender também a partir de sua

119 Smulders faz notar que a palavra Sacramento introdutória da Constituição dogmática Lumen

Gentium não implica um modo de falar poético nem piedoso. Trata-se de uma exigência aprovada

pelos Padres Conciliares, e citada em numerosas alusões. Impõe uma perspectiva que perpassa toda

a subsequente visão da Igreja. Em Cristo, a Igreja é “como que o sacramento, ou sinal, e o

instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”. CONCÍLIO

VATICANO II., “Lumen Gentium”, n. 1, p. 39. Smulders propõe aprofundar no pensamento de L

Boff sobre Igreja sacramento primordial. Este estudo poderá contribuir para que o sinal de Cristo

brilhe mais claramente. A Igreja deve renovar-se incessantemente e assim, sua dimensão

sacramental “não se encubra nela através de uma estranha forma, presa a determinada cultura, a uma

classe limitada ou a um tempo passado. Ela deve ser simplesmente sinal, visível para todos,

apontando para Cristo”. Cf. SMULDERS, P., A Igreja como Sacramento da Salvação, pp. 396-419.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 95: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

95

relação com o mundo. Este faz parte de sua própria definição como lugar de sua

auto-realização e de sua missão.

Quando a fé real e comunitária, unida a Cristo, é colocada em relação aos

pobres, surge a Igreja dos pobres. Este evangélico amor aos pobres configurou uma

nova e forte consciência de que todos são filhos do mesmo Pai, e que, portanto,

todos somos irmãos. O amor evidencia que as realidades humanas encontram eco

no coração de Deus, criador e caminheiro. Ele se faz Caminho de Vida no caminho

com as pessoas. Não se trata de uma nova concepção eclesiológica somente, mas

também soteriológica, cristológica, antropológica, pneumatológica.

As duas Conferências Episcopais da América Latina e Caribe, Medellín e

Puebla, dão início as primeiras concretizações do Concílio, e configuram um rosto

eclesial próprio aos anseios dos povos deste Continente. “Se o Vaticano II

significou uma abertura ao mundo, Medellín representou uma abertura ao

submundo”120.

Inserida na história, a Igreja experimenta urgência na defesa dos direitos

humanos, particularmente, dos pobres. A evangélica opção preferencial pelos

pobres é, ao mesmo tempo, uma opção histórica e escatológica, que visa

transformar as estruturas injustas e desiguais e manifestar o Deus libertador,

revelado em Jesus, o Cristo. Assim, a Igreja caminha em direção a plena realização

do Reino escatológico.

A fé em Jesus Cristo é dom de Deus e atualizada no hoje de cada dia. De

conformidade a essa fé, Deus é quem se permite identificar mediante o caminho de

vida de Jesus de Nazaré. O nome de Deus está, com razão, ligado à utopia

evangélica de justiça e amor, com o sonho de libertação para a humanidade.

A experiência eclesiológica neste Continente é convite a se colocar no

centro a vida, palavra-ação de Jesus. Urge salvar a vida anunciando que Deus é

“Deus dos humildes, o socorro dos oprimidos, o protetor dos fracos, o abrigo dos

abandonados, o salvador dos desesperados” (Jt 9-11). A vida em abundância no

anúncio de Jesus (cf. Jo 10,10) implica capacidade de discernir as promessas e as

relações que geram vida. A fé faz perceber a realidade de Deus comunicada a suas

criaturas, atraindo-as para si em comunhão de amizade. Viver segundo a fé é,

120 Cf. GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 171.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 96: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

96

portanto, viver o ser criatura humana de um Deus, infinito que se auto-doa à pessoa,

ao mesmo tempo que preserva sua alteridade e a reconcilia consigo.

Adentrando o pensamento do Vaticano II, L. Boff faz sua própria leitura:

Igreja como Povo de Deus e instrumento e sacramento do Reino. Deus é

essencialmente amor em sua autocomunicação e estabelece comunhão. O

dinamismo da graça compreendido como um doar-se de Deus na vida do mundo e

da humanidade exige resposta verdadeira do ser humano. Jesus Cristo revela quem

é o ser humano e o recoloca no caminho de Vida, no qual somos todos irmãos. A

opção libertadora do pobre inscrita na palavra-ação de Jesus, em todas as suas

dimensões inclui a questão da terra. Em Jesus, o mistério humano evoca o mistério

de Deus. Nele revela-se o que há de mais divino no humano e o que há de mais

humano em Deus. Longe de ser utopista, o ser humano vive distendido entre a

utopia e a história121.

Expoente desde os inícios da Teologia da Libertação, esta teologia evidencia

a fé cristã horizontalizada para a libertação integral. Ela parte da constatação de ser

a América Latina marcada por estruturas de injustiça social e opressão, contra os

pobres, maioria de sua população. Contudo, ela não visa somente o aspecto

econômico dos pobres, mas a pessoa em todas suas dimensões. Fazem parte a

promoção da justiça e a instauração de relações mais fraternas na sociedade; sem

esta dimensão libertária a fé cristã não tem eficácia histórica, podendo facilmente

ser manipulada por ideologias do poder dominante.

O interesse pelo pobre é inspirado por uma evangélica opção vivenciada por

Jesus diante da vida. Ela já se encontra figurada no Êxodo, pela decisão de Deus,

em conduzir seu povo para uma terra onde corre leite e mel e que por isto desce

para o libertar, tendo conhecido seus sofrimentos, ouvido seu clamor e visto a

aflição (cf. Êx 3, 7). Em Jesus, Deus manifesta o tempo da libertação. Ele proclama

o ano da Graça, ano da libertação dos oprimidos e cativos, da recuperação da vista

dos cegos. Ele é a Boa Notícia aos pobres (cf. Lc 4, 17-18). É desta compreensão

121 Poderia ser destacada uma Obra de L. Boff para cada categoria, ainda que não haja limites bem

definidos podendo duas ou mais categorias ser encontradas em uma única Obra. Respectivamente:

Tema de sua tese doutoral: "A Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo.

Tentativa de uma fundamentação estrutural-funcional da eclesiologia". A Trindade, a sociedade e a

libertação. A graça libertadora no mundo. O destino do homem e do mundo. Dignitas terrae.

Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Jesus Cristo libertador: ensaio de cristologia crítica para

o nosso tempo. Saber cuidar. Ética do humano-compaixão pela terra. Estes textos são mencionados

somente para ilustrar o quanto sua teologia transparece as concretizações do Concílio Vaticano II.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 97: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

97

que nasce uma teologia que privilegia a práxis, a qual inspira e acompanha o reto

pensar.

L. Boff visa discutir as interrogações mais prementes do ser humano, de

modo a relacioná-las com a fonte originária da vida, Deus, e a realidade em contínua

mudança. Seu intento é falar a respeito de Deus de um modo audível hoje. Ele une

o Mistério de Deus e a realidade pós-moderna com seus novos desafios. Com

sensibilidade, este teólogo aproxima-se da interrogação existencial do sentido da

vida e a tarefa do ser humano neste mundo.

L. Boff desenvolve uma teologia da esperança. A utopia constitui seu

horizonte de abertura à vida, ao sentido e à plenitude. O destino derradeiro da

humanidade e do cosmo é a divinização. O Cristo preexistente, considerado na

pessoa histórica e única do Filho de Deus feito humano, “é a Imagem do Deus

invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas”

(Cl 1,15). Trata-se de uma esperança em sua transcendência e historicidade, por

isto, escatológica. A esperança escatológica num autor da América Latina reclama

uma práxis social. Ela não concorda com a esfera simplesmente do mágico, da

inércia. É preciso envolver-se concretamente com a dinâmica do já e do ainda não,

na história real, concreta e humana.

O seu pensamento está em constante diálogo com as ciências da terra.

Contudo, não se trata de toda e qualquer ciência. Antes, trata-se da ciência que se

ocupa com a emergência, da construção e da robustez da vida humana. A

centralidade da vida aparece na capacidade de relacionar-se em todas as direções,

da constatação de que ainda estamos em processo evolutivo. Evolução é então

compreendida como processo criativo, participativo e inclusivo de todos. A teologia

de L. Boff está inserida na pós-modernidade, meio em que desvanece a vida

paulatinamente. Banalizada e relativizada, a vida é ulteriormente, excluída. Neste

ambiente, esta teologia dissemina o sentido da vida contra a lógica do imediato, que

veta a superação da imanência, e assim rechaça toda ideia de transcendência. O

interesse de L. Boff está em que as questões das ciências são as questões de todo

ser humano. Também a elas aplica-se a categoria das relações multidimensionais.

Portanto, são também questões que interessam à teologia.

A exposição da teologia de L. Boff no que tange sua história teológica, sua

concepção e apreensão da vida em seu sentido será refletida na ótica antropológica

em sua tarefa de demonstrar que o nascimento da vida humana é permanente dom

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 98: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

98

gratuito de Deus, criador salvador, ao ser humano em seu desejo de relacionar-se

com o não-divino; Deus quer que o ser humano tenha parte em sua vida. Na

mensagem joanina: Deus quer a vida, em abundância.

3.1. A trajetória teológica de Leonardo Boff

Falar de um teólogo é, antes de tudo, falar de uma pessoa. E uma pessoa é

sempre um mistério de Deus. Falar dela é adentrar sua intimidade, seu ser único. O

Senhor admoestou a Moisés que tirasse as sandálias porque pisava numa terra santa,

marcada pelo arbusto que ardia sem se consumir (cf. Ex 3,5). Mais que um arbusto,

cada pessoa é uma chama constante a nos deslumbrar. Aproximar-se dela é

aproximar-se do seu Criador. L. Boff assume de maneira especial, manter acesa a

chama do acolhimento ao humano e ao divino, através de seus escritos. Por isso, de

modo especial, ele é um convite a, também nós tirarmos as sandálias, pois sua

presença assinala esse “lugar” que é a experiência humana e que é uma terra santa.

O teólogo (a) é aquele (a) cujo objeto de estudo, na verdade, não é um objeto,

mas um sujeito. Mas ainda: dois sujeitos. Ele é o sujeito do estudo, Deus é o sujeito

que o move a estudar. Deus é, pois, o primeiro sujeito de toda sua experiência de

vida. O coração do teólogo é movido pelo desejo de intimidade com o Absoluto,

que o seduz. Este desejo está na dinâmica da resposta ao Deus de Jesus Cristo que

se deixa experimentar, inquietando o coração do teólogo em sua direção.

Esta experiência tem o poder de contaminar a todos que também buscam

perscrutar Deus. Em Leonardo Boff, encontramos um teólogo, mas também um

mestre, um homem de pé no chão e fé no coração. Em sua página na Internet ele

assina: “Leonardo Boff- theologus peregrinus et peccator”.

Seu pensamento inspira milhares de trabalhos monográficos, em diferentes

áreas do conhecimento. Embora sejam diferentes seus campos de atuação,

diversificado seu pensamento e voltados para públicos muito diferentes, L. Boff

sabe adaptar sua linguagem para fazer compreensível seu pensamento ao público,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 99: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

99

de forma a fazer de sua teologia cristã um dom sápido. Sua teologia é singular e

atualizada122.

Seus estudos, desde seus inícios, buscam uma teologia que leve a sério Deus

e sua relação com as criaturas. Ele categoriza esta relação com o epíteto de

transparência, isto é, a transcendência na imanência. Deus não é só o transcendente,

nem muito menos só o imanente. A fé cristã afirma a glória velada de Deus na

história ambígua da humanidade, Deus sai de si mesmo sem deixar seu ‘si mesmo’.

Deus é transparente na existência humana. Deus é transparente na natureza.

O movimento de libertação é revelador da transparência de Deus. O Deus

totalmente transcendente é também o Deus totalmente imanente. O Deus totalmente

transcendente e totalmente imanente faz-se Deus totalmente transparente, através

de todas as coisas.

A transparência é intuição paulina. Em vários de seus escritos encontram-se

explícito o primado-presença de Cristo, como na Carta aos Colossenses: “Ele é a

Imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram

criadas todas as coisas” (Cl 1,15). No horizonte da unidade de todas as coisas,

“Cristo é tudo em todos” (Cl 3,11). Ele une, ao mesmo tempo, Deus, o ser humano

e o cosmos, sem despersonalização ou confusão dos três. Deus habita o cosmos,

Deus habita e acompanha o ser humano.

Suas palavras transbordam uma concepção de vida em sintonia com a busca

humana horizontalizada para um sentido maior revelado na vida. Para melhor

caminhar na esteira teológica de Leonardo Boff e por fazer jus a este homem,

cristão, teólogo, a palavra deve lhe ser dada. Que nosso autor diz de si mesmo a

partir de seu lugar histórico, sociocultural, eclesial?

3.1.1. O lugar histórico

Leonardo Boff, pseudônimo de Genésio Darci Boff, nasceu no último mês

do ano de 1938, em Santa Catarina. Neto de imigrantes italianos. Seu lugar familiar

faz imaginar um veio fértil, mas não homogêneo, uma possibilidade aberta à

122 Aqui interessa mais de perto o teólogo, ainda que se saiba que não é possível fazer um corte entre

sua história teológica engavetando outras áreas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 100: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

100

pluralidade de culturas. No ano de seu nascimento, a Itália é bicampeã da Copa do

mundo. Na política do Brasil, acontece um ato de violência praticado contra o

regime político de então, praticado, diz a história, pelos próprios detentores do

poder, objetivando nele se manterem arbitrariamente. É o golpe de Estado. Getúlio

Vargas, então presidente, anulou a eleição com o golpe do Estado Novo. Nos Meios

de comunicação social, o programa oficial de rádio ‘Hora do Brasil’ passa a ser

transmitido em todo o país. A voz do Presidente da República se faz ouvir.

Aos 15 anos de idade, L. Boff deixa de lado o sonho de ser caminhoneiro.

Até então, em sua opinião a vocação mais sublime era conduzir e dominar aqueles

monstros. Por esta ocasião, escuta atentamente um sacerdote, recém-chegado do

Rio de Janeiro, falar sobre a vocação franciscana e sente um fogo arder,

transformando o tempo em eternidade, “alguém em mim levantou minha mão”123.

Assim, deixou o sonho de conduzir caminhões para viver conduzido pela Palavra

como franciscano.

Em Petrópolis faz seus estudos iniciais de teologia. Em 1964 é ordenado

sacerdote na Ordem dos Frades Menores, os franciscanos. Neste período destacam

os professores, Constantino Koserm e o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Atraído

pela atividade intelectual teológica, descobre que a realidade tem sentido, apesar

das contradições.

Na Alemanha, faz seus estudos de doutorado. Em 1970, sua tese, em alemão,

com o título “A Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo”,

em plena efervescência pós-conciliar já reflete os ecos das questões que se

colocavam nos inícios dos estudos teológicos: “Como abordar os problemas

concretos do povo, da fome e do subdesenvolvimento? Como entender a Igreja em

um mundo tão negativo, tão hediondo, tão ‘anti-mundo’? [...] Que sentido tem o

sofrimento, particularmente o sofrimento dos inocentes? O que me espera após esta

vida?”124.

Seu esforço teológico de conjugar uma relação de proximidade de Deus com

o mundo tem forte influência de Teilhard de Chardin. Dele vem, em linhas gerais,

mas muito densas, uma cosmovisão que lhe inspira certa espiritualidade cósmica.

Escreve, então, seu primeiro livro: O evangelho do Cristo Cósmico. A realidade de

123 DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 18. Tradução

minha. 124 Ibid., p. 19. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 101: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

101

um mito. O mito de uma realidade, em 1971, pela Editora Vozes. Nesta Obra, ele

aponta ser o Mistério do Cristo cósmico a fonte e o termo do pleno sentido à vida,

sentido que ultrapassa toda sistematização e compreensão humana.

Esta cosmovisão permite a L. Boff efetuar uma recepção ampla da

antropologia e da cristologia. Visitou pessoalmente Habermas, Ricoeur,

Heisenberg, Rahner, Congar, Von Rad, Pannenberg. Visitou a outros por seus

textos diretos, como Agostinho, S. Boaventura, Duns Scotus e Ockham, além da

filosofia de Heidegger e a psicologia de Jung. Na jornada destes encontros, encontra

sempre seu próprio caminho, perfilando-se entre aqueles que colocam questões para

além dos autores, mesmos os consagrados125.

Seu pensar é singular e independente, ao mesmo tempo moldado, não apenas

por professores e eruditos, mas, porque toma um rumo escolhido, exatamente, para

pôr-se a caminho junto aos excluídos, moldam-no também milhares de cristãos

anônimos. Estes são seus companheiros e verdadeiros professores, pois no bojo de

uma experiência de opressão por um sistema desumano, encontraram um sentido

para a vida, e assim recriam a vida todos os dias. São missionários, em sua maioria,

vindos de outros países, para doar suas vidas no processo de humanização e

libertação. Ainda que expostos a perigos, mantinham a ternura126.

O coração continua a arder. Enquanto procurava exprimir seu próprio

pensamento, era levado à formulação de novas palavras, isto é: para a nova

caminhada, havia de colocar novos marcos, novos sinais que são as palavras para

os pensamentos. Justamente por ter novas intuições, ao formulá-las e as questões

ou problemas que levantava, via-se necessitado a criar uma linguagem própria. Ele

mesmo diz: “Um dos orientadores de minha tese em alemão contou mais de 30

palavras alemãs que eu havia criado sem que constassem no dicionário e todas elas

inteligíveis”127. Trata-se de palavras que são, ao mesmo tempo, compreensíveis,

delicadas e ainda inexistentes, nos dicionários gerais da língua.

Na década de sessenta do século XX, L. Boff reunia no convento de

Garnstock, fronteira entre a Bélgica e a Alemanha, brasileiros que estudavam na

Europa. Nestes encontros, buscavam uma reflexão em consonância com a realidade

da América Latina a partir das contradições da realidade deste continente. Seu

125 Cf. GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 170. 126 Cf. DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 14. 127 GUIMARÃES, J., Op. cit., p. 172.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 102: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

102

segundo livro condensa e disponibiliza um dos frutos desta práxis teológica: Jesus

Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo, em 1972. Este

foi, de certa forma a resultante dos encontros de Garnstock, mas escrito depois da

viagem de retorno ao Brasil, em 1970, quando começa a se desenvolver uma

teologia nos moldes da América Latina – a Teologia da Libertação128.

A Teologia da Libertação procura assumir a perspectiva do pobre como

princípio de articulação da reflexão ética e como configuradora de sentido para a

vida. Uma teologia que não se restringe, mas ultrapassa os limites da América

Latina, pois esse novo modo de fazer teologia é fruto da percepção de um sistema

socioeconômico opressor.

L. Boff transpõe os limites geográficos. São muitas as viagens pelos Meios

de comunicação social: livros, jornais, revistas, televisão, rádio e Internet, que

fazem estação no pensar129. A base de uma fé cristã dialogante propicia interação

com outras culturas, filosofias, religiões; em congressos, seminários, cursos,

palestras, encontros, movimentos sociais, empresas, universidades.

Isto é possibilidade pelo fato de que L. Boff conjuga, combina reflexão

acadêmica, sistemática com a vida e o destino da pessoa humana e do mundo. Ele

quer e constrói um pensamento sistemático unido à busca de comunicação com o

leitor, mesmo o não especialista. Não sem razão, pois cabe ao intelectual escutar as

tendências do pensamento, as interrogações do ser humano e colocar-se para buscar

a partir dele, ser humano, mas também junto com ele, dar significação à vida,

fragmentada por tantos absurdos.

Por vezes se diz que L. Boff aparece em demasia na mídia. Entretanto, há

uma explicação. A aceitação e a consequente frequência aos Meios de comunicação

social revelam o pressuposto de que para L. Boff a realidade é extremamente

complexa e que o teólogo não pode encerrar-se numa redoma de vidro, imagem

talvez um pouco repetida, mas que pode ser a figura dos conventos e universidades.

A oração não pode ser isolada. Além do contato com a realidade, é também preciso

provocar as pessoas a pensarem a vida e a se comprometerem pelo futuro da

128 Cf. DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 14. 129 Não é momento de enumerar às vezes em que L. Boff conferiu palestras e cursos nos Meios de

comunicação social. Suas Obras, até 2012, no Brasil, data do início desta pesquisa, chegam ao

número de 91. Ultrapassaria o objetivo aqui tratar de todas elas, e mesmo porque o autor continua

vivo e em ampla produção. Uma lista extensa, com bibliografia completa, pode ser encontrada nas

últimas páginas de seu livro recentes, e ainda informações sobre os próximos lançamentos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 103: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

103

humanidade e da terra. Ainda que suas atitudes possam incomodar, como de todo

intelectual, elas são “como os peixes de piracema: nadam contra a corrente para

chegar à fonte e permitir o recomeço da vida”130.

L. Boff tem a maestria de comunicar. Suas palavras são carregadas de vigor

e ternura pela vida, sobretudo a vida ferida em sua dignidade. E é dotado no

conhecimento de Línguas131. Isto lhe permite mudar com rapidez de Idioma,

transmitindo suas palavras com originalidade.

De viva voz ou por escrito, e para além da língua-idioma, L. Boff utiliza a

língua da experiência, da sensibilidade, da afetividade, da inteligência. Esta língua

toca as pessoas diferentemente. Algumas, quase nada; outras, em profundidade.

Outros há que o rejeitam. De qualquer forma é ele um homem de comunicação e

internacional. Em tudo isso, busca sempre a construção de seu pensamento não

apenas sobre o povo, mas junto com o povo. L. Boff introduz um elemento

perturbador: o pensar deixa de ser tarefa da elite. O povo deixa de ser o objeto e

passa a ser o sujeito do pensamento. Será esta a razão de uns esforçarem-se por

publicar e repercutir seu pensamento enquanto outros o rechaçam? Em todos os

casos, a verdade é que se encontram mais publicações dos primeiros do que dos

últimos.

O lugar histórico teológico de L. Boff é tematizado e editado por diferentes

grupos e pessoas. São escritos que buscam fazer jus ao horizonte planetário de sua

teologia, ainda que, cada um, naturalmente o aborde a partir de um prisma

particular.

Em 2008, empreendeu-se uma jornada, na esteira teológica de L. Boff por

ocasião de seus 70 anos de idade. Podem-se destacar duas publicações brasileiras,

uma em Minas Gerais outra no Rio Grande do Sul.

A primeira intitulada Leituras críticas sobre Leonardo Boff, organizada em

Minas Gerais, optou pelo viés de explicitar as razões do seu comprometimento com

130 BOFF, L., “Nunca aceitei o mundo assim como está”. 131 Desde pequeno Leonardo Boff teve contato com diferentes Idiomas. Em sua cidade natal, Santa

Catarina aprendeu Alemão e Italiano. Com seu pai aprendeu Grego e Latim que os ensinava a todos

os estudantes de sua época. Quando veio a Segunda Guerra e a imposição do governo de que todos

deviam falar o português, então começou a aprender a partir dos seus 10 anos de idade. Sua página

na Internet pode ser visitada também em Inglês e Espanhol; Idiomas mais difundidos no Brasil. Sua

produção acadêmica estende-se para outros países estrangeiros das Américas do Sul, Central e do

Norte, da Europa, da Ásia e da África com traduções nos seus vários idiomas: alemão, austríaco,

castelhano, catalão, chinês, coreano, croata, espanhol, francês, húngaro, inglês, italiano, japonês,

polonês, iugoslavo. Cf. BOFF, L., “Releitura da Vida à Moda de um Cego”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 104: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

104

o princípio de esperança. Embora diferentes os autores, verifica-se pelos seus

escritos, que eles unificam as dimensões teológicas e social também em sua

militância, justamente como L. Boff entende dever ser. Outro aspecto uníssono é o

sentimento de se estar diante de um pensador dinâmico, sem uma lógica

instrumentalizada, nem por isso dispersa, mesmo em obra tão vasta em temas e

volumes.

Seu pensar pode ser ilustrado com a imagem de uma bola de neve que rola,

que sem deixar de ser bola prossegue seu caminho interagindo e relacionando com

seu meio. Os temas novos que L. Boff apresenta, não contradizem, desvirtuam ou

negam os anteriores. Como bem disse Libânio,

Leonardo Boff avulta entre os teólogos por sua personalidade vulcânica. [...]. Um

vulcão só se capta com os olhos da poesia e da empatia. Imagino a tristeza desconsolada dos censores desse teólogo vigoroso, milimetrando-o com a régua de

alta precisão dos cânones da ortodoxia. Ele não cabe nessa medida porque seu

pensamento mistura, de modo quase impossível, a seriedade e a profundidade científicas com a poesia apaixonada de quem é visceralmente teólogo. Apesar de

ter-se doutorado na academia alemã, conservou em toda sua obra um traço tropical

de beleza, de vigor, de explosão. Os alemães diriam que ele faz teologia ‘mit Temperament’ – com páthos, com paixão e com compaixão, com a totalidade do

ser132.

Esta pesquisadora acredita que, para além da discussão de mudança de

paradigma133 ou de mudança de epocalidade ou de uma distinção entre um primeiro

132 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 9. 133 Paulo Agostinho, cientista da religião, mestre e doutor nos estudos de Leonardo Boff, defende a

existência de um novo paradigma em L. Boff, o qual intitula ‘teologia teoantropocósmica’, que

reconfiguraria toda sua produção intelectual. Assim afirma: “Em Leonardo Boff, percebe-se que até

1989, e mesmo depois, em algumas publicações de 1990, 91 e 92, outro paradigma marcava sua

produção teológica. O centro era a própria temática eclesiológica-cristológica, variando os tratados e assuntos, mesmo apresentando uma teologia aberta e abordando criticamente a igreja. O próprio

tema ecológico entrava como subtema dentro do processo sócio-histórico da libertação. Há uma

nova ordenação, nova configuração e estruturação de sua produção teológica. Existe um novo eixo:

a ecologia. A abordagem passa a ser teoantropocósmica e não mais antropo-teológica”. A Trindade

deixa de ser vista num modelo eclesiológico, para uma forma mais acentuada: a Trindade cósmica.

Neste ínterim, ele discorda que haja uma ‘mudança de epocalidade’ conforme defende Valério

Schaper em sua tese doutoral intitulada “A experiência de Deus como transparência do mundo: o

pensar ‘sacramental em Leonardo Boff entre história e cosmologia”. Para Paulo Agostinho é

questionável dizer mudança de época, pois isto desconsideraria o pensamento de L. Boff antes da

mudança, a qual ele data por volta de 1989, que estava fixado na cristologia e na eclesiologia, e na

influência de K. Rahner e H. Schlette. BAPTISTA, P. A. N., Diálogo e ecologia, pp.91-94.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 105: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

105

e segundo L. Boff134 vige o pensamento deste teólogo, que segue uma mesma linha

desde seus inícios acadêmicos, quando buscava elaborar uma teologia que levasse

em conta a intima vinculação entre Deus que permanece na vida, e o mundo como

morada de Deus, isto é, a relação de Deus com o mundo.

O primeiro resultado, ou seja, primeira obra, é sua apropriação sob

influência, não de dependência, do pensamento Teilhardiano que já buscava pensar

o problema da unidade da realidade. Vigora ainda hoje no pensamento de L. Boff,

“a visão de uma cristologia transcendental e cósmica, fundamento da realidade

cristã. Esta pode realizar-se mesmo fora do âmbito cristão”135.

Ao que parece, a mudança de pensamento de que falam, não seria mais que

o fruto da sua caminhada na história e de sua abertura ao fundamento, em última

instância, Deus presente no mundo, o mundo presentificado por Deus, para assumir

novos elementos, que vão paulatinamente deixando-se perceber, como integrantes

da realidade cósmica e crística. Por exemplo, a experiência de reunir estudantes,

quando ainda na Alemanha, para seu doutorado, a fim de discutirem um

pensamento consoante com a realidade de contradições na América Latina, mostra

já esta tendência de efetivar esferas cada vez mais abrangentes: já não lhe basta o

meio acadêmico. Ele precisa da realidade da América Latina. De volta ao Brasil

escreve seu livro, ainda um dos mais conhecidos, Jesus Cristo Libertador136. Mais

tarde já não lhe bastarão as informações sobre a realidade social: desejará contatá-

la, lê-la, ouvi-la pessoalmente. Por fim, lembrar-se-á de que a realidade cultural,

histórica, econômica, política existe num planeta que também é explorado à

exaustão, como o é o povo. Seu pensamento tentará, então, abarcar mais este âmbito

da realidade.

134 Maurício Tavares Pereira disserta que o pensamento de L. Boff está dividido em três fases, isto

é, a fase europeia, a da Teologia da libertação e a última de elaboração do novo paradigma ecológico.

Em seguida parece entender que não há divisão no pensamento de L. Boff, por afirmar que nas

últimas obras em 2012 há, na verdade, uma sintetização que possibilita maior clareza de seu

pensamento. TAVARES PEREIRA, M., Novo paradigma civilizatório, p. 18 e 115, respectivamente. 135 BOFF, L., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 12. 136 Leonardo Boff faz questão de ressaltar como surgiu este livro. Trata-se do fruto de um retiro

pregado para missionários da Amazônia, logo após viver cinco anos consecutivos na Europa, e trazer

na bagagem uma leitura crítica da sociedade, uma tradição marxista teórica. Se seu retorno ao Brasil

o fez experimentar profunda dor por ver tanta pobreza e miséria. No retiro em Manaus experimenta

perplexidade por perceber que toda cristologia crítica e europeia que tinha aprendido na Alemanha

nada dizia para aquele povo. Sua teologia precisaria ser repensada, surge então o livro: Jesus Cristo

libertador. DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 22.

Leonardo Boff recomenda, via E-mail, não omitir este dado histórico. Cf. BOFF, L., Estudos no

pensamento L. Boff.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 106: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

106

Pode-se também ver a transformação de seu pensamento como uma marca

da pós-modernidade. Com efeito, enquanto a modernidade dava subsistência à

esperança baseada na razão, a pós-modernidade, com a desligitimização da

esperança pela razão, problematiza não haver razão para esperança. Esta carência

de sentido, de um horizonte maior é o que melhor define o momento atual pós-

moderno. Ela o impede de resolver a crise mediante um alternativo eterno retorno,

que voltasse cegamente às certezas de outrora num tradicionalismo, e ainda negar

o passado adotando um futurismo. Tendo este pano de fundo, ao que parece, o

pensamento de L. Boff propõe um caminho de libertação, cada vez mais abrangente.

No começo, preocupou-o o resgate dos excluídos, dos marginalizados. Hoje, ocupa-

o o resgate da criação: o planeta terra e aqueles que o habitam, preferencialmente

os mais pobres. Preocupa-o o resgate dos pobres, que não podem ser resgatados

sem que os opressores recuperem sua humanidade e todo este conjunto só será

resgatado no dia em que uma nova terra for um novo Jardim para toda a

humanidade.

Em seu livro atualizado, Evangelho do Cristo cósmico, 2008, as palavras de

L. Boff salientam a permanência e a constância de seu pensamento. Sua teologia

vincula atualização com continuidade.

O surgimento do pensar ecológico, especialmente a partir dos anos 1960, e a consciência de nossa responsabilidade pelo futuro da vida, dos ecossistemas, da

humanidade e do planeta Terra como um todo alarmaram as consciências,

suscitaram discussões científicas, exigiram políticas novas quanto à relação entre

desenvolvimento e meio ambiente e desafiaram também as religiões e as tradições espirituais137.

Tal continuidade deve ser entendida a partir de sua compreensão da inserção

do teólogo, na Igreja e no mundo. Dois temas recorrentes, na teologia

contemporânea, balizam de modo especial o itinerário teológico de L. Boff: a

experiência de Deus e a vida como um nó de relações, na ótica cristã.

Não parece mais apropriado dizer que por ser a fé cristã encarnada e

histórica, e não apenas o teólogo historicamente situado, ela necessariamente

acontece dentro de uma história e cultura? Pois é a partir da fé que se buscam novas

formulações e práticas afim de que o Evangelho seja audível na vida

137 BOFF, L., Evangelho do Cristo cósmico, p. 11. Os estudos de teologia, neste caso na esteira

teológica de L. Boff, devem considerar seu percurso teológico e os contextos social, cultural,

histórico eclesiástico e teológico para melhor aprofundar-se em suas intuições.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 107: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

107

contemporânea. O Concílio Vaticano II fala, pela Gaudium et Spes, dos múltiplos

laços existentes entre a mensagem da salvação e a cultura humana, “Deus, com

efeito, revelando-se ao seu povo até à plena manifestação de Si mesmo no Filho

encarnado, falou segundo a cultura própria de cada época”138. Neste mesmo

dinamismo afirma a Igreja na América Latina “O encontro com Cristo, Palavra feita

carne [...] se expressa em uma reflexão séria, feita diariamente no estudo que, com

a luz da fé, abre a inteligência à verdade. Também capacita para o discernimento, o

juízo crítico e o diálogo sobre a realidade e a cultura”139.

A segunda publicação, por ocasião de seus 70 anos, aconteceu em São

Leopoldo. Uma promoção da “Faculdades EST” (Escola Superior de Teologia).

Marcada por um prisma bem circunscrito, revela justamente o reconhecimento, para

além dos limites do catolicismo, da sua pertinência e tempestividade. Ela é fruto

dos estudos do “Seminário Leonardo Boff e a Teologia Protestante”140. Os textos

discutidos durante o Seminário foram publicados, em homenagem a seu

aniversário, no periódico “Estudos Teológicos”. A revista, uma verdadeira obra

sobre L. Boff aborda sua teologia, mais precisamente nos temas Trindade, Igreja,

Graça, Esperança e Ética. Ainda que por confissões diferentes, constata-se, entre

convergências e divergências, a unidade da fé no Cristo e no amor ao próximo.

Também, durante esse seminário, a Faculdades EST outorgou-lhe o título de

honoris causa. Quando Rudolf Von Sinner fez sua ‘Laudatio’ a Leonardo Boff, por

ocasião da outorga deste título, ele enfatizou que sua instituição previa três

possibilidades para esta outorga, e que a personalidade de L. Boff reúne todas elas.

Assim recebe o testemunho de ter se distinguido por suas atividades “em prol do

conhecimento, da causa humana e do melhor entendimento entre os povos”141.

Ora, o esforço de pensar o humano e o mundo é exatamente o que leva L.

Boff a pensar Deus como Trindade. Trata-se de um tema que lhe é caro. Dentre seis

artigos discutidos no Seminário, dois se ocupam de seu pensamento trinitário, isto

é, faz pensar Deus enquanto Deus Trindade, pela categoria pericórese que implica,

simultaneamente, o caráter comunional, singular e relacional do Deus-Amor. Por

seu turno, a ideia da criação à imagem e semelhança, pensada numa ampla interação

138 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 58, p. 210. 139 CELAM V., Documento de Aparecida, n. 280. 140 VV.AA. “Teologia de Leonardo Boff”. 141 SINNER, R. V., “Laudatio”, p. 199. Grifo meu.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 108: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

108

com os seres humanos, leva a intuir que, para a busca de sua plenitude, eles devem

não só coexistir, mas também interagir. Como a Trindade, na comunhão

pericorética, tem a plenitude de seu ser divino, igualmente o ser humano será

plenamente humano, quando buscar a convivência, a comunhão e a participação.

Para Von Sinner, a Trindade em Leonardo inspira profeticamente um tipo de

sociedade em nosso mundo globalizado baseado na alteridade, participação,

confiança e coerência142.

Pode-se então, quem sabe, falar da vida intelectual de L. Boff como de uma

esteira. Nela não parece haver mudança de rumo ou paradigma. No entanto, não se

trata igualmente de percurso de fôlego único ou empreitada monocromática. Muito

ao contrário, alguns rastros se destacam. São principalmente aqueles que conjugam

o conhecimento do homem e do teólogo, com tamanha obra que resultou de seu

caminhar.

Paralelamente a estas duas publicações cumpre agora destacar o que o

próprio Leonardo Boff diz de si mesmo. Neste ano de 2008, particularmente, sua

vida o faz lembrar Cícero, o antigo filósofo, pela sua frase: Os homens são como os

vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons. O exame que L. Boff faz de si é

assinalado por cinco boas palavras143. A primeira é o reconhecimento de estar velho

“A vida na velhice impõe esta exigência: que nos confrontemos, com temor e

tremor, com as questões derradeiras e inadiáveis. É então que de fato podemos

madurar, ganhar gravidade e terminar de nascer”. A segunda palavra especifica o

ser cristão, agraciado por experienciar que o mundo espelha Deus e permite também

vê-Lo. O Deus de Jesus Cristo, “quis caminhar, se alegrar, sofrer, viver e morrer

conosco para que tivéssemos a absoluta certeza de que Deus nunca está longe de

nós, que somos de sua Casa”.

A terceira boa palavra assoma da mística de Francisco de Assis. “A porta

pela qual se entra e se descobre o único Cristo verdadeiro, aquele que foi um artesão

e camponês mediterrâneo”. Junto com ela, descobre a quarta boa palavra: o ser

teólogo, isto é, um ser que “levanta uma pretensão inaudita: pensar a Última

Realidade, Deus, e tentar exprimi-la com palavras adequadas”. Fortificado pelo

desejo de ser teólogo, ele aprende a olhar “a realidade sofredora, injusta e opressora

da maioria de nossos irmãos e irmãs”, sentindo-se profundamente provocado “a ser

142 Id., “A Santíssima Trindade é a melhor Comunidade”, pp. 51-73. 143 BOFF, L., “Releitura da Vida à Moda de um Cego”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 109: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

109

um teólogo da libertação”. E por fim, a quinta palavra, ser homem. Ao mesmo

tempo em que se experiencia velho, cristão, franciscano, teólogo, continua a ser um

homem. Eis o grande desafio, pois é parte de um projeto infinito, projeto que ele

pretende elucidar, mesmo tendo consciência de estar nele inserido. Esta

consciência, ele a desenvolveu, após ter-se ocupado “da nova cosmologia, a

astrofísica, a nova antropologia e com as ciências da Terra, encerradas na palavra

Ecologia, objeto de meus estudos já quase 30 anos”144.

A vida de Leonardo Boff teve um marco especial de publicação e eventos

sobre sua teologia, como foi destacado em 2008. Seu pensamento percorre muitos

saberes e culturas, a fim de conhecer melhor a história do mundo e dizer Deus de

forma contemporânea, sem esquecer os pobres, mediadores diante do Juízo

derradeiro. Títulos acadêmicos e prêmios lhe são dados, por várias Instituições

brasileiras e do exterior. Em suma é ele um intelectual do mundo pelo seu

pensamento e pela luta em favor das causas sociais e dos direitos humanos.

Em seus trabalhos, Deus é descrito como Mistério insondável, de

acolhimento e de ternura, de comunhão e libertação. Estas quatro palavras,

acolhimento, ternura, comunhão e libertação, têm conotações diversas, mas têm um

traço comum de supor uma presença ativa. Deus não aparece aí como o “motor

imóvel” dos filósofos. Deus é Aquele que nenhum pensamento abarca. Na verdade,

Ele se move sempre, é sempre ativo em criar e redimir. O melhor modo de

expressar, quando se começa a compreendê-lo é ficar em silêncio frente à sua nobre

presença presente.

Até agora falou-se de L. Boff, de seu lugar histórico, mas com referência

apenas à dimensão da luz. Sabe-se que, na vida humana, a unilateralidade é irreal.

Humanos, somos todos contraditórios. Portanto mister faz-se também falar das

sombras. No caso de Leonardo Boff, possivelmente, neste aspecto, o ponto central

seja que, pela própria grandiosidade e pela solidez da fundamentação de seu

pensamento, tenha se tornado pouco acessível às críticas. Isto pode se dar, talvez

pela originalidade, talvez por falar de um futuro no qual a razão cede seu lugar a

uma terna experiência. Os embates eclesiais também o atingiram fortemente. E esta

144 BOFF, L., “Releitura da Vida à Moda de um Cego”. Por cosmologia subtende-se a origem,

estrutura e evolução do universo formada a partir do método experimental-científico, dos dados

culturais, simbólicos, estéticos, religiosos. A articulação destes saberes fornece o mapa do universo

e da vida humana, ao que propicia um horizonte à vida. Cf. BOFF, L., O despertar da águia, p. 49.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 110: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

110

é uma condição que ainda hoje ecoa em todos os que ouvem seu nome, mesmo após

terem se passado mais de vinte anos.

No entanto, sabe-se que, na história entendida como diálogo com Deus, as

luzes convivem com as sombras, como na obra dos grandes pintores impressionistas

que faziam o uso do jogo da luz. A teologia cristã acredita que o Logos eterno do

Pai, pelo e para o qual tudo existe, é a vida e é a luz que resplende nas trevas. Por

isso nunca se devem temer as sombras, pois, nossa Luz é tal que jamais a escuridão

apaga o seu clarão, ainda que pareça ofuscada.

3.1.2. O lugar eclesial

O lugar eclesial de Leonardo Boff tem um marco importante no Concílio

Vaticano II. Ele vivenciou este acontecimento ainda em sua fase preparatória e por

ele modelava o que seriam seus estudos no doutorado em teologia. Ele mesmo

ressalta que o Vaticano II significou “a descoberta de uma reflexão teológica sobre

as realidades terrestres, a ciência, a técnica, o trabalho, a cultura, os direitos

humanos, o diálogo ecumênico e inter-religioso”145.

O Século XX é, sob certo aspecto, o século das grandes guerras, das grandes

crises mundiais. Por outro lado, é um século no qual a Igreja adquire força e

vitalidade. Há um renascimento em todos os campos: renovação teológica e

litúrgica, crescimento no campo missionário e do movimento ecumênico,

Encíclicas abordam questões vitais e influenciam as estruturas sociais. O grande

marco histórico da caminhada da Igreja, sua grande realização é o Concílio

Vaticano II. Ele imprime um novo dinamismo e suscita um novo sopro do Espírito

na Igreja. Despojada, a Igreja volta-se para o modelo das primeiras comunidades.

Vendo-se cada vez mais como servidora, a Igreja continua a ser mãe e mestra, se

coloca a olhar o mundo, não como campo de conquista, mas como filho a ser

resgatado, orientado.

Uma das intuições importantes deste Concílio é a compreensão da Igreja

como Povo de Deus. Não é por acaso que na Constituição dogmática Lumen

Gentium, o capítulo sobre o Povo de Deus precede o da hierarquia da Igreja. Neste

145 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 171.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 111: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

111

precioso documento passa-se de uma visão de Igreja-hierarquia à uma visão Igreja-

povo de Deus. Seu primeiro capítulo, intitulado “o Mistério da Igreja”, abre uma

perspectiva de Igreja Mistério e não mais, Igreja sociedade perfeita. Igreja Mistério,

explica Libânio, significa Igreja sacramento,

A Igreja é, portanto, situada numa perspectiva sacramental. Ela é sinal,

presencialização do plano do Pai de salvar todos os seres humanos na caridade do

Filho, feito homem, redentor e mediador, e na efusão do Espírito, princípio de união e santificação dos remidos. Ela dirige apelo a todos a formarem o Povo de

Deus146.

A Igreja é então compreendida como obra da Trindade. Pela comunhão das

três Pessoas podemos afirmar que o princípio criador e sustentador de toda unidade

de grupos, na sociedade e na Igreja deve ser a comunhão entre todos os

participantes, sem que haja lugar para autoritarismo religioso ou a qualquer tipo de

discriminação, por cor, cultura, sexo, etc.

Nesta perspectiva de Igreja-mistério compreende-se, agora, Igreja como

atualização do Reino de Deus. Assim, ela deixa de ser compreendida como a

identificadora do Reino para ser de anunciadora do Reino. E na própria

compreensão da dinâmica do Reino, mediante uma leitura fundamentada na Bíblia,

ela se conscientizou das implicações para a autocompreensão do cristianismo. A

Igreja, não é o Reino, mas testemunha e antecipa o Reino, atualizando o que Jesus

faz às pessoas de seu tempo.

O Concílio Vaticano II constitui assim não um novo evangelho, mas uma

nova maneira de ler o evangelho. E trata-se de uma maneira nova, que na verdade,

é uma volta às fontes, ao espírito impulsionador das primeiras comunidades. É tão

profunda esta mudança, com relação ao período da cristandade, que se pode falar

de uma nova e melhor compreensão da Boa Notícia de Cristo, pode-se falar de

Igreja antes ou depois do Vaticano II.

No dizer de L. Boff, todo cristão está na “Igreja com a mesma missão e

mensagem de Cristo: anunciar e ir realizando aos poucos o Reino de Deus no meio

dos homens”147. A Igreja tem sua razão de ser em Jesus Cristo, que ela faz presente

146 LIBANIO, J. B., Concílio Vaticano II, p. 108. Na Constituição dogmática Lumen Gentium Igreja

é também descrita sob a forma de várias imagens bíblicas: redil cuja única porta é Cristo; agricultura

ou campo de Deus; construção de Deus; Jerusalém do alto; nossa mãe; esposa imaculada do Cordeiro

imaculado. Apresentada como Corpo místico de Cristo; simultaneamente visível e espiritual. Cf.

CONCÍLIO VATICANO II., “Lumen Gentium”, n. 6-8, pp. 42-48. 147 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 147.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 112: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

112

no meio da humanidade. O fato de se ter uma visão de Igreja, assumida a partir do

Concílio já é fruto de um processo. Gutierrez ressalta que a novidade do Vaticano

II é ter ele partido de uma compreensão iluminada pela Palavra de Deus e o

envolvimento de maneira fecunda e crítica ao processo já em curso148. A Igreja

perdia sua possibilidade de influenciar os poderes a partir do exercício do próprio

poder. Ela assume uma feição muito mais profética, de denúncia das injustiças e

anúncio da esperança. A própria situação social do mundo moderno exigia uma

postura e uma tomada de posição, particularmente a injustiça e a crescente pobreza.

O novo tipo de Igreja, então, nasce como resposta dada na fé às realidades que

gritavam por vida, às dificuldades de diálogo, de encontro e comunhão entre todos

os membros do povo de Deus. Em suma, compreende-se que o Reino de Deus quer

ser Reino que começa já neste mundo, assim também deve começar aqui o processo

de libertação149.

A situação social humana de miséria exige atenção, quando confrontada

pelo Reino inaugurado por Jesus. Ela provoca, assim, que a Igreja tome uma posição

frente à sua realidade, ao mesmo tempo em que nela e a partir dela dê testemunho

do Evangelho. Esta provocação que faz acontecer na América Latina, a Conferência

em Medellín150 e posteriormente em Puebla151. Estas conferências, por

privilegiarem a colegialidade, indicam uma continuidade e um amadurecimento do

processo iniciado no Concílio Vaticano II, o qual recomendava uma Igreja atenta

aos sinais dos tempos. O desdobramento da missão eclesial na América Latina

supõe olhar de frente a desumana situação de pobreza e opressão em que vive a

imensa maioria do povo neste continente e ser sensível à sua aspiração à libertação.

Urge que no caminho a Igreja tenha diante de si estas realidades e que as confronte

com a mensagem do Reino de Deus. A aplicação das propostas do Concílio

Vaticano II na América Latina exigiu uma revisão da vida, que levasse em conta a

realidade dos pobres e oprimidos. “A relevância do pobre para o Reino de Deus e,

148 Cf. GUTIERREZ, G., “O Concílio Vaticano II na América Latina”, p. 18. 149 Cf. AZZI, R., “A teologia no Brasil”, p. 42. 150 Em 1968, reúne-se a II Conferência Geral do Episcopado da América Latina, em Medellín,

Colômbia. Seu tema: A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio quis

definir sua missão a partir dos princípios da fé e da realidade sócio-cultural do continente. 151 Em 1979, acontece a III Conferência Geral do Episcopado da América Latina, em Puebla,

México, com o tema: A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Puebla adota uma

linha mais voltada para a realidade sócio-cultural e religiosa do continente. A Igreja vai se

delineando cada vez mais como Igreja povo de Deus, pobre e servidora, missionária e profética, em

comunhão com a Tradição, mas em ruptura com modelos e práticas da cristandade. Cf. MATOS, H.

C. J., Nossa História, p. 237.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 113: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

113

por isso mesmo, para o anúncio do Evangelho, é o nervo da mudança que a Igreja

latino-americana experimenta”152. Trata-se de anunciar, proteger, defender a vida

que provém do Ressuscitado.

O denominador comum entre as duas conferências episcopais, Medellín e

Puebla, é a avaliação da realidade à luz do Vaticano II e, simultaneamente, o

enfrentamento do desafio da pobreza e da urgente presença transformadora nas

estruturas sociais. Na América Latina, a Igreja quer ter rosto próprio, com as marcas

faciais do sofrimento, das alegrias e dos anseios dos povos da América Latina e

Caribe. Ela quer ser uma Igreja que sente a necessidade de pôr-se em defesa do

povo e defender os direitos humanos, de superar a situação de opressão e exclusão

em que vive a maioria do povo, criando comunhão e participação. Refletiu-se

bastante sobre a pobreza e a libertação. A miséria é vista como fato coletivo e de

injustiça que clama aos céus. Ela não é mero fruto do acaso, mas é produzida. Na

estrutura injusta e desigual da sociedade, o pobre é oprimido. O projeto que urge é

o da libertação. Depois destas reflexões, a Igreja não conseguirá mais fechar seus

olhos frente às realidades injustas e desumanas153.

L. Boff explicita a trajetória de Roma para América Latina.

Se o Vaticano II significou uma abertura ao mundo, Medellín representou uma abertura ao submundo. Ao invés de ratificarem o termo desenvolvimento,

inauguraram a linguagem da libertação. Oficializaram as bases para a Teologia da

Libertação, que estava nascendo naquele exato momento e que já influenciara os textos de Medellín154.

Esta nova visão eclesiológica traz uma nova concepção de Salvação. Ela já

começa neste mundo embora ainda não esgote na realidade terrena. A salvação

compreendida na teologia do Reino e no compromisso com a justiça é o eixo da

Teologia da Libertação.

O processo de libertação humana é a concretização histórica da libertação de Deus

[...] A libertação é humana porque é efetivada pelo homem em sua liberdade; entretanto é Deus quem move e penetra a ação humana de tal forma que a libertação

possa ser dita como libertação de Deus. O processo histórico antecipa e prepara a

definitiva libertação no Reino; as libertações humanas ganham uma função

sacramental: possuem seu peso próprio, mas também sinalizam e

152 Cf. GUTIERREZ, G., “O Concílio Vaticano II na América Latina”, p. 48. 153 Cf. BOFF, Lina., “A esperança como teologia da história”, pp. 133-153. 154 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 173.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 114: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

114

antecipatoriamente concretizam o que Deus preparou definitivamente para os

homens155.

A Teologia da Libertação salienta a dimensão transformadora da fé cristã

no sentido de uma libertação integral. Parte da constatação de a América Latina ser

um Continente marcado por estruturas de injustiça social, com a maioria de sua

população constituída por pobres. Ela não se restringe a aspectos econômicos, mas

visa a pessoa no seu todo. Trata-se de uma teologia que privilegia a práxis, isto é, a

ortopráxis precede, inspira e acompanha a ortodoxia. No centro de seu interesse

está a evangélica opção pelos pobres, preferência encontrada na própria figura

histórica de Jesus. Esta opção implica o caminhar de mãos dadas com a promoção

da justiça e a instauração de relações mais fraternas.

A própria vida, a libertação, quando afirmadas radicalmente e assumidas

com toda a responsabilidade, mostram a dimensão vertical e horizontal, a imanência

e a transcendência. Quando captadas juntas, elas nos abrem para a transparência de

Deus no coração de nossas lutas156.

A Teologia da Libertação tem em vista que a resposta humana mais

importante e necessária, no contexto da América Latina, é a opção em favor dos

pobres e contra a pobreza estrutural, por se tratar de uma opção evangélica. Tem se

tornado cada vez mais evidente que a atitude evangélica e ética em estar ao lado do

pobre, defender seus direitos, tem enorme alcance na realidade157 da América

Latina onde a injustiça e a pobreza são produzidas por mãos humanas. Trata-se de

dar uma resposta importante e urgente no contexto da América Latina. Jesus vai à

frente, cria nova consciência de solidariedade. Com ele começa de fato a libertação

que convida à solidariedade amorosa para com a outra pessoa.

Boff possui teologicamente uma maestria rara e bela ao falar de assuntos

que tocam a vida humana, ao mesmo tempo em que reporta ao Eterno. Ele esteve

presente nos inícios da reflexão que procura articular o discurso indignado frente à

miséria e à marginalização com o discurso promissor da fé cristã gênese da

conhecida Teologia da Libertação, perspectiva da América Latina que possibilita

155 BOFF, L., A graça libertadora no mundo Apud AZZI, R., “A teologia no Brasil”, p. 42. 156 LEMOS, R. C.R., “Reino de Deus, experiência que aponta para a vida” Apud BOFF, L.,

Dissertação (Mestrado em Teologia) pp. 99-101. 157 Conforme Pietrzak, professor doutor na Universidade católica de Lublin/Polônia, a eclesiologia

de L. Boff tem os pobres como sua perspectiva fundamental. A partir dos pobres, ele vê a realidade

humana e procura recuperar a sua dignidade. Cf. PIETRZAK, A., Povo de Deus segundo Leonardo

Boff, p. 30

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 115: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

115

encontrar sentido na vida. “Leonardo Boff no Brasil, Gustavo Gutiérrez no Peru e

Franz Hinkelammert no Chile e na Costa Rica, junto com muitos outros,

incentivaram, a partir da perspectiva das vítimas, o surgimento de novos

caminhos”158.

Sobre esta teologia, L. Boff descreve:

O grito do oprimido conheceu uma poderosa reflexão calcada sobre práticas solidárias de libertação. Delas nasceu a teologia da libertação. [...]. A teologia da

libertação tem feito bem aos oprimidos e marginalizados, pois tentou convencê-los

de que sua causa tem a ver com a causa de Deus na História e que se inscreve no coração da mensagem e da prática de Jesus159.

Com o advento da lógica de exploração da terra, ele ausculta outros gritos,

e por isso amplia as intuições de sua teologia. A teologia da libertação põe em relevo

as questões dos pobres e oprimidos que anseiam por libertação e as questões da

terra que está ferida e doente.

A Terra também grita. A lógica que explora as classes e submete os povos aos

interesses de uns poucos países ricos e poderosos é a mesma que depreda a Terra e

espolia suas riquezas, sem solidariedade para com o restante da humanidade e para com as gerações futuras160.

É praticamente de domínio público, pelo menos entre os que buscam

acompanhar sua vida e obras, a difícil e sofrida relação de Leonardo Boff com a

Igreja, em sua vertente institucional e as consequências das penas eclesiásticas que

lhe foram aplicadas pela Congregação para a Doutrina da Fé. Naturalmente,

também na opinião pública, há divergências entre aqueles que vibram com seu

pensamento e, de certa forma, sentem que o modo como ele fala de Cristo e seu

Evangelho faz suscitar um compromisso com a vida, em todas suas dimensões, e

aqueles que discordam de seu pensamento. No aspecto particular das penas, por

exemplo, há quem visse incômodos resquícios da Inquisição. De outro lado, pessoas

houve que as aprovassem, reputando-as necessárias. Em suma, poderia dizer-se que

seu pensamento ainda incomoda a muitos, mesmo depois de ter feito uma mudança

radical: de sacerdote para leigo. Por quê? O lugar eclesial do autor em estudo e sua

trajetória poderá sinalizar o sentido de sua teologia e de sua vida.

158 BLANK, R., Encontrar sentido na vida, p. 80. 159 BOFF, L., Dignitas Terrae, p. 11. 160 Ibid., p. 12.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 116: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

116

Na história há acontecimentos que marcam indelevelmente a vida das

pessoas, como por exemplo, o nascimento de uma criança, a publicação da

monografia, a visão do alto da montanha. Nestes momentos, brota no mais profundo

do coração humano a exclamação que há uma ordem e presença do divino em cada

ser, uma harmonia nas relações, um salto em direção a humanidade. Estas marcas

lançam verdadeiras luzes na história e sublinham a beleza de toda a criação. A

história tem também suas sombras. A rejeição pura e simples ao novo por vezes

aborta possibilidades da vida que, se levadas a termo, poderiam ser muito férteis.

Acresça-se a arrogância ao tecer crítica e a razão que instrumentaliza o olhar para a

criação.

A década de 80, do século XX, ou melhor, o lançamento do livro: Igreja:

carisma e poder. Ensaios de eclesiologia militante. Petrópolis: Vozes, 1981, de

Leonardo Boff, marca uma nova e sombria fase em sua vida. Suas palavras

sintetizam e apontam o seu horizonte teológico de sentido: mudei de trincheira para

continuar na mesma luta.

Mudanças bruscas acontecem. Interlocutores trocam de posição.

3.1.3. Interlocutores do pensar teológico

Uma questão importante para esta pesquisa são os interlocutores do pensar

teológico de Leonardo Boff. Historicamente, todo pensamento vigoroso gera

aplausos e oposições. Com L. Boff não seria diferente. Trata-se, pois, aqui de tomar

consciência da controvérsia que algumas pessoas levantaram, seja quase

imediatamente, em alguns casos, bem como outros posteriores ao ano de 1982.

Mesmo onde antes havia concordância de pensamento, ou seja, – entre alguns

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 117: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

117

companheiros dos inícios, houve mudança de intenso significado na comunicação,

a qual repercute vivamente em muitos outros161.

Há muitos interlocutores de Leonardo Boff. Em páginas da Internet, assim

como outros Meios de Comunicação Social as pessoas discutem, opinam, refletem,

questionam. Em suma, interagem com seu pensamento. Os escritos sobre sua

pessoa e pensamento são também numerosos e continuam a se multiplicar. Seu

pensamento global e sua capacidade de comunicação fazem brotar estudos que

extrapolam a teologia. Assim, já a pluralidade de seus interlocutores, bem como a

abrangência de seu pensamento, sua capacidade de apropriar de várias ciências, sem

perder de vista a fé cristã, requerem uma delimitação de tema a quem queira

interagir.

Uma das razões desta pluralidade e abrangência é, pode-se adivinhá-lo, a

complexidade da experiência que faz L. Boff de Jesus de Nazaré, aquele, que, no

seu dizer, e isso se tornou marca registrada sua: “O homem Jesus de Nazaré revelou

em sua humanidade tal grandeza e profundidade que os Apóstolos e os que o

conheceram só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus

mesmo”162. A pessoa fala humanamente de Deus o qual fala divinamente da pessoa.

Este teólogo se abstém de enveredar pela via das demonstrações racionais

da existência do infinito criador e do espírito humano imortal, ou da diferença entre

o Criador e suas criaturas. Para ele está ultrapassada a discussão entre razão e fé e

161 O aspecto a ser abordado e de grande importância para a pesquisa serão as controvérsias

teológicas no seu aspecto geral, e não tanto uma delimitação particular. Compreende-se que o foco

desta pesquisa não é a polêmica em torno do livro: Igreja: carisma e poder. Ensaios de eclesiologia

militante. A área de concentração é a teologia sistemática pastoral. Sua pertinência teológica está no

pressuposto dos sérios desafios colocados à teologia pela civilização pós-moderna. Entre eles, a

questão do sentido da vida é dos mais exigentes. Frente a tal desafio, a antropologia teológica, ao

tematizar a originalidade da existência humana, apresenta uma proposta de perpassar e transcender a história humana, para reconduzir a vida a seu profundo sentido. Assim os importantes campos de

Eclesiologia, Sacramentologia Moral, estão fora do propósito. A pesquisa também não versa sobre

o Tratado sobre a Trindade, muito embora esteja em interdependência com ela. O livro do autor em

estudo, datado de 1981, que se tornou polêmico, concentra-se na eclesiologia. Todos estes temas são

naturalmente de interesse. No entanto, uma abordagem mais ampla desviaria o foco desta pesquisa:

a vida e seu sentido. Para quem esteja pessoalmente interessado, pode-se encontrar uma análise da

polêmica entre Leonardo Boff e a Arquidiocese do Rio de Janeiro, e o encadeamento do processo

eclesiástico em Roma durante o papado de João Paulo II e então Prefeito da Congregação para a

Doutrina da Fé em Roma, Cardeal Joseph Ratzinger, em LACERDA DE BRITO, Lucelmo. Uma

análise da polêmica em torno do livro. 162 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 118: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

118

sobre a diferença e separação entre corpo/matéria e alma/espírito. A seu holismo163

é estranho um universo hierarquizado, no qual seres superiores dominam e

governam os inferiores, imagem que reproduz e ideologicamente justifica as

concretizações históricas do poder.

Na multidão de interlocutores, alguns requerem maior atenção em dialogar

com L. Boff. Entre muitos, três serão destacados164.

O primeiro trata-se do suíço, Dom K. J. Romer165, que serve à Arquidiocese

do Rio de Janeiro. O segundo, Paulo Agostinho166, é professor na PUCMinas no

Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião. Fez seus estudos de mestrado

163 L. Boff pensa a palavra ‘holismo’ vinda do grego ὅλος. Significa completude. Trata-se de pensar

o todo nas partes e as partes no todo. Sua percepção busca colocar tudo em diálogo em todas as

direções e momentos. Assim, não se discutirá se Leonardo Boff é panteísta malgrado seu; por não

ser preocupação de nenhuma temática desta pesquisa. Com a possibilidade de leitura de o Espírito

estar em todas as coisas, temos uma Ortodoxia sólida e isto bastará, porque, feito isto, seu pensamento e sua atividade teológica que prosseguem entre nós continuam a ter vigor iluminativo

para a teologia de nosso tempo. Em sua obra, Id., O despertar da águia. L. Boff esclarece que sua

compreensão de espírito, não o associa a uma substância, mas ao modo singular de ser humano

conectado ao processo cosmogênico, na história e no cosmos. Desta perspectiva cosmogênica,

espírito é compreendido como a capacidade de interação das energias primordiais e da própria

matéria até a construção de inter-retro-relações que asseguram o universo. Outrossim, é preciso

discernir as afirmações de espírito, entre sentido: alegórico, figurado, próprio. E mesmo se ele afirma

que: todas as coisas possuem espírito, ou, todas as coisas têm em si o Espírito. L. Boff afirma a

presença do espírito em todas as coisas, porque o universo das coisas não é o universo das coisas

isoladas, sendo antes panrelacional: todos, seres vivos e não vivos, participam em seu grau próprio

do espírito e da vida; espírito significa criação, autotranscendência, movimento em direção a

realizar. Espírito é vida e relação. 164 A escolha não é aleatória. Não somente estes, mas os três dialogantes – um bispo, um leigo

católico e o outro, um pastor presbiteriano – expõem o pensamento de L. Boff, tornando explícita

sua constância teológica sobre a vida, ainda que eles pertençam a lugares sociais, temáticas e

interesses bastante diferentes. Cada um a seu modo, contribui para que a teologia de L. Boff se torne

mais conhecida e revele sua atualidade. Com o processo desencadeado pela Igreja do Rio de Janeiro,

o pensamento de L. Boff estendeu-se para outros Continentes. Paulo Agostinho postula, que em

dado momento, surge um novo paradigma no pensar de L. Boff. Isso não é um consenso e mesmo

esta pesquisa não adota este ponto de vista. Mas é bastante comum dizer-se isso do autor em

pesquisa. França Matos ao criticar a teologia e a ética social de L. Boff deixa entrever sua tenacidade

de fazer uma teologia que pensa uma ética social e apropria-se ontologicamente da evolução do

universo na reflexão de T. de Chardin. 165 Karl Josef Romer, atualmente Bispo auxiliar emérito, nascido na Suíça. Em 1958 obteve o

doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Em 1965, logo após sua ordenação

sacerdotal foi chamado por Dom Eugênio Sales para atuar no Brasil, em Salvador-Bahia. Em 1975,

no Rio de Janeiro, recebe a sagração episcopal. Ex-presidente da Comissão Arquidiocesana para a

Doutrina da Fé do Rio de Janeiro. DOM ROMER., “Dom Karl Josef Romer”. 166 Paulo Agostinho Nogueira Baptista, doutor e Mestre em Ciências da Religião, pela Universidade

Federal de Juiz de Fora/Minas Gerais, com pós-doutorado em Demografia pela Universidade

Federal de Minas Gerais. Em 2001 obteve o Mestrado e em 2007 o Doutorado em Ciência da

Religião em Leonardo Boff na ótica da Teologia da Libertação e Pluralismo religioso e no que

chamou de Teologia teoantropocósmica de L. Boff. Cf. PLATAFORMA LATTES., Paulo

Agostinho Nogueira Baptista.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 119: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

119

e doutorado em Leonardo Boff. O terceiro, o brasileiro, França Mattos 167, falecido

em 2004, fez seus estudos assentados numa Análise e crítica da teologia e da ética

social de Leonardo Boff, nos EUA.

Do primeiro interlocutor, Dom Karl Josef Romer, pode-se pontuar sua

publicação na Revista Eclesiástica Brasileira, datada de 1972168. E outra, na Revista

do Clero da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a seu pedido, datada de 1982169. No

contexto brasileiro da ditadura militar, L. Boff publica seu livro “Jesus Cristo,

libertador”170. A revista traz uma elogiosa apresentação de autoria do então Dr. Pe.

Karl Josef Romer. Já no início, ele escreve “Desde o primeiro capítulo o autor

(Leonardo Boff) se distingue por uma incomum clareza de linguagem...”171. E

conclui sua apreciação,

A obra de Leonardo Boff comunica um amplo e profundo conhecimento; reflete

uma teologia responsável, comprometida com a fonte, orientada na Tradição autêntica, questionada e questionante a respeito do homem moderno. Escrito numa

linguagem agradável o trabalho que oferece não poucas vezes ideias fascinantes,

supõe uma certa preparação da parte do leitor. O livro merece ampla divulgação.

Agradecemos ao autor esta teologia que é um vivo testemunho da fé, e – “partindo de Jesus” – conduz seguramente ao seu Mistério Divino172.

Já em posição inversa, em 1982, Dom Romer assume uma recensão feita

por Urbano Zilles173 na qual este afirma que o pensamento eclesial de L. Boff em

seu livro, Igreja: carisma e poder, “parte do pressuposto de que a Igreja

institucional, que aí existe, nada tem a ver com o Evangelho. Nela tudo é mentira e

ilusão. Deve ser desmascarada e desmitificada. L. Boff mostra-se um mestre da

desconfiança”174. Logo em seguida, L. Boff envia a título de informação a crítica

de Urbano Zilles, assumida pela Comissão de Doutrina do Rio de Janeiro, e sua

167 Luiz Roberto França de Mattos, ex-pastor da Igreja Presbiteriana, obteve seu doutorado em

Filosofia em 2001 nos Estados Unidos no Calvin Theological Seminary, com o tema “An analysis

and critique of Leonardo Boff’s theology and social ethics”. 168 ROMER, K. J., “Apreciações”. 169 Id., “Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé”, pp. 26-30. 170 Por volta de 1971, ao longo do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) a Ditadura

militar atingiu seu auge. Nesses Anos de Chumbo, foi criado um sistema legal repressor que exercia

vigilância sobre as instituições civis e religiosas. Criou-se uma censura que proibia manifestações

de opiniões e expressões culturais. O período foi marcado pelo uso de meios violentos como a tortura

e o assassinato. Nesta época, surgiram vários movimentos de ‘libertação popular’. Por isto, toda

ideia de Libertação era vista com profunda desconfiança pela repressão político-militar. 171 ROMER, K. J., “Apreciações”, p. 490. 172 Ibid., p. 493. 173 ZILLES, U., “Boff, Leonardo, Igreja: carisma e poder”. 174 Id., “Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé”, p. 27.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 120: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

120

resposta à Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Inicia uma série de

discussões, através de cartas de informação, esclarecimentos, réplicas, tréplicas175.

Se no início o alvo era o livro, agora o homem, Leonardo Boff, é notificado

com a pena eclesiástica do Silêncio obsequioso. O desfecho na vida de L. Boff foi

seu desligamento da Ordem Franciscana e dispensa do sacerdócio. No entanto, ele

permanece na mesma esteira de uma teologia que experimenta unir o destino da

vida na história com a vida na transcendência. Com isto L. Boff salvaguarda sua

atuação em favor dos pobres, os amados do Pai. As penas e punições sofridas,

descreve, “são nada face à paixão diuturna dos pobres”176.

O segundo dialogante é Paulo Agostinho Nogueira Baptista o qual defende

a vigência de um novo paradigma de construção intelectual, no pensamento de L.

Boff. Em sua dissertação de Mestrado, busca articular o diálogo inter-religioso e a

Ecologia em L. Boff como religação entre o ser humano, cosmos e Deus. E seu

doutorado, prossegue ao afirmar que a teologia de Leonardo Boff pode ser

compreendida como uma Teologia Teoantropocósmica. Afirma haver uma

mudança de paradigma em L. Boff após 1990/1993. Torna-se, segundo ele, agora,

uma Teologia Pluralista da Libertação, isto é, uma teologia de libertação e diálogo

que articula Teologia da Libertação e Pluralismo religioso. E na reflexão do

pluralismo religioso, inaugura o pluralismo inclusivo teoantropocósmico 177. Para

o pesquisador, o paradigma ecológico de L. Boff segue uma teologia que se põe em

diálogo. É no diálogo entre Deus, o ser humano e a natureza que acontece o milagre

da vida.

Em sua página na Internet L. Boff cita estas duas pesquisas. Demonstra

assim aceitá-las como uma proposta de leitura de seu pensamento. Ao tratar do novo

paradigma teológico, que inclui, necessariamente o aspecto ecológico e cósmico da

vida, L. Boff sublinha que o ser humano não é o centro para onde tudo aponta. O

175 O diálogo conflitivo perdura. Em 2007, aquele que era Prefeito da Congregação para a Doutrina

da Fé em Roma em 1982, Joseph Ratzinger em notas bibliográficas, cita Leonardo Boff como o

teólogo que contradiz o significado autêntico do texto do Concílio em sua interpretação à palavra

“subsistit in”. O cardeal explica que a fórmula subsistit in, significa existir “uma só ‘subsistência’

da verdadeira Igreja, ao passo que fora da sua composição visível existem apenas ‘elementa

Ecclesiae’, que — por serem elementos da própria Igreja — tendem e conduzem para a Igreja

Católica”. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ., Declaração Dominus Iesus, nota

bibliográfica, n. 56. 176 BOFF, L., A vida aos 70 anos. 177 Cf. BAPTISTA, Paulo Agostinho N. Libertação e Ecologia. A teologia teoantropocósmica de

Leonardo Boff. São Paulo, Paulinas, 2011.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 121: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

121

ser humano não é o absoluto, nem a culminância da seta da vida. Assim afirma que

“nenhum antropocentrismo nem humanismo derivado dele se justifica”. No entanto,

ele possui uma singularidade e uma missão. A dimensão ética é que sinaliza seu

diferencial. Portanto, “a partir de seu surgimento, a evolução não se faz apenas

obedecendo ao curso das forças diretivas universais, mas tem que contar com a

intervenção, seja cooperativa, seja destrutiva do ser humano”178.

Em diálogo crítico, Luiz Roberto França de Mattos faz uma análise e crítica

da teologia e da ética-social de L. Boff, a partir de sua plataforma que é a teologia

calvinista. O pesquisador tece amplos elogios ao pensamento de Boff, mas entende

que o panenteísmo o compromete. Ele credita que o objetivo da ética social de L.

Boff seria atingido, e haveria superação das deficiências inerentes ao panenteísmo,

quando a doutrina da Encarnação de Deus estivesse em combinação com a ética

neo-calvinista179. O propósito de uma tal mudança de perspectiva seria preservar a

radical diferença da natureza divina, com relação às naturezas humana e cósmica,

ou seja, a natureza criatural, diferença que, sempre segundo ele, o panenteísmo não

conseguiria sustentar. O valor deste estudo pode ser considerado pela séria e

fundamentada análise do pesquisador e sua leitura da obra de L. Boff em outra ótica

que não a tradição católica.

Na leitura das contribuições dos diversos interlocutores, constata-se que o

pensamento de L. Boff mantém seu mesmo ponto de origem, e sua tese doutoral:

pensar a Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo. Esta

coerência, ele a mantém sofrendo, embora, fortes embates e tendo que se haver com

as instâncias de vigilância doutrinária da Igreja. Neste momento, sua existência

toma consistência e extravasa seus escritos de que a vida é Mistério, não só a vida

humana, mas a vida em geral e o universo em evolução.

3.1.4. Evolução e revolução no pensamento teológico

Será a evolução uma revolução? Estas categorias dialogam ou no máximo

caminham lado a lado? Um destes pressupostos obrigatoriamente descarta ou supõe

178 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 184. 179 MATTOS, L. R. F., An analysis and critique of Leonardo Boff's theology and social ethics, pp.

114-115.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 122: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

122

o outro, como o elo de esteira? Talvez, se contraponham, ainda que possam ser

discutidas em paralelo? É um paralelismo harmônico ou digladiador? A

compreensão de evolução e revolução encontra lugar no pensamento teológico de

Leonardo Boff?

Para verificar estas hipóteses será necessário escutar de L. Boff quais as

correntes e teólogos que mais influenciaram em sua formação teológica. Ele

sublinha tais autores, destacando seguramente Teilhard de Chardin, com sua visão

cósmica de Cristo180. Seu primeiro livro não podia ser outro: O Evangelho do Cristo

cósmico, 1971. Nesta Obra, o autor intenciona expor o pensamento do Cristo

cósmico em Teilhard de Chardin. Este jesuíta busca explicitar a relação entre Cristo

e o cosmos. Ele medita e fala da imersão e transfiguração de Cristo no coração da

matéria. T. de Chardin propõe uma cristologia cósmica como fundamento da

unidade da realidade.

A questão da unidade da realidade, na Trindade de Deus e na pessoa

humana, é um tema trabalhado desde os primeiros séculos do cristianismo. Para

Irineu de Lyon, tudo o que Deus toca é marcado pelo selo da unidade: o Deus único

chama e conduz o ser humano a unir-se a Ele. Esta comunhão realizar-se-á pela

única salvação, que é obra do único Filho e do único Espírito. “O próprio Senhor

nos prometeu enviar o Espírito Paráclito: para nos adaptar a Deus”181.

T. de Chardin debruça-se sobre o problema da unidade em coerência com a

concepção do mundo, as culturas, mormente a moderna e a fé cristã182. Sua

originalidade consiste nesta busca de unidade pensada para alcançar o movimento

evolutivo da história, englobando a totalidade do ser. Sua concepção evolucionista

180 L. Boff confessa a influência que lhe permitiu abrir horizontes de pensar a vida a partir da leitura

de Teilhard de Chardin “com sua visão cósmica de Cristo”. Entretanto ressalta, “mas curiosamente,

eu nunca me senti dependente de mestres. Procurei persistentemente pensar com a minha própria

cabeça e formular do meu jeito os problemas também linguisticamente”. GUIMARÃES, J., Leituras

críticas sobre Leonardo Boff, pp. 171-172. Para Mattos a apreciação de Leonardo Boff por T. de

Chardin está em assumir suas intuições e pelas frequentes citações em seus trabalhos. Cf. MATTOS,

L. R. F., An analysis and critique of Leonardo Boff's theology and social ethics, pp. 35-37. 181 FOLCH GOMES, C., Antologia dos Santos Padres, p. 123. 182 Pierre Teilhard de Chardin – padre, jesuíta teólogo, filósofo, geólogo e paleontólogo francês

(1881 – 1955) – buscava pela ciência abrir caminhos de estudo do ser humano no passado e no

futuro. Assim, o instrumental técnico e científico seria a passagem para a religião e a mensagem

cristã. Smulders descreve que a partir do estudo da Ciência da terra, Teilhard foi conduzido à

descoberta de uma dimensão antropológica, a ponto de não conseguir ficar indiferente “ante o

imenso fenômeno terrestre que constitui a vida e particularmente a existência do homem”. Interessa-

se pelo ser enquanto em conexão com todas as coisas. A chave de interpretação para aprofundar no

fenômeno humano será o conceito de evolução. Contudo, o evolucionismo apresentado não será

aquele darwiniano da seleção, o aporte teilhardiano vai além, o dinamismo desta evolução é a

complexificação. SMULDERS, P., A visão de Teilhard de Chardin, pp. 26-29.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 123: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

123

é dinâmica e existencial. O mundo está sempre em mudança, em ascensão para uma

meta determinada. Os pontos centrais da evolução são o aparecimento da pessoa

humana e a união da humanidade com o Cristo pessoal no fim dos tempos. O

universo constitui um único todo coerente, mas não estático. Antes desenvolve um

itinerário evolutivo183.

A ciência marcou T. de Chardin como resposta à exigência da racionalidade

para com o real. Ao mesmo tempo, a fé cristã influencia-o pela sua visão da história

como convite final à contemplação do amor de Deus em todas as coisas. Nesta

perspectiva, torna-se compreensível sua pergunta: “o Cristo dos Evangelhos,

imaginado e amado dentro das dimensões de um mundo mediterrâneo, será capaz

ainda de abarcar e de conformar o centro de nosso universo prodigiosamente

expandido?”184. Não terá a ciência avançado demais de modo que a fé cristã não

mais a possa acompanhar?

Acontece que as diversas ciências afirmam que a terra e a natureza humana,

toda a criação ainda está em devir. O universo permanece inacabado. Disto,

Teilhard conclui que a vida humana encontra espaço aberto para mais ser, para a

esperança. O ser humano é ser com Deus, colaborador na criação. Em sua busca do

que está por vir, ambas fazem a experiência do advento do maravilhamento.

Nesta sequência, há uma harmonia relacional entre criação e evolução. Com

efeito, a evolução não pode ser explicada por si mesma, ainda que recorrendo a

argumentos científicos de que a vida surgiu e evoluiu de maneira lenta e

progressiva, com a participação ativa de inúmeras substâncias e reações químicas.

Ela precisa da criação para existir. Pode-se falar disto, a partir da incompletude

mesma do mundo criatural. Por isto é coerente falar de criação da evolução. Por seu

lado, a criação não existe para si mesma, mas para o Reino de Deus. Deve, pois,

haver também um caminhar, uma evolução da criação, de tal forma que nela possa

emergir, pela própria força do Espírito de Deus que sopra aonde quer, sobre todo

aquele que nasceu do Espírito (cf. Jo 3,8). É o que Teilhard de Chardin chamava de

antropogênese.

Deus não mais é concebido como o grande arquiteto ou o relojoeiro que

depois de fabricar o mundo, deixa-o funcionar, segundo suas leis naturais, sem

183 JBLIBANIO., Site. 184 TEILHARD DE CHARDIN, P., The Divine Milieu. Apud HAUGHT, J. F., Cristianismo e

ciência, p. 8.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 124: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

124

manter com ele qualquer relação. Nesta perspectiva, o mundo, uma vez criado,

basta-se a si mesmo. A criação fica absorvida pelo passado morto, fechada ao

futuro, à criatividade e à novidade do momento presente. Bem compreendido, o

futuro, aqui, não é futurismo, mas uma possibilidade real de vir-a-ser. Afinal

“somos chamados, não a restaurar um passado de perfeição, que nunca existiu, mas

a viver a abertura a um futuro de criação nova”185.

Para Teilhard, Deus está continuamente envolvido com o processo cósmico,

quer como seu Criador, quer como seu Salvador, sem, no entanto, interferir nas leis

naturais. Antes respeita sua autonomia, bem como a liberdade do ser humano.

No pensamento de Teilhard, Deus não é propriamente o motor, como em

Aristóteles. É mais o maquinista, o que guia. Mas é também companheiro e destino.

Assim o futuro do mundo abarca novas e profundas possibilidades em que a

evolução e a criatividade humana podem haurir fontes de sentido, para definir o

mundo. “A restrição kenótica e a futuridade generosa de Deus são tão intimamente

imbricadas com o universo processual que apenas são percebidas, exceto pelos

olhos da fé”186.

Seria ilusão propor a categoria de futuro como porta para o diálogo entre a

fé e a ciência? Não obstante, o desejo que habita todo homem e toda mulher é desejo

de amor, de beleza, de relações saudáveis que orientem suas escolhas. O sonho de

superação da experiência de ser tragado por promessas de vida relativista e

descartável, no mais profundo do ser humano revela algo de futuro que está para

além de si mesmo.

Mas como se dará isto? Como pensar evolução em ligação com a fé

neotestamentária? A fé cristã exige esperança de ressurreição para o ser humano,

para todo o cosmos, já que tudo está interligado, como um nó de relações. O físico

e astrônomo Marcelo Gleiser, que se considera agnóstico, fala da responsabilidade

cósmica do ser humano: “Se o ser humano está sozinho, significa que ele é a

consciência do cosmos e, portanto, somos protetores e guardiões do nosso planeta.

Isso nos leva a uma nova filosofia de vida. É o que eu chamo de

humanocentrismo”187. Este cientista ensina que talvez o ser humano não seja a

185 GARCIA RUBIO, A., “A teologia da criação desafiada pela visão evolucionista da vida e do

cosmo”, p. 47. 186 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 227. 187 GLEISER, M., “Humanity and the Universe”, Anotações pessoais.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 125: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

125

medida de todas as coisas, como propôs o Grego Protágoras em torno de 450 a.e.C.,

mas somos aqueles que podem medir. E enquanto o ser humano continuar a se

questionar sobre sua identidade e sobre o mundo, a existência terá significado. O

ser humano não está sozinho, nem é o centro físico do universo. Mas ele é futuro

com todo o cosmos. Ele é parte de uma imensa comunidade cósmica.

De caráter particular, a pós-modernidade deixa à mostra um tempo em que

as afirmações da ciência ameaçam a visão cristã do mundo, não por si mesmas, mas

porque são, muito frequentemente, entendidas como única fonte de verdade, mesmo

se vistas de modo relativo. Neste quadro, a fé não pode fechar-se sobre si, como a

se defender de um ataque. A afirmação de que o ser humano é um elemento do

cosmo, mas não se reduz a isso, faz parte do anúncio do interesse de Deus, por nós.

A fé na ressurreição é justamente a derrota da inércia, do mesmismo. Ela

implica uma eterna renovação do ser. No dizer de L. Boff, a pregação de Jesus é

melhoria de transformação global de todas as estruturas, “a novidade e a jovialidade

de Deus reinando sobre todas as coisas”188. O Deus de Jesus é aquele em que

acontece o novo de todas as coisas. Á luz da ressurreição o tempo é vivido com

esperança viva. Ele é o futuro esperado, e já experienciado, é lembrado como

história do futuro de esperança189.

O diálogo franco da ciência com a fé, em Teilhard continuado por L. Boff,

convida a tomar consciência que todos estamos implicados e que participamos do

mesmo destino. Urge, portanto a solidariedade e a interdependência com toda a

vida, ameaçada e em extinção.

Pela ressurreição, o homem Jesus tem significado para os cristãos e ainda,

nesta fé, compreende-se que toda a vida e o sem-sentido da morte têm um sentido

certo: promessa que se realiza. Abre-se uma porta para o futuro absoluto e uma

esperança penetrou no coração humano.

Em sua cristologia, L. Boff afirma que a vida trazida pelo Reino no anúncio

de Jesus, não é somente para alguns, nem para um futuro incerto. De igual modo,

praticar a justiça e defender o direito do pobre não se restringe a solidarizar com

seus sofrimentos ou ajudar a minimizá-los. A Teologia da Libertação assume o

pobre como ponto de partida para interpretar e planejar toda a ação com ele,

deixando que ele, seja o sujeito de sua própria história. Agir com e a partir da

188 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 258. 189 Cf. MOLTMANN, J., Ciência e sabedoria, p. 130.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 126: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

126

perspectiva do pobre é participar da construção do céu da felicidade, que tanto

anseia o ser humano, já aqui na terra, e não deixar somente para após a morte. Neste

contexto, há em L. Boff o cuidado de não supervalorizar o presente em detrimento

do futuro, caindo num ativismo, ou supervalorizar o futuro em detrimento do

presente, gerando um espiritualismo. O Reino passa, necessariamente, pelos pobres,

mas o Reino é de Deus e é transformação deste mundo, para um mundo totalmente

novo.

A dimensão de integração da existência humana na cristologia de L. Boff

mantém uma unidade entre as duas polaridades: história e cosmos. Isto porque L.

Boff apresenta sua teologia conjugando o mundo das pessoas e do cosmos. O Reino

é ação de Deus que emerge na história humana. Em continuidade, o Reino não é

reforma ou melhoria da situação, mas é transformação total das estruturas deste

mundo, de modo que Deus possa ser Deus e o ser humano possa viver a utopia

existente em cada coração humano de total libertação.

Para o autor em estudo, a vida do Reino de Deus transparece na interação a

evolução e a revolução. O Reino é uma total revolução. A transfiguração total,

global e estrutural da realidade, do humano e do cosmos, envolve toda a existência

da pessoa e do mundo. Deus aparece através do ser humano e do mundo, não

abandonados, pois, a si mesmos, mas na divina Presença.

Torna-se importante examinar a concepção teológica de L. Boff da vida pelo

Reino trazido em Jesus, em suas categorias evolução e inter-retro-relacionamento

ao Mistério.

3.2. Concepção teológica da vida em seu sentido

Há quem identifique a vida, a mais digna de ser assumida, como sendo a

que cultiva o hedonismo, com suas diversas correntes, ao longo da história. Esta

linha de pensamento revolta-se contra outra, e que vê a corporeidade com desprezo.

Os hedonistas, em geral, protestam contra toda forma de repressão, que considere

o prazer um mal. No entanto, a absolutização do corpo traz problema, como

qualquer absolutização daquilo que é relativo. Quando se deixa de ver o corpo como

expressão de interioridade, corre-se o risco de exagerar na animalidade. Sob este

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 127: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

127

aspecto, a vida guiada pelos instintos pode aproximar-se perigosamente à vida dos

animais. Mesmo em se falando de uma busca pelo simples e desinteressado prazer,

há que se sustentar que esta não é a melhor expressão da vida. Muita alegria pode

haver na ausência do prazer e até na presença da dor.

Outros poderiam identificar a vida com a honra. Buscar a vida nas honrarias

significa buscar o reconhecimento de outros para si mesmo. Ora, o desejo de ser

reconhecido, aceito é básico no ser humano. Como tal é um desejo natural e

honesto. No entanto, se colocado como centro gravitacional da expressão humana,

fracassará igualmente. De fato, a ação praticada a partir da mera expressão do ego,

por si só, não tem o horizonte de fazer algo bom, mas de cativar o louvor alheio.

Corre-se o risco de que um louvor menos lúcido valorize algo mesmo ilícito, por

exemplo. Além do mais, mesmo atingindo sua finalidade, não realiza aquilo que é

plenamente humano, também aqui por absolutizar o relativo. De novo faz-se a vida

incompleta, insatisfatória, não alcançando seu fim.

De fato, são conhecidas as multiformes teorias que tentam dar conta da

natureza da vida, cujo teor muda conforme sejam elaboradas por cientistas, artistas,

filósofos. Os lexicógrafos tecem um arcabouço de comparações e divisões nos

verbetes que tratam do tema vida. O horizonte teológico parte em primeira instância

do dado da Sagrada Escritura, mas também do dado social-cultural, onde a fé se

encarna.

A fé cristã testemunha que Deus ama a vida e pelo amor, executa o dom da

criação na história e da salvação. É para nossa humanidade que Deus toma a

iniciativa de comunicar-se e de revelar-se como seu Salvador e Criador. A criação

não é fruto do acaso, mas de uma escolha pensada e concebida no amor em vista da

humanidade e de todo o cosmos.

A expressão de fé do povo da Bíblia é processual, progressiva. A

experiência fundante de ser povo de Deus é a experiência de ter sido liberto da

escravidão do Egito. Também, Deus é percebido como o criador que realiza um ato

de amor não só para com a humanidade, e que acarreta libertação (cf. Êx. 14). A

ação de Iahweh é lida como um ato salvador de seu amor criador, que não abandona

suas criaturas, mas caminha com elas, numa relação de gratuidade. A ação amorosa

de criar e libertar por Deus suscita questões sobre a origem da humanidade, com a

finalidade de integrar a vida em todas suas dimensões. A Economia da salvação é

plena. No anúncio de Jesus, Deus é promessa-cumprimento na história humana,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 128: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

128

sobretudo na proclamação iminente do Reino que irrompe no mundo com o evento

Cristo: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e

crede no Evangelho” (Mc 1,15).

Em sua palavra-ação, Jesus propõe de maneira definitiva à pessoa humana

a confiança ilimitada no Criador e a certeza de encontrar n’Ele a salvação. O amor

de Deus, revelado em Jesus Cristo, leva a criação e a história da salvação até sua

plenitude. “A união entre a fé no Deus salvador e a fé no Deus criador é realizada

mediante uma relação de integração-inclusão, sendo, assim, rejeitada a visão

dicotômica”190.

Na globalidade da ação libertadora de Jesus, nada que se passa no mundo

carece de sentido. Ao contrário, tudo está incluído no seu plano de salvação. Tudo

tem um significado à luz do projeto divino.

A compreensão da vida seja pela categoria da existência, da evolução ou da

diversidade191 implica análise sob o dinamismo do cuidado reverencial192. Esta

preocupação que não é nem original, nem recente, nem escassa. Tem sido objeto de

indagações incessantes, que mobilizam o pensamento de todas as civilizações e

dando lugar a pluralidade de discursos, com importantes questões éticas,

sociológicas, culturais, ecológicas, espirituais 193.

Há que se falar de uma existência humana com sentido, uma vez que

190 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p.117. 191 Quando se fala de diversidade da vida há dois aspectos distintos a se considerar. Muitas das vezes,

a palavra diversidade serviu para ressaltar as muitas construções humanas (em termos de cultura,

país, cor, língua, sexo, raça, religião, classe social, corpo, etc.). Tendo este parâmetro a diversidade

dos povos é com certeza altamente positiva. Outra seria a diversidade de origem, formação e

constituição, que acarretaria diversidade de valor. Em nome da diversidade chegou-se a negar a

condição de “humano” para alguns povos. Por exemplo, discutiu-se, em certos ambientes, se os

povos ameríndios seriam humanos ou se os negros teriam alma. 192 A compreensão da vida como existência e como evolução será importante para alcançar o

objetivo desta pesquisa. A existência da vida humana abre o primeiro capítulo desta pesquisa e todo

o seu desenvolvimento será nesta compreensão. A compreensão da vida como evolução será mais

explicitada a partir de agora. A vida estando assentada no cuidado compreende a experiência do encontro do humano com o divino. 193 Recentemente a Neurociência tem investigado como o cérebro consegue criar imagens e elaborar

sentimentos finalizados. Danah Zohar e Ian Marshal falam da existência de um terceiro tipo de

inteligência, baseados na determinação do Coeficiente Espiritual (QS) o qual pode ser calculado

com base em pesquisas. Segundo eles, no cérebro humano, existe uma área que deve ser responsável

pelas experiências espirituais, que está sendo chamado Ponto de Deus. Existe o risco de reduzir a

inteligência espiritual, e com ela a busca de sentido, a um ponto fixo no cérebro, na mera

materialidade. O sentido último da vida precisa ser refletido. Estará o QS contribuindo para a

vivência das coisas últimas da nossa vida? Precisaríamos conjugá-lo com o princípio da imanência-

transcendência, com a escatologia e história. CF. ZOHAR, D.; MARSHAL, I., QS - Inteligência

Espiritual.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 129: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

129

Convém sempre explicitar a imagem de ser humano subjacente em nossas visões

de mundo, em nossos projetos e em nossas práticas. Pois assim conscientizamos o

que queremos ser e podemos, continuamente, submeter essa imagem à crítica e a

um possível aperfeiçoamento194.

Na esteira de L. Boff, o ser humano pode ser dito melhor como orientação

do que definição, no sentido estrito do termo. Ele sublinha que cada homem e

mulher “pode ser definido como um ser de potencial infinito de fala, um nó de

relações voltado para todos os lados”. Aliada à sóbria consciência de que “essa

definição, na verdade, define muito pouco. Apenas indica uma direção [...]. O ser

humano, na verdade, nunca termina de construir-se. [...]. O ser humano é um projeto

infinito, conatural ao infinito Deus”195.

Pelo fato de nós, homens e mulheres, escolhermos, de termos um propósito,

tanto vil como altruísta, nossa vida se diferencia. O animal, a pedra e o vegetal estão

no mundo, mas são indiferentes ou antes passivos, já que recebem seu sentido, a

partir de sua relação com o humano. O ser humano tem que vivenciar a sua vida.

Na perspectiva de L. Boff a vida não é um acaso. O ser humano

comprometido com a vida experimenta-a, num processo dinâmico, participativo e

inclusivo em que tudo co-existe e inter-existe, com todos os outros seres do

universo. Seja quando aclamada, seja quando clamada, a vida revela sua

significância para todo ser. Em permanente processo de realização, a vida é “um

mistério de espontaneidade, um processo inesgotável e multiforme de

desdobramentos a partir de dentro, irrompendo em relações para fora”196.

Numa leitura realista, percebemos que estamos numa encruzilhada: ou todos

juntos trilhamos o caminho da vida ou todos sentimos cada vez mais os apelos da

morte. Como canta Gonzaguinha: somos nós que fazemos a vida, somos também

nós que fazemos a morte.

Por um lado, os avanços científicos e tecnológicos apontam possibilidades

de uma melhor qualidade de vida e maior longevidade. Por outro, aprofundam-se

as expressões da morte. A teologia da libertação, hoje, se compreende mais

largamente, como libertação da pessoa e também do cosmos. Ela vê a ciência e a

tecnologia como parte do projeto de resgate, construção, consolidação e expansão

da vida e da liberdade humana.

194 BOFF, L., Saber cuidar, p. 36. 195 Id., O despertar da águia, pp. 189-190. 196 BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 159.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 130: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

130

Em se tratando da concepção teológica da vida em seu sentido, essa deverá

seguir sempre na trilha, inseparável, fé-vida, mesmo se limitações humanas

históricas, vez ou outra, privilegiam uma em detrimento da outra. A presente

pesquisa quer oferecer uma compreensão do ser humano inserido em realidades

plurais, na ótica da Antropologia teológica.

3.2.1. O pensar evolutivo sobre a vida

Na história da humanidade, homem e mulher sempre demonstraram

incansável interesse em desvendar os profundos mistérios que envolvem sua

natureza existencial. A partir da modernidade, o conhecimento científico e

tecnológico tem alcançado êxitos surpreendentes. Esta é uma realidade sedutora,

sem dúvida, pois a pessoa não só se torna conhecedora das múltiplas facetas do

dinamismo do seu ser e existir, mas igualmente, dos mecanismos e processos à

própria vida, também na sua dimensão material.

A antropologia teológica de outrora, tendo como ponto de partida a

tendência antropocêntrica, acentuava a diferença entre as pessoas e os irracionais,

bem como a função da pessoa no cosmos. A pós-modernidade, sob o influxo

crescente das ciências, cede lugar a uma compreensão não propriamente relacional,

mas relativista, na qual o ser humano é visto como construtor da história, a partir

de critérios que ele estabeleça. “A antropologia europeia moderna tomou

acriticamente como pressuposto a cosmovisão antropocêntrica moderna, segundo a

qual a pessoa é o centro do mundo e que este fora criado por causa da pessoa e em

função dela”197.

O antropocentrismo cientificista exacerbado, ao colocar a vida em ritmo de

destruição é insustentável para a reflexão antropológica cristã. Esta suscita e

encaminha a uma reflexão que pense a criação em seu todo, em todas as relações.

Denuncia uma posição que coloca o indivíduo no centro, o qual ensoberbecido por

esta posição individualista coloca tudo sob seu desenfreado desejo de dominar, de

ser deus, negando a si próprio. O ser humano não está só, e nem é só criador do

197 MOLTMANN, J., Deus na Criação, p. 271. Grifo do próprio autor.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 131: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

131

mundo. Antes, homem e mulher são convidados à comunhão com tudo o que existe.

A antropologia não é propriamente teologia. Seria equívoco pensar numa

antropologização da teologia, que tratasse primeiramente de Deus e não do humano.

Contudo ela se coloca como fruto de uma sólida teologia.

A teoria da evolução mostra que a vida surge e se desenvolve como um todo,

no qual tudo se interpenetra, todos dependem de todos. A emergência da vida

humana não é a competição, a afirmação do mais forte ou a simbiose, mas a

capacidade de estabelecer inter-retro-relações nutridas pelo cuidado, ternura e

esperança com respeito à vida. Como salienta L. Boff, ao falar da evolução:

O propósito da vida não reside na sobrevivência pura e simples, mas na realização das probabilidades e potencialidades presentes no universo; na celebração de

emergências novas e na festa da majestade e da beleza do cosmos e dos diferentes

seres que nele existem198.

O pensar evolutivo199 provoca a ideia de vida em constante movimento. O

surgimento da vida e sua evolução biológica inscreve-se no grande processo de

auto-organização e de auto-complexificação do universo. Teologicamente, pode-se

dizer que é o ato criador de Deus que continuamente ama e dota a pessoa de Graça.

O francês, Edgard Morin, sociólogo e antropólogo cunhou o termo antropo-

bio-cósmico. Por ele, Morin quer afirmar uma mudança de leitura do universo, ou

seja, uma leitura não mais concebível sob um único Princípio de ordem. A nova

leitura é constituída pelo jogo dialógico, tetragrama, entre

Ordem/Desordem/Organização/desorganização200. Este novo cosmos, ele explica,

é evolutivo.

A história, que de início, era apenas algo inerente às sociedades humanas, tornou-

se, no século XIX, inerente à vida. Depois, no século XX, ela se expandiu na totalidade de nosso Universo físico. Doravante, nada do que seja cósmico, físico,

198 BOFF, L., O despertar da águia, p. 63. 199 No início do século XX, temos a condenação do evolucionismo como um dos erros modernos

por Pio X, em 1907, com a Encíclica “Pascendi”. Renovada por Pio XII em 1950 com a Encíclica

“Humani Generis”. Para dar prosseguimento a este assunto, do pensar evolutivo sobre a vida, há que

se ter em mente, primeiro, os relatos bíblicos da criação representam estágios diferentes de

compreensão da fé na criação. Eles têm que ser vistos no contexto que os gerou, dentro da cultura

da época, por exemplo, Gn 1 e Gn 2. Segundo, pelos relatos bíblicos se entrevê que a Criação,

embora perfeita em Deus, não está fechada a seu destino. Para ela existe futuro que é promessa:

movimento continuado da vida. E por fim, a discussão entre criacionistas e evolucionistas tem em

comum que a pessoa humana encontra-se inserida na história, na evolução da vida. Cf.

MOLTMANN, J., Deus na Criação, pp. 285-287. 200 Cf. MORIN, E., La relation anthropo-bio-cosmique, pp. 384-388. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 132: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

132

biológico, humano pode conceber-se, compreender-se e explicar-se fora do tempo.

Nada, a não ser justamente a fonte, a origem o fundamento do nosso universo201.

Não seria forçado ver aqui cotejos com a espiritualidade, e este autor mesmo

nomeia esta ideia. A origem do cosmos pertence à história. Contudo, pela nova

teoria, paradoxalmente, espaço e tempo se relativizam. Chega-se então à “ideia

aparentemente mística”202, onde o universo assentado num dualismo de distinções

e separações, de coisas e de objetos, de tempo e de espaço, supõe outro tipo de

realidade necessária em que nem faz distinção nem separa, mas unifica, relaciona,

integra.

Na prática, a evolução se transformou numa “megateoria da cultura

ocidental”203. Já não se pensa criação e evolução em contradição uma com a outra.

Deus não criou um mundo pronto, completo e perfeito. Fez um mundo que fosse

capaz de desenvolver-se a si mesmo através dos tempos infindos do universo em

contínua transformação, passando constantemente do caos ao cosmos, até a geração

da vida que chegou até nós. Vista na ótica de Deus, a criação pertence também ela

ao mistério da “graça divina” que permeia o universo e o orienta para o ser humano.

Esse dinamismo inscrito por Deus na matéria do universo é chamado por alguns de

“princípio antrópico”. Essa intuição de origem científica e assumida por alguns em

sede filosófica, pode também ser útil à teologia e, basicamente, com ela, quer-se

dizer que o universo existe em vista da vida humana204.

O princípio antrópico205 lê o universo como jogo de forças físicas, que

possibilitam explicar sua existência. No Glossário L. Boff explica o princípio

antrópico como um conjunto de ideias, ou seja, a construção da consciência pela

qual se diz que ter consciência, só é possível porque o universo culmina no ser

humano. Não se trata de um novo tipo de antropocentrismo, que colocasse o ser

201 Ibid., p. 384. Tradução minha. 202 Ibid. 203 Cf. HÄRING, H., “A Teologia da Evolução como Megateoria do Pensamento occidental”, p. 27. 204 Cf. LIBÂNIO, J. B., Teologia da Revelação a partir da Modernidade, pp. 265-266. 205 Não é consensual a aceitação do princípio antrópico. Lee Smolin propõe abandoná-lo, por não

poder ser falseado, que não conduz a lugar algum. Sua comprovação, segundo ele, se resume em

admitir seus postulados sem mais explicações. “Tudo o que se precisa é de postular que há um certo

número de mundos, com uma certa variedade de propriedades, sendo que deles todos, pelo menos

um é capaz de abrigar nossa existência”. SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 203. Tradução

minha. O teólogo e astrônomo, Tanzella-Nitti, porém, afirma ser legítimo ver na criação do universo

uma perspectiva teológica. Admite não ser a única leitura. Contudo ela indica a existência de uma

sintonia cósmica capaz de unir a física do universo e construir uma biologia adaptada à vida.

TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza. Le ragioni di um dialogo, p. 88. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 133: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

133

humano, de novo em posição absoluta, e sim, de construir uma inteligibilidade, que

entende o ser humano, que se sabe coordenando, mas dependendo igualmente em

uma rede de relações206.

Na maneira de Libânio temos que “a criação é o pergaminho em que Deus

escreveu sua revelação”207. Com o progresso da ciência, este pergaminho agora é

relido. A criação não só é um elemento da tradição bíblica, para este teólogo, mas

também “intuição científica do princípio antrópico”. Tudo parece calculado para

que um dia a consciência surgisse no universo. Todo o universo existe em vista da

vida em geral, e da vida humana, em especial. Dito de outra maneira, esta versão

do princípio antrópico compreende que a terra está não naturalmente no centro

físico de gravitação, nem o humano está no centro de dominação, mas na terra, o

ser humano está no centro de significação. As relações humanas são recolocadas

em seu devido diapasão: o humano ocupa um ponto central, mas é visceralmente

dependente das complexas e múltiplas relações que ocorrem no universo.

Lee Smolin faz pensar que a vida tem caráter de criatividade e abertura unida

à ideia de um universo em evolução. Ele argumenta que

Aquilo então que, com toda certeza, é mais inovador em nossa compreensão

moderna da vida é a ideia de evolução, pois esta ideia nos capacita a ver a vida não

como um ciclo em eterno retorno, mas como um processo que continuamente gera e descobre novidades. E, pela mesma mostra, o que é mais inovador em nossa

cosmologia moderna é a descoberta de que também o universo evolui. Sejam quais

forem as descobertas que permaneçam em aberto, as nossas observações nos

206 BOFF, L., Saber cuidar, p. 193. 207 LIBÂNIO, J. B., Teologia da Revelação a partir da Modernidade, p. 266.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 134: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

134

mostram que o universo surgiu de um estado ao qual ele poderá jamais retornar e,

neste caso, cada era em sua evolução, é única208.

Na ótica da Antropologia teológica, o conceito de história é central. E nesta

sequência há de se entender a centralidade de Cristo no mundo. Esta ótica possibilita

a consciência de que o ser humano sempre se orienta a partir de um lugar, locus, de

um caminho em que faz uma experiência. Pontuada pelas experiências, a

consciência organiza o seu mundo com seus próprios valores. Hierarquiza o tempo

e o espaço, e a relações consigo, com o mundo e com Deus. Forma-se, assim, uma

cosmovisão, ou seja, uma concepção da existência humana na história. Para o

cristão, a cosmovisão é definida a partir da fé bíblica. Paulo deixa claro “Quando,

porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma

mulher” (Gl 4,4).

A orientação da história concentra-se na revelação em Jesus Cristo. Se em

sede filosófica pode-se dizer, via princípio antrópico, que o humano é o centro de

significação, pela via da fé, sendo Jesus de Nazaré o homem (cf. Jo 13,31; 19,5), é

para ele, que tudo se volta. Ele é o princípio e o fim da evolução do mundo seu alfa

e seu ômega. Ele é o coroamento do processo de hominização e de humanização. O

Cristo ressuscitado é a razão e o alimento de toda esperança. Ele é a promessa-

cumprimento, por ele a história não cai num sem-sentido. Com Ele a libertação

chegou à história, Ele é a utopia realizada, a esperança acontecida. A vida plena que

Jesus inaugura, com sua palavra ação, na compreensão de L. Boff é utopia. É o

presente apontando o futuro e este manifestado dentro do presente.

208 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 143. Tradução minha. É necessário reconhecer que o

tema da cosmologia, embora fundamental, constitui tarefa complexa e mereceria um estudo

prolongado, o que não se dispõe aqui e, em consequência, a investigação sobre este assunto será

limitada. Para uma leitura proveitosa sobre este tema poderá ser consultada a obra ‘The life of the

cosmos’ do físico teórico Lee Smolin. O autor intenta tratar da vida na perspectiva da Cosmologia

científica, com uma linguagem acessível e clara. Possibilita compreender as leis da termodinâmica, a hipótese Gaia, por exemplo. São categorias chaves da vida a auto-organização, evolução, novidade,

verdade, nascimento perpétuo, abertura. Este pensamento tem sintonia com o de L. Boff no que diz

respeito à Hipótese Gaia na linha de James E. Lovelock e ao universo possuidor de um movimento

vivo que evolui. Gaia é o nome de uma divindade grega para designar a Terra, que por esta teoria

quer afirmar que a Terra é um imenso superorganismo vivo. Com esta teoria, L. Boff sublinha que

todos os seres vivos não só existem, mas interexistem e coexistem. Cf. BOFF, L., O despertar da

águia, pp. 55-61. O universo é constituído por uma teia de relações e o ser humano um nó de relações

para todas as direções, e Deus se revela como Realidade panrelacional. Cf. BOFF, L., Dignitas

terrae, pp. 35-43. Também em outras obras de sua autoria, como: Saber cuidar, pp. 135-140. Ética

e ecoespiritualidade, pp. 15-23. Experimentar Deus, pp. 49-55. Consultar também: TAVARES

PEREIRA, M., Novo paradigma civilizatório.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 135: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

135

Mas, não será esta uma cosmovisão simplista ou redundante da resposta

humana à fé cristã? Na verdade, não. Simplismo seria supor Cristo inerte, preso no

trilho da aceitação de cada pessoa. Isto significa mudar o eixo das coordenadas do

crer: a fé seria oferecida só a quem já estivesse predisposto, predestinado. Numa

visão que busca abarcar o teológico e o científico, L. Boff pergunta se Cristo

interessa só à terra ou ao cosmos todo? A experiência neotestamentária terá ainda

abrangência e poderá centrar o universo? No bojo presente da cosmovisão atual,

para que Cristo seja audível ao coração humano, a antropologia teológica deverá

orientar-se ao passado, a protologia, que se pergunta pelo sentido de sua existência,

simultaneamente, voltar-se para o futuro, a escatologia, que se pergunta sobre o

para que a vida209. Nela, Deus não é mais o fabricante perfeito de um cosmos que

deixa-o funcionar, sem manter com ele qualquer relação, mas Aquele que o leva à

perfeição. Esta leitura implica um modo de conceber a relação de Deus com o

mundo, não mais como o Totalmente Outro, extrínseco à história humana, nem mais

só o Imanente, diluído nas intempéries da vida, mas como seu princípio e fim de

sentido. Só nesta perspectiva se pode entender o paradoxo de um Deus

transcendente e intimamente presente na obra criada, do qual se originam a vida e

o cosmos.

Na esteira de T. de Chardin em sua visão cósmico-crística, L. Boff esclarece

que Cristo é o primogênito de toda criação.

O primeiro surgido não é a evolução; primeiro vem Cristo e seu mistério e por

causa dele o homem, a vida e o cosmos. Não é o cosmos e o homem que, evoluindo,

produziram a Cristo; Cristo produziu o cosmos e o homem mediante as leis da evolução e os atraiu a si 210.

A questão é sempre atual por apresentar o mistério de Deus em sua intenção

e sua Revelação. Na intenção de Deus, Jesus-Palavra eterna do Pai-Criador é o

primeiro na ordem do Ser, e também é o primeiro na ordem do conhecer do plano

de Deus. Assim lemos em João “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com

Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por

209 Entende-se por esta pesquisa que a leitura de L. Boff não faz nítida distinção entre Escatologia e

outros tratados, como Graça, Pneumatologia. Isso é enriquecedor, pois a distinção inclina-se para

um pensar fragmentador da vida e falseador da relação entre vida-morte. A pesquisa assume esta

unificação, que não nega a distinção, mas delimita-a. Por isso mesmo, será abordado o sentido da

vida já em perspectiva escatológica no horizonte da graça de Jesus Cristo, presente na vida e a

caminho da sua plenitude. 210 BOFF, L., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 43.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 136: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

136

meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz

dos homens” (Jo 1,1-4). Na humanidade de Cristo, “criou-se uma situação que os

homens viram: aqui se dá a parusia (vinda) e a epifania (manifestação) do libertador

da condição humana na globalidade de suas relações para com Deus, para com o

outro e para com o cosmos”211.

O mistério de Deus presente na história do ser humano no cosmo faz com

que toda história seja sagrada. A ordem da intenção de Deus não está reduzida a

resposta humana à fé, nem pode ser deduzida da noção, humana, de Deus, do ser

pessoa, ou do universo, pois é um ato livre de Deus. Antes, porém, é ato de Deus

que se manifesta pelas criaturas.

Da premissa da intenção de Deus, Jesus, o Cristo, é o primeiro na ordem do

Ser, e também o primeiro na ordem do conhecer do plano de Deus. É o primeiro

princípio de inteligibilidade de todas as coisas: do universo, do ser humano e da

graça e da glória.

Na ordem da intenção de Deus, a Palavra se encarna e revela Deus na

história. Com Jesus, a história chegou ao seu termo, no lapso entre o já da

interpretação existencial e o ainda não da escatologia. Partir de Cristo, centro e

princípio da história possibilita compreender o sentido dos fatos e das coisas nos

momentos da história em sua relação com o todo em Cristo. Por esta ordem da

Revelação, traduzida em categorias delimitadas pelo espaço e tempo, Jesus faz

compreender sua Palavra de libertação bem mais universalmente. É a libertação

como total transfiguração deste mundo todo, humano e cosmos; chamando esta

nova ordem de Reino de Deus212.

Sob esta ótica, Cristo ocupa o lugar de síntese do processo global da

evolução ascendente: a cosmogênese caminha para a antropogênese. Esta, por sua

vez, caminha para a cristogênese. A criação boa de Deus não termina no ser

humano, mas se orienta, graças a Cristo, para a plena realização do Reino. Da

cosmogênese, há a sociogênese, a antropogênese, orientados para a cristificação

plena.

O pensar a vida pela trilha da evolução compreende que a criação é não

somente dom gratuito de Deus, como também criação contínua ascendente e

descendente. “A evolução – parece – desemboca na cristogênese como a

211 Id., Jesus Cristo Libertador, p. 249. 212 Cf. Ibid., p. 117.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 137: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

137

cosmogênese e a biogênese fazem emergir a noogênese. E isso pela lei intrínseca

da evolução”213. A partir de seu aspecto histórico ela se prepara e se abre para

receber seu significado trans-histórico.

Contudo, o otimismo que transpira desta concepção do mundo e da história

humana pode iludir. A história humana não é linear. Ela é costurada pela liberdade

frágil e limitada de cada ser humano que constitui a humanidade. Faz parte da

história humana a possibilidade de ruptura do diálogo com Deus, o pecado. Este

consiste basicamente na recusa em realizar o próprio projeto histórico em parceria

com o outro, como Caim que escolhe tirar a vida (Cf. Gn 4,6-9) e com o

absolutamente Outro, Deus. No entanto, o otimismo esperançoso jamais fenece,

pois mesmo, onde o mal parece envolver toda a realidade, a graça de Cristo liberta.

O diálogo outrora interrompido retoma-se na nova criação com a resposta humana

positiva ao Criador. No espaço e no tempo, a pessoa antecipa pela fé a verdade do

mundo que há de vir. Celebra no presente o futuro. “Vi então um céu novo e uma

nova terra” (Ap 21,1). A humanidade experimenta-se comunidade da criação, da

fraternidade universal, bem como uma comunidade de salvação a partir de Cristo.

Assim, se une a protologia e a escatologia. O que veio primeiro como ato criador

de Deus e o que será quando o Senhor completar sua obra, conduzindo tudo e todos

para a plena realização em Deus214.

Na esteira teológica de Leonardo Boff, atualiza-se o ser humano como

aquele que busca o conhecimento e não se satisfaz apenas com o já estabelecido,

porque movido por um Outro que o impulsiona a um horizonte onde habita o

Infinito. Esta assertiva pode ser atestada pelo desejo contínuo no homem e na

mulher por descobrir, por pesquisar, encontrar, sair de si, celebrar. Outrossim,

admitido que o ser humano esteja em constante busca, que suas respostas na

realidade abrem-lhe novas questões, que o encontro não esgota sua criatividade,

pode-se afirmar que ele e todas as suas relações estão em processo de vir-a-ser. E

neste caso, então, é possível o pensar evolutivo sobre a vida, pela categoria da

dualidade.

213 BOFF, L., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 17. 214 Cf. BOFF, Lina., “Da Protologia à Escatologia”, pp. 122-123.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 138: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

138

3.2.2. A vida do ser humano presencia dualidades

A pergunta fundamental que percorre os dois Testamentos é teológica e é

antropológica: Como e onde encontro o Senhor e como posso discernir sua

vontade? O mesmo ser humano que se interroga, também surpreso exclama: vendo

a lua e estrelas brilhantes... Senhor, amigo da vida, quem é o ser humano para dele

assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho? (Cf. Sl 8,5).

No dizer rabínico: A questão essencial da Bíblia é a questão ética da relação,

quer dizer o lugar do UM (Deus) face ao outro (ser humano). Pode-se dizer que a

experiência espiritual bíblica acontece em parceria: é um duplo protagonismo

divino e humano. Nesta experiência relacional-dialógica onde estão envolvidos

Deus e o ser humano, desde sua origem, “o primeiro capítulo de Gênesis não nos

ensina sobre a natureza de Deus, nem sobre sua essência infinita e inacessível, mas

sobre o dado essencial: toda experiência da vida é dual”215.

Para o povo da Bíblia, o mundo não é, em primeiro lugar, um espetáculo a

ser contemplado, a ser compreendido; é uma história a ser vivida. “O hebreu não

tem a preocupação de definir o mundo, isto é, de acumular informações sobre ele,

de lhe delimitar os contornos, de conhecer suas proporções e obter dele uma

imagem”216. O que procura é um ensinamento de vida, e um ensinamento nos fatos.

Nesta esteira, a vida do ser humano presencia dualidade, cujo oposto seria o

dualismo. Este, fragmenta o ser humano, vê as dimensões da realidade justapostas

e sem relação entre si, o que falseia o sentido da vida.

A dualidade, ao contrário, coloca e onde o dualismo coloca ou. Enxerga os pares

como os dois lados do mesmo corpo, como dimensões de uma mesma

complexidade. Complexo é tudo aquilo que vem constituído pela articulação de muitas partes e pelo inter-retro-relacionamento de todos os seus elementos, dando

origem a um sistema dinâmico sempre aberto a novas sínteses217.

Na dualidade do seu pensamento teológico, também vida e morte não estão

opostas, o humano é um ser para a morte. Ela não é um evento exterior, mas interior,

cresce e madura dentro da pessoa. Na experiência da vida já experimentamos a

215 HADDAD, P., "L’autre dans la tradition juive", pp. 294-298. 216 AUZOU, G., A Palavra de Deus, p. 159. 217 BOFF, L., A águia e a galinha, p. 75.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 139: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

139

morte. “O sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. E o sentido que

damos à vida é o sentido que damos a morte”218. Segundo ele, morte como evento

biológico e pessoal, significa preparação para uma vida verdadeiramente autêntica

e plena, que não está isolada da vida ou projetada para um futuro distante. Acontece

continuamente e cada instante pode ser o último.

Não há que temer a morte, prossegue, pois, a vida é “lugar de realização da

utopia do Reino de Deus”, lugar da liberdade em gérmen para ser plena na

eternidade. E, a morte é “passagem para a plenitude do Reino”219, que se descerra

logo na ressurreição.

L. Boff parte de uma antropologia atual que concebe que a vida não está

encerrada no tempo cronos ou na ilusão, nem a morte é sua ruína ou negação. Em

Vida para além da morte, afirma, “descortina-se dentro da vida humana uma chance

única na qual o homem, pela primeira vez, nasce totalmente ou acaba de nascer: na

morte”220.

Ele tem em vista tratar do sentido da vida. O pressuposto é que

O Universo está aberto para o futuro. A tendência é gestar formas de ser e de

relacionar-se cada vez mais cooperativas e inclusivas. A vida tende a perpetuar-se e a eternizar-se. A morte é uma invenção sábia da vida para que ela possa continuar

seu curso de comunicação, de comunhão e de integração com todas as realidades.

Até com a Suprema Realidade221.

Ao mesmo tempo, bem mostra sua indisposição para com a hegemonia do

logos e para com o pensamento dualista. Concebe a experiência da existência

humana como nó de pulsões e de relações. Por isso sublinha a importância vital de

se integrarem as relações com todas as criaturas e com o Criador da vida. Provoca

a vida humana a retornar a seu paradigma de origem estruturado sobre o pathos,

eros, daimon, ethos e logos. Elabora uma ética da vida, assentada na ternura e no

cuidado. Sua ética aplicada a situações existenciais conduz à experiência da busca

do sentido da vida. O paradigma que se encontra, em nosso autor, é multifacetado

e seu resultado é holístico. Sua ética da ternura e do cuidado mostra que o

conhecimento do ser humano pelo ser humano não tem seu ápice no conceito ou na

218 BOFF, L., Ética da vida, p. 150. Ideia semelhante, também em outra sua obra: Id., A ressurreição

de Cristo, a nossa ressurreição na morte, p. 93. 219 Cf. Id., Ética da vida, p. 151. 220 Id., Vida para além da morte, p. 34 221 BOFF, L., O despertar da águia, p. 76.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 140: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

140

definição, ou seja, no logos discursivo, mas no logos, expressão do amor, da

acolhida integral, a saber, aquele que se fez carne.

Em sua visão excepcionalmente otimista, L. Boff denuncia a exacerbação

de um pensamento único para a totalidade. No entanto, ao colocar em evidência a

crise, ele busca um caminho de integração da vida: “A crise da cultura do logos

levou à revalorização do pathos, do eros, do daimon e do ethos como caminhos de

integração e de resgate do próprio logos; a serviço da vida humana e da preservação

da integridade da criação”222. Na verdade, são duas coisas bem diferentes: uma é

um pensamento único, a eliminar diferenças, outro é o pensamento integrado, a

conjugá-las. Em nome da eficiência, há a desumanização de todas as coisas criadas

e de Deus. O logos discursivo busca dominar e determinar todas as formas do viver

e do como viver. Ele dissimula o sentimento que configura a estrutura básica da

existência; a força de expansão e criação de diferenças e sua unidade dinâmica.

Mascara a inclinação e o afeto que ajudam a discernir. Congela a capacidade de

organizar os comportamentos com os outros e com o mundo circundante, em

permanente inter-retro-relacionamento.

O ser humano é um ser social, limitado, histórico, frágil, sensível à sua

realidade, pensador, portanto, portador do logos. Mas seu percurso revela

igualmente seu ser de sentimento, força, inteligibilidade, discernimento e ética. A

primazia de um, instrumentaliza todos os outros, fragmentando a vida.

L. Boff é crítico diante a soberba da razão. Esta hegemonia acabou por se

transformar numa espécie de ditadura do logos sobre as demais dimensões da

existência e de sua compreensão, especialmente quando o logos foi afunilado numa

compreensão utilitarista e funcional, a assim chamada razão instrumental-analítica,

própria dos tempos modernos. O pathos e o eros, o daimon e o ethos foram

colocados sob suspeita. Eram acolhidos somente na medida em que passavam pelo

crivo da razão questionadora. De modo especial, o pathos, como capacidade de

sentimento profundo, de enternecimento e de com-paixão, foi acantonado no

âmbito da estrita subjetividade223.

Em contrapartida, a consciência de estar inserido num projeto maior, último

da existência, pelo gesto de total gratuidade de Deus224 e a gratuidade nas relações

222 Id., Ética da vida, p. 65. 223 Ibid. 224 Cf. FRANÇA MIRANDA, M., Libertados para a práxis da justiça, pp. 7-11.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 141: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

141

humanas traz experiências de júbilo. “Festejar é afirmar a bondade do mundo. É

viver, no tempo circunscrito à festa, uma reconciliação dos homens e de todas as

coisas”225. O apóstolo Paulo escreve sua visão de um Cristo em todas as coisas. Ele

é a visibilidade de Deus, o primeiro de todas as criaturas. Nele, é que todas as coisas

são criadas e existem. Este júbilo, juntamente com o pathos, com a jovialidade, o

artístico e qualquer outra dimensão humana, goza de uma lucidez ímpar, captada

nas expressões de quem faz uma autêntica experiência de Deus. São expressões que

sugere que quem a fez ‘descobriu’, ‘encontrou’, ‘foi seduzido’, ‘foi iluminado’.

Esta lucidez, certamente não vem do logos discursivo, demonstrativo, mas

da adesão ao modo de ser do logos – de novo daquele que se fez carne. A revelação

de Deus suscita o desejo de sempre mais adentrar em seu mistério. “O encontro do

desejo aceso com a realidade possuída se torna uma febre e uma busca: justamente

a febre da fé que ama e espera, a inquietudo sancta”226. Deus revela-se na existência

humana numa atitude de estar no Amante sendo amada, e no Amado estar no Amor.

Coerente com este cenário paulino de júbilo por ver Deus em todas as coisas,

reencontramos L. Boff, unindo todo ser vivo a totalidade da vida.

Como o universo, assim a vida e cada ser possuem sua genealogia. [...] Somos,

portanto, feitos do mesmo material e frutos da mesma dinâmica cosmogênica que

atravessa todo o universo. O ser humano pela consciência, encaixa-se plenamente no sistema geral das coisas. Ele não está fora do universo em processo de ascensão.

Encontra-se dentro, como um momento singular; capaz de captar a totalidade, de

saber de si, dos outros, de senti-los e de amá-los no interior dessa totalidade

desbordante227.

Contudo, o humano como ser de singularidade dentro de um sistema global

tem provocado novas leituras da vida. Se de um lado enfatiza a individualidade,

paradoxalmente, apresenta diante do humano um modelo padrão. Tudo isto

apresentado pelo ‘Sr. Sistema’, que não possui corpo, cheiro, afeto, alma, nem vida,

e que, entretanto, dita normas para a vida. L. Boff alerta “esse modo de ser mata a

ternura, liquida o cuidado e fere a essência humana”228.

A existência presencia desde a criação o estabelecer de relações. O mundo

criado é dom de Deus. O ser humano é chamado a acolher o mundo como dom e

225 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 123. 226 FORTE, B., Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da historia, p. 36. 227 BOFF, L., Ética da vida, p. 76. 228 Id., Saber cuidar, p. 98.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 142: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

142

corresponsabilidade, e não autodivinização ou coisificação da vida229. Trata-se de

viver sua existência humana na radicalidade, que permite desenvolver-se no

entrelaçamento uns com os outros, como criatura.

A descrição de Bauman sobre liquidez auxilia em descrever a situação de

fragmentação da vida humana, manifestada nos diversos âmbitos do projeto

civilizatório. Vida líquida é a decorrência da transformação do ser humano,

singular, em objeto de consumo, descartável. Esta situação manifesta-se também

nas relações interpessoais cotidianas.

Homens e mulheres estão sôfregos por relações que tenham sentido, após

terem sido abandonados aos seus próprios critérios e sentimentos descartáveis. Ao

mesmo tempo desconfiam de qualquer nível de relação por temer compromissos e

cerceamento da liberdade. A desconfiança perpassa toda proposta de gratuidade, e

descarta toda ideia de um Deus providente e misericordioso. Interiormente, o ser

humano oscila entre o prazer do convívio e o horror da clausura. Verifica-se, como

já foi dito, a substituição da palavra relacionar-se por conectar-se, na linguagem da

geração pós-moderna.

Urge encontrar um centro capaz de preencher e dar unidade à vida em meio

à relativização do sentido. Urge escutar os gritos por uma vida de sentido, da parte

daqueles que denunciam os ídolos que fragmentam a vida. Para L. Boff, este centro

é a espiritualidade. Ela é o lugar em “que se resgata aquele elo esquecido ou perdido

que liga e re-liga todas as coisas a um Centro de sentido e de irradiação que torna

sagrada a vida e leve nossa trajetória por este mundo conturbado”230.

A questão Deus na pós-modernidade é marcada por uma dupla ausência de

vida. A primeira deve-se à miséria humilhante, à ganância insaciável, que se opõem

à ânsia de fraternidade e ao desejo de estruturas sociais que visem o bem da pessoa.

A outra está na ausência da pregação de um Deus atuante nas relações entre os seres

humanos, ou a sua mistificação, que se opõe ao anúncio de um Deus encarnado,

que seja solidário nas alegrias e nas tristezas. Entre a realidade e para além dela,

Deus “se faz presente a partir dos ausentes e anônimos da história, daqueles que

não são os dominadores”231, em sua radical e amorosa solidariedade, tanto na vida

quanto na morte. Esta dupla oposição evidencia uma crise de relações e de

229 Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, p. 141. 230 BOFF, L., Ética da vida, p. 7. 231 GUTIERREZ, G., O Deus da Vida, p. 119.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 143: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

143

alargamento nas compreensões. Ela faz lembrar que a vida é dual. Crise não é

negação, nem desastre, mas sinal de uma vida prenhe de abertura.

Em palavras citadas amiúde, a crise “pode ser também uma chance única

para definir um uso convivial dos instrumentos tecnológicos a serviço da

preservação do planeta, do bem-estar da humanidade e da cooperação entre os

povos”232.

No horizonte da experiência da Graça, L. Boff prossegue sua linha de

pensamento “a crise age como um crisol (elemento químico) que purifica o ouro de

sua ganga; a crise vai acrisolando (purificando) a pessoa para a sua verdadeira

identidade, ao depurá-la de tudo quanto possuía de fictício e deturpado”233. A crise

propicia ao ser humano o situar-se em sua realidade, dentro de um processo

purificador.

Para L. Boff, a terra, assim como o oprimido que grita por práticas solidárias

de libertação fazendo surgir a Teologia da libertação, grita pela renovação da

aliança com o ser humano, o qual destruiu o sentido de religação com tudo e todos.

Trata-se, como ele mesmo diz, de continuar e ampliar as intuições da Teologia da

libertação para as situações que englobam a terra, pois, “todos somos reféns de um

paradigma que nos coloca, contra o sentido do universo, sobre as coisas ao invés

de estar com elas na grande comunidade cósmica”234.

Não se trata de um pensamento novo, recém laborado. A reflexão de L. Boff

não é de todo distinta da anterior, não há corte epistemológico no qual ele pensasse

tão somente nos pobres e oprimidos humanos. A questão agora engloba a terra –

“nossa mãe generosa e nossa pátria/mátria comum mas ferida e doente”. Esta nova

vertente só faz legitimar a teologia da libertação que prima pela preocupação com

relação ao oprimido e ao ferido. A destruição dos povos é continuada na mesma

lógica de destruição da terra, de espoliação de riquezas e ruptura do equilíbrio do

universo, revelador de um grave perigo para a humanidade, hoje e para as gerações

futuras. Neste contexto marcado pelas novas tecnologias, cuja ambiguidade,

232 BOFF, L., Saber cuidar, p. 125. 233 Id., A graça libertadora no mundo, p. 180. Um dos grandes méritos da compreensão de crise para

Leonardo Boff é ampliar suas concepções para as diversas dimensões da vida. Assim, a crise pode

ser lida também na perspectiva do ecossistema, como o faz Delambre ao afirmar a crise na

perspectiva da mudança do clima. Este afirma: “A crise nos serve de ponte para pensarmos o

fundamento, por vezes obscurecido, pois não atinge a pergunta pelo Sentido Absoluto, que sempre

aparece quando nos deparamos com os absurdos da existência”. RAMOS DE OLIVEIRA, D.,

Humano, cosmos e Deus, p. 306. 234 BOFF, L., Dignitas terrae. Ecologia, p. 12.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 144: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

144

manipulada a partir dos interesses do lucro, contribui pesadamente para a alienação

das pessoas, bem como para uma já ameaçadora exaustão do planeta, é que L. Boff

afirma nascer o paradigma da religação, da convergência da relação do ser humano

com a terra, onde tudo estará em Deus e Deus em tudo235.

A possibilidade de reconhecer Deus em tudo e todas as coisas em Deus, isto

é, a transcendência imanente, encontra seu fundamento “na compreensão do

Espírito de Deus como a força da criação e como a fonte da vida”236. Para L. Boff

e Moltmann, o caminho da humanização passa pela consciência de ser criatura ante

as pessoas e ante a Terra. A terra não é domínio e desfrute para o ser humano, ela é

vital para o ser humano, pois cria as condições ideais para o surgimento da vida237.

O ser humano, para continuar vivendo, precisa de toda a comunidade dos seres

criados. Eis o entrelaçamento do Criador da vida: desde suas entranhas, Deus está

ligado às suas criaturas; a criação está em Deus e Deus está na criação.

Há uma premência por um novo ethos civilizacional que surja da natureza

mais profunda do humano para que tenha sustentabilidade para a posteridade. Do

ponto de vista humano da existência, o cuidado se acha a priori a toda situação do

ser humano. Ele dignifica a vida, pois revela a natureza existencial, a constituição

do que seja o ser humano, o seu modo de ser concretamente238.

Dar vida é cuidar, e cuidado é outro nome para a vida.

(O cuidado) está na origem da existência do ser humano. E essa origem não é

apenas um começo temporal. A origem tem um sentido filosófico de fronte donde brota permanentemente o ser. Portanto, significa que o cuidado constitui, na

existência humana, uma energia que jorra ininterruptamente em cada momento e

circunstância. Cuidado é aquela força originante que continuamente faz surgir o

ser humano. Sem ela, ele continuaria sendo apenas uma porção de argila como qualquer outra à margem do rio, ou um espírito angelical desencarnado e fora do

tempo histórico 239.

Em sua proclamação do Reino, Jesus cuida curando a vida, pondo saúde e

vida nas pessoas, em toda sua inteireza. Em sua palavra-ação, Jesus anuncia um

Deus que cura a vida, sinal da misericórdia de Deus240. Seu primeiro olhar não se

235 Cf. BOFF, L., Dignitas terrae, pp. 11-13. 236 MOLTMANN, J., O Espírito da vida, p.45. 237 Cf. Id., “Cultivar e preservar a Terra?”, pp. 49-51 238 Cf. BOFF, L., Saber cuidar, p. 34. 239 Ibid., p. 101. 240 Cf. PAGOLA, J. A., Jesus, pp. 191-214.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 145: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

145

dirige aos pecadores, segundo a opinião pública, que precisam ser chamados a

converter-se, mas aos que sofrem a enfermidade ou o desamparo, e anseiam por

mais saúde e vida.

Pela utopia toda alienação será vencida. Como? A concepção de utopia

utilizada por L. Boff, na maior parte das vezes, contempla experiência e anseio

humano. Jesus, o Cristo, feito presente dentro da história pela ressurreição, é o

futuro da humanidade. “Para o cristão, a partir da ressurreição de Jesus, não existe

mais utopia (em grego: que não existe em nenhum lugar), mas somente topia (que

existe em algum lugar)”241. Em Jesus Ressuscitado, a utopia se torna realidade,

porque para Deus nada é impossível (Lc 1,37). Ele é realidade já principiante dentro

do mundo. Na mesma linha, Sobrino, une utopia à esperança no acontecimento do

Ressuscitado: “na América Latina, a tradição de Jesus ressuscitado facilitou, ao

menos em parte, que se gere esperança no compromisso, que se formule em utopias,

que se afirme que a última palavra que dirá será a vida, a justiça, a verdade, o

amor”242.

A vida do ser humano presencia a dualidade, pois consiste em relações

voltadas para todas as direções num movimento síncrono de abertura e

abraçamento.

3.2.3. A vida do ser humano como um nó de relações

O advento da globalização encurtou distâncias, possibilitou novas relações,

globalizou informações, alterou costumes, expandiu mercados, criou novas

identidades. Depois dela não se podem mais isolar os conceitos de um grupo, por

exemplo, de moradores de pequenas cidades e supô-los totalmente distintos

daqueles moradores das grandes metrópoles. O mesmo vale para países e/ou

continentes. Vivemos numa aldeia global. Sentimo-nos tocados de todas as

direções.

Para L. Boff, este tema é um convite à redefinição do sentido da civilização

em um horizonte de um sentido globalizador. Diante da ameaça global ao sistema

241 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 149. 242 SOBRINO, J., A fé em Jesus Cristo, p. 32.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 146: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

146

da vida, este autor parafraseia a máxima moral de Immanuel Kant: “age de tal modo

que tu possas querer que a tua ação se torne uma lei universal de conduta”. Fazendo

uma mudança categórica “a resposta só pode ser: viva de tal maneira que não

destruas as condições de vida dos que vivem no presente e as dos que vão viver no

futuro” 243. A vulnerabilidade da vida pede atitudes de respeito, veneração e ternura.

Cabe ao ser humano instaurar o ‘Cuidado’ como critério de ação, para que todos

possam continuar a existir e a viver. Todo o universo se fez cúmplice para que a

vida chegasse até o presente. Atitudes, segundo L. Boff, derivam da experiência de

Deus e da descoberta do universo e do coração como Mistério.

Os séculos XVII-XVIII presenciam a aparição de uma nova compreensão

do universo e da relação do ser humano com o mundo. Tal compreensão

influenciava a compreensão de Bíblia e a ideia de Deus ligada à visão religiosa da

ordem do mundo. Apareceu neste contexto a negação da existência de Deus ou, no

mínimo, sua relação com o mundo era vista como antagônica com a nova ordem da

ciência.

No século XXI predomina a intervenção tecnológica e as novas relações

econômicas. A novidade, em larga escala e que aparece de forma constante, gera

um tempo de grande complexidade, incerteza e instabilidade. A pessoa cristã sente-

se como que cindida, entre a visão de mundo que ela expressa em seu

comportamento religioso e o discurso técnico científico do qual ela participa, com

diferentes graus de compreensão e compromisso. Mas sempre, em última análise,

postula-se a total autonomia do saber científico a respeito ao logos religioso. Em

última instância, a globalização do individualismo, por ser desprovida de relações

injustas e fraternas, parece selar a perda do sentido da vida.

A busca pelo sentido da vida chama a atenção para a inversão em todas as

relações humanas. Desse modo, o ser humano modelado para ver o horizonte da

realidade, torna-se encurvado: instaura-se a rebeldia com relação a Deus,

dominação com relação a seu irmão/irmã, o desrespeito de si mesmo e escravidão

das coisas. Quando se trata da necessidade de ir ao encontro do outro, a obstrução

dos canais, mesmo que somente em uma única das relações, afeta a globalidade das

relações humanas.

L. Boff assinala qual deve ser a globalização.

243 BOFF, L., Ética da vida, p. 67. Grifo do próprio autor.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 147: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

147

O que deve, fundamentalmente, ser mais globalizado é a solidariedade para com

todos os seres, a partir dos mais afetados; a valorização ardente da vida, em todas

as suas formas; a participação como resposta ao chamado de cada ser humano e à

dinâmica mesma do universo; a veneração para com a natureza da qual somos parte, e a parte responsável244.

Questionado pela perspectiva paradoxal de uma cultura que produz uma

leitura da vida a partir de uma perspectiva que a mira como destituída de valor, mas,

ao mesmo tempo, é prenhe de buscas e inquietações que latejam em seu ser mais

profundo, L. Boff denuncia esta leitura unilateral e extrinsicista que a desumaniza

e coisifica. Ele quer com isso superar a dicotomia entre sentido e não-sentido. Esta

é atitude que perpassa todo seu pensamento e contribui para uma experiência

integradora da vida. Amiúde faz refletir que o “constituir-se como um ser de

abertura e de relação é dizer que somos seres que trocam e interagem continuamente

com tudo o que se apresenta a eles. Com isso crescem e se enriquecem em sua

identidade”245.

A positividade e o elã constituem a existência da vida. Esta assertiva é

verdadeira sempre, precisamente porque Deus é a própria vida, cria a vida por amor.

A vida tem caráter da busca pelo mais, melhor e eterno, aliado a um elã criativo e

ascendente. Ser de buscas, o ser humano não se contenta com a realidade dada. Seu

modo de existência já é indício de que sua direção é o infinito. L. Boff chama a

atenção para a palavra existência para dela extrair a realidade originária e fundante

do ser humano, que constitui o ser e o impulsiona para além de si mesmo. “‘Exis-

tência’. A palavra quer dizer: vivemos para ‘fora’ (ex), somos seres de abertura em

todas as direções. Somos um nó de relação conosco mesmo, com os outros, com a

sociedade, com a natureza, com o universo e com Deus”246.

Falar de relação é falar da vida. A vida não é matéria para mero usufruto da

razão. Não é mero instrumental para as ciências empíricas. Igualmente, não se

restringe a uma força que se manifesta ligada ao sopro e ao sangue. Ela é tudo isso,

mas não se restringe a isso. Ora, justamente o acolhimento desta abertura aos

horizontes a se construir torna admissível que a vida necessite e se realize mediada

por relações com as pessoas, com o mundo, com Deus. Seria o mesmo que dizer

244 BOFF, L., Ética da vida, p. 86. 245 Id., Tempo de transcendência, p. 14. Esta concepção antropológica é de suma importância, tanto

que ele retorna a este pensamento em várias de suas obras, como: Id., O destino do homem e do

mundo, p. 41; Id., Jesus Cristo libertador, p. 236; Id., Vida para além da morte, p. 17. 246 Id., Tempo de transcendência, p. 14.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 148: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

148

através da poesia “Homem algum é uma ILHA, um ser inteiro em si mesmo. Cada

homem é uma partícula do continente, uma parte da terra... a morte de qualquer

homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano”247.

O ser humano como um nó de pulsões e relações. Essa asserção de L. Boff

explícita em várias de suas obras exprime exatamente a existência da vida. Numa

visão holística afirma, “captamos a importância de tudo integrar, de lançar pontes

para todos os lados e de entender o universo, a Terra e cada um de nós como um nó

de relações voltado para todas as direções”248.

Aqui se abre outro ponto nodal para L. Boff, a saber, a Ecologia. Ele se

distancia, sem fazer oposição, da concepção clássica de ecologia. Ou seja, ele

supera sua restrita compreensão como ciência que estuda as relações dos seres vivos

entre si ou com o meio orgânico ou inorgânico no qual vivem 249·. Deixa para trás

também aquela própria do século XVIII, segundo a qual cada espécie viva tinha seu

habitat dentro de um padrão harmonioso de interdependência entre as diferentes

espécies. Assume o significado de ecologia dado por Ernst Haeckel: “o estudo do

inter-retrorelacionamento de todos os sistemas vivos e não-vivos entre si com seu

meio ambiente, entendido como uma casa, donde deriva a palavra ecologia” 250. A

partir desta definição, L. Boff ressalta que não basta a preocupação com o meio

247 POETRYFOUNDATION., “John Donne”. John Donne foi um poeta inglês (1572-1631). Ver

também: DONNE, J., Selected Prose, p. 126. Tradução minha. 248 L. Boff explicita que sua compreensão de holismo não significa “a soma das partes, mas a

captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, sempre articuladas entre si dentro da

totalidade e constituindo essa totalidade”. BOFF, L., Ética da vida, p. 17. É comum encontrar a afirmação de holismo como entendimento integral dos fenômenos em oposição ao entendimento

tomados isolados. Uma visão que pode pôr a perder a unidade específica de cada ser ou de cada

coisa. BOFF, L., Ética da vida, pp. 18-19. 249 Em livros didáticos encontramos a seguinte explicação “Ecologia: estudo das relações dos seres

vivos entre si e com o ambiente onde vivem”. LAURENCE, J., Biologia, p. 33. Em outros não há

menção da palavra ecologia, mas de nicho ecológico. Na mesma linha da concepção anterior,

afirmam “A maneira como vive uma determinada espécie é chamada de nicho ecológico”. CRUZ,

D., Ciências & Educação ambiental, p. 276. No glossário deste mesmo livro há a explicitação:

“Nicho ecológico: a maneira como uma espécie vive num ecossistema”. Sobre Ecossistema, “a

comunidade e seu ambiente físico, ou seja, o conjunto de todos os seres vivos de uma determinada

área mais os fatores abióticos (luz, água, solo, oxigênio, etc.) com os quais eles interagem”, p. 300. Em suma, o estudo da organização dos seres vivos tem seu foco nos rios, lagos, florestas, campo,

oceanos e animais e plantas que ali vivem. E acrescentam “Podemos estudar a vida a partir de um

único organismo, que pode ser unicelular ou multicelular”. LAURENCE, J., Biologia, p. 32. Não é

objetivo de esta pesquisa estudar a ecologia. Contudo, situar estas compreensões aqui revelam uma

sutil parcialidade no ensino educacional e que passa para a vida cotidiana, muitas vezes, sem

criticidade, conceitos com significados que implicam certas posturas perante a vida, que, no entanto,

apresentam-se como “neutros”. Tais conceitos estão presentes também nos Meios de comunicação

social, particularmente nos programas televisivos. A pesquisa quer chamar atenção que a busca pela

vida, com profundidade de sentido, está premente em todo ser, articulada entre si dentro da totalidade

da criação. Nem nada nem ninguém pode ser deixado de fora. 250 BOFF, L., Ética da vida, p. 10.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 149: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

149

ambiente, uma ecologia ambiental. Também não basta criar associações que

justaponham o ambiente e a sociedade, onde o ser humano está inserido, uma

ecologia social. E nem mesmo é suficiente uma ecologia que se concentre num tipo

de mentalidade para tornar vigente uma ação e gerenciar recursos naturais escassos.

Estas concepções fazem gerar o individualismo e restringir seu campo de atuação,

pois tudo está ordenado para o ser humano, visto como rei do universo.

Nesta esteira de L. Boff, ecologia tem a ver com as relações de tudo com

tudo, em todas as dimensões. Pertence a todos os seres, tanto os vivos como os

inertes, os naturais e os culturais, em interação entre si e com o seu meio. Como

saber de relações entrelaçadas, L. Boff chama a atenção para uma ecologia como

uma rede de interdependência vigente de tudo com tudo, na captação una e diversa

em suas partes, onde tudo está interligado entre si e constituindo a totalidade. Logo,

ela não pode ser reduzida a soma de técnicas nem a um campo da ciência.

Incorporadas as diferentes contribuições das concepções ecológicas, L. Boff

apresenta a ecologia integral, cuja perspectiva contempla a Terra matricial e nutriz

da vida e, na biosfera, os seres humanos a ela intrinsecamente ligados. Consciente

do nível de complexidade da cosmologia, particularmente por sua associação com

outros ramos de pesquisa e com o avanço das ciências de computação, este teólogo

chama a atenção para a necessidade de uma nova consciência que se construa em

um horizonte que além de abarcar o particular e o individual, ao mesmo tempo,

contemple as relações e o sentido da existência. Trata-se de uma visão holística que

integre e considere a interdependência entre as situações de pobreza, degradação

ambiental, injustiça social, conflitos étnicos e crise espiritual e também as questões

de ordem política, educacional e urbanística.

A ética do cuidado surge como um modo de agir, uma atitude de

preocupação e de envolvimento afetivo nas relações. O cuidado é quem modelou o

ser humano, e deu-lhe existência. A composição espírito-corpo é descrição

posterior à sua concepção. Por isso, “o cuidado faz surgir o ser humano complexo,

sensível, solidário, cordial, e conectado com tudo e com todos no universo”251. O

modo de ser cuidado só se aplica quando se transforma em situações existenciais,

ou seja, quando não se encerra em belos programas e leis aprovadas ou protocolo

de intenções.

251 BOFF, L., Saber cuidar, p. 190.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 150: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

150

A própria ideia de subjetividade se transforma. O sujeito deixa de ser

interventor e passa a ser sujeito de relações. Inicia-se a compreensão da consciência

de que o planeta Terra e o cosmos por sustentarem a vida, são expressão de Deus

presente na história. “Supera-se o reducionismo antropocêntrico que qualificava

tudo o que não se referia ao humano como secundário. Admite-se apenas certa

dignidade às coisas e seres que poderiam ser utilizados e manipulados pelo ser

humano”252.

Frente ao paradigma de dominação, antropocêntrico e dualista, responsável

pela desintegração da vida e ditador de sentido da vida, que se deixa conduzir pela

ideia de progresso e avanço ilimitado, contrapõe-se o paradigma do cuidado. O

cuidado está presente na gênese do cosmos (cosmogênese) e na gênese do ser

humano (biogênese). Nem o cosmo nem o ser humano são perfeitos e acabados,

mas encontram-se em processo permanente e aberto de nascimento. Nós, os seres

vivos, estamos todos em gênese, abertos para o futuro. O cuidado revela a atitude

de respeito com toda a vida (planeta, nicho ecológico, sociedade, com os outros

humanos, particularmente os pobres, com nosso corpo, alma, espírito e com a

grande travessia: a morte). O cuidado desvela-se em afeto para com o outro e

instaura uma lógica das relações humanas.

Jesus, o ser de cuidado, revela em suas atitudes o Deus-cuidado. Une o

universal ao particular, une à existência a permanente criação por Deus. Integra

dentro de si a dimensão feminina que o tornava sensível à exclusão em que viviam

as mulheres. Contempla a mulher como criadora do Reino e com ela descobre o

mistério do Reino253. Em um de seus encontros, no meio da multidão, Jesus

experimenta um toque diferente, curativo, que sai de dentro de si mesmo. Surpreso,

busca um encontro direto com a mulher e ensina que o Reino só pode ser vivenciado

no contato pessoal (cf. Lc 8,46). O Deus-cuidado revela em Jesus que em meio aos

superlativos linguísticos para descrever uma realidade, como por exemplo, os

prefixos que indicam superioridade super, extra, ultra, mega, hiper e arqui, à

252 BAPTISTA, P. A. N., Libertação e diálogo, p. 219. 253 Inspirado no livro, o rosto feminino do Reino do Padre Benjamin, jesuíta espanhol que descreve

como Jesus contempla a mulher. Diferente da ideia que dela escutava de ser inferior ao homem,

Jesus criava, então, a partir desta contemplação uma linguagem para falar de Deus. Dessa

experiência relacional, a mulher foi se libertando da opressão, os homens das leis da morte e Jesus

encontrando o rosto feminino do Deus cuidado Pai-Mãe que continua sua criação na história. In: Cf.

GONZÁLES BUELTA, B., O rosto feminino do reino.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 151: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

151

multidão Ele chama a atenção para a vida que clama e emerge na história concreta

e cotidiana do mundo.

As criaturas estão em gênese, na história. Deus emerge de dentro dessa

experiência cosmológica como o Futuro absoluto do mundo, a Terra da promessa

para o coração humano. Deus não é só o transcendente, como afirma o deísmo254,

nem só o imanente, como afirma o panteísmo255. Da mesma maneira quer-se dizer,

Deus emerge não fora do processo cosmogênico, mas manifesta-se no interior desse

processo. Este Mistério inefável em Deus pode ser compreendido

Como Paixão infinita de comunicação e expansão, pois o universo é cheio de

movimento em equilíbrio, criando o tempo, o espaço e todos os seres na medida

em que se dilata indefinidamente. Deus irrompe como Espírito que perpassa o todo e cada parte, porquanto tudo é sutilmente interdependente e apresenta uma ordem

que continuamente se cria a partir da desordem inicial e que se abre para formas

cada vez mais abertas e superiores de relação256.

Vale recordar uma afirmação de Teilhard de Chardin, citada por L. Boff

como enriquecedora da intuição fundamental da harmonização com o todo da vida:

"O meu interesse real na vida é mover-me irresistivelmente para uma mais e mais

intensa concentração sobre a questão básica das relações entre Cristo e a

hominização. Isso tornou-se para mim uma questão de to be or not to be”257.

Nesta perspectiva, Moltmann convida ao pensamento ecológico da criação.

A transição de época exige sair da dicotomia entre Deus e o mundo de outrora, para,

agora, reconhecer a “presença de Deus no mundo e da presença do mundo em

nós”258.

No desenvolver deste pensamento, L. Boff une e centra, amplia e

transcendentaliza a visão ecológica chegando à espiritualidade cristã. Ao considerar

o universo “uma teia intrincadíssima de relações, onde tudo tem a ver com tudo em

todos os momentos e em todos os lugares, então a forma de nomear o Deus dos

254 Deísmo na tradição filosófica tem seus expoentes em Locke, Rousseau e Voltaire. Afirma a

existência de um Deus único, transcendente, criador do mundo, mas nega a providência e qualquer

relação de Deus com o mundo, a não ser na sua origem com a definição das leis que regem a natureza. 255 Panteísmo: Deus é a única substância absoluta e infinita. Spinoza é um dos inspiradores do culto

da natureza da época romântica e da religiosidade cósmica, própria daqueles que consideram divina

a harmonia das leis naturais, mas não creem em um Deus pessoal que se interesse pelo mundo e pelo

destino humano. Da absorção total do mundo em Deus (panteísmo) é fácil passar à redução de Deus

à totalidade absoluta do próprio mundo (ateísmo). 256 BOFF, L., Experimentar Deus, pp. 54-55. 257 Id., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 17. 258 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 32.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 152: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

152

cristãos, isto é, como SS. Trindade constitui o protótipo desse jogo de relações”259.

Compartilhando da mesma ideia, Moltmann afirma que “uma vez que o Espírito

atua, vive e move em todas as criaturas por meio de suas energias, Deus está

presente em sua criação e esta existe nele”260. A criação do mundo é ato de inventiva

criatividade na vida da Trindade; Pai, Filho e Espírito Santo.

No pensamento de L. Boff, o sentido da vida é relação, mas também

abertura. Daí que ao adentrar por um tema, já está inserido em outro, sem

esquecimento do anterior. O ser humano é relação. Ele não possui em si a totalidade

da vida. Ele “é parte e parcela da natureza e entretém com ela uma sofisticada rede

de relações, fazendo com que ele co-pilote o processo de evolução junto com as

forças diretivas da Terra”261. O cosmos e o ser humano, tudo está em evolução, em

processo de nascimento, em movimento simbiótico de relação em todas as direções.

Leitor de Teilhard de Chardin, L. Boff compartilha com ele a ideia de que o

universo se encontra em cosmogênese, os seres humanos em processo de

antropogênese. É o grito da vida que quer viver, é a rejeição do fatalismo, que

afirma que vivemos para morrer, e da hegemonia do logos discursivo, que aprisiona

e restringe a vida numa compreensão fechada.

Ele sublinha que “a tendência dos seres vivos é serem cada vez mais

ordenados e criativos e, por isso, antientrópicos. A própria desordem é indício de

uma nova ordem que vai emergir. O caos é generativo e se ordena sempre a um

cosmos”262. Esta concepção é o oposto da entropia, isto é, a libertação de uma visão

que sustenta que a vida irreversivelmente se dissipará. Vida e morte estão inter-

relacionadas. Convém notar que entropia e evolução são movimentos interiores aos

processos cosmológicos, segundo a descrição da ciência mais contemporânea. A

evolução, tal como descrita na cosmologia científica, por si só, não permite falar

em transcendência. Por outro lado, quando já se tem o discurso da transcendência,

pode-se perfeitamente ver, na evolução, um índice físico deste caminhar de todo ser

para ser mais que si mesmo.

De fato, nem a menor das partículas da matéria é encerrada em si mesma,

mas antes é, ainda que minimamente, aberta a interagir com outra porção de

259 BOFF, L., Ética da vida, p. 18. 260 MOLTMANN, J., “Da Era da Modernidade ao future ecológico”, p.31. 261 BOFF, L., Saber cuidar, p. 114. 262 Id., Ética da vida, p. 75.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 153: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

153

matéria. Realmente, nem sequer aquelas porções da matéria que são classificadas

de inertes, como por exemplo, os gases inertes da química não escapam à lei do

atrito, da gravidade, etc. O fato de o mundo não ser um mundo fechado em seus

componentes, mas que os componentes do mundo estão justamente abertos a

compor o mundo faz Lee Smolin levantar uma questão interessante.

Há alguma razão para que não pudéssemos conceber o mundo, como sendo feito como uma rede de relações, das quais nossas aparências são exemplos verdadeiros

em vez de um mundo feito de algo imaginado como coisas absolutamente

existentes, das quais nossas aparências seriam meras sombras? Por que existiria algo como “coisa em si”, para além dos efeitos que todas as coisas produzem umas

sobre as outras? Isto se relaciona com outra questão. Se as leis da natureza são tão

somente a elaboração dos princípios da lógica e da probabilidade por processos de

auto-organização, ainda não deveriam existir partículas fundamentais, sobre as quais atuam estes processos? E estas não deveriam obedecer a algum tipo de leis

universais? Talvez um princípio a seleção natural e a auto-organização ou dinâmica

aleatória possa explicar porque os parâmetros do modelo padrão vieram a ser aquilo que são, mas justamente porque a biologia exige a presença de moléculas em cuja

combinação os princípios de auto-organização e seleção natural podem agir, a

física não exige ainda alguma substância fundamental sobre as quais as leis possam agir? O mundo não deve consistir de alguma coisa para além da organização e das

relações?263.

Há um círculo, que não se fecha, entre o pressuposto da existência relacional

do ser humano, e, efetivamente, uma liberdade intrínseca de ampliação ou

fechamento desse círculo. Consciente da complexa realidade da vida e seus

mecanismos não determinísticos, Lee Smolin abre espaço para o Transcendente.

Não sei a resposta a estas questões. Elas pertencem à classe das questões realmente

difíceis, tal como o problema da consciência ou o problema de por que existe no mundo algo chamado “coisa”, em vez de nada. Ao fim e ao cabo, por que o mundo

foi chamado ao ser? Não vejo realmente como a ciência, por mais que ela progrida,

possa levar-nos a uma compreensão destas questões e talvez sobre um lugar para o misticismo264.

Torna-se crucial abrir espaço para a perspectiva dos outros em particular,

dos outros nós, e do grande Outro, Deus. É essencial verificar se o ser humano, nós

mesmos, somos realmente capazes de reconhecer a radical legitimidade da presença

desses nós outros, toda a criação e o Criador na busca pelo sentido da vida. Ou, a

existência poderá eclipsar-se.

263 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 197. Tradução minha. 264 Ibid., pp. 197-198. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 154: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

154

Na esteira teológica da existência humana, como aporte para o sentido da

vida humana, L. Boff afirma que existência é o movimento de saída de si mesmo

para relacionar com um outro o que constitui o ser pessoa humana.

O centro da personalidade é formado e constituído por uma contínua doação de si.

É saindo de si que fica em si. É dando que se recebe o ser pessoal. Pessoa, nesse

sentido, é um permanente criar-se a partir de uma relação. A capacidade de auto transcender-se (sair de si) é o específico da pessoa265.

As relações vão criando realidades concretas, verdadeiras histórias, fruto

das interações com todo ser vivo. Por isso, a vida é interativa e possui interioridade.

Estar vivo implica existir em interatividade com as pessoas, o mundo e com Deus.

Este modo de compreender a vida propicia a consciência de que cada ser vivo é

uma parcela, importante, de suas relações. Para Ricoeur, a identidade mais autêntica

advém do reconhecimento mútuo. É ela que nos faz ser o que somos e que solicita

ser reconhecida. Nesta dinâmica, o interesse pelo outro faz o movimento de saída

do reconhecimento de si, do ensimesmamento, para conhecer o outro e ingressar

nas relações recíprocas266. A existência humana é construída de movimentos de

reciprocidade.

Todos estamos enredados num jogo de inter-retro-relacionamentos, em cadeia,

pelo qual vamos construindo, com o desenrolar do tempo, nosso ser. Neste jogo

tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os tempos e em todas as circunstâncias. Existir e viver é inter-existir e com-viver. Numa palavra, é

relacionar-se267.

A vida é um constante movimento em todas as direções. Ela é inter-relação,

isto é, relação de dentro, do mais interior, mais íntimo, do mais profundo. É retro-

relação, isto é, relação com o tempo precedente. E, é relacionar-se, isto é, relação

de reflexividade ou reciprocidade. Portanto, a vida é um inter-retro-relacionar-se.

265 BOFF, L., O destino do homem e do mundo, p. 56. 266 Cf. RICOEUR, P., Percurso do reconhecimento, pp.17-28. 267 BOFF, L., O despertar da águia, p. 48.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 155: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

155

3.2.4. A história humana como convocação a uma compreensão inclusiva da vida

Se se fosse descrever um movimento na orientação teológica, poder-se-ia

dizer que por volta da década de 70 foi posto em evidência o Livro do Êxodo, com

cuja leitura buscava-se iluminar as questões políticas, examinadas à luz da fé cristã.

A década de 90 sublinhava o livro do Gênesis, ao se tematizar o interesse pela terra,

pelo cosmos, pela ecologia e o cuidado com a criação.

A época pós-moderna, beneficiada ou confusa, está inserida num contexto

amplo das ciências e aplicação de inovadoras tecnologias que configuram o

quotidiano, globalizando-o. Surge um tipo de sensibilidade global, consciente dos

limites e enganos do crescimento, denunciadora das consequências perversas da

razão instrumentalizada, a qual explora a natureza abusivamente, produz armas

atômicas, químicas e biológicas de destruição em massa, ao lado do discurso de

proteção e soberania e, inconformada com uma organização social, injusta e

excludente.

L. Boff chama a atenção para a mudança das questões prementes para o ser

humano. Anteriormente, as questões eram de cunho mais filosófico humanista: de

onde viemos? Para onde vamos? Que podemos saber? E assustados com o moderno

conhecimento capaz de destruir a vida, perguntava-se: Que podemos esperar? Hoje,

para este autor, em face da crise ecológica, a questão premente e a escrever em

todas as folhas da agenda é: como devemos viver?

Avulta, neste momento, uma teologia que não se relaciona primeiramente

com diferentes realidades, mas quer elaborar conceitos de perspectiva, sempre

relacionados ao todo da realidade. Sublinha que a ecologia é ecologia ambiental,

social, mental; é ecologia integral. Ela contempla todas estas concepções, e servem

à medida que “nos ajudam a sermos um ser de relações”268.

A teologia cristã diz-nos que Deus revela-se como um ser relações, de tal

forma que, quando uma das hipóstases está em evidência, às outras duas estão à sua

268 BOFF, L., Ética da vida, p. 19.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 156: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

156

volta, de mãos dadas com ela, solidárias269. A afirmação do universo como nó de

relações, encontra sua origem na inter-relação absoluta de três divinas Pessoas.

Nomeada como Trindade, o Deus dos cristãos constitui entrelaçamento eterno, para

dentro e para fora de si. A pericórese, como comunidade trinitária, oferece o padrão

para pensar a comunidade. Somente uma civilização baseada na igualdade, na

participação e na solidariedade integrada com a natureza, tem um caráter de

preservação do mundo em termos de ecologia sustentável. Tanto a pobreza como a

riqueza destroem a ecologia sustentável: as pessoas pobres por necessidade e as

ricas por consumo. Para L. Boff, urge uma matriz ecológica de modo que todos os

fatores e pessoas estejam integrados270.

Com Jesus, o rosto visível de Deus, a pessoa que crê experimenta que Deus

não se reduz a uma teoria, mas é uma Presença, que se oferece, desde suas origens

a sua consciência de ser Seu povo, que o transforma interiormente e faculta a

afinação de sua vida de abertura e compromisso com os outros. A fé inspira uma

vida sempre compreendida de maneira nova, abraçada de humanidade e amor.

A Sagrada Escritura possui um papel fundante e fundamental na vida cristã.

A experiência espiritual do povo descerra uma experiência de fé na qual homem e

mulher são testemunhas da interpelação da Palavra criadora e salvadora de Deus.

Já no judaísmo, a Palavra de Deus é elemento constitutivo para a orientação e

organização da vida. Numa peculiar continuidade desta experiência, para a fé cristã,

a Sagrada Escritura é lida, não simplesmente como um documento histórico, mas

é, sobretudo, memória viva e misteriosa da presença de um Deus que se quer

comunicar também pela sua Palavra. Conforme se lê “Muitas vezes e de modos

diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os

últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2). Em Jesus Cristo, a Palavra em

que Deus conhece todas as coisas, assume a história humana, torna-se Evangelho,

para chamar a pessoa à vida em plenitude.

Com Jesus, completa-se a revelação começada no Antigo Testamento. O

modo de falar de Deus no Novo Testamento sofre uma mudança no sentido formal.

Ela apresenta maior complexidade e diversidade de tons. De múltiplos

269 Na história de Deus há uma pericórese, ou seja, significa que, para cada pessoa, é a outra pessoa

que está no centro. Cada pessoa se distingue não para se separar da outra pessoa, mas para ser

totalmente voltada para a outra pessoa. 270 Cf. BOFF, L., Ecologia – Mundialização – Espiritualidade, pp. 17-45.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 157: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

157

intermediários, concentra-se agora em Jesus Cristo, que é, ao mesmo tempo, seu

autor e seu objeto. Agora o referencial único é Jesus Cristo. Ele é a real presença de

Deus, na criação e na história, permanecendo a presença absoluta de Deus sobre a

história271. Os gestos de Jesus revelam o solícito amor criador de Deus.

Ora, sem a Palavra revelação na história humana, a Palavra que se faz carne

humana em Jesus, poder-se ia dizer que o criador está no céu e as criaturas na terra.

O Deus experimentado e proclamado pela fé cristã atesta que o mundo não só é

criado por Deus, mas é lugar de sua autocomunicação, portanto é no mundo que Ele

se encontra.

Karl Rahner explicita a presença do Deus criador em Jesus, na linguagem

do Infinito que adentra no finito, por isto o próprio finito ganha profundidade

infinita. “O próprio Infinito se tornou, o lugar onde ele se expressa como a pergunta

a que ele próprio responde, a fim de abrir-se para todo o finito, dentro do qual se

tornou parcela”272. No dizer de Moltmann, “o Deus transcendente e o Deus

imanente no mundo são um só Deus”273. Toda a criação significa um

desdobramento da vida Trinitária pela graça, como dito antes. Nela, a humanidade

é convidada a participar desta comunhão.

L. Boff afirma a transparência como categoria que melhor sintetiza a

convivência do infinito com o finito, a transcendência e a imanência, a divindade e

a humanidade em Deus. É uma terceira categoria que não exclui, mas integra.

“Transparência é o termo que traduz a inter-retro-relação da imanência com a

transcendência. A transparência é transcendência dentro da imanência e imanência

dentro da transcendência”274. Por esta categoria, mundo e Deus estão

intrinsecamente unidos, sem dualismo. O mundo é transformado, pois transparece

a transcendência. Destarte, o mundo não remete simplesmente à própria dinâmica

ou imanência. O mundo é Bom, pois “é o lugar e a própria manifestação emergente

daquilo que é mais do que mundo, i.e: do Trans-cendente, de Deus”275.

Pela Encarnação do Filho, Deus não está fora do mundo. Ao contrário, ele

escolhe a história humana como sua habitação. O mundo é o lugar de Deus. “Se o

próprio Deus criador habita na sua criação, então ele faz dela o seu lugar de se sentir

271 Cf. MOLTMANN, J., O caminho de Jesus Cristo, pp. 17-64. 272 RAHNER, K., Curso fundamental da fé, pp. 269-270. 273 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 34. 274 BOFF, L., A águia e a galinha, p. 172. 275 BOFF, L., “Experimentar a Deus hoje”, p. 132.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 158: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

158

em casa assim na terra como no céu”276. O projeto criador de Deus é inclusivo com

relação a todas as criaturas.

No dizer de L. Boff, a pregação de Jesus é a transformação global na direção

de sua culminância. Ela é “a novidade e a jovialidade de Deus reinando sobre todas

as coisas”277. O Deus em Jesus é aquele que dá novo colorido a todas as coisas,

permanentemente.

Encarnação significa, primeiramente, que “Deus estabeleceu morada entre

nós, veio até a sua própria terra”278 afirma Gutiérrez. Deus cria o mundo e faz dele

sua morada. Permanecendo embora na Trindade, Jesus não é estranho à história

humana. Isto releva substancialmente o ser humano, principalmente os que estão à

margem. Na verdade, para Deus não há margem limite. Ele está em toda parte. Logo

se na história há margens e marginalizados é porque a história tem elementos que

não advêm de Deus. Não há espaço ou tempo que possa reter sua presença, nem

mesmo a morte.

Numa religião cósmica, não há espaço para uma revelação histórica. Nela,

Deus se esgota na criação. Há uma circularidade perfeita entre Deus e o mundo, de

tal forma que o mundo é Deus, e Deus é o mundo. Esta é a visão do panteísmo

segundo o qual Deus é a unidade do mundo; tudo é Deus e Deus e o mundo são

apenas um, sem distinção real. O pressuposto básico da fé cristã para uma revelação

histórica de Deus é a compreensão de seu Ser, como consciência e liberdade. Deus

pode revelar-se para além da sua criação, gratuitamente, permanecendo Deus.

Por outro lado, os deístas afirmam um Deus tão perfeito na sua criação que

se torna desnecessária a Revelação. Esta foi a posição, por exemplo, dos estudiosos

de física clássica, dos séculos XVIII e XIX que compararam a criação do universo

a um grande relógio, donde haveria a necessidade de um relojoeiro para intervir

ocasionalmente de modo a preservar eternamente o funcionamento do relógio

cósmico.

A maioria dos físicos e filósofos dos últimos três séculos não tiveram dificuldade

em imaginar que o universo era a criação de um deus inteligente e eterno. Então talvez não fosse exagerado sugerir que a imagem do universo como um relógio

276 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 22. 277 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 258. 278 GUTIERREZ, G., O Deus da Vida, p.115.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 159: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

159

mecânico, para muitos daqueles que vieram depois de Newton, era uma ideia

religiosa279.

A ideia de um universo mantido em movimento pela ação de uma

inteligência divina é um elemento da crise pós-moderna? A ideia de um deus alheio

ao mundo ou que só se apresenta após certos intervalos de tempo para pequenas

correções de curso termina por decretar que Deus é totalmente dispensável, à

medida que a física e a cosmologia desenvolvem seus conteúdos. Sendo deus uma

hipótese dispensável, como Laplace teria dito, o universo ficará à mercê da

singularidade dos fatos. Essa seria uma radicalização da visão dualista e

fragmentadora da vida a qual opõe espírito e corpo, eterno e perecível, vida e morte,

céu e terra, endógeno e exógeno. Há assim uma extensa lista de dicotomias, que

também inclui feminino e masculino, sagrado e profano. Este tipo de visão que

imprime na vida um lado de negatividade e frustração, de início impede a integração

das diversas dimensões, terminando por simplesmente negar uma delas.

Triunfa a racionalidade empírico-matemática e a dramática experiência do

não-sentido ou a produção da aparência do sentido. Em síntese, a mundivisão

moderna e pós-moderna negam a diversidade, atêm-se um monismo rígido, de

caráter imanente, ocasionando uma mudança na orientação do sentido, uma crise

que fragmenta a vida, o desperdício da abundância da vida. Sem a respiração

vertical da dimensão espiritual, o ser humano sente-se sufocado e por isso grita pela

experiência do sentido da vida.

Em seu ato criador, Deus não se divide para que uma parte de si mesmo

pudesse fazer o mundo. Deus permanece Deus e o mundo pela sua Palavra é

chamado à existência. Como Palavra, chama os seres do nada à existência, e se

manifesta através de sua existência. Sem matéria precedente, Deus dá origem ao

mundo criado.

A Encarnação do Verbo de Deus atesta que Deus não é simplesmente ‘fora

do mundo’, não é um ‘fazedor’ de mundos, indiferente a sua destinação. O amor

que o leva a criar o mundo faz também que suas criaturas não vivam fora dele. Deus

escolhe e vive na história humana.

A Encarnação do Verbo manifesta o Deus cristão que vem da periferia, para

a relacionalidade histórica humana e na participação Trinitária. Deus age ad intra

279 SMOLIN, L., The life of the cosmos, pp. 141-142. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 160: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

160

e ad extra. Ao mesmo tempo, Ele está em si mesmo e fora de si, numa dialética da

identidade e da diferença. Dentro de si mesmo, ad intra, ele vive uma relação

circular do amor eterno da Trindade. Em sua diferença, ad extra, está a relação

histórica dotada de sentido capaz de revelar a identidade do absoluto da existência.

A fé cristã acredita na vida que constantemente gera e descobre novidades,

isto é justamente a derrota da inércia, do eterno retorno. A entrada da liberdade

divina bem como seu diálogo com a liberdade humana na história garante a

permanente abertura da história à novidade criadora de Deus.

A fé cristã é, sobretudo, o evento da eterna jovialidade divina que por amor

cria a vida, faz-se história, humilha-se e vai até o fim. Na esteira teológica de L.

Boff, jovialidade significa o momento da transcendência e da gratuidade que se faz

irrupção dentro do cotidiano e louva a vida280.

O evento da ressurreição insere-se na Encarnação do Filho de Deus. Paulo

está convencido ao afirmar a ressurreição de Jesus, experiência que permanece

imutável em seus escritos. “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,

vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14).

Desde então, toda a história pode ser vista à luz do Ressuscitado. A

ressurreição de Cristo está sempre vinculada ao processo histórico-salvífico. Ela é

a esperança real para toda pessoa que crê. Esta esperança escatológica remete de

um lado para o além da história, por outro, conduz para uma postura de justiça,

amor e vida, tudo isto conferindo sentido para o ser humano. Acontece na história

da humanidade e culmina na plena realização do Reino de Deus. A ressurreição de

Jesus assegura afirmar que a morte não é a última palavra. A palavra última é a vida

integrada, feliz, em todas as direções. Assim o destaca o início de cada um dos

Testamentos da Sagrada Escritura. A criação da vida por Deus, “no princípio” (cf.

Gn 1,1ss), é confirmada na vinda do Filho “Alegra-te” (cf. Lc 1,28).

O reverso seria a posição niilista de não ver sentido nem nos eventos

temporais nem nas relações do ser. A esta posição levanta-se a questão: o niilismo

justifica-se, impõem-se racionalmente? Não representa ele antes um desarvorar-se

diante do sentido proclamado e não vivido? Ora, diante deste quadro, por que

proclamar o não sentido, por que antes não o viver?

280 Cf. BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, p. 12. Id. “A estrutura pascal da existência

humana”, pp. 5-11.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 161: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

161

A fé cristã de nada exige um salto no vazio. Isso corresponderia a uma

doutrina que desprezasse a razão para pregar a existência da fé, do tipo credo quia

absurdum. Tratar do sentido da vida na existência humana remete sempre à

gratuidade e não ao absurdo. Por isso, desenvolvem-se expectativas soteriológicas,

de um Deus que resgata, ao passo que rechaça toda doutrina teológica que

corresponde a um fideísmo, de um deus que deixa acontecer.

A fé cristã é fé em uma Palavra que, gratuitamente, se oferece ao indivíduo

em um discurso articulado e com sentido, que convida a entrar em uma Aliança de

vida, e apresenta livre assentimento ou sua rejeição. Contudo, o convite é incisivo

“Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência” (Dt 30,19).

Nesta perspectiva, a partir da esperança cristã os conhecimentos científicos

na pós-modernidade impelem a reconhecer que a emergência da vida humana está

ligada ao nascimento e ao desenvolvimento do universo. As realidades do cosmos

e da consciência já não podem mais ser expressas de maneira dualista. A

ressurreição de Cristo é o reconhecimento da sua pré-existência como Filho de

Deus, como também um acontecimento terrestre e cósmico. Cristo é, a um tempo,

aquele por quem todas as coisas foram feitas, sem o qual nada do que foi feito se

fez, portanto é ele quem preside o curso da evolução, e aquele em quem, por ser o

mais perfeito humano, todo o processo de criação e evolução atingem seu ápice. A

ressurreição engloba a dimensão histórica e cósmica281.

Neste ponto não há dúvida, diz L. Boff citando D. Pedro Casaldáliga “a

alternativa cristã é essa: ou a vida ou a ressurreição”. A vida é a última palavra. E à

luz da ressurreição o tempo é vivido com esperança viva.

Desde o primeiro ato criador da vida e a promessa de sua eternidade, insere-

se a Palavra-ação da Trindade presente na história. Palavra ao mesmo tempo

promessa e criação. Afirma o futuro e o realiza. Novidade sempre nova.

281 Cf. HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 61-65.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 162: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

162

3.3. Apreender o sentido da vida na teologia de Leonardo Boff

A questão da vida na esteira teológica de Leonardo Boff aponta para um

sentido absoluto e radical de tudo o que é verdadeiramente humano de dentro de

Deus. O olhar de L. Boff é de esperança, por isto o ser humano é sempre visto como

ser de desejo, de busca, de procura, de luta, de fé.

Esta premissa é assegurada pela Ressurreição. “Se alguém está em Cristo, é

nova criatura” (2 Cor 5,17). A fé cristã afirma que a vida é boa, e vale ser bem

vivida, pois nela Jesus permanece presente, através de Seu espírito.

Nas palavras do salmista, o ser humano de ontem e de hoje grita pela vida:

“Sois vós, ó Senhor, o meu Deus!” (Sl 62). A busca pela vida se dá desde a aurora,

em sua própria existência de ser: carne, terra, sede, no leito, na noite, nas vigílias,

porque Deus é seu socorro e sua alegria, sua vitalidade. Todo ser humano anseia

por algo maior, mais profundo, melhor, de forma a dar sentido à própria existência.

A questão do sentido da vida adentra a antropologia e a escatologia. No

pensar a vida como inter-retro-relações há que se perguntar se L. Boff reflete sobre

um sentido da vida que vem a partir de dentro. Ou se se trata de relações que

envolvem a pessoa, mas de maneira extrínseca. Se for possível apreender o sentido

da vida em sua teologia, será necessário examinar e nomear a voz que ecoa dentro

da própria existência humana e do mundo que constitui a voz do sentido da vida.

Duas premissas básicas parecem contemplar o horizonte de sentido da vida

em sua teologia. De um lado, ele parece questionar que a vida tenha sentido.

O determinante de nossa cultura técnica e secular que começou a predominar a

partir do século XVI não reside na preocupação pelo último sentido de tudo. O

homem não se sente sempre e em cada lugar diante de Deus. A numinosidade divina não o envolve como em eras passadas. O mundo deixou de ser transparente

para Deus: a realidade transformada pelo trabalho fala mais do homem, seu artífice,

que de Deus, seu Criador. Deus se evadiu do horizonte da consciência histórica. Embora não seja um ausente, é contudo um grande invisível em nosso mundo

científico-técnico282.

De outro, a vida desencadeadora de sentido.

282 BOFF, L., O destino do homem e do mundo, p. 13.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 163: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

163

Vida é um mistério de espontaneidade, um processo inesgotável de dar e receber,

de assimilar, incorporar e entregar a própria vida em comunhão com outra vida.

Ligada ao fenômeno da vida está a expansão e a presença. Um ser vivo não está aí

como pode estar uma pedra. O ser vivo possui presença, que significa uma intensificação de existência283.

L. Boff argumenta que deve haver sempre uma correlação entre as verdades

da fé e as experiências do ser humano em sua história. A apreensão de sua teologia

deverá levar em conta a novidade última trazida na Revelação de Jesus e a busca

do ser humano pela novidade última.

3.3.1. Jesus, o divino no humano e o humano em Deus

Como falar, de modo inteligível, de relações humanas hoje? E como falar

que em Jesus permanecem íntegras a natureza divina e a natureza humana?284

Esta questão não é recente. Com a morte e ressurreição de Jesus, levantou-

se o problema da correta expressão, a partir de eventos, para novidade tão grandes

como a de que Jesus ressuscitou de entre os mortos, que era o Messias esperado.

Posteriormente, veio a questão do modo correto de se dizer que a natureza divina

em Jesus uniu-se à humana. Em ambas, a resposta tem como partida Deus em sua

revelação na história.

“O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e

profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram só puderam dizer: humano

assim como Jesus só pode ser Deus mesmo”285. L. Boff compreende que essa

283 BOFF, L., A Santíssima Trindade é a melhor comunidade, p. 89. 284 A morte de cruz de Jesus denunciava-o como pretendente a Messias político e religioso pela

opinião pública judaica. Mas, a experiência da Ressurreição pelos discípulos de Jesus obrigou-os a anunciar o mistério que o próprio Deus revelou em Jesus ser o Messias verdadeiro. Séculos depois,

surge a questão a respeito do modo como Jesus, o Filho de Deus, o Ressuscitado dentre os mortos,

se fez homem e assumiu a natureza realmente humana. Assim, as controvérsias cristológicas versam

sobre o modo da união do divino e do humano na pessoa de Cristo. Os primeiros Concílios da Igreja,

particularmente Éfeso (431) e Calcedônia (451), discutiram a respeito da identidade divino-humana

de Cristo. Frente a quem era tentado a exaltar uma dimensão em desvantagem da outra ou de as

dividir em prejuízo da unidade pessoal, afirmou-se que Jesus tem duas naturezas perfeitas, a divina

e a humana, unidas numa única Pessoa divina e, portanto, Maria é verdadeiramente Mãe de Deus.

Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A conclusão expressa ter como ponto de partida:

Deus, em sua revelação na história. 285 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 164: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

164

afirmação advém de uma fé explicitada, que antes fora experimentada na

convivência e no seguimento radical à proposta do Reino, inaugurado em Jesus.

Não se pode desconsiderar a pessoa histórica de Jesus. De fato, ele não é

primeiramente uma ideia e um tema de pregação. Ele é, antes de tudo, um ser

histórico, condicionado e datável. A concretude histórica e a especificidade de Jesus

reluzem a despeito de todas as interpretações que as comunidades primitivas

tenham feito.

Jesus, o homem de Nazaré, não pode ser entendido fora da dimensão da fé.

Não foi sem razão que a comunidade primitiva identificou o Jesus histórico carnal

como o Cristo ressuscitado na glória. A história vem sempre unida com a fé, por

isto deve ser rejeitada toda ideia que reduz Jesus à mera Palavra ou a mero ser

histórico (docetismo). Ao que significa que não há na fé cristã, separação fé-vida.

Quando a Sagrada Escritura diz que a Palavra se fez carne torna-se inteligível que

o “Pai possui realmente um Logos, isto é, a possibilidade de expressar-se

historicamente a si mesmo e em si mesmo para nós, que este Deus é a fidelidade

histórica e, neste sentido, é o Verdadeiro, o Logos”286. A Encarnação é expressão

do amor de um Deus pessoal; do Pai que continuamente comunica sua própria vida.

Este amor se autocomunica como Filho e como Espírito.

A centralidade conferida pelo Cristianismo à existência humana de Jesus

constitui a ousadia de sua proposta à humanidade. Palácio bem expressa a

originalidade revolucionária em Jesus, que não está afirmada em uma ‘doutrina',

mas em “uma maneira de ser homem, um não poder entender a sua experiência

humana fora de uma relação constitutiva com Deus como Pai, que des-centra a sua

vida, tornando-a assim radicalmente filial e fraterna”. Na pessoa de Jesus, o humano

é constituído como fundamentalmente referido a Deus. Sua realização plena não

acontece na autossuficiência de si, mas na expansividade de um “Outro”. Afirmado

por Deus como sujeito livre e responsável, Jesus ilustra a “maneira de ser homem

em Deus”287.

A história de Jesus está imbricada na cristologia. Esta, “não consiste noutra

coisa que passar adiante aquilo que emergiu em Jesus. O que emergiu em Jesus foi

a imediatez do próprio Deus” 288. O sentido de sua vida e história, Jesus o adquire

286 RAHNER, K., Curso Fundamental da Fé, p. 254. 287 PALÁCIO, C. “A originalidade singular do Cristianismo”, pp. 311-339. 288 BOFF, L., Jesus Cristo, Libertador, p. 26.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 165: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

165

nesse voltar-se para uma alteridade, para Alguém com o qual possui familiaridade;

para Deus, a quem chama de Pai.

O primeiro ato do Criador narrado pela Sagrada Escritura fala de um desejo

que vem desde o início da humanidade, evoca uma generosidade desinteressada.

Este ato continua-se no compromisso da pessoa de Jesus Cristo, Palavra-carne de

Deus entre nós, conforme o prólogo de João. A encarnação é o centro da realidade

cristã. Diz-nos, o evangelista, São João que a Palavra de Deus fez-se carne, fez-se

humano. Na existência humana, o divino e o humano em Jesus querem fazer

compreender, que “a Encarnação significa a realização exaustiva e total de uma

possibilidade que Deus colocou pela criação dentro da existência humana”289.

A obra da criação já apresenta, em si mesma, o desejo divino de viver em

íntima relação, comunhão e amizade com o ser humano, num esboço daquilo que

se pode chamar, sem dúvida, de graça inicial. Por causa de seu amor maternal, Deus

cria o ser humano e todas as demais criaturas, e em vista da salvação, como entende

hoje a teologia bíblica290.

A vida de Jesus, compreendidos seus gestos, palavras, atitudes, oração,

revela sua relação com Deus e também, a relação de Deus com a pessoa humana.

Tomando como exemplo o Evangelho de Lucas, aprende-se com Jesus que Deus é

Aquele que desce e cuida do humano (cf. Lc 10), que desce e restaura a alegria (cf.

Lc 24), que acolhe e integra (cf. Lc 7), que procura e reúne os amigos (cf. Lc 15).

Na palavra-ação de Jesus há sinais de que a ação escatológica de Deus já começou

(cf. Lc 4), revelando assim o coração de Deus.

O Deus experimentado e vivido pelo Cristianismo não é somente o Deus transcendente [...] é o Deus que se fez pequeno, que se fez história, esmolou amor,

se esvaziou até a aniquilação, conheceu a saudade, a alegria da amizade, a tristeza

da separação, a esperança e a fé ardentes291.

A encarnação, no dizer de Moran, “é o abrir-se de uma história humana, a

qual estabeleceu uma maneira singular de revelação”292. Revelação, no evento

Jesus, é encontro de Deus com o ser humano, interpelando-o a uma decisão de fé

na história. No humano, Jesus, encontramos Deus. A experiência de Deus para

289 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 222. 290 Cf. DE LA PEÑA, J.L. R., Teologia da criação, pp. 22-51. 291 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 214. 292 MORAN, G. Teologia da Revelação

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 166: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

166

Jesus revela que, “O Deus que em e por Jesus se re-vela é humano. E o homem que

em e por Jesus emerge é divino. Nisso reside o específico da experiência cristã de

Deus e do homem, que é diferente da experiência do judaísmo e do paganismo”293.

No entanto, a imanência não capta toda a transcendência que é Deus. O dom

da libertação de Deus supera todas as expectativas e experiências humanas mais

profundas que dele fazemos. Jesus “não anuncia um sentido particular, político,

econômico, religioso, mas um sentido absoluto que tudo abarca e tudo supera”294.

Na Encarnação Deus se entrega a si mesmo: nisto concentra a revelação em

Jesus Cristo. Entrega de Deus sem reserva, total autonomia da história: ele nasce,

vive como todos, humanos. A história está totalmente nas mãos do ser humano e

Deus aceitou submeter-se a este poder dado ao ser humano, de modo que,

doravante, a ausência de Deus na história não é distanciamento, mas presença

‘aniquilada’295.

Junto com a linguagem do Deus que entrega seu Filho, o Novo Testamento

cunhou também a linguagem do Filho, que se entrega a si mesmo, marcando, assim,

uma radical identidade do homem Jesus com Deus, naquilo, mesmo, que parecia

separá-lo de Deus: em sua entrega pelo Pai.

Nesta inter-relacão da Revelação, Deus se apresenta como um Pai, que

marca contínuos encontros com o homem e a mulher, e estabelece uma contínua

presença; a eles se abre, a eles se doa, chamando-os para uma resposta total,

existencial de todo o seu ser. Assim Deus, mediante o seu diálogo-encontro-dom à

pessoa, e a resposta fé-amor da pessoa a Deus, deseja estabelecer comunhão.

Em Jesus revelou “o que há de mais divino no homem é o que há de mais

humano em Deus” 296. Contra uma possível visão beatífica, Deus assume em Jesus

tudo o que há de realmente humano, menos o pecado: Ele tem fé, reza, festeja,

chora, sofre, perfaz um caminho histórico. A plena divindade de Jesus se revela na

sua plena humanidade.

293 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 12. 294 BOFF, L., Paixão de Cristo, p. 4. 295 Cf. FAUS, J. I. G., Acesso a Jesus. 296 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 93.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 167: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

167

3.3.2. A ontologia do ser humano

O ser humano é histórico, e isto implica e condiciona uma interpretação. Sua

leitura é histórica e interpretativa297. Dentro de suas experiências históricas encontra

o divino. Em sua história, particular e concreta, Deus se manifesta.

No atual contexto social, ‘conectar’ é a nova linguagem. Por ela o ser

humano dá-se a conhecer, manifesta estar vivo. Mas não é isto relação. Relação é

análogo a ligação, encadeamento, vinculação, em suma, tem caráter de

continuidade. Conectar é pontual. A tessitura social pós-moderna retrata uma nova

civilização, um novo modo de viver, isto é, maneira nova de tecer relações consigo

mesmo, com os outros, com o mundo e com Deus. Esta civilização recoloca a

questão do ser humano e que sentido, se há, atribui à vida. A alternância constante

de interesses, de princípios morais, de luta pela existência conjugada com a luta

pelo prazer, pelo poder e pelo ter em proporção de mais, melhor, rápido e frequente,

tem excluído muitas vidas na esteira da existência.

A denominação sociedade líquida298 traz consigo a tenebrosa fragilidade das

relações humanas. Diferentemente de relações humanas que pressupõem

compromisso, agora a matriz é a rede, onde se pode conectar e desconectar a

qualquer momento, e também se pode deletar quando desejar.

O ser humano deixa de ser visto de forma integrada e globalizante, e passa

a uma forma dualista, fragmentada e justaposta. Esta visão confunde a unidade

sagrada do ser humano, e prorroga, indefinidamente, a promessa de ser a resposta

às questões vitais do homem e da mulher. Constata-se uma centralização dos

objetos inanimados, sem haver referência humana, gerando solidão,

individualismo, pessoas fragmentadas, hostis e antissociais.

297 L. Boff adota em sua cristologia o método histórico-crítico. Este método busca “desentranhar o

sentido originário do texto, para além das interpretações posteriores e de nossa própria

compreensão”. BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 6. Há uma continuidade entre Jesus histórico e

Cristo da fé. Tal continuidade reside no fato de que a comunidade primitiva explicitou o que estava

implícito nas palavras, exigências, atitudes e comportamentos de Jesus. RUIZ, J. M. G. “Leonardo

Boff”, p. 166. 298 Cf. BAUMAN, Z., Amor líquido, p. 11.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 168: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

168

Todo o arsenal científico e tecnológico não dá conta de suprir as

necessidades mais profundas de todo ser humano. A realidade da vida para o

homem e a mulher se tornou complexa e sem brilho. Há uma busca ansiosa de

experiência de sentido maior, de vida.

A busca de um profundo sentido da vida, empreendida pelo ser humano,

implica dar significação a uma rede de relações aberta e em evolução. Busca superar

a antropologia moderna tanto do tipo cartesiano, quanto dos moldes do monismo

materialista, e questiona a coisificação da vida humana e a ideia de uma aparente

ausência de Deus.

O ser humano pós-moderno, que parece prescindir de Deus, anseia

fundamentar sua resposta em sua própria humanidade. No entanto, ao colocar a

pergunta pela realização de sua vida, ao mesmo tempo, busca relativizar toda

proposta de um Absoluto. E isso é sintoma de carência de uma resposta coerente.

A pergunta do humano sobre sua realização, é a pergunta sobre o sentido

último de sua vida. Sobre isso fala a Revelação acontecida em Jesus de Nazaré, ou

ainda, a releitura da relação de Iahweh com seu povo. A vida do ser humano não

tem origem em si mesma. Há um Criador, que o traz à existência. Portanto, o ponto

de partida de toda antropologia não é o ser humano, mas Aquele quem o formou do

pó da terra e soprou-lhe nas narinas o sopro da vida (cf. Gn 2,7). Diante da questão

do sentido da vida deve-se colocar a questão da participação do ser humano na vida

do Deus da vida. Por esta participação, torna-se visível naquilo que Jesus chamou

de Reino de Deus. O homem e a mulher ao buscar realizar os valores do Reino,

assumindo sua história de luzes e sombras, buscando viver a conversão e a prática

da justiça, o compromisso no processo de transformação do mundo realizam o

sentido de sua própria existência. O sentido da vida tem alcance cósmico, pois

“ultrapassa a dimensão comunitária e social. Além dela, e incluindo-a, abrem-se

dimensões cósmicas e transcendentes”299.

A fé cristã afirma ser Jesus a presença viva e atual de uma história humana

concreta que, desde a sua particularidade histórica levantou uma pretensão

universal: definir o sentido do humano, desde a sua relação com Deus. Há, em Jesus,

um rosto humano, uma experiência humana acessível e entregue, numa linguagem

humana, comunicada a nós, cujo centro é incontestável, presente e inacessível, ou

299 BLANK, R., Encontrar sentido na vida, p. 92.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 169: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

169

seja, humanamente impenetrável. É precisamente este centro impenetrável que dá

a Jesus a possibilidade de estar em comunicação com todos, de conhecer o coração

das pessoas.

Ninguém é igual a ele. Ninguém conhece o Pai como Ele conhece. É desta maneira

também que ele conhece os homens, na força mesma de sua humanidade. Homem

mais que perfeito que nenhum outro, ele é mais próximo da pessoa humana que nenhuma outra. Jesus, ele mesmo, é a forma interior de tudo aquilo que é o

cristão300.

Será que Deus pode ser objeto de uma experiência?301 No princípio

cartesiano será impossível, visto ter Descartes entendido que nada existe fora da

experiência do sujeito, nenhum mundo, nenhuma experiência possível. Assim, um

Deus que exista no sentido desta objetividade, não existe, pelo menos não existe

como o Deus de Jesus Cristo, pois não há a autocomunicação de Deus.

Santo Irineu, século II, ensina que Jesus se encarnou porque é pura

comunicação, se encarnou porque nos ama, se fez homem para o ser humano

caminhar para Deus. Nesta mesma linha, contemporâneo a nós, Moltmann afirma

que ainda que pela razão moderna não seja permitido falar em experiência objetiva

de Deus, é possível falar em experiência de Deus em conexão com a não-objetiva

auto-experiência humana, pois Deus é objetivamente não-reconhecível e não-

experienciável302.

Deus somente pode ser significativo para o ser humano se emergir de sua

própria experiência histórica, humana. Contudo, experimentar Deus não se reduz a

pensar sobre Deus, mas senti-Lo dentro do coração. Na compreensão de L. Boff, a

experiência de Deus, passa por Deus mesmo. “Deus é absolutamente transcendente

a todas as coisas existentes e possíveis”. Justamente, por ser transcendente na

realidade concreta “a ele nunca vamos nem dele jamais saímos. Sempre estamos

nele. Embora dentro, ele está para além de tudo”303.

300 Jésus, verbete : Experience spirituelle – VILLER, M.; BAUMGARTNER, C.; RAYEZ, A.

Dictionnaire de Spiritualité, tomo IV. 301 L. Boff esclarece que a palavra ‘objeto’ não é uma projeção da razão ou coisificação do humano.

Porque a razão humana separa, para melhor adentrar em sua existência, os objetos são sujeitos que

têm história, interagem em comunicação e pertencem à comunidade cósmica e terrenal. Cf. BOFF,

L., Saber cuidar, p. 94. 302 MOLTMANN, J., O Espírito da vida, p.42 303 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 18. Pela etimologia, experiência abarca: “seja o grego empeiría,

quanto o latim experientia falam-nos de ‘tentar’, ‘comprovar’, ‘assegurar-se’, o que significa

percorrer o objeto em todos os sentidos”. LIMA VAZ, H. C., “A linguagem da experiência de Deus”,

p. 244.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 170: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

170

Falar de um Deus Encarnação, que se comunica continuando sua criação e

faz suas criaturas voltarem para Ele, provém da experiência que Ele nos permite

fazer Dele mesmo304. A pessoa só se experimenta verdadeiramente humana quando

sai de si para encontrar um Absoluto. Sua realização não se encontra no factual,

nem na mera contingência, mas no totalmente utópico e transcendente.

O Concílio Vaticano II declara que na própria ontologia humana está a

relação. Faz parte da sua natureza um modo de ser social que não pode viver nem

desenvolver suas qualidades sem entrar em contato com os outros. Simplesmente

pelo fato de ter sido criado em uma ‘comunidade de pessoas’ o ser humano é

chamado a viver em comunidade, e é na relação com o outro que ele se desenvolve.

Agente ativo, ele não apenas transforma as coisas e a sociedade, mas transforma-se

a si mesmo 305. Tendo sua origem em Deus, o ser humano não é um ser pronto,

realizado, e sim um ser inacabado. Ele age e suas ações influenciam sua vida, e

nelas se realiza também e continua a criação. Nesta continuação, pode fazer

escolhas essenciais, entre vida e morte. De certa forma, escolhe a própria essência.

O ser humano é a possibilidade concreta de Deus ser humano. Isto se

concretizou em Jesus de Nazaré, pelo Pai, por meio do Espírito Santo. Jesus revela

a plenitude do ser humano naquele que é seu original. Desde a origem, Deus não

está fora do ser humano e nem o ser humano fora de Deus.

Em Cristo o ser humano encontra sua total realização, ele é o humano por

excelência. “O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e

profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram só puderam dizer: humano

assim como Jesus só pode ser Deus mesmo”306.

304 Seria inteligente argumentar se estas palavras não estariam tangenciando os limites do

pensamento humano, ou antes, se não está descambando em direção a um velado panteísmo. Não é

a intenção, por isto acredita-se que não seja o caso. Contudo poder-se-ia, talvez, chamar essa forma

de experiência no Deus de Jesus, de panenteísmo, presença visionária de unidade de Deus com o mundo, que não seria herética. Karl Rahner diz, pois: “Panenteísmo. Esta modalidade de pensamento

não quer identificar simplesmente o mundo e Deus (Deus = o Tudo), mas quer enfim compreender

o ‘tudo’ do mundo em’ Deus como modificação e aparência interna dele, se bem que Deus não se

dilua nele. A doutrina duma tal ‘existência’ do mundo em Deus será (e será só então) errônea e

herética, se negar que o mundo foi criado por Deus e que o mundo é diferente de Deus (e não só

Deus do mundo) (DS 3001); de outra forma será um apelo à Ontologia de idear mais exata e mais

profundamente a relação entre o ser absoluto e o ser finito (quer dizer, compreendendo a proporção

de unidade e diferença crescendo na mesma medida)”. RAHNER, K; VORGRIMLER, H.,

Diccionario teologico, p. 515. 305 Cf. CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 12 e 35, p. 154 e 178; respectivamente. 306 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 171: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

171

Tratar da ontologia do ser humano, na ótica da busca do sentido da vida, é

falar do ser de Deus ou da pessoa? Esta questão falseia um caminho e ignora a busca

latente do ser humano, pois situam Deus e a pessoa no mesmo plano, em jogo de

competição. A questão parte do pressuposto de que a ação de Deus faz concorrência

à ação da pessoa. A realidade da fé experimenta que a graça da vida, confere tudo

à pessoa, porque tudo provém de Deus. Tudo o que humaniza, diviniza. A graça e

a correspondência à graça aproximam da divinização definitiva. Tudo o que

diviniza, faz com que homens e mulheres se tornem mais pessoa.

3.3.3. Marcos que geram e nutrem a vida

“Levanta marcos para ti, coloca indicadores de caminho, presta atenção ao

percurso, no caminho por onde caminhaste” (Jr 31,21). Marco supõe orientação,

horizonte. Marcar um lugar, locus, é assinalar importância do sinal, abertura pelo

que vem à frente.

O ‘marco’ Jesus Cristo assinala claramente a superação da exclusão, até ali

vivida apenas na esperança, sempre sufocada na ausência de relações. Jesus se

apresenta como Filho de Deus: em Deus há relação de geração – Pai, Filho, relação

de amor: Pai, Filho, Espírito Santo, relação pericorética – Jesus não se apresenta

como uma proposta de vida paralela a outras. Ele se apresenta como um ser humano

‘nascido de uma mulher’, portanto plenamente humano. Nele a exclusão é superada,

porque vive as relações justas e fraternas, pois que se relaciona como a fonte de

humanização.

Deus cria a pessoa incondicionalmente livre. O Deus experienciado como

pericórese, propõe e espera que os seres humanos escolham a vida. Deus

humildemente se oferece à pessoa querendo ser o sentido de sua vida, isto é, quer

estabelecer com as pessoas uma relação de amor.

Jesus é lugar de cuidado especial com os excluídos, a fim de recuperar o

sentido de relações novas e novas relações, portanto de vida. Por isto ele é o

fundamento de todas as relações vitais. Jesus marca as pessoas que buscam e se

deixam encontrar, com atitudes profundamente humanas. Com ele, o ordinário da

vida, gera e nutre o extraordinário de Deus.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 172: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

172

Se de um lado a pós-modernidade apresenta uma forte separação entre

humano e relação, em sua relativização do sentido da existência do ser humano, por

outro, a perspectiva bíblica tem a relação como pressuposto do princípio ao fim,

para falar da humanização cuidadora e criativa de Deus.

O primeiro povo bíblico ao ver a marca de Deus, constata que deve

caminhar com os olhos voltados para a promessa de Deus, para o passado. Para este

povo, a história passada e presente é interpretada a partir do futuro, do ainda não

acontecido. O futuro será bom, porque no passado Deus caminha com seu povo.

Interessa mais o passado, pois nele aparece a presença graciosa de Deus. Caminha

no presente, pois é nele que se dá a relação com o projeto de Deus. O presente é

momento único, irrepetível, de tomada de decisão. Movido pela Promessa, o futuro

está, ao mesmo tempo, dentro da história e nos Últimos tempos, momento em que

as relações serão recriadas, com um coração novo e na ordem do Espírito de Deus

(cf. Ez 36,25-28).

A vida nova, prometida por Deus em Jesus, é real. É aqui e agora, no tempo

e na história, na trama da vida cotidiana e das estruturas injustas. Ele é a promessa-

cumprimento da existência de um Deus vivo para sempre. É Deus que criou com

amor a vida e não a deixa desvanecer por nada. Jesus, o Cristo, “não é nenhum mito,

mas a realização escatológica da possibilidade fundamental que Deus colocou

dentro da natureza humana”307.

Alguns marcos na experiência de Jesus, a promessa-cumprimento que gera

e nutre a vida contribuirá para ver como, ao mesmo tempo, ele recupera a dignidade

de se ser pessoa humana sendo a plena realização de humanização.

Jesus tem como primeiro critério o ser humano, ficando em segundo plano

a cultura e a lei. Antes que desprezar a Lei, Jesus cuida para que homem e mulher

tenham vida em abundância. “Enquanto muitos movimentos de renovação se

separam do povo, Jesus tem atenção consciente para aqueles que não correspondem

às normas tradicionais e ficam na periferia”308. Ele gera e nutre a fé em um Deus

que é misericórdia.

Jon Sobrino chama a atenção para a singular importância do homem e da

mulher.

307 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 34, 308 THEISSEN, G.; MERZ, A., O Jesus histórico, p. 167.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 173: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

173

A pessoa é mais importante do que todas as coisas e nada do que foi criado pode

ser usado contra ela, nem sequer o que convencionalmente se apresenta como

serviço a Deus. Daí as afirmações cortantes sobre o fato da pessoa ser mais decisiva

do que o sacrifício, inequivocamente superior ao sábado. Deus aparece como

quem não tem direitos sobre a pessoa, mas os direitos seus são os que a

favorecem309.

Desde o início, o marco da missão de Jesus contém gestos de profunda e

inculturada solidariedade humana. São gestos de revisão e de libertação para a vida

de publicanos, doentes, prostitutas, estrangeiros, homens, mulheres.

Merecem atenção as refeições realizadas por Jesus que, quase sempre, eram

com os excluídos da sociedade. Como sinais solenes, elas fazem parte de todas as

culturas. Seu acontecimento é cheio de significados. Assim comenta J. Jeremias:

“no Oriente receber alguém em comunhão de mesa significa até os dias de hoje uma

honra que quer dizer oferta de paz, confiança, fraternidade e perdão; em suma:

comunhão de mesa é comunhão de vida” 310. Portanto, o comer e o beber de Jesus

junto com os pecadores e os pobres estão para além de uma simples refeição: é

alimento que gera e nutre a vida.

Desde a escravidão do Egito até o evento Jesus, a libertação integral do ser

humano está presente. “A importância da vida adquire toda a sua dimensão no tema

da terra prometida. Ela não é apenas um lugar no qual os seres humanos encontram

o alimento cotidiano; ela é também o espaço da sua liberdade e dignidade

pessoal”311.

A teologia de L. Boff caminha na esteira da humanização da pessoa

horizontalizada na comunhão relacional em todas as direções, um movimento a

partir de dentro, com a totalidade da realidade que está nela mesma e com aquela

que a cerca. O ser humano “é invocado a ser totalmente ele mesmo na realização de

todas as capacidades que latejam dentro de sua natureza. Ele é constituído como um

nó de relações voltado para todas as direções, para o mundo, para o outro e para o

Absoluto”312.

Jesus revela ser o lugar de humanização em todas as dimensões. Nele, Deus

ama e abraça a história humana de homens e mulheres, sem criar outra história. A

história de Deus com a humanidade é a história da humanidade. É nela que Jesus é

309 SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 211-218. 310 JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p. 185. 311 GUTIÉRREZ, G., O Deus da vida, p. 42. 312 BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, p. 26.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 174: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

174

Deus presente e ele deseja que a consumação da vida em Deus chegue logo. “Eu

vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49). Ele é

o caminho na história do outro humano que tem fome de cuidados humanos e de

bens materiais. Como o Bom samaritano, ele deixa transparecer o cuidado de Deus-

Trino, que não só se comove, mas se transforma em ajuda eficaz, desce e cura as

feridas (cf. Lc 10,29-37). Sua ação é motivada pela experiência do Pai e, assim,

reconhecimento da dignidade em todo ser humano.

A humanidade do Filho do Homem313 faz atestar que, Jesus vivendo como

humano realiza plenamente a vocação do ser humano, revelando que “humano

assim, só pode ser Deus mesmo”314. Nele, o humano e o divino é sempre,

indissociável, integrados, marcos que geram e nutrem a vida.

É humano reconhecer que a pessoa é um elo da corrente única da vida. O

ser humano é portador de uma história que lhe permite ser sujeito, estruturado ao

redor da busca, do desejo, do encontro, da realização. Envolvido pelo espírito, ele

vive aquele momento da consciência pelo qual se sente parte de um todo, que o faz

sempre aberto ao outro e ao Mistério, capaz de criar e captar significados e valores

e se indagar sobre o sentido último de todo ser humano: Deus. Tudo começa com o

ato criador de Deus e se prolonga com a total e generosa abertura da pessoa. Por

outro lado, a negação da relação ou a busca de relação em uma única direção, pode

ser a morte de sua humanização.

O ser humano carrega em si o dom de transformar suas experiências num

ato de acolhida e afirmação do universo, ato de abertura à alteridade. Ou, pode negar

tudo isto e viver um projeto de rebelião contra o universo, desenvolvendo atos de

fechamento em si. A grandeza da humanidade nada tem a ver com quantidade, mas

com a qualidade de relações que brotam uma nova criação. Enquanto o fechar-se à

luz do sentido da vida resulta na frustração, a pessoa que busca abertura em todas

suas relações e dimensões, prossegue para sua plena realização.

Assim, o céu almejado pela humanidade, não é pensado como realidade pós-

morte. Este céu que fora pensado pela teologia clássica como realidade distante que

313 Jesus aplica a si mesmo ser o Filho do Homem. Encontramos estas expressões em Mc 2,10.27 e

em Mc 8,31. E semelhante à tradição apocalíptica, na medida em que o Filho do Homem é uma

figura que vem do céu no fim dos dias e está imediatamente próximo de Deus, encontramos nos

textos de Mc 13,26 e 14,62. No Filho do Homem há de chegar à plenitude do homem, o segundo

Adão. Nele integram-se presente histórico e futuro escatológico, supera-se a contradição humana

entre indivíduo e gênero, entre imanência e transcendência. 314 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 175: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

175

se manifestaria no porvir, encarna-se no agora, ainda que não totalmente. Na

reflexão do sentido da vida, a busca de relações justas presentifica o céu no seio da

humanidade, manifesta a presença do Reino de Deus.

Pode-se afirmar, então, que a morte é o fim da vida, quando há rompimento

das relações com o outro. A fé cristã professa o sentido radical dentro da vida, na

saída de si mesmo, para ir ao encontro do outro. Na trama da existência, anuncia

que o “Sentido (Logos) não ficou di-fuso e pro-fuso nas coisas, apregoa que o

absoluto Futuro, Deus, se aproximou de nossa existência e morou na carne humana,

quente e mortal, e se chamou Jesus Cristo”315. Num otimismo invencível de total e

exaustiva realização das possibilidades latentes no ser humano – a Ressurreição –

experimenta a morte como plenitude almejada, meta alcançada, verdadeiro

nascimento. Porque ele é o futuro absoluto, afirma-se a vida eterna, onde as relações

também não morrerão.

Na esteira de L. Boff, vida eterna não só significa a duração sem fim, mas a

plenitude da salvação aguardando sua total revelação. A vida eterna já é uma

realidade presente nesta vida e, faz a história caminhar. Ela abre para o sentido de

integração humana mergulhado no Mistério da vida e para horizontes cada vez mais

abertos e corresponsáveis.

A busca pelo sentido da vida compreende a capacidade de compartilhar a

paixão com o outro: sair do seu próprio locus para entrar no universo do outro. De

descentrar-se para encontrar seu centro, de dar para receber, de esvaziar-se para

possuir-se. Então, ser humano é processo permanente de criação, de humanização

a partir das relações. A vida é tecida de relações, enquanto a ausência de relações é

sua morte total: em si mesma é contradição. Em sua pneumatologia, Moltmann

afirma, “Experiência de comunhão é experiência de vida, pois toda vida consiste na

mútua troca de meios de vida e de energias, e na mútua participação”316.

O Mistério do Deus-Trino é o paradigma de toda relação. Ele é o eixo que

une, liga, integra o ser humano. Nasce assim uma compreensão holística,

descentrada do homem e da mulher, e uma redefinição de sua missão, no contexto

da Aliança bíblica e da paz. Nele, a pessoa encontra seu ser verdadeiro em um viver-

com, de modo que experimenta que o fundamental não é o eu, mas o eu-tu, que em

sua profundidade; é ressonância do Tu divino.

315 BOFF, L., Vida para além da morte, p. 22. 316 MOLTMANN, J., O espírito da vida, p. 208.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 176: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

176

A humanidade de Jesus provoca a pessoa a viver a experiência fundante em

suas relações, viver aquilo que tem importância e definitivamente conta. Aprende

que tudo é dádiva de Deus e busca, diariamente, a boa disposição de passar adiante

essas dádivas divinas para outras pessoas317.

O caminho da humanização é, como Jesus, viver a encarnação na história

humana, assumindo seu projeto e os imprevistos decorrentes. Temos, por exemplo,

a vida dos oito monges cirtencienses na Nigéria que expressam este caminho da

Encarnação, da vida real feita cinema. As palavras do monge-prior, Christian,

pressentindo ser a última refeição juntos, deixa entrever que já na encarnação do

Filho do Homem, todas as realidades e tempos se encontram em perfeita harmonia.

A vida encontra seu verdadeiro sentido, pois encontrou o Sentido que aponta a

origem e o futuro.

Depois, encontramos salvação na realização de nossas tarefas. A cozinha, o jardim,

as orações, os sinos. Dia após dia, tivemos que resistir à violência. E, dia após dia,

eu... acho que cada um de nós descobriu a que Jesus Cristo nos convida. É... para nascer. Nossa identidade como homens vai de nascimento a nascimento. E de

nascimento em nascimento, vamos acabar trazendo para o nosso mundo o filho de

Deus que nós somos. A Encarnação, para nós é permitir a realidade filial de Jesus

para se encarnar em nossa humanidade. O mistério da Encarnação continua naquilo que vamos viver. Desta forma, o que já vivemos aqui tem raiz, assim como o que

vamos viver no futuro318.

O desejo de ser pessoa humana – humanização – fala de um desejo do

Infinito e de integração, de busca de sentido. Em sua existência, experimenta a

dinâmica de viver sua imanência, interpelado a viver na transcendência.

Trata-se de uma assertiva de L. Boff, segundo a qual, a realidade de Jesus

com a realidade de todo ser humano, preservando cada pessoa a seu modo, estão de

tal maneira entrelaçadas que se tornam uma única vocação.

A derradeira vocação humana é ser assumido hipostaticamente por Deus, ao modo

de Jesus, mas com particularidade própria de cada pessoa. O homem Jesus é Filho

de Deus porque havia nele a possibilidade de ser assumido pelo Filho de Deus. Ele

317 Cf. BOFF, L., Teologia do cativeiro e da libertação, p. 88. 318 Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2010, “Homens e Deuses” retrata

o percurso de monges, da Ordem Trapista, que atuavam junto a uma comunidade no interior da

Argélia, durante os meses que precederam seu assassinato em 1996. Título original: Des hommes et

des dieux.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 177: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

177

é irmão nosso. Somos portadores da mesma possibilidade que, um dia, será atuada

e realizada. Ele é o primeiro entre muitos irmãos e irmãs319.

O autor chama a atenção para a vocação do ser humano. Desde sua origem,

há relação: Criador-criatura, chamado em Jesus Cristo a continuar em sua própria

história, como ele, a viver sua humanização. A vocação de Jesus Cristo, de gerar e

nutrir a vida sendo transparentemente humano é a vocação de todo ser humano.

L. Boff proporciona uma nova consciência humana na esteira de um novo

ethos civilizacional, no horizonte de uma espiritualidade integradora de inter-

relações de sentido em todas as direções. Sua perspectiva emerge como importante

reflexão na busca do ser humano pelo sentido da vida, pois no Ressuscitado, todas

as pessoas, sem exceção, são chamadas de volta ao Jardim (cf. Gn 2,15), a fim de

recriar relações com Deus, com o outro, consigo mesmo e com a terra.

3.4. Conclusão

Na esteira de Leonardo Boff há uma pluralidade e variedade de pensadores

e uma grande quantidade de pessoas em contato com sua teologia. Pode-se dizer

que o pensamento de L. Boff suscita e encoraja pensar a vida. Sua força

gravitacional explica a longa lista de acadêmicos a estudar seu pensamento: o

compromisso de inclusão e de cuidado com a globalidade da vida.

Naturalmente ele não gera unanimidade e nem poderia ser assim. Muitas

pessoas aprovam seu pensamento, outras o reprovam abertamente, outras ainda

questionam suas afirmações arguindo a legitimidade do seu pensar teológico

cristão. A tenacidade de L. Boff se mostra, por exemplo, em sua crescente

publicação e coerência de pensamento. Nele encontra-se a preocupação com a

unidade do todo, desde sua primeira obra. A fidelidade aos princípios e às escolhas

fundamentais capacita-o a exercer a resiliência.

Na primeira parte, a história teológica de L. Boff demonstra uma busca de

unidade, sem despersonalização, entre Deus, o ser humano e o cosmos. Poder-se-ia

dizer, uma teimosia, em não recuar em suas concepções. Seu lugar histórico e

319 BOFF, L., O destino do homem e do mundo, p. 29. Este pensamento é importante para o autor, e

mesmo ele o retoma em várias de suas obras.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 178: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

178

eclesial pode ser sintetizado em brevíssimas cinco palavras: velho, cristão,

franciscano, teólogo e homem. A amplidão de sua obra dificulta sintetizar seu

pensamento teológico, e diálogo com as ciências. É certamente impossível 320

enumerar todos os seus interlocutores, sendo tão numerosas as publicações a seu

respeito. Suas palavras acessíveis à realidade das pessoas e sua teologia otimista e

firme impulsionam a continuar a pesquisa, malgrado as limitações da pesquisadora.

Ressalta-se, contudo, que em L. Boff tem-se uma teologia desafiadora a tomar

consciência que todas as pessoas, todos os seres, estão inter-relacionados. Urge uma

solidariedade fundamentada no dom partilhado de Deus, em Jesus para nós, como

caminho de integração.

L. Boff situa sua teologia dentro das coordenadas do Concílio Vaticano II.

Teólogo da Libertação, seu pensar revela aspiração a uma ruptura com a lógica do

sistema opressor, excludente. Sob o paradigma da opressão/libertação, a Teologia

da Libertação visa a práxis a favor dos e com os pobres, a favor da e com a terra.

Sua teologia busca aplicar seus princípios a uma reflexão conjugada com uma ação,

no interior de uma Igreja que nasce – eclesiogênese – do encontro com um Deus

encarnado, que desce até a terra das classes e culturas populares.

A segunda parte, tratou de sua concepção teológica da vida em seu sentido.

Constatou-se haver uma estruturação densa da compreensão da vida. A Sagrada

Escritura é a fonte primeira da experiência judeu-cristã. Dela deflagra-se toda

reflexão teológica. Dentre muitas outras, a pesquisa deu lugar a cinco concepções

da vida em seu sentido na esteira teológica do autor em pesquisa: o pensar

evolutivo, a presença da dualidade, o ser humano como nós de relações, uma

compreensão inclusiva da vida e evolução e revolução no pensar a vida.

Constatou-se que L. Boff provoca a falar da vida com sentido, para crescer

na consciência da existência do ser humano e do que ele é chamado a ser. O

comprometimento com a vida resulta na experiência que tudo co-existe e inter-

existe com Deus e as criaturas. A vida de um, não é ato isolado, mas tudo está

320 A impossibilidade de enumerar todos os interlocutores ou sintetizar sua teologia advém pela razão

do autor continuar em grande atividade. Leonardo Boff continua sua produção intelectual, sua

agenda é bastante ocupada com viagens pelo Brasil e exterior, a fim de debater seu pensamento.

Além dos livros que estão sendo escritos, ele escreve Artigos para os principais Jornais, Revistas e

Sites. Está sintonizado com as redes sociais (Página na Internet, Facebook, Twitter. Seu Site pode

ser lido em três Idiomas: Português, Espanhol e Inglês). Têm-se ainda sua participação em

Congressos, Simpósios, Colóquios, Conferências, Painel, Debates, Encontros, Mesa redonda,

Outorga de títulos, Salão, Semana, Seminário, Workshops, Feiras, Palestra Fóruns. E os

pesquisadores, críticos, comentadores, etc. de seu pensamento.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 179: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

179

interligado. Isto é facilmente verificado, mesmo fora do labor do cientista. Basta

um gesto ou uma palavra para sentir as vibrações em si mesmo e ao redor de si.

Mas para isso, a pessoa não pode querer ignorar sua constituição humana.

Verificou ser válido falar da vida em seu sentido, porque em seu interior

presencia o absoluto e radical de tudo o que é verdadeiramente humano em Deus.

A esperança marca o olhar de L. Boff. Sob esse olhar, ele constata que as

preocupações na pós-modernidade não são tanto com o sentido último de tudo, mas

com a sobrevivência pura e simples, sem considerar as potencialidades presente no

universo. Entretanto, seu olhar não se fecha nesta visão. Ele chama a atenção para

ver a vida enquanto mistério de comunhão com o Absoluto. A existência humana

fala a partir da consciência de uma presença que a habita.

Por fim, pareceu importante adentrar com mais agudeza o seu pensamento

teológico, agora de forma mais centrada no sentido da vida. Em sua cristologia

pensada na América Latina, L. Boff dá primazia ao antropológico321. Jesus é a

Palavra de Deus, a promessa-cumprimento. Na esteira deste teólogo, Jesus Cristo é

o ecce homo, a Palavra de Deus, Aquele que em sua própria pessoa quer ser a

resposta de Deus à vida humana. Ele, não só afirma ser o futuro, mas o realiza.

A Palavra dá vida ao mundo. E na Palavra-carne de Deus antecipa o

cumprimento da promessa feita na história humana. Doravante, toda situação ou

pessoa pode ter a esperança, que nem a morte é a palavra final, Ele desceu até os

infernos (cf. Credo apostólico). A Ressurreição é a palavra última. Em Jesus

ressuscitado sempre se pode ter esperança de uma vida com sentido.

A pós-modernidade traz consigo uma pretensão de justificar o sujeito por si

mesmo, a partir de uma leitura da realidade, que absolutiza a abordagem científica

e leva ao descrédito aquilo que não é comprovado cientificamente. Ela coloca sob

suspeita toda experiência humana, esvaziando a noção de absoluto, na medida em

que apregoa que tudo é questão de escolhas individuais e provisórias. Disso tem

resultado uma incapacidade humana em responder satisfatoriamente pelo sentido

que verdadeiramente busca. São alguns indicadores da existência humana de sua

insuficiência de responder, por si mesmo, a busca de sentido. Isolado em si, o

indivíduo abdica seu ser pessoa, capaz de diálogo. Fechado fenece. Fechado, perde-

se. Não ouve, não fala. Monologa.

321 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 56. L. Boff dedica uma parte deste livro para tratar da

Cristologia desde a América Latina.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 180: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

180

A Revelação em Jesus horizontaliza a uma fé na vida em perspectiva cada

vez mais de futuro, de profundidade e envolvente. Em sua existência histórica, o

ser humano experimenta dentro de si o desejo de mais vida, de mais sentido. À luz

da fé cristã, a existência humana ganha uma nova criação e uma salvação a partir

de Cristo. Assim, se une a protologia e escatologia, o começo e o fim.

Toda a vida tem um significado à luz do projeto divino. Nada que se passa

no mundo se torna sem-sentido, pois em Cristo todas as realidades foram visitadas,

tudo está incluído no plano da salvação. Jesus apresenta e quer ser em cada ser

humano o sentido que dá sentido à própria vida. Este sentido, ao contrário do

monólogo pós-moderno está justamente no encontro da Palavra feita carne, isto é,

no diálogo tão profundo, que a palavra se faz vida.

Contudo, ainda não basta. Para não ficar no campo da mera teoria, deve-se

verificar com mais profundidade, o porquê de as relações serem caminho de sentido

da vida. Haverá uma unidade, que concentre e irradie, de forma a se passar da

pessoa à sociedade, no respeito à diferença e na solidariedade integrada para com

todo ser humano, solidariedade que vem de Deus e alcança as demais criaturas?

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 181: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano

Que é o ser humano para que dele te ocupes com tanta ternura? O salmista

contempla a criação e pergunta em louvação. A partir de Jesus, o ser humano

encontra o Filho e pergunta também repleto de êxtase e admiração: Que é o ser

humano para que te faças um como ele, humano? Quem é este homem que mesmo

excluído e fracassado, entrega a própria vida?

A abordagem da criação, dentro de uma chave de leitura, de uma existência

relacional possibilita uma leitura da vida originada não no acaso ou na necessidade,

mas em um Deus que é comunhão de amor, como também transparece a relação de

Deus com cada criatura em particular. Questionando este mistério de tanta

profundidade, de oculta e tão íntima presença, Agostinho confessa o Deus sumo-

bem; a vida de toda vida.

Perguntei pelo meu Deus à massa do universo, e respondeu-me: ‘não sou eu; mas

foi ele quem me criou’. Mas, não se manifesta esta beleza a todos os que possuem

sentidos perfeitos? Porque não fala a todos do mesmo modo? [...] aparecendo a ambos do mesmo modo, para um é muda e para outro fala. Ou antes, fala a todos,

mas somente a entendem aqueles que comparam a voz vinda de fora com a verdade

interior322.

Em contrapartida, Jacques Monod, biólogo e Prêmio Nobel francês (1965),

afirma que o aparecimento da vida é um acaso, isto é, a vida é fruto de uma série

de causalidades independentes e sem correlação. “O acaso está na fonte de toda

novidade, de toda criação na biosfera. O acaso puro, o só acaso, liberdade absoluta,

mas cega, na raiz mesma do prodigioso edifício da evolução”. Neste modo de ver,

o ser humano está sozinho no universo, e seu surgimento deu-se por acaso. Nega-

se qualquer ideia de um Deus criador e atuante no edifício da vida323.

O valor da vida não está em oposição à morte, como se devesse cuidar da

vida só porque há a morte. Também seria fragmentar a vida o compartimentar e

322 AGOSTINHO, S. Confissões. (Livro X, n. 6), pp. 243-244. 323 Cf. MONOD, J. O acaso e a necessidade, p. 130.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 182: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

182

atribuir valores hierárquicos entre uma vida e outra. No trilho desta ideia, acredita-

se que “é só o mal da morte, que pressupõe que a vida tenha valor e nos direciona

para explicar este valor, mas também discriminações cotidianas entre vidas de

diferentes tipos”324. Uma ideia filosófica como esta propicia exaltar a vida somente

porque há a morte e criar dicotomia que só faz fragmentar a vida, relativizando seu

valor, sendo que justamente é o objetivo desta pesquisa, tratar da vida com sentido.

Ademais, a experiência bíblica compreende que a morte já está dentro da vida, sem

oposição, mas juntas. Para a teologia cristã, a morte demarca o fim desta vida, e a

torna definitiva. A existência humana deixa explícito que a vida, de cada pessoa,

tem importância única. Eis o fundamento da visão otimista do cristão frente à morte

é a Ressurreição de Jesus. A história tem uma meta: a salvação. Este é o objeto

próprio da Escatologia cristã: ao que crê, é permitido esperar325.

O humano chegou a Deus, porque Deus chegou primeiro ao humano. E Deus

chegou ao humano porque havia feito, ele Deus mesmo, uma abertura infinita nele.

A vida estando assentada no cuidado compreende a experiência do encontro do

humano com o divino.

O determinante na experiência bíblico-teológica é a Aliança de Deus com

seu povo. Na origem da vida já vigora a criação de relações. Talvez se possa dizer

que as relações são o ponto de partida do escritor bíblico. Isso torna-se mais

explícito no relato da criação do ser humano. Nele verifica-se uma mudança de

pessoa e número gramaticais que assinala o ser de Deus, e a orientação e identidade

da existência humana. Nesta mudança transparece todo o comprometimento da

comunidade divina: “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem” (Gn 1,26). E

no decorrer de toda a história, essa fala manifesta-se compromisso eterno em

fidelidade e ternura. Deus modela, cria e realiza a criação. Isto é, Deus cria o homem

e a mulher à sua imagem; à imagem de Deus!

Homem e mulher são criados à imagem de Deus que se faz conhecer pela

pessoa do Verbo eterno do Pai. Jesus ensina a viver em verdade as relações da qual

foram modelados o ser humano. “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito

de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra” (Col.

1, 15-16a).

324 The shorter Routledge encyclopedia of philosophy, p. 577. Tradução minha. 325 Consoante a este pensamento, ver também: NOCKE, F.-J., “Escatologia”, p.401. RATZINGER,

J. Escatologia. BLANK, J. R., Escatologia da pessoa.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 183: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

183

De igual modo que no Antigo, no Novo Testamento a vida humana é

recolocada em seu percurso de humanização enquanto Aliança com Deus. Entre

outras, pode-se citar a narrativa da cura por Jesus em pleno sábado (cf. Mc 3,1-6).

O Evangelista dá uma interpretação que tem seu ponto de partida no significado de

que todos os dias devem ceder à centralidade de sua origem no Deus da vida

humana e dedicar-se este tempo a promoção de relações humanizadas.

Jesus faz-se encontro com o ser humano como simplesmente humano. Deus

se faz humano, faz morada na história porque gratuitamente e radicalmente ama.

Esse é o ‘interesse’ do Filho de Deus: estabelecer relação com a humanidade.

A Encarnação significa, primeiramente, que Deus estabeleceu morada entre

nós. Jesus não é estranho à história humana. Esta experiência releva

substancialmente o ser humano, principalmente os que sofrem. Não há espaço ou

tempo que possa reter sua presença, nem mesmo a morte. A humanização é a vida

de Deus. Para L. Boff, a encarnação é o abrir-se de uma história humana.

A partir de Jesus, a experiência trinitária abre-se ao ser humano a

possibilidade de experimentar-se criado, filho/filha no Filho chamado a viver em

relações integradas, para assim, encontrar o sentido da vida em plenitude. De fato,

o relato bíblico do Gênesis afirma o ser humano criado à imagem de Deus, e o Novo

Testamento o afirma criado no Espírito à imagem de Jesus Cristo, verdadeira

imagem de Deus.

L. Boff sinaliza para o paradigma de humanização: a Trindade. A relação

de comunhão e liberdade do Pai, do Filho e do Espírito continua na Encarnação do

Filho. A encarnação do Filho fala do amor sem limites e liberdade sem fronteiras.

A fé cristã recusa que o absoluto anule o ser humano. Pelo contrário, ela reafirma a

relação dialógica de Deus com o ser humano. Torna-se um dos equívocos, no

cristianismo, tentar reafirmar este absoluto, exclusivamente, pela via racional da

filosofia. De maneira exemplar, Descartes com seu método racionalista faz o

divórcio entre o pensamento e o ser. Ele argumenta que é no sujeito que se funda o

conhecimento, tanto no fundamento, quanto no método como também a ciência. Na

fundamentação do método, não tem relevância se o sujeito é fruto ou não da criação

divina. Para este filósofo, a existência de uma razão natural é um fato, demonstrado

pela matemática, e a crença em Deus é um ato de fé que pode ser deduzido

racionalmente. O real é real para o sujeito e não em si mesmo. Entretanto, para a fé

cristã, o absoluto apresenta-se quenoticamente ao diálogo. É por esta via que se

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 184: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

184

pode primeiramente dialogar com Deus e a partir desta experiência, apresentá-lo à

humanidade. Deus, que se deu conhecer, de modo especial em Jesus Cristo, dá-se a

conhecer hoje pelos batizados. O caminho para ele são as relações justas e fraternas.

A fundamentação da criação em um Deus-relação de comunhão revela Deus

essencialmente em diálogo em con-vocação à participação do ser humano, e pro-

vocação de ser sentido de toda busca e plena vida. Muito simplesmente, homem e

mulher, na busca de vida que tenha sentido, experimentam o mistério da Trindade.

Naturalmente, o Deus-relação é o mesmo Deus. Na Criação ele se apresenta como

relação de dom da vida. Na Encarnação como a relação do amor e, finalmente na

Morte e Ressurreição de Jesus, a radicalidade da relação até o fim.

Dentro desta dinâmica-personalizante da Revelação, Deus se apresenta

como um Pai, que marca contínuos encontros com a mulher e o homem, e com eles

estabelece uma presença, a eles se abre, a eles se doa, chamando-os para uma

resposta total, existencial de todo o seu ser. Deus deseja assim estabelecer uma

comunhão, mediante o seu diálogo-encontro-dom ao ser humano e a resposta livre-

relacional-amor da pessoa a Deus.

Na esteira de L. Boff, o ser humano realiza seu sentido humano de existir

quando se mantém continuamente em sua panrelacionalidade, com o universo, com

as pessoas, com o seu próprio coração e com Deus. Ele surge na verdade como um

nó de relações voltado para todas as direções. Deste dinamismo de relações, emerge

sua integração ou desintegração na proporção da qualidade de suas inter-retro-

relações. A existência do ser humano, como pessoa integrada encontra seu sentido

de ser ao encontrar o outro numa relação de alteridade e de cuidado. A força

criadora da vida não se empalidece no labirinto de propostas artificiais. A vida, a

nossa vida, mesmo frágil e ferida é soberana. Pode sempre reintegrar-se,

transfigurar-se, vestir-se para uma festa. A vida parece-se a uma dança, corpos

criados para entrelaçarem-se em compassos de horizontalidade, em força e afetos

no qual o que é vivo é tudo aquilo que existe para brilhar.

No intuito de falar da busca humana do sentido da vida na esteira do teólogo

L. Boff nunca há um ponto final, antes uma conclusão em aberto. Afinal como

concluir um ser em participação no mistério Trino-Deus? Nesta direção, cada tema

torna-se uma proposta, sincera, frágil, embora, de ser uma venturosa busca humana

pelo sentido da vida.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 185: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

185

A busca humana pelo sentido da vida, fala de um desejo de ser pessoa

humana – humanização – fala de um desejo do Infinito e de liberdade, de uma busca

de sentido e de força, de uma confiança e alegria maiores, de modo a ultrapassar

toda a imanência e transcender todas as pretensões. A gratuidade de Deus, a

grandeza de seu amor, sempre liberta, potencializa e impulsiona homem e mulher

para além de si mesmo. Eis, então, a beleza de um sólido e fecundo percurso de

humanização: pelas vias da relação pessoal com os outros, com as coisas, consigo

mesmo, em íntima comunhão com o Deus-Trino, promover a efusão da Vida. Todas

as forças se encontrem, todas as energias confluam para um centro único de vida e

ação. Corpo e espírito, terra e céu, criatura e Criador, ser humano e Deus, aliados,

interagidos, definitivamente unidos.

Para falar do ser humano torna-se mais propício utilizar uma linguagem

simbólica. Mas diante da exigência aqui de uma linguagem discursiva, e na

tentativa de uma aproximação à sua dignidade incomensurável, utilizar-se-ão

expressões que mais são concepções do que definições. É grande o alcance,

portanto, das palavras, orientação, identidade, participação, construção, dinamismo,

para dizer da busca em liberdade pelo sentido da vida e de um Deus que o criou-

amou em liberdade. Por este princípio, fica registrado ainda que no decorrer e ao

final de tudo, deve-se deixar a palavra em aberto, porque o ser humano ainda está

em gênese, em processo de expansão.

De forma breve, a evolução cosmológica é expressão da sabedoria divina,

que tudo dispõe para que a vida seja possível. A espécie homo sapiens sapiens, se

realmente for sapiens, aprenderá a ler nesta possibilidade de ser sempre mais, aliada

a sua semelhança com o Deus criador, um chamado para aprimorar, mais que

aprimorar, construir mesmo a pessoa humana e o mundo, como dizia Michel Quoist.

Com a Inteligência que recebeu, aplicada aos recursos que recebeu, mas

principalmente com sua capacidade de amar, porque acima de tudo, Deus é amor,

cabe ao ser humano fazer do mundo o espaço humano da comunicação, fazer do

mundo um lugar onde todos tenham vida e vida em plenitude de sentido em todas

as direções. A teologia de L. Boff é convite a contemplar a vida no existencial da

esperança aberta para o futuro realizado de Jesus Cristo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 186: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

186

4.1. O ser humano: partícipe e construtor do sentido da vida

As diferentes acepções de busca e de sentido, muitas das vezes consoantes

umas com as outras, são consideradas postulado para a teologia. Na perspectiva da

teologia moral, por exemplo, o direito à vida humana e o dever de conservá-la tem

como primeiro pressuposto o desenvolver do respeito pelo outro. Na perspectiva da

psicologia social, o conhecimento do ser pode ser visto pelo ângulo das relações,

do não isolamento. Na perspectiva da biologia, ou seja, dos fenômenos

considerados próprios da vida evidencia-se seu caráter de autoregulação. Na

perspectiva da filosofia o conhecer o ser é designado pelo amor à sabedoria. Esta

por sua vez, define-se como a busca do fundamento e do sentido da realidade, mais

do que mera solução de uma equação lógico-racional. O amor à sabedoria visa

encontrar mais que a própria sabedoria, visa encontrar a vida sábia, isto é, o bem.

A Bioética coloca em sua própria definição o estudo sistemático do comportamento

analisado à luz dos valores e dos princípios morais e não meramente lógicos, por

buscar o bem e o verdadeiro, e não apenas aquilo que é exato. Tais perspectivas,

entre outras, manifestam a importância das ciências para com o sentido da vida. Por

ela, a ciência é convocada a trafegar sempre num horizonte de ser significativo, ao

mesmo tempo, sustentável e justificável.

Conforme explicitado anteriormente, muito se tem dito sobre sentido da

vida326. Existe, bem à vista das pessoas, uma pluralidade de propostas oferecendo-

se como a resposta em invólucros frequentemente sedutores. A proposta desta

pesquisa exige uma maior explicitação no aspecto bíblico-teológico, onde a vida é

entendida como a participação na vida de Deus. A expectativa é que seu aspecto

especificamente teológico revele novas dimensões que incluirão a possibilidade de

326 Podem ser citadas algumas boas obras que tratam diretamente da temática do sentido da vida,

com foco antropológico: O sentido da vida, de Dom Valfredo Tepe (1961). Na busca do lugar onde

o sentido da vida é vivido, Adolphe Gesché constrói sua reflexão em O sentido (2005). Marcadas

pela experiência do holocausto no campo de concentração de Auschwitz, existem várias obras de

Viktor E. Frankl. Em busca de sentido (1991); Psicoterapia e sentido da vida (2003); Um sentido

para a vida (2005). E na leitura deste psicanalista, Em busca do sentido da vida de (2013), de

Augusto Cury. Uma pequena e densa obra Encontrar sentido na vida: propostas filosóficas, do

escatólogo Renold Blank (2008). Uma reflexão para catequistas sobre seus valores e o sentido da

existência, na obra O sentido da vida na catequese, de Isabel Cristina A. Siqueira (2014). E a obra

inacabada, O livro do sentido, de Clodovis Boff (2014).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 187: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

187

integração de todas as outras327. Ela denuncia o pensar hiperespecializado, que

reduz a vida ao biológico ou ao físico, e dissemina a crença de que o corte arbitrário

operado sobre o real seja o próprio real, sendo na verdade, ocasião de desintegração

da vida.

Esta visão delimita e dificulta a existência, assim como sua reflexão sobre

ela, pois se prende ao método da separação ou da oposição, além de justificar o

sofrimento ou a insignificância da vida. Se há construção do coletivo, ele se dá só

em razão dos objetivos semelhantes. Surge a era do vazio328, no dizer de

Lipovetsky, do desconectado, da morte, da exsurgência do sem-sentido da vida e o

desenvolvimento de seus processos.

A lógica da existência, adverte L. Boff, é a lógica do complexo. Na

realidade, a existência presencia uma complexidade na vida. Complexo, não na

compreensão de obscuro, mas no aspecto da inter-relacionalidade intrínseco à vida,

que estabelece ligações em todas as direções. A história da existência, afirma este

teólogo, segue um processo de inter-co-existência, em que “um precisa do outro,

vive com o outro, através do outro, para o outro. Todos se complementam. Ninguém

fica fora da rede de relações includentes e envolventes. Ninguém apenas existe.

327 Há uma discussão bastante válida sobre as epistemologias racionalistas e empiristas que têm

fragmentado o saber e multiplicado o número de ciências e disciplinas, tornando-se verdadeiras ilhas

epistemológicas. No século XX, inicia-se uma crítica à hiperespecialização e, ao mesmo tempo,

constrói-se uma proposta de diálogo, denominada multidisciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar. Contudo sabe-se, que não há um consenso, na definição da hiperespecialização.

Esta pesquisa não almeja fazer uma justaposição entre as ciências, nem verificar o grau de relações

entre as disciplinas, por ex. Teologia e Física, Filosofia e Teologia. No entanto, o termo ‘trans’ talvez

fosse o mais aproximativo, por dizer respeito ao que está entre, através e além de toda disciplina e

visa à compreensão do mundo e a unidade do conhecimento (cf. SOMMEMAN, A. Inter ou

transdisciplinaridade?, p. 43). O saber fragmentado provoca a cegueira no que diz respeito às inter-

relações. À custa de só saber separar, o pensar dita as normas reduzindo a compreensão do todo e

das partes a fragmentos desconectados, perde de vista que o todo está na parte, que está no todo,

prevalece a insensibilidade ao paradoxo inseparável do pensar o uno e o múltiplo. Grande contributo

à superação das estruturas deterministas e fragmentadas do saber tem sido dada por Edgar Morin. O

pensar complexo, ele escreve: “não visa a ‘totalidade’ no sentido em que este termo substitui uma simplificação atomizante pela simplificação globalizante, sucedendo a redução ao todo à redução às

partes.” (MORIN, E., O método II, p. 401). Vale consultar sua clássica obra em seis volumes:

Método. I. A natureza da natureza. II. A vida da vida. III. O conhecimento do conhecimento. IV. As

ideias. V. A humanidade da humanidade. VI. Ética. A complexidade da cultura atual e a experiência

decepcionante da fragmentação dos saberes tem feito emergir a busca pela unidade, a busca pela

originalidade/origem de tudo. A ótica da antropologia teológica, e de toda teologia, não é de oferecer

enunciados científicos, e enumerar possíveis paralelos ou criar questionamentos, senão,

impulsionada pelo esforço do pensar humano a partir da experiência de Deus, tudo compreender sob

a ótica do divino, isto é, do Sentido. 328 Lipovetsky usa da ideia de ‘vazio’ para situar o momento atual de individualismo presente na

sociedade humana, intitulado em sua obra. LIPOVETSKY, G., A era do vazio.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 188: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

188

Todos inter-existem e co-existem”329. Por esta compreensão, os saberes não

competem por um espaço, antes, se completam, complementam-se e se enriquecem.

A existência é uma busca de harmonia, isto é, a vida segue um processo

permanente e aberto em busca de um equilíbrio, no dinamismo do jogo de caos e

ordem; isto é, de cosmogênese e de antropogênese. O universo está em evolução.

Sua história perpassada de transformações, nascimentos e mortes, “não significa

apenas um desenvolvimento ou um crescimento, mas uma autêntica e verdadeira

evolução”330.

Depreende-se que a vida está ainda em processo de nascimento,

horizontalizada para o infinito, traspassada e entrecortada por inúmeras relações,

inventando conexões, em suma, reforçando a complexidade. Ela é um processo de

vida interior, de busca de unificação de si mesmo a partir de dentro. Desconsiderar

a unidade, a diversidade, o complexo, que segundo sua etimologia compreende o

tecer em conjunto, propicia uma disparidade de leituras, desconexas, que tolhem,

de uma ou outra maneira, diretamente ou não a pessoa e sua busca pelo sentido.

Discursos há exemplificadores deste modo de compreender dispersamente

a realidade, influenciando, em graus diferentes, a vida. Pelo viés da teologia, pode-

se dar uma explicação pragmática, coisificada Por exemplo, se alguém mostra Jesus

como caminho, logo, como sentido da vida, faz uma interpretação que não é de per

si errônea. Contudo, ela corre o risco de uma leitura monocromática e retilínea, que

faria da proposta de Jesus uma espécie de regra farisaica, um neo-legalismo, algo

que definitivamente ele não queria. Ler o Evangelho como conjunto de regras

possui um agravamento que toca o ato criador de Deus: a liberdade. Não se trata de

um adendo. Antes, a liberdade principia e perpassa toda a existência humana.

No contexto da Sagrada Escritura não se encontra uma definição explícita

para a liberdade. Contudo, nela, entrevê-se que a criatura humana é dotada da

capacidade de responder de maneira livre às intenções de Deus, de quem provém a

329 BOFF, L., O despertar da águia, p. 18. Este modo de pensar – complexo – acompanha L. Boff

em várias de suas obras, complexidade que não é dispersiva, mas possui um centro unificador de

toda realidade. Em 1972, em sua segunda obra publicada, ele escreve a atitude de Jesus capaz de ver

o complexo, ao passo que vai ao essencial da vida. Cf. BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 93.

Posto que, Jesus Cristo, só ele, é o ser infinitamente complexo da criação. Cf. Id., Encarnação, p.

35. Complexo, não é estaticização, mas historicidade e unificação da imanência e transcendência.

Cf. Id., Experimentar Deus, pp. 23-29. Pensamento que traz uma marca de T. de Chardin. De T. de

Chardin ele afirma ter sido marcado por duas fundamentais experiências: Cristo é o “Centro orgânico

de todo o Cosmos” e, a segunda, explicita a busca verdadeira de toda ciência, a saber, a

“Multiplicidade e Unidade”. Cf. Id., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 43. 330 TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 158. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 189: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

189

vida. Ele a dá gratuitamente e concede a opção de escolher se se quer ou não viver.

“Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida,

para que vivas tu e a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua

voz e permanecendo unido a ele” (Dt 30,15.19-20).

Decorre que optar pela vida é escolher Deus, criador e garante da vida, em

suma, é viver na liberdade. A liberdade é ato que provém de Deus, como bem

esclarece Gutiérrez, “Deus não é libertador porque liberta; ele liberta porque é

libertador” 331, assim ele quer afirmar que a atitude primeira é de Deus e lembrar

que Deus é Palavra que dá sentido à sua ação.

Deus se manifesta como o Deus libertador, o Deus vivente, isto é, o Deus

da vida: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo

10,10). O referencial do ser humano livre é transcendente: o Deus autor e criador

da vida. A importância da libertação para a vida, não se encerra em fazer dela a

pauta que orienta as atitudes e comportamentos. Não se trata de um mero poder ou

não poder fazer. É muito mais o espaço de dignidade pessoal. Na vida plena, a

libertação integral do ser humano está presente. A liberdade é intrínseca, quando é

livre o ato da criação: a criação de uma arte, a criação de si mesmo. O programa da

vida de Jesus, pormenorizado por Lucas, é a liberdade, semelhante ao Êxodo no

Antigo Testamento, uma marcha em direção a mais vida. Jesus é enviado pelo

Espírito para libertar, publicando em sua palavra-ação o ano da graça do Senhor. O

tempo da liberdade provinda de Deus é o ‘hoje’ da história (cf. Lc 4,21).

O sentido da vida fundamenta-se na liberdade, pois se trata de uma livre e

exigente busca do sentido a ser dado à existência humana. Liberdade é, para o ser

humano, o lugar primigênio do sentido, posto que ela é consentimento para com a

vida, portanto é, consentimento ao ser e ao bem. Em sentido oposto, a liberdade

pode ser o lugar do sem-sentido, quando há escolha pelo não-ser. A escolha pelo

sem-sentido, assim como a indistinção entre o ser e o nada no horizonte último da

inteligência e da vontade, torna evidente a liberdade intrínseca da sua existência, e

lança o ser humano na falta de orientação. A liberdade torna-se lugar do sem-sentido

quando sua única orientação é a imanência do mundo. Nesta experiência do sem-

sentido, na dialética entre razão e liberdade, tem-se a inversão das posições da

transcendência com a imanência que lança o humano do ser para a aparência do

331 GUTIÉRREZ, G., O Deus da vida, p. 24.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 190: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

190

sentido e o conduz à experiência dramática de uma contradição entre o seu ser

histórico, finito, e seu desejo ontológico de ser ele próprio criador do sentido da

vida. Esta inversão, ou seja, esta diretiva para a imanência, segundo Lima Vaz,

caracteriza a virada antropocêntrica da cultura moderna, produzindo uma crise de

sentido e de orientação em meio à abundância332.

A reflexão teológica requer a comunhão com o Mistério Trino. A postura

antropológica inclui a plena liberdade do oferecer-se que contempla e do dar-se do

Mistério contemplado. É a experiência humana como reflexo e manifestação de

Deus Trino. “Ser de Deus e por Deus define o ser-criatura. Saber-se criatura,

reconhecer a Causa, experimentar-se vindo e advindo de Alguém, chamá-lo de Pai

e sentir-se filho, funda uma relação pessoal no horizonte da liberdade”333.

Visto assim, a realização desse movimento antropológico com relação ao

Mistério somente é possível em um ser humano dotado de liberdade. No ato do

Deus criador manifesta-se a liberdade como identidade de Deus e da pessoa

humana. A liberdade de Deus é afirmada em sua não dependência com relação a

qualquer realidade criada. Deus cria a vida sem outro pressuposto que seu amor

gratuito. A liberdade humana é afirmada no interior de sua contingência e

criaturalidade, como quem “possui uma verdade e consistência própria”, em última

instância, a liberdade334. Trata-se da experiência da gratuidade da existência

humana, sua não necessidade, e nela da presença do Absoluto, como fundamento e

horizonte da existência humana. Assim, a experiência humana adensa-se, isto é,

ganha sentido, como manifestação de um Amor infinitamente gratuito.

332 Cf. LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 12. Este filósofo

entende que a inversão da transcendência para a imanência é efetivada na pós-modernidade, visto

que em filósofos modernos, como “Descartes a Hegel, as linhas do universo racional continuam a

ordenar-se em torno do polo da transcendência, não obstante o interdito kantiano lançado sobre o

em-si do Absoluto”. Contudo, em Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, filósofos posteriores aos

modernos, “a relação de transcendência como constitutiva do homem é denunciada como projeção,

alienação, ressentimento ou ilusão”. LIMA VAZ, H. C., Antropologia filosófica, v.II, p. 115. Nesta

aferição de uma razão calculadora, organizadora de tudo, a vida humana quer se sustentar no

imanentismo sem indicação à transcendência. Permanece a questão, que não se cala, do porquê de a vida buscar interações com outros seres, de não se resignar com a realidade apresentada, da

persistência de pensadores na formulação que fundamenta todo conhecimento. O imanentismo

ademais, torna suspensa a questão da origem do desejo humano de encontrar o princípio norteador

de tudo, de desejar vida com sentido integrador das relações. Conforme visto no primeiro capítulo,

a crise de sentido sinaliza para o desperdício de vida, no horizonte do Mistério do Deus-Trino que

tudo centra e irradia vida em abundância para todos. 333 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 229. 334 LADARIA, L. F., Antropología Teológica, pp. 53-59. Sobre o tema criação e evolução no

horizonte teológico, há também outras boas obras. PEDRO TRIGO. Creación e historia en el

proceso de liberación. FREIRE-MAIA, N. Criação e evolução. SCHMITZ-MOORMANN, K.

Teología de la creación de um mundo em evolución. TAVARES, S. S. Teologia da criação.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 191: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

191

Paralela a um pragmatismo pelo viés teológico, pode-se falar também de

uma fé fundamentada numa teoria fixista, impessoal, para falar de um ser, ou um

ente, que se apresenta como o sentido da vida. Não aparece a dimensão pessoal da

fé, nem das relações. Esta proposta afirma que todas as espécies criadas por um

poder divino, que as fez, cada uma com a perfeição que lhe é própria, seriam como

que fechadas em si mesma. É uma leitura de cunho isolacionista, que induz à

renúncia ao diálogo, não desconhece a diversidade dos seres, mas ignora seu caráter

processual e dificulta a interação com as descobertas e progressos científicos. O

fixismo traz a imagem de um Deus que teria criado, apartando-se em seguida de

sua obra ou do relojoeiro que cria e, ocasionalmente, precisa injetar marcha à sua

criação. E desconsidera a jovialidade eterna de um Pai que cria com um amor único,

bem como a espontaneidade permanente do Espírito que renova constantemente

todas as coisas e a entrega absoluta e dinâmica do Filho, que tudo faz, como fruto

do amor do Deus-Trino.

A fé na jovialidade do Pai, na espontaneidade do Espírito e na dinâmica

criadora do Filho existia já nos primeiros séculos do cristianismo. A história da

revelação bíblica do mistério de Deus-Trino, narra a experiência desde a criação

que se revela na história do ser humano, história da salvação. Da criação do mundo

e do ser humano, Deus sai do seu silêncio para se revelar e dá início a um processo

de salvação que passa por toda a história da humanidade que é a mesma história da

salvação e terá sua plenitude, sua consumação no futuro escatológico. Segundo

Garcia Rubio,

O mesmo Deus que intervém em certos acontecimentos da história de indivíduos e do povo de Israel para manifestar o seu desígnio salvífico, cria o mundo e o homem.

Criação e salvação são dois aspectos reveladores do amor de Deus. E, como

consequência, a união entre a fé no Deus salvador e a fé no Deus criador é realizada

mediante uma relação de integração-inclusão, sendo, assim, rejeitada a visão dicotômica335.

Uma apresentação sempre atualizada da obra conjunta da Trindade pode ser

encontrada no escritor dos primeiros séculos, Santo Irineu, em sua feliz expressão:

“as duas mãos do Pai”. Em contexto cristológico, explicita que a criação do mundo

é obra do Pai que desde sempre está com o Filho e com o Espírito, e a realiza com

335 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p.117.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 192: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

192

soberana liberdade336. A afirmação joanina de que “Tudo foi feito por ele, e sem ele

nada foi feito”, que aparece também na Carta aos Colossenses, “Nele foram criadas

todas as coisas”, é feita proclamação de fé no Credo niceno-constantinopolitano,

“por ele todas as coisas foram feitas”, e atesta a relação de reciprocidade e

complementaridade entre o Filho e o Espírito, em termos de mútua cooperação na

obra histórica da salvação.

Oposta à rigidez da compreensão da busca de Deus, que se pretende

acabada, apresenta-se uma fé no fluxo permanente da vida, vista como permanente

vir a ser. De seu lado, pode tornar-se uma postura problemática, visto que a

tendência à variedade, ao sem limites, descentraria o sentido, para produzir, no

máximo, sentidos e sentidos de valor temporário, fragmentário.

Contudo, há que ressaltar que no interior deste processo humano, cujo risco

é ser unilateral, ora pelo fixismo, ora pela permanente fluidez, o eterno-permanente-

absoluto, o Deus-Trino torna a comunidade humana participante da natureza divina.

A Sagrada Escritura pressupõe que a Palavra e a ação reveladoras de Deus se

dirijam a uma pessoa bem determinada, “como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,

que eles estejam um em nós [...]. Eu neles e tu em mim” (Jo 17,21). A proposta que

nasce do Evangelho, nem é fixista, nem dispersiva, é uma caminhada de

participação. Sem a participação ativa e livre da pessoa humana, toda descoberta e

progresso seria fruto de um encanto mágico ou um mito de faz-de-contas. Portanto,

a busca do sentido da vida urge a consideração do complexo da vida. Caso contrário,

ela será somente uma leitura, extrínseca, impessoal e a-histórica.

O centro da fé cristã não se fundamenta num sentido de imitação exterior,

mas numa relação interpessoal e íntima. Conforme sublinha Garcia Rubio, o

encontro com Deus é experiência de humanização a partir de um amor gratuito e

imenso. O ser humano, já no Antigo Testamento, é chamado por Deus a receber o

dom gratuito da salvação. A experiência da salvação, dom de Deus, é a experiência

primeira e mais fundamental337.

A experiência teológica supõe duas presenças de gratuidade. Segundo L.

Boff, trata-se da iniciativa amorosa e gratuita na vida de Deus, ainda que Deus não

se encerre nesta experiência. Significa que Deus é o centro e o horizonte de toda a

vida humana, ele está presente em tudo, de forma que “a Ele nunca vamos. Dele

336 Cf. FOLCH GOMES, C. Antologia dos santos padres, pp. 115-135. 337 cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, pp.118-144.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 193: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

193

nunca saímos. Sempre estamos nele. Embora dentro, Ele está para além de tudo”338.

Isso significa participação no mistério de Cristo, divino e humano, por uma

identificação de vida. Paulo é convicto ao afirmar o centro da vida cristã, “Eu vivo,

mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

Todos, homens e mulheres, participam da natureza divina, participam de

Deus por sua vontade. O chamado à participação manifesta a relação do Criador

com sua criatura. “Pelo seu divino ato de vida, foram dadas as preciosas e

grandíssimas promessas, a fim de que assim vos tornásseis participantes da natureza

divina” (2Pd 1,4).

Participar de Deus constitui oferecimento permanente para todas as pessoas

humanas de “poder ter aquilo que em Deus é ser: é amar radicalmente, autodoar-se

permanentemente, comungar abertamente com todas as coisas”339. Nas palavras do

Concílio Vaticano II, a participação é gesto da bondade e sabedoria de Deus, que

ao revelar-se a si mesmo, permite ao ser humano conhecer o mistério de sua

vontade. Assim, todas as pessoas, “por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm

acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina”340.

L. Boff conhece as diversas interpretações desta realidade fundamental do

cristianismo. Sabe que as buscas, ao longo dos séculos e as diferentes linguagens

teológicas do Ocidente e do Oriente, para explicar a participação na natureza divina,

são um esforço árduo, pois trata da autocomunicação do Deus-Trino à história

humana; “no fundo, querem exprimir sempre a mesma e única experiência da

proximidade do homem com Deus e de Deus com o homem”341.

Bem claro, a participação da natureza de Deus, dá-se tão somente como

filiação adotiva. Somente Jesus Cristo é o Filho unigênito de Deus; enquanto o

homem e a mulher o são por comunhão, por graça e adoção (Cf. Gl 4,5; Ef 1,5; Rm

8,15-23), mas ainda assim, a experiência de filho/filha radica para si a experiência

da natureza divina, do Absoluto. A experiência de ser filho no Filho “é afirmar a

absoluta destinação e vocação humana: ser em Deus, com Deus, para Deus, de

Deus, participante da mesma natureza divina”342.

338 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 18. 339 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 217. 340 CONCÍLIO VATICANO II., “Dei Verbum”, n. 2, p. 122. 341 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 220. 342 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 224.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 194: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

194

Esta experiência de construção e participação, por sua vez, se dá na era do

Espírito, isto é, por iniciativa divina, numa realidade dinâmica que move a pessoa

a sair de si, ser um nó de relações, e amar como Deus, que realiza esta abertura de

forma amorosamente eterna. É uma experiência da Graça, num processo de

personalização sendo para o outro; traduzida como participação da natureza de

Deus.

Para João da Cruz, sendo Deus por natureza o Amor, há uma participação

total da vida no Amado, uma entrega por inteiro de ambas as partes. Assim ele diz

em seu cântico espiritual, na união com Deus “a alma é feita toda divina, e se torna

Deus por participação, tanto quanto é possível nesta vida”343. Na mesma linha, L.

Boff explicita que no futuro de Jesus Cristo “possuímos a mesma possibilidade que

ele para sermos assumidos por Deus e sermos um-com-Ele”344. O amor de Deus-

Trino é Dom recebido de seu próprio Amor unificante.

Nesta direção, se Deus é homem no Logos e continua a sê-lo por toda a

eternidade, então o humano constitui-se eternamente no mistério de Deus, como

aquele que por toda a eternidade participa do mistério do seu fundamento. Isso não

se dá no aspecto de que o ser humano seja por si mesmo a plenitude infinita do

mistério, mas porque sua essência e referência a essa plenitude são resposta ao

próprio Deus, e o ser humano “na verdade é aquele que participa do infinito mistério

de Deus”345.

A fé no Deus-Trino é resposta ao chamado de participar em seu mistério,

chamado a viver na abertura de relações, consequência da participação nesse amor.

Depreende-se que o amor é o meio de compreender o mistério divino presente na

história, pois Deus modelou o ser humano no seu eterno movimento do amor. Crer

no Mistério revelado e participar da Trindade na história humana é Salvação. Pela

encarnação do Filho, a pessoa humana é associada ao mistério de sua relação com

o Pai, introduzida na intimidade de Deus e de seu amor, como Aquele que se torna

"intimior intimo meo”346, expressa Santo Agostinho.

A introdução na totalidade do mistério cristão do todo da existência da

pessoa, manifesta, no fundo, a entrega absoluta e sem reservas ao Pai. Na entrega

343 JOÃO DA CRUZ, S., Cântico espiritual p. 157. 344 BOFF, L., O destino do homem e do mundo. Ensaio sobre a vocação humana. Petrópolis, Vozes,

1976, p. 29. 345 RAHNER, K., Curso Fundamental da Fé, p. 268. 346 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro III, 6), p. 72.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 195: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

195

de Jesus ao Pai, ele se entrega aos homens e mulheres; em um único ato de entrega

de si mesmo. Para anunciar o mistério salvador de Cristo, o Documento de Puebla

propõe que a evangelização seja “um chamado à participação na comunhão

trinitária”347.

É preciso acrescentar, que a participação não é apesar da história humana de

fidelidade e pecado, não está só para além da história, mas também na história. Na

aceitação humana, ela é construção do sentido orientador de vida. Contempla “a

quotidianidade do amor, com sua obscura mas profunda fidelidade, com os

obstáculos a serem obviados, com as purificações acrisoladoras que a constante

atenção, o vigilante cuidado e a fina sensibilidade do amor postulam”348.

A reflexão do ser humano como participante e co-construtor do sentido da

vida adentra na relação vital do Deus que vem a nós (cf. Êx 3) e que é o mesmo

Deus que está no meio de nós (Cf. Lc 17). Deus é essencialmente amor que se

comunica e estabelece comunhão, em abertura mútua, reciprocidade de relações

para dentro e para fora de si mesmo. Seu Mistério envolve toda criatura. O ser

humano grita por relações igualitárias e pela comunicação. Nesta intuição, torna-se

bastante propício e vital para sua integração, veicular este projeto de uma

mensagem de encontro na alteridade.

É consensual dizer que o pós-moderno abandonou a visão mítica do mundo

bíblico de um Deus soberano que virá sobre nuvens do céu, de uma escatologia

rigorosamente transcendente, em que a esperança consiste no vigilante aguardo do

Deus que vem, restando a todos os homens e mulheres apenas a adoração e

submissão a esta soberania e à realeza deste Deus (cf. Dn 7,27).

Daí que a comparação, mais promissora, para entender a via do

conhecimento de Deus que nos chama a participar de seu mistério é a via da

experiência349. Este não é um caminho oposto ao racionalismo científico, mas supõe

a razão conjugada com o cuidado e o afeto, essenciais para a continuidade da vida.

347 PUEBLA., A Evangelização no Presente e no futuro da América Latina, n. 218, p. 103. 348 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 218. 349 E de grande importância para a questão do sentido da vida a categoria experiência. Por vezes, ela

é confundida com experimento. Uma ação na prática, uma tentativa visando acertar, pode ser

chamada de experimento. De maior alcance e profundidade, a experiência adentra e deixa marcas

na vida. Pelo viés teológico cristão, ela imprime caráter divino e libertador. Ainda que possa haver

outros caminhos para se chegar a Deus, afirma-se, contudo, que ela constitui uma abordagem

significativa e comunicativa de vida. A experiência cristã é comunicação da “sabedoria de Deus no

mistério” (cf. 1Cor 2,7), dada pelo Espírito, que escuta as profundezas de Deus, e é por este Espírito

faz conhecer os dons de Deus.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 196: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

196

A visão restrita da vida provoca sua fragmentação e desintegração. Mas a

inércia não é sua única perspectiva. A encarnação do Filho de Deus manifesta um

apelo permanente à reintegração, inter-relacionando o processo histórico humano

com sua meta portadora do sentido verdadeiro, à busca histórica ao encontro

escatológico do sentido do Reino que é a expressão máxima do sentido da vida. Em

sua realidade mais profunda, a Encarnação manifesta a amorosa auto-comunicação

de Deus a toda existência que a cada existente confere dignidade inaudita. A vitória

da vida é construção inseparável e complementar de relações inclusivas e abertas.

O ser humano que procura uma visão do todo terá de admitir necessariamente: É

verdade que encontramos no mundo uma matemática objetivada, mas encontramos

nele também o milagre inaudito e inexplicável da beleza, ou melhor dizendo: no mundo existem processos que se apresentam ao espírito atento do ser humano na

forma do belo, obrigando-o a reconhecer que o matemático que construiu esses

processos desenvolveu uma incrível fantasia criativa350.

Para além de uma visão unilateral, que não considera o todo da realidade, L.

Boff considera que este sujeito, ainda que racionalista em suas relações com o

mundo, “se mostra sensível para o Mistério do Amor, para o sentido radical do

viver, e pode acolher o inacessível à discursividade da razão”351. A experiência

supera o mero conceito. Nas capacidades mais elevadas do ser humano está a

experiência do belo, do bom e do bem. Há consonância entre plenitude da Presença

e profundidade da experiência. Nesta mesma compreensão, Martín Velasco

sublinha que a experiência de Deus não só comporta as virtudes, como também gera

as energias para a vida ética352. Implica ruptura com modelos ideológicos e

redutores da vida. No exercício da ética fundamental, na escolha de opções justas,

na flexibilidade das opções filosóficas, vislumbra-se, neste mesmo exercício, a

busca de sentido.

A vida, com tudo que existe, é o espaço onde o ser humano experimenta o

ser de Deus. Então, cuidar das criaturas é cuidar de Deus, no hoje da história, porque

a nova criação está se gestando agora353. Nesta esteira, cosmologia e mística

convivem harmoniosamente. O conhecimento do cosmos e a experiência mística,

cada uma, presencia uma realidade que ultrapassa todo saber, uma realidade plena

350 RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, pp. 115-116. 351 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 122. 352 Cf. VELASCO, J. M., El fenómeno místico, p. 461. 353 Cf. BOFF, Lina., “Da Protologia à Escatologia”, pp. 122-123.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 197: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

197

prenhe de relações em todas as direções, num inter-retro-relacionamento de tudo

com o todo existente. Duplamente, cosmologia e mística denunciam o paradigma

de dominação fundamentado no antropocentrismo, que mais revela um contra

sentido do universo. A dominação espelha a crise do sentido da vida que se promove

na estratificação e a solidão entre os seres.

No conhecimento de Deus fica dispensado os verbos compreender,

demonstrar, provar, apropriar-se; para conjugar simplesmente o encantar-se, ou

apaixonar-se, próprio da experiência mística. Existência e realidade não constituem

termos separados entre si.

Na expressão evangélica “vereis o Filho do Homem”, repetida por Jesus, há

uma proposta de plenitude do homem, no segundo Adão, no qual integram-se o

presente histórico e o futuro escatológico. Supera-se uma visão que anseia por

salientar a contradição no âmbito da história, entre imanência e transcendência,

tempo e espírito, dimensão vertical e horizontal, ascendente e descendente, semente

e vida. A vida mesma, quando afirmada radicalmente e assumida com toda a

responsabilidade, mostra a dimensão horizontal e vertical, a imanência e a

transcendência. Quando captadas juntas estas dimensões, abre-se o ser humano para

a transparência de Deus354.

Na encarnação do Filho, Deus assume o passado e o futuro. Ela é a

visibilidade humana de Deus, tão bem expressa por Santo Irineu em sua bonita

expressão “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de

Deus”355. A vida do ser humano consiste, pois na visão de Deus revelada em Cristo.

A amorosidade divina introduz o humano na vida trinitária. Desde a presença do

Espírito que toca toda a terra (Cf. Gn 1,2), passando pelo Deus, Abba, que desce

até nós (Cf. Êx 3), e culminando na encarnação do Filho na história humana, a

experiência cristã possibilita, mais uma vez, afirmar que, a imanência da Trindade

não é um dado intelectual, um saber mecânico. Sobretudo é um encontro, um

encantamento recíproco, que supõe saberes, mas muito mais, supõe sabores. A

existência de Deus não depende da argumentação, mas da admiração, do querer que

o outro seja mais, porque ele é bom. O ser humano quer que Deus seja mais: mais

louvado, mais amado, mais conhecido. Deus quer que o ser humano seja mais

354 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 23-29. 355 FOLCH GOMES, C., Antologia dos santos padres, p. 129

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 198: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

198

amoroso, mais participativo, mais humano, mais divino; participação ativa a existir

e a construir a existência na história.

A fé no Deus que está no meio de nós, afirma que o Criador não é um Deus

distante, mas um amante do humano. O abundante amor da Trindade na Encarnação

do Filho extrapola um ato de solidariedade de fazer morada na história. A expressão

máxima desse amor, diz Gonzáles Faus, é ter assumido e se identificado com a lei

de nossa história, pela qual o profeta é morto e o justo é rejeitado356.

A Palavra-ação Jesus traz um projeto participativo para a humanidade: uma

relacionalidade de pessoas humanas orientadora para a vida, fundamentada na

libertação integral. A palavra da verticalidade e transcendência de Deus, entra em

ação na realização da horizontalidade e imanência, na história e dentro do sentido

de fraternidade e solidariedade universais357. E este é um projeto radical, pois atinge

as raízes mesmas do ser humano, no horizonte último e definitivo de Deus.

Numa perspectiva que busca captar o fundamental, a participação e a

construção no projeto da criação de Deus, assumidas existencialmente pelo ser

humano, torna-se um princípio a partir do qual se deve analisar o sentido da vida.

Na inspiração de São João da Cruz, L. Boff diz que o ser humano, chamado a

participar do mistério de Deus-Trino, tem a capacidade de “perguntar por um

Sentido e entrar em comunhão com Ele e ser um com Ele”358. O ser humano dialoga

com Deus à maneira de relações de construção e participação.

Na esteira teológica de Leonardo Boff, as relações, com os outros, consigo

mesmo, com Deus e com as coisas são apresentadas em chave de integração. A

compreensão de Jesus não é sectária. Ao contrário, ele vê o ser humano na sua raiz,

na sua condição de criatura de Deus. Do princípio antropológico de estabelecer

relações, Jesus revela uma ontologia que confere sentido à vida, sempre destinada

à comunhão e participação de vida com as coisas, com os outros e com Deus.

356 Cf. GONZÁLES FAUS, J. I. Acesso a Jesus, p. 153. 357 É de se notar, no entanto, que Deus entra em ação não no momento histórico da encarnação, no

presépio, mas já a criação é ato salvífico da Trindade. 358 BOFF, L., Saber cuidar, p. 35.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 199: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

199

4.2. A relação enquanto realidade construtora de vida

Vale lembrar que o ponto de partida desta pesquisa é o ser humano, em seu

impulso pelas relações enquanto lugar de integração de sua busca pelo sentido da

própria vida. O ser humano continuamente participa, produz e critica a história. O

homem e a mulher vivem sua humanidade carregada do desejo infinito do bem

experienciado em relações éticas e significativas. No sujeito humano encontra-se,

pois, uma busca pela Vida. Esta busca concretiza-se na forma de espera, de

planejamento e projetos para o futuro. Nesta perspectiva, o ser humano é projeção

para um sempre mais, para a surpresa, para o que está fora de sua pré-visão, para o

ainda-não. Isso indica que ele não possui o centro em si mesmo, mas o tem dentro

de si (Deus). Em suma, o ser humano que sempre vive em relação, que, portanto, é

relativo, é também relacional, só enquanto tal se entende. E, na medida em que

busca o outro polo desta relação, ele caminha para o absoluto.

Enquanto construtora da vida, a relação não procede da necessidade. A

necessidade entende-se aqui por um mundo fechado, autoreferencial. Por outro

lado, ainda se fala de “necessidade da salvação”, fala-se da carência. Ela é ainda

nostalgia, eterno retorno. A necessidade é o próprio retorno, a busca de seu ser pelo

si mesmo numa visão de mundo, onde a carência impulsiona a busca de um

semelhante a si, em vista da realização definitiva da vida.

Uma grave ameaça a este ethos é o dualismo profundo, ou negação, quer do

próprio ser, quer do ser do outro como simultaneamente diferente e igual a si. O

impulso exagerado de fazer do “eu” o alvo de todos os investimentos leva a crer

que “não importa que a relação seja destruída, contanto que o indivíduo seja levado

a absorver-se em si próprio”359. O indivíduo assenhora-se do direito de ser si mesmo

em detrimento das relações. Esta escolha unilateral banaliza a vida, saindo do

mundo das relações, passando ao não mundo do relativismo, no qual o movimento

autoorientado, dirige-se para lugar nenhum.

No paradoxo da busca humana de integração com o todo, preconizada pelo

existencialismo de Kierkegaard, a subjetividade toma o lugar da verdade. A

359 LIPOVETZKY, G., A era do vazio, p. 53.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 200: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

200

existência vincula-se, então, ao desenvolvimento da subjetividade, não enquanto

sujeito de uma identidade pessoal e única, mas daquela que quer ser construída a

partir só de fins particulares, esquecendo assim, completamente, o outro. O

indivíduo afirma-se absoluto, no significado de sua possibilidade de ser. Na

realidade, termina por negar qualquer forma de ética, pois a ética sempre pressupõe

um outro.

A ética é religação, no dizer de Morin360. Ao perceber o outro ser como

também sujeito portador de uma identidade, o ser humano partilha simultaneamente

sua diferença e sua similitude. O outro não apenas é percebido como outro sujeito

monádico, como alguém que exerce influência recíproca, de um na identidade do

outro. A religação inclui o outro. Se é permitido dizê-lo: exclui toda exclusão. Ela

reclama a escuta atenta e cuidadosa do outro, no movimento da compaixão. Esta

intersubjetividade descobre a capacidade de contínua autotranscedência, isto é,

movimento de saída de si em direção ao outro, em amplitude que sugere o infinito.

A ousadia de sair de si, gratuitamente, para ir ao outro, não se reduz a um

movimento encerrado em duas direções, do seu ser e ao ser do outro sujeito e vice-

versa. O encontro de duas carências seria um encontro carente. Mas a carência do

outro, aparece à pessoa, exatamente, como o habitáculo do absolutamente Outro,

por sua exigência de uma resposta em fidelidade. A relação entre seu ser e o ser do

outro, percebe-se, não pode ser avaliada apenas pelo lado da carência, e seu mérito

sugere Outro que lhe é ulterior.

Assim a relação não é da ordem da funcionalidade nem de um simples

personagem, mas da presença efetiva de alguém que existe em si mesmo, de uma

realidade individual, de uma realidade que tem algo de inexaurível, de

incomunicável, mas que é também pessoal e comunicável. Nesta relação com o

Outro, a pessoa se exprime como um sujeito que diz “eu” em relação a um “tu”. À

luz desta presença discerne a origem de toda ética/religação. Mais precisamente,

experimenta a presença do Outro que interpela e concede sentido à relação em todas

as direções. Com efeito, todo projeto humano de sentido mostra-se à consciência

como uma realização parcial de sentido. Tudo o que é parcial ou carente ou se

conforma em ser assim ou clama pela completude. Ora, a fé cristã diz justamente

que esta completude está no encontro com o outro, que remete ao totalmente Outro.

360 Cf. MORIN, E., O método VI, pp. 103-108.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 201: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

201

A essa relação do Outro que origina e une o movimento ético, Lévinas denomina

de ideia do Infinito.

A ética aparece no momento em que, no relacionamento, a pessoa percebe

que deve lidar com o outro não balizado por sua carência, mas por sua integridade.

Ética é relação de alteridade absoluta imprimindo no ser a ideia de Infinito,

conforme o filósofo Lévinas. A relação com o outro, é, num primeiro momento,

ética por ser marcada de profundo respeito e acolhida da pessoa humana. O rosto é

alteridade absoluta, revelação, lugar da epifania, já que é apelo para o eu361. No

rosto, o outro se deixa ver em sua frágil e vulnerável humanidade, na qual se

manifesta um apelo que suscita a transcendência de um imperativo essencialmente

ético. No encontro do rosto do outro manifesta-se a presença do Infinito, o caminho

do infinito que fundamenta o eu.

A relação do Infinito com o ser humano tanto historiciza quanto transcende

o desejo humano de controlar e impor limites. Esta intencionalidade na relação

humana, esclarece Lévinas, significa “não ter tempo para volver sobre si, não poder

furtar-se à responsabilidade, não ter meandros de interioridade onde recolher-se,

marchar para frente sem consideração por si”362. Na realidade, trata-se de uma

relação ética que configura sentido, no ser relação. O ser humano é um buscador de

sentidos, por isso mesmo busca relacionar-se em todas as direções; busca sair de si

mesmo, sem abandonar o próprio ser, impulsionado pelo desejo infinito de sua

integração com o todo da vida. Somente nesta dinâmica o ser humano ganha sua

verdadeira ex-istência, posto que ele é “um ser que ex-iste voltado para fora (ex),

em diálogo e em comunhão com o outro ou com o mundo”363. O vocábulo

‘existência’, em sua raiz, indica-nos que o humano é um ser que existe porque ‘está

aí’, sendo na realidade uma presença e não mero elemento. E ‘está fora’ próprio da

condição de estar em comunicação, em comunhão com outros; dom partilhado

mutuamente.

O fundamento de sua ex-istência, segundo L. Boff é o fio de ouro da história

do Deus-Trino apreendido pela teologia.

361 O rosto do outro homem é exterioridade e exprime a transcendência que subverte o egoísmo do

eu. A exigência de uma ética absoluta funda-se na ideia de Infinito. O pensamento de Lévinas

representa uma alternativa às éticas empirista e racionalista, ao se sustentar apenas pela experiência

ética do face a face. Cf. MARTINS, R. J., Introdução a Lévinas, pp. 13-28. 362 LÉVINAS, E., Humanismo do outro homem, p. 54. 363 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 33.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 202: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

202

Deus é o Ser dialogal por excelência. Aquele Tu que cria todos os eus. Ele é que

chama tudo à vida e convoca para uma aliança: “As estrelas brilham no

firmamento. Ele as chama e elas respondem: eis que aqui estamos” (Bar 3,34s).

Deus chama e o homem responde. Eis a estrutura fundamental da teologia e antropologia bíblicas. A relação interpessoal do eu-tu-nós é a concretização e a

extensão da relação mais radical homem-Deus364.

A relação na perspectiva da existência humana que busca o sentido da vida

não é uma possibilidade entre outras, nem um aspecto acidental, antes, tem caráter

constitutivo do ser pessoa. No princípio da vida está a co-existência de três únicos.

Feito criatura por um Deus que por essência é relação, a pessoa, portanto, não é

chamada a viver na solidão de uma interioridade saciada de si mesmo, na afirmação

absoluta de si. Antes, seu chamado à vida toma forma de relação que configura toda

sua existência. Esta é sua vocação, que o diferencia de todas as outras coisas criadas.

Tudo começa com o ato criador de Deus-Trino e se prolonga com a generosa

abertura da pessoa. A intenção de Deus ao criar o homem e a mulher expressa sua

vontade relacional e fundamenta toda a relação humana com Deus. A narrativa

bíblica da criação manifesta a proposta humana de dialogar com as criaturas, de

“ser capacitado a uma existência relacional”365, na gratuidade e responsabilidade

amorosa. Por outro lado, a negação da relação será a morte da humanização. Ao

percurso da vida pertence a capacidade de relacionar com o outro, de sair do próprio

círculo e entrar no universo do outro, na ternura e no cuidado efetivo.

Atento, na ausculta da natureza essencial do ser humano, L. Boff explicita,

o que vem a ser o ser humano.

O homem se define a diferença do animal como o ser aberto à totalidade da realidade, como um nó de relações orientado em todas as direções. Ele só se realiza

caso se mantiver sempre aberto e em comunhão permanente com a realidade

global. Estando no outro é que ele está dentro de si mesmo. Saindo de si é que

chega a si. É só ex-istindo (saindo de si: ex) que se torna. O eu não existe a não ser criado e alimentado por um tu. É dando que o homem tem. Por isso o homem deve

sempre se transcender a si mesmo. Por seu pensamento mergulha no horizonte

infinito do ser. Quanto mais se abre para o ser, mais pode auscultar e mais pode tornar-se homem366.

Na continuidade, L. Boff ressalta no essencial do humano a capacidade de

receber o outro, somando-se a capacidade de ser para o outro. Na relação dialética

364 BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, pp. 57-58. 365 SATTLER, D.; SCHNEIDER, T., “Doutrina da criação”, p. 202. 366 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 272.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 203: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

203

de dar e receber, o ser humano realiza sua humanização. O ser humano possui a

capacidade de entrar em relação isto é um evento existencial.

Dar não significa apenas transcender-se a si mesmo e sair de si. É também

capacidade de receber o dom do outro. É amando e deixando-se amar pelos outros que o homem descobre sua verdadeira profundidade e seu mistério. Quanto mais o

homem estiver orientado para o infinito e para o outro mais tem a possibilidade de

hominizar-se, isto é, realizar-se seu ser-homem367.

As ciências biológicas têm divulgado descobertas interessantes sobre o

desenvolvimento do ser humano na vida intrauterina. O advento e aprimoramento

tecnológico de exames e procedimentos cirúrgicos possibilitam observar, com mais

nitidez, o universo fetal em sua vivência. A relação entre a gestante e seu filho não

se encerra na comunicação biológica, mas verifica-se uma relação que capacita à

abertura e à comunhão do ser para todas as direções. Com mais surpresa, cientistas

falam de convivência afetiva e salutar entre fetos de uma única gravidez, ao se criar

vínculo de afeto e cuidado, movido pelo simples desejo que a vida seja vitoriosa368.

Este tipo de acontecimento, revestido embora de caráter excepcional, nos casos de

ameaça à sobrevivência, permite descortinar a originalidade prodigiosa do elo

indissociável entre relação e vida. A partir desse dado fundamental de busca de vida

e sobre o qual se fundamenta esta pesquisa, pode-se afirmar que desde o ventre

materno, a existência humana é portadora de relação voltada para a vida. Ser vivo

é ser relação, e relação é vida.

Afirmar a vida pela categoria da relação, não minimiza sua amplitude, não

retira sua densidade ontológica. Pelo contrário, afirma-se justamente o ser em

relação. Esta categoria quer ser elemento de união no processo evolutivo da vida,

uma dinâmica na qual o que é dispõe-se a ser mais e, de fato, vem a ser mais. Outros

vocábulos análogos a ‘vida’ tem-se existência, sopro, fio vital, respiração, hálito,

vida futura. Contrária à vida, tem-se a situação de riqueza acumulada e das

inovações científicas coexistindo com tantas pobrezas e escravidão. Enquanto

alguns estocam bens de capital e muitas moradias são abarrotadas de itens de

consumo, dos quais os donos até se esquecem, sem contar os índices de obesidade

que crescem, acúmulo daninho, no próprio corpo, a fome, a sede e a ausência de

saneamento desintegram tantas vidas. Tem-se a impressão de duas realidades

367 Ibid. 368 HYPESCIENSE. “8 fatos fascinantes sobre gêmeos”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 204: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

204

independentes e dissociadas uma da outra. Tem-se uma visão de vida forjada na

dissociação, no desligamento, no desconectar de relações, que, na prática, segrega

a vida. O desperdício, acarretará prejuízo para um outro. A abundância acarretará

privação para um outro. Em última instância, a busca pelo sentido da vida fica

reduzida a esforço pessoal e para alguns privilegiados.

A vida numa visão relacional transforma a riqueza e a pobreza em dons

compartilhados, cuida da abundância sem desperdício e mesquinhez, e desenvolve

a compreensão básica e fundamental de que todo ser vive em uma teia complexa de

relações com tudo e todos, desde seu surgir para a existência. Em sintonia com uma

ciência que tem como objetivo buscar compreender as relações que se dão no

universo, a vida só pode ser bem vivida, se devidamente encaixada no grande

sistema da biosfera.

A nova sensibilidade moderna das ciências para a compreensão da vida369

sobre o planeta terra, já não se restringe à relação imediata dentro do ecossistema,

nem a um princípio de ordem cósmica. Surge uma leitura do universo em dimensão

histórico-evolutiva, considerada “uma das maiores aberturas de horizonte”370,

segundo o astrônomo e teólogo, Tanzella-Nitti. Na leitura do teólogo, Haught, ela

é considerada a descoberta mais surpreendente, “o universo é uma narrativa em

desenvolvimento”, em processo e aberto a novidades 371. Mais precisamente, o

antropólogo Morin sublinha que no século XX, com a descrição do Big Bang, surge

o relato da gênese e do vir-a-ser do universo, “um novo, estranho e misterioso

Cosmos”. Constituído de um jogo dialógico, este novo cosmos “é formado na

desordem e se organizou em uma desintegração generalizada372”. A ideia de um

369 A escolha dos pensadores citados ao longo desta pesquisa – Giuseppe Tanzella-Nitti, John F.

Haught, Edgar Morin e Lee Smolin – não é aleatória, ainda que eles tenham diferentes formação e

interesse pela ciência. A escolha se deve à leitura que eles têm da cosmologia contemporânea. No

decorrer das leituras, verifica-se, em todos eles, uma abertura possível para que a teologia cristã

possa entrar em diálogo, escute o que a ciência está à mostrar e aumente a inteligência da fé. Eles

abrem caminho para que se reconheça o misticismo a partir de questões científicas, e quiçá, acolher

o Infinito da relacionalidade, que revela o sentido de conjunto. A pesquisa considera que a própria ciência não é homogênea no que tange a obtenção do conhecimento. Variados são também seu objeto

de estudo e método de investigação. Na esteira do teólogo L. Boff verifica-se em sua receptividade

crítica das ciências, haver pontos em comum e uma convergência fulcral, posto que a vida é

concebida como processo em relações vitais. Uma visão da vida coerente com o processo da vida,

em suas dimensões física e biológica. Produz-se uma imagem denominada de cosmologia. Nas

palavras do autor em pesquisa, ele afirma que “pertence à imagem do universo fornecer-nos uma

resposta que atenda à nossa busca de um sentido clarificador, globalizante e afetivo. A essa imagem

costumamos chamar de cosmologia”. BOFF, L., O despertar da águia, p. 49. 370 TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 155. Tradução minha. 371 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 7. 372 MORIN, E., "La relation anthropo-bio-cosmique", p. 384. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 205: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

205

universo em evolução, é afirmada pelo físico Lee Smolin como a maior inovação

da vida, não só da cosmologia moderna, justamente porque “capacita a ver a vida

não como um simples retorno, mas como um processo que continuamente gera e

descobre novidades”373.

A partir da nova imagem de um universo em evolução, chega-se à uma

concepção de um universo inacabado, que continua sua construção na história, o

que é explicitado por L. Boff como processo cosmogênico.

O processo não está ainda pronto, mas em fase de gênese e de expansão. [...]. Tudo

está sob o regime de indeterminação e de probabilidade. As relações vão

constituindo determinações concretas. Em razão disso falamos de história. Não somente os humanos têm história, mas todos, também os demais seres, pois todos

estão dentro do processo evolutivo que vem da mais alta ancestralidade. Todos

estamos enredados num jogo de inter-retro-relacionamentos, em cadeia, pelo qual vamos construindo, com o desenrolar do tempo, nosso ser374.

A pós-modernidade deixa à mostra a originalidade, a singularidade e a

complexidade dos seres vivos. Ao mesmo tempo, ela estabelece uma incerteza

profunda que afeta a leitura sobre a origem da vida e repercute sobre seu sentido. A

partir das novas posturas científicas, toda a tradição será abalada, revista,

reformada, retomada.

A posição do ser humano no cosmos exige uma nova leitura espaço temporal

da qual já não se pode prescindir. Fundamentalmente, a imagem do universo já não

é mais regulada por um mecanicismo perfeitíssimo, por leis imutáveis e perenes,

que obedeçam a um desígnio traçado pelo Criador. A revolução copernicana

concebe uma nova disposição do universo, que retira o homem do centro. Contudo,

o mundo ainda tinha um centro, isto é, o sol, centro luminoso, gerador de calor

benéfico e fonte de luz para a manutenção da vida na Terra. O verdadeiro abalo

sísmico veio com a física do século XX, a saber, a teoria da relatividade e a teoria

quântica. Através do espaço e do tempo as coisas no universo têm relação, não só

com o todo, mas também entre si, de modo que a descrição do universo é uma

descrição da rede de relações que se apresentam sempre muito complexas. A

descrição relativística do cosmos não demorou a transplantar-se para o campo das

373 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 143. Tradução minha. 374 BOFF, L., O despertar da águia, p. 48. Neste processo está também incluído o Filho de Deus.

Pela Encarnação, Jesus “se relaciona com nosso mundo em cosmogênese”. Verdadeiramente

humano viveu as limitações próprias da condição terrestre. Suas opções visibilizava um ser de

relações com a realidade humana e cósmica. Cf. BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 226.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 206: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

206

atitudes humanas. Surgem novas interações humanas. Edgar Morin se expressa

sobre esta experiência.

Privado de um deus genésico, este novo cosmos, uma vez jorrado ex vácuo, torna-

se auto criador e autoprodutor, criando e produzindo núcleos em profusão, átomos, astros, galáxias. Privado de Centro é ele ao mesmo tempo policêntrico, acêntrico,

dispersivo. Privado de Lei a priori, este Universo constrói e diversifica suas

próprias leis, segundo as quatro modalidades que regulam as interações dos elementos. Privado de eternidade, este Cosmos evolui no tempo e tudo o que lhe

diz respeito comporta um hic et nunc, isto é, uma dimensão histórica.

A vida também aparece como um conjunto de interações, o que permite

pensar uma visão relacional. Talvez que a leitura pós-moderna queira negar seu

caráter processual de abertura. Mas a possibilidade de outras leituras de per si está

fortemente influenciada pelas recentes descobertas científicas.

A ciência ao chamar a atenção para a interdependência dos organismos

vivos alerta para a responsabilidade maior do ser humano racional em relação à

totalidade. A relação do ser humano com todos os outros seres não mais pode ser

pensada nos moldes de uma dominação da natureza, que a ameace de exaustão. A

nova cosmologia a ninguém permite acreditar-se absoluto. A dominação pela

técnica, dominação de cultura, dominação de gênero, sem o aval de uma cosmologia

organizada ou não, hierarquizada ou não, deve modificar-se tanto pela crítica

quanto pela autocrítica ou aceitar seu caráter de mero discurso ideológico. No

conceber das relações com o mundo apenas pela dominação possibilitada pela

tecnologia, este discurso permanece opaco e incompreensível, introduz

perturbações nas relações constitutivas da realidade. E como o mundo, a própria

existência parece não ter sentido.

A ideologia de domínio do mais forte é reducionista e tributária de uma

leitura, segundo a qual só os mais fortes poderão sobreviver. Ora, mesmo sem entrar

numa discussão sobre darwinismo é fácil perceber que, justamente, os avanços

tecnológicos capacitam os seres não a deixar que vençam os mais fortes, mas a

reabilitar o enfraquecido, revigorar o debilitado. Trata-se uma vez mais de opção.

Pode-se partilhar o mundo da tecnologia com todos, criando-se para isso políticas

adequadas ou entender, como propõe a meritocracia, que tem, tem porque merece.

Do seu lado, L. Boff defende o propósito verdadeiro da vida assegurado na

realização das potencialidades dos diferentes seres existentes no universo, e não na

lei da sobrevivência selvagem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 207: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

207

Se assim fosse os gigantescos dinossauros estariam ainda entre nós. Não é a

competição que tem a centralidade no universo, por mais importância que tenha,

mas a cooperação. Não a afirmação do mais forte, mas a capacidade de ser

simbiótico, quer dizer, a capacidade de relacionar-se em todas as direções no jogo das interdependências375.

A evolução cosmológica possibilita ler o universo como expressão da

sabedoria divina, que tudo dispõe para que a vida seja possível. Cabe à espécie

homo sapiens sapiens, se realmente for sapiens, aprender a ler nesta possibilidade

de ser sempre mais aliada à sua semelhança com o Deus criador. Chamado para

realizar sua vocação última, isto é, vocacionado a ser ele mesmo na realização de

seu potencial, em relacionalidade para com o mundo, para com o outro e para com

o Absoluto376. Por conseguinte, a vida será pensada pela descoberta de sua posição

através do diálogo e da abertura a todo outro ser, isto é, da relação como palavra

construtora da vida.

Por outro lado, relação não quer dizer relativismo. Afirmar a relação

enquanto sinonímia de vida não quer desamarrar a gama aparentemente infinita dos

entrelaçamentos resultantes das relações, como se não apresentasse uma coerência,

mas também não significa criar hierarquia de uma sobre a outra, o que muito

empobreceria a ambas. Dizer relação não subentende a ideia de relativismo,

sinonímia de circunstância, passagem, vicissitude, numa conjuntura de

acontecimentos. Relação é análoga a vinculação, complexidade, afetação,

mutualidade. Relação chama e impulsiona para perceber um outro que também

existe, no interior do mesmo dinamismo efetivo e afetivo de tudo ter a ver com tudo.

O critério para as escolhas nem é a posição relativa do momento, nem uma vontade

autoproclamada absoluta, mas a vida que para ser bela quer ser abundante e que se

tem por regra a partilha, então, cobra de cada um que promova esta abundância.

Neste diapasão, “existir e viver é inter-existir e con-viver. Numa palavra, é

relacionar-se. Relacionar-se é poder criar laços e adaptar-se. Fora desta lógica

ninguém sobrevive”377.

Nesta perspectiva, as relações ora estabelecidas questionam os lugares e

modos do como são estabelecidas. Seu ethos não é a abstração, a superficialidade,

o descompromisso, a liquidez, que só fazem esvaziar o sentido real de relação. A

375 BOFF, L., O despertar da águia, p. 63. 376 Cf. BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, p. 26. 377 BOFF, L., O despertar da águia, p. 48.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 208: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

208

existência, como modo de ser constituído pelas relações consigo mesmo, com as

coisas, com o outro e com Deus possui caráter de integração, prenuncia o Infinito.

Esta forma de falar de relações em quatro vertentes busca expressar a natureza

singular da realidade de cada uma delas, sem desconsiderar o todo. Garcia Rubio

expressa esta realidade a partir das narrativas no livro do Gênesis sobre a criação.

O ser humano, ele afirma,

é um ser radicalmente aberto, um ser de relações: relação com Deus vivida na

abertura confiante e na resposta obediente à sua vontade; relação homem-mulher, vivida na mútua reciprocidade e radicada no mútuo respeito à alteridade do outro;

relação com o mundo criado, vivida mediante um domínio responsável a serviço

da humanização de todos378.

As diferenciações expostas nas relações manifestam a particularidade não

só intrínseca a cada uma, mas também a cada ser. A relação não minimiza nem

elimina o ser de cada um, pelo contrário, ela é possibilidade real, gratificante e

enternecedora de vida. Tais diferenciações são, inicialmente, apropriadas para

compreender melhor o que se quer expressar. Na esteira de L. Boff, entende-se que

ele visa uma análise mais profunda de modo a revelar que todas as diversas

relacionalidades sempre estão envolvidas em cada nível.

A vida não se estabelece por alguma natureza fixa e estrutura, mas graças à

imensa variedade de suas relações. Cada pessoa percebe o mundo de um modo

particular. Ela não é só um ser pensante, mas também capaz de pensar e transformar

a relação histórica, capaz de distanciar-se de seu mundo e de voltar-se sobre si,

criticamente e abrir-se ao outro em comunhão. A pessoa humana é a única a

descobrir os gestos e as atitudes coerentes com o universo em evolução à sua volta.

O modo de agir do ser humano deriva da prioridade que se dá às relações.

A ética em relação ao outro depende em parte de quem consideramos como outro.

Isto faz parte de todo substrato humano. De uma ou outra forma, o ser humano

interage com outro ser, modificando o grau de interação ou de consciência.

Desde o ventre materno o ser humano busca estabelecer relações a fim de

viver. A relação não é elemento secundário à vida. O ser humano, geneticamente, é

um ser de relações: intrinsecamente, ele encontra-se inserido numa rede de relações

que compõe o seu mundo. Trata-se de um dinamismo vital que não é só um

378 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p. 142.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 209: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

209

elemento a mais nesse mundo. A negação das relações é a negação da vida. É no

relacionar-se que se esvai o absurdo, para instalar o sentido que se prefigura na

objetividade e na subjetividade, no exterior e no interior das relações, na abundância

e no desperdício, na crise e na sua superação, no apagar e acender das luzes.

A regra de ouro é a justa medida. Na vida, não há causalidade unívoca, e

sim inter-retro-relacionamentos. L. Boff afirma que a “sabedoria é ver cada porção

dentro de um todo articulado qual bela figura de mosaico composta de milhares de

pastilhas e deslumbrante bordado feito de mil fios coloridos”379.

Oposto a vida, não é a morte, mas a falta de relações, ocasião do sem-

sentido. Esta perspectiva, no viés teológico, equivale ao inferno. A recusa ao

diálogo, à abertura e ao cuidado em amorosidade para com a vida resulta em

experiência do inferno, embrutecimento das relações, processo de desumanização,

em desintegração do sentido da vida.

A violência contra o dinamismo das relações equivale à exclusão. A vida é

construída de interações e criatividade. O princípio criador é um ato de um Deus-

Pai, Filho e Espírito Santo em comunhão recíproca, em relações pessoais para

dentro de si e para fora de si. Toda a criação significa um transbordamento desta

vida trinitária. Toda a humanidade é convidada a participar desta comunhão “para

que todos sejam um” (Jo 17,21). A vontade de Deus de relacionar-se ao não-divino

e fazer participante de sua plenitude de vida, fundamenta seu ato amoroso criador.

“O Deus triúno, que é para si mesmo origem, parceiro e comunhão, permite, por

amor, que o outro de si mesmo tenha parte em sua vida”380. Jesus Cristo é a

expressão da visibilidade máxima da vontade de Deus de relacionar-se, por meio

de sua autorevelação. A Revelação é “Deus em sua livre relação com sua

criação”381.

A compreensão da Revelação enquanto relação é inaugurada pelo Vaticano

II. Este Concílio opera uma passagem de um modelo de proposições a um modelo

de relações entre Deus, em sua autocomunicação, e a pessoa humana, em ser

ouvinte da Palavra. A relação de Jesus com o Pai, e com o ser humano, é a relação

com contornos de revelação, ou seja, Deus abre o seu íntimo, sai do seu Mistério e

comunica o desígnio da salvação. O Evento Cristo aponta a dimensão da revelação

379 BOFF, L., Saber cuidar, pp. 113-114. 380 SATTLER, D.; SCHENEIDER, T., “Doutrina da criação”, p. 190. 381 RAHNER, K., “Observações sobre o Conceito de Revelação”, p. 4.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 210: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

210

de Deus, isto é, a autocomunicação de si mesmo em Cristo. Isso revela que Deus é

Trino, Relação e Amor382. Deus em sua revelação da gratuita comunicação de si

mesmo, considera a história humana, “desvela a íntima realidade de Deus e sua livre

relação pessoal para com sua criatura dotada de espírito”383.

A recusa da processualidade das relações colocando-se como absoluto da

história e do universo equivale ao pecado. A evolução do universo não significa

uma teoria que se compreende de uma proposição como conclusão de uma outra e

por ela mesmo chega-se à sua explicação ou sua causa ou mesmo sem possibilidade

de sua verificação na prática. Dados muito concretos levam certas pessoas a afirmar

que a vida não surgiu toda de uma só vez e que ela não teve sempre a mesma forma.

Fala-se, pois, de uma evolução da vida. Lee Smolin, físico teórico, acredita que a

ideia de evolução possibilite a ver a vida como processo de contínua novidade. Ele

diz que a vida existe no universo, porque “o universo, sendo ele mesmo um sistema

afastado do equilíbrio, cria, por meio de seus mesmos processos de auto-

organização, as condições que são adequadas à evolução da vida”384. Nesta direção,

de uma concepção evolutiva do universo, L. Boff afirma, “pecado é, pois, negar-se

a crescer. É recusar-se a evoluir. É fechar-se sobre si mesmo e seu mundo. É

recusar-se a abertura infinita”385.

Por conseguinte, no dizer que a relação é vida está implicado a existência.

A existência encontra sua visibilidade e inteireza na relação. Em Deus, a ontogênese

presentifica seu desejo de relacionar-se na liberdade e na autonomia com todas as

criaturas. Por esta afirmação, o ser humano possui a capacidade de estabelecer

relações com todo existente. Portanto, a existência é abertura para as relações e as

experiências cotidianas sempre são um acontecimento existencial e que se realizam

e ganham sentido nas relações.

Na contrapartida, algumas correntes questionam e obstaculizam uma

relação que se quer irradiação em todas as direções. Não caberia aqui tratar das

diversas correntes surgidas ao longo da história. Neste particular, convém recordar

o empirismo, porque leva a um ceticismo radical, e o irracionalismo por ser uma

abdicação das possibilidades e potencialidades e uma rendição às dificuldades da

382 Cf. CONCÍLIO VATICANO II., “Dei Verbum”, n. 2, p. 122 383 RAHNER, K., Curso fundamental da fé, p. 208. 384 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 159. Tradução minha. 385 BOFF, L., O despertar da águia, p. 159.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 211: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

211

existência. O empirismo defende que todo conhecimento, digno deste nome, tem de

apontar pelo menos uma via possível de teste experimental. Por esta via, ele coloca

a impossibilidade de qualquer outro conhecimento objetivo da realidade. Logo, as

relações só aconteceriam em nível subjetivo. Como ficaria realidades não

demonstráveis pela razão como a gratuidade, o amor, o perdão, testemunhados nas

relações? Já o irracionalismo, ao contestar o poder da razão, afirma a liberdade

alógica, ou que as ‘escolhas’ seriam meras manifestações dos processos primários

do inconsciente. O querer não iluminado quer pela razão quer pelo amor torna-se

um tirano, exatamente pela ausência de Sentido. Nesta perspectiva, de não

concordância entre o conhecimento com o ser, as relações seriam meras abstrações,

indemonstráveis, não imprimem nenhuma marca no ser. Ao destacar o caráter

irracional do absoluto e transcendente, abre-se à questão de a criação do mundo por

Deus ser um mito, visto a criação ser de origem não baseada numa razão

demonstrável, logo, ela é irracional386.

Desta forma, nem a hegemonia de uma subjetividade ou de uma

objetividade podem fazer o encontro do ser humano com sua relacionalidade –

como se a percepção fosse puro conhecimento de uma realidade única, absoluta. L.

Boff pergunta se haverá uma realidade de sentido construtora da busca emergente

pós-moderna. Em outras palavras, se haverá uma realidade sem hegemonia e sem

dependência de um único saber, mas seja tão simplesmente uma estrela a guiar. A

resposta se encontra no “horizonte de um sentido globalizador”, firmado no

imperativo categórico de integração e cuidado com a vida no presente e no futuro.

Oposta à hegemonia ou concorrência de uma única corrente de pensamento, ele

propõe a revalorização do logos, como princípio ordenador da vida unido ao pathos,

como capacidade de sentimento profundo. A vida, e todo seu sistema, reside na

capacidade de relação, indefinida, sempre aberta, capacidade exercida a partir da

experiência e da intelecção e da amorização.

Para L. Boff, a ética é o espaço onde emergem as relações de integração do

ser, cujo fio condutor é a esperança latente por um jovial entrelaçamento da

existência, mais alto e integrador. Afirma ser a espiritualidade o lugar da relação e

386 A possibilidade de uma existência fora da representação concreta pelo sujeito não tem sentido,

isto é, seria uma contradição. As afirmações bíblico-teológicas seriam um mito, isto é, uma fantasia.

Poderia também ser exemplificado o romantismo como concepção idealista. Ao ancorar-se no

sentimento estabelece uma relação de absoluta dependência em relação a Deus, ao que retira do ser

humano sua liberdade e responsabilidade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 212: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

212

irradiação dessa nova trama, o lugar de religar todas as coisas para com o sentido

da vida387. A busca humana pelo sentido da vida é mediatizada pelas relações, as

quais possuem caráter de objetividade e subjetividade, de finitude e infinitude,

complementares. O desejo do infinito fala do desejo de ser pessoa humana, de

humanização, e fala de uma busca do sentido da vida. Presencia uma confiança e

alegria maiores que se pode planejar, de modo a ultrapassar toda a imanência e

transcender todas as pretensões.

O ser humano, pela sua própria existência é chamado a ultrapassar-se, a sair

de si e a viver uma existência de um futuro luminoso de promessa. A negação desta

relação fundante ou ainda o estabelecer centro de sentido numa realidade exógena

equivale a tornar-se indivíduo criador de uma história obscura e ameaçada por

catástrofes cósmicas. Na vertente da busca humana do sentido da vida entrecortada

pelas relações como chave de integração da vida, verifica-se uma presença

originante e fundante desta busca. Esta presença de plenitude torna jovial e alegre

a busca e que faz realização de vida o encontro com este sentido vital. Por

conclusão, a pessoa não busca o sentido encerrado em si mesma também

experimenta que seus empreendimentos não se encerram na imanência da vida,

antes apontam para um bem maior.

Na esteira teológica de Leonardo Boff, a ex-istência humana da busca pelo

sentido da vida transparece uma antropologia e um mistério de transcendência.

Perfaz uma compreensão holística, complexa, integral da vida, em processo a partir

de dentro que irrompe para relações de fora, num movimento endógeno. Sua

sustentação é princípio de que a pessoa encontra seu ser verdadeiro em um viver-

com, de modo que experimenta que o fundamental não é o eu, mas o eu-tu, que em

sua profundidade, é ressonância do Tu divino.

4.3. Três dinamismos reveladores do sentido da vida

A teologia de L. Boff apresenta uma antropologia horizontalizada para o

infinitamente e transcendente, Deus-Trino. Neste horizonte, o ser humano é um

projeto aberto ao infinito. Vive a tensão permanente entre construir-se na

387 Cf. BOFF, L., Ética da vida, p. 7.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 213: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

213

historicidade, sem ser preso a ela e sim orientado para o futuro. Pela fé bíblica, o

ser humano vive a dinâmica de ter à sua frente o passado e atrás seu futuro. À sua

frente, sua vida está segura no Deus promessa-cumprimento em fidelidade em

ternura e cuidado. A destinação do ser humano é a vida ressuscitada em Cristo.

Porque o ser humano experimentou a vida realizada em Jesus Cristo, sabe que a

felicidade é promessa de concretização. O destino derradeiro que aguarda a

humanidade e o universo é a participação de todas as coisas no Reino consumado

da Santíssima Trindade.

Atrás de sua visão, o ser humano tem a liberdade criadora de se construir na

história. É vivendo e refletindo a vida que o ser humano descobre o futuro da vida.

Mas o futuro é aquilo que ainda não é. No Cristianismo, pode-se falar do futuro

porque no ser humano há o ser e também o poder ser, ou seja, possibilidade e

abertura para um mais: mais alegria, mais justiça, mais solidariedade, mais vida. As

afirmações de futuro são explicitações do que está implícito, não são irrealidades.

A história é para ser assumida. O passado de hoje é cultivado pelo futuro de ontem.

O ser humano é um ser de relações com direções múltiplas, até para o

Infinito: quer sempre mais que sua realidade concreta, por isto, nenhum ato,

nenhuma dimensão concreta, esgota o dinamismo do seu querer. Espera, planeja e

deseja manipular o futuro. É projeção para um sempre mais, para a surpresa que

está fora de sua pré-visão, para o ainda-não. Como já foi dito, não possui o centro

em si mesmo, embora o tenha dentro de si. Não se deixa enquadrar em moldes

estabelecidos, antes busca ser agente participativo em todo processo vivencial.

Construtor de uma história única, o ser humano faz sua experiência do

mundo, e no coração dele, do mistério do mundo, isto é, da transcendência. Assim,

descobre Deus que emerge como experiência na história, mas sempre para além e

aquém dela. Para o autor em pesquisa, afirmar a transcendência de Deus significa

que Ele perpassa e ultrapassa todo e qualquer horizonte do possível. Por isto mesmo

em cada situação a humanidade tem nele sua morada. Contudo e embora dentro

Dele, busca também o sentido que está para além de tudo, que não se desvela na

história.

Quando o ser humano se empenha na busca pelo sentido da vida na sua

realidade-história, ele se encontra colocado diante de uma realidade concreta,

conquanto parcial, desta totalidade. A busca pelo sentido inclui todas as dimensões

da vida na tessitura da história, pois a existência humana aparece sempre como

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 214: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

214

dinamismo de relações. Por isto mesmo, a linguagem mais apropriada para falar ser

humano deve ser mais narrativa do que descritiva mais de caráter dinâmico e

processual do que categorial ou conceitual.

O esforço reside em partir da dimensão intrínseca do ato do Deus-Trino-

criador, isto é, um ser humano criado-amado-livre. O ser humano é aberto à

possibilidade de escolhas livres. De modo que pode transformar, do seu jeito, todas

as experiências e conhecimentos num ato de amor e afirmação do universo, ato de

entrega desinteressada ao outro e de abertura a Deus. Ou, também pode negar tudo

isto e viver um projeto de rebelião contra o universo e tomar atitudes de exclusão.

Suas escolhas podem vir a constituir uma qualidade nova da criação.

A busca humana pelo sentido atinge o ser humano por inteiro. Por ela a vida

dos seres é afirmada e novos espaços vitais são abertos. A vida se vê resultado de

um nó de relações para todas as direções no interior de um envolvente dinamismo.

Ela é tecida de relações, enquanto a pobreza de relações é enfermidade e sua

ausência é morte total, que em si mesma é sua contradição.

A história presentifica para o ser humano que ele tem um começo, ao mesmo

tempo revela um futuro a ser construído. Isto significa que ele está em gênese. Ele

se constitui como um ser de existência aberto para o futuro. Deus emerge de dentro

dessa experiência como o futuro do mundo, como a Grande Promessa para o

coração humano, como o abraço ao amado que a saciedade não desfaz. Na esteira

do teólogo L. Boff, o ser humano está em processo contínuo de construção, por isso

a existência humana pode ser dita como antropogênese. Mas não só o ser humano,

todas as criaturas estão em permanente evolução, em processo de vir a ser.

Se for válido afirmar que a importância atualmente dada à história preparou

a compreensão dinâmica do que seja o ser humano em todas as suas dimensões,

coerentemente, é possível afirmar uma visão histórica dinâmica evolutiva para a

vida. Outrossim, criação e evolução não estão em concorrência, como já foi dito.

Muito simplesmente, a evolução não pode explicar-se a si mesma, ela precisa da

criação, portanto pode-se falar em criação da evolução. Por outro, a criação não

existe para si mesma, mas para o Reino de Deus, fala-se, portanto em evolução da

criação. O futuro do mundo e do ser humano está intrinsecamente entrelaçado e

compartilhado. As diferentes leituras da realidade, pela teologia e pela ciência,

retratam uma percepção que se põe a serviço da busca humana de um sentido mais

abrangente, de uma busca de sentido para a totalidade da vida.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 215: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

215

Destarte, esta cosmovisão manifesta a dimensão transcendente do ser

humano e abre-se para o diálogo com o outro, perfazendo um caminho de

construção e enriquecimento mútuo. Permanentemente, o ser humano busca um

sentido que está para além de si próprio. Busca que o aproxima do Mistério tão

transcendente na imanência que se faz em transparência. Ser humano é mistério que

vem do Deus transcendente vivendo e sendo apreendido na imanência. Deus faz-se

transparente.

A reflexão antropológica requer a contemplação do Deus que vem à história

e se faz um, como qualquer um, no meio da humanidade (cf. Lc 4,22;23)

incompreendida e ferida de morte injusta. A vida e a morte de Jesus significam que

Deus mesmo desce ao sheol, e ali institui relações onde outrora havia ausência de

relações, doando, assim, Vida mesmo no meio da morte. E tal postura antropológica

inclui a plena liberdade do oferecer-se ao Deus contemplado. Ela visa o sentido da

vida na orientação da identidade da pessoa humana que encontra um dinamismo

que se perfaz em ser mistério de sentido. Justificado por Deus ser amor que se

comunica e estabelece comunhão, em abertura mútua, reciprocidade de relações

para dentro e para fora de si mesmo.

O dinamismo relacional do Deus-Trino que se comunica como comunhão

de amor, convoca o homem e a mulher à participação na circularidade de sua vida

para assim realizar sua existência histórica aberta às relações em todas as direções,

construindo sua busca pelo sentido na integração da vida.

4.3.1. Ser de existência – antropogênese – cosmogênese

Desde as origens da vida nas fontes bíblicas a existência é descrita em

função da relação pessoal de Deus que cria a vida numa comunicação dialógica com

o ser humano. A narrativa no primeiro capítulo do Gênesis inicia, não

imediatamente com a criação do humano, mas, por assim dizer, pela criação de um

estofo providencial e aprazível para a vida. Ser criatura de um Deus comunicante

de vida é condição fundamental da existência de todos os seres vivos. Esta condição

afeta a existência na sua totalidade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 216: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

216

A antropologia teológica principia por situar o ser humano como criatura de

Deus, num todo maior da criação do mundo. O centro da compreensão cristã da

existência humana é a pessoa enquanto ser livre e aberto para a autocomunicação

de Deus. Por ser narrativa e não uma cronologia histórica, a criação do mundo e do

ser humano não está oposta, nem do homem e da mulher hierarquizadas. Deus cria

a vida e vive na vida. Deus é o Deus da vida, de toda vida, e não somente da vida

humana. Em outras palavras, Ele não é da ordem da funcionalidade. Ele é

visceralmente a favor da vida.

A criação principia a história dentro de Deus. A encarnação do Filho

presentifica Deus na história, pois Ele mesmo se faz história; Deus-conosco. O

Filho Jesus ao entrar na história, assume suas limitações e fraquezas, menos o

distanciamento do Pai. “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por

causa de nós, a fim de que, por ele, tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,21). É um

só Deus, uma só fé.

O Deus experimentado e vivido pelo Cristianismo não é somente o Deus

transcendente [...] é o Deus que se fez pequeno, que se fez história, esmolou amor, se esvaziou até a aniquilação, conheceu a saudade, a alegria da amizade, a tristeza

da separação, a esperança e a fé ardentes388.

A afirmação do Deus-Trino em criar o mundo não estabelece um dualismo

entre Deus e mundo. Ao contrário, ela afirma a presença da Trindade na história, o

transcendente adentra o imanente. Um só Deus, “cria o mundo e logo faz dele sua

morada. Ele o chama à existência e, ao mesmo tempo, manifesta-se através da sua

existência. O mundo vive da sua força criadora e ele vive no mundo”389.

Uma leitura da Sagrada Escritura, de maneira mais específica dos primeiros

dois capítulos do livro de Gênesis, que seja predominantemente autoritária e

exclusivista estabelece valores e empreende modos de vida, que podem acarretar a

desintegração e a desorientação, e em última instância, ceifar muitas vidas. Tal ideia

388 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 214. 389 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 34.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 217: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

217

seria possível numa leitura de cunho fundamentalista, isto é, negligente da

exegese390.

Neste contexto, é constante encontrar em L. Boff uma crítica a

autocentração do ser humano em si mesmo. Coerente com isso, ele afirma que a

integração humana exige, “tirar o ser humano de seu falso pedestal e de sua solidão

onde se autocolocou: fora e acima da natureza. É seu antropocentrismo ancestral e

seu individualismo visceral. Para ser autêntico, ele inter-existe e co-existe com

outros seres no mundo e no universo” 391. A narrativa bíblica das origens inclui a

humanidade e a terra, sem haver espaço para o dualismo e o antropocentrismo. A

condição originária da existência humana não é um projeto definido e acabado, mas

uma existência em antropogênese.

Na criação do mundo, Deus permanece Deus, contudo Ele está totalmente

em suas criaturas. Descarta-se, por esta via, o panteísmo que só afirma uma

identidade em Deus enquanto absorção do mundo, sem ressaltar também sua

diferenciação. Em Deus pode-se reconhecer uma auto-diferenciação e uma auto-

identificação. “Deus está, simultaneamente, em si mesmo e fora de si. Ele está fora

de si na sua criação e simultaneamente em si no seu sábado”392.

A narrativa da criação da vida, fala, duplamente, de liberdade e

continuidade. A atuação de Deus revela-se na criação primariamente como diálogo

de amor. A história e seu desenvolvimento são também obra humana, participação

em Deus, construção de relação entre o ser pessoa e seu contorno, físico e social. O

próprio desejo relacional do sopro da vida revela o caráter de continuidade da

criação. A fé na criação é encontrada na relacionalidade de um ser existente, na

história.

390 A exegese bíblica moderna tem dado atenção especial ao caminho percorrido pelas tradições

antes de se fixarem por escrito. Esta exegese mostra que os escritos bíblicos fazem parte de um

processo longo de amadurecimento da própria fé. Fatores históricos pós-modernos (globalização, avanços tecnológicos, descobertas científicas, bem como, colapso econômico e político, prioridade

do aparecer sobre o ser, desastres químicos, catástrofes climáticas e ecológicas, questões de gênero,

crise de sentido da vida, etc.) mostram a impossibilidade de se reduzir a realidade a processos

lineares. Um texto não tem um único sentido. O estudo exegético busca esclarecer os seus

pressupostos metodológicos. É digno de nota o trabalho, por exemplo, de Carlos Mesters

incentivador da leitura popular da Bíblia, e E. Käsemann, conforme o autor em pesquisa,

considerado o maior dos exegetas. Ele fundamenta seu método na busca da superação da dicotomia

entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. 391 BOFF, L., O despertar da águia, p. 21. Urge uma mudança do ‘eu’ para o ‘nós’. Cf. BOFF, L.,

“O individualismo tem ainda futuro?”. 392 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 34.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 218: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

218

O ser humano conjuga em si o ex-istente e o existente em relação.

Característica fundamental do ser pessoa, explica o teólogo, ele “ex-iste voltado

para fora (ex), em diálogo e em comunhão com o outro ou com o mundo”393. Nesta

dinâmica de doação de si, “é saindo de si que fica em si”394. A reflexão

antropológica nunca é fechada, determinista, acabada, nem muito menos, finalizada

no ser humano. A antropologia é uma antropogênese. E por ser também relação e

seu conhecimento ter necessariamente caráter aberto, o ser humano e o cosmos

estão em fase de gênese, em permanente evolução. “Não somente os humanos têm

história, mas todos, também os demais seres, pois todos estão dentro do processo

evolutivo”395.

Mesmo um olhar superficial constata a dependência do ser humano perante

a criação não-humana. Ele precisa, por exemplo, espaços de vida, produção de

alimentos, do avanço da técnica, um certo tipo de relação, o que o ausenta, ao menos

em princípio, de um antropocentrismo prático.

Interessante notar que o estudo da antropologia teológica quando aberto ao

diálogo com as ciências, respeitados seus respectivos âmbitos, para além de uma

atitude pacificadora ingênua e de recorrentes leituras opositivas, presencia um

movimento dialético do cosmos ao ser humano, onde tudo é relacional. É, pois, uma

dialógica que permite afirmar que no universo tudo é uno. O diálogo entre fé e

ciência enriquece a vida, em todos seus aspectos, pois faz despertar em ambas a

experiência do maravilhamento. Neste diálogo, a teologia poderá aumentar a

inteligência da fé e atualizar as implicações para o depósito revelado, ao “observar

com a ciência o antecedente e mais simples é essencial para apreciar o advento do

subsequente e maior” 396. Ainda nesta via, a teologia pode compreender o ser

humano como criatura num mundo em processo de criação. Um mundo não

acabado, mas em processo espera um diálogo constante. Para a teologia, com

certeza há influências recíprocas na acepção de relação e criação. A reciprocidade

propõe “mostrar como a reflexão teológica pode propiciar um contexto amplo e

generoso para a atividade científica” 397. O Verbo eterno não está em referência

393 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 33. 394 Id., O destino do homem e do mundo, p. 56 395 Id., O despertar da águia, p. 48. A mesma ideia é encontrada em outras de suas Obras, como Id.,

Ética da vida, p. 67; Id., O Destino do homem e do mundo, p. 18. 396 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 21. 397 Ibid., p. 33.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 219: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

219

somente a estágios temporais, antes, Ele qualifica o tempo; Ele é o futuro que

incide, sem dúvida, no presente398. A ideia de um mundo que, por sua própria

história busca a perfeição, provoca pensar que a escatologia não é mero devaneio,

mas está inscrita na intimidade mesma do ser do mundo.

Os processos históricos, enquanto provocam pensar, possibilitam a

descoberta do fundamento da fé. No entanto, eles não são a presença absoluto-

inequívoca de Deus, como poderia pressupor uma doutrina que afirma que o mundo

e Deus são a mesma coisa, ou seja, o panteísmo. Falar da fé no desenvolver da

história, significa, em negativa, que, deixada a si mesma ela não descobre seu

sentido, pois não é possível ao ser humano alcançar o conhecimento de sua

totalidade. Por outro lado, em positiva, significa que dentro dela está o desafio da

busca do sentido. A fé cristã, num primeiro momento, descortina um sentido que

ilumina a história. Num segundo momento, encontra o sentido na própria história,

na medida em que esta se torna o espaço do encontro e do diálogo, com Deus, na

Encarnação. Este sentido projeta uma luz definitiva sobre toda a história. A

construção histórica do ser humano pelo ser humano testemunha uma dimensão

transcendente dentro dela mesma399.

Esta visão da vida em processo de gênese está em referência aos estudos

com relação com a origem da vida na Terra. A cosmogênese e a antropogênese

seriam a condição originária da evolução. O universo em evolução compreende a

vida como uma realidade aberta, com interações criativas e integradoras, com

propósito inclusivo de todos os seres. O tema da evolução cosmológica, incluída a

evolução da vida, faz parte do labor humano de encontrar uma explicação científica

para o acontecimento inusitado e bastante improvável do surgimento da vida400.

A abordagem da vida com outra linguagem que não a científica expressa

nada mais do que a busca do ser humano de apreender uma experiência que o

envolve, porém, ao mesmo tempo, sente que algo maior e transcendente o

ultrapassa. Dentro do humano abriga-se o desejo do infinito. A partir desta

398 GNILKA, J. Jesus de Nazaré, p. 132. 399 Cf. LADARIA, L. F., Antropologia teológica, pp. 32-36. 400 A teoria da evolução afirma que para o constituir da vida, seus elementos foram formados em

estrelas, que explodiram, espalhando tais elementos por todos os lados. Depois de disseminados,

foram reunidos em determinado ponto. Este ponto, por sua vez, deveria ter condições bem concretas

para permitir a interação dos elementos entre si e com o ambiente, um suprimento de energia para

assim permitir o surgimento da vida. Ora, sabe-se que isso aconteceu em pelo menos um cantinho

do universo, a saber, o planeta terra. A pergunta que se coloca é: teria sido isso acaso ou providência?

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 220: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

220

experiência, o ser humano abre-se para as relações a fim de buscar um sentido mais

profundo da realidade. A persistência desta busca de sentido e profundidade desvela

uma força inominada de separação e atração ao infinito.

Neste assunto, E. Morin afirma que “desde a agitação térmica inicial, uma

dialógica indissociável acontece entre aquilo que separa, dispersa, aniquila e o que

religa, associa, integra”401. Sendo assim, o mundo que surge pela separação,

configura-se na relação entre o que é disperso. A vida surge deste entrelaçamento

de separação ou desorganização, que se muda no movimento de organização e

complexidade superior. No dizer de E. Morin temos na formação da vida: uma auto-

eco-organização.

Há uma força misteriosa de separação e unificação. Uma separa ao infinito

a outra extraordinária força unifica mesmo na dispersão, e religa todo o universo.

Há no cosmos um princípio ordenador e criador que fez existir a vida, mantendo-o

em expansão, involução, evolução e revolução permanente. Este princípio, para

quem o acolhe, nega, por si mesmo, que o universo seja criação do puro acaso ou

acontecimento aleatório.

Nesta aproximação, a questão da origem da vida impõe não mais uma visão

na ordem da reprodução incessante do eterno retorno. Sua origem e seu futuro

seguem uma ordem de complexidade crescente a partir de um fluxo permanente de

inter-retro-relações. A vida possui uma tessitura dinâmica, e seu dinamismo é

verdadeiramente criador402. Impulsionado pelo desejo de encontrar sentido em tudo,

o ser humano busca o conhecimento deste mistério de religação invisível e

universal, integrador e ético, enquanto experimenta o mistério de um sentido

velado, um princípio fundamento de religação de tudo com tudo.

A ciência moderna, muitas vezes, é apresentada como patrocinadora de uma

visão determinística da história. No entanto, a visão determinística não se deve à

ciência, mas ao cientificismo. Ela, por si, está situada em uma mudança histórica

401 MORIN, E. O método VI, p. 31. 402 LADRIÈRE, J. “Anthropologie et cosmologie", p. 159.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 221: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

221

em que a existência está à mercê da decisão humana403. Esta decisão espera que se

supere a exacerbada globalização e o cientificismo. Na leitura captada por L. Boff,

a humanidade não está mais sob o controle de um paradigma que plasmou a história

durante séculos, “de uma época de mudança passamos à mudança de época”404. A

história não é determinismo. Pelo diálogo antes mencionado, Deus pode continuar

sua criação, dando sentido à vida, ainda que a pessoa possa dizer não a este dom.

Trata-se de uma exigência interna e liberdade criativa do ser pessoa a não

acomodação ao que já foi apreendido. A vida, enquanto realização do ex-istente

humano, não se processa em parâmetros determinísticos, antes, é constituída de

processos contínuos de integração. A história, nesta mudança de época, está a

revelar uma existência em processo, isto é, em fase de gênese e de expansão. Daí

se pode falar em antropogênese. E porque está sob o regime de complexidade de

relações, não só o humano, também “o universo é evolução. Ele constitui uma

realidade aberta, sob o processo cosmogênico”405. A evolução do universo faz

despontar a genuína questão pela constituição do universo e da terra, do nascimento

da vida e do aparecimento do ser humano.

Antropologia e cosmologia não são, aqui, entendidas no nível de fusão ou

hierarquia. O universo não mais pode ser pensado num círculo antropocêntrico, nem

tampouco, natureza ser pensada como matéria prima ou condicionamento

extrínseco dos seres vivos. Certo que entre as duas há uma separação e que cada

uma possui seus direitos. Contudo, deve ser pensado uma articulação entre

cosmologia e antropologia a partir do parentesco estrutural e da mediação efetiva que

elas possibilitam.

Não podemos nos contentar em prolongar uma antropologia em direção da

natureza, pelo atalho, por exemplo, de uma reflexão sobre a noção de “mundo”,

403 Pode ser exemplificado o progresso científico-tecnológico resultando num domínio

extraordinário da pessoa em modificar sua natureza. O Projeto Genoma, a utilização de próteses, a

manutenção e controle da vida por meio de máquinas, colocam questões revolucionárias ao conceito

de ser humano. O avanço biotecnológico no anseio de superar os limites questiona radicalmente o

conceito de ser humano. Na tangente, lança-se a pergunta se o demonstrativo final resultará num

humano ou será superado pelo cyborg. Enfim, o progresso biotecnológico fará ‘evoluir’ um ser

humanizante em relações para todos os lados? Ora, o humanizante não será de forma alguma apenas

mais eficiente, mas justamente, mais humano. 404 BOFF, L., O despertar da águia, p. 26. 405 Ibid., p. 48.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 222: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

222

nem tampouco prolongar uma cosmologia em direção do ser do homem, pelo

atalho, por exemplo, de uma reflexão sobre a noção de “informação”406.

Em sua complexificação, o ser humano não só conhece, mas também tem

consciência que conhece407. Mas isto não é tudo. No mais profundo, ele é habitado

por inquietações, buscas, questionamentos existenciais que cedem lugar à

contemplação. O verdadeiro, agora, é captado na experiência do belo. O ser humano

conjuga em si o pensamento e a contemplação para encontrar o Infinito revelado.

Mesmo que na sua exterioridade, empenha em construir-se independente do

Transcendente, tornando-se mais racionalista. A arte, a festa, a poesia, a parábola,

a admiração pertencem ao seu mundo. Por diversos meios, Deus se comunica e se

faz compreensível. No olhar contemplativo para a natureza, o salmista dialoga com

Deus sobre sua origem: “Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas

que fixaste, que é um mortal, para dele te lembrares, e um filho de Adão, que venhas

visitá-lo?” (Sl 8, 4-5). O teólogo de Hipona exclama a beleza que ora contempla

“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis

dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos!”408. São expressões da linguagem da

criação que falam do reconhecimento da Graça, gesto de inteligência e de afeto

humano409.

A cosmogênese é posta em marcha pela ação criadora livre de Deus. A nova

cosmovisão não é mais aquela de uma ordem acabada ou da inteligência de um deus

alheio ao universo. A vida se mostra verdadeiramente como ato de eterna e criativa

jovialidade. A visão de mundo definida a partir do cosmos, agora, abre-se para uma

concepção de cosmogênese; processo contínuo e permanente de engendramento e

de evolução.

É esta mudança de época que T. de Chardin pretende examinar, colocando

à mostra a visão de um universo em movimento. Nesta via, emergem questões

vitais. Como fazer relação entre uma realidade gigantesca como é o mundo e a

406 LADRIÈRE, J. "Anthropologie et cosmologie", p. 155. Tradução minha. 407 SMULDERS, P., A visão de Teilhard de Chardin, p. 55. 408 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro X, n. 27), p. 265. 409 No dizer de Chenu, Deus se utiliza da Literatura, da estética para nos permitir compreendê-lo:

“se Deus fala aos homens falará a língua dos homens, não somente sua gramática, mas suas imagens,

suas categorias, seus procedimentos, seus gêneros literários, seus raciocínios. Todos os registros da

vida no Espírito se deram por um falar humanamente a Palavra de Deus”. Deus se dá a comunicar a

nós seres humanos por meios diversos e compreensíveis a cada pessoa. Os salmos cantam, os poetas

recitam, os pintores embelezam a moldura da vida... Àquele/Àquela que se põe a escutar, tudo fala

de Deus. CHENU, M.-D., "La literature comme lieu de la théologie", pp. 70-80.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 223: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

223

humanidade? Para onde vai este movimento de evolução? Para um sentido,

concêntrico, ou para o sem-sentido, o nada? O sentido só é imanente aos fenômenos

e a totalidade é absurda? Haveria uma relação concreta que dá unidade a toda

realidade?

Teilhard de Chardin “vê o mundo inteiro dirigido para o homem, e acima

dele, para o Filho de Deus feito homem”410. A existência num contexto de evolução

significa que o ser histórico, a partir de seu interior e de sua dinâmica, e não como

um ente separado e lançado ao acaso, já existe em processo de autossuperação, pela

via da interação. ‘Evolução’ suscita a imagem do desenvolvimento enquanto algo

dobrado ou envolvido411. A existência sob o signo da evolução está sob o efeito de

desvelamento, do ser envolvido. A fé cristã compartilha que o ser é envolto por

Deus, de sorte a ter nele seu existir. Trata-se, portanto, de admitir ou não um sentido

real e último para a Totalidade.

O impulso cristão é convite a estar em sintonia e síntese com o Mundo. A

mística cristã, para T. de Chardin, não cessa de fazer avançar as perspectivas de um

Deus pessoal, não somente criador, mas engendrador e totalizador de um universo

que Ele reporta a si pela vida da evolução.

Jon Sobrino coloca T. de Chardin no mesmo caminho daqueles que

atingidos pela fé, sentiram a necessidade de apresentar um ‘título’, isto é, uma

palavra modelar para descrever a realidade Jesus, em conformidade com as

necessidades históricas e culturais. Nesta permanente inspiração do Novo

Testamento, desde os inícios da fé, “é legítimo que Teilhard de Chardin, num

contexto evolutivo, tenha chamado Cristo de o ponto ômega da evolução”412.

Desde o princípio, Deus quis que o Filho fosse homem e para isso criou o

mundo recapitulando tudo nele. Ele é o ponto de convergência, da unidade do

divino e do humano. O Cristo cósmico, afirma L. Boff, é a resposta que T. de

Chardin buscava ao problema da unidade de toda a realidade413. A preeminência de

410 SMULDERS, P., A visão de Teilhard de Chardin, p. 31. 411 FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia, pp. 947-952 412 SOBRINO, J., La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas, p. 121. 413 Cf. BOFF, L., Evangelho do Cristo cósmico, pp. 10-17. T. de Chardin buscou uma ligação da

vida futura com a vida presente. Por muito tempo, a teologia cristã deteve-se no futuro escatológico,

como algo meramente futuro. Havia um esquecimento de que a escatologia é também parusia, isto

é, um já estar no mundo presente como resistência às culturas de negação e morte, no caso aqui,

representado pelo mundo moderno. O pensamento moderno pretendia colocar o indivíduo no lugar

de Deus cuja morte entendia ser importante para que o indivíduo-cidadão fosse livre. EUVÉ, F.

“Deus entre ciências da natureza e teologia cristã”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 224: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

224

Cristo, como o Primogênito de toda a criação é seu ponto de partida. Em Cristo,

“foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as

invisíveis. Tronos, dominações, principados, potestades: tudo foi criado por ele e

para ele. Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele” (Col

1,16-17).

Como diz T. de Chardin, o corpo de Cristo faz-se encarnação. Jesus, o Verbo

eterno, está presente em toda realidade humana e cósmica; compreendido de

maneira patente ou anônima. Nele, a autocomunicação de Deus atinge sua

culminância. A começar pela criação tudo foi feito por meio dele, e tudo está

incluído nele que é Deus pessoalmente. A Encarnação não é meramente um fato

bruto do passado. É o abrir-se de uma história humana atingida pela fé. Encarnação

constitui um fato histórico em que “Jesus foi inserido dentro da humanidade. Por

aquilo que é homem-corpo, Jesus assumiu um pedaço vital da matéria. Em razão

disto, se relaciona com nosso mundo em cosmogênese”414.

Verifica-se uma comunhão com a Igreja quando ela reflete sobre a revelação

de Deus a partir da realidade, no Concílio Vaticano II.

O próprio Verbo de Deus, por quem tudo foi feito, fez-se homem, para, homem

perfeito, a todos salvar e tudo recapitular. O Senhor é o fim da história humana, o

ponto para onde tendem os desejos da história e da civilização, o centro do gênero humano, a alegria de todos os corações e a plenitude das suas aspirações415.

A pessoa humana só encontra seu verdadeiro caminho de integração nesse

encadeamento, nesse processo evolutivo que caminha em direção ao ponto ômega,

o Cristo. Desde seu ponto inicial, a vida horizontaliza para o ponto Ômega, lugar

supremo da evolução humana, e verdadeira humanização em Cristo. O Cristo,

Jesus, é o Alfa e o Ômega. Dentro deste processo, a criação da vida permite entender

o mundo a partir da Encarnação, e por consequência, abrir-se para o sentido na

história surgido de forma pessoal e humana em Jesus de Nazaré. O mistério de

Deus-Trino-criador é o teor da Revelação. O Verbo de Deus é a síntese, o ponto

ômega do processo da evolução, a plenitude do humano.

Esta dinâmica, o cosmos e o ser humano em permanente processo, mostra a

dimensão de cuidado para com o outro, funda uma nova lógica para as relações. Por

414 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 226. 415 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n.45, p. 193-194.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 225: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

225

isso pode-se falar em cosmogênese e antropogênese. Esta, por sua vez, torna-se

muito mais abrangente, torna-se a cristogênese. O ato amoroso e gratuito de Deus

não termina no ser humano, mas orienta-se, graças a Cristo, para a integração plena

de todas as relações. O ser humano junto com todas as criaturas está sob o cuidado

providencial de Deus.

A busca humana pelo sentido da vida encontrará, decerto, sua culminância

dentro deste processo de evolução ascendente, complexo e convergente para Cristo.

Em constante movimento de busca, o ser plenamente humano é investido de um

mistério que o transcende e perpassa toda sua existência, e confere pleno sentido à

vida.

4.3.2. Mistério de transcendência –transparência – imanência

A narrativa bíblica fornece o material fundante e indispensável à reflexão

teológica. Esta é uma experiência que, por si mesma, é confrontada com a vida

cotidiana do ser humano. Dizer mistério significa tratar de uma realidade

experimentada, que, contudo, ultrapassa o discurso racional. Pelo Mistério, Deus se

manifesta às pessoas, e nelas revela o sentido da existência humana.

O ato criador de Deus evidencia seu mistério em todos os seres vivos.

Inversamente pode-se também afirmar: a vida põe em evidência um mistério

próprio do Criador. Um só mistério. Em Deus não há duplicidade, mas unidade: O

Deus que é em si, é também o Deus que é relação para fora de si416.

O mundo criado não é o lugar absoluto da existência de Deus, mas o lugar

preparado por Deus, através da criação. Igualmente, o mundo não existe por si

mesmo, não encontra seu sentido só por si mesmo. Ele existe e encontra seu sentido,

enquanto lugar-presença de Deus. O Deus que é em si, não se trata do eterno Deus

em si como limite do mundo como parecia pensar Newton, mas o Deus criador em

relação para fora de si, isto é, Deus em relação com o mundo417.

416 A base cristológica de Orígenes – escritor da antiguidade cristã – é a distinção entre o que Cristo

é em si (Filho Unigênito), o que é em si e para nós (Sabedoria, Logos, Verdade, Vida) e o que é só

para nós (redentor, caminho, porta, etc.). CROUZEL, H. “Orígenes”, n.1045-1050. 417 Cf. MOLTMANN, J., Doutrina ecológica da criação, p. 232.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 226: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

226

Nas esteiras desse mistério de Deus para a existência humana e Deus em si

mesmo, enquadra-se o famoso ‘axioma fundamental’ rahneriano: “A Trindade

econômica é a Trindade imanente, e vice-versa". Trata-se do mistério de salvação

comunicado, não uma curiosidade; mistério sem o qual não se realizaria de modo

definitivo e radical, a busca pelo sentido de nossa humanização.

L. Boff assume radicalmente esta proposição, ao tratar de dizer o que

significa a presença da Trindade na história e a história na Trindade. O modo de

Deus estabelecer relações com o ser humano é o modo no qual Ele subsiste. Por

conseguinte, se Ele aparece como relação de Trindade é porque Ele é em si mesmo

Trindade de relação. O Deus que se revela para o ser humano é também em si

mesmo o divino transcendente. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo418.

Tendo como pano de fundo o Mistério da unidade em Deus, a experiência

cristã testemunha que o Deus-Trino de relações não existe num círculo fechado em

si mesmo. O que Deus é, é o Deus que se faz conhecido por sua ação no mundo. A

própria revelação histórica abre as portas para o humanamente possível de se

conhecer Deus.

Contudo, por um lado, o Mistério não se esgota no evento da Encarnação.

Como bem afirma, Gutiérrez, “a habitação de Deus na história atinge a plenitude

na encarnação”419. Por outro, parece ser ilusório pensar que possa ser encontrado

fora da história. A história não é uma contingência para o ser humano. Ela é o locus

de sua existência e realização em todas as suas relações, a dimensão individual e

coletiva de construção da vida. Jesus não é estranho à história humana, isto releva

substancialmente o ser humano.

A fé no Deus-criador afirma que a vida é expressão de um ato de amar

inaugural e criativo de relações. A este ato vincula-se a decisão humana de admitir

ou não um sentido último para a totalidade da vida. De fato, ao dizer que o Criador

é também criativo, significa dizer que ele não nos entregou um sistema fechado,

mas um sistema que oferece várias possibilidades. Somente uma fé comprometida

com a vida é capaz de afirmar um sentido, somente assim ela mostra sua dimensão

de imanência e transcendência. A vida por ter caráter de existência nunca é

abstração. Como já dito, e vale aqui repetir, a existência está para além de uma

valoração que lhe possa ser dada. Ela encontra em aberto um discurso que nem

418 Cf. BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 124. 419 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 112.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 227: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

227

mesmo está delimitado pelo espacialmente visível, nem se prende à experiência

imanente da história. Ela atesta o ato criador, sua existência na imanência,

ultrapassando em transcendência.

L. Boff faz questão de afirmar que o encontro com o mistério transcendente

Trino acontece dentro da experiência do mundo. Para ele, Deus somente se torna

real e vivo para o ser humano se emergir da radicalidade da experiência do mundo,

como sentido, como mistério que suporta o mundo, como força libertadora420. Sua

teologia não se limita a pensar o mundo, mas deixa-se tocar pela realidade, e dentro

dela encontra o Mistério.

Falar da unidade em Deus é, portanto, falar do sentido do mistério de

transcendência atingido e apreendido na imanência. Significa falar de Deus não

acima, nem fora do mundo. A consciência desta unidade de Deus visa expressar o

dinamismo captado no surgimento da vida, a presença de Deus criadora e

principiante no universo, fazendo emergir sua presença na consciência dos seres

humanos.

Deus emerge na história como Aquele que está sempre além, em aberto, na

caminhada, na construção humana, em suma, envolto em inter-retro

relacionamentos. Desde as origens do mundo e da humanidade, “Deus pairava sobre

as águas” (Gn 1,2). A origem da vida diz que a existência é envolvida por Deus, de

sorte que existir é dom. A partir disto, não seria mais admissível uma concepção de

Deus em si, fechado em si ou fora do mundo, que viesse à história para se completar.

Nem se pode continuar afirmando uma teologia de separação na Trindade, a qual

somente seria compreensível num período ainda próximo ao Jesus histórico. “Na

época patrística costumava-se estabelecer a distinção entre ‘theologia’ (doutrina da

divindade das três pessoas) e ‘oikonomia’ (doutrina do Logos em sua encarnação)

”421. Hoje se deve dizer que o Deus que se deixa encontrar na oikonomia é o mesmo

da theologia. É verdadeiro afirmar que o ser humano está dentro de Deus, e que

Deus está dentro do ser humano.

Conforme Paulo, não só Cristo está em relação conosco, como cada uma das

três pessoas. Somos um só com Ele e a própria vida da Igreja também manifesta

esta união. Assim, o Apóstolo visa despertar para o ‘ser em Cristo’. Ora, a fé cristã

não reconhece qualquer cisão com relação à vida. Há só uma união com o Salvador

420 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 9. 421 FRANÇA MIRANDA, M., Libertados para a práxis da justiça, p. 12.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 228: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

228

e é aquela que se realiza através na comunidade dos fiéis. “Nós somos muitos e

formamos um só corpo em Cristo, sendo membros uns dos outros” (Rm 12,5).

“Aquele que nos fortalece convosco em Cristo e nos dá a unção é Deus” (2Cor

1,21). Esta união operada pelo Espírito. “Evidentemente, sois uma carta de Cristo,

entregue ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus

vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações” (2Cor 3,3).

Os antigos manuais acentuavam uma diferença entre Deus e mundo no

modo de considerar a transcendência de Deus, de modo a estabelecer uma forte

contraposição entre Deus e mundo. Esta visão tem, entre outras, a consequência de

apresentar o Mistério de transcendência e imanência pela via da oposição e

unilateralidade.

Sem fazer juízo de valor, constata-se que a civilização pós-moderna,

marcada pela instabilidade e por novas relações sociais sem precedentes, caminha

para um novo e diferente tipo de ordenamento histórico-cultural. A intensificação

do processo da globalização conecta comunidades e organizações em novas

combinações de espaço-tempo e dos problemas ecológicos, imprime uma nova

cosmovisão na história.

A busca pela nova, e sempre incipiente, compreensão do ser humano

acentua a transcendência de Deus e sua imanência no mundo. Moltmann

desenvolve uma doutrina ecológica da criação, que visa uma nova compreensão da

imanência de Deus no mundo. Esta presença de Deus que penetra no mundo se pode

dizer melhor através do espírito criador. Pois através desse Espírito, o criador faz

morada em suas criaturas, vivifica-as, mantém-nas na sua existência e as conduz

para o futuro do seu Reino. Nesta perspectiva, o Deus criador do céu e da terra está

presente em cada uma de suas criaturas e na comunhão da criação através de seu

Espírito cósmico. A história da criação, pelo Espírito, não está centrada nela

mesma. Ela é ‘excêntrica’, constituída por terra e céu; “a presença de Deus penetra

todo o universo”422.

Deus é o mistério de transcendência presente em todas as coisas existentes

e possíveis, absolutamente além de qualquer horizonte real e possível. Mistério que

antecipa e adentra qualquer desejo e ação humana, “por ser transcendente em cada

422 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 33.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 229: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

229

concreção, a ele nunca vamos dele jamais saímos. Sempre estamos nele. Embora

dentro, ele está para além de tudo”423, escreve L. Boff.

A própria criação expõe e releva a imanência de Deus. Sua transcendência

veste com cuidado até as ervas dos campos (cf. Mt 6,30-34). Deus não somente está

presente no mundo, como também o mundo está presente em Deus, e, em quem o

reconhece, faz brotar a admiração e a alegria pelas suas obras (Cf. Salmos 8,135,

139, para citar alguns).

Sua íntima imanência é presença da Transcendência em todas suas criaturas,

mesmo se não necessariamente captável pela existência. Deus é Mistério que

sempre se revela, sempre se comunica, sem se confundir com o mundo. Quando

este mistério de transcendência é ofuscado não somente pela sua acentuação

unilateral424, como também por relegar a um segundo plano, torna-se negação ou

da divindade ou da humanidade de Cristo.

O modo de relacionar-se de Jesus adentra na proximidade com o Pai. Jesus

não fala de um Deus transcendental, fora do mundo, mas “refere-se a Ele sempre

numa conexão com este mundo, portanto transparente, no interior de uma

experiência concreta”425. Na expressão de Jon Sobrino, a “realidade última” para

Jesus não é simplesmente Deus. Jesus pregou a respeito de Deus e do Reino. Aquilo

que é determinante para ele é Deus em sua relação com a história da humanidade;

a dimensão transcendente e histórica: uma relação de diálogo, que deixa Deus ser

Deus426.

A palavra-ação de Jesus revela um só mistério, de imanência e

transcendência acontecendo na realidade humana. Nele, o transcendente, se fez

imanente na história. A experiência humana de Deus em Jesus, “celebra a absoluta

auto-comunicação de Deus; canta a radical proximidade do Mistério; alegra-se com

423 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 18. 424 Ainda hoje, as gnosiologias, no que se refere o ser humano, estão expostas a múltiplas polêmicas.

Comumente, encontram-se debates que primam em enfatizar seu caráter monádico de ser sociológico, ou teológico, ou filosófico, ou eclesiológico ou físico. O conceito monádico fragmenta

o ser pessoa humana. Cria-se uma imagem estereotipada de um ser, com aparência de humano,

sucateando o humano, adiando sua plena humanização. Parece, que a busca de um pensamento

complexo ou transdisciplinar, na prática, provoca certo estranhamento. O pensamento de L. Boff é,

desde sua primeira obra, uma busca de pensar a existência humana como nó de relações voltado para

todas as direções. Ser pessoa compreende uma individualidade irredutível, mas sempre aberta aos

outros. Neste diálogo e construção de relações, sua história é parte da história bio-sócio-cultural,

cósmica. Assim, L. Boff trafega pelas diversas disciplinas, sem um anúncio prévio, pois pensa o ser

humano em seu enraizamento pessoal-espiritual-cósmico. 425 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 99. 426 Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 105-110.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 230: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

230

a benignidade de nosso Deus”427. Ele não fala de Deus através de fórmula ou

tratados de fé, mas em sua pessoa. Suas palavras estão ligadas a situações concretas

da vida, pois em primeiro lugar vinha à contemplação da vida.

Gonzalez Buelta, dirigindo-se a Deus diz: assumistes de tal modo a

Encarnação que não tiveste medo “de comparar Deus com uma mulher pobre, que

varre os cantos com cuidado em busca da moeda perdida entre o lixo da casa. Tu

procuravas ‘pecadores’ (Lc 15,8-10) com o mesmo cuidado e carinho da mulher”.

Na cotidianidade da vida entre o povo, “te encontraste Ti mesmo, rosto feminino

do ‘Reino’ recriando a história”428. É o Filho de Deus, tomando humanamente

consciência de si próprio. É a presença do Espírito que o faz escutar do Pai de quem

ele é o Filho amado (cf. Mc 1,11). Esta presença é para Jesus o núcleo essencial de

sua experiência de Deus. A fé cristã testemunha a presença misericordiosa de Deus

dentro da vida para todos os seres.

A vida do homem Jesus é a vida de Deus mesmo. Nele se encontra, em total

equilíbrio e plena harmonia a transcendência de Deus e a imanência humana,

embora Ele esteja em tudo, mas não tudo é Deus.

Continuamente, a compreensão do Mistério da transcendência e imanência

corre o risco de ficar encerrada em si mesma. Deus é sempre aquele que vive em si

e se dá ao mundo. O mundo é sempre aquele que o recebe. Tal visão é suscetível de

alimentar uma visão dualista: Deus e mundo, sagrado e profano, bom e mal, céu e

terra, graça e pecado. Nela, vigora uma leitura de oposição e exclusão, o que leva a

desintegração do humano ao se interpretar a unidade divina. Supervaloriza uma

única dimensão do Mistério ao que conduz, na verdade, à sua negação. Em suma,

gera, instala e promove uma crise de sentido da vida. De fato, um deus alheio ao

mundo, torna-se um Deus dispensável.

No pensar o Mistério de Deus-Trino, Leonardo Boff sinaliza a presença de

uma outra categoria de linguagem que intermedia e afirma a transcendência e a

imanência. A vida no universo não é passivo receptáculo de Deus, nem opaco à sua

Presença. Em Deus não há duplicidade, nem contradição, Ele não é só

transcendente, nem é só imanente. Ele deixa visibilizar uma outra realidade. Isto

significa que a existência deixa à mostra um Real, que ao mesmo tempo, é diferente

dela. Este caminho, permite introduzir a categoria da transparência, que possibilita

427 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 86. 428 GONZÁLES BUELTA, B., “Rosto feminino do Reino”, p. 21.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 231: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

231

uma relação consistente de harmonia, positividade, integração da presença de Deus

dentro do mundo e do mundo dentro de Deus. Melhor seria dizer, é experiência de

Deus como transparência do mundo.

Nas palavras de L. Boff, a transparência inclui a transcendência e a

imanência, “ela participa de ambas e se comunica com ambas. Transparência

significa a presença da transcendência dentro da in-manência”429. Esta afirmação

vem da fonte Paulina, onde ele lê "Há um só Deus Pai de todos, que está acima de

tudo [transcendente], por tudo [transparente] e em tudo [imanente] (Ef. 4,6)”430.

Inspirado pelo mesmo Mistério que atraiu Teilhard de Chardin, L. Boff afirma: "O

grande mistério do cristianismo não é exatamente a Aparição, mas a Trans-parência

de Deus no Universo. Oh! Sim, Senhor, não só o raio de luz que passa roçando, mas

o raio que penetra. Não vossa Epi-fania, Jesus, mas vossa Dia-fania”431.

A transparência possibilita que a humanidade de Jesus se torne translúcida,

e a transcendência concreta, constituindo o processo unitário e complexo da história

da existência humana. A vida do homem Jesus, não é senão, a vida de Deus, o qual,

junto com o Espírito e o Pai, torna a existência humana participante da vida de Deus.

Em Jesus se encontram a transcendência divina e a imanência humana432, fazendo

que ele seja transparente de Deus.

Deus não se utiliza de instrumentais nem de súditos. Radicalmente ama e

plenamente se entrega, na liberdade. Seu amor vence a morte, pois coloca a vida

429 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 24. A mesma ideia é encontrada em outras obras de sua autoria,

como: Id., A águia e a galinha, pp. 169-175; Id., Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos,

pp. 28-30. Id., Jesus Cristo Libertador, pp. 210-215. 430 Id., Experimentar Deus, p. 24. Também na obra: Id., Os sacramentos da vida e a vida dos

sacramentos, p. 34. 431 TEILHARD DE CHARDIN, P., Le milieu divin, p. 162. In: BOFF, L., Experimentar Deus, p. 24. 432 No Concílio de Calcedônia (451) os Padres Conciliares completam o que vem a ser, hoje, o Credo

niceno-constantinopolitano. “Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido em duas

naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação […]; não dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo,

como anteriormente nos ensinaram a respeito dele os Profetas, e também o mesmo Jesus Cristo, e

como nos transmitiu o Símbolo dos Padres”. O Deus de Jesus é a Trindade, e o Filho de Deus é

verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e

declarações de fé e moral, n. 301-302. Com João Damasceno, século VIII, aparece uma das

primeiras sínteses teológica. “Quem pois, queira falar a respeito de Deus, deve saber claramente que

nem todas as coisas são indizíveis, nem tampouco são todas dizíveis, tanto aquelas que nos vêm da

teologia, quanto aquelas que nos vêm da Economia [...]. Em conclusão, à exceção daquilo que de

maneira divina nos foi manifestado, anunciado ou revelado pelas Santas Escrituras do Antigo e do

Novo Testamento, é impossível, no que respeita a Deus, dizer ou simplesmente compreender o que

quer que seja”. JOÃO DAMASCENO, S., La foi orthodoxe, pp. 139-143. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 232: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

232

atrás do amor433. A ressurreição de Jesus é superioridade do amor sobre a morte,

pois seu amor é para todos e amor de total referência ao Pai.

Em Jesus, permanece a decisão do Deus libertador figurada no Êxodo de

cuidar da vida em sua inteireza. Ele desce até a história, faz-se humano, desde então,

toda história é sagrada (cf. Êx 3,7-8). Seu modo de viver as relações manifesta o

advento do tempo da Graça (cf. Lc 4,17-18). Seus sentidos, estão direcionados a

cuidar da vida, por isto ele olha, escuta, sente o pulsar da vida, enobrece a dignidade

da vida, tocando com seu próprio ser a realidade. É diante deste Mistério-Trino,

presente em todos os seres e em todo o universo, que se intui o sentido da vida. A

relação de Deus com o ser humano e com o mundo é o próprio mistério de Deus,

do ponto de vista humano. E um amor misterioso não se demonstra: intui-se,

retribui-se, ama-se. Ele já é a promessa de um futuro bom.

No confronto desta Presença transparente impõem-se questões. Mas, quem

é esse homem que por sua palavra e ações pergunta sobre sua identidade (cf. Mt

16,15). Quem é esse que desde os Apóstolos e a primeira comunidade cristã faz

emergir a questão de sua profunda humanidade e íntima relação com o Pai (cf. Jo

4,10; 5,12s; 8,25; 12; 34)? Quem é esse homem que revela o mistério de Deus, sem

deixar de ser Mistério de transcendência? Quem é esse homem, Jesus que evoca o

mistério do ser humano? Tais questionamentos terão alguma incidência na busca

pelo sentido presente no sujeito pós-moderno? Torna-se, então, necessário

perpassar alguns escritos do Novo Testamento, que de per si deixam de sobreaviso

que Jesus possuía uma grande capacidade de adaptar os textos à situação concreta

de cada pessoa, sem nenhuma preocupação em registrar o que falava. Seu intuito é

horizontalizar a pessoa para o futuro em Deus.

A centralidade conferida pela fé cristã à humanidade de Jesus constitui o

eco de sua proposta a uma integração humana em todas as relações. Jesus é o

Samaritano bom que ao ver a falta de vida desce para cuidar, fazendo-se promessa

de cumprimento cuidador da vida. Coloca sobre si o ser solitário e ferido e leva o

homem para a pensão da solidária vida (cf. Lc 10,34). Mostra um Deus amor

sensível ao sofrimento e com tudo que fere a dignidade humana e faz sofrer434. O

ápice e momento último do retorno torna-se festa (cf. Lc 15,23), libertação do jugo

433 Cf. RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, pp. 254-260. 434 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, pp. 109-143.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 233: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

233

opressor da doença435 (Lc 13,13; 5,24), reintegração das relações com os outros e

com Deus.

Ele cuida da vida. A atitude de cuidado de Jesus afeta a todos, faz emergir a

verdadeira integridade da pessoa, na sua verdade. Sua provocação aos que estão ao

seu redor emerge de sua missão de fazer sobressair a vida e não apenas cumprir a

lei. Seu Deus não é um Deus que se impõe, mas que doa a vida pura e simplesmente.

Desse modo, “o cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano. O

modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano”. 436 A

transparência no modo de ser cuidado de Jesus integra a vida na sua totalidade e

originalidade.

Jesus é o doador da vida, enquanto o ladrão rouba, corrompe, destrói a vida.

O antagonismo com o usurpador da vida torna-se maior quando Jesus declara a

prodigalidade da vida trazida em sua pessoa “Eu vim para que tenham vida e a

tenham em abundância” (Jo 10,10). A incomparabilidade de Jesus não está somente

em possuir e proclamar a vida, mas em oferecer a vida em abundância. Ele é a vida

escatológica, a vida realizadora de sentido para todas as relações. A vida em

abundância trazida por Jesus torna-se um questionamento com relação à vida ferida,

negada, sem-sentido. Uma Vida de contemplação das pessoas em felicidade plena

excede a ideia de simplesmente ter vida.

Jesus apresenta-se como o pastor esperado e único, o bom pastor (cf. Jo 10,

14). 437 Ele é o pastor do povo porque dá sua própria vida pelo povo. Seu amor é

extremado e absoluto e coloca a vida e a morte à sua disposição. Este amor em

evolução é assinalado por Ratzinger na linha de Teilhard de Chardin.

Só onde o valor do amor sobrepuja o da morte, isto é, onde alguém está disposto a

colocar a vida atrás do amor e por causa do amor, somente ali o amor será capaz de ser mais forte do que a morte. Para ser mais forte do que a morte, o amor há de

ser primeiramente mais do que a vida. Se conseguisse isto não só pela vontade, mas

de fato, significaria que a força do amor se teria elevado acima da capacidade

biológica, colocando-a a seu serviço. Falando-se em termos de Teilhard de

435 Jesus curava os doentes e compartilhava da mesa dos pobres. Simplesmente desafiava a

legitimidade do poder espiritual do Templo e do sacerdócio templário; pois estar doente era estar

em situação de pecado, longe de Deus e só no Templo podia curar e pra isso devia ser pago. Doença

no tempo de Jesus significava: pobreza, falta de trabalho, situações de conflito social. Cf.

HOORNAERT, E., O Movimento de Jesus, pp. 69-84. MATEOS, J.; CAMACHO, F., “Jesus e a

sociedade de seu tempo”, p.43. 436 BOFF, L., Saber cuidar, p. 34. 437 O adjetivo bom (grego kalós, literalmente belo) usado pelo evangelista não se refere a bondade

de Jesus, para a qual o evangelista emprega agathós (Jo 7,12), mas à sua unicidade de Pastor, e

indica aquilo que é verdadeiro, ideal, modelo de perfeição. MAGGI, A., A loucura de Deus, p. 108.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 234: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

234

Chardin: onde tal coisa se desse, teria lugar a decisiva "complexidade" e

"complexão"; ali também o bios (a vida) estaria envolvido e incluído no poder do

amor438.

Entrar pela porta-Jesus é alcançar a Salvação (cf. Jo 10,1). Esta entrada

caracteriza-se pela liberdade de ir e vir, de entrar e sair, que sempre encontrará o

sustento. Encontrará sempre um lugar de repouso seguro, fontes tranquilas,

alimento e revigoramento da vida (cf. Sl 23).

A vida de Jesus é constituída de ‘ser-relação’. Em sua irrestrita entrega de

si mesmo ao Pai, afirma a experiência da fé neo-testamentária. Aparece de modo

visível em Jesus, o rosto de um Deus vivo, cuja alegria é a vida em abundância para

todas as pessoas. Na apropriação do título de uma das obras de L. Boff, quer-se,

concretamente dizer que, em Jesus, Deus “é a graça libertadora no mundo”439, pois

a graça não é outra coisa senão a generosa presença de Deus no ser humano. A

Graça remete a uma experiência histórica, diferente de uma vida de fuga do mundo

real. É na história que a pessoa se percebe como ex-istência, presença no mundo,

como relação, presença com o outro, e como participação, presença de abertura para

o ‘hoje’ de Deus. Deus só terá sentido de integração da vida se fluir de dentro da história

humana. O ‘ser-relação’, em Jesus, não aparece apenas como um modo de agir e

ensinar, mas remete à sua originalidade, ao núcleo do seu ser. Sua Vida é vida-para-

os-outros. L. Boff observa que Jesus “vive a vida como doação e não como

autoconservação”, isto é, vive como aquele que serve, o que explica que ele “não

conhece tergiversações em sua atitude fundamental de ser sempre um-ser-para-os-

outros”440. Sua doação culmina na entrega de sua própria vida. Assim, não hesitou

em assumir as consequências de uma vida de doação e de defesa dos mais fracos.

Jesus anuncia que o Reino de Deus se aproxima, ‘está às portas’ ao dizer

que este Reino se aproxima dos pobres. “Os cegos recuperam a vista, os coxos

andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos

438 RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, p. 145. A fé na providência e no governo divino

não é, em princípio, incompatível com a visão evolutiva da natureza. Contudo, a descoberta do

caráter evolutivo do universo provoca a (re)descoberta de uma nova imagem de Deus e a

consequente elaboração de uma nova teologia da natureza: o Deus relacional, revelado em Jesus

Cristo e compreendido a partir da kenosis e da promessa, é o fundamento para a compreensão do

surgimento e da manutenção de um mundo em contínuo movimento e evolução: um mundo, por

definição, incompleto e imperfeito, mas que avança em direção a um Futuro que vem a ele, rumo a

uma salvação cósmica. HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, pp. 123-156. 439 BOFF, L., A graça libertadora no mundo. 440 BOFF, L., Paixão de Cristo, Paixão do mundo, pp. 33-34.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 235: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

235

pobres é anunciado o Evangelho”. (Lc 7,22). Sua pregação implica a superação da

miséria presente e a reconciliação das pessoas consigo mesmas, com os outros e

com Deus, com todos os seres. O Reino de Deus é dom da ação de Deus, e se traduz

em Graça. Jesus ao anunciar que o Reino de Deus é dos pobres não apenas suscita

uma esperança, como se o Reino fosse uma realidade totalmente transcendente, que

só se manifestará depois e para além da morte, mas age na história buscando

transformá-la. O agir de Jesus é motivado pelo amor e pela compaixão. Conforme

bem observa L. Boff, em seu mistério de transparência, Jesus deixa claro: o ser

humano somente pode encontrar a felicidade na abertura ao outro e ao Grande outro,

Deus441.

O Reino pertence ao tempo do kairós; envolve a história, sem dissimular-se

no intimismo ou no espiritualismo. Sem perder seu mistério escatológico, o Reino

no tempo Cronos, é ponto de partida, “é um projeto de Deus que ocorre no coração

de uma história na qual os seres humanos vivem e morrem, acolhem e rejeitam a

graça que os transforma a partir do interior”442. Na afirmação de L. Boff, Reino de

Deus, abrange “a totalidade desse mundo material, espiritual e humano agora

introduzindo na ordem de Deus”443. O Reino proclamado por Jesus é convite alegre

e libertador em experimentar o extraordinariamente humano que se manifesta na

ordem do divino.

Em toda sua palavra-ação, Jesus é o tempo da libertação e da alegria444. Ele

vive a dimensão do cuidado, das relações integradas horizontalizadas para Deus,

entre as pessoas e todas as coisas criadas. Nele, o mistério do Deus-transcendente-

Trino faz-se realidade de encontro na história. Portanto, a história torna-se o espaço

do encontro com o mistério divino, pois evidencia o ser de Deus. O Mistério contém

a experiência do mais radical fundante da vida, de um transcendente nas relações.

O mistério de Cristo lança luz definitiva sobre o mistério da criação e revela o fim

para o qual "no princípio, criou Deus o céu e a terra" (Gn 1,1); desde a origem da

vida, Deus contemplou a glória da nova criação em Cristo.

441 Cf. BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 108. 442 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 136. 443 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 69. 444 Outras passagens poderiam ser explicitadas na tentativa de descrever o homem Jesus, como

despertador da consciência humana, conselheiro, comensal e amigo, solidário com o sofrimentos

humanos, inclusive ele mesmo sofredor na cruz.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 236: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

236

A questão do mistério de transcendência, imanência, transparência pertence

ao próprio mistério do Deus-Trino. No princípio de tudo está o encontro com Deus,

Transcendência, mas juntamente com o mundo e no mundo, Imanência, e através

do mundo, Transparência. L. Boff busca pensar a existência humana, em

perspectiva “histórica, aberta e dinâmica, onde, de fato, transparece o Mistério, a

dimensão de imanência e a de transcendência, isto é, aquilo que chamamos Deus”

445. Mistério de Amor e comunhão, do Pai em bondade geradora, do Filho e do Pai

em diálogo de transparência plena, espirando o Espírito, fruto do amor comunhão.

A transparência realiza a harmonia entre a transcendência e a imanência.

Neste processo ditoso, a busca do ser humano pelo seu sentido, pode encontrar sua

verdadeira humanização. A transparência manifesta assim, caráter solar e diáfano,

densidade e inteireza de ser.

No que concerne ao sentido da vida como busca de integração do ser

humano, um passo a mais precisará ser dado no dinamismo que o manifesta. A

reflexão deve abrir-se para pensar Deus como sentido de relação, comunhão, numa

recíproca compenetração entre as pessoas divinas, e recíproca relação entre Deus e

a vida no universo.

4.3.3. Sentido de relação – comunhão – pericórese

Será suficiente dizer que o humano é realmente pessoa quando está em

relação? Ou o estar em relação com Deus e com todas as criaturas faz

essencialmente parte do ser pessoa? Qual é o sentido mais verdadeiro de estar em

relação? Haverá uma palavra humana que contemple de modo verdadeiramente

significativo às relações humanas? O dizer teológico é sempre por princípio aberto

ao simples e incomensurável fato de a realidade “Deus” ser nomeada dentro de

limites históricos, contingentes e fragmentários.

Como ser de linguagem, o ser humano experimenta a necessidade de

comunicar sua vivência relacional. A linguagem torna expresso o pensamento

445 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 9.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 237: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

237

humano, ao mesmo tempo em que faz compreensível o modo como se estabelecem

as relações com Deus e com todas as outras criaturas, inclusive consigo mesmo.

Contudo, presencia-se uma supremacia da linguagem discursiva que mais

confunde a dignidade do ser humano, pois se estabelece como a medida da utilidade

e da eficiência. Neste aporte, L. Boff alerta para outras dimensões da vida, como a

sensibilidade, a criatividade, o afeto, a cooperação, sem menosprezo do logos,

compreendido como a capacidade de intelecção. A vida, em seu sentido mais

verdadeiro tendo as relações como chave de integração deverá mais ser pensada

pelo horizonte do existente processo complexo, isto é, a existência como relações e

conexões em todas as direções. É preciso buscar uma compreensão da vida em

unidualidade, assegura E. Morin. Trata-se de pensar a complexidade humana em

inclusão com o físico, biológico, antropológico, sociopolítico, em formas inclusivas

e complexas a um só tempo, enquanto que a crise fragmentadora do sentido da vida

e o desperdício da abundância de vida na pós-modernidade, conforme visto, são

gerados no nível do justapor, reduzir e aplainar a vida, conduzindo-a sob o princípio

de um determinismo do universo ou da separação.

A busca pelo sentido da vida, empreendida pelo ser humano, implica dar-se

uma significação, em uma rede de relações conectada, aberta e em evolução. O ser

humano encontra sua realização em uma ordem de grande complexidade,

pericorética, integradora, presente na relação do Mistério-Trino446. Esta busca

supõe uma concepção que não apenas contrapõe, mas busca superar a antropologia

moderna tanto do dualismo cartesiano, quanto do monismo materialista, e questiona

a coisificação da vida humana e a ideia de uma aparente ausência de Deus.

A pós-modernidade evidencia a crise de um sistema de crenças. Isto é, ao

deslegitimar a esperança na razão, também não resta razão para esperar. É a

renúncia ao sentido, e o lançar da crise desintegradoras da vida. No bojo desta

experiência, há uma inquietação humana, pois se trata de uma realidade imposta e

exterior a ele, e assim busca o sentido que integra e a partir de seu interior.

446 A partir da compreensão de pericórese, como comunhão e unidade de alteridades, Susin convoca

a história humana a reconciliar com o complexo ecossistema Terra. O ser humano precisa sair do

seu antropocentrismo para uma comunhão onde a história humana, reconciliada com todo os seres

vivos, se abra e avance em direção ao destino de novos céus e nova terra. Ao tratar da pericórese e

reconciliação com a história da natureza, ele afirma que “não basta recuperar a experiência da terra

como história da vida e o universo como criação, mesmo que seja desde alguma explosão originária

– o “Big Bang”. É necessário recolocar o destino da terra e do universo, portanto a sua escatologia

– e não só a escatologia da humanidade”. SUSIN, L. C., Assim na terra como no céu, pp. 49-57.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 238: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

238

O ser humano está submerso em um emaranhado de propostas de sentido,

no horizonte da imanência. No entanto, é notável que dentro do fluir de sua própria

vida anuncia-se uma exigência maior de sentido, uma expectativa de humanização

mais profunda, que leve em conta a dimensão de um Mistério maior, que habita seu

interior. A concepção de vida, no teólogo Leonardo Boff, convoca a ver a vida em

todas as suas dimensões. Ele fala do fio primário do sentido da vida, do Mistério, a

Deus. Sua concepção é marcada pelo cuidado, ternura e esperança com respeito à

vida. No contexto pós-moderno esta tarefa toma uma forma específica na qual são

fundamentais o resgate e a humanização da vida.

Como dito, a existência manifesta uma “ordem enovelada”, uma harmonia

envolvente. Por esta concepção, L. Boff compreende que há uma emergência da

vida em que tudo implica tudo, nada existe fora da relação. A relação constitui todas

as realidades. Trata-se de um movimento articulado em todas as direções

interconectando todas as partes; “o que existe é o holomovimento”447. Seres

humanos, todos, estão envolvidos com cada parte e como o todo do universo.

A linguagem recorre ao simbólico quando experimenta um excesso de vida

que precisa ser expresso. A linguagem simbólica torna a pessoa capaz de recriar o

sentido da existência com os outros e possibilita a ligação entre sentido na

concepção seja de direção, seja de significação, para chegar a um todo. Desde que

o infinito Deus se fez finito na história, o ser humano está a granjear uma linguagem

para falar de Deus dentro da história e para além da história.

Tanto quanto a complexidade de relações deve ser levada em consideração,

tanto quanto deve ser considerada a experiência agraciada de Deus. Caso contrário,

corre-se o sério e triste risco de mistificar a realidade humana em sua relação com

o divino ou de pensar que Deus criou a pessoa como entidade livre e autônoma de

ser o que quiser, de modo que pudesse ser indiferentemente capaz do bem e do mal.

Assim, a pessoa não poderia encontrar em sua realidade histórica o sentido último

de sua vida, ou se encontrar, seria num ambiente de vida extrínseco a ela, ou ainda,

que desconsidera o humano.

O Concílio Vaticano II lembra que os gestos de Jesus são profundamente

encarnados na vida cotidiana, sua palavra-ação nunca surda aos gemidos da história,

especialmente dos pobres e de todos que sofrem; “não há realidade alguma

447 Cf. BOFF, L., Ética da vida, pp. 91-97.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 239: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

239

verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”448. Portanto, toda

experiência eclesial, manifesta ser de Deus ao estar intimamente ligada à pessoa

humana e à sua história.

Neste contexto torna-se muito pertinente tomar o sentido de relação como

ponto inicial da existência, e a partir deste sentido horizontalizar uma palavra

paradigmática, tecida na história, de integração do ser pessoa. O ser humano

descreve sua existência no contexto de ser ‘criado por’, de ter um princípio

originador, de tudo, que não é ele mesmo. A existência reflete, então, desde seu

princípio uma relação entre Criador e criatura. Relação é então, menos categoria, e

mais princípio fundamental do existir. A existência tem seu fundamento e origem

de ser no ato de Deus. Deus-criador em seu amor transbordante e liberdade suprema

concede existência a outro ser, contingente, criatural. O ser humano é um existente

por Deus. Portanto, o sentido da existência é relação.

O ser humano é essencialmente um ser capacitado a um existir relacional.

A liberdade está presente desde sua origem, torna possível a negação de seu existir-

em-relação. Consciente de seu existir-relação em liberdade, o ser humano pode dar

formas, contornos e matizes particulares e diferenciados às suas relações. Garcia

Rubio sublinha o caráter incontestável da pessoa humana de ser amada

gratuitamente por Deus, entretanto, como ser de decisões, ela pode aceitar ou não o

dom de Deus. O ato criador de Deus por si só já fala em relações, portanto, quando

o ser humano decide não se relacionar, fecha seu sentido de existir. Nesta

perspectiva, o sentido da relação é o sentido da existência.

Na verdade, um rápido olhar para a rotina do dia a dia da chamada

civilização, tem-se a impressão que nela as pessoas levam a vida sem preocupação

deste tipo: os trabalhadores vão ao trabalho e os alunos à escola, as ruas estão cheias

de veículos e os aviões voam regularmente. É preciso usar a lente da atenção para

perceber que inúmeras relações carecem de humanidade. O descompasso daquilo

que se poderia chamar de relações desumanas vividas por seres humanos começa a

aparecer na amplitude da disseminação da violência, tanto daquela miúda, quase

imperceptível de fora, até pelo ataque irracional dos grupos chamados terroristas

até a ação aterrorizante de quem se dá o direito de decretar o que seja terrorismo.

448 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 1, p. 143.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 240: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

240

Fato é que há uma diferenciação na existência relacional da pessoa, em sua

abertura com Deus e com todas as criaturas: mundo e pessoas. Contudo uma análise

mais profunda revela que as diferentes relacionalidades sempre estão envolvidas

uma na outra, sempre há inter-retro-relações. Conforme L. Boff, a vocação do ser

humano tem dimensão escatológica. Como nenhuma outra criatura, ele é

constituído como ser aberto à totalidade da realidade. E só se realizará

humanamente se mantiver em comunhão permanente com a globalidade de suas

relações, isto é, com o mundo, com os outros e com Deus.

Num olhar atento para a realidade, verifica-se a presença de relações,

contudo, e concomitantemente, de ausência mútua e de si mesmo. Por seu lado, a

relação interpessoal gera a consciência da singularidade e concretização pessoal. O

sentido da existência relacional está orientado para a comunhão. Por conseguinte, a

existência não é sem sentido, nem a existência é fruto de um acidente de percurso

ou criação do nada. Ela faz parte de um projeto maior.

A existência tem um projeto, e este projeto possui um imperativo: a vida!

Lá onde há projeto e vida, tem visibilidade e evidência da presença do Deus

encarnado. No seu contrário, há invisibilidade e ocultamento de Deus. “Deus está

onde seu projeto de vida se faz carne”449. Na Encarnação Deus se entrega, ao que

parece, à primeira vista, a uma absurda afirmação, o que se nos revela em Jesus

Cristo.

Teólogo da Libertação, L. Boff enfatiza uma cristologia situacional e

histórica, cujo ponto de partida é Jesus de Nazaré. Jesus de Nazaré viveu em relação

com Deus e seu Reino, e inserida na vivência comunitária, portanto, eclesial. A

Encarnação de Deus assume a condição humana dando um novo e absoluto sentido

de libertação à esperança do Reino de Deus.

Reconhecer e acolher a própria existência constitui a verdadeira liberdade.

E a liberdade é sempre relacional. A integração da vida, e nisto consiste a busca

humana de sentido da vida, é construída no encontro com o outro. A Palavra

criadora é expressão de uma vontade em liberdade e para a liberdade. A nomeação

de Deus da libertação, não é senão, a experiência de Deus da Vida.

Trata-se, conforme L. Boff, do dinamismo divino presente na vida, podendo

melhor ser dito, como simplesmente: Deus é o vivente, pois Deus é o princípio

449 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 98.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 241: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

241

fontal de vida e mora na vida; num dinamismo eterno de comunhão. Esta

experiência confere vigor à vida concreta do ser humano. Deus se deixa aproximar

dos incluídos e se faz próximo dos excluídos. O Deus da libertação se faz pobre,

tão pobre que carece de condições de vida.

O sentido do ser humano é relação porque sua origem também é relação.

Deus é relação, não apenas para com as criaturas, mas já é relação em si; Deus é o

existente em relação e como relação; dinamismo eterno de relação. Deus é relação

em si e autodesprendimento de si, pois se abre à participação em sua vida. Ao

comunicar-se, Deus escolhe os seres humanos para a comunhão de vida. Portanto,

o sentido de relação é para a comunhão com Deus. Atesta, então, que a relação não

tem fim em si mesma, não se encerra em si mesma.

L. Boff compreende que é o Mistério Trino o paradigma de toda relação.

Ele aponta o Mistério como eixo que une, liga e integra o ser humano. Nasce assim

uma compreensão holística, descentrada do homem e da mulher, e uma redefinição

de sua missão, no contexto da Aliança bíblica e da comunhão de relações.

Se tudo no universo constitui uma teia de relações, se tudo está em comunhão com

tudo, se a imagem de Deus se apresenta estruturada na forma de comunhão, é indício de que essa suprema Realidade seja fundamental e essencialmente também

comunhão, vida em relação e amor supremo450.

A relação é, para a pessoa humana, menos categoria filosófica, menos modo

de viver sociológico, menos fato psicológico, e menos objeto científico. A relação

é fundamentação da existência, e para melhor ser dito, é o dinamismo revelador do

sentido da vida.

No Antigo Testamento a relação com Deus é denominada Criador-criatura.

No Novo Testamento esta relação é revelada como relação filial. Com efeito, Jesus

manifesta uma particularidade que não só qualifica, como aprofunda a relação de

cada ser humano com Deus: “Portanto, orai desta maneira: Pai nosso” (Mt 6,9). Em

Jesus, cada criatura humana é filho/filha no Filho. Tanto ama, quanto é amado e

revela o amor de Deus Pai cuidador do filho que pede sua herança e parte da casa

do Pai (cf. Lc 15,11-32); Deus Pai é justo com o trabalhador (cf. Mt 20,1-15); Deus

Pai, curador da filha do chefe da Sinagoga (cf. Mc 5,35-43); Deus Pai alegria

renovada (cf. Jo 2,1-12). Jesus sempre abre a alvissareiras relações.

450 BOFF, L., Ética da vida, p. 97.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 242: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

242

O Deus de Jesus inclui a todos, não somente aqueles que são pobres

economicamente como também, aqueles que experimentam a injustiça, a exclusão,

o ódio, a desesperança, a falta de sentido, isto é, daqueles e daquelas que carecem

de uma vida integrada, em todas as relações. Jesus estabelece relações que

manifestam sua revolucionária originalidade e convida a entrar em um novo modelo

de relações humanas, inclusiva de todos, especialmente dos excluídos. Este novo

modelo de família de pessoas humanas tem como inspiração a Santíssima Trindade,

“onde as pessoas se amam em suas diferenças e se acolhem na mesma

comunhão”451.

Na solidariedade humana de Deus encontra-se a esperança do ser humano

para a superação dos conflitos e comunhão com Deus. Para L. Boff, a encarnação

do Filho é inauguradora de uma nova realidade: com ele se dá a parusia e a epifania

do libertador da integração humana em todas as relações. Em Jesus, transparece um

rosto verdadeiramente humano, uma experiência humana próxima e entregue.

Contudo, o centro desta experiência é humanamente, inacessível e impenetrável. É

precisamente este centro impenetrável que dá a Jesus a possibilidade de estar em

comunicação com todos/todas, de conhecer o coração de cada pessoa. Ele é o único

conhecedor do Pai (cf. Jo 10), e na força mesma de sua humanidade, ele conhece as

pessoas como nenhum outro. Jesus não somente é o portador da mensagem da

palavra de Deus, mas é a mensagem em pessoa452. Sua palavra-ação revela o

coração do Pai e o interior de tudo o que é o humano.

No horizonte cristão, a expressão mais sublime e excelsa da vida é marcada

pela relação essencial com a Trindade. Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo em

comunhão recíproca. A Trindade é comunhão de pessoas, relação de comunhão de

pessoas, onde ninguém é superior ou inferior ao outro, pois cada um é aceito como

é, doando-se uns aos outros. Esta comunhão divina não é fechada sobre si mesma.

Pelo desdobramento da vida trinitária, a civilização humana é chamada a ser

comunidade de seres humanos no modo de participação da comunhão em entrega e

reciprocidade divina, até o dia de “Cristo é tudo em todos” (Col 3,11).

Há um círculo que não se fecha, entre a existência relacional e a liberdade

intrínseca do ser humano. Na busca do entendimento do universo, o físico, Lee

451 Cf. CAVALCANTE, T. M. P., “Relações interpessoais em uma narrativa do Evangelho de

Marcos”, p. 23. 452 Cf. PALACIO C., Jesus Cristo., pp. 100-102.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 243: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

243

Smolin levanta a questão de encontrar a resposta no misticismo. Abre-se a

possibilidade de uma resposta e diálogo, às questões científicas fora do domínio da

racionalidade.

Segundo o filósofo jesuíta, Lima Vaz, cabe somente ao ser humano a

invenção do sentido, posto que ele é aberto ao logos. Assim busca o sentido de sua

vida de modo que se expresse em seu modo de vida e que integre a globalidade de

suas relações, consigo mesmo, com as criaturas e com Deus.

Amiúde, L. Boff convida a pensar no ser humano enquanto inserido e,

intrinsecamente afetado, pelo movimento do universo e de todos os demais seres

nele presentes, na constituição de cada ser e para agir na busca de inter-retro-

relações. É a passagem do antropocentrismo ao princípio antrópico. Por este novo

princípio quer-se dizer que a leitura da vida é feita a partir da inteligibilidade

singular do ser humano. Somente na consciência de partir do ser humano que a

reflexão sobre a “vinculação com todo, tem sentido”453.

A leitura da narrativa da criação no livro do Gênesis já foi por demais feita

na trilha do “homem, rei da criação”, aquele que deve dominar. Este erro

estabeleceu um reino de falsos graus de hierarquia ao autocolocar-se acima de toda

criação, e impondo limites a Deus. Em decorrência, a existência de todos os seres

criados está gritando por sua dignidade, demandando o descarte do

antropocentrismo, que acarretou guerras, injustiças, dominação, exploração,

violência, solidão, perda do sentido da vida.

No pensar de L. Boff todos os seres são importantes, vivem na

interdependência e estão em uma “teia intrincadíssima de relações”. Contudo, o ser

humano reproduz um comportamento paradoxal, pois se coloca superior a esta teia

de relações e ao mesmo tempo desvinculado de todo o resto da criação. Na ambição

de querer “ser o rei da criação”, o ser humano escamoteia sua real busca por uma

vida que tenha sentido, tornando-se escravo em seu próprio reinado. No seu

egotismo, deixa de se ver de forma integrada e na fragilidade de se ser relacional.

Faz aparecer um perfil que obscurece sua unidade sagrada de se ser humano.

Contudo, verifica-se, ainda que por caminhos propagadores de domínio da vida, o

ser humano está a busca pelo sentido originador de sua vida e de toda a vida. Neste

453 BOFF, L., Dignitas Terrae, p. 46.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 244: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

244

ínterim, escuta um convite a abrir-se para o evento gracioso e portador de vida,

pautado pela relação e comunhão integradoras.

A busca de conexão com o todo da vida valoriza o pensamento e o

conhecimento humanos como participação na construção do Reino de Deus. De

uma razão instrumental que crê na sobrevivência somente do mais forte, passa à

razão comunitária na consciência de que só se vive realmente à medida que se

relaciona. Na conexão com todas as coisas, a vida volta a exercer seu verdadeiro

sentido, o ser humano reencontra o seu lugar como existência humana. Nesta

esteira, a inter-retro-relação do ser humano em interação com tudo e em todas as

circunstâncias constitui o elemento chave para compreender o sentido da vida.

Chega-se a constatação da pertença mútua do ser humano no conjunto dos outros

seres.

Há uma circularidade inclusiva de todas as relações e de todos os seres

relacionados. Há uma sustentação que penetra e ultrapassa toda razão, uma lógica

interativa, mais complexa, e, portanto, mais completa. Tal concepção está presente

na relação de um Deus-Trino, interpenetração das Pessoas: Pai, Filho e Espírito

Santo, pericórese, do grego. A interpenetração das Pessoas trinitárias – pericórese

– é originária, simultânea e constitutiva das Pessoas. Isto é, em sua singularidade

própria, cada Pessoa recebe continuamente as outras duas, volta-se para as outras,

mora nelas e manifesta-se uma a outra.

Nesta compreensão, não há a monarquia do Uno, mas a comunhão eterna dos Três

simultâneos que estão sempre um no outro, pelo outro, com o outro, através do

outro, para o outro, interpenetrando-se em amor, um contendo o outro, na feliz expressão de João Damasceno, à semelhança de três sóis, cada um contido no

outro de sorte que haveria uma só luz por causa da íntima compenetração454.

L. Boff complementa e acrescenta a categoria significativa da presença de

Deus dentro do mundo e do mundo dentro de Deus, em completa inter-retro-

relação, isto é, o mistério da Transparência. Assim ele afirma: “como transparece,

a relação entre as Pessoas possui um caráter nitidamente pericorético”.

Sobre isto, vale citar um trecho de São João Damasceno, no século VIII.

“As hipóstases divinas têm sua morada e seu fundamento umas nas outras. Elas são

inseparáveis e indivisíveis uma da outra, estando nelas sem confusão em situação

454 BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 182.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 245: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

245

de mútua pericórese”455, movimento que somente pode ser afirmado de Deus,

jamais da natureza criada. A partir de Jesus, o mistério que se faz carne, o ser

humano verbaliza o que antes já experimentara da fé na Trindade: Pai, Filho e

Espírito Santo.

O sentido de relação-comunhão-pericórese horizontaliza para um Deus

dinamismo de comunhão, garante de relações integradoras, gerador de alegria e

ludicidade, que no seu movimento de circularidade unifica, abre-se em amor e

cuidado para com o ser humano e oferece o sentido da vida. O termo pericórese

bem traduz o que seja o sentido de relação e comunhão. Na união pericorética da

Trindade, “as três pessoas são iguais entre si; vivem e se revelam umas às outras e

umas através das outras”456. Assim fala a Sabedoria de Deus, “Desde a eternidade

fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra...todo o tempo brincava

em sua presença: brincava na superfície da terra, e me alegrava com os homens”

(Pr 8,22.30-31).

As categorias empregadas, tais como vida, humanidade, existência, sentido,

integração, evolução, participação, mistério, eternidade, relação, comunhão e

pericórese têm o seu locus Naquele que é o Logos de Deus: Deus é Amor (1Jo 4,8).

Por conseguinte, esta pluralidade de nomeações indica, simplesmente,

desdobramentos da riqueza trinitária.

Por fim, o termo pericórese quer traduzir a relação existente do Deus-Trino

como amor que se comunica e torna transparente o Deus-comunhão à humanidade

e a desafia a fazer das suas relações um reflexo do dinamismo pericorético do amor

do Deus de Jesus Cristo. O transbordamento do Deus-Amor torna-se uma

provocação a agir em relação e com amor e cuidado tal como ele é. “Quanto a nós,

amemos, porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). A práxis no amor resume a

pregação ética de Jesus.

Sujeito na história e da história, homem e mulher são chamados a construir

história, a modo de aposta na radicalidade da vida. Optar pela vida significa lutar,

sacrificar-se, comprometer-se, oferecer sua vida na defesa de valores que acredita

promoverem a vida. O ser humano é invocado e provocado a viver seu ser na

realização das capacidades que latejam dentro de si.

455 JOÃO DAMASCENO, S. La foi orthodoxe, p. 219. Tradução minha. 456 MOLTMANN, J., Trindade e Reino de Deus, p. 183

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 246: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

246

Muito simplesmente, esse pensamento do sentido de relação-comunhão-

pericórese, é levado, nada mais, que pela busca humana de integração da vida aos

limites do enunciável. Mas a busca humana não se encerra nem se delimita ao

pensável. Dizer Deus-comunhão de si que se abre à participação em sua vida é

apontar como caminho o ilimitado e um caminho ilimitado. Mas toda experiência

de conhecer e superar limites sempre descobrirá que maior ainda é Deus.

4.4. O caráter absoluto da busca do sentido da vida. No princípio a relação, o movimento e o encontro

Onde se encontra, pois, o profundo sentido da própria vida? Eis a questão

sempre atual e provocadora que faz morada no ser humano.

A origem da vida é, para a ciência, um problema sem solução, pois remete

à questão da origem do cosmos e esta é uma questão indecidível, no plano da ciência

matemático-experimental. Tal ciência ocupa-se, então, de entender como a vida se

organiza, examinando suas causas e consequências. Certamente esta questão ocupa

não só a ciência. Antes, trata-se de uma inquietação que faz morada no homem e na

mulher. Ademais, a pergunta humana é anterior e mais radical que a formulada pelo

cientista.

O ser humano pergunta, busca, inquieta, estuda, reflete, arrisca, quer

encontrar, e por vezes dominar, o princípio originador e regedor de tudo. Tudo isto

advém, porque experimenta um ‘ser mais’, e assim sente-se maior que toda a

realidade que o cerca.

Na ótica da antropologia teológica, a questão da existência é colocada pelo

ser humano na perspectiva de ‘ser criado por’. Ele descreve sua vida a partir de um

Outro, e para este dirige sua atenção. Centrado por este Mistério, toma consciência

de si como criatura entre outras criaturas, de ser chamado à vida a partir de uma

Palavra de um Deus criador em amor e gratuidade de ser vida. O mistério que

transparece e que permite ao humano ser pessoa é a tradução da Palavra Deus. O

projeto infinito que é o humano tem sua origem em Deus, ele é o horizonte infinito

que abre ao humano possibilidades ilimitadas de encontro. A meta da criação, infere

L. Boff, é ser de tal forma penetrada por Deus que Ele constituirá sua essência mais

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 247: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

247

íntima. A experiência de ‘ser criado por’ atesta que a existência tem seu fundamento

na relação pessoal com Deus, que faz da relação o lugar da integração do ser pessoa.

No anseio de pôr ordem e estruturar suas relações, de receber e construir

relações constata que sua força de vida consiste em estar longe do equilíbrio. A

formação e manutenção do sistema vida tornam-se possível pela variância do fluxo

de energia que perpassa suas relações, portanto, a ausência de uma total simetria,

isto é, o não estar em equilíbrio.

Esta realidade descortina um horizonte infinito e benfazejo de

possibilidades. Afirma um futuro aberto que, no entanto, está a ser construído no

‘hoje’ de cada dia. A história enquanto lugar de decisão humana, reclama uma

participação ativa, porque longe de um determinismo ou predestinação, a existência

orienta-se para um futuro que exige ternura e cuidado, aliada da razão de quem se

põe à busca do sentido e que encontra e transcende a imanência. Isso nasce da

decisão por auto-atuar, com os outros e para os outros.

Na esteira teológica de L. Boff as relações em todas as direções são

constituintes basilares de uma existência portadora de integração e bem-

aventurança. O ser humano, em antropogênese, concebe relações num movimento

endógeno, e assim como o universo, ele está também em evolução; uma creatio

contínua até sua plenitude final. Tudo está inter-retro-relacionado, não só o

humano, também o cosmos. Nesta cosmovisão teológica, todo ser tem centralidade

na história da vida, cujo sentido da vida humana e de todas as coisas tem seu

fundamento e se enraíza no Mistério de Deus-Trino. Nesta perspectiva, o ser

humano não é o centro que confere sentido à vida, mas pelo puro fato de existir, de

trazer em si a marca da fonte de onde sai, nesta creatio contínua, cada ser tem uma

importância significativa e única, independente de valores sociais e culturais que

lhe são imputados.

Originariamente, por sua relação de criatura/Criador, o ser humano

experimenta Deus em dependência e autonomia. Com efeito, lembra Rahner, a

possibilidade de ser pessoa procede do ato de Deus, mistério absoluto. Nesta

sincronia, ‘ser criado por’ afirma um tempo, no cronos em que ‘ocorreu’ a criação

de um ser humano, mas, mais do que isto, afirma um processo em vias de integração

em todas as dimensões, de forma que o verbo deveria de fato estar no presente: estar

em criação constitui a existência humana.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 248: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

248

A civilização pós-moderna demanda uma nova sensibilidade por causa da

dissolução de valores, sem nenhuma substituição, do que outrora estruturava e

norteava a vida. O abandono da questão do sentido, e o culto ao real transitório, vão

desplugando a pessoa de seu ser relacional, e isso leva a uma dissolução de um

sentido. Em suma, a concepção de vida com sentido desaparece ante uma nova

ordem estereotipada, pois inibe a criatividade e a torna pasteurizada, pois descarta

a fermentação vital do novo, e cinza, porque descarta a cor.

Neste contexto, urge realçar e resgatar a compreensão de sentido no centro

da vida, e isso, adquire importantes significados. Agostinho concebe que o Deus

vivo é o centro da vida, e que tudo está orientado para ele. Deus é o mais íntimo

que a própria intimidade humana. A consciência humana não é Deus, mas o

descobre ao examinar sua interioridade. O poeta John Donne afirma que nenhum

ser humano dá conta de viver só, a realidade humana não é figurativa de um ser que

vive no centro e sozinho em uma ilha. Em si mesmo, nenhum ser dá conta de ser

inteiro, muito menos ser integrado. Torna-se, então, uma máxima afirmar: “Homem

algum é uma ilha”. Felix Wilfred, teólogo indiano considera: “Deus é um círculo

infinito, cujo centro está em toda parte e cuja circunferência está em nenhum

lugar”457; não existe fronteira em Deus, não existe uma realidade dentro e fora de

Deus. Ele tudo assume, em Deus todas as realidades se centram, seu projeto unifica

criação-salvação.

Do ponto de vista humano, a existência afirma um centro de sentido

endógeno, portanto, fundado no enternecimento do pathos, eros, logos, daimon e

ethos, tendo como fim, a integração da vida, ou seja, o encontro do sentido que

integra, perpassando, todas as relações. Este, ‘a priori endógeno’, sempre e

necessariamente encontra-se presente na ação, ou ao menos, é requerido.

Em razão de sua origem afetuosamente transcendente, o ser humano é um

existencial em abertura à totalidade da realidade. Em sua condição presente, afirma

L. Boff, “o ser humano, homem e mulher, é um projeto infinito”. A história é um

existencial ontológico da pessoa, entretanto, o humano não se resume na concreção

histórica. Assim, no foco da reflexão sobre o núcleo constituinte da integração da

vida, apreende-se que o centro que confere o sentido da vida não é mais a pessoa

457 Cf. WILFRED, F., O V simpósio internacional de teologia. Tradução minha.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 249: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

249

humana, como poderia se supor numa nostálgica cosmovisão geocêntrica, mas

principalmente individualista, ao modo da modernidade.

De fato, os diversos momentos de construção do conhecimento científico

sempre influenciaram na construção de uma visão de mundo. Profundas mudanças

aconteceram, quando o modelo geocêntrico foi substituído pelo modelo

heliocêntrico, no século XVI. A nova cosmovisão modificou profundamente a visão

que o ser humano, tem de si mesmo. Até então ele se atinha a verdades ‘filosóficas’

que determinavam seu destino, sua posição social. A experiência religiosa não era

contradita pela ideia de um céu acima, a terra abaixo, um universo perfeito,

hierarquizado que situava topograficamente a morada de Deus e dos anjos, vigiando

a morada dos homens. Esta visão é questionada pelas novas ideias. Foi como se um

mundo ruísse para muitos. Um aprofundamento desse processo veio naturalmente

com Albert Einstein, que coloca o tempo e o espaço no âmbito da Teoria da

Relatividade. Tempo e espaço são relativos e estão profundamente entrelaçados.

Mais uma vez é questionada a ideia de um mundo piramidal, onde há um supremo

ser, comandando seus súditos. A estas teorias, entre outras, mostram o caráter

relativo, não fixo, não absoluto de tudo que existe: Sistema Solar, estrelas, planetas,

satélites, galáxia, Via Láctea, terra, ser humano, animais, instrumentos, tempo,

espaço. Mostrando seu caráter relativo, abrem a possibilidade de que a teologia fale

de seu caráter relacional. Nenhum deles é o centro de tudo. Não se quer com isto

chancelar a Teoria da Relatividade, nem isso seria da alçada desta pesquisa. O

esforço, aqui, é de buscar o horizonte de uma antropologia que se coadune com a

teologia e, ao mesmo tempo, se harmonize com a busca de todo ser humano pelo

sentido de integração da vida, no contexto pós-moderno.

A experiência humana ontológica-relacional é a experiência que tem

contornos divinos. Tudo o que diviniza, faz com que homens e mulheres se tornem

mais integrados, isto é, mais pessoa humana. A razão última da existência habita no

Mistério que gera o sentido verdadeiro da vida humana. Deus, em seu viver eterno,

na encarnação, faz-se mistério de Deus na história. Portanto, toda situação humana,

com toda sua beleza e contradições, tem um sentido, porque tudo foi tocado por

Deus. E mais, o sentido de ser pessoa afirma que nenhum ser pode tirar a dignidade

do ser humano. A dignidade, dom de amor e graça, contudo, pode, sim, estar ferida.

Mais ainda hoje, a ferida da dignidade humana tem escancarado seu rosto de

maneira violenta e frequente, resultante da quebra das relações. Vigora, ainda, o

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 250: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

250

Mito de Procusto, pela qual a não aceitação do outro, justifica, com muita

frequência, uma variedade de mutilação da pessoa humana.

O sentido da busca da origem da existência é a busca humana pelo sentido

e só tem razão de ser se emergir da experiência humana da existência em chave de

compreensão contemporânea à sua, seja no suceder de mudança de época, mudança

de sentidos; seja de crise fragmentadora; seja de desperdício da abundância da vida.

É neste contexto, que o ser humano grita pela experiência do sentido da vida. Deus

emerge de dentro e na história concreta do ser humano, e somente assim pode

manifestar-se como o sentido radical da vida.

Esta forma de pensar as relações poderia soar como uma teorização da vida

ou um postulado óbvio apenas para ser lembrado ao ser pós-moderno. Por isto, ela

deve ser reconduzida à dimensão experiencial do encontro que se dá nas e pelas

relações. A emergência das relações confere sentido. Ela nunca é meramente

teórica, mas perfaz-se em encontros, convergentes ou divergentes. Neste diapasão,

encontro descreve a forma específica de relação no interior das inter-retro-relações

humanas, possibilita a compreensão da existência que faz brotar uma ética.

A categoria encontro não é acidental, mas fundante para uma vida

enriquecida de sentido. O contrário seria sobreviver, viver na superfície, deixar a

vida ser levada como a um barco sem rumo. Sem encontros, a vida se torna um

peso, para si e para outros, é o que poderíamos chamar de vida sem-sentido. O

encontro do sentido, afirma L. Boff, gera a jovialidade serena de quem se sente

aconchegado mesmo em meio a ameaça à vida, pois está orientado como por uma

estrela fixa. A vida supõe encontro. Mais que isso, a vida é a arte do encontro, sem

esquiva dos desencontros. Cada contato sugere um aprendizado e inaugura laços.

Como dizia Vinícius de Moraes, o encontro é escolha permanente de viver, pois

empresta a vida, para o resto da vida.

O ser humano é um ser de encontros cuja história é construída a partir de

relações. Nessa construção, um verdadeiro encontro exige saída de si para ir até o

outro, e do grande Outro: Deus. Na raiz de toda experiência de sentido verdadeiro

da vida está o encontro. Isso pode ser traduzido por uma frase da raposa,

personagem que ensina ao menino de cabelos dourados, o segredo do amor: “Só se

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 251: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

251

vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”458. Ver a vida a partir do

encontro trata-se de ver com os olhos internos, com o coração.

Como ser de relações, a história é construída a partir de encontros. Na ótica

da antropologia teológico-bíblica, a real humanidade do ser humano está no

encontro dialogal com Deus, e Deus é relação-comunhão-eterna. Outrossim, o

encontro faz emergir o Mistério já presente na vida portador da realização do

sentido da vida, a partir de Jesus Cristo.

Pela sua relação com o mistério Deus-Trino, no percurso originário e

fundante da humanização, como presença radicalmente efetiva e afetiva em amor,

o homem e a mulher são chamados, incondicionalmente, a realizar uma existência

histórica criadora de relações em todas as direções, um encontro capaz de articular

as diversas dimensões da vida numa unidade integradora. O encontro é essencial

para a realização do sentido da vida humana. Ele faz ultrapassar a realidade dada,

ampliando o olhar, sem deixar de estar atento a ela. Antes de tudo, ele exige

alteridade, mútua presença, relações novas e profundamente humanas. Diferente de

estar conectado a um objeto, o encontro requer de cada pessoa a escuta do outro e

a liberdade de ser um si mesmo.

O encontro revela o sagrado segredo do sentido. O sentido dos fatos é

portador de um sentido transcendente. Pessoas e coisas não se reduzem a si mesmas.

Antes ganham significados maiores, que veiculam uma ação que celebra, saboreia

e aprofunda o sentido da vida. Esta conjunção possibilita ao ser humano a

capacidade e a abertura para escutar a autocomunicação de Deus na história.

Proporciona uma experiência que colore a vida e revela sua beleza. Introduzido pelo

mistério Deus, contempla todas as coisas sob um horizonte maior de sentido.

O encontro provoca abertura e impulsiona o processo humano de integração

na globalidade de relações. No percurso da busca pelo sentido da vida, de forma

humanizante, está a capacidade de compartilhar a paixão com o outro e partilhar a

paixão do outro. Trata-se de sair do seu próprio círculo e entrar no universo do

outro. Trata-se de descentrar-se para encontrar seu centro, de dar-se para receber,

de esvaziar-se de si para possuir-se, de levantar-se para sair (cf. Jo 14,31). Sair de

si mesmo, deixar tudo, andar, partir, nisto consiste a missão do ser humano, como

dizia o saudoso Dom Hélder Câmara. A integração do ser humano, em Cristo, faz-

458 SAINT-EXUPERY, A. O pequeno príncipe, p. 95

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 252: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

252

se chamado permanente no dinamismo de ser mistério de sentido. Ele é a unidade

que engloba a totalidade do ser e à vida em meio a toda busca pelo sentido.

Na busca de encontrar o sentido da vida humana, Deus se deixa encontrar

em Jesus manifestando que o sentido da vida não está separado da vida da história.

Cristo, Palavra de Deus feita carne, manifesta-se sempre em profunda relação com

o Pai e à realidade de cada ser humano. Sua palavra-ação revela que o encontro

passa pelas relações em todas as dimensões e transcende a história humana. A

palavra-ação Jesus é permanente encontro com o tempo kairós: “O tempo já se

cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa

Notícia” (Mc 1,15).

Em Jesus, a vida é encontro com o Mistério de Deus-Trino que confere

sentido a todas as coisas e abre a visão para a realidade. Agraciada por este olhar, a

vida se torna descoberta e contemplação do mistério de transparência que em

diálogo portador de sentido perpassa e ultrapassa a realidade.

A relação constitui a própria essência de Deus-Trino, que tanto ama, que é

amado e revela o amor. Nesta comunhão de vida, o ser humano encontra sua

integração. Inspirada nesta visão trinitária, encontrar o sentido da vida significa que

todos nós, no encontro, encontramos e somos encontrados.

A convicção do ser de sentido na existência permite olhar a realidade numa

sintonia de busca que se vai fazendo encontro. À medida que o ser humano vai

tomando consciência que a vida tem significado na história, ela se torna uma

experiência cada vez mais humanizante. Então, a existência tem sua integração em

júbilo e festa. A celebração da alegria da vida expressa a historicidade humana,

valoriza o acontecimento sob a forma de memória e esperança, evidencia

gratuitamente o ser humano pela sua existência no dom da criação. A festa celebra

o todo da vida afirmando o sentido em cada momento na história. Em síntese, a

festa não seria o reflexo da pericórese divina dentro da criação?

Na mesma vocação de Jesus, a pessoa é chamada a ser relação de comunhão

na sua própria história. Deus faz-se encontro de vida em situações mais cotidianas,

porque ama e assim, o ser humano perceba a sua relação com Cristo nos

acontecimentos da sua vida, tornando-a portadora de sentido que irradia. Isto atesta

que o sentido da vida não se entende senão no encontro pela palavra-ação, Jesus

Cristo, o humano de Deus, na história pessoal.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 253: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

253

Jesus Cristo revela plenamente quem é o ser humano e quem é Deus. Diante

dele, o crente está diante de Deus e do ecce homo em fundamental imediatez (cf. Jo

19,5). Nele a pessoa encontra Deus, e Deus encontra o ser humano. Ele nos dá a

conhecer quem é Deus e quem é o ser humano, plenificando o desejo humano do

infinito. Jesus se apresenta como o encontro do ser humano que busca Deus e de

Deus que busca o ser humano. Nele se encontra o que há de mais pleno no humano

e o que há de mais humano em Deus. Nele, toda a vida humana é lugar de encontro

com o sentido último da vida, isto é, com Deus.

Criado por Deus, o ser humano possui a dimensão do feminino (capacidade

de pensar por intermédio do corpo, de dar espaço à ternura e ao cuidado, de abertura

à gratuidade e à sensibilidade) e do masculino (o trabalho, o vigor, a racionalidade)

para relacionar-se com o mistério da vida, das pessoas e do universo inteiro. No

decorrer da história, o ser humano, homem e mulher, foi acostumado a ser homem

(masculino), e se vê às voltas com expressões patológicas, provenientes do

esquecimento da dimensão feminina; o animus sobreposto à anima. Por esta via o

ser humano perde sua identidade de criatura de Deus, “feitos pouco menos do que

um Deus, coroando-o de glória e beleza” (Sl 8,6). Por conseguinte, homem e mulher

deixam no olvido sua própria capacidade de relacionar, perdendo a habilidade de

encontrar-se consigo mesmos, de se encontrar como grupo de humanos, de escuta

mútua, de se colocar como criatura de Deus. Embalado pela dominação de uma

única dimensão, o masculino, abre espaço para a fragmentação do sentido de

inteireza na globalidade de relações. Há um esquecimento da capacidade de viver

em comunidade, de viver com e para o outro, de relacionar-se, e nessa relação

descobrir seu sentido da vida por descobrir-se criado por um Sentido que, por isso

mesmo, confere sentido à sua vida.

O encontro integrador da vida que confere sentido para todas as relações há

que passar, não somente por vinculações interpessoais, mas, principalmente, pela

busca de relações novas, que permitam visibilizar a vida em sua dignidade. Para

isso, urge romper com velhos paradigmas que oprimem, excluem e massacram. Na

verdade, a busca humana está horizontalizada para uma nova harmonia na órbita

celeste: homens e mulheres na diversidade das mentes e corações, sintonizados com

a harmonia universal num único destino comum.

Fazer da realidade da vida um encontro é acolher, no ordinário da vida, o

extraordinário de Deus. E torna-se abertura para reconhecer o finito no infinito, o

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 254: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

254

temporal no eterno e o perecível no imperecível. A vida assim conduz todas as

coisas para Deus e experimenta que Deus está à espera de cada pessoa em todas as

coisas. É encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. O encontro

é portador do sentido da vida porque revela um horizonte maior, transcende sua

realidade e transparece a boa notícia que é Jesus Cristo.

Que palavra verdadeiramente responde à busca humana pelo sentido da

vida? Qual sua relevância diante de uma civilização pós-moderna que tem não

somente questionado os conceitos e sentidos, como também transformado ou

relativizado seu significado? Que significado tem, se o ser humano já está submerso

em um emaranhado de propostas de sentido no horizonte da imanência? E a vida

tem sido associada em ampla escala, à violência, à subordinação às coisas, e pior,

simplesmente denegada?

Afinal esta pesquisa parece não encontrar nenhuma palavra humana

verdadeira. Pergunto-me pelo sentido... Encontro uma presença de paz, que se faz

diálogo de coração. Já não há mais buscas, nem perguntas, nem procuras de

relações, nem preocupação de ser pessoa integrada, uma vez que já se está dentro

da comunhão divina... No mistério do Deus-Trino, sempre vivemos, sempre

existimos integrados em inter-retro-relações, na circularidade do amor e do

cuidado. Ah! Encontro... Há uma palavra que se propõe: a Palavra que se fez carne

e habitou entre nós. Ela expressa e vive o sentido. Ela confere o sentido a quem a

ouve e repete na vida, na história.

4.5. Conclusão do capítulo

As palavras têm poder de atração ou de traição, ocultam, mas também

revelam. Sua instigante sinonímia, bem como a polissemia constituem riqueza para

além do aprendizado linguístico: elas apontam para a existência. Elas constroem

relações e possibilidades de um real encontro humano. Possuem caráter intencional

e sempre abrem espaço para mais palavras. Em sua amplitude, conjugam o popular

com o científico, o descritivo, com o metafórico e o simbólico.

Com palavras humanas, nada se pode afirmar com absoluta certeza. Há

sempre uma necessidade de se descrever uma vivência, inserida no movimento da

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 255: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

255

existência. Com efeito, o tempo da história é o tempo humano que transcorre no

intervalo de possibilidades de ser atraído ou traído pela linguagem de palavras.

Nesse intervalo, o tempo da história torna-se história concreta que se faz hic et nunc.

As palavras chamam a atenção para o fato de que a pessoa é um ser de

relação. Na complexidade das relações, o ser humano é, também, um ser de

linguagem, chamado a falar da experiência vivida. A multiplicidade de palavras,

não é senão, o desejo vital e uma língua é um sobre humano esforço de um povo no

sentido de estabelecer, cultivar e, por vezes, cortar relações.

Nessa provocação, a teologia dá-se conta da insuficiência e irrelevância de

sua própria linguagem. Faz observar que há um fundamento sob toda linguagem

que exige sentido. Uma presença anterior a toda linguagem que confere sentido

radical que fundamenta toda busca. Isto remete à temática desta pesquisa da busca

humana pelo sentido da vida, na esteira teológica de Leonardo Boff. Diante da

multiplicidade de palavras, a antropologia teológica é conduzida à unidade, isto é,

à Palavra Deus em sua revelação.

Face a esta autocomunicação, L. Boff compreende que Jesus Cristo é a

Palavra de Deus dentro do mundo. Ele ‘é a gramática’ que torna possível

compreender a Deus e o ser humano. Jesus Cristo é a Palavra de quem o humano

recebe o ser relação com o Transcendente. No princípio está a Palavra que se faz

diálogo, e não um ser solitário, surgido ao acaso.

A Palavra encarnada - Jesus - permaneceria incompreensível ou sem sentido

se não fosse acessível ao nível da narração, e essa se reduziria a uma mera estrutura

de linguagem caso não fosse capaz de atingir a história e a linguagem humana. Esta

articulação entre Palavra de Deus e palavras humanas que se dá pelas relações é o

que permite expressar a experiência do extraordinariamente humano de Jesus e, por

isto mesmo a resposta à busca de integração do ser humano.

Mister se faz assumir a impossibilidade humana de dizer Deus e o desejo de

falar da Palavra. A busca pelo sentido da vida, no decorrer da reflexão, mostra-se

muito mais no dinamismo de um ser humano em abertura de relações, do que no

enquadrar de respostas. O Espírito, energia em movimento, tem direção certa: a

vida.

Neste capítulo conclusivo a reflexão sobre o sentido da vida considerou as

palavras ‘orientação’ e ‘identidade’ que configuram a busca humana por relações

de integração. Ambas trazem à memória a dimensão de passado, futuro e de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 256: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

256

presente da vida. A busca humana não se dá apenas no tempo presente da história.

Antes, ela tem sua raiz no evento Jesus Cristo. Na plenitude do Kairós, tempo de

Deus, está à certeza de viver no Deus-Trino – Amante, Amado, Amor. Esta certeza

vem do mistério Divino que faz nova a criatura; pessoas com sentido da vida (cf.

2Cor 5,17; Jo 3,3). No hoje de cada dia, a fé cristã saboreia e celebra a jovialidade

permanente e eterna de Jesus Cristo; o Deus quenótico e não o absoluto conceitual.

O capítulo anterior deixou a pergunta se haveria uma unidade que

concentrasse e irradiasse do pessoal ao interpessoal, no respeito às diferenças, numa

solidariedade universal e integrada, solidariedade vinda de Deus e que alcançasse

as demais criaturas. Este capítulo apresentou quatro tentativas de respostas.

Na primeira, dizia-se, o ser humano é partícipe e construtor do sentido da

vida, isto é, recebe sua luz no projeto radical de Jesus para a humanidade. O mistério

que é Deus, não é objeto para ser contemplado. Deus é mistério infinito, ilimitado

que se faz limitado na história humana. O mistério absoluto que é Deus, sem perder

sua identidade, faz-se carne na história. A existência humana, aberta às relações, é

o lugar, de fato, onde transparece o Mistério. O Mistério faz-se tão radicalmente

entrelaçado com a história, que faz a existência humana participante de seu mistério

de relações que dá sentido à vida. O oposto seria um Deus ex-machina que somente

se vincula à sua obra quando invocado para dar uma explicação para o

incompreensível. Em Jesus, o mistério passa pela carne; Jesus é mistério de

enternecimento que irrompe na consciência, relaciona-se com o ser humano

fazendo história e culmina na alegria que dá sentido a toda vida.

Em seguida, foi abordado o tema das relações de forma mais concisa, isto é,

as relações como chave de integração da vida. É experiência humana estar ligado,

conectado, vinculado, unido a um outro ser, ao que corresponde mesmo à geração

web que afirma que alguém existe quando conectado, mesmo se for com um sistema

impessoal. Melhor dizendo, a experiência profundamente humana é um nó de

relações com os outros e com todos, marcadas, simultaneamente pela

imprescindibilidade e pela incompletude, que abre espaço para o desejo de encontro

com o Mistério originante do Deus-Trino. É como se fora um fio de energia,

comunicando vida e sentido à existência.

Neste ínterim, o ser humano constata não ser o centro, mas que tem dentro

de si o centro do mistério da vida. Enquanto ser de relações, são elas que o

impulsionam à busca pelo sentido da vida. O ser humano é relação e por ela

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 257: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

257

constitui espaço de integração e sentido. O sentido, obviamente não pode encerrar-

se em si mesmo. Ele dá direção e significado, a saber, o nó de relação, que em

profundidade, é ressonância do Deus-comunhão, do qual é imagem e semelhança.

A terceira reflexão foi configurada numa trilogia. Destacou-se um

dinamismo revelador do sentido vital de ser mistério. Foi feita uma leitura da vida,

a partir da inteligibilidade humana. O pensar de L. Boff expressa um ser humano

em processo, em abertura, em gênese, que se sabe em relação. A leitura humana da

vida humana, e também do cosmos, estão em permanente processo, por isto, pode-

se falar em existência criatural, imagem de um Deus-Trino comunicante de vida,

numa lógica de antropogênese e cosmogênese. Desse modo, a existência está sob o

efeito de desvelamento, do ser envolvido. A fé cristã compartilha que o ser é envolto

por Deus, de sorte a ter nele seu existir.

O mistério do Deus-Trino é o ponto ômega do sentido de integração plena

de todas as relações humanas. Segundo o mistério cristão de transcendência,

imanência permite elaborar a categoria da transparência, a partir da qual intui-se a

importância da inter-retro-relação na imanência iluminada pela transcendência.

Dizer mistério significa tratar de uma relação de proximidade, que, porém,

forçosamente, ultrapassa o discurso racional. Deus é mistério absoluto. Portanto, ao

pronunciar a palavra Deus, melhor convém deixar transparecer seu Mistério. A

questão do mistério de transcendência, imanência e transparência pertence ao

próprio mistério do Deus-Trino. Deus permanece o absoluto transcendente e

relativamente imanente. A transparência significa a presença de Deus em tudo, de

forma que ele pode ser encontrado em tudo, mas nem tudo é Deus. A referência para

a leitura do mundo é Deus. Este percurso conduz a uma visão contemplativa da

vida, não mais no dualismo sagrado e profano, mas na harmonia da transcendência

e imanência, isto é, da transparência.

A trilogia, no dinamismo revelador do sentido da vida, abre-se para pensar

Deus como sentido de relação, comunhão, numa recíproca compenetração entre as

pessoas divinas, e recíproca relação entre Deus e a vida no mundo, pericórese. Este

tema surge da necessidade humana de nomear o sentido que encontra em suas

relações. Deus-Trino vive em relações de comunhão infinita. Na afirmação de L.

Boff, “Deus é comunhão e não solidão”: três pessoas em comunhão de vida. Deus

é Pai, Filho e Espírito Santo, em comunhão recíproca. Relação em si e aberta à

participação em sua vida. A comunhão com Deus confere o sentido ao abrir-se às

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 258: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

258

relações. Deus-Trino relação de comunhão revela seu desejo de associar à sua

comunhão pericorética todos os seres, pelo Filho na força do Espírito Santo. Pelo

termo grego, pericórese, na linha de João Damasceno, entende-se que cada Pessoa

divina inclina-se amorosamente uma para a outra, e na circularidade do absoluto

amor, abre-se em amor e cuidado para com o ser humano e, oferece o sentido da

vida. Na solidariedade humana de Deus encontra-se a esperança do ser humano para

a superação dos conflitos, a agir em relação de amor e cuidado tal como Deus é. A

busca humana no envolvente de suas relações, encontra Deus relação de comunhão

no dinamismo pericorético de amor que oferece um integrador e alegre sentido da

vida.

A quarta e última temática examina o caráter absoluto da busca do sentido

da vida. Como ser de linguagem o ser humano quer dar nome às coisas, como ser

de história ele quer ter à suas mãos o mapa que orienta seu caminho e assinala o

lugar da consumação de sua busca. A partir da experiência de ‘ser criado por’ um

outro, constata-se que no princípio está a relação em movimentos que perfazem

verdadeiros e profundos encontros. Do princípio de ‘ser criado com’ toma

consciência de ser criatura entre outras criaturas. Vivendo na finitude, experimenta-

se encontrado pelo infinito. Contudo, ainda pergunta pelo lugar do encontro do

sentido, que transparece em Mistério realizador do sentido da vida, que revela e

vela o sagrado segredo do sentido. Como ser de consciência, constata a dificuldade

de encontrar uma vida com mais sentido, por causa da ausência de si mesmo

norteando-se por uma pre-ocupação excessiva na razão que se coloca como a

medida e critério de realidades que se apresentam como portadoras de sentido,

como Deus, vida, alegria. Como consequência da crença na razão, os valores

considerados supremos são esvaziados, e a pergunta ‘para quê?’ é declarada carente

de significação. A busca pelo sentido da vida, não se restringe à questão de uma

vida empenhada nalgum projeto. A guerra e a dominação são também adotadas

como projeto e, com certeza, não favorecem à vida. É fundamental a pergunta pelo

sentido último da vida, em todas suas relações. Como ser de consciência que

participa do infinito mistério de Deus, o ser humano descobre que não é a relação,

por si mesma, que confere sentido à sua vida, e que o distingue das outras criaturas.

Descobre o Encontro que traduz o lugar da relação interpessoal e manifesta uma

experiência da existência.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 259: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

259

A busca profunda pelo sentido da vida torna-se encontro de relações

transparente com uma Presença, que transcende a busca. Ela faz eco à experiência

do encontro com o Mistério que mora dentro de si, e gera a dimensão mistérica do

sentido da vida humana. Deus vibra nas entranhas de todas as coisas criadas e

silencia todo palavreado humano. O mistério do Deus-Trino comunica sentido de

unidade a toda história, e aponta para além da história. O sentido pertence à história.

Deus-comunhão em inter-retro-relação de Pai, Filho e Espírito Santo faz-se

encontro na história através de cada criatura, em autodoação de vida, amor e

cuidado e proclama a palavra primeira ‘vida’ (Gn 1,1) confirmada na ‘alegria’ (cf.

Lc 1,28) da vinda do Filho

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 260: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

5 Conclusão

A pesquisa teve como horizonte a vida e seu sentido. Na consciência da

impossibilidade de apresentar uma cabal definição de vida, o que se fez foi falar de

sua existência com reverência e cuidado. Há também que assinalar que ao se dizer

‘sentido da vida’ o que se quis foi indicar um nível mais profundo, uma leitura

humana da vida em processo de construção das suas relações.

A categoria vida aqui apresentada tem certa continuidade analítica com a

pesquisa do mestrado que mostrou o Reino de Deus como experiência que aponta

para a vida em plenitude, na ótica da teologia de L. Boff. O estudo chegou ao termo

como a construção de uma casa que após iniciada, precisa ser bem cuidada para que

seja espaço de vida. Na casa do Reino de Deus, Jesus faz sua morada permanente,

e homens e mulheres compartilham da sua plenitude de vida, que se vai realizando

pela prática do amor, em entrega da própria vida.

Nesta configuração, a pesquisa começou pelo ver o sentido da vida humana

enquanto experiência humana da existência em chave de compreensão pós-

moderna. No primeiro momento, a pesquisa sobrevoou algumas questões de estrito

sentido filosófico, bem como questões existenciais inerentes ao ser humano.

A questão existencial é recebida na filosofia como busca radical de sentido

para a vida e de sabedoria para o nosso tempo. Ademais, o concreto da vida

fragmentado pela crise pós-moderna, tem na filosofia uma de suas escoras. Para

uma compreensão de ‘existência’ verificou-se haver uma prevalência deste verbete

em dicionários de filosofia e sua escassez em teologia. Assim, a filosofia foi de

grande ajuda, por exemplo, para falar de existência. Na concepção aristotélica, a

categoria ‘existência’ significa o que existe, aquilo que na realidade é de fato, antes

mesmo de qualquer discurso e para além do pensamento. Neste contributo, a

existência tem um valor intrínseco. Aristóteles fala do ser concreto, como aquele

que vive na história e que interage com todos os seres, um ser de relações éticas.

Enquanto ser racional dotado da palavra, logos, ele tem a capacidade de expressar

o sentido da sua existência.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 261: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

261

No que concerne ao termo “pós-modernidade”, foram visitados alguns

sociólogos que problematizam a caminhada pós-moderna num viés antropológico,

privilegiando as influências para a vida humana. Não se trata de discutir os

fundamentos históricos e sociológicos que gestaram a pós-modernidade.

Ultrapassaria de longe esta pesquisa. O interesse é unicamente teológico, e, por isso,

focalizaram-se suas influências nas relações de todo ser humano. Entre tais

sociólogos, não há um consenso quanto ao termo “pós-modernidade”. No entanto,

é consensual que o tempo atual é marcado por profundas transformações. É um

tempo de mudança de sentido, mesmo de negação do sentido, incluído o sentido da

vida.

Resumidamente, “pós-modernidade”, mais que a um dado cronológico,

refere-se a um conceito. Sua novidade consiste em radicalizar as características

fundamentais da modernidade. O pós-moderno atribui-se o poder de dar ou tirar

valor a tudo que existe, e mesmo de eliminar sua existência. A civilização pós-

moderna interfere ostensivamente na compreensão do sentido da vida. Ela

estabelece como centro de significação uma realidade objetiva, exógena, ou mesmo

a renúncia ao sentido. O próprio ser humano é visto como um elemento do universo,

dele totalmente dependente, para existir e para deixar de existir. Este dado da pós-

modernidade esteve presente no decorrer de toda pesquisa, pela influência nas

próprias temáticas discutidas.

Enquanto a civilização moderna estabelecia o sujeito e a razão crítica como

fonte de interpretação, conhecimento e aceitação das verdades, a pós-moderna

manifesta sua ruína por excesso dessa mesma razão moderna, ou seja, excesso de

racionalização. É a crença excessiva na razão que a coloca como a medida e critério

de realidades que se apresentam como portadoras de sentido, como Deus, vida,

bondade, alegria. Por esta postura, diluem-se as categorias que atribuíam valor ao

mundo (como ser, unidade). O mundo, por sua vez, é declarado carente de valor.

Esta ideia conduz a tocar a existência e viver sua tensão de fundo, entre o real e o

ideal, o acaso e o sentido, o trágico da existência, sem nenhuma esperança.

Através desta leitura, verificaram-se algumas consequências vitais da pós-

modernidade. Primeiramente, trata-se de uma mudança de época, que traz ausência

do sentido, adesão ao ceticismo e retirada da transcendência. Instala-se de pronto

uma crise, que bem ao contrário de ser indício de criatividade, de interpelação ao

ser humano para que faça experiência da existência relacional no cuidado da vida,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 262: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

262

procura demovê-lo disso. A crise fragmenta a vida ao constituir uma realidade que

prima pelo volátil, fluído e descentrado de si, que expulsa toda proposição de

eternidade e transcendência. De fato, desconstruir a relação é desnortear o ser

humano, privando-o de um horizonte de sentido da vida. Uma última consequência,

a abundância do potencial da vida é desperdiçada. Observou-se que a civilização

pós-moderna, pletora de avanços técnico-científicos e de multiplicação de meios de

comunicação social, por exemplo, regozija-se de sua exuberância. O excesso e o

desperdício constituem a referência absoluta de uma vida feliz. Nesta lógica,

abundância e desperdício amalgamam-se desequilibradamente. Resulta que cada

pessoa se encontra rodeada de objetos, de fartura virtual e paradoxalmente, sofre

com a ausência recíproca uns dos outros.

A busca pela vida, encerrada na imanência da história não se satisfaz com

suas concretizações. O ser humano grita por experiência que confira

significatividade à vida, mostrando assim que as brasas se mantêm acesas por uma

vivência humana, no horizonte da plenitude. Concluiu-se na assertiva de que a

própria razão abre espaço para se falar de um sentido da vida.

Pelo viés da antropologia teológica, por este primeiro ver, constatou-se que

o ser humano tem fome de sentido. Seu grito traduz a busca de uma realidade

unificadora diante da multiplicidade, das vorazes mudanças e ambivalências

prementes do ser humano. E não seria o grito de súplica do ser humano eco da voz

do Mistério que tudo centra e irradia vida em abundância para todos? Mister se fez

tomar a teologia de L. Boff.

Estas questões de per si já adentram o ver da busca humana pelo sentido da

vida na pós-modernidade, agora considerados na esteira teológica de L. Boff. Suas

múltiplas exposições da ecologia, ética, filosofia, sociologia e psicologia tiveram

uma mesma preocupação: refletir a crise da civilização pós-moderna, a busca de

uma saída pelo fio condutor da esperança.

Aqui, busca é por inter-retro-relações em resposta ao apelo infinito por uma

vida de sentido que lateja dentro do ser humano. Para alcançar este objetivo, foi

necessário, primeiramente, conhecer sua história e concepção teológica, para

analisar algumas concepções que lhe são particulares. Os escritos de L. Boff são

uma reflexão teológica cristã elaborada a partir da experiência humana do Mistério

divino. Trata-se de uma teologia nascida no ambiente do Concílio Vaticano II.

Expoente desde os inícios da Teologia da Libertação, que procura assumir a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 263: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

263

perspectiva do pobre como princípio de articulação da reflexão. No pensar de L.

Boff, a Teologia da Libertação assemelha-se a outras teologias, pois também fala

de temas teológicos, como Santíssima Trindade, Graça, pecado, Igreja. Ele ressalta

que sua originalidade está na opção metodológica, isto é, a plataforma da Teologia

da Libertação é leitura da realidade, à luz da fé, portanto da Sagrada Escritura, a

partir dos pobres. Trata-se de uma teologia que ultrapassa os limites da América

Latina. Este novo modo de fazer teologia é fruto da percepção de um sistema sócio-

econômico opressor. A partir da percepção da indignação que tal sistema suscita,

cresce na América Latina um novo processo de conscientização, agora marcado

pela recuperação da dimensão do ser social em todas suas relações tão esquecidas,

na maioria, das propostas para a busca de sentido da vida.

Seu pensamento é tematizado e publicado por diferentes grupos e pessoas.

A visita a sites e bibliotecas/plataforma mostra grande variedade internacional de

estudos sobre seu pensamento em distintas academias, como, ciências médicas,

história social, filosofia e teologia. Sua teologia tem, pois, um horizonte planetário.

A escolha dos interlocutores teve como primeiro critério, naturalmente, acolher

autores de diferentes perspectivas. Foram lidos mais de perto um Bispo e um leigo

católicos, e um pastor presbiteriano. Cada um a seu modo, contribui para que a

teologia de L. Boff se torne mais conhecida e revele sua atualidade. Foi visto que

com o processo desencadeado pela Igreja do Rio de Janeiro, com o então Bispo

auxiliar, Dom Karl Josef Romer, o pensamento de L. Boff estendeu-se para outros

Continentes.

Paulo Agostinho, num outro viés, postula, que em dado momento, surgiu

um novo paradigma no pensar de L. Boff. Entretanto, isso não é um consenso e esta

pesquisa não adota este ponto de vista. França Matos, ao criticar a teologia e a ética

social de L. Boff, deixa entrever sua tenacidade de fazer uma teologia que pensa

uma ética social e apropria-se ontologicamente da evolução do universo na reflexão

de T. de Chardin.

O homem e teólogo, L. Boff, revela que a teologia não lhe é algo postiço.

Seu ser homem descreve uma experiência humana de quem se deixa dialogar com

o Mistério. Seu ser teólogo mostra que ele permanece na esteira de uma teologia

que experimenta unir o destino da vida na história com a vida na transcendência.

Com isto L. Boff salvaguarda sua atuação em favor dos pobres, os amados do Pai.

As penas e punições sofridas, descreve, “são nada face à paixão diuturna dos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 264: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

264

pobres”. Assim, desenvolve uma teologia que transpira em sua vida, e por isto

inspira vida através de trabalhos científicos, palestras, participação em Mesas

redondas, etc.

Dois temas são recorrentes, na teologia contemporânea, e balizam de modo

especial o itinerário teológico de L. Boff: a experiência de Deus e a vida como um

nó de relações, na ótica cristã. Pareceu ser impossível abordar o pensamento deste

autor, desligando-o das ciências da terra, pois sua teologia mantém um diálogo

fraterno e constante com elas. Com a teologia, unida a ciência, o ser humano sai de

seu antropocentrismo ancestral e de sua solidão visceral pós-moderna, para a

travessia na qual ele inter-existe e co-existe com outros seres no universo.

A concepção de evolução do universo tem sido recentemente trabalhada por

diversos cientistas físicos, e os teólogos não lhe podem ficar indiferentes. Esta

pesquisa se restringiu a leituras teológicas das ciências, de uma maneira geral, sem

entrar na discussão dos detalhamentos históricos ou críticos deste campo do saber.

Entretanto, as atuais discussões da cosmologia física, aliadas aos progressos

humanos e científicos, trazem irrecusáveis desafios para a teologia. A acolhida

criteriosa das novas descobertas possibilita um acréscimo na compreensão da

Revelação e crescimento para o diálogo da fé com o campo científico.

A época pós-moderna está inserida num contexto amplo das ciências e

aplicação de inovadoras tecnologias que configuram o quotidiano. Surge um tipo

de sensibilidade global, consciente dos limites do crescimento, denunciadora das

consequências perversas da razão instrumentalizada, a qual explora a natureza

abusivamente, produz armas de destruição em massa, ao lado do discurso de

proteção e soberania e, inconformada com uma organização social excludente.

No fio condutor da antropologia teológica constatou-se que estar na esteira

do teólogo Leonardo Boff, implica uma receptividade crítica das filosofias da

ciência. Verificou-se haver uma convergência fulcral, pois que, nas diversas

disciplinas, a vida é concebida como processo de relações vitais, inerentes ao

processo evolutivo da vida. Recusa-se uma visão ingênua, que afirmasse a

‘confirmação’ de teses filosóficas por postulados científicos. Mas é normal esperar-

se uma visão da vida que seja coerente com o processo da vida, em suas dimensões

física e biológica. Buscou-se uma imagem coerente da cosmologia. Para o autor em

pesquisa, cosmologia é uma construção teórica que permite elaborar uma imagem

do universo, de forma que a sociedade que a projeta, situe-se no próprio universo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 265: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

265

Por tudo isso, a pergunta pelo sentido da vida a partir da fé em um Deus

criador e do advento da pós-modernidade necessitou de uma resposta mais precisa,

sobretudo tendo em vista os últimos resultados das ciências e os estudos

polissêmicos. Em última instância, não basta afirmar que a relação é o constituinte

do ser vivo. Tornou-se necessário examinar o modo em que elas se realizam e suas

implicações para a vida.

O pensamento antropológico teológico de L. Boff traz a característica de ser

aberto e processual. Em sua concepção, a vida é espaço de explosão e implosão de

realização. O indivíduo está em si mesmo, mas também fora de si, nas outras

criaturas e no coração de Deus. É um ser que tem fome de Sentido.

Caminhar na esteira de L. Boff é pensar em espiral: ao mesmo tempo em

que faz avançar o pensamento humano, aprofundam-se as ideias anteriores. Este

modo de pensar é riqueza e desafio. É desafio por não ter à frente um pensador com

uma rígida sistematização. E é uma riqueza porque integra em sua experiência a

expressão do Mistério do primado de Cristo: “Ele é a Imagem do Deus invisível, o

Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e

na terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1,15-16).

L. Boff cria uma linguagem própria em que une experiência teológica e

linguística, e muitas das vezes poética, para falar especialmente da existência

humana. Em seus textos, encontram-se palavras originais, seja pela junção com

outras a fim de melhor expor seu pensar, seja porque no desenvolvimento da história

algumas foram perdendo seu sentido fontal, que ele, ressignificando, recupera. Ele

convida a ver a vida pela ótica da dualidade e do otimismo, de quem, como Paulo,

missiona o Ressuscitado “que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho dos seres

celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra” (Fl 2, 10-11).

No pensamento do autor viu-se que para ele ser racional e existência

incluem reciprocamente. A vida humana consiste na realização da sua existência,

num processo em aberto, intrinsecamente criativo, participativo e inclusivo de

todos. A existência humana comporta uma relação dialógica com o Ser em

plenitude e a convivialidade com os outros seres, estabelecendo comunhão, e por

esta via, apreende-se o sentido da vida. A busca pelo sentido é uma questão de

caráter existencial.

Em sua teologia, esta asserção significa dizer que a experiência existencial

consiste em sair de si em direção ao outro. Sente que a vida é a sua própria casa,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 266: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

266

quando se abre ao diferente e com ele interage. A pessoa humana é um nó de

relações consigo mesmo, com os outros, com a sociedade, com a natureza, com o

universo e com Deus. Nesta experiência, conclui, o ser humano se descobre dentro

de um projeto Infinito, que está a realizar-se no finito.

Ser de buscas, o ser humano não se contenta com a realidade dada. Seu modo

de existência já é indício de que sua direção é o infinito. Por seu caráter imanente e

transcendente, este pensar recupera a concepção de vida em que o ser humano não

se sente mais estranho em seu próprio habitat.

Considerou-se que a busca pelo sentido da vida chama a atenção para a

inversão de valores, em todas as relações humanas. O ser humano modelado para

ver o horizonte da realidade, torna-se encurvado: rebeldia com relação a Deus,

dominação com relação a seu irmão/irmã, desrespeito de si mesmo e escravo das

coisas. Questionado pela perspectiva paradoxal de uma cultura que produz uma

leitura da vida a partir de uma perspectiva que a mira como destituída de valor, mas,

ao mesmo tempo, é prenhe de buscas e inquietações que latejam em seu dinamismo

mais profundo, L. Boff denuncia esta leitura unilateral e extrinsicista que a

desumaniza e coisifica. Ele quer com isso superar a dicotomia entre sentido e não-

sentido. Esta atitude perpassa todo seu pensamento e contribui para uma

experiência integradora da vida. Amiúde faz refletir que o constituir-se como um

ser de abertura e de relação quer significar o ser humano enquanto ser de interações

contínuas e com tudo que se apresenta à sua realidade.

O pensamento relacional, holístico, evolutivo, que visa abranger todas as

dimensões da vida, no construir-se da existência, é constante em toda a trajetória

teológica de L. Boff. Existência e relação estão intrinsecamente ligadas.

L. Boff denuncia o monopólio de um pensamento único para a totalidade da

vida. Assim, ele possibilita à existência retomar seu caminho no percurso do

paradigma que integre, harmonize, e coexista indivisamente, o pathos, eros,

daimon, ethos e, também, o logos. Descobre a vida orientada para relação sempre

aberta, em evolução, em processo de gênese, sustentada por uma experiência real

que habita seu interior, e extrapola e excede toda experiência existencial: o mistério

Deus Trino.

Em sua primeira obra, O Evangelho do Cristo Cósmico, L. Boff já afirmara

que no processo antropológico da criação está presente a realidade do Mistério

transcendente, a presença unificante de Cristo. Mesmo a evolução é situada em

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 267: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

267

relação a uma existência: Cristo. É o que permite captar, no processo evolutivo, um

centro unificador e originante de toda a realidade. Ele é o primeiro, por já estar

presente no início. A evolução é produto dele, que, no entanto, não é produto da

evolução. Primeiro Cristo, e mediante a evolução, Cristo origina e atrai todas as

coisas a si.

Em direção inversa, L. Boff adverte que o estruturalismo que apresenta o

mundo e o ser humano como algo que está para além da estrutura e do sistema, para

alcançar a inteligibilidade, mas que nega qualquer realidade-suporte de tudo,

constrói uma concepção de vida que supõe o relacionar-se, mas que lhe nega um

centro, um ponto ômega. Para este autor, o ser humano tem um centro que não está

em si mesmo. A espiritualidade é o lugar da relação e da irradiação de uma

harmonia renovada, o lugar de religar todas as coisas ao centro de sentido da vida.

Este centro constituinte do ser humano é formado pela contínua doação de si. O ser

humano sai de si, para buscar o centro que está no outro e em Deus. É nesta doação

que percebe o seu ser pessoa. O sentido de ser pessoa é um permanente criar-se a

partir de uma relação.

Nesta esteira teológica da vida em seu sentido, considerou-se que a

consciência humana capta dentro do fluir da própria vida o anúncio de uma

exigência maior de sentido, uma expectativa de humanização mais profunda, que

leve em conta a dimensão de um Mistério maior, que habita o interior de cada

homem e mulher. Neste horizonte, L. Boff, ao falar do ser humano como ‘nó de

relação’ convoca e provoca a pessoa a retornar ao fio primário do sentido da vida,

ao Deus-Trino. Ele afirma ser a transcendência um princípio antropológico, isto é,

ela constitui o que é essencial em cada ser humano, contudo, adverte que ninguém

detém o monopólio da transcendência. Desta experiência ontológica relacional, o

ser humano capta o sentido que busca, e que não está em algo externo à própria

vida. Nenhum ser humano saboreará o sentido da vida, e não conferirá significativo

à porção do universo com a qual convive, se não estiver aberto às relações, num

movimento de pericórese. O pós-moderno, racionalista embora, talvez, por levar ao

extremo o racionalismo de molde empírico-matemático termina por fazer-se

sensível ao Mistério divino, ao sentido radical da vida.

A experiência cristã testemunha que a existência da vida com sentido é

abertura de acolhida ao outro, que culmina na abertura ao Outro, Deus-Trino,

grávida de desejo pelo ser humano. Ele é o primeiro, em nós, em tudo. O desejo de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 268: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

268

uma vida com sentido é resposta ao desejo de Deus no profundo do ser humano.

Assim, ensina João “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus,

mas foi ele quem nos amou” (1Jo 4, 10). A iniciativa é de Deus. Cabe ao ser humano

buscar o sentido da vida no amor aos outros “quanto a nós, amemos, porque ele nos

amou primeiro” (1Jo 4, 19). A vida com sentido tem dimensões desde toda a

eternidade.

O pensar teológico de Leonardo Boff coloca-se na esteira de um pensar

evolutivo, dual, em que o ser humano é um nó de relações para todos os lados. Tais

categorias não são aleatórias, ou conhecimento fenomenológico, menos ainda,

conceitos mumificados pela razão, mas correspondem à acolhida da existência com

seu sentido. A relação permite entrar na dinâmica, vida e sentido, afastada da

esterilidade da ideia sem conteúdo. Esta compreensão recria constantemente a vida,

participante de um processo global evolucionário em contínua expansão, o que

implica que seu sentido é a evolução e não a estabilidade. Por isto se pode falar em

inter-retro-relações na vida.

Desta forma, concluiu-se que toda a vida tem um significado à luz do

mistério de Cristo. Ele é a promessa-cumprimento. Por ele a história não cai no

sem-sentido. Em direção oposta ao monólogo pós-moderno está justamente o

encontro da Palavra feita carne. Este encontro enseja um diálogo tão profundo, que

a Palavra de Deus dirigida ao humano, torna-se ‘humano’.

Contudo, ao adentrar mais na razão pelas quais as relações são o caminho

de sentido da vida, emerge a questão da unidade, que as concentre e irradie,

envolvendo a pessoa e sociedade, na solidariedade integrada, solidariedade que vem

de Deus e alcança as demais criaturas.

É a aplicação do ver no considerar teológico de L. Boff, que buscou

movimentos não somente para sustentar a vida, mas movimentos que celebram com

alegria e dança. No entrelaçamento da experiência da total gratuidade de Deus e da

gratuidade nas relações humanas conduz à integração da vida de grande júbilo. Com

este fim, a pesquisa fixou seu olhar em ver o ser humano na pós-modernidade em

busca do sentido da vida pelas relações como chave de integração da vida na esteira

teológica de Leonardo Boff.

Estar na esteira teológica de L. Boff é um desafio. Sua teologia evidencia

ser crucial abrir-se espaço para a perspectiva dos outros e, em particular, do grande

Outro, Deus. É essencial verificar se o ser humano, nós mesmos, somos realmente

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 269: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

269

capazes de reconhecer a radical legitimidade da presença desses nós outros, toda a

criação e o Criador na busca pelo sentido da vida. Ou, a existência poderá eclipsar-

se.

Neste diapasão, constatou-se que a categoria relação não é estranha nem

mesmo aos teóricos. Na verdade, ela é noção central do pensamento, Aristóteles,

por exemplo, a inclui entre as dez categorias do conhecimento do ser. Caracteriza a

relação como aquilo que faz com que algo tenha referência a outra coisa. Para o

Moderno Kant, é um princípio a priori que constitui o entendimento e a

possibilidade da experiência. Noção constituinte das ciências, a relação é o

referencial para o estudo dos seres e das demais realidades. Para o cientista físico,

Lee Smolin, uma das grandes descobertas da ciência é a compreensão que a vida

em nosso planeta constitui um sistema interligado.

O terceiro, e último, ver teve como horizonte o sentido da vida enquanto

orientação e identidade do ser humano. Isto porque, o ser humano pode ser dito

melhor como orientação do que definição, no sentido estrito do termo. L. Boff tem

consciência que dizer que o ser humano é um nó de relações voltado para todos os

lados, é na verdade, e apenas uma direção, visto que o ser humano, na verdade,

nunca termina de construir-se. Ele é tudo isso e ainda mais, ele é um projeto infinito,

significa que cada pessoa, nós seres humanos, é habitada por um amor totalizante

que não encontra no universo nenhum objeto que lhe seja adequado e que o faça

repousar.

Ser orientado para Deus compreende participar de seu projeto. A

participação no ato criador evoca o ato de Deus em sua iniciativa gratuita e plena

de ternura. A relação Criador-criatura não esgota o poder criador. Do lado do

Criador, a criação não implica diminuição, por criar algo que não é Deus. Do lado

da criatura, a participação não se dá por identidade com o Criador, o que seria

panteísmo. Antes, a participação se dá pelo gesto da bondade de Deus que ao

revelar-se permite conhecer o mistério de sua vontade de amar radicalmente. Esta

percepção permite avaliar os esquemas isolacionistas e fragmentários, que

transformam o ser humano em peça de uma cega engrenagem cósmica, frente a sua

sede de sentido. O ser humano é chamado a construir e participar do mistério de

Deus. É chamado a viver criativamente, o que lhe confere sentido à vida. L. Boff

dá a entender que participar de Deus significa viver na abertura de relações em

amor, autodoação e comunhão, a partir do mistério de Deus-Trino. O contrário, sem

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 270: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

270

a participação ativa e livre da pessoa humana, toda descoberta de sentido seria fruto

de um encanto mágico ou um mito de faz-de-contas.

Na compreensão de L. Boff, todos os encontros humanos são vistos sob a

perspectiva de um horizonte maior da realidade. Por isto pode-se dizer que todo

encontro é encontro sacramental, pois se trata de ver o mundo todo como criação

de Deus. Ver a realidade, imanência, que aponta para outra, mais completa,

transcendência, Deus. Contudo, a realidade Deus não é somente transcendência,

nem somente imanência. Deus é transcendência que aparece na e para a imanência.

Por isso sua realidade é também transparência. As duas dimensões vividas pelo ser

humano – imanência e transcendência – encontram sua harmonização na

transparência. Através da transparência, a imanência torna-se possibilidade de ir

além, de ser mais que realidade física, e a transcendência torna-se possibilidade do

além ser possível, real, enraizado.

Conclui-se que a experiência do sentido da vida em seu mistério absoluto

mostra uma presença que não se desvela, mas de uma presença reveladora do Deus-

Trino que torna possível o desvelamento de toda pessoa em particular. Assim, o

sentido da vida é transcendente a todos os significados particulares na história, pois

não se identifica com nenhum efeito particular, nem é a soma dos sentidos

particulares abertos para se falar do sentido. É uma presença que se revela em si

mesma. Também, o sentido radical é imanente, pois é uma presença que desvela o

ser pessoa e uma linguagem para falar deste mistério. Portanto, o sentido da vida é

transparente, isto é, transcendente na imanência na história e em todos os

significados humanos. Com efeito, afirmar Deus é afirmar o sentido da vida

humana. Onde há vida, Deus está presente como seu fundamento.

Na circularidade do absoluto amor e cuidado, pericórese, Deus-Trino revela

seu rosto à humanidade. Jesus Cristo é a autocomunicação do rosto de Deus na

história. Em Jesus o sentido da vida é experiência de festa e de alegria, antecipação

do paraíso, vida em abundância, integração em todas as relações. Cristo diz respeito

a todo o universo, de modo que não se pode mais falar do ser humano sem Deus,

porque definitivamente: Ele veio fazer morada na história para sermos um com Ele.

Bendita seja a Trindade Amada, que reúne todos e todas em seu viver eterno,

conduzindo a humanidade à experiência de seu amor. Em seus movimentos de vida

encontram-se irmãos e irmãs que impulsionam o ser humano, nós, a sair de sua

redoma para juntos entrar na dança da Ciranda Trinitária, e de mãos dadas

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 271: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

271

proclamemos sem cessar: Banhados em Cristo, somos criaturas de Sentido, as

coisas antigas já se passaram, somos nascidos de novos!

Com L. Boff verifica-se um repensar a vida como inter-retro-relacionar-se

com o sentido da vida, ao Mistério, Deus-Trino. No atual contexto pós-moderno

esta tarefa toma uma forma específica na qual são fundamentais o resgate e a

humanização da vida.

Portanto, a estrutura humana que se fundamenta no mistério de Deus-Trino

e a experiência de uma crise civilizacional, que na verdade revela a crise do sentido

fundante do sistema vida – na particularidade histórica da busca pelo sentido da

vida – tornam-se elementos para falar da vida em Jesus Cristo, o rosto de Deus,

tendo como ponto de partida as relações como chave de integração da vida na esteira

teológica de Leonardo Boff.

A abordagem sistemática da busca do sentido da vida impõem-se alguns

riscos, particularmente por não trabalhar com definições prontas, ou mesmo, com

um pensamento categorial. Isto se faz sentir, por exemplo, no que tange às palavras,

vida, sentido, relações, pós-modernidade, Deus. Nesta consciência do caráter

lógico-intelectivo da pesquisa, que, ao mesmo tempo, trata da experiência humana,

urge falar com cuidado e abertura dialogal em todas as direções.

No que concerne o sentido da vida, a bibliografia sobre a vida é extensa. O

mesmo vale para o termo ‘sentido’. Acresça-se a disparidade de interpretações e

compreensões pelas diferentes ciências, e dentro da mesma ciência, diferentes

autores. No campo científico, o assunto ‘sentido da vida’ ou ‘crise do sentido na

pós-modernidade’ teve, no decorrer da história, diferentes interpretações, devido,

obviamente, a seu objeto de conhecimento de difícil caracterização e na sua função

de polo constituinte do saber. Se por um lado há dificuldade em encontrar-se uma

definição para ‘vida’, ou mesmo a impossibilidade de sua apreensão por palavras,

há o risco de ser compreendida de maneira genericamente superficial pela falta de

um conceito.

Com frequência se fala hoje de relações, tema que está na moda. Contudo,

verifica-se, uma forte separação entre ser humano e relação. Sentiu-se a

responsabilidade em utilizar a palavra relação para significar caminho de

integração, posto que a civilização pós-moderna se se fala também de relação,

porém sem laços duradouros de bem querença ao outro e expulsa de toda proposição

de eternidade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 272: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

272

A compreensão da pós-modernidade traz como primeira dificuldade o fato

de se estar vivendo nela. Além deste termo não ser consensual nem mesmo entre os

sociólogos, é comum encontrar nos esforços de definição que este é um tempo de

nítida disparidade com o passado, entende que nada poder ser conhecido com

certeza no presente, e que a história é destituída de teleologia. Por outro lado, neste

tempo, fala-se de um ser humano em criação em um universo inacabado, onde toda

a criação está em vir a ser. Não há palavra humana que lhe ponha ponto final, e

ainda assim, toda palavra exige reverência e cuidado.

Mais um desafio, mas não o último, versa sobre Deus. A linguagem não

capta a experiência humana que se faz dele, muito menos abarca seu mistério. Vive-

se a tensão entre a exigência interna de se falar da experiência e impossibilidade de

sua apreensão. Tais desafios não arrefeceram a pesquisa, antes demonstraram que

a experiência humana viva é dual. Absoluto é só Deus.

Aliás, estar na esteira teológica de Leonardo Boff é convite a ver a realidade

captando a profundidade que se revela em todas as criaturas. A propósito, a

pesquisadora foi ininterruptamente impulsionada por seus escritos, repletos de uma

experiência de Deus transparente que preenche todo o universo. Muito bom foi

também encontrar ao vivo com um humano que reflete profunda sensibilidade e

esperança na escuta e no olhar. Sua teologia traz à memória que de Deus, jamais

saímos e sempre, em qualquer situação na vida, nele estamos, movemo-nos e

somos. E nos relacionamos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 273: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

273

6 Referências Bibliográficas

6.1. Documentos da Igreja

CELAM V. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB / São Paulo: Paulinas / Paulus, 2007.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dominus Iesus. Sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2000.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretrizes gerais da ação pastoral da Igreja no Brasil, 2011-2015. São Paulo: Paulinas, 2011, (Documentos da CNBB; 94).

COMPÊNDIO DO VATICANO II. Constituições, decretos, declarações. Introdução e índice analítico de Boaventura Kloppenburg; coordenação geral de Frederico Vier. Petrópolis: Vozes, 1968.

PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ". Compêndio da doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.

PUEBLA (Texto oficial da CNBB): A Evangelização no Presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1982.

JOÃO PAULO II. Carta apostólica ‘O rápido desenvolvimento’. São

Paulo: Paulinas, 2005

6.2. Obras do autor

BOFF, L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis: Vozes, 1997.

_____. A graça libertadora no mundo. Petrópolis: Vozes, 1976.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 274: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

274

_____. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis:

Vozes, 1996

_____. A Trindade e a sociedade. Série II: O Deus que liberta seu povo.

Tomo V. Petrópolis: Vozes, 1986.

_____. Dignitas terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São

Paulo: Ática, 1995.

_____. Ecologia, mundialização, espiritualidade. A emergência de um

novo paradigma. São Paulo: Ática, 1999.

_____. Encarnação: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus.

Petrópolis: Vozes, 1985.

_____. Ética da vida. Rio de Janeiro, Sextante, 2005.

_____. Evangelho do Cristo cósmico: A busca da unidade do Todo na ciência e na religião. Record: Rio de Janeiro, 2008

_____. Experimentar Deus hoje. Petrópolis: Vozes, 1974.

_____. Experimentar Deus: a transparência de todas as coisas.

Petrópolis: Vozes, 2012.

_____. Jesus Cristo libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso

tempo. Petrópolis: Vozes, 1972.

_____. O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da

realidade. Petrópolis: Vozes, 2009.

_____. O destino do homem e do mundo. Ensaio sobre a vocação

humana. Petrópolis: Vozes, 1976.

_____. O Evangelho do Cristo cósmico. A realidade de um mito. O mito

de uma realidade. Petrópolis: Vozes, 1971.

_____. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos: mínima

sacramentalia. Petrópolis: Vozes, 2009.

_____. Paixão de Cristo, Paixão do mundo. Os fatos, as interpretações

e o significado ontem e hoje. Petrópolis: Vozes, 1978.

_____. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis:

Vozes, 1999.

_____. Tempo de transcendência. O ser humano como um Projeto

Infinito. Petrópolis: Vozes, 2009.

_____. Teologia do cativeiro e da libertação. São Paulo: Círculo do Livro,

1980.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 275: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

275

_____. Vida para além da morte. O presente: seu futuro, sua festa, sua

contestação. Petrópolis: Vozes, 1978

_____. “O individualismo tem ainda futuro?” Jornal do Brasil. Rio de

Janeiro, 19 out. 2009. Caderno A, Sociedade aberta.

_____. “A originalidade da Teologia da Libertação em Gustavo Gutiérrez”. REB, vol. 48/191. Petrópolis: Vozes, 1988

_____. “A estrutura pascal da existência humana”. REB, 42. Petrópolis:

Vozes, 1978

6.3. Obras de outros autores

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 2000.

_____. Introdução ao existencialismo. São Paulo: Martins, 2006.

AGOSTINHO, S. Confissões. Petrópolis: vozes, 2015.

AUZOU, G. La Tradition Biblique. Histoire des écrits sacrés du Peuple de Dieu. Paris: Editions de L’orante. 1957.

_____. A Palavra de Deus. Introdução ao Mistério da Sagrada Escritura. São Paulo: Duas Cidades, 1967.

AZZI, R. “A teologia no Brasil. Considerações históricas”. In DUSSEL, Enrique. História da teologia na América Latina. São Paulo: Paulinas,

1981

BAPTISTA, P. A. N. Libertação e ecologia: a teologia teoantropocósmica

de Leonardo Boff. São Paulo: Paulinas, 2011.

_____. Libertação e diálogo: a articulação entre teologia da libertação e

teologia do pluralismo religioso em Leonardo Boff. Juiz de Fora, 2007. Tese (Doutorado). Faculdade de Ciências da Religião, Universidade Federal de Juiz de Fora.

_____. Diálogo e ecologia: a teologia teoantropocósmica de Leonardo

Boff. Juiz de Fora, 2000. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências da Religião, Universidade Federal de Juiz de Fora.

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Portugal: Edições 70, 2007.

BAUMAN, Z. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 276: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

276

_____. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

_____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

_____. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

_____. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido: a Orientação do Homem Moderno. Petrópolis: Vozes, 2004.

BINGEMER, M. C. L. Alteridade e Vulnerabilidade. Experiência de Deus

e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993.

BLANK, R. Encontrar sentido na vida. São Paulo: Paulus, 2008.

_____. Escatologia da pessoa. Vida, morte e ressurreição. São Paulo: 2000.

BOFF, C. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.

BOFF, Lina. “Da Protologia à Escatologia”. Atualidade Teológica. 16,

2004.

_____. “A esperança como teologia da história. Relendo nossas conferências episcopais”. Atualidade Teológica. Ano XIV, fasc. 35, 2010.

BRANDÃO, M. L. R. Evangelho e experiência humana: comunicabilidade

da ética cristã em um mundo pluralista. Nova Práxis Cristã. São Paulo: Paulus, 1998.

BRANDAO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. São Paulo: Vozes, 2000

BRUGGER, W. Dicionário de filosofia. São Paulo: Herder, 1969.

CAVALCANTE, T. M. P. “Relações interpessoais em uma narrativa do Evangelho de Marcos”. Atualidade Teológica, 12, 2003.

CHENU, M.-D. “La literature comme lieu de la théologie”. Revue des sciences philosophiques et theologiques. n. 53, pp. 70-80, 1969.

CRAIG, E. (Ed.). The shorter Routledge encyclopedia of philosophy.

London: Routledge, 2010.

DIÁLOGOS pela Liberdade. Seminário a prostituição: Uma Abordagem

desde os direitos humanos. Belo Horizonte, realidado em 23-24 de setembro de 2014.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 277: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

277

DUSSEL, E. Hipóteses para uma história da teologia na América Latina (1492-1980). In: VV.AA. História da Teologia na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981.

CRUZ, Dl. Ciências & Educação ambiental. Os seres vivos. São Paulo: Ática, 2004

DE LA PEÑA J. L. R. Teologia da criação. São Paulo: Loyola, 1989.

DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, 2007.

Di BERARDINO, A. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. São

Paulo: Vozes/Paulus, 2002

DICTIONNAIRE de Spiritualité: ascéptique et mystique. Paris. Gabriel

Beauchesne et ses fils, 1961. Tomo IV. 2ème partie.

DUTILLEUX, C.H. Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación. Madrid, Espesa, 1997

EUVÉ, F. “Deus entre ciências da natureza e teologia cristã”. In: Congresso Internacional SOTER. 26. 09 jul. 2013.

FAJE. Anais do Simpósio: Do humano ao pós humano: Encruzilhada ou

destino. X Simpósio internacional filosófico – teológico”. Belo Horizonte: FAJE, 17-19 setembro de 2014.

FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001.

FOLCH GOMES, C. Antologia dos santos padres: páginas seletas dos

antigos escritores eclesiásticos. São Paulo: Paulinas, 1979.

FORTE, B. Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história: ensaio

de uma cristologia como história. São Paulo: Paulinas, 1985.

FRANÇA MIRANDA, M. Libertados para a práxis da justiça. A teologia

da graça no atual contexto latino-americano. São Paulo: Loyola, 1980.

_____. A Igreja numa sociedade fragmentada. São Paulo: Loyola, 2006

FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, 1991.

GARCÍA RUBIO, A. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2006.

_____. Elementos de antropologia teológica. Petrópolis: Vozes, 2004.

_____. AMADO, J. P. (Orgs.). Fé cristã e pensamento evolucionista:

aproximações teológico-pastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 278: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

278

GESCHÉ, A. O Sentido. São Paulo: Paulinas, 2005.

GIDDENS, A. As Consequências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

GNILKA, J. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000.

GONZÁLES BUELTA, Be. Rosto feminino do Reino. In: Id. O rosto feminino do reino: rezando com Jesus e as mulheres. Juiz de Fora:

Subiaco, 2007.

GONZÁLES FAUS, J. I. Acesso a Jesus. Ensaio de teologia narrativa. São

Paulo: Loyola, 1981.

GRUN, A. Amadurecimento espiritual e humano na vida religiosa. São

Paulo: Paulinas, 2006

GUIMARÃES, J. Leituras críticas sobre Leonardo Boff. Belo Horizonte:

Editora UFMG/São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.

GUTIERREZ, G. “O Concílio Vaticano II na América Latina”. In BEOZZO, José Oscar (Org.). O Vaticano II e a Igreja Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1985

_____. O Deus da vida. São Paulo: Loyola, 1990.

HADDAD, P. “L’autre dans la tradition juive”. Spiritus-Expériences et Recherches Missionaires: “Au risque de l’autre”, n. 168 Sep. 2002.

HARAWAY, D. “A cyborg manifesto: Science, technology and socialista-feminism in the late twentieth century”. In BELL, D.; KENNEDY, B. M. (Ed.). The Cybercultures Reader. London/New York: Routledge, 2001.

HÄRING, H. “A Teologia da Evolução como Megateoria do Pensamento occidental”. Concilium, n. 284, 2000

HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HAUGHT, J. F. Cristianismo e ciência. Para uma teologia da natureza. São Paulo: Paulinas, 2009.

HÉBER-SUFFRIN, P. Nietzsche ou la probité. Paris: Ellipses, 1997

HERVIEU-LÉGER, D. La religion en mouvement: le pèlerin et le converti,

Paris, Flammarion, 1999.

_____. “Les manifestations contemporaines du christianisme et la modernité”. In: VV.AA. Christianisme et modernité. Paris: CERF, 1990.

HOORNAERT, E. O Movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 279: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

279

JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica,

2004

JOÃO DAMASCENO, S. La foi orthodoxe: 1-44. Paris: Cerf, 2010.

JOÃO DA CRUZ, S. Cântico espiritual: resposta às angústias do homem de hoje. São Paulo: Paulinas, 1980.

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Fonte Digital/ Digitalização da edição em papel das Edições e Publicações Brasil Editora S.A., São Paulo: 1959.

KUJAWSKI, G. M. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1988.

LACERDA DE BRITO, L. Uma análise da polêmica em torno do livro:

Igreja: carisma e poder”, de Leonardo Boff, na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado). Faculdade de História Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

LADARIA, L. A Trindade: Mistério de comunhão. São Paulo: Loyola, 2009.

_____. O Deus vivo e verdadeiro. São Paulo: Loyola, 2006.

_____. Antropología Teológica. Madrid: UPCM, 1983.

LADRIÈRE, J. Anthropologie et cosmologie. In: VV.AA. Etudes d'anthropologie philosophique. Paris: J. Vrain, 1980.

LAURENCE, J. Biologia: ensino médio. Volume único. São Paulo: Nova Geração, 2005.

LÉVINAS, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 2009.

LIBANIO, J. B. Teologia da revelação a partir da modernidade. São

Paulo: Loyola, 1992.

_____. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São

Paulo: Loyola, 2005.

LIMA VAZ, H. C. Antropologia Filosófica. I. São Paulo: Loyola, 1993.

_____. Antropologia filosófica II. São Paulo: Loyola, 2013.

_____. “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”. Síntese Nova Fase, v. 21, n. 64,1994.

_____. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola,

2002.

_____. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo:

Loyola, 2000.

_____. A linguagem da experiência de Deus. In Escritos de Filosofia I, Problemas de fronteira. São Paulo: Loyola, 1986.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 280: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

280

LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo

contemporâneo. Lisboa: Relógio d'Agua, 1989.

_____. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética

indolor dos novos tempos democráticos. São Paulo: Manole, 2005.

LOGOS - Enciclopédia Luso-brasileira de Filosofia. São Paulo: Verbo,

1992.

MAGGI, A. A loucura de Deus: o Cristo de João. São Paulo: Paulus, 2013.

MANUEL DUQUE, J. “Realidade, virtualidade e relação: utopias neognósticas do pós-humano na cibercultura”. In: ANAIS DO Simpósio: Do humano ao pós-humano: Encruzilhada ou destino. X Simpósio internacional filosófico-teológico. FAJE, Belo Horizonte, 17-19 setembro de 2014.

MARTINS, R. J. Introdução a Lévinas: Pensar a ética no século XXI. São

Paulo: Paulus, 2014.

MATEOS, J.; CAMACHO, F. Jesus e a sociedade de seu tempo.

Biblioteca de estudos bíblicos. São Paulo: Paulinas, 1992.

MATOS, H. C. J. Nossa História: 500 anos de presença da Igreja Católica.

Período republicano e atualidade. São Paulo: Paulinas, 2003.

MOINGT, J. Dios que viene al hombre. I-Del duelo al desvelamiento de

Dios. Salamanca: Sigueme, 2007.

MOLTMANN, J. Deus na criação: Doutrina ecológica da criação.

Petrópolis: Vozes, 1992.

_____. O caminho de Jesus Cristo: cristologia em dimensões

messiânicas. Petrópolis: Vozes, 1993.

_____. O Espírito da vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes,

1999.

_____. Ciência e sabedoria. Um diálogo entre ciência natural e teologia.

São Paulo: Loyola, 2007.

_____.; BOFF, L. Há esperança para a criação ameaçada? Petrópolis:

Vozes, 2014.

MONOD, J. O acaso e a necessidade. Ensaio sobre a filosofia natural da

biologia moderna. Petrópolis: Vozes, 1971.

MORAN, G. Teologia da Revelação. São Paulo: Herder, 1969.

MORENO VILLA, M. Dicionário de pensamento contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 2000.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 281: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

281

MORIN, E. O método VI: ética. Porto Alegre : Sulina, 2007.

_____. O Método II: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2011.

_____. “La relation anthropo-bio-cosmique”. In: JACOB, Andre (dir). L´Univers Philosophique. Paris, Presses Universitaires de Frances, 1989.

NOCKE, F-J. Escatologia. In: SCHNEIDER, T. (org.). Manual de Dogmática. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2000.

OLIVEIRA, C. M. R. Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz

como resposta ao niilismo contemporâneo, São Paulo: Loyola, 2013.

OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

PAGOLA, J. A.. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010.

PALACIO, C.. Jesus Cristo. História e interpretação. São Paulo: Loyola, 1979.

______. “A originalidade singular do Cristianismo”. Perspectiva Teológica, 26, 1994.

PIETRZAK, A. Povo de Deus segundo Leonardo Boff. Polônia: Lublin, 2010.

RAHNER, K. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989.

_____. Dieu trinité: fondement transcendant de l'histoire du salut. Pari: Cerf, 1999.

_____.; RATZINGER, J. Revelação e tradição. São Paulo: Herder, 1968.

_____.; VORGRIMLER, H., Diccionario teologico. Barcelona: Herder,

1966.

RATZINGER, J. Introdução ao cristianismo. Preleções sobre o Símbolo

apostólico. São Paulo: Herder, 1970.

RAMOS DE OLIVEIRA, D. Humano, cosmos e Deus: alteridade

ontológico-relacional: o princípio fundamental do conceito "Reino de Deus", sua permanência na teologia de Leonardo Boff. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado). Faculdade de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993.

RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.

ROMER, KJ “Apreciações: Jesus Cristo Libertador”. REB, v. 32/126, Petrópolis: Vozes, 1972.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 282: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

282

_____. “Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé”. Boletim da Revista do Clero da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Assessoria de Imprensa, 1982.

LEMOS, R C.R. Reino de Deus, experiência que aponta para a vida. Um estudo da experiência portadora de vida a partir da obra “Jesus Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo”, em Leonardo Boff. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

RUIZ, J M G. “Leonardo Boff: Un intento de cristologia latinoameriana”. Semana Internacional de Teologia, 1977. Jesucristo en la histoira y en la Fe. Salamanca: Sigueme, 1978.

SAINT-EXUPERY, A. O pequeno príncipe: com aquarelas do autor. Rio de Janeiro, Agir, 1956.

SATTLER, D., SCHENEIDER, T. “Doutrina da criação”. In: SCHNEIDER, T. (org.). Manual de Dogmática. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 2000.

SCHENKL, F.; BRUNETTI, F. Dizionario greco-italiano-greco. Fratelli. Melita Editori, La Spezia 1990.

SESBOÜE, B. Karl Rahner: Itinerário teológico. São Paulo: Loyola, 2004.

SINNER, R. V. “Laudatio: Leonardo Boff”. Outorga do título de doutor honoris causa pela Faculdade EST. Estudos Teológicos. São Leopoldo, v. 195, n. 2, 2008.

SMOLIN, L. The life of the cosmos. New York: Oxford university press, 1997.

SMULDERS, P. A visão de Teilhard de Chardin. Petrópolis: Vozes, 1969.

_____. A Igreja como Sacramento da Salvação. In: BARAÚNA, G. (Dir.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965.

SOMMEMAN, A. Inter ou transdisciplinaridade? Da fragmentação

disciplinar ao novo diálogo entre os saberes. São Paulo: Paulus, 2006

SOBRINO, J. Jesus, o libertador. A história de Jesus de Nazaré. São

Paulo: Vozes, 1994.

_____. La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas. Trotta, Madrid,

1999.

_____. A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas. Petrópolis:

Vozes, 1999

SOUZA, J. C. Os Pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários.

(Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 283: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

283

SPADARO, A. Ciberteologia. Pensar o cristianismo nos tempos da rede.

São Paulo: Paulinas, 2012.

STORCK, J. B. Teilhard de Chardin: Um jesuíta cientista. Porto Alegre:

Padre Reus, 2007.

SUSIN, L. C. Assim na terra como no céu. Brevilóquio sobre Escatologia

e Criação. Petrópolis: Vozes, 1995.

TANZELLA-NITTI, G. Teologia e scienza. Le ragioni di um dialogo. Milano:

Paoline, 2013.

TAVARES PEREIRA, M. Novo paradigma civilizatório: ética e ecologia

em Leonardo Boff. Belo Horizonte, 2013. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

THEISSEN, G.; MERZ, A. O Jesus histórico. São Paulo: Loyola, 2002.

VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura

pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

VELASCO, J. M. El fenómeno místico: estudio comparado. Madrid: Trotta, 2009.

VIGIL, J.M. “Crer como Jesus: a espiritualidade do Reino. Elementos fundantes de nossa espiritualidade latino-americana”. REB, vol. 58/ 232. Petrópolis: Vozes, 1998.

VORGRIMLER, H. Karl Rahner: experiência de Deus em sua vida e em seu pensamento. São Paulo: Paulinas, 2006.

VV.AA. “Teologia de Leonardo Boff”. Estudos Teológicos, Ano 48/2, São Leopoldo, 2008.

ZOHAR, D; MARSHAL, Ian. QS - Inteligência Espiritual. São Paulo: Record, 2002.

ZILLES, U. “Boff, Leonardo, Igreja: carisma e poder”. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 252.

6.4. Sites

BARRETO FILHO, H. “Polícia encontra dois corpos no Morro do Juramento”. G1, 20 out. 2010. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/policia-encontra-dois-corpos-no-morro-do-juramento-2914979>. Acesso: 20 dez. 2011.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 284: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

284

BOFF, L. “A vida aos 70 anos”. Site. 16 dez 2008. Disponível em:

<http://www.leonardoboff.com/site/70anos/artigos/02-avida.htm>. Acesso 12 Mai 2014.

BOFF, L. “Nunca aceitei o mundo assim como está”. PENSAR, Diário do Estado de Minas-MG. 13 dez. 2008. Disponível em:

<http://www.leonardoboff.com/site/70anos/artigos/03-nunca.htm>. Acesso 12 Mai 2014.

BOFF, L. “Releitura da Vida à Moda de um Cego”. Site. 14 dez. 2008. Disponível em: < http://www.leonardoboff.com/site/70anos/artigos/01-releitura.htm>. Acesso em 31 mai. 2010.

DIÁRIO DE PERNAMBUCO. “Menino morre a facadas em Camaragibe” Vida Urbana. Publicação: 31 mai. 2013. Disponível em: <http://www.diariodepernambuco.com.br/app/outros/ultimas-noticias/46,37,46,11/2013/05/31/interna_vidaurbana,442410/menino-morre-a-facadas-em-camaragibe.shtml>.

DOMROMER. “Dom Karl Josef Romer”. Notas sobre o autor. Disponível em: <http://domromer.webnode.com.br/products/dom-karl-josef-romer1>. Acesso 12 fev. 2015.

FACEBOOK. “Glossário de termos”. Central de Ajuda. Disponível em:

<https://www.facebook.com/help/219443701509174/>. Acesso em: 02 ago. 2014.

GLEISER, M. “Humanity and the Universe: A New Vision for Life in the Cosmos”. VII Congresso Latino-Americano sobre Ciência e Religião.

Rio de Janeiro: PUC-Rio, Período: 02 a 04 out. 2012. Anotações pessoais.

HYPESCIENSE. “8 fatos fascinantes sobre gêmeos”. Bizarro. 13 out. 2011.

Disponível em: <http://hypescience.com/8-fatos-fascinantes-sobre-gemeos>. Acesso: 09 set. 2016.

JBLIBANIO. Site. Desenvolvido pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Disponível em: <http://jblibanio.org.br>. Acesso 02 fev. 2014.

JORNAL NACIONAL. “Governadores abusam dos gastos e empurram contas para o futuro”. G1 Notícia. 20 dez. 2014. Disponível em:

<http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/12/governadores-abusam-dos-gastos-e-empurram-contas-para-o-futuro.html>. Acesso 20 Dez 2014.

MATTOS, L. R. F. An analysis and critique of Leonardo Boff's theology and social ethics. Grand Rapids-Michigan, 2001. Dissertação (Doutorado) – Faculty of Philosophy, Calvin Theological Seminary. Disponível em: <http://www.calvin.edu/library/database/dissertations/Mattos_Luiz_Roberto_Franca_De.pdf>. Acesso 01 out 2014.

PLATAFORMA LATTES. Paulo Agostinho Nogueira Baptista. Disponível em:

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA
Page 285: Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181 4.1. O ser humano: partícipe e construtor

285

<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4772182T2>. Acesso 12 fev. 2015.

POETRYFOUNDATION. “John Donne”. Biography. Disponível em:

<http://www.poetryfoundation.org/bio/john-donne>. Acesso em 26 jun. 2014.

ROSSI, M. “Mulher espancada após boatos em rede social morre em Guarujá, SP”. G1, Santos e Região. Disponível em: <http://g1.globo.com>.

Acesso em:12 Mai 2014.

SIGNIFICADOS. “Significado de Google”. Tecnologia. Disponível em:

<http://www.significados.com.br/google>. Acesso: 09 jul. 2014

YAHOO. “Barulho humano obriga peixes a gritarem uns com os outros”. Blogs-Vi na Internet. 12 set. 2014. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/barulho-humano-obriga-peixes-a-gritarem-uns-com-os-181553132.html>. Acesso em: 12 set. 2014.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212772/CA