Rio de Janeiro a Janeiro - a cidade desconhecida

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Crônicas de Vinícius Antunes diante de um Rio de Janeiro desconhecido de si mesmo.

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É permitida a livre reprodução desta obra com a divulgação de seus autores

Índice

Joycilene, a passista da Intendente Magalhães ................................................. 3

A Feira de Trocas ............................................................................................... 5

O milagre do Fred Astaire do sertão .................................................................. 6

Rose: genérica, alternativa, pirata ...................................................................... 8

Rio do janeiro ..................................................................................................... 9

“Onde as estrelas menten.” .............................................................................. 11

O Mendigo 3 do Mural 45 ................................................................................. 12

O queijinho do Piscinão .................................................................................... 14

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Joycilene, a passista da Intendente Magalhães

Minha irmã está naquela

fase em que não quer ficar o

carnaval dentro de casa, mas

tampouco descobriu ainda que a

melhor opção para o carnaval é

realmente ficar dentro de casa.

Busquei-lhe, então, o avesso do

tradicional turismo, levei-a,

junto com minha esposa, para

conhecer o carnaval da

Intendente Magalhães e o

samba no pé de Joycilene Silva.

O leitor nunca deve ter ouvido

falar, mas Joycilene é uma

passista da Acadêmicos Trás de

Mim, escola de Jardim Sulacap.

Ao começar o desfile, minha irmã ainda estava incrédula com a magia

carnavalesca que estava ali bem debaixo do seu nariz: sambistas de muletas, mendigos

felizes, malandros de bigode e chapéu, reticências e etceteras de pessoas com camisas

da Portela e do Império, trezegueteando pela estrada que tinha virado passarela do

samba. Porém, o melhor estava por vir, Joycilene Silva, entraria junto à quinta escola,

com seus sapatos altos um tanto rotos, com seu biquíni encravado, com suas

gordurinhas que a humanizavam, com seus cabelos loiros e cacheados sobre a pele

escura.

Já era tarde, lembro bem, minha esposa, minha irmã e eu, esperávamos nossa

vizinha Joycilene. À calçada, centenas de cadeirinhas de plástico ou de ferro, deixavam

claro que ali era subúrbio, com pessoas esperando qualquer coisa que não fosse

Joycilene, pois afinal, quem a conhecia além de nós? Joycilene entrou na avenida,

sambando como se tivesse outra no corpo, rodopiando sorrisos, beijando a platéia à

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distância. Alguns a olhavam, outros preferiam ver o único carro alegórico que trazia

um São Jorge, um Ogum, chame como quiser, leitor. No meio do desfile, o salto de

Joycilene quebrou. Ela tirou-os e os deixou pelo caminho. Seus pés pareciam copular

com o chão, saltavam alegres, calejavam-se e se satisfaziam. Apontei e disse à minha

irmã: ali vai Joycilene! Entre os outdoors e o cheiro de mijo, entre os cães perdidos e as

crianças de bate-bola, entre as carrocinhas de cachorro quente e os banheiros

químicos, ia a passista de olhos fechados, ia feliz a imaginar-se no sambódromo,

imaginava até o close que lhe dava a Rede Globo e já ouvia a voz do apresentador do

desfile que dizia: samba, Joycilene, levanta essa Marquês de Sapucaí!

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A Feira de Trocas

Peguei esta estória antiga na Feira de Trocas, se ao leitor não couber, troque-a

por outra:

Seu José Pedro chegou às 4 da manhã na Praça XV, as barracas estavam de pé

antes do sol. Ia o velho, levando no colo uma boneca de pano feita pela esposa há 10

anos, coisa rara e bem feita, sem valor nenhum financeiro, mas lotada de cifrões

afetivos. Na primeira barraca que lhe interessou viu um lustre bonito que serviria para

alumbrar todo quarto, quis trocar a boneca por ele, mas o vendedor lhe perguntou de

que serviria aquela porcaria. Andou mais um pouco, resfriado pelo sereno da

madrugada, e viu uma jaqueta feita de couro e teias de aranha. Disse ao moço das

roupas que a trocasse pela boneca, mas este lhe disse que era cedo para piadas.

Andou até parar pela terceira vez, ao avistar um canivete inglês, e o vendedor lhe disse

que não lhe interessavam joguetes. Quando já estava a desistir, avistou uma caixa de

ferramentas, seminova, numa tenda dum

homem de barbas brancas. Zé Pedro

envergonhado lhe ofereceu a boneca e, na

mesma hora, o homem barbudo aceitou.

Os amigos encarnaram ao feirante que se

desfizera dos utensílios para tomar um

brinquedo pra si. De noite, com as

ferramentas, Zé Pedro dava novo jeito a

sua casa, num raro momento de alegria e,

Marcelinha, a filhinha do homem barbudo,

tinha a noite mais feliz de sua vida, ao

dormir abraçadinha com a nova boneca

que um dia havia sido da filha de Zé Pedro

que morrera de tuberculose.

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O milagre do Fred Astaire do sertão

“Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré etc.”

(Machado de Assis, Dom Casmurro)

Raimundinho Dó Ré é figura

marcada em São Cristóvão. Sujeito

dançante. Vive se requebrando pela

Quinta da Boa Vista, pelo Largo da

Cancela, por São Januário e,

principalmente, pela Feira dos Paraíbas.

Os seguranças já o conhecem. Entra pela

saída, de graça, não precisa deixar a

moedinha de um Real. E justificam: “este

é amigo do Luiz Gonzaga.” E se alguém

resolve argumentar que o Luiz Gonzaga

já morreu, eles explicam: “Você não

entendeu, ele é amigo da estátua do Luiz Gonzaga. Ficam ali no maior papo.”

Raimundinho vai pelos corredores da Feira, cumprimentando a Deus e ao mundo,

dando bom dia ainda que de noite, dando boa noite ainda que de dia e todo mundo

retribui. Passa na barraca dos doces e cata um quebra-queixo pra chupar na boca

banguela. Pelo caminho, cata pedacinhos de carne-de-sol no prato alheio, dá golada

num Guaraná Jesus, troca passos com as moças, com as senhoras, com uma brisa

besta qualquer. Até que chega diante do palco.

Alguns cantores e algumas bandas já conhecem o cabra. Espertos, chamam-lhe

pro tablado e garantem o espetáculo. Outros, menos experientes ou mais vaidosos,

deixam Raimundinho de lado. Aí é fatal, pois o sujeito, bom como é, rouba a cena. A

última vez que fui, presenciei fato assim. O nordestino chegou já dançando com as

pernas moles pela música e pela birita, trazia sua pochete atravessada no corpo por

cima do blusão largo e, cobrindo a calvície, estava o tradicional chapeuzinho. A banda

tentou chamar mais atenção, a cantora balançava os glúteos, cantava música lenta,

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cantava música rápida e só dava Raimundinho. Abriu-se uma clareira imensa ao redor

do homem e os que puderam, sacaram suas máquinas fotográficas e filmadoras pra

registrar o Fred Astaire nordestino. Cansados de disputar, os membros da banda

boicotaram o show e desligaram os instrumentos. Ele, nem aí, continuou a dançar ao

som do silêncio, deixando os músicos boquiabertos a assistir do tablado. Foi assim, tal

um Padim Ciço, que Raimundinho fez o milagre da transformação do palco em público

e do público em palco.

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Rose: genérica, alternativa, pirata

Mal começavam a berrar os alto-falantes da Saara e Rosecleide já se aventurava

sob o sol. Tinha por hábito começar as compras de sábado pelas lojas com vista pro Campo

de Santana e acabava batendo perna pelo Camelódromo da Uruguaiana. As lojas de panos

eram caminho certo, as de bijuterias também. Era impossível não comprar uns calçados e

as bolsas, tê-las era lei. Sabia escolher o que era bom e o que ficava bem. Sexta-feira ia

sempre ao shopping, olhava as lojas de grife pra, no sábado, comprar os produtos

genéricos, alternativos, piratas (chame como quiser), na Rua da Alfândega. E acertava,

quando não, comprava coisa ainda melhor. Porém, ultimamente, Rosecleide andava com

um amor maior, na verdade uma paixão, talvez um vício: era o swarovski! Ela dizia que a

culpa era da maldita voz que gritava por todas as ruas: swarooooovski! swarooooovski!

Acabou fazendo-lhe lavagem cerebral e obrigando-a a consumir loucamente. Quando batia

a hora do almoço, resistia à tentação de entrar no Cedro do Líbano e torrar o dinheiro que

economizara num arroz com lentilha e kafta. Optava por parar numa barraquinha ao lado

da Biblioteca Estadual e comer uma esfiha de carne cheia de cebola, acompanhada de

guaraná natural. A parte da tarde reservava pro camelódromo e esbanjava nos produtos

eletrônicos. Sua última grande aquisição fora um celular, cópia perfeita do da loja, só que

made in China. De tarde voltava pra casa, no Méier, no máximo 30 minutos do Centro,

tomava um banho caprichado e se

cobria com as imitações de perfumes

franceses que abusavam na

quantidade de fixador. Quando

chegava à noite, despencava pra casa

do seu paquera lá no Leblon. Ele, ao

vê-la e cheirá-la, subia pelas paredes,

lhe abraçava no sofá e dava a

perguntar: Como é que você

consegue ficar tão linda assim, Rose?

A moça, toda vaidosa respondia: Vem

tudo de Paris, Carlos! É tudo coisa

boa, coisa importada!

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Rio do janeiro

A piada, aprendi no berço:

inda pequeno meu pai dizia, se a

fralda teimava em baixar da

cintura: tá com o janeiro de fora,

garoto. Na fase das interrogações

lhe perguntei: janeiro?, explicou-

me fácil: é o comecinho do ânus!

Na estória que conto, o

protagonista não tem nome. A

bem da verdade, até tem, mas não

lhe posso revelar pois, por ser

amigo próximo, pediu-me que guardasse segredo. Imagine-o João, Pedro, Daniel,

talvez, um nome russo: Gorbatchev. Lhe darei dois dados: antes tinha uma imensa

barriga e não tem mais, antes tinha peitos enormes e os operou. Se acertas, ganhas

um doce, mas não será isso que adoçará a narrativa.

A Central do Brasil às 18 parece ser o ponto de encontro de todos os

trabalhadores do Rio de Janeiro. Ali, vão os das biroscas, das farmácias, dos escritórios,

das ruas. Vai também o protagonista desta estória: um gordo desajeitado, ou, se o

leitor é de eufemismos, um cheinho simpático. Vão todos juntos, ladeados, o

protagonista e os coadjuvantes, parece que a disputar o mesmo último espaço no

vagão do trem. A corrida até o vagão é desrespeitosa, cruel, inumana. Cada qual faz

uso das armas que tem: as senhoras, das bolsas; as moças, das unhas; os cavalheiros,

dos guarda-chuvas; os senhores, das bengalas. Ao protagonista, por conta de seu

sobrepeso, sempre subestimado e humilhado, cabe suportar a união de bolsas, unhas,

guarda-chuvas e bengalas, além de ter que ouvir todas as reclamações por ser o último

dos últimos a entrar no vagão e por espremer ainda mais o que já era espremido.

Neste dia de longo azar – após o protagonista encontrar um lugar para seu

braço direito sobre o ombro direito do velhinho, para sua perna direita entre as saias

da senhora, para o braço esquerdo sobre a cabeça do anão, para a perna esquerda

entre dois senhores de terno, seu corpo entre dezenas de corpos e sua cabeça com o

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nariz pra cima buscando ar – noticiou o maquinista da geringonça: esta composição

não realizará serviços por problemas técnicos. Por favor, dirijam-se à composição na

linha 8H.

Passo a este parágrafo, pois de desordem já basta o que aconteceu naquele

momento do anúncio. Todos resolveram descer do trem quase ao mesmo tempo,

porém os de trás antes dos da frente e o protagonista foi atropelado pela manada

humana. Se pensas que todos resolveram usar os métodos recomendados para a

transferência de composição, te digo que nunca deves ter ido à Central do Brasil. Os

passageiros foram saltando de um trilho a outro, atirando-se na vala com cerca de

metro e meio que os protegeria de possíveis atravessamentos. O gordinho,

estarrecido, arregalou os olhos e ficou com aquelas dúvidas de um segundo que

parecem levar eternidades: pulo ou não pulo? faço o caminho do povo ou o caminho

correto? Nos segundos seguintes, atrás dos malandros que saltaram, foram os

senhores, as senhoras, as crianças, até os mais idosos e deficientes. Pensou o

gordinho: lá vou eu. Tomou distância, saltou na vala dos trilhos do trem, riu-se por ter

se saído bem até ali. Porém, quando foi subir de volta para plataforma, encalhou.

Ficou ali, de bunda pro ar e suas calças desceram, exibindo o comecinho do ânus. Os

outros passageiros e eu, que estávamos ali apenas para observar, rimos, rimos daquele

janeiro.

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“Onde as estrelas menten.”

“Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.”

(Lima Barreto, Elogio da Morte)

A inscrição está no aqueduto

da Colônia Juliano Moreira: “onde as

estrelas menten.” Pichação, poesia ou

somente uma frase sem significado e

com erro ortográfico? Conheci seu

autor, chama-se Epimênides da Rocha

e diz-se filho de Lima Barreto com

uma enfermeira, logo, o próprio Lima

Barreto, pois para ele, pai e filho são a

mesma coisa vide os impérios antigos

e a Santíssima Trindade. Para quem

não sabe, o escritor Lima Barreto foi

dado como louco e passou parte da

sua vida, ou de sua morte, na Colônia em Jacarepaguá.

Os moradores do lugar atribuem loucura a Epimênides, dizem ser apenas um

interno cheio de invenções sem sentido algum. O cotidiano deste velho louco é

preenchido por músicas que canta diante da igreja, rabiscos que faz nas paredes das casas

antigas e passeios sob o aqueduto. Segundo ele, não há mais loucos ali, pois sua missão foi

curar a todos. “Antes haviam lunáticos, agora só olhamos pra terra, deixamos o mundo da

lua.” Diante do aqueduto, tive o prazer de perguntar a Epimênides o porquê de sua curiosa

frase. Respondeu-me: “As estrelas mentem porque são um falso espelho, refletem sempre

beleza. Mas, na verdade, o que há aqui não é belo: é dor, é feiúra. O que há aqui é aflição,

gritos de tortura de muitos que têm seus espíritos ainda em sofrimento. Por isso as estrelas

mentem, pois sobre a Colônia elas deveriam ser feias e tristes.” Depois que me respondeu,

ele levantou-se e saiu a rodopiar, livre. Fiquei em dúvida de quem era o louco e quem era

o são.

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O Mendigo 3 do Mural 45

“Tudo aquilo que a nossa

civilização rejeita, pisa e mija em cima,

serve para poesia”

(Manoel de Barros, Matéria de Poesia)

Há um tempo, os murais do

Gentileza não valiam de porcaria

nenhuma. Não que agora valham,

mas pelo menos têm certo

reconhecimento de alguns ditos

intelectuais, estudiosos, artistas e

até da classe política. Há um

tempo, chegaram a ser

censurados, cobertos, atacados,

hoje em dia já há quem lhes dê o

status de cultura. Os murais do

Gentileza, hoje, já são mais

importantes que gente. Pergunte

pra qualquer carioca convicto: o que há debaixo do Viaduto do Caju? E lhe responderá:

os murais do Gentileza. Ninguém dirá: há mendigos, e, olhe, é o que mais há.

Uma família desabrigada: Mendigo 1, Mendigo 2, Mendigo 3 e Mendigo 4 –

afinal, pra gente mendigo nunca tem nome – se abriga bem em frente ao mural 45,

que diz: “PENSEM DEUS PAI GENTILEZA CRIADORRR A NATUREZA DA TUDO DE GRAÇA

JESUS NOS CONDUZ CAMINHO DE DEUS DISSE GENTILEZA”. Ali estão também seus

poucos pertences e sua ausência de dignidade. Pela manhã, quando acordam com os

raios de sol que driblam o viaduto, fazem bochecho, enrolam os trapos e começam a

petição de moedas. Aprenderam que não se deve mijar em casa e vão até o pé do

mural mais próximo cumprir a necessidade matinal.

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Neste dia, Mendigo 3, um mendiguinho de uns 12 anos, acordou apertado pra

cacete. Logo abriu os olhos, saiu com pressa, tentando correr e cruzar as pernas ao

mesmo tempo. Chegou ao mural, arriou a calça e irrigou o asfalto. Vinha vindo uma

senhora distinta em seu carro importado e foi freando ao lado do moleque: ô, garoto!

Não tem vergonha de mijar aí, não? Não sabe que isso é uma obra de arte? E o

moleque lhe respondeu: Dona, é justamente porque eu mijo em cima que isso é uma

obra de arte!

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O queijinho do Piscinão

Ó o quejo! Ó o quejo! E dribla uma

perna, passa por um braço, pula uma bunda,

quase acerta uma cabeça. Ó o quejo! Ó o

quejo! Uns nem aí, outros mal podem sentir o

cheiro. Ó o quejo! Ó o quejo! Ia Waltinho com

seu isopor e fogueirinho, orégano e molhinho

d’alho. Ó o quejo! Ó o quejo! Quanto tá, seu

moço? Dois Real, dona. Vê dois. Pra já. Ó o

quejo! Ó o quejo! Quanto tá? É dois. Quero

não, tá caro. Se levá dois, paga três

cinqüenta. Qué, Dilma? Vai então. Ó o quejo!

Ó o quejo! A especialidade do moço é queijo

coalho com orégano e molho d’alho, não

vende refrigerante, não vende doce, não

vende biscoito Globo, não vende mais nada. É

um produto específico pra não perder a especialização e a clientela. Sabe o tempo

direitinho no fogo pra não ficar duro nem queimado, mede o tempero pra não ficar

sem gosto ou exagerado. Waltinho tá no Piscinão de Ramos desde que inaugurou em

dezembro de 2001, quando a prefeitura nem chamava o lugar de Parque Ambiental da

Praia de Ramos, era Piscinão mesmo e ainda é, pois é Piscinão que o povo fala. Certa

vez, Waltinho quis ser elegante, disse que trabalhava no Parque Ambiental da Praia de

Ramos e logo lhe falaram que pomba afrescalhada era aquela, nunca mais voltou a

chamar assim. O diferencial de Waltinho é sua conexão com o mundo globalizado,

trabalha duro no marketing do seu negócio. Apercebeu que os restaurantes das

revistas colam as reportagens nas paredes, Waltinho colou no isopor reportagem

sobre o Piscinão que saiu no jornal que tem nome de biscoito: Coliformes altos na

água e na comida do Piscinão. Quando tava com minha esposa tomando um bronze

por lá, pedi dois queijinhos pro Waltinho e me assustei, vi a reportagem e perguntei: E

esse negoço de coliformes, tá alto mesmo? Tá, mas não se preocupa não, que o preço é

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igual! Não entendi nada e insisti: mas não é ruim pra você não? Nada, é tempero que

nem tem no quejo lá da Zona Sul e quem tem que gostar é o senhor, não eu. Sem

entender se o papo era sério ou se ele tava zoando da minha cara, resolvi cancelar:

deixa, irmãozim, vô querê queijo não. Foi quando, malandreado, me veio Waltinho

cheio de palavreado: Beleza, vô cobrá pro sinhô só a taxa dos coliforme!

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Deu bode

Eu fazia manutenção de computadores na Microcamp do Valqueire, tinha uns

16 anos e era amigo de um figuraça chamado Julião. O cara ia fazer dezoito e era

reserva do Madureira, cheguei até a ir ao estádio na Conselheiro Galvão na tentativa

de vê-lo jogar, mas segundo constatei e ele me confirmou, nunca entrava em campo,

ou por falta de futebol, ou, segundo ele, por implicância do treinador. Um dia, Julião

chegou no curso com a pérola: “Minha vó mandou comprar um bode e sacrificar, disse

que é pra Exu liberar meus caminhos.” Num primeiro momento, achei que fosse

sacanagem, mas ele me explicou que dona Francisca era mãe ou vó de santo, algo

assim que não lembro bem. O que Julião queria era ter a oportunidade de mostrar seu

futebol, pois senão nunca conseguiria realizar seu sonho de jogar no exterior. Partimos

nós dois pro Mercadão de Madureira atrás do bode. Julião tava com pouca grana e

resolveu pechinchar os acompanhamentos: pratão de barro, mel e cachaça seriam

coadjuvantes do bode preto (tinha que ser preto, sei lá o porquê). Andamos por todas

aquelas galerias lotadas, atrás do lugar que vendesse mais barato, acho que Julião fez

até alguns bons negócios e conseguiu alguns descontos razoáveis. Quando chegou a

hora do bode, deu-se o susto: “É 50 Reais, pode escolher o bode que quiser.” Só que o

malandro tinha no bolso só 40 Reais, ainda me pediu 10, mas eu carregava apenas o da

passagem e não estava com vontade nenhuma de contribuir financeiramente praquilo

que eu julgava uma doidice. Julião chorou, chorou, chorou, explicou sua condição pro

vendedor e, no final das contas, conseguiu por 40 porque o dono da loja era

freqüentador do centro de dona Chica, avó de Julião. Fui andando na frente,

carregando os bagulhos que havia ajudado a comprar e atrás vinha ele com o bode

amarrado num barbante, teimando em não andar. Depois, pra descer as escadas,

Julião teve que colocar o animalzinho no colo e as pessoas o olharam de rabo de olho

com um certo nojo como se nunca tivessem abraçado um bode na vida. Pior é que

ainda tivemos que ir a pé até a casa dele, pois não teve motorista de taxi, nem de

ônibus, que quisesse dar uma carona amiga pro bodão preto.

Passada uma semana, encontrei com Julião no curso e me veio com nova

história: “Num sabe a merda, rapá: o bode ainda tá lá no meu apartamento.” Não

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entendi nada, pois achei que ele já tivesse dado um fim no bicho. “Rapaz, não tive

coragem de matar o bichinho. Toda vez que eu tento, volto atrás. Parece que ele fica

me olhando com carinha de coitado. Já levei até pra alguém matar, mas na hora volto

atrás.” O resultado é que Julião, compadecido do bicho, passou a conviver com o bode

que ficava amarrado no pé de sua cama. Toda semana me contava das brigas com sua

mãe que se queixava do animal. O curso acabou, a novela não se resolveu e eu, amigo

desnaturado, nunca mais soube de Julião. Mas, essa vida é assim, o passado sempre

retorna. Outro dia, voltando do trabalho, encontrei Julião no centro da Taquara.

Apertamos as mãos e ele me disse que não tava mais aí pra esse negócio de futebol.

Disse que agora tava morando em Jacarepaguá, sozinho, sem mãe e sem vó, e que

vivia num terreno grande, no qual criava cabras e bodes donde tirava seu sustento.

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Cidade do adeus

“É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas.”

(Paulo Lins, Cidade de Deus)

Eu voltava da igreja com a minha esposa, caminhando pela estrada Miguel

Salazar Mendes de Moraes, a principal da Cidade de Deus, quando avistei um livro

caído na calçada. Já o tinha: era a Antologia Poética do Carlos Drummond de Andrade.

Lamentei que alguém o tivesse perdido. Abri-o para ver se por dentro constava nome,

telefone, endereço, ou alguma informação relevante para encontrar dono ou dona. Na

primeira página estava escrito de esferográfica azul: Gênesis Silva do Rosário, Travessa

Tabor, 7 – Cidade de Deus. Como eu não conhecia por ali nada além da rua em que

estava e como o lugar conserva a fama de perigoso, resolvi levar o livro comigo.

Em casa, estava curioso pela antologia que já lera. Deitado no sofá, resolvi

folhear algumas páginas e ler alguns versos em voz alta: “Perdi o bonde e a esperança./

Volto pálido pra casa.” e “No caminho onde pisou um deus / há tanto tempo que o

tempo não lembra.” Minha surpresa se deu, quando às margens, ao lado de alguns

versos do Drummond, encontrei versos escritos com letras trêmulas e frágeis

provavelmente de autoria da dona do livro. Cito os que li e nunca mais esqueci: “Ao

lado de minha casa / há uma planta dormideira / todo sábado a acaricio / pra acordar

na segunda-feira.” Eram riminhas singelas e pueris. Fiquei impressionado com a escrita

de Gênesis, pois mesmo sendo moradora da Cidade de Deus, nenhuma de suas linhas

expressava violência, medo, vingança. Pensei: esta menina é como a flor

drummondiana, furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Digo menina, pois pelo nome

e pela letra, já imaginava quem era Gênesis: garota de 17 anos como minha irmã, só

que com cabelos enrolados e óculos fundo de garrafa como os da estátua do

Drummond. Compadecido de sua perda e curioso por conhecê-la fisicamente, tive

total certeza: devolverei o livro, não me importa o trabalho que dê.

No domingo que seguiu o achado, conversei com uma amiga minha,

freqüentadora da igreja e também moradora da Cidade de Deus. Expliquei-lhe a

situação e disse que muito queria lhe devolver o livro pessoalmente. Ela se dispôs a

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levar-me ao local e me

tranqüilizou dizendo que a

Travessa Tabor era de fácil

acesso. Por volta do meio-dia,

pegamos um ônibus que nos

deixou na Miguel Salazar e

entramos a pé na Travessa

Maressa. Confesso que estive

bastante assustado e só lembrava

das cenas protagonizadas pelo Zé

Pequeno. O ápice do

estranhamento foi quando passei

por uma tal Praça do Apocalipse, minha amiga me tranqüilizou explicando que a maior

parte dos nomes das praças possuía uma indiscriminada referência bíblica, afinal,

estávamos na Cidade de Deus. Rapidinho e com toda tranqüilidade, chegamos à

Travessa Tabor, casa 7. Bati palmas à porta da casinha simples. De dentro, saiu uma

moça gorda e morena. Disse-lhe de imediato: vim devolver o livro e exibi o achado. Ela

tomou a antologia de minhas mãos, a abraçou e começou a chorar. Feliz, pensei

comigo mesmo: que bom que o devolvi, deve ser um livro de estimação, vide o pranto.

Porém, a moça gorda me explicou entre lágrimas: era da minha filha, ela foi

assassinada voltando da escola e trazia este livro na mão.

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O autor

Vinícius Antunes da Silva é carioca, educador e escritor. Autor de

crônicas, contos, poemas e peças de teatro.

Contato: [email protected]

Blog: http://cronicasdumasviagens.wordpress.com

O ilustrador

Rogerio Tadeu Monteiro da Silva é arquiteto e cartunista. Trabalhou para

diversos jornais: O Pasquim, Jornal dos Sports, O País, A Tarde, A Notícia,

Gazeta de Notícias, Espírito da Coisa, Nas Bancas e Feira Hoje. É criador,

em conjunto com Luís Pimentel, de personagens como Mão Estendida e Zé

Bode. Foi premiado na I Bienal Internacional de Quadrinhos (prêmio na

categoria Charge). Contato: [email protected] Blog:

http://rogercartum.zip.net