Rita de Cássia Rosada Lemos A busca pelo sentido da vida ... · 4 O sentido da vida é a...
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Rita de Cássia Rosada Lemos
A busca pelo sentido da vida. As relações como chave de integração da vida na
esteira teológica de Leonardo Boff
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em
Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Joel Portella Amado
Rio de Janeiro Setembro de 2016
Rita de Cássia Rosada Lemos
A busca pelo sentido da vida. As relações como chave de integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Pro. Joel Portella Amado Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Profa. Lúcia Pedrosa de Pádua
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Luiz Fernando Ribeiro Santana
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Romildo Henri Pinas
SPSCJ
Prof. Dorival Souza Barreto Júnior
UNIMONTES
Profa. Monah Winograd Coordenadora Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2016.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem a autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Rita de Cassia Rosada Lemos
Graduou-se em Ciências pela Univale (Universidade
Vale do Rio Doce) em 1989. Concluiu o curso de
Teologia no ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino)
em 2005. Fez o Mestrado em Teologia pela PUC-Rio
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
em 2011. Participou de diversos congressos e eventos
na área de Teologia e Catequética. Atua na formação
teológica e espiritual.
Ficha Catalográfica
CDD: 200
Lemos, Rita de Cássia Rosada A busca pelo sentido da vida : as relações como chave de integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff / Rita de Cássia Rosada Lemos ; orientador: Joel Portella Amado. – 2016. 285 f. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2016. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Vida. 3. Relação. 4. Sentido da vida. 5. Ser humano. 6. Cuidado. I. Amado, Joel Portella. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.
A todas as pessoas que, impulsionadas pelo desejo de encontrar sentido em tudo,
buscam o conhecimento do Mistério de religação invisível e universal, integrador
e ético.
À Leonardo Boff, em cuja ‘esteira teológica’ apreende-se que Deus é o mistério
de transcendência presente em todas as coisas existentes e possíveis,
absolutamente além de qualquer horizonte real e possível. Este mistério antecipa e
adentra qualquer desejo e ação humana, por ser transcendente em qualquer
situação na vida, Dele jamais saímos. Sempre estamos nele. Embora dentro, Ele
está para além de tudo. Nele estamos, movemo-nos e somos, e nos relacionamos.
Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Joel Portella Amado pela sabedoria entrelaçada à
competência e a amabilidade. Suas instruções propiciaram segurança no trajeto da
pesquisa.
A CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, possibilitando esta pesquisa.
Ao Mistério, Deus-Trino, que transcende e perpassa toda existência, e confere pleno
sentido à vida humana.
A minha mãe e irmãos pelo incentivo e compreensão em tantos momentos durante
minha caminhada, e pela vivência ética cheia de ternura e respeito.
Ao mestre Leonardo Boff que me inspirou a colocar nos pés na sua esteira teológica,
rumo ao Mistério Trino.
A Profa. Lina Boff que esteve presente, de diferentes maneiras, desde o início do
doutorado, e incentivadora de meu percurso teológico. À profa. Tereza Maria
Cavalcanti pela preciosa colaboração no início da pesquisa.
Aos professores e professoras do Departamento de Teologia da PUC-Rio pelos
conhecimentos compartilhados e pela experiência adquirida. À profa. Bárbara
Bucker, da CRE PUC-Rio, pela presença qualificada de religiosa e teóloga.
Aos professores, da Banca Examinadora pelas questões valiosas durante a defesa
da tese.
Ao professor Paulo Augusto da Silva, pelas aulas de Inglês, acrescidas de
experiência teológica e pelas discussões transdisciplinares sobre a vida e seu
sentido.
As Irmãs da Congregação de Nossa Sra. do Cenáculo meu obrigada.
As catequistas da Paróquia Santo Antônio de Brás de Pina, Rio de Janeiro, pelas
partilhas de fé e pela amizade construída ao longo destes anos.
A todas as pessoas, por este mundo de Deus, que buscam um sentido que permita a
vida viver com integridade para com todas suas relações.
Resumo
Lemos, Rita de Cássia Rosada; Amado, Joel Portella. A busca pelo sentido
da vida. As relações como chave de integração da vida na esteira
teológica de Leonardo Boff. Rio de Janeiro, 2016. 285p. Tese de Doutorado
– Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
A busca pelo sentido da vida é a interrogação existencial do ser humano. A
pesquisa entende ser esta uma sua tarefa essencial, que implica dar significação a
uma rede de relações conectada, aberta e em evolução. Na pós-modernidade, a vida
tem sido subordinada às coisas, relegada a segundo plano, e pior, simplesmente
denegada. O contexto atual é de uma crise fragmentadora e desperdício da
abundância de vida, na qual proliferam “promessas” de vida, oriundas de uma visão
como relativista e descartável. No entanto, é notável que o ser humano em seu
dinamismo interno afirma um a priori de sentido endógeno, uma exigência maior
de sentido, que perpassa todas suas relações. A concepção de vida na teologia de
Leonardo Boff convida a ver a vida na esteira de um permanente inter-retro-
relacionamento, tendo sua origem na inter-relação do mistério do Deus-Trino. Sua
concepção é nutrida pelo cuidado, ternura e esperança com respeito à vida. No
contexto pós-moderno em que o logos-razão se apresenta como a única via geradora
de sentido da existência, a busca pelo sentido da vida supõe uma concepção que
não apenas se lhe contraponha, mas questione a coisificação da vida e seu
encerramento em si. Esta tarefa toma uma forma específica na qual são
fundamentais o resgate e a humanização da vida. Há que se resgatar e proclamar a
palavra primeira: “Vida” (Gn 1,1ss), confirmada na vinda do Filho: “Alegra-te” (Lc
1,28) que se faz encontro comunicante na história e a transcende em amor e cuidado
de vida.
Palavras-chave
Vida; relação; sentido da vida; ser humano; cuidado.
Résumé
Lemos Rosada, Rita de Cássia; Amado, Joel Portella (Conseiller). La
recherche du sens de la vie. Les relations comme clé d'intégration de la
vie dans le sillage théologique de Leonardo Boff. Rio de Janeiro, 2016.
285p. Thèse de Doctorat – Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
La recherche du sens de la vie est une question existentielle pour l’être
humain. Cette recherche estime que ça c’est pour lui une tâche essentielle, qui
consiste à donner du sens à un réseau de relations connectées, ouvertes et en
évolution. Dans la postmodernité, la vie est subordonnée à des choses, reléguée à
l'arrière-plan, et pire encore, tout simplement niée. Le contexte actuel est celui
d’une crise qui fragmente et de gaspillage de l'abondance de vie dans laquelle
prolifèrent différentes «promesses» de vie, qui proviennent d'une vision relativiste
et jetable de la vie. Cependant, il est remarquable que, dans l’être humain un
dynamisme interne affirme un a priori endogène de sens, une plus grande demande
de sens, qui imprègne toutes ses relations. La conception de la vie dans la théologie
de Leonardo Boff invite à voir la vie à la suite d'une inter-rétro-relation permanente,
ayant son origine dans l'interrelation du mystère du Dieu Trine. Sa conception est
nourrie par le soin, la tendresse et l'espoir par rapport à la vie. Dans le contexte
postmoderne dans lequel le logos-raison se présente comme le seul générateur de
sens pour la vie, la recherche du sens de la vie réclame une conception qui non
seulement s’oppose, mais qui met en question la réification de la vie et de sa
fermeture sur elle-même. Cette tâche prend une forme particulière dans laquelle
sont fondamentaux le rachat et l'humanisation de la vie. Il faut récupérer et
proclamer le premier mot, "Vie" (Gen. 1,1ss), qui se trouve confirmée dans la venue
du Fils «Réjouis-toi» (Luc 1:28) qui se fait rencontre de communication dans
l'histoire et la transcende en amour et soin pour la vie.
Mots clefs
Vie; relation; sens de la vie; être humain; soin.
Sumário
1Introdução 9
2 O sentido da vida humana 23
2.1. A experiência humana da existência 31 2.2. A vida do ser humano em chave de compreensão pós-moderna 40
2.2.1. Mudança de época, mudança de sentidos 55 2.2.2. Crise fragmentadora do sentido da vida 60
2.2.3. O desperdício da abundância da vida 74 2.3. O ser humano grita pela experiência do sentido da vida 84
2.4. Conclusão 92
3 Na esteira teológica de Leonardo Boff 94
3.1. A trajetória teológica de Leonardo Boff 98
3.1.1. O lugar histórico 99 3.1.2. O lugar eclesial 110
3.1.3. Interlocutores do pensar teológico 116 3.1.4. Evolução e revolução no pensamento teológico 121
3.2. Concepção teológica da vida em seu sentido 126 3.2.1. O pensar evolutivo sobre a vida 130
3.2.2. A vida do ser humano presencia dualidades 138 3.2.3. A vida do ser humano como um nó de relações 145
3.2.4. A história humana como convocação a uma compreensão inclusiva da vida 155
3.3. Apreender o sentido da vida na teologia de Leonardo Boff 162 3.3.1. Jesus, o divino no humano e o humano em Deus 163
3.3.2. A ontologia do ser humano 167 3.3.3. Marcos que geram e nutrem a vida 171
3.4. Conclusão 177
4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano 181
4.1. O ser humano: partícipe e construtor do sentido da vida 186
4.2. A relação enquanto realidade construtora de vida 199 4.3. Três dinamismos reveladores do sentido da vida 212
4.3.1. Ser de existência – antropogênese – cosmogênese 215 4.3.2. Mistério de transcendência – transparência – imanência 225
4.3.3. Sentido de relação – comunhão – pericórese 236 4.4. O caráter absoluto da busca do sentido da vida. No princípio a relação, o movimento e o encontro 246 4.5. Conclusão do capítulo 254
5 Conclusão 260
6 Referências Bibliográficas 273
6.1. Documentos da Igreja 273
6.2. Obras do autor 273 6.3. Obras de outros autores 275
6.4. Sites 283
1 Introdução
A busca humana pelo sentido da vida é a indagação pela própria vida. O
ponto de partida desta reflexão é o ser humano, enquanto ser de relação, que por
sua vez, constitui o espaço de integração da busca pelo sentido da vida, na esteira
de Leonardo Boff.
Quando o ser humano se pergunta pelo sentido de sua vida na situação
histórica em que se encontra, inevitavelmente tem diante de si uma vivência
determinada e concreta. A vida é para ser vivida, e de maneira abundante. Ainda
que difícil sua conceituação, é a partir dela que se fala. Esta pesquisa tem, como
ponto de partida e como princípio norteador, a vida. No entanto, o vocábulo ‘vida’,
enquanto descreve o processo bio-cosmológico, não contempla a totalidade da
existência.
A abordagem pós-moderna da vida herda, com perplexidade e sofreguidão,
o gerenciamento de seu próprio existir. A rigor, a pós-modernidade se liga
diretamente à modernidade, exasperando suas opções, mostrando seu esgotamento
e exaustão. A modernidade fez surgir o sujeito autônomo que afirma superar a
tradição e ser o artífice do mundo pelo uso de suas próprias faculdades e
potencialidades. A razão assume para si a tarefa de pensar exaustivamente o mundo.
Por essa hegemonia, toda esperança viria da razão discursivo-instrumental. De sua
parte, a pós-modernidade escancara o fracasso da razão moderna em sua confiança
absoluta num progresso que se pretendia ilimitado, e eficientemente estruturado. O
sujeito pós-moderno já não mais procura por um projeto único e de sentido para o
futuro. Desafiado pelos limites da razão, experimenta a decepção de um mundo sem
sentido, e se entrega ao culto do fortuito e à fruição do presente.
A pós-modernidade não é mero dado cronológico, mas um conceito. Ela não
possui uma definição clara, mas liga-se pelos fatos diretamente à modernidade. O
elemento realmente novo neste “pós” é uma leitura crítica da modernidade
propiciada pela distância cronológica, embora ainda não muito grande. Enquanto a
modernidade acreditava caminhar para a ascensão a uma verdade suprema e a
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homogeneização dos saberes, a pós-modernidade, ao contrário, caracteriza-se pela
contestação de toda verdade única, permanente, trans-histórica. Suscetível às
rápidas mudanças, o pós-moderno não se apega a nada, pois nem tem certezas
absolutas. Nada o surpreende em suas opiniões provisórias. Sem fundamentos para
a construção da existência, o sentido da vida torna-se opaco.
Entre modernidade e pós-modernidade há uma radicalização teórica. Com o
advento da modernidade, a autocompreensão do ser humano adquire novos
contornos. Ao fazer a experiência de ser sujeito, ele se coloca como centro do
mundo e referência pela qual tudo é julgado. A história continua tendo valor na
medida em que propicia ao sujeito uma perspectiva dos acontecimentos. Brota uma
forte rejeição à realidade como se dada pelo destino ou pelo Deus-providência.
Desconstrói-se a visão de um criador que intervenha no funcionamento dos
elementos mundânicos em contínua interferência com suas leis, sempre realizáveis
e sempre autônomas. Esta desconstrução pretende abrir um caminho para se
achegar ao sentido vida.
Frequentemente coloca-se Descartes como inaugurador do modo de pensar
o sujeito moderno. Ao fazer da dúvida o critério fundante para se chegar à verdade,
ele opera o deslocamento centro do universo, de Deus, para o sujeito pensante. No
entanto, este sujeito nunca foi unificado, visto que ele também poderia estar
enganado. A nova visão antropológica, surgida a partir de Descartes, século XVII,
reconfigura a questão da busca do sentido, unificador e integrador da vida, tendo
em vista o progressivo e rápido abandono da dimensão transcendental do ser
humano e seu mergulho na imanência.
Se o estudo a ser feito, ficar preso nos parâmetros pós-modernos, cairá no
círculo vicioso, que consistirá em tentar resolver um problema, com os dados que
o provocaram. O caminho é cotejar esta experiência com outra, que a questione e
provoque. Para isso, urge aproximar a mensagem bíblica ao pós-moderno e
examinar a responsabilidade e participação que ele carrega na construção de um
sentido maior da vida, na história. O texto bíblico conserva um valor simbólico e
existencial, quando lido na ótica da relação gratuita e amorosa do Criador com sua
criatura. Ele torna-se absurdo se tomado como explicação do funcionamento factual
do processo evolutivo da vida.
A fé na providência e no governo divino não é, em princípio, incompatível
com a visão evolutiva da natureza. Contudo, a descoberta do caráter evolutivo do
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universo provoca a (re) descoberta da imagem de Deus e a consequente elaboração
de uma nova teologia da natureza: o Deus relacional, revelado em Jesus Cristo e
compreendido a partir da kenosis e da promessa é o fundamento para a compreensão
do surgimento e da manutenção de um mundo em contínuo movimento e evolução.
Este mundo, por definição, incompleto e imperfeito, avança em direção a um futuro
que lhe advém como possibilidade de salvação cósmica.
A pós-modernidade postula na imanência o não-sentido da transcendência,
por entender que a verdade está limitada ao conhecimento e ao feitio do homem.
Apresenta-se, então, que o reino da verdade é o reino da técnica e de um futuro
imanente, que não irá além da história e dos acontecimentos. Descarta-se a divisão
temporal entre o aqui e o além, substituindo-o pelo aqui presente e o futuro
imanente, relacionados com o progresso humano. Nesta qualidade, a transcendência
simplesmente não tem lugar.
A grande utopia imanentista pós-moderna difusamente apregoa que o
paraíso será construído aqui na terra, pelo emprego maciço da tecnologia. A fruição
pessoal deste paraíso é medida pela meritocracia. Quem não atinge o topo é porque
não mereceu. Trata-se de uma ideologia extremamente cruel, pois coloca no
excluído a responsabilidade por sua exclusão. Nesta leitura, a existência humana
toma um caráter opaco, no qual, pelo menos na teoria, não há abertura à
transcendência, pelo que não haveria espaço para a pesquisa e, nem, sobretudo, para
a experiência, de uma busca de sentido, pois a vida é organizada em função do
sujeito humano.
O ser humano pós-moderno tem dificuldade de pensar na inaudita e absoluta
proximidade do Deus de Jesus Cristo, pois afeiçoou-se a um conhecimento
demonstrável e científico e, de preferência, gerador de novas tecnologias. Inserida
nesta perspectiva, surge uma nova leitura da realidade. Esta leitura, antes
dicotômica e provocando cisão no ser humano, passa a uma visão dual e integral da
vida.
No dinamismo da história, o ser humano tem dentro de si o desejo de amor,
de justiça, de beleza, de estabelecer relações saudáveis, que orientem suas escolhas.
Ele está inserido na civilização pós-moderna na qual proliferam ‘promessas’ de
vida, que trazem dela uma visão relativista e descartável, que constituem verdadeiro
atentado contra ela e que quer impor-se a qualquer preço. O ser humano está, pois,
submerso em um emaranhado de propostas de sentido, no horizonte da imanência.
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No entanto, e é notável, dentro de sua própria vida anuncia-se uma
experiência de inigualável intimidade e confiança, uma expectativa de uma
existência humanizante. Esta circula numa atmosfera intensa de vida, alegria e
movimento. É um lado de sua experiência que transcende toda crise fragmentadora
e as definições instrumentalizadas da vida, pela festa, pela dança, numa trajetória
alegre de liberdade e gratuidade, na dimensão de um Mistério maior, que habita seu
interior.
Neste horizonte, a questão do sentido manifesta-se como problema central
da crise na civilização pós-moderna. A crise de sentido evidencia a fragilidade do
projeto da modernidade em dar respostas totalizantes pela razão. Pois a
racionalidade matemático operacional termina por se converter na negação de toda
ética pondo em risco a casa comum dos humanos. Sem uma ética da vida, o sentido
atribuído a ela é particular: ele existe para alguém ou para algo. A época pós-
moderna traz consigo um divórcio profundo entre vida e sentido.
Este novo delineamento que caracteriza a pós-modernidade, resulta na
fragmentação da vida. Assim, a crise de sentido na pós-modernidade decorre do
impulso humano de estabelecer significados ser colocado a serviço de interesses
individuais, sem integrar valores comuns para o agir em comum ou mesmo,
desconsiderando haver uma realidade única para todos.
Aqui emergem questões, frente à afirmação da busca humana pelo sentido
da vida enquanto integração. Como pensar um sentido na história sujeita a contínuas
mudanças? Haverá um ‘a priori endógeno’ de sentido na existência ou ele tem sua
origem numa realidade exógena, exterior à vida? A consciência humana da
existência do sentido já não bastaria para encontrar o sentido da vida? Haverá uma
unidade de sentido, que concentre e irradie passando do pessoal ao interpessoal, a
uma universal solidariedade integrada para todos, vinda de Deus e alcance as
demais criaturas? Qual o sentido mais verdadeiro de estar em relação? Que palavra
verdadeiramente humana responde à busca humana pelo sentido da vida? Qual a
relevância da busca por um sentido perante uma civilização, pós-moderna, que tem
não somente questionado os conceitos e sentidos, como também transformado ou
relativizado seu significado? Que significado tem, se o ser humano já está submerso
em um emaranhado de propostas de sentido no horizonte da imanência? E a vida
tem sido associada em ampla escala, à violência, à subordinação às coisas, e pior,
simplesmente denegada? Qual o contributo da fé cristã em tempos de pós-
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modernidade? Tais questionamentos terão alguma incidência na busca pelo sentido
presente no sujeito pós-moderno?
A civilização pós-moderna coloca sérios desafios à teologia. Entre eles está
a questão do sentido da vida como um dos mais notáveis. Frente a esta situação, a
antropologia teológica, tematizando a originalidade da existência humana,
apresenta uma resposta que perpassa e transcende sua história, e quer reconduzir a
vida a seu profundo sentido. Supõe resgatar a experiência do Mistério uno-trino no
contexto pós-moderno e, na experiência do indivíduo. Supõe apontar caminhos para
a superação do relativo da história, mediante o encontro com o relacional. A
experiência cristã, portanto, precisa ser cada vez mais encarnada, e menos
exclusivamente racional. Deus não é o bem que se conceitua, mas o Bem que se
oferece. Diante desta oferta, abre-se a possibilidade de uma relação com o absoluto,
que nasce da gratidão e tende para o amor.
No horizonte da vida humana, a compreensão de sentido expressa uma
busca que perpassa, porém ultrapassa a sinonímia mais chã de ter sensibilidade ou
comunicação com a realidade, pela via dos cinco sentidos. Também, considera e
extrapola a acepção de sentido enquanto direção, pois é de grande valia para o ser
humano direcionar sua vida tendo à sua frente um sentido. Afinal, ninguém sabe
por onde ir, se não sabe aonde quer chegar. A direção comunica um caminho para
o objetivo. Na perspectiva antropológica, a orientação de um deslocamento é
comunicação que se estabelece entre aquele que busca e outro que compartilha o
dom do encontro.
Neste prisma de interpretações, há uma terceira compreensão do vocábulo
‘sentido’ que mais se aproxima da pesquisa. Sentido pode ser significação, aquilo
que uma coisa quer dizer, uma valoração. Sem excluir, esta acepção é mais profunda
e considera as duas anteriores, pois supõe um caminho e supõe a plenitude, vivida
hoje e alcançada na eternidade.
Uma aparente manifestação da cultura desta época é a deterioração
semântica, a que nela estão submetidos alguns termos de rica significação para a
vida. Tais termos, lançados no jargão dos Meios de Comunicação Social e sem que
seus consumidores tenham condições de os conceituar, servem apenas para dar uma
aparência de respeitabilidade às linguagens convencionais. Um caso exemplar
desse esvaziamento semântico dá-se com o termo ‘ética’. Também o termo ‘vida’
caiu no gosto da mídia. E não é só questão de mudança da semântica. Trata-se de
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banalizar ou negar reconhecimento de valor e sentido real ao pensamento que se
pretenda vital para uma existência bem aventurada. Neste arcabouço, urge situar o
ser humano como criatura de Deus dentro do quadro maior da criação e interpretar
a sua experiência histórica como pessoa de uma dignidade incomensurável aberta
ao mistério de Deus Trino pela fé e graça. Tornar-se-á então necessária a consulta
a fontes de referência especializada em etimologia, para escolher palavras que
falem ao sujeito pós-moderno, sem cair num vanilóquio, e, principalmente, abrir
espaço, pela esteira de L. Boff, ao mistério comunicante na vida e da vida.
Esteira evoca caminho, direção. Na perspectiva teológica, esteira significa
ter um fundamento e horizonte. Significa, portanto, ter os pés fincados no chão da
realidade a partir de um Deus-amor, criador, companheiro, prenhe de um futuro de
promessa de vida com sentido de plenitude. Neste compasso, encontra-se L. Boff
que, em sua teologia, convida a pensar o mundo à luz do Deus-Trino. Nesta direção,
ele convida a passar por sua teologia, mas sem se quedar nela. Antes, ele provoca a
pessoa a construir a própria pisada na existência que permita viver a vida como
celebração na força do Espírito, pois é esse o desígnio do Criador.
Assim, a pesquisa sobre a busca pelo sentido da vida quer situar seu
vocábulo para falar de um sentido que brote da experiência de integridade e
plenitude de vida. Supõe, no presente, uma realidade indicativa de um futuro
auspicioso para a vida.
Circundado de todas estas interpretações do sentido, contudo, o ser humano
é mais. Ele não se deixa enquadrar simplesmente nesta estrutura. Em sua história
pessoal, compreende o tempo passado que se pergunta pelo sentido de sua
existência, o tempo no futuro que se pergunta até quando a vida, além do presente
que se pergunta sobre o para que a vida. O que se discute aqui não é apenas a
existência do sentido. A discussão aceita ser provocada pelas propostas de sentidos
que se apresentam fugazes descompromissadas com a história humana, conquanto
encerradas na ordem da imanência.
Neste novo tempo, a humanidade está dividida entre a afirmação da
transitoriedade nas concepções e a exclusão da coexistência de crenças contrárias
em situações ou pessoas. No entanto, é notável que dentro do fluir de sua própria
vida anuncia-se uma exigência maior de sentido, uma expectativa de humanização
mais profunda, que leve em conta a dimensão de um Mistério maior, que habita seu
interior. A concepção de vida, que encontramos no teólogo Leonardo Boff, convoca
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a ver a vida em todas as suas dimensões. Ele fala da permanente evolução da vida,
fala do inter-retro-relacionar-se, o fio primário do sentido da vida, ao Mistério,
Deus. Sua concepção é marcada pelo cuidado, ternura e esperança com respeito à
vida. L. Boff apresenta Jesus como a realização do ser humano, aquele que dá
sentido à vida, pois nele manifesta-se o divino no humano e o humano em Deus.
No contexto pós-moderno esta tarefa toma uma forma específica na qual são
fundamentais o resgate e a humanização da vida.
Jesus quer ser a resposta de Deus à vida de modo a ultrapassar os limites do
interesse egocêntrico, a lógica fechada da razão instrumental, com vistas à nova
criação. Sua práxis subverte a lógica pós-moderna onde a satisfação individual
destitui o bem do outro, a fragmentação substitui a totalidade do ser. Jesus causou
um impacto muito forte sobre os seus contemporâneos. Os Evangelhos relatam em
tom de admiração: Quem é este homem? Há um mistério em sua pessoa que a
ninguém fica despercebido. Que é isto? Há um ensinamento com autoridade que
desperta seus ouvintes. Em que Jesus se diferencia? Há um gesto e palavra que
encontram sentido. Em sua palavra-ação transparece o sentido mesmo da pessoa de
Jesus. Em Jesus, Deus vê, ouve, sente os nossos clamores e desce fazendo-se
verdadeiramente humano. Nele, Deus faz-se encarnação, envolto em pele humana
e assume a história humana. Nele, Deus permanece oferta e diálogo a todas as
pessoas.
A fé cristã busca uma linguagem para falar do inaudito mistério de Deus,
revelado no Filho. A tamanha proximidade humana de Deus, em Jesus, torna-se
resposta proclamada de fé e de afeto humano. Encontrado em ‘pele’ humana, ele é
o ‘rosto’ de Deus; morando na história humana, Jesus é ‘Palavra feita carne’; ele é
a culminância da ‘autocomunicação de Deus’. Na verdade, tais expressões são
tentativas do ser humano, no esforço para falar do mistério da vida divina que se
entrelaça com a criatura humana. Fazendo-se solidário à humanidade na
encarnação, Cristo associa o ser humano ao mistério de sua relação amorosa com o
Pai. Jesus Cristo quer ser em sua própria pessoa, a resposta de Deus à condição
humana.
Jesus, o Cristo, o Verbo encarnado, é o lugar do encontro e da experiência
de Deus. Falar de Deus numa perspectiva cristã significa falar a partir de uma
experiência. Esta experiência, por ser divina, é profundamente humana desde o
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momento em que Deus entrou na história da humanidade e fez a experiência da
carne humana, tornando-se Verbo Encarnado, em Jesus de Nazaré.
Na esteira do teólogo, Leonardo Boff, Jesus é por excelência o ecce homo,
compreendendo assim, a profunda intimidade de Jesus com o Pai. Trata-se de uma
relação radical a ponto de esvaziar-se de si mesmo, para ser completamente repleto
da realidade do Outro, Deus Pai. Para este autor, Jesus adquire o sentido de sua vida
e sua história, nesse voltar-se para uma alteridade, para alguém com o qual possui
familiaridade; para Deus, a quem chama de Pai. Em Jesus, integram-se presente e
futuro. Por esta compreensão, supera-se o paradoxo humano entre imanência e
transcendência. Jesus Cristo não sendo nada para si, mas tudo para os outros e para
Deus, quer ser a resposta de Deus à vida humana. Ele, não só afirma ser o futuro,
mas o realiza em sua vida.
A fé cristã se firma em um Deus que, amando o ser humano e sua história,
impulsiona-o a viver com dignidade e abundância, com sentido e valor. Intima-o a
agir eticamente no mundo, e a recusar toda definição fechada em si mesma e
fatalista, decorrente de uma leitura no trilho do racionalismo instrumental
despersonificante.
Denunciado por L. Boff, o logos-razão, que se quer como a capacidade
universal e única da criação de sentido, tem sido apresentado como o discurso
imperante sobre as demais dimensões da vida. Este imperativo fragmenta a
dignidade do ser humano, pois o indivíduo é valorizado apenas na dimensão de
homo faber, isto é, naquilo que ele produz. Ele deixa em segundo plano o cuidado,
a ternura e o feminino.
Para se apreender o sentido da vida na esteira teológica de L. Boff há que se
resgatar e proclamar a palavra primeira: “Vida” (Gn 1,1ss), confirmada na vinda do
Filho: “Alegra-te” (Lc 1,28). Ele é crítico da hegemonia do logos-razão, assim
como de qualquer realidade que se proponha hegemônica sobre as demais
dimensões da existência. Para ele, reconhecer o lugar de Deus não significa dar as
costas à racionalidade discursiva. Teólogo excepcionalmente marcado pela
esperança, acolhe a crise de sentido do logos, como momento de revalorizar as
relações em todas as dimensões da vida humana. Ele usa a busca do sentido da vida,
para provocar relações que brotem da experiência do Mistério de Deus. Deste modo,
a vida se torna o lugar de realização da utopia, e a morte, a passagem para a
plenitude do Reino de Deus.
17
Em sua visão, ele constata a presença de uma crise de civilização,
concomitante com os debates dos últimos tempos que visam esclarecer o sentido
nesta nova época da humanidade. Diante da crise urge encontrar uma saída
libertadora, um caminho de integração e de resgate do próprio logos, ao lado das
demais dimensões da vida. Urge encontrar um centro capaz de preencher e dar
unidade à vida em meio à relativização do sentido. Para L. Boff, a espiritualidade é
este centro de relação e de irradiação que desestrutura a ordem estabelecida para
inventar o novo. Assim urge captar a presença do Espírito em todas as coisas.
Os escritos de Leonardo Boff transpiram, antes de tudo, um conteúdo que
passa, pela experiência de quem deseja aproximar-se do Absoluto e irradiá-lo a
outros. Sua análise abre-se para a busca do sentido da vida, presente também na
civilização pós-moderna.
Em seus textos, L. Boff não aborda diretamente o tema do sentido da vida.
Assim, levantar o tema em seus trabalhos é como pesquisar pérolas preciosas. Uma
pérola no interior da ostra não se forma de uma hora para outra. Mister se faz buscar
suas colocações, dar-lhes tempo para maturação. É preciso ouvir seus gemidos
vitais e deixar que venha à tona realizar sua vocação. A pérola é a vida que também
não está pronta. Ela segue também um processo de maturação, chamada
continuamente a realizar sua vocação num aparente emaranhado de relações, que,
no entanto, revelam-se plenas de sentido. Suas palavras transbordam uma
concepção de vida, em sintonia com a busca humana, grávida de um sentido.
Seu pensamento global e sua capacidade de comunicação fazem brotar
estudos que extrapolam a teologia. Assim, a copiosidade de seus escritos, a
pluralidade de seus interlocutores, bem como a abrangência de seu pensamento, sua
capacidade de apropriar de várias ciências, sem perder de vista a fé cristã, requerem
uma delimitação de tema, a quem queira tratar de seu patrimônio intelectual e
místico. Tal delimitação naturalmente balizará esta pesquisa.
A teologia de Leonardo Boff vincula atualização com continuidade. Sua
concepção de vida aproxima-se da interrogação existencial do ser humano. Não há
corte epistemológico em sua elaboração. Isto mostrar-se-á ao tomar a vida no
contexto pós-moderno a partir de suas primeiras obras editadas.
Não se trata aqui de dar uma definição, isto é, de dizer do fim, nem de
delimitar, isto é, dizer do limite da vida pura e simples. O que se visa é tratar do
sentido da vida. Busca-se uma teologia em diálogo com pensadores que levam em
18
consideração a vida como realidade de sentido. Por detrás de todas as questões ele
percebe o grito pulsante pelo centro de sentido que irradia e ilumina, e para si atrai
toda a vida.
Com frequência se fala hoje em humanização das relações. Assunto curioso.
Tema que está na moda. A pós-modernidade, com a quebra de valores e
relativização do sentido, tem excluído, eliminado, ignorado a existência do ser
humano. Aparece uma forte separação entre humano e relação, restando um vazio
sem palavras e sem brilho. Na perspectiva bíblica este tema está sempre na ordem
do dia. Ali, do princípio ao fim, a humanidade e a jovialidade de Deus criativamente
humaniza relacionando e relaciona humanizando.
Em conformidade com o tema da pesquisa – A busca pelo seu sentido toma
as relações como chave de integração da vida, e, na esteira teológica de Leonardo
Boff – assinala-se que o ‘sentido da vida’ exige um nível mais profundo, uma leitura
humana da vida em processo de construção das suas relações. Trata-se de um
dinamismo vital, no qual o homem e a mulher experimentam-se não ser somente
um elemento a mais nesse mundo. O humano é um ser ativo, capaz de compreender
e transformar as relações históricas, de distanciar-se, simbolicamente, do seu
mundo e voltar sobre si. Nesta qualidade, coloca-se a pergunta pelo profundo
sentido da própria vida.
O sentido da vida e a vida em seu sentido: o ser humano em busca de sua
plenitude: Eis é o tema desta pesquisa. Assis ela navegará pela obra de Leonardo
Boff. Não terá, no entanto, a pretensão de circunavegá-lo, nem de investigar todos
seus horizontes. A pesquisadora ater-se-á aos textos que se irão descortinando, à
medida que a esteira do pensamento do autor lhe indique que por ali tratou-se do
tema, de maneira mais explícita. Com certeza obra alguma de nosso autor seria
enquadrada no âmbito do sem sentido. Mas ali onde o tema estiver tratado, pensado
de maneira explícita ali a pesquisa se posta em atitude de quem escuta, acolhe,
reflete e ousa sintetizar, coligir e propor avanços.
O pensamento de L. Boff é marcado por uma cosmovisão ainda recente,
cujo início está no século XX. É uma cosmovisão não somente nova, mas
questionante. Os novos desenvolvimentos das ciências físicas afirmam que o
cosmos está em evolução. Doravante, o tempo é categoria para explicar tudo que
seja cósmico, físico, biológico, humano. Fora do tempo, entretanto, adivinhamos
uma Realidade originadora e fundadora do universo, sem a qual o universo seria
19
um monólogo vazio: seria palavra de ninguém e expressar-se-ia para ninguém. Esta
Realidade mais profunda confere sentido e unidade a todo existente. Ela se faz
presente na história, sem a determinar. Realidade velada, mistério transparente,
apresenta-se como palavra que cria, resgata e dá sentido, permitindo que o cosmos
seja diálogo, ou seja, expressão com sentido e experiência de sentido.
O ser humano é um buscador de sentidos, por isso mesmo busca as relações,
busca sair de si mesmo. A busca de sentido comporta não só a dimensão relacional,
como também a dimensão da liberdade. Em outras palavras, pode-se dizer que ele
busca sua libertação. O contrário, também é verdade: a libertação orienta a busca e
o encontro do sentido da vida. Na presença radicalmente gratuita de Deus, a
humanidade é chamada, incondicionalmente, a realizar uma existência histórica
criadora de sentido e liberdade.
A atualidade e a importância do tema do sentido da vida têm recebido
fermento renovador por diversos pesquisadores, desde a ética, a filosofia, a
sociologia, a psicologia, a pedagogia, a biologia, para citar somente algumas
principais dentre elas. Elas refletem a crise da civilização pós-moderna. Trata-se de
uma temática de longo e diversificado itinerário, por isto urge discernir as
interferências, entroncamentos, bifurcações do conhecimento imediato, em
consonância às experiências contidas na Sagrada Escritura.
No que tange à antropologia teológica será útil recordar que a noção de
sentido, cuja problemática segue atual na pós-modernidade, tem diferentes
concepções que afetam todas as relações humanas. Desde então se compreende a
busca do sentido horizontalizada para o infinito à luz da realidade histórica, a qual
é sempre interpessoal, se é verdadeiramente humana. Com isto quer se evitar a
banalização da dignidade humana que aconteceria se fosse considerada unicamente
como um ‘dado’ isolado, como outros dados isolados do universo.
As várias ciências e abordagens tangenciadas por esta pesquisa manifestam
a amplidão incomensurável contida na palavra vida. Impossível seria, aqui,
aprofundar suas especificações, comparações e diferenciações. Entende-se que uma
leitura, breve sobre a vida em sede científica será útil. Sua importância para a
pesquisa se deve a descoberta de uma configuração nova do mundo, que compõe a
matriz geradora de uma nova cultura, influenciando todos os âmbitos da vida
humana, nisso que se convenciona chamar de pós-modernidade. Contudo há que
ressaltar que as ciências modernas como a matemática, a astronomia, a física, a
20
química, a geologia, a biologia, a bioquímica e as ciências humanas, têm seu próprio
campo formal e objeto de estudo, não sendo, de um lado, teológicos, e de outro, não
cabe à teologia julgar seu valor científico. Neste terreno, buscar-se-á a contribuição
de quem é do ramo, como quem aprende, sem mergulhar nas discussões próprias
daqueles saberes, o que sobrecarregaria a pesquisa.
O saber pós-moderno é multifacetado. A aquisição de conhecimentos
demanda interligações com outros campos de pesquisa. Isto corresponde à
pluralidade de abordagens com a teologia, isto é, a transdisciplinaridade. Para ser
uma palavra atualizada, e não cair na armadilha de dar respostas cristalizadas, urge
que a teologia escute as outras abordagens, dialogue com suas afirmações, sem
perder de vista seu ponto de partida escriturístico; Jesus, a Palavra de Deus, é o
critério de discernimento.
A vida traz consigo desde o começo um sentido que leva a um limiar, que
marca um mais de integração, de relações pluridimensionais, de um Mistério que
se faz próximo. Neste quadro da busca pelo sentido da vida, a pesquisa pergunta se
a concepção antropológica de L. Boff apresenta um aporte e mesmo um novo
paradigma teológico para que o ser humano encontre seu sentido mais profundo.
Para tratar da busca pelo sentido da vida no tecido das relações como chave de
integração da vida na esteira teológica de Leonardo Boff, será necessário ver, isto
é, abrir os olhos internos para ver a realidade a partir da perspectiva da fé, sem, no
entanto, deixar de construir a própria pisada na força do Espírito de Deus. Em seu
modo de viver as relações, Jesus nos ensina um ver que desce até a história para
cuidar da vida em sua inteireza, manifestando solidariedade efetiva e afetiva em
direção a mais vida.
Para estruturar a pesquisa, o primeiro ver apresentará o sentido da vida
humana, sob três pressupostos. A compreensão da categoria existência, que por si
permite resgatar a dignidade inerente a vida. O segundo pressuposto, a vida do ser
humano em chave de compreensão pós-moderna, isto é, como mudança de época,
crise fragmentadora e desperdício da abundância da vida. E em decorrência, o
terceiro, uma reflexão sobre o grito de súplica do ser humano por experiências que
promovam o sentido da vida.
O próximo passo é o ver a realidade do sentido da vida humana, agora na
esteira de Leonardo Boff. Neste percurso, torna-se indispensável conhecer sua
história, marcada ainda hoje pela luta por libertação da opressão a partir de uma fé
21
em Jesus Cristo libertador de toda alienação que estigmatiza a existência humana,
e que faz brotar uma pluralidade de interlocutores. Em seguida será abordada sua
concepção teológica da vida em seu sentido. Leonardo Boff tem uma visão dual
para a vida. Ele inclui o outro, o diferente e considera a positividade da crise, até
mesmo para a morte. Nesta leitura, a vida do ser humano consiste em ser um nó de
relações de abraçamento em todas as direções. Em suma, apreender o sentido da
vida em sua teologia, significa considerar a jovialidade eterna de Deus, revelada em
Jesus, e a busca contínua do ser humano ‘hoje’.
A busca humana pelo sentido da vida tem em vista sua orientação e
identidade. Este terceiro ver torna-se mais profundo, pois considera e amplia o
sentido da vida humana, seguindo a leitura teológica de L. Boff. O chamado do ser
humano à vida implica uma relação com o seu Criador, relação esta de participação
no seu modo de ser. Destaca-se também um dinamismo revelador de vida que será
lido numa trilogia: resumidamente, trata-se do dinamismo de ser humano polo de
diálogo com a natureza, com o outro e com Deus; de ser pessoa, possibilidade de
relação, de ser o outro de algum modo; de sentido, ter a experiência de lucidez,
significação e finalidade. E para concluir, o caráter absoluto da busca do sentido da
vida quer encontrar uma palavra discursiva humana, mas que também seja
expressão de encontro de sensibilidade, força, inteligibilidade, discernimento e
ética.
A pesquisa, assim, quer introduzir a busca de um profundo sentido da vida,
a qual implica dar significação a uma rede de relações conectada, aberta e em
evolução. O ser humano encontra sua realização em uma ordem de grande
complexidade, pericorética, integradora, presente na relação do Mistério-Trino.
Esta busca supõe uma concepção que não apenas contrapõe, mas busca superar a
antropologia moderna tanto do tipo cartesiano, quanto dos moldes do monismo
materialista, e questiona a coisificação da vida humana e a ideia de uma aparente
ausência de Deus.
A linha desta pesquisa tem como pressupostos Deus e o ser humano como
sujeitos de palavra e linguagem. Nesta interação, o ser humano fala humanamente
de Deus, que fala divinamente do ser humano. As palavras, portanto precisam ser
pensadas e pesadas. Pela mesma razão, a busca do ser humano pelo sentido da vida
revela o ser humano como um projeto infinito, de um abraçamento de ternura e
cuidado no interior de um círculo infinito, sem circunferência.
22
Esta pesquisadora quer somar-se a outros e outras em sua busca pelo sentido
da vida, e que ao procurar deixam-se encontrar pelo mistério de Deus-Trino, fonte
de toda, busca, de vida. Parafraseando a primeira carta de João: Buscamos porque
Deus nos busca por primeiro; encontramos porque Ele é o próprio encontro;
vivemos porque Ele é viver eterno na vida; amamos porque Deus nos amou por
primeiro (cf. 1Jo 4,19).
2 O sentido da vida humana
Acreditar e creditar são verbos que dão impulso para tratar da vida. Neste
diapasão, a vida será abordada na dinâmica de quem vive e aposta ser ela aberta a
um futuro promissor de relações cada vez mais solidárias e inclusivas. Se por um
lado há dificuldade em encontrar-se uma definição para ‘vida’, ou mesmo a
impossibilidade de sua apreensão por palavras, há o risco de ser compreendida de
maneira genericamente superficial pela falta de um conceito. Como primeiro passo,
pode-se explicitar a vida como característica própria aos seres vivos que possuem
estruturas complexas, capazes de resistir a diversas modificações, aptas a se
renovar, a crescer e a se reproduzir.
As mudanças pós-modernas têm não somente questionado os conceitos e
sentidos, como também transformado ou relativizado seu significado. Na realidade,
vida tem sido associada em ampla escala, à violência, à subordinação às coisas, e
pior, simplesmente denegada.
A vida é central no anúncio de Jesus. Ela acontece no horizonte de um
processo contínuo que tende para a eternidade. A grande travessia é a morte,
acontecimento biológico e pessoal que não está isolada da vida, nem está projetado
para um futuro remoto. A morte acontece continuamente e cada instante pode ser o
último. A vida é para ser vivida, ela é mistério, assim como também a morte. Vida
tem dimensão temporal, de chegar ao termo de uma caminhada, e dimensão
espiritual, de possibilidade de plena realização da identidade mais profunda do ser
humano, isto é, a Ressurreição.
As ciências revelam a precariedade das decisões terrestres. Ficam as
perguntas: como construir no tempo uma eternidade? Como decidir dentro de tanta
precariedade o destino eterno? Experiência universal e inexorável no ser humano,
a morte é apenas o fim do começo, isto é, a semente de eternidade plantada em nós
no tempo pode finalmente germinar e florir.
A temática da vida é bastante ampla e abrangente. É uma discussão
infindável, condenada a ser antinômica a desembocar sempre na aporia dos
24
conceitos. No entanto, o ilimitado dos discursos, nada mais faz que revelar o infinito
que é sua explicitação, seu significado, seu sentido que, justamente, ultrapassa toda
narrativa humana. A linguagem racional humana não esgota o fenômeno ou
experiência da vida, quando constrói dela uma definição. De fato, ela tem sido
objeto de indagações minuciosas e incessantes, que procuram compreender desde
processos de auto-organização e de autocomplexificação do universo, até aqueles
da evolução e das inter-relações, dos seres vivos uns com os outros e com o mundo
que os cerca. O irredutível processo da vida implica uma análise não só teórica, mas
reveladora de um modo de ser, cuidado. O cuidado mostrar-se-á como princípio e
constituinte de humanização e desvelará o afeto como modo de co-existir com os
outros.
O ser humano, que se constitui a priori como ser de linguagem, tem
necessidade de racionalizar suas experiências. Esta exigência de racionalidade não
esgota as relações, mas é expressão válida da vida mesma. Na busca de esclarecer,
em forma de linguagem, o processo da vida, L. Boff expressa que “a vida consiste
na auto-realização de um ex-istente1”. Com estas palavras, ele sublinha que a vida
“possui interioridade”. Ela chama a realizar seu processo a partir de um “de dentro”.
Implica o Ser em plenitude e a participação ativa de convivialidade com o outro,
nesta via, “captamos o sentido da vida”. A ex-istência comporta uma relação
dialética de ser que “a partir de dentro (interioridade) se relaciona para fora (ex),
para outros seres, estabelecendo comunhão e relações de dar-e-receber”. Assim,
existência na esteira teológica de Leonardo Boff tem caráter de sentido da vida, e
exige uma leitura mais ampla de seu pensamento.
Quando a pessoa se confronta com a vida, acontece a procura por um sentido
que seja absolutamente importante, que, ao mesmo tempo, perpasse e ultrapasse
todas as suas vivências pessoais e coletivas. Para ser pleno deverá ser um sentido
último e transcendente a tudo. Neste instante, emerge do mais profundo do ser
humano uma espécie de voz que quer abarcar a globalidade da realidade e que se
destaca de todas as outras. É uma voz que gostaria de expressar em uma única
palavra a totalidade da experiência humana, a totalidade da realidade e a relação
entre as duas. Os artistas buscam-na, os céticos negam-na. Sempre incompleta,
continua desejada, mesmo quando negada. Qual seria a grande palavra da vida?
1 BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 159.
25
A vida irradia sua transcendência e encontra seu centro de sentido, por vezes
esquecido ou perdido, no interior da espiritualidade. Ela é o espaço interior do
alimento e do cuidado de todas as experiências, a partir do qual todas as coisas se
relacionam. Ter um sentido para a vida tem alcance existencial antropológico. Por
conseguinte, o pluralismo de opções de sentido produzidos e ofertados mais conduz
de o ser humano a estabelecer um “eixo articulador para a existência”2 a partir de
sua realidade histórica.
Lima Vaz afirma que o tema do sentido ocupa lugar privilegiado no
pensamento contemporâneo. A busca pelo sentido é uma questão de caráter
existencial. Esta questão configura toda experiência humana da existência e brota
pela necessidade de viver a verdade de seu ser na verdade do conhecer. É o ser
humano que conhece e sabe que conhece, que se pergunta pelo sentido da sua vida
e de toda a vida. Outrossim, não se pergunta pelo sentido sem haver referência a
um fim, mas se norteia por um horizonte sempre mais amplo. A questão do sentido,
portanto, é sempre antropológica, na explicitação deste filósofo.
Descobrir o sentido na floresta dos sentidos possíveis é, pois, a tarefa por
excelência do ser humano enquanto portador do lógos, pois só a ele, aberto constitutivamente ao ser e à verdade, é oferecido o supremo risco de enunciar o
sentido verdadeiro e, assim, de interpretar as razões do ser em razões do seu próprio
viver3.
A questão do sentido da vida do ponto de vista histórico, tem itinerário desde
a filosofia grega e é transversal na Sagrada Escritura. Destas duas chega à
espiritualidade cristã, alcançando atualidade e emergência no clima intelectual pós-
moderno4. A razão filosófica impõe à teologia refletir “o fundo ontológico dos
conceitos teológicos”5.
Por esta afirmação, a perspectiva primeira é: No princípio, Deus cria a vida
(cf. Gn 1,1ss). As criaturas são efeito da Palavra de Deus. Esta expressão é repetida
2 Cf. AMADO, J. P., “Entre Deus e Darwin: contenda ou envolvimento?”, pp. 85-87. 3 LIMA VAZ, H. C., Escritos de Filosofia III, p.167. 4 Cf. Id., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 5. Seria necessário explicitar que o
que Lima Vaz faz é perceber que a mudança gnosiológica surgida na modernidade, longe de ser
mera mudança metodológica, altera todo o processo de se pensar o conhecimento, sua construção,
seu influxo na história e, portanto, na vida da civilização e das pessoas dentro dela. Deste
pressuposto, a pesquisa, ao refletir sobre o sentido, considera sempre um ser humano que de modos
diversos empenha-se em plurais buscas, mas cuja orientação é a vida como horizonte último da
existência. 5 BOFF, C., Teoria do método teológico, p. 68.
26
no Evangelho o qual também visa o começo pelo Absoluto: No princípio o Verbo
existe em Deus. O Verbo é a vida para o ser humano, fundamento pleno de sua
existência (cf. Jo 1,1ss). O vocábulo original em grego λóγος traz muitos
significados: “recolhimento, colheita, unificação, palavra, discurso, colóquio,
diálogo, expressão do pensamento”6. Esta polissemia tão intensa aponta a vida, e já
a vida terrena é projeto ilimitadamente aberto ao infinito e quer ser vida plenificada
em Deus. No entanto, embora seja projeto supra-humano, não é projeto sobre-
humano. Pela fé nos vem um socorro: o Espírito Santo que comunica vida.
Diante do projeto criador de Deus, levanta-se outro projeto, o da anti-
criação: a morte. Em oposição à luz e vida, apresenta-se um projeto de morte e
trevas. É o caminho da escravidão. Nele, o ser humano se faz ‘como deus’, na
concepção da divindade como força arbitrária. Ora aquilo que é arbitrário age
justamente na obscuridade do não-sentido. É contra isso que se busca um processo
de libertação, pois libertação consiste em sair das trevas e ir para a luz.
Vida e morte não são, para nós humanos, simples acontecimentos
biológicos. À diferença dos animais, o ser humano é consciente que existe a morte.
Ele sabe que vive e morre, isto é, existe. A certeza da morte está sempre presente
de algum jeito no horizonte da vida: a consciência da vida vai unida à consciência
da morte. Em sede filosófica lemos: “Viver e morrer são a descoberta da finitude
humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha e minha,
a morte”7. A experiência da ‘finitude’ gera diferentes propostas de vida. Alguns por
fingir ‘infinitude’, eternidade construindo impérios ‘definitivos’, sejam de caráter
territorial, nacional, sejam impérios econômicos. Outros optam pela ‘infinitude’ da
partilha de amor e ternura.
Nessa perspectiva, a afirmação de uma teologia da criação é antinômica,
uma vez que é possível sustentar-se a ideia de um universo eterno e incriado8. Desde
o nascimento da filosofia surge a pergunta intrínseca ao ser humano sobre sua
6 SCHENKL, F.; BRUNETTI, F., Dizionario greco-italiano-greco, p. 517. Transcrito do verbete
λóγος . Tradução minha. 7 CHAUÍ, M., Convite à Filosofia, p. 471. 8 A cosmologia no período Pré-socrático tem um de seus principais filósofos, Anaximandro de
Mileto. Para ele, a gênese do cosmo é explicada como um movimento que é eterno. “Como o
princípio é infinito, também infinitos são os mundos que se geram do princípio. E os mundos são
infinitos não só na sucessão temporal, no sentido de que o mundo morrerá e depois renascerá
infinitas vezes”. O universo seria resultado de modificações ocorridas num princípio originário. Esse
princípio seria o ápeiron, que se pode traduzir por infinito. Ele estaria animado por um movimento
eterno, que ocasionaria a separação dos pares de opostos. E não há explicação de como as coisas
foram se constituindo. REALE, G., História da Filosofia Antiga, p. 56.
27
origem bem como sobre o lugar que lhe é próprio neste universo. Na história da
filosofia, um primeiro período denominado ‘cosmológico’ tem por base a
investigação de um princípio universal, imutável que tivesse gerado todas as coisas
e seres e para onde tudo retorna.
No período pré-socrático ou cosmológico,
Cada filósofo encontrou motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e de suas transformações. Assim, Tales
dizia que o princípio era a água ou o úmido; Anaximandro considerava que era o
ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes, que era o ar ou o frio; Heráclito afirmou que era o fogo; Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos. E
assim por diante9.
Portanto, nesta visão, não existe criação do mundo. O mundo é eterno e dele
tudo brota, nele tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer.
A perspectiva de um mundo estático encontra sua crítica numa concepção
pós-moderna de evolução do mundo. Também aqui se fala de um início do universo,
mas não de criação. Este início (o Big Bang) seria mera constatação, não sendo
possível um discurso científico para além dele.
Contudo, o significado da criação do mundo escapa às ideias claras e
distintas, e denuncia a ignorância acerca da visão de Deus sobre o universo, ao passo
que revela um projeto divino na própria estrutura do mundo, projeto divino no
interno ao mundo, desde, mas não exclusivamente no momento da criação ou
surgimento.
Tanto os Padres da Igreja, como os teólogos das épocas posteriores, sempre se aplicaram em formular do modo mais exato possível as relações entre Cristo e o
mundo. Mas o mundo que eles tinham em vista era um mundo estático, unido a
Cristo numa relação antes jurídica e acidental. Porém, numa concepção evolutiva do universo, tais laços tendem a adquirir um vigor não mais puramente extrínseco,
mas orgânico10.
O século XIX presencia um estudo semelhante ao do período pré-socrático.
O eterno retorno do mesmo, o fluxo perene que está em toda parte, é a pedra de
toque da filosofia de Nietzsche. O eterno retorno substitui a metafísica e a religião.
É o incondicionado e infinito movimento circular de todas as coisas. Se há um
sentido, ele é sempre insatisfatório e mutável conforme circunstâncias e interesses.
9 CHAUÍ, M., Convite à Filosofia, pp. 41-42. 10 STORCK, J. B., Teilhard de Chardin, p. 40.
28
O único sentido é, para Nietzsche, a aceitação de não existir nenhum destino, ou a
ser o eterno retorno do idêntico. Seu impulso crítico, pelo qual propõe a demolição
de todo valor, de todo ser que fundamente a verdade, está em fundar a moral no
próprio homem, exaltando sua liberdade. Sua originalidade pressupõe uma moral
alicerçada no próprio homem, encarado na ótica da pós-modernidade, do qual
tornou-se lugar comum dizer, justamente por isso, que é o homem “pós-tudo”.
Nietzsche coloca sob suspeição a ideia de conhecimento (filosofia grega), de
verdade (cristianismo) e de sujeito (modernidade, idealismo alemão). Esta postura
acarreta a destruição de valores ou de um ser que fundamente a verdade das coisas.
Então os animais disseram: ‘Zaratustra, para os que pensam como nós, todas as coisas bailam; vão, dão-se as mãos, riem, fogem... e tornam. Tudo vai, tudo torna:
a roda da existência gira eternamente. Tudo morre; tudo torna a florescer, correm
eternamente as estações da existência. Tudo se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se separa, tudo se saúda
outra vez; o anel da existência conserva-se eternamente fiel a si mesmo. A todos
os momentos a existência principia; em torno de cada aqui, gira a bola acolá. O
centro está em toda a parte. A senda da eternidade é tortuosa’11.
Em primeiro lugar, o homem, segundo Nietzsche, encontra-se diante do
desafio de criar constantemente novos valores, numa atitude de aceitação e
afirmação deste mundo como eterno retorno e inocência do devir12. Com a
relativização dos imperativos e a instauração do humano, ser criador de si mesmo
a partir do nada, verifica-se, por lógica, que Deus morreu. Para sobreviver, faz-se
necessário descobrir o humano sem referi-lo a nada, que não seja ele mesmo,
exaltando a sua liberdade13. “Para Nietzsche, todo o processo do niilismo é
assumido na morte de Deus, ou na ‘desvalorização dos valores supremos”14. Uma
nova forma de vida, cuja existência é intramundana, isto é, sem transcendência.
Observa-se que Nietzsche ao anunciar a morte de Deus, mira primeiramente
a morte de um ser divino construído pela filosofia, pela ontoteologia, na expressão
11 NIETZSCHE, F., Assim falava Zaratustra, Apud NOGARE, P. D., Humanismos e anti-
humanismos, p. 163. 12 Cf. HÉBER-SUFFRIN, P., Nietzsche ou la probité, p. 7. 13 Segundo Lima Vaz, o pensamento de Nietzsche não deixa claro se o fundamento da fé no próprio
homem, o “super-homem”, está em continuidade ao homem histórico ou um ser distinto e superior
de vida. Esta pesquisa, não discutirá tal questão. Atém-se somente em considerar a crítica radical ao
seu conceito de verdade, na via de estruturar o indivíduo como ato criador de si mesmo e definir o
sentido mais profundo do ser humano. Cf. LIMA VAZ, H. C., Antropologia Filosófica, p. 145. 14 VATTIMO, G., O fim da modernidade, p. 22.
29
de Heidegger, bem como pelas religiões e, portanto, esvaziado de Mistério. Por esta
vacuidade ele é incapaz de conferir sentido à vida e criar relações fraternas.
Em segundo lugar, o anúncio da morte, na verdade, revela que Deus foi
morto pelo ser humano quando este negligenciou sua orientação para o
transcendente, detendo-se no deus, ser postulado por questões filosóficas e
divorciado do Deus da revelação e que se apresenta como Deus amor. O amor é
capaz de novas relações. Um conceito filosófico, não. Deus permanece presente.
Cabe ao ser humano mergulhar na experiência de transcendência, que vai além do
ser e mergulha no mistério de amor.
A contraposição entre o postulado nietzschiano de quem não crê mais em
nada e sua fundamentação no humano em quem se crê acima de tudo quando não
tem mais a força de crer no que quer que seja, não parece abrir sendas para uma
indagação sobre sentido da vida? Como ainda crer em ideais que mal resistem à
desvalorização de todos os valores, à imanentização e à relativização de tudo? O
legado que Nietzsche deixa desafia todo pensamento pós-metafísico que não quer
soçobrar no niilismo. Outras questões se impõem. Pode a presença de um Absoluto
preencher o esvaziamento do sentido, mediante uma presença concreta, palpável,
real? Na contraposição de quem decide dissolver o sentido último, poderia pôr-se a
questão de se em última instância o sentido nada mais fosse do que a projeção de
representações subjetivas? De ambos os lados, estas questões impulsionam a
avançar pela via do sentido, mesmo que haja tropeços (erros?), na caminhada em
direção a uma meta que mal se chega a vislumbrar, mas que não cessa de se
apresentar, pelo menos como um interrogar-se por um horizonte de sentido. De fato,
trata-se de questões válidas e intrínsecas à busca do sentido da vida, que não podem
ser negligenciadas, nem se contentar com respostas abstratas de silogismos e
inferências, ou concretas, de cunho reducionista. Este tipo de referência ao sentido
do ser circunscreve, na verdade, o não-sentido, pois o sentido, aqui, está no domínio
da aparência, justamente na imanência absolutizada do sujeito15.
A questão do sentido está em referência a um ser humano concreto, situado
na história, ao mesmo tempo aberto e desejante de totalidade, de plenitude. Por
causa disso, o ser humano planeja manipular o futuro. No entanto, a busca pela
autenticidade anuncia/denuncia que toda manipulação é falsificação. O ser humano
15 Cf. LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 10.
30
é ser projeção para sempre mais, mas a vivência do Mistério supõe o não controle
ou manipulação. A abertura ao Mistério supõe abertura à surpresa para o que está
fora de sua pré-visão, para o Ainda-não. A busca de um horizonte de sentido que
engloba o ser humano, mas está além dele, indica-lhe não possuir o centro em si
mesmo, mas fora, isto é, em expectativa que ainda não se deu, mas que, para quem
crê, já se encontra realizada em Jesus Cristo.
O ser humano experimenta o vazio e a insatisfação, vive a angústia da busca,
constata a insuficiência da empeiria (ἐμπειρία), e deseja a integração que supere sua
fragmentação. A Filosofia Antiga, com Anaximandro, Século VI a. C, e a
contemporânea, com Nietzsche, Século XIX d. C., têm em comum o desejo humano
de encontrar-se o princípio universal e eterno que gera todas as coisas e de onde
tudo retorna. Este mesmo desejo reveste a época atual, pós-moderna, embora sob
formas originais e sob muitos aspectos inquietantes. Levanta a interrogação
fundamental sobre o sentido da vida humana, individual e coletiva. Concerne, pois,
à civilização humana e à forma de orientar seu viver.
A questão do sentido é independente da ideia de um universo eterno. Como
se sabe, recentemente, abre-se um período novo na cosmologia16. Não há como
desconhecer as descobertas do Século XX que apontam que o universo teve um
começo, ele é finito em idade e extensão.
O fato de o universo continuar a se expandir espacialmente só pode significar que
deve ter havido um começo em algum momento do longínquo passado. Como a gravidade tudo atrai, se o universo tivesse existido sempre, todo corpo material
nele existente ter-se-ia agrupado a outros17.
Deste pano de fundo científico, portanto, sabe-se que o universo não tem
idade infinita, ou seja, ele teve um começo. Afirmar a criação do universo, por seu
lado, implica não ser este começo um absoluto, ou seja, implica não ser ele auto-
originado, nem necessário; antes, contingente, carente da graça ilimitada de Deus.
O questionamento da auto-origem não está tanto no plano dos fatos, quanto neste
16 Consoante a este pensamento, temos Tanzella-Nitti o qual afirma que a cosmologia física hoje
abre horizontes, que permitem afirmar que o universo possui dimensão histórico-evolutiva. Sendo a
historicidade uma característica densa da humanidade, seria possível uma leitura antropo-teológica
da evolução cósmica? Urge, então, que a teologia acolha os novos conhecimentos advindos da
cosmologia, a fim de crescer na inteligência da fé e examinar as eventuais implicações que ela traz
para a compreensão da Revelação. Cf. TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 154. Tradução
minha. 17 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 165.
31
plano da graça. Seja qual for a história última do universo, do ponto de vista da
facticidade, é a graça que, no ato de humilde amor de Deus permite a existência de
uma alteridade relacional que se desenvolva em liberdade. A relacionalidade
inerente à vida trinitária liga-se à razão implícita à noção de mundo inacabado, ou
seja, em processo.
Com o contributo da ciência, a antropologia teológica pode compreender
melhor o ser humano como criatura num mundo em criação, consequentemente um
significativo aumento na compreensão de suas relações. Por esta via, seriam
valorizadas as “ressonâncias cristológicas de uma centralidade teleológica, não
mais geométrica, da vida e do homem, no cosmos”18.
A questão do sentido da vida, assegura Lima Vaz, é tarefa humana por
excelência, pois sendo “portador do logos, aberto ao ser e à verdade, é dado o
supremo risco de enunciar o sentido e de traduzir, assim, as razões do ser em razões
do viver”19.
A antropologia teológica, ao tratar do sentido da existência da vida, amplia
e lança luzes ao sentido do ser como o sentido que subjaz a todo e qualquer sentido.
A filosófica jamais cessou de interrogar o sentido da vida, o Ser, a vida em comum.
Se ela, em dado momento, respondeu sob a forma de um dualismo insustentável,
como tal, não é, de modo algum, certo que não haja outros recursos à disposição de
uma razão sensata.
2.1. A experiência humana da existência
Num primeiro momento, seria bastante dizer que a vida é o comum e o
trivial da existência neste mundo: fala-se a partir da vida e para a vida. Isso, no
entanto, seria uma assertiva fechada e empobrecedora do seu significado, por
desconsiderar as possibilidades e reflexões que dela se podem fazer. Despoja-se a
antropologia da existência e a vida fica esvaziada, quando a análise das estruturas
de base que geram os fenômenos observáveis é deixada em aberto, inconclusiva,
sem respaldo prático. Neste processo a vida é analisada em suas relações sociais
18 TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 161. Tradução minha. 19 LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 9.
32
somente em termos de estruturas relacionais altamente abstratas. Esta concepção
nega o caráter histórico da vida e sua subjetividade, vendo-a como resultado de
forças estruturantes e determinísticas20.
Numa ótica que só a considera em seu aqui e agora, o presentismo, a vida é
relativizada, banalizada, o que a leva a vários tipos de fim: fim da espécie, da
alegria, da utopia, da história, das relações, da esperança da terra da Promessa, fim
do sentido de viver. A vida humana em sua curva cronológica é também tempo no
passado que se pergunta pelo sentido de sua existência, e tempo no futuro que se
pergunta até quando a vida, além do presente que se pergunta sobre o para que a
vida. As dimensões temporais fazem parte da vida e deve incluir uma quarta: a vida
eterna. Esta dimensão em nada se assemelha ao futurismo, mas inclui e está incluída
nas outras21.
A vida é lugar da encarnação de Deus e de sua revelação aos homens e
mulheres. As libertações experimentadas nesta vida já são começo da vida que vem
de Deus. Não há hiato nem oposição, e sim passagem entre a vida terrena e a vida
eterna. A vida eterna não dá seu sentido à vida presente de maneira extrínseca.
Longe de ser uma evasão, a esperança da vida eterna fecunda a história da liberdade
humana e as escolhas éticas que decidem seu destino eterno. No agir de Jesus não
há duas libertações, uma na história outra para a vida eterna, pois, “Transcendência
e imanência são dimensões de uma realidade global única. A Salvação já está na
História e em seu processo de Libertação para a plenitude escatológica”22.
Na verdade, o falar da vida traz o risco de quedar-se em lugares comuns, e
questiona-se ou mesmo torna-se inválido o falar dela, pois só se pode falar a partir
20 Em linhas gerais, o estruturalismo sustenta que o sentido da realidade não tem um fenômeno
original, mas é redutível a um não-sentido. Cf. OUTHWAITE, W., Dicionário do pensamento social do século XX, p. 275. Para Giddens, a pós-modernidade tem origem no pensamento estruturalista.
Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, p. 52. 21 O estudo aqui sobre a existência e a vida não está na linha do existencialismo. Ou seja, não se
trata de um conjunto de teorias formuladas no Século XX, com forte influência do pensamento de
Kierkegaard. Este pensamento ao dar maior importância ao finito, ao que surge e desaparece, define
o homem como ‘um ser para a morte’, isto é, um ser que sabe que termina e que precisa encontrar
em si mesmo o sentido de sua existência. Há uma bibliografia extensa no âmbito geral ou específico
sobre o existencialismo e filósofos existencialistas. Uma boa compreensão pode ser encontrada em:
ABBAGNANO, N., Introdução ao existencialismo. Quanto aos existencialistas, como Kierkegaard,
Sartre e outros a obra de PRINI, P. Existencialismo. 22 VIGIL, J. M., “Crer como Jesus”, pp. 945-946.
33
da vida. Todos falam a partir da vida, mesmo que fragmentada ou interpretada como
líquida23. Nesta perspectiva, vida é nada interessante.
O interesse da ciência física pelo significado da vida, não se concentra em
afirmar que o universo é vivo, antes, interessa-se em dizer das características das
coisas vivas e suas interações, relações entre si. Sobre isto argumenta o físico, Lee
Smolin.
Nos manuais de biologia lemos que uma coisa viva é algo que partilha as
características do metabolismo, reprodução e crescimento. No entanto, há dois problemas com esta definição. O primeiro é que ela não é muito intuitiva. Ela nada
nos diz a respeito de por que estas características são frequentemente encontradas
juntas ou por que coisas com estas características são encontradas no universo. O segundo problema é que qualquer definição de vida que possa ser aplicada a um
organismo único dá a falsa impressão de que uma coisa viva isolada, solitária
poderia existir em nosso universo 24.
Outro risco é considerar-se a vida muito trivial em seu cotejo com a morte:
para que a vida se há a morte? Ou seja: para que tanto esforço por algo fadado a se
extinguir? É uma postura que dilui o valor e o sentido da vida, de modo que se a
pode tirar ou manter, indistintamente. Nesta perspectiva, vida é desimportante, é
banal. O sentido que muitas vezes se lhe atribui é anulado. Isso conduz ao vazio e
à incredulidade, com inevitável contaminação de outros aspectos e categorias do
pensar a existência e a vida.
A vida ultrapassa a metafísica, valendo, independentemente, por suas
determinações de interpretação do mundo, onde o real e o racional se identificam
reciprocamente, onde o ser é identificado com o logos25.
A pós-modernidade se torna metafísica, recusando embora a metafísica, ao
exigir uma razão particular para justificar cada coisa. Nada escapa às suas
23 Esta é a discussão de Z. Bauman em várias de suas obras. Em sua obra Modernidade líquida ele
inicia com um sucinto percurso do significado de fluidez e liquidez nos processos químicos e conclui
que ambas são metáforas adequadas para ler a história da modernidade. Posteriormente, em outra
obra, Vida líquida, ele liga as duas obras argumentando que a vida líquida tem sido a compreensão na modernidade líquida. Nesta última ele escreve “numa sociedade líquido-moderna, as realizações
individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os
ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades”. BAUMAN, Z., Vida
líquida, p. 7. Id., Modernidade líquida, pp. 7-9. 24 SMOLIN, L., The life of the cosmos, pp. 145-146. Tradução minha. 25 Será feito uso em itálico da palavra logos, a fim de ser mais próximo de seu significado original.
A explicação desta palavra toma certa distância do seu sentido primeiro em dicionários. O mais
comum é sua etimologia do grego logos, significando linguagem ou definição; e ainda, palavra,
razão, juízo, explicação; outras vezes, para dizer do divino como a razão. Mais aproximativa desta
pesquisa é a compreensão filosófica a qual denomina o logos como o conteúdo que dá a razão de
alguma coisa. Cf. BRUGGER, W., Dicionário de filosofia, p. 255.
34
tentativas: a história, a economia, a religião26, e até o inconsciente são feitos
candidatos a dar a razão de sua existência27. Ao se considerar a vida apenas em seu
aspecto racional, extrínseco, aliado à queda dos valores integradores, e
principalmente, como se dá na pós-modernidade, que se constitui justamente nesta
mudança de época assim caracterizada, dá azo ao surgimento da experiência do
vazio. A razão discursiva não abarca a totalidade do ser. A instrumental, menos
ainda.
A complexidade da vida induz a falar de sua existência com reverência e
cuidado. Esta será a sentinela, e a via da negação será o caminho até aqui, porque
as ideias não abarcam seu conteúdo e as palavras não externam sua inteireza. A
preocupação será com o sentido da vida, sobre o qual pesquisar, vendo-a – a vida -
enquanto relações na esteira teológica de Leonardo Boff. O ser humano é um ser de
relações. Estes dois termos “ser” e “relações” exprimem dois polos cruciais de
preocupação. De um lado, chama a atenção para um pensamento metafísico
fechado, que fala do ser humano como algo pronto, do qual poderíamos, quando
muito, burilar algumas virtudes e cinzelar alguns defeitos. De outra parte, é
angustiante ver como pensadores, desejosos de captar o ser humano em sua
dinâmica de ser mais que si mesmo, de se superar, esvaziam-no de toda
substancialidade, para destacar seu construir-se histórico.
26 Em tempo de pós-modernidade os perigos ecológicos, catástrofes na natureza, epidemias, fome, morte, e outras ameaças à vida, que outrora tinha a religião como o depósito de suas explicações,
hoje o contraste é muito nítido. A cosmologia religiosa é substituída pela observação empírica e
conhecimento científico. Uma realidade estruturada sobre os perigos e explicações tem muito pouco
lugar para o Transcendente. Este desaparecimento da religião não parece resultar por completo numa
secularização. Em meio a muitas críticas, constata-se a dimensão religiosa voltar com muita força,
porém com acentos diferenciados. A volta ao sagrado é caracterizada pela construção autônoma de
um sistema de fé individual, personalista, livre de uma tradição religiosa herdada. Nesse contexto,
misturam-se elementos e aspectos velhos com os novos. Verifica-se entre a religião e pós-
modernidade um processo pelo qual uma modela a outra, e vice-versa. Danièle Hervieu-Léger,
socióloga francesa, estuda o fenômeno religioso na realidade atual. Em seu livro -
La religion en mouvement - chama a atenção para a busca frenética por experiências religiosas e a criação de um cosmo sagrado pelo ser humano; crer sem pertencer. Como ilustração, no Brasil,
podemos citar as multidões que se reúnem em torno de um padre para uma missa-show. HERVIEU-
LÉGER, D., La religion en mouvement. 27 O naturalismo científico crê que a ciência pode explicar tudo em última instância. HAUGHT, J.
F., Cristianismo e ciência. Nesta obra o autor analisa a relação entre teologia e naturalismo.
Contrabalança as relações entre a teologia e o meio acadêmico, e critica fortemente o materialismo
científico que, segundo ele, é de natureza tão dogmática quanto os mais fervorosos núcleos
religiosos. Convida a refletir sobre o reducionismo da natureza, que pela própria metodologia
científica, não fará o ser humano possuir uma compreensão mais adequada do meio natural e do
universo somente por si; e que a busca pelo conhecimento do universo não pode e nunca poderá
deixar de lado as questões de ordem metafísica, espiritual, teológica.
35
Deste modo, o ser humano é sem ser estático, é movimento, é ser de
relações, sem deixar de ser alguém. Deve-se procurar contemplar simultaneamente
seu ser e seu vir a ser, embora se saiba que as características do discurso racional
obriguem a distinções e enumerações. Mas são importantes os dois polos desta
concepção.
Para entender o que é a vida, especialmente vida humana, será útil reportar
primeiramente à perspectiva de Aristóteles. Este pensador parte de uma perspectiva
empírica e chega a um pensamento metafísico. Esta trajetória permite partir da
convivência concreta conosco mesmos, enquanto seres humanos, tendo, no entanto,
uma abertura para se ir além da simples experiência, à sistematização. Ou seja:
Aristóteles propõe-se a partir do concreto, o que é muito a gosto também da
modernidade. No entanto, uma progressiva interiorização, tende a levar da vida
biológica à vida propriamente humana e desta à vida espiritual (imortal) 28.
Na verdade, há uma dificuldade a ser enfrentada, e esta consiste em
elaborar-se um discurso de caráter científico, que apreenda o ser humano, na sua
realidade de ser que é, mas também se faz. Para indicar esta realidade, será
empregado o termo “existência”.
No que tange a existência, Aristóteles compreende como “a ciência dá a
razão de ser tanto de uma coisa quanto da sua privação, embora de modo diferente;
a razão de ser é de ambas as coisas, mas especialmente aquilo que existe”29, aquilo
que na realidade é de fato, a razão de ser de uma coisa. A antropologia aristotélica
é estritamente uma filosofia das coisas humanas. O que distingue o homem de todos
os outros seres é sua racionalidade, ele é um zôon logikón30. Enquanto ser dotado
28 O pensamento platônico compreende a vida num dualismo alma e corpo, mundo sensível e mundo
inteligível. Esta ideia tem ainda enorme influência no pensamento e na cultura ocidentais. No
entanto, fragmenta a vida e retoma as concepções de vida citadas anteriormente. Por outro lado, o
pensamento de Aristóteles permite uma discussão mais real para com a vida. Com Descartes abre-
se um novo prisma: o conhecimento constrói seu objeto, a inteligência humana torna-se criadora e
o espetáculo grandioso dos seres não passa de uma projeção da espontaneidade pura do seu espírito. No parecer de Kujawski, o racionalismo encontra um limite intransponível, pois desconsidera a
singularidade, criatividade, individualidade única e insubstituível na vida individual, a qual é
histórica e sempre em movimento no tempo. A radicalidade do racionalismo conduziu a uma
experiência irracionalista, caindo no niilismo. Cf. KUJAWSKI, G., M. A crise do século XX, pp.
118-121. Hoje, parece predominar mais uma visão dualista, seja no pensamento platônico ou no
pensamento cartesiano. 29 ABBAGNANO, N., Dicionário de Filosofia, p. 399. 30 Cf. LIMA VAZ, H. C., Antropologia Filosófica, pp. 44-51. A antropologia aristotélica tem bem
assinalado o seu lugar na estrutura hierárquica da physis, mas tem a capacidade de pensar além das
fronteiras de seu lugar no mundo e elevar-se pela teoria à contemplação das realidades
transcendentes e eternas.
36
do logos, ou seja, da fala e do discurso, ele é aquele que tem a possibilidade de
construir um sentido para a sua existência, que a torne razoável, justificada pela
razão. Em suma, a existência manifesta o que uma coisa é. Trata-se do existir de
uma coisa, independente de ser pensada ou imaginada. E ela é em si e por si, na
realidade, antes que se possa elaborar sobre ela um discurso filosófico, teológico ou
científico. Torna-se, então, uma violência gritante a atitude humana de anular outro
ser humano, pela discriminação seja física ou psicológica, que só pode ser
desintegradora da vida. As experiências de indignação ou de horror expressam sua
discordância para com tal processo de desintegração. Como profecia e exaltação da
vida, cada ser vivo grita diante do injusto e intolerável. A valoração da vida opõe-
se à violência em vista de fazer a pessoa crescer em humanidade e de criar relações
entre os seres humanos.
A existência é, então, o postulado básico e indispensável. Pode-se dizer que
há na vida um elemento dado, que está para além do apreço ou da hostilidade para
com ele. Entende-se que a abordagem da existência deve encontrar aberto um
discurso que nem mesmo está delimitado pela consciência de considerar, como
única realidade, só o espacialmente visível. Pois há que se considerar um existente,
que não se reduza ao espacial, visível, nem se prenda à experiência imanente da
história. Por exemplo, o Mistério Divino excede toda experiência. Ele existe na
imanência mais intensamente que qualquer outro ser, e existe também na supra
temporalidade, ou seja, ultrapassa o tempo histórico.
A existência é inerente à vida. É palavra feminina portadora da ternura, da
bondade, da sensibilidade, da esperança conectada com toda a criação e igualmente
da carência. Ela é possuída da perspectiva da positividade e da abertura. Ritmada
pela comunicação, pela criatividade, pela expressividade, pela atividade, ela se
caracteriza pela presença que prenuncia a sabedoria, a fidelidade, a interioridade, a
exterioridade, a leveza, a saúde. Configurada pela opção pela cruz e pela
experiência da Ressurreição, gestada para a vida eterna, a existência se mostra não
anti-história, mas trans-histórica, no sentido da possibilidade de se decidir contra as
evidências da força, quando se é levado pela força da evidência. A existência é
categoria integradora, que supõe a convergência do animus e da anima.
O ser humano é impregnado pela busca, almeja sempre superar o dado já
instituído, finito. Sua existência é marcada pela tensão desafiadora entre o finito e
o infinito, o horizontal e o vertical, a imanência e a transcendência. Confessa a
37
grandeza e beleza do finito ao experimentar o infinito. Lê os acontecimentos e
reconhece que tudo é Graça. É deste reconhecimento que brota o louvor ao Deus da
criação, a quem a vida humana, particulazinha da criação, deseja louvar. Como diz
Santo Agostinho extasiado pela sabedoria de Deus: “Vós o incitais a que se deleite
nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto,
enquanto não repousar em Vós”31.
Em suas buscas e realizações transparece o esforço pelo avanço técnico, que
igualmente será colorido com atitudes profundamente humanas. Por exemplo,
simultaneamente com os grandes avanços da ciência empírica e das tecnologias dela
derivadas, temos, num nível macro, a Declaração dos direitos humanos, a abolição
dos sistemas escravistas, a ascensão social da mulher, a valorização das crianças,
ou, de uma maneira geral, a luta pela defesa de toda vida combinada com atitudes
de ternura e cuidado. E no nível cotidiano podemos constatar a busca do saber aliada
à beleza e à arte, o zelo pelas relações fraternas.
No entanto, em outro patamar, a ânsia pelo sucesso, a lógica do capitalismo
consumista alimenta-se desta sede de busca. A voracidade consumista de nossas
sociedades é também um sinal da sede de infinito. Mas é também sinal de que esta
sede pode ser desatendida, e por isso nunca há descanso, não há saciedade. Na busca
de satisfação, os bens de consumo têm de ser sempre outros, outra versão, outro
modelo, outro etc. Isso alerta para a dimensão do fracasso, da carência, do vazio,
do não-sentido.
A existência humana aparece, pois, como vocação à busca e que as
respostas, na realidade, abrem novas questões. O encontro da resposta não esgota
sua criatividade. É necessário afirmar que o ser humano em todas as suas relações
está em processo de vir-a-ser. Não se trata de um vazio, de mera possibilidade: é
um ser, o ser humano. No entanto, também não se trata de algo como, que se possa
dizer, uma mônada, encerrada em si mesmo: é um vir-a-ser mais humano. Há um
ser em tensão para o futuro. E mais, o ser humano qualifica sua busca. Os mais
belos argumentos, as mais santas doutrinas ou as leis mais éticas não são senão
desencarnados preceitos moralizantes de comportamento, se não forem expressão
de uma busca pelo sentido da vida.
31 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro I, 1), p. 27.
38
Assim, homem e mulher ao procurarem um sentido para a vida nos
acontecimentos, quando não o encontram, experimentam uma perda da vitalidade
e da alegria. Toda ação carente de sentido torna-se aborrecedora. E isto se dá
também, quando o sujeito constata que todas as formas e fundamentos que ergueu
como base de sentido da vida revelam-se desprovidos de valor, por estarem
confiados em alcançar uma meta, que se encerrava em si mesma, sem futuro, sem
pretensão de ser além de si. Pode tratar-se de conseguir algo, num prazer de investir
sem ética, isto é, erigir em valor algo extrínseco a sua vida. Nestes casos, toda
hipótese de unidade, valor supremo e sentido é anulada, pois não há uma
interpretação de caráter global da existência; a multiplicidade dos acontecimentos
carece de unidade, pois carece de valor intrínseco.
Temos, pois na Modernidade, diversos sinais de busca de valor e sentido.
Em todo o período moderno há autores que negam a validade do discurso e da busca
sobre o sentido. De Thomas Hobbes a Hume, de Auguste Comte a Freud, muitos
são os autores, que trilham por esta via. No entanto, abordada de outra maneira,
podemos assinalar pelo menos três vias, pelas quais a modernidade busca sentido
para a vida e o ser humano. Dois já foram apontados. Fala-se da simultaneidade do
discurso filosófico que nega sensatez a esta busca, e atribui valor cognoscitivo tão
somente à ciência empírica com a busca de valores tais como a defesa de direitos,
a luta pela democracia, etc. Igualmente, assinalou-se que o consumismo, situando-
se no final da cadeia de produção de ciência, técnica, bens de consumo, pode ser
lido como sintoma e grave, de que o sentido é negado no discurso, mas continua
latente, no dia a dia32. O terceiro caminho apontado para localizar a questão do
sentido na modernidade é que, esta postura de sua negação, pura e simples, jamais
foi universal, mesmo no Ocidente. O Ocidente produziu e regou uma cultura
secularizada, que alegava ter superado as “pseudo-questões” metafísicas. No
entanto, não consegue simplesmente esquecê-las de um lado e de outro sempre
32 Há uma distinção necessária a ser feita entre consumo e consumismo. Em qualquer modo de
produção e organização social, o consumo é uma realidade presente no tecido de todas as formas de
vida, podendo expressar algo de positivo e até necessário. Diferente é o consumismo, o qual indica
algo negativo por ferir a condição humana. Governado por ‘vontades’, o consumismo se tornou o
propósito da existência quando a capacidade de querer, desejar, ansiar por alguém/algo, passou a
sustentar a economia (grego oikonomía, gestão da casa) mediando o convívio humano. Bauman
afirma ser um modo de arranjo social transformando e transmutando a principal força cultural
humana, e estabelece parâmetros específicos de convivências ao mesmo tempo manipula escolhas e
condutas individuais e coletivas. BAUMAN, Z., Vida para consumo, pp. 37-69.
39
existiram aqueles que nunca sequer admitiram pensar coerentemente com estas
propostas.
A experiência instrumentalizada, ou melhor, de destruição do valor e do
sentido da vida conduz ao sentido trágico da existência. Outrossim, a experiência
tem aberto caminhos que levam a viver a fundo a tensão conflitiva entre o real e o
ideal, o extrínseco e o intrínseco, o acaso e o sentido, a sensibilidade e o
racionalismo, o feminino e o masculino, simultaneamente. Entre a visão unilateral
e niilista da vida, o ser humano experimenta, no interior de si mesmo, que algo flui,
que a vida não se encerra na experiência empírica; a vida horizontaliza para um
mais, ser humano é ser para além.
É próprio da vida o automovimento em direção ao aperfeiçoamento de seu
próprio ser. Vista desde seu interior, em um primeiro momento, centra-se,
concentra-se, toma conhecimento de si. Em seguida, a vida transborda em
movimento exterior: cresce, multiplica, evolui continuamente, desdobra-se
inesgotavelmente de dentro para fora; em oposição aos corpos inanimados sempre
rígidos e uniformes, próprio dos artefatos. A vida humana comporta a ideia de uma
força, de um dinamismo que se manifestam ligados sua duração, a seu desdobrar-
se. Esta concepção carece de uma visão que não se restrinja e transponha o dado
empírico.
A fé cristã impulsiona homem e mulher, a lutar pela vida que tenha sentido
e valor, e a rejeitar toda definição fechada em si mesma e fatalista que busca apenas
identificar a vida pela categoria do logos científico ou a vida como propriedade dos
seres vivos. Postura ainda mais nociva seria o empenho em colocar meios,
empenhar recursos de natureza discursiva ou outras, para negar sua dimensão
existencial. A vida na pós-modernidade está sendo questionada em seus
fundamentos. Urge enfrentar esta situação e dar uma resposta, com linguagem
atualizada, condizente ao seu próprio fundamento. Frente a esta situação, a
antropologia teológica possibilita reconduzir a vida a seu profundo sentido.
40
2.2. A vida do ser humano em chave de compreensão pós-moderna
Para explicitarmos a categoria de existência, aplicada ao sentido da vida no
quadro geral do aparato conceitual filosófico, principalmente torna-se importante
agora, caracterizar a relação entre pós-modernidade – categoria bem trabalhada
pelos sociólogos, sobretudo, e as demais ciências humanas – com suas influências
na vida hoje.
A ‘pós-modernidade’ é tema de muitas discussões e preocupações de
autores em diversas áreas do conhecimento. Vislumbra-se, no presente ciclo
civilizatório, que doravante será denominado “pós-modernidade”, justamente uma
trajetória social que transmuta os parâmetros conceituais, estruturantes e
ideológicos da modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordenamento
histórico-cultural. Esta transição repercute muito na maneira de vivermos uma
época de nítida diferenciação com relação ao passado. Anthony Giddens argumenta
que a pós-modernidade,
Afora o sentido geral de se estar vivendo um período de nítida disparidade do passado, o termo com frequência tem um ou mais dos seguintes significados:
descobrimos que nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os
“fundamentos” preexistentes da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a “história” é destituída de teleologia e consequentemente nenhuma versão de
“progresso” pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e
política surgiu com a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral33.
No bojo deste fenômeno erige-se nova maneira de ler a vida. Há que se
perguntar pelo peso desta mudança na compreensão do sentido da vida e em que
medida ela marca a construção da experiência humana. É notório que não se trata
tão somente de uma época de mudanças, mas de mudança de época. No primeiro
caso, manter-se-iam as estruturas fundamentais de organização, por exemplo, na
economia, na política e na cultura em geral. A atenção focalizaria mudanças
conjunturais. Seu estudo seria mais simples, pois seria suficiente listá-las e mostrar
sua relação com a estrutura básica subjacente.
33 GIDDENS, A., As consequências da modernidade, p. 52.
41
Já mudança de época é algo mais complexo. Mais que mera sucessão dos
períodos históricos, trata-se de profunda transformação do caráter central e
determinante de um período histórico. A mudança de época, aqui, está na linha do
deslocamento de processos centrais da civilização planetária e do abalo dos quadros
de referência que, na modernidade, forneciam ao homem e à mulher uma
ancoragem estável e tranquila.
As mudanças na pós-modernidade de um lado manifestam otimismo ao
considerar o potencial exponencial de inovação em relação ao futuro. O amplo
acesso à tecnologia, por exemplo, permite que todas as pessoas realizem tarefas
antes só eram possíveis a governos ou grandes corporações. É um processo que
possibilita resolver muitos dos desafios da humanidade. Trocas de saberes
compartilhados em redes sociais resultam em realizações concretas. Estima-se que
dados genéticos estarão disponíveis para pessoas em todo mundo. Uma catástrofe
acontecida a muitos quilômetros de distância movimenta recursos humanos e
financeiros em todo planeta em poucos minutos.
O lado perverso desta época é sua concentração de capital e de saber.
Quando se colocam a tecnologia e a ciência a serviço do lucro, e da concentração
de poder agrava-se o dinamismo da dominação em todas as dimensões da vida. A
promoção do crescimento econômico que visa objetivos estratégicos, ilimitados
ignora as necessidades humanas reais e os limites dos recursos da Terra.
A vida pós-moderna é caracterizada pela crescente interligação entre
extensividade e intensividade. Isso quer dizer que, ao lado de tendências
globalizadoras temos relações sociais desenraizadas da situação concreta das
pessoas, bem como uma intensa reorganização do tempo e do espaço. A pós-
modernidade atinge a vida de maneira notável. Pode-se falar de uma crise que,
muitas das vezes, implica mesmo perda de sentido, crise fragmentadora e
desperdício de recursos humanos e materiais. Destas três características duas
revelam e agravam aquela que tem trazido sérios desafios e questionamentos no
âmbito da terceira, que se tornou tema desta pesquisa, a saber, a questão do sentido
da vida.
Uma nova concepção de vida transforma, e com velocidade nunca antes
experimentada, a civilização neste Século XXI. As transformações mudam
reorientam o sentido da vida e abalando a ideia e certezas do ser humano moderno.
Poderão também resgatá-lo? Em todos os casos, e cada vez menos, os velhos
42
padrões modernos já não satisfazem, por não fornecerem ao ser humano aquilo que
prometiam. Como observa o sociólogo Zygmunt Bauman
A ausência de felicidade, ou uma felicidade insuficiente, ou menos intensa que o
tipo proclamado como alcançável por todos que tentaram o bastante e usaram os meios e habilidades adequados, é todo o motivo de que se precisa para recusar o
“eu” que se tem e embarcar e prosseguir numa viagem de autodescoberta (ou auto-
invenção)34.
A descrição da civilização pós-moderna já indica que o ser humano é
também ‘pós’ frente ao arcabouço conceitual, que desde o Iluminismo ambiciona
definir racionalmente o ser. A explicitação do conceito de pós-modernidade é feita
por comparação em relação com a modernidade. Como ensina o pensamento
contemporâneo, “pós-modernidade deve ser considerado termo simplesmente
heurístico. Ser obrigado a recorrer a ele implica numa grande humilhação, porque
o prefixo pós revela que, por enquanto, hoje, é a modernidade a autêntica
substantividade”35.
Mas de fato a ideia de pós-modernidade não significa simplesmente este
tempo que vem depois da modernidade. Não se trata de um aspecto meramente
cronológico. Na verdade, a pós-modernidade quer ressaltar o fracasso do projeto da
modernidade. Longe de romper com os parâmetros da modernidade propriamente
dita, há, na pós-modernidade, uma radicalização de suas características
fundamentais.
A modernidade surge basicamente da solução do conflito, havido a partir do
século XIV, quando, de maneira generalizada, nas universidades da Europa, uma
rejeição das explicações racionais a partir da ordem do ser, por uma busca de outras
teorias a serem construídas a partir do acontecer, do fazer, de tudo que tivesse
caráter de concretude. Esta nova maneira de dar explicação racional para tudo, de
não admitir contradição, alimentava uma confiança inabalável no progresso
ilimitado da humanidade. Não debalde fala-se de cultura moderna, expressão que
marca fortemente o aspecto de ruptura com o período antigo-medieval. No plano
do conhecimento, o método empírico formal possibilita a ciência físico-matemática,
cujo elogio julga-se dispensável. Também no campo da ética, o utilitarismo e
34 BAUMAN, Z., A arte da vida, p. 24. 35 MORENO VILLA, M., Dicionário de pensamento contemporâneo, p. 608.
43
assemelhados prometem resultados mais rápidos e eficazes que a antiga moral
cristã.
No entanto, o mesmo padrão científico e tecnológico que gerou bem-estar e
produção em níveis nunca antes imaginados, gerou também violência nos mesmos
níveis. Aqui poderíamos colocar como exemplos as duas grandes guerras do século
XX. Mas infelizmente já cabe perguntar se seu pavor não começa pelo menos a ser
igualado por aquele das novas formas de guerra, a saber, o terrorismo, o
contraterrorismo, o tráfico, etc. Assim o descumprimento das promessas da
Modernidade, a descrença em suas possibilidades, as falhas em suas previsões, o
enfraquecimento da ética, dos costumes e do ser humano, da era do consumo de
massa, a emergência deste modo de socialização e de individualização, tudo isso
fomentou nova ruptura com o que foi instituído nos séculos precedentes. Temos
assim, em linhas bem gerais, a caracterização daquilo que dá azo ao surgimento da
pós-modernidade.
Lipovetsky acentua esta transformação histórica
A sociedade pós-moderna é a sociedade em que reina a indiferença de massa, em
que domina o sentimento de saciedade e de estagnação, em que a autonomia privada é óbvia, em que o novo é acolhido do mesmo modo que o antigo, em que
a inovação se banalizou, em que o futuro deixou de ser assimilado a um progresso
inelutável. A sociedade moderna era conquistadora, crente no futuro, na ciência e
na técnica; instituiu-se em ruptura com as hierarquias de sangue e a soberania sacralizada, com as tradições e os particularismos, em nome do universal, da razão,
da revolução36.
Enquanto este autor afirma uma sociedade moderna fundada numa obsessão
pela produção e pela revolução, a época pós-moderna está obcecada pelo consumo,
pela informação e pela expressão. Neste panorama, a existência, a identidade do ser
humano até então descrita como unificada e estável agora é deslocada. Com
frequência, sua descrição é adjetivada como fragmentada, composta de várias
identidades, contraditória37.
As relações são caracterizadas por mudanças abrangentes e contínuas. Mas
também o são formas de reflexão sobre a vida. As práticas sociais são
constantemente examinadas e reformadas radicalmente à luz de novas informações,
alterando constitutivamente seu caráter. Não há compromisso ou promessa de
36 LIPOVETSKY, G., A era do vazio, pp. 10-11. 37 Cf. HALL, S., A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 10-13.
44
fidelidade. Não há certezas absolutas. Nada surpreende, pois, as opções e as
opiniões, marcadas pela provisoriedade são suscetíveis de rápidas modificações.
Em todas as esferas da vida presencia-se uma mudança do maiúsculo para o
minúsculo. E não é só questão de mudança da linguística ou vocábulo. Trata-se
antes do reconhecimento de valores e, consequentemente, do aporte do sentido real
no pensamento que se pretenda categorial38. As maiúsculas que permanecem,
permanecem para cada pessoa. Por exemplo, as categorias religião, história, deus,
vida, que outrora eram escritas em maiúsculas, não mais o são. Do ponto de vista
teológico, poderíamos dizer que se trata do exercício da liberdade recebida desde o
ato criador, mas teria de completar dizendo que, pelo destronamento da razão, o ser
humano pós-moderno atribui-se o poder de delimitar o que seja valor e, mais ainda,
eliminar sua existência.
Na Religião, por exemplo, especialmente, vem à luz o aspecto da
Transcendência. O encontro com o Sagrado é o ato de transcendência por
excelência. Ocorre que o ser humano atribui-se o poder de conceber uma religião
sem o sagrado e sem uma experiência pessoal. Para a socióloga, Hervieu-Léger,
“analisar a religião na modernidade conduz ao mesmo tempo ao processo pelo qual
a religião modela a modernidade e a modernidade produz, ela mesma, a religião”39.
Há, é claro, o fenômeno de uma proliferação do religioso. No entanto, o que
se vê é uma religiosidade em dimensão individual, que, ao mesmo tempo acarreta
a extinção da religião no plano da inserção social. Como definir este elemento
religioso fora da religião? A religião é apenas um ‘lugar de trânsito’. Para o teólogo,
J. Moingt em nenhum outro tempo a humanidade viveu sem religião ou ao menos
sem sinais religiosos, como agora. Para ele, o papel da religião, quando bem
entendido, consiste em dar a Deus visibilidade mediante a adoração, e dar
testemunho de sua existência e de ter existido em nosso mundo, no caso do
38 Aqui se trata da mesma palavra ter variados, e às vezes, sentidos contraditórios em diferentes
situações. Ou seja, diante da mesma palavra, uns a consideram fundamental, outros irrelevante. Por
exemplo, há uma grande diversidade de compreensões à palavra ‘sentido’, muitas até contraditórias
entre si. No entanto, aqui não se aplica a uma palavra que tem um significado e posteriormente há
mudança para melhor ser compreendida. Um exemplo clássico, na teologia do século III, os Santos
Padres, até o contato com os Modalistas utilizavam da palavra ‘prósopon’ para traduzir a experiência
do Mistério Trino, posteriormente, mudaram para ‘Hypóstasis’. A circunstância histórica obrigou a
mudança de palavra, com o intuito de não deturpar a linguagem para compreensão da Trindade. Ver
também: VORGRIMLER, H., Karl Rahner, p. 282. 39 HERVIEU-LÉGER, D., "Les manifestations contemporaines du christianisme et la modernité",
p. 302. Tradução minha.
45
cristianismo. Logo, religião, sem visibilidade, é como se Deus não existisse40. Em
outras palavras, o ser humano (aparentemente) retira Deus da sua existência.
Outra categoria colocada em minúsculo é a vida. Manifestar seu sentido é
objetivo em toda esta pesquisa. A categoria existência, conforme explicitado,
compreende aquilo que existe de fato. A teologia cristã bíblica afirma que a vida é
dom gratuito e amoroso de Deus que dá a vida (cf. Jo 10,10), e vida eterna (cf. Mt
19,29), pois é Ele, o amigo da vida (cf. Sb 11,26).
Seria por demais extenso falar dos benefícios que o avanço técnico e
científico trouxe à humanidade. Começando pela acessibilidade e rapidez
tecnológica, produção de alimentos em larguíssima escala, passando pelas viagens
e contatos facilitados, até a leveza e a graça dos novos meios de produção e difusão
de informações, que são a menina de nossos olhos, são estas conquistas encomiadas
por todos os lados e por todos os modos. No entanto, a abordagem proposta quer
ser crítica. Por quê?
Na verdade, as fragilidades e feridas físicas e psíquicas têm gerado
violências, ceifado vidas. Esta nova civilização apodera-se do direito de determinar
quem deve viver. Os meios de comunicação social explicam os motivos que
ocasionaram o linchamento de uma pessoa, por exemplo, mas pouco falam que esse
ato gerou novas violências e mais sofrimentos. Não se discorre sobre o valor da
vida, não se considera a dor dos amigos. Em breve palavras, o ser humano coloca-
se como senhor da vida, portanto alienado dela.
A religião e a vida, assim como a história deixam transparecer que não são
ocorrências meramente naturais, que pudessem ser isoladas. O ser humano ‘não é
uma ilha’, não tem em si o fundamento da própria totalidade. Relação e relacionar
são duas palavras aplicadas ao ser humano, para dizer que cada pessoa fala a partir
de alguém ou de algo. Consequentemente, o ‘eu’ não é ponto final, nem uma ilha.
O ser humano é um ser de relação interior e exterior.
Pela relação, a pessoa se dá a conhecer e conhece o mundo, num processo a
partir de dentro que irrompe para relações de fora. Trata-se de um movimento
contínuo, progressivo ou regressivo. Relação é processo, e não mero conceito. É
chamado permanente: para o melhor, a abertura, o diferente, o mais, o eterno,
marcado pela esperança e perseverança, por que habitado por uma Presença: o
40 Cf. MOINGT, J., Dios que viene al hombre, pp. 75-118. Tradução minha.
46
mistério trino de Deus. Esta ótica é um modo de compreender e direcionar a história
de vida e, sobretudo, uma forma de se posicionar frente a ela. Situação histórica
ordinária que faz emergir a concepção de vida como relação, não só teórica, mas
particularmente, uma concepção que parte da busca do sentido da própria vida.
Vale destacar, entre outros, três aspectos da época pós-moderna, que
sobressaem pela constância com que os cientistas da teoria social os realçam e,
parecem estar relacionados com a busca do ser humano pelo sentido da vida, e a
leitura feita pela antropologia teológica41.
O primeiro é uma característica da sociedade moderna, que pode ser
chamado de ausência de um centro articulador ou organizador. Por esta ausência,
falta também o desenvolvimento de uma lei única. Com frequência, a pessoa é
descentrada por forças que lhe são exteriores. Configura-se um movimento
cambaleante e inseguro. Um processo inerentemente contraditório. De um lado, há
o rompimento, ainda que parcial, com a ordem tradicional. Ao mesmo tempo há
uma promoção da autonomia pessoal, de modo a se perder a sensação de firmeza
das coisas. Na ausência de uma autoridade definitiva, ao indivíduo é que cabe
escolher e decidir em que acreditar. A identidade é múltipla, dispersa42. O ser
humano deve empregar suas forças e recursos em consumir. A ideologia lhe diz que
assim irá realizar-se. E se ainda não se sentiu realizado é lhe atribuída à culpa por
ter tido cautelas em suas escolhas. Nesta lógica, sua atenção deve estar sempre
voltada para a última novidade, que na verdade nunca será a última, mas sempre a
mais recente, e é imprevisível e transitória.
Um segundo aspecto sublinhado nesta época pós-moderna está relacionado
à concepção de espaço e tempo. A civilização pós-moderna prima por mudanças
constantes, rápidas e permanentes, caracterizadas pela profundidade com que
afetam as práticas sociais e os modos de comportamento preexistentes. Giddens
descreve que
Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados
porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência
41 Poderiam ser citados outros aspectos também importantes, mas não se dispõem de tempo aqui,
como: o progresso, a história, confiança nos mecanismos de descontextualização, risco e perigos,
identidade cultural, etc. 42 Aqui não se trata do processo mental complexo trabalhado pela psiquiatria denominado
“Transtorno dissociativo e de identidade” ou denominado “Transtorno de Personalidade Múltipla”.
47
particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são
estruturados por práticas sociais recorrentes43.
Presencia-se uma “compressão espaço-tempo e identidade” nas palavras de
Stuart Hall. Assiste-se a uma aceleração dos processos globais, donde surge o
sentimento de que o micro anula o macro. O mundo parece menor e as distâncias
mais curtas. Os acontecimentos em um determinado lugar têm ressonâncias
imediatas para a vida e os lugares, independente da distância em que se
encontram44. A relação espaço e tempo reconfigura a imagem do ser humano em
suas relações, e tem efeitos profundos sobre a forma como sua existência é
localizada e representada. Uma boa ilustração são as pinturas cubistas de Pablo
Picasso45. Nelas a pessoa se vê a si própria espelhada nos rostos fragmentados.
A dicotomia do tempo e do espaço, que se associa à descontextualização das
relações sociais, contribui para explicar o fato de que, na civilização pós-moderna,
tais relações deixam de ser pautadas por códigos normativos rígidos e localizadas.
Incentivado pelos Meios de Comunicação Social, particularmente a Internet, os
indivíduos constroem modos de agir no plano social e no íntimo, passando a
constituir um elemento da construção da realidade social e individual. A tecnologia
com seu excedente de informações socializa dessocializando e submete o ser
humano ao enquadramento de um ser social pulverizado e glorificando o reino da
dispersão46.
Devido ao excesso de apelos e de estímulos, o espaço e o tempo esvaziam-
se de durabilidade e profundidade. O ser humano perde suas referências e sua
unidade. As relações pessoais deixam de ser pautadas por critérios de valores que
se querem universais ou pelo menos gerais. Tais critérios, conquanto possam ser
externos à pessoa, em seu nascedouro, tais como – tradição, lei, obrigação, ética,
princípios – podem, no entanto, ser interiorizados e assumidos pela pessoa.
43 GIDDENS, A., As consequências da modernidade, p. 18. Ideia que o autor retorna na página 58. 44 Cf. HALL, S., A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 69-73. 45 O Cubismo é um estilo artístico e movimento iniciado na primeira década do século XX, em Paris,
com base em obras de Georges Braque e Pablo Picasso. Tratava as formas da natureza por meio de
figuras geométricas, representando as partes de um objeto no mesmo plano. A representação do
mundo passava a não ter nenhum compromisso com a aparência real das coisas, é menos
representação do que sugestão da estrutura dos corpos ou objetos. Sob este pensamento, parece que
o ser humano não só não tem uma existência, uma concretude, ou uma representação, mas é visto
como algo que sugere, sem definição e identidade, sem ter um ser. Fica restrito à sugestão num
eterno vir a ser, sem futuro e sem destino algum. 46 Cf. LIPOVETSKY, G., A era do vazio, pp. 51-57.
48
Diferentes dessas são as relações que tendem a ser baseadas em critérios
exclusivamente internos, isto é, ancorados exclusivamente na subjetividade e no
sentimento de confiança, o que as torna bem vulneráveis, por negarem justamente
no estabelecer relações sua natureza relacional. Em ambas as situações, constata-se
uma busca desenfreada e interminável de si mesmo, que é uma espécie de busca
pelo sentido da vida, mas com sinal invertido.
A diluição do espaço e do tempo proporciona, no dizer de Gilberto de Mello
Kujawski, a deterioração do cotidiano. A experiência de que a razão não explica
toda a existência pode ser associada ao sentimento cósmico do ser humano pós-
moderno “aturdido e niilista, pisando num mundo que corcoveia a seus passos,
posto aí como autêntica excrescência, sem quê nem para quê, cada vez mais absurdo
e contingente”47.
Nesta esteira, o cotidiano com sua rotina é altamente benéfico. O espaço e
tempo estão implicados diretamente nas atividades vividas. Das atividades
rotineiras que residem no respeito e na reverência faz surgir o ritual. Ele impregna
um conjunto de práticas que as confere uma qualidade sacramental. Assim, a
valorização do cotidiano em sua rotina contribui para a segurança ontológica na
medida em que mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro.
O renomado sociólogo Zygmunt Bauman, recentemente deu a conhecer sua
tese central sobre a dialética dos relacionamentos humanos na pós-modernidade.
Ele chama a atenção para a substituição da palavra ‘relacionar-se’ por ‘conectar-
se’. Na mesma linha e em vez de ‘amigos’ prefere-se falar em ‘redes’, como uma
das linguagens da geração do século XXI. O espaço e o tempo são criados e
controlados pela própria pessoa, intercalados por períodos de movimentação
aleatórias e esporádicas, diferentemente dos relacionamentos vividos em
comunidade, com seus costumes, crenças e contextos. Hoje, as relações se dão em
rede, movidas por duas possibilidades: conectar e desconectar. O atrativo é conectar
com novas amizades. Mas paralela está a grande atração: a facilidade de
desconectar, excluir aqueles que eram tidos por amigos48. Na relação frente a frente
47 KUJAWSKI, G., M. A crise do século XX, pp. 60-61. O autor explana mais detalhadamente o que
ele denomina de deterioração do cotidiano como desdobrando-se numa tríplice crise, crise de
identidade, de familiaridade e de segurança, nesta mesma obra nas páginas 54-61. 48 Cf. BAUMAN, Z., Amor líquido, pp. 9-13.
49
e olho no olho, quebrar as relações é traumático, porque é preciso dar razões. Na
internet sempre se pode, com um único toque, apertar a tecla ‘DEL’.
Enquanto na civilização pré-moderna, espaço e tempo eram coincidentes e
dominados pela presença, na pós-moderna predomina a separação, as relações à
distância, sem o face a face. O novo espaço, agora regido pelo virtual, oblitera as
relações verdadeiras e profundas. Espaço e tempo podem ser eliminados num piscar
de olhos – uma viagem de avião, satélite ou pelo Instagram, Facebook, WhatsApp.
Espaço e tempo tornaram-se entrelaçados. As pessoas continuam com seus
sentimentos de identificação que, no entanto, estão desencaixados. Com isso quer-
se dizer que eles já não expressam apenas práticas e envolvimentos locais, pessoais,
mas que sem a dimensão espacial, isto é, corpórea, e sem sequência no tempo,
encontram-se salpicados de influências dos quatro cantos do mundo e que retomam
questões já passadas, configurando um questionamento intemporal e não
propriamente atemporal, ou seja, com a vista na eternidade.
Por falar em eternidade, visto ser uma pesquisa teológica, há que examinar,
nesta mesma perspectiva de espaço e tempo, a relação de Jesus com os
acontecimentos, com as pessoas e com o Pai. À primeira vista Jesus parece dar
pouca importância a estas duas categorias. Contudo seu diferencial está na
centralidade que ele dá a vida. Exemplar é sua relação com o Templo. Para Jesus,
o Templo não tem valor absoluto e não constitui uma garantia de salvação. Ele
supera a distinção clássica entre sagrado e profano. Sagrado, sobretudo, é o espaço
humano. A vida é sacralizada: não as ideias ou categorias. Sua denúncia não é
contra o lugar do culto, mas a absolutização do relativo. Deus é o sentido absoluto
que tudo abarca, tudo origina, tudo supera e aponta para a vida plena.
O terceiro aspecto a destacar na pós-modernidade é a globalização, de
alguma forma já presente na relação entre espaço e tempo. A globalização conecta
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o
mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado49. Envolve o domínio
econômico, mas também o da mobilidade da população e da informação, sobretudo
49 Globalização é um termo polissêmico. Há autores que diferenciam globalização de mundialização.
Esta retorna a ideia de uma unificação do tempo e do espaço, enquanto aquela sugere universalização
dos desafios, trata-se dos efeitos transformadores sobre as vidas das pessoas e suas relações sociais.
Globalização refere-se ao processo pelo qual a vida social e cultural nos diversos países do mundo
é cada vez mais afetada por influências internacionais, devido à informatização, ao fácil acesso dos
meios de comunicação social. Aplicado também ao mercado financeiro mundial a partir da união de
diferentes países e da quebra de fronteiras.
50
pela Internet. Influencia o acesso de cada um na busca de si mesmo. Altera a
compreensão de sua relação com o mundo, interfere nas mentalidades, nas culturas.
Fala-se em mundo virtual, mundo da Internet, devido a sua forte influência nas
mentalidades e nas culturas.
Favorecido pela globalização, o mundo da comunicação social exerce
grande poder no conhecimento e nos relacionamentos, por vezes, enterrando vidas.
Uma notícia se torna boato que se converte em informação, e resulta em movimento
para curtir, saber dos últimos eventos, e das novidades que deve seguir, com um
perfil bem construído50. Realidade que se converte em todos os lugares,
independente de cultura, classe social, sexo, idade, profissão. Um fato pode
possibilitar retratar o mecanismo vigente através dos meios de comunicação social.
Entre outros, pode-se exemplificar com um caso de maio de 2014. Um boato
rapidamente espalhado nas redes sociais resultou em tragédia no Estado de São
Paulo51. Fabiane, dona de casa, 33 anos, mãe de dois filhos, foi ferida até a morte,
após ser acusada de praticar rituais demoníacos com crianças. A agressão aconteceu
a partir de uma postagem no perfil “Guarujá alerta” que provocou alvoroço em
questão de segundos. Segundo o marido de Fabiane, tudo começou a partir de um
boato gerado por uma página em uma rede social. Ao saber dos últimos eventos,
vários faceiros (internautas) curtiram a mensagem e se puseram a seguir esta
postagem, com revolta.
O processo de globalização vê-se hoje profundamente afetado pela dinâmica
do domínio. A questão para o âmbito em estudo é a ocorrência de um engate com a
tecnociência que, ao ganhar vida própria, passa a concorrer com as buscas e
aspirações mais profundas no ser humano, sobretudo através dos fenômenos
econômicos que a acompanham. O mundo humano se vê cada vez mais
racionalizado, fechado e planificado. A tecnociência invade todos os âmbitos da
vida. Prevalece o tempo do projeto e o polo do futuro, com a desvalorização de
relações fraternas, de atos gratuitos, do encontro para celebrar a alegria ou o luto,
50 Glossário de termos no Facebook. Curtir “é uma forma de expressar uma opinião positiva e se
conectar com o que é importante para você”. Eventos “é um recurso que permite organizar reuniões,
responder a convites e manter-se a par do que os seus amigos estão fazendo”. Seguir “é uma maneira
de obter novidades das pessoas pelas quais você se interessa, mesmo que não sejam suas amigas. O
botão Seguir também é uma maneira de refinar seu Feed de notícias para obter os tipos de
atualizações que você deseja ver”. Perfil “é um conjunto de fotos, histórias e experiências que
contam a sua história”. FACEBOOK. “Glossário de termos”. 51 Cf. ROSSI, M., Mulher espancada após boatos em rede social morre em Guarujá, SP.
51
da escuta ao outro, do respeito e da sensibilidade à vida. A ideia de interconexão
entre sistemas operacionais especializados, para formar sistemas interconectados
cada vez mais abrangentes, delineia, enfim, o processo da globalização pela
tecnologia, como nova instituição autônoma do mundo moderno.
Conforme Giddens, a globalização pode ser definida como a intensificação
das relações sociais em escala mundial, que modela os acontecimentos locais, num
processo que fragmenta o ser humano, ao tornar móvel sua identidade e introduzir
novas formas de interdependência mundial52. Um pouco por toda parte, as fronteiras
são dissolvidas, e as identidades deslocadas. A globalização, afirma Stuart Hall,
“tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de
possibilidades e novas posições de identificação”53.
A busca do ser humano no sentido de recuperar sua unidade, escopo desta
pesquisa, demonstra que um elo foi perdido e desencadeado um movimento externo
à própria vida. Ora, o sentido, mais pleno, não encontra seu fundamento em algo
externo à própria vida. Trata-se antes de processo que parte de dentro e irrompe
para relações de fora. Ser pessoa é buscar sempre estar integrada em si mesma e,
para fora, autocomunicar-se e voltar a si mesma, à semelhança do Deus-Trino.
Esta sociedade configura-se também a partir da dilatação do consumo,
fazendo dele seu momento apoteótico. Nela, garante García Rubio, há uma
acentuada valorização da experiência religiosa. Nela está a possibilidade ilimitada
de procura do divino. Cada um é agente vital, não receptor passivo de uma doutrina,
na qual o ser humano é divino. Deus é pensado de maneira impessoal, sendo
descrito por termos como: energia, vibração, etc. A experiência religiosa consiste
de exercícios de meditação e de interiorização, mas não propriamente oração. Neste
registro, tem muita importância o transe, o êxtase religioso, da ampliação da
consciência54, mas não o diálogo, a escuta, a conversão. J. Moingt distingue
experiência religiosa da fé cristã. Enquanto a experiência religiosa nasce numa
cultura onde já existem crenças e por ela é influenciada, a fé cristã não se identifica
52 Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, pp. 69-70. 53 HALL, S., A identidade cultural na pós-modernidade, p. 87. França Miranda acena que a
sociedade moderna e pós-moderna caracterizam-se também como pluralistas. Em sua exigência em
respeitar a liberdade de cada um, configura-se, por isso mesmo, como pluralista. Daí o enfrentar
hoje o problema de alcançar uma homogeneidade e regulamentação entre as liberdades plurais
tornando possível a convivência de seus membros. Cf. FRANÇA MIRANDA, M., A Igreja numa
sociedade fragmentada, p. 51. 54 Cf. GARCIA RUBIO, A., Elementos de antropologia teológica, pp. 138-141.
52
de uma maneira absoluta com a religião que a transmite, sua origem não constitui
um fato religioso propriamente dito. “A razão teológica disto é que, o cristianismo
não é só religião, mas também e, sobretudo Evangelho”55. Com isto quer chamar
atenção para o fator fundante que é a Boa Nova de Jesus Cristo.
A globalização possibilita uma pluralidade de opções e de estilos de vida,
mas, também acrescenta incertezas e ansiedade. A globalização tornou-se
extremamente agressiva com respeito à natureza. Além disso, revelou forte caráter
de contradição ao incluir uns poucos em detrimento de muitos, no universo do
consumo, em delimitar a abundância de saberes para alguns privilegiados, em
descartar a sensibilidade e a criatividade que pertencem a própria vida.
Uma constatação parcial referente aos três aspectos citados, ausência de um
centro articulador, processos de mudanças na concepção de espaço de tempo e na
globalização, podem ser descritos como ambiguidade e ambivalência. A pós-
modernidade é ambígua, contraditória, em seu discurso de promoção de um ser
humano livre, por ser o centro de si mesmo. Ela simula que espaço e tempo podem
ser destituídos de significado através de uma tecla do computador, e anuncia a boa
nova da globalização como “a prima rica” que se deve imitar para existir. Em
termos mais concretos, as ações e atitudes serão consideradas válidas, se servirem
ao projeto global de construção e manutenção do poder econômico.
A busca por um centro único depara com propostas falseadas de inovadoras
centralidades para o ser humano, que na verdade, promovem verdadeira
descentração da vida. Entretanto, a permanência de Deus, como centro organizador,
consistente e vital, confere emergente importância para a experiência do sentido da
vida.
A cultura moderna fala de uma tríplice descentração do ser humano. A
primeira deu-se com Copérnico, que o remove do centro do universo. A segunda,
com Darwin, que o remove do centro da biosfera. Finalmente, Freud elimina de vez
a noção de centro, ao mostrar que a consciência governa o ser humano muito menos
do que se acreditava, por causa das pulsões inconscientes. Estas postulações sempre
foram apresentadas como críticas ao cristianismo, por causa de antigas percepções
antropológicas. Mas se se mantiver a ideia de Deus como centro, ver-se-á que os
55 MOINGT, J.. Dios que viene al hombre, p. 112.
53
‘centros’ perdidos são secundários, a incluir, neste aspecto, a própria consciência
individual.
Agostinho dá uma chave de leitura para se perceber que a vida, em todas as
suas relações, dimensões e sentido, convergindo seu centro em Deus, não estará
fora do ser humano, já que Deus é intimeor intimo meo. Por esta via mística, de
nada vale um falar distante da compreensão do outro, a palavra é exterior, a
compreensão é interior. É experiência sensível envolvendo o exterior e o interior,
para chegar-se à Verdade.
É no interior de si mesmo que o ser humano tem a possibilidade de descobrir
Deus, ao mesmo tempo, em que descobre a relatividade de seu ser e de todas as
coisas criadas. Neste ato de interioridade, interroga todas as coisas, a terra, o mar,
os abismos, os répteis viventes, o céu, se elas são Deus, o centro vital donde tudo
irradia. E ouve a mesma resposta uníssona, “Foi Ele quem nos fez”. A partir deste
momento, constata que a beleza das coisas está patente para todos, mas só a verdade
interior revela sua expressão exterior. E a Verdade diz a pessoa: “digo-te que és
superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo
pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida”56.
De seu lado, a antropologia teológica, como toda a teologia cristã, assume
estes aspectos pós-modernos buscando resgatar neles o sentido maior presente nos
acontecimentos e nas criaturas. Buscar encontrar Deus em todas as coisas supõe
encontrar Deus em todas as coisas. Encontrar Deus supõe experimentar o cuidado
e a ternura que Ele coloca ao criar a vida. Isto reconduz todas as coisas, seja aquilo
que parece o bem, seja o que parece o mal, para a sua unidade em Deus.
No afã de cumprir uma agenda da qual a modernidade não deu conta e que
preconiza a razão como fundamento da certeza e substitutiva da tradição da
sabedoria humanizada, a pós-modernidade, deixou de lado a preocupação
ecológica. Este esquecimento pode ter uma de suas razões no cientificismo. Em
épocas pré-modernas havia uma leitura do mundo, bem como de seus elementos,
numa perspectiva de mistério. Hoje o mistério foi retirado e deu lugar a uma
explicação empírico-matemática e funcional das coisas. Num primeiro momento,
isso dá uma impressão de segurança. Imagina-se que, conhecendo a natureza das
coisas e como operam pode-se intervir e controlar tal operação em proveito próprio.
56 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro X, 6) p. 244.
54
No entanto, ainda que relativamente mais protegida da atuação das forças naturais
do que em tempos pré-modernos, a vida está submetida a outros riscos. Temos, por
exemplo, a pluralidade de interpretação e muitos desacordos ao se falar de um
mesmo produto mesmo entre especialistas. Temos também a impotência do
especialista diante das decisões políticas Pode-se citar, à guisa de exemplo, a
situação de um perito em logística de armas a quem resta apenas a possibilidade de
“torcer” para que não haja guerra conforme um esquema que ele estabeleceu, mas
sem certeza que não acontecerá. É incerto que mais conhecimento seja
automaticamente proporcional ao controle do destino 57.
A pós-modernidade interfere na compreensão do sentido da vida. Ela
estabelece como centro de significação uma realidade objetiva, externa, exógena.
O próprio ser humano é visto como um elemento, melhor, um produto do universo,
dele totalmente dependente, para existir e para deixar de existir. Nesta perspectiva,
surge a constante necessidade de novas experimentações frente à frustração pelo
objetivo não alcançado. Há sempre a carência de outro carro, outro celular, outro
amigo, pois a insatisfação continua. É neste momento que se verifica a busca
contínua do ser humano pelo sentido da vida, que emerge de dentro de sua realidade
histórica concreta, em processo a partir de dentro que irrompe para relações de fora,
num movimento endógeno, a que a pós-modernidade não responde. Ela suscita a
consciência das pseudo-compreensões que ela mesma apresenta.
A vida do ser humano na compreensão desta pós-modernidade eleva o risco
de a existência ser transformada em mero vocábulo ou realidade para uns poucos.
Por outro lado, o ser humano que exclui o outro exclui a si mesmo da possibilidade
de diálogo com este outro. Neste ínterim o sentido que plenifica toda a vida em
Deus, a integração da vida a qual o ser humano é chamado, a vida em abundância
conferida no ato criador, pode estar volatizada pela dispersão do sentido, pela
geração de crises e que tornam escassa a vida.
57 Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, pp. 144-149. Sobre ecologia, o autor
apenas sinaliza que foi deixada de lado a preocupação ecológica. A preocupação por critérios de
qualidade de vida coloca em questão o problema do sentido da nossa existência individual e coletiva,
local e global.
55
2.2.1. Mudança de época, mudança de sentidos
A mudança de época que desemboca na constituição da pós-modernidade
revoluciona concepções, multiplica os léxicos e dá novos significados aos
relacionamentos. De maneiras e intensidade diferentes, todos são afetados, estamos
todos no mesmo globo. A mudança de época, da moderna para a pós-moderna,
radicaliza a mudança do eixo das preocupações, aprofundando o desinteresse pela
pergunta, intrínseca ao ser humano, pelo sentido da vida. Mais que nunca, ele
concentra sua atenção em outras esferas, quando comparado ao espírito antigo-
medieval. É o que se pode chamar de mudança de sentidos, nesta mudança de época.
A pós-modernidade proporciona uma pluralidade de opções e oportunidades.
Baseadas no desejo do ser humano, e, sem medo da redundância, criadas para serem
desejadas. Há ofertas para todos os tipos e gostos. Tudo se torna mercado e
consumo: saúde, educação, religião, a vida58.
Mister se faz afirmar que o ser humano é um ser em constante busca,
chamado a se ultrapassar, a sair de si e de seu mundo a fim de estabelecer relações.
Cientes disso, ditadores da publicidade são diligentes em propagar inumeráveis
ofertas baseadas, talvez, menos naquilo que o ser humano deseja, e mais em ele ser
um ser de desejo, um ser de carência.
Veja-se o caso da publicidade. Ela elabora seu projeto conectada com o
desejo que habita o ser humano e que, ao propagandear seu produto, alia e dá
primazia ao ter sobre o ser. Nesta lógica, quanto mais se quer ser, mais é preciso
adquirir, inovar, acumular, em suma, consumir. Daqui se justifica a necessidade de
sempre criar novos produtos e de consumir ao máximo. O excesso do consumo
proveniente da multiplicação dos objetos e bens materiais conduz à criação de um
58 É a sociedade do bem-estar consumista. Com o acesso ao crédito e a superabundância de ofertas
de consumo, edificou-se uma nova civilização na qual os desejos não são refreados, muito pelo
contrário, existe um incentivo para levá-los a uma exacerbação extrema. “A fruição do momento
presente, o culto de si próprio, a exaltação do corpo e do conforto passaram a ser a nova Jerusalém
dos tempos modernos” (LIPOVETSKY, G., A sociedade pós-moralista, p. 29). A excessiva
preocupação com o corpo cria uma cultura de obsessão pela saúde perfeita e eterna juventude,
propagada pelos conselhos dietéticos, estéticos e esportivos como modelo de vida, confiando a eles
seu bem-estar e felicidade, pois não há lugar para a ascese e a tristeza. Estabelece-se uma relação de
dependência entre o produto e a pessoa. O incentivo ao consumo é feito de forma gradativa, em
pequenas e infinitas doses induzindo a pessoa à compulsão irreflexiva pelo consumo e ao vazio. Não
há escolha pessoal, há, sim, escolha ditada, na qual a liberdade está na etiqueta e na grife.
56
mundo de relação com os objetos, de modo que se vive o tempo dos objetos. Estes
parecem possuir uma autonomia com relação ao ser humano.
Surge uma dupla alienação social como consequência da falta de
discernimento desses mecanismos. De um lado, as pessoas não se reconhecem
como sujeitos determinantes da vida social, corroborando a massificação dos seres
humanos. De outro lado e ao mesmo tempo, homens e mulheres julgam-se
plenamente livres, sujeitos das mudanças. É a ilusão de que mudando o penteado,
o carro ou a decoração do apartamento, que as pessoas fazem como e quando
quiserem, muda-se o próprio valor da vida, apesar das condições históricas.
O poder influenciador do consumo atinge as pessoas injetando a
preocupação de adquirir e/ou manter uma destacada posição social. Nesta lógica,
afirma Bauman, “‘mostrar caráter’ e ter uma ‘identidade’ reconhecida, assim como
descobrir e obter os meios de assegurar a realização desses propósitos inter-
relacionados, tornam-se preocupações centrais na busca de uma vida feliz”59.
A sedução da propaganda nega a sabedoria adquirida na vida e mesmo destrói todas
as considerações filosóficas sobre felicidade, fraternidade, solidariedade,
sensibilidade e durabilidade. Os produtos exigem máxima atenção, pois há
minuciosas diferenças entre os modelos, e sua escolha ocupa o espaço do
conhecimento e o tempo para escolher o ideal60. O antigo tempo do discernimento
dos espíritos torna-se o tempo de outro tipo de noviciado, que se emprega no
aprendizado do uso do último modelo dos produtos (carros, notebooks,
smartphones, etc.). Quem domina seu novo produto não se torna, no entanto,
59 BAUMAN, Z., A arte da vida, p. 21. 60 Favorecido pela inclusão digital que possibilita o acesso de todos na sociedade da informação,
todos os produtos são disponibilizados na mídia. De forte influência no imaginário social, os meios
de comunicação têm divulgando a falsa receita de como ser aceito pelos outros, controlando as
subjetividades de cada um para ser seguida por todos. Nem sempre se sabe o significado e a utilidade
do produto para a vida pessoal, o importante é tê-lo na mão para poder mostrar o último lançamento
tecnológico, ainda que se saiba que instantes depois uma outra e mais sofisticada versão será
lançada. Torna necessário, então, um agente que responda qual o melhor produto, do momento. Num
mesmo lugar se encontra ‘resposta para tudo’, esse lugar é o Google, uma empresa que executa milhões de servidores, processa bilhões de pesquisa, vinte pentabytes de dados, oferece softwares,
possui produtos, lidera desenvolvimentos para sistemas operacionais (cf. SIGNIFICADOS, Site.
“Significado de Google”.) e rastreia o interesse do cliente criando um perfil. Uma colossal
enciclopédia de busca dentro de busca, ou uma Desciclopédia. Os meios de comunicação social,
particularmente a Internet, torna-se o centro da vida cotidiana, vendendo seus sonhos, ideias e
valores, levando ao monopólio e ditando o que seja beleza, felicidade, sabedoria, humanidade, vida,
morte. Este projeto diz respeito a uma sociedade cada vez mais constituída de informação e não de
modos preestabelecidos de conduta, em que a pessoa orienta seu viver a partir de escolhas contínuas
que passam a compor a sua narrativa de identidade, sempre aberta a revisões, interações, recomeços;
e mais agravante, perde-se a visão de ser humano, que é ser de ternura, cuidado, portador de um
projeto sagrado e infinito.
57
necessariamente um mestre, já que, logo em seguida terá outro novo modelo para
dominar.
O discurso sobre o ser ideal confunde-se com o ser real. Com o
favorecimento pelos modernos meios de comunicação social, as subjetividades
passaram a ser construídas rapidamente em espaços supranacionais. Os
intercâmbios internacionais têm remodelado a configuração das sociedades
receptoras, produzindo novas identidades em escala planetária. A tecnologia é vista
como um instrumento do corpo e da mente. A rede mundial de computadores, como
um ambiente onde se vive. Em grande escala, os meios tecnológicos tornam-se
parte importante da experiência da realidade.
Esta situação gera novos significados. O objeto em si muda sua lógica, por
deixar de estar ligado à sua função original e necessidade definida. Mais que seu
objetivo primeiro de comunicar com outras pessoas, o celular deve ter muitas
músicas, jogos, etc. Mais que função de transporte de passageiros, o carro deve ser
signo de status e ‘liberdade’, logo para cada pessoa um carro. Antes que ser
estrutura física do organismo ou expressão de pessoalidade, o corpo deve ser
investimento divinizado. Antes que para manter a boa saúde, a alimentação deve
estar em conformidade com a receita exótica. Há uma mudança no modo de pensar
e de viver, uma manipulação do ser pessoa e do seu poder de decisão. Os discursos
de liberdade e soberania são apenas mistificações. A própria política é manipulada.
As eleições, quando transcorrem tranquilas, são cantadas e encomiadas como sendo
a festa da democracia. Mas são enviados sempre ingentes esforços para que não se
elejam partidos que apresentem alternativas em economia e política.
Este movimento apresenta uma espécie de reciprocidade, em que a pessoa
é, ao mesmo tempo, afetada e promotora de influências sociais com consequências
e implicações globais. Nele se estabelece uma relação prodigiosa entre pessoas e
objetos. A relação, de utilidade que outrora se estabelecia com os objetos é, agora,
transportada para as pessoas. Estas tornam-se, como que uma pluralidade de objetos
e de abundância virtual, mas, paradoxalmente, de ausência mútua umas das outras.
Portanto, não se trata tanto da falta de relações, mas a qualidade delas. Isto
deve ser um ponto de atenção para examinar no como estão se dando as relações,
pois podem estar no nível do possível e da abstração, sem laços duradouros e
seguros, sem compromisso e bem querer do outro, em suma, como uma relação
líquida. Que altera minimizando o sentido real de relação.
58
Os relacionamentos sociais são tecnologicamente facilitados entre pessoas
muito distantes, em razão da expansão dos meios tecnológicos de comunicação e
dos efeitos da globalização, concomitante a quebra de fronteiras61. Nesta lógica,
homem e mulher têm renunciado a sua autonomia, de modo que o tempo dos objetos
determina e delimita o tempo das pessoas e entre as pessoas. “É o ser humano que
é definido como ser de consumo, e não somente a sociedade que é vista como
consumista”62. Esta inversão de ordem e de valor provoca a sensação de existir e de
viver na pessoa, simultaneamente, põe em perigo o sentido de sua existência e de
sua realização como ser humano. Consumismo e individualismo conjugam-se, e
excluem o caráter relacional e de abertura, coerente com a existência humana.
A atitude de exclusão significa ausência da espiritualidade, pois
descentraliza, fragmenta e estanca a vida. Além de promover o individualismo, gera
personalidades áridas, hostis e antissociais. As pessoas são encaradas como
empecilhos à satisfação dos desejos individuais. Nesta ótica, o ser humano fica
desprovido de relação e de certeza, e consequentemente, desprovido de sentido.
A quebra das relações faz lembrar o Mito de Procusto. Diz um relato que
viajantes que transitavam entre as cidades de Atenas e Megara, deparavam-se com
um bando de salteadores liderados por Procusto. Este bando tinha uma
característica cruel: obrigavam os viajantes a deitarem-se na “cama do castigo” feita
por Procusto. Essa cama tinha uma medida exata. Se a pessoa fosse maior, teria
suas pernas e pés mutilados e se fosse menor seria esticada. Todos teriam que caber
no tamanho exato da cama, mesmo que isso lhes custasse a vida63. A não aceitação
do outro, do diferente, do irmão, fragmenta o ser humano, quando não fisicamente,
pior talvez, psicologicamente devido seu esquecimento. Ao construir a cama do
castigo, a intenção foi de acabar com as diferenças, colocar todos dentro de um
mesmo padrão. A solução é imediata: se sobrar, corta-se. Se faltar, estica-se64.
Neste mundo carente de certezas, a dúvida tem efeitos para muito além do
campo científico e assume uma dimensão existencial. Nesta ótica, o ser humano já
61 PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ". Compêndio da doutrina social da Igreja, p. 100. 62 BAUDRILLARD, J., A sociedade de consumo, pp. 51-67. 63 Cf. BRANDAO, J. S., Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, p. 327. 64 A intolerância e a violência tem sido os ‘procustos’ desta época pós-moderna. Hoje, permanece a
luta oculta para mobilizar as pessoas tidas como ameaça à identidade, assim cresce o tipo de
exclusão: raça, sexo, idade, nacionalidade, time de futebol, digital, etc. (Cf. HALL, S., A identidade
cultural na pós-modernidade, p. 56). O índice de homicídio cresce a cada dia e ocupa as manchetes
dos jornais.
59
não se conhece, não se experimenta. É um aspecto da já mencionada mudança na
concepção de civilização. Como foi dito, configura-se uma nova civilização e
antigos valores foram substituídos por novos. Esta nova configuração percebe-se
também na linguagem, pois dos antigos para os novos valores, muda-se a expressão,
o vocábulo. De pessoas, o ser humano torna-se consumidor. No lugar dos direitos,
tem-se a aquisição de bens de consumo. Do esforço coletivo, passa-se ao esforço
individual. Da admiração pela experiência de vida passa-se à preocupação com a
competência técnica. Da solidariedade, para a competição e a meritocracia. Passa-
se da honestidade, para a eficácia; de atender às necessidades básicas, para pagar
dívidas; de ética, para os fins justificam os meios.
Esta civilização ocasiona profundas feridas nas relações sociais. Nela a
violência selvagem encontra ambiente propício para se desenvolver e assumir o
controle da vida65.
Também já foi dito que a mudança de época da pós-modernidade, em sua
ambiguidade com relação ao passado e sua adesão ao ceticismo arrasta consigo uma
mudança de sentido. Por isso mesmo a pesquisa assume a tarefa de perguntar de
que sentido se trata. Ora, como já foi explicitado, a mudança de época, a pós-
modernidade, altera a compreensão do sentido da vida. As mudanças estão abalando
a concepção de ser humano integrado. Uma perda de sentido, por vezes,
denominada deslocamento ou descentração do sujeito. A ausência de sentido com
65 Os diferentes âmbitos da vida são tocados por uma nova chave de leitura, segundo a qual riqueza
e pobreza são realidades independentes. O pobre é pobre porque é incompetente e rico é rico porque
é competente não pode ser responsabilizado pela pobreza; aumentando assim o abismo entre ricos e
pobres. Os direitos passam a ser desqualificados pela nova ideologia que os traduz por privilégios,
forma sutil de os invalidar. A luta por direitos, mais básicos como moradia, é denunciada como
corporativismo. O imenso território brasileiro tem tanta terra, mas mesmo aqui se deve lutar pela
moradia. A população se divide. Para uns a luta por direitos significa vagabundagem. Outros são
indiferentes, outros ainda aproveitam da situação para requisitar mais moradia para si próprio. Os
direitos sociais são substituídos por bens de consumo: os indivíduos não são mais pessoas com
direito à saúde, à educação, por exemplo, mas são consumidores. Saúde, educação se tornam mercadorias a serem consumidas, podendo ser vendidas e compradas. E quem não pode comprar
está fora, não existe para o sistema. O direito à vida passa a depender do fator da competência.
Sobreviverá quem for capaz de competir. “Quem for competente vencerá”. Este é o argumento, esta
é a “lei da vida”. A nova civilização se diz bem preocupada com as questões ecológicas e denomina
de catástrofe natural quando o resultado de seus projetos arquitetônicos fugiu do seu controle ou
nem foi previsto. Assim, por exemplo, o acidente nuclear de Chernobil (1986) a nuvem radioativa
ultrapassou a extensão da central nuclear atingindo outras terras ou mesmo o acidente do metrô em
São Paulo (2008) cujo relatório descrevia que as causas eram imprevisíveis, como também, o
rompimento da barragem em Mariana/MG (2015). Nesta hora, as causas são investigadas e novos
recursos são aplicados, as vítimas e seus familiares só aparecem em números estatísticos. Neste
ambiente, os jovens estão no meio do “tiroteio”, sem referências.
60
o qual se pode identificar ocasiona a desconstrução de identidades e a retirada da
transcendência.
Torna-se claro que a mudança de sentidos geradora de crise, nesta mudança
de época, aplica-se a sentidos que se limitam à ordem da imanência, criação do
humano pensante. O sentido da vida está para além da imanência, está para o
transcendente, o infinito. Só o infinito - que é Deus - sacia uma ânsia infinita – que
habita o interior humano; o infinito da abertura infinita do ser humano. A
predominância do logos empírico-matemático-operacional sobre as demais
dimensões da vida fragmenta o ser humano. Entretanto, não extingue o impulso
pelo mais, melhor e eterno que nele habita.
2.2.2. Crise fragmentadora do sentido da vida
Neste item, o primeiro passo será um esforço de compreender a crise pós-
moderna e, em seguida, anotar alguns caminhos possíveis de abordar a crise do
sentido da vida. Que queremos dizer com crise? A crise faz parte da vida? Se não
faz, resulta que ela é fragmentação da vida. Mas se faz, porque a vida se fragmenta?
A experiência revela que as perguntas refletem o dinamismo humano e abrem ao
diálogo.
Uma das dificuldades encontradas ao abordar o tema do sentido da vida na
pós-modernidade advém do falar de uma época na qual ainda vivemos. Assim, os
assuntos tratados terão sempre perspectivas em aberto e em processo de acontecer.
Ademais, presencia-se uma discrepância entre os autores ao distribuir adjetivos a
seu nome, fruto da riqueza de compreensões. Nesta época histórica, inconclusa e
humana, faz-se necessário, uma delimitação de cada termo e uma explicitação,
objetiva e atenciosa.
A crise do sentido da vida na pós-modernidade possui conotação ora como
fragmentação ora como oportunidade de vida. Isso torna mais relevante e urgente
tratar desta questão, visto que há compreensões de tendência a distanciar a vida de
seu sentido. Para abordar a crise que fragmenta o sentido da vida, consoante ao
objetivo desta pesquisa, será feito um esforço de compreensão das suas questões e
apresentar algumas abordagens.
61
Neste início de século talvez a palavra mais repetida seja ‘crise’. Ora crise
não é palavra nova. Como a pessoa é um ser historicamente situado, o foco que, em
dado momento, coloca-se em direção a ela pode fazê-la parecer bem maior que
todas suas antecessoras e todas suas sucedâneas. Igualmente outras palavras lhe
estão ligadas, tais como colapso, distúrbio, eclipse, etc. para de outras maneiras
dizer: crise.
Este século XXI, data justamente um período de mudanças essenciais em
todo o mundo. Em escala global verifica-se a ampliação do processo de
globalização da informação, potencializado, sobretudo pela revolução digital. A
humanidade delira com suas descobertas e realizações as quais cada vez mais
ampliam em eficácia em comparação às antigas, enquanto também estabelecem
novas aplicações e possibilidades.
No entanto, e por outro lado, o progresso, parece, desmitificou-se ao não
cumprir suas promessas. Destas promessas, umas das mais encomiadas foi que o
acúmulo de conhecimentos traria sempre novas práticas para melhoria da
civilização humana. O pensamento científico superaria toda forma de
obscurantismo e aprimoraria todos os seres humanos, as ciências, as artes, as
técnicas. De modo sempre ascendente, o presente superaria o passado. O futuro
seria, naturalmente, melhor e superior ao que o presente. Esta ideia tem se
demonstrado não ser toda verdadeira.
A ciência moderna nasce da ideia de intervir na natureza, de conhecê-la para
obter seu controle e domínio. Com este objetivo, formula teoria baseada nos dados
empíricos, devendo assim ser confirmada pela experiência. Em outra modalidade,
a ciência moderna elabora sua base no conhecimento apriorístico, isto é, ela tem
como base a estrutura interna da própria razão. A pós-modernidade ambiciona
ultrapassar a época anterior em todos os sentidos, justamente por ter dado à
civilização humana um novo sentido. Esta pesquisa sobrevoa as questões
filosóficas, no sentido estrito de um pensar filosófico, e as questões existenciais que
brotam da interioridade do ser humano66. O sentido da vida fragmentado pela crise
tem na filosofia uma de suas escoras.
René Descartes é considerado ponto de referência para o início da era
moderna pela forma peculiar com que exalta a razão humana, como forma de pensar
66 A questão existencial pode ser entendida em um filosofar como busca radical de sentido para a
vida e de sabedoria para o nosso tempo.
62
o mundo. A razão alcança a realidade em si. Para ele, o conhecimento racional é
válido para todos os objetos. Seu método é absoluto. Conhecer equivale a ordenar
e encadear em nexos contínuos as ideias. Este procedimento deverá ser o mesmo
em todos os conhecimentos, pois é o modo próprio do pensamento, seja qual for o
objeto a ser conhecido. O racionalismo funda na razão operando por si mesma a
fonte do conhecimento verdadeiro, assim descarta qualquer conhecimento
experiencial67.
Na sua filosofia, Emmanuel Kant expõe que a razão humana deve submeter-
se à crítica a fim de indagar sobre as condições que tornam possível o conhecimento
a priori. Kant inaugura e revoluciona a concepção de conhecimento crítico. Com
ele a ciência moderna foi acometida pela concepção de homem e natureza, na qual
o indivíduo era o referencial, ao exigir que, antes de qualquer afirmação sobre as
ideias, houvesse o estudo da própria capacidade de conhecer, isto é, da razão. Para
Kant, o objeto do conhecimento se constitui no fato de que não conhecemos o real,
“a coisa em si mesma”, mas sempre o real em relação com o sujeito que conhece,
isto é, o real enquanto objeto. Passa a distinguir, dessa forma, o mundo dos
fenômenos, a realidade da experiência, do mundo da realidade considerada em si
mesma, a qual pode ser pensada, mas não conhecida. Em suma, a estrutura da razão
é a priori, ou seja, vem antes da experiência e não depende dela. As condições de
possibilidade da experiência são dadas pelo sujeito, são a priori68. Nesse contexto,
qualquer tentativa de pensar a vida e as relações integradamente se torna falha, pois
a separação não se efetua apenas no nível do pensamento, mas também da
"realidade objetiva" construída pelo indivíduo.
Do outro lado, oposto ao racionalismo, o empirismo afirma que a razão é
adquirida através da experiência. Ela é elevada a máxima potência, de modo que o
conhecimento somente pode ser adquirido por meio da experiência. Responsável
pelas ideias da razão e controlando o trabalho da própria razão, o empirismo tem
como fonte todo e qualquer conhecimento, experiência sensível. A experiência é o
67 Na leitura de Lima Vaz, o despontar da modernidade data do século XVII com Descartes. Um
pensar que difere radicalmente daquele medieval que primava pelo polo metafísico da razão,
passando a primazia ao polo lógico e de um novo sujeito criador do próprio mundo. Cf. OLIVEIRA,
C. M. R., Metafísica e ética, pp. 31-46. 68 Desse modo, Kant acaba com o Deus dos filósofos ao fundar uma metafísica racionalista que faz
de Deus objeto. O único que resta deste Deus é só uma ideia da razão. Daí decide afirmar que, porque
há uma ideia de Deus, se pode chegar à crença em Deus. Há que suprimir o saber para dar lugar à
crença. Cf. KANT, I., Crítica da Razão Prática, 1959.
63
critério, logo o reconhecimento da verdade pode e deve ser posto à prova, podendo
ser modificada ou abandonada.
O impasse entre o racionalismo, particularmente de Descartes, e o
empirismo, particularmente de Locke e Bacon, fizeram surgir a dúvida de que o
conhecimento racional, como conhecimento inquestionável, seria possível. A
verdade seria apenas aparência, pois ficaria despossuída de validez absoluta ou ao
menos permanente. Neste diapasão, se há conhecimento, ele é sempre passível de
questionamentos e mudanças, se há verdade, ela é relativa, ela é isolada da
totalidade. No fundo, não há verdade nem universal e muito menos absoluta.
Bem diferente, a concepção aristotélica afirma o conhecimento das
totalidades dos conhecimentos e práticas humanas, como também estabelece uma
diferenciação entre os conhecimentos. Para os modernos, a verdade só se torna
verdade para o sujeito; a verdade é subjetiva. Não há qualquer garantia quanto a sua
objetividade. Avesso ao racionalismo e ao empirismo surge o cético. Para ele, a
dúvida instala-se toda vez que a razão tem a pretensão de um conhecimento
verdadeiro do real. Tem como fundamento que se deve renunciar a verdade, devido
à incapacidade humana de conhecer a realidade.
Estas concepções representam esforços de construção de um discurso
racional e sistemático sobre o real, isto é, uma filosofia, que dê conta da existência,
isto é, da vida humana. Ora, as correntes filosóficas deste período, que tão ufanista
se mostra da capacidade humana, revela um fracasso do ser humano em se
compreender a si mesmo. As filosofias da época, de um lado expressam uma
compreensão limitada, portanto fragmentada do ser humano. Aqueles pensadores
que partem da razão não conseguem alcançar os sentidos. Os empiristas
desorientam-se ao abordar a razão. Como resultado, o ceticismo apresenta-se como
solução comum, mas na verdade como renúncia a todo e qualquer tipo de solução.
O ser humano, porém, é mais. Ele vive no presente, alicerça-se no presente
com sonhos de futuro. Ele experimenta-se aberto a um outro que não si mesmo. Sua
existência está situada entre a finitude e a infinitude. No pensar de Rahner, é a
própria experiência de ser limitado que faz questionar tudo, chegando ao ilimitado,
ao Transcendente. “Ao afirmar a possibilidade de horizonte meramente finito de
64
questionamento, essa possibilidade já se vê ultrapassada e o homem se manifesta
como ser de horizonte infinito”69. A consciência do limite já é sua ultrapassagem.
A razão vista como atividade puramente intelectual, fecha as portas para a
revelação divina, pois nesta, a verdade é dada pela fé, ou seja, não depende, a priori,
do conhecimento intelectual. Também se pode aferir que nesta ótica, a fé na
revelação de Deus é irracional. Irracional é também a ideia de pensar que o ser
humano é determinado tão somente pela razão, pela experiência ou tão somente,
pela dúvida. Poderia perguntar-se se há espaço neste ser, humano, para a busca, o
desejo, a fragilidade, etc. Por isso talvez fosse necessário matizar este logos e dizer
que ele é tão somente o logos que circula pela imanência da história, acreditando a
priori que este horizonte é insuperável. Sua forma mais difundida é o logos
empírico-matemático. Mas ele mesmo deve ser compreendido por uma dimensão
muito mais abrangente do logos humano integral. Sobre o valor da atividade
intelectual, a Igreja afirma:
Longe de pensar que as obras do engenho e poder humano se opõem ao poder de
Deus, ou de considerar a criatura racional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar convencidos de que as vitórias do gênero humano manifestam
a grandeza de Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais aumenta
o poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária70.
A ideia de progresso é denunciada pela pós-modernidade como enganadora,
reflexividade sociologizada e psicologizada71. As promessas da modernidade
manifestam-se num futurismo de uma visão de mundo que se pretendia capaz de
conjugar perfeitamente os propósitos e ideais a soluções reais. No entanto, a deusa
da razão caiu do trono. O conhecimento não trouxe a tranquilidade e o poder sobre
a vida social. Ou este poder só consegue viger para determinados momentos
históricos.
A inauguração da pós-modernidade acontece quando a razão percebe sua
impotência. O ser humano experimenta-se não ser tão onipotente, quanto pensaria
de si mesmo e de suas fenomenais invenções. Neste momento, a civilização humana
vê-se assediada pela pós-modernidade que lhe abala os alicerces. A palavra crise
69 RAHNER, K., Curso fundamental da fé, p. 46. 70 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium Spes”, n. 34, p. 177. 71 Cf. GIDDENS, A., As consequências da modernidade, pp. 43-51.
65
povoa o vocabulário. Há muito tempo fala-se em crise econômica72, política73,
cultural74, religiosa75, ecológica76. Estes são os arcos maiores da crise. O
crescimento nos diversos setores da sociedade, muitas das vezes, não tem
equivalência com o desenvolvimento humano.
Na acepção mais ampla e genérica, o conceito de crise está associado a
transição e a um estado de incertezas, do qual pode resultar algo benéfico ou
pernicioso para a vida, pode prejudicar, mas traz também possibilidades de
renovação.
A etimologia no grego liga crise à crítica. Sobre a crise, pode-se dizer:
De múltiplas maneiras pode manifestar-se a crise e, do ponto de vista filosófico e sociológico, é particularmente importante a crise histórica que se pode traduzir em
crise na vida espiritual de um povo, quando as formas de arte, literatura, filosofia,
moralidade, etc., entram em declínio, devido ao enfraquecimento das crenças em que repousam e despontam novas formas correspondentes a aspirações e
necessidades que começam a fazer-se sentir77.
Para os sociólogos Berger e Luckmann, a crise na civilização pós-moderna
apresenta-se como problema central na questão do sentido da vida. A crise de
72 A materialidade da crise econômica e sua relação com as necessidades básicas, como comer,
beber, morar, estudar, comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade. A Crise da
especulação imobiliária-financeira já levou à falência, ou quase, vários bancos e financeiras. 73 A crise política manifesta-se com mais força quando interesses partidários resolvem fazer
denuncias de corrupção e/ou mesmo quando a sociedade se reúne organizando manifestações de luta
em contra a injustiça social e política. 74 Memorável foram os acontecimentos da década de 70 e 80. Considerado como crise por instituir uma nova formação social, que modelou corpos, corações e mentes. A compreensão de cultura
conheceu estágios diferentes, provocando uma crise, devido sua concepção dicotômica. Ela deixa
de ser vista entre pessoas cultas ou incultas, ou de uma coletividade que possui uma atividade
cultural que possa ser comparada à de outras. Agora, a civilização está diante da ideia de que pode
haver dois tipos de Cultura: a de massa e a de elite. Muitas das vezes, a cultura é usada como
instrumento de discriminação social, econômica e política. 75 A religião através da sacralização cria a ideia de espaço sagrado. Os céus, as montanhas, o deserto,
o templo e a igreja são moradas do Transcendente. O espaço da vida comum separa-se do espaço
sagrado. A crise religiosa revela-se como perda do sentido do sagrado, uma insensibilidade para o
transcendente. Em outro extremo, há o retorno do sagrado arrastado pela existência individual
entregues apenas a si própria. A crise manifesta por ser uma religião à la carte, um sincretismo individual. Reduz a relação com o Divino a cultos exteriores e/ou momentos isolados da semana ou
do mês. Culto do Ego à custa do sentido maior da vida humana, a unidade da diversidade, com o
outro e com todas as formas de vida. Apegos a verdades absolutas, arrogância intelectual e ética.
Isso esvazia de sentido tanto a relação viva e dinâmica com o Transcendente quanto à ação pela
transformação do mundo. 76 Crise ecológica expressa, por exemplo, no aquecimento global cuja aceleração exponencial
aproxima o planeta de uma crise global grave. A escassez crescente de água priva hoje cerca de um
terço da humanidade do direito humano à vida. O desmatamento tem se acelerado com a política
exportadora. Poderíamos também citar outras crises, como a crise da militarização provocada pelo
aumento dos conflitos e dos gastos bélicos. 77 Verbete Logos. Enciclopédia Luso-brasileira de Filosofia, p. 1229.
66
sentido está diretamente relacionada aos processos de modernização e
secularização. Estes processos já não permitiriam uma leitura homogênea da vida,
nem das percepções estáveis de sentido na sociedade. O sentido é particular. Assim,
crise de sentido e pós-modernidade associam-se pelo fato de não encontrarem no
indivíduo valores comuns que determinam o agir, nem uma realidade única para
todos78.
A crise pós-moderna tem desencadeado um processo profundo de
deslocamento das estruturas e abalo nos quadros de referência que, anteriormente
permitiam às pessoas certa estabilidade, certa orientação com padrões claros e
definidos. Estas transformações bruscas fragmentam a vida existencialmente
assumida, a identidade da pessoa humana, de modo a perturbar a concepção que se
tem de sujeitos integrados. A identidade do ser humano, outrora, estava acomodada
num sujeito autônomo e senhor de si, num movimento permanente do devir do
sujeito, cuja mudança obedecia a leis determinadas.
A situação hoje está muito mudada. Há uma fragmentação, perda de
consistência que questiona e dissolve toda afirmação do ser, toda teoria, toda
verdade. A pós-modernidade questiona a identidade pelas reações antagônicas que
ela provoca. A ideia de relação é paradigmática desta época. Relação implica
permanência, mudança, alteridade. A dificuldade consiste em compreender como
as relações se constituem numa realidade que prima pela fluidez, constante
novidade, descentramento de si, que expulsa toda proposição de eternidade e
transcendência.
Aparece, então, a crise com toda sua virulência e erradicação da vida. De
fato, desconstruir a relação é desnortear o ser humano, privando-o de um horizonte
de sentido da vida. A relação implica duas identidades diferentes que se reconhecem
na alteridade, adaptando-se a novas situações históricas. O mundo virtual
possibilitou este tipo de contato que pode se intitular conexão. A comunicação
virtual, melhor dizendo, a conexão virtual entre pessoas é criada, mas também
fechadas arbitrariamente. Para isso basta um DEL para eliminar um amigo, uma
conversa, um contato (virtual) afetivo, sexual. Bauman sinaliza com clareza as
características destas conexões na pós-modernidade.
78 Cf. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T., Modernidade, pluralismo e crise de sentido.
67
A palavra ‘rede’ sugere momentos nos quais ‘se está em contato’ intercalados por
períodos de movimentação a esmo. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas
por escolhas. A hipótese de um relacionamento ‘indesejável, mas impossível de
romper’ é o que torna ‘relacionar-se’ a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma ‘conexão indesejável’ é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas,
e o são, muito antes que se comece a detestá-las. Elas são ‘relações virtuais’ [...]
numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de ‘ser a mais satisfatória e a
mais completa’79.
Todo ser humano deseja realizar-se em harmonia com a própria identidade,
em atitude de respeito à dignidade dos outros e, no entanto, experimenta-se muitas
das vezes fragmentado. Ele vive a experiência de não estar presente a si mesmo,
porque puxado de um lado pelo outro pelas exigências extrínsecas a si. Ausente de
si mesmo torna-se incapaz de reconhecer sua dignidade pessoal. Esvaziado de sua
interioridade e identidade, e por esse motivo, não respeita a dignidade humana dos
demais: eis uma faceta violenta e cruel da crise humana.
As conexões tendem para o prazer e o descompromisso. Trata-se de um
prazer individual, momentâneo, fugaz, por isto descompromissado com a história,
a utopia. Importa viver o hoje, pois amanhã tudo pode mudar. A mudança traz
incertezas, inseguranças. Ela é indício de perda de controle e domínio da situação.
Por esta via, mudanças devem ser excluídas, deletadas80. Acentua a ideologia do
prazer e do presentismo, a qual afeta fortemente o sentido de ser pessoa humana.
Estas conexões não são de todo negativas, nem de todo positivas. De um lado,
reage-se contra a repressão ao prazer. O indivíduo moderno jamais quer adiar a
felicidade para a eternidade. Sua concepção de vida não tem espaço para a dor.
79 BAUMAN, Z., Amor líquido, p. 12. 80 Esta realidade virtual, não é menos sofrida para vida de muitas pessoas, do que quando levada
para a vida concreta. A morte dá lugar à vida, por exemplo, em situações de matar uma criança por
jogar bola no jardim alheio ou equiparar a vida de um jovem a produto de consumo, morto e exposto
no carrinho de supermercado. Na primeira, “uma criança é morta a facadas por ter deixado a bola cair no quintal do vizinho em Pernambuco. Um menino de apenas 10 anos de idade foi morto a
facadas pelo vizinho, em Camaragibe, no interior de Pernambuco, porque a bola de futebol caiu no
quintal da casa dele. De acordo com familiares de Cauã, o vizinho conhecido por Armando não teria
gostado da presença do menino no quintal dele. Irritado, deu vários golpes de faca na criança”.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO., “vizinho mata menino de 10 anos por causa de telha quebrada”.
Outro exemplo narra um jovem transformado em consumo morto. “E a vida se esvai qual produto
de supermercado. PM acha corpo dentro de carrinho de supermercado no Morro dos Macacos.
Segundo o comandante do 41º BPM (Irajá), coronel Alexandre Fontenelle, neste domingo a unidade
fez uma operação no Juramento. O oficial negou que tenha havido registro de feridos ou mortos.
Ainda segundo o coronel, a ação foi de rotina”. BARRETO FILHO, H., “Polícia encontra dois
corpos no Morro do Juramento”.
68
Qualquer contenção do corpo é vista como maniqueísmo, salvo para dar mais corpo
ao corpo, com exercícios e dietas diversas.
Viver o presente proporciona certa estabilidade, certa trégua que reduz a
imprevisibilidade dos conflitos. Por outro lado, decreta-se que os sentidos foram
feitos para o prazer. O prazer está no centro de atenção dos sentidos. A satisfação
deve ser aqui e agora. Caso contrário, muda-se o foco de atenção ou desliga-se o
programa. A depressão surge quando não se obtém o prazer. A concepção cristã de
sacrifício, de ascese é descartada. A solidariedade e ajuda gratuita são atitudes
reservadas aos masoquistas. A univocidade do cotidiano foi quebrada devido à
adequação às constantes e aceleradas mudanças da realidade.
Curiosamente, os estudiosos dos temas ligados aos processos culturais e
históricos falam da pós-modernidade como de um programa civilizatório ainda a se
instalar. Na verdade, mesmo o nome a se atribuir a este novo período da epopeia
humana é ainda controverso. No entanto, já se fala de sua crise. Um bom índice
deste mal-estar da civilização são as obras de Z. Bauman, que lhe apontam as
inconsistências.
De fato, do ponto de vista antropológico, a pós-modernidade corre o risco
de ser um elenco de promessas não cumpridas. Por causa disso, a depressão surge
quando não se obtém o prazer, surgindo a instalação dos questionamentos. Instala-
se de pronto uma crise, que pode favorecer a apropriação de novas possibilidades
de ação, a revisão de hábitos que se vão enraizando, mas, ao mesmo tempo, não
correspondem à reconstrução criativa e respeitosa dos laços que ligam as pessoas
com toda a criação, com outras pessoas e com Deus. Importa assumir a crise, e com
esperança, caso contrário a vida estará à margem da história e a surpresa do
momento futuro estará ofuscada.
A crise aparece mais dolorosa, devido apresentar uma visão de um mundo
imprevisível, sem definições, maleável, como que tendo autonomia e determinação
sobre os seres humanos. Do tipo exemplar, temos o sistema econômico, sem rosto,
mas que fala e dita normas, sem corpo, mas persuade a segui-lo à risca, sem coração,
mas aconchega a quem o idolatra.
O deus da idolatria, argumenta G. Gutierrez, exige vítimas humanas. A
violação do ser humano é maior das idolatrias, “O deus da idolatria é um deus
69
assassino. Muito é o sangue que se derrama no afã do lucro”81. No Brasil, o tráfico
humano tem aumentado82 a vida é comercializada. Há os que dizem, “eu sou dono
da minha vida”. Estes esquecem-se do seu Criador e Senhor, que dá vida e quer a
vida. Pior desempenho têm os que se portam como donos da vida dos outros. Trata-
se aqui do indivíduo que “na ânsia de riqueza e poder, não se detém diante de nada,
atropela o direito dos demais e pisoteia os mandamentos do Deus que exige a defesa
do pobre e do oprimido”83.
O capitalismo pós-moderno tem grande capacidade de transformar desejos,
posturas, expectativas e atitudes em objetos de consumo. Se um grupo ou
movimento especializa-se em protestos, logo surgirá quem lhe venda o melhor “kit”
para a manifestação. Conseguindo lucrar com praticamente qualquer coisa, a pós-
modernidade revela um processo de indiferença na medida em que todos os gostos
e comportamentos podem coexistir, embora sem interagir. Para a pessoa normal, o
cidadão comum como o mais esotérico, a vida simples e a vida sofisticada, a religião
e o ateísmo convivem num tempo atemporal, desvitalizado, e sem referência
estáveis. As fervorosas discussões e manifestações sociais das questões públicas,
incluindo questões como ecologia, corrupção, violência humana, ocupam lugar da
atmosfera, mobilizam por algum tempo, mas desaparecem tão rápido como
apareceram.
A deterioração do cotidiano, na expressão de Kujawski é o ponto de partida
da crise do século XX. O autor compreende que a realidade humana constitui o
âmbito no qual todas as outras esferas da realidade, e as crises, manifestam-se. O
81 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 90. 82 De maneira exemplar, a Pastoral da Mulher Marginalizada tem trabalhado a serviço e em defesa
da vida. Uma de suas iniciativas é a conscientização da população sobre situações de prostituição e
o trabalho junto a mulheres que estão sendo traficadas para fins de exploração sexual, iludidas por
uma situação de promessa de vantagem. O seminário, DIÁLOGOS pela liberdade, realizado em 23-
24 de setembro de 2014 em Belo Horizonte, debateu as diferentes causas do Tráfico de Seres
Humanos, na sua maioria de mulheres, e analisou criticamente as políticas de enfrentamento.
Considerado notória a experiência dos palestrantes e sua sensibilização em prol da vida humana,
particularmente do ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Dr. Joelson Dias ao falar sobre: Tráfico de Mulheres e Exploração Sexual – Liberdade não se compra. Dignidade não se
vende. Em sua exposição, disse que a eliminação do projeto pessoal de vida tem vitimado milhões
de pessoas e que há uma descrença da realização pessoal a partir das oportunidades oferecidas em
sua própria comunidade. “Chegamos à lua, construímos aviões... não conseguimos consolidar o
projeto de ser, humano”. Outra palestra bem discutida foi da Jornalista e autora de livros sobre o
tráfico, Priscila Siqueira que fez refletir que o tráfico humano é gente vendendo gente. Que cerveja
e mulher estão na mesma linha de escolha. “De que cerveja você gosta: Skol, Brahma?... de que
mulher você quer: negra, loira?...”. Diante dos dados estatísticos que os Meios de comunicação
social apresentam, Priscila chamou atenção para olhar e escutar esta realidade para além dos
números, pois o tráfico é de vidas humanas. 83 GUTIERREZ, G., op. cit., p. 80.
70
ser humano é afetado diretamente por sua situação imediata, sua realidade concreta,
tal como ela se apresenta. Entre realidade cultural e ser humano não há separação.
O ser humano afeta e é afetado pelo meio no qual vive.
O cotidiano faz parte integrante e constitutiva de mim mesmo; eu sou o que ele faz
de mim e o que eu faço dele. Se o cotidiano se fragmenta e se desintegra, sou eu
que me fragmento e me desintegro. Já não sei quem sou, nem mesmo se sou alguém. Talvez eu não passe de um flato, sopro dessa massa humana imensa e
disforme que me oprime por todos os lados e na qual vago perdido84.
Este ensaísta localiza a crise que afeta a vida em seu alicerce: o cotidiano.
A crise, não é então só no plano econômico, político, cultural ou religiosa, antes de
tudo ela perpassa o que há de mais profundo na vida: o sentido da vida. O cotidiano
da vida é nosso referencial, no comum da vida manifesta-se o ordinário e o
extraordinário, a banalidade e o excêntrico. A crise afeta este lado tão humano, tão
nosso.
Lipovetsky fala da crise pós-moderna como a era do vazio do sentido. O
autor argumenta que diante do sistema operante que insiste em desconectar as
pessoas dos desejos coletivos, em controlar as indignações sociais, é forte convite
ao desengajamento emocional. Sem que haja consciência, e em corroboração com
este processo, presencia-se no ser humano uma apatia, como nova forma de
socialização, cuja lógica se assenta em não reclamar, nem se revoltar. Nos
relacionamentos, vigora uma apatia emocional. Os sentimentos foram esvaziados e
os ideais desmoronados, sem que isso acarretasse revolta ou angústia.
Sociologicamente, temos uma apatia de massa.
Nisto consiste a crise do sentido, que na verdade, prenuncia sua ausência.
Os antagonismos coabitam sem divergências. “A oposição do sentido e do não-
sentido deixou de ser dilacerante e perde a sua radicalidade perante a frivolidade ou
a futilidade da moda...”85. A experiência mais radical da crise, como descreve Lima
Vaz, consiste no ato consciente da civilização humana que, “ao fazer do próprio
homem o princípio imanente do sentido, ela eleva à dignidade ontológica de um
absoluto a liberdade antropocêntrica”86. O sujeito humano encerra em si o sentido,
84 KUJAWSKI, G., M. A crise do século XX, p. 55. O autor subdivide a crise do cotidiano em três:
crise de identidade do homem contemporâneo, crise de familiaridade com o mundo e crise de
segurança. Trabalhar todas aqui seria alongar demais este tópico sobre a crise fragmentadora da
vida, a pesquisa se delimita a primeira parte. 85 LIPOVETSKY, G., A era do vazio, p. 37. 86 LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 13.
71
coloca-se a si mesmo como o reino do sentido. Assim, a crise do sentido e do não-
sentido ocupa lugar privilegiado no pensamento pós-moderno. O tema torna-se
dominante e, segundo o filósofo jesuíta, “é provável que tenhamos atingido aqui a
raiz mais profunda, a raiz propriamente espiritual da crise da modernidade. [...]. O
homem se glorifica de ter enfim instalado o seu reino”87.
Crise não é sinônimo de desastre e pode bem ser indício de uma nova e boa
vida, polarizada pela reflexão e pela transformação. A crise pode ser momento de
saídas, de alternativas, de criatividade. Trazendo para mais perto, a teologia da
América Latina tem compreendido seu compromisso libertador na ótica segundo a
qual a opção pelos excluídos e a crise ecológica, são faces de uma mesma realidade,
pois ambas ligam-se ao meio ambiente. A crise interpela a pessoa cristã a ser
coerente com sua origem, a acolher a crise com atitudes criativas, a ir na contramão
de toda e qualquer proposta individualista, a sair da mesmice. Outrossim, a crise
pode ser uma chance única para modificar ou mesmo abandonar alguns conceitos
ampliando a esfera da experiência da existência e definindo um uso convivial das
coisas para o bem-estar da vida.
A superação da crise é possível. Ela não é o fim de tudo. Pode-se aprender
isso, estudando a aparição e superação de outras e diferentes crises na história.
Entretanto, Lima Vaz assegura que não haverá saída desta crise pós-moderna
“enquanto não se universalizar a experiência da inanidade ou do não-sentido do
humanismo antropocêntrico”88.
A indagação é parte integrante saudável do ser humano. Questionar suas
origens é sentir-se vivo. O questionamento revela o ser de desejo, que lhe é
constitutivo, desejo de viver sua humanização plenamente. A busca pelo sentido, a
partir da reflexão sobre a origem é causada pela desproporção interior, pela busca
de integrar-se a si mesmo, e pela suspeita de ser mais do que se é. Como ser de
desejo, abre-se para o ser humano a possibilidade de ser pessoa de desejo, de ser
para Deus, desejo que é ao mesmo tempo seu foco e sua origem. O desejo é reflexo
da tensão entre incompletude de fato e completude de horizonte. Toda a experiência
da história situa o horizonte da existência humana na tensão do ser finito que tende
para o infinito, da síntese ativa do temporal e do eterno. De modo lapidar, os
místicos ensinam que o ser humano encontra expressões do mistério cristão unidas
87 Ibid., p. 13. 88 Ibid., p. 14.
72
ao mistério da pessoa. Descortina-se “a presença no ser humano do desejo do Mais,
de algo que o supera, sua condição de estar habitado por um excesso que o inunda
e o transborda”89.
Como se tem visto, marca de nosso tempo, não é raro que estudiosos
sustentem que a realidade contemporânea traz consigo uma crise do sentido. Esta
afirmação também presente no documento da Igreja chama a atenção para a crise
enquanto perda de identidade de ser humano.
Nosso tempo traz em si uma ambiguidade. Estamos num tempo de muitas falas,
muitos ruídos, muito barulho, incertezas e crise de referências. O mundo fala, mas
tem sede de palavra que guia, tranquiliza, impulsiona, envolve, ajuda a discernir90.
Brota a pertinente reflexão elaborada por Maria Clara Bingemer sobre como
situar a questão Deus na pós-modernidade em crise. A teóloga parte da premissa
que nos séculos passados era corrente a opinião de que o cristianismo constituía o
centro religioso mundial em torno do qual girariam as outras religiões ou tradições
religiosas. Hoje o centro gravitacional de todas as religiões, a começar do próprio
cristianismo, é Deus. A noção de Deus, embora possa haver diferentes nomes como
Trindade, Transcendente, Realidade Última, está na base de todo sistema religioso
como realidade doadora de sentido para o mundo e para a existência humana.
Todavia, uma das pretensões da modernidade foi e para a pós-modernidade
continua sendo, justamente, retirar do horizonte humano a questão Deus e todo
rastro de sua existência. Movida por um ideal secularizador, julgava-se capaz de
forjar uma “civilização da racionalidade, da emancipação em todos os níveis, em
que a humanidade, saída da infância, não necessitaria mais de um Ser supremo ou
de um Sujeito absoluto que lhe fosse normativo para guiar-se e organizar-se”91. Ora,
também o cristianismo recusa o absoluto, como algo que anule o ser humano. Na
fé cristã, o absoluto apresenta-se quenoticamente ao diálogo.
Imerso em um generalizado ceticismo, o ateísmo pós-moderno desfigura
também o humanismo, em sua atitude de questionar os fundamentos da sociedade
e a globalidade do real. Preso na teia de um absoluto, que não se deixa entender, o
ser humano moderno fica cindido entre aceitar tal absoluto, na obediência da fé, ou
89 VELASCO, J. M., El fenómeno místico, p. 253. 90 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL., Diretrizes gerais da ação
evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015, n. 48, p. 20. 91 BINGEMER, M. C. L., Alteridade e Vulnerabilidade, p. 54.
73
colocar-se a si mesmo como “absoluto”. Percebem-se três estágios, nesta
caminhada histórica. O primeiro passo foi o absoluto das religiões, que não
dialogavam, mas guerreavam entre si. Neste particular, pode-se dizer que o
cristianismo, por exemplo, e o islã, não se diferenciavam muito um do outro. Cada
um tentou conquistar o outro, manu militari e, conforme tinham maior ou menor
sucesso, o derrotado era oprimido, mais ou menos na mesma medida pelo vencedor.
Depois tivemos o absoluto dos estados nacionais, com todo o aluvião de guerras
dos séculos XVIII, XIX e XX.
Agora tem-se o absoluto das consciências individuais. Ao não aceitar as
certezas de outrora, pela relativização de todo arcabouço cultural e conceitual, o
pensamento pós-moderno põe em questão toda tentativa de nomear o Absoluto,
julgando inadequadas as pretensões universalistas do discurso religioso. Mas,
justamente aí, devolve à reflexão cristã uma antiga perspectiva, ou seja, aquela que
desemboca no mistério e na pluralidade como reconhecimento da impossibilidade
de pensar e dizer completamente o Ser em quaisquer dos seus aspectos. Por
conseguinte, todo modo de falar de Deus é posto em xeque e recordada sua radical
inadequação. A experiência radical do mistério questiona um discurso moderno que
pretendia ter muito claras todas as coisas, inclusive a ‘retirada’ de Deus e sua
‘morte’.
Seria a ‘morte de Deus’, da modernidade a ‘morte’ do absoluto, que oblitera
o ser humano? Maria Clara responde não se tratar tanto de negação de Deus pelo
pós-moderno, mas da indiferença religiosa. A busca do Transcendente verifica-se
no sujeito moderno, ainda que sem a agitação das manifestações populares.
No plano da comunicação, o silêncio sobre Deus condiz mais com a
experiência de Deus que a própria palavra: silêncio que fala, silêncio do sabor, da
compreensão íntima, do amor desfrutado. "Há um mistério de morte imanente à
consciência e à linguagem humana, quando se trata de expressar Deus"92. Mas este
silêncio é invadido por uma Palavra Nova, reveladora do Grande Silêncio: Deus se
fez carne em Jesus de Nazaré! Em sua experiência religiosa, unem-se
indissoluvelmente dois polos humanamente irreconciliáveis: o Absoluto e o Pai, na
gratuidade misteriosa de quem ama para sempre. Ambas as vias parecem falar de
92 BINGEMER, M. C. L., Alteridade e Vulnerabilidade, p. 64.
74
um Deus, que se relaciona com a história humana, por um viés todo especial, que
não só não lhe põe limites, como lhe descortina infinitas possibilidades.
As crises com suas dificuldades, impasses e desafios mostram o oposto do
dogmatismo. Antes, indicam atitude reflexiva e livre, própria da racionalidade
humana. A saída da crise fragmentadora da vida não pode ser outra senão pôr-se a
ouvir o sentido que ecoa na própria realidade. A experiência da crise da existência
está radicada em se querer vivê-la alienada da própria raiz, centrada em si, perdida
do elo originante da vida. A crise fragmentadora do sentido da vida na compreensão
da pós-modernidade pode ser acolhida como oportunidade de revalorização das
relações como caminho de integração das dimensões da vida humana. De fato, há
uma busca, pelo ser humano, intrínseca e maior que todas as outras, do profundo
sentido da vida, de Deus. Mas “Deus” aqui se compreende como companheiro de
diálogo e participação e não como conceito de elucidação.
2.2.3. O desperdício da abundância da vida
O vocábulo desperdício liga-se ao verbo desperdiçar93. De imediato, evoca
uma vertente negativa do esbanjamento, desaproveitamento, extravio, perda.
Implica possuir algo e fazer mau uso de forma consciente, gastar com exagero e
desequilíbrio. Segue uma trajetória cujo caminho é a perda.
Associado ao verbo abundar, o substantivo abundância tem uma vertente
positiva. Abundância expressa a fartura, o sobressair-se de uma qualidade dentro
do comumente medido ou necessário. Implica opulência, fartura. Insinua um
caminho de dentro para fora, ou seja, da profusão para a liberalidade, do excesso
faz-se prodigalidade, do dom para a partilha.
Desperdício não é sinonímia de abundância, ou vice-versa. À parte suas
ambivalências, ambas têm bem configurado a vida. A mudança de época própria da
pós-modernidade tem evidenciado que o desperdício e a exuberância também têm
fragmentado e fragilizado a vida. Por princípio, o desperdício deteriora e mata a
93 Desperdiçar une-se primeiramente à ideia de gastar com exagero; esbanjar. Enquanto o termo
desperdícios está unido a sobras, restos. Desperdício é, então, o ato de usar sem proveito; possuir e
deitar a perder, a destruir, desaparecer. O antônimo de desperdício é a abundância.
75
vida, enquanto a abundância a releva e plenifica. O jogo da abundância versus
desperdício mostra que aquilo que poderia ser uma assertiva consensual na
sociedade, manifesta, na verdade, projetos abalados. Urge, portanto, examinar seus
fins.
Após elucidar os vocábulos ‘desperdício’ e ‘abundância’, cabe agora
examinar o vocábulo ‘vida’. No que tange à vida, ela se apresenta sob três aspectos.
Primeiro como estado de atividade dos animais e das plantas, outro como o tempo
que vai do nascimento à morte, e o terceiro como energia, vibração. Em todos,
sempre ligado à duração da vida humana, há um conjunto de acontecimentos
históricos que se sucedem nesta existência. Numa explicação primeira a vida, o que
caracteriza própria os seres vivos é sua capacidade de resistir a diversas
modificações, sua aptidão em renovar, em crescer e se reproduzir. Também da parte
da física, busca-se uma definição para a vida, que privilegia sua dimensão físico-
química. Vejamos o que diz Lee Smolin. Este físico, que já conceituara vida, pode
ajudar, agora, com sua definição de sistemas vivos94.
Eu gostaria de dizer que um sistema auto-organizado ou um sistema afastado do
equilíbrio é: Uma porção de matéria distinguível, com limites reconhecíveis, que tem um fluxo de energia e, provavelmente de matéria, que a perpassa, enquanto
mantém uma configuração estável, afastada do equilíbrio termodinâmico, por
escalas de tempo que podem ser consideradas longas em comparação com escalas
de tempo da dinâmica de seus processos internos95.
Esta compreensão estendida a todo organismo vivo alcança ainda muitos
sistemas como os animais, plantas, biosfera, e também os seres humanos. Ela
manifesta uma similitude entre os seres vivos, tais como, organização que pode ser
lida como intencional, com seus limites explícitos, sua relação de energia ad-intra
e ad-extra, relação consigo mesmo, com outros da mesma espécie e com outras
94 A vigência destes dois vocábulos - desperdício e abundância - desafia a vida existencialmente
experimentada e impulsiona ao estudo das ciências das bases da vida. Ao tratar da vida, a pesquisa quer alertar para a falsa impressão de que poderia algo/alguém viver isoladamente, numa ilha, e
morto para tudo o mais, e para a falsa ideia de um viver movido pela mesmice e mera repetição do
passado, deixando escapar o caráter intrínseco da evolução, que pela Sabedoria, continuamente gera
novidades e renova todas as coisas (cf. Sb 7,27). Há muitas teorias sérias que estudam o surgimento
da vida no universo. Sem privilegiar uma teoria em relação a outra e, na impossibilidade de abarcar
a todas, a pesquisa traz presente o pensamento de Lee Smolin devido sua seriedade científica e
porque possibilita um diálogo antropológico cristão, a partir de um viés que não seja
tendenciosamente teológico. Seus argumentos sinalizam para uma realidade que exige atenção ao
existente processo complexo dos seres, isto é, a realidade que se apresenta como relações e conexões
em todas as direções. 95 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 155. Tradução minha.
76
espécies. Este processo e busca permanentes, de forma a sempre alterar-se, bem
como modificar e ser modificada pelo seu ambiente, o que faz ver que ela necessita
de certo desequilíbrio96.
Só se experimenta a vida como um sistema dentro de sistemas mais amplos.
Esta experiência permite concluir existencialmente que tudo está interligado,
interconectado. Cada ser é responsabilidade e cuidado com a vida. Nós, homens e
mulheres, pelo fato de escolher, de ter um propósito, fosse vil ou altruísta, nossa
vida se diferencia. O animal, a pedra e o vegetal estão no mundo, mas são
indiferentes. Ao ser humano é dado escolher como vivenciar a vida.
A descrição da vida como fenômeno físico-químico não faz referência
qualquer a uma transcendência, hipotética que fosse. Embora não ignore as
diferenças próprias dos seres vivos, a proposição de Lee Smolin fala dos diferentes
sistemas vivos como sistemas que compartilham muitas características comuns,
ainda que não todas. Aceita esta tese, o antropocentrismo deixa de existir, o ser
humano sai do seu pedestal, do vínculo piramidal, que ele mesmo criou, para estar
em relação circular com todo ser vivente. O humano e a terra inteira são relação de
uns para com os outros, mas relação que explica dentro dos padrões da físico-
química.
Subjaz no mais profundo de todo ser humano a tensão permanente entre
interioridade e exterioridade, entre a concretude do espaço e tempo, e o impulso
para o ilimitado, a abertura para o transcendente. O ser humano é vida, e a
consciência de ter vida capacita-o à transcendência da vida. O Espírito Santo,
doador da vida, confere este dom à consciência humana.
A exuberância de vida é concretizada para além de um coração em bom
funcionamento, mais que a beleza de um corpo bem trabalhado, mais que a última
e, quem sabe, colossal descoberta científica. Como descoberta do segredo da
origem da vida, a ciência apresentou o DNA considerado, até o momento, o
composto orgânico responsável pelo fenômeno da vida por definir o código
genético.97 Em torno desta descoberta erguem-se enormes expectativas. De seu
controle, espera-se mais que a conquista da perfeição na saúde, no vigor físico.
96 Afirmar que os sistemas vivos estão afastados do equilíbrio tem consonância com a 2ª. Lei da
termodinâmica. 97 O DNA, ácido desoxirribonucleico é uma descoberta científica datada dos anos 60. Ele contém as
instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento dos seres vivos e
possibilita conhecer as características hereditárias de cada ser vivo.
77
Espera-se melhorar biologicamente o corpo e prolongar vida, possivelmente, de
maneira ilimitada.
Na leitura teológica, a abundância da vida pode ser ilustrada na imagem do
Pastor que bate à porta e entrega-se como oferta gratuita e abundante de vida.
Enquanto o desperdício pode ser atribuído à imagem de dominação da vida,
verdadeiros ladrões e assaltantes que se fazem passar por messias e salvadores da
pátria. Trata-se mais de um movimento de propagação vertical, onde há dominação
de uns sobre outros. Podem até proporcionar uma salvaguarda da vida para uns
poucos em detrimento de muitos outros. Mas nunca será vida plena, nem na história
nem depois dela.
No que tange a vida do ser humano, não seriam os ladrões na pós-
modernidade este movimento de socialização que, no centro do deserto social,
ergue um indivíduo informado, livre, administrador da sua vida, e cujo processo de
personalização é baseado no capital estético, afetivo e libidinal? Não será um
processo de massificação e repressão da criatividade e liberdade? Que ser humano
resultará de um processo de personalização assentado na aceleração das
tecnologias, no consumo de massa, no psicologismo? Será de fato sustentável a
reivindicação pelos pós-humanistas de uma humanidade apoiada na construção de
um organismo transformado através de próteses tecnológicas ou intervenções
genéticas (cyborg), como humanidade, ou realmente como já não humana?98 No
momento, são perguntas que ficam em aberto. Entretanto, podem ser decisivos, para
uma resposta eficiente, tanto o tempo para discernir os efeitos destes movimentos
como a atitude para com a vida.
O movimento Jesus traz à cena a Encarnação. Os antigos gregos partiam da
sua realidade concreta humana, como a medida de todas as coisas99. No centro da
reflexão antiga achava-se sempre o homem e o seu destino: em relação consigo
mesmo, em relação com o mundo e em relação com a divindade. O pensamento
grego desconhecia o sujeito particular, concreto, individualizado, que se conhece a
98 Esta última questão foi bastante discutida durante o simpósio sobre o humano e o pós-humano.
Para uma leitura das conferências na íntegra, consultar: “Anais do Simpósio X Simpósio
internacional filosófico”. 99 A proposta basilar do pensamento de Protágoras era: “o homem é a medida de todas as coisas,
daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são” (princípio do
‘homo mensura’). Por “medida”, Protágoras entendia a “norma de juízo”, enquanto por “todas as
coisas” entendia todos os fatos e todas as experiências em geral. Tornando-se muito célebre, o
axioma foi considerado — e efetivamente é — quase a magna carta do relativismo ocidental. Cf.
SOUZA, J. C., Os Pré-socráticos.
78
si mesmo, um ser individual, não marcado ainda pela percepção da interioridade,
legado do cristianismo nem, muito menos, da individualidade, construção moderna.
O humano pós-moderno não se compreende mais como a medida de todas
as coisas, na acepção grega, nem na acepção cristã de pessoa e nem mesmo na
acepção moderna de sujeito da história. Emerge uma nova subjetividade: o
indivíduo quer apenas usar a tecnologia em seu proveito, estar no controle. É a
informação é que propicia os nutrientes para sua existência. A tecnologia será a
salvação dos limites. Ela é a medida de todas as coisas, e promessa da imortalidade.
Naturalmente não se pode dizer que todos estes “benefícios” são destinados ao
indivíduo. Mas a questão é que o indivíduo, renunciando a suas escolhas e aceitando
fazer o que lhe dita a tecnologia, renuncia, em última instância, à própria
individualidade. O individualismo, levado ao extremo, destrói o indivíduo. O
simples lazer já deixa de ser criativo para ser cada vez mais competitivo e
segregado. Na política, a única opção considerada é a que respeite as regras do jogo
econômico. Inaugura-se uma nova regra de ouro a ser obedecida: “não gastar mais
do que arrecadam”100, mas isso sem questionar o que vai para o desperdício ou o
que vai para o cuidado com a vida.
Neste cenário, a encarnação é irrelevante. Ela é por demais imprevisível.
Marcada pela historicidade, presa à temporalidade, ela deve ser desprezada,
manipulada, suprimida. A promessa de um futuro encantável provém da técnica,
não de Deus.
Como sequência, o ser humano acredita não ser mais criatura de Deus. Mas,
assegura sua salvação no conhecimento. Assim, para obter êxito, procura adquirir
um ‘conhecimento’ de certo misticismo, quiçá gnosticismo religioso, abandonando
a base de um conhecimento teológico e volatizando o conteúdo da Sagrada
Escritura. Neste horizonte, acredita que um deus transcendente comunica-se por
emanações que no conjunto constituem a plenitude da divindade. Apenas alguns
seriam capazes de, pelo conhecimento gnóstico, dar um sentido pleno à vida
presente. Em síntese, este ser humano acredita ser o criador de deus. Como dizia
Voltaire, o homem cria deus à sua imagem e semelhança. O ser humano privado da
100 JORNAL NACIONAL., “Governadores abusam dos gastos e empurram contas para o futuro”.
79
sua identidade e unicidade tem se colocado refém de um processo de massificação,
habitando um reino do sem-sentido101.
São, pois, dois reinos desconexos. O primeiro, construído pelo ser humano,
busca esconder sua existência aberta ao transcendente, baseado em um projeto pós-
humano de criar-se. O outro tem Deus em sua liberdade e amor como fundamento
da criação de pessoas humanas. Em suma, como compreender a Encarnação de
Deus, que se faz verdadeiramente um como todos os humanos, se o ser humano não
aceitar as limitações, a doença, a mortalidade?
A civilização pós-moderna regozija-se de sua exuberância. A pletora de
bens, os avanços técnico-científicos, a multiplicação de meios de comunicação
social, evidenciam uma evolução profunda e rápida em um curto período de tempo.
É gratificante constatar o poder da inteligência humana e seus projetos de
superação. Patenteia-se a tendência do ser humano sempre orientado para o mais e
o melhor, indefinidamente. Por todos são reconhecidas as grandes descobertas
marítimas, que garantiram o conhecimento de novos céus, novas terras e novas
gentes. O contato com outras culturas deflagrou processos críticos da visão de sua
própria sociedade. A expansão dos meios de comunicação social, conectando
pessoas em frações de segundos, quebram as barreiras da distância, valorizam
novos arranjos de trabalho, aproximam culturas e gentes. A evolução e o acesso
tecnológico podem resolver muitos dos grandes desafios da humanidade, a partir de
múltiplas fontes, como nos campos de energia, alimentação, purificação e reuso de
água a baixo custo, etc.
Por exemplo, o mapeamento genético possibilita a descobrir correlações
entre doenças e o nosso DNA. Acredita-se que, num futuro próximo, será possível
prescrever medicações personalizadas de acordo com o DNA específico, ou seja,
desenvolver medicamentos para cada indivíduo baseado em sua informação
genética. Com as impressoras 3D será possível a produção de peças, como
brinquedos, joias, implantes médicos e até mesmo vestuário. A forma de compra e
venda será inovada, diferente até mesmo do ‘e-commerce’ destes inícios do Século
XXI.
101 Donna Haraway explicita que a subjetividade é uma construção em ruínas e a unidade do humano
está dissolvida, pois a integração agora passa por uma máquina. HARAWAY, D., A cyborg
manifesto.
80
Em suma, o vínculo entre ciência e conhecimento tecnológico fez surgirem
objetos que não só facilitam a vida humana, mas aumentaram a expectativa de vida.
E esses são apenas alguns pontos a ilustrar a afirmação de evolução e progresso.
Cada pessoa encontra-se rodeada de objetos, de fartura virtual e, paradoxalmente,
sofre-se com a ausência mútua uns dos outros. Hoje, como nunca, as relações,
podem ser muito próximas entre pessoas muito distantes, em razão da expansão dos
meios tecnológicos de comunicação social e dos efeitos da globalização com a
queda de fronteiras. No entanto, dentro do processo mesmo da globalização vigora
um processo de exclusão, considerado inevitável. Surgem novas formas de
alienação e exploração das massas. Para ilustrar, bastaria, por exemplo, levantar
estatísticas da baixa participação no processo eleitoral. O acesso às riquezas fica
somente para alguns indivíduos. Para as multidões fica a alegria de ter adquirido o
último modelo do dispositivo eletrônico lançado mais recentemente.
Que valores justificariam, ideologicamente, um sistema tão perverso com
relação à vida? Como resultante do processo de desenvolvimento, impõe-se,
globalmente, uma cultura de classe e um ambiente hostil ao outro. Trata-se de uma
política com objetivo estratégico ilimitado, que ignora as necessidades e desejos
humanos reais e os limites dos recursos da terra. Com efeito, a pós-modernidade
evidencia a crise de um paradigma102, de um sistema de crenças e certezas.
Conforme visto, a modernidade consistiu em dar explicação à realidade, a colocar
sua confiança no progresso ilimitado e lançar um discurso de secularização dos
conteúdos básicos da teologia, toda esperança tinha que vir da razão. E a pós-
modernidade pode ser caracterizada como descumprimento de tais promessas,
conforme afirma Lipovetsky, uma época em que o futuro deixou de ser assimilado
a um progresso103. Há uma deslegitimação da esperança na razão, não há razão para
esperar. A falta de fundamentos ou mesmo a renúncia ao sentido é o que melhor
define o momento atual pós-moderno. A pós-modernidade, portanto, mais parece a
manifestação concreta de uma crise de anomalias que recusam o modelo anterior,
do que o estádio de aparecimento de um novo modelo majoritariamente aceito.
102 Para uma leitura sobre paradigmas e suas interferências na civilização humana e no pensamento
teológico ver: KÜNG, H. Teologia a caminho, pp. 150-191; QUEIRUGA, A. T., Fim do
cristianismo pré-moderno, pp. 12-57. 103 Cf. LIPOVETSKY, G., A era do vazio, pp. 10-11.
81
A ideologia do progresso pensa a produção em função do máximo lucro;
tecnologias sempre mais sofisticadas, independente do seu impacto social e
ambiental, para aumentar a produtividade do capital; máximo consumo, que gera
diversas doenças sociais, o desperdício, o excesso de lixo, a distorção dos valores
culturais e humanos.
Nesta lógica, abundância e desperdício se coadunam e se amalgamam
desequilibradamente. Em se tratando do consumo, a sociedade defende seu existir
e seus valores no excessivo consumo. O consumo é colocado para além da
necessidade. O supérfluo ocupa o lugar do necessário. A abundância demasiada faz-
se necessidade, subordinando e governando o que seja necessário, supérfluo, e até
o viver. Desperdiçar a abundância, gastar passa a ser o único fim. Esta sociedade
de consumo necessita dos objetos para existir e sente, sobretudo, a necessidade de
os destruir, como sinal de renovação. O ideal de haver excesso da abundância para
desperdiçar constitui a referência absoluta de uma vida feliz.
Homem e mulher têm renunciado a sua autonomia, de modo que o tempo
dos objetos determina e delimita o tempo dos sujeitos e das relações intersubjetivas.
O ser humano é agora definido como ser de consumo, e compõe uma sociedade
consumista. O consumo intenso, sofisticado provoca na pessoa a sensação de existir
e de viver. Na verdade, a questão que se coloca é a do princípio fundamental,
norteador da vida, nesta sociedade: O ser humano deve organizar sua vida em
função do possuir, do consumir ou em função do profundo sentido, pessoal e
comunitário, que dá a sua própria vida. O sentido da vida está em comunicar-se.
Quando se opta pela primeira via, os interesses mudam, caem os princípios
teológicos, a luta pela existência é compreendida como luta pelo prazer, pelo poder
e pelo ter. Quanto mais, melhor, mais rápido e permanentemente. Inaugura-se uma
tenebrosa fragilidade das relações humanas. O ser humano deixa de ser visto de
forma integrada e globalizante, e passa a uma forma dualista, fragmentada. Esta
visão confunde a unidade sagrada do ser humano, e prorroga, indefinidamente, a
promessa de ser a resposta às questões vitais do homem e da mulher. Escamoteia-
se de maneira sedutora e escravizadora. Contudo, subjacente a estas relações
descartáveis está a busca pelo sentido maior de sua vida, o princípio de tudo.
Bauman concebe que a vida é uma obra de arte, onde somos incansáveis
artistas da esperança em meio às incertezas humanas. Não há padrões estabelecidos,
nem prognósticos fidedignos determinantes. No decurso da vida, o impossível pode
82
tornar-se o possível. Ele estabelece um paralelo entre a busca da felicidade humana
e o crescimento econômico, e conclui ser bastante ambíguo o tornar-se rico para ser
uma pessoa feliz.
Qualquer que seja a sua condição em matéria de dinheiro e crédito, você não vai
encontrar num shopping o amor e a amizade, os prazeres da vida doméstica, a
satisfação que vem de cuidar dos entes queridos ou de ajudar um vizinho em dificuldade, a autoestima proveniente do trabalho bem feito, a satisfação do
“instinto de artífice” comum a todos nós, o reconhecimento, a simpatia e o respeito
dos colegas de trabalho e outras pessoas a quem nos associamos104.
A felicidade humana fundamentada no progresso econômico protela
infindavelmente sua realização última. Ela fracassa em fazer sobressair o sentido
da vida, substituído pela angustiante e permanente necessidade de adquirir,
consumir, conectar, atualizar, ter, correr. Os meios se tornam fins, mas não existe
limite, nem ponto de chegada. O exemplo claro podem ser as redes sociais. De certa
forma elas permitem à pessoa comunicar-se com o mundo inteiro. Mas sem
conteúdo próprio, a pessoa limita-se a repetir piadinhas de outrem ou encaminhar
mensagens piegas ou assemelhados. O ser humano experimenta-se sem lugar no
universo que seja seu próprio, um ser errante. Nenhum lugar é sua casa. Configura-
se a assimetria e o nada, sem conferir algum sentido à sua existência. O universo
infinito é destituído de valor e sentido. Está sempre à deriva, sem poder conhecer
seu princípio e o seu fim. Neste estágio, sente estar em uma ilha habitada pelo nada.
É a total ausência de relação e de fuga do próprio eu.
Esse modelo de civilização incentiva o patriarcalismo, remetendo a relações
sociais de competição, agressividade, comandadas pela consciência egológica. Sua
urdidura dá por justificada a necessidade de desigualdade econômica, social,
política, religiosa, cultural. Faz da lógica do lucro o legitimar a vida. Isso inclui a
corrupção política, o narcotráfico, a prostituição, inclusive infantil, o tráfico de
órgãos, o trabalho escravo, destruição de ecossistemas. Sua lógica se faz persuasiva,
pelo discurso da eficiência: Ela mostra resultados. O fruto desta lógica persuasiva
é a degradação humana, a perda de sentido ético, a autodesvalorização, a alienação,
a doença, o suicídio, a degradação ambiental que põe em risco a própria vida na
terra.
104 BAUMAN, Z., A arte da vida, p. 12.
83
A pessoa busca pela vida que se realiza na imanência da história, no entanto,
esta concretização não a exaure. É a tensão aberta pela orientação para o absoluto e
o inadequadamente realizado. Alimenta-se a esperança por um amanhã melhor. A
esperança é um dinamismo não objetivável, mas experienciável. É um princípio:
transcende cada ato e não pode ser aprisionado por nenhuma articulação concreta.
A utopia parte de uma experiência e anseio humanos105.
O ser humano é um ser de relações com direções múltiplas, que incluem o
Infinito. Ele quer sempre mais que sua realidade concreta, por isso, nenhum ato,
nenhuma dimensão concreta, esgota o dinamismo do seu querer. Espera, planeja e
deseja manipular o futuro. É projeção para um sempre mais, para a surpresa que
está fora de sua pré-visão, para o Ainda-não. Isto indica que não possui o centro em
si mesmo, mas fora, no Transcendente.
O contraste entre o progresso contemporâneo, com seus recursos e sua
exuberância, transforma a ausência de sentido, imposta a milhões de seres humanos,
numa violência e escândalo para a dignidade humana. Por isto homem e mulher
protestam contra a corrupção e massificação da vida. Parafraseando a música
“Comida” da banda de rock brasileira Titãs, a vida não é só comida, diversão e arte.
A vida humana não é só bios. Trata-se de um dinamismo vital que não é só um
elemento a mais nesse mundo. Há que se pensar também nas obliterações das
identidades sociais, geradas muitas das vezes pelos ditames do consumismo. A
consciência de ser vida impele a pessoa a falar por meio de suas relações. No
entanto, a linguagem não contempla todo seu sentido. Relação torna-se uma
categoria, importante, embora frágil, para contemplar a totalidade da experiência
da vida. A atitude adequada para a vida é a do cuidado, fruto da experiência do
Mistério do Deus-Trino. A Trindade revela de si mesma o mistério do ser de Deus
como superabundância de comunicação.
A interrogativa do ser humano pelo sentido da vida põe a questão do
desperdício de abundância de vida, não só humana, e de suas variações segundo os
tempos e as culturas. O ser humano é submetido a condicionamentos biológicos,
sociológicos, psicológicos, mas não se trata nunca de determinações absolutas. O
ser humano realiza-se como pessoa na medida em que reconhece os
condicionamentos, julgando-os em função do que considera seu ímpeto de fazer o
105 Cf. SOBRINO, J., A fé em Jesus Cristo, p. 32.
84
bem e evitar o mal, de agir de maneira sensata, justa e responsável. E isso no
horizonte de um Transcendente, que a ama na total gratuidade e liberdade.
O ser humano é constantemente provocado a fazer escolhas que o orientam
ou não para a vida. O caminho se faz caminhando, orientados por um jovial e pleno
sentido de viver. Importa fazer da vida uma verdadeira casa humana de modo a
propiciar o cuidado face à complexidade das relações. O ser humano é um ser ativo,
capaz de compreender e transformar as relações históricas, de distanciar-se do seu
mundo e voltar-se sobre si. Nesta qualidade, cria a comunicação com os outros,
canta sua experiência, denuncia a morte, busca pela sua humanização. Em seu grito
pela vida, coloca-se a questão do sentido da vida.
2.3. O ser humano grita pela experiência do sentido da vida
Ao trabalhar o sentido da vida urge um aprofundamento na realidade da vida
concreta, como a realidade do significado das palavras. As palavras são sempre
polissêmicas e precisam ser situadas segundo seus diversos campos semânticos,
históricos e acadêmicos, e, particularmente, porque esta pesquisa direciona-se à
experiência vivida pelo ser humano. A experiência é vivida no mais íntimo da
consciência, ou ainda, no coração, empregando a linguagem bíblica. Ao ser
comunicada, sempre alguma coisa estará sujeita a interpretação. No momento em
que é vivida, tem tempo e espaço precisos. Sua interpretação constrói uma reflexão
maior, um pensamento teórico que preserva os ganhos adquiridos, as etapas
vencidas. Ela mostra desejos, êxitos, alegrias, conflitos, injustiças, frustrações,
anseios de felicidade, compromissos de justiça, solidariedade, busca de
santidade106. Na pós-modernidade, a densidade da experiência pode ser descrita
como o resultado de profundas e rápidas mudanças. Portanto, focalizar uma
experiência no horizonte do sentido da vida implica examiná-la, comprovar sua
intensidade, integrando-a no caminho do ser humano.
Dizer ser humano implica sempre uma definição em aberto. Implica ser de
dignidade e de inteligência, de cuidado e sensibilidade. O humano é capaz do
106 BRANDÃO, M. L. R., Evangelho e experiência humana, pp. 70–72.
85
desumano: capaz de produzir violência e barbáries contra si mesmo e outras
criaturas. Conhece a dor da ferida e da fragmentação em sua dignidade. Vive a
tensão da ambivalência. Com os pés no chão da realidade, tem sua vista para o
passado que lhe assegura a esperança de chegar à terra da Promessa e vai atrás do
futuro de desejos que o impulsionam a construir-se na história, rumo à sua plena
humanidade.
Em todos os tempos verificam-se mudanças. O que faz a pós-modernidade
é acentuar sua rapidez e pôr em questão os fundamentos que pareciam consolidados,
atingindo a própria construção da existência. Ela produz, igualmente, uma
substantivação do múltiplo, ao lado de uma dessubstantivação das diversas
realidades, além da negação de qualquer princípio unificador da realidade, enquanto
conjunto. Ela considera insignificante a pergunta pelo sentido das coisas, pois a
verdadeira realidade acontece no suceder de eventos, sem fundamento no ser, para
finalmente desembocar no horizonte do nada.
Contudo, talvez neste tempo mais que em outros, presencia-se uma súplica
desesperada que brota do interior do ser humano, revelando que as brasas se
mantêm acesas por uma experiência humana, no horizonte da plenitude, que
considere o sentido de sua existência. Não estará aqui a busca de uma realidade
unificadora diante da multiplicidade das vorazes mudanças e ambivalências
prementes do ser humano? O grito de súplica da criatura não será eco da voz do
próprio Deus? Um grito prenuncia alerta, clamor, emergência. Sinaliza desordem.
Reclama uma escuta unida a uma ação que capacite seu autor à restituição de seus
direitos. O ser humano grita pela experiência do sentido da vida. E não só ele:
gritam também outras criaturas107.
Favorecidas pela pós-modernidade, por todos os lados chegam vozes que
atingem toda sua existência: o que vale é o impulso científico-tecnológico. As
teorias da evolução, da relatividade, da física quântica, da psicanálise ganham
espaço. Ao lado disso, impera a razão instrumental. A utilização dos meios de
comunicação virtual avança enormemente. As ciências médicas progridem. A
humanidade chega mesmo a sonhar com sua transformação num ser pós-humano,
107 “O barulho causado pelos quase 8 bilhões de humanos está atrapalhando a comunicação de outras
espécies. Segundo uma pesquisa científica, macacos, baleias, peixes e várias outras espécies animais
estão sendo obrigadas a falar mais alto para superar a balbúrdia humana, de acordo com a revista
Science Mag. Esse fenômeno é chamado de efeito Lombard. É a primeira vez que ele acontece
debaixo d’água”. YAHOO., “Barulho humano obriga peixes a gritarem uns com os outros”.
86
no qual a longevidade substituiria a eternidade e a transmissão de dados ofereceria
uma espécie de ubiquidade. Assim, “o principal fator dessa transformação é a
superação dos limites do tempo e do espaço, provocados pela corporeidade do
humano. Nesse sentido, a tecnologia possibilita o decisivo passo para o pós-
humano” 108. Disto advêm o desenvolvimento e a crise, com seus benefícios e
malefícios da crescente globalização. Eclodem os problemas ambientais; as
ciências humanas e da natureza elevam a voz. Grita a terra, gritam os pobres.
Muitos debatem em torno do valor que tem sido dado à vida, o que de per
si, já é sintoma de que a vida, não só humana, grita por seu valor. Importa, então,
examinar alguns dos fatores, mais interessantes e prioritários para esta pesquisa, a
fim de apontar caminhos que visem libertar a vida do jugo da escravidão. Este
exame deve dar-se numa escuta efetiva e afetiva do ser humano, de modo a
proporcionar a reintegração de sua dignidade e voltar seus pés para a terra onde
corre leite e mel; terra onde habita o sentido da vida.
Eclodem na pós-modernidade, as ideologias que ditam o modo de viver e de
conviver. Apontam o indivíduo, como referência central e colocam seus desejos e
impulsos, a satisfação de suas necessidades individuais como medida da felicidade.
Aliado a isso está o interesse técnico que dá a primazia ao que pode ser medido,
calculado e comprovado. A pós-modernidade esquece a comunicação109, ou seja,
desfaz as dimensões humana, afetiva, social, cultural, subjetiva e transcendental
para concentrar-se em acúmulo de informação e vivências líquidas.
Os reflexos deste quadro sobre a vida são imediatos e impactantes. Espaços
novos e artificiais substituem o convívio humano. Estabelece como prioridade viver
na ‘rede virtual’, sob o comando eletrônico dos detentores do poder da comunicação
e, o mais das vezes, sem dar-se conta disso. Há um encanto com a imagem, tudo
numa imitação da vida real.
108 MANUEL DUQUE, J., “Realidade, virtualidade e relação”. 109 A origem etimológica da palavra comunicação é de auxílio para compreender não apenas seu
significado e abrangência, mas principalmente, ao grito humano por uma experiência que confere
sentido a vida. ‘Comunicação’ deriva do latim. Compreende o ato de repartir. Tornar comum,
communis. Vincula-se à palavra ‘comunhão’. Comunicação e comunhão implicam menos uma ação
de oferecimento, sendo mais uma resposta com outro, pois parte de um dom já dado. Nesta vertente,
comunicação é o estar unido pela/na comunhão; é dom partilhado, reconhecimento mútuo assentado
numa relação gratuita, firmada pela abundância do coração, do reconhecer o outro, não pelas
categorias que se estabelece sem o outro, mas pelo que o outro também apresenta. É uma relação
envolvente, configurando uma dimensão da pessoa que se abre à alteridade e se descobre em direção
ao Mistério. Na ótica do sentido da vida, desprezar a comunicação é caminho de não integração nas
dimensões constituintes da relação humana, é não encontrar o sentido da vida.
87
A cultura da imagem transforma a realidade social, econômica, política e
cultural em realidade virtual. As técnicas de marketing influem fortemente sobre a
capacidade de decisão. As tecnologias informáticas e cibernéticas redimensionam
o sentido da realidade e as noções de espaço e tempo. O virtual e o real se
confundem formando um “espaço antropológico interconectado na fonte com os
outros espaços da vida” 110. Uma vivência fluída da vida diária forja um novo
contexto existencial. Enquanto até a Modernidade, podia-se ainda dizer que, apesar
de toda contradição, as culturas visavam criar o espaço humano da comunicação, o
virtual agora gera o espaço desumanizado da transmissão de dados. “A nossa época
é uma época de comunicação global, onde muitos momentos da existência humana
se desenrolam através de processos midiáticos, ou pelo menos, se devem confrontar
com eles”111.
A tecnologia e mídias digitais exibem tanto perspectivas do futuro quanto o
desejo humano premente de comunicar-se, conhecer e relacionar-se. Nesta lógica,
viver e conectar são sinônimos. As ferramentas midiáticas são disponibilizadas para
responder antes de terminar a pergunta. É o caso, por exemplo, dos sites de buscas
onde as respostas são definidas já na digitação. Não há tempo de terminar a pergunta
e já chegam as respostas prontas, orientadas e programadas. Talvez até se pudesse
fazer uma analogia deste fato, comparando com o amante, que se antecipa aos
desejos da amada, como a escritura diz que o Senhor faz com relação a seu povo.
Mas o fato de serem as respostas programadas, dizem antes, infelizmente, que se
trata de mecanismo, nem sempre sutis de imposição de valores.
O volume de informação disponível pelas tecnologias é maior do que a
imaginação possa examinar. Na verdade, seu objetivo é ser interminável. Isso cria
uma necessidade de estar dia e noite no controle da informação, online, mas que na
verdade jamais poderá ser satisfeita. Numa paráfrase, sempre “tornará a ter sede”
(cf. Jo 4, 13) de outra informação.
As páginas dos jornais são bem abastecidas com análises sociais, políticas,
econômicas, culturais, todos os dias. Presencia-se um frenesi pelos últimos:
números, descobertas, acontecimentos, dos últimos milésimos de segundos, ou
como habitualmente se diz, em tempo real. Os dados são atualizados por iniciativa
do próprio servidor, sem necessidade de pensar-se ou executar-se um gesto. A vida
110 SPADARO, A., Ciberteologia, p. 18. 111 JOÃO PAULO II., Carta apostólica ‘O rápido desenvolvimento’, n. 3, p. 6.
88
é envolvida numa reprodução sistêmica e fechada. Um verdadeiro organismo, mas
sem corpo; uma voz dominante, mas sem boca; um elemento presente na vida, mas
sem aparência; união germinada nas imagens e nas vozes projetadas por um
programa operacional duro e frio. Esta sim, uma verdadeira idolatria.
Da idolatria, surge o desequilíbrio vital. Há inversão na orientação de
valores, prioridades e necessidades. A vida é envolvida numa hipertrofia de valores
materiais e numa atrofia de valores humanos e espirituais. Em decorrência, há a
sensação de vazio existencial. A tentativa de compensação por meio de
transferência inconsciente de significação, isto é, a transferência do afeto, para algo
que não pode dar afeto, mais reduz o direito e fere o valor de ser humano. A vida
fica deserdada.
Bem arquitetado, o ídolo justifica seu discurso a partir do interior da própria
vida, difunde falsos bons propósitos. Esta ação que traz o risco de fracasso, de
desvio e de perversão do verdadeiro sentido da vida. O grito pela vida humana
precisa ser entendido em termos de humanização. A dimensão ética da vida abrange
uma profundidade maior a ser situada dentro do horizonte cristão. Urge identificar
as respostas que verdadeiramente dão sentido à existência em sua totalidade. Urge
encontrar um centro forte capaz de dar unidade à fragmentação das mensagens.
Urge escutar os gritos a uma vida de sentido dentre os quais denunciam os ídolos
que fragmentam a vida.
Por exemplo, o desejo pelo bem, intrínseco ao humano, é manipulado e
coisificado, de tal forma, que pode voltar-se contra si mesmo. Como ser de desejo
e direcionado para o infinito, o ser humano não se contenta com sua realidade
presente. Quer ser o construtor de sua própria vida, não bastando, quer ser o
absoluto de todas as vidas. A realidade gritante da denúncia da Igreja na América
Latina aponta para o caminho de absolutizar o que não é absoluto. Esta via destaca
um problema de suma importância para o sentido da vida, pois é esta absolutização
a fonte de tanta corrupção, tantos desajustes emocionais, tanta exploração e falta de
perspectiva expostos a olho nu. Na linguagem mais tradicional, esta absolutização
é o pecado.
No desejo de ser o absoluto, que leva o ser humano a colocar em seu lugar
realidades as mais diversas, como foi apontado, uma primeira questão que se coloca
é o fato de o ser humano trazer também em si desejos de morte. Nele perpassam as
sombras, o não-sentido, as limitações, as preferências que excluem. É relevante
89
assinalar as duas forças que habitam em toda pessoa, no dizer paulino. “O querer o
bem está a meu alcance, não, porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que
eu quero, mas pratico o mal que não quero” (Rm 7,18-19).
Brevemente, vale trazer aqui, uma leitura religioso-psicológica deste
dualismo que palpita, permanentemente, no ser humano. Na linha de Jung, citado
por Anselm Grün, sombra é tudo aquilo que a pessoa rejeita por não corresponder
ao ideal que faz si mesma. Já a humildade é resposta de acolhida interpessoal de
seu real e seu ideal de vida. A integração passa pelo caminho de reconciliação entre
a realidade e a idealidade que a pessoa e os outros têm de si. Afinal, “sozinhos ainda
não somos o palácio; somos o estábulo das coisas corriqueiras e cotidianas, e
estábulo nem sempre cheiroso, onde também há bagunça, há coisas que gostaríamos
de esconder do olhar das outras pessoas”112.
Assim, o ser humano não tem só desejos do bem, da promoção humana, da
fraternidade, de vida. Habita nele, também, o mal, a exclusão, o egoísmo, a morte.
Buscar ser pessoa é assumir estas duas forças, pois esta é sua identidade e beleza.
Ignorar esta dualidade leva a atitudes como o rigorismo moral. Nele as normas
morais são absolutizadas e, como tal, tornam-se idolátricas. A outra é a atitude que
foi apontada: estatuir como doador de sentido da vida aquilo que é apenas uma
particularidade. Somente adentrando esta história, de luzes e sombras, experimenta-
se Aquele que veio até a sua própria terra anunciar o Reino de Vida.
Uma segunda, e mais preocupante questão, é que ao desejar ser o Absoluto,
o ser humano quer ser outro que não ele mesmo. Em suma, nega sua existência. Em
seu desejo de conhecer Deus, busca menos manifestar o ser de Deus, o qual é
sempre maior, e mais manifesta a limitação humana diante do ilimitado. Descuida
que “a revelação de Deus em Jesus, a revelação cristã do Deus uno e trino, é um
confronto com um mistério cada vez maior”113. A Encarnação de Deus, acontecida
em Jesus, não explica racionalmente a totalidade do ser de Deus ou seu mistério. O
conhecimento de Deus é sabido dentro do conhecimento humano. Deus revela antes
de tudo o mistério de seu próximo e infinito amor. Revela-se na história, mas esta
112 GRUN, A., Amadurecimento espiritual e humano na vida religiosa, p. 23. O autor compreende
que as pessoas que possuem humildade conseguem reconciliar-se com Deus e consigo mesmas, e
sabem acolher o diferente no respeito e no perdão. Adquirem a integridade pessoal viabiliza
aproveitar as oportunidades para crescer nas relações. 113 LADARIA, L. F., O Deus vivo e verdadeiro, p. 24.
90
não esgota o ser de Deus. Na frase célebre de K. Rahner “A Trindade que se
manifesta na economia da salvação é a Trindade imanente e vice-versa”114.
É consenso que o possuir bens e o desejo de construir a vida, não são em si
negativos. Mas sua conversão em absoluto perverte a vida em todos seus aspectos,
pois gera riqueza de um lado e miséria do outro. Bens tornam-se ídolos, que por sua
natureza ou seu dinamismo histórico, geram fome, desemprego, doenças,
violências, feridas na dignidade humana, na medida em que geram acúmulo,
exclusividade e outras provas de egoísmo. Desejos que buscam sua satisfação pela
via da comercialização, ou seja, não pela via do contato dialógico de pessoa a
pessoa, mas pela intermediação do dinheiro, culminam, na verdade em uma fuga
do encarnar-se na realidade. Eles induzem ao vazio e ao hedonismo como sinônimo
de felicidade. São como uma roupa que ostentasse em sua etiqueta: serás feliz se
assim consumires! O ato de assumir esta forma de absoluto produz a inversão dos
meios pelos fins, do caminho pela porta de chegada, da orientação pelo efeito
resultante. Isso é, no fim das contas, escamotear sua humanidade.
Voltando ao homem medida de Protágoras: “o homem é a medida de todas
as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo
que não são”115. Com o princípio do ser humano-medida, este filósofo negava a
existência de um critério absoluto que discriminasse o ser e não-ser, e todos os
valores. Modernamente, a exacerbação deste relativismo, estabelece como critério
único somente o indivíduo. Assim, as coisas existem tal como aparecem para cada
um. Então, sendo assim, ninguém está no erro, mas todos estão com a verdade, isto
é, a sua verdade.
Aquele que grita pela dignidade de uma existência com sentido, denuncia a
realidade de exploração que o torna pobre, na qual a violência e a morte são
114 RAHNER, K., Dieu trinité, p. 29. Não cabe aqui discutir a compreensão posterior da Teologia
no que tange ao “vice-versa”, ou seja, a Trindade imanente é a que se manifesta na Trindade econômica. Entretanto, um breve esclarecimento dado por Ladaria sobre este axioma fundamental
rahneriano “A identidade entre Trindade econômica e Trindade imanente deve ser entendida no
sentido de que por uma parte, Deus se nos dá e se revela tal como é em si mesmo, mas que o faz
livremente, isto é, seu ser não se realiza nem se aperfeiçoa nessa autocomunicação; e que por outra
parte nessa revelação Deus mantém seu mistério, sua maior proximidade significa a manifestação
mais direta de sua maior grandeza”. LADARIA, L. F., O Deus vivo e verdadeiro, p. 49. Nesta mesma
explicitação à formulação de K. Rahner pode ser encontrada, por exemplo, em: LADARIA, L. F., A
Trindade, pp. 11-64; VORGRIMLER, H., Karl Rahner, pp. 281-289. SESBOÜE, B., Karl Rahner,
pp. 68-72. 115 REALE, G., História da Filosofia Antiga, pp. 200-202. Ideia similar encontra-se no Mito de
Procusto.
91
noticiadas, muitas das vezes, a olho nu. Isso leva à percepção de um tremendo
contraste: da riqueza com a pobreza, da vida de uma minoria com a morte das
maiorias. Seu grito não é pelo supérfluo, nem pelo luxo, mas por aquilo que é
inerente à própria existência.
Todos anseiam por uma vida, cheia de sentido. No entanto, o grito do
excluído difere do grito daqueles que têm garantidos seus privilégios. Para estes,
abastados a busca pelo sentido da vida reduz a ações como a busca por uma carreira
agressivamente construída e pelo bem-estar individual. Na verdade, nem a família,
por exemplo, entra em seus cálculos, pois, muitas vezes, se a família ‘atrapalha’ o
divórcio ‘resolve’. Algum apelo de espiritualidade, ou equivalente “é resolvido
pelas fórmulas da fé ou pelas propostas alternativas da indústria de propaganda”116.
A vida é exaltada por poetas e compositores, discutida por diversas correntes
de pensamento, investigada por diversas ciências. Tematizada por diversos autores,
associada à ideia de valor, vida evoca espontaneidade, fenômeno, duração, história,
força. Num rigor especulativo mais profundo, vida não se define: ela é
essencialmente princípio interno.
Portanto, o grito pela experiência do sentido da vida advém não
originalmente do próprio ser humano, com todos seus bons desejos e propósitos,
nem das coisas, nem de qualquer criatura. Ele provém do Mistério que tudo centra
e irradia vida em abundancia para todos. Nele está o sentido que questiona e
interpela a vida. Este Mistério torna-se palpável na existência original do ser
humano, em sua relação para com o Absoluto, que faz despertar a memória daquilo
que cada ser humano deveria ser diante dos outros, do mundo e de Deus.
Portanto, o grito pelo sentido da vida evoca a busca do ser humano em sua
acepção primária e fundante de vida, da qual todas as demais acepções decorrem.
Pelo viés da antropologia teológica, constata-se que a pessoa humana está em si
mesma, mas também fora de si, nas outras criaturas e no coração de Deus. É um ser
que tem fome de Sentido.
116 BLANK, R., “Recuperar o projeto visionário de Jesus de Nazaré para recuperar o sentido da
vida”, p. 85.
92
2.4. Conclusão
A exigência da busca pelo sentido da vida está inscrita na própria
experiência da existência e no dinamismo da civilização pós-moderna, quando não,
por sua aparente negação. A dialética dessa exigência, pelo viés da antropologia
teológica, impele situar o ser humano à luz da fé cristã.
O Concílio Vaticano II, pela Gaudium et Spes, coloca o olhar a condição do
ser humano na realidade atual, como dever da Igreja “para que assim possa
responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens
acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas”117.
A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, não somente porque
existem mudanças, mas porque são transformações caracterizadas por serem
rápidas, profundas e estendem-se progressivamente a todo o planeta. O novo fica
velho num espaço de tempo cada vez menor num ritmo alucinante. Trata-se dum
fenômeno que vai muito além da revolução tecnológica. Os acontecimentos
perturbam profundamente o curso da vida. Alteram a visão do ser pessoa, bem como
de seus valores, necessidades, prioridades e inauguram uma nova linguagem. Por
causa do processo de globalização, o universo ao mesmo tempo em que parece ter
ficado pequeno, maximiza as vantagens de quem está no centro, enrijecendo ainda
mais a situação dos excluídos. As tecnologias incentivam mais a conexão do que a
relação interpessoal. Favorecem mais o acúmulo de informação do que a troca de
comunicação. Há uma planetarização de informações. Nessa seara, “as mudanças
de época atingem os próprios critérios de compreender a vida, tudo o que a ela diz
respeito, inclusive a própria maneira de entender Deus”118.
As mudanças oriundas do progresso humano-científico deslancham também
na experiência do niilismo. Este progresso resulta na opulência de bens e recursos,
mas também em feridas na existência da humanidade. Ele exige uma racionalidade
pragmática e calculadora, que, no entanto, declara-se aética e amoral,
desumanizando o comando das decisões.
117 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 4, p. 145. 118 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL., Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015, n. 25, p. 39.
93
Esta mentalidade estabelece como ideal o excesso, a exuberância de vida,
mas constitui o desperdício como referência absoluta de uma vida feliz. A
permanente instabilidade na vida permite o nascimento de relações sociais sem
precedentes e sem compromissos, contribuindo para a crise desintegradora da vida.
A ausência de fundamentos ou a renúncia ao sentido da vida é o que melhor define
o momento atual das mudanças na pós-modernidade.
Muito ajudaram a filosofia aristotélica e a sociologia a situar o significado
e os entendimentos do termo existência. Tomado como ponto filosófico de
compreensão, para Aristóteles a existência significa “existe, apresenta-se”. Para ele,
o humano só é plenamente humano na polis. Pertence à constituição humana a
impossibilidade de viver isolado. A fim de preservar o que lhe é mais próprio, há
sempre a necessidade de estabelecer relações sociais com os seus semelhantes
durante toda a sua existência. A sociologia capta diferentes compreensões de
existência, e por vezes, sua nulidade. O ser humano pós-moderno arroga-se o poder
de delimitar o que seja valor para tudo o que existe: bens materiais, pessoas,
natureza, criaturas e o Criador. E mais ainda, concede-se o poder de eliminar a
existência, até mesmo retira Deus do horizonte de preocupação.
Para focar a concepção de vida, em sede científica, esta reflexão valeu-se da
colaboração de Lee Smolin. Pertence ao interesse da ciência física pelo fenômeno
da vida dizer das características das coisas vivas e suas relações entre si. Esta
concepção, se bem compreendida pelo viés da antropologia teológica, abre espaço
para a libertação de uma visão que sustenta que a vida irreversivelmente dissipará,
isto é, a entropia.
A fé cristã afirma que o ser humano é a coexistência de duas curvas: a curva
da vida e a curva da morte. Foi aludido, que a fé cristã remete a pessoa à alteridade
e à relacionalidade. Pertence a ela, a condução da vida para o Absoluto, perante
outros seres que querem colocar-se como absoluto exigindo adorá-los.
Assim, fica demonstrada pela razão humana a existência do sentido da vida
humana. Isto não seria o suficiente? Não bastaria ao ser humano retornar ao
conceito aristotélico de existência, e assim as relações, para encontrar o sentido da
vida? Qual a contribuição original de Leonardo Boff para a existência da vida? Para
isso torna necessário, então, conhecer sua história e concepção teológica, e analisar
algumas concepções que lhe são particulares.
3 Na esteira teológica de Leonardo Boff
Os escritos de Leonardo Boff expressam uma reflexão teológica cristã
elaborada a partir da experiência humana do Mistério divino. Trata-se de uma
teologia nascida conceitualmente a partir do Concílio Vaticano II. De fato,
conquanto ele mesmo faça remontar seu pensamento a suas raízes, na infância, o
período da maturidade coincide com a realização e com as discussões e conclusões
deste Concílio. O Concílio é considerado o maior acontecimento eclesial do Século
XX, e naturalmente intercambia influência com realidades circundantes. Uma breve
explicitação faz-se necessária, então, das suas conclusões e primeiras
concretizações para ver os elementos que L. Boff recepciona e a maneira como faz
sua aplicação.
O Concílio Vaticano II opera a passagem de uma Igreja que se entendia
como ‘fora do mundo’, para uma Igreja imersa na história, lugar próprio de sua
missão. A história é compreendida como o locus theologicus, lugar da
autocomunicação de Deus. Constituída na história como Povo de Deus, ela é
sacramento, sinal terrestre que revela uma presença transcendente119. A Igreja é
então vista como mistério, sacramento histórico da graça libertadora.
Da história humana, perpassada não apenas pelo dinamismo do pecado, mas
também pelo dinamismo da Graça, Deus fala à humanidade e, em seu interior, à
Igreja. O mundo, a história, a sociedade humana não são, pois, realidades estranhas
à Igreja. A própria Igreja começa agora a se compreender também a partir de sua
119 Smulders faz notar que a palavra Sacramento introdutória da Constituição dogmática Lumen
Gentium não implica um modo de falar poético nem piedoso. Trata-se de uma exigência aprovada
pelos Padres Conciliares, e citada em numerosas alusões. Impõe uma perspectiva que perpassa toda
a subsequente visão da Igreja. Em Cristo, a Igreja é “como que o sacramento, ou sinal, e o
instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”. CONCÍLIO
VATICANO II., “Lumen Gentium”, n. 1, p. 39. Smulders propõe aprofundar no pensamento de L
Boff sobre Igreja sacramento primordial. Este estudo poderá contribuir para que o sinal de Cristo
brilhe mais claramente. A Igreja deve renovar-se incessantemente e assim, sua dimensão
sacramental “não se encubra nela através de uma estranha forma, presa a determinada cultura, a uma
classe limitada ou a um tempo passado. Ela deve ser simplesmente sinal, visível para todos,
apontando para Cristo”. Cf. SMULDERS, P., A Igreja como Sacramento da Salvação, pp. 396-419.
95
relação com o mundo. Este faz parte de sua própria definição como lugar de sua
auto-realização e de sua missão.
Quando a fé real e comunitária, unida a Cristo, é colocada em relação aos
pobres, surge a Igreja dos pobres. Este evangélico amor aos pobres configurou uma
nova e forte consciência de que todos são filhos do mesmo Pai, e que, portanto,
todos somos irmãos. O amor evidencia que as realidades humanas encontram eco
no coração de Deus, criador e caminheiro. Ele se faz Caminho de Vida no caminho
com as pessoas. Não se trata de uma nova concepção eclesiológica somente, mas
também soteriológica, cristológica, antropológica, pneumatológica.
As duas Conferências Episcopais da América Latina e Caribe, Medellín e
Puebla, dão início as primeiras concretizações do Concílio, e configuram um rosto
eclesial próprio aos anseios dos povos deste Continente. “Se o Vaticano II
significou uma abertura ao mundo, Medellín representou uma abertura ao
submundo”120.
Inserida na história, a Igreja experimenta urgência na defesa dos direitos
humanos, particularmente, dos pobres. A evangélica opção preferencial pelos
pobres é, ao mesmo tempo, uma opção histórica e escatológica, que visa
transformar as estruturas injustas e desiguais e manifestar o Deus libertador,
revelado em Jesus, o Cristo. Assim, a Igreja caminha em direção a plena realização
do Reino escatológico.
A fé em Jesus Cristo é dom de Deus e atualizada no hoje de cada dia. De
conformidade a essa fé, Deus é quem se permite identificar mediante o caminho de
vida de Jesus de Nazaré. O nome de Deus está, com razão, ligado à utopia
evangélica de justiça e amor, com o sonho de libertação para a humanidade.
A experiência eclesiológica neste Continente é convite a se colocar no
centro a vida, palavra-ação de Jesus. Urge salvar a vida anunciando que Deus é
“Deus dos humildes, o socorro dos oprimidos, o protetor dos fracos, o abrigo dos
abandonados, o salvador dos desesperados” (Jt 9-11). A vida em abundância no
anúncio de Jesus (cf. Jo 10,10) implica capacidade de discernir as promessas e as
relações que geram vida. A fé faz perceber a realidade de Deus comunicada a suas
criaturas, atraindo-as para si em comunhão de amizade. Viver segundo a fé é,
120 Cf. GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 171.
96
portanto, viver o ser criatura humana de um Deus, infinito que se auto-doa à pessoa,
ao mesmo tempo que preserva sua alteridade e a reconcilia consigo.
Adentrando o pensamento do Vaticano II, L. Boff faz sua própria leitura:
Igreja como Povo de Deus e instrumento e sacramento do Reino. Deus é
essencialmente amor em sua autocomunicação e estabelece comunhão. O
dinamismo da graça compreendido como um doar-se de Deus na vida do mundo e
da humanidade exige resposta verdadeira do ser humano. Jesus Cristo revela quem
é o ser humano e o recoloca no caminho de Vida, no qual somos todos irmãos. A
opção libertadora do pobre inscrita na palavra-ação de Jesus, em todas as suas
dimensões inclui a questão da terra. Em Jesus, o mistério humano evoca o mistério
de Deus. Nele revela-se o que há de mais divino no humano e o que há de mais
humano em Deus. Longe de ser utopista, o ser humano vive distendido entre a
utopia e a história121.
Expoente desde os inícios da Teologia da Libertação, esta teologia evidencia
a fé cristã horizontalizada para a libertação integral. Ela parte da constatação de ser
a América Latina marcada por estruturas de injustiça social e opressão, contra os
pobres, maioria de sua população. Contudo, ela não visa somente o aspecto
econômico dos pobres, mas a pessoa em todas suas dimensões. Fazem parte a
promoção da justiça e a instauração de relações mais fraternas na sociedade; sem
esta dimensão libertária a fé cristã não tem eficácia histórica, podendo facilmente
ser manipulada por ideologias do poder dominante.
O interesse pelo pobre é inspirado por uma evangélica opção vivenciada por
Jesus diante da vida. Ela já se encontra figurada no Êxodo, pela decisão de Deus,
em conduzir seu povo para uma terra onde corre leite e mel e que por isto desce
para o libertar, tendo conhecido seus sofrimentos, ouvido seu clamor e visto a
aflição (cf. Êx 3, 7). Em Jesus, Deus manifesta o tempo da libertação. Ele proclama
o ano da Graça, ano da libertação dos oprimidos e cativos, da recuperação da vista
dos cegos. Ele é a Boa Notícia aos pobres (cf. Lc 4, 17-18). É desta compreensão
121 Poderia ser destacada uma Obra de L. Boff para cada categoria, ainda que não haja limites bem
definidos podendo duas ou mais categorias ser encontradas em uma única Obra. Respectivamente:
Tema de sua tese doutoral: "A Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo.
Tentativa de uma fundamentação estrutural-funcional da eclesiologia". A Trindade, a sociedade e a
libertação. A graça libertadora no mundo. O destino do homem e do mundo. Dignitas terrae.
Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Jesus Cristo libertador: ensaio de cristologia crítica para
o nosso tempo. Saber cuidar. Ética do humano-compaixão pela terra. Estes textos são mencionados
somente para ilustrar o quanto sua teologia transparece as concretizações do Concílio Vaticano II.
97
que nasce uma teologia que privilegia a práxis, a qual inspira e acompanha o reto
pensar.
L. Boff visa discutir as interrogações mais prementes do ser humano, de
modo a relacioná-las com a fonte originária da vida, Deus, e a realidade em contínua
mudança. Seu intento é falar a respeito de Deus de um modo audível hoje. Ele une
o Mistério de Deus e a realidade pós-moderna com seus novos desafios. Com
sensibilidade, este teólogo aproxima-se da interrogação existencial do sentido da
vida e a tarefa do ser humano neste mundo.
L. Boff desenvolve uma teologia da esperança. A utopia constitui seu
horizonte de abertura à vida, ao sentido e à plenitude. O destino derradeiro da
humanidade e do cosmo é a divinização. O Cristo preexistente, considerado na
pessoa histórica e única do Filho de Deus feito humano, “é a Imagem do Deus
invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas”
(Cl 1,15). Trata-se de uma esperança em sua transcendência e historicidade, por
isto, escatológica. A esperança escatológica num autor da América Latina reclama
uma práxis social. Ela não concorda com a esfera simplesmente do mágico, da
inércia. É preciso envolver-se concretamente com a dinâmica do já e do ainda não,
na história real, concreta e humana.
O seu pensamento está em constante diálogo com as ciências da terra.
Contudo, não se trata de toda e qualquer ciência. Antes, trata-se da ciência que se
ocupa com a emergência, da construção e da robustez da vida humana. A
centralidade da vida aparece na capacidade de relacionar-se em todas as direções,
da constatação de que ainda estamos em processo evolutivo. Evolução é então
compreendida como processo criativo, participativo e inclusivo de todos. A teologia
de L. Boff está inserida na pós-modernidade, meio em que desvanece a vida
paulatinamente. Banalizada e relativizada, a vida é ulteriormente, excluída. Neste
ambiente, esta teologia dissemina o sentido da vida contra a lógica do imediato, que
veta a superação da imanência, e assim rechaça toda ideia de transcendência. O
interesse de L. Boff está em que as questões das ciências são as questões de todo
ser humano. Também a elas aplica-se a categoria das relações multidimensionais.
Portanto, são também questões que interessam à teologia.
A exposição da teologia de L. Boff no que tange sua história teológica, sua
concepção e apreensão da vida em seu sentido será refletida na ótica antropológica
em sua tarefa de demonstrar que o nascimento da vida humana é permanente dom
98
gratuito de Deus, criador salvador, ao ser humano em seu desejo de relacionar-se
com o não-divino; Deus quer que o ser humano tenha parte em sua vida. Na
mensagem joanina: Deus quer a vida, em abundância.
3.1. A trajetória teológica de Leonardo Boff
Falar de um teólogo é, antes de tudo, falar de uma pessoa. E uma pessoa é
sempre um mistério de Deus. Falar dela é adentrar sua intimidade, seu ser único. O
Senhor admoestou a Moisés que tirasse as sandálias porque pisava numa terra santa,
marcada pelo arbusto que ardia sem se consumir (cf. Ex 3,5). Mais que um arbusto,
cada pessoa é uma chama constante a nos deslumbrar. Aproximar-se dela é
aproximar-se do seu Criador. L. Boff assume de maneira especial, manter acesa a
chama do acolhimento ao humano e ao divino, através de seus escritos. Por isso, de
modo especial, ele é um convite a, também nós tirarmos as sandálias, pois sua
presença assinala esse “lugar” que é a experiência humana e que é uma terra santa.
O teólogo (a) é aquele (a) cujo objeto de estudo, na verdade, não é um objeto,
mas um sujeito. Mas ainda: dois sujeitos. Ele é o sujeito do estudo, Deus é o sujeito
que o move a estudar. Deus é, pois, o primeiro sujeito de toda sua experiência de
vida. O coração do teólogo é movido pelo desejo de intimidade com o Absoluto,
que o seduz. Este desejo está na dinâmica da resposta ao Deus de Jesus Cristo que
se deixa experimentar, inquietando o coração do teólogo em sua direção.
Esta experiência tem o poder de contaminar a todos que também buscam
perscrutar Deus. Em Leonardo Boff, encontramos um teólogo, mas também um
mestre, um homem de pé no chão e fé no coração. Em sua página na Internet ele
assina: “Leonardo Boff- theologus peregrinus et peccator”.
Seu pensamento inspira milhares de trabalhos monográficos, em diferentes
áreas do conhecimento. Embora sejam diferentes seus campos de atuação,
diversificado seu pensamento e voltados para públicos muito diferentes, L. Boff
sabe adaptar sua linguagem para fazer compreensível seu pensamento ao público,
99
de forma a fazer de sua teologia cristã um dom sápido. Sua teologia é singular e
atualizada122.
Seus estudos, desde seus inícios, buscam uma teologia que leve a sério Deus
e sua relação com as criaturas. Ele categoriza esta relação com o epíteto de
transparência, isto é, a transcendência na imanência. Deus não é só o transcendente,
nem muito menos só o imanente. A fé cristã afirma a glória velada de Deus na
história ambígua da humanidade, Deus sai de si mesmo sem deixar seu ‘si mesmo’.
Deus é transparente na existência humana. Deus é transparente na natureza.
O movimento de libertação é revelador da transparência de Deus. O Deus
totalmente transcendente é também o Deus totalmente imanente. O Deus totalmente
transcendente e totalmente imanente faz-se Deus totalmente transparente, através
de todas as coisas.
A transparência é intuição paulina. Em vários de seus escritos encontram-se
explícito o primado-presença de Cristo, como na Carta aos Colossenses: “Ele é a
Imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram
criadas todas as coisas” (Cl 1,15). No horizonte da unidade de todas as coisas,
“Cristo é tudo em todos” (Cl 3,11). Ele une, ao mesmo tempo, Deus, o ser humano
e o cosmos, sem despersonalização ou confusão dos três. Deus habita o cosmos,
Deus habita e acompanha o ser humano.
Suas palavras transbordam uma concepção de vida em sintonia com a busca
humana horizontalizada para um sentido maior revelado na vida. Para melhor
caminhar na esteira teológica de Leonardo Boff e por fazer jus a este homem,
cristão, teólogo, a palavra deve lhe ser dada. Que nosso autor diz de si mesmo a
partir de seu lugar histórico, sociocultural, eclesial?
3.1.1. O lugar histórico
Leonardo Boff, pseudônimo de Genésio Darci Boff, nasceu no último mês
do ano de 1938, em Santa Catarina. Neto de imigrantes italianos. Seu lugar familiar
faz imaginar um veio fértil, mas não homogêneo, uma possibilidade aberta à
122 Aqui interessa mais de perto o teólogo, ainda que se saiba que não é possível fazer um corte entre
sua história teológica engavetando outras áreas.
100
pluralidade de culturas. No ano de seu nascimento, a Itália é bicampeã da Copa do
mundo. Na política do Brasil, acontece um ato de violência praticado contra o
regime político de então, praticado, diz a história, pelos próprios detentores do
poder, objetivando nele se manterem arbitrariamente. É o golpe de Estado. Getúlio
Vargas, então presidente, anulou a eleição com o golpe do Estado Novo. Nos Meios
de comunicação social, o programa oficial de rádio ‘Hora do Brasil’ passa a ser
transmitido em todo o país. A voz do Presidente da República se faz ouvir.
Aos 15 anos de idade, L. Boff deixa de lado o sonho de ser caminhoneiro.
Até então, em sua opinião a vocação mais sublime era conduzir e dominar aqueles
monstros. Por esta ocasião, escuta atentamente um sacerdote, recém-chegado do
Rio de Janeiro, falar sobre a vocação franciscana e sente um fogo arder,
transformando o tempo em eternidade, “alguém em mim levantou minha mão”123.
Assim, deixou o sonho de conduzir caminhões para viver conduzido pela Palavra
como franciscano.
Em Petrópolis faz seus estudos iniciais de teologia. Em 1964 é ordenado
sacerdote na Ordem dos Frades Menores, os franciscanos. Neste período destacam
os professores, Constantino Koserm e o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Atraído
pela atividade intelectual teológica, descobre que a realidade tem sentido, apesar
das contradições.
Na Alemanha, faz seus estudos de doutorado. Em 1970, sua tese, em alemão,
com o título “A Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo”,
em plena efervescência pós-conciliar já reflete os ecos das questões que se
colocavam nos inícios dos estudos teológicos: “Como abordar os problemas
concretos do povo, da fome e do subdesenvolvimento? Como entender a Igreja em
um mundo tão negativo, tão hediondo, tão ‘anti-mundo’? [...] Que sentido tem o
sofrimento, particularmente o sofrimento dos inocentes? O que me espera após esta
vida?”124.
Seu esforço teológico de conjugar uma relação de proximidade de Deus com
o mundo tem forte influência de Teilhard de Chardin. Dele vem, em linhas gerais,
mas muito densas, uma cosmovisão que lhe inspira certa espiritualidade cósmica.
Escreve, então, seu primeiro livro: O evangelho do Cristo Cósmico. A realidade de
123 DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 18. Tradução
minha. 124 Ibid., p. 19. Tradução minha.
101
um mito. O mito de uma realidade, em 1971, pela Editora Vozes. Nesta Obra, ele
aponta ser o Mistério do Cristo cósmico a fonte e o termo do pleno sentido à vida,
sentido que ultrapassa toda sistematização e compreensão humana.
Esta cosmovisão permite a L. Boff efetuar uma recepção ampla da
antropologia e da cristologia. Visitou pessoalmente Habermas, Ricoeur,
Heisenberg, Rahner, Congar, Von Rad, Pannenberg. Visitou a outros por seus
textos diretos, como Agostinho, S. Boaventura, Duns Scotus e Ockham, além da
filosofia de Heidegger e a psicologia de Jung. Na jornada destes encontros, encontra
sempre seu próprio caminho, perfilando-se entre aqueles que colocam questões para
além dos autores, mesmos os consagrados125.
Seu pensar é singular e independente, ao mesmo tempo moldado, não apenas
por professores e eruditos, mas, porque toma um rumo escolhido, exatamente, para
pôr-se a caminho junto aos excluídos, moldam-no também milhares de cristãos
anônimos. Estes são seus companheiros e verdadeiros professores, pois no bojo de
uma experiência de opressão por um sistema desumano, encontraram um sentido
para a vida, e assim recriam a vida todos os dias. São missionários, em sua maioria,
vindos de outros países, para doar suas vidas no processo de humanização e
libertação. Ainda que expostos a perigos, mantinham a ternura126.
O coração continua a arder. Enquanto procurava exprimir seu próprio
pensamento, era levado à formulação de novas palavras, isto é: para a nova
caminhada, havia de colocar novos marcos, novos sinais que são as palavras para
os pensamentos. Justamente por ter novas intuições, ao formulá-las e as questões
ou problemas que levantava, via-se necessitado a criar uma linguagem própria. Ele
mesmo diz: “Um dos orientadores de minha tese em alemão contou mais de 30
palavras alemãs que eu havia criado sem que constassem no dicionário e todas elas
inteligíveis”127. Trata-se de palavras que são, ao mesmo tempo, compreensíveis,
delicadas e ainda inexistentes, nos dicionários gerais da língua.
Na década de sessenta do século XX, L. Boff reunia no convento de
Garnstock, fronteira entre a Bélgica e a Alemanha, brasileiros que estudavam na
Europa. Nestes encontros, buscavam uma reflexão em consonância com a realidade
da América Latina a partir das contradições da realidade deste continente. Seu
125 Cf. GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 170. 126 Cf. DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 14. 127 GUIMARÃES, J., Op. cit., p. 172.
102
segundo livro condensa e disponibiliza um dos frutos desta práxis teológica: Jesus
Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo, em 1972. Este
foi, de certa forma a resultante dos encontros de Garnstock, mas escrito depois da
viagem de retorno ao Brasil, em 1970, quando começa a se desenvolver uma
teologia nos moldes da América Latina – a Teologia da Libertação128.
A Teologia da Libertação procura assumir a perspectiva do pobre como
princípio de articulação da reflexão ética e como configuradora de sentido para a
vida. Uma teologia que não se restringe, mas ultrapassa os limites da América
Latina, pois esse novo modo de fazer teologia é fruto da percepção de um sistema
socioeconômico opressor.
L. Boff transpõe os limites geográficos. São muitas as viagens pelos Meios
de comunicação social: livros, jornais, revistas, televisão, rádio e Internet, que
fazem estação no pensar129. A base de uma fé cristã dialogante propicia interação
com outras culturas, filosofias, religiões; em congressos, seminários, cursos,
palestras, encontros, movimentos sociais, empresas, universidades.
Isto é possibilidade pelo fato de que L. Boff conjuga, combina reflexão
acadêmica, sistemática com a vida e o destino da pessoa humana e do mundo. Ele
quer e constrói um pensamento sistemático unido à busca de comunicação com o
leitor, mesmo o não especialista. Não sem razão, pois cabe ao intelectual escutar as
tendências do pensamento, as interrogações do ser humano e colocar-se para buscar
a partir dele, ser humano, mas também junto com ele, dar significação à vida,
fragmentada por tantos absurdos.
Por vezes se diz que L. Boff aparece em demasia na mídia. Entretanto, há
uma explicação. A aceitação e a consequente frequência aos Meios de comunicação
social revelam o pressuposto de que para L. Boff a realidade é extremamente
complexa e que o teólogo não pode encerrar-se numa redoma de vidro, imagem
talvez um pouco repetida, mas que pode ser a figura dos conventos e universidades.
A oração não pode ser isolada. Além do contato com a realidade, é também preciso
provocar as pessoas a pensarem a vida e a se comprometerem pelo futuro da
128 Cf. DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 14. 129 Não é momento de enumerar às vezes em que L. Boff conferiu palestras e cursos nos Meios de
comunicação social. Suas Obras, até 2012, no Brasil, data do início desta pesquisa, chegam ao
número de 91. Ultrapassaria o objetivo aqui tratar de todas elas, e mesmo porque o autor continua
vivo e em ampla produção. Uma lista extensa, com bibliografia completa, pode ser encontrada nas
últimas páginas de seu livro recentes, e ainda informações sobre os próximos lançamentos.
103
humanidade e da terra. Ainda que suas atitudes possam incomodar, como de todo
intelectual, elas são “como os peixes de piracema: nadam contra a corrente para
chegar à fonte e permitir o recomeço da vida”130.
L. Boff tem a maestria de comunicar. Suas palavras são carregadas de vigor
e ternura pela vida, sobretudo a vida ferida em sua dignidade. E é dotado no
conhecimento de Línguas131. Isto lhe permite mudar com rapidez de Idioma,
transmitindo suas palavras com originalidade.
De viva voz ou por escrito, e para além da língua-idioma, L. Boff utiliza a
língua da experiência, da sensibilidade, da afetividade, da inteligência. Esta língua
toca as pessoas diferentemente. Algumas, quase nada; outras, em profundidade.
Outros há que o rejeitam. De qualquer forma é ele um homem de comunicação e
internacional. Em tudo isso, busca sempre a construção de seu pensamento não
apenas sobre o povo, mas junto com o povo. L. Boff introduz um elemento
perturbador: o pensar deixa de ser tarefa da elite. O povo deixa de ser o objeto e
passa a ser o sujeito do pensamento. Será esta a razão de uns esforçarem-se por
publicar e repercutir seu pensamento enquanto outros o rechaçam? Em todos os
casos, a verdade é que se encontram mais publicações dos primeiros do que dos
últimos.
O lugar histórico teológico de L. Boff é tematizado e editado por diferentes
grupos e pessoas. São escritos que buscam fazer jus ao horizonte planetário de sua
teologia, ainda que, cada um, naturalmente o aborde a partir de um prisma
particular.
Em 2008, empreendeu-se uma jornada, na esteira teológica de L. Boff por
ocasião de seus 70 anos de idade. Podem-se destacar duas publicações brasileiras,
uma em Minas Gerais outra no Rio Grande do Sul.
A primeira intitulada Leituras críticas sobre Leonardo Boff, organizada em
Minas Gerais, optou pelo viés de explicitar as razões do seu comprometimento com
130 BOFF, L., “Nunca aceitei o mundo assim como está”. 131 Desde pequeno Leonardo Boff teve contato com diferentes Idiomas. Em sua cidade natal, Santa
Catarina aprendeu Alemão e Italiano. Com seu pai aprendeu Grego e Latim que os ensinava a todos
os estudantes de sua época. Quando veio a Segunda Guerra e a imposição do governo de que todos
deviam falar o português, então começou a aprender a partir dos seus 10 anos de idade. Sua página
na Internet pode ser visitada também em Inglês e Espanhol; Idiomas mais difundidos no Brasil. Sua
produção acadêmica estende-se para outros países estrangeiros das Américas do Sul, Central e do
Norte, da Europa, da Ásia e da África com traduções nos seus vários idiomas: alemão, austríaco,
castelhano, catalão, chinês, coreano, croata, espanhol, francês, húngaro, inglês, italiano, japonês,
polonês, iugoslavo. Cf. BOFF, L., “Releitura da Vida à Moda de um Cego”.
104
o princípio de esperança. Embora diferentes os autores, verifica-se pelos seus
escritos, que eles unificam as dimensões teológicas e social também em sua
militância, justamente como L. Boff entende dever ser. Outro aspecto uníssono é o
sentimento de se estar diante de um pensador dinâmico, sem uma lógica
instrumentalizada, nem por isso dispersa, mesmo em obra tão vasta em temas e
volumes.
Seu pensar pode ser ilustrado com a imagem de uma bola de neve que rola,
que sem deixar de ser bola prossegue seu caminho interagindo e relacionando com
seu meio. Os temas novos que L. Boff apresenta, não contradizem, desvirtuam ou
negam os anteriores. Como bem disse Libânio,
Leonardo Boff avulta entre os teólogos por sua personalidade vulcânica. [...]. Um
vulcão só se capta com os olhos da poesia e da empatia. Imagino a tristeza desconsolada dos censores desse teólogo vigoroso, milimetrando-o com a régua de
alta precisão dos cânones da ortodoxia. Ele não cabe nessa medida porque seu
pensamento mistura, de modo quase impossível, a seriedade e a profundidade científicas com a poesia apaixonada de quem é visceralmente teólogo. Apesar de
ter-se doutorado na academia alemã, conservou em toda sua obra um traço tropical
de beleza, de vigor, de explosão. Os alemães diriam que ele faz teologia ‘mit Temperament’ – com páthos, com paixão e com compaixão, com a totalidade do
ser132.
Esta pesquisadora acredita que, para além da discussão de mudança de
paradigma133 ou de mudança de epocalidade ou de uma distinção entre um primeiro
132 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 9. 133 Paulo Agostinho, cientista da religião, mestre e doutor nos estudos de Leonardo Boff, defende a
existência de um novo paradigma em L. Boff, o qual intitula ‘teologia teoantropocósmica’, que
reconfiguraria toda sua produção intelectual. Assim afirma: “Em Leonardo Boff, percebe-se que até
1989, e mesmo depois, em algumas publicações de 1990, 91 e 92, outro paradigma marcava sua
produção teológica. O centro era a própria temática eclesiológica-cristológica, variando os tratados e assuntos, mesmo apresentando uma teologia aberta e abordando criticamente a igreja. O próprio
tema ecológico entrava como subtema dentro do processo sócio-histórico da libertação. Há uma
nova ordenação, nova configuração e estruturação de sua produção teológica. Existe um novo eixo:
a ecologia. A abordagem passa a ser teoantropocósmica e não mais antropo-teológica”. A Trindade
deixa de ser vista num modelo eclesiológico, para uma forma mais acentuada: a Trindade cósmica.
Neste ínterim, ele discorda que haja uma ‘mudança de epocalidade’ conforme defende Valério
Schaper em sua tese doutoral intitulada “A experiência de Deus como transparência do mundo: o
pensar ‘sacramental em Leonardo Boff entre história e cosmologia”. Para Paulo Agostinho é
questionável dizer mudança de época, pois isto desconsideraria o pensamento de L. Boff antes da
mudança, a qual ele data por volta de 1989, que estava fixado na cristologia e na eclesiologia, e na
influência de K. Rahner e H. Schlette. BAPTISTA, P. A. N., Diálogo e ecologia, pp.91-94.
105
e segundo L. Boff134 vige o pensamento deste teólogo, que segue uma mesma linha
desde seus inícios acadêmicos, quando buscava elaborar uma teologia que levasse
em conta a intima vinculação entre Deus que permanece na vida, e o mundo como
morada de Deus, isto é, a relação de Deus com o mundo.
O primeiro resultado, ou seja, primeira obra, é sua apropriação sob
influência, não de dependência, do pensamento Teilhardiano que já buscava pensar
o problema da unidade da realidade. Vigora ainda hoje no pensamento de L. Boff,
“a visão de uma cristologia transcendental e cósmica, fundamento da realidade
cristã. Esta pode realizar-se mesmo fora do âmbito cristão”135.
Ao que parece, a mudança de pensamento de que falam, não seria mais que
o fruto da sua caminhada na história e de sua abertura ao fundamento, em última
instância, Deus presente no mundo, o mundo presentificado por Deus, para assumir
novos elementos, que vão paulatinamente deixando-se perceber, como integrantes
da realidade cósmica e crística. Por exemplo, a experiência de reunir estudantes,
quando ainda na Alemanha, para seu doutorado, a fim de discutirem um
pensamento consoante com a realidade de contradições na América Latina, mostra
já esta tendência de efetivar esferas cada vez mais abrangentes: já não lhe basta o
meio acadêmico. Ele precisa da realidade da América Latina. De volta ao Brasil
escreve seu livro, ainda um dos mais conhecidos, Jesus Cristo Libertador136. Mais
tarde já não lhe bastarão as informações sobre a realidade social: desejará contatá-
la, lê-la, ouvi-la pessoalmente. Por fim, lembrar-se-á de que a realidade cultural,
histórica, econômica, política existe num planeta que também é explorado à
exaustão, como o é o povo. Seu pensamento tentará, então, abarcar mais este âmbito
da realidade.
134 Maurício Tavares Pereira disserta que o pensamento de L. Boff está dividido em três fases, isto
é, a fase europeia, a da Teologia da libertação e a última de elaboração do novo paradigma ecológico.
Em seguida parece entender que não há divisão no pensamento de L. Boff, por afirmar que nas
últimas obras em 2012 há, na verdade, uma sintetização que possibilita maior clareza de seu
pensamento. TAVARES PEREIRA, M., Novo paradigma civilizatório, p. 18 e 115, respectivamente. 135 BOFF, L., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 12. 136 Leonardo Boff faz questão de ressaltar como surgiu este livro. Trata-se do fruto de um retiro
pregado para missionários da Amazônia, logo após viver cinco anos consecutivos na Europa, e trazer
na bagagem uma leitura crítica da sociedade, uma tradição marxista teórica. Se seu retorno ao Brasil
o fez experimentar profunda dor por ver tanta pobreza e miséria. No retiro em Manaus experimenta
perplexidade por perceber que toda cristologia crítica e europeia que tinha aprendido na Alemanha
nada dizia para aquele povo. Sua teologia precisaria ser repensada, surge então o livro: Jesus Cristo
libertador. DUTILLEUX, CH., Leonardo Boff, memorias de un teólogo de la liberación, p. 22.
Leonardo Boff recomenda, via E-mail, não omitir este dado histórico. Cf. BOFF, L., Estudos no
pensamento L. Boff.
106
Pode-se também ver a transformação de seu pensamento como uma marca
da pós-modernidade. Com efeito, enquanto a modernidade dava subsistência à
esperança baseada na razão, a pós-modernidade, com a desligitimização da
esperança pela razão, problematiza não haver razão para esperança. Esta carência
de sentido, de um horizonte maior é o que melhor define o momento atual pós-
moderno. Ela o impede de resolver a crise mediante um alternativo eterno retorno,
que voltasse cegamente às certezas de outrora num tradicionalismo, e ainda negar
o passado adotando um futurismo. Tendo este pano de fundo, ao que parece, o
pensamento de L. Boff propõe um caminho de libertação, cada vez mais abrangente.
No começo, preocupou-o o resgate dos excluídos, dos marginalizados. Hoje, ocupa-
o o resgate da criação: o planeta terra e aqueles que o habitam, preferencialmente
os mais pobres. Preocupa-o o resgate dos pobres, que não podem ser resgatados
sem que os opressores recuperem sua humanidade e todo este conjunto só será
resgatado no dia em que uma nova terra for um novo Jardim para toda a
humanidade.
Em seu livro atualizado, Evangelho do Cristo cósmico, 2008, as palavras de
L. Boff salientam a permanência e a constância de seu pensamento. Sua teologia
vincula atualização com continuidade.
O surgimento do pensar ecológico, especialmente a partir dos anos 1960, e a consciência de nossa responsabilidade pelo futuro da vida, dos ecossistemas, da
humanidade e do planeta Terra como um todo alarmaram as consciências,
suscitaram discussões científicas, exigiram políticas novas quanto à relação entre
desenvolvimento e meio ambiente e desafiaram também as religiões e as tradições espirituais137.
Tal continuidade deve ser entendida a partir de sua compreensão da inserção
do teólogo, na Igreja e no mundo. Dois temas recorrentes, na teologia
contemporânea, balizam de modo especial o itinerário teológico de L. Boff: a
experiência de Deus e a vida como um nó de relações, na ótica cristã.
Não parece mais apropriado dizer que por ser a fé cristã encarnada e
histórica, e não apenas o teólogo historicamente situado, ela necessariamente
acontece dentro de uma história e cultura? Pois é a partir da fé que se buscam novas
formulações e práticas afim de que o Evangelho seja audível na vida
137 BOFF, L., Evangelho do Cristo cósmico, p. 11. Os estudos de teologia, neste caso na esteira
teológica de L. Boff, devem considerar seu percurso teológico e os contextos social, cultural,
histórico eclesiástico e teológico para melhor aprofundar-se em suas intuições.
107
contemporânea. O Concílio Vaticano II fala, pela Gaudium et Spes, dos múltiplos
laços existentes entre a mensagem da salvação e a cultura humana, “Deus, com
efeito, revelando-se ao seu povo até à plena manifestação de Si mesmo no Filho
encarnado, falou segundo a cultura própria de cada época”138. Neste mesmo
dinamismo afirma a Igreja na América Latina “O encontro com Cristo, Palavra feita
carne [...] se expressa em uma reflexão séria, feita diariamente no estudo que, com
a luz da fé, abre a inteligência à verdade. Também capacita para o discernimento, o
juízo crítico e o diálogo sobre a realidade e a cultura”139.
A segunda publicação, por ocasião de seus 70 anos, aconteceu em São
Leopoldo. Uma promoção da “Faculdades EST” (Escola Superior de Teologia).
Marcada por um prisma bem circunscrito, revela justamente o reconhecimento, para
além dos limites do catolicismo, da sua pertinência e tempestividade. Ela é fruto
dos estudos do “Seminário Leonardo Boff e a Teologia Protestante”140. Os textos
discutidos durante o Seminário foram publicados, em homenagem a seu
aniversário, no periódico “Estudos Teológicos”. A revista, uma verdadeira obra
sobre L. Boff aborda sua teologia, mais precisamente nos temas Trindade, Igreja,
Graça, Esperança e Ética. Ainda que por confissões diferentes, constata-se, entre
convergências e divergências, a unidade da fé no Cristo e no amor ao próximo.
Também, durante esse seminário, a Faculdades EST outorgou-lhe o título de
honoris causa. Quando Rudolf Von Sinner fez sua ‘Laudatio’ a Leonardo Boff, por
ocasião da outorga deste título, ele enfatizou que sua instituição previa três
possibilidades para esta outorga, e que a personalidade de L. Boff reúne todas elas.
Assim recebe o testemunho de ter se distinguido por suas atividades “em prol do
conhecimento, da causa humana e do melhor entendimento entre os povos”141.
Ora, o esforço de pensar o humano e o mundo é exatamente o que leva L.
Boff a pensar Deus como Trindade. Trata-se de um tema que lhe é caro. Dentre seis
artigos discutidos no Seminário, dois se ocupam de seu pensamento trinitário, isto
é, faz pensar Deus enquanto Deus Trindade, pela categoria pericórese que implica,
simultaneamente, o caráter comunional, singular e relacional do Deus-Amor. Por
seu turno, a ideia da criação à imagem e semelhança, pensada numa ampla interação
138 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 58, p. 210. 139 CELAM V., Documento de Aparecida, n. 280. 140 VV.AA. “Teologia de Leonardo Boff”. 141 SINNER, R. V., “Laudatio”, p. 199. Grifo meu.
108
com os seres humanos, leva a intuir que, para a busca de sua plenitude, eles devem
não só coexistir, mas também interagir. Como a Trindade, na comunhão
pericorética, tem a plenitude de seu ser divino, igualmente o ser humano será
plenamente humano, quando buscar a convivência, a comunhão e a participação.
Para Von Sinner, a Trindade em Leonardo inspira profeticamente um tipo de
sociedade em nosso mundo globalizado baseado na alteridade, participação,
confiança e coerência142.
Pode-se então, quem sabe, falar da vida intelectual de L. Boff como de uma
esteira. Nela não parece haver mudança de rumo ou paradigma. No entanto, não se
trata igualmente de percurso de fôlego único ou empreitada monocromática. Muito
ao contrário, alguns rastros se destacam. São principalmente aqueles que conjugam
o conhecimento do homem e do teólogo, com tamanha obra que resultou de seu
caminhar.
Paralelamente a estas duas publicações cumpre agora destacar o que o
próprio Leonardo Boff diz de si mesmo. Neste ano de 2008, particularmente, sua
vida o faz lembrar Cícero, o antigo filósofo, pela sua frase: Os homens são como os
vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons. O exame que L. Boff faz de si é
assinalado por cinco boas palavras143. A primeira é o reconhecimento de estar velho
“A vida na velhice impõe esta exigência: que nos confrontemos, com temor e
tremor, com as questões derradeiras e inadiáveis. É então que de fato podemos
madurar, ganhar gravidade e terminar de nascer”. A segunda palavra especifica o
ser cristão, agraciado por experienciar que o mundo espelha Deus e permite também
vê-Lo. O Deus de Jesus Cristo, “quis caminhar, se alegrar, sofrer, viver e morrer
conosco para que tivéssemos a absoluta certeza de que Deus nunca está longe de
nós, que somos de sua Casa”.
A terceira boa palavra assoma da mística de Francisco de Assis. “A porta
pela qual se entra e se descobre o único Cristo verdadeiro, aquele que foi um artesão
e camponês mediterrâneo”. Junto com ela, descobre a quarta boa palavra: o ser
teólogo, isto é, um ser que “levanta uma pretensão inaudita: pensar a Última
Realidade, Deus, e tentar exprimi-la com palavras adequadas”. Fortificado pelo
desejo de ser teólogo, ele aprende a olhar “a realidade sofredora, injusta e opressora
da maioria de nossos irmãos e irmãs”, sentindo-se profundamente provocado “a ser
142 Id., “A Santíssima Trindade é a melhor Comunidade”, pp. 51-73. 143 BOFF, L., “Releitura da Vida à Moda de um Cego”.
109
um teólogo da libertação”. E por fim, a quinta palavra, ser homem. Ao mesmo
tempo em que se experiencia velho, cristão, franciscano, teólogo, continua a ser um
homem. Eis o grande desafio, pois é parte de um projeto infinito, projeto que ele
pretende elucidar, mesmo tendo consciência de estar nele inserido. Esta
consciência, ele a desenvolveu, após ter-se ocupado “da nova cosmologia, a
astrofísica, a nova antropologia e com as ciências da Terra, encerradas na palavra
Ecologia, objeto de meus estudos já quase 30 anos”144.
A vida de Leonardo Boff teve um marco especial de publicação e eventos
sobre sua teologia, como foi destacado em 2008. Seu pensamento percorre muitos
saberes e culturas, a fim de conhecer melhor a história do mundo e dizer Deus de
forma contemporânea, sem esquecer os pobres, mediadores diante do Juízo
derradeiro. Títulos acadêmicos e prêmios lhe são dados, por várias Instituições
brasileiras e do exterior. Em suma é ele um intelectual do mundo pelo seu
pensamento e pela luta em favor das causas sociais e dos direitos humanos.
Em seus trabalhos, Deus é descrito como Mistério insondável, de
acolhimento e de ternura, de comunhão e libertação. Estas quatro palavras,
acolhimento, ternura, comunhão e libertação, têm conotações diversas, mas têm um
traço comum de supor uma presença ativa. Deus não aparece aí como o “motor
imóvel” dos filósofos. Deus é Aquele que nenhum pensamento abarca. Na verdade,
Ele se move sempre, é sempre ativo em criar e redimir. O melhor modo de
expressar, quando se começa a compreendê-lo é ficar em silêncio frente à sua nobre
presença presente.
Até agora falou-se de L. Boff, de seu lugar histórico, mas com referência
apenas à dimensão da luz. Sabe-se que, na vida humana, a unilateralidade é irreal.
Humanos, somos todos contraditórios. Portanto mister faz-se também falar das
sombras. No caso de Leonardo Boff, possivelmente, neste aspecto, o ponto central
seja que, pela própria grandiosidade e pela solidez da fundamentação de seu
pensamento, tenha se tornado pouco acessível às críticas. Isto pode se dar, talvez
pela originalidade, talvez por falar de um futuro no qual a razão cede seu lugar a
uma terna experiência. Os embates eclesiais também o atingiram fortemente. E esta
144 BOFF, L., “Releitura da Vida à Moda de um Cego”. Por cosmologia subtende-se a origem,
estrutura e evolução do universo formada a partir do método experimental-científico, dos dados
culturais, simbólicos, estéticos, religiosos. A articulação destes saberes fornece o mapa do universo
e da vida humana, ao que propicia um horizonte à vida. Cf. BOFF, L., O despertar da águia, p. 49.
110
é uma condição que ainda hoje ecoa em todos os que ouvem seu nome, mesmo após
terem se passado mais de vinte anos.
No entanto, sabe-se que, na história entendida como diálogo com Deus, as
luzes convivem com as sombras, como na obra dos grandes pintores impressionistas
que faziam o uso do jogo da luz. A teologia cristã acredita que o Logos eterno do
Pai, pelo e para o qual tudo existe, é a vida e é a luz que resplende nas trevas. Por
isso nunca se devem temer as sombras, pois, nossa Luz é tal que jamais a escuridão
apaga o seu clarão, ainda que pareça ofuscada.
3.1.2. O lugar eclesial
O lugar eclesial de Leonardo Boff tem um marco importante no Concílio
Vaticano II. Ele vivenciou este acontecimento ainda em sua fase preparatória e por
ele modelava o que seriam seus estudos no doutorado em teologia. Ele mesmo
ressalta que o Vaticano II significou “a descoberta de uma reflexão teológica sobre
as realidades terrestres, a ciência, a técnica, o trabalho, a cultura, os direitos
humanos, o diálogo ecumênico e inter-religioso”145.
O Século XX é, sob certo aspecto, o século das grandes guerras, das grandes
crises mundiais. Por outro lado, é um século no qual a Igreja adquire força e
vitalidade. Há um renascimento em todos os campos: renovação teológica e
litúrgica, crescimento no campo missionário e do movimento ecumênico,
Encíclicas abordam questões vitais e influenciam as estruturas sociais. O grande
marco histórico da caminhada da Igreja, sua grande realização é o Concílio
Vaticano II. Ele imprime um novo dinamismo e suscita um novo sopro do Espírito
na Igreja. Despojada, a Igreja volta-se para o modelo das primeiras comunidades.
Vendo-se cada vez mais como servidora, a Igreja continua a ser mãe e mestra, se
coloca a olhar o mundo, não como campo de conquista, mas como filho a ser
resgatado, orientado.
Uma das intuições importantes deste Concílio é a compreensão da Igreja
como Povo de Deus. Não é por acaso que na Constituição dogmática Lumen
Gentium, o capítulo sobre o Povo de Deus precede o da hierarquia da Igreja. Neste
145 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 171.
111
precioso documento passa-se de uma visão de Igreja-hierarquia à uma visão Igreja-
povo de Deus. Seu primeiro capítulo, intitulado “o Mistério da Igreja”, abre uma
perspectiva de Igreja Mistério e não mais, Igreja sociedade perfeita. Igreja Mistério,
explica Libânio, significa Igreja sacramento,
A Igreja é, portanto, situada numa perspectiva sacramental. Ela é sinal,
presencialização do plano do Pai de salvar todos os seres humanos na caridade do
Filho, feito homem, redentor e mediador, e na efusão do Espírito, princípio de união e santificação dos remidos. Ela dirige apelo a todos a formarem o Povo de
Deus146.
A Igreja é então compreendida como obra da Trindade. Pela comunhão das
três Pessoas podemos afirmar que o princípio criador e sustentador de toda unidade
de grupos, na sociedade e na Igreja deve ser a comunhão entre todos os
participantes, sem que haja lugar para autoritarismo religioso ou a qualquer tipo de
discriminação, por cor, cultura, sexo, etc.
Nesta perspectiva de Igreja-mistério compreende-se, agora, Igreja como
atualização do Reino de Deus. Assim, ela deixa de ser compreendida como a
identificadora do Reino para ser de anunciadora do Reino. E na própria
compreensão da dinâmica do Reino, mediante uma leitura fundamentada na Bíblia,
ela se conscientizou das implicações para a autocompreensão do cristianismo. A
Igreja, não é o Reino, mas testemunha e antecipa o Reino, atualizando o que Jesus
faz às pessoas de seu tempo.
O Concílio Vaticano II constitui assim não um novo evangelho, mas uma
nova maneira de ler o evangelho. E trata-se de uma maneira nova, que na verdade,
é uma volta às fontes, ao espírito impulsionador das primeiras comunidades. É tão
profunda esta mudança, com relação ao período da cristandade, que se pode falar
de uma nova e melhor compreensão da Boa Notícia de Cristo, pode-se falar de
Igreja antes ou depois do Vaticano II.
No dizer de L. Boff, todo cristão está na “Igreja com a mesma missão e
mensagem de Cristo: anunciar e ir realizando aos poucos o Reino de Deus no meio
dos homens”147. A Igreja tem sua razão de ser em Jesus Cristo, que ela faz presente
146 LIBANIO, J. B., Concílio Vaticano II, p. 108. Na Constituição dogmática Lumen Gentium Igreja
é também descrita sob a forma de várias imagens bíblicas: redil cuja única porta é Cristo; agricultura
ou campo de Deus; construção de Deus; Jerusalém do alto; nossa mãe; esposa imaculada do Cordeiro
imaculado. Apresentada como Corpo místico de Cristo; simultaneamente visível e espiritual. Cf.
CONCÍLIO VATICANO II., “Lumen Gentium”, n. 6-8, pp. 42-48. 147 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 147.
112
no meio da humanidade. O fato de se ter uma visão de Igreja, assumida a partir do
Concílio já é fruto de um processo. Gutierrez ressalta que a novidade do Vaticano
II é ter ele partido de uma compreensão iluminada pela Palavra de Deus e o
envolvimento de maneira fecunda e crítica ao processo já em curso148. A Igreja
perdia sua possibilidade de influenciar os poderes a partir do exercício do próprio
poder. Ela assume uma feição muito mais profética, de denúncia das injustiças e
anúncio da esperança. A própria situação social do mundo moderno exigia uma
postura e uma tomada de posição, particularmente a injustiça e a crescente pobreza.
O novo tipo de Igreja, então, nasce como resposta dada na fé às realidades que
gritavam por vida, às dificuldades de diálogo, de encontro e comunhão entre todos
os membros do povo de Deus. Em suma, compreende-se que o Reino de Deus quer
ser Reino que começa já neste mundo, assim também deve começar aqui o processo
de libertação149.
A situação social humana de miséria exige atenção, quando confrontada
pelo Reino inaugurado por Jesus. Ela provoca, assim, que a Igreja tome uma posição
frente à sua realidade, ao mesmo tempo em que nela e a partir dela dê testemunho
do Evangelho. Esta provocação que faz acontecer na América Latina, a Conferência
em Medellín150 e posteriormente em Puebla151. Estas conferências, por
privilegiarem a colegialidade, indicam uma continuidade e um amadurecimento do
processo iniciado no Concílio Vaticano II, o qual recomendava uma Igreja atenta
aos sinais dos tempos. O desdobramento da missão eclesial na América Latina
supõe olhar de frente a desumana situação de pobreza e opressão em que vive a
imensa maioria do povo neste continente e ser sensível à sua aspiração à libertação.
Urge que no caminho a Igreja tenha diante de si estas realidades e que as confronte
com a mensagem do Reino de Deus. A aplicação das propostas do Concílio
Vaticano II na América Latina exigiu uma revisão da vida, que levasse em conta a
realidade dos pobres e oprimidos. “A relevância do pobre para o Reino de Deus e,
148 Cf. GUTIERREZ, G., “O Concílio Vaticano II na América Latina”, p. 18. 149 Cf. AZZI, R., “A teologia no Brasil”, p. 42. 150 Em 1968, reúne-se a II Conferência Geral do Episcopado da América Latina, em Medellín,
Colômbia. Seu tema: A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio quis
definir sua missão a partir dos princípios da fé e da realidade sócio-cultural do continente. 151 Em 1979, acontece a III Conferência Geral do Episcopado da América Latina, em Puebla,
México, com o tema: A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Puebla adota uma
linha mais voltada para a realidade sócio-cultural e religiosa do continente. A Igreja vai se
delineando cada vez mais como Igreja povo de Deus, pobre e servidora, missionária e profética, em
comunhão com a Tradição, mas em ruptura com modelos e práticas da cristandade. Cf. MATOS, H.
C. J., Nossa História, p. 237.
113
por isso mesmo, para o anúncio do Evangelho, é o nervo da mudança que a Igreja
latino-americana experimenta”152. Trata-se de anunciar, proteger, defender a vida
que provém do Ressuscitado.
O denominador comum entre as duas conferências episcopais, Medellín e
Puebla, é a avaliação da realidade à luz do Vaticano II e, simultaneamente, o
enfrentamento do desafio da pobreza e da urgente presença transformadora nas
estruturas sociais. Na América Latina, a Igreja quer ter rosto próprio, com as marcas
faciais do sofrimento, das alegrias e dos anseios dos povos da América Latina e
Caribe. Ela quer ser uma Igreja que sente a necessidade de pôr-se em defesa do
povo e defender os direitos humanos, de superar a situação de opressão e exclusão
em que vive a maioria do povo, criando comunhão e participação. Refletiu-se
bastante sobre a pobreza e a libertação. A miséria é vista como fato coletivo e de
injustiça que clama aos céus. Ela não é mero fruto do acaso, mas é produzida. Na
estrutura injusta e desigual da sociedade, o pobre é oprimido. O projeto que urge é
o da libertação. Depois destas reflexões, a Igreja não conseguirá mais fechar seus
olhos frente às realidades injustas e desumanas153.
L. Boff explicita a trajetória de Roma para América Latina.
Se o Vaticano II significou uma abertura ao mundo, Medellín representou uma abertura ao submundo. Ao invés de ratificarem o termo desenvolvimento,
inauguraram a linguagem da libertação. Oficializaram as bases para a Teologia da
Libertação, que estava nascendo naquele exato momento e que já influenciara os textos de Medellín154.
Esta nova visão eclesiológica traz uma nova concepção de Salvação. Ela já
começa neste mundo embora ainda não esgote na realidade terrena. A salvação
compreendida na teologia do Reino e no compromisso com a justiça é o eixo da
Teologia da Libertação.
O processo de libertação humana é a concretização histórica da libertação de Deus
[...] A libertação é humana porque é efetivada pelo homem em sua liberdade; entretanto é Deus quem move e penetra a ação humana de tal forma que a libertação
possa ser dita como libertação de Deus. O processo histórico antecipa e prepara a
definitiva libertação no Reino; as libertações humanas ganham uma função
sacramental: possuem seu peso próprio, mas também sinalizam e
152 Cf. GUTIERREZ, G., “O Concílio Vaticano II na América Latina”, p. 48. 153 Cf. BOFF, Lina., “A esperança como teologia da história”, pp. 133-153. 154 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 173.
114
antecipatoriamente concretizam o que Deus preparou definitivamente para os
homens155.
A Teologia da Libertação salienta a dimensão transformadora da fé cristã
no sentido de uma libertação integral. Parte da constatação de a América Latina ser
um Continente marcado por estruturas de injustiça social, com a maioria de sua
população constituída por pobres. Ela não se restringe a aspectos econômicos, mas
visa a pessoa no seu todo. Trata-se de uma teologia que privilegia a práxis, isto é, a
ortopráxis precede, inspira e acompanha a ortodoxia. No centro de seu interesse
está a evangélica opção pelos pobres, preferência encontrada na própria figura
histórica de Jesus. Esta opção implica o caminhar de mãos dadas com a promoção
da justiça e a instauração de relações mais fraternas.
A própria vida, a libertação, quando afirmadas radicalmente e assumidas
com toda a responsabilidade, mostram a dimensão vertical e horizontal, a imanência
e a transcendência. Quando captadas juntas, elas nos abrem para a transparência de
Deus no coração de nossas lutas156.
A Teologia da Libertação tem em vista que a resposta humana mais
importante e necessária, no contexto da América Latina, é a opção em favor dos
pobres e contra a pobreza estrutural, por se tratar de uma opção evangélica. Tem se
tornado cada vez mais evidente que a atitude evangélica e ética em estar ao lado do
pobre, defender seus direitos, tem enorme alcance na realidade157 da América
Latina onde a injustiça e a pobreza são produzidas por mãos humanas. Trata-se de
dar uma resposta importante e urgente no contexto da América Latina. Jesus vai à
frente, cria nova consciência de solidariedade. Com ele começa de fato a libertação
que convida à solidariedade amorosa para com a outra pessoa.
Boff possui teologicamente uma maestria rara e bela ao falar de assuntos
que tocam a vida humana, ao mesmo tempo em que reporta ao Eterno. Ele esteve
presente nos inícios da reflexão que procura articular o discurso indignado frente à
miséria e à marginalização com o discurso promissor da fé cristã gênese da
conhecida Teologia da Libertação, perspectiva da América Latina que possibilita
155 BOFF, L., A graça libertadora no mundo Apud AZZI, R., “A teologia no Brasil”, p. 42. 156 LEMOS, R. C.R., “Reino de Deus, experiência que aponta para a vida” Apud BOFF, L.,
Dissertação (Mestrado em Teologia) pp. 99-101. 157 Conforme Pietrzak, professor doutor na Universidade católica de Lublin/Polônia, a eclesiologia
de L. Boff tem os pobres como sua perspectiva fundamental. A partir dos pobres, ele vê a realidade
humana e procura recuperar a sua dignidade. Cf. PIETRZAK, A., Povo de Deus segundo Leonardo
Boff, p. 30
115
encontrar sentido na vida. “Leonardo Boff no Brasil, Gustavo Gutiérrez no Peru e
Franz Hinkelammert no Chile e na Costa Rica, junto com muitos outros,
incentivaram, a partir da perspectiva das vítimas, o surgimento de novos
caminhos”158.
Sobre esta teologia, L. Boff descreve:
O grito do oprimido conheceu uma poderosa reflexão calcada sobre práticas solidárias de libertação. Delas nasceu a teologia da libertação. [...]. A teologia da
libertação tem feito bem aos oprimidos e marginalizados, pois tentou convencê-los
de que sua causa tem a ver com a causa de Deus na História e que se inscreve no coração da mensagem e da prática de Jesus159.
Com o advento da lógica de exploração da terra, ele ausculta outros gritos,
e por isso amplia as intuições de sua teologia. A teologia da libertação põe em relevo
as questões dos pobres e oprimidos que anseiam por libertação e as questões da
terra que está ferida e doente.
A Terra também grita. A lógica que explora as classes e submete os povos aos
interesses de uns poucos países ricos e poderosos é a mesma que depreda a Terra e
espolia suas riquezas, sem solidariedade para com o restante da humanidade e para com as gerações futuras160.
É praticamente de domínio público, pelo menos entre os que buscam
acompanhar sua vida e obras, a difícil e sofrida relação de Leonardo Boff com a
Igreja, em sua vertente institucional e as consequências das penas eclesiásticas que
lhe foram aplicadas pela Congregação para a Doutrina da Fé. Naturalmente,
também na opinião pública, há divergências entre aqueles que vibram com seu
pensamento e, de certa forma, sentem que o modo como ele fala de Cristo e seu
Evangelho faz suscitar um compromisso com a vida, em todas suas dimensões, e
aqueles que discordam de seu pensamento. No aspecto particular das penas, por
exemplo, há quem visse incômodos resquícios da Inquisição. De outro lado, pessoas
houve que as aprovassem, reputando-as necessárias. Em suma, poderia dizer-se que
seu pensamento ainda incomoda a muitos, mesmo depois de ter feito uma mudança
radical: de sacerdote para leigo. Por quê? O lugar eclesial do autor em estudo e sua
trajetória poderá sinalizar o sentido de sua teologia e de sua vida.
158 BLANK, R., Encontrar sentido na vida, p. 80. 159 BOFF, L., Dignitas Terrae, p. 11. 160 Ibid., p. 12.
116
Na história há acontecimentos que marcam indelevelmente a vida das
pessoas, como por exemplo, o nascimento de uma criança, a publicação da
monografia, a visão do alto da montanha. Nestes momentos, brota no mais profundo
do coração humano a exclamação que há uma ordem e presença do divino em cada
ser, uma harmonia nas relações, um salto em direção a humanidade. Estas marcas
lançam verdadeiras luzes na história e sublinham a beleza de toda a criação. A
história tem também suas sombras. A rejeição pura e simples ao novo por vezes
aborta possibilidades da vida que, se levadas a termo, poderiam ser muito férteis.
Acresça-se a arrogância ao tecer crítica e a razão que instrumentaliza o olhar para a
criação.
A década de 80, do século XX, ou melhor, o lançamento do livro: Igreja:
carisma e poder. Ensaios de eclesiologia militante. Petrópolis: Vozes, 1981, de
Leonardo Boff, marca uma nova e sombria fase em sua vida. Suas palavras
sintetizam e apontam o seu horizonte teológico de sentido: mudei de trincheira para
continuar na mesma luta.
Mudanças bruscas acontecem. Interlocutores trocam de posição.
3.1.3. Interlocutores do pensar teológico
Uma questão importante para esta pesquisa são os interlocutores do pensar
teológico de Leonardo Boff. Historicamente, todo pensamento vigoroso gera
aplausos e oposições. Com L. Boff não seria diferente. Trata-se, pois, aqui de tomar
consciência da controvérsia que algumas pessoas levantaram, seja quase
imediatamente, em alguns casos, bem como outros posteriores ao ano de 1982.
Mesmo onde antes havia concordância de pensamento, ou seja, – entre alguns
117
companheiros dos inícios, houve mudança de intenso significado na comunicação,
a qual repercute vivamente em muitos outros161.
Há muitos interlocutores de Leonardo Boff. Em páginas da Internet, assim
como outros Meios de Comunicação Social as pessoas discutem, opinam, refletem,
questionam. Em suma, interagem com seu pensamento. Os escritos sobre sua
pessoa e pensamento são também numerosos e continuam a se multiplicar. Seu
pensamento global e sua capacidade de comunicação fazem brotar estudos que
extrapolam a teologia. Assim, já a pluralidade de seus interlocutores, bem como a
abrangência de seu pensamento, sua capacidade de apropriar de várias ciências, sem
perder de vista a fé cristã, requerem uma delimitação de tema a quem queira
interagir.
Uma das razões desta pluralidade e abrangência é, pode-se adivinhá-lo, a
complexidade da experiência que faz L. Boff de Jesus de Nazaré, aquele, que, no
seu dizer, e isso se tornou marca registrada sua: “O homem Jesus de Nazaré revelou
em sua humanidade tal grandeza e profundidade que os Apóstolos e os que o
conheceram só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus
mesmo”162. A pessoa fala humanamente de Deus o qual fala divinamente da pessoa.
Este teólogo se abstém de enveredar pela via das demonstrações racionais
da existência do infinito criador e do espírito humano imortal, ou da diferença entre
o Criador e suas criaturas. Para ele está ultrapassada a discussão entre razão e fé e
161 O aspecto a ser abordado e de grande importância para a pesquisa serão as controvérsias
teológicas no seu aspecto geral, e não tanto uma delimitação particular. Compreende-se que o foco
desta pesquisa não é a polêmica em torno do livro: Igreja: carisma e poder. Ensaios de eclesiologia
militante. A área de concentração é a teologia sistemática pastoral. Sua pertinência teológica está no
pressuposto dos sérios desafios colocados à teologia pela civilização pós-moderna. Entre eles, a
questão do sentido da vida é dos mais exigentes. Frente a tal desafio, a antropologia teológica, ao
tematizar a originalidade da existência humana, apresenta uma proposta de perpassar e transcender a história humana, para reconduzir a vida a seu profundo sentido. Assim os importantes campos de
Eclesiologia, Sacramentologia Moral, estão fora do propósito. A pesquisa também não versa sobre
o Tratado sobre a Trindade, muito embora esteja em interdependência com ela. O livro do autor em
estudo, datado de 1981, que se tornou polêmico, concentra-se na eclesiologia. Todos estes temas são
naturalmente de interesse. No entanto, uma abordagem mais ampla desviaria o foco desta pesquisa:
a vida e seu sentido. Para quem esteja pessoalmente interessado, pode-se encontrar uma análise da
polêmica entre Leonardo Boff e a Arquidiocese do Rio de Janeiro, e o encadeamento do processo
eclesiástico em Roma durante o papado de João Paulo II e então Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé em Roma, Cardeal Joseph Ratzinger, em LACERDA DE BRITO, Lucelmo. Uma
análise da polêmica em torno do livro. 162 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.
118
sobre a diferença e separação entre corpo/matéria e alma/espírito. A seu holismo163
é estranho um universo hierarquizado, no qual seres superiores dominam e
governam os inferiores, imagem que reproduz e ideologicamente justifica as
concretizações históricas do poder.
Na multidão de interlocutores, alguns requerem maior atenção em dialogar
com L. Boff. Entre muitos, três serão destacados164.
O primeiro trata-se do suíço, Dom K. J. Romer165, que serve à Arquidiocese
do Rio de Janeiro. O segundo, Paulo Agostinho166, é professor na PUCMinas no
Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião. Fez seus estudos de mestrado
163 L. Boff pensa a palavra ‘holismo’ vinda do grego ὅλος. Significa completude. Trata-se de pensar
o todo nas partes e as partes no todo. Sua percepção busca colocar tudo em diálogo em todas as
direções e momentos. Assim, não se discutirá se Leonardo Boff é panteísta malgrado seu; por não
ser preocupação de nenhuma temática desta pesquisa. Com a possibilidade de leitura de o Espírito
estar em todas as coisas, temos uma Ortodoxia sólida e isto bastará, porque, feito isto, seu pensamento e sua atividade teológica que prosseguem entre nós continuam a ter vigor iluminativo
para a teologia de nosso tempo. Em sua obra, Id., O despertar da águia. L. Boff esclarece que sua
compreensão de espírito, não o associa a uma substância, mas ao modo singular de ser humano
conectado ao processo cosmogênico, na história e no cosmos. Desta perspectiva cosmogênica,
espírito é compreendido como a capacidade de interação das energias primordiais e da própria
matéria até a construção de inter-retro-relações que asseguram o universo. Outrossim, é preciso
discernir as afirmações de espírito, entre sentido: alegórico, figurado, próprio. E mesmo se ele afirma
que: todas as coisas possuem espírito, ou, todas as coisas têm em si o Espírito. L. Boff afirma a
presença do espírito em todas as coisas, porque o universo das coisas não é o universo das coisas
isoladas, sendo antes panrelacional: todos, seres vivos e não vivos, participam em seu grau próprio
do espírito e da vida; espírito significa criação, autotranscendência, movimento em direção a
realizar. Espírito é vida e relação. 164 A escolha não é aleatória. Não somente estes, mas os três dialogantes – um bispo, um leigo
católico e o outro, um pastor presbiteriano – expõem o pensamento de L. Boff, tornando explícita
sua constância teológica sobre a vida, ainda que eles pertençam a lugares sociais, temáticas e
interesses bastante diferentes. Cada um a seu modo, contribui para que a teologia de L. Boff se torne
mais conhecida e revele sua atualidade. Com o processo desencadeado pela Igreja do Rio de Janeiro,
o pensamento de L. Boff estendeu-se para outros Continentes. Paulo Agostinho postula, que em
dado momento, surge um novo paradigma no pensar de L. Boff. Isso não é um consenso e mesmo
esta pesquisa não adota este ponto de vista. Mas é bastante comum dizer-se isso do autor em
pesquisa. França Matos ao criticar a teologia e a ética social de L. Boff deixa entrever sua tenacidade
de fazer uma teologia que pensa uma ética social e apropria-se ontologicamente da evolução do
universo na reflexão de T. de Chardin. 165 Karl Josef Romer, atualmente Bispo auxiliar emérito, nascido na Suíça. Em 1958 obteve o
doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Em 1965, logo após sua ordenação
sacerdotal foi chamado por Dom Eugênio Sales para atuar no Brasil, em Salvador-Bahia. Em 1975,
no Rio de Janeiro, recebe a sagração episcopal. Ex-presidente da Comissão Arquidiocesana para a
Doutrina da Fé do Rio de Janeiro. DOM ROMER., “Dom Karl Josef Romer”. 166 Paulo Agostinho Nogueira Baptista, doutor e Mestre em Ciências da Religião, pela Universidade
Federal de Juiz de Fora/Minas Gerais, com pós-doutorado em Demografia pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Em 2001 obteve o Mestrado e em 2007 o Doutorado em Ciência da
Religião em Leonardo Boff na ótica da Teologia da Libertação e Pluralismo religioso e no que
chamou de Teologia teoantropocósmica de L. Boff. Cf. PLATAFORMA LATTES., Paulo
Agostinho Nogueira Baptista.
119
e doutorado em Leonardo Boff. O terceiro, o brasileiro, França Mattos 167, falecido
em 2004, fez seus estudos assentados numa Análise e crítica da teologia e da ética
social de Leonardo Boff, nos EUA.
Do primeiro interlocutor, Dom Karl Josef Romer, pode-se pontuar sua
publicação na Revista Eclesiástica Brasileira, datada de 1972168. E outra, na Revista
do Clero da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a seu pedido, datada de 1982169. No
contexto brasileiro da ditadura militar, L. Boff publica seu livro “Jesus Cristo,
libertador”170. A revista traz uma elogiosa apresentação de autoria do então Dr. Pe.
Karl Josef Romer. Já no início, ele escreve “Desde o primeiro capítulo o autor
(Leonardo Boff) se distingue por uma incomum clareza de linguagem...”171. E
conclui sua apreciação,
A obra de Leonardo Boff comunica um amplo e profundo conhecimento; reflete
uma teologia responsável, comprometida com a fonte, orientada na Tradição autêntica, questionada e questionante a respeito do homem moderno. Escrito numa
linguagem agradável o trabalho que oferece não poucas vezes ideias fascinantes,
supõe uma certa preparação da parte do leitor. O livro merece ampla divulgação.
Agradecemos ao autor esta teologia que é um vivo testemunho da fé, e – “partindo de Jesus” – conduz seguramente ao seu Mistério Divino172.
Já em posição inversa, em 1982, Dom Romer assume uma recensão feita
por Urbano Zilles173 na qual este afirma que o pensamento eclesial de L. Boff em
seu livro, Igreja: carisma e poder, “parte do pressuposto de que a Igreja
institucional, que aí existe, nada tem a ver com o Evangelho. Nela tudo é mentira e
ilusão. Deve ser desmascarada e desmitificada. L. Boff mostra-se um mestre da
desconfiança”174. Logo em seguida, L. Boff envia a título de informação a crítica
de Urbano Zilles, assumida pela Comissão de Doutrina do Rio de Janeiro, e sua
167 Luiz Roberto França de Mattos, ex-pastor da Igreja Presbiteriana, obteve seu doutorado em
Filosofia em 2001 nos Estados Unidos no Calvin Theological Seminary, com o tema “An analysis
and critique of Leonardo Boff’s theology and social ethics”. 168 ROMER, K. J., “Apreciações”. 169 Id., “Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé”, pp. 26-30. 170 Por volta de 1971, ao longo do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) a Ditadura
militar atingiu seu auge. Nesses Anos de Chumbo, foi criado um sistema legal repressor que exercia
vigilância sobre as instituições civis e religiosas. Criou-se uma censura que proibia manifestações
de opiniões e expressões culturais. O período foi marcado pelo uso de meios violentos como a tortura
e o assassinato. Nesta época, surgiram vários movimentos de ‘libertação popular’. Por isto, toda
ideia de Libertação era vista com profunda desconfiança pela repressão político-militar. 171 ROMER, K. J., “Apreciações”, p. 490. 172 Ibid., p. 493. 173 ZILLES, U., “Boff, Leonardo, Igreja: carisma e poder”. 174 Id., “Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé”, p. 27.
120
resposta à Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Inicia uma série de
discussões, através de cartas de informação, esclarecimentos, réplicas, tréplicas175.
Se no início o alvo era o livro, agora o homem, Leonardo Boff, é notificado
com a pena eclesiástica do Silêncio obsequioso. O desfecho na vida de L. Boff foi
seu desligamento da Ordem Franciscana e dispensa do sacerdócio. No entanto, ele
permanece na mesma esteira de uma teologia que experimenta unir o destino da
vida na história com a vida na transcendência. Com isto L. Boff salvaguarda sua
atuação em favor dos pobres, os amados do Pai. As penas e punições sofridas,
descreve, “são nada face à paixão diuturna dos pobres”176.
O segundo dialogante é Paulo Agostinho Nogueira Baptista o qual defende
a vigência de um novo paradigma de construção intelectual, no pensamento de L.
Boff. Em sua dissertação de Mestrado, busca articular o diálogo inter-religioso e a
Ecologia em L. Boff como religação entre o ser humano, cosmos e Deus. E seu
doutorado, prossegue ao afirmar que a teologia de Leonardo Boff pode ser
compreendida como uma Teologia Teoantropocósmica. Afirma haver uma
mudança de paradigma em L. Boff após 1990/1993. Torna-se, segundo ele, agora,
uma Teologia Pluralista da Libertação, isto é, uma teologia de libertação e diálogo
que articula Teologia da Libertação e Pluralismo religioso. E na reflexão do
pluralismo religioso, inaugura o pluralismo inclusivo teoantropocósmico 177. Para
o pesquisador, o paradigma ecológico de L. Boff segue uma teologia que se põe em
diálogo. É no diálogo entre Deus, o ser humano e a natureza que acontece o milagre
da vida.
Em sua página na Internet L. Boff cita estas duas pesquisas. Demonstra
assim aceitá-las como uma proposta de leitura de seu pensamento. Ao tratar do novo
paradigma teológico, que inclui, necessariamente o aspecto ecológico e cósmico da
vida, L. Boff sublinha que o ser humano não é o centro para onde tudo aponta. O
175 O diálogo conflitivo perdura. Em 2007, aquele que era Prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé em Roma em 1982, Joseph Ratzinger em notas bibliográficas, cita Leonardo Boff como o
teólogo que contradiz o significado autêntico do texto do Concílio em sua interpretação à palavra
“subsistit in”. O cardeal explica que a fórmula subsistit in, significa existir “uma só ‘subsistência’
da verdadeira Igreja, ao passo que fora da sua composição visível existem apenas ‘elementa
Ecclesiae’, que — por serem elementos da própria Igreja — tendem e conduzem para a Igreja
Católica”. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ., Declaração Dominus Iesus, nota
bibliográfica, n. 56. 176 BOFF, L., A vida aos 70 anos. 177 Cf. BAPTISTA, Paulo Agostinho N. Libertação e Ecologia. A teologia teoantropocósmica de
Leonardo Boff. São Paulo, Paulinas, 2011.
121
ser humano não é o absoluto, nem a culminância da seta da vida. Assim afirma que
“nenhum antropocentrismo nem humanismo derivado dele se justifica”. No entanto,
ele possui uma singularidade e uma missão. A dimensão ética é que sinaliza seu
diferencial. Portanto, “a partir de seu surgimento, a evolução não se faz apenas
obedecendo ao curso das forças diretivas universais, mas tem que contar com a
intervenção, seja cooperativa, seja destrutiva do ser humano”178.
Em diálogo crítico, Luiz Roberto França de Mattos faz uma análise e crítica
da teologia e da ética-social de L. Boff, a partir de sua plataforma que é a teologia
calvinista. O pesquisador tece amplos elogios ao pensamento de Boff, mas entende
que o panenteísmo o compromete. Ele credita que o objetivo da ética social de L.
Boff seria atingido, e haveria superação das deficiências inerentes ao panenteísmo,
quando a doutrina da Encarnação de Deus estivesse em combinação com a ética
neo-calvinista179. O propósito de uma tal mudança de perspectiva seria preservar a
radical diferença da natureza divina, com relação às naturezas humana e cósmica,
ou seja, a natureza criatural, diferença que, sempre segundo ele, o panenteísmo não
conseguiria sustentar. O valor deste estudo pode ser considerado pela séria e
fundamentada análise do pesquisador e sua leitura da obra de L. Boff em outra ótica
que não a tradição católica.
Na leitura das contribuições dos diversos interlocutores, constata-se que o
pensamento de L. Boff mantém seu mesmo ponto de origem, e sua tese doutoral:
pensar a Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo. Esta
coerência, ele a mantém sofrendo, embora, fortes embates e tendo que se haver com
as instâncias de vigilância doutrinária da Igreja. Neste momento, sua existência
toma consistência e extravasa seus escritos de que a vida é Mistério, não só a vida
humana, mas a vida em geral e o universo em evolução.
3.1.4. Evolução e revolução no pensamento teológico
Será a evolução uma revolução? Estas categorias dialogam ou no máximo
caminham lado a lado? Um destes pressupostos obrigatoriamente descarta ou supõe
178 GUIMARÃES, J., Leituras críticas sobre Leonardo Boff, p. 184. 179 MATTOS, L. R. F., An analysis and critique of Leonardo Boff's theology and social ethics, pp.
114-115.
122
o outro, como o elo de esteira? Talvez, se contraponham, ainda que possam ser
discutidas em paralelo? É um paralelismo harmônico ou digladiador? A
compreensão de evolução e revolução encontra lugar no pensamento teológico de
Leonardo Boff?
Para verificar estas hipóteses será necessário escutar de L. Boff quais as
correntes e teólogos que mais influenciaram em sua formação teológica. Ele
sublinha tais autores, destacando seguramente Teilhard de Chardin, com sua visão
cósmica de Cristo180. Seu primeiro livro não podia ser outro: O Evangelho do Cristo
cósmico, 1971. Nesta Obra, o autor intenciona expor o pensamento do Cristo
cósmico em Teilhard de Chardin. Este jesuíta busca explicitar a relação entre Cristo
e o cosmos. Ele medita e fala da imersão e transfiguração de Cristo no coração da
matéria. T. de Chardin propõe uma cristologia cósmica como fundamento da
unidade da realidade.
A questão da unidade da realidade, na Trindade de Deus e na pessoa
humana, é um tema trabalhado desde os primeiros séculos do cristianismo. Para
Irineu de Lyon, tudo o que Deus toca é marcado pelo selo da unidade: o Deus único
chama e conduz o ser humano a unir-se a Ele. Esta comunhão realizar-se-á pela
única salvação, que é obra do único Filho e do único Espírito. “O próprio Senhor
nos prometeu enviar o Espírito Paráclito: para nos adaptar a Deus”181.
T. de Chardin debruça-se sobre o problema da unidade em coerência com a
concepção do mundo, as culturas, mormente a moderna e a fé cristã182. Sua
originalidade consiste nesta busca de unidade pensada para alcançar o movimento
evolutivo da história, englobando a totalidade do ser. Sua concepção evolucionista
180 L. Boff confessa a influência que lhe permitiu abrir horizontes de pensar a vida a partir da leitura
de Teilhard de Chardin “com sua visão cósmica de Cristo”. Entretanto ressalta, “mas curiosamente,
eu nunca me senti dependente de mestres. Procurei persistentemente pensar com a minha própria
cabeça e formular do meu jeito os problemas também linguisticamente”. GUIMARÃES, J., Leituras
críticas sobre Leonardo Boff, pp. 171-172. Para Mattos a apreciação de Leonardo Boff por T. de
Chardin está em assumir suas intuições e pelas frequentes citações em seus trabalhos. Cf. MATTOS,
L. R. F., An analysis and critique of Leonardo Boff's theology and social ethics, pp. 35-37. 181 FOLCH GOMES, C., Antologia dos Santos Padres, p. 123. 182 Pierre Teilhard de Chardin – padre, jesuíta teólogo, filósofo, geólogo e paleontólogo francês
(1881 – 1955) – buscava pela ciência abrir caminhos de estudo do ser humano no passado e no
futuro. Assim, o instrumental técnico e científico seria a passagem para a religião e a mensagem
cristã. Smulders descreve que a partir do estudo da Ciência da terra, Teilhard foi conduzido à
descoberta de uma dimensão antropológica, a ponto de não conseguir ficar indiferente “ante o
imenso fenômeno terrestre que constitui a vida e particularmente a existência do homem”. Interessa-
se pelo ser enquanto em conexão com todas as coisas. A chave de interpretação para aprofundar no
fenômeno humano será o conceito de evolução. Contudo, o evolucionismo apresentado não será
aquele darwiniano da seleção, o aporte teilhardiano vai além, o dinamismo desta evolução é a
complexificação. SMULDERS, P., A visão de Teilhard de Chardin, pp. 26-29.
123
é dinâmica e existencial. O mundo está sempre em mudança, em ascensão para uma
meta determinada. Os pontos centrais da evolução são o aparecimento da pessoa
humana e a união da humanidade com o Cristo pessoal no fim dos tempos. O
universo constitui um único todo coerente, mas não estático. Antes desenvolve um
itinerário evolutivo183.
A ciência marcou T. de Chardin como resposta à exigência da racionalidade
para com o real. Ao mesmo tempo, a fé cristã influencia-o pela sua visão da história
como convite final à contemplação do amor de Deus em todas as coisas. Nesta
perspectiva, torna-se compreensível sua pergunta: “o Cristo dos Evangelhos,
imaginado e amado dentro das dimensões de um mundo mediterrâneo, será capaz
ainda de abarcar e de conformar o centro de nosso universo prodigiosamente
expandido?”184. Não terá a ciência avançado demais de modo que a fé cristã não
mais a possa acompanhar?
Acontece que as diversas ciências afirmam que a terra e a natureza humana,
toda a criação ainda está em devir. O universo permanece inacabado. Disto,
Teilhard conclui que a vida humana encontra espaço aberto para mais ser, para a
esperança. O ser humano é ser com Deus, colaborador na criação. Em sua busca do
que está por vir, ambas fazem a experiência do advento do maravilhamento.
Nesta sequência, há uma harmonia relacional entre criação e evolução. Com
efeito, a evolução não pode ser explicada por si mesma, ainda que recorrendo a
argumentos científicos de que a vida surgiu e evoluiu de maneira lenta e
progressiva, com a participação ativa de inúmeras substâncias e reações químicas.
Ela precisa da criação para existir. Pode-se falar disto, a partir da incompletude
mesma do mundo criatural. Por isto é coerente falar de criação da evolução. Por seu
lado, a criação não existe para si mesma, mas para o Reino de Deus. Deve, pois,
haver também um caminhar, uma evolução da criação, de tal forma que nela possa
emergir, pela própria força do Espírito de Deus que sopra aonde quer, sobre todo
aquele que nasceu do Espírito (cf. Jo 3,8). É o que Teilhard de Chardin chamava de
antropogênese.
Deus não mais é concebido como o grande arquiteto ou o relojoeiro que
depois de fabricar o mundo, deixa-o funcionar, segundo suas leis naturais, sem
183 JBLIBANIO., Site. 184 TEILHARD DE CHARDIN, P., The Divine Milieu. Apud HAUGHT, J. F., Cristianismo e
ciência, p. 8.
124
manter com ele qualquer relação. Nesta perspectiva, o mundo, uma vez criado,
basta-se a si mesmo. A criação fica absorvida pelo passado morto, fechada ao
futuro, à criatividade e à novidade do momento presente. Bem compreendido, o
futuro, aqui, não é futurismo, mas uma possibilidade real de vir-a-ser. Afinal
“somos chamados, não a restaurar um passado de perfeição, que nunca existiu, mas
a viver a abertura a um futuro de criação nova”185.
Para Teilhard, Deus está continuamente envolvido com o processo cósmico,
quer como seu Criador, quer como seu Salvador, sem, no entanto, interferir nas leis
naturais. Antes respeita sua autonomia, bem como a liberdade do ser humano.
No pensamento de Teilhard, Deus não é propriamente o motor, como em
Aristóteles. É mais o maquinista, o que guia. Mas é também companheiro e destino.
Assim o futuro do mundo abarca novas e profundas possibilidades em que a
evolução e a criatividade humana podem haurir fontes de sentido, para definir o
mundo. “A restrição kenótica e a futuridade generosa de Deus são tão intimamente
imbricadas com o universo processual que apenas são percebidas, exceto pelos
olhos da fé”186.
Seria ilusão propor a categoria de futuro como porta para o diálogo entre a
fé e a ciência? Não obstante, o desejo que habita todo homem e toda mulher é desejo
de amor, de beleza, de relações saudáveis que orientem suas escolhas. O sonho de
superação da experiência de ser tragado por promessas de vida relativista e
descartável, no mais profundo do ser humano revela algo de futuro que está para
além de si mesmo.
Mas como se dará isto? Como pensar evolução em ligação com a fé
neotestamentária? A fé cristã exige esperança de ressurreição para o ser humano,
para todo o cosmos, já que tudo está interligado, como um nó de relações. O físico
e astrônomo Marcelo Gleiser, que se considera agnóstico, fala da responsabilidade
cósmica do ser humano: “Se o ser humano está sozinho, significa que ele é a
consciência do cosmos e, portanto, somos protetores e guardiões do nosso planeta.
Isso nos leva a uma nova filosofia de vida. É o que eu chamo de
humanocentrismo”187. Este cientista ensina que talvez o ser humano não seja a
185 GARCIA RUBIO, A., “A teologia da criação desafiada pela visão evolucionista da vida e do
cosmo”, p. 47. 186 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 227. 187 GLEISER, M., “Humanity and the Universe”, Anotações pessoais.
125
medida de todas as coisas, como propôs o Grego Protágoras em torno de 450 a.e.C.,
mas somos aqueles que podem medir. E enquanto o ser humano continuar a se
questionar sobre sua identidade e sobre o mundo, a existência terá significado. O
ser humano não está sozinho, nem é o centro físico do universo. Mas ele é futuro
com todo o cosmos. Ele é parte de uma imensa comunidade cósmica.
De caráter particular, a pós-modernidade deixa à mostra um tempo em que
as afirmações da ciência ameaçam a visão cristã do mundo, não por si mesmas, mas
porque são, muito frequentemente, entendidas como única fonte de verdade, mesmo
se vistas de modo relativo. Neste quadro, a fé não pode fechar-se sobre si, como a
se defender de um ataque. A afirmação de que o ser humano é um elemento do
cosmo, mas não se reduz a isso, faz parte do anúncio do interesse de Deus, por nós.
A fé na ressurreição é justamente a derrota da inércia, do mesmismo. Ela
implica uma eterna renovação do ser. No dizer de L. Boff, a pregação de Jesus é
melhoria de transformação global de todas as estruturas, “a novidade e a jovialidade
de Deus reinando sobre todas as coisas”188. O Deus de Jesus é aquele em que
acontece o novo de todas as coisas. Á luz da ressurreição o tempo é vivido com
esperança viva. Ele é o futuro esperado, e já experienciado, é lembrado como
história do futuro de esperança189.
O diálogo franco da ciência com a fé, em Teilhard continuado por L. Boff,
convida a tomar consciência que todos estamos implicados e que participamos do
mesmo destino. Urge, portanto a solidariedade e a interdependência com toda a
vida, ameaçada e em extinção.
Pela ressurreição, o homem Jesus tem significado para os cristãos e ainda,
nesta fé, compreende-se que toda a vida e o sem-sentido da morte têm um sentido
certo: promessa que se realiza. Abre-se uma porta para o futuro absoluto e uma
esperança penetrou no coração humano.
Em sua cristologia, L. Boff afirma que a vida trazida pelo Reino no anúncio
de Jesus, não é somente para alguns, nem para um futuro incerto. De igual modo,
praticar a justiça e defender o direito do pobre não se restringe a solidarizar com
seus sofrimentos ou ajudar a minimizá-los. A Teologia da Libertação assume o
pobre como ponto de partida para interpretar e planejar toda a ação com ele,
deixando que ele, seja o sujeito de sua própria história. Agir com e a partir da
188 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 258. 189 Cf. MOLTMANN, J., Ciência e sabedoria, p. 130.
126
perspectiva do pobre é participar da construção do céu da felicidade, que tanto
anseia o ser humano, já aqui na terra, e não deixar somente para após a morte. Neste
contexto, há em L. Boff o cuidado de não supervalorizar o presente em detrimento
do futuro, caindo num ativismo, ou supervalorizar o futuro em detrimento do
presente, gerando um espiritualismo. O Reino passa, necessariamente, pelos pobres,
mas o Reino é de Deus e é transformação deste mundo, para um mundo totalmente
novo.
A dimensão de integração da existência humana na cristologia de L. Boff
mantém uma unidade entre as duas polaridades: história e cosmos. Isto porque L.
Boff apresenta sua teologia conjugando o mundo das pessoas e do cosmos. O Reino
é ação de Deus que emerge na história humana. Em continuidade, o Reino não é
reforma ou melhoria da situação, mas é transformação total das estruturas deste
mundo, de modo que Deus possa ser Deus e o ser humano possa viver a utopia
existente em cada coração humano de total libertação.
Para o autor em estudo, a vida do Reino de Deus transparece na interação a
evolução e a revolução. O Reino é uma total revolução. A transfiguração total,
global e estrutural da realidade, do humano e do cosmos, envolve toda a existência
da pessoa e do mundo. Deus aparece através do ser humano e do mundo, não
abandonados, pois, a si mesmos, mas na divina Presença.
Torna-se importante examinar a concepção teológica de L. Boff da vida pelo
Reino trazido em Jesus, em suas categorias evolução e inter-retro-relacionamento
ao Mistério.
3.2. Concepção teológica da vida em seu sentido
Há quem identifique a vida, a mais digna de ser assumida, como sendo a
que cultiva o hedonismo, com suas diversas correntes, ao longo da história. Esta
linha de pensamento revolta-se contra outra, e que vê a corporeidade com desprezo.
Os hedonistas, em geral, protestam contra toda forma de repressão, que considere
o prazer um mal. No entanto, a absolutização do corpo traz problema, como
qualquer absolutização daquilo que é relativo. Quando se deixa de ver o corpo como
expressão de interioridade, corre-se o risco de exagerar na animalidade. Sob este
127
aspecto, a vida guiada pelos instintos pode aproximar-se perigosamente à vida dos
animais. Mesmo em se falando de uma busca pelo simples e desinteressado prazer,
há que se sustentar que esta não é a melhor expressão da vida. Muita alegria pode
haver na ausência do prazer e até na presença da dor.
Outros poderiam identificar a vida com a honra. Buscar a vida nas honrarias
significa buscar o reconhecimento de outros para si mesmo. Ora, o desejo de ser
reconhecido, aceito é básico no ser humano. Como tal é um desejo natural e
honesto. No entanto, se colocado como centro gravitacional da expressão humana,
fracassará igualmente. De fato, a ação praticada a partir da mera expressão do ego,
por si só, não tem o horizonte de fazer algo bom, mas de cativar o louvor alheio.
Corre-se o risco de que um louvor menos lúcido valorize algo mesmo ilícito, por
exemplo. Além do mais, mesmo atingindo sua finalidade, não realiza aquilo que é
plenamente humano, também aqui por absolutizar o relativo. De novo faz-se a vida
incompleta, insatisfatória, não alcançando seu fim.
De fato, são conhecidas as multiformes teorias que tentam dar conta da
natureza da vida, cujo teor muda conforme sejam elaboradas por cientistas, artistas,
filósofos. Os lexicógrafos tecem um arcabouço de comparações e divisões nos
verbetes que tratam do tema vida. O horizonte teológico parte em primeira instância
do dado da Sagrada Escritura, mas também do dado social-cultural, onde a fé se
encarna.
A fé cristã testemunha que Deus ama a vida e pelo amor, executa o dom da
criação na história e da salvação. É para nossa humanidade que Deus toma a
iniciativa de comunicar-se e de revelar-se como seu Salvador e Criador. A criação
não é fruto do acaso, mas de uma escolha pensada e concebida no amor em vista da
humanidade e de todo o cosmos.
A expressão de fé do povo da Bíblia é processual, progressiva. A
experiência fundante de ser povo de Deus é a experiência de ter sido liberto da
escravidão do Egito. Também, Deus é percebido como o criador que realiza um ato
de amor não só para com a humanidade, e que acarreta libertação (cf. Êx. 14). A
ação de Iahweh é lida como um ato salvador de seu amor criador, que não abandona
suas criaturas, mas caminha com elas, numa relação de gratuidade. A ação amorosa
de criar e libertar por Deus suscita questões sobre a origem da humanidade, com a
finalidade de integrar a vida em todas suas dimensões. A Economia da salvação é
plena. No anúncio de Jesus, Deus é promessa-cumprimento na história humana,
128
sobretudo na proclamação iminente do Reino que irrompe no mundo com o evento
Cristo: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e
crede no Evangelho” (Mc 1,15).
Em sua palavra-ação, Jesus propõe de maneira definitiva à pessoa humana
a confiança ilimitada no Criador e a certeza de encontrar n’Ele a salvação. O amor
de Deus, revelado em Jesus Cristo, leva a criação e a história da salvação até sua
plenitude. “A união entre a fé no Deus salvador e a fé no Deus criador é realizada
mediante uma relação de integração-inclusão, sendo, assim, rejeitada a visão
dicotômica”190.
Na globalidade da ação libertadora de Jesus, nada que se passa no mundo
carece de sentido. Ao contrário, tudo está incluído no seu plano de salvação. Tudo
tem um significado à luz do projeto divino.
A compreensão da vida seja pela categoria da existência, da evolução ou da
diversidade191 implica análise sob o dinamismo do cuidado reverencial192. Esta
preocupação que não é nem original, nem recente, nem escassa. Tem sido objeto de
indagações incessantes, que mobilizam o pensamento de todas as civilizações e
dando lugar a pluralidade de discursos, com importantes questões éticas,
sociológicas, culturais, ecológicas, espirituais 193.
Há que se falar de uma existência humana com sentido, uma vez que
190 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p.117. 191 Quando se fala de diversidade da vida há dois aspectos distintos a se considerar. Muitas das vezes,
a palavra diversidade serviu para ressaltar as muitas construções humanas (em termos de cultura,
país, cor, língua, sexo, raça, religião, classe social, corpo, etc.). Tendo este parâmetro a diversidade
dos povos é com certeza altamente positiva. Outra seria a diversidade de origem, formação e
constituição, que acarretaria diversidade de valor. Em nome da diversidade chegou-se a negar a
condição de “humano” para alguns povos. Por exemplo, discutiu-se, em certos ambientes, se os
povos ameríndios seriam humanos ou se os negros teriam alma. 192 A compreensão da vida como existência e como evolução será importante para alcançar o
objetivo desta pesquisa. A existência da vida humana abre o primeiro capítulo desta pesquisa e todo
o seu desenvolvimento será nesta compreensão. A compreensão da vida como evolução será mais
explicitada a partir de agora. A vida estando assentada no cuidado compreende a experiência do encontro do humano com o divino. 193 Recentemente a Neurociência tem investigado como o cérebro consegue criar imagens e elaborar
sentimentos finalizados. Danah Zohar e Ian Marshal falam da existência de um terceiro tipo de
inteligência, baseados na determinação do Coeficiente Espiritual (QS) o qual pode ser calculado
com base em pesquisas. Segundo eles, no cérebro humano, existe uma área que deve ser responsável
pelas experiências espirituais, que está sendo chamado Ponto de Deus. Existe o risco de reduzir a
inteligência espiritual, e com ela a busca de sentido, a um ponto fixo no cérebro, na mera
materialidade. O sentido último da vida precisa ser refletido. Estará o QS contribuindo para a
vivência das coisas últimas da nossa vida? Precisaríamos conjugá-lo com o princípio da imanência-
transcendência, com a escatologia e história. CF. ZOHAR, D.; MARSHAL, I., QS - Inteligência
Espiritual.
129
Convém sempre explicitar a imagem de ser humano subjacente em nossas visões
de mundo, em nossos projetos e em nossas práticas. Pois assim conscientizamos o
que queremos ser e podemos, continuamente, submeter essa imagem à crítica e a
um possível aperfeiçoamento194.
Na esteira de L. Boff, o ser humano pode ser dito melhor como orientação
do que definição, no sentido estrito do termo. Ele sublinha que cada homem e
mulher “pode ser definido como um ser de potencial infinito de fala, um nó de
relações voltado para todos os lados”. Aliada à sóbria consciência de que “essa
definição, na verdade, define muito pouco. Apenas indica uma direção [...]. O ser
humano, na verdade, nunca termina de construir-se. [...]. O ser humano é um projeto
infinito, conatural ao infinito Deus”195.
Pelo fato de nós, homens e mulheres, escolhermos, de termos um propósito,
tanto vil como altruísta, nossa vida se diferencia. O animal, a pedra e o vegetal estão
no mundo, mas são indiferentes ou antes passivos, já que recebem seu sentido, a
partir de sua relação com o humano. O ser humano tem que vivenciar a sua vida.
Na perspectiva de L. Boff a vida não é um acaso. O ser humano
comprometido com a vida experimenta-a, num processo dinâmico, participativo e
inclusivo em que tudo co-existe e inter-existe, com todos os outros seres do
universo. Seja quando aclamada, seja quando clamada, a vida revela sua
significância para todo ser. Em permanente processo de realização, a vida é “um
mistério de espontaneidade, um processo inesgotável e multiforme de
desdobramentos a partir de dentro, irrompendo em relações para fora”196.
Numa leitura realista, percebemos que estamos numa encruzilhada: ou todos
juntos trilhamos o caminho da vida ou todos sentimos cada vez mais os apelos da
morte. Como canta Gonzaguinha: somos nós que fazemos a vida, somos também
nós que fazemos a morte.
Por um lado, os avanços científicos e tecnológicos apontam possibilidades
de uma melhor qualidade de vida e maior longevidade. Por outro, aprofundam-se
as expressões da morte. A teologia da libertação, hoje, se compreende mais
largamente, como libertação da pessoa e também do cosmos. Ela vê a ciência e a
tecnologia como parte do projeto de resgate, construção, consolidação e expansão
da vida e da liberdade humana.
194 BOFF, L., Saber cuidar, p. 36. 195 Id., O despertar da águia, pp. 189-190. 196 BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 159.
130
Em se tratando da concepção teológica da vida em seu sentido, essa deverá
seguir sempre na trilha, inseparável, fé-vida, mesmo se limitações humanas
históricas, vez ou outra, privilegiam uma em detrimento da outra. A presente
pesquisa quer oferecer uma compreensão do ser humano inserido em realidades
plurais, na ótica da Antropologia teológica.
3.2.1. O pensar evolutivo sobre a vida
Na história da humanidade, homem e mulher sempre demonstraram
incansável interesse em desvendar os profundos mistérios que envolvem sua
natureza existencial. A partir da modernidade, o conhecimento científico e
tecnológico tem alcançado êxitos surpreendentes. Esta é uma realidade sedutora,
sem dúvida, pois a pessoa não só se torna conhecedora das múltiplas facetas do
dinamismo do seu ser e existir, mas igualmente, dos mecanismos e processos à
própria vida, também na sua dimensão material.
A antropologia teológica de outrora, tendo como ponto de partida a
tendência antropocêntrica, acentuava a diferença entre as pessoas e os irracionais,
bem como a função da pessoa no cosmos. A pós-modernidade, sob o influxo
crescente das ciências, cede lugar a uma compreensão não propriamente relacional,
mas relativista, na qual o ser humano é visto como construtor da história, a partir
de critérios que ele estabeleça. “A antropologia europeia moderna tomou
acriticamente como pressuposto a cosmovisão antropocêntrica moderna, segundo a
qual a pessoa é o centro do mundo e que este fora criado por causa da pessoa e em
função dela”197.
O antropocentrismo cientificista exacerbado, ao colocar a vida em ritmo de
destruição é insustentável para a reflexão antropológica cristã. Esta suscita e
encaminha a uma reflexão que pense a criação em seu todo, em todas as relações.
Denuncia uma posição que coloca o indivíduo no centro, o qual ensoberbecido por
esta posição individualista coloca tudo sob seu desenfreado desejo de dominar, de
ser deus, negando a si próprio. O ser humano não está só, e nem é só criador do
197 MOLTMANN, J., Deus na Criação, p. 271. Grifo do próprio autor.
131
mundo. Antes, homem e mulher são convidados à comunhão com tudo o que existe.
A antropologia não é propriamente teologia. Seria equívoco pensar numa
antropologização da teologia, que tratasse primeiramente de Deus e não do humano.
Contudo ela se coloca como fruto de uma sólida teologia.
A teoria da evolução mostra que a vida surge e se desenvolve como um todo,
no qual tudo se interpenetra, todos dependem de todos. A emergência da vida
humana não é a competição, a afirmação do mais forte ou a simbiose, mas a
capacidade de estabelecer inter-retro-relações nutridas pelo cuidado, ternura e
esperança com respeito à vida. Como salienta L. Boff, ao falar da evolução:
O propósito da vida não reside na sobrevivência pura e simples, mas na realização das probabilidades e potencialidades presentes no universo; na celebração de
emergências novas e na festa da majestade e da beleza do cosmos e dos diferentes
seres que nele existem198.
O pensar evolutivo199 provoca a ideia de vida em constante movimento. O
surgimento da vida e sua evolução biológica inscreve-se no grande processo de
auto-organização e de auto-complexificação do universo. Teologicamente, pode-se
dizer que é o ato criador de Deus que continuamente ama e dota a pessoa de Graça.
O francês, Edgard Morin, sociólogo e antropólogo cunhou o termo antropo-
bio-cósmico. Por ele, Morin quer afirmar uma mudança de leitura do universo, ou
seja, uma leitura não mais concebível sob um único Princípio de ordem. A nova
leitura é constituída pelo jogo dialógico, tetragrama, entre
Ordem/Desordem/Organização/desorganização200. Este novo cosmos, ele explica,
é evolutivo.
A história, que de início, era apenas algo inerente às sociedades humanas, tornou-
se, no século XIX, inerente à vida. Depois, no século XX, ela se expandiu na totalidade de nosso Universo físico. Doravante, nada do que seja cósmico, físico,
198 BOFF, L., O despertar da águia, p. 63. 199 No início do século XX, temos a condenação do evolucionismo como um dos erros modernos
por Pio X, em 1907, com a Encíclica “Pascendi”. Renovada por Pio XII em 1950 com a Encíclica
“Humani Generis”. Para dar prosseguimento a este assunto, do pensar evolutivo sobre a vida, há que
se ter em mente, primeiro, os relatos bíblicos da criação representam estágios diferentes de
compreensão da fé na criação. Eles têm que ser vistos no contexto que os gerou, dentro da cultura
da época, por exemplo, Gn 1 e Gn 2. Segundo, pelos relatos bíblicos se entrevê que a Criação,
embora perfeita em Deus, não está fechada a seu destino. Para ela existe futuro que é promessa:
movimento continuado da vida. E por fim, a discussão entre criacionistas e evolucionistas tem em
comum que a pessoa humana encontra-se inserida na história, na evolução da vida. Cf.
MOLTMANN, J., Deus na Criação, pp. 285-287. 200 Cf. MORIN, E., La relation anthropo-bio-cosmique, pp. 384-388. Tradução minha.
132
biológico, humano pode conceber-se, compreender-se e explicar-se fora do tempo.
Nada, a não ser justamente a fonte, a origem o fundamento do nosso universo201.
Não seria forçado ver aqui cotejos com a espiritualidade, e este autor mesmo
nomeia esta ideia. A origem do cosmos pertence à história. Contudo, pela nova
teoria, paradoxalmente, espaço e tempo se relativizam. Chega-se então à “ideia
aparentemente mística”202, onde o universo assentado num dualismo de distinções
e separações, de coisas e de objetos, de tempo e de espaço, supõe outro tipo de
realidade necessária em que nem faz distinção nem separa, mas unifica, relaciona,
integra.
Na prática, a evolução se transformou numa “megateoria da cultura
ocidental”203. Já não se pensa criação e evolução em contradição uma com a outra.
Deus não criou um mundo pronto, completo e perfeito. Fez um mundo que fosse
capaz de desenvolver-se a si mesmo através dos tempos infindos do universo em
contínua transformação, passando constantemente do caos ao cosmos, até a geração
da vida que chegou até nós. Vista na ótica de Deus, a criação pertence também ela
ao mistério da “graça divina” que permeia o universo e o orienta para o ser humano.
Esse dinamismo inscrito por Deus na matéria do universo é chamado por alguns de
“princípio antrópico”. Essa intuição de origem científica e assumida por alguns em
sede filosófica, pode também ser útil à teologia e, basicamente, com ela, quer-se
dizer que o universo existe em vista da vida humana204.
O princípio antrópico205 lê o universo como jogo de forças físicas, que
possibilitam explicar sua existência. No Glossário L. Boff explica o princípio
antrópico como um conjunto de ideias, ou seja, a construção da consciência pela
qual se diz que ter consciência, só é possível porque o universo culmina no ser
humano. Não se trata de um novo tipo de antropocentrismo, que colocasse o ser
201 Ibid., p. 384. Tradução minha. 202 Ibid. 203 Cf. HÄRING, H., “A Teologia da Evolução como Megateoria do Pensamento occidental”, p. 27. 204 Cf. LIBÂNIO, J. B., Teologia da Revelação a partir da Modernidade, pp. 265-266. 205 Não é consensual a aceitação do princípio antrópico. Lee Smolin propõe abandoná-lo, por não
poder ser falseado, que não conduz a lugar algum. Sua comprovação, segundo ele, se resume em
admitir seus postulados sem mais explicações. “Tudo o que se precisa é de postular que há um certo
número de mundos, com uma certa variedade de propriedades, sendo que deles todos, pelo menos
um é capaz de abrigar nossa existência”. SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 203. Tradução
minha. O teólogo e astrônomo, Tanzella-Nitti, porém, afirma ser legítimo ver na criação do universo
uma perspectiva teológica. Admite não ser a única leitura. Contudo ela indica a existência de uma
sintonia cósmica capaz de unir a física do universo e construir uma biologia adaptada à vida.
TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza. Le ragioni di um dialogo, p. 88. Tradução minha.
133
humano, de novo em posição absoluta, e sim, de construir uma inteligibilidade, que
entende o ser humano, que se sabe coordenando, mas dependendo igualmente em
uma rede de relações206.
Na maneira de Libânio temos que “a criação é o pergaminho em que Deus
escreveu sua revelação”207. Com o progresso da ciência, este pergaminho agora é
relido. A criação não só é um elemento da tradição bíblica, para este teólogo, mas
também “intuição científica do princípio antrópico”. Tudo parece calculado para
que um dia a consciência surgisse no universo. Todo o universo existe em vista da
vida em geral, e da vida humana, em especial. Dito de outra maneira, esta versão
do princípio antrópico compreende que a terra está não naturalmente no centro
físico de gravitação, nem o humano está no centro de dominação, mas na terra, o
ser humano está no centro de significação. As relações humanas são recolocadas
em seu devido diapasão: o humano ocupa um ponto central, mas é visceralmente
dependente das complexas e múltiplas relações que ocorrem no universo.
Lee Smolin faz pensar que a vida tem caráter de criatividade e abertura unida
à ideia de um universo em evolução. Ele argumenta que
Aquilo então que, com toda certeza, é mais inovador em nossa compreensão
moderna da vida é a ideia de evolução, pois esta ideia nos capacita a ver a vida não
como um ciclo em eterno retorno, mas como um processo que continuamente gera e descobre novidades. E, pela mesma mostra, o que é mais inovador em nossa
cosmologia moderna é a descoberta de que também o universo evolui. Sejam quais
forem as descobertas que permaneçam em aberto, as nossas observações nos
206 BOFF, L., Saber cuidar, p. 193. 207 LIBÂNIO, J. B., Teologia da Revelação a partir da Modernidade, p. 266.
134
mostram que o universo surgiu de um estado ao qual ele poderá jamais retornar e,
neste caso, cada era em sua evolução, é única208.
Na ótica da Antropologia teológica, o conceito de história é central. E nesta
sequência há de se entender a centralidade de Cristo no mundo. Esta ótica possibilita
a consciência de que o ser humano sempre se orienta a partir de um lugar, locus, de
um caminho em que faz uma experiência. Pontuada pelas experiências, a
consciência organiza o seu mundo com seus próprios valores. Hierarquiza o tempo
e o espaço, e a relações consigo, com o mundo e com Deus. Forma-se, assim, uma
cosmovisão, ou seja, uma concepção da existência humana na história. Para o
cristão, a cosmovisão é definida a partir da fé bíblica. Paulo deixa claro “Quando,
porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma
mulher” (Gl 4,4).
A orientação da história concentra-se na revelação em Jesus Cristo. Se em
sede filosófica pode-se dizer, via princípio antrópico, que o humano é o centro de
significação, pela via da fé, sendo Jesus de Nazaré o homem (cf. Jo 13,31; 19,5), é
para ele, que tudo se volta. Ele é o princípio e o fim da evolução do mundo seu alfa
e seu ômega. Ele é o coroamento do processo de hominização e de humanização. O
Cristo ressuscitado é a razão e o alimento de toda esperança. Ele é a promessa-
cumprimento, por ele a história não cai num sem-sentido. Com Ele a libertação
chegou à história, Ele é a utopia realizada, a esperança acontecida. A vida plena que
Jesus inaugura, com sua palavra ação, na compreensão de L. Boff é utopia. É o
presente apontando o futuro e este manifestado dentro do presente.
208 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 143. Tradução minha. É necessário reconhecer que o
tema da cosmologia, embora fundamental, constitui tarefa complexa e mereceria um estudo
prolongado, o que não se dispõe aqui e, em consequência, a investigação sobre este assunto será
limitada. Para uma leitura proveitosa sobre este tema poderá ser consultada a obra ‘The life of the
cosmos’ do físico teórico Lee Smolin. O autor intenta tratar da vida na perspectiva da Cosmologia
científica, com uma linguagem acessível e clara. Possibilita compreender as leis da termodinâmica, a hipótese Gaia, por exemplo. São categorias chaves da vida a auto-organização, evolução, novidade,
verdade, nascimento perpétuo, abertura. Este pensamento tem sintonia com o de L. Boff no que diz
respeito à Hipótese Gaia na linha de James E. Lovelock e ao universo possuidor de um movimento
vivo que evolui. Gaia é o nome de uma divindade grega para designar a Terra, que por esta teoria
quer afirmar que a Terra é um imenso superorganismo vivo. Com esta teoria, L. Boff sublinha que
todos os seres vivos não só existem, mas interexistem e coexistem. Cf. BOFF, L., O despertar da
águia, pp. 55-61. O universo é constituído por uma teia de relações e o ser humano um nó de relações
para todas as direções, e Deus se revela como Realidade panrelacional. Cf. BOFF, L., Dignitas
terrae, pp. 35-43. Também em outras obras de sua autoria, como: Saber cuidar, pp. 135-140. Ética
e ecoespiritualidade, pp. 15-23. Experimentar Deus, pp. 49-55. Consultar também: TAVARES
PEREIRA, M., Novo paradigma civilizatório.
135
Mas, não será esta uma cosmovisão simplista ou redundante da resposta
humana à fé cristã? Na verdade, não. Simplismo seria supor Cristo inerte, preso no
trilho da aceitação de cada pessoa. Isto significa mudar o eixo das coordenadas do
crer: a fé seria oferecida só a quem já estivesse predisposto, predestinado. Numa
visão que busca abarcar o teológico e o científico, L. Boff pergunta se Cristo
interessa só à terra ou ao cosmos todo? A experiência neotestamentária terá ainda
abrangência e poderá centrar o universo? No bojo presente da cosmovisão atual,
para que Cristo seja audível ao coração humano, a antropologia teológica deverá
orientar-se ao passado, a protologia, que se pergunta pelo sentido de sua existência,
simultaneamente, voltar-se para o futuro, a escatologia, que se pergunta sobre o
para que a vida209. Nela, Deus não é mais o fabricante perfeito de um cosmos que
deixa-o funcionar, sem manter com ele qualquer relação, mas Aquele que o leva à
perfeição. Esta leitura implica um modo de conceber a relação de Deus com o
mundo, não mais como o Totalmente Outro, extrínseco à história humana, nem mais
só o Imanente, diluído nas intempéries da vida, mas como seu princípio e fim de
sentido. Só nesta perspectiva se pode entender o paradoxo de um Deus
transcendente e intimamente presente na obra criada, do qual se originam a vida e
o cosmos.
Na esteira de T. de Chardin em sua visão cósmico-crística, L. Boff esclarece
que Cristo é o primogênito de toda criação.
O primeiro surgido não é a evolução; primeiro vem Cristo e seu mistério e por
causa dele o homem, a vida e o cosmos. Não é o cosmos e o homem que, evoluindo,
produziram a Cristo; Cristo produziu o cosmos e o homem mediante as leis da evolução e os atraiu a si 210.
A questão é sempre atual por apresentar o mistério de Deus em sua intenção
e sua Revelação. Na intenção de Deus, Jesus-Palavra eterna do Pai-Criador é o
primeiro na ordem do Ser, e também é o primeiro na ordem do conhecer do plano
de Deus. Assim lemos em João “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com
Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por
209 Entende-se por esta pesquisa que a leitura de L. Boff não faz nítida distinção entre Escatologia e
outros tratados, como Graça, Pneumatologia. Isso é enriquecedor, pois a distinção inclina-se para
um pensar fragmentador da vida e falseador da relação entre vida-morte. A pesquisa assume esta
unificação, que não nega a distinção, mas delimita-a. Por isso mesmo, será abordado o sentido da
vida já em perspectiva escatológica no horizonte da graça de Jesus Cristo, presente na vida e a
caminho da sua plenitude. 210 BOFF, L., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 43.
136
meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz
dos homens” (Jo 1,1-4). Na humanidade de Cristo, “criou-se uma situação que os
homens viram: aqui se dá a parusia (vinda) e a epifania (manifestação) do libertador
da condição humana na globalidade de suas relações para com Deus, para com o
outro e para com o cosmos”211.
O mistério de Deus presente na história do ser humano no cosmo faz com
que toda história seja sagrada. A ordem da intenção de Deus não está reduzida a
resposta humana à fé, nem pode ser deduzida da noção, humana, de Deus, do ser
pessoa, ou do universo, pois é um ato livre de Deus. Antes, porém, é ato de Deus
que se manifesta pelas criaturas.
Da premissa da intenção de Deus, Jesus, o Cristo, é o primeiro na ordem do
Ser, e também o primeiro na ordem do conhecer do plano de Deus. É o primeiro
princípio de inteligibilidade de todas as coisas: do universo, do ser humano e da
graça e da glória.
Na ordem da intenção de Deus, a Palavra se encarna e revela Deus na
história. Com Jesus, a história chegou ao seu termo, no lapso entre o já da
interpretação existencial e o ainda não da escatologia. Partir de Cristo, centro e
princípio da história possibilita compreender o sentido dos fatos e das coisas nos
momentos da história em sua relação com o todo em Cristo. Por esta ordem da
Revelação, traduzida em categorias delimitadas pelo espaço e tempo, Jesus faz
compreender sua Palavra de libertação bem mais universalmente. É a libertação
como total transfiguração deste mundo todo, humano e cosmos; chamando esta
nova ordem de Reino de Deus212.
Sob esta ótica, Cristo ocupa o lugar de síntese do processo global da
evolução ascendente: a cosmogênese caminha para a antropogênese. Esta, por sua
vez, caminha para a cristogênese. A criação boa de Deus não termina no ser
humano, mas se orienta, graças a Cristo, para a plena realização do Reino. Da
cosmogênese, há a sociogênese, a antropogênese, orientados para a cristificação
plena.
O pensar a vida pela trilha da evolução compreende que a criação é não
somente dom gratuito de Deus, como também criação contínua ascendente e
descendente. “A evolução – parece – desemboca na cristogênese como a
211 Id., Jesus Cristo Libertador, p. 249. 212 Cf. Ibid., p. 117.
137
cosmogênese e a biogênese fazem emergir a noogênese. E isso pela lei intrínseca
da evolução”213. A partir de seu aspecto histórico ela se prepara e se abre para
receber seu significado trans-histórico.
Contudo, o otimismo que transpira desta concepção do mundo e da história
humana pode iludir. A história humana não é linear. Ela é costurada pela liberdade
frágil e limitada de cada ser humano que constitui a humanidade. Faz parte da
história humana a possibilidade de ruptura do diálogo com Deus, o pecado. Este
consiste basicamente na recusa em realizar o próprio projeto histórico em parceria
com o outro, como Caim que escolhe tirar a vida (Cf. Gn 4,6-9) e com o
absolutamente Outro, Deus. No entanto, o otimismo esperançoso jamais fenece,
pois mesmo, onde o mal parece envolver toda a realidade, a graça de Cristo liberta.
O diálogo outrora interrompido retoma-se na nova criação com a resposta humana
positiva ao Criador. No espaço e no tempo, a pessoa antecipa pela fé a verdade do
mundo que há de vir. Celebra no presente o futuro. “Vi então um céu novo e uma
nova terra” (Ap 21,1). A humanidade experimenta-se comunidade da criação, da
fraternidade universal, bem como uma comunidade de salvação a partir de Cristo.
Assim, se une a protologia e a escatologia. O que veio primeiro como ato criador
de Deus e o que será quando o Senhor completar sua obra, conduzindo tudo e todos
para a plena realização em Deus214.
Na esteira teológica de Leonardo Boff, atualiza-se o ser humano como
aquele que busca o conhecimento e não se satisfaz apenas com o já estabelecido,
porque movido por um Outro que o impulsiona a um horizonte onde habita o
Infinito. Esta assertiva pode ser atestada pelo desejo contínuo no homem e na
mulher por descobrir, por pesquisar, encontrar, sair de si, celebrar. Outrossim,
admitido que o ser humano esteja em constante busca, que suas respostas na
realidade abrem-lhe novas questões, que o encontro não esgota sua criatividade,
pode-se afirmar que ele e todas as suas relações estão em processo de vir-a-ser. E
neste caso, então, é possível o pensar evolutivo sobre a vida, pela categoria da
dualidade.
213 BOFF, L., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 17. 214 Cf. BOFF, Lina., “Da Protologia à Escatologia”, pp. 122-123.
138
3.2.2. A vida do ser humano presencia dualidades
A pergunta fundamental que percorre os dois Testamentos é teológica e é
antropológica: Como e onde encontro o Senhor e como posso discernir sua
vontade? O mesmo ser humano que se interroga, também surpreso exclama: vendo
a lua e estrelas brilhantes... Senhor, amigo da vida, quem é o ser humano para dele
assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho? (Cf. Sl 8,5).
No dizer rabínico: A questão essencial da Bíblia é a questão ética da relação,
quer dizer o lugar do UM (Deus) face ao outro (ser humano). Pode-se dizer que a
experiência espiritual bíblica acontece em parceria: é um duplo protagonismo
divino e humano. Nesta experiência relacional-dialógica onde estão envolvidos
Deus e o ser humano, desde sua origem, “o primeiro capítulo de Gênesis não nos
ensina sobre a natureza de Deus, nem sobre sua essência infinita e inacessível, mas
sobre o dado essencial: toda experiência da vida é dual”215.
Para o povo da Bíblia, o mundo não é, em primeiro lugar, um espetáculo a
ser contemplado, a ser compreendido; é uma história a ser vivida. “O hebreu não
tem a preocupação de definir o mundo, isto é, de acumular informações sobre ele,
de lhe delimitar os contornos, de conhecer suas proporções e obter dele uma
imagem”216. O que procura é um ensinamento de vida, e um ensinamento nos fatos.
Nesta esteira, a vida do ser humano presencia dualidade, cujo oposto seria o
dualismo. Este, fragmenta o ser humano, vê as dimensões da realidade justapostas
e sem relação entre si, o que falseia o sentido da vida.
A dualidade, ao contrário, coloca e onde o dualismo coloca ou. Enxerga os pares
como os dois lados do mesmo corpo, como dimensões de uma mesma
complexidade. Complexo é tudo aquilo que vem constituído pela articulação de muitas partes e pelo inter-retro-relacionamento de todos os seus elementos, dando
origem a um sistema dinâmico sempre aberto a novas sínteses217.
Na dualidade do seu pensamento teológico, também vida e morte não estão
opostas, o humano é um ser para a morte. Ela não é um evento exterior, mas interior,
cresce e madura dentro da pessoa. Na experiência da vida já experimentamos a
215 HADDAD, P., "L’autre dans la tradition juive", pp. 294-298. 216 AUZOU, G., A Palavra de Deus, p. 159. 217 BOFF, L., A águia e a galinha, p. 75.
139
morte. “O sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. E o sentido que
damos à vida é o sentido que damos a morte”218. Segundo ele, morte como evento
biológico e pessoal, significa preparação para uma vida verdadeiramente autêntica
e plena, que não está isolada da vida ou projetada para um futuro distante. Acontece
continuamente e cada instante pode ser o último.
Não há que temer a morte, prossegue, pois, a vida é “lugar de realização da
utopia do Reino de Deus”, lugar da liberdade em gérmen para ser plena na
eternidade. E, a morte é “passagem para a plenitude do Reino”219, que se descerra
logo na ressurreição.
L. Boff parte de uma antropologia atual que concebe que a vida não está
encerrada no tempo cronos ou na ilusão, nem a morte é sua ruína ou negação. Em
Vida para além da morte, afirma, “descortina-se dentro da vida humana uma chance
única na qual o homem, pela primeira vez, nasce totalmente ou acaba de nascer: na
morte”220.
Ele tem em vista tratar do sentido da vida. O pressuposto é que
O Universo está aberto para o futuro. A tendência é gestar formas de ser e de
relacionar-se cada vez mais cooperativas e inclusivas. A vida tende a perpetuar-se e a eternizar-se. A morte é uma invenção sábia da vida para que ela possa continuar
seu curso de comunicação, de comunhão e de integração com todas as realidades.
Até com a Suprema Realidade221.
Ao mesmo tempo, bem mostra sua indisposição para com a hegemonia do
logos e para com o pensamento dualista. Concebe a experiência da existência
humana como nó de pulsões e de relações. Por isso sublinha a importância vital de
se integrarem as relações com todas as criaturas e com o Criador da vida. Provoca
a vida humana a retornar a seu paradigma de origem estruturado sobre o pathos,
eros, daimon, ethos e logos. Elabora uma ética da vida, assentada na ternura e no
cuidado. Sua ética aplicada a situações existenciais conduz à experiência da busca
do sentido da vida. O paradigma que se encontra, em nosso autor, é multifacetado
e seu resultado é holístico. Sua ética da ternura e do cuidado mostra que o
conhecimento do ser humano pelo ser humano não tem seu ápice no conceito ou na
218 BOFF, L., Ética da vida, p. 150. Ideia semelhante, também em outra sua obra: Id., A ressurreição
de Cristo, a nossa ressurreição na morte, p. 93. 219 Cf. Id., Ética da vida, p. 151. 220 Id., Vida para além da morte, p. 34 221 BOFF, L., O despertar da águia, p. 76.
140
definição, ou seja, no logos discursivo, mas no logos, expressão do amor, da
acolhida integral, a saber, aquele que se fez carne.
Em sua visão excepcionalmente otimista, L. Boff denuncia a exacerbação
de um pensamento único para a totalidade. No entanto, ao colocar em evidência a
crise, ele busca um caminho de integração da vida: “A crise da cultura do logos
levou à revalorização do pathos, do eros, do daimon e do ethos como caminhos de
integração e de resgate do próprio logos; a serviço da vida humana e da preservação
da integridade da criação”222. Na verdade, são duas coisas bem diferentes: uma é
um pensamento único, a eliminar diferenças, outro é o pensamento integrado, a
conjugá-las. Em nome da eficiência, há a desumanização de todas as coisas criadas
e de Deus. O logos discursivo busca dominar e determinar todas as formas do viver
e do como viver. Ele dissimula o sentimento que configura a estrutura básica da
existência; a força de expansão e criação de diferenças e sua unidade dinâmica.
Mascara a inclinação e o afeto que ajudam a discernir. Congela a capacidade de
organizar os comportamentos com os outros e com o mundo circundante, em
permanente inter-retro-relacionamento.
O ser humano é um ser social, limitado, histórico, frágil, sensível à sua
realidade, pensador, portanto, portador do logos. Mas seu percurso revela
igualmente seu ser de sentimento, força, inteligibilidade, discernimento e ética. A
primazia de um, instrumentaliza todos os outros, fragmentando a vida.
L. Boff é crítico diante a soberba da razão. Esta hegemonia acabou por se
transformar numa espécie de ditadura do logos sobre as demais dimensões da
existência e de sua compreensão, especialmente quando o logos foi afunilado numa
compreensão utilitarista e funcional, a assim chamada razão instrumental-analítica,
própria dos tempos modernos. O pathos e o eros, o daimon e o ethos foram
colocados sob suspeita. Eram acolhidos somente na medida em que passavam pelo
crivo da razão questionadora. De modo especial, o pathos, como capacidade de
sentimento profundo, de enternecimento e de com-paixão, foi acantonado no
âmbito da estrita subjetividade223.
Em contrapartida, a consciência de estar inserido num projeto maior, último
da existência, pelo gesto de total gratuidade de Deus224 e a gratuidade nas relações
222 Id., Ética da vida, p. 65. 223 Ibid. 224 Cf. FRANÇA MIRANDA, M., Libertados para a práxis da justiça, pp. 7-11.
141
humanas traz experiências de júbilo. “Festejar é afirmar a bondade do mundo. É
viver, no tempo circunscrito à festa, uma reconciliação dos homens e de todas as
coisas”225. O apóstolo Paulo escreve sua visão de um Cristo em todas as coisas. Ele
é a visibilidade de Deus, o primeiro de todas as criaturas. Nele, é que todas as coisas
são criadas e existem. Este júbilo, juntamente com o pathos, com a jovialidade, o
artístico e qualquer outra dimensão humana, goza de uma lucidez ímpar, captada
nas expressões de quem faz uma autêntica experiência de Deus. São expressões que
sugere que quem a fez ‘descobriu’, ‘encontrou’, ‘foi seduzido’, ‘foi iluminado’.
Esta lucidez, certamente não vem do logos discursivo, demonstrativo, mas
da adesão ao modo de ser do logos – de novo daquele que se fez carne. A revelação
de Deus suscita o desejo de sempre mais adentrar em seu mistério. “O encontro do
desejo aceso com a realidade possuída se torna uma febre e uma busca: justamente
a febre da fé que ama e espera, a inquietudo sancta”226. Deus revela-se na existência
humana numa atitude de estar no Amante sendo amada, e no Amado estar no Amor.
Coerente com este cenário paulino de júbilo por ver Deus em todas as coisas,
reencontramos L. Boff, unindo todo ser vivo a totalidade da vida.
Como o universo, assim a vida e cada ser possuem sua genealogia. [...] Somos,
portanto, feitos do mesmo material e frutos da mesma dinâmica cosmogênica que
atravessa todo o universo. O ser humano pela consciência, encaixa-se plenamente no sistema geral das coisas. Ele não está fora do universo em processo de ascensão.
Encontra-se dentro, como um momento singular; capaz de captar a totalidade, de
saber de si, dos outros, de senti-los e de amá-los no interior dessa totalidade
desbordante227.
Contudo, o humano como ser de singularidade dentro de um sistema global
tem provocado novas leituras da vida. Se de um lado enfatiza a individualidade,
paradoxalmente, apresenta diante do humano um modelo padrão. Tudo isto
apresentado pelo ‘Sr. Sistema’, que não possui corpo, cheiro, afeto, alma, nem vida,
e que, entretanto, dita normas para a vida. L. Boff alerta “esse modo de ser mata a
ternura, liquida o cuidado e fere a essência humana”228.
A existência presencia desde a criação o estabelecer de relações. O mundo
criado é dom de Deus. O ser humano é chamado a acolher o mundo como dom e
225 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 123. 226 FORTE, B., Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da historia, p. 36. 227 BOFF, L., Ética da vida, p. 76. 228 Id., Saber cuidar, p. 98.
142
corresponsabilidade, e não autodivinização ou coisificação da vida229. Trata-se de
viver sua existência humana na radicalidade, que permite desenvolver-se no
entrelaçamento uns com os outros, como criatura.
A descrição de Bauman sobre liquidez auxilia em descrever a situação de
fragmentação da vida humana, manifestada nos diversos âmbitos do projeto
civilizatório. Vida líquida é a decorrência da transformação do ser humano,
singular, em objeto de consumo, descartável. Esta situação manifesta-se também
nas relações interpessoais cotidianas.
Homens e mulheres estão sôfregos por relações que tenham sentido, após
terem sido abandonados aos seus próprios critérios e sentimentos descartáveis. Ao
mesmo tempo desconfiam de qualquer nível de relação por temer compromissos e
cerceamento da liberdade. A desconfiança perpassa toda proposta de gratuidade, e
descarta toda ideia de um Deus providente e misericordioso. Interiormente, o ser
humano oscila entre o prazer do convívio e o horror da clausura. Verifica-se, como
já foi dito, a substituição da palavra relacionar-se por conectar-se, na linguagem da
geração pós-moderna.
Urge encontrar um centro capaz de preencher e dar unidade à vida em meio
à relativização do sentido. Urge escutar os gritos por uma vida de sentido, da parte
daqueles que denunciam os ídolos que fragmentam a vida. Para L. Boff, este centro
é a espiritualidade. Ela é o lugar em “que se resgata aquele elo esquecido ou perdido
que liga e re-liga todas as coisas a um Centro de sentido e de irradiação que torna
sagrada a vida e leve nossa trajetória por este mundo conturbado”230.
A questão Deus na pós-modernidade é marcada por uma dupla ausência de
vida. A primeira deve-se à miséria humilhante, à ganância insaciável, que se opõem
à ânsia de fraternidade e ao desejo de estruturas sociais que visem o bem da pessoa.
A outra está na ausência da pregação de um Deus atuante nas relações entre os seres
humanos, ou a sua mistificação, que se opõe ao anúncio de um Deus encarnado,
que seja solidário nas alegrias e nas tristezas. Entre a realidade e para além dela,
Deus “se faz presente a partir dos ausentes e anônimos da história, daqueles que
não são os dominadores”231, em sua radical e amorosa solidariedade, tanto na vida
quanto na morte. Esta dupla oposição evidencia uma crise de relações e de
229 Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, p. 141. 230 BOFF, L., Ética da vida, p. 7. 231 GUTIERREZ, G., O Deus da Vida, p. 119.
143
alargamento nas compreensões. Ela faz lembrar que a vida é dual. Crise não é
negação, nem desastre, mas sinal de uma vida prenhe de abertura.
Em palavras citadas amiúde, a crise “pode ser também uma chance única
para definir um uso convivial dos instrumentos tecnológicos a serviço da
preservação do planeta, do bem-estar da humanidade e da cooperação entre os
povos”232.
No horizonte da experiência da Graça, L. Boff prossegue sua linha de
pensamento “a crise age como um crisol (elemento químico) que purifica o ouro de
sua ganga; a crise vai acrisolando (purificando) a pessoa para a sua verdadeira
identidade, ao depurá-la de tudo quanto possuía de fictício e deturpado”233. A crise
propicia ao ser humano o situar-se em sua realidade, dentro de um processo
purificador.
Para L. Boff, a terra, assim como o oprimido que grita por práticas solidárias
de libertação fazendo surgir a Teologia da libertação, grita pela renovação da
aliança com o ser humano, o qual destruiu o sentido de religação com tudo e todos.
Trata-se, como ele mesmo diz, de continuar e ampliar as intuições da Teologia da
libertação para as situações que englobam a terra, pois, “todos somos reféns de um
paradigma que nos coloca, contra o sentido do universo, sobre as coisas ao invés
de estar com elas na grande comunidade cósmica”234.
Não se trata de um pensamento novo, recém laborado. A reflexão de L. Boff
não é de todo distinta da anterior, não há corte epistemológico no qual ele pensasse
tão somente nos pobres e oprimidos humanos. A questão agora engloba a terra –
“nossa mãe generosa e nossa pátria/mátria comum mas ferida e doente”. Esta nova
vertente só faz legitimar a teologia da libertação que prima pela preocupação com
relação ao oprimido e ao ferido. A destruição dos povos é continuada na mesma
lógica de destruição da terra, de espoliação de riquezas e ruptura do equilíbrio do
universo, revelador de um grave perigo para a humanidade, hoje e para as gerações
futuras. Neste contexto marcado pelas novas tecnologias, cuja ambiguidade,
232 BOFF, L., Saber cuidar, p. 125. 233 Id., A graça libertadora no mundo, p. 180. Um dos grandes méritos da compreensão de crise para
Leonardo Boff é ampliar suas concepções para as diversas dimensões da vida. Assim, a crise pode
ser lida também na perspectiva do ecossistema, como o faz Delambre ao afirmar a crise na
perspectiva da mudança do clima. Este afirma: “A crise nos serve de ponte para pensarmos o
fundamento, por vezes obscurecido, pois não atinge a pergunta pelo Sentido Absoluto, que sempre
aparece quando nos deparamos com os absurdos da existência”. RAMOS DE OLIVEIRA, D.,
Humano, cosmos e Deus, p. 306. 234 BOFF, L., Dignitas terrae. Ecologia, p. 12.
144
manipulada a partir dos interesses do lucro, contribui pesadamente para a alienação
das pessoas, bem como para uma já ameaçadora exaustão do planeta, é que L. Boff
afirma nascer o paradigma da religação, da convergência da relação do ser humano
com a terra, onde tudo estará em Deus e Deus em tudo235.
A possibilidade de reconhecer Deus em tudo e todas as coisas em Deus, isto
é, a transcendência imanente, encontra seu fundamento “na compreensão do
Espírito de Deus como a força da criação e como a fonte da vida”236. Para L. Boff
e Moltmann, o caminho da humanização passa pela consciência de ser criatura ante
as pessoas e ante a Terra. A terra não é domínio e desfrute para o ser humano, ela é
vital para o ser humano, pois cria as condições ideais para o surgimento da vida237.
O ser humano, para continuar vivendo, precisa de toda a comunidade dos seres
criados. Eis o entrelaçamento do Criador da vida: desde suas entranhas, Deus está
ligado às suas criaturas; a criação está em Deus e Deus está na criação.
Há uma premência por um novo ethos civilizacional que surja da natureza
mais profunda do humano para que tenha sustentabilidade para a posteridade. Do
ponto de vista humano da existência, o cuidado se acha a priori a toda situação do
ser humano. Ele dignifica a vida, pois revela a natureza existencial, a constituição
do que seja o ser humano, o seu modo de ser concretamente238.
Dar vida é cuidar, e cuidado é outro nome para a vida.
(O cuidado) está na origem da existência do ser humano. E essa origem não é
apenas um começo temporal. A origem tem um sentido filosófico de fronte donde brota permanentemente o ser. Portanto, significa que o cuidado constitui, na
existência humana, uma energia que jorra ininterruptamente em cada momento e
circunstância. Cuidado é aquela força originante que continuamente faz surgir o
ser humano. Sem ela, ele continuaria sendo apenas uma porção de argila como qualquer outra à margem do rio, ou um espírito angelical desencarnado e fora do
tempo histórico 239.
Em sua proclamação do Reino, Jesus cuida curando a vida, pondo saúde e
vida nas pessoas, em toda sua inteireza. Em sua palavra-ação, Jesus anuncia um
Deus que cura a vida, sinal da misericórdia de Deus240. Seu primeiro olhar não se
235 Cf. BOFF, L., Dignitas terrae, pp. 11-13. 236 MOLTMANN, J., O Espírito da vida, p.45. 237 Cf. Id., “Cultivar e preservar a Terra?”, pp. 49-51 238 Cf. BOFF, L., Saber cuidar, p. 34. 239 Ibid., p. 101. 240 Cf. PAGOLA, J. A., Jesus, pp. 191-214.
145
dirige aos pecadores, segundo a opinião pública, que precisam ser chamados a
converter-se, mas aos que sofrem a enfermidade ou o desamparo, e anseiam por
mais saúde e vida.
Pela utopia toda alienação será vencida. Como? A concepção de utopia
utilizada por L. Boff, na maior parte das vezes, contempla experiência e anseio
humano. Jesus, o Cristo, feito presente dentro da história pela ressurreição, é o
futuro da humanidade. “Para o cristão, a partir da ressurreição de Jesus, não existe
mais utopia (em grego: que não existe em nenhum lugar), mas somente topia (que
existe em algum lugar)”241. Em Jesus Ressuscitado, a utopia se torna realidade,
porque para Deus nada é impossível (Lc 1,37). Ele é realidade já principiante dentro
do mundo. Na mesma linha, Sobrino, une utopia à esperança no acontecimento do
Ressuscitado: “na América Latina, a tradição de Jesus ressuscitado facilitou, ao
menos em parte, que se gere esperança no compromisso, que se formule em utopias,
que se afirme que a última palavra que dirá será a vida, a justiça, a verdade, o
amor”242.
A vida do ser humano presencia a dualidade, pois consiste em relações
voltadas para todas as direções num movimento síncrono de abertura e
abraçamento.
3.2.3. A vida do ser humano como um nó de relações
O advento da globalização encurtou distâncias, possibilitou novas relações,
globalizou informações, alterou costumes, expandiu mercados, criou novas
identidades. Depois dela não se podem mais isolar os conceitos de um grupo, por
exemplo, de moradores de pequenas cidades e supô-los totalmente distintos
daqueles moradores das grandes metrópoles. O mesmo vale para países e/ou
continentes. Vivemos numa aldeia global. Sentimo-nos tocados de todas as
direções.
Para L. Boff, este tema é um convite à redefinição do sentido da civilização
em um horizonte de um sentido globalizador. Diante da ameaça global ao sistema
241 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 149. 242 SOBRINO, J., A fé em Jesus Cristo, p. 32.
146
da vida, este autor parafraseia a máxima moral de Immanuel Kant: “age de tal modo
que tu possas querer que a tua ação se torne uma lei universal de conduta”. Fazendo
uma mudança categórica “a resposta só pode ser: viva de tal maneira que não
destruas as condições de vida dos que vivem no presente e as dos que vão viver no
futuro” 243. A vulnerabilidade da vida pede atitudes de respeito, veneração e ternura.
Cabe ao ser humano instaurar o ‘Cuidado’ como critério de ação, para que todos
possam continuar a existir e a viver. Todo o universo se fez cúmplice para que a
vida chegasse até o presente. Atitudes, segundo L. Boff, derivam da experiência de
Deus e da descoberta do universo e do coração como Mistério.
Os séculos XVII-XVIII presenciam a aparição de uma nova compreensão
do universo e da relação do ser humano com o mundo. Tal compreensão
influenciava a compreensão de Bíblia e a ideia de Deus ligada à visão religiosa da
ordem do mundo. Apareceu neste contexto a negação da existência de Deus ou, no
mínimo, sua relação com o mundo era vista como antagônica com a nova ordem da
ciência.
No século XXI predomina a intervenção tecnológica e as novas relações
econômicas. A novidade, em larga escala e que aparece de forma constante, gera
um tempo de grande complexidade, incerteza e instabilidade. A pessoa cristã sente-
se como que cindida, entre a visão de mundo que ela expressa em seu
comportamento religioso e o discurso técnico científico do qual ela participa, com
diferentes graus de compreensão e compromisso. Mas sempre, em última análise,
postula-se a total autonomia do saber científico a respeito ao logos religioso. Em
última instância, a globalização do individualismo, por ser desprovida de relações
injustas e fraternas, parece selar a perda do sentido da vida.
A busca pelo sentido da vida chama a atenção para a inversão em todas as
relações humanas. Desse modo, o ser humano modelado para ver o horizonte da
realidade, torna-se encurvado: instaura-se a rebeldia com relação a Deus,
dominação com relação a seu irmão/irmã, o desrespeito de si mesmo e escravidão
das coisas. Quando se trata da necessidade de ir ao encontro do outro, a obstrução
dos canais, mesmo que somente em uma única das relações, afeta a globalidade das
relações humanas.
L. Boff assinala qual deve ser a globalização.
243 BOFF, L., Ética da vida, p. 67. Grifo do próprio autor.
147
O que deve, fundamentalmente, ser mais globalizado é a solidariedade para com
todos os seres, a partir dos mais afetados; a valorização ardente da vida, em todas
as suas formas; a participação como resposta ao chamado de cada ser humano e à
dinâmica mesma do universo; a veneração para com a natureza da qual somos parte, e a parte responsável244.
Questionado pela perspectiva paradoxal de uma cultura que produz uma
leitura da vida a partir de uma perspectiva que a mira como destituída de valor, mas,
ao mesmo tempo, é prenhe de buscas e inquietações que latejam em seu ser mais
profundo, L. Boff denuncia esta leitura unilateral e extrinsicista que a desumaniza
e coisifica. Ele quer com isso superar a dicotomia entre sentido e não-sentido. Esta
é atitude que perpassa todo seu pensamento e contribui para uma experiência
integradora da vida. Amiúde faz refletir que o “constituir-se como um ser de
abertura e de relação é dizer que somos seres que trocam e interagem continuamente
com tudo o que se apresenta a eles. Com isso crescem e se enriquecem em sua
identidade”245.
A positividade e o elã constituem a existência da vida. Esta assertiva é
verdadeira sempre, precisamente porque Deus é a própria vida, cria a vida por amor.
A vida tem caráter da busca pelo mais, melhor e eterno, aliado a um elã criativo e
ascendente. Ser de buscas, o ser humano não se contenta com a realidade dada. Seu
modo de existência já é indício de que sua direção é o infinito. L. Boff chama a
atenção para a palavra existência para dela extrair a realidade originária e fundante
do ser humano, que constitui o ser e o impulsiona para além de si mesmo. “‘Exis-
tência’. A palavra quer dizer: vivemos para ‘fora’ (ex), somos seres de abertura em
todas as direções. Somos um nó de relação conosco mesmo, com os outros, com a
sociedade, com a natureza, com o universo e com Deus”246.
Falar de relação é falar da vida. A vida não é matéria para mero usufruto da
razão. Não é mero instrumental para as ciências empíricas. Igualmente, não se
restringe a uma força que se manifesta ligada ao sopro e ao sangue. Ela é tudo isso,
mas não se restringe a isso. Ora, justamente o acolhimento desta abertura aos
horizontes a se construir torna admissível que a vida necessite e se realize mediada
por relações com as pessoas, com o mundo, com Deus. Seria o mesmo que dizer
244 BOFF, L., Ética da vida, p. 86. 245 Id., Tempo de transcendência, p. 14. Esta concepção antropológica é de suma importância, tanto
que ele retorna a este pensamento em várias de suas obras, como: Id., O destino do homem e do
mundo, p. 41; Id., Jesus Cristo libertador, p. 236; Id., Vida para além da morte, p. 17. 246 Id., Tempo de transcendência, p. 14.
148
através da poesia “Homem algum é uma ILHA, um ser inteiro em si mesmo. Cada
homem é uma partícula do continente, uma parte da terra... a morte de qualquer
homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano”247.
O ser humano como um nó de pulsões e relações. Essa asserção de L. Boff
explícita em várias de suas obras exprime exatamente a existência da vida. Numa
visão holística afirma, “captamos a importância de tudo integrar, de lançar pontes
para todos os lados e de entender o universo, a Terra e cada um de nós como um nó
de relações voltado para todas as direções”248.
Aqui se abre outro ponto nodal para L. Boff, a saber, a Ecologia. Ele se
distancia, sem fazer oposição, da concepção clássica de ecologia. Ou seja, ele
supera sua restrita compreensão como ciência que estuda as relações dos seres vivos
entre si ou com o meio orgânico ou inorgânico no qual vivem 249·. Deixa para trás
também aquela própria do século XVIII, segundo a qual cada espécie viva tinha seu
habitat dentro de um padrão harmonioso de interdependência entre as diferentes
espécies. Assume o significado de ecologia dado por Ernst Haeckel: “o estudo do
inter-retrorelacionamento de todos os sistemas vivos e não-vivos entre si com seu
meio ambiente, entendido como uma casa, donde deriva a palavra ecologia” 250. A
partir desta definição, L. Boff ressalta que não basta a preocupação com o meio
247 POETRYFOUNDATION., “John Donne”. John Donne foi um poeta inglês (1572-1631). Ver
também: DONNE, J., Selected Prose, p. 126. Tradução minha. 248 L. Boff explicita que sua compreensão de holismo não significa “a soma das partes, mas a
captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, sempre articuladas entre si dentro da
totalidade e constituindo essa totalidade”. BOFF, L., Ética da vida, p. 17. É comum encontrar a afirmação de holismo como entendimento integral dos fenômenos em oposição ao entendimento
tomados isolados. Uma visão que pode pôr a perder a unidade específica de cada ser ou de cada
coisa. BOFF, L., Ética da vida, pp. 18-19. 249 Em livros didáticos encontramos a seguinte explicação “Ecologia: estudo das relações dos seres
vivos entre si e com o ambiente onde vivem”. LAURENCE, J., Biologia, p. 33. Em outros não há
menção da palavra ecologia, mas de nicho ecológico. Na mesma linha da concepção anterior,
afirmam “A maneira como vive uma determinada espécie é chamada de nicho ecológico”. CRUZ,
D., Ciências & Educação ambiental, p. 276. No glossário deste mesmo livro há a explicitação:
“Nicho ecológico: a maneira como uma espécie vive num ecossistema”. Sobre Ecossistema, “a
comunidade e seu ambiente físico, ou seja, o conjunto de todos os seres vivos de uma determinada
área mais os fatores abióticos (luz, água, solo, oxigênio, etc.) com os quais eles interagem”, p. 300. Em suma, o estudo da organização dos seres vivos tem seu foco nos rios, lagos, florestas, campo,
oceanos e animais e plantas que ali vivem. E acrescentam “Podemos estudar a vida a partir de um
único organismo, que pode ser unicelular ou multicelular”. LAURENCE, J., Biologia, p. 32. Não é
objetivo de esta pesquisa estudar a ecologia. Contudo, situar estas compreensões aqui revelam uma
sutil parcialidade no ensino educacional e que passa para a vida cotidiana, muitas vezes, sem
criticidade, conceitos com significados que implicam certas posturas perante a vida, que, no entanto,
apresentam-se como “neutros”. Tais conceitos estão presentes também nos Meios de comunicação
social, particularmente nos programas televisivos. A pesquisa quer chamar atenção que a busca pela
vida, com profundidade de sentido, está premente em todo ser, articulada entre si dentro da totalidade
da criação. Nem nada nem ninguém pode ser deixado de fora. 250 BOFF, L., Ética da vida, p. 10.
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ambiente, uma ecologia ambiental. Também não basta criar associações que
justaponham o ambiente e a sociedade, onde o ser humano está inserido, uma
ecologia social. E nem mesmo é suficiente uma ecologia que se concentre num tipo
de mentalidade para tornar vigente uma ação e gerenciar recursos naturais escassos.
Estas concepções fazem gerar o individualismo e restringir seu campo de atuação,
pois tudo está ordenado para o ser humano, visto como rei do universo.
Nesta esteira de L. Boff, ecologia tem a ver com as relações de tudo com
tudo, em todas as dimensões. Pertence a todos os seres, tanto os vivos como os
inertes, os naturais e os culturais, em interação entre si e com o seu meio. Como
saber de relações entrelaçadas, L. Boff chama a atenção para uma ecologia como
uma rede de interdependência vigente de tudo com tudo, na captação una e diversa
em suas partes, onde tudo está interligado entre si e constituindo a totalidade. Logo,
ela não pode ser reduzida a soma de técnicas nem a um campo da ciência.
Incorporadas as diferentes contribuições das concepções ecológicas, L. Boff
apresenta a ecologia integral, cuja perspectiva contempla a Terra matricial e nutriz
da vida e, na biosfera, os seres humanos a ela intrinsecamente ligados. Consciente
do nível de complexidade da cosmologia, particularmente por sua associação com
outros ramos de pesquisa e com o avanço das ciências de computação, este teólogo
chama a atenção para a necessidade de uma nova consciência que se construa em
um horizonte que além de abarcar o particular e o individual, ao mesmo tempo,
contemple as relações e o sentido da existência. Trata-se de uma visão holística que
integre e considere a interdependência entre as situações de pobreza, degradação
ambiental, injustiça social, conflitos étnicos e crise espiritual e também as questões
de ordem política, educacional e urbanística.
A ética do cuidado surge como um modo de agir, uma atitude de
preocupação e de envolvimento afetivo nas relações. O cuidado é quem modelou o
ser humano, e deu-lhe existência. A composição espírito-corpo é descrição
posterior à sua concepção. Por isso, “o cuidado faz surgir o ser humano complexo,
sensível, solidário, cordial, e conectado com tudo e com todos no universo”251. O
modo de ser cuidado só se aplica quando se transforma em situações existenciais,
ou seja, quando não se encerra em belos programas e leis aprovadas ou protocolo
de intenções.
251 BOFF, L., Saber cuidar, p. 190.
150
A própria ideia de subjetividade se transforma. O sujeito deixa de ser
interventor e passa a ser sujeito de relações. Inicia-se a compreensão da consciência
de que o planeta Terra e o cosmos por sustentarem a vida, são expressão de Deus
presente na história. “Supera-se o reducionismo antropocêntrico que qualificava
tudo o que não se referia ao humano como secundário. Admite-se apenas certa
dignidade às coisas e seres que poderiam ser utilizados e manipulados pelo ser
humano”252.
Frente ao paradigma de dominação, antropocêntrico e dualista, responsável
pela desintegração da vida e ditador de sentido da vida, que se deixa conduzir pela
ideia de progresso e avanço ilimitado, contrapõe-se o paradigma do cuidado. O
cuidado está presente na gênese do cosmos (cosmogênese) e na gênese do ser
humano (biogênese). Nem o cosmo nem o ser humano são perfeitos e acabados,
mas encontram-se em processo permanente e aberto de nascimento. Nós, os seres
vivos, estamos todos em gênese, abertos para o futuro. O cuidado revela a atitude
de respeito com toda a vida (planeta, nicho ecológico, sociedade, com os outros
humanos, particularmente os pobres, com nosso corpo, alma, espírito e com a
grande travessia: a morte). O cuidado desvela-se em afeto para com o outro e
instaura uma lógica das relações humanas.
Jesus, o ser de cuidado, revela em suas atitudes o Deus-cuidado. Une o
universal ao particular, une à existência a permanente criação por Deus. Integra
dentro de si a dimensão feminina que o tornava sensível à exclusão em que viviam
as mulheres. Contempla a mulher como criadora do Reino e com ela descobre o
mistério do Reino253. Em um de seus encontros, no meio da multidão, Jesus
experimenta um toque diferente, curativo, que sai de dentro de si mesmo. Surpreso,
busca um encontro direto com a mulher e ensina que o Reino só pode ser vivenciado
no contato pessoal (cf. Lc 8,46). O Deus-cuidado revela em Jesus que em meio aos
superlativos linguísticos para descrever uma realidade, como por exemplo, os
prefixos que indicam superioridade super, extra, ultra, mega, hiper e arqui, à
252 BAPTISTA, P. A. N., Libertação e diálogo, p. 219. 253 Inspirado no livro, o rosto feminino do Reino do Padre Benjamin, jesuíta espanhol que descreve
como Jesus contempla a mulher. Diferente da ideia que dela escutava de ser inferior ao homem,
Jesus criava, então, a partir desta contemplação uma linguagem para falar de Deus. Dessa
experiência relacional, a mulher foi se libertando da opressão, os homens das leis da morte e Jesus
encontrando o rosto feminino do Deus cuidado Pai-Mãe que continua sua criação na história. In: Cf.
GONZÁLES BUELTA, B., O rosto feminino do reino.
151
multidão Ele chama a atenção para a vida que clama e emerge na história concreta
e cotidiana do mundo.
As criaturas estão em gênese, na história. Deus emerge de dentro dessa
experiência cosmológica como o Futuro absoluto do mundo, a Terra da promessa
para o coração humano. Deus não é só o transcendente, como afirma o deísmo254,
nem só o imanente, como afirma o panteísmo255. Da mesma maneira quer-se dizer,
Deus emerge não fora do processo cosmogênico, mas manifesta-se no interior desse
processo. Este Mistério inefável em Deus pode ser compreendido
Como Paixão infinita de comunicação e expansão, pois o universo é cheio de
movimento em equilíbrio, criando o tempo, o espaço e todos os seres na medida
em que se dilata indefinidamente. Deus irrompe como Espírito que perpassa o todo e cada parte, porquanto tudo é sutilmente interdependente e apresenta uma ordem
que continuamente se cria a partir da desordem inicial e que se abre para formas
cada vez mais abertas e superiores de relação256.
Vale recordar uma afirmação de Teilhard de Chardin, citada por L. Boff
como enriquecedora da intuição fundamental da harmonização com o todo da vida:
"O meu interesse real na vida é mover-me irresistivelmente para uma mais e mais
intensa concentração sobre a questão básica das relações entre Cristo e a
hominização. Isso tornou-se para mim uma questão de to be or not to be”257.
Nesta perspectiva, Moltmann convida ao pensamento ecológico da criação.
A transição de época exige sair da dicotomia entre Deus e o mundo de outrora, para,
agora, reconhecer a “presença de Deus no mundo e da presença do mundo em
nós”258.
No desenvolver deste pensamento, L. Boff une e centra, amplia e
transcendentaliza a visão ecológica chegando à espiritualidade cristã. Ao considerar
o universo “uma teia intrincadíssima de relações, onde tudo tem a ver com tudo em
todos os momentos e em todos os lugares, então a forma de nomear o Deus dos
254 Deísmo na tradição filosófica tem seus expoentes em Locke, Rousseau e Voltaire. Afirma a
existência de um Deus único, transcendente, criador do mundo, mas nega a providência e qualquer
relação de Deus com o mundo, a não ser na sua origem com a definição das leis que regem a natureza. 255 Panteísmo: Deus é a única substância absoluta e infinita. Spinoza é um dos inspiradores do culto
da natureza da época romântica e da religiosidade cósmica, própria daqueles que consideram divina
a harmonia das leis naturais, mas não creem em um Deus pessoal que se interesse pelo mundo e pelo
destino humano. Da absorção total do mundo em Deus (panteísmo) é fácil passar à redução de Deus
à totalidade absoluta do próprio mundo (ateísmo). 256 BOFF, L., Experimentar Deus, pp. 54-55. 257 Id., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 17. 258 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 32.
152
cristãos, isto é, como SS. Trindade constitui o protótipo desse jogo de relações”259.
Compartilhando da mesma ideia, Moltmann afirma que “uma vez que o Espírito
atua, vive e move em todas as criaturas por meio de suas energias, Deus está
presente em sua criação e esta existe nele”260. A criação do mundo é ato de inventiva
criatividade na vida da Trindade; Pai, Filho e Espírito Santo.
No pensamento de L. Boff, o sentido da vida é relação, mas também
abertura. Daí que ao adentrar por um tema, já está inserido em outro, sem
esquecimento do anterior. O ser humano é relação. Ele não possui em si a totalidade
da vida. Ele “é parte e parcela da natureza e entretém com ela uma sofisticada rede
de relações, fazendo com que ele co-pilote o processo de evolução junto com as
forças diretivas da Terra”261. O cosmos e o ser humano, tudo está em evolução, em
processo de nascimento, em movimento simbiótico de relação em todas as direções.
Leitor de Teilhard de Chardin, L. Boff compartilha com ele a ideia de que o
universo se encontra em cosmogênese, os seres humanos em processo de
antropogênese. É o grito da vida que quer viver, é a rejeição do fatalismo, que
afirma que vivemos para morrer, e da hegemonia do logos discursivo, que aprisiona
e restringe a vida numa compreensão fechada.
Ele sublinha que “a tendência dos seres vivos é serem cada vez mais
ordenados e criativos e, por isso, antientrópicos. A própria desordem é indício de
uma nova ordem que vai emergir. O caos é generativo e se ordena sempre a um
cosmos”262. Esta concepção é o oposto da entropia, isto é, a libertação de uma visão
que sustenta que a vida irreversivelmente se dissipará. Vida e morte estão inter-
relacionadas. Convém notar que entropia e evolução são movimentos interiores aos
processos cosmológicos, segundo a descrição da ciência mais contemporânea. A
evolução, tal como descrita na cosmologia científica, por si só, não permite falar
em transcendência. Por outro lado, quando já se tem o discurso da transcendência,
pode-se perfeitamente ver, na evolução, um índice físico deste caminhar de todo ser
para ser mais que si mesmo.
De fato, nem a menor das partículas da matéria é encerrada em si mesma,
mas antes é, ainda que minimamente, aberta a interagir com outra porção de
259 BOFF, L., Ética da vida, p. 18. 260 MOLTMANN, J., “Da Era da Modernidade ao future ecológico”, p.31. 261 BOFF, L., Saber cuidar, p. 114. 262 Id., Ética da vida, p. 75.
153
matéria. Realmente, nem sequer aquelas porções da matéria que são classificadas
de inertes, como por exemplo, os gases inertes da química não escapam à lei do
atrito, da gravidade, etc. O fato de o mundo não ser um mundo fechado em seus
componentes, mas que os componentes do mundo estão justamente abertos a
compor o mundo faz Lee Smolin levantar uma questão interessante.
Há alguma razão para que não pudéssemos conceber o mundo, como sendo feito como uma rede de relações, das quais nossas aparências são exemplos verdadeiros
em vez de um mundo feito de algo imaginado como coisas absolutamente
existentes, das quais nossas aparências seriam meras sombras? Por que existiria algo como “coisa em si”, para além dos efeitos que todas as coisas produzem umas
sobre as outras? Isto se relaciona com outra questão. Se as leis da natureza são tão
somente a elaboração dos princípios da lógica e da probabilidade por processos de
auto-organização, ainda não deveriam existir partículas fundamentais, sobre as quais atuam estes processos? E estas não deveriam obedecer a algum tipo de leis
universais? Talvez um princípio a seleção natural e a auto-organização ou dinâmica
aleatória possa explicar porque os parâmetros do modelo padrão vieram a ser aquilo que são, mas justamente porque a biologia exige a presença de moléculas em cuja
combinação os princípios de auto-organização e seleção natural podem agir, a
física não exige ainda alguma substância fundamental sobre as quais as leis possam agir? O mundo não deve consistir de alguma coisa para além da organização e das
relações?263.
Há um círculo, que não se fecha, entre o pressuposto da existência relacional
do ser humano, e, efetivamente, uma liberdade intrínseca de ampliação ou
fechamento desse círculo. Consciente da complexa realidade da vida e seus
mecanismos não determinísticos, Lee Smolin abre espaço para o Transcendente.
Não sei a resposta a estas questões. Elas pertencem à classe das questões realmente
difíceis, tal como o problema da consciência ou o problema de por que existe no mundo algo chamado “coisa”, em vez de nada. Ao fim e ao cabo, por que o mundo
foi chamado ao ser? Não vejo realmente como a ciência, por mais que ela progrida,
possa levar-nos a uma compreensão destas questões e talvez sobre um lugar para o misticismo264.
Torna-se crucial abrir espaço para a perspectiva dos outros em particular,
dos outros nós, e do grande Outro, Deus. É essencial verificar se o ser humano, nós
mesmos, somos realmente capazes de reconhecer a radical legitimidade da presença
desses nós outros, toda a criação e o Criador na busca pelo sentido da vida. Ou, a
existência poderá eclipsar-se.
263 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 197. Tradução minha. 264 Ibid., pp. 197-198. Tradução minha.
154
Na esteira teológica da existência humana, como aporte para o sentido da
vida humana, L. Boff afirma que existência é o movimento de saída de si mesmo
para relacionar com um outro o que constitui o ser pessoa humana.
O centro da personalidade é formado e constituído por uma contínua doação de si.
É saindo de si que fica em si. É dando que se recebe o ser pessoal. Pessoa, nesse
sentido, é um permanente criar-se a partir de uma relação. A capacidade de auto transcender-se (sair de si) é o específico da pessoa265.
As relações vão criando realidades concretas, verdadeiras histórias, fruto
das interações com todo ser vivo. Por isso, a vida é interativa e possui interioridade.
Estar vivo implica existir em interatividade com as pessoas, o mundo e com Deus.
Este modo de compreender a vida propicia a consciência de que cada ser vivo é
uma parcela, importante, de suas relações. Para Ricoeur, a identidade mais autêntica
advém do reconhecimento mútuo. É ela que nos faz ser o que somos e que solicita
ser reconhecida. Nesta dinâmica, o interesse pelo outro faz o movimento de saída
do reconhecimento de si, do ensimesmamento, para conhecer o outro e ingressar
nas relações recíprocas266. A existência humana é construída de movimentos de
reciprocidade.
Todos estamos enredados num jogo de inter-retro-relacionamentos, em cadeia,
pelo qual vamos construindo, com o desenrolar do tempo, nosso ser. Neste jogo
tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os tempos e em todas as circunstâncias. Existir e viver é inter-existir e com-viver. Numa palavra, é
relacionar-se267.
A vida é um constante movimento em todas as direções. Ela é inter-relação,
isto é, relação de dentro, do mais interior, mais íntimo, do mais profundo. É retro-
relação, isto é, relação com o tempo precedente. E, é relacionar-se, isto é, relação
de reflexividade ou reciprocidade. Portanto, a vida é um inter-retro-relacionar-se.
265 BOFF, L., O destino do homem e do mundo, p. 56. 266 Cf. RICOEUR, P., Percurso do reconhecimento, pp.17-28. 267 BOFF, L., O despertar da águia, p. 48.
155
3.2.4. A história humana como convocação a uma compreensão inclusiva da vida
Se se fosse descrever um movimento na orientação teológica, poder-se-ia
dizer que por volta da década de 70 foi posto em evidência o Livro do Êxodo, com
cuja leitura buscava-se iluminar as questões políticas, examinadas à luz da fé cristã.
A década de 90 sublinhava o livro do Gênesis, ao se tematizar o interesse pela terra,
pelo cosmos, pela ecologia e o cuidado com a criação.
A época pós-moderna, beneficiada ou confusa, está inserida num contexto
amplo das ciências e aplicação de inovadoras tecnologias que configuram o
quotidiano, globalizando-o. Surge um tipo de sensibilidade global, consciente dos
limites e enganos do crescimento, denunciadora das consequências perversas da
razão instrumentalizada, a qual explora a natureza abusivamente, produz armas
atômicas, químicas e biológicas de destruição em massa, ao lado do discurso de
proteção e soberania e, inconformada com uma organização social, injusta e
excludente.
L. Boff chama a atenção para a mudança das questões prementes para o ser
humano. Anteriormente, as questões eram de cunho mais filosófico humanista: de
onde viemos? Para onde vamos? Que podemos saber? E assustados com o moderno
conhecimento capaz de destruir a vida, perguntava-se: Que podemos esperar? Hoje,
para este autor, em face da crise ecológica, a questão premente e a escrever em
todas as folhas da agenda é: como devemos viver?
Avulta, neste momento, uma teologia que não se relaciona primeiramente
com diferentes realidades, mas quer elaborar conceitos de perspectiva, sempre
relacionados ao todo da realidade. Sublinha que a ecologia é ecologia ambiental,
social, mental; é ecologia integral. Ela contempla todas estas concepções, e servem
à medida que “nos ajudam a sermos um ser de relações”268.
A teologia cristã diz-nos que Deus revela-se como um ser relações, de tal
forma que, quando uma das hipóstases está em evidência, às outras duas estão à sua
268 BOFF, L., Ética da vida, p. 19.
156
volta, de mãos dadas com ela, solidárias269. A afirmação do universo como nó de
relações, encontra sua origem na inter-relação absoluta de três divinas Pessoas.
Nomeada como Trindade, o Deus dos cristãos constitui entrelaçamento eterno, para
dentro e para fora de si. A pericórese, como comunidade trinitária, oferece o padrão
para pensar a comunidade. Somente uma civilização baseada na igualdade, na
participação e na solidariedade integrada com a natureza, tem um caráter de
preservação do mundo em termos de ecologia sustentável. Tanto a pobreza como a
riqueza destroem a ecologia sustentável: as pessoas pobres por necessidade e as
ricas por consumo. Para L. Boff, urge uma matriz ecológica de modo que todos os
fatores e pessoas estejam integrados270.
Com Jesus, o rosto visível de Deus, a pessoa que crê experimenta que Deus
não se reduz a uma teoria, mas é uma Presença, que se oferece, desde suas origens
a sua consciência de ser Seu povo, que o transforma interiormente e faculta a
afinação de sua vida de abertura e compromisso com os outros. A fé inspira uma
vida sempre compreendida de maneira nova, abraçada de humanidade e amor.
A Sagrada Escritura possui um papel fundante e fundamental na vida cristã.
A experiência espiritual do povo descerra uma experiência de fé na qual homem e
mulher são testemunhas da interpelação da Palavra criadora e salvadora de Deus.
Já no judaísmo, a Palavra de Deus é elemento constitutivo para a orientação e
organização da vida. Numa peculiar continuidade desta experiência, para a fé cristã,
a Sagrada Escritura é lida, não simplesmente como um documento histórico, mas
é, sobretudo, memória viva e misteriosa da presença de um Deus que se quer
comunicar também pela sua Palavra. Conforme se lê “Muitas vezes e de modos
diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os
últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2). Em Jesus Cristo, a Palavra em
que Deus conhece todas as coisas, assume a história humana, torna-se Evangelho,
para chamar a pessoa à vida em plenitude.
Com Jesus, completa-se a revelação começada no Antigo Testamento. O
modo de falar de Deus no Novo Testamento sofre uma mudança no sentido formal.
Ela apresenta maior complexidade e diversidade de tons. De múltiplos
269 Na história de Deus há uma pericórese, ou seja, significa que, para cada pessoa, é a outra pessoa
que está no centro. Cada pessoa se distingue não para se separar da outra pessoa, mas para ser
totalmente voltada para a outra pessoa. 270 Cf. BOFF, L., Ecologia – Mundialização – Espiritualidade, pp. 17-45.
157
intermediários, concentra-se agora em Jesus Cristo, que é, ao mesmo tempo, seu
autor e seu objeto. Agora o referencial único é Jesus Cristo. Ele é a real presença de
Deus, na criação e na história, permanecendo a presença absoluta de Deus sobre a
história271. Os gestos de Jesus revelam o solícito amor criador de Deus.
Ora, sem a Palavra revelação na história humana, a Palavra que se faz carne
humana em Jesus, poder-se ia dizer que o criador está no céu e as criaturas na terra.
O Deus experimentado e proclamado pela fé cristã atesta que o mundo não só é
criado por Deus, mas é lugar de sua autocomunicação, portanto é no mundo que Ele
se encontra.
Karl Rahner explicita a presença do Deus criador em Jesus, na linguagem
do Infinito que adentra no finito, por isto o próprio finito ganha profundidade
infinita. “O próprio Infinito se tornou, o lugar onde ele se expressa como a pergunta
a que ele próprio responde, a fim de abrir-se para todo o finito, dentro do qual se
tornou parcela”272. No dizer de Moltmann, “o Deus transcendente e o Deus
imanente no mundo são um só Deus”273. Toda a criação significa um
desdobramento da vida Trinitária pela graça, como dito antes. Nela, a humanidade
é convidada a participar desta comunhão.
L. Boff afirma a transparência como categoria que melhor sintetiza a
convivência do infinito com o finito, a transcendência e a imanência, a divindade e
a humanidade em Deus. É uma terceira categoria que não exclui, mas integra.
“Transparência é o termo que traduz a inter-retro-relação da imanência com a
transcendência. A transparência é transcendência dentro da imanência e imanência
dentro da transcendência”274. Por esta categoria, mundo e Deus estão
intrinsecamente unidos, sem dualismo. O mundo é transformado, pois transparece
a transcendência. Destarte, o mundo não remete simplesmente à própria dinâmica
ou imanência. O mundo é Bom, pois “é o lugar e a própria manifestação emergente
daquilo que é mais do que mundo, i.e: do Trans-cendente, de Deus”275.
Pela Encarnação do Filho, Deus não está fora do mundo. Ao contrário, ele
escolhe a história humana como sua habitação. O mundo é o lugar de Deus. “Se o
próprio Deus criador habita na sua criação, então ele faz dela o seu lugar de se sentir
271 Cf. MOLTMANN, J., O caminho de Jesus Cristo, pp. 17-64. 272 RAHNER, K., Curso fundamental da fé, pp. 269-270. 273 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 34. 274 BOFF, L., A águia e a galinha, p. 172. 275 BOFF, L., “Experimentar a Deus hoje”, p. 132.
158
em casa assim na terra como no céu”276. O projeto criador de Deus é inclusivo com
relação a todas as criaturas.
No dizer de L. Boff, a pregação de Jesus é a transformação global na direção
de sua culminância. Ela é “a novidade e a jovialidade de Deus reinando sobre todas
as coisas”277. O Deus em Jesus é aquele que dá novo colorido a todas as coisas,
permanentemente.
Encarnação significa, primeiramente, que “Deus estabeleceu morada entre
nós, veio até a sua própria terra”278 afirma Gutiérrez. Deus cria o mundo e faz dele
sua morada. Permanecendo embora na Trindade, Jesus não é estranho à história
humana. Isto releva substancialmente o ser humano, principalmente os que estão à
margem. Na verdade, para Deus não há margem limite. Ele está em toda parte. Logo
se na história há margens e marginalizados é porque a história tem elementos que
não advêm de Deus. Não há espaço ou tempo que possa reter sua presença, nem
mesmo a morte.
Numa religião cósmica, não há espaço para uma revelação histórica. Nela,
Deus se esgota na criação. Há uma circularidade perfeita entre Deus e o mundo, de
tal forma que o mundo é Deus, e Deus é o mundo. Esta é a visão do panteísmo
segundo o qual Deus é a unidade do mundo; tudo é Deus e Deus e o mundo são
apenas um, sem distinção real. O pressuposto básico da fé cristã para uma revelação
histórica de Deus é a compreensão de seu Ser, como consciência e liberdade. Deus
pode revelar-se para além da sua criação, gratuitamente, permanecendo Deus.
Por outro lado, os deístas afirmam um Deus tão perfeito na sua criação que
se torna desnecessária a Revelação. Esta foi a posição, por exemplo, dos estudiosos
de física clássica, dos séculos XVIII e XIX que compararam a criação do universo
a um grande relógio, donde haveria a necessidade de um relojoeiro para intervir
ocasionalmente de modo a preservar eternamente o funcionamento do relógio
cósmico.
A maioria dos físicos e filósofos dos últimos três séculos não tiveram dificuldade
em imaginar que o universo era a criação de um deus inteligente e eterno. Então talvez não fosse exagerado sugerir que a imagem do universo como um relógio
276 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 22. 277 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 258. 278 GUTIERREZ, G., O Deus da Vida, p.115.
159
mecânico, para muitos daqueles que vieram depois de Newton, era uma ideia
religiosa279.
A ideia de um universo mantido em movimento pela ação de uma
inteligência divina é um elemento da crise pós-moderna? A ideia de um deus alheio
ao mundo ou que só se apresenta após certos intervalos de tempo para pequenas
correções de curso termina por decretar que Deus é totalmente dispensável, à
medida que a física e a cosmologia desenvolvem seus conteúdos. Sendo deus uma
hipótese dispensável, como Laplace teria dito, o universo ficará à mercê da
singularidade dos fatos. Essa seria uma radicalização da visão dualista e
fragmentadora da vida a qual opõe espírito e corpo, eterno e perecível, vida e morte,
céu e terra, endógeno e exógeno. Há assim uma extensa lista de dicotomias, que
também inclui feminino e masculino, sagrado e profano. Este tipo de visão que
imprime na vida um lado de negatividade e frustração, de início impede a integração
das diversas dimensões, terminando por simplesmente negar uma delas.
Triunfa a racionalidade empírico-matemática e a dramática experiência do
não-sentido ou a produção da aparência do sentido. Em síntese, a mundivisão
moderna e pós-moderna negam a diversidade, atêm-se um monismo rígido, de
caráter imanente, ocasionando uma mudança na orientação do sentido, uma crise
que fragmenta a vida, o desperdício da abundância da vida. Sem a respiração
vertical da dimensão espiritual, o ser humano sente-se sufocado e por isso grita pela
experiência do sentido da vida.
Em seu ato criador, Deus não se divide para que uma parte de si mesmo
pudesse fazer o mundo. Deus permanece Deus e o mundo pela sua Palavra é
chamado à existência. Como Palavra, chama os seres do nada à existência, e se
manifesta através de sua existência. Sem matéria precedente, Deus dá origem ao
mundo criado.
A Encarnação do Verbo de Deus atesta que Deus não é simplesmente ‘fora
do mundo’, não é um ‘fazedor’ de mundos, indiferente a sua destinação. O amor
que o leva a criar o mundo faz também que suas criaturas não vivam fora dele. Deus
escolhe e vive na história humana.
A Encarnação do Verbo manifesta o Deus cristão que vem da periferia, para
a relacionalidade histórica humana e na participação Trinitária. Deus age ad intra
279 SMOLIN, L., The life of the cosmos, pp. 141-142. Tradução minha.
160
e ad extra. Ao mesmo tempo, Ele está em si mesmo e fora de si, numa dialética da
identidade e da diferença. Dentro de si mesmo, ad intra, ele vive uma relação
circular do amor eterno da Trindade. Em sua diferença, ad extra, está a relação
histórica dotada de sentido capaz de revelar a identidade do absoluto da existência.
A fé cristã acredita na vida que constantemente gera e descobre novidades,
isto é justamente a derrota da inércia, do eterno retorno. A entrada da liberdade
divina bem como seu diálogo com a liberdade humana na história garante a
permanente abertura da história à novidade criadora de Deus.
A fé cristã é, sobretudo, o evento da eterna jovialidade divina que por amor
cria a vida, faz-se história, humilha-se e vai até o fim. Na esteira teológica de L.
Boff, jovialidade significa o momento da transcendência e da gratuidade que se faz
irrupção dentro do cotidiano e louva a vida280.
O evento da ressurreição insere-se na Encarnação do Filho de Deus. Paulo
está convencido ao afirmar a ressurreição de Jesus, experiência que permanece
imutável em seus escritos. “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,
vazia também é a vossa fé” (1Cor 15,14).
Desde então, toda a história pode ser vista à luz do Ressuscitado. A
ressurreição de Cristo está sempre vinculada ao processo histórico-salvífico. Ela é
a esperança real para toda pessoa que crê. Esta esperança escatológica remete de
um lado para o além da história, por outro, conduz para uma postura de justiça,
amor e vida, tudo isto conferindo sentido para o ser humano. Acontece na história
da humanidade e culmina na plena realização do Reino de Deus. A ressurreição de
Jesus assegura afirmar que a morte não é a última palavra. A palavra última é a vida
integrada, feliz, em todas as direções. Assim o destaca o início de cada um dos
Testamentos da Sagrada Escritura. A criação da vida por Deus, “no princípio” (cf.
Gn 1,1ss), é confirmada na vinda do Filho “Alegra-te” (cf. Lc 1,28).
O reverso seria a posição niilista de não ver sentido nem nos eventos
temporais nem nas relações do ser. A esta posição levanta-se a questão: o niilismo
justifica-se, impõem-se racionalmente? Não representa ele antes um desarvorar-se
diante do sentido proclamado e não vivido? Ora, diante deste quadro, por que
proclamar o não sentido, por que antes não o viver?
280 Cf. BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, p. 12. Id. “A estrutura pascal da existência
humana”, pp. 5-11.
161
A fé cristã de nada exige um salto no vazio. Isso corresponderia a uma
doutrina que desprezasse a razão para pregar a existência da fé, do tipo credo quia
absurdum. Tratar do sentido da vida na existência humana remete sempre à
gratuidade e não ao absurdo. Por isso, desenvolvem-se expectativas soteriológicas,
de um Deus que resgata, ao passo que rechaça toda doutrina teológica que
corresponde a um fideísmo, de um deus que deixa acontecer.
A fé cristã é fé em uma Palavra que, gratuitamente, se oferece ao indivíduo
em um discurso articulado e com sentido, que convida a entrar em uma Aliança de
vida, e apresenta livre assentimento ou sua rejeição. Contudo, o convite é incisivo
“Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência” (Dt 30,19).
Nesta perspectiva, a partir da esperança cristã os conhecimentos científicos
na pós-modernidade impelem a reconhecer que a emergência da vida humana está
ligada ao nascimento e ao desenvolvimento do universo. As realidades do cosmos
e da consciência já não podem mais ser expressas de maneira dualista. A
ressurreição de Cristo é o reconhecimento da sua pré-existência como Filho de
Deus, como também um acontecimento terrestre e cósmico. Cristo é, a um tempo,
aquele por quem todas as coisas foram feitas, sem o qual nada do que foi feito se
fez, portanto é ele quem preside o curso da evolução, e aquele em quem, por ser o
mais perfeito humano, todo o processo de criação e evolução atingem seu ápice. A
ressurreição engloba a dimensão histórica e cósmica281.
Neste ponto não há dúvida, diz L. Boff citando D. Pedro Casaldáliga “a
alternativa cristã é essa: ou a vida ou a ressurreição”. A vida é a última palavra. E à
luz da ressurreição o tempo é vivido com esperança viva.
Desde o primeiro ato criador da vida e a promessa de sua eternidade, insere-
se a Palavra-ação da Trindade presente na história. Palavra ao mesmo tempo
promessa e criação. Afirma o futuro e o realiza. Novidade sempre nova.
281 Cf. HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 61-65.
162
3.3. Apreender o sentido da vida na teologia de Leonardo Boff
A questão da vida na esteira teológica de Leonardo Boff aponta para um
sentido absoluto e radical de tudo o que é verdadeiramente humano de dentro de
Deus. O olhar de L. Boff é de esperança, por isto o ser humano é sempre visto como
ser de desejo, de busca, de procura, de luta, de fé.
Esta premissa é assegurada pela Ressurreição. “Se alguém está em Cristo, é
nova criatura” (2 Cor 5,17). A fé cristã afirma que a vida é boa, e vale ser bem
vivida, pois nela Jesus permanece presente, através de Seu espírito.
Nas palavras do salmista, o ser humano de ontem e de hoje grita pela vida:
“Sois vós, ó Senhor, o meu Deus!” (Sl 62). A busca pela vida se dá desde a aurora,
em sua própria existência de ser: carne, terra, sede, no leito, na noite, nas vigílias,
porque Deus é seu socorro e sua alegria, sua vitalidade. Todo ser humano anseia
por algo maior, mais profundo, melhor, de forma a dar sentido à própria existência.
A questão do sentido da vida adentra a antropologia e a escatologia. No
pensar a vida como inter-retro-relações há que se perguntar se L. Boff reflete sobre
um sentido da vida que vem a partir de dentro. Ou se se trata de relações que
envolvem a pessoa, mas de maneira extrínseca. Se for possível apreender o sentido
da vida em sua teologia, será necessário examinar e nomear a voz que ecoa dentro
da própria existência humana e do mundo que constitui a voz do sentido da vida.
Duas premissas básicas parecem contemplar o horizonte de sentido da vida
em sua teologia. De um lado, ele parece questionar que a vida tenha sentido.
O determinante de nossa cultura técnica e secular que começou a predominar a
partir do século XVI não reside na preocupação pelo último sentido de tudo. O
homem não se sente sempre e em cada lugar diante de Deus. A numinosidade divina não o envolve como em eras passadas. O mundo deixou de ser transparente
para Deus: a realidade transformada pelo trabalho fala mais do homem, seu artífice,
que de Deus, seu Criador. Deus se evadiu do horizonte da consciência histórica. Embora não seja um ausente, é contudo um grande invisível em nosso mundo
científico-técnico282.
De outro, a vida desencadeadora de sentido.
282 BOFF, L., O destino do homem e do mundo, p. 13.
163
Vida é um mistério de espontaneidade, um processo inesgotável de dar e receber,
de assimilar, incorporar e entregar a própria vida em comunhão com outra vida.
Ligada ao fenômeno da vida está a expansão e a presença. Um ser vivo não está aí
como pode estar uma pedra. O ser vivo possui presença, que significa uma intensificação de existência283.
L. Boff argumenta que deve haver sempre uma correlação entre as verdades
da fé e as experiências do ser humano em sua história. A apreensão de sua teologia
deverá levar em conta a novidade última trazida na Revelação de Jesus e a busca
do ser humano pela novidade última.
3.3.1. Jesus, o divino no humano e o humano em Deus
Como falar, de modo inteligível, de relações humanas hoje? E como falar
que em Jesus permanecem íntegras a natureza divina e a natureza humana?284
Esta questão não é recente. Com a morte e ressurreição de Jesus, levantou-
se o problema da correta expressão, a partir de eventos, para novidade tão grandes
como a de que Jesus ressuscitou de entre os mortos, que era o Messias esperado.
Posteriormente, veio a questão do modo correto de se dizer que a natureza divina
em Jesus uniu-se à humana. Em ambas, a resposta tem como partida Deus em sua
revelação na história.
“O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e
profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram só puderam dizer: humano
assim como Jesus só pode ser Deus mesmo”285. L. Boff compreende que essa
283 BOFF, L., A Santíssima Trindade é a melhor comunidade, p. 89. 284 A morte de cruz de Jesus denunciava-o como pretendente a Messias político e religioso pela
opinião pública judaica. Mas, a experiência da Ressurreição pelos discípulos de Jesus obrigou-os a anunciar o mistério que o próprio Deus revelou em Jesus ser o Messias verdadeiro. Séculos depois,
surge a questão a respeito do modo como Jesus, o Filho de Deus, o Ressuscitado dentre os mortos,
se fez homem e assumiu a natureza realmente humana. Assim, as controvérsias cristológicas versam
sobre o modo da união do divino e do humano na pessoa de Cristo. Os primeiros Concílios da Igreja,
particularmente Éfeso (431) e Calcedônia (451), discutiram a respeito da identidade divino-humana
de Cristo. Frente a quem era tentado a exaltar uma dimensão em desvantagem da outra ou de as
dividir em prejuízo da unidade pessoal, afirmou-se que Jesus tem duas naturezas perfeitas, a divina
e a humana, unidas numa única Pessoa divina e, portanto, Maria é verdadeiramente Mãe de Deus.
Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A conclusão expressa ter como ponto de partida:
Deus, em sua revelação na história. 285 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.
164
afirmação advém de uma fé explicitada, que antes fora experimentada na
convivência e no seguimento radical à proposta do Reino, inaugurado em Jesus.
Não se pode desconsiderar a pessoa histórica de Jesus. De fato, ele não é
primeiramente uma ideia e um tema de pregação. Ele é, antes de tudo, um ser
histórico, condicionado e datável. A concretude histórica e a especificidade de Jesus
reluzem a despeito de todas as interpretações que as comunidades primitivas
tenham feito.
Jesus, o homem de Nazaré, não pode ser entendido fora da dimensão da fé.
Não foi sem razão que a comunidade primitiva identificou o Jesus histórico carnal
como o Cristo ressuscitado na glória. A história vem sempre unida com a fé, por
isto deve ser rejeitada toda ideia que reduz Jesus à mera Palavra ou a mero ser
histórico (docetismo). Ao que significa que não há na fé cristã, separação fé-vida.
Quando a Sagrada Escritura diz que a Palavra se fez carne torna-se inteligível que
o “Pai possui realmente um Logos, isto é, a possibilidade de expressar-se
historicamente a si mesmo e em si mesmo para nós, que este Deus é a fidelidade
histórica e, neste sentido, é o Verdadeiro, o Logos”286. A Encarnação é expressão
do amor de um Deus pessoal; do Pai que continuamente comunica sua própria vida.
Este amor se autocomunica como Filho e como Espírito.
A centralidade conferida pelo Cristianismo à existência humana de Jesus
constitui a ousadia de sua proposta à humanidade. Palácio bem expressa a
originalidade revolucionária em Jesus, que não está afirmada em uma ‘doutrina',
mas em “uma maneira de ser homem, um não poder entender a sua experiência
humana fora de uma relação constitutiva com Deus como Pai, que des-centra a sua
vida, tornando-a assim radicalmente filial e fraterna”. Na pessoa de Jesus, o humano
é constituído como fundamentalmente referido a Deus. Sua realização plena não
acontece na autossuficiência de si, mas na expansividade de um “Outro”. Afirmado
por Deus como sujeito livre e responsável, Jesus ilustra a “maneira de ser homem
em Deus”287.
A história de Jesus está imbricada na cristologia. Esta, “não consiste noutra
coisa que passar adiante aquilo que emergiu em Jesus. O que emergiu em Jesus foi
a imediatez do próprio Deus” 288. O sentido de sua vida e história, Jesus o adquire
286 RAHNER, K., Curso Fundamental da Fé, p. 254. 287 PALÁCIO, C. “A originalidade singular do Cristianismo”, pp. 311-339. 288 BOFF, L., Jesus Cristo, Libertador, p. 26.
165
nesse voltar-se para uma alteridade, para Alguém com o qual possui familiaridade;
para Deus, a quem chama de Pai.
O primeiro ato do Criador narrado pela Sagrada Escritura fala de um desejo
que vem desde o início da humanidade, evoca uma generosidade desinteressada.
Este ato continua-se no compromisso da pessoa de Jesus Cristo, Palavra-carne de
Deus entre nós, conforme o prólogo de João. A encarnação é o centro da realidade
cristã. Diz-nos, o evangelista, São João que a Palavra de Deus fez-se carne, fez-se
humano. Na existência humana, o divino e o humano em Jesus querem fazer
compreender, que “a Encarnação significa a realização exaustiva e total de uma
possibilidade que Deus colocou pela criação dentro da existência humana”289.
A obra da criação já apresenta, em si mesma, o desejo divino de viver em
íntima relação, comunhão e amizade com o ser humano, num esboço daquilo que
se pode chamar, sem dúvida, de graça inicial. Por causa de seu amor maternal, Deus
cria o ser humano e todas as demais criaturas, e em vista da salvação, como entende
hoje a teologia bíblica290.
A vida de Jesus, compreendidos seus gestos, palavras, atitudes, oração,
revela sua relação com Deus e também, a relação de Deus com a pessoa humana.
Tomando como exemplo o Evangelho de Lucas, aprende-se com Jesus que Deus é
Aquele que desce e cuida do humano (cf. Lc 10), que desce e restaura a alegria (cf.
Lc 24), que acolhe e integra (cf. Lc 7), que procura e reúne os amigos (cf. Lc 15).
Na palavra-ação de Jesus há sinais de que a ação escatológica de Deus já começou
(cf. Lc 4), revelando assim o coração de Deus.
O Deus experimentado e vivido pelo Cristianismo não é somente o Deus transcendente [...] é o Deus que se fez pequeno, que se fez história, esmolou amor,
se esvaziou até a aniquilação, conheceu a saudade, a alegria da amizade, a tristeza
da separação, a esperança e a fé ardentes291.
A encarnação, no dizer de Moran, “é o abrir-se de uma história humana, a
qual estabeleceu uma maneira singular de revelação”292. Revelação, no evento
Jesus, é encontro de Deus com o ser humano, interpelando-o a uma decisão de fé
na história. No humano, Jesus, encontramos Deus. A experiência de Deus para
289 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 222. 290 Cf. DE LA PEÑA, J.L. R., Teologia da criação, pp. 22-51. 291 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 214. 292 MORAN, G. Teologia da Revelação
166
Jesus revela que, “O Deus que em e por Jesus se re-vela é humano. E o homem que
em e por Jesus emerge é divino. Nisso reside o específico da experiência cristã de
Deus e do homem, que é diferente da experiência do judaísmo e do paganismo”293.
No entanto, a imanência não capta toda a transcendência que é Deus. O dom
da libertação de Deus supera todas as expectativas e experiências humanas mais
profundas que dele fazemos. Jesus “não anuncia um sentido particular, político,
econômico, religioso, mas um sentido absoluto que tudo abarca e tudo supera”294.
Na Encarnação Deus se entrega a si mesmo: nisto concentra a revelação em
Jesus Cristo. Entrega de Deus sem reserva, total autonomia da história: ele nasce,
vive como todos, humanos. A história está totalmente nas mãos do ser humano e
Deus aceitou submeter-se a este poder dado ao ser humano, de modo que,
doravante, a ausência de Deus na história não é distanciamento, mas presença
‘aniquilada’295.
Junto com a linguagem do Deus que entrega seu Filho, o Novo Testamento
cunhou também a linguagem do Filho, que se entrega a si mesmo, marcando, assim,
uma radical identidade do homem Jesus com Deus, naquilo, mesmo, que parecia
separá-lo de Deus: em sua entrega pelo Pai.
Nesta inter-relacão da Revelação, Deus se apresenta como um Pai, que
marca contínuos encontros com o homem e a mulher, e estabelece uma contínua
presença; a eles se abre, a eles se doa, chamando-os para uma resposta total,
existencial de todo o seu ser. Assim Deus, mediante o seu diálogo-encontro-dom à
pessoa, e a resposta fé-amor da pessoa a Deus, deseja estabelecer comunhão.
Em Jesus revelou “o que há de mais divino no homem é o que há de mais
humano em Deus” 296. Contra uma possível visão beatífica, Deus assume em Jesus
tudo o que há de realmente humano, menos o pecado: Ele tem fé, reza, festeja,
chora, sofre, perfaz um caminho histórico. A plena divindade de Jesus se revela na
sua plena humanidade.
293 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 12. 294 BOFF, L., Paixão de Cristo, p. 4. 295 Cf. FAUS, J. I. G., Acesso a Jesus. 296 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 93.
167
3.3.2. A ontologia do ser humano
O ser humano é histórico, e isto implica e condiciona uma interpretação. Sua
leitura é histórica e interpretativa297. Dentro de suas experiências históricas encontra
o divino. Em sua história, particular e concreta, Deus se manifesta.
No atual contexto social, ‘conectar’ é a nova linguagem. Por ela o ser
humano dá-se a conhecer, manifesta estar vivo. Mas não é isto relação. Relação é
análogo a ligação, encadeamento, vinculação, em suma, tem caráter de
continuidade. Conectar é pontual. A tessitura social pós-moderna retrata uma nova
civilização, um novo modo de viver, isto é, maneira nova de tecer relações consigo
mesmo, com os outros, com o mundo e com Deus. Esta civilização recoloca a
questão do ser humano e que sentido, se há, atribui à vida. A alternância constante
de interesses, de princípios morais, de luta pela existência conjugada com a luta
pelo prazer, pelo poder e pelo ter em proporção de mais, melhor, rápido e frequente,
tem excluído muitas vidas na esteira da existência.
A denominação sociedade líquida298 traz consigo a tenebrosa fragilidade das
relações humanas. Diferentemente de relações humanas que pressupõem
compromisso, agora a matriz é a rede, onde se pode conectar e desconectar a
qualquer momento, e também se pode deletar quando desejar.
O ser humano deixa de ser visto de forma integrada e globalizante, e passa
a uma forma dualista, fragmentada e justaposta. Esta visão confunde a unidade
sagrada do ser humano, e prorroga, indefinidamente, a promessa de ser a resposta
às questões vitais do homem e da mulher. Constata-se uma centralização dos
objetos inanimados, sem haver referência humana, gerando solidão,
individualismo, pessoas fragmentadas, hostis e antissociais.
297 L. Boff adota em sua cristologia o método histórico-crítico. Este método busca “desentranhar o
sentido originário do texto, para além das interpretações posteriores e de nossa própria
compreensão”. BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 6. Há uma continuidade entre Jesus histórico e
Cristo da fé. Tal continuidade reside no fato de que a comunidade primitiva explicitou o que estava
implícito nas palavras, exigências, atitudes e comportamentos de Jesus. RUIZ, J. M. G. “Leonardo
Boff”, p. 166. 298 Cf. BAUMAN, Z., Amor líquido, p. 11.
168
Todo o arsenal científico e tecnológico não dá conta de suprir as
necessidades mais profundas de todo ser humano. A realidade da vida para o
homem e a mulher se tornou complexa e sem brilho. Há uma busca ansiosa de
experiência de sentido maior, de vida.
A busca de um profundo sentido da vida, empreendida pelo ser humano,
implica dar significação a uma rede de relações aberta e em evolução. Busca superar
a antropologia moderna tanto do tipo cartesiano, quanto dos moldes do monismo
materialista, e questiona a coisificação da vida humana e a ideia de uma aparente
ausência de Deus.
O ser humano pós-moderno, que parece prescindir de Deus, anseia
fundamentar sua resposta em sua própria humanidade. No entanto, ao colocar a
pergunta pela realização de sua vida, ao mesmo tempo, busca relativizar toda
proposta de um Absoluto. E isso é sintoma de carência de uma resposta coerente.
A pergunta do humano sobre sua realização, é a pergunta sobre o sentido
último de sua vida. Sobre isso fala a Revelação acontecida em Jesus de Nazaré, ou
ainda, a releitura da relação de Iahweh com seu povo. A vida do ser humano não
tem origem em si mesma. Há um Criador, que o traz à existência. Portanto, o ponto
de partida de toda antropologia não é o ser humano, mas Aquele quem o formou do
pó da terra e soprou-lhe nas narinas o sopro da vida (cf. Gn 2,7). Diante da questão
do sentido da vida deve-se colocar a questão da participação do ser humano na vida
do Deus da vida. Por esta participação, torna-se visível naquilo que Jesus chamou
de Reino de Deus. O homem e a mulher ao buscar realizar os valores do Reino,
assumindo sua história de luzes e sombras, buscando viver a conversão e a prática
da justiça, o compromisso no processo de transformação do mundo realizam o
sentido de sua própria existência. O sentido da vida tem alcance cósmico, pois
“ultrapassa a dimensão comunitária e social. Além dela, e incluindo-a, abrem-se
dimensões cósmicas e transcendentes”299.
A fé cristã afirma ser Jesus a presença viva e atual de uma história humana
concreta que, desde a sua particularidade histórica levantou uma pretensão
universal: definir o sentido do humano, desde a sua relação com Deus. Há, em Jesus,
um rosto humano, uma experiência humana acessível e entregue, numa linguagem
humana, comunicada a nós, cujo centro é incontestável, presente e inacessível, ou
299 BLANK, R., Encontrar sentido na vida, p. 92.
169
seja, humanamente impenetrável. É precisamente este centro impenetrável que dá
a Jesus a possibilidade de estar em comunicação com todos, de conhecer o coração
das pessoas.
Ninguém é igual a ele. Ninguém conhece o Pai como Ele conhece. É desta maneira
também que ele conhece os homens, na força mesma de sua humanidade. Homem
mais que perfeito que nenhum outro, ele é mais próximo da pessoa humana que nenhuma outra. Jesus, ele mesmo, é a forma interior de tudo aquilo que é o
cristão300.
Será que Deus pode ser objeto de uma experiência?301 No princípio
cartesiano será impossível, visto ter Descartes entendido que nada existe fora da
experiência do sujeito, nenhum mundo, nenhuma experiência possível. Assim, um
Deus que exista no sentido desta objetividade, não existe, pelo menos não existe
como o Deus de Jesus Cristo, pois não há a autocomunicação de Deus.
Santo Irineu, século II, ensina que Jesus se encarnou porque é pura
comunicação, se encarnou porque nos ama, se fez homem para o ser humano
caminhar para Deus. Nesta mesma linha, contemporâneo a nós, Moltmann afirma
que ainda que pela razão moderna não seja permitido falar em experiência objetiva
de Deus, é possível falar em experiência de Deus em conexão com a não-objetiva
auto-experiência humana, pois Deus é objetivamente não-reconhecível e não-
experienciável302.
Deus somente pode ser significativo para o ser humano se emergir de sua
própria experiência histórica, humana. Contudo, experimentar Deus não se reduz a
pensar sobre Deus, mas senti-Lo dentro do coração. Na compreensão de L. Boff, a
experiência de Deus, passa por Deus mesmo. “Deus é absolutamente transcendente
a todas as coisas existentes e possíveis”. Justamente, por ser transcendente na
realidade concreta “a ele nunca vamos nem dele jamais saímos. Sempre estamos
nele. Embora dentro, ele está para além de tudo”303.
300 Jésus, verbete : Experience spirituelle – VILLER, M.; BAUMGARTNER, C.; RAYEZ, A.
Dictionnaire de Spiritualité, tomo IV. 301 L. Boff esclarece que a palavra ‘objeto’ não é uma projeção da razão ou coisificação do humano.
Porque a razão humana separa, para melhor adentrar em sua existência, os objetos são sujeitos que
têm história, interagem em comunicação e pertencem à comunidade cósmica e terrenal. Cf. BOFF,
L., Saber cuidar, p. 94. 302 MOLTMANN, J., O Espírito da vida, p.42 303 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 18. Pela etimologia, experiência abarca: “seja o grego empeiría,
quanto o latim experientia falam-nos de ‘tentar’, ‘comprovar’, ‘assegurar-se’, o que significa
percorrer o objeto em todos os sentidos”. LIMA VAZ, H. C., “A linguagem da experiência de Deus”,
p. 244.
170
Falar de um Deus Encarnação, que se comunica continuando sua criação e
faz suas criaturas voltarem para Ele, provém da experiência que Ele nos permite
fazer Dele mesmo304. A pessoa só se experimenta verdadeiramente humana quando
sai de si para encontrar um Absoluto. Sua realização não se encontra no factual,
nem na mera contingência, mas no totalmente utópico e transcendente.
O Concílio Vaticano II declara que na própria ontologia humana está a
relação. Faz parte da sua natureza um modo de ser social que não pode viver nem
desenvolver suas qualidades sem entrar em contato com os outros. Simplesmente
pelo fato de ter sido criado em uma ‘comunidade de pessoas’ o ser humano é
chamado a viver em comunidade, e é na relação com o outro que ele se desenvolve.
Agente ativo, ele não apenas transforma as coisas e a sociedade, mas transforma-se
a si mesmo 305. Tendo sua origem em Deus, o ser humano não é um ser pronto,
realizado, e sim um ser inacabado. Ele age e suas ações influenciam sua vida, e
nelas se realiza também e continua a criação. Nesta continuação, pode fazer
escolhas essenciais, entre vida e morte. De certa forma, escolhe a própria essência.
O ser humano é a possibilidade concreta de Deus ser humano. Isto se
concretizou em Jesus de Nazaré, pelo Pai, por meio do Espírito Santo. Jesus revela
a plenitude do ser humano naquele que é seu original. Desde a origem, Deus não
está fora do ser humano e nem o ser humano fora de Deus.
Em Cristo o ser humano encontra sua total realização, ele é o humano por
excelência. “O homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e
profundidade que os Apóstolos e os que o conheceram só puderam dizer: humano
assim como Jesus só pode ser Deus mesmo”306.
304 Seria inteligente argumentar se estas palavras não estariam tangenciando os limites do
pensamento humano, ou antes, se não está descambando em direção a um velado panteísmo. Não é
a intenção, por isto acredita-se que não seja o caso. Contudo poder-se-ia, talvez, chamar essa forma
de experiência no Deus de Jesus, de panenteísmo, presença visionária de unidade de Deus com o mundo, que não seria herética. Karl Rahner diz, pois: “Panenteísmo. Esta modalidade de pensamento
não quer identificar simplesmente o mundo e Deus (Deus = o Tudo), mas quer enfim compreender
o ‘tudo’ do mundo em’ Deus como modificação e aparência interna dele, se bem que Deus não se
dilua nele. A doutrina duma tal ‘existência’ do mundo em Deus será (e será só então) errônea e
herética, se negar que o mundo foi criado por Deus e que o mundo é diferente de Deus (e não só
Deus do mundo) (DS 3001); de outra forma será um apelo à Ontologia de idear mais exata e mais
profundamente a relação entre o ser absoluto e o ser finito (quer dizer, compreendendo a proporção
de unidade e diferença crescendo na mesma medida)”. RAHNER, K; VORGRIMLER, H.,
Diccionario teologico, p. 515. 305 Cf. CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 12 e 35, p. 154 e 178; respectivamente. 306 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.
171
Tratar da ontologia do ser humano, na ótica da busca do sentido da vida, é
falar do ser de Deus ou da pessoa? Esta questão falseia um caminho e ignora a busca
latente do ser humano, pois situam Deus e a pessoa no mesmo plano, em jogo de
competição. A questão parte do pressuposto de que a ação de Deus faz concorrência
à ação da pessoa. A realidade da fé experimenta que a graça da vida, confere tudo
à pessoa, porque tudo provém de Deus. Tudo o que humaniza, diviniza. A graça e
a correspondência à graça aproximam da divinização definitiva. Tudo o que
diviniza, faz com que homens e mulheres se tornem mais pessoa.
3.3.3. Marcos que geram e nutrem a vida
“Levanta marcos para ti, coloca indicadores de caminho, presta atenção ao
percurso, no caminho por onde caminhaste” (Jr 31,21). Marco supõe orientação,
horizonte. Marcar um lugar, locus, é assinalar importância do sinal, abertura pelo
que vem à frente.
O ‘marco’ Jesus Cristo assinala claramente a superação da exclusão, até ali
vivida apenas na esperança, sempre sufocada na ausência de relações. Jesus se
apresenta como Filho de Deus: em Deus há relação de geração – Pai, Filho, relação
de amor: Pai, Filho, Espírito Santo, relação pericorética – Jesus não se apresenta
como uma proposta de vida paralela a outras. Ele se apresenta como um ser humano
‘nascido de uma mulher’, portanto plenamente humano. Nele a exclusão é superada,
porque vive as relações justas e fraternas, pois que se relaciona como a fonte de
humanização.
Deus cria a pessoa incondicionalmente livre. O Deus experienciado como
pericórese, propõe e espera que os seres humanos escolham a vida. Deus
humildemente se oferece à pessoa querendo ser o sentido de sua vida, isto é, quer
estabelecer com as pessoas uma relação de amor.
Jesus é lugar de cuidado especial com os excluídos, a fim de recuperar o
sentido de relações novas e novas relações, portanto de vida. Por isto ele é o
fundamento de todas as relações vitais. Jesus marca as pessoas que buscam e se
deixam encontrar, com atitudes profundamente humanas. Com ele, o ordinário da
vida, gera e nutre o extraordinário de Deus.
172
Se de um lado a pós-modernidade apresenta uma forte separação entre
humano e relação, em sua relativização do sentido da existência do ser humano, por
outro, a perspectiva bíblica tem a relação como pressuposto do princípio ao fim,
para falar da humanização cuidadora e criativa de Deus.
O primeiro povo bíblico ao ver a marca de Deus, constata que deve
caminhar com os olhos voltados para a promessa de Deus, para o passado. Para este
povo, a história passada e presente é interpretada a partir do futuro, do ainda não
acontecido. O futuro será bom, porque no passado Deus caminha com seu povo.
Interessa mais o passado, pois nele aparece a presença graciosa de Deus. Caminha
no presente, pois é nele que se dá a relação com o projeto de Deus. O presente é
momento único, irrepetível, de tomada de decisão. Movido pela Promessa, o futuro
está, ao mesmo tempo, dentro da história e nos Últimos tempos, momento em que
as relações serão recriadas, com um coração novo e na ordem do Espírito de Deus
(cf. Ez 36,25-28).
A vida nova, prometida por Deus em Jesus, é real. É aqui e agora, no tempo
e na história, na trama da vida cotidiana e das estruturas injustas. Ele é a promessa-
cumprimento da existência de um Deus vivo para sempre. É Deus que criou com
amor a vida e não a deixa desvanecer por nada. Jesus, o Cristo, “não é nenhum mito,
mas a realização escatológica da possibilidade fundamental que Deus colocou
dentro da natureza humana”307.
Alguns marcos na experiência de Jesus, a promessa-cumprimento que gera
e nutre a vida contribuirá para ver como, ao mesmo tempo, ele recupera a dignidade
de se ser pessoa humana sendo a plena realização de humanização.
Jesus tem como primeiro critério o ser humano, ficando em segundo plano
a cultura e a lei. Antes que desprezar a Lei, Jesus cuida para que homem e mulher
tenham vida em abundância. “Enquanto muitos movimentos de renovação se
separam do povo, Jesus tem atenção consciente para aqueles que não correspondem
às normas tradicionais e ficam na periferia”308. Ele gera e nutre a fé em um Deus
que é misericórdia.
Jon Sobrino chama a atenção para a singular importância do homem e da
mulher.
307 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 34, 308 THEISSEN, G.; MERZ, A., O Jesus histórico, p. 167.
173
A pessoa é mais importante do que todas as coisas e nada do que foi criado pode
ser usado contra ela, nem sequer o que convencionalmente se apresenta como
serviço a Deus. Daí as afirmações cortantes sobre o fato da pessoa ser mais decisiva
do que o sacrifício, inequivocamente superior ao sábado. Deus aparece como
quem não tem direitos sobre a pessoa, mas os direitos seus são os que a
favorecem309.
Desde o início, o marco da missão de Jesus contém gestos de profunda e
inculturada solidariedade humana. São gestos de revisão e de libertação para a vida
de publicanos, doentes, prostitutas, estrangeiros, homens, mulheres.
Merecem atenção as refeições realizadas por Jesus que, quase sempre, eram
com os excluídos da sociedade. Como sinais solenes, elas fazem parte de todas as
culturas. Seu acontecimento é cheio de significados. Assim comenta J. Jeremias:
“no Oriente receber alguém em comunhão de mesa significa até os dias de hoje uma
honra que quer dizer oferta de paz, confiança, fraternidade e perdão; em suma:
comunhão de mesa é comunhão de vida” 310. Portanto, o comer e o beber de Jesus
junto com os pecadores e os pobres estão para além de uma simples refeição: é
alimento que gera e nutre a vida.
Desde a escravidão do Egito até o evento Jesus, a libertação integral do ser
humano está presente. “A importância da vida adquire toda a sua dimensão no tema
da terra prometida. Ela não é apenas um lugar no qual os seres humanos encontram
o alimento cotidiano; ela é também o espaço da sua liberdade e dignidade
pessoal”311.
A teologia de L. Boff caminha na esteira da humanização da pessoa
horizontalizada na comunhão relacional em todas as direções, um movimento a
partir de dentro, com a totalidade da realidade que está nela mesma e com aquela
que a cerca. O ser humano “é invocado a ser totalmente ele mesmo na realização de
todas as capacidades que latejam dentro de sua natureza. Ele é constituído como um
nó de relações voltado para todas as direções, para o mundo, para o outro e para o
Absoluto”312.
Jesus revela ser o lugar de humanização em todas as dimensões. Nele, Deus
ama e abraça a história humana de homens e mulheres, sem criar outra história. A
história de Deus com a humanidade é a história da humanidade. É nela que Jesus é
309 SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 211-218. 310 JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p. 185. 311 GUTIÉRREZ, G., O Deus da vida, p. 42. 312 BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, p. 26.
174
Deus presente e ele deseja que a consumação da vida em Deus chegue logo. “Eu
vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49). Ele é
o caminho na história do outro humano que tem fome de cuidados humanos e de
bens materiais. Como o Bom samaritano, ele deixa transparecer o cuidado de Deus-
Trino, que não só se comove, mas se transforma em ajuda eficaz, desce e cura as
feridas (cf. Lc 10,29-37). Sua ação é motivada pela experiência do Pai e, assim,
reconhecimento da dignidade em todo ser humano.
A humanidade do Filho do Homem313 faz atestar que, Jesus vivendo como
humano realiza plenamente a vocação do ser humano, revelando que “humano
assim, só pode ser Deus mesmo”314. Nele, o humano e o divino é sempre,
indissociável, integrados, marcos que geram e nutrem a vida.
É humano reconhecer que a pessoa é um elo da corrente única da vida. O
ser humano é portador de uma história que lhe permite ser sujeito, estruturado ao
redor da busca, do desejo, do encontro, da realização. Envolvido pelo espírito, ele
vive aquele momento da consciência pelo qual se sente parte de um todo, que o faz
sempre aberto ao outro e ao Mistério, capaz de criar e captar significados e valores
e se indagar sobre o sentido último de todo ser humano: Deus. Tudo começa com o
ato criador de Deus e se prolonga com a total e generosa abertura da pessoa. Por
outro lado, a negação da relação ou a busca de relação em uma única direção, pode
ser a morte de sua humanização.
O ser humano carrega em si o dom de transformar suas experiências num
ato de acolhida e afirmação do universo, ato de abertura à alteridade. Ou, pode negar
tudo isto e viver um projeto de rebelião contra o universo, desenvolvendo atos de
fechamento em si. A grandeza da humanidade nada tem a ver com quantidade, mas
com a qualidade de relações que brotam uma nova criação. Enquanto o fechar-se à
luz do sentido da vida resulta na frustração, a pessoa que busca abertura em todas
suas relações e dimensões, prossegue para sua plena realização.
Assim, o céu almejado pela humanidade, não é pensado como realidade pós-
morte. Este céu que fora pensado pela teologia clássica como realidade distante que
313 Jesus aplica a si mesmo ser o Filho do Homem. Encontramos estas expressões em Mc 2,10.27 e
em Mc 8,31. E semelhante à tradição apocalíptica, na medida em que o Filho do Homem é uma
figura que vem do céu no fim dos dias e está imediatamente próximo de Deus, encontramos nos
textos de Mc 13,26 e 14,62. No Filho do Homem há de chegar à plenitude do homem, o segundo
Adão. Nele integram-se presente histórico e futuro escatológico, supera-se a contradição humana
entre indivíduo e gênero, entre imanência e transcendência. 314 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 193.
175
se manifestaria no porvir, encarna-se no agora, ainda que não totalmente. Na
reflexão do sentido da vida, a busca de relações justas presentifica o céu no seio da
humanidade, manifesta a presença do Reino de Deus.
Pode-se afirmar, então, que a morte é o fim da vida, quando há rompimento
das relações com o outro. A fé cristã professa o sentido radical dentro da vida, na
saída de si mesmo, para ir ao encontro do outro. Na trama da existência, anuncia
que o “Sentido (Logos) não ficou di-fuso e pro-fuso nas coisas, apregoa que o
absoluto Futuro, Deus, se aproximou de nossa existência e morou na carne humana,
quente e mortal, e se chamou Jesus Cristo”315. Num otimismo invencível de total e
exaustiva realização das possibilidades latentes no ser humano – a Ressurreição –
experimenta a morte como plenitude almejada, meta alcançada, verdadeiro
nascimento. Porque ele é o futuro absoluto, afirma-se a vida eterna, onde as relações
também não morrerão.
Na esteira de L. Boff, vida eterna não só significa a duração sem fim, mas a
plenitude da salvação aguardando sua total revelação. A vida eterna já é uma
realidade presente nesta vida e, faz a história caminhar. Ela abre para o sentido de
integração humana mergulhado no Mistério da vida e para horizontes cada vez mais
abertos e corresponsáveis.
A busca pelo sentido da vida compreende a capacidade de compartilhar a
paixão com o outro: sair do seu próprio locus para entrar no universo do outro. De
descentrar-se para encontrar seu centro, de dar para receber, de esvaziar-se para
possuir-se. Então, ser humano é processo permanente de criação, de humanização
a partir das relações. A vida é tecida de relações, enquanto a ausência de relações é
sua morte total: em si mesma é contradição. Em sua pneumatologia, Moltmann
afirma, “Experiência de comunhão é experiência de vida, pois toda vida consiste na
mútua troca de meios de vida e de energias, e na mútua participação”316.
O Mistério do Deus-Trino é o paradigma de toda relação. Ele é o eixo que
une, liga, integra o ser humano. Nasce assim uma compreensão holística,
descentrada do homem e da mulher, e uma redefinição de sua missão, no contexto
da Aliança bíblica e da paz. Nele, a pessoa encontra seu ser verdadeiro em um viver-
com, de modo que experimenta que o fundamental não é o eu, mas o eu-tu, que em
sua profundidade; é ressonância do Tu divino.
315 BOFF, L., Vida para além da morte, p. 22. 316 MOLTMANN, J., O espírito da vida, p. 208.
176
A humanidade de Jesus provoca a pessoa a viver a experiência fundante em
suas relações, viver aquilo que tem importância e definitivamente conta. Aprende
que tudo é dádiva de Deus e busca, diariamente, a boa disposição de passar adiante
essas dádivas divinas para outras pessoas317.
O caminho da humanização é, como Jesus, viver a encarnação na história
humana, assumindo seu projeto e os imprevistos decorrentes. Temos, por exemplo,
a vida dos oito monges cirtencienses na Nigéria que expressam este caminho da
Encarnação, da vida real feita cinema. As palavras do monge-prior, Christian,
pressentindo ser a última refeição juntos, deixa entrever que já na encarnação do
Filho do Homem, todas as realidades e tempos se encontram em perfeita harmonia.
A vida encontra seu verdadeiro sentido, pois encontrou o Sentido que aponta a
origem e o futuro.
Depois, encontramos salvação na realização de nossas tarefas. A cozinha, o jardim,
as orações, os sinos. Dia após dia, tivemos que resistir à violência. E, dia após dia,
eu... acho que cada um de nós descobriu a que Jesus Cristo nos convida. É... para nascer. Nossa identidade como homens vai de nascimento a nascimento. E de
nascimento em nascimento, vamos acabar trazendo para o nosso mundo o filho de
Deus que nós somos. A Encarnação, para nós é permitir a realidade filial de Jesus
para se encarnar em nossa humanidade. O mistério da Encarnação continua naquilo que vamos viver. Desta forma, o que já vivemos aqui tem raiz, assim como o que
vamos viver no futuro318.
O desejo de ser pessoa humana – humanização – fala de um desejo do
Infinito e de integração, de busca de sentido. Em sua existência, experimenta a
dinâmica de viver sua imanência, interpelado a viver na transcendência.
Trata-se de uma assertiva de L. Boff, segundo a qual, a realidade de Jesus
com a realidade de todo ser humano, preservando cada pessoa a seu modo, estão de
tal maneira entrelaçadas que se tornam uma única vocação.
A derradeira vocação humana é ser assumido hipostaticamente por Deus, ao modo
de Jesus, mas com particularidade própria de cada pessoa. O homem Jesus é Filho
de Deus porque havia nele a possibilidade de ser assumido pelo Filho de Deus. Ele
317 Cf. BOFF, L., Teologia do cativeiro e da libertação, p. 88. 318 Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2010, “Homens e Deuses” retrata
o percurso de monges, da Ordem Trapista, que atuavam junto a uma comunidade no interior da
Argélia, durante os meses que precederam seu assassinato em 1996. Título original: Des hommes et
des dieux.
177
é irmão nosso. Somos portadores da mesma possibilidade que, um dia, será atuada
e realizada. Ele é o primeiro entre muitos irmãos e irmãs319.
O autor chama a atenção para a vocação do ser humano. Desde sua origem,
há relação: Criador-criatura, chamado em Jesus Cristo a continuar em sua própria
história, como ele, a viver sua humanização. A vocação de Jesus Cristo, de gerar e
nutrir a vida sendo transparentemente humano é a vocação de todo ser humano.
L. Boff proporciona uma nova consciência humana na esteira de um novo
ethos civilizacional, no horizonte de uma espiritualidade integradora de inter-
relações de sentido em todas as direções. Sua perspectiva emerge como importante
reflexão na busca do ser humano pelo sentido da vida, pois no Ressuscitado, todas
as pessoas, sem exceção, são chamadas de volta ao Jardim (cf. Gn 2,15), a fim de
recriar relações com Deus, com o outro, consigo mesmo e com a terra.
3.4. Conclusão
Na esteira de Leonardo Boff há uma pluralidade e variedade de pensadores
e uma grande quantidade de pessoas em contato com sua teologia. Pode-se dizer
que o pensamento de L. Boff suscita e encoraja pensar a vida. Sua força
gravitacional explica a longa lista de acadêmicos a estudar seu pensamento: o
compromisso de inclusão e de cuidado com a globalidade da vida.
Naturalmente ele não gera unanimidade e nem poderia ser assim. Muitas
pessoas aprovam seu pensamento, outras o reprovam abertamente, outras ainda
questionam suas afirmações arguindo a legitimidade do seu pensar teológico
cristão. A tenacidade de L. Boff se mostra, por exemplo, em sua crescente
publicação e coerência de pensamento. Nele encontra-se a preocupação com a
unidade do todo, desde sua primeira obra. A fidelidade aos princípios e às escolhas
fundamentais capacita-o a exercer a resiliência.
Na primeira parte, a história teológica de L. Boff demonstra uma busca de
unidade, sem despersonalização, entre Deus, o ser humano e o cosmos. Poder-se-ia
dizer, uma teimosia, em não recuar em suas concepções. Seu lugar histórico e
319 BOFF, L., O destino do homem e do mundo, p. 29. Este pensamento é importante para o autor, e
mesmo ele o retoma em várias de suas obras.
178
eclesial pode ser sintetizado em brevíssimas cinco palavras: velho, cristão,
franciscano, teólogo e homem. A amplidão de sua obra dificulta sintetizar seu
pensamento teológico, e diálogo com as ciências. É certamente impossível 320
enumerar todos os seus interlocutores, sendo tão numerosas as publicações a seu
respeito. Suas palavras acessíveis à realidade das pessoas e sua teologia otimista e
firme impulsionam a continuar a pesquisa, malgrado as limitações da pesquisadora.
Ressalta-se, contudo, que em L. Boff tem-se uma teologia desafiadora a tomar
consciência que todas as pessoas, todos os seres, estão inter-relacionados. Urge uma
solidariedade fundamentada no dom partilhado de Deus, em Jesus para nós, como
caminho de integração.
L. Boff situa sua teologia dentro das coordenadas do Concílio Vaticano II.
Teólogo da Libertação, seu pensar revela aspiração a uma ruptura com a lógica do
sistema opressor, excludente. Sob o paradigma da opressão/libertação, a Teologia
da Libertação visa a práxis a favor dos e com os pobres, a favor da e com a terra.
Sua teologia busca aplicar seus princípios a uma reflexão conjugada com uma ação,
no interior de uma Igreja que nasce – eclesiogênese – do encontro com um Deus
encarnado, que desce até a terra das classes e culturas populares.
A segunda parte, tratou de sua concepção teológica da vida em seu sentido.
Constatou-se haver uma estruturação densa da compreensão da vida. A Sagrada
Escritura é a fonte primeira da experiência judeu-cristã. Dela deflagra-se toda
reflexão teológica. Dentre muitas outras, a pesquisa deu lugar a cinco concepções
da vida em seu sentido na esteira teológica do autor em pesquisa: o pensar
evolutivo, a presença da dualidade, o ser humano como nós de relações, uma
compreensão inclusiva da vida e evolução e revolução no pensar a vida.
Constatou-se que L. Boff provoca a falar da vida com sentido, para crescer
na consciência da existência do ser humano e do que ele é chamado a ser. O
comprometimento com a vida resulta na experiência que tudo co-existe e inter-
existe com Deus e as criaturas. A vida de um, não é ato isolado, mas tudo está
320 A impossibilidade de enumerar todos os interlocutores ou sintetizar sua teologia advém pela razão
do autor continuar em grande atividade. Leonardo Boff continua sua produção intelectual, sua
agenda é bastante ocupada com viagens pelo Brasil e exterior, a fim de debater seu pensamento.
Além dos livros que estão sendo escritos, ele escreve Artigos para os principais Jornais, Revistas e
Sites. Está sintonizado com as redes sociais (Página na Internet, Facebook, Twitter. Seu Site pode
ser lido em três Idiomas: Português, Espanhol e Inglês). Têm-se ainda sua participação em
Congressos, Simpósios, Colóquios, Conferências, Painel, Debates, Encontros, Mesa redonda,
Outorga de títulos, Salão, Semana, Seminário, Workshops, Feiras, Palestra Fóruns. E os
pesquisadores, críticos, comentadores, etc. de seu pensamento.
179
interligado. Isto é facilmente verificado, mesmo fora do labor do cientista. Basta
um gesto ou uma palavra para sentir as vibrações em si mesmo e ao redor de si.
Mas para isso, a pessoa não pode querer ignorar sua constituição humana.
Verificou ser válido falar da vida em seu sentido, porque em seu interior
presencia o absoluto e radical de tudo o que é verdadeiramente humano em Deus.
A esperança marca o olhar de L. Boff. Sob esse olhar, ele constata que as
preocupações na pós-modernidade não são tanto com o sentido último de tudo, mas
com a sobrevivência pura e simples, sem considerar as potencialidades presente no
universo. Entretanto, seu olhar não se fecha nesta visão. Ele chama a atenção para
ver a vida enquanto mistério de comunhão com o Absoluto. A existência humana
fala a partir da consciência de uma presença que a habita.
Por fim, pareceu importante adentrar com mais agudeza o seu pensamento
teológico, agora de forma mais centrada no sentido da vida. Em sua cristologia
pensada na América Latina, L. Boff dá primazia ao antropológico321. Jesus é a
Palavra de Deus, a promessa-cumprimento. Na esteira deste teólogo, Jesus Cristo é
o ecce homo, a Palavra de Deus, Aquele que em sua própria pessoa quer ser a
resposta de Deus à vida humana. Ele, não só afirma ser o futuro, mas o realiza.
A Palavra dá vida ao mundo. E na Palavra-carne de Deus antecipa o
cumprimento da promessa feita na história humana. Doravante, toda situação ou
pessoa pode ter a esperança, que nem a morte é a palavra final, Ele desceu até os
infernos (cf. Credo apostólico). A Ressurreição é a palavra última. Em Jesus
ressuscitado sempre se pode ter esperança de uma vida com sentido.
A pós-modernidade traz consigo uma pretensão de justificar o sujeito por si
mesmo, a partir de uma leitura da realidade, que absolutiza a abordagem científica
e leva ao descrédito aquilo que não é comprovado cientificamente. Ela coloca sob
suspeita toda experiência humana, esvaziando a noção de absoluto, na medida em
que apregoa que tudo é questão de escolhas individuais e provisórias. Disso tem
resultado uma incapacidade humana em responder satisfatoriamente pelo sentido
que verdadeiramente busca. São alguns indicadores da existência humana de sua
insuficiência de responder, por si mesmo, a busca de sentido. Isolado em si, o
indivíduo abdica seu ser pessoa, capaz de diálogo. Fechado fenece. Fechado, perde-
se. Não ouve, não fala. Monologa.
321 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 56. L. Boff dedica uma parte deste livro para tratar da
Cristologia desde a América Latina.
180
A Revelação em Jesus horizontaliza a uma fé na vida em perspectiva cada
vez mais de futuro, de profundidade e envolvente. Em sua existência histórica, o
ser humano experimenta dentro de si o desejo de mais vida, de mais sentido. À luz
da fé cristã, a existência humana ganha uma nova criação e uma salvação a partir
de Cristo. Assim, se une a protologia e escatologia, o começo e o fim.
Toda a vida tem um significado à luz do projeto divino. Nada que se passa
no mundo se torna sem-sentido, pois em Cristo todas as realidades foram visitadas,
tudo está incluído no plano da salvação. Jesus apresenta e quer ser em cada ser
humano o sentido que dá sentido à própria vida. Este sentido, ao contrário do
monólogo pós-moderno está justamente no encontro da Palavra feita carne, isto é,
no diálogo tão profundo, que a palavra se faz vida.
Contudo, ainda não basta. Para não ficar no campo da mera teoria, deve-se
verificar com mais profundidade, o porquê de as relações serem caminho de sentido
da vida. Haverá uma unidade, que concentre e irradie, de forma a se passar da
pessoa à sociedade, no respeito à diferença e na solidariedade integrada para com
todo ser humano, solidariedade que vem de Deus e alcança as demais criaturas?
4 O sentido da vida é a orientação e a identidade do ser humano
Que é o ser humano para que dele te ocupes com tanta ternura? O salmista
contempla a criação e pergunta em louvação. A partir de Jesus, o ser humano
encontra o Filho e pergunta também repleto de êxtase e admiração: Que é o ser
humano para que te faças um como ele, humano? Quem é este homem que mesmo
excluído e fracassado, entrega a própria vida?
A abordagem da criação, dentro de uma chave de leitura, de uma existência
relacional possibilita uma leitura da vida originada não no acaso ou na necessidade,
mas em um Deus que é comunhão de amor, como também transparece a relação de
Deus com cada criatura em particular. Questionando este mistério de tanta
profundidade, de oculta e tão íntima presença, Agostinho confessa o Deus sumo-
bem; a vida de toda vida.
Perguntei pelo meu Deus à massa do universo, e respondeu-me: ‘não sou eu; mas
foi ele quem me criou’. Mas, não se manifesta esta beleza a todos os que possuem
sentidos perfeitos? Porque não fala a todos do mesmo modo? [...] aparecendo a ambos do mesmo modo, para um é muda e para outro fala. Ou antes, fala a todos,
mas somente a entendem aqueles que comparam a voz vinda de fora com a verdade
interior322.
Em contrapartida, Jacques Monod, biólogo e Prêmio Nobel francês (1965),
afirma que o aparecimento da vida é um acaso, isto é, a vida é fruto de uma série
de causalidades independentes e sem correlação. “O acaso está na fonte de toda
novidade, de toda criação na biosfera. O acaso puro, o só acaso, liberdade absoluta,
mas cega, na raiz mesma do prodigioso edifício da evolução”. Neste modo de ver,
o ser humano está sozinho no universo, e seu surgimento deu-se por acaso. Nega-
se qualquer ideia de um Deus criador e atuante no edifício da vida323.
O valor da vida não está em oposição à morte, como se devesse cuidar da
vida só porque há a morte. Também seria fragmentar a vida o compartimentar e
322 AGOSTINHO, S. Confissões. (Livro X, n. 6), pp. 243-244. 323 Cf. MONOD, J. O acaso e a necessidade, p. 130.
182
atribuir valores hierárquicos entre uma vida e outra. No trilho desta ideia, acredita-
se que “é só o mal da morte, que pressupõe que a vida tenha valor e nos direciona
para explicar este valor, mas também discriminações cotidianas entre vidas de
diferentes tipos”324. Uma ideia filosófica como esta propicia exaltar a vida somente
porque há a morte e criar dicotomia que só faz fragmentar a vida, relativizando seu
valor, sendo que justamente é o objetivo desta pesquisa, tratar da vida com sentido.
Ademais, a experiência bíblica compreende que a morte já está dentro da vida, sem
oposição, mas juntas. Para a teologia cristã, a morte demarca o fim desta vida, e a
torna definitiva. A existência humana deixa explícito que a vida, de cada pessoa,
tem importância única. Eis o fundamento da visão otimista do cristão frente à morte
é a Ressurreição de Jesus. A história tem uma meta: a salvação. Este é o objeto
próprio da Escatologia cristã: ao que crê, é permitido esperar325.
O humano chegou a Deus, porque Deus chegou primeiro ao humano. E Deus
chegou ao humano porque havia feito, ele Deus mesmo, uma abertura infinita nele.
A vida estando assentada no cuidado compreende a experiência do encontro do
humano com o divino.
O determinante na experiência bíblico-teológica é a Aliança de Deus com
seu povo. Na origem da vida já vigora a criação de relações. Talvez se possa dizer
que as relações são o ponto de partida do escritor bíblico. Isso torna-se mais
explícito no relato da criação do ser humano. Nele verifica-se uma mudança de
pessoa e número gramaticais que assinala o ser de Deus, e a orientação e identidade
da existência humana. Nesta mudança transparece todo o comprometimento da
comunidade divina: “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem” (Gn 1,26). E
no decorrer de toda a história, essa fala manifesta-se compromisso eterno em
fidelidade e ternura. Deus modela, cria e realiza a criação. Isto é, Deus cria o homem
e a mulher à sua imagem; à imagem de Deus!
Homem e mulher são criados à imagem de Deus que se faz conhecer pela
pessoa do Verbo eterno do Pai. Jesus ensina a viver em verdade as relações da qual
foram modelados o ser humano. “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito
de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra” (Col.
1, 15-16a).
324 The shorter Routledge encyclopedia of philosophy, p. 577. Tradução minha. 325 Consoante a este pensamento, ver também: NOCKE, F.-J., “Escatologia”, p.401. RATZINGER,
J. Escatologia. BLANK, J. R., Escatologia da pessoa.
183
De igual modo que no Antigo, no Novo Testamento a vida humana é
recolocada em seu percurso de humanização enquanto Aliança com Deus. Entre
outras, pode-se citar a narrativa da cura por Jesus em pleno sábado (cf. Mc 3,1-6).
O Evangelista dá uma interpretação que tem seu ponto de partida no significado de
que todos os dias devem ceder à centralidade de sua origem no Deus da vida
humana e dedicar-se este tempo a promoção de relações humanizadas.
Jesus faz-se encontro com o ser humano como simplesmente humano. Deus
se faz humano, faz morada na história porque gratuitamente e radicalmente ama.
Esse é o ‘interesse’ do Filho de Deus: estabelecer relação com a humanidade.
A Encarnação significa, primeiramente, que Deus estabeleceu morada entre
nós. Jesus não é estranho à história humana. Esta experiência releva
substancialmente o ser humano, principalmente os que sofrem. Não há espaço ou
tempo que possa reter sua presença, nem mesmo a morte. A humanização é a vida
de Deus. Para L. Boff, a encarnação é o abrir-se de uma história humana.
A partir de Jesus, a experiência trinitária abre-se ao ser humano a
possibilidade de experimentar-se criado, filho/filha no Filho chamado a viver em
relações integradas, para assim, encontrar o sentido da vida em plenitude. De fato,
o relato bíblico do Gênesis afirma o ser humano criado à imagem de Deus, e o Novo
Testamento o afirma criado no Espírito à imagem de Jesus Cristo, verdadeira
imagem de Deus.
L. Boff sinaliza para o paradigma de humanização: a Trindade. A relação
de comunhão e liberdade do Pai, do Filho e do Espírito continua na Encarnação do
Filho. A encarnação do Filho fala do amor sem limites e liberdade sem fronteiras.
A fé cristã recusa que o absoluto anule o ser humano. Pelo contrário, ela reafirma a
relação dialógica de Deus com o ser humano. Torna-se um dos equívocos, no
cristianismo, tentar reafirmar este absoluto, exclusivamente, pela via racional da
filosofia. De maneira exemplar, Descartes com seu método racionalista faz o
divórcio entre o pensamento e o ser. Ele argumenta que é no sujeito que se funda o
conhecimento, tanto no fundamento, quanto no método como também a ciência. Na
fundamentação do método, não tem relevância se o sujeito é fruto ou não da criação
divina. Para este filósofo, a existência de uma razão natural é um fato, demonstrado
pela matemática, e a crença em Deus é um ato de fé que pode ser deduzido
racionalmente. O real é real para o sujeito e não em si mesmo. Entretanto, para a fé
cristã, o absoluto apresenta-se quenoticamente ao diálogo. É por esta via que se
184
pode primeiramente dialogar com Deus e a partir desta experiência, apresentá-lo à
humanidade. Deus, que se deu conhecer, de modo especial em Jesus Cristo, dá-se a
conhecer hoje pelos batizados. O caminho para ele são as relações justas e fraternas.
A fundamentação da criação em um Deus-relação de comunhão revela Deus
essencialmente em diálogo em con-vocação à participação do ser humano, e pro-
vocação de ser sentido de toda busca e plena vida. Muito simplesmente, homem e
mulher, na busca de vida que tenha sentido, experimentam o mistério da Trindade.
Naturalmente, o Deus-relação é o mesmo Deus. Na Criação ele se apresenta como
relação de dom da vida. Na Encarnação como a relação do amor e, finalmente na
Morte e Ressurreição de Jesus, a radicalidade da relação até o fim.
Dentro desta dinâmica-personalizante da Revelação, Deus se apresenta
como um Pai, que marca contínuos encontros com a mulher e o homem, e com eles
estabelece uma presença, a eles se abre, a eles se doa, chamando-os para uma
resposta total, existencial de todo o seu ser. Deus deseja assim estabelecer uma
comunhão, mediante o seu diálogo-encontro-dom ao ser humano e a resposta livre-
relacional-amor da pessoa a Deus.
Na esteira de L. Boff, o ser humano realiza seu sentido humano de existir
quando se mantém continuamente em sua panrelacionalidade, com o universo, com
as pessoas, com o seu próprio coração e com Deus. Ele surge na verdade como um
nó de relações voltado para todas as direções. Deste dinamismo de relações, emerge
sua integração ou desintegração na proporção da qualidade de suas inter-retro-
relações. A existência do ser humano, como pessoa integrada encontra seu sentido
de ser ao encontrar o outro numa relação de alteridade e de cuidado. A força
criadora da vida não se empalidece no labirinto de propostas artificiais. A vida, a
nossa vida, mesmo frágil e ferida é soberana. Pode sempre reintegrar-se,
transfigurar-se, vestir-se para uma festa. A vida parece-se a uma dança, corpos
criados para entrelaçarem-se em compassos de horizontalidade, em força e afetos
no qual o que é vivo é tudo aquilo que existe para brilhar.
No intuito de falar da busca humana do sentido da vida na esteira do teólogo
L. Boff nunca há um ponto final, antes uma conclusão em aberto. Afinal como
concluir um ser em participação no mistério Trino-Deus? Nesta direção, cada tema
torna-se uma proposta, sincera, frágil, embora, de ser uma venturosa busca humana
pelo sentido da vida.
185
A busca humana pelo sentido da vida, fala de um desejo de ser pessoa
humana – humanização – fala de um desejo do Infinito e de liberdade, de uma busca
de sentido e de força, de uma confiança e alegria maiores, de modo a ultrapassar
toda a imanência e transcender todas as pretensões. A gratuidade de Deus, a
grandeza de seu amor, sempre liberta, potencializa e impulsiona homem e mulher
para além de si mesmo. Eis, então, a beleza de um sólido e fecundo percurso de
humanização: pelas vias da relação pessoal com os outros, com as coisas, consigo
mesmo, em íntima comunhão com o Deus-Trino, promover a efusão da Vida. Todas
as forças se encontrem, todas as energias confluam para um centro único de vida e
ação. Corpo e espírito, terra e céu, criatura e Criador, ser humano e Deus, aliados,
interagidos, definitivamente unidos.
Para falar do ser humano torna-se mais propício utilizar uma linguagem
simbólica. Mas diante da exigência aqui de uma linguagem discursiva, e na
tentativa de uma aproximação à sua dignidade incomensurável, utilizar-se-ão
expressões que mais são concepções do que definições. É grande o alcance,
portanto, das palavras, orientação, identidade, participação, construção, dinamismo,
para dizer da busca em liberdade pelo sentido da vida e de um Deus que o criou-
amou em liberdade. Por este princípio, fica registrado ainda que no decorrer e ao
final de tudo, deve-se deixar a palavra em aberto, porque o ser humano ainda está
em gênese, em processo de expansão.
De forma breve, a evolução cosmológica é expressão da sabedoria divina,
que tudo dispõe para que a vida seja possível. A espécie homo sapiens sapiens, se
realmente for sapiens, aprenderá a ler nesta possibilidade de ser sempre mais, aliada
a sua semelhança com o Deus criador, um chamado para aprimorar, mais que
aprimorar, construir mesmo a pessoa humana e o mundo, como dizia Michel Quoist.
Com a Inteligência que recebeu, aplicada aos recursos que recebeu, mas
principalmente com sua capacidade de amar, porque acima de tudo, Deus é amor,
cabe ao ser humano fazer do mundo o espaço humano da comunicação, fazer do
mundo um lugar onde todos tenham vida e vida em plenitude de sentido em todas
as direções. A teologia de L. Boff é convite a contemplar a vida no existencial da
esperança aberta para o futuro realizado de Jesus Cristo.
186
4.1. O ser humano: partícipe e construtor do sentido da vida
As diferentes acepções de busca e de sentido, muitas das vezes consoantes
umas com as outras, são consideradas postulado para a teologia. Na perspectiva da
teologia moral, por exemplo, o direito à vida humana e o dever de conservá-la tem
como primeiro pressuposto o desenvolver do respeito pelo outro. Na perspectiva da
psicologia social, o conhecimento do ser pode ser visto pelo ângulo das relações,
do não isolamento. Na perspectiva da biologia, ou seja, dos fenômenos
considerados próprios da vida evidencia-se seu caráter de autoregulação. Na
perspectiva da filosofia o conhecer o ser é designado pelo amor à sabedoria. Esta
por sua vez, define-se como a busca do fundamento e do sentido da realidade, mais
do que mera solução de uma equação lógico-racional. O amor à sabedoria visa
encontrar mais que a própria sabedoria, visa encontrar a vida sábia, isto é, o bem.
A Bioética coloca em sua própria definição o estudo sistemático do comportamento
analisado à luz dos valores e dos princípios morais e não meramente lógicos, por
buscar o bem e o verdadeiro, e não apenas aquilo que é exato. Tais perspectivas,
entre outras, manifestam a importância das ciências para com o sentido da vida. Por
ela, a ciência é convocada a trafegar sempre num horizonte de ser significativo, ao
mesmo tempo, sustentável e justificável.
Conforme explicitado anteriormente, muito se tem dito sobre sentido da
vida326. Existe, bem à vista das pessoas, uma pluralidade de propostas oferecendo-
se como a resposta em invólucros frequentemente sedutores. A proposta desta
pesquisa exige uma maior explicitação no aspecto bíblico-teológico, onde a vida é
entendida como a participação na vida de Deus. A expectativa é que seu aspecto
especificamente teológico revele novas dimensões que incluirão a possibilidade de
326 Podem ser citadas algumas boas obras que tratam diretamente da temática do sentido da vida,
com foco antropológico: O sentido da vida, de Dom Valfredo Tepe (1961). Na busca do lugar onde
o sentido da vida é vivido, Adolphe Gesché constrói sua reflexão em O sentido (2005). Marcadas
pela experiência do holocausto no campo de concentração de Auschwitz, existem várias obras de
Viktor E. Frankl. Em busca de sentido (1991); Psicoterapia e sentido da vida (2003); Um sentido
para a vida (2005). E na leitura deste psicanalista, Em busca do sentido da vida de (2013), de
Augusto Cury. Uma pequena e densa obra Encontrar sentido na vida: propostas filosóficas, do
escatólogo Renold Blank (2008). Uma reflexão para catequistas sobre seus valores e o sentido da
existência, na obra O sentido da vida na catequese, de Isabel Cristina A. Siqueira (2014). E a obra
inacabada, O livro do sentido, de Clodovis Boff (2014).
187
integração de todas as outras327. Ela denuncia o pensar hiperespecializado, que
reduz a vida ao biológico ou ao físico, e dissemina a crença de que o corte arbitrário
operado sobre o real seja o próprio real, sendo na verdade, ocasião de desintegração
da vida.
Esta visão delimita e dificulta a existência, assim como sua reflexão sobre
ela, pois se prende ao método da separação ou da oposição, além de justificar o
sofrimento ou a insignificância da vida. Se há construção do coletivo, ele se dá só
em razão dos objetivos semelhantes. Surge a era do vazio328, no dizer de
Lipovetsky, do desconectado, da morte, da exsurgência do sem-sentido da vida e o
desenvolvimento de seus processos.
A lógica da existência, adverte L. Boff, é a lógica do complexo. Na
realidade, a existência presencia uma complexidade na vida. Complexo, não na
compreensão de obscuro, mas no aspecto da inter-relacionalidade intrínseco à vida,
que estabelece ligações em todas as direções. A história da existência, afirma este
teólogo, segue um processo de inter-co-existência, em que “um precisa do outro,
vive com o outro, através do outro, para o outro. Todos se complementam. Ninguém
fica fora da rede de relações includentes e envolventes. Ninguém apenas existe.
327 Há uma discussão bastante válida sobre as epistemologias racionalistas e empiristas que têm
fragmentado o saber e multiplicado o número de ciências e disciplinas, tornando-se verdadeiras ilhas
epistemológicas. No século XX, inicia-se uma crítica à hiperespecialização e, ao mesmo tempo,
constrói-se uma proposta de diálogo, denominada multidisciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar. Contudo sabe-se, que não há um consenso, na definição da hiperespecialização.
Esta pesquisa não almeja fazer uma justaposição entre as ciências, nem verificar o grau de relações
entre as disciplinas, por ex. Teologia e Física, Filosofia e Teologia. No entanto, o termo ‘trans’ talvez
fosse o mais aproximativo, por dizer respeito ao que está entre, através e além de toda disciplina e
visa à compreensão do mundo e a unidade do conhecimento (cf. SOMMEMAN, A. Inter ou
transdisciplinaridade?, p. 43). O saber fragmentado provoca a cegueira no que diz respeito às inter-
relações. À custa de só saber separar, o pensar dita as normas reduzindo a compreensão do todo e
das partes a fragmentos desconectados, perde de vista que o todo está na parte, que está no todo,
prevalece a insensibilidade ao paradoxo inseparável do pensar o uno e o múltiplo. Grande contributo
à superação das estruturas deterministas e fragmentadas do saber tem sido dada por Edgar Morin. O
pensar complexo, ele escreve: “não visa a ‘totalidade’ no sentido em que este termo substitui uma simplificação atomizante pela simplificação globalizante, sucedendo a redução ao todo à redução às
partes.” (MORIN, E., O método II, p. 401). Vale consultar sua clássica obra em seis volumes:
Método. I. A natureza da natureza. II. A vida da vida. III. O conhecimento do conhecimento. IV. As
ideias. V. A humanidade da humanidade. VI. Ética. A complexidade da cultura atual e a experiência
decepcionante da fragmentação dos saberes tem feito emergir a busca pela unidade, a busca pela
originalidade/origem de tudo. A ótica da antropologia teológica, e de toda teologia, não é de oferecer
enunciados científicos, e enumerar possíveis paralelos ou criar questionamentos, senão,
impulsionada pelo esforço do pensar humano a partir da experiência de Deus, tudo compreender sob
a ótica do divino, isto é, do Sentido. 328 Lipovetsky usa da ideia de ‘vazio’ para situar o momento atual de individualismo presente na
sociedade humana, intitulado em sua obra. LIPOVETSKY, G., A era do vazio.
188
Todos inter-existem e co-existem”329. Por esta compreensão, os saberes não
competem por um espaço, antes, se completam, complementam-se e se enriquecem.
A existência é uma busca de harmonia, isto é, a vida segue um processo
permanente e aberto em busca de um equilíbrio, no dinamismo do jogo de caos e
ordem; isto é, de cosmogênese e de antropogênese. O universo está em evolução.
Sua história perpassada de transformações, nascimentos e mortes, “não significa
apenas um desenvolvimento ou um crescimento, mas uma autêntica e verdadeira
evolução”330.
Depreende-se que a vida está ainda em processo de nascimento,
horizontalizada para o infinito, traspassada e entrecortada por inúmeras relações,
inventando conexões, em suma, reforçando a complexidade. Ela é um processo de
vida interior, de busca de unificação de si mesmo a partir de dentro. Desconsiderar
a unidade, a diversidade, o complexo, que segundo sua etimologia compreende o
tecer em conjunto, propicia uma disparidade de leituras, desconexas, que tolhem,
de uma ou outra maneira, diretamente ou não a pessoa e sua busca pelo sentido.
Discursos há exemplificadores deste modo de compreender dispersamente
a realidade, influenciando, em graus diferentes, a vida. Pelo viés da teologia, pode-
se dar uma explicação pragmática, coisificada Por exemplo, se alguém mostra Jesus
como caminho, logo, como sentido da vida, faz uma interpretação que não é de per
si errônea. Contudo, ela corre o risco de uma leitura monocromática e retilínea, que
faria da proposta de Jesus uma espécie de regra farisaica, um neo-legalismo, algo
que definitivamente ele não queria. Ler o Evangelho como conjunto de regras
possui um agravamento que toca o ato criador de Deus: a liberdade. Não se trata de
um adendo. Antes, a liberdade principia e perpassa toda a existência humana.
No contexto da Sagrada Escritura não se encontra uma definição explícita
para a liberdade. Contudo, nela, entrevê-se que a criatura humana é dotada da
capacidade de responder de maneira livre às intenções de Deus, de quem provém a
329 BOFF, L., O despertar da águia, p. 18. Este modo de pensar – complexo – acompanha L. Boff
em várias de suas obras, complexidade que não é dispersiva, mas possui um centro unificador de
toda realidade. Em 1972, em sua segunda obra publicada, ele escreve a atitude de Jesus capaz de ver
o complexo, ao passo que vai ao essencial da vida. Cf. BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 93.
Posto que, Jesus Cristo, só ele, é o ser infinitamente complexo da criação. Cf. Id., Encarnação, p.
35. Complexo, não é estaticização, mas historicidade e unificação da imanência e transcendência.
Cf. Id., Experimentar Deus, pp. 23-29. Pensamento que traz uma marca de T. de Chardin. De T. de
Chardin ele afirma ter sido marcado por duas fundamentais experiências: Cristo é o “Centro orgânico
de todo o Cosmos” e, a segunda, explicita a busca verdadeira de toda ciência, a saber, a
“Multiplicidade e Unidade”. Cf. Id., O Evangelho do Cristo cósmico, p. 43. 330 TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 158. Tradução minha.
189
vida. Ele a dá gratuitamente e concede a opção de escolher se se quer ou não viver.
“Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida,
para que vivas tu e a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua
voz e permanecendo unido a ele” (Dt 30,15.19-20).
Decorre que optar pela vida é escolher Deus, criador e garante da vida, em
suma, é viver na liberdade. A liberdade é ato que provém de Deus, como bem
esclarece Gutiérrez, “Deus não é libertador porque liberta; ele liberta porque é
libertador” 331, assim ele quer afirmar que a atitude primeira é de Deus e lembrar
que Deus é Palavra que dá sentido à sua ação.
Deus se manifesta como o Deus libertador, o Deus vivente, isto é, o Deus
da vida: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo
10,10). O referencial do ser humano livre é transcendente: o Deus autor e criador
da vida. A importância da libertação para a vida, não se encerra em fazer dela a
pauta que orienta as atitudes e comportamentos. Não se trata de um mero poder ou
não poder fazer. É muito mais o espaço de dignidade pessoal. Na vida plena, a
libertação integral do ser humano está presente. A liberdade é intrínseca, quando é
livre o ato da criação: a criação de uma arte, a criação de si mesmo. O programa da
vida de Jesus, pormenorizado por Lucas, é a liberdade, semelhante ao Êxodo no
Antigo Testamento, uma marcha em direção a mais vida. Jesus é enviado pelo
Espírito para libertar, publicando em sua palavra-ação o ano da graça do Senhor. O
tempo da liberdade provinda de Deus é o ‘hoje’ da história (cf. Lc 4,21).
O sentido da vida fundamenta-se na liberdade, pois se trata de uma livre e
exigente busca do sentido a ser dado à existência humana. Liberdade é, para o ser
humano, o lugar primigênio do sentido, posto que ela é consentimento para com a
vida, portanto é, consentimento ao ser e ao bem. Em sentido oposto, a liberdade
pode ser o lugar do sem-sentido, quando há escolha pelo não-ser. A escolha pelo
sem-sentido, assim como a indistinção entre o ser e o nada no horizonte último da
inteligência e da vontade, torna evidente a liberdade intrínseca da sua existência, e
lança o ser humano na falta de orientação. A liberdade torna-se lugar do sem-sentido
quando sua única orientação é a imanência do mundo. Nesta experiência do sem-
sentido, na dialética entre razão e liberdade, tem-se a inversão das posições da
transcendência com a imanência que lança o humano do ser para a aparência do
331 GUTIÉRREZ, G., O Deus da vida, p. 24.
190
sentido e o conduz à experiência dramática de uma contradição entre o seu ser
histórico, finito, e seu desejo ontológico de ser ele próprio criador do sentido da
vida. Esta inversão, ou seja, esta diretiva para a imanência, segundo Lima Vaz,
caracteriza a virada antropocêntrica da cultura moderna, produzindo uma crise de
sentido e de orientação em meio à abundância332.
A reflexão teológica requer a comunhão com o Mistério Trino. A postura
antropológica inclui a plena liberdade do oferecer-se que contempla e do dar-se do
Mistério contemplado. É a experiência humana como reflexo e manifestação de
Deus Trino. “Ser de Deus e por Deus define o ser-criatura. Saber-se criatura,
reconhecer a Causa, experimentar-se vindo e advindo de Alguém, chamá-lo de Pai
e sentir-se filho, funda uma relação pessoal no horizonte da liberdade”333.
Visto assim, a realização desse movimento antropológico com relação ao
Mistério somente é possível em um ser humano dotado de liberdade. No ato do
Deus criador manifesta-se a liberdade como identidade de Deus e da pessoa
humana. A liberdade de Deus é afirmada em sua não dependência com relação a
qualquer realidade criada. Deus cria a vida sem outro pressuposto que seu amor
gratuito. A liberdade humana é afirmada no interior de sua contingência e
criaturalidade, como quem “possui uma verdade e consistência própria”, em última
instância, a liberdade334. Trata-se da experiência da gratuidade da existência
humana, sua não necessidade, e nela da presença do Absoluto, como fundamento e
horizonte da existência humana. Assim, a experiência humana adensa-se, isto é,
ganha sentido, como manifestação de um Amor infinitamente gratuito.
332 Cf. LIMA VAZ, H. C., “Sentido e não-sentido na crise da modernidade”, p. 12. Este filósofo
entende que a inversão da transcendência para a imanência é efetivada na pós-modernidade, visto
que em filósofos modernos, como “Descartes a Hegel, as linhas do universo racional continuam a
ordenar-se em torno do polo da transcendência, não obstante o interdito kantiano lançado sobre o
em-si do Absoluto”. Contudo, em Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, filósofos posteriores aos
modernos, “a relação de transcendência como constitutiva do homem é denunciada como projeção,
alienação, ressentimento ou ilusão”. LIMA VAZ, H. C., Antropologia filosófica, v.II, p. 115. Nesta
aferição de uma razão calculadora, organizadora de tudo, a vida humana quer se sustentar no
imanentismo sem indicação à transcendência. Permanece a questão, que não se cala, do porquê de a vida buscar interações com outros seres, de não se resignar com a realidade apresentada, da
persistência de pensadores na formulação que fundamenta todo conhecimento. O imanentismo
ademais, torna suspensa a questão da origem do desejo humano de encontrar o princípio norteador
de tudo, de desejar vida com sentido integrador das relações. Conforme visto no primeiro capítulo,
a crise de sentido sinaliza para o desperdício de vida, no horizonte do Mistério do Deus-Trino que
tudo centra e irradia vida em abundância para todos. 333 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 229. 334 LADARIA, L. F., Antropología Teológica, pp. 53-59. Sobre o tema criação e evolução no
horizonte teológico, há também outras boas obras. PEDRO TRIGO. Creación e historia en el
proceso de liberación. FREIRE-MAIA, N. Criação e evolução. SCHMITZ-MOORMANN, K.
Teología de la creación de um mundo em evolución. TAVARES, S. S. Teologia da criação.
191
Paralela a um pragmatismo pelo viés teológico, pode-se falar também de
uma fé fundamentada numa teoria fixista, impessoal, para falar de um ser, ou um
ente, que se apresenta como o sentido da vida. Não aparece a dimensão pessoal da
fé, nem das relações. Esta proposta afirma que todas as espécies criadas por um
poder divino, que as fez, cada uma com a perfeição que lhe é própria, seriam como
que fechadas em si mesma. É uma leitura de cunho isolacionista, que induz à
renúncia ao diálogo, não desconhece a diversidade dos seres, mas ignora seu caráter
processual e dificulta a interação com as descobertas e progressos científicos. O
fixismo traz a imagem de um Deus que teria criado, apartando-se em seguida de
sua obra ou do relojoeiro que cria e, ocasionalmente, precisa injetar marcha à sua
criação. E desconsidera a jovialidade eterna de um Pai que cria com um amor único,
bem como a espontaneidade permanente do Espírito que renova constantemente
todas as coisas e a entrega absoluta e dinâmica do Filho, que tudo faz, como fruto
do amor do Deus-Trino.
A fé na jovialidade do Pai, na espontaneidade do Espírito e na dinâmica
criadora do Filho existia já nos primeiros séculos do cristianismo. A história da
revelação bíblica do mistério de Deus-Trino, narra a experiência desde a criação
que se revela na história do ser humano, história da salvação. Da criação do mundo
e do ser humano, Deus sai do seu silêncio para se revelar e dá início a um processo
de salvação que passa por toda a história da humanidade que é a mesma história da
salvação e terá sua plenitude, sua consumação no futuro escatológico. Segundo
Garcia Rubio,
O mesmo Deus que intervém em certos acontecimentos da história de indivíduos e do povo de Israel para manifestar o seu desígnio salvífico, cria o mundo e o homem.
Criação e salvação são dois aspectos reveladores do amor de Deus. E, como
consequência, a união entre a fé no Deus salvador e a fé no Deus criador é realizada
mediante uma relação de integração-inclusão, sendo, assim, rejeitada a visão dicotômica335.
Uma apresentação sempre atualizada da obra conjunta da Trindade pode ser
encontrada no escritor dos primeiros séculos, Santo Irineu, em sua feliz expressão:
“as duas mãos do Pai”. Em contexto cristológico, explicita que a criação do mundo
é obra do Pai que desde sempre está com o Filho e com o Espírito, e a realiza com
335 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p.117.
192
soberana liberdade336. A afirmação joanina de que “Tudo foi feito por ele, e sem ele
nada foi feito”, que aparece também na Carta aos Colossenses, “Nele foram criadas
todas as coisas”, é feita proclamação de fé no Credo niceno-constantinopolitano,
“por ele todas as coisas foram feitas”, e atesta a relação de reciprocidade e
complementaridade entre o Filho e o Espírito, em termos de mútua cooperação na
obra histórica da salvação.
Oposta à rigidez da compreensão da busca de Deus, que se pretende
acabada, apresenta-se uma fé no fluxo permanente da vida, vista como permanente
vir a ser. De seu lado, pode tornar-se uma postura problemática, visto que a
tendência à variedade, ao sem limites, descentraria o sentido, para produzir, no
máximo, sentidos e sentidos de valor temporário, fragmentário.
Contudo, há que ressaltar que no interior deste processo humano, cujo risco
é ser unilateral, ora pelo fixismo, ora pela permanente fluidez, o eterno-permanente-
absoluto, o Deus-Trino torna a comunidade humana participante da natureza divina.
A Sagrada Escritura pressupõe que a Palavra e a ação reveladoras de Deus se
dirijam a uma pessoa bem determinada, “como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,
que eles estejam um em nós [...]. Eu neles e tu em mim” (Jo 17,21). A proposta que
nasce do Evangelho, nem é fixista, nem dispersiva, é uma caminhada de
participação. Sem a participação ativa e livre da pessoa humana, toda descoberta e
progresso seria fruto de um encanto mágico ou um mito de faz-de-contas. Portanto,
a busca do sentido da vida urge a consideração do complexo da vida. Caso contrário,
ela será somente uma leitura, extrínseca, impessoal e a-histórica.
O centro da fé cristã não se fundamenta num sentido de imitação exterior,
mas numa relação interpessoal e íntima. Conforme sublinha Garcia Rubio, o
encontro com Deus é experiência de humanização a partir de um amor gratuito e
imenso. O ser humano, já no Antigo Testamento, é chamado por Deus a receber o
dom gratuito da salvação. A experiência da salvação, dom de Deus, é a experiência
primeira e mais fundamental337.
A experiência teológica supõe duas presenças de gratuidade. Segundo L.
Boff, trata-se da iniciativa amorosa e gratuita na vida de Deus, ainda que Deus não
se encerre nesta experiência. Significa que Deus é o centro e o horizonte de toda a
vida humana, ele está presente em tudo, de forma que “a Ele nunca vamos. Dele
336 Cf. FOLCH GOMES, C. Antologia dos santos padres, pp. 115-135. 337 cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, pp.118-144.
193
nunca saímos. Sempre estamos nele. Embora dentro, Ele está para além de tudo”338.
Isso significa participação no mistério de Cristo, divino e humano, por uma
identificação de vida. Paulo é convicto ao afirmar o centro da vida cristã, “Eu vivo,
mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
Todos, homens e mulheres, participam da natureza divina, participam de
Deus por sua vontade. O chamado à participação manifesta a relação do Criador
com sua criatura. “Pelo seu divino ato de vida, foram dadas as preciosas e
grandíssimas promessas, a fim de que assim vos tornásseis participantes da natureza
divina” (2Pd 1,4).
Participar de Deus constitui oferecimento permanente para todas as pessoas
humanas de “poder ter aquilo que em Deus é ser: é amar radicalmente, autodoar-se
permanentemente, comungar abertamente com todas as coisas”339. Nas palavras do
Concílio Vaticano II, a participação é gesto da bondade e sabedoria de Deus, que
ao revelar-se a si mesmo, permite ao ser humano conhecer o mistério de sua
vontade. Assim, todas as pessoas, “por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm
acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina”340.
L. Boff conhece as diversas interpretações desta realidade fundamental do
cristianismo. Sabe que as buscas, ao longo dos séculos e as diferentes linguagens
teológicas do Ocidente e do Oriente, para explicar a participação na natureza divina,
são um esforço árduo, pois trata da autocomunicação do Deus-Trino à história
humana; “no fundo, querem exprimir sempre a mesma e única experiência da
proximidade do homem com Deus e de Deus com o homem”341.
Bem claro, a participação da natureza de Deus, dá-se tão somente como
filiação adotiva. Somente Jesus Cristo é o Filho unigênito de Deus; enquanto o
homem e a mulher o são por comunhão, por graça e adoção (Cf. Gl 4,5; Ef 1,5; Rm
8,15-23), mas ainda assim, a experiência de filho/filha radica para si a experiência
da natureza divina, do Absoluto. A experiência de ser filho no Filho “é afirmar a
absoluta destinação e vocação humana: ser em Deus, com Deus, para Deus, de
Deus, participante da mesma natureza divina”342.
338 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 18. 339 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 217. 340 CONCÍLIO VATICANO II., “Dei Verbum”, n. 2, p. 122. 341 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 220. 342 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 224.
194
Esta experiência de construção e participação, por sua vez, se dá na era do
Espírito, isto é, por iniciativa divina, numa realidade dinâmica que move a pessoa
a sair de si, ser um nó de relações, e amar como Deus, que realiza esta abertura de
forma amorosamente eterna. É uma experiência da Graça, num processo de
personalização sendo para o outro; traduzida como participação da natureza de
Deus.
Para João da Cruz, sendo Deus por natureza o Amor, há uma participação
total da vida no Amado, uma entrega por inteiro de ambas as partes. Assim ele diz
em seu cântico espiritual, na união com Deus “a alma é feita toda divina, e se torna
Deus por participação, tanto quanto é possível nesta vida”343. Na mesma linha, L.
Boff explicita que no futuro de Jesus Cristo “possuímos a mesma possibilidade que
ele para sermos assumidos por Deus e sermos um-com-Ele”344. O amor de Deus-
Trino é Dom recebido de seu próprio Amor unificante.
Nesta direção, se Deus é homem no Logos e continua a sê-lo por toda a
eternidade, então o humano constitui-se eternamente no mistério de Deus, como
aquele que por toda a eternidade participa do mistério do seu fundamento. Isso não
se dá no aspecto de que o ser humano seja por si mesmo a plenitude infinita do
mistério, mas porque sua essência e referência a essa plenitude são resposta ao
próprio Deus, e o ser humano “na verdade é aquele que participa do infinito mistério
de Deus”345.
A fé no Deus-Trino é resposta ao chamado de participar em seu mistério,
chamado a viver na abertura de relações, consequência da participação nesse amor.
Depreende-se que o amor é o meio de compreender o mistério divino presente na
história, pois Deus modelou o ser humano no seu eterno movimento do amor. Crer
no Mistério revelado e participar da Trindade na história humana é Salvação. Pela
encarnação do Filho, a pessoa humana é associada ao mistério de sua relação com
o Pai, introduzida na intimidade de Deus e de seu amor, como Aquele que se torna
"intimior intimo meo”346, expressa Santo Agostinho.
A introdução na totalidade do mistério cristão do todo da existência da
pessoa, manifesta, no fundo, a entrega absoluta e sem reservas ao Pai. Na entrega
343 JOÃO DA CRUZ, S., Cântico espiritual p. 157. 344 BOFF, L., O destino do homem e do mundo. Ensaio sobre a vocação humana. Petrópolis, Vozes,
1976, p. 29. 345 RAHNER, K., Curso Fundamental da Fé, p. 268. 346 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro III, 6), p. 72.
195
de Jesus ao Pai, ele se entrega aos homens e mulheres; em um único ato de entrega
de si mesmo. Para anunciar o mistério salvador de Cristo, o Documento de Puebla
propõe que a evangelização seja “um chamado à participação na comunhão
trinitária”347.
É preciso acrescentar, que a participação não é apesar da história humana de
fidelidade e pecado, não está só para além da história, mas também na história. Na
aceitação humana, ela é construção do sentido orientador de vida. Contempla “a
quotidianidade do amor, com sua obscura mas profunda fidelidade, com os
obstáculos a serem obviados, com as purificações acrisoladoras que a constante
atenção, o vigilante cuidado e a fina sensibilidade do amor postulam”348.
A reflexão do ser humano como participante e co-construtor do sentido da
vida adentra na relação vital do Deus que vem a nós (cf. Êx 3) e que é o mesmo
Deus que está no meio de nós (Cf. Lc 17). Deus é essencialmente amor que se
comunica e estabelece comunhão, em abertura mútua, reciprocidade de relações
para dentro e para fora de si mesmo. Seu Mistério envolve toda criatura. O ser
humano grita por relações igualitárias e pela comunicação. Nesta intuição, torna-se
bastante propício e vital para sua integração, veicular este projeto de uma
mensagem de encontro na alteridade.
É consensual dizer que o pós-moderno abandonou a visão mítica do mundo
bíblico de um Deus soberano que virá sobre nuvens do céu, de uma escatologia
rigorosamente transcendente, em que a esperança consiste no vigilante aguardo do
Deus que vem, restando a todos os homens e mulheres apenas a adoração e
submissão a esta soberania e à realeza deste Deus (cf. Dn 7,27).
Daí que a comparação, mais promissora, para entender a via do
conhecimento de Deus que nos chama a participar de seu mistério é a via da
experiência349. Este não é um caminho oposto ao racionalismo científico, mas supõe
a razão conjugada com o cuidado e o afeto, essenciais para a continuidade da vida.
347 PUEBLA., A Evangelização no Presente e no futuro da América Latina, n. 218, p. 103. 348 BOFF, L., A graça libertadora no mundo, p. 218. 349 E de grande importância para a questão do sentido da vida a categoria experiência. Por vezes, ela
é confundida com experimento. Uma ação na prática, uma tentativa visando acertar, pode ser
chamada de experimento. De maior alcance e profundidade, a experiência adentra e deixa marcas
na vida. Pelo viés teológico cristão, ela imprime caráter divino e libertador. Ainda que possa haver
outros caminhos para se chegar a Deus, afirma-se, contudo, que ela constitui uma abordagem
significativa e comunicativa de vida. A experiência cristã é comunicação da “sabedoria de Deus no
mistério” (cf. 1Cor 2,7), dada pelo Espírito, que escuta as profundezas de Deus, e é por este Espírito
faz conhecer os dons de Deus.
196
A visão restrita da vida provoca sua fragmentação e desintegração. Mas a
inércia não é sua única perspectiva. A encarnação do Filho de Deus manifesta um
apelo permanente à reintegração, inter-relacionando o processo histórico humano
com sua meta portadora do sentido verdadeiro, à busca histórica ao encontro
escatológico do sentido do Reino que é a expressão máxima do sentido da vida. Em
sua realidade mais profunda, a Encarnação manifesta a amorosa auto-comunicação
de Deus a toda existência que a cada existente confere dignidade inaudita. A vitória
da vida é construção inseparável e complementar de relações inclusivas e abertas.
O ser humano que procura uma visão do todo terá de admitir necessariamente: É
verdade que encontramos no mundo uma matemática objetivada, mas encontramos
nele também o milagre inaudito e inexplicável da beleza, ou melhor dizendo: no mundo existem processos que se apresentam ao espírito atento do ser humano na
forma do belo, obrigando-o a reconhecer que o matemático que construiu esses
processos desenvolveu uma incrível fantasia criativa350.
Para além de uma visão unilateral, que não considera o todo da realidade, L.
Boff considera que este sujeito, ainda que racionalista em suas relações com o
mundo, “se mostra sensível para o Mistério do Amor, para o sentido radical do
viver, e pode acolher o inacessível à discursividade da razão”351. A experiência
supera o mero conceito. Nas capacidades mais elevadas do ser humano está a
experiência do belo, do bom e do bem. Há consonância entre plenitude da Presença
e profundidade da experiência. Nesta mesma compreensão, Martín Velasco
sublinha que a experiência de Deus não só comporta as virtudes, como também gera
as energias para a vida ética352. Implica ruptura com modelos ideológicos e
redutores da vida. No exercício da ética fundamental, na escolha de opções justas,
na flexibilidade das opções filosóficas, vislumbra-se, neste mesmo exercício, a
busca de sentido.
A vida, com tudo que existe, é o espaço onde o ser humano experimenta o
ser de Deus. Então, cuidar das criaturas é cuidar de Deus, no hoje da história, porque
a nova criação está se gestando agora353. Nesta esteira, cosmologia e mística
convivem harmoniosamente. O conhecimento do cosmos e a experiência mística,
cada uma, presencia uma realidade que ultrapassa todo saber, uma realidade plena
350 RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, pp. 115-116. 351 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 122. 352 Cf. VELASCO, J. M., El fenómeno místico, p. 461. 353 Cf. BOFF, Lina., “Da Protologia à Escatologia”, pp. 122-123.
197
prenhe de relações em todas as direções, num inter-retro-relacionamento de tudo
com o todo existente. Duplamente, cosmologia e mística denunciam o paradigma
de dominação fundamentado no antropocentrismo, que mais revela um contra
sentido do universo. A dominação espelha a crise do sentido da vida que se promove
na estratificação e a solidão entre os seres.
No conhecimento de Deus fica dispensado os verbos compreender,
demonstrar, provar, apropriar-se; para conjugar simplesmente o encantar-se, ou
apaixonar-se, próprio da experiência mística. Existência e realidade não constituem
termos separados entre si.
Na expressão evangélica “vereis o Filho do Homem”, repetida por Jesus, há
uma proposta de plenitude do homem, no segundo Adão, no qual integram-se o
presente histórico e o futuro escatológico. Supera-se uma visão que anseia por
salientar a contradição no âmbito da história, entre imanência e transcendência,
tempo e espírito, dimensão vertical e horizontal, ascendente e descendente, semente
e vida. A vida mesma, quando afirmada radicalmente e assumida com toda a
responsabilidade, mostra a dimensão horizontal e vertical, a imanência e a
transcendência. Quando captadas juntas estas dimensões, abre-se o ser humano para
a transparência de Deus354.
Na encarnação do Filho, Deus assume o passado e o futuro. Ela é a
visibilidade humana de Deus, tão bem expressa por Santo Irineu em sua bonita
expressão “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de
Deus”355. A vida do ser humano consiste, pois na visão de Deus revelada em Cristo.
A amorosidade divina introduz o humano na vida trinitária. Desde a presença do
Espírito que toca toda a terra (Cf. Gn 1,2), passando pelo Deus, Abba, que desce
até nós (Cf. Êx 3), e culminando na encarnação do Filho na história humana, a
experiência cristã possibilita, mais uma vez, afirmar que, a imanência da Trindade
não é um dado intelectual, um saber mecânico. Sobretudo é um encontro, um
encantamento recíproco, que supõe saberes, mas muito mais, supõe sabores. A
existência de Deus não depende da argumentação, mas da admiração, do querer que
o outro seja mais, porque ele é bom. O ser humano quer que Deus seja mais: mais
louvado, mais amado, mais conhecido. Deus quer que o ser humano seja mais
354 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 23-29. 355 FOLCH GOMES, C., Antologia dos santos padres, p. 129
198
amoroso, mais participativo, mais humano, mais divino; participação ativa a existir
e a construir a existência na história.
A fé no Deus que está no meio de nós, afirma que o Criador não é um Deus
distante, mas um amante do humano. O abundante amor da Trindade na Encarnação
do Filho extrapola um ato de solidariedade de fazer morada na história. A expressão
máxima desse amor, diz Gonzáles Faus, é ter assumido e se identificado com a lei
de nossa história, pela qual o profeta é morto e o justo é rejeitado356.
A Palavra-ação Jesus traz um projeto participativo para a humanidade: uma
relacionalidade de pessoas humanas orientadora para a vida, fundamentada na
libertação integral. A palavra da verticalidade e transcendência de Deus, entra em
ação na realização da horizontalidade e imanência, na história e dentro do sentido
de fraternidade e solidariedade universais357. E este é um projeto radical, pois atinge
as raízes mesmas do ser humano, no horizonte último e definitivo de Deus.
Numa perspectiva que busca captar o fundamental, a participação e a
construção no projeto da criação de Deus, assumidas existencialmente pelo ser
humano, torna-se um princípio a partir do qual se deve analisar o sentido da vida.
Na inspiração de São João da Cruz, L. Boff diz que o ser humano, chamado a
participar do mistério de Deus-Trino, tem a capacidade de “perguntar por um
Sentido e entrar em comunhão com Ele e ser um com Ele”358. O ser humano dialoga
com Deus à maneira de relações de construção e participação.
Na esteira teológica de Leonardo Boff, as relações, com os outros, consigo
mesmo, com Deus e com as coisas são apresentadas em chave de integração. A
compreensão de Jesus não é sectária. Ao contrário, ele vê o ser humano na sua raiz,
na sua condição de criatura de Deus. Do princípio antropológico de estabelecer
relações, Jesus revela uma ontologia que confere sentido à vida, sempre destinada
à comunhão e participação de vida com as coisas, com os outros e com Deus.
356 Cf. GONZÁLES FAUS, J. I. Acesso a Jesus, p. 153. 357 É de se notar, no entanto, que Deus entra em ação não no momento histórico da encarnação, no
presépio, mas já a criação é ato salvífico da Trindade. 358 BOFF, L., Saber cuidar, p. 35.
199
4.2. A relação enquanto realidade construtora de vida
Vale lembrar que o ponto de partida desta pesquisa é o ser humano, em seu
impulso pelas relações enquanto lugar de integração de sua busca pelo sentido da
própria vida. O ser humano continuamente participa, produz e critica a história. O
homem e a mulher vivem sua humanidade carregada do desejo infinito do bem
experienciado em relações éticas e significativas. No sujeito humano encontra-se,
pois, uma busca pela Vida. Esta busca concretiza-se na forma de espera, de
planejamento e projetos para o futuro. Nesta perspectiva, o ser humano é projeção
para um sempre mais, para a surpresa, para o que está fora de sua pré-visão, para o
ainda-não. Isso indica que ele não possui o centro em si mesmo, mas o tem dentro
de si (Deus). Em suma, o ser humano que sempre vive em relação, que, portanto, é
relativo, é também relacional, só enquanto tal se entende. E, na medida em que
busca o outro polo desta relação, ele caminha para o absoluto.
Enquanto construtora da vida, a relação não procede da necessidade. A
necessidade entende-se aqui por um mundo fechado, autoreferencial. Por outro
lado, ainda se fala de “necessidade da salvação”, fala-se da carência. Ela é ainda
nostalgia, eterno retorno. A necessidade é o próprio retorno, a busca de seu ser pelo
si mesmo numa visão de mundo, onde a carência impulsiona a busca de um
semelhante a si, em vista da realização definitiva da vida.
Uma grave ameaça a este ethos é o dualismo profundo, ou negação, quer do
próprio ser, quer do ser do outro como simultaneamente diferente e igual a si. O
impulso exagerado de fazer do “eu” o alvo de todos os investimentos leva a crer
que “não importa que a relação seja destruída, contanto que o indivíduo seja levado
a absorver-se em si próprio”359. O indivíduo assenhora-se do direito de ser si mesmo
em detrimento das relações. Esta escolha unilateral banaliza a vida, saindo do
mundo das relações, passando ao não mundo do relativismo, no qual o movimento
autoorientado, dirige-se para lugar nenhum.
No paradoxo da busca humana de integração com o todo, preconizada pelo
existencialismo de Kierkegaard, a subjetividade toma o lugar da verdade. A
359 LIPOVETZKY, G., A era do vazio, p. 53.
200
existência vincula-se, então, ao desenvolvimento da subjetividade, não enquanto
sujeito de uma identidade pessoal e única, mas daquela que quer ser construída a
partir só de fins particulares, esquecendo assim, completamente, o outro. O
indivíduo afirma-se absoluto, no significado de sua possibilidade de ser. Na
realidade, termina por negar qualquer forma de ética, pois a ética sempre pressupõe
um outro.
A ética é religação, no dizer de Morin360. Ao perceber o outro ser como
também sujeito portador de uma identidade, o ser humano partilha simultaneamente
sua diferença e sua similitude. O outro não apenas é percebido como outro sujeito
monádico, como alguém que exerce influência recíproca, de um na identidade do
outro. A religação inclui o outro. Se é permitido dizê-lo: exclui toda exclusão. Ela
reclama a escuta atenta e cuidadosa do outro, no movimento da compaixão. Esta
intersubjetividade descobre a capacidade de contínua autotranscedência, isto é,
movimento de saída de si em direção ao outro, em amplitude que sugere o infinito.
A ousadia de sair de si, gratuitamente, para ir ao outro, não se reduz a um
movimento encerrado em duas direções, do seu ser e ao ser do outro sujeito e vice-
versa. O encontro de duas carências seria um encontro carente. Mas a carência do
outro, aparece à pessoa, exatamente, como o habitáculo do absolutamente Outro,
por sua exigência de uma resposta em fidelidade. A relação entre seu ser e o ser do
outro, percebe-se, não pode ser avaliada apenas pelo lado da carência, e seu mérito
sugere Outro que lhe é ulterior.
Assim a relação não é da ordem da funcionalidade nem de um simples
personagem, mas da presença efetiva de alguém que existe em si mesmo, de uma
realidade individual, de uma realidade que tem algo de inexaurível, de
incomunicável, mas que é também pessoal e comunicável. Nesta relação com o
Outro, a pessoa se exprime como um sujeito que diz “eu” em relação a um “tu”. À
luz desta presença discerne a origem de toda ética/religação. Mais precisamente,
experimenta a presença do Outro que interpela e concede sentido à relação em todas
as direções. Com efeito, todo projeto humano de sentido mostra-se à consciência
como uma realização parcial de sentido. Tudo o que é parcial ou carente ou se
conforma em ser assim ou clama pela completude. Ora, a fé cristã diz justamente
que esta completude está no encontro com o outro, que remete ao totalmente Outro.
360 Cf. MORIN, E., O método VI, pp. 103-108.
201
A essa relação do Outro que origina e une o movimento ético, Lévinas denomina
de ideia do Infinito.
A ética aparece no momento em que, no relacionamento, a pessoa percebe
que deve lidar com o outro não balizado por sua carência, mas por sua integridade.
Ética é relação de alteridade absoluta imprimindo no ser a ideia de Infinito,
conforme o filósofo Lévinas. A relação com o outro, é, num primeiro momento,
ética por ser marcada de profundo respeito e acolhida da pessoa humana. O rosto é
alteridade absoluta, revelação, lugar da epifania, já que é apelo para o eu361. No
rosto, o outro se deixa ver em sua frágil e vulnerável humanidade, na qual se
manifesta um apelo que suscita a transcendência de um imperativo essencialmente
ético. No encontro do rosto do outro manifesta-se a presença do Infinito, o caminho
do infinito que fundamenta o eu.
A relação do Infinito com o ser humano tanto historiciza quanto transcende
o desejo humano de controlar e impor limites. Esta intencionalidade na relação
humana, esclarece Lévinas, significa “não ter tempo para volver sobre si, não poder
furtar-se à responsabilidade, não ter meandros de interioridade onde recolher-se,
marchar para frente sem consideração por si”362. Na realidade, trata-se de uma
relação ética que configura sentido, no ser relação. O ser humano é um buscador de
sentidos, por isso mesmo busca relacionar-se em todas as direções; busca sair de si
mesmo, sem abandonar o próprio ser, impulsionado pelo desejo infinito de sua
integração com o todo da vida. Somente nesta dinâmica o ser humano ganha sua
verdadeira ex-istência, posto que ele é “um ser que ex-iste voltado para fora (ex),
em diálogo e em comunhão com o outro ou com o mundo”363. O vocábulo
‘existência’, em sua raiz, indica-nos que o humano é um ser que existe porque ‘está
aí’, sendo na realidade uma presença e não mero elemento. E ‘está fora’ próprio da
condição de estar em comunicação, em comunhão com outros; dom partilhado
mutuamente.
O fundamento de sua ex-istência, segundo L. Boff é o fio de ouro da história
do Deus-Trino apreendido pela teologia.
361 O rosto do outro homem é exterioridade e exprime a transcendência que subverte o egoísmo do
eu. A exigência de uma ética absoluta funda-se na ideia de Infinito. O pensamento de Lévinas
representa uma alternativa às éticas empirista e racionalista, ao se sustentar apenas pela experiência
ética do face a face. Cf. MARTINS, R. J., Introdução a Lévinas, pp. 13-28. 362 LÉVINAS, E., Humanismo do outro homem, p. 54. 363 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 33.
202
Deus é o Ser dialogal por excelência. Aquele Tu que cria todos os eus. Ele é que
chama tudo à vida e convoca para uma aliança: “As estrelas brilham no
firmamento. Ele as chama e elas respondem: eis que aqui estamos” (Bar 3,34s).
Deus chama e o homem responde. Eis a estrutura fundamental da teologia e antropologia bíblicas. A relação interpessoal do eu-tu-nós é a concretização e a
extensão da relação mais radical homem-Deus364.
A relação na perspectiva da existência humana que busca o sentido da vida
não é uma possibilidade entre outras, nem um aspecto acidental, antes, tem caráter
constitutivo do ser pessoa. No princípio da vida está a co-existência de três únicos.
Feito criatura por um Deus que por essência é relação, a pessoa, portanto, não é
chamada a viver na solidão de uma interioridade saciada de si mesmo, na afirmação
absoluta de si. Antes, seu chamado à vida toma forma de relação que configura toda
sua existência. Esta é sua vocação, que o diferencia de todas as outras coisas criadas.
Tudo começa com o ato criador de Deus-Trino e se prolonga com a generosa
abertura da pessoa. A intenção de Deus ao criar o homem e a mulher expressa sua
vontade relacional e fundamenta toda a relação humana com Deus. A narrativa
bíblica da criação manifesta a proposta humana de dialogar com as criaturas, de
“ser capacitado a uma existência relacional”365, na gratuidade e responsabilidade
amorosa. Por outro lado, a negação da relação será a morte da humanização. Ao
percurso da vida pertence a capacidade de relacionar com o outro, de sair do próprio
círculo e entrar no universo do outro, na ternura e no cuidado efetivo.
Atento, na ausculta da natureza essencial do ser humano, L. Boff explicita,
o que vem a ser o ser humano.
O homem se define a diferença do animal como o ser aberto à totalidade da realidade, como um nó de relações orientado em todas as direções. Ele só se realiza
caso se mantiver sempre aberto e em comunhão permanente com a realidade
global. Estando no outro é que ele está dentro de si mesmo. Saindo de si é que
chega a si. É só ex-istindo (saindo de si: ex) que se torna. O eu não existe a não ser criado e alimentado por um tu. É dando que o homem tem. Por isso o homem deve
sempre se transcender a si mesmo. Por seu pensamento mergulha no horizonte
infinito do ser. Quanto mais se abre para o ser, mais pode auscultar e mais pode tornar-se homem366.
Na continuidade, L. Boff ressalta no essencial do humano a capacidade de
receber o outro, somando-se a capacidade de ser para o outro. Na relação dialética
364 BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, pp. 57-58. 365 SATTLER, D.; SCHNEIDER, T., “Doutrina da criação”, p. 202. 366 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 272.
203
de dar e receber, o ser humano realiza sua humanização. O ser humano possui a
capacidade de entrar em relação isto é um evento existencial.
Dar não significa apenas transcender-se a si mesmo e sair de si. É também
capacidade de receber o dom do outro. É amando e deixando-se amar pelos outros que o homem descobre sua verdadeira profundidade e seu mistério. Quanto mais o
homem estiver orientado para o infinito e para o outro mais tem a possibilidade de
hominizar-se, isto é, realizar-se seu ser-homem367.
As ciências biológicas têm divulgado descobertas interessantes sobre o
desenvolvimento do ser humano na vida intrauterina. O advento e aprimoramento
tecnológico de exames e procedimentos cirúrgicos possibilitam observar, com mais
nitidez, o universo fetal em sua vivência. A relação entre a gestante e seu filho não
se encerra na comunicação biológica, mas verifica-se uma relação que capacita à
abertura e à comunhão do ser para todas as direções. Com mais surpresa, cientistas
falam de convivência afetiva e salutar entre fetos de uma única gravidez, ao se criar
vínculo de afeto e cuidado, movido pelo simples desejo que a vida seja vitoriosa368.
Este tipo de acontecimento, revestido embora de caráter excepcional, nos casos de
ameaça à sobrevivência, permite descortinar a originalidade prodigiosa do elo
indissociável entre relação e vida. A partir desse dado fundamental de busca de vida
e sobre o qual se fundamenta esta pesquisa, pode-se afirmar que desde o ventre
materno, a existência humana é portadora de relação voltada para a vida. Ser vivo
é ser relação, e relação é vida.
Afirmar a vida pela categoria da relação, não minimiza sua amplitude, não
retira sua densidade ontológica. Pelo contrário, afirma-se justamente o ser em
relação. Esta categoria quer ser elemento de união no processo evolutivo da vida,
uma dinâmica na qual o que é dispõe-se a ser mais e, de fato, vem a ser mais. Outros
vocábulos análogos a ‘vida’ tem-se existência, sopro, fio vital, respiração, hálito,
vida futura. Contrária à vida, tem-se a situação de riqueza acumulada e das
inovações científicas coexistindo com tantas pobrezas e escravidão. Enquanto
alguns estocam bens de capital e muitas moradias são abarrotadas de itens de
consumo, dos quais os donos até se esquecem, sem contar os índices de obesidade
que crescem, acúmulo daninho, no próprio corpo, a fome, a sede e a ausência de
saneamento desintegram tantas vidas. Tem-se a impressão de duas realidades
367 Ibid. 368 HYPESCIENSE. “8 fatos fascinantes sobre gêmeos”.
204
independentes e dissociadas uma da outra. Tem-se uma visão de vida forjada na
dissociação, no desligamento, no desconectar de relações, que, na prática, segrega
a vida. O desperdício, acarretará prejuízo para um outro. A abundância acarretará
privação para um outro. Em última instância, a busca pelo sentido da vida fica
reduzida a esforço pessoal e para alguns privilegiados.
A vida numa visão relacional transforma a riqueza e a pobreza em dons
compartilhados, cuida da abundância sem desperdício e mesquinhez, e desenvolve
a compreensão básica e fundamental de que todo ser vive em uma teia complexa de
relações com tudo e todos, desde seu surgir para a existência. Em sintonia com uma
ciência que tem como objetivo buscar compreender as relações que se dão no
universo, a vida só pode ser bem vivida, se devidamente encaixada no grande
sistema da biosfera.
A nova sensibilidade moderna das ciências para a compreensão da vida369
sobre o planeta terra, já não se restringe à relação imediata dentro do ecossistema,
nem a um princípio de ordem cósmica. Surge uma leitura do universo em dimensão
histórico-evolutiva, considerada “uma das maiores aberturas de horizonte”370,
segundo o astrônomo e teólogo, Tanzella-Nitti. Na leitura do teólogo, Haught, ela
é considerada a descoberta mais surpreendente, “o universo é uma narrativa em
desenvolvimento”, em processo e aberto a novidades 371. Mais precisamente, o
antropólogo Morin sublinha que no século XX, com a descrição do Big Bang, surge
o relato da gênese e do vir-a-ser do universo, “um novo, estranho e misterioso
Cosmos”. Constituído de um jogo dialógico, este novo cosmos “é formado na
desordem e se organizou em uma desintegração generalizada372”. A ideia de um
369 A escolha dos pensadores citados ao longo desta pesquisa – Giuseppe Tanzella-Nitti, John F.
Haught, Edgar Morin e Lee Smolin – não é aleatória, ainda que eles tenham diferentes formação e
interesse pela ciência. A escolha se deve à leitura que eles têm da cosmologia contemporânea. No
decorrer das leituras, verifica-se, em todos eles, uma abertura possível para que a teologia cristã
possa entrar em diálogo, escute o que a ciência está à mostrar e aumente a inteligência da fé. Eles
abrem caminho para que se reconheça o misticismo a partir de questões científicas, e quiçá, acolher
o Infinito da relacionalidade, que revela o sentido de conjunto. A pesquisa considera que a própria ciência não é homogênea no que tange a obtenção do conhecimento. Variados são também seu objeto
de estudo e método de investigação. Na esteira do teólogo L. Boff verifica-se em sua receptividade
crítica das ciências, haver pontos em comum e uma convergência fulcral, posto que a vida é
concebida como processo em relações vitais. Uma visão da vida coerente com o processo da vida,
em suas dimensões física e biológica. Produz-se uma imagem denominada de cosmologia. Nas
palavras do autor em pesquisa, ele afirma que “pertence à imagem do universo fornecer-nos uma
resposta que atenda à nossa busca de um sentido clarificador, globalizante e afetivo. A essa imagem
costumamos chamar de cosmologia”. BOFF, L., O despertar da águia, p. 49. 370 TANZELLA-NITTI, G., Teologia e scienza, p. 155. Tradução minha. 371 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 7. 372 MORIN, E., "La relation anthropo-bio-cosmique", p. 384. Tradução minha.
205
universo em evolução, é afirmada pelo físico Lee Smolin como a maior inovação
da vida, não só da cosmologia moderna, justamente porque “capacita a ver a vida
não como um simples retorno, mas como um processo que continuamente gera e
descobre novidades”373.
A partir da nova imagem de um universo em evolução, chega-se à uma
concepção de um universo inacabado, que continua sua construção na história, o
que é explicitado por L. Boff como processo cosmogênico.
O processo não está ainda pronto, mas em fase de gênese e de expansão. [...]. Tudo
está sob o regime de indeterminação e de probabilidade. As relações vão
constituindo determinações concretas. Em razão disso falamos de história. Não somente os humanos têm história, mas todos, também os demais seres, pois todos
estão dentro do processo evolutivo que vem da mais alta ancestralidade. Todos
estamos enredados num jogo de inter-retro-relacionamentos, em cadeia, pelo qual vamos construindo, com o desenrolar do tempo, nosso ser374.
A pós-modernidade deixa à mostra a originalidade, a singularidade e a
complexidade dos seres vivos. Ao mesmo tempo, ela estabelece uma incerteza
profunda que afeta a leitura sobre a origem da vida e repercute sobre seu sentido. A
partir das novas posturas científicas, toda a tradição será abalada, revista,
reformada, retomada.
A posição do ser humano no cosmos exige uma nova leitura espaço temporal
da qual já não se pode prescindir. Fundamentalmente, a imagem do universo já não
é mais regulada por um mecanicismo perfeitíssimo, por leis imutáveis e perenes,
que obedeçam a um desígnio traçado pelo Criador. A revolução copernicana
concebe uma nova disposição do universo, que retira o homem do centro. Contudo,
o mundo ainda tinha um centro, isto é, o sol, centro luminoso, gerador de calor
benéfico e fonte de luz para a manutenção da vida na Terra. O verdadeiro abalo
sísmico veio com a física do século XX, a saber, a teoria da relatividade e a teoria
quântica. Através do espaço e do tempo as coisas no universo têm relação, não só
com o todo, mas também entre si, de modo que a descrição do universo é uma
descrição da rede de relações que se apresentam sempre muito complexas. A
descrição relativística do cosmos não demorou a transplantar-se para o campo das
373 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 143. Tradução minha. 374 BOFF, L., O despertar da águia, p. 48. Neste processo está também incluído o Filho de Deus.
Pela Encarnação, Jesus “se relaciona com nosso mundo em cosmogênese”. Verdadeiramente
humano viveu as limitações próprias da condição terrestre. Suas opções visibilizava um ser de
relações com a realidade humana e cósmica. Cf. BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 226.
206
atitudes humanas. Surgem novas interações humanas. Edgar Morin se expressa
sobre esta experiência.
Privado de um deus genésico, este novo cosmos, uma vez jorrado ex vácuo, torna-
se auto criador e autoprodutor, criando e produzindo núcleos em profusão, átomos, astros, galáxias. Privado de Centro é ele ao mesmo tempo policêntrico, acêntrico,
dispersivo. Privado de Lei a priori, este Universo constrói e diversifica suas
próprias leis, segundo as quatro modalidades que regulam as interações dos elementos. Privado de eternidade, este Cosmos evolui no tempo e tudo o que lhe
diz respeito comporta um hic et nunc, isto é, uma dimensão histórica.
A vida também aparece como um conjunto de interações, o que permite
pensar uma visão relacional. Talvez que a leitura pós-moderna queira negar seu
caráter processual de abertura. Mas a possibilidade de outras leituras de per si está
fortemente influenciada pelas recentes descobertas científicas.
A ciência ao chamar a atenção para a interdependência dos organismos
vivos alerta para a responsabilidade maior do ser humano racional em relação à
totalidade. A relação do ser humano com todos os outros seres não mais pode ser
pensada nos moldes de uma dominação da natureza, que a ameace de exaustão. A
nova cosmologia a ninguém permite acreditar-se absoluto. A dominação pela
técnica, dominação de cultura, dominação de gênero, sem o aval de uma cosmologia
organizada ou não, hierarquizada ou não, deve modificar-se tanto pela crítica
quanto pela autocrítica ou aceitar seu caráter de mero discurso ideológico. No
conceber das relações com o mundo apenas pela dominação possibilitada pela
tecnologia, este discurso permanece opaco e incompreensível, introduz
perturbações nas relações constitutivas da realidade. E como o mundo, a própria
existência parece não ter sentido.
A ideologia de domínio do mais forte é reducionista e tributária de uma
leitura, segundo a qual só os mais fortes poderão sobreviver. Ora, mesmo sem entrar
numa discussão sobre darwinismo é fácil perceber que, justamente, os avanços
tecnológicos capacitam os seres não a deixar que vençam os mais fortes, mas a
reabilitar o enfraquecido, revigorar o debilitado. Trata-se uma vez mais de opção.
Pode-se partilhar o mundo da tecnologia com todos, criando-se para isso políticas
adequadas ou entender, como propõe a meritocracia, que tem, tem porque merece.
Do seu lado, L. Boff defende o propósito verdadeiro da vida assegurado na
realização das potencialidades dos diferentes seres existentes no universo, e não na
lei da sobrevivência selvagem.
207
Se assim fosse os gigantescos dinossauros estariam ainda entre nós. Não é a
competição que tem a centralidade no universo, por mais importância que tenha,
mas a cooperação. Não a afirmação do mais forte, mas a capacidade de ser
simbiótico, quer dizer, a capacidade de relacionar-se em todas as direções no jogo das interdependências375.
A evolução cosmológica possibilita ler o universo como expressão da
sabedoria divina, que tudo dispõe para que a vida seja possível. Cabe à espécie
homo sapiens sapiens, se realmente for sapiens, aprender a ler nesta possibilidade
de ser sempre mais aliada à sua semelhança com o Deus criador. Chamado para
realizar sua vocação última, isto é, vocacionado a ser ele mesmo na realização de
seu potencial, em relacionalidade para com o mundo, para com o outro e para com
o Absoluto376. Por conseguinte, a vida será pensada pela descoberta de sua posição
através do diálogo e da abertura a todo outro ser, isto é, da relação como palavra
construtora da vida.
Por outro lado, relação não quer dizer relativismo. Afirmar a relação
enquanto sinonímia de vida não quer desamarrar a gama aparentemente infinita dos
entrelaçamentos resultantes das relações, como se não apresentasse uma coerência,
mas também não significa criar hierarquia de uma sobre a outra, o que muito
empobreceria a ambas. Dizer relação não subentende a ideia de relativismo,
sinonímia de circunstância, passagem, vicissitude, numa conjuntura de
acontecimentos. Relação é análoga a vinculação, complexidade, afetação,
mutualidade. Relação chama e impulsiona para perceber um outro que também
existe, no interior do mesmo dinamismo efetivo e afetivo de tudo ter a ver com tudo.
O critério para as escolhas nem é a posição relativa do momento, nem uma vontade
autoproclamada absoluta, mas a vida que para ser bela quer ser abundante e que se
tem por regra a partilha, então, cobra de cada um que promova esta abundância.
Neste diapasão, “existir e viver é inter-existir e con-viver. Numa palavra, é
relacionar-se. Relacionar-se é poder criar laços e adaptar-se. Fora desta lógica
ninguém sobrevive”377.
Nesta perspectiva, as relações ora estabelecidas questionam os lugares e
modos do como são estabelecidas. Seu ethos não é a abstração, a superficialidade,
o descompromisso, a liquidez, que só fazem esvaziar o sentido real de relação. A
375 BOFF, L., O despertar da águia, p. 63. 376 Cf. BOFF, L., O Destino do homem e do mundo, p. 26. 377 BOFF, L., O despertar da águia, p. 48.
208
existência, como modo de ser constituído pelas relações consigo mesmo, com as
coisas, com o outro e com Deus possui caráter de integração, prenuncia o Infinito.
Esta forma de falar de relações em quatro vertentes busca expressar a natureza
singular da realidade de cada uma delas, sem desconsiderar o todo. Garcia Rubio
expressa esta realidade a partir das narrativas no livro do Gênesis sobre a criação.
O ser humano, ele afirma,
é um ser radicalmente aberto, um ser de relações: relação com Deus vivida na
abertura confiante e na resposta obediente à sua vontade; relação homem-mulher, vivida na mútua reciprocidade e radicada no mútuo respeito à alteridade do outro;
relação com o mundo criado, vivida mediante um domínio responsável a serviço
da humanização de todos378.
As diferenciações expostas nas relações manifestam a particularidade não
só intrínseca a cada uma, mas também a cada ser. A relação não minimiza nem
elimina o ser de cada um, pelo contrário, ela é possibilidade real, gratificante e
enternecedora de vida. Tais diferenciações são, inicialmente, apropriadas para
compreender melhor o que se quer expressar. Na esteira de L. Boff, entende-se que
ele visa uma análise mais profunda de modo a revelar que todas as diversas
relacionalidades sempre estão envolvidas em cada nível.
A vida não se estabelece por alguma natureza fixa e estrutura, mas graças à
imensa variedade de suas relações. Cada pessoa percebe o mundo de um modo
particular. Ela não é só um ser pensante, mas também capaz de pensar e transformar
a relação histórica, capaz de distanciar-se de seu mundo e de voltar-se sobre si,
criticamente e abrir-se ao outro em comunhão. A pessoa humana é a única a
descobrir os gestos e as atitudes coerentes com o universo em evolução à sua volta.
O modo de agir do ser humano deriva da prioridade que se dá às relações.
A ética em relação ao outro depende em parte de quem consideramos como outro.
Isto faz parte de todo substrato humano. De uma ou outra forma, o ser humano
interage com outro ser, modificando o grau de interação ou de consciência.
Desde o ventre materno o ser humano busca estabelecer relações a fim de
viver. A relação não é elemento secundário à vida. O ser humano, geneticamente, é
um ser de relações: intrinsecamente, ele encontra-se inserido numa rede de relações
que compõe o seu mundo. Trata-se de um dinamismo vital que não é só um
378 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p. 142.
209
elemento a mais nesse mundo. A negação das relações é a negação da vida. É no
relacionar-se que se esvai o absurdo, para instalar o sentido que se prefigura na
objetividade e na subjetividade, no exterior e no interior das relações, na abundância
e no desperdício, na crise e na sua superação, no apagar e acender das luzes.
A regra de ouro é a justa medida. Na vida, não há causalidade unívoca, e
sim inter-retro-relacionamentos. L. Boff afirma que a “sabedoria é ver cada porção
dentro de um todo articulado qual bela figura de mosaico composta de milhares de
pastilhas e deslumbrante bordado feito de mil fios coloridos”379.
Oposto a vida, não é a morte, mas a falta de relações, ocasião do sem-
sentido. Esta perspectiva, no viés teológico, equivale ao inferno. A recusa ao
diálogo, à abertura e ao cuidado em amorosidade para com a vida resulta em
experiência do inferno, embrutecimento das relações, processo de desumanização,
em desintegração do sentido da vida.
A violência contra o dinamismo das relações equivale à exclusão. A vida é
construída de interações e criatividade. O princípio criador é um ato de um Deus-
Pai, Filho e Espírito Santo em comunhão recíproca, em relações pessoais para
dentro de si e para fora de si. Toda a criação significa um transbordamento desta
vida trinitária. Toda a humanidade é convidada a participar desta comunhão “para
que todos sejam um” (Jo 17,21). A vontade de Deus de relacionar-se ao não-divino
e fazer participante de sua plenitude de vida, fundamenta seu ato amoroso criador.
“O Deus triúno, que é para si mesmo origem, parceiro e comunhão, permite, por
amor, que o outro de si mesmo tenha parte em sua vida”380. Jesus Cristo é a
expressão da visibilidade máxima da vontade de Deus de relacionar-se, por meio
de sua autorevelação. A Revelação é “Deus em sua livre relação com sua
criação”381.
A compreensão da Revelação enquanto relação é inaugurada pelo Vaticano
II. Este Concílio opera uma passagem de um modelo de proposições a um modelo
de relações entre Deus, em sua autocomunicação, e a pessoa humana, em ser
ouvinte da Palavra. A relação de Jesus com o Pai, e com o ser humano, é a relação
com contornos de revelação, ou seja, Deus abre o seu íntimo, sai do seu Mistério e
comunica o desígnio da salvação. O Evento Cristo aponta a dimensão da revelação
379 BOFF, L., Saber cuidar, pp. 113-114. 380 SATTLER, D.; SCHENEIDER, T., “Doutrina da criação”, p. 190. 381 RAHNER, K., “Observações sobre o Conceito de Revelação”, p. 4.
210
de Deus, isto é, a autocomunicação de si mesmo em Cristo. Isso revela que Deus é
Trino, Relação e Amor382. Deus em sua revelação da gratuita comunicação de si
mesmo, considera a história humana, “desvela a íntima realidade de Deus e sua livre
relação pessoal para com sua criatura dotada de espírito”383.
A recusa da processualidade das relações colocando-se como absoluto da
história e do universo equivale ao pecado. A evolução do universo não significa
uma teoria que se compreende de uma proposição como conclusão de uma outra e
por ela mesmo chega-se à sua explicação ou sua causa ou mesmo sem possibilidade
de sua verificação na prática. Dados muito concretos levam certas pessoas a afirmar
que a vida não surgiu toda de uma só vez e que ela não teve sempre a mesma forma.
Fala-se, pois, de uma evolução da vida. Lee Smolin, físico teórico, acredita que a
ideia de evolução possibilite a ver a vida como processo de contínua novidade. Ele
diz que a vida existe no universo, porque “o universo, sendo ele mesmo um sistema
afastado do equilíbrio, cria, por meio de seus mesmos processos de auto-
organização, as condições que são adequadas à evolução da vida”384. Nesta direção,
de uma concepção evolutiva do universo, L. Boff afirma, “pecado é, pois, negar-se
a crescer. É recusar-se a evoluir. É fechar-se sobre si mesmo e seu mundo. É
recusar-se a abertura infinita”385.
Por conseguinte, no dizer que a relação é vida está implicado a existência.
A existência encontra sua visibilidade e inteireza na relação. Em Deus, a ontogênese
presentifica seu desejo de relacionar-se na liberdade e na autonomia com todas as
criaturas. Por esta afirmação, o ser humano possui a capacidade de estabelecer
relações com todo existente. Portanto, a existência é abertura para as relações e as
experiências cotidianas sempre são um acontecimento existencial e que se realizam
e ganham sentido nas relações.
Na contrapartida, algumas correntes questionam e obstaculizam uma
relação que se quer irradiação em todas as direções. Não caberia aqui tratar das
diversas correntes surgidas ao longo da história. Neste particular, convém recordar
o empirismo, porque leva a um ceticismo radical, e o irracionalismo por ser uma
abdicação das possibilidades e potencialidades e uma rendição às dificuldades da
382 Cf. CONCÍLIO VATICANO II., “Dei Verbum”, n. 2, p. 122 383 RAHNER, K., Curso fundamental da fé, p. 208. 384 SMOLIN, L., The life of the cosmos, p. 159. Tradução minha. 385 BOFF, L., O despertar da águia, p. 159.
211
existência. O empirismo defende que todo conhecimento, digno deste nome, tem de
apontar pelo menos uma via possível de teste experimental. Por esta via, ele coloca
a impossibilidade de qualquer outro conhecimento objetivo da realidade. Logo, as
relações só aconteceriam em nível subjetivo. Como ficaria realidades não
demonstráveis pela razão como a gratuidade, o amor, o perdão, testemunhados nas
relações? Já o irracionalismo, ao contestar o poder da razão, afirma a liberdade
alógica, ou que as ‘escolhas’ seriam meras manifestações dos processos primários
do inconsciente. O querer não iluminado quer pela razão quer pelo amor torna-se
um tirano, exatamente pela ausência de Sentido. Nesta perspectiva, de não
concordância entre o conhecimento com o ser, as relações seriam meras abstrações,
indemonstráveis, não imprimem nenhuma marca no ser. Ao destacar o caráter
irracional do absoluto e transcendente, abre-se à questão de a criação do mundo por
Deus ser um mito, visto a criação ser de origem não baseada numa razão
demonstrável, logo, ela é irracional386.
Desta forma, nem a hegemonia de uma subjetividade ou de uma
objetividade podem fazer o encontro do ser humano com sua relacionalidade –
como se a percepção fosse puro conhecimento de uma realidade única, absoluta. L.
Boff pergunta se haverá uma realidade de sentido construtora da busca emergente
pós-moderna. Em outras palavras, se haverá uma realidade sem hegemonia e sem
dependência de um único saber, mas seja tão simplesmente uma estrela a guiar. A
resposta se encontra no “horizonte de um sentido globalizador”, firmado no
imperativo categórico de integração e cuidado com a vida no presente e no futuro.
Oposta à hegemonia ou concorrência de uma única corrente de pensamento, ele
propõe a revalorização do logos, como princípio ordenador da vida unido ao pathos,
como capacidade de sentimento profundo. A vida, e todo seu sistema, reside na
capacidade de relação, indefinida, sempre aberta, capacidade exercida a partir da
experiência e da intelecção e da amorização.
Para L. Boff, a ética é o espaço onde emergem as relações de integração do
ser, cujo fio condutor é a esperança latente por um jovial entrelaçamento da
existência, mais alto e integrador. Afirma ser a espiritualidade o lugar da relação e
386 A possibilidade de uma existência fora da representação concreta pelo sujeito não tem sentido,
isto é, seria uma contradição. As afirmações bíblico-teológicas seriam um mito, isto é, uma fantasia.
Poderia também ser exemplificado o romantismo como concepção idealista. Ao ancorar-se no
sentimento estabelece uma relação de absoluta dependência em relação a Deus, ao que retira do ser
humano sua liberdade e responsabilidade.
212
irradiação dessa nova trama, o lugar de religar todas as coisas para com o sentido
da vida387. A busca humana pelo sentido da vida é mediatizada pelas relações, as
quais possuem caráter de objetividade e subjetividade, de finitude e infinitude,
complementares. O desejo do infinito fala do desejo de ser pessoa humana, de
humanização, e fala de uma busca do sentido da vida. Presencia uma confiança e
alegria maiores que se pode planejar, de modo a ultrapassar toda a imanência e
transcender todas as pretensões.
O ser humano, pela sua própria existência é chamado a ultrapassar-se, a sair
de si e a viver uma existência de um futuro luminoso de promessa. A negação desta
relação fundante ou ainda o estabelecer centro de sentido numa realidade exógena
equivale a tornar-se indivíduo criador de uma história obscura e ameaçada por
catástrofes cósmicas. Na vertente da busca humana do sentido da vida entrecortada
pelas relações como chave de integração da vida, verifica-se uma presença
originante e fundante desta busca. Esta presença de plenitude torna jovial e alegre
a busca e que faz realização de vida o encontro com este sentido vital. Por
conclusão, a pessoa não busca o sentido encerrado em si mesma também
experimenta que seus empreendimentos não se encerram na imanência da vida,
antes apontam para um bem maior.
Na esteira teológica de Leonardo Boff, a ex-istência humana da busca pelo
sentido da vida transparece uma antropologia e um mistério de transcendência.
Perfaz uma compreensão holística, complexa, integral da vida, em processo a partir
de dentro que irrompe para relações de fora, num movimento endógeno. Sua
sustentação é princípio de que a pessoa encontra seu ser verdadeiro em um viver-
com, de modo que experimenta que o fundamental não é o eu, mas o eu-tu, que em
sua profundidade, é ressonância do Tu divino.
4.3. Três dinamismos reveladores do sentido da vida
A teologia de L. Boff apresenta uma antropologia horizontalizada para o
infinitamente e transcendente, Deus-Trino. Neste horizonte, o ser humano é um
projeto aberto ao infinito. Vive a tensão permanente entre construir-se na
387 Cf. BOFF, L., Ética da vida, p. 7.
213
historicidade, sem ser preso a ela e sim orientado para o futuro. Pela fé bíblica, o
ser humano vive a dinâmica de ter à sua frente o passado e atrás seu futuro. À sua
frente, sua vida está segura no Deus promessa-cumprimento em fidelidade em
ternura e cuidado. A destinação do ser humano é a vida ressuscitada em Cristo.
Porque o ser humano experimentou a vida realizada em Jesus Cristo, sabe que a
felicidade é promessa de concretização. O destino derradeiro que aguarda a
humanidade e o universo é a participação de todas as coisas no Reino consumado
da Santíssima Trindade.
Atrás de sua visão, o ser humano tem a liberdade criadora de se construir na
história. É vivendo e refletindo a vida que o ser humano descobre o futuro da vida.
Mas o futuro é aquilo que ainda não é. No Cristianismo, pode-se falar do futuro
porque no ser humano há o ser e também o poder ser, ou seja, possibilidade e
abertura para um mais: mais alegria, mais justiça, mais solidariedade, mais vida. As
afirmações de futuro são explicitações do que está implícito, não são irrealidades.
A história é para ser assumida. O passado de hoje é cultivado pelo futuro de ontem.
O ser humano é um ser de relações com direções múltiplas, até para o
Infinito: quer sempre mais que sua realidade concreta, por isto, nenhum ato,
nenhuma dimensão concreta, esgota o dinamismo do seu querer. Espera, planeja e
deseja manipular o futuro. É projeção para um sempre mais, para a surpresa que
está fora de sua pré-visão, para o ainda-não. Como já foi dito, não possui o centro
em si mesmo, embora o tenha dentro de si. Não se deixa enquadrar em moldes
estabelecidos, antes busca ser agente participativo em todo processo vivencial.
Construtor de uma história única, o ser humano faz sua experiência do
mundo, e no coração dele, do mistério do mundo, isto é, da transcendência. Assim,
descobre Deus que emerge como experiência na história, mas sempre para além e
aquém dela. Para o autor em pesquisa, afirmar a transcendência de Deus significa
que Ele perpassa e ultrapassa todo e qualquer horizonte do possível. Por isto mesmo
em cada situação a humanidade tem nele sua morada. Contudo e embora dentro
Dele, busca também o sentido que está para além de tudo, que não se desvela na
história.
Quando o ser humano se empenha na busca pelo sentido da vida na sua
realidade-história, ele se encontra colocado diante de uma realidade concreta,
conquanto parcial, desta totalidade. A busca pelo sentido inclui todas as dimensões
da vida na tessitura da história, pois a existência humana aparece sempre como
214
dinamismo de relações. Por isto mesmo, a linguagem mais apropriada para falar ser
humano deve ser mais narrativa do que descritiva mais de caráter dinâmico e
processual do que categorial ou conceitual.
O esforço reside em partir da dimensão intrínseca do ato do Deus-Trino-
criador, isto é, um ser humano criado-amado-livre. O ser humano é aberto à
possibilidade de escolhas livres. De modo que pode transformar, do seu jeito, todas
as experiências e conhecimentos num ato de amor e afirmação do universo, ato de
entrega desinteressada ao outro e de abertura a Deus. Ou, também pode negar tudo
isto e viver um projeto de rebelião contra o universo e tomar atitudes de exclusão.
Suas escolhas podem vir a constituir uma qualidade nova da criação.
A busca humana pelo sentido atinge o ser humano por inteiro. Por ela a vida
dos seres é afirmada e novos espaços vitais são abertos. A vida se vê resultado de
um nó de relações para todas as direções no interior de um envolvente dinamismo.
Ela é tecida de relações, enquanto a pobreza de relações é enfermidade e sua
ausência é morte total, que em si mesma é sua contradição.
A história presentifica para o ser humano que ele tem um começo, ao mesmo
tempo revela um futuro a ser construído. Isto significa que ele está em gênese. Ele
se constitui como um ser de existência aberto para o futuro. Deus emerge de dentro
dessa experiência como o futuro do mundo, como a Grande Promessa para o
coração humano, como o abraço ao amado que a saciedade não desfaz. Na esteira
do teólogo L. Boff, o ser humano está em processo contínuo de construção, por isso
a existência humana pode ser dita como antropogênese. Mas não só o ser humano,
todas as criaturas estão em permanente evolução, em processo de vir a ser.
Se for válido afirmar que a importância atualmente dada à história preparou
a compreensão dinâmica do que seja o ser humano em todas as suas dimensões,
coerentemente, é possível afirmar uma visão histórica dinâmica evolutiva para a
vida. Outrossim, criação e evolução não estão em concorrência, como já foi dito.
Muito simplesmente, a evolução não pode explicar-se a si mesma, ela precisa da
criação, portanto pode-se falar em criação da evolução. Por outro, a criação não
existe para si mesma, mas para o Reino de Deus, fala-se, portanto em evolução da
criação. O futuro do mundo e do ser humano está intrinsecamente entrelaçado e
compartilhado. As diferentes leituras da realidade, pela teologia e pela ciência,
retratam uma percepção que se põe a serviço da busca humana de um sentido mais
abrangente, de uma busca de sentido para a totalidade da vida.
215
Destarte, esta cosmovisão manifesta a dimensão transcendente do ser
humano e abre-se para o diálogo com o outro, perfazendo um caminho de
construção e enriquecimento mútuo. Permanentemente, o ser humano busca um
sentido que está para além de si próprio. Busca que o aproxima do Mistério tão
transcendente na imanência que se faz em transparência. Ser humano é mistério que
vem do Deus transcendente vivendo e sendo apreendido na imanência. Deus faz-se
transparente.
A reflexão antropológica requer a contemplação do Deus que vem à história
e se faz um, como qualquer um, no meio da humanidade (cf. Lc 4,22;23)
incompreendida e ferida de morte injusta. A vida e a morte de Jesus significam que
Deus mesmo desce ao sheol, e ali institui relações onde outrora havia ausência de
relações, doando, assim, Vida mesmo no meio da morte. E tal postura antropológica
inclui a plena liberdade do oferecer-se ao Deus contemplado. Ela visa o sentido da
vida na orientação da identidade da pessoa humana que encontra um dinamismo
que se perfaz em ser mistério de sentido. Justificado por Deus ser amor que se
comunica e estabelece comunhão, em abertura mútua, reciprocidade de relações
para dentro e para fora de si mesmo.
O dinamismo relacional do Deus-Trino que se comunica como comunhão
de amor, convoca o homem e a mulher à participação na circularidade de sua vida
para assim realizar sua existência histórica aberta às relações em todas as direções,
construindo sua busca pelo sentido na integração da vida.
4.3.1. Ser de existência – antropogênese – cosmogênese
Desde as origens da vida nas fontes bíblicas a existência é descrita em
função da relação pessoal de Deus que cria a vida numa comunicação dialógica com
o ser humano. A narrativa no primeiro capítulo do Gênesis inicia, não
imediatamente com a criação do humano, mas, por assim dizer, pela criação de um
estofo providencial e aprazível para a vida. Ser criatura de um Deus comunicante
de vida é condição fundamental da existência de todos os seres vivos. Esta condição
afeta a existência na sua totalidade.
216
A antropologia teológica principia por situar o ser humano como criatura de
Deus, num todo maior da criação do mundo. O centro da compreensão cristã da
existência humana é a pessoa enquanto ser livre e aberto para a autocomunicação
de Deus. Por ser narrativa e não uma cronologia histórica, a criação do mundo e do
ser humano não está oposta, nem do homem e da mulher hierarquizadas. Deus cria
a vida e vive na vida. Deus é o Deus da vida, de toda vida, e não somente da vida
humana. Em outras palavras, Ele não é da ordem da funcionalidade. Ele é
visceralmente a favor da vida.
A criação principia a história dentro de Deus. A encarnação do Filho
presentifica Deus na história, pois Ele mesmo se faz história; Deus-conosco. O
Filho Jesus ao entrar na história, assume suas limitações e fraquezas, menos o
distanciamento do Pai. “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por
causa de nós, a fim de que, por ele, tornemos justiça de Deus” (2Cor 5,21). É um
só Deus, uma só fé.
O Deus experimentado e vivido pelo Cristianismo não é somente o Deus
transcendente [...] é o Deus que se fez pequeno, que se fez história, esmolou amor, se esvaziou até a aniquilação, conheceu a saudade, a alegria da amizade, a tristeza
da separação, a esperança e a fé ardentes388.
A afirmação do Deus-Trino em criar o mundo não estabelece um dualismo
entre Deus e mundo. Ao contrário, ela afirma a presença da Trindade na história, o
transcendente adentra o imanente. Um só Deus, “cria o mundo e logo faz dele sua
morada. Ele o chama à existência e, ao mesmo tempo, manifesta-se através da sua
existência. O mundo vive da sua força criadora e ele vive no mundo”389.
Uma leitura da Sagrada Escritura, de maneira mais específica dos primeiros
dois capítulos do livro de Gênesis, que seja predominantemente autoritária e
exclusivista estabelece valores e empreende modos de vida, que podem acarretar a
desintegração e a desorientação, e em última instância, ceifar muitas vidas. Tal ideia
388 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 214. 389 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 34.
217
seria possível numa leitura de cunho fundamentalista, isto é, negligente da
exegese390.
Neste contexto, é constante encontrar em L. Boff uma crítica a
autocentração do ser humano em si mesmo. Coerente com isso, ele afirma que a
integração humana exige, “tirar o ser humano de seu falso pedestal e de sua solidão
onde se autocolocou: fora e acima da natureza. É seu antropocentrismo ancestral e
seu individualismo visceral. Para ser autêntico, ele inter-existe e co-existe com
outros seres no mundo e no universo” 391. A narrativa bíblica das origens inclui a
humanidade e a terra, sem haver espaço para o dualismo e o antropocentrismo. A
condição originária da existência humana não é um projeto definido e acabado, mas
uma existência em antropogênese.
Na criação do mundo, Deus permanece Deus, contudo Ele está totalmente
em suas criaturas. Descarta-se, por esta via, o panteísmo que só afirma uma
identidade em Deus enquanto absorção do mundo, sem ressaltar também sua
diferenciação. Em Deus pode-se reconhecer uma auto-diferenciação e uma auto-
identificação. “Deus está, simultaneamente, em si mesmo e fora de si. Ele está fora
de si na sua criação e simultaneamente em si no seu sábado”392.
A narrativa da criação da vida, fala, duplamente, de liberdade e
continuidade. A atuação de Deus revela-se na criação primariamente como diálogo
de amor. A história e seu desenvolvimento são também obra humana, participação
em Deus, construção de relação entre o ser pessoa e seu contorno, físico e social. O
próprio desejo relacional do sopro da vida revela o caráter de continuidade da
criação. A fé na criação é encontrada na relacionalidade de um ser existente, na
história.
390 A exegese bíblica moderna tem dado atenção especial ao caminho percorrido pelas tradições
antes de se fixarem por escrito. Esta exegese mostra que os escritos bíblicos fazem parte de um
processo longo de amadurecimento da própria fé. Fatores históricos pós-modernos (globalização, avanços tecnológicos, descobertas científicas, bem como, colapso econômico e político, prioridade
do aparecer sobre o ser, desastres químicos, catástrofes climáticas e ecológicas, questões de gênero,
crise de sentido da vida, etc.) mostram a impossibilidade de se reduzir a realidade a processos
lineares. Um texto não tem um único sentido. O estudo exegético busca esclarecer os seus
pressupostos metodológicos. É digno de nota o trabalho, por exemplo, de Carlos Mesters
incentivador da leitura popular da Bíblia, e E. Käsemann, conforme o autor em pesquisa,
considerado o maior dos exegetas. Ele fundamenta seu método na busca da superação da dicotomia
entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. 391 BOFF, L., O despertar da águia, p. 21. Urge uma mudança do ‘eu’ para o ‘nós’. Cf. BOFF, L.,
“O individualismo tem ainda futuro?”. 392 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 34.
218
O ser humano conjuga em si o ex-istente e o existente em relação.
Característica fundamental do ser pessoa, explica o teólogo, ele “ex-iste voltado
para fora (ex), em diálogo e em comunhão com o outro ou com o mundo”393. Nesta
dinâmica de doação de si, “é saindo de si que fica em si”394. A reflexão
antropológica nunca é fechada, determinista, acabada, nem muito menos, finalizada
no ser humano. A antropologia é uma antropogênese. E por ser também relação e
seu conhecimento ter necessariamente caráter aberto, o ser humano e o cosmos
estão em fase de gênese, em permanente evolução. “Não somente os humanos têm
história, mas todos, também os demais seres, pois todos estão dentro do processo
evolutivo”395.
Mesmo um olhar superficial constata a dependência do ser humano perante
a criação não-humana. Ele precisa, por exemplo, espaços de vida, produção de
alimentos, do avanço da técnica, um certo tipo de relação, o que o ausenta, ao menos
em princípio, de um antropocentrismo prático.
Interessante notar que o estudo da antropologia teológica quando aberto ao
diálogo com as ciências, respeitados seus respectivos âmbitos, para além de uma
atitude pacificadora ingênua e de recorrentes leituras opositivas, presencia um
movimento dialético do cosmos ao ser humano, onde tudo é relacional. É, pois, uma
dialógica que permite afirmar que no universo tudo é uno. O diálogo entre fé e
ciência enriquece a vida, em todos seus aspectos, pois faz despertar em ambas a
experiência do maravilhamento. Neste diálogo, a teologia poderá aumentar a
inteligência da fé e atualizar as implicações para o depósito revelado, ao “observar
com a ciência o antecedente e mais simples é essencial para apreciar o advento do
subsequente e maior” 396. Ainda nesta via, a teologia pode compreender o ser
humano como criatura num mundo em processo de criação. Um mundo não
acabado, mas em processo espera um diálogo constante. Para a teologia, com
certeza há influências recíprocas na acepção de relação e criação. A reciprocidade
propõe “mostrar como a reflexão teológica pode propiciar um contexto amplo e
generoso para a atividade científica” 397. O Verbo eterno não está em referência
393 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 33. 394 Id., O destino do homem e do mundo, p. 56 395 Id., O despertar da águia, p. 48. A mesma ideia é encontrada em outras de suas Obras, como Id.,
Ética da vida, p. 67; Id., O Destino do homem e do mundo, p. 18. 396 HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, p. 21. 397 Ibid., p. 33.
219
somente a estágios temporais, antes, Ele qualifica o tempo; Ele é o futuro que
incide, sem dúvida, no presente398. A ideia de um mundo que, por sua própria
história busca a perfeição, provoca pensar que a escatologia não é mero devaneio,
mas está inscrita na intimidade mesma do ser do mundo.
Os processos históricos, enquanto provocam pensar, possibilitam a
descoberta do fundamento da fé. No entanto, eles não são a presença absoluto-
inequívoca de Deus, como poderia pressupor uma doutrina que afirma que o mundo
e Deus são a mesma coisa, ou seja, o panteísmo. Falar da fé no desenvolver da
história, significa, em negativa, que, deixada a si mesma ela não descobre seu
sentido, pois não é possível ao ser humano alcançar o conhecimento de sua
totalidade. Por outro lado, em positiva, significa que dentro dela está o desafio da
busca do sentido. A fé cristã, num primeiro momento, descortina um sentido que
ilumina a história. Num segundo momento, encontra o sentido na própria história,
na medida em que esta se torna o espaço do encontro e do diálogo, com Deus, na
Encarnação. Este sentido projeta uma luz definitiva sobre toda a história. A
construção histórica do ser humano pelo ser humano testemunha uma dimensão
transcendente dentro dela mesma399.
Esta visão da vida em processo de gênese está em referência aos estudos
com relação com a origem da vida na Terra. A cosmogênese e a antropogênese
seriam a condição originária da evolução. O universo em evolução compreende a
vida como uma realidade aberta, com interações criativas e integradoras, com
propósito inclusivo de todos os seres. O tema da evolução cosmológica, incluída a
evolução da vida, faz parte do labor humano de encontrar uma explicação científica
para o acontecimento inusitado e bastante improvável do surgimento da vida400.
A abordagem da vida com outra linguagem que não a científica expressa
nada mais do que a busca do ser humano de apreender uma experiência que o
envolve, porém, ao mesmo tempo, sente que algo maior e transcendente o
ultrapassa. Dentro do humano abriga-se o desejo do infinito. A partir desta
398 GNILKA, J. Jesus de Nazaré, p. 132. 399 Cf. LADARIA, L. F., Antropologia teológica, pp. 32-36. 400 A teoria da evolução afirma que para o constituir da vida, seus elementos foram formados em
estrelas, que explodiram, espalhando tais elementos por todos os lados. Depois de disseminados,
foram reunidos em determinado ponto. Este ponto, por sua vez, deveria ter condições bem concretas
para permitir a interação dos elementos entre si e com o ambiente, um suprimento de energia para
assim permitir o surgimento da vida. Ora, sabe-se que isso aconteceu em pelo menos um cantinho
do universo, a saber, o planeta terra. A pergunta que se coloca é: teria sido isso acaso ou providência?
220
experiência, o ser humano abre-se para as relações a fim de buscar um sentido mais
profundo da realidade. A persistência desta busca de sentido e profundidade desvela
uma força inominada de separação e atração ao infinito.
Neste assunto, E. Morin afirma que “desde a agitação térmica inicial, uma
dialógica indissociável acontece entre aquilo que separa, dispersa, aniquila e o que
religa, associa, integra”401. Sendo assim, o mundo que surge pela separação,
configura-se na relação entre o que é disperso. A vida surge deste entrelaçamento
de separação ou desorganização, que se muda no movimento de organização e
complexidade superior. No dizer de E. Morin temos na formação da vida: uma auto-
eco-organização.
Há uma força misteriosa de separação e unificação. Uma separa ao infinito
a outra extraordinária força unifica mesmo na dispersão, e religa todo o universo.
Há no cosmos um princípio ordenador e criador que fez existir a vida, mantendo-o
em expansão, involução, evolução e revolução permanente. Este princípio, para
quem o acolhe, nega, por si mesmo, que o universo seja criação do puro acaso ou
acontecimento aleatório.
Nesta aproximação, a questão da origem da vida impõe não mais uma visão
na ordem da reprodução incessante do eterno retorno. Sua origem e seu futuro
seguem uma ordem de complexidade crescente a partir de um fluxo permanente de
inter-retro-relações. A vida possui uma tessitura dinâmica, e seu dinamismo é
verdadeiramente criador402. Impulsionado pelo desejo de encontrar sentido em tudo,
o ser humano busca o conhecimento deste mistério de religação invisível e
universal, integrador e ético, enquanto experimenta o mistério de um sentido
velado, um princípio fundamento de religação de tudo com tudo.
A ciência moderna, muitas vezes, é apresentada como patrocinadora de uma
visão determinística da história. No entanto, a visão determinística não se deve à
ciência, mas ao cientificismo. Ela, por si, está situada em uma mudança histórica
401 MORIN, E. O método VI, p. 31. 402 LADRIÈRE, J. “Anthropologie et cosmologie", p. 159.
221
em que a existência está à mercê da decisão humana403. Esta decisão espera que se
supere a exacerbada globalização e o cientificismo. Na leitura captada por L. Boff,
a humanidade não está mais sob o controle de um paradigma que plasmou a história
durante séculos, “de uma época de mudança passamos à mudança de época”404. A
história não é determinismo. Pelo diálogo antes mencionado, Deus pode continuar
sua criação, dando sentido à vida, ainda que a pessoa possa dizer não a este dom.
Trata-se de uma exigência interna e liberdade criativa do ser pessoa a não
acomodação ao que já foi apreendido. A vida, enquanto realização do ex-istente
humano, não se processa em parâmetros determinísticos, antes, é constituída de
processos contínuos de integração. A história, nesta mudança de época, está a
revelar uma existência em processo, isto é, em fase de gênese e de expansão. Daí
se pode falar em antropogênese. E porque está sob o regime de complexidade de
relações, não só o humano, também “o universo é evolução. Ele constitui uma
realidade aberta, sob o processo cosmogênico”405. A evolução do universo faz
despontar a genuína questão pela constituição do universo e da terra, do nascimento
da vida e do aparecimento do ser humano.
Antropologia e cosmologia não são, aqui, entendidas no nível de fusão ou
hierarquia. O universo não mais pode ser pensado num círculo antropocêntrico, nem
tampouco, natureza ser pensada como matéria prima ou condicionamento
extrínseco dos seres vivos. Certo que entre as duas há uma separação e que cada
uma possui seus direitos. Contudo, deve ser pensado uma articulação entre
cosmologia e antropologia a partir do parentesco estrutural e da mediação efetiva que
elas possibilitam.
Não podemos nos contentar em prolongar uma antropologia em direção da
natureza, pelo atalho, por exemplo, de uma reflexão sobre a noção de “mundo”,
403 Pode ser exemplificado o progresso científico-tecnológico resultando num domínio
extraordinário da pessoa em modificar sua natureza. O Projeto Genoma, a utilização de próteses, a
manutenção e controle da vida por meio de máquinas, colocam questões revolucionárias ao conceito
de ser humano. O avanço biotecnológico no anseio de superar os limites questiona radicalmente o
conceito de ser humano. Na tangente, lança-se a pergunta se o demonstrativo final resultará num
humano ou será superado pelo cyborg. Enfim, o progresso biotecnológico fará ‘evoluir’ um ser
humanizante em relações para todos os lados? Ora, o humanizante não será de forma alguma apenas
mais eficiente, mas justamente, mais humano. 404 BOFF, L., O despertar da águia, p. 26. 405 Ibid., p. 48.
222
nem tampouco prolongar uma cosmologia em direção do ser do homem, pelo
atalho, por exemplo, de uma reflexão sobre a noção de “informação”406.
Em sua complexificação, o ser humano não só conhece, mas também tem
consciência que conhece407. Mas isto não é tudo. No mais profundo, ele é habitado
por inquietações, buscas, questionamentos existenciais que cedem lugar à
contemplação. O verdadeiro, agora, é captado na experiência do belo. O ser humano
conjuga em si o pensamento e a contemplação para encontrar o Infinito revelado.
Mesmo que na sua exterioridade, empenha em construir-se independente do
Transcendente, tornando-se mais racionalista. A arte, a festa, a poesia, a parábola,
a admiração pertencem ao seu mundo. Por diversos meios, Deus se comunica e se
faz compreensível. No olhar contemplativo para a natureza, o salmista dialoga com
Deus sobre sua origem: “Quando vejo o céu, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas
que fixaste, que é um mortal, para dele te lembrares, e um filho de Adão, que venhas
visitá-lo?” (Sl 8, 4-5). O teólogo de Hipona exclama a beleza que ora contempla
“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis
dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos!”408. São expressões da linguagem da
criação que falam do reconhecimento da Graça, gesto de inteligência e de afeto
humano409.
A cosmogênese é posta em marcha pela ação criadora livre de Deus. A nova
cosmovisão não é mais aquela de uma ordem acabada ou da inteligência de um deus
alheio ao universo. A vida se mostra verdadeiramente como ato de eterna e criativa
jovialidade. A visão de mundo definida a partir do cosmos, agora, abre-se para uma
concepção de cosmogênese; processo contínuo e permanente de engendramento e
de evolução.
É esta mudança de época que T. de Chardin pretende examinar, colocando
à mostra a visão de um universo em movimento. Nesta via, emergem questões
vitais. Como fazer relação entre uma realidade gigantesca como é o mundo e a
406 LADRIÈRE, J. "Anthropologie et cosmologie", p. 155. Tradução minha. 407 SMULDERS, P., A visão de Teilhard de Chardin, p. 55. 408 AGOSTINHO, S., Confissões. (Livro X, n. 27), p. 265. 409 No dizer de Chenu, Deus se utiliza da Literatura, da estética para nos permitir compreendê-lo:
“se Deus fala aos homens falará a língua dos homens, não somente sua gramática, mas suas imagens,
suas categorias, seus procedimentos, seus gêneros literários, seus raciocínios. Todos os registros da
vida no Espírito se deram por um falar humanamente a Palavra de Deus”. Deus se dá a comunicar a
nós seres humanos por meios diversos e compreensíveis a cada pessoa. Os salmos cantam, os poetas
recitam, os pintores embelezam a moldura da vida... Àquele/Àquela que se põe a escutar, tudo fala
de Deus. CHENU, M.-D., "La literature comme lieu de la théologie", pp. 70-80.
223
humanidade? Para onde vai este movimento de evolução? Para um sentido,
concêntrico, ou para o sem-sentido, o nada? O sentido só é imanente aos fenômenos
e a totalidade é absurda? Haveria uma relação concreta que dá unidade a toda
realidade?
Teilhard de Chardin “vê o mundo inteiro dirigido para o homem, e acima
dele, para o Filho de Deus feito homem”410. A existência num contexto de evolução
significa que o ser histórico, a partir de seu interior e de sua dinâmica, e não como
um ente separado e lançado ao acaso, já existe em processo de autossuperação, pela
via da interação. ‘Evolução’ suscita a imagem do desenvolvimento enquanto algo
dobrado ou envolvido411. A existência sob o signo da evolução está sob o efeito de
desvelamento, do ser envolvido. A fé cristã compartilha que o ser é envolto por
Deus, de sorte a ter nele seu existir. Trata-se, portanto, de admitir ou não um sentido
real e último para a Totalidade.
O impulso cristão é convite a estar em sintonia e síntese com o Mundo. A
mística cristã, para T. de Chardin, não cessa de fazer avançar as perspectivas de um
Deus pessoal, não somente criador, mas engendrador e totalizador de um universo
que Ele reporta a si pela vida da evolução.
Jon Sobrino coloca T. de Chardin no mesmo caminho daqueles que
atingidos pela fé, sentiram a necessidade de apresentar um ‘título’, isto é, uma
palavra modelar para descrever a realidade Jesus, em conformidade com as
necessidades históricas e culturais. Nesta permanente inspiração do Novo
Testamento, desde os inícios da fé, “é legítimo que Teilhard de Chardin, num
contexto evolutivo, tenha chamado Cristo de o ponto ômega da evolução”412.
Desde o princípio, Deus quis que o Filho fosse homem e para isso criou o
mundo recapitulando tudo nele. Ele é o ponto de convergência, da unidade do
divino e do humano. O Cristo cósmico, afirma L. Boff, é a resposta que T. de
Chardin buscava ao problema da unidade de toda a realidade413. A preeminência de
410 SMULDERS, P., A visão de Teilhard de Chardin, p. 31. 411 FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia, pp. 947-952 412 SOBRINO, J., La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas, p. 121. 413 Cf. BOFF, L., Evangelho do Cristo cósmico, pp. 10-17. T. de Chardin buscou uma ligação da
vida futura com a vida presente. Por muito tempo, a teologia cristã deteve-se no futuro escatológico,
como algo meramente futuro. Havia um esquecimento de que a escatologia é também parusia, isto
é, um já estar no mundo presente como resistência às culturas de negação e morte, no caso aqui,
representado pelo mundo moderno. O pensamento moderno pretendia colocar o indivíduo no lugar
de Deus cuja morte entendia ser importante para que o indivíduo-cidadão fosse livre. EUVÉ, F.
“Deus entre ciências da natureza e teologia cristã”.
224
Cristo, como o Primogênito de toda a criação é seu ponto de partida. Em Cristo,
“foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as
invisíveis. Tronos, dominações, principados, potestades: tudo foi criado por ele e
para ele. Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele” (Col
1,16-17).
Como diz T. de Chardin, o corpo de Cristo faz-se encarnação. Jesus, o Verbo
eterno, está presente em toda realidade humana e cósmica; compreendido de
maneira patente ou anônima. Nele, a autocomunicação de Deus atinge sua
culminância. A começar pela criação tudo foi feito por meio dele, e tudo está
incluído nele que é Deus pessoalmente. A Encarnação não é meramente um fato
bruto do passado. É o abrir-se de uma história humana atingida pela fé. Encarnação
constitui um fato histórico em que “Jesus foi inserido dentro da humanidade. Por
aquilo que é homem-corpo, Jesus assumiu um pedaço vital da matéria. Em razão
disto, se relaciona com nosso mundo em cosmogênese”414.
Verifica-se uma comunhão com a Igreja quando ela reflete sobre a revelação
de Deus a partir da realidade, no Concílio Vaticano II.
O próprio Verbo de Deus, por quem tudo foi feito, fez-se homem, para, homem
perfeito, a todos salvar e tudo recapitular. O Senhor é o fim da história humana, o
ponto para onde tendem os desejos da história e da civilização, o centro do gênero humano, a alegria de todos os corações e a plenitude das suas aspirações415.
A pessoa humana só encontra seu verdadeiro caminho de integração nesse
encadeamento, nesse processo evolutivo que caminha em direção ao ponto ômega,
o Cristo. Desde seu ponto inicial, a vida horizontaliza para o ponto Ômega, lugar
supremo da evolução humana, e verdadeira humanização em Cristo. O Cristo,
Jesus, é o Alfa e o Ômega. Dentro deste processo, a criação da vida permite entender
o mundo a partir da Encarnação, e por consequência, abrir-se para o sentido na
história surgido de forma pessoal e humana em Jesus de Nazaré. O mistério de
Deus-Trino-criador é o teor da Revelação. O Verbo de Deus é a síntese, o ponto
ômega do processo da evolução, a plenitude do humano.
Esta dinâmica, o cosmos e o ser humano em permanente processo, mostra a
dimensão de cuidado para com o outro, funda uma nova lógica para as relações. Por
414 BOFF, L., Jesus Cristo Libertador, p. 226. 415 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n.45, p. 193-194.
225
isso pode-se falar em cosmogênese e antropogênese. Esta, por sua vez, torna-se
muito mais abrangente, torna-se a cristogênese. O ato amoroso e gratuito de Deus
não termina no ser humano, mas orienta-se, graças a Cristo, para a integração plena
de todas as relações. O ser humano junto com todas as criaturas está sob o cuidado
providencial de Deus.
A busca humana pelo sentido da vida encontrará, decerto, sua culminância
dentro deste processo de evolução ascendente, complexo e convergente para Cristo.
Em constante movimento de busca, o ser plenamente humano é investido de um
mistério que o transcende e perpassa toda sua existência, e confere pleno sentido à
vida.
4.3.2. Mistério de transcendência –transparência – imanência
A narrativa bíblica fornece o material fundante e indispensável à reflexão
teológica. Esta é uma experiência que, por si mesma, é confrontada com a vida
cotidiana do ser humano. Dizer mistério significa tratar de uma realidade
experimentada, que, contudo, ultrapassa o discurso racional. Pelo Mistério, Deus se
manifesta às pessoas, e nelas revela o sentido da existência humana.
O ato criador de Deus evidencia seu mistério em todos os seres vivos.
Inversamente pode-se também afirmar: a vida põe em evidência um mistério
próprio do Criador. Um só mistério. Em Deus não há duplicidade, mas unidade: O
Deus que é em si, é também o Deus que é relação para fora de si416.
O mundo criado não é o lugar absoluto da existência de Deus, mas o lugar
preparado por Deus, através da criação. Igualmente, o mundo não existe por si
mesmo, não encontra seu sentido só por si mesmo. Ele existe e encontra seu sentido,
enquanto lugar-presença de Deus. O Deus que é em si, não se trata do eterno Deus
em si como limite do mundo como parecia pensar Newton, mas o Deus criador em
relação para fora de si, isto é, Deus em relação com o mundo417.
416 A base cristológica de Orígenes – escritor da antiguidade cristã – é a distinção entre o que Cristo
é em si (Filho Unigênito), o que é em si e para nós (Sabedoria, Logos, Verdade, Vida) e o que é só
para nós (redentor, caminho, porta, etc.). CROUZEL, H. “Orígenes”, n.1045-1050. 417 Cf. MOLTMANN, J., Doutrina ecológica da criação, p. 232.
226
Nas esteiras desse mistério de Deus para a existência humana e Deus em si
mesmo, enquadra-se o famoso ‘axioma fundamental’ rahneriano: “A Trindade
econômica é a Trindade imanente, e vice-versa". Trata-se do mistério de salvação
comunicado, não uma curiosidade; mistério sem o qual não se realizaria de modo
definitivo e radical, a busca pelo sentido de nossa humanização.
L. Boff assume radicalmente esta proposição, ao tratar de dizer o que
significa a presença da Trindade na história e a história na Trindade. O modo de
Deus estabelecer relações com o ser humano é o modo no qual Ele subsiste. Por
conseguinte, se Ele aparece como relação de Trindade é porque Ele é em si mesmo
Trindade de relação. O Deus que se revela para o ser humano é também em si
mesmo o divino transcendente. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo418.
Tendo como pano de fundo o Mistério da unidade em Deus, a experiência
cristã testemunha que o Deus-Trino de relações não existe num círculo fechado em
si mesmo. O que Deus é, é o Deus que se faz conhecido por sua ação no mundo. A
própria revelação histórica abre as portas para o humanamente possível de se
conhecer Deus.
Contudo, por um lado, o Mistério não se esgota no evento da Encarnação.
Como bem afirma, Gutiérrez, “a habitação de Deus na história atinge a plenitude
na encarnação”419. Por outro, parece ser ilusório pensar que possa ser encontrado
fora da história. A história não é uma contingência para o ser humano. Ela é o locus
de sua existência e realização em todas as suas relações, a dimensão individual e
coletiva de construção da vida. Jesus não é estranho à história humana, isto releva
substancialmente o ser humano.
A fé no Deus-criador afirma que a vida é expressão de um ato de amar
inaugural e criativo de relações. A este ato vincula-se a decisão humana de admitir
ou não um sentido último para a totalidade da vida. De fato, ao dizer que o Criador
é também criativo, significa dizer que ele não nos entregou um sistema fechado,
mas um sistema que oferece várias possibilidades. Somente uma fé comprometida
com a vida é capaz de afirmar um sentido, somente assim ela mostra sua dimensão
de imanência e transcendência. A vida por ter caráter de existência nunca é
abstração. Como já dito, e vale aqui repetir, a existência está para além de uma
valoração que lhe possa ser dada. Ela encontra em aberto um discurso que nem
418 Cf. BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 124. 419 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 112.
227
mesmo está delimitado pelo espacialmente visível, nem se prende à experiência
imanente da história. Ela atesta o ato criador, sua existência na imanência,
ultrapassando em transcendência.
L. Boff faz questão de afirmar que o encontro com o mistério transcendente
Trino acontece dentro da experiência do mundo. Para ele, Deus somente se torna
real e vivo para o ser humano se emergir da radicalidade da experiência do mundo,
como sentido, como mistério que suporta o mundo, como força libertadora420. Sua
teologia não se limita a pensar o mundo, mas deixa-se tocar pela realidade, e dentro
dela encontra o Mistério.
Falar da unidade em Deus é, portanto, falar do sentido do mistério de
transcendência atingido e apreendido na imanência. Significa falar de Deus não
acima, nem fora do mundo. A consciência desta unidade de Deus visa expressar o
dinamismo captado no surgimento da vida, a presença de Deus criadora e
principiante no universo, fazendo emergir sua presença na consciência dos seres
humanos.
Deus emerge na história como Aquele que está sempre além, em aberto, na
caminhada, na construção humana, em suma, envolto em inter-retro
relacionamentos. Desde as origens do mundo e da humanidade, “Deus pairava sobre
as águas” (Gn 1,2). A origem da vida diz que a existência é envolvida por Deus, de
sorte que existir é dom. A partir disto, não seria mais admissível uma concepção de
Deus em si, fechado em si ou fora do mundo, que viesse à história para se completar.
Nem se pode continuar afirmando uma teologia de separação na Trindade, a qual
somente seria compreensível num período ainda próximo ao Jesus histórico. “Na
época patrística costumava-se estabelecer a distinção entre ‘theologia’ (doutrina da
divindade das três pessoas) e ‘oikonomia’ (doutrina do Logos em sua encarnação)
”421. Hoje se deve dizer que o Deus que se deixa encontrar na oikonomia é o mesmo
da theologia. É verdadeiro afirmar que o ser humano está dentro de Deus, e que
Deus está dentro do ser humano.
Conforme Paulo, não só Cristo está em relação conosco, como cada uma das
três pessoas. Somos um só com Ele e a própria vida da Igreja também manifesta
esta união. Assim, o Apóstolo visa despertar para o ‘ser em Cristo’. Ora, a fé cristã
não reconhece qualquer cisão com relação à vida. Há só uma união com o Salvador
420 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 9. 421 FRANÇA MIRANDA, M., Libertados para a práxis da justiça, p. 12.
228
e é aquela que se realiza através na comunidade dos fiéis. “Nós somos muitos e
formamos um só corpo em Cristo, sendo membros uns dos outros” (Rm 12,5).
“Aquele que nos fortalece convosco em Cristo e nos dá a unção é Deus” (2Cor
1,21). Esta união operada pelo Espírito. “Evidentemente, sois uma carta de Cristo,
entregue ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus
vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações” (2Cor 3,3).
Os antigos manuais acentuavam uma diferença entre Deus e mundo no
modo de considerar a transcendência de Deus, de modo a estabelecer uma forte
contraposição entre Deus e mundo. Esta visão tem, entre outras, a consequência de
apresentar o Mistério de transcendência e imanência pela via da oposição e
unilateralidade.
Sem fazer juízo de valor, constata-se que a civilização pós-moderna,
marcada pela instabilidade e por novas relações sociais sem precedentes, caminha
para um novo e diferente tipo de ordenamento histórico-cultural. A intensificação
do processo da globalização conecta comunidades e organizações em novas
combinações de espaço-tempo e dos problemas ecológicos, imprime uma nova
cosmovisão na história.
A busca pela nova, e sempre incipiente, compreensão do ser humano
acentua a transcendência de Deus e sua imanência no mundo. Moltmann
desenvolve uma doutrina ecológica da criação, que visa uma nova compreensão da
imanência de Deus no mundo. Esta presença de Deus que penetra no mundo se pode
dizer melhor através do espírito criador. Pois através desse Espírito, o criador faz
morada em suas criaturas, vivifica-as, mantém-nas na sua existência e as conduz
para o futuro do seu Reino. Nesta perspectiva, o Deus criador do céu e da terra está
presente em cada uma de suas criaturas e na comunhão da criação através de seu
Espírito cósmico. A história da criação, pelo Espírito, não está centrada nela
mesma. Ela é ‘excêntrica’, constituída por terra e céu; “a presença de Deus penetra
todo o universo”422.
Deus é o mistério de transcendência presente em todas as coisas existentes
e possíveis, absolutamente além de qualquer horizonte real e possível. Mistério que
antecipa e adentra qualquer desejo e ação humana, “por ser transcendente em cada
422 MOLTMANN, J., Deus na criação, p. 33.
229
concreção, a ele nunca vamos dele jamais saímos. Sempre estamos nele. Embora
dentro, ele está para além de tudo”423, escreve L. Boff.
A própria criação expõe e releva a imanência de Deus. Sua transcendência
veste com cuidado até as ervas dos campos (cf. Mt 6,30-34). Deus não somente está
presente no mundo, como também o mundo está presente em Deus, e, em quem o
reconhece, faz brotar a admiração e a alegria pelas suas obras (Cf. Salmos 8,135,
139, para citar alguns).
Sua íntima imanência é presença da Transcendência em todas suas criaturas,
mesmo se não necessariamente captável pela existência. Deus é Mistério que
sempre se revela, sempre se comunica, sem se confundir com o mundo. Quando
este mistério de transcendência é ofuscado não somente pela sua acentuação
unilateral424, como também por relegar a um segundo plano, torna-se negação ou
da divindade ou da humanidade de Cristo.
O modo de relacionar-se de Jesus adentra na proximidade com o Pai. Jesus
não fala de um Deus transcendental, fora do mundo, mas “refere-se a Ele sempre
numa conexão com este mundo, portanto transparente, no interior de uma
experiência concreta”425. Na expressão de Jon Sobrino, a “realidade última” para
Jesus não é simplesmente Deus. Jesus pregou a respeito de Deus e do Reino. Aquilo
que é determinante para ele é Deus em sua relação com a história da humanidade;
a dimensão transcendente e histórica: uma relação de diálogo, que deixa Deus ser
Deus426.
A palavra-ação de Jesus revela um só mistério, de imanência e
transcendência acontecendo na realidade humana. Nele, o transcendente, se fez
imanente na história. A experiência humana de Deus em Jesus, “celebra a absoluta
auto-comunicação de Deus; canta a radical proximidade do Mistério; alegra-se com
423 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 18. 424 Ainda hoje, as gnosiologias, no que se refere o ser humano, estão expostas a múltiplas polêmicas.
Comumente, encontram-se debates que primam em enfatizar seu caráter monádico de ser sociológico, ou teológico, ou filosófico, ou eclesiológico ou físico. O conceito monádico fragmenta
o ser pessoa humana. Cria-se uma imagem estereotipada de um ser, com aparência de humano,
sucateando o humano, adiando sua plena humanização. Parece, que a busca de um pensamento
complexo ou transdisciplinar, na prática, provoca certo estranhamento. O pensamento de L. Boff é,
desde sua primeira obra, uma busca de pensar a existência humana como nó de relações voltado para
todas as direções. Ser pessoa compreende uma individualidade irredutível, mas sempre aberta aos
outros. Neste diálogo e construção de relações, sua história é parte da história bio-sócio-cultural,
cósmica. Assim, L. Boff trafega pelas diversas disciplinas, sem um anúncio prévio, pois pensa o ser
humano em seu enraizamento pessoal-espiritual-cósmico. 425 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 99. 426 Cf. SOBRINO, J., Jesus, o libertador, pp. 105-110.
230
a benignidade de nosso Deus”427. Ele não fala de Deus através de fórmula ou
tratados de fé, mas em sua pessoa. Suas palavras estão ligadas a situações concretas
da vida, pois em primeiro lugar vinha à contemplação da vida.
Gonzalez Buelta, dirigindo-se a Deus diz: assumistes de tal modo a
Encarnação que não tiveste medo “de comparar Deus com uma mulher pobre, que
varre os cantos com cuidado em busca da moeda perdida entre o lixo da casa. Tu
procuravas ‘pecadores’ (Lc 15,8-10) com o mesmo cuidado e carinho da mulher”.
Na cotidianidade da vida entre o povo, “te encontraste Ti mesmo, rosto feminino
do ‘Reino’ recriando a história”428. É o Filho de Deus, tomando humanamente
consciência de si próprio. É a presença do Espírito que o faz escutar do Pai de quem
ele é o Filho amado (cf. Mc 1,11). Esta presença é para Jesus o núcleo essencial de
sua experiência de Deus. A fé cristã testemunha a presença misericordiosa de Deus
dentro da vida para todos os seres.
A vida do homem Jesus é a vida de Deus mesmo. Nele se encontra, em total
equilíbrio e plena harmonia a transcendência de Deus e a imanência humana,
embora Ele esteja em tudo, mas não tudo é Deus.
Continuamente, a compreensão do Mistério da transcendência e imanência
corre o risco de ficar encerrada em si mesma. Deus é sempre aquele que vive em si
e se dá ao mundo. O mundo é sempre aquele que o recebe. Tal visão é suscetível de
alimentar uma visão dualista: Deus e mundo, sagrado e profano, bom e mal, céu e
terra, graça e pecado. Nela, vigora uma leitura de oposição e exclusão, o que leva a
desintegração do humano ao se interpretar a unidade divina. Supervaloriza uma
única dimensão do Mistério ao que conduz, na verdade, à sua negação. Em suma,
gera, instala e promove uma crise de sentido da vida. De fato, um deus alheio ao
mundo, torna-se um Deus dispensável.
No pensar o Mistério de Deus-Trino, Leonardo Boff sinaliza a presença de
uma outra categoria de linguagem que intermedia e afirma a transcendência e a
imanência. A vida no universo não é passivo receptáculo de Deus, nem opaco à sua
Presença. Em Deus não há duplicidade, nem contradição, Ele não é só
transcendente, nem é só imanente. Ele deixa visibilizar uma outra realidade. Isto
significa que a existência deixa à mostra um Real, que ao mesmo tempo, é diferente
dela. Este caminho, permite introduzir a categoria da transparência, que possibilita
427 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 86. 428 GONZÁLES BUELTA, B., “Rosto feminino do Reino”, p. 21.
231
uma relação consistente de harmonia, positividade, integração da presença de Deus
dentro do mundo e do mundo dentro de Deus. Melhor seria dizer, é experiência de
Deus como transparência do mundo.
Nas palavras de L. Boff, a transparência inclui a transcendência e a
imanência, “ela participa de ambas e se comunica com ambas. Transparência
significa a presença da transcendência dentro da in-manência”429. Esta afirmação
vem da fonte Paulina, onde ele lê "Há um só Deus Pai de todos, que está acima de
tudo [transcendente], por tudo [transparente] e em tudo [imanente] (Ef. 4,6)”430.
Inspirado pelo mesmo Mistério que atraiu Teilhard de Chardin, L. Boff afirma: "O
grande mistério do cristianismo não é exatamente a Aparição, mas a Trans-parência
de Deus no Universo. Oh! Sim, Senhor, não só o raio de luz que passa roçando, mas
o raio que penetra. Não vossa Epi-fania, Jesus, mas vossa Dia-fania”431.
A transparência possibilita que a humanidade de Jesus se torne translúcida,
e a transcendência concreta, constituindo o processo unitário e complexo da história
da existência humana. A vida do homem Jesus, não é senão, a vida de Deus, o qual,
junto com o Espírito e o Pai, torna a existência humana participante da vida de Deus.
Em Jesus se encontram a transcendência divina e a imanência humana432, fazendo
que ele seja transparente de Deus.
Deus não se utiliza de instrumentais nem de súditos. Radicalmente ama e
plenamente se entrega, na liberdade. Seu amor vence a morte, pois coloca a vida
429 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 24. A mesma ideia é encontrada em outras obras de sua autoria,
como: Id., A águia e a galinha, pp. 169-175; Id., Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos,
pp. 28-30. Id., Jesus Cristo Libertador, pp. 210-215. 430 Id., Experimentar Deus, p. 24. Também na obra: Id., Os sacramentos da vida e a vida dos
sacramentos, p. 34. 431 TEILHARD DE CHARDIN, P., Le milieu divin, p. 162. In: BOFF, L., Experimentar Deus, p. 24. 432 No Concílio de Calcedônia (451) os Padres Conciliares completam o que vem a ser, hoje, o Credo
niceno-constantinopolitano. “Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido em duas
naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação […]; não dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e o mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo,
como anteriormente nos ensinaram a respeito dele os Profetas, e também o mesmo Jesus Cristo, e
como nos transmitiu o Símbolo dos Padres”. O Deus de Jesus é a Trindade, e o Filho de Deus é
verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e
declarações de fé e moral, n. 301-302. Com João Damasceno, século VIII, aparece uma das
primeiras sínteses teológica. “Quem pois, queira falar a respeito de Deus, deve saber claramente que
nem todas as coisas são indizíveis, nem tampouco são todas dizíveis, tanto aquelas que nos vêm da
teologia, quanto aquelas que nos vêm da Economia [...]. Em conclusão, à exceção daquilo que de
maneira divina nos foi manifestado, anunciado ou revelado pelas Santas Escrituras do Antigo e do
Novo Testamento, é impossível, no que respeita a Deus, dizer ou simplesmente compreender o que
quer que seja”. JOÃO DAMASCENO, S., La foi orthodoxe, pp. 139-143. Tradução minha.
232
atrás do amor433. A ressurreição de Jesus é superioridade do amor sobre a morte,
pois seu amor é para todos e amor de total referência ao Pai.
Em Jesus, permanece a decisão do Deus libertador figurada no Êxodo de
cuidar da vida em sua inteireza. Ele desce até a história, faz-se humano, desde então,
toda história é sagrada (cf. Êx 3,7-8). Seu modo de viver as relações manifesta o
advento do tempo da Graça (cf. Lc 4,17-18). Seus sentidos, estão direcionados a
cuidar da vida, por isto ele olha, escuta, sente o pulsar da vida, enobrece a dignidade
da vida, tocando com seu próprio ser a realidade. É diante deste Mistério-Trino,
presente em todos os seres e em todo o universo, que se intui o sentido da vida. A
relação de Deus com o ser humano e com o mundo é o próprio mistério de Deus,
do ponto de vista humano. E um amor misterioso não se demonstra: intui-se,
retribui-se, ama-se. Ele já é a promessa de um futuro bom.
No confronto desta Presença transparente impõem-se questões. Mas, quem
é esse homem que por sua palavra e ações pergunta sobre sua identidade (cf. Mt
16,15). Quem é esse que desde os Apóstolos e a primeira comunidade cristã faz
emergir a questão de sua profunda humanidade e íntima relação com o Pai (cf. Jo
4,10; 5,12s; 8,25; 12; 34)? Quem é esse homem que revela o mistério de Deus, sem
deixar de ser Mistério de transcendência? Quem é esse homem, Jesus que evoca o
mistério do ser humano? Tais questionamentos terão alguma incidência na busca
pelo sentido presente no sujeito pós-moderno? Torna-se, então, necessário
perpassar alguns escritos do Novo Testamento, que de per si deixam de sobreaviso
que Jesus possuía uma grande capacidade de adaptar os textos à situação concreta
de cada pessoa, sem nenhuma preocupação em registrar o que falava. Seu intuito é
horizontalizar a pessoa para o futuro em Deus.
A centralidade conferida pela fé cristã à humanidade de Jesus constitui o
eco de sua proposta a uma integração humana em todas as relações. Jesus é o
Samaritano bom que ao ver a falta de vida desce para cuidar, fazendo-se promessa
de cumprimento cuidador da vida. Coloca sobre si o ser solitário e ferido e leva o
homem para a pensão da solidária vida (cf. Lc 10,34). Mostra um Deus amor
sensível ao sofrimento e com tudo que fere a dignidade humana e faz sofrer434. O
ápice e momento último do retorno torna-se festa (cf. Lc 15,23), libertação do jugo
433 Cf. RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, pp. 254-260. 434 Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, pp. 109-143.
233
opressor da doença435 (Lc 13,13; 5,24), reintegração das relações com os outros e
com Deus.
Ele cuida da vida. A atitude de cuidado de Jesus afeta a todos, faz emergir a
verdadeira integridade da pessoa, na sua verdade. Sua provocação aos que estão ao
seu redor emerge de sua missão de fazer sobressair a vida e não apenas cumprir a
lei. Seu Deus não é um Deus que se impõe, mas que doa a vida pura e simplesmente.
Desse modo, “o cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano. O
modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano”. 436 A
transparência no modo de ser cuidado de Jesus integra a vida na sua totalidade e
originalidade.
Jesus é o doador da vida, enquanto o ladrão rouba, corrompe, destrói a vida.
O antagonismo com o usurpador da vida torna-se maior quando Jesus declara a
prodigalidade da vida trazida em sua pessoa “Eu vim para que tenham vida e a
tenham em abundância” (Jo 10,10). A incomparabilidade de Jesus não está somente
em possuir e proclamar a vida, mas em oferecer a vida em abundância. Ele é a vida
escatológica, a vida realizadora de sentido para todas as relações. A vida em
abundância trazida por Jesus torna-se um questionamento com relação à vida ferida,
negada, sem-sentido. Uma Vida de contemplação das pessoas em felicidade plena
excede a ideia de simplesmente ter vida.
Jesus apresenta-se como o pastor esperado e único, o bom pastor (cf. Jo 10,
14). 437 Ele é o pastor do povo porque dá sua própria vida pelo povo. Seu amor é
extremado e absoluto e coloca a vida e a morte à sua disposição. Este amor em
evolução é assinalado por Ratzinger na linha de Teilhard de Chardin.
Só onde o valor do amor sobrepuja o da morte, isto é, onde alguém está disposto a
colocar a vida atrás do amor e por causa do amor, somente ali o amor será capaz de ser mais forte do que a morte. Para ser mais forte do que a morte, o amor há de
ser primeiramente mais do que a vida. Se conseguisse isto não só pela vontade, mas
de fato, significaria que a força do amor se teria elevado acima da capacidade
biológica, colocando-a a seu serviço. Falando-se em termos de Teilhard de
435 Jesus curava os doentes e compartilhava da mesa dos pobres. Simplesmente desafiava a
legitimidade do poder espiritual do Templo e do sacerdócio templário; pois estar doente era estar
em situação de pecado, longe de Deus e só no Templo podia curar e pra isso devia ser pago. Doença
no tempo de Jesus significava: pobreza, falta de trabalho, situações de conflito social. Cf.
HOORNAERT, E., O Movimento de Jesus, pp. 69-84. MATEOS, J.; CAMACHO, F., “Jesus e a
sociedade de seu tempo”, p.43. 436 BOFF, L., Saber cuidar, p. 34. 437 O adjetivo bom (grego kalós, literalmente belo) usado pelo evangelista não se refere a bondade
de Jesus, para a qual o evangelista emprega agathós (Jo 7,12), mas à sua unicidade de Pastor, e
indica aquilo que é verdadeiro, ideal, modelo de perfeição. MAGGI, A., A loucura de Deus, p. 108.
234
Chardin: onde tal coisa se desse, teria lugar a decisiva "complexidade" e
"complexão"; ali também o bios (a vida) estaria envolvido e incluído no poder do
amor438.
Entrar pela porta-Jesus é alcançar a Salvação (cf. Jo 10,1). Esta entrada
caracteriza-se pela liberdade de ir e vir, de entrar e sair, que sempre encontrará o
sustento. Encontrará sempre um lugar de repouso seguro, fontes tranquilas,
alimento e revigoramento da vida (cf. Sl 23).
A vida de Jesus é constituída de ‘ser-relação’. Em sua irrestrita entrega de
si mesmo ao Pai, afirma a experiência da fé neo-testamentária. Aparece de modo
visível em Jesus, o rosto de um Deus vivo, cuja alegria é a vida em abundância para
todas as pessoas. Na apropriação do título de uma das obras de L. Boff, quer-se,
concretamente dizer que, em Jesus, Deus “é a graça libertadora no mundo”439, pois
a graça não é outra coisa senão a generosa presença de Deus no ser humano. A
Graça remete a uma experiência histórica, diferente de uma vida de fuga do mundo
real. É na história que a pessoa se percebe como ex-istência, presença no mundo,
como relação, presença com o outro, e como participação, presença de abertura para
o ‘hoje’ de Deus. Deus só terá sentido de integração da vida se fluir de dentro da história
humana. O ‘ser-relação’, em Jesus, não aparece apenas como um modo de agir e
ensinar, mas remete à sua originalidade, ao núcleo do seu ser. Sua Vida é vida-para-
os-outros. L. Boff observa que Jesus “vive a vida como doação e não como
autoconservação”, isto é, vive como aquele que serve, o que explica que ele “não
conhece tergiversações em sua atitude fundamental de ser sempre um-ser-para-os-
outros”440. Sua doação culmina na entrega de sua própria vida. Assim, não hesitou
em assumir as consequências de uma vida de doação e de defesa dos mais fracos.
Jesus anuncia que o Reino de Deus se aproxima, ‘está às portas’ ao dizer
que este Reino se aproxima dos pobres. “Os cegos recuperam a vista, os coxos
andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos
438 RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, p. 145. A fé na providência e no governo divino
não é, em princípio, incompatível com a visão evolutiva da natureza. Contudo, a descoberta do
caráter evolutivo do universo provoca a (re)descoberta de uma nova imagem de Deus e a
consequente elaboração de uma nova teologia da natureza: o Deus relacional, revelado em Jesus
Cristo e compreendido a partir da kenosis e da promessa, é o fundamento para a compreensão do
surgimento e da manutenção de um mundo em contínuo movimento e evolução: um mundo, por
definição, incompleto e imperfeito, mas que avança em direção a um Futuro que vem a ele, rumo a
uma salvação cósmica. HAUGHT, J. F., Cristianismo e ciência, pp. 123-156. 439 BOFF, L., A graça libertadora no mundo. 440 BOFF, L., Paixão de Cristo, Paixão do mundo, pp. 33-34.
235
pobres é anunciado o Evangelho”. (Lc 7,22). Sua pregação implica a superação da
miséria presente e a reconciliação das pessoas consigo mesmas, com os outros e
com Deus, com todos os seres. O Reino de Deus é dom da ação de Deus, e se traduz
em Graça. Jesus ao anunciar que o Reino de Deus é dos pobres não apenas suscita
uma esperança, como se o Reino fosse uma realidade totalmente transcendente, que
só se manifestará depois e para além da morte, mas age na história buscando
transformá-la. O agir de Jesus é motivado pelo amor e pela compaixão. Conforme
bem observa L. Boff, em seu mistério de transparência, Jesus deixa claro: o ser
humano somente pode encontrar a felicidade na abertura ao outro e ao Grande outro,
Deus441.
O Reino pertence ao tempo do kairós; envolve a história, sem dissimular-se
no intimismo ou no espiritualismo. Sem perder seu mistério escatológico, o Reino
no tempo Cronos, é ponto de partida, “é um projeto de Deus que ocorre no coração
de uma história na qual os seres humanos vivem e morrem, acolhem e rejeitam a
graça que os transforma a partir do interior”442. Na afirmação de L. Boff, Reino de
Deus, abrange “a totalidade desse mundo material, espiritual e humano agora
introduzindo na ordem de Deus”443. O Reino proclamado por Jesus é convite alegre
e libertador em experimentar o extraordinariamente humano que se manifesta na
ordem do divino.
Em toda sua palavra-ação, Jesus é o tempo da libertação e da alegria444. Ele
vive a dimensão do cuidado, das relações integradas horizontalizadas para Deus,
entre as pessoas e todas as coisas criadas. Nele, o mistério do Deus-transcendente-
Trino faz-se realidade de encontro na história. Portanto, a história torna-se o espaço
do encontro com o mistério divino, pois evidencia o ser de Deus. O Mistério contém
a experiência do mais radical fundante da vida, de um transcendente nas relações.
O mistério de Cristo lança luz definitiva sobre o mistério da criação e revela o fim
para o qual "no princípio, criou Deus o céu e a terra" (Gn 1,1); desde a origem da
vida, Deus contemplou a glória da nova criação em Cristo.
441 Cf. BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 108. 442 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 136. 443 BOFF, L., Jesus Cristo libertador, p. 69. 444 Outras passagens poderiam ser explicitadas na tentativa de descrever o homem Jesus, como
despertador da consciência humana, conselheiro, comensal e amigo, solidário com o sofrimentos
humanos, inclusive ele mesmo sofredor na cruz.
236
A questão do mistério de transcendência, imanência, transparência pertence
ao próprio mistério do Deus-Trino. No princípio de tudo está o encontro com Deus,
Transcendência, mas juntamente com o mundo e no mundo, Imanência, e através
do mundo, Transparência. L. Boff busca pensar a existência humana, em
perspectiva “histórica, aberta e dinâmica, onde, de fato, transparece o Mistério, a
dimensão de imanência e a de transcendência, isto é, aquilo que chamamos Deus”
445. Mistério de Amor e comunhão, do Pai em bondade geradora, do Filho e do Pai
em diálogo de transparência plena, espirando o Espírito, fruto do amor comunhão.
A transparência realiza a harmonia entre a transcendência e a imanência.
Neste processo ditoso, a busca do ser humano pelo seu sentido, pode encontrar sua
verdadeira humanização. A transparência manifesta assim, caráter solar e diáfano,
densidade e inteireza de ser.
No que concerne ao sentido da vida como busca de integração do ser
humano, um passo a mais precisará ser dado no dinamismo que o manifesta. A
reflexão deve abrir-se para pensar Deus como sentido de relação, comunhão, numa
recíproca compenetração entre as pessoas divinas, e recíproca relação entre Deus e
a vida no universo.
4.3.3. Sentido de relação – comunhão – pericórese
Será suficiente dizer que o humano é realmente pessoa quando está em
relação? Ou o estar em relação com Deus e com todas as criaturas faz
essencialmente parte do ser pessoa? Qual é o sentido mais verdadeiro de estar em
relação? Haverá uma palavra humana que contemple de modo verdadeiramente
significativo às relações humanas? O dizer teológico é sempre por princípio aberto
ao simples e incomensurável fato de a realidade “Deus” ser nomeada dentro de
limites históricos, contingentes e fragmentários.
Como ser de linguagem, o ser humano experimenta a necessidade de
comunicar sua vivência relacional. A linguagem torna expresso o pensamento
445 BOFF, L., Experimentar Deus, p. 9.
237
humano, ao mesmo tempo em que faz compreensível o modo como se estabelecem
as relações com Deus e com todas as outras criaturas, inclusive consigo mesmo.
Contudo, presencia-se uma supremacia da linguagem discursiva que mais
confunde a dignidade do ser humano, pois se estabelece como a medida da utilidade
e da eficiência. Neste aporte, L. Boff alerta para outras dimensões da vida, como a
sensibilidade, a criatividade, o afeto, a cooperação, sem menosprezo do logos,
compreendido como a capacidade de intelecção. A vida, em seu sentido mais
verdadeiro tendo as relações como chave de integração deverá mais ser pensada
pelo horizonte do existente processo complexo, isto é, a existência como relações e
conexões em todas as direções. É preciso buscar uma compreensão da vida em
unidualidade, assegura E. Morin. Trata-se de pensar a complexidade humana em
inclusão com o físico, biológico, antropológico, sociopolítico, em formas inclusivas
e complexas a um só tempo, enquanto que a crise fragmentadora do sentido da vida
e o desperdício da abundância de vida na pós-modernidade, conforme visto, são
gerados no nível do justapor, reduzir e aplainar a vida, conduzindo-a sob o princípio
de um determinismo do universo ou da separação.
A busca pelo sentido da vida, empreendida pelo ser humano, implica dar-se
uma significação, em uma rede de relações conectada, aberta e em evolução. O ser
humano encontra sua realização em uma ordem de grande complexidade,
pericorética, integradora, presente na relação do Mistério-Trino446. Esta busca
supõe uma concepção que não apenas contrapõe, mas busca superar a antropologia
moderna tanto do dualismo cartesiano, quanto do monismo materialista, e questiona
a coisificação da vida humana e a ideia de uma aparente ausência de Deus.
A pós-modernidade evidencia a crise de um sistema de crenças. Isto é, ao
deslegitimar a esperança na razão, também não resta razão para esperar. É a
renúncia ao sentido, e o lançar da crise desintegradoras da vida. No bojo desta
experiência, há uma inquietação humana, pois se trata de uma realidade imposta e
exterior a ele, e assim busca o sentido que integra e a partir de seu interior.
446 A partir da compreensão de pericórese, como comunhão e unidade de alteridades, Susin convoca
a história humana a reconciliar com o complexo ecossistema Terra. O ser humano precisa sair do
seu antropocentrismo para uma comunhão onde a história humana, reconciliada com todo os seres
vivos, se abra e avance em direção ao destino de novos céus e nova terra. Ao tratar da pericórese e
reconciliação com a história da natureza, ele afirma que “não basta recuperar a experiência da terra
como história da vida e o universo como criação, mesmo que seja desde alguma explosão originária
– o “Big Bang”. É necessário recolocar o destino da terra e do universo, portanto a sua escatologia
– e não só a escatologia da humanidade”. SUSIN, L. C., Assim na terra como no céu, pp. 49-57.
238
O ser humano está submerso em um emaranhado de propostas de sentido,
no horizonte da imanência. No entanto, é notável que dentro do fluir de sua própria
vida anuncia-se uma exigência maior de sentido, uma expectativa de humanização
mais profunda, que leve em conta a dimensão de um Mistério maior, que habita seu
interior. A concepção de vida, no teólogo Leonardo Boff, convoca a ver a vida em
todas as suas dimensões. Ele fala do fio primário do sentido da vida, do Mistério, a
Deus. Sua concepção é marcada pelo cuidado, ternura e esperança com respeito à
vida. No contexto pós-moderno esta tarefa toma uma forma específica na qual são
fundamentais o resgate e a humanização da vida.
Como dito, a existência manifesta uma “ordem enovelada”, uma harmonia
envolvente. Por esta concepção, L. Boff compreende que há uma emergência da
vida em que tudo implica tudo, nada existe fora da relação. A relação constitui todas
as realidades. Trata-se de um movimento articulado em todas as direções
interconectando todas as partes; “o que existe é o holomovimento”447. Seres
humanos, todos, estão envolvidos com cada parte e como o todo do universo.
A linguagem recorre ao simbólico quando experimenta um excesso de vida
que precisa ser expresso. A linguagem simbólica torna a pessoa capaz de recriar o
sentido da existência com os outros e possibilita a ligação entre sentido na
concepção seja de direção, seja de significação, para chegar a um todo. Desde que
o infinito Deus se fez finito na história, o ser humano está a granjear uma linguagem
para falar de Deus dentro da história e para além da história.
Tanto quanto a complexidade de relações deve ser levada em consideração,
tanto quanto deve ser considerada a experiência agraciada de Deus. Caso contrário,
corre-se o sério e triste risco de mistificar a realidade humana em sua relação com
o divino ou de pensar que Deus criou a pessoa como entidade livre e autônoma de
ser o que quiser, de modo que pudesse ser indiferentemente capaz do bem e do mal.
Assim, a pessoa não poderia encontrar em sua realidade histórica o sentido último
de sua vida, ou se encontrar, seria num ambiente de vida extrínseco a ela, ou ainda,
que desconsidera o humano.
O Concílio Vaticano II lembra que os gestos de Jesus são profundamente
encarnados na vida cotidiana, sua palavra-ação nunca surda aos gemidos da história,
especialmente dos pobres e de todos que sofrem; “não há realidade alguma
447 Cf. BOFF, L., Ética da vida, pp. 91-97.
239
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”448. Portanto, toda
experiência eclesial, manifesta ser de Deus ao estar intimamente ligada à pessoa
humana e à sua história.
Neste contexto torna-se muito pertinente tomar o sentido de relação como
ponto inicial da existência, e a partir deste sentido horizontalizar uma palavra
paradigmática, tecida na história, de integração do ser pessoa. O ser humano
descreve sua existência no contexto de ser ‘criado por’, de ter um princípio
originador, de tudo, que não é ele mesmo. A existência reflete, então, desde seu
princípio uma relação entre Criador e criatura. Relação é então, menos categoria, e
mais princípio fundamental do existir. A existência tem seu fundamento e origem
de ser no ato de Deus. Deus-criador em seu amor transbordante e liberdade suprema
concede existência a outro ser, contingente, criatural. O ser humano é um existente
por Deus. Portanto, o sentido da existência é relação.
O ser humano é essencialmente um ser capacitado a um existir relacional.
A liberdade está presente desde sua origem, torna possível a negação de seu existir-
em-relação. Consciente de seu existir-relação em liberdade, o ser humano pode dar
formas, contornos e matizes particulares e diferenciados às suas relações. Garcia
Rubio sublinha o caráter incontestável da pessoa humana de ser amada
gratuitamente por Deus, entretanto, como ser de decisões, ela pode aceitar ou não o
dom de Deus. O ato criador de Deus por si só já fala em relações, portanto, quando
o ser humano decide não se relacionar, fecha seu sentido de existir. Nesta
perspectiva, o sentido da relação é o sentido da existência.
Na verdade, um rápido olhar para a rotina do dia a dia da chamada
civilização, tem-se a impressão que nela as pessoas levam a vida sem preocupação
deste tipo: os trabalhadores vão ao trabalho e os alunos à escola, as ruas estão cheias
de veículos e os aviões voam regularmente. É preciso usar a lente da atenção para
perceber que inúmeras relações carecem de humanidade. O descompasso daquilo
que se poderia chamar de relações desumanas vividas por seres humanos começa a
aparecer na amplitude da disseminação da violência, tanto daquela miúda, quase
imperceptível de fora, até pelo ataque irracional dos grupos chamados terroristas
até a ação aterrorizante de quem se dá o direito de decretar o que seja terrorismo.
448 CONCÍLIO VATICANO II., “Gaudium et Spes”, n. 1, p. 143.
240
Fato é que há uma diferenciação na existência relacional da pessoa, em sua
abertura com Deus e com todas as criaturas: mundo e pessoas. Contudo uma análise
mais profunda revela que as diferentes relacionalidades sempre estão envolvidas
uma na outra, sempre há inter-retro-relações. Conforme L. Boff, a vocação do ser
humano tem dimensão escatológica. Como nenhuma outra criatura, ele é
constituído como ser aberto à totalidade da realidade. E só se realizará
humanamente se mantiver em comunhão permanente com a globalidade de suas
relações, isto é, com o mundo, com os outros e com Deus.
Num olhar atento para a realidade, verifica-se a presença de relações,
contudo, e concomitantemente, de ausência mútua e de si mesmo. Por seu lado, a
relação interpessoal gera a consciência da singularidade e concretização pessoal. O
sentido da existência relacional está orientado para a comunhão. Por conseguinte, a
existência não é sem sentido, nem a existência é fruto de um acidente de percurso
ou criação do nada. Ela faz parte de um projeto maior.
A existência tem um projeto, e este projeto possui um imperativo: a vida!
Lá onde há projeto e vida, tem visibilidade e evidência da presença do Deus
encarnado. No seu contrário, há invisibilidade e ocultamento de Deus. “Deus está
onde seu projeto de vida se faz carne”449. Na Encarnação Deus se entrega, ao que
parece, à primeira vista, a uma absurda afirmação, o que se nos revela em Jesus
Cristo.
Teólogo da Libertação, L. Boff enfatiza uma cristologia situacional e
histórica, cujo ponto de partida é Jesus de Nazaré. Jesus de Nazaré viveu em relação
com Deus e seu Reino, e inserida na vivência comunitária, portanto, eclesial. A
Encarnação de Deus assume a condição humana dando um novo e absoluto sentido
de libertação à esperança do Reino de Deus.
Reconhecer e acolher a própria existência constitui a verdadeira liberdade.
E a liberdade é sempre relacional. A integração da vida, e nisto consiste a busca
humana de sentido da vida, é construída no encontro com o outro. A Palavra
criadora é expressão de uma vontade em liberdade e para a liberdade. A nomeação
de Deus da libertação, não é senão, a experiência de Deus da Vida.
Trata-se, conforme L. Boff, do dinamismo divino presente na vida, podendo
melhor ser dito, como simplesmente: Deus é o vivente, pois Deus é o princípio
449 GUTIERREZ, G., O Deus da vida, p. 98.
241
fontal de vida e mora na vida; num dinamismo eterno de comunhão. Esta
experiência confere vigor à vida concreta do ser humano. Deus se deixa aproximar
dos incluídos e se faz próximo dos excluídos. O Deus da libertação se faz pobre,
tão pobre que carece de condições de vida.
O sentido do ser humano é relação porque sua origem também é relação.
Deus é relação, não apenas para com as criaturas, mas já é relação em si; Deus é o
existente em relação e como relação; dinamismo eterno de relação. Deus é relação
em si e autodesprendimento de si, pois se abre à participação em sua vida. Ao
comunicar-se, Deus escolhe os seres humanos para a comunhão de vida. Portanto,
o sentido de relação é para a comunhão com Deus. Atesta, então, que a relação não
tem fim em si mesma, não se encerra em si mesma.
L. Boff compreende que é o Mistério Trino o paradigma de toda relação.
Ele aponta o Mistério como eixo que une, liga e integra o ser humano. Nasce assim
uma compreensão holística, descentrada do homem e da mulher, e uma redefinição
de sua missão, no contexto da Aliança bíblica e da comunhão de relações.
Se tudo no universo constitui uma teia de relações, se tudo está em comunhão com
tudo, se a imagem de Deus se apresenta estruturada na forma de comunhão, é indício de que essa suprema Realidade seja fundamental e essencialmente também
comunhão, vida em relação e amor supremo450.
A relação é, para a pessoa humana, menos categoria filosófica, menos modo
de viver sociológico, menos fato psicológico, e menos objeto científico. A relação
é fundamentação da existência, e para melhor ser dito, é o dinamismo revelador do
sentido da vida.
No Antigo Testamento a relação com Deus é denominada Criador-criatura.
No Novo Testamento esta relação é revelada como relação filial. Com efeito, Jesus
manifesta uma particularidade que não só qualifica, como aprofunda a relação de
cada ser humano com Deus: “Portanto, orai desta maneira: Pai nosso” (Mt 6,9). Em
Jesus, cada criatura humana é filho/filha no Filho. Tanto ama, quanto é amado e
revela o amor de Deus Pai cuidador do filho que pede sua herança e parte da casa
do Pai (cf. Lc 15,11-32); Deus Pai é justo com o trabalhador (cf. Mt 20,1-15); Deus
Pai, curador da filha do chefe da Sinagoga (cf. Mc 5,35-43); Deus Pai alegria
renovada (cf. Jo 2,1-12). Jesus sempre abre a alvissareiras relações.
450 BOFF, L., Ética da vida, p. 97.
242
O Deus de Jesus inclui a todos, não somente aqueles que são pobres
economicamente como também, aqueles que experimentam a injustiça, a exclusão,
o ódio, a desesperança, a falta de sentido, isto é, daqueles e daquelas que carecem
de uma vida integrada, em todas as relações. Jesus estabelece relações que
manifestam sua revolucionária originalidade e convida a entrar em um novo modelo
de relações humanas, inclusiva de todos, especialmente dos excluídos. Este novo
modelo de família de pessoas humanas tem como inspiração a Santíssima Trindade,
“onde as pessoas se amam em suas diferenças e se acolhem na mesma
comunhão”451.
Na solidariedade humana de Deus encontra-se a esperança do ser humano
para a superação dos conflitos e comunhão com Deus. Para L. Boff, a encarnação
do Filho é inauguradora de uma nova realidade: com ele se dá a parusia e a epifania
do libertador da integração humana em todas as relações. Em Jesus, transparece um
rosto verdadeiramente humano, uma experiência humana próxima e entregue.
Contudo, o centro desta experiência é humanamente, inacessível e impenetrável. É
precisamente este centro impenetrável que dá a Jesus a possibilidade de estar em
comunicação com todos/todas, de conhecer o coração de cada pessoa. Ele é o único
conhecedor do Pai (cf. Jo 10), e na força mesma de sua humanidade, ele conhece as
pessoas como nenhum outro. Jesus não somente é o portador da mensagem da
palavra de Deus, mas é a mensagem em pessoa452. Sua palavra-ação revela o
coração do Pai e o interior de tudo o que é o humano.
No horizonte cristão, a expressão mais sublime e excelsa da vida é marcada
pela relação essencial com a Trindade. Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo em
comunhão recíproca. A Trindade é comunhão de pessoas, relação de comunhão de
pessoas, onde ninguém é superior ou inferior ao outro, pois cada um é aceito como
é, doando-se uns aos outros. Esta comunhão divina não é fechada sobre si mesma.
Pelo desdobramento da vida trinitária, a civilização humana é chamada a ser
comunidade de seres humanos no modo de participação da comunhão em entrega e
reciprocidade divina, até o dia de “Cristo é tudo em todos” (Col 3,11).
Há um círculo que não se fecha, entre a existência relacional e a liberdade
intrínseca do ser humano. Na busca do entendimento do universo, o físico, Lee
451 Cf. CAVALCANTE, T. M. P., “Relações interpessoais em uma narrativa do Evangelho de
Marcos”, p. 23. 452 Cf. PALACIO C., Jesus Cristo., pp. 100-102.
243
Smolin levanta a questão de encontrar a resposta no misticismo. Abre-se a
possibilidade de uma resposta e diálogo, às questões científicas fora do domínio da
racionalidade.
Segundo o filósofo jesuíta, Lima Vaz, cabe somente ao ser humano a
invenção do sentido, posto que ele é aberto ao logos. Assim busca o sentido de sua
vida de modo que se expresse em seu modo de vida e que integre a globalidade de
suas relações, consigo mesmo, com as criaturas e com Deus.
Amiúde, L. Boff convida a pensar no ser humano enquanto inserido e,
intrinsecamente afetado, pelo movimento do universo e de todos os demais seres
nele presentes, na constituição de cada ser e para agir na busca de inter-retro-
relações. É a passagem do antropocentrismo ao princípio antrópico. Por este novo
princípio quer-se dizer que a leitura da vida é feita a partir da inteligibilidade
singular do ser humano. Somente na consciência de partir do ser humano que a
reflexão sobre a “vinculação com todo, tem sentido”453.
A leitura da narrativa da criação no livro do Gênesis já foi por demais feita
na trilha do “homem, rei da criação”, aquele que deve dominar. Este erro
estabeleceu um reino de falsos graus de hierarquia ao autocolocar-se acima de toda
criação, e impondo limites a Deus. Em decorrência, a existência de todos os seres
criados está gritando por sua dignidade, demandando o descarte do
antropocentrismo, que acarretou guerras, injustiças, dominação, exploração,
violência, solidão, perda do sentido da vida.
No pensar de L. Boff todos os seres são importantes, vivem na
interdependência e estão em uma “teia intrincadíssima de relações”. Contudo, o ser
humano reproduz um comportamento paradoxal, pois se coloca superior a esta teia
de relações e ao mesmo tempo desvinculado de todo o resto da criação. Na ambição
de querer “ser o rei da criação”, o ser humano escamoteia sua real busca por uma
vida que tenha sentido, tornando-se escravo em seu próprio reinado. No seu
egotismo, deixa de se ver de forma integrada e na fragilidade de se ser relacional.
Faz aparecer um perfil que obscurece sua unidade sagrada de se ser humano.
Contudo, verifica-se, ainda que por caminhos propagadores de domínio da vida, o
ser humano está a busca pelo sentido originador de sua vida e de toda a vida. Neste
453 BOFF, L., Dignitas Terrae, p. 46.
244
ínterim, escuta um convite a abrir-se para o evento gracioso e portador de vida,
pautado pela relação e comunhão integradoras.
A busca de conexão com o todo da vida valoriza o pensamento e o
conhecimento humanos como participação na construção do Reino de Deus. De
uma razão instrumental que crê na sobrevivência somente do mais forte, passa à
razão comunitária na consciência de que só se vive realmente à medida que se
relaciona. Na conexão com todas as coisas, a vida volta a exercer seu verdadeiro
sentido, o ser humano reencontra o seu lugar como existência humana. Nesta
esteira, a inter-retro-relação do ser humano em interação com tudo e em todas as
circunstâncias constitui o elemento chave para compreender o sentido da vida.
Chega-se a constatação da pertença mútua do ser humano no conjunto dos outros
seres.
Há uma circularidade inclusiva de todas as relações e de todos os seres
relacionados. Há uma sustentação que penetra e ultrapassa toda razão, uma lógica
interativa, mais complexa, e, portanto, mais completa. Tal concepção está presente
na relação de um Deus-Trino, interpenetração das Pessoas: Pai, Filho e Espírito
Santo, pericórese, do grego. A interpenetração das Pessoas trinitárias – pericórese
– é originária, simultânea e constitutiva das Pessoas. Isto é, em sua singularidade
própria, cada Pessoa recebe continuamente as outras duas, volta-se para as outras,
mora nelas e manifesta-se uma a outra.
Nesta compreensão, não há a monarquia do Uno, mas a comunhão eterna dos Três
simultâneos que estão sempre um no outro, pelo outro, com o outro, através do
outro, para o outro, interpenetrando-se em amor, um contendo o outro, na feliz expressão de João Damasceno, à semelhança de três sóis, cada um contido no
outro de sorte que haveria uma só luz por causa da íntima compenetração454.
L. Boff complementa e acrescenta a categoria significativa da presença de
Deus dentro do mundo e do mundo dentro de Deus, em completa inter-retro-
relação, isto é, o mistério da Transparência. Assim ele afirma: “como transparece,
a relação entre as Pessoas possui um caráter nitidamente pericorético”.
Sobre isto, vale citar um trecho de São João Damasceno, no século VIII.
“As hipóstases divinas têm sua morada e seu fundamento umas nas outras. Elas são
inseparáveis e indivisíveis uma da outra, estando nelas sem confusão em situação
454 BOFF, L., A Trindade, a sociedade e a libertação, p. 182.
245
de mútua pericórese”455, movimento que somente pode ser afirmado de Deus,
jamais da natureza criada. A partir de Jesus, o mistério que se faz carne, o ser
humano verbaliza o que antes já experimentara da fé na Trindade: Pai, Filho e
Espírito Santo.
O sentido de relação-comunhão-pericórese horizontaliza para um Deus
dinamismo de comunhão, garante de relações integradoras, gerador de alegria e
ludicidade, que no seu movimento de circularidade unifica, abre-se em amor e
cuidado para com o ser humano e oferece o sentido da vida. O termo pericórese
bem traduz o que seja o sentido de relação e comunhão. Na união pericorética da
Trindade, “as três pessoas são iguais entre si; vivem e se revelam umas às outras e
umas através das outras”456. Assim fala a Sabedoria de Deus, “Desde a eternidade
fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra...todo o tempo brincava
em sua presença: brincava na superfície da terra, e me alegrava com os homens”
(Pr 8,22.30-31).
As categorias empregadas, tais como vida, humanidade, existência, sentido,
integração, evolução, participação, mistério, eternidade, relação, comunhão e
pericórese têm o seu locus Naquele que é o Logos de Deus: Deus é Amor (1Jo 4,8).
Por conseguinte, esta pluralidade de nomeações indica, simplesmente,
desdobramentos da riqueza trinitária.
Por fim, o termo pericórese quer traduzir a relação existente do Deus-Trino
como amor que se comunica e torna transparente o Deus-comunhão à humanidade
e a desafia a fazer das suas relações um reflexo do dinamismo pericorético do amor
do Deus de Jesus Cristo. O transbordamento do Deus-Amor torna-se uma
provocação a agir em relação e com amor e cuidado tal como ele é. “Quanto a nós,
amemos, porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). A práxis no amor resume a
pregação ética de Jesus.
Sujeito na história e da história, homem e mulher são chamados a construir
história, a modo de aposta na radicalidade da vida. Optar pela vida significa lutar,
sacrificar-se, comprometer-se, oferecer sua vida na defesa de valores que acredita
promoverem a vida. O ser humano é invocado e provocado a viver seu ser na
realização das capacidades que latejam dentro de si.
455 JOÃO DAMASCENO, S. La foi orthodoxe, p. 219. Tradução minha. 456 MOLTMANN, J., Trindade e Reino de Deus, p. 183
246
Muito simplesmente, esse pensamento do sentido de relação-comunhão-
pericórese, é levado, nada mais, que pela busca humana de integração da vida aos
limites do enunciável. Mas a busca humana não se encerra nem se delimita ao
pensável. Dizer Deus-comunhão de si que se abre à participação em sua vida é
apontar como caminho o ilimitado e um caminho ilimitado. Mas toda experiência
de conhecer e superar limites sempre descobrirá que maior ainda é Deus.
4.4. O caráter absoluto da busca do sentido da vida. No princípio a relação, o movimento e o encontro
Onde se encontra, pois, o profundo sentido da própria vida? Eis a questão
sempre atual e provocadora que faz morada no ser humano.
A origem da vida é, para a ciência, um problema sem solução, pois remete
à questão da origem do cosmos e esta é uma questão indecidível, no plano da ciência
matemático-experimental. Tal ciência ocupa-se, então, de entender como a vida se
organiza, examinando suas causas e consequências. Certamente esta questão ocupa
não só a ciência. Antes, trata-se de uma inquietação que faz morada no homem e na
mulher. Ademais, a pergunta humana é anterior e mais radical que a formulada pelo
cientista.
O ser humano pergunta, busca, inquieta, estuda, reflete, arrisca, quer
encontrar, e por vezes dominar, o princípio originador e regedor de tudo. Tudo isto
advém, porque experimenta um ‘ser mais’, e assim sente-se maior que toda a
realidade que o cerca.
Na ótica da antropologia teológica, a questão da existência é colocada pelo
ser humano na perspectiva de ‘ser criado por’. Ele descreve sua vida a partir de um
Outro, e para este dirige sua atenção. Centrado por este Mistério, toma consciência
de si como criatura entre outras criaturas, de ser chamado à vida a partir de uma
Palavra de um Deus criador em amor e gratuidade de ser vida. O mistério que
transparece e que permite ao humano ser pessoa é a tradução da Palavra Deus. O
projeto infinito que é o humano tem sua origem em Deus, ele é o horizonte infinito
que abre ao humano possibilidades ilimitadas de encontro. A meta da criação, infere
L. Boff, é ser de tal forma penetrada por Deus que Ele constituirá sua essência mais
247
íntima. A experiência de ‘ser criado por’ atesta que a existência tem seu fundamento
na relação pessoal com Deus, que faz da relação o lugar da integração do ser pessoa.
No anseio de pôr ordem e estruturar suas relações, de receber e construir
relações constata que sua força de vida consiste em estar longe do equilíbrio. A
formação e manutenção do sistema vida tornam-se possível pela variância do fluxo
de energia que perpassa suas relações, portanto, a ausência de uma total simetria,
isto é, o não estar em equilíbrio.
Esta realidade descortina um horizonte infinito e benfazejo de
possibilidades. Afirma um futuro aberto que, no entanto, está a ser construído no
‘hoje’ de cada dia. A história enquanto lugar de decisão humana, reclama uma
participação ativa, porque longe de um determinismo ou predestinação, a existência
orienta-se para um futuro que exige ternura e cuidado, aliada da razão de quem se
põe à busca do sentido e que encontra e transcende a imanência. Isso nasce da
decisão por auto-atuar, com os outros e para os outros.
Na esteira teológica de L. Boff as relações em todas as direções são
constituintes basilares de uma existência portadora de integração e bem-
aventurança. O ser humano, em antropogênese, concebe relações num movimento
endógeno, e assim como o universo, ele está também em evolução; uma creatio
contínua até sua plenitude final. Tudo está inter-retro-relacionado, não só o
humano, também o cosmos. Nesta cosmovisão teológica, todo ser tem centralidade
na história da vida, cujo sentido da vida humana e de todas as coisas tem seu
fundamento e se enraíza no Mistério de Deus-Trino. Nesta perspectiva, o ser
humano não é o centro que confere sentido à vida, mas pelo puro fato de existir, de
trazer em si a marca da fonte de onde sai, nesta creatio contínua, cada ser tem uma
importância significativa e única, independente de valores sociais e culturais que
lhe são imputados.
Originariamente, por sua relação de criatura/Criador, o ser humano
experimenta Deus em dependência e autonomia. Com efeito, lembra Rahner, a
possibilidade de ser pessoa procede do ato de Deus, mistério absoluto. Nesta
sincronia, ‘ser criado por’ afirma um tempo, no cronos em que ‘ocorreu’ a criação
de um ser humano, mas, mais do que isto, afirma um processo em vias de integração
em todas as dimensões, de forma que o verbo deveria de fato estar no presente: estar
em criação constitui a existência humana.
248
A civilização pós-moderna demanda uma nova sensibilidade por causa da
dissolução de valores, sem nenhuma substituição, do que outrora estruturava e
norteava a vida. O abandono da questão do sentido, e o culto ao real transitório, vão
desplugando a pessoa de seu ser relacional, e isso leva a uma dissolução de um
sentido. Em suma, a concepção de vida com sentido desaparece ante uma nova
ordem estereotipada, pois inibe a criatividade e a torna pasteurizada, pois descarta
a fermentação vital do novo, e cinza, porque descarta a cor.
Neste contexto, urge realçar e resgatar a compreensão de sentido no centro
da vida, e isso, adquire importantes significados. Agostinho concebe que o Deus
vivo é o centro da vida, e que tudo está orientado para ele. Deus é o mais íntimo
que a própria intimidade humana. A consciência humana não é Deus, mas o
descobre ao examinar sua interioridade. O poeta John Donne afirma que nenhum
ser humano dá conta de viver só, a realidade humana não é figurativa de um ser que
vive no centro e sozinho em uma ilha. Em si mesmo, nenhum ser dá conta de ser
inteiro, muito menos ser integrado. Torna-se, então, uma máxima afirmar: “Homem
algum é uma ilha”. Felix Wilfred, teólogo indiano considera: “Deus é um círculo
infinito, cujo centro está em toda parte e cuja circunferência está em nenhum
lugar”457; não existe fronteira em Deus, não existe uma realidade dentro e fora de
Deus. Ele tudo assume, em Deus todas as realidades se centram, seu projeto unifica
criação-salvação.
Do ponto de vista humano, a existência afirma um centro de sentido
endógeno, portanto, fundado no enternecimento do pathos, eros, logos, daimon e
ethos, tendo como fim, a integração da vida, ou seja, o encontro do sentido que
integra, perpassando, todas as relações. Este, ‘a priori endógeno’, sempre e
necessariamente encontra-se presente na ação, ou ao menos, é requerido.
Em razão de sua origem afetuosamente transcendente, o ser humano é um
existencial em abertura à totalidade da realidade. Em sua condição presente, afirma
L. Boff, “o ser humano, homem e mulher, é um projeto infinito”. A história é um
existencial ontológico da pessoa, entretanto, o humano não se resume na concreção
histórica. Assim, no foco da reflexão sobre o núcleo constituinte da integração da
vida, apreende-se que o centro que confere o sentido da vida não é mais a pessoa
457 Cf. WILFRED, F., O V simpósio internacional de teologia. Tradução minha.
249
humana, como poderia se supor numa nostálgica cosmovisão geocêntrica, mas
principalmente individualista, ao modo da modernidade.
De fato, os diversos momentos de construção do conhecimento científico
sempre influenciaram na construção de uma visão de mundo. Profundas mudanças
aconteceram, quando o modelo geocêntrico foi substituído pelo modelo
heliocêntrico, no século XVI. A nova cosmovisão modificou profundamente a visão
que o ser humano, tem de si mesmo. Até então ele se atinha a verdades ‘filosóficas’
que determinavam seu destino, sua posição social. A experiência religiosa não era
contradita pela ideia de um céu acima, a terra abaixo, um universo perfeito,
hierarquizado que situava topograficamente a morada de Deus e dos anjos, vigiando
a morada dos homens. Esta visão é questionada pelas novas ideias. Foi como se um
mundo ruísse para muitos. Um aprofundamento desse processo veio naturalmente
com Albert Einstein, que coloca o tempo e o espaço no âmbito da Teoria da
Relatividade. Tempo e espaço são relativos e estão profundamente entrelaçados.
Mais uma vez é questionada a ideia de um mundo piramidal, onde há um supremo
ser, comandando seus súditos. A estas teorias, entre outras, mostram o caráter
relativo, não fixo, não absoluto de tudo que existe: Sistema Solar, estrelas, planetas,
satélites, galáxia, Via Láctea, terra, ser humano, animais, instrumentos, tempo,
espaço. Mostrando seu caráter relativo, abrem a possibilidade de que a teologia fale
de seu caráter relacional. Nenhum deles é o centro de tudo. Não se quer com isto
chancelar a Teoria da Relatividade, nem isso seria da alçada desta pesquisa. O
esforço, aqui, é de buscar o horizonte de uma antropologia que se coadune com a
teologia e, ao mesmo tempo, se harmonize com a busca de todo ser humano pelo
sentido de integração da vida, no contexto pós-moderno.
A experiência humana ontológica-relacional é a experiência que tem
contornos divinos. Tudo o que diviniza, faz com que homens e mulheres se tornem
mais integrados, isto é, mais pessoa humana. A razão última da existência habita no
Mistério que gera o sentido verdadeiro da vida humana. Deus, em seu viver eterno,
na encarnação, faz-se mistério de Deus na história. Portanto, toda situação humana,
com toda sua beleza e contradições, tem um sentido, porque tudo foi tocado por
Deus. E mais, o sentido de ser pessoa afirma que nenhum ser pode tirar a dignidade
do ser humano. A dignidade, dom de amor e graça, contudo, pode, sim, estar ferida.
Mais ainda hoje, a ferida da dignidade humana tem escancarado seu rosto de
maneira violenta e frequente, resultante da quebra das relações. Vigora, ainda, o
250
Mito de Procusto, pela qual a não aceitação do outro, justifica, com muita
frequência, uma variedade de mutilação da pessoa humana.
O sentido da busca da origem da existência é a busca humana pelo sentido
e só tem razão de ser se emergir da experiência humana da existência em chave de
compreensão contemporânea à sua, seja no suceder de mudança de época, mudança
de sentidos; seja de crise fragmentadora; seja de desperdício da abundância da vida.
É neste contexto, que o ser humano grita pela experiência do sentido da vida. Deus
emerge de dentro e na história concreta do ser humano, e somente assim pode
manifestar-se como o sentido radical da vida.
Esta forma de pensar as relações poderia soar como uma teorização da vida
ou um postulado óbvio apenas para ser lembrado ao ser pós-moderno. Por isto, ela
deve ser reconduzida à dimensão experiencial do encontro que se dá nas e pelas
relações. A emergência das relações confere sentido. Ela nunca é meramente
teórica, mas perfaz-se em encontros, convergentes ou divergentes. Neste diapasão,
encontro descreve a forma específica de relação no interior das inter-retro-relações
humanas, possibilita a compreensão da existência que faz brotar uma ética.
A categoria encontro não é acidental, mas fundante para uma vida
enriquecida de sentido. O contrário seria sobreviver, viver na superfície, deixar a
vida ser levada como a um barco sem rumo. Sem encontros, a vida se torna um
peso, para si e para outros, é o que poderíamos chamar de vida sem-sentido. O
encontro do sentido, afirma L. Boff, gera a jovialidade serena de quem se sente
aconchegado mesmo em meio a ameaça à vida, pois está orientado como por uma
estrela fixa. A vida supõe encontro. Mais que isso, a vida é a arte do encontro, sem
esquiva dos desencontros. Cada contato sugere um aprendizado e inaugura laços.
Como dizia Vinícius de Moraes, o encontro é escolha permanente de viver, pois
empresta a vida, para o resto da vida.
O ser humano é um ser de encontros cuja história é construída a partir de
relações. Nessa construção, um verdadeiro encontro exige saída de si para ir até o
outro, e do grande Outro: Deus. Na raiz de toda experiência de sentido verdadeiro
da vida está o encontro. Isso pode ser traduzido por uma frase da raposa,
personagem que ensina ao menino de cabelos dourados, o segredo do amor: “Só se
251
vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”458. Ver a vida a partir do
encontro trata-se de ver com os olhos internos, com o coração.
Como ser de relações, a história é construída a partir de encontros. Na ótica
da antropologia teológico-bíblica, a real humanidade do ser humano está no
encontro dialogal com Deus, e Deus é relação-comunhão-eterna. Outrossim, o
encontro faz emergir o Mistério já presente na vida portador da realização do
sentido da vida, a partir de Jesus Cristo.
Pela sua relação com o mistério Deus-Trino, no percurso originário e
fundante da humanização, como presença radicalmente efetiva e afetiva em amor,
o homem e a mulher são chamados, incondicionalmente, a realizar uma existência
histórica criadora de relações em todas as direções, um encontro capaz de articular
as diversas dimensões da vida numa unidade integradora. O encontro é essencial
para a realização do sentido da vida humana. Ele faz ultrapassar a realidade dada,
ampliando o olhar, sem deixar de estar atento a ela. Antes de tudo, ele exige
alteridade, mútua presença, relações novas e profundamente humanas. Diferente de
estar conectado a um objeto, o encontro requer de cada pessoa a escuta do outro e
a liberdade de ser um si mesmo.
O encontro revela o sagrado segredo do sentido. O sentido dos fatos é
portador de um sentido transcendente. Pessoas e coisas não se reduzem a si mesmas.
Antes ganham significados maiores, que veiculam uma ação que celebra, saboreia
e aprofunda o sentido da vida. Esta conjunção possibilita ao ser humano a
capacidade e a abertura para escutar a autocomunicação de Deus na história.
Proporciona uma experiência que colore a vida e revela sua beleza. Introduzido pelo
mistério Deus, contempla todas as coisas sob um horizonte maior de sentido.
O encontro provoca abertura e impulsiona o processo humano de integração
na globalidade de relações. No percurso da busca pelo sentido da vida, de forma
humanizante, está a capacidade de compartilhar a paixão com o outro e partilhar a
paixão do outro. Trata-se de sair do seu próprio círculo e entrar no universo do
outro. Trata-se de descentrar-se para encontrar seu centro, de dar-se para receber,
de esvaziar-se de si para possuir-se, de levantar-se para sair (cf. Jo 14,31). Sair de
si mesmo, deixar tudo, andar, partir, nisto consiste a missão do ser humano, como
dizia o saudoso Dom Hélder Câmara. A integração do ser humano, em Cristo, faz-
458 SAINT-EXUPERY, A. O pequeno príncipe, p. 95
252
se chamado permanente no dinamismo de ser mistério de sentido. Ele é a unidade
que engloba a totalidade do ser e à vida em meio a toda busca pelo sentido.
Na busca de encontrar o sentido da vida humana, Deus se deixa encontrar
em Jesus manifestando que o sentido da vida não está separado da vida da história.
Cristo, Palavra de Deus feita carne, manifesta-se sempre em profunda relação com
o Pai e à realidade de cada ser humano. Sua palavra-ação revela que o encontro
passa pelas relações em todas as dimensões e transcende a história humana. A
palavra-ação Jesus é permanente encontro com o tempo kairós: “O tempo já se
cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa
Notícia” (Mc 1,15).
Em Jesus, a vida é encontro com o Mistério de Deus-Trino que confere
sentido a todas as coisas e abre a visão para a realidade. Agraciada por este olhar, a
vida se torna descoberta e contemplação do mistério de transparência que em
diálogo portador de sentido perpassa e ultrapassa a realidade.
A relação constitui a própria essência de Deus-Trino, que tanto ama, que é
amado e revela o amor. Nesta comunhão de vida, o ser humano encontra sua
integração. Inspirada nesta visão trinitária, encontrar o sentido da vida significa que
todos nós, no encontro, encontramos e somos encontrados.
A convicção do ser de sentido na existência permite olhar a realidade numa
sintonia de busca que se vai fazendo encontro. À medida que o ser humano vai
tomando consciência que a vida tem significado na história, ela se torna uma
experiência cada vez mais humanizante. Então, a existência tem sua integração em
júbilo e festa. A celebração da alegria da vida expressa a historicidade humana,
valoriza o acontecimento sob a forma de memória e esperança, evidencia
gratuitamente o ser humano pela sua existência no dom da criação. A festa celebra
o todo da vida afirmando o sentido em cada momento na história. Em síntese, a
festa não seria o reflexo da pericórese divina dentro da criação?
Na mesma vocação de Jesus, a pessoa é chamada a ser relação de comunhão
na sua própria história. Deus faz-se encontro de vida em situações mais cotidianas,
porque ama e assim, o ser humano perceba a sua relação com Cristo nos
acontecimentos da sua vida, tornando-a portadora de sentido que irradia. Isto atesta
que o sentido da vida não se entende senão no encontro pela palavra-ação, Jesus
Cristo, o humano de Deus, na história pessoal.
253
Jesus Cristo revela plenamente quem é o ser humano e quem é Deus. Diante
dele, o crente está diante de Deus e do ecce homo em fundamental imediatez (cf. Jo
19,5). Nele a pessoa encontra Deus, e Deus encontra o ser humano. Ele nos dá a
conhecer quem é Deus e quem é o ser humano, plenificando o desejo humano do
infinito. Jesus se apresenta como o encontro do ser humano que busca Deus e de
Deus que busca o ser humano. Nele se encontra o que há de mais pleno no humano
e o que há de mais humano em Deus. Nele, toda a vida humana é lugar de encontro
com o sentido último da vida, isto é, com Deus.
Criado por Deus, o ser humano possui a dimensão do feminino (capacidade
de pensar por intermédio do corpo, de dar espaço à ternura e ao cuidado, de abertura
à gratuidade e à sensibilidade) e do masculino (o trabalho, o vigor, a racionalidade)
para relacionar-se com o mistério da vida, das pessoas e do universo inteiro. No
decorrer da história, o ser humano, homem e mulher, foi acostumado a ser homem
(masculino), e se vê às voltas com expressões patológicas, provenientes do
esquecimento da dimensão feminina; o animus sobreposto à anima. Por esta via o
ser humano perde sua identidade de criatura de Deus, “feitos pouco menos do que
um Deus, coroando-o de glória e beleza” (Sl 8,6). Por conseguinte, homem e mulher
deixam no olvido sua própria capacidade de relacionar, perdendo a habilidade de
encontrar-se consigo mesmos, de se encontrar como grupo de humanos, de escuta
mútua, de se colocar como criatura de Deus. Embalado pela dominação de uma
única dimensão, o masculino, abre espaço para a fragmentação do sentido de
inteireza na globalidade de relações. Há um esquecimento da capacidade de viver
em comunidade, de viver com e para o outro, de relacionar-se, e nessa relação
descobrir seu sentido da vida por descobrir-se criado por um Sentido que, por isso
mesmo, confere sentido à sua vida.
O encontro integrador da vida que confere sentido para todas as relações há
que passar, não somente por vinculações interpessoais, mas, principalmente, pela
busca de relações novas, que permitam visibilizar a vida em sua dignidade. Para
isso, urge romper com velhos paradigmas que oprimem, excluem e massacram. Na
verdade, a busca humana está horizontalizada para uma nova harmonia na órbita
celeste: homens e mulheres na diversidade das mentes e corações, sintonizados com
a harmonia universal num único destino comum.
Fazer da realidade da vida um encontro é acolher, no ordinário da vida, o
extraordinário de Deus. E torna-se abertura para reconhecer o finito no infinito, o
254
temporal no eterno e o perecível no imperecível. A vida assim conduz todas as
coisas para Deus e experimenta que Deus está à espera de cada pessoa em todas as
coisas. É encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. O encontro
é portador do sentido da vida porque revela um horizonte maior, transcende sua
realidade e transparece a boa notícia que é Jesus Cristo.
Que palavra verdadeiramente responde à busca humana pelo sentido da
vida? Qual sua relevância diante de uma civilização pós-moderna que tem não
somente questionado os conceitos e sentidos, como também transformado ou
relativizado seu significado? Que significado tem, se o ser humano já está submerso
em um emaranhado de propostas de sentido no horizonte da imanência? E a vida
tem sido associada em ampla escala, à violência, à subordinação às coisas, e pior,
simplesmente denegada?
Afinal esta pesquisa parece não encontrar nenhuma palavra humana
verdadeira. Pergunto-me pelo sentido... Encontro uma presença de paz, que se faz
diálogo de coração. Já não há mais buscas, nem perguntas, nem procuras de
relações, nem preocupação de ser pessoa integrada, uma vez que já se está dentro
da comunhão divina... No mistério do Deus-Trino, sempre vivemos, sempre
existimos integrados em inter-retro-relações, na circularidade do amor e do
cuidado. Ah! Encontro... Há uma palavra que se propõe: a Palavra que se fez carne
e habitou entre nós. Ela expressa e vive o sentido. Ela confere o sentido a quem a
ouve e repete na vida, na história.
4.5. Conclusão do capítulo
As palavras têm poder de atração ou de traição, ocultam, mas também
revelam. Sua instigante sinonímia, bem como a polissemia constituem riqueza para
além do aprendizado linguístico: elas apontam para a existência. Elas constroem
relações e possibilidades de um real encontro humano. Possuem caráter intencional
e sempre abrem espaço para mais palavras. Em sua amplitude, conjugam o popular
com o científico, o descritivo, com o metafórico e o simbólico.
Com palavras humanas, nada se pode afirmar com absoluta certeza. Há
sempre uma necessidade de se descrever uma vivência, inserida no movimento da
255
existência. Com efeito, o tempo da história é o tempo humano que transcorre no
intervalo de possibilidades de ser atraído ou traído pela linguagem de palavras.
Nesse intervalo, o tempo da história torna-se história concreta que se faz hic et nunc.
As palavras chamam a atenção para o fato de que a pessoa é um ser de
relação. Na complexidade das relações, o ser humano é, também, um ser de
linguagem, chamado a falar da experiência vivida. A multiplicidade de palavras,
não é senão, o desejo vital e uma língua é um sobre humano esforço de um povo no
sentido de estabelecer, cultivar e, por vezes, cortar relações.
Nessa provocação, a teologia dá-se conta da insuficiência e irrelevância de
sua própria linguagem. Faz observar que há um fundamento sob toda linguagem
que exige sentido. Uma presença anterior a toda linguagem que confere sentido
radical que fundamenta toda busca. Isto remete à temática desta pesquisa da busca
humana pelo sentido da vida, na esteira teológica de Leonardo Boff. Diante da
multiplicidade de palavras, a antropologia teológica é conduzida à unidade, isto é,
à Palavra Deus em sua revelação.
Face a esta autocomunicação, L. Boff compreende que Jesus Cristo é a
Palavra de Deus dentro do mundo. Ele ‘é a gramática’ que torna possível
compreender a Deus e o ser humano. Jesus Cristo é a Palavra de quem o humano
recebe o ser relação com o Transcendente. No princípio está a Palavra que se faz
diálogo, e não um ser solitário, surgido ao acaso.
A Palavra encarnada - Jesus - permaneceria incompreensível ou sem sentido
se não fosse acessível ao nível da narração, e essa se reduziria a uma mera estrutura
de linguagem caso não fosse capaz de atingir a história e a linguagem humana. Esta
articulação entre Palavra de Deus e palavras humanas que se dá pelas relações é o
que permite expressar a experiência do extraordinariamente humano de Jesus e, por
isto mesmo a resposta à busca de integração do ser humano.
Mister se faz assumir a impossibilidade humana de dizer Deus e o desejo de
falar da Palavra. A busca pelo sentido da vida, no decorrer da reflexão, mostra-se
muito mais no dinamismo de um ser humano em abertura de relações, do que no
enquadrar de respostas. O Espírito, energia em movimento, tem direção certa: a
vida.
Neste capítulo conclusivo a reflexão sobre o sentido da vida considerou as
palavras ‘orientação’ e ‘identidade’ que configuram a busca humana por relações
de integração. Ambas trazem à memória a dimensão de passado, futuro e de
256
presente da vida. A busca humana não se dá apenas no tempo presente da história.
Antes, ela tem sua raiz no evento Jesus Cristo. Na plenitude do Kairós, tempo de
Deus, está à certeza de viver no Deus-Trino – Amante, Amado, Amor. Esta certeza
vem do mistério Divino que faz nova a criatura; pessoas com sentido da vida (cf.
2Cor 5,17; Jo 3,3). No hoje de cada dia, a fé cristã saboreia e celebra a jovialidade
permanente e eterna de Jesus Cristo; o Deus quenótico e não o absoluto conceitual.
O capítulo anterior deixou a pergunta se haveria uma unidade que
concentrasse e irradiasse do pessoal ao interpessoal, no respeito às diferenças, numa
solidariedade universal e integrada, solidariedade vinda de Deus e que alcançasse
as demais criaturas. Este capítulo apresentou quatro tentativas de respostas.
Na primeira, dizia-se, o ser humano é partícipe e construtor do sentido da
vida, isto é, recebe sua luz no projeto radical de Jesus para a humanidade. O mistério
que é Deus, não é objeto para ser contemplado. Deus é mistério infinito, ilimitado
que se faz limitado na história humana. O mistério absoluto que é Deus, sem perder
sua identidade, faz-se carne na história. A existência humana, aberta às relações, é
o lugar, de fato, onde transparece o Mistério. O Mistério faz-se tão radicalmente
entrelaçado com a história, que faz a existência humana participante de seu mistério
de relações que dá sentido à vida. O oposto seria um Deus ex-machina que somente
se vincula à sua obra quando invocado para dar uma explicação para o
incompreensível. Em Jesus, o mistério passa pela carne; Jesus é mistério de
enternecimento que irrompe na consciência, relaciona-se com o ser humano
fazendo história e culmina na alegria que dá sentido a toda vida.
Em seguida, foi abordado o tema das relações de forma mais concisa, isto é,
as relações como chave de integração da vida. É experiência humana estar ligado,
conectado, vinculado, unido a um outro ser, ao que corresponde mesmo à geração
web que afirma que alguém existe quando conectado, mesmo se for com um sistema
impessoal. Melhor dizendo, a experiência profundamente humana é um nó de
relações com os outros e com todos, marcadas, simultaneamente pela
imprescindibilidade e pela incompletude, que abre espaço para o desejo de encontro
com o Mistério originante do Deus-Trino. É como se fora um fio de energia,
comunicando vida e sentido à existência.
Neste ínterim, o ser humano constata não ser o centro, mas que tem dentro
de si o centro do mistério da vida. Enquanto ser de relações, são elas que o
impulsionam à busca pelo sentido da vida. O ser humano é relação e por ela
257
constitui espaço de integração e sentido. O sentido, obviamente não pode encerrar-
se em si mesmo. Ele dá direção e significado, a saber, o nó de relação, que em
profundidade, é ressonância do Deus-comunhão, do qual é imagem e semelhança.
A terceira reflexão foi configurada numa trilogia. Destacou-se um
dinamismo revelador do sentido vital de ser mistério. Foi feita uma leitura da vida,
a partir da inteligibilidade humana. O pensar de L. Boff expressa um ser humano
em processo, em abertura, em gênese, que se sabe em relação. A leitura humana da
vida humana, e também do cosmos, estão em permanente processo, por isto, pode-
se falar em existência criatural, imagem de um Deus-Trino comunicante de vida,
numa lógica de antropogênese e cosmogênese. Desse modo, a existência está sob o
efeito de desvelamento, do ser envolvido. A fé cristã compartilha que o ser é envolto
por Deus, de sorte a ter nele seu existir.
O mistério do Deus-Trino é o ponto ômega do sentido de integração plena
de todas as relações humanas. Segundo o mistério cristão de transcendência,
imanência permite elaborar a categoria da transparência, a partir da qual intui-se a
importância da inter-retro-relação na imanência iluminada pela transcendência.
Dizer mistério significa tratar de uma relação de proximidade, que, porém,
forçosamente, ultrapassa o discurso racional. Deus é mistério absoluto. Portanto, ao
pronunciar a palavra Deus, melhor convém deixar transparecer seu Mistério. A
questão do mistério de transcendência, imanência e transparência pertence ao
próprio mistério do Deus-Trino. Deus permanece o absoluto transcendente e
relativamente imanente. A transparência significa a presença de Deus em tudo, de
forma que ele pode ser encontrado em tudo, mas nem tudo é Deus. A referência para
a leitura do mundo é Deus. Este percurso conduz a uma visão contemplativa da
vida, não mais no dualismo sagrado e profano, mas na harmonia da transcendência
e imanência, isto é, da transparência.
A trilogia, no dinamismo revelador do sentido da vida, abre-se para pensar
Deus como sentido de relação, comunhão, numa recíproca compenetração entre as
pessoas divinas, e recíproca relação entre Deus e a vida no mundo, pericórese. Este
tema surge da necessidade humana de nomear o sentido que encontra em suas
relações. Deus-Trino vive em relações de comunhão infinita. Na afirmação de L.
Boff, “Deus é comunhão e não solidão”: três pessoas em comunhão de vida. Deus
é Pai, Filho e Espírito Santo, em comunhão recíproca. Relação em si e aberta à
participação em sua vida. A comunhão com Deus confere o sentido ao abrir-se às
258
relações. Deus-Trino relação de comunhão revela seu desejo de associar à sua
comunhão pericorética todos os seres, pelo Filho na força do Espírito Santo. Pelo
termo grego, pericórese, na linha de João Damasceno, entende-se que cada Pessoa
divina inclina-se amorosamente uma para a outra, e na circularidade do absoluto
amor, abre-se em amor e cuidado para com o ser humano e, oferece o sentido da
vida. Na solidariedade humana de Deus encontra-se a esperança do ser humano para
a superação dos conflitos, a agir em relação de amor e cuidado tal como Deus é. A
busca humana no envolvente de suas relações, encontra Deus relação de comunhão
no dinamismo pericorético de amor que oferece um integrador e alegre sentido da
vida.
A quarta e última temática examina o caráter absoluto da busca do sentido
da vida. Como ser de linguagem o ser humano quer dar nome às coisas, como ser
de história ele quer ter à suas mãos o mapa que orienta seu caminho e assinala o
lugar da consumação de sua busca. A partir da experiência de ‘ser criado por’ um
outro, constata-se que no princípio está a relação em movimentos que perfazem
verdadeiros e profundos encontros. Do princípio de ‘ser criado com’ toma
consciência de ser criatura entre outras criaturas. Vivendo na finitude, experimenta-
se encontrado pelo infinito. Contudo, ainda pergunta pelo lugar do encontro do
sentido, que transparece em Mistério realizador do sentido da vida, que revela e
vela o sagrado segredo do sentido. Como ser de consciência, constata a dificuldade
de encontrar uma vida com mais sentido, por causa da ausência de si mesmo
norteando-se por uma pre-ocupação excessiva na razão que se coloca como a
medida e critério de realidades que se apresentam como portadoras de sentido,
como Deus, vida, alegria. Como consequência da crença na razão, os valores
considerados supremos são esvaziados, e a pergunta ‘para quê?’ é declarada carente
de significação. A busca pelo sentido da vida, não se restringe à questão de uma
vida empenhada nalgum projeto. A guerra e a dominação são também adotadas
como projeto e, com certeza, não favorecem à vida. É fundamental a pergunta pelo
sentido último da vida, em todas suas relações. Como ser de consciência que
participa do infinito mistério de Deus, o ser humano descobre que não é a relação,
por si mesma, que confere sentido à sua vida, e que o distingue das outras criaturas.
Descobre o Encontro que traduz o lugar da relação interpessoal e manifesta uma
experiência da existência.
259
A busca profunda pelo sentido da vida torna-se encontro de relações
transparente com uma Presença, que transcende a busca. Ela faz eco à experiência
do encontro com o Mistério que mora dentro de si, e gera a dimensão mistérica do
sentido da vida humana. Deus vibra nas entranhas de todas as coisas criadas e
silencia todo palavreado humano. O mistério do Deus-Trino comunica sentido de
unidade a toda história, e aponta para além da história. O sentido pertence à história.
Deus-comunhão em inter-retro-relação de Pai, Filho e Espírito Santo faz-se
encontro na história através de cada criatura, em autodoação de vida, amor e
cuidado e proclama a palavra primeira ‘vida’ (Gn 1,1) confirmada na ‘alegria’ (cf.
Lc 1,28) da vinda do Filho
5 Conclusão
A pesquisa teve como horizonte a vida e seu sentido. Na consciência da
impossibilidade de apresentar uma cabal definição de vida, o que se fez foi falar de
sua existência com reverência e cuidado. Há também que assinalar que ao se dizer
‘sentido da vida’ o que se quis foi indicar um nível mais profundo, uma leitura
humana da vida em processo de construção das suas relações.
A categoria vida aqui apresentada tem certa continuidade analítica com a
pesquisa do mestrado que mostrou o Reino de Deus como experiência que aponta
para a vida em plenitude, na ótica da teologia de L. Boff. O estudo chegou ao termo
como a construção de uma casa que após iniciada, precisa ser bem cuidada para que
seja espaço de vida. Na casa do Reino de Deus, Jesus faz sua morada permanente,
e homens e mulheres compartilham da sua plenitude de vida, que se vai realizando
pela prática do amor, em entrega da própria vida.
Nesta configuração, a pesquisa começou pelo ver o sentido da vida humana
enquanto experiência humana da existência em chave de compreensão pós-
moderna. No primeiro momento, a pesquisa sobrevoou algumas questões de estrito
sentido filosófico, bem como questões existenciais inerentes ao ser humano.
A questão existencial é recebida na filosofia como busca radical de sentido
para a vida e de sabedoria para o nosso tempo. Ademais, o concreto da vida
fragmentado pela crise pós-moderna, tem na filosofia uma de suas escoras. Para
uma compreensão de ‘existência’ verificou-se haver uma prevalência deste verbete
em dicionários de filosofia e sua escassez em teologia. Assim, a filosofia foi de
grande ajuda, por exemplo, para falar de existência. Na concepção aristotélica, a
categoria ‘existência’ significa o que existe, aquilo que na realidade é de fato, antes
mesmo de qualquer discurso e para além do pensamento. Neste contributo, a
existência tem um valor intrínseco. Aristóteles fala do ser concreto, como aquele
que vive na história e que interage com todos os seres, um ser de relações éticas.
Enquanto ser racional dotado da palavra, logos, ele tem a capacidade de expressar
o sentido da sua existência.
261
No que concerne ao termo “pós-modernidade”, foram visitados alguns
sociólogos que problematizam a caminhada pós-moderna num viés antropológico,
privilegiando as influências para a vida humana. Não se trata de discutir os
fundamentos históricos e sociológicos que gestaram a pós-modernidade.
Ultrapassaria de longe esta pesquisa. O interesse é unicamente teológico, e, por isso,
focalizaram-se suas influências nas relações de todo ser humano. Entre tais
sociólogos, não há um consenso quanto ao termo “pós-modernidade”. No entanto,
é consensual que o tempo atual é marcado por profundas transformações. É um
tempo de mudança de sentido, mesmo de negação do sentido, incluído o sentido da
vida.
Resumidamente, “pós-modernidade”, mais que a um dado cronológico,
refere-se a um conceito. Sua novidade consiste em radicalizar as características
fundamentais da modernidade. O pós-moderno atribui-se o poder de dar ou tirar
valor a tudo que existe, e mesmo de eliminar sua existência. A civilização pós-
moderna interfere ostensivamente na compreensão do sentido da vida. Ela
estabelece como centro de significação uma realidade objetiva, exógena, ou mesmo
a renúncia ao sentido. O próprio ser humano é visto como um elemento do universo,
dele totalmente dependente, para existir e para deixar de existir. Este dado da pós-
modernidade esteve presente no decorrer de toda pesquisa, pela influência nas
próprias temáticas discutidas.
Enquanto a civilização moderna estabelecia o sujeito e a razão crítica como
fonte de interpretação, conhecimento e aceitação das verdades, a pós-moderna
manifesta sua ruína por excesso dessa mesma razão moderna, ou seja, excesso de
racionalização. É a crença excessiva na razão que a coloca como a medida e critério
de realidades que se apresentam como portadoras de sentido, como Deus, vida,
bondade, alegria. Por esta postura, diluem-se as categorias que atribuíam valor ao
mundo (como ser, unidade). O mundo, por sua vez, é declarado carente de valor.
Esta ideia conduz a tocar a existência e viver sua tensão de fundo, entre o real e o
ideal, o acaso e o sentido, o trágico da existência, sem nenhuma esperança.
Através desta leitura, verificaram-se algumas consequências vitais da pós-
modernidade. Primeiramente, trata-se de uma mudança de época, que traz ausência
do sentido, adesão ao ceticismo e retirada da transcendência. Instala-se de pronto
uma crise, que bem ao contrário de ser indício de criatividade, de interpelação ao
ser humano para que faça experiência da existência relacional no cuidado da vida,
262
procura demovê-lo disso. A crise fragmenta a vida ao constituir uma realidade que
prima pelo volátil, fluído e descentrado de si, que expulsa toda proposição de
eternidade e transcendência. De fato, desconstruir a relação é desnortear o ser
humano, privando-o de um horizonte de sentido da vida. Uma última consequência,
a abundância do potencial da vida é desperdiçada. Observou-se que a civilização
pós-moderna, pletora de avanços técnico-científicos e de multiplicação de meios de
comunicação social, por exemplo, regozija-se de sua exuberância. O excesso e o
desperdício constituem a referência absoluta de uma vida feliz. Nesta lógica,
abundância e desperdício amalgamam-se desequilibradamente. Resulta que cada
pessoa se encontra rodeada de objetos, de fartura virtual e paradoxalmente, sofre
com a ausência recíproca uns dos outros.
A busca pela vida, encerrada na imanência da história não se satisfaz com
suas concretizações. O ser humano grita por experiência que confira
significatividade à vida, mostrando assim que as brasas se mantêm acesas por uma
vivência humana, no horizonte da plenitude. Concluiu-se na assertiva de que a
própria razão abre espaço para se falar de um sentido da vida.
Pelo viés da antropologia teológica, por este primeiro ver, constatou-se que
o ser humano tem fome de sentido. Seu grito traduz a busca de uma realidade
unificadora diante da multiplicidade, das vorazes mudanças e ambivalências
prementes do ser humano. E não seria o grito de súplica do ser humano eco da voz
do Mistério que tudo centra e irradia vida em abundância para todos? Mister se fez
tomar a teologia de L. Boff.
Estas questões de per si já adentram o ver da busca humana pelo sentido da
vida na pós-modernidade, agora considerados na esteira teológica de L. Boff. Suas
múltiplas exposições da ecologia, ética, filosofia, sociologia e psicologia tiveram
uma mesma preocupação: refletir a crise da civilização pós-moderna, a busca de
uma saída pelo fio condutor da esperança.
Aqui, busca é por inter-retro-relações em resposta ao apelo infinito por uma
vida de sentido que lateja dentro do ser humano. Para alcançar este objetivo, foi
necessário, primeiramente, conhecer sua história e concepção teológica, para
analisar algumas concepções que lhe são particulares. Os escritos de L. Boff são
uma reflexão teológica cristã elaborada a partir da experiência humana do Mistério
divino. Trata-se de uma teologia nascida no ambiente do Concílio Vaticano II.
Expoente desde os inícios da Teologia da Libertação, que procura assumir a
263
perspectiva do pobre como princípio de articulação da reflexão. No pensar de L.
Boff, a Teologia da Libertação assemelha-se a outras teologias, pois também fala
de temas teológicos, como Santíssima Trindade, Graça, pecado, Igreja. Ele ressalta
que sua originalidade está na opção metodológica, isto é, a plataforma da Teologia
da Libertação é leitura da realidade, à luz da fé, portanto da Sagrada Escritura, a
partir dos pobres. Trata-se de uma teologia que ultrapassa os limites da América
Latina. Este novo modo de fazer teologia é fruto da percepção de um sistema sócio-
econômico opressor. A partir da percepção da indignação que tal sistema suscita,
cresce na América Latina um novo processo de conscientização, agora marcado
pela recuperação da dimensão do ser social em todas suas relações tão esquecidas,
na maioria, das propostas para a busca de sentido da vida.
Seu pensamento é tematizado e publicado por diferentes grupos e pessoas.
A visita a sites e bibliotecas/plataforma mostra grande variedade internacional de
estudos sobre seu pensamento em distintas academias, como, ciências médicas,
história social, filosofia e teologia. Sua teologia tem, pois, um horizonte planetário.
A escolha dos interlocutores teve como primeiro critério, naturalmente, acolher
autores de diferentes perspectivas. Foram lidos mais de perto um Bispo e um leigo
católicos, e um pastor presbiteriano. Cada um a seu modo, contribui para que a
teologia de L. Boff se torne mais conhecida e revele sua atualidade. Foi visto que
com o processo desencadeado pela Igreja do Rio de Janeiro, com o então Bispo
auxiliar, Dom Karl Josef Romer, o pensamento de L. Boff estendeu-se para outros
Continentes.
Paulo Agostinho, num outro viés, postula, que em dado momento, surgiu
um novo paradigma no pensar de L. Boff. Entretanto, isso não é um consenso e esta
pesquisa não adota este ponto de vista. França Matos, ao criticar a teologia e a ética
social de L. Boff, deixa entrever sua tenacidade de fazer uma teologia que pensa
uma ética social e apropria-se ontologicamente da evolução do universo na reflexão
de T. de Chardin.
O homem e teólogo, L. Boff, revela que a teologia não lhe é algo postiço.
Seu ser homem descreve uma experiência humana de quem se deixa dialogar com
o Mistério. Seu ser teólogo mostra que ele permanece na esteira de uma teologia
que experimenta unir o destino da vida na história com a vida na transcendência.
Com isto L. Boff salvaguarda sua atuação em favor dos pobres, os amados do Pai.
As penas e punições sofridas, descreve, “são nada face à paixão diuturna dos
264
pobres”. Assim, desenvolve uma teologia que transpira em sua vida, e por isto
inspira vida através de trabalhos científicos, palestras, participação em Mesas
redondas, etc.
Dois temas são recorrentes, na teologia contemporânea, e balizam de modo
especial o itinerário teológico de L. Boff: a experiência de Deus e a vida como um
nó de relações, na ótica cristã. Pareceu ser impossível abordar o pensamento deste
autor, desligando-o das ciências da terra, pois sua teologia mantém um diálogo
fraterno e constante com elas. Com a teologia, unida a ciência, o ser humano sai de
seu antropocentrismo ancestral e de sua solidão visceral pós-moderna, para a
travessia na qual ele inter-existe e co-existe com outros seres no universo.
A concepção de evolução do universo tem sido recentemente trabalhada por
diversos cientistas físicos, e os teólogos não lhe podem ficar indiferentes. Esta
pesquisa se restringiu a leituras teológicas das ciências, de uma maneira geral, sem
entrar na discussão dos detalhamentos históricos ou críticos deste campo do saber.
Entretanto, as atuais discussões da cosmologia física, aliadas aos progressos
humanos e científicos, trazem irrecusáveis desafios para a teologia. A acolhida
criteriosa das novas descobertas possibilita um acréscimo na compreensão da
Revelação e crescimento para o diálogo da fé com o campo científico.
A época pós-moderna está inserida num contexto amplo das ciências e
aplicação de inovadoras tecnologias que configuram o quotidiano. Surge um tipo
de sensibilidade global, consciente dos limites do crescimento, denunciadora das
consequências perversas da razão instrumentalizada, a qual explora a natureza
abusivamente, produz armas de destruição em massa, ao lado do discurso de
proteção e soberania e, inconformada com uma organização social excludente.
No fio condutor da antropologia teológica constatou-se que estar na esteira
do teólogo Leonardo Boff, implica uma receptividade crítica das filosofias da
ciência. Verificou-se haver uma convergência fulcral, pois que, nas diversas
disciplinas, a vida é concebida como processo de relações vitais, inerentes ao
processo evolutivo da vida. Recusa-se uma visão ingênua, que afirmasse a
‘confirmação’ de teses filosóficas por postulados científicos. Mas é normal esperar-
se uma visão da vida que seja coerente com o processo da vida, em suas dimensões
física e biológica. Buscou-se uma imagem coerente da cosmologia. Para o autor em
pesquisa, cosmologia é uma construção teórica que permite elaborar uma imagem
do universo, de forma que a sociedade que a projeta, situe-se no próprio universo.
265
Por tudo isso, a pergunta pelo sentido da vida a partir da fé em um Deus
criador e do advento da pós-modernidade necessitou de uma resposta mais precisa,
sobretudo tendo em vista os últimos resultados das ciências e os estudos
polissêmicos. Em última instância, não basta afirmar que a relação é o constituinte
do ser vivo. Tornou-se necessário examinar o modo em que elas se realizam e suas
implicações para a vida.
O pensamento antropológico teológico de L. Boff traz a característica de ser
aberto e processual. Em sua concepção, a vida é espaço de explosão e implosão de
realização. O indivíduo está em si mesmo, mas também fora de si, nas outras
criaturas e no coração de Deus. É um ser que tem fome de Sentido.
Caminhar na esteira de L. Boff é pensar em espiral: ao mesmo tempo em
que faz avançar o pensamento humano, aprofundam-se as ideias anteriores. Este
modo de pensar é riqueza e desafio. É desafio por não ter à frente um pensador com
uma rígida sistematização. E é uma riqueza porque integra em sua experiência a
expressão do Mistério do primado de Cristo: “Ele é a Imagem do Deus invisível, o
Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e
na terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1,15-16).
L. Boff cria uma linguagem própria em que une experiência teológica e
linguística, e muitas das vezes poética, para falar especialmente da existência
humana. Em seus textos, encontram-se palavras originais, seja pela junção com
outras a fim de melhor expor seu pensar, seja porque no desenvolvimento da história
algumas foram perdendo seu sentido fontal, que ele, ressignificando, recupera. Ele
convida a ver a vida pela ótica da dualidade e do otimismo, de quem, como Paulo,
missiona o Ressuscitado “que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho dos seres
celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra” (Fl 2, 10-11).
No pensamento do autor viu-se que para ele ser racional e existência
incluem reciprocamente. A vida humana consiste na realização da sua existência,
num processo em aberto, intrinsecamente criativo, participativo e inclusivo de
todos. A existência humana comporta uma relação dialógica com o Ser em
plenitude e a convivialidade com os outros seres, estabelecendo comunhão, e por
esta via, apreende-se o sentido da vida. A busca pelo sentido é uma questão de
caráter existencial.
Em sua teologia, esta asserção significa dizer que a experiência existencial
consiste em sair de si em direção ao outro. Sente que a vida é a sua própria casa,
266
quando se abre ao diferente e com ele interage. A pessoa humana é um nó de
relações consigo mesmo, com os outros, com a sociedade, com a natureza, com o
universo e com Deus. Nesta experiência, conclui, o ser humano se descobre dentro
de um projeto Infinito, que está a realizar-se no finito.
Ser de buscas, o ser humano não se contenta com a realidade dada. Seu modo
de existência já é indício de que sua direção é o infinito. Por seu caráter imanente e
transcendente, este pensar recupera a concepção de vida em que o ser humano não
se sente mais estranho em seu próprio habitat.
Considerou-se que a busca pelo sentido da vida chama a atenção para a
inversão de valores, em todas as relações humanas. O ser humano modelado para
ver o horizonte da realidade, torna-se encurvado: rebeldia com relação a Deus,
dominação com relação a seu irmão/irmã, desrespeito de si mesmo e escravo das
coisas. Questionado pela perspectiva paradoxal de uma cultura que produz uma
leitura da vida a partir de uma perspectiva que a mira como destituída de valor, mas,
ao mesmo tempo, é prenhe de buscas e inquietações que latejam em seu dinamismo
mais profundo, L. Boff denuncia esta leitura unilateral e extrinsicista que a
desumaniza e coisifica. Ele quer com isso superar a dicotomia entre sentido e não-
sentido. Esta atitude perpassa todo seu pensamento e contribui para uma
experiência integradora da vida. Amiúde faz refletir que o constituir-se como um
ser de abertura e de relação quer significar o ser humano enquanto ser de interações
contínuas e com tudo que se apresenta à sua realidade.
O pensamento relacional, holístico, evolutivo, que visa abranger todas as
dimensões da vida, no construir-se da existência, é constante em toda a trajetória
teológica de L. Boff. Existência e relação estão intrinsecamente ligadas.
L. Boff denuncia o monopólio de um pensamento único para a totalidade da
vida. Assim, ele possibilita à existência retomar seu caminho no percurso do
paradigma que integre, harmonize, e coexista indivisamente, o pathos, eros,
daimon, ethos e, também, o logos. Descobre a vida orientada para relação sempre
aberta, em evolução, em processo de gênese, sustentada por uma experiência real
que habita seu interior, e extrapola e excede toda experiência existencial: o mistério
Deus Trino.
Em sua primeira obra, O Evangelho do Cristo Cósmico, L. Boff já afirmara
que no processo antropológico da criação está presente a realidade do Mistério
transcendente, a presença unificante de Cristo. Mesmo a evolução é situada em
267
relação a uma existência: Cristo. É o que permite captar, no processo evolutivo, um
centro unificador e originante de toda a realidade. Ele é o primeiro, por já estar
presente no início. A evolução é produto dele, que, no entanto, não é produto da
evolução. Primeiro Cristo, e mediante a evolução, Cristo origina e atrai todas as
coisas a si.
Em direção inversa, L. Boff adverte que o estruturalismo que apresenta o
mundo e o ser humano como algo que está para além da estrutura e do sistema, para
alcançar a inteligibilidade, mas que nega qualquer realidade-suporte de tudo,
constrói uma concepção de vida que supõe o relacionar-se, mas que lhe nega um
centro, um ponto ômega. Para este autor, o ser humano tem um centro que não está
em si mesmo. A espiritualidade é o lugar da relação e da irradiação de uma
harmonia renovada, o lugar de religar todas as coisas ao centro de sentido da vida.
Este centro constituinte do ser humano é formado pela contínua doação de si. O ser
humano sai de si, para buscar o centro que está no outro e em Deus. É nesta doação
que percebe o seu ser pessoa. O sentido de ser pessoa é um permanente criar-se a
partir de uma relação.
Nesta esteira teológica da vida em seu sentido, considerou-se que a
consciência humana capta dentro do fluir da própria vida o anúncio de uma
exigência maior de sentido, uma expectativa de humanização mais profunda, que
leve em conta a dimensão de um Mistério maior, que habita o interior de cada
homem e mulher. Neste horizonte, L. Boff, ao falar do ser humano como ‘nó de
relação’ convoca e provoca a pessoa a retornar ao fio primário do sentido da vida,
ao Deus-Trino. Ele afirma ser a transcendência um princípio antropológico, isto é,
ela constitui o que é essencial em cada ser humano, contudo, adverte que ninguém
detém o monopólio da transcendência. Desta experiência ontológica relacional, o
ser humano capta o sentido que busca, e que não está em algo externo à própria
vida. Nenhum ser humano saboreará o sentido da vida, e não conferirá significativo
à porção do universo com a qual convive, se não estiver aberto às relações, num
movimento de pericórese. O pós-moderno, racionalista embora, talvez, por levar ao
extremo o racionalismo de molde empírico-matemático termina por fazer-se
sensível ao Mistério divino, ao sentido radical da vida.
A experiência cristã testemunha que a existência da vida com sentido é
abertura de acolhida ao outro, que culmina na abertura ao Outro, Deus-Trino,
grávida de desejo pelo ser humano. Ele é o primeiro, em nós, em tudo. O desejo de
268
uma vida com sentido é resposta ao desejo de Deus no profundo do ser humano.
Assim, ensina João “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus,
mas foi ele quem nos amou” (1Jo 4, 10). A iniciativa é de Deus. Cabe ao ser humano
buscar o sentido da vida no amor aos outros “quanto a nós, amemos, porque ele nos
amou primeiro” (1Jo 4, 19). A vida com sentido tem dimensões desde toda a
eternidade.
O pensar teológico de Leonardo Boff coloca-se na esteira de um pensar
evolutivo, dual, em que o ser humano é um nó de relações para todos os lados. Tais
categorias não são aleatórias, ou conhecimento fenomenológico, menos ainda,
conceitos mumificados pela razão, mas correspondem à acolhida da existência com
seu sentido. A relação permite entrar na dinâmica, vida e sentido, afastada da
esterilidade da ideia sem conteúdo. Esta compreensão recria constantemente a vida,
participante de um processo global evolucionário em contínua expansão, o que
implica que seu sentido é a evolução e não a estabilidade. Por isto se pode falar em
inter-retro-relações na vida.
Desta forma, concluiu-se que toda a vida tem um significado à luz do
mistério de Cristo. Ele é a promessa-cumprimento. Por ele a história não cai no
sem-sentido. Em direção oposta ao monólogo pós-moderno está justamente o
encontro da Palavra feita carne. Este encontro enseja um diálogo tão profundo, que
a Palavra de Deus dirigida ao humano, torna-se ‘humano’.
Contudo, ao adentrar mais na razão pelas quais as relações são o caminho
de sentido da vida, emerge a questão da unidade, que as concentre e irradie,
envolvendo a pessoa e sociedade, na solidariedade integrada, solidariedade que vem
de Deus e alcança as demais criaturas.
É a aplicação do ver no considerar teológico de L. Boff, que buscou
movimentos não somente para sustentar a vida, mas movimentos que celebram com
alegria e dança. No entrelaçamento da experiência da total gratuidade de Deus e da
gratuidade nas relações humanas conduz à integração da vida de grande júbilo. Com
este fim, a pesquisa fixou seu olhar em ver o ser humano na pós-modernidade em
busca do sentido da vida pelas relações como chave de integração da vida na esteira
teológica de Leonardo Boff.
Estar na esteira teológica de L. Boff é um desafio. Sua teologia evidencia
ser crucial abrir-se espaço para a perspectiva dos outros e, em particular, do grande
Outro, Deus. É essencial verificar se o ser humano, nós mesmos, somos realmente
269
capazes de reconhecer a radical legitimidade da presença desses nós outros, toda a
criação e o Criador na busca pelo sentido da vida. Ou, a existência poderá eclipsar-
se.
Neste diapasão, constatou-se que a categoria relação não é estranha nem
mesmo aos teóricos. Na verdade, ela é noção central do pensamento, Aristóteles,
por exemplo, a inclui entre as dez categorias do conhecimento do ser. Caracteriza a
relação como aquilo que faz com que algo tenha referência a outra coisa. Para o
Moderno Kant, é um princípio a priori que constitui o entendimento e a
possibilidade da experiência. Noção constituinte das ciências, a relação é o
referencial para o estudo dos seres e das demais realidades. Para o cientista físico,
Lee Smolin, uma das grandes descobertas da ciência é a compreensão que a vida
em nosso planeta constitui um sistema interligado.
O terceiro, e último, ver teve como horizonte o sentido da vida enquanto
orientação e identidade do ser humano. Isto porque, o ser humano pode ser dito
melhor como orientação do que definição, no sentido estrito do termo. L. Boff tem
consciência que dizer que o ser humano é um nó de relações voltado para todos os
lados, é na verdade, e apenas uma direção, visto que o ser humano, na verdade,
nunca termina de construir-se. Ele é tudo isso e ainda mais, ele é um projeto infinito,
significa que cada pessoa, nós seres humanos, é habitada por um amor totalizante
que não encontra no universo nenhum objeto que lhe seja adequado e que o faça
repousar.
Ser orientado para Deus compreende participar de seu projeto. A
participação no ato criador evoca o ato de Deus em sua iniciativa gratuita e plena
de ternura. A relação Criador-criatura não esgota o poder criador. Do lado do
Criador, a criação não implica diminuição, por criar algo que não é Deus. Do lado
da criatura, a participação não se dá por identidade com o Criador, o que seria
panteísmo. Antes, a participação se dá pelo gesto da bondade de Deus que ao
revelar-se permite conhecer o mistério de sua vontade de amar radicalmente. Esta
percepção permite avaliar os esquemas isolacionistas e fragmentários, que
transformam o ser humano em peça de uma cega engrenagem cósmica, frente a sua
sede de sentido. O ser humano é chamado a construir e participar do mistério de
Deus. É chamado a viver criativamente, o que lhe confere sentido à vida. L. Boff
dá a entender que participar de Deus significa viver na abertura de relações em
amor, autodoação e comunhão, a partir do mistério de Deus-Trino. O contrário, sem
270
a participação ativa e livre da pessoa humana, toda descoberta de sentido seria fruto
de um encanto mágico ou um mito de faz-de-contas.
Na compreensão de L. Boff, todos os encontros humanos são vistos sob a
perspectiva de um horizonte maior da realidade. Por isto pode-se dizer que todo
encontro é encontro sacramental, pois se trata de ver o mundo todo como criação
de Deus. Ver a realidade, imanência, que aponta para outra, mais completa,
transcendência, Deus. Contudo, a realidade Deus não é somente transcendência,
nem somente imanência. Deus é transcendência que aparece na e para a imanência.
Por isso sua realidade é também transparência. As duas dimensões vividas pelo ser
humano – imanência e transcendência – encontram sua harmonização na
transparência. Através da transparência, a imanência torna-se possibilidade de ir
além, de ser mais que realidade física, e a transcendência torna-se possibilidade do
além ser possível, real, enraizado.
Conclui-se que a experiência do sentido da vida em seu mistério absoluto
mostra uma presença que não se desvela, mas de uma presença reveladora do Deus-
Trino que torna possível o desvelamento de toda pessoa em particular. Assim, o
sentido da vida é transcendente a todos os significados particulares na história, pois
não se identifica com nenhum efeito particular, nem é a soma dos sentidos
particulares abertos para se falar do sentido. É uma presença que se revela em si
mesma. Também, o sentido radical é imanente, pois é uma presença que desvela o
ser pessoa e uma linguagem para falar deste mistério. Portanto, o sentido da vida é
transparente, isto é, transcendente na imanência na história e em todos os
significados humanos. Com efeito, afirmar Deus é afirmar o sentido da vida
humana. Onde há vida, Deus está presente como seu fundamento.
Na circularidade do absoluto amor e cuidado, pericórese, Deus-Trino revela
seu rosto à humanidade. Jesus Cristo é a autocomunicação do rosto de Deus na
história. Em Jesus o sentido da vida é experiência de festa e de alegria, antecipação
do paraíso, vida em abundância, integração em todas as relações. Cristo diz respeito
a todo o universo, de modo que não se pode mais falar do ser humano sem Deus,
porque definitivamente: Ele veio fazer morada na história para sermos um com Ele.
Bendita seja a Trindade Amada, que reúne todos e todas em seu viver eterno,
conduzindo a humanidade à experiência de seu amor. Em seus movimentos de vida
encontram-se irmãos e irmãs que impulsionam o ser humano, nós, a sair de sua
redoma para juntos entrar na dança da Ciranda Trinitária, e de mãos dadas
271
proclamemos sem cessar: Banhados em Cristo, somos criaturas de Sentido, as
coisas antigas já se passaram, somos nascidos de novos!
Com L. Boff verifica-se um repensar a vida como inter-retro-relacionar-se
com o sentido da vida, ao Mistério, Deus-Trino. No atual contexto pós-moderno
esta tarefa toma uma forma específica na qual são fundamentais o resgate e a
humanização da vida.
Portanto, a estrutura humana que se fundamenta no mistério de Deus-Trino
e a experiência de uma crise civilizacional, que na verdade revela a crise do sentido
fundante do sistema vida – na particularidade histórica da busca pelo sentido da
vida – tornam-se elementos para falar da vida em Jesus Cristo, o rosto de Deus,
tendo como ponto de partida as relações como chave de integração da vida na esteira
teológica de Leonardo Boff.
A abordagem sistemática da busca do sentido da vida impõem-se alguns
riscos, particularmente por não trabalhar com definições prontas, ou mesmo, com
um pensamento categorial. Isto se faz sentir, por exemplo, no que tange às palavras,
vida, sentido, relações, pós-modernidade, Deus. Nesta consciência do caráter
lógico-intelectivo da pesquisa, que, ao mesmo tempo, trata da experiência humana,
urge falar com cuidado e abertura dialogal em todas as direções.
No que concerne o sentido da vida, a bibliografia sobre a vida é extensa. O
mesmo vale para o termo ‘sentido’. Acresça-se a disparidade de interpretações e
compreensões pelas diferentes ciências, e dentro da mesma ciência, diferentes
autores. No campo científico, o assunto ‘sentido da vida’ ou ‘crise do sentido na
pós-modernidade’ teve, no decorrer da história, diferentes interpretações, devido,
obviamente, a seu objeto de conhecimento de difícil caracterização e na sua função
de polo constituinte do saber. Se por um lado há dificuldade em encontrar-se uma
definição para ‘vida’, ou mesmo a impossibilidade de sua apreensão por palavras,
há o risco de ser compreendida de maneira genericamente superficial pela falta de
um conceito.
Com frequência se fala hoje de relações, tema que está na moda. Contudo,
verifica-se, uma forte separação entre ser humano e relação. Sentiu-se a
responsabilidade em utilizar a palavra relação para significar caminho de
integração, posto que a civilização pós-moderna se se fala também de relação,
porém sem laços duradouros de bem querença ao outro e expulsa de toda proposição
de eternidade.
272
A compreensão da pós-modernidade traz como primeira dificuldade o fato
de se estar vivendo nela. Além deste termo não ser consensual nem mesmo entre os
sociólogos, é comum encontrar nos esforços de definição que este é um tempo de
nítida disparidade com o passado, entende que nada poder ser conhecido com
certeza no presente, e que a história é destituída de teleologia. Por outro lado, neste
tempo, fala-se de um ser humano em criação em um universo inacabado, onde toda
a criação está em vir a ser. Não há palavra humana que lhe ponha ponto final, e
ainda assim, toda palavra exige reverência e cuidado.
Mais um desafio, mas não o último, versa sobre Deus. A linguagem não
capta a experiência humana que se faz dele, muito menos abarca seu mistério. Vive-
se a tensão entre a exigência interna de se falar da experiência e impossibilidade de
sua apreensão. Tais desafios não arrefeceram a pesquisa, antes demonstraram que
a experiência humana viva é dual. Absoluto é só Deus.
Aliás, estar na esteira teológica de Leonardo Boff é convite a ver a realidade
captando a profundidade que se revela em todas as criaturas. A propósito, a
pesquisadora foi ininterruptamente impulsionada por seus escritos, repletos de uma
experiência de Deus transparente que preenche todo o universo. Muito bom foi
também encontrar ao vivo com um humano que reflete profunda sensibilidade e
esperança na escuta e no olhar. Sua teologia traz à memória que de Deus, jamais
saímos e sempre, em qualquer situação na vida, nele estamos, movemo-nos e
somos. E nos relacionamos.
273
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