Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turístico

download Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turístico

of 13

Transcript of Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turístico

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    1/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    1

    Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico1

    Ana Teresa Gotardo2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ e Universidade Federal Fluminense, UFF

    Resumo

    O presente artigo aborda narrativas que constroem o Rio de Janeiro como cidade-mercadoria no documentrio seriado sobre turismo 1000 places to see before you die.Baseando-se em clichs que vendem a metrpole carioca como cidade hiper-real paraconsumo turstico, a srie, de origem estadunidense, foi exibida pela primeira vez na redeTLCem 2007 e baseada em livro homnimo. Em um momento no qual o Rio de Janeiroera permeado por representaes da violncia na mdia, as quais contribuiam para aconstruo de uma atmosfera de medo, o documentrio exclui a pobreza, a favela e at parte

    da geografia da cidade, restringindo seu consumo a sua rea rica, a Zona Sul, trazendouma ideia de perfeio que corroborada por turistas estrangeiros.

    Palavras-chave: Turismo; Cidade; Consumo; Televiso; Hiper-realidade

    Introduo

    A cidade do Rio de Janeiro o destino preferido dos turistas que vm ao Brasilquando o motivo da viagem lazer. Eles buscam sol e praia, e apenas 2% se declararam

    decepcionados com a viagem. Em 2013, quase seis milhes de turistas visitaram nosso pas,

    gerando uma receita cambial turstica de US$6,7 bilhes3. O turismo um mercado amplo e

    rentvel, e, dentro de suas perspectivas poltica, econmica e mercadolgica, necessria a

    (re)construo de uma boa imagem da cidade, uma imagem que estimule o consumo

    turstico, adequada aos padres de uma agenda internacional. O resultado desta demanda

    pode ser visto, por exemplo, na mdia, e, mais especificamente, nos documentrios seriados

    sobre turismo produzidos por estrangeiros, objeto de estudo deste trabalho.

    Este artigo busca compreender os imaginrios relacionados cidade do Rio de

    Janeiro no documentrio seriado sobre turismo 1000 places to see before you die, de origem

    estadunidense, baseada em livro homnimo escrito por Patrcia Schultz, considerado o livro

    1 Trabalho apresentado ao GP Comunicao e Culturas Urbanas, XV Encontro dos Grupos de Pesquisas emComunicao, evento componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao.

    2 Mestranda no PPGCOM/UERJ. Relaes Pblicas na UFF. email: [email protected] extrados de http://www.dadosefatos.turismo.gov.br/export/sites/default/dadosefatos/anuario/downloads_anuario/Anuario_Estatistico_de_Turismo_-_2014_-Ano_base_2013_Dez2014.pdf. Acesso em 26 fev. 2015.

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    2/13

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    3/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    3

    Televiso, consumo e simulacros

    Pensar as representaes miditicas no contexto da contemporaneidade requer um

    esforo no sentido de compreender a comunicao de massa tal como nos orienta Hall(2013, p.428), em termos de uma estrutura produzida e sustentada atravs da articulao

    de momentos distintos, mas interligados produo, circulao, distribuio / consumo,

    reproduo na qual, embora cada etapa do processo seja autnoma, com modalidades,

    formas e condies de existncia especficas, elas so conectadas e, da mesma forma, cada

    um pode constituir uma ruptura. O objeto, neste processo

    composto por significados e mensagens sob a forma de signos-veculo

    de um tipo especfico, organizados, como qualquer forma de comunicaoou linguagem, pela operao de cdigos dentro da corrente sintagmticade um discurso. [...] O processo, desta maneira, requer, do lado daproduo, seus instrumentos materiais seus meios bem como seusprprios conjuntos de relaes sociais (de produo) a organizao e acombinao de prticas dentro dos aparatos de comunicao. Mas sob aforma discursiva que a circulao do produto se realiza, bem como suadistribuio para diferentes audincias. Uma vez concludo, o discursodeve ento ser traduzido transformado de novo em prticas sociais,para que o circuito ao mesmo tempo se complete e produza efeitos. Senenhum sentido apreendido, no pode haver consumo. Se o sentidono articulado em prtica, ele no tem efeito. (idem, p.429)

    Quando tratamos das representaes sobre a cidade do Rio de Janeiro e sobre o

    carioca produzidas por estrangeiros para exibio internacional, necessrio tambm

    compreender o imaginrio social envolvido em sua produo e consumo, ou seja, quem cria

    os sentidos nessa produo discursiva e como o telespectador percebe essa produo, alm

    dos objetivos mercadolgicos envolvidos no processo como, por exemplo, a construo

    de uma imagem favorvel da cidade para a realizao de megaeventos. Este trabalho aborda

    a primeira etapa do processo proposto por Halla produo de sentidos sobre o carioca e oRio de Janeiro em documentrios seriados sobre turismo para a TV, mais especificamente

    no que diz respeito construo da metrpole carioca enquanto cidade-mercadoria para

    consumo turstico.

    Moscovici (2007), em seus estudos acerca da constituio da sociedade por grupos,

    atos e ideias, salientou os efeitos condicionantes impostos mente por representaes,

    linguagem ou cultura, tendo em vista que ns pensamos atravs de uma linguagem; ns

    organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que est condicionado, tantopor nossas representaes, como por nossa cultura(idem, p.35). Esse poder est presente

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    4/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    4

    nos documentrios seriados sobre turismo exibidos na televiso de diversas formas, dentre

    as quais destaco duas. Em primeiro lugar, a viso do estrangeiro na construo de uma

    alteridade somos esse outro que deve ser civilizado, consumido, desvelado, ou seja,

    quem narra se coloca como civilizador, trazendo os limites, as regras e os benefcios doconsumo. Tambm h a questo do meio, a televiso, parte das indstrias culturais que,

    segundo Hall (2013a, p.281-282)

    tm de fato o poder de retrabalhar e remodelar constantemente aquilo querepresentam; e, pela repetio e seleo, impor e implantar tais definiesde ns mesmos de forma a ajust-las mais facilmente s descries dacultura dominante ou preferencial. isso que a concentrao do podercultural os meios de fazer cultura nas mos de poucos realmentesignifica. Essas definies no tm o poder de encampar nossas mentes;

    elas no atuam sobre ns como se fssemos uma tela em branco. Contudo,elas invadem e retrabalham as contradies internas dos sentimentos epercepes das classes dominadas; elas, sim, encontram ou abrem umespao de reconhecimento naqueles que a elas respondem. A dominaocultural tem efeitos concretos mesmo que estes no sejam todo-poderosos ou todo-abrangentes. Afirmar que essas formas impostas nonos influenciam equivale a dizer que a cultura do povo pode existir comoum enclave isolado, fora do circuito de distribuio do poder cultural e dasrelaes de fora cultural.

    Por esse motivo, importante compreender a importncia dessas narrativas, j que

    elas no excluem contedos mais formais (ou modernos), mas veiculam os motivos

    perenes da ordem inacabada a que o ser civilizado atribui uma confiana mal definida: o

    medo do estrangeiro, a magia dos lugares, o abandono surrealista ao espao urbano, a

    viagem inicitica (Maffesoli, 2004, p.155).

    Nesse sentido, a televiso no caso deste trabalho, o documentrio seriado em

    anlise constri sentidos sobre o Rio de Janeiro enquanto mercadoria a ser consumida.

    Para esta anlise, entendemos que o consumo, tal como proposto por Canclini (2010, p.60),

    o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriao e os usos dos

    produtos, ou ainda no como simples cenrio de gastos inteis e impulsos irracionais,

    mas como espao que serve para pensar, e no qual se organiza grande parte da

    racionalidade econmica, sociopoltica e psicolgica na sociedade (idem, p.14). Essa

    reconceitualizao se faz necessria, segundo o autor, em virtude das transformaes que

    articulam cidados e consumidores, uma juno entre os termos que se altera devido a

    mudanas econmicas, tecnolgicas e culturais. Essas mudanas promovem

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    5/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    5

    reconfiguraes identitrias, j que as formas como obtemos informaes sobre cidadania

    so principalmente atravs do consumo privado de bens ou meios de comunicao.

    Featherstone (1990) aborda a lgica do consumo associada forma socialmente

    estruturada de uso dos bens para demarcar relaes sociais, mencionando a mediao da

    aquisio de mercadorias em aspectos do tempo livre. Essa viso do consumo aborda os

    seus prazeres emocionais ligados a um imaginrio cultural consumista. Assim, prope uma

    passagem da nfase materialista para uma nfase cultural, ou seja, deixa de lado a viso que

    considera o consumo como derivado da produo. Nesse sentido, as associaes

    simblicas das mercadorias podem ser utilizadas e renegociadas para enfatizar diferenas de

    estilo de vida, demarcando as relaes sociais(Featherstone, 1990, p.35).

    O autor ainda aborda essa mudana de foco no trabalho de Baudrillard. Segundo

    Featherstone (idem, p.33-34)

    Isso fica mais perceptvel nos escritos mais recentes de Baudrillard, nosquais a nfase se desloca da produo para a reproduo, para areduplicao infinita de signos, imagens e simulaes por meio da mdia,abolindo a distino entre imagem e realidade. Assim, a sociedade deconsumo torna-se essencialmente cultural, na medida em que a vida socialfica desregulada e as relaes sociais tornam-se mais variveis e menosestruturadas por normas estveis. A superproduo de signos e a

    reproduo de imagens e simulaes resultam numa perda do significadoestvel e numa estetizao da realidade, na qual as massas ficamfascinadas pelo fluxo infinito de justaposies bizarras, que levam oespectador para alm do sentido estvel.

    Nesse contexto, Baudrillard (1991) considera os meios de comunicao como uma

    espcie de cdigo gentico que comanda a mutao de real em hiper-real (p.45). Segundo

    o autor, a produo e reproduo so necessrias, dentro das sociedades, para ressuscitar o

    real, o que torna essa prpria produo hiper-real.

    A simulao de um territrio, de acordo com o filsofo, hiper-real por se tratar da

    gerao de modelos de um real que no possui origem nem realidade. Os simulacros

    precedem e engendram o territrio. A sobrevalorizao dos mitos de origem, dos signos de

    realidade e a nostalgia assumem o sentido de real. A simulao torna-se estratgia de real,

    de neo-real e de hiper-reale o real se confunde com o modelo. Com isso, salienta que a

    produo hiper-real

    conserva todas as caractersticas do discurso da produo tradicional masno mais que a sua refraco desmultiplicada (assim, os hiper-realistasfixam numa verossimilhana alucinante um real de onde fugiu todo o

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    6/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    6

    sentido e todo o charme, toda a profundidade e a energia darepresentao). Assim, em toda a parte o hiper-realismo da simulaotraduz-se pela alucinante semelhana do real consigo prprio.(Baudrillard, 1991, p.34)

    Dentro desta perspectiva, buscamos compreender a construo de sentidos para o

    consumo do Rio de Janeiro enquanto cidade-mercadoria, consumo esse que desconsidera

    e/ou reconstri o cotidiano da cidade sob padres estrangeiros, j que exclui seus conflitos,

    nega sua geografia e sua pobreza para fazer parte da lua de mel / viagem perfeita de um

    jovem casal estadunidense.

    Rio de Janeiro, cidade hiper-real

    No ano de 2007, a cidade do Rio de Janeiro era notcia na grande mdia nacional e

    internacional especialmente pela violncia associada favela e ao trfico de drogas. Com a

    evidente ausncia dos poderes pblicos, os meios de comunicao ganhavam ainda mais

    espao na construo e controle dos imaginrios, o que ampliava a atmosfera de medo que

    envolvia a cidade6. No entanto, essas verdades no diminuram a importncia turstica da

    cidade maravilhosa no contexto mundial. Suas belezas naturais, a simpatia de seu povo, a

    beleza das mulheres, continuaram a ser celebrados internacionalmente desde que seus

    problemas (leia-se favela e pobreza) fossem ignorados. Assim, temos o episdioBrazildo

    documentrio seriado sobre turismo 1000 places to see before you die, produzido pela TV

    americana para exibio internacional.

    Na srie, o casal Albin e Melanie Ulle, seguindo o livro-guia homnimo, chega ao

    Rio de Janeiro aps uma expedio na Amaznia. Dos 43min34s de programa, cerca de 20

    minutos so dedicados ao Rio de Janeiro, em seu mais clssico (clich) consumo turstico.

    O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa (dito pelo narrador em portugus), apresentado

    em suas belezas naturais aps a descida do avio que situa os telespectadores: praias e duas

    mulatas sambando em contra-plonge, evidenciando as bundas que chacoalham

    freneticamente.

    6Acerca das representaes da violncia no Rio de Janeiro em documentrios seriados sobre turismo, vide: GOTARDO,Ana Teresa; FREITAS, Ricardo Ferreira. Favela como selva urbana: as representaes da violncia no Rio de Janeiro no

    programa Madventures. In: XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao, Foz do Iguau, 2014.Anais ...Foz do Iguau: UDC, 2014. Disponvel em: .Acesso em 24 jul 2015.

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    7/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    7

    A questo da perfeio fsica trazida desde as narrativas fundadoras (Carta de

    Caminha, por exemplo), tal como nos aponta Amncio (2000). O autor salienta que o

    Brasil pr-colonial evoca retrospectivamente uma mitologia da seduo do trpico, com sua

    paisagem paradisaca e sua gente sensual e receptiva (p.22). Um pouco mais adiante, oautor ainda comenta que utopia, mito, miragem, febre de exotismo, todo um repertrio

    conceitual que vai se projetar na viso das Amricas como uma infncia da humanidade

    (p.29). Assim, temos o que o autor chama, em sua anlise sobre as representaes do Brasil

    no cinema estrangeiro, de Filiao Pero Vaz, a qual se trata da figura do viajante que

    vive in locoa relao de alteridade, o narrador, o cronista. [...] Corresponder experincia

    vivida do estrangeiro e as representaes que seu olhar legitima, num processo de seleo

    por rejeio ou afinidade (p.33). O autor salienta que, no cinema, tal como podemos ver naTV,

    H sempre um estrangeiro na trama para estabelecer os limites e aprerrogativa de um determinado ponto de vista, de um recorte que seexplicita nas representaes da alteridade. Colocar na tela um outro povo tarefa que exige uma negociao narrativa, plstica, sonora. Mesmo odocumentrio, campo maior da evidncia da verdade na tradiocinematogrfica, recorre a intermediaes dessa natureza na representaodo Outro. (Amancio, 2000, p.70)

    Essa narrativa da experincia feita por um jovem casal recm-casado, selecionado

    entre 900 concorrentes, para viver a luade mel perfeita, de acordo com o roteiro proposto

    no livro7. Pessoas comuns, no famosas, do o tom de uma experincia aproximativa,

    reagem como quaisquer outras pessoas, criando uma atmosfera de que qualquer um pode

    viver essa experincia, ela est ao alcance de todos. Outros estrangeiros so includos na

    trama para dar seus relatos sobre locais especficos do Rio, legitimando o que o narrador diz

    em off.

    A hospedagem realizada no Copacabana Palace, cuja estrutura, histria e vista

    panormica encantam os viajantes. Isso tudo o que eu quero nesse mundo, diz Melanie

    em frente banheira de hidromassagem com vista para o mar. Albin completa: Ns nunca

    deixaramos o quarto. Philip Carruthers, gerente do hotel entrevistado pelo programa,

    salienta a importncia histrica do local, a qual ganha ainda mais fora quando exibidos os

    quadros de fotos de celebridades que j se hospedaram l. Melanie completa: um quarto

    de uma estrela de cinema.

    7O jornal The New York Times fez uma crtica poca do lanamento do programa, contendo algumas informaes.Disponvel em: . Acesso em 11 fev. 2015.

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    8/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    8

    Sobre esse destaque ao consumo de luxo, Featherstone (1990, p.48) salienta que

    na cultura de consumo ainda persistem economias de prestgio, com bensescassos que demandam investimentos considerveis de tempo, dinheiro esaber para serem obtidos e manuseados adequadamente. Esses benspodem ser interpretados e usados para classificar o status de seu portador.Ao mesmo tempo, a cultura de consumo usa imagens, signos e benssimblicos evocativos de sonhos, desejos e fantasias que sugeremautenticidade romntica e realizao emocional em dar prazer a si mesmo,de maneira narcsica, e no aos outros. A cultura de consumocontempornea parece estar ampliando o leque de contextos e situaesem que esse comportamento considerado adequado e aceitvel. No ,pois, uma questo de escolher entre essas duas opes apresentadas comoalternativas; na verdade, so "ambas".

    A segunda parada do programa (o casal no aparece, h apenas um narrador em off)

    a praia de Ipanema (identificada como Beloso Beach), apresentando uma das imagens-

    clich da cidade: uma tomada do morro Dois Irmos, durante o pr do sol com a contra-

    luz, no possvel ver a favela do Vidigal. Pessoas so filmadas no mar, escolhendo

    biqunis, praticando esportes, tomando sol, conversando, em uma tpica paisagem do

    cio, fornecida pela ideia de no exigncia do trabalho, a viso consumidora do deleite

    tropical, da generosidade da flora, da fauna e dos nativos, [nas quais] projetam-se as

    fantasias idlicas europeias de vrias geraes (Amncio, 2000, p.29). A praia

    apresentada como o palco da vida brasileira pelo narrador do episdio, que descreve

    ainda a relao das mulheres com os biqunis e as cangas (voc raramente ver uma

    brasileira sem uma canga at que ela precise de um lugar para se sentar).

    As praias tambm so identificadas como lar de um esporte popular chamado

    futevlei. O brasileiro Martinho narra que o esporte que nasceu nas areias do Rio de

    Janeiro na dcada de 1960 (a legenda em ingls informa a dcada de 1970) e que existem

    torneios carioca e mundial, atribuindo um status de seriedade e profissionalismo ao esporte.

    Todo mundo parece bonito, diz um dos estrangeiros entrevistados, que ainda ressalta o

    fato de sempre haver pessoas se exercitando na praia, praticando alguma atividade ou

    esportes.

    O destino seguinte o bar Garota de Ipanema, local frequentado por Vincius de

    Moraes e Tom Jobim e onde, segundo o garom entrevistado, a msica homnima foi

    composta. Trata-se de mais uma referncia a um dos clichs da cidade e at mundiais,

    tendo em vista que esta foi a msica mais executada no mundo durante anos, a segunda

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    9/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    9

    mais executada da Histria8. O texto narrado parece no acreditar na lenda (mesmo que

    Antnio Jobim e Vincius de Moraes no tenham escrito a msica no bar, eles praticamente

    viviam ali), mas atribuicrdito ao local ao dizer que a mulher que inspirou a msica (18

    years old beauty), Hel Pinheiro, passava por l todos os dias, enquanto ambos eramfrequentadores assduos do bar. Ns somos um dos bares mais famosos do mundo, gaba-

    se o garom entrevistado.

    Em seguida, a Feira Hippie de Ipanema, com seu artesanato, destacada como o

    melhor local do Rio de Janeiro para se encontrar produtos tpicos de todo Brasil. Um dos

    vendedores da feira entrevistado e conta um pouco da histria do local, paralelamente ao

    guia turstico que acompanha o programa (ele apresentado como guia apenas alguns

    minutos depois), o qual ressalta que h pessoas que vendem artesanato na feira desde seuincio, h mais de 40 anos. Ele tambm diz que h muita criatividade no local, portanto,

    poderia ser visitado vrias vezes, pois sempre haveria algo novo para ser visto. Mais um

    estrangeiro entrevistado, informando que era sua terceira visita ao pas e que sempre ia

    Feira.

    Aps a apresentao dos pontos tursticos, Albin e Melanie so levados Pedra

    Bonita, um destino popular entre os viajantes. Toda tenso de Melanie antes e durante o

    voo de asa delta ressaltado, numa espcie de atribuio de veracidade experincia. Albin

    salta primeiro e, durante seu voo, a tranquilidade e beleza da paisagem so destacadas. Mas

    a tenso volta quando a vez de Melanie. Aps o salto, a recompensa: as belas paisagens, o

    orgulho de si e o marido esperando na praia com uma gua de coco.

    De l, partem para o Corcovado para uma visita ao smbolo icnico do Ri o: o

    Cristo Redentor. Novas paisagens do o tom do passeio, narrado pelo guia turstico que

    apresentou a Feira Hippie de Ipanema. Ele destaca a Floresta da Tijuca como a nica

    floresta urbana do mundo, informando que ela circulada pela cidade, pelo oceano e pela

    Baa de Guanabara. Amncio (2000, p.147-148) reitera que

    Essencialmente areas, as vistas introdutrias do Rio compem o maisimediato leque de clichs sobre a cidade. Esta facilidade de composioplstica, possibilitada pela exuberante corografia, estabelece com apresena do mar a Baa de Guanabara ou as praias ocenicas umconjunto do qual a natureza tropical parece se nutrir para um efeito de

    8Embora a fonte desta informao no seja confivel, j que no existe um ranking oficial, a Universal, gravadora quedetm os direitos de comercializao de Garota de Ipanema, informa que h mais de 1.500 produtos com ela (CDs, DVDs,LPs). http://oglobo.globo.com/cultura/garota-de-ipanema-a-segunda-cancao-mais-tocada-da-historia-4340449.

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    10/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    10

    espetacularidade. A natureza emoldura o nicho urbano e lhe d substnciapictrica.

    Aps o guia que acompanha o casal ressaltar a beleza que toca e inspira artistas

    plsticos, compositores como Tom Jobim e Vincius de Moraes, Albin diz (enquantotomadas de pessoas fazendo a clssica pose dos braos abertos para fotos so exibidas) que

    a esttua do Cristo Redentor

    definitivamente um dos 1000 lugares que voc deve ver antes de morrer,penso que principalmente porque a maioria de ns familiar a ela, umadas mais conhecidas imagens ao redor do mundo, mas v-la em uma fotoou livro no faz justia a ela, voc tem que vir ao Rio e v-lapessoalmente.

    De l, seguem para o Po de Acar (segundo o narrador, praticamente todos que

    visitam o Cristo tambm vo ao Po de Acar). O guia defende a vista do lugar: em

    comparao com o Corcovado, ele diz que tambm uma bela vista, apenas diferente,

    tendo em vista que se trata de um local mais baixo. Do bondinho, ressalta a vista do pr-do-

    sol atrs do Cristo e as pessoas escalando o morro. Aps, conta um pouco da histria da

    cidade, como foi descoberta, e como uma confuso geogrfica gerou o nome da cidade.

    Por fim, j em um programa turstico noturno, o casal guiado a uma escola de

    samba, e o ritmo apresentado pelo narrador:

    a dana caracterstica do Brasil o sensual samba, uma apimentadaexploso rtmica afro-brasileira originria das ruas de regies humildes[the working-class streets] do Rio de Janeiro. samba a todo tempodurante o carnaval, uma celebrao de gala que rendeu ao Rio a reputaode melhor cidade de festa do mundo.

    a primeira vez no episdio que vemos pessoas andando de nibus, associando-as

    ao working-class streets. E, apesar de a visita ser na quadra da Unidos de Vila Isabel,localizada no bairro de Vila Isabel (zona Norte da cidade), a indicao que ela est

    localizada em Ipanema (zona Sul, rea rica e centro de turismo do Rio de Janeiro). Alm

    disso, a msica de fundo um samba para reconhecimento estrangeiro (que usa

    instrumentos como teclado, por exemplo), no tradicional das escolas.

    Enquanto o narrador explica que o desfile um negcio srio no Brasil, que rendeu

    ao Rio a reputao de melhor cidade de festa do mundo, passistas so exibidas com

    closes e em tomadas em contra-plonge. O narrador explica que, se o viajante perder ocarnaval, pode ir a uma escola. O guia conta um pouco da origem do samba e o casal fica

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    11/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    11

    animado ao saber que a escola a qual estavam visitando tinha sido a grande campe do

    desfile no ano anterior.

    Albin e Melanie so recebidos com total dedicao pelo Rei Momo. Uma passista

    explica que o samba a nica forma de ver pessoas pobres e ricas juntas se divertindo.

    Melanie avalia que foi um momento divino e diz que foi quando entendeu o orgulho de ser

    brasileiro. Ao final, os viajantes relatam brevemente sua experincia. Albin diz que os

    brasileiros dividem uma paixo ou esprito comum que ele nunca havia experienciado em

    nenhum outro pas. Melanie avaliou o Rio como uma cidade cosmo-hippie-cool. Ambos

    enfatizaram a felicidade por terem estado no pas e a vontade de voltar, especialmente para

    participar do carnaval.

    Consideraes Finais

    Como um documentrio seriado de televiso, o programa 1000 places to see before

    you dieproduz significados diversos com um certo status de verdade atribudo ao gnero

    documentrio e alcance mundial. A construo da cidade perfeita para consumo turstico

    passa, entre outras questes, pela excluso da favela de seus cenrios e centralizao das

    atividades em bairros da zona sul (ainda que o samba, por exemplo, seja na zona norte e o

    programa passe a informao incorreta para manter o foco no centro do turismo da

    cidade).

    As narrativas em anlise produzem simplificao da realidade urbana, controlam

    e/ou excluem a exibio das diferenas e o inesperado, negam os aspectos

    contraproducentes da vida, produzindo simulacros para consumo (Baudrillard, 1991), um

    consumo alheio aos problemas e ao cotidiano da cidade.

    Mas isso no torna o simulacro uma ferramenta da irrealidade: osimulacro no se ope ao real; o real d base para a criao do simulacro,e este, por sua vez, potencializa o real, criando um novo conceito derealidade, uma simulao diferente do objeto inicial, porm tambm real,a partir do ponto em que essa nova realidade se torna melhor que o real epassa a ter mais importncia do que sua realidade original. Passa a setornar o que Baudrillard (1991) chamou de Hiper-real. (Silva; Manhas,2014, p.152)

    Essas produes constroem contextos de alteridade e criam mapas nacionais que no

    levam em conta as subjetividades, mas que representam um projeto poltico muitas vezes

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    12/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    12

    arbitrrio de transformar o Rio de Janeiro na capital da nova cartografia ps-nacional

    fundada por tentativas de organizar a vida social em torno do turismo (Appadurai, 1997).

    As representaes da metrpole carioca, enquanto cidade-mercadoria, privilegiam as

    praias e um tipo de carioca em detrimento dos bens artsticos, histricos e outros bens

    culturais. Moscovici (2007, p.34) diz que uma representao, sendo compartilhada por

    todos e reforada pela tradio, ela constitui uma realidade social sui generis. Quanto mais

    sua origem esquecida e sua natureza convencional ignorada, mais fossilizada ela se

    torna (idem, p.41). Nesse sentido, Freitas, Lins e dos Santos (2013, p.14), ao tratarem

    sobre o uso dos clichs nos megaeventos, dizem que

    Pode ser, no entanto, que a opo pelos clichs seja a mais eficaz para

    provocar uma identificao, uma simpatia com o pblico, evocando oemocional, imprescindvel a qualquer evento. Afinal, como imagenscristalizadas, os clichs so mensagens j consolidadas no imaginriocoletivo e, no caso deste estudo, no expressam atributos negativos,embora tendam ao reducionismo das manifestaes culturais a que sereferem.

    Certeau (1998, p.40) alerta para o fato de que a presena e a circulao de uma

    representao (ensinada como o cdigo da promoo scio-econmica por pregadores, por

    educadores ou por vulgarizadores) no indicam de modo algum o que ela para seus

    usurios. Nesse mesmo sentido, Maia e Lattanzi (2007, p.75) observam que

    no espao cotidiano e construdo na horizontalidade onde se operam asnegociaes e os jogos de foras que resistem s imposies dos processoshomogeneizantes gerados nos espaos verticais. Nestes espaos verticaisesto presentes as empresas com seus grandes negcios, o mundo dodireito, os homens que supostamente seriam poderosos e osgerenciamentos objetivos do tempo da produo. O exerccio da contra-racionalidade serve para resistir aos processos globalitrios, mesmoaqueles oriundos de pases que se consideravam centrais durante a

    modernidade

    Por isso, temos que considerar, nas narrativas sobre o Rio de Janeiro e o carioca em

    questo, a necessidade de identificao e criao de simpatia com o pblico, sem perder de

    vista o olhar crtico sobre a cidade e seus problemas sociais, lembrando que existem

    mltiplas subjetividades e um cotidiano que deve ser vivido para ser compreendido em toda

    sua dimenso.

  • 7/23/2019 Rio de Janeiro, Cidade Hiper-Real para Consumo Turstico

    13/13

    IntercomSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ4 a 7/9/2015

    13

    Referncias

    AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos:imagens no cinema. Niteri: Intertexto, 2000.

    APPADURAI, Arjun. Soberania sem territorialidade. In: Novos Estudos(CEBRAP), n.49, p.33-46,nov.1997.

    BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulao. Lisboa: Antropos, 1991.

    CANCLINI, Nstor Garca. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da globalizao. 8ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010.

    FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Ps-Modernismo. So Paulo: Studio Nobel,1990.

    FREITAS, Ricardo Ferreira; LINS, Flvio; SANTOS, Maria Helena Carmo dos. Brasil em 8minutos: a (re)apresentao do pas na cerimnia de encerramento da Olimpada 2012. In: XXIICOMPS, 2013, Salvador, BA. Anais da XXII COMPS. Disponvel em:. Acesso em: 11 jan. 2014.

    HALL, Stuart. Codificao / decodificao. In: SOVIK, Liv. Da dispora:identidades e mediaesculturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. p. 428-447.

    HALL, Stuart. Notas sobre a desconstruo do popular. In: SOVIK, Liv. Da dispora:identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013a. p. 274-292.

    MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a ps-modernidade: O lugar faz o elo. Rio de Janeiro:Atlntica Editora, 2004.

    MOSCOVICI, Serge. Representaes sociais: investigaes em psicologia social. Petrpolis, RJ:Vozes, 2007.

    SILVA, Leonardo F. C.; MANHAS, Adriana C. B. S. A Percepo do Espao Urbano dentro doSimulacro - um estudo de caso. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, v.35, n.126,p.147-159, jan-jun 2014.

    Simmel, G., A natureza sociolgica do conflito. In Moraes Filho, Evaristo (org.). Simmel. SoPaulo: tica, 1983.