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Imagem, memória e poderVisualidade e Representaçã0 (séc. xii-xv)

N.º 7 2009

Instituto de História da Arte

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Universidade Nova de Lisboa

Edição

Instituto de História da Arte

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abreviaturasANT T Arquivo Nacional da Torre do Tombo BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra BNF Biblioteca Nacional de França

BNP Biblioteca Nacional de Portugal CNR S Centre national de la recherche scientifi que DG ARQ -T T Direcção-Geral de Arquivos

– Torre do Tombo IEM Instituto de Estudos Medievais IPPAR Instituto Português do Património Arquitectónico EHE SS École

des Hautes Études, Sorbonne FC T Fundação para a Ciência e a Tecnologia FC SH-UNL Faculdade de Ciências Sociais e Humanas –

Universidade Nova de Lisboa FL-UL Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa G A HOM Grupo de Antropologia Histórica sobre

o Ocidente Medieval •

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Índ

iceEditorial

Entrevista com José Mattoso

conduzida por José Custódio Vieira da Silva, Maria Adelaide Miranda e Bernardo

Vasconcelos e Sousa

O poder da imagem: encantos, ambiguidades e valorizações

Aires A. Nascimento

Representação dos judeus nas bíblias historiadas

Adelaide Miranda, Luís Correia de Sousa

Owner portraits and heraldry in the Lamoignon Hours

Ragnhild Marthine Bø

O Livro de Horas de D. Duarte e o ms. Lat. 10538 (BNF, Paris):

as ligações com o ateliê do Mestre de Mazarine

Ana Lemos

«Sculpto immagine episcopali»

jacentes episcopais em Portugal (séc. XIII-XIV)

José Custódio Vieira da Silva, Joana Ramôa

Des histoires de famille

La dévotion aux Trois Maries en France du XIVe au XVe siècle

Claudia Rabel

Les Très Riches Heures et les Heures Bedford

Patricia Stirnemann

Imagem e Tempo

Representações do poder na Crónica Geral de Espanha

Horácio A. Peixeiro

Imagens de santos na Sé de Coimbra

no episcopado de Miguel Salomão (séc. XII)

Mário de Gouveia

Recensões

Varia

Notícias

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O número 7 da Revista de História da Arte, que ora se apresenta ao público,

é integralmente dedicado à Arte Medieval. Dá-se, desta forma, continuidade

à opção por números dedicados às épocas históricas consagradas na crono-

logia da Arte Ocidental, decidida pela Direcção e Comissão Científi ca da Revista de

História da Arte, e que foi iniciada com o número anterior, dedicado ao mundo roma-

no – mais especifi camente, ao Mosaico na Antiguidade Tardia. Esta continuidade cro-

nológica/epocal que se verifi ca no presente número, apesar de não ter sido conscien-

temente procurada – resultou, antes, de meros acasos e de circunstâncias fortuitas

– não deixa, no entanto, de se oferecer como mais valia da percepção e fundamenta-

ção da evolução artística, sem que tal signifi que a adesão a quaisquer historicismos

serôdios e ultrapassados.

A temática que dá consistência ao presente número, e que constitui o cerne dos

principais artigos de investigação, diz respeito à Imagem, entendida, para além de

outros considerandos, sobretudo como discurso de afi rmação do Poder e como forma

privilegiada de manutenção da Memória, entre os séculos XII e XV.

A razão primeira que justifi ca o porquê desta temática, prende-se com o desenvol-

vimento de um projecto de investigação – o Projecto Imago, aprovado e fi nanciado

pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), destinado à criação de uma base de

dados de iconografi a medieval portuguesa. Os pormenores relativos a esse projecto,

que se desenvolveu entre os anos de 2005 e 2008, poderá o leitor encontrá-los em

notícia alargada na parte fi nal deste número da Revista de História da Arte, assinada

pelos seus principais responsáveis. O que neste intróito da Revista importa sublinhar

é que esse Projecto reuniu, de forma absolutamente original, dois campos artísticos

e iconográfi cos bem diferenciados: a iluminura e a escultura tumular. A união des-

tes dois mundos da representação medieval numa única base de dados, permitindo

a sua interligação e potenciando de forma inesperada os resultados das pesquisas,

revelou-se, desta forma, como a maior originalidade do Projecto Imago não só no

contexto português como também no contexto europeu. Assim, investigadores e sim-

ples interessados passaram a ter, entre mãos, uma útil e acessível ferramenta que

em muito lhes facilitará a prossecução e o aprofundamento dos trabalhos nesta área

específi ca da arte medieval.

O Projecto Imago não se resumia, naturalmente, apenas à criação de uma base de

dados. Entre outros itens, fazia parte do seu programa de intenções a realização de

um Seminário internacional que permitisse, por um lado, a troca directa de experiên-

cias com outros investigadores envolvidos em projectos semelhantes (particularmente

com Patrícia Stirnemann, investigadora do CNRS (Paris) e responsável pela base de

dados Enluminures, cuja gentil disponibilidade para seguir e aconselhar o projecto

português nos deixa devedores de um profundo agradecimento) e que servisse, por

outro lado, de motivo para a apresentação pública do Projecto e do estado da inves-

tigação sobre uma temática de grande actualidade, tendo em vista, inclusivamente,

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o seu impacto no mundo actual: a função, a importância, o alcance da Imagem, ava-

liada seja pelo seu poder intrínseco seja pela sua apropriação pelo Poder. Problemas,

afi nal, de visualidade e de representação, assumidos a uma escala europeia (embora

com maior incidência em Portugal) entre os séculos XII e XV: da importância destes

temas dá conta também José Mattoso, fi gura tutelar da medievalidade portuguesa,

em entrevista de enorme signifi cado na abertura deste número da Revista de História

da Arte.

Foi, pois, desse Seminário, organizado pelos Instituto de Estudos Medievais (IEM-

-UNL) e Instituto de História da Arte (IHA-UNL) e realizado na Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas-UNL, que resultaram os artigos principais que dão consistência,

como dissemos, à temática desta Revista de História da Arte. Investigadores com cré-

ditos já fi rmados apresentam refl exões de síntese, de grande densidade intelectual,

como é o caso do artigo subscrito por Aires do Nascimento, ou análises de incidên-

cia mais restrita, com igual profundidade e originalidade, como é o caso do artigo

de Patrícia Stirnemann, que propõe um novo olhar sobre o Livro de Horas dito de

Bedford. Falta, neste contexto, a refl exão de Fernando Galván sobre La imagen del

poder: iconografía del soberano en el reino de León (1126-1230). Especialista repu-

tado em iconografi a hispânica medieval e consultor do Projecto Imago, a sua morte

inesperada impediu a escrita fi nal do seu artigo que assim não pôde, como desejaría-

mos, dar mais consistência a este número da Revista. Fica a homenagem singela e

amiga dos que com ele conviveram.

Os responsáveis principais do Projecto Imago – José Custódio Vieira da Silva e Maria

Adelaide Miranda – assinam com dois jovens investigadores, Joana Ramôa e Luís

Sousa, respectivamente, artigos que sintetizam, de alguma forma, as linhas de inves-

tigação fundamentais inerentes a esse projecto, propondo, a partir de inovadoras aná-

lises iconográfi cas possibilitadas quer pelos jacentes medievais quer pela iluminura,

novas refl exões sobre a sociedade e as mentalidades dessa época. Ao mesmo tempo,

dão o mote para os outros artigos que compõem o corpo da Revista, seja nos temas

abordados seja no espaço dado a jovens investigadores, em que se incluem também

os responsáveis pelos artigos originais da secção Varia.

É de salientar, neste contexto, a presença assinalável de vários investigadores estran-

geiros, situação que nos deixa particularmente satisfeitos pelo que representa de

adesão a um projecto editorial pensado e concretizado no espaço abrangente do

Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-UNL.

A abertura das páginas da Revista de História da Arte a jovens investigadores, tanto

nacionais como estrangeiros, com provas já dadas de capacidade de investigação

e de refl exão, tem que ser entendida como um sinal positivo e muito promissor de

que o futuro da História da Arte (e, neste caso mais específi co, da Arte Medieval) se

encontra assegurado. •

José Custódio Vieira da Silva (IHA/FCSH/UNL)

Maria Adelaide Miranda (IEM/FCSH/UNL)

Ed

ito

rial

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 98

José João da Conceição Gonçalves

Mattoso (Leiria, 1933), Professor

Catedrático Aposentado da Uni-

versidade Nova de Lisboa, foi também

docente na Faculdade de Letras (U.L.)

(1971-1978); regeu diversos cursos na

Un. Coimbra, no Inst. Sup. Técnico e na

Un. Cat. Portuguesa; leccionou e orientou

seminários nas Un. de Paris (Sorbonne),

Bordéus, Poitiers, Santander, Santiago

de Compostela, Sevilha, Oviedo, Roma

e Díli, entre outras. Integra o Instituto

de Estudos Medievais (UNL), de cuja re-

vista – Medievalista OnLine - é director.

Foi membro da Comissão Instaladora da

FCSH (UNL) (1977-1982), a cujo Con-

selho Científi co presidiu (1984); Direc-

tor da FCSH (1986-1987); Vice-Reitor

da UNL (1991-1995); Coordenador da

Comissão para a Reforma e Reestrutura-

ção do A.N. T. Tombo (1986-1988); Pre-

sidente do Inst. Port. Arquivos (1988-

1990); Director do Inst. Arq. Nac. / T.

Tombo (1996-1998); Vice-Presidente

do Cons. Sup. de Arquivos (1999); vo-

gal do Cons. Ed. da Impr. Nac. – Casa da

Moeda (1986-1999).

A História de Portugal (Círculo de Lei-

tores, 1992-1993) que dirigiu e da qual

escreveu partes substanciais do 1.º e do

2.º vol.s, constitui uma referência entre

a recente historiografi a portuguesa: para

além da história social, política e cultu-

ral, é o processo de construção da iden-

tidade nacional que analisa e interpreta.

Em Ricos-Homens, Infanções e Cava-

leiros (1.ª ed., Guimarães Ed., 1982)

e Identifi cação de um País (1ª ed., Ed.

Estampa, 1985), estuda os factores que

diferenciam Portugal dos reinos cris-

tãos peninsulares da época, bem como

as razões que viabilizaram e “compuse-

ram” um país marcado por fortes con-

trastes regionais, históricos e culturais.

A inovação e a originalidade da sua

extensa obra, explorando campos iné-

josé mattoso

ditos, bem como as suas sugestivas

interpretações, resultam duma abertu-

ra interdisciplinar e não apenas duma

abordagem ensaística. Por trás das

sínteses está um minucioso e paciente

trabalho de altíssima erudição, de que

é exemplo a edição crítica de fontes

históricas, como os livros de linhagens

medievais portugueses (Nova Série

dos Portugaliae Monumenta Historica,

Acad. das Ciências de Lisboa, 1980).

Recebeu, entre outros, o “Prémio Au-

gusto Botelho da Costa Veiga”, Acad.

Port. História (1982); “Prémio de His-

tória Medieval Alfredo Pimenta”, Fund.

Cal. Gulbenkian (1985); “Prémio de

Ensaio do Pen Clube” (1986); “Prémio

Pessoa”, Expresso/Unisys (1987); “Prix

Böhus-Szögyény”, Conféd. Internat. de

Généalogie et d’Héraldique (1991);

“Troféu Latino”, União Latina (2007);

doutoramento Honoris Causa da Univ.

Lisboa (1998).

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com jose mattosoc o n d u z i d a p o r

J O S É C U S T Ó D I O V I E I R A D A S I LV A

B E R N A R D O V A S C O N C E L O S E S O U S A

M A R I A A D E L A I D E M I R A N D A

1. Uma das suas obras maiores, que constitui um marco insuspeito no entendimento do nascimento, formação e consolidação de Portugal, é A Identifi cação de um País. Aí se encontram exemplifi cados todos os dotes excepcionais do investigador e pensador que é José Mattoso, sobretudo os que têm a ver com a elevadíssima capacidade de intuir e demonstrar, de forma nova, factos e documentos tantos vezes já conhecidos mas que assumem, de repente, uma novidade absoluta e sedutora.– Como se foi construindo esta obra?

Quando redigi a minha tese de doutoramento acerca dos mosteiros beneditinos da

diocese do Porto, verifi quei que, apesar de serem várias dezenas, se situavam todos

numa área muito reduzida do Entre Douro e Minho e no vale do Douro. Algum tempo

depois, quando dirigi na Faculdade de Letras de Lisboa, um seminário sobre direitos

senhoriais a partir dos forais dos séculos XII e XIII, verifi quei, por outro lado, que

os chamados concelhos «urbanos» ou «perfeitos» se situavam numa área diferente,

isto é, no Centro e Sul do país e em Trás-os-Montes, mas não apareciam no Entre

Douro e Minho e na região do Vouga. Parecia haver uma verdadeira incompatibili-

dade entre a vida monástica e a organização municipal. A Identifi cação de um país

constitui uma interpretação daquele fenómeno histórico que consiste na implantação

de estruturas sócio-económicas diferenciadas em áreas geográfi cas específi cas. Ao

En

trev

ista

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tentar compreender o comportamento histórico de cada uma dessas regiões, verifi -

quei que coincidiam aproximadamente com áreas diferenciadas em termos de geo-

grafi a humana, de linguística, de estruturas de parentesco, de tecnologia agrícola,

de opções políticas, de estrutura social e económica, etc. Ao processo histórico do

qual resulta este fenómeno chamou alguns anos depois García de Cortázar, numa

fórmula feliz, «construção social do espaço».

2. É verdade que pesou, na hora de escolher um título, a infl uência do fi lme Identifi cação de uma mulher, de Michelangelo Antonioni?

Sim, é verdade. Ao tentar compreender esse objecto de observação exterior a mim

próprio, a que os historiadores, os geógrafos, os políticos, os sociólogos chamam

«Portugal», percebi que a defi nição da diversidade estrutural do seu espaço repre-

sentava um começo de resposta. Assim como no fi lme de Antonioni, o personagem

masculino procura compreender a mulher que ama e vai observando alguns dos tra-

ços que pensa caracterizarem-na, sem todavia conseguir atingir plenamente o misté-

rio que afi nal a defi ne, assim também me pareceu que a diversidade dos espaços do

nosso país constituía um dado essencial para a compreensão do seu comportamento

histórico. Mas percebi também, ao mesmo tempo, que seria demasiado pretensioso

julgar assim ter descoberto o segredo completo da sua identidade. Tinha dado ape-

nas um passo nesse sentido. Nem sequer podia estar seguro de a minha descoberta

ter atingido o essencial. De resto, o título do fi lme sugeria também que o conheci-

mento do «outro» nunca é defi nitivo. Tem de se recomeçar indefi nidamente porque

o «outro» se vai também transformando, como a própria vida.

3. Esta última questão tem a ver, além do mais, com a aproximação de José Mattoso ao mundo da História da Arte, a que dedicou, aliás, uma das suas primeiras refl exões: – Pode-se dizer que a História da Arte foi uma sua primeira paixão? Porque não enveredou totalmente por ela?

Nunca tinha pensado que a escolha de uma metáfora inspirada pelo título de um

fi lme tivesse que ver com o meu interesse pela História da Arte. Talvez haja de facto

uma certa relação. Aqui no caso, pretendia mais exprimir a sempre inacabada com-

preensão, tanto racional como intuitiva, da realidade, do que o meu apreço (que

também me marcou) pela obra artística de Antonioni. Mas a relação com a História

da Arte não deixa de estar presente, como atenção às manifestações artísticas da

vida humana, pelo facto de que só a sensibilidade a elas pode abrir a porta à com-

preensão de uma grande quantidade de fenómenos históricos – sem dúvida essen-

ciais. Por outro lado, não me ocupei expressamente da Arte na Identifi cação de um

país. É verdade que os meus primeiros trabalhos escritos tiveram como objecto as

igrejas românicas dos mosteiros beneditinos. Nessa altura o que me interessava era

a história monástica. Pretendia saber se se podia falar num «românico beneditino»

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com características próprias, diferentes das de outros templos românicos diocesanos

ou pertencentes a outras ordens religiosas. Foi um pequeno conjunto de artigos de

principiante. Tinha nessa altura 18 anos. A História da Arte é efectivamente uma

via insubstituível da compreensão do passado porque se ocupa de aspectos da vida

humana que a racionalidade e aproximação discursiva não podem atingir.

4. Como entende a dimensão avassaladora que a imagem tem hoje em quase todas as chamadas Ciências Sociais?

É, de facto, uma das manifestações mais signifi cativas e mais profundas da cultura

actual. O fenómeno pode-se estudar do ponto de vista teórico, em termos fi losófi -

cos e sócio-culturais. Não tenho nenhuma competência nesses termos. Mas também

não é preciso nenhuma formação especial para perceber a imensa virtualidade da

imagem como expressão da multiplicidade de sentidos decorrentes da percepção

intuitiva da realidade e que a percepção racional e discursiva não alcança. Trata-se,

até certo ponto, de uma forma de representação da realidade pouco cultivada pelo

iluminismo, o positivismo e o idealismo. Também está presente mas, de certa forma

oculta, na época moderna pela representação realista. Mas na época medieval é mais

do que evidente. Foi recuperada, de forma cada vez mais variada e complexa, desde

o começo do século XX. Lembro-me, por exemplo, que os primeiros compêndios de

História não tinham gravuras. A edição original de Alexandre Herculano, e os textos

clássicos de Rebelo da Silva, Costa Lobo ou Gama Barros, também não. As gravuras

de Pinheiro Chagas e da História de Barcelos eram puras ilustrações ou elementos

decorativos das suas Histórias de Portugal; não propriamente documentação gráfi ca.

Hoje a documentação gráfi ca faz parte essencial de qualquer obra histórica e cons-

titui um complemento indispensável do texto, ou um recurso que o texto não pode

dispensar, quer como síntese de indicadores históricos (como na cartografi a ou nos

gráfi cos) quer como representação sintética e concreta de códigos mentais da época

em que foi produzida. Ao observar uma imagem de um cavaleiro do século XIII ou de

um cortesão do século XVIII, compreendem-se aspectos da sociedade que nenhuma

descrição, mesmo pormenorizada, pode substituir. Noutro sentido, a presença de

elementos decorativos, como as iluminuras, traduz, só por si, aspectos da mentali-

dade medieval que a explicação discursiva também não consegue atingir.

5. A sociedade actual é muitas vezes apresentada como a sociedade do triunfo da imagem. Mas não seria a sociedade do Ocidente medieval também uma sociedade da imagem, talvez até de um modo mais fl agrante do que a actual?

Sim, mas num sentido diferente, acho eu. Diria – não sei se com sufi ciente rigor –,

que a imagem medieval adopta um processo de expressão simbólica global, ao passo

que a imagem triunfante na actualidade disseca, selecciona, analisa, acentua porme-

nores considerados especialmente expressivos. Até certo ponto, diria que a imagem

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moderna (fotografi a, pintura, desenho, retrato, etc,) tende a interpretar aspectos

parciais da realidade mas não a totalidade. Ou então, como no impressionismo, no

expressionismo e até no cubismo, a imagem traduz a apreensão subjectiva e transi-

tória, mais do que uma concepção do mundo ou da existência; não exprime as coisas,

mas o efeito que têm sobre o sujeito. A imagem torna-se, portanto, fragmentária,

transitória, parcial. Deste ponto de vista, é o inverso da imagem medieval, que em

vez de dividir, une. É o que acontece com todo o processo simbólico, que reduz o

múltiplo, o contraditório e o passageiro, ao único e ao permanente. O rei é sempre

representado com uma coroa; o cavaleiro sempre com o cavalo e a espada; o bispo,

sempre com uma mitra. Representa-se, portanto, o modelo, como concretização do

ideal, e não a sua incarnação concreta.

6. Além das imagens patentes na pintura, na escultura, na iluminura, nos vitrais e em outros variados suportes e modalidades de expressão das artes visuais, a cultura letrada medieval era também pródiga em imagens literárias (descrições realistas ou efabuladas, recurso a metáforas e alegorias, utilização recorrente de hipérboles...). Signifi ca isso que mesmo o pensamento erudito (e não só a “cultura popular”) na Idade Média assenta e se estrutura mais numa base imagética do que conceptual, ou, se preferir, com o imaginário a pesar mais do que a experiência sensível?

Exactamente. Esse processo que consiste em conceber a existência como um caminho

para a perfeição, supõe que o valor da história, da existência humana no tempo e

no espaço, é tanto maior quanto mais perto se chega desse ideal. É o que certos

tratados designam como «espelhos»: deste ponto de vista, os «espelhos dos prín-

cipes» são o género de obras mais típico; mas há também os «espelhos da boa

morte». As referências a fi guras reais ou imaginárias de carácter exemplar, como

Carlos Magno, modelo do imperador, Rolando e Galaaz como modelos do cavaleiro,

S. Martinho de Tours como modelo do bispo, e assim sucessivamente, têm uma fun-

ção análoga. A força simbólica destes modelos retarda ou condiciona as manifesta-

ções progressivamente mais frequentes e mais variadas, mas ainda ambíguas até ao

fi m do século XV, das representações da individualidade ou da autonomia do sujeito

face à instituição e à sociedade.

7. A sociedade actual constrói e divulga representações fortes das sociedades medievais. As mais impressivas são do âmbito do senso comum: a maioritária, muito vulgar no discurso político e no seu subproduto, o discurso jornalístico, é a de uma Idade Média retrógrada e obscura, uma Idade Média de “feios, porcos e maus”; uma outra imagem actual sobre a medievalidade é a imagem tributária do romantismo, de uma época medieval de serenidade e harmonia (da espécie humana com a natureza, da espécie humana consigo própria,

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e n t r e v i s t a c o m o p r o f e s s o r j o s é m a t t o s o

da espécie humana com a divindade...). Por que razão são estas representações, tão redutoras, as que triunfaram, em termos gerais, no nosso tempo, sobre a Idade Média?

Penso que as representações redutoras, sumárias e, ao mesmo tempo, mais aces-

síveis ao grande público do que a representação autenticamente simbólica, resul-

tam, em última análise, do «complexo de superioridade» renascentista para com a

Idade Média. Os humanistas contrapunham a escultura grega e romana, com os seus

corpos divinamente jovens, à escultura medieval, que tanto representava o triunfo

escatológico de Cristo pantocrator, nos tímpanos das igrejas, como os demónios e

obscenidades, nas gárgulas das mesmas igrejas. A Idade Média não esquecia nem

ocultava a fealdade do mundo concreto, pelo facto de a contrapor ao ideal que

propunha como meta da existência, ao passo que o humanismo renascentista a

considerava como indigna de representação. A esta exclusão do «feio», juntava-se

desde meados do século XIV, a representação obsessiva da morte e do macabro,

que o humanismo abandonava em favor da representação da vida, da juventude e

da força. A esta oposição renascentista que identifi ca a Idade Média como «tempo

das trevas», sucedeu, na época romântica, a concepção da Idade Média como tempo

dos mistérios, da magia, do espírito nacional e dos heroísmos sentimentais, que era,

afi nal, uma interpretação distorcida dos aspectos menos racionais da medievalidade.

A representação da Idade Média como tempo de «feios, porcos e maus», como a que

prevalece, por exemplo, na versão cinematográfi ca de «O nome da rosa», tem alguma

coisa que ver, creio eu, com a corrente cinematográfi ca americana que procura uma

reconstituição exacta, documentada, arqueológica, do passado como a que preside

ao «Quo vadis» ou à «Cleópatra». Pretende-se uma representação realista, que, ao

fi m e ao cabo, desmascara, por assim dizer, a representação medieval prevalente-

mente idealista. Mas esta opção é, afi nal, um logro, porque o sentido simbólico da

representação medieval do mundo não pretende retratar o que existia – a não ser

enquanto campo de luta entre o bem e o mal, ou confl ito dos vícios e das virtudes –

mas o sentido que atribuía a essa mesma luta.

8. Uma das questões fundamentais que se coloca nos estudos na área da História é o da autonomia da História da Arte. O facto da imagem conter a historicidade comum a todo o documento mas também possuir uma tradição visual e mistério inerente a toda a arte que não se esgota na sua leitura, justifi ca, para si, essa autonomia?

A este respeito queria fazer uma distinção. De um ponto de vista metodológico,

a autonomia de História da Arte como disciplina por si mesma, permite alargar e

aprofundar conhecimentos específi cos. Deve-se, portanto, valorizar sem qualquer

problema. Este valor não depende do seu uso como «serva» da História em ge-

ral, mas do aprofundamento de todos os aspectos que permitem compreender a

arte como expressão do autor na sua relação com o mundo, tal como a linguística,

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a antropologia ou a sociologia – o que supõe a consideração de conceitos teóricos

e a refl exão sobre a linguagem artística a partir de observações de tipo comparativo

(quer das artes plásticas entre si, quer destas com a música ou a literatura). Mas esta

autonomia não deve excluir, antes pelo contrário, o uso da História da Arte como via

de aproximação de tipo documental para melhor conhecimento e compreensão de

uma época ou de uma sociedade. O que disse mais acima acerca do carácter ideal

da representação medieval vai neste segundo sentido. Sem a história da arte a his-

tória tout court fi ca muito pobre; mas a história da arte sem a história fi ca, creio eu,

incompreensível.

9. Os historiadores, muitas vezes, utilizam a imagem apenas como ilustração do texto histórico. Esta atitude, que José Mattoso tem sempre evitado, identifi cando e comentando, nas suas obras, as imagens, não será empobrecedora para a própria História, que desta forma se priva de um testemunho que foi tão valorizado, sobretudo a partir da “Nova História”, e que poderá estabelecer um diálogo enriquecedor entre o homem medieval e o contemporâneo?

Para além daquilo a que já me referi sobre a obra de arte como documento histórico,

queria acrescentar que esse diálogo entre o homem medieval e o homem contem-

porâneo se entende por vezes como uma espécie de suplemento de sentido que o

homem contemporâneo deveria ir buscar à arte medieval. Assim aconteceu na época

romântica e nos movimentos restauracionistas em geral. As reacções deste género

parecem-me resultar de uma certa recusa do mundo actual. Recusa inútil, é claro,

porque a nossa época é completamente diferente da medieval. Assim, por exemplo,

do ponto de vista da prevalência do pensamento e da doutrina religiosa sobre a

vida social, típica da Idade Média, as diferenças com a nossa época são demasiado

evidentes para se poderem esquecer ou ignorar. Se, por «diálogo», se entende, por

exemplo, a busca de uma sensibilidade maior à dimensão simbólica da representação

artística, aí estou cem por cento de acordo. Neste caso, porém, o diálogo só pode

ser frutuoso se não se contentar com «formas» e «conteúdos» e procurar sobretudo

«sentidos». Por representação simbólica entendo, neste caso, a linguagem poética na

sua acepção mais vasta e mais profunda. Diria que se trata de, no velho debate entre

fi losofi a e poesia, que Platão e Aristóteles resolviam em favor da fi losofi a, tomar o

partido da poesia. Foi por isso que, em tempos, tentei dizer o que entendia acerca

da História como contemplação.

10. A iconografi a é o lugar privilegiado para a construção da interdisciplinaridade, sobretudo para um período como o medieval, em que os seus autores, frequentemente, afi rmam a relação entre o texto e a imagem. A preocupação da historiografi a actual de retorno critico às fontes escritas, com um sentido de reescrever a História, não tornará o recurso à imagem indispensável?

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 1 5

e n t r e v i s t a c o m o p r o f e s s o r j o s é m a t t o s o

Sem dúvida alguma. Mas há um problema prático. Na Idade Média e em muitas obras

da Época Moderna, o recurso ao texto como complemento da imagem requer uma

preparação especializada que se tornou rara entre nós. São cada vez mais raros os

alunos de História que sabem quem era e o que representava Abraão ou Melquise-

dec, ou porque razão se pintava o Espírito Santo sob a forma de uma pomba; e mais

raros ainda os que conseguem identifi car uma citação de Santo Agostinho, ou que

conhecem a diferença entre um hino, um responsório e uma antífona. Mas é evidente

que estes conhecimentos são de uma enorme utilidade quando se estuda a icono-

grafi a medieval. A observação recente de uma arbor consanguinitatis alcobacense

que é ao mesmo tempo uma representação régia; ou de uma «árvore de Jessé» com

quatro reis intermediários entre o antecessor de David e a Virgem Maria, são dois

exemplos muito concretos da fecundidade do recurso ao texto para a interpretação

da iluminura. •

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Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Resumo

1. O estatuto da imagem na cultura ocidental não é uniforme em todos os tempos:

é útil regressar a interpretações antigas, revê-las em novas aquisições de signifi ca-

ção, integrá-las no seu contexto (que os textos revelam ou escondem), não ceder

perante a relutância de algumas em se dar a conhecer, reconhecer as variantes que

se formam num percurso largo e diferenciado.

2. A tradição da imagem na cultura ocidental, ao menos em momentos mais marcan-

tes, soube valorizá-la como recurso didáctico e pedagógico, em tensão que potencia

leituras e dando-lhe dimensão de signifi cado. A mecanização moderna põe em risco

o valor da imagem como expressão humana. À exploração de efeitos secundários que

insinuam e nada dizem, que projectam fantasmas e negam, na prática, a sua capa-

cidade de representar o “Invisível” como dimensão real do Homem e como relação

com o Transcendente (pessoal ou utópico) há que opor atitude diferente.

3. Novidades de literatura que abre sobre os efeitos icónicos do texto desafi am

hoje a redescobrir as potencialidades da imagem e as suas funções, reabrindo a sua

relação com o texto e levando a uma nova valorização da leitura – contra um inte-

lectualismo abstracto. •

Abstract

1. The status of images in Western culture has not remained the same throughout

time. It is useful, therefore, to revisit older interpretations and consider new meanings

they have acquired, integrating them in their context (which texts reveal or conceal),

without giving up on those that resist disclosing their sense, and recognising the

variants that result from a long and complex journey.

2. Western visual culture, at least in its more momentous periods, has understood

the value of images as a didactic or pedagogical resource, taking advantage of the

tensions that enhance their meaning, fully realizing their sense. Modern mechani-

zation jeopardises the value of images as a means of human expression. A new at-

titude is now called for in order to counter the exploitation of secondary effects that

insinuate meaning without actually saying anything, projecting ghosts but denying,

in fact, the capacity of an image to represent the “Invisible” as a real dimension of

man, and as a link with the Transcendent (personal or utopian).

3. Today, literature’s new insights into the iconic effects of text challenge us to redis-

cover the power and function of images, re-opening their relationship with the text

and adding new value to reading, against abstract intellectualism. •

palavras-chave

imagemimpregnação de sentidorelação entre imagem e texto

key-words

imagemeaningfulnessrelationship betweenimage and text

Page 17: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 1 7

o poder da imagem: encantos, ambiguidades e valorizações

1. Por várias vezes nos ocupámos da imagem na sua relação com o texto no enqua-

dramento da medievalidade ocidental1. Razões não haveria para voltar a esse tema,

se não precisássemos de refl ectir mais longamente naquilo que se nos apresentou

nos manuscritos de uma colecção particularmente marcada pelos recursos icónicos,

como é a dos manuscritos da Colecção Gulbenkian2.

Ao procurarmos descrever e reinterpretar os dados, não foram poucas as vezes em

que tivemos de afugentar fantasmas que se nos haviam colado na retina, para aten-

dermos às variantes de algumas iluminuras menos habituais; em outros momentos, ti-

vemos necessidade de indagar (em textos menos acessíveis ou nunca desvendados) a

base de uma história representada e assim entender a sucessão de imagens – mesmo

sem atinar com todas as escolhas feitas em caso de uma “história”; por outras vezes,

foi-nos dado perceber a pertinência de certos traços para identifi car elementos que

resistiam à interpretação dos melhores exegetas. Apenas para exemplifi cação: a tra-

dição da “cruz de Santo André” revelou-se na sua idiossincrasia variável (não teve

sempre a forma de aspa, crux decussata, como é corrente dizer e alguma hagiografi a

fez admitir)3; uma fi gura em ascensão ao céu teve de ser reportada a outro que não

a Virgem Maria (no caso, era S. Pancrácio – identifi cado pelos elementos litúrgicos,

mas também pela integração iconográfi ca); num Livro de Horas, bastas vezes objecto

de análise (e depois de porfi adas buscas nossas e de outros), julgamos ter identifi ca-

aires a . nasc imento CEC

FL-UL

1. Sejam, para exemplificação: “A Imagem no

texto: esplendor do livro e marcação de leitura no

manuscrito medieval”, in Arte, História e Arqueo-

logia: Pretérito (sempre) presente – Homenagem

a J. Pais da Silva, coord. Pedro Gomes Barbosa,

Lisboa, Ésquilo, 2006, pp. 79-113; “«Pictura ta-

citum poema»: Texto e imagem no livro medie-

val”, in Maurilio Pérez González (ed.), Actas del

III Congreso Hispánico de Latín Medieval (León,

26-29 de Septiembre de 2001), León, Universi-

dad, 2002, vol. I, pp. 31-52.

2. Benefi ciando para tanto de diálogo privilegia-

do (de aprendizagem e intercâmbio) com perso-

nalidades cimeiras no estudo da iluminura me-

dieval, o projecto de descrição da colecção, com

reorganização dos códices atingidos pelas inun-

dações de 1967, tem contado com a colaboração

de um conjunto de especialistas internacionais,

que temos o privilégio de coordenar juntamente

com François Avril.

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o p o d e r d a i m a g e m : e n c a n t o s , a m b i g u i d a d e s e v a l o r i z a ç õ e s

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 8

3. Charlotte Denoël, Saint André: culte et icono-

graphie en France, V-XVe siècles, Paris, École des

Chartes, 2004.

4. Uma delas é a das “Quatro Mulheres” junto

ao sepulcro vazio na manhã da Ressurreição; se-

gundo o Evangelho de Marcos, as mulheres são:

Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e [Maria]

Salomé (Mc. 16, 1); para Lucas as mulheres são:

Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago

(Luc. 24, 9); em Mateus, apenas duas são men-

cionadas: Maria Madalena e outra Maria (admitin-

do-se que seja a mãe de Tiago). Quatro Mulheres

são as que João menciona como sendo as que

acompanham Jesus na Cruz: Maria, mãe de Jesus,

Maria Salomé (casada com Zebedeu, mãe de Tia-

go e João), Maria de Cléofas, e Maria Madalena.

Salvo melhor opinião, na iconografi a do manuscri-

to da Gulbenkian, LA 141, fl . 217v, julgamos que

haverá transposição da cena da Crucifi xão para a

da Visita ao Sepulcro, na manhã da Ressurreição:

Maria, mãe de Jesus, não ostenta frasco de per-

fume para a unção e Cristo, embora com o lábaro

de ressuscitado, mantém os traços do Ecce Homo.

Note-se que, no contexto da Ressurreição, nunca

é mencionada Maria, mãe de Jesus – pela boa

razão de que os parentes não podiam testemu-

nhar em favor de alguém e os Evangelhos têm

essa perspectiva em vista. Não sabemos, porém,

em que momento possa ter sido associada Maria

a esse episódio de forma a entrar na iconografi a.

Sob outra perspectiva há que colocar a Histoire

des trois Maries, poema de ca. 40.000 versos

onde se relatam episódios da vida de Maria Mãe

de Deus, Maria de Tiago, e Maria de Salomé, por

Jean Fillon de Venette (também conhecido por

Jean Drouin); falta no elenco Maria Madalena.

(Cf. estudo de Claudia Rabel nesta mesma Revista).

5. Aires A. Nascimento, “Manuscrito quatro-

centista de Petrarca na colecção Calouste Gul-

benkian, em Lisboa: Canzoniere e Trionfi ”, Cultu-

ra Neolatina, 64, 2004, fasc. 3-4, 325-410.

6. O LA 143, com a tradução francesa do De cla-

ris mulieribus de G. Boccaccio, pediria esse exer-

cício, para o qual não faltavam incentivos em

Vittore Bianca (coord.), Boccaccio visualizzato:

Narrare per parole e per immagini fra Medioevo

e Rinascimento, Turim, Einaudi, 1999.

do fi nalmente a “história de Teodeberta” que está entre os milagres de Nossa Senhora

de Soissons, cantados por Gautier de Coincy, por exemplo; admitimos também ter

recuperado a “reine de la fève” que, noutro elenco, fi cara esquecida nos rituais do

início do ano; a fi gura de Zaqueu impôs-se-nos contra outras interpretações ante-

riores no contexto indiscutível de liturgia da dedicação de igrejas; a cena principal

de um fólio iluminado deixava a claro a sequência dos cenas complementares: assim,

a cena da Visitação prolonga-se nos quadros da vida de João Baptista – do nasci-

mento ao baptismo de Cristo. Enfi m, apreendemos legendas iconográfi cas menos

habituais (como a da infanda mulher do ferreiro que preparou os cravos para pregar

Cristo na cruz); familiarizámo-nos com ciclos bíblicos; mergulhámos no mundo do

imaginário feito de burlescos, de monstros e híbridos e tivemos que nos interrogar

sobre as dimensões específi cas de uma piedade que fazia conviver o satírico com

o religioso, que retirava da morte lições para a vida, que ultrapassava o que via no

imediato e descrevia o que não estava ao alcance do olhar. Tivemos também que

interpretar iconografi as menos tradicionais, a fi m de não lhes perdermos o sentido

da fi gura proposta no livro4.

Algumas vezes tivemos que saber situar o processo artístico, porque, de facto, os

livros têm agentes e têm destinatários... Ficámos deslumbrados nalguns casos, per-

plexos noutros, obrigados a refl ectir, muitas vezes. Houve que alargar horizontes a

espaços e a tempos habitados por pessoas diferentes de nós, mas com problemas

similares aos nossos – alguns deles, comanditários directos de um exemplar bem

planeado; outros, compradores de produtos em que a repetição deixou marcas de

mercado. Recuperámos, num ou noutro caso, as indicações de programas de base

(postos à vista pela degradação de algumas imagens); pelo menos uma vez tivemos

de nos deter a considerar a programação de espaços aferidos pelos cálculos perfei-

tos das proporções tradicionais5. Precisaríamos de tempo para aprender o modo de

narrar por imagens6.

Foram pequenos ganhos, mas tudo isso diz bem da distância a que muitas vezes

nos fi cam imagens que encontramos no percurso concreto da cultura ocidental7.

Por uma razão ou por outra, nestas circunstâncias, foi aumentando a nossa biblio-

teca em recursos bibliográfi cos que nunca pensáramos manusear directamente ou

adquirir. Fizemo-lo por exigência de análise, mas também motivados pela urgência

em nos inserir culturalmente no nosso momento histórico, intensamente marcado

pela presença da imagem e necessitado de voltar à clarifi cação de percursos ante-

riores – para não soçobrar perante a invasão massiva do visual que os novos meios

virtuais tornaram hoje inevitável e a rondar o apocalíptico.

2. Somos efectivamente levados a interrogar-nos sobre o estatuto da imagem. A sua

presença intensifi cou-se de tal modo que quase se torna penosa por razões óbvias:

perda de sentido por acumulação excessiva, fastio de superabundância, criação de

dependências estéreis... É urgente devolver à imagem o sortilégio de antes, entender

a sua função de abrir espaços e de criar interioridade – como a poesia que liberta

pelo que sugere, que prende pelo que fascina, que atrai pela plenitude do dizer.

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o p o d e r d a i m a g e m : e n c a n t o s , a m b i g u i d a d e s e v a l o r i z a ç õ e s

7. A seu tempo, será publicado o catálogo em

que os resultados da análise fi carão a manifesto

(ainda que, por razões compreensíveis, não sejam

declarados todos os passos do percurso).

8. Cf. Monique Sicard, «Les paradoxes de

l’image», in Sciences et Médias. Cognition, Com-

munication, Politique. Hermes 21, Paris, CNRS

éditions, 1997, p. 48.

9. Claude Collard, Isabelle Giannattasio, Michel

Mellot, Les images dans les bibliothèques, Édi-

tions du cercle, coll. Bibliothèque, Paris. 1995,

p. 12.

10. Apoio-me, sem subordinação, em Elizabeth

Gardère, «L’espace visuel dans l’énonciation édi-

toriale: les sciences en images»:http://laseldi.

univ-fcomte.fr/archives/colloque/sciences_ecri-

ture/documents/preactes/Gardere.pdf

11. Em depoimento recente, Stanislas Dehane,

autor de estudo atento à actividade de leitura,

Les Neurones de la lecture, Paris, Odile Jacob,

2007, demonstra as razões do incitamento à lei-

tura, das vantagens de ler textos poéticos; critica

Platão por considerar que a escrita era nociva,

pois “a leitura dopava as capacidades mentais”.

12. Cf. “Iluminura, um traço distintivo”, in A Torre

do Tombo na viragem do século – Catálogo de

Exposição, Lisboa, ANTT, 2000, pp. 29-33.

Monique Sicard sugere seis características da imagem que são outras tantas hipó-

teses para compreender a imagem: 1) a percepção da imagem é global, imediata e

irredutível na sua identidade; 2) a imagem é mutável na longa duração; 3) a imagem

não produz enunciado por si mesma, mas força a que ele se construa, ao exigir que

seja compreendida com coerência e consistência na equivalência simbólica; 4) uma

mesma imagem pode ser recebida de modo contraditório, porque é plurivalente;

5) por isso a imagem tem múltiplas legitimações; 6) por isso também cada imagem

tem uma parte (sempre indeterminada) de inesperado e de casual8.

Nesta pluralidade de leitura se revela a diferença da imagem relativamente ao texto

narrativo. Já a seu tempo, o fi lósofo alemão Lessing, no ensaio a que deu sintoma-

ticamente o título de Lacoonte (1766), opunha literatura narrativa a pintura des-

critiva: o texto, uma vez estabelecida a codifi cação num quadro de arbitrariedade,

não pode ser alterado, sob pena de ser destruído; a imagem, pelo contrário, não

sendo consubstancial ao respectivo suporte, não é codifi cada e pode ser acolhida

em formas diferentes9. Os textos têm uma morfologia e uma sintaxe interna que

não podem ser alteradas; as imagens criam uma sintaxe que lhes permite funcionar

como linguagem e põem em cena dispositivos de comparação, de condensação, de

emergência e imergência do visível e do invisível, do real e do imaginário, do eidé-

tico e do fi ccional10.

Colocando a imagem em relação com o texto, há quem opine que ele leva vantagem:

o exercício de exploração do texto é mais estimulante; julga-se saber hoje que, até do

ponto de vista fi siológico (por recurso à ressonância magnética), é possível distinguir

o cérebro de um letrado por confronto com o de um iletrado, pois a aprendizagem da

leitura acarreta transformações cerebrais indeléveis; por outra parte, não se conhece

vector de transmissão mais efi caz que a escrita11.

Quanto à imagem, importa-nos apurar se ela distrai ou concentra; se a pausa que

eventualmente propõe é fuga em dissipação ou se é tempo de aprofundamento de

sentido. Tomando-a à parte melhor, haveríamos de dizer que tão estreita foi, ao

longo dos tempos, a sua associação com o texto que há boas razões para admitir

(baseando-nos nesse convívio) que a imagem assume funções dirigidas a secundar

e potenciar virtualidades que o exercício de leitura pressupõe. Já em tempos assi-

nalámos que, relativamente ao texto, a imagem aduz um traço distintivo, marca uma

situação (de texto e, por alargamento, do leitor), distende o horizonte de referência,

sugere e integra um mundo de signifi cação. Como tal, a associação aparenta ser

motivada e por isso impregnada de valor signifi cativo12.

*

No livro, a imagem tem certamente um estatuto de complementaridade, mas há que

reconhecer-lhe também estatuto de autonomia, embora sem emancipação: mantendo

autonomia, vive da associação com o texto; estando associada, não se esgota na

subordinação ao texto, pois não é tautológica relativamente a ele; mesmo não tendo

vida inteiramente à parte, ganha funcionalidades que não são directamente previ-

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13. Cf. Christopher de Hamel, “Books of Hours:

‘imaging’ the word”, in The Bible as Book – The

Manuscript Tradition, ed. John L. Sharpe III &

Kimberly von Kampen, Londres, British Library,

1998, pp. 137-143.

14. Cf. Christine Dubois, “L’image abymée”, Ima-

ges Re-vues, n.° 2, 2006, http://imagesrevues.

org/Article_Archive.php?id_article= n.°14. Re-

tenho daí que foi André Gide (Journal de 1889-

-1938, Paris, Gallimard, 1948) o primeiro a uti-

lizar literariamente, em 1893, a expressão “mise

en abyme” que em heráldica serve para exprimir

que o centro do escudo é considerado uma es-

pécie de miniatura do conjunto do brasão. Não

encontramos expressão que em português tenha

correspondente, embora os dicionários nos digam

que “en abîme” signifi ca ver de “alto a baixo”.

Implica o elemento no conjunto e dá-lhe uma re-

fl exibilidade de inclusão do efeito de leitura que

está para além da mera transposição especular.

15. Gérard Genette, Métalepse: De la fi gure à la

fi ction, Paris, Seuil, 2004, p. 110.

síveis e por isso têm de ser explicitadas, sem perder de vista o enquadramento que

lhe é dado; tendo, por si, uma identidade específi ca, não se reduz ao seu valor na

representação facial; tendo autonomia, deve ser entendida na continuidade de uma

linguagem em que a sintagmática é tão importante como a paradigmática e esta é

clarifi cada em grande parte pela tradição que assegura o sentido mais adequado e

contraria a deriva ou se impõe ao arbitrário.

A ilustração de um Livro de Horas é porventura um dos casos mais sintomáticos da

autonomia da imagem na sua relação com o texto: marca um género de livros, mas

apenas em reduzida escala se subordina ao texto13. Nem por isso, todavia, ela revela

de imediato a sua funcionalidade integrada – há que deduzi-la da devotio e não da

relação com os textos maioritariamente bíblicos que convivem com a imagem. De

facto, há uma dinâmica própria da imagem que se declara no sentido da sua inclu-

são no todo de que faz parte, que integra a “relação dialéctica entre representação

e apresentação” e tem por base uma reconfi guração especular no interior de um

enunciado complexo em que o leitor é parte do efeito e fi ca obrigado a remontar à

tradição sem deixar de atender à linguagem a que é convocado – num movimento

de acção e reacção em que o centro, que é o leitor, se desloca para a imagem e esta,

por tal intervenção, se converte em universo de nova compreensão14.

Ao abrir o comentário ao Apocalipse de Beato de Liébana, dou-me conta que, na

fi guração do exemplar da Torre do Tombo, o tetramorfo da Adoração do Cordeiro

não segue a ordem dada pelo texto de base: “No meio do trono e ao redor do

trono, quatro Viventes (...); o primeiro tem a fi gura de leão, o segundo a de touro,

o terceiro tem o rosto de homem, e o quarto tem a fi gura de águia a esvoaçar”.

A imagem organiza os elementos de modo diferente: em cima, a águia; em baixo,

a fi gura humana; à esquerda o leão; à direita o touro; no centro, o Cordeiro. Signifi ca

isso que o iluminador não se subordinou à letra, mas sobrepôs-lhe uma organização,

em que o espiritual (águia) se opõe e associa ao racional (homem), mas um e outro

integram o animal (leão e touro – a representarem o selvagem e o doméstico) num

mesmo acto de adoração ao Cordeiro imolado e ressuscitado.

A categoria de “image abymée” é porventura uma forma de resolver essa dialéctica

da presença-ausência, por refl exo do que se vê e por prolongamento do que se tor-

nou pessoal. Em retórica clássica, é conhecida a fi gura da metalepse, palavra grega

que etimologicamente quer dizer “transposição”. Gérard Genette dedicou-lhe um

livro inteiro e explica que se trata de passagem de um plano narrativo para outro,

de uma imbricação do leitor na narrativa por refl exibilidade do processo de leitura:

“Podemos considerar por metaléptico qualquer enunciado sobre si, e portanto qual-

quer discurso, e por inclusão qualquer relato, primeiro ou segundo, real ou fi ccional,

que comporte ou desenvolva um tal tipo de enunciado”15. Quando num romance o

leitor interrompe a leitura para advertir no efeito criado em si pela narrativa está a

participar nela; opera-se a transposição do narratário (do leitor, se quisermos) para

dentro da cena representada na narrativa e para junto do narrador que é o suposto

autor. Genette passa do campo literário para o campo das diversas artes «represen-

tativas», como a pintura, o teatro, o cinema, a televisão ; explica como as fi guras de

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o p o d e r d a i m a g e m : e n c a n t o s , a m b i g u i d a d e s e v a l o r i z a ç õ e s

16. Na História do cerco de Lisboa de José Sara-

mago, Lisboa, Caminho, 1989, p. 119, por uma

mudança hábil de plano narrativo, o autor pode

ser o corrector Raimundo Benvindo Soares.

17. Encontramos esta frase em www.legalbiz-

next.com/droit/IMG/pdf/thh se Zaina AZZABI.

pdf, onde se colocam problemas do máximo in-

teresse para defi nir questões jurídicas relativas a

“imagem e direito de mercado”, mas circula em

outros textos. Cf. L. Gervereau, Voir, comprendre

et analyser les images, Paris, Guides Repères, La

Découverte, 4.e éd, 2004; M. Joly, Introduction à

l’analyse de l’image, Paris, Armand Colin, 2005.

18. Philippe Hamon et Denis Roger-Vasselin (dir.),

«Le Robert des grands écrivains de langue fran-

çaise», Paris, Les Dictionnaires Le Robert, 2000.

19. A relação com o real e com a criatividade

obrigam a examinar como a fotografi a operou

uma revolução estética. Não obstante os limites

da obra coordenada por André Gunthert e Michel

Poivert, ed., L’art de la photographie des origines

à nos jours, Paris, Citadelles & Mazenod, 2007,

os problemas são de colocar quanto à integração

de fotografi a como captação e proposta da ima-

gem captada sobre o real.

20. É óbvio que os recursos técnicos condicio-

naram o uso da imagem na imprensa, não obs-

tante a qualidade artística excepcional de alguns

resultados. Cf. Ernesto Soares, A ilustração do

livro (séculos XV a XIX), Lisboa, Edições Excel-

sior, [s.d.].

21. Cf. François Bœplug, Caricaturer Dieu? –

Pouvoirs et dangers de l’image, Paris, Bayard,

2006 ; Michel Feuillet, Représenter Dieu, Paris,

Desclée de Brouwer, 2007.

um escudo homérico podem animar-se e tomar a palavra, como uma personagem

pode sair da cena ou como um romancista entra em animação com as suas fi guras ou

alguém que interfere na marcha do seu livro entra no processo de criação16.

3. A imagem torna-se assim elemento reflexivo de leitura, mesmo que o texto

continue a ser elemento de partida. Essa possibilidade assume hoje tanta maior

importância quanto a imagem se soltou e, mais liberta que noutros tempos, se

tornou invasiva; pela insistência tornou-se molesta (como o ruído ambiente), pela

banalização deixou de ter efeito marcado e assumido.

André Breton prognosticara: “um dia virá em que as imagens substituirão o homem

e este não terá já necessidade de olhar; não seremos já seres que vivem mas que

vêem”17. Para o “papa do surrealismo”, tratava-se de superar um estado anterior da

cultura a fi m de “descobrir aquele ponto do espírito em que a vida e a morte, o real

e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o

baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente”18.

Para quem gosta de guardar distâncias e manter lucidez para perceber como o

racional pode ser conciliado com o estético e o afectivo, tais palavras são um alerta.

Queremos entrar no processo da construção da imagem para apreciá-la na sua

novidade criativa, mesmo que tenhamos de corrigir erros de formação e que davam

por suposto que a fotografi a é um espelho e não um modo de trazer a realidade ao

nosso convívio19.

Certamente o progresso da fotografi a e as capacidades técnicas de a transpor para

o texto impresso ou para o cinema e para a televisão deram à imagem novas opor-

tunidades e trouxeram-na a pé de igualdade com o texto, a tal ponto que se atribui

a Picasso a afi rmação de que dessa maneira o pintor fi cou livre da condenação que

pesava sobre ele de ter de viver do retrato20. Todavia, por ter invadido domínios

reservados ao sagrado (e por tê-lo feito descomedidamente e irreverentemente, sem

respeitar as distâncias do numinoso) a imagem provocou nos nossos dias reacções

que obrigam a examinar como ela arrasta afectos que os “adoradores de espírito e

de verdade” sabem entender e dosear (como risco de tocar o sagrado e o infi nito),

mas outros procuram manipular21.

Vindo a terrenos mais chegados, para servidores dos textos que somos (fi lólogos por

profi ssão), havemos de confessar que nos impressiona o facto de a tensão gerada

entre iconografi a e escrita nem sempre se ter resolvido por integração activa dos

dois elementos, apesar de conviverem.

Provavelmente, porque também relativamente ao texto se aceitou uma atitude

passiva que levou a colher nele apenas aquilo que fazia falta ao leitor, em vez de

conduzir este a entender apenas aquilo que lhe faltava para tornar autónomo e cria-

tivo o próprio leitor (à maneira socrática) – privilegiando a memória do texto não se

assumia a leitura como indutora de expressão pessoal; por incúria e por incapacidade

de ensinar a ler a imagem deixámos que fosse apenas recurso menor ou tolerado.

Em acto crítico, teremos de convir em que, apesar de todos os favores e da sua

multiplicação, a imagem foi, ao longo dos tempos, na cultura ocidental, conside-

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22. Na época arcaica, os motivos são formados

de desenhos geométricos ; na época clássica, a

pintura acode aos motivos mitológicos ou quo-

tidianos: os mais antigos servem-se do verniz

negro sobre fundo de terracota, mas, por 525,

aparece em Atenas uma nova técnica de pintura

e os dados invertem-se – a fi gura sobressai em

recorte de fundo a negro. O requinte do desenho

ia a par de domínio da técnica de tratar as várias

fases do trabalho.

23. Cf. Paolo Fedeli, “L’immagine come interpre-

tazione nei manoscritti latini”, Euphrosyne, 30,

2002, 297-316.

rada como recurso menor ou inferior numa sociedade que, em boa parte, via a

escrita como processo de formação objectivamente marcada pelo exercício do poder

e olhava para a imagem como adorno que, em certas circunstâncias, era a imagem

desse mesmo poder.

Talvez tenhamos de nos aperceber que só por regresso ao processo construtivo

nos damos conta de como a imagem foi ganhando lugar próprio em paralelo com a

racionalização do discurso e com o registo da escrita.

Remontando às origens de uma cultura que é matriz (porque não houve rupturas

signifi cativas ou, se alguma vez aconteceram, não saíram da memória operativa os

dados de continuidade e houve recuperações), momento houve em que objectos

quotidianos passaram a ser marcados por representações de signifi cado permanente e

reversível e integrados por isso noutro plano de signifi cação – de conteúdo estético,

talvez, mas fundamentalmente associados a um mundo de representação adicional.

A representação iconográfi ca fi xa um conteúdo mais do que uma fi gura.

A par de um discurso verbal constrói-se um mundo de representação que vive da

imagem e transporta consigo um universo simbólico. São disso exemplo os elementos

mitológicos que fi guram nos vasos da antiguidade grega22.

Quando o pintor Clítias representa Ájax a carregar o corpo de Aquiles (Vaso François:

cratera de volutas com fi guras negras – 570 a.C.) não está a servir-se de um texto

(pelo menos nosso conhecido), mas certamente emula uma cena de refi guração do

herói, conhecida de tradição oral; o herói humaniza-se: não traz o escudo no braço

nem está sob protecção manifesta de Atena nem tem tão pouco o acompanhamento

de Hermes – como o pintou Antímenes, c. 510 – mas os traços retêm um guerreiro

que não tem tempo de retirar o elmo e estuga o passo com o corpo inanimado de

Aquiles que carrega ao ombro.

Poderia parecer que o tempo corre em favor da fi guração do mito. Não, de forma

exclusiva. O quotidiano impôs-se na fi guração do pintor Exékias (c. 530 a.C.), quando

representa Ájax e Aquiles entretidos a jogarem os dados (cena não tida em conta

nos poemas heróicos). Num e noutro caso, há uma história de base, mas há opções

e traços que marcam – são eles resultado de integração num meio específi co em

que a cultura se alarga a posturas não uniformes; há que entender que a narrativa

homérica fi xada nos tempos de Pisístrato não esgota a fábula troiana.

Não seria difícil transpor este exercício para outros modos literários; a acção dramá-

tica que os trágicos nos apresentam é obviamente menos deîctica que agonística,

num enquadramento de personagens que valem pelo confl ito que sustentam do que

pela fábula que servem ou trazem à boca da cena teatral.

Por muito que a imagem pareça servir a fábula, há traços que lhe restituem iden-

tidade própria e exprimem novas leituras. A iconografi a da Eneida no “Vergilius

Vaticanus” não se limita a transpor o texto, mas apresenta conformidade com os

comentários dos gramáticos e revela leituras aprendidas (Suicídio de Dido, Vergilius

Vaticanus: Vaticano, BA, Vat. Lat. 3225. fl .41)23.

Não é aqui momento para entrar pelo tema do aproveitamento da imagem como

estratégia do poder político, de interacções que gera de comunicação tal como

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estão manifestas num tempo tão emblemático como foi o Saeculum Augustum; com

extrema pertinência já foi demonstrado que nele a imagem serviu para apoiar um

sistema ou processo cultural (nunca houve um programa identifi cado como tal) que

favorecia e glorifi cava um poder unipessoal, criava a ilusão da grandeza do Estado

(publica magnifi centia) e interagia pelo modo como se apresentava sob enunciados

de reintegração do antigo e do novo pelo regresso à tradição (pietas et mores)24.

Da análise que Paul Zanker dedicou ao século de Augusto retenhamos que a imagem

(que vinha ganhando estatuto de afi rmação por parte dos aristocratas em fi nais da

república) exprime, por si, o estado de uma sociedade e os seus valores, tanto nos

momentos de crise como de euforia e solicita pela interacção que desencadeia ou

pelos efeitos que se alargam até conduzir a conformações de identifi cação e a trans-

formações defi nitivas. A imagem não serve apenas para ilustrar; acompanha e exprime

uma realidade a que se associa, mas de que não apresenta modo directo de leitura.

Menos explícita que o texto, sintetiza uma mensagem e “satura” com ela o contexto

em que é projecção e refl exo potenciador, de tal modo que contribui para acelerar

a mudança: delimita uma mensagem e insinua-a como linguagem, amplifi cando-a.

Desempenha, efectivamente, funções integradoras, como meio de marcar situações

e ambientes, ritualizar momentos, promover leituras, dilatar espaços e tempos25.

4. No enquadramento do livro, queremos pressupor que há uma tensão entre texto

e imagem e que essa tensão não pendeu maioritariamente em favor da imagem.

Hesitamos por vezes em classifi car a sua presença, mas os próprios contemporâneos

nos esclarecem que, para eles próprios, o juízo nem sempre era unânime – o que diz

bem tanto da ambiguidade de signifi cação como da necessidade de proceder a uma

iniciação que permita induzir a sua função, mas deixa prever que a explicitação do

seu contributo para a linguagem cultural obriga a conjugar factores de vária ordem.

Houve quem ousasse propor-lhe limitações. Entre os adversários é colocado Bernardo

de Claraval; em atitude indagativa, apetece perguntar se as reacções do doctor meli-

fl uus à imagem eram devidas a resquícios de intelectualismo ou resultado de um asce-

tismo que, sendo moderado, ponderava os efeitos do seu uso e procurava, apesar de

tudo, reagir contra excessos, por racionalização de meios, atenção aos efeitos, com-

pensação entre a vida contemplativa e vida de trabalho (como era a dos cistercienses)26.

24. Paul Zanker, Augusto y el poder de las imá-

genes, Madrid, Alianza, 1987 ; François Queyrel,

L’autel de Pergame: images et pouvoir en Grè-

ce d’Asie, Paris, Picard, 2005. Françoise-Hélène

Massa-Pairault, Iconologia e politica nell’Italia

antica: Roma, Lazio, Etruria dal VII al I secolo

A.C., Milão, Longanesi, 1992; Françoise-Hélène

Massa-Pairault, L’image antique et son interpré-

tation, École française de Rome, 2006.

25. As pinturas nas casas romanas são por vezes

interpretadas como modo de alargar horizontes

para espaços reduzidos ou como formas de criar

elementos apotropaicos de afastar forças nega-

tivas.

26. Cf. Yolanta Za uska, «L’enluminure cister-

cienne au XII.e siècle», in Bernard de Clairvaux:

histoire, mentalités, spiritualité, Paris, Cerf, 1992

(Colloque de Lyon-Cîteaux-Dijon), pp. 271-285.

No fi nal do seu texto, a investigadora sublinha

que no fi nal do séc. XII (escrito XX), quer-se a

imagem a todo o preço, uma imagem que fi ra

a imaginação, tanto mais quanto ela se torna

um factor importante da vida socio-económica

e política do mundo; os próprios cistercienses

preferem os monstros a combater e os híbridos,

abandonam a austeridade iconoclasta do estilo

bernardino que tendia para a união com Deus por

ascese que evita qualquer satisfação sensível e se

esconde nos matizes monocolores que se lançam

sobre o pergaminho.

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27. Encontro esse episódio no Blogue de Ariane:

givernews.com/images/photo2/culdelampe.jpg

A questão posta por Bernardo relativamente à pertinência de gastar tempo e despen-

der dinheiro em colorir manuscritos ou em colocar monstros nos claustros continua

a ser problemática. Casualmente dou com uma explicação coerente: alguém visitava

um antigo mosteiro em Saint-Vulfrain d’Abbeville e interrogava-se sobre a razão da

existência de monstros nas fachadas das igrejas e nas mísulas dos arcos: “a explicação

mais corrente é que se trata de espantalhos para fazer fugir os demónios que vêm

ao encontro dos devotos que se reúnem no interior do edifício; mas um canteiro que

talhava a pedra acabou por dar uma outra resposta que teve o efeito de uma revela-

ção, tão evidente ela era: as gárgulas e outros monstros são uma materialização na

pedra dos demónios que se aprestam a fugir da igreja, afugentados pelas orações que

ali se fazem”27. Bernardo, que contestava os exageros de algumas formas de culto e

de arte de monges de Cluni, não estava disposto a fazer tais concessões...

Abertura à imagem está bem patente no prólogo do Livro das Aves, atribuído a Hugo

de Folieto, e que havemos de situar na procura da natureza como imagem de um

mundo superior. Recorde-se que, dirigindo-se ao converso Ranério, diz-lhe o autor:

“Desejando dar satisfação aos teus insistentes pedidos e desejos, decidi pintar uma pomba

com asas prateadas e tons de ouro na cauda, para assim, através da pintura, edifi car a

mente de gente simples, por tal modo que a quanto o espírito dessa gente simples mal

pode apreender pelo olhar da inteligência o possa perceber pelo olhar do corpo e por tal

modo também que àquilo que o ouvido mal pode entender o consiga perceber o olhar”.

Vista e ouvido completam-se na ordem de conhecimento, mas supõem esclarecimento

e fazem parte de uma pedagogia de iniciação aos mistérios escondidos (ao tempo

designada por moralidade), iniciação essa dada em forma escrita – para benefi ciar

da estruturação que produz o aprofundamento do sentido das coisas:

“não quis apenas fi gurar e pintar uma pomba, mas também descrever o que nela entendo,

a fi m de que, por escrito, deixe perceber o que pinto e assim mesmo aquele a quem

não agradar a simpleza da pintura fi que, ao menos, agradado com a lição moral do que

escrevo”.

A explicitação do elemento icónico apresenta-o como instrumento de revelação do

homem a si mesmo, na leitura que faz da natureza:

“A ti foram-te dadas asas de pomba e afastaste-te para longe a fi m de fi cares a residir na

solidão e aí repousar; porque aí não procuras adiamentos, como propõe a voz do corvo

que crocita cras, cras (amanhã, amanhã), mas a contrição nos gemidos da pomba, para ti

pintarei aqui não apenas uma pomba, mas também um falcão”.

Mais do que oposição entre letrado e iletrado, está em causa a complementaridade

na diferença representada por dois símbolos (um de vida contemplativa e outro de

vida activa), que se prolongam na complementaridade entre mundo físico e mundo

intelectivo numa compenetração de valores de signifi cação: a partir de uma imagem,

que é assumida em contemplação, pode o monge ver-se recreado na sua meditação,

como elemento simétrico que é de uma acção.

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28. Jean-Claude Schmitt, Le corps des images.

Essais sur la culture visuelle au Moyen Âge, Paris,

Gallimard, Collection «Le temps des images», 2002.

29. Categoria que Levi-Strauss admitia para o

sermo mythicus em contraste com o sermo dia-

lecticus fundado sobre o binarismo do sim / não

(em que necessariamente se verifi ca um tertium

exclusum).

30. A obra de Gilbert Dragon, Décrire et peindre

sur le portrait iconique, Paris, Gallimard, 2007,

salienta a sublimidade do ícone: designa o que

fi gura, é porta de entrada para a sua contempla-

ção; é proposta para chegar a ele e não imitação

de uma realidade. Como assinala, o ícone deve

ser “plano, repetitivo, sem sombra nem profun-

didade, a um tempo relacional e substancial ao

seu modelo, abstracto como um nome e concre-

to como uma relíquia, condenado ao sublime”.

Comenta Patrick Boucheron, “L’icône, forcément

sublime”, L’Histoire, 326, 2007 (Dezembro), 78:

“Esta imaginação criativa que recusa ao pintor

o ícone confi a-o ao espectador; este, ao olhar

para ele, deve aprender a reconhecer o santo que

lhe aparecerá em sonhos ou o próprio Cristo que

voltará no momento da segunda parúsia (vinda

gloriosa)”. O ícone fi xa alguns traços somáticos,

mas desafi a o devoto a perscrutar a realidade es-

condida – para a qual os enunciados teológicos

servem apenas de orientação.

5. Não foi fácil admitir a imagem como recurso didáctico e pedagógico nem

reconhecer-lhe capacidade instrumental; muito menos para exprimir o espiritual e

o transcendente. Porém, antes mesmo da questão iconoclasta chegar ao Ocidente,

a legitimidade do seu uso estava sancionada por autoridade.

Disso dão testemunho duas cartas, bastas vezes comentadas, dirigidas pelo papa

Gregório Magno, em 599 e 600, ao bispo Sereno de Marselha. Havia este mandado

apagar as fi guras que tinham sido pintadas nas paredes dos lugares de culto, por

temer que o povo mais humilde fosse tentado a prestar-lhes veneração e voltar à

idolatria.

Gregório contrapõe que “as imagens devem ser colocadas nas igrejas para que todos

aqueles que não conhecem as letras consigam aprender olhando para elas e retendo

o que não conseguem ler nos livros”.

Se interpretamos bem, a imagem tem nisso um estatuto paralelo ao da escrita; mas

não se emancipa dela, pois continua dependente do texto e a ele devia reverter:

especifi camente, no caso de Gregório, está em causa o texto bíblico, relativamente ao

qual se espera que a pintura reproduza, em modo visual, a sua historia. Na realidade,

a imagem “é inteiramente pensada como modo de leitura de um texto escrito”28 e

deveria ser lida como se fosse um texto, sem que os elementos formais interessassem

directamente por eles próprios.

Tal foi também a interpretação feita do uso da imagem por bons historiadores da arte

medieval, como Émile Mâle, que nas fachadas das catedrais e noutras representações

procuraram a transposição de textos mais do que criações autónomas. Difi culdade

em ler o texto? Quem não a tinha para ler as imagens?

A lição não é uniforme neste aspecto. Valafrido Estrabão diz, em forma lapidar, que

a pintura é uma espécie de texto para o analfabeto: Pictura est quaedam litteratura

illiterato. Embora a prioridade vá para o texto, como depõe Jean-Claude Schmidt,

havemos de advertir que o enunciado do monge carolino pressupõe que a imagem

não limita a sua função à ilustração de um texto ou de uma “história”, pois, tanto

como servir à representação de uma “história” (fosse ela bíblica ou não), ela era um

mecanismo que interpretava e dava a conhecer formas de vivências que situam a

própria “história”.

Colocada frente ao texto, a relação, mesmo que fosse especular, não teria que ser

necessariamente tautológica. Há certamente na imagem uma “redundância”29, mas

ela não é vazia de sentido nem resulta de exercício inútil, pelo que não é excrescência

a eliminar. É fundamentalmente lugar de praesentia numinis symbolica, na terminolo-

gia de E. Cassirer, e complementa o texto, sendo persuasivo o seu efeito último de um

universo de representações que ajuda a confi gurar. Há sobretudo situações mais mar-

cadas, em que a imagem é reconhecidamente tabernáculo, através do qual se abre a

porta de signifi cação. Nesse reconhecimento ela considera-se habitada e converte-se

em objecto de relação pessoal. É ícone, mas, mais que detentor de uma representação

de “semelhança” (que apenas remetesse para o objecto que refl ecte), torna-o pre-

sente e dá acesso a ele, como porta que se abre30. Ganha consistência não tanto pelos

traços de estrutura formal (fi gura) quanto pela adesão que provoca e pelos afectos

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31. Cf. J. M. Díaz de Bustamante, “Imago, fi gura,

idea: evolución del concepto de mundo y univer-

so hasta el Renacimiento”, in A imagem do Mun-

do na Idade Média, ed. Helder Godinho, Lisboa,

1992, pp. 113-122.

32. A formulação aparece na Rhetorica ad Heren-

nium, 4, 28, 39, e remonta a Simónides de Ceos,

segundo revelou Plutarco, glor. Ath. 3. Cf. Cor-

nifício, Rhetorica ad Herennium, cur. G. Calboli,

Bolonha, 1969, p. 367, n. 168. Interpretamos

como equivalência aquilo que é dado em parale-

lo proposto por Horácio, Ars poet. 361-365: «Vt

pictura poesis: erit quae, si propius stes, / te ca-

piat magis, et quaedam, si longius abstes; / haec

amat obscurum, uolet haec sub luce uideri, / iu-

dicis argutum quae non formidat acumen: / haec

placuit semel, haec repetita placebit», ou seja,

em tradução: «Como a pintura assim é a poesia:

haverá uma que se estiveres mais perto te cativa

mais, e outra que o faz se estiveres mais longe;

uma gosta da obscuridade, outra quererá ser vis-

ta a toda claridade, por não recear o olhar arguto

do crítico, a esta bastaria olhá-la uma vez, àquela

será grato fazê-lo vezes repetidas». A formulação

da Rhetorica ad Herennium, 4, 28, 39, apoia-se

em Simónides, segundo revelou Plutarco, glor.

Ath. 3. Cf. Cornifício, Rhetorica ad Herennium,

cur. G. Calboli, Bolonha, 1969, p. 367, n. 168.

33. Cf. Plínio, NH, 25, 4.

que gera; alimenta a contemplação e fi xa ou relança o desejo; representando o invi-

sível, ganha adesão pela visibilidade que provoca do invisível e desencadeia emoções

– ainda que não aumente o conhecimento, goza do efeito do impacto luminoso que

antecipa o objecto distante e desencadeia o afecto (de aceitação ou rejeição) por

ele. Reencontro-me assim com os contemplativos da Devotio moderna que se atêm

à imagem para viverem a profundidade do afecto que consagram à humanidade de

Cristo e aos santos, com quem comungam atitudes teológicas de adoração a Deus.

À primeira vista, o valor de imago pode parecer estático ou inerte; no entanto, se

tivermos em conta que na origem está um radical *im- (o mesmo que se encontra em

imitatio), associado a um segundo elemento -ago (determinável em palavras como

uirago, termo que no texto bíblico latino serve para caracterizar a primeira mulher –

companheira do primeiro homem / uir, e como ele o protótipo feminino por excelên-

cia), teremos de reconhecer que o sentido de base é dinâmico. Por isso há razão para

estabelecer contraste com fi gura: enquanto esta não é mais que uma esquematização

de uma realidade, a imago mantém uma relação directa com esse original por simili-

tudo, de tal forma que assegura ao signo a forma eidética e as qualidades do que é

imitado. O enunciado bíblico da criação que associa imago a similitudo diz bem deste

conteúdo positivo: o homem é feito à imagem e semelhança de Deus (Gen. 1, 26)31.

Não é dado este valor naturalmente (physei, segundo a terminologia grega); é-lhe

concedido por funcionalidade (nomoi, segundo a mesma terminologia). Na singu-

laridade da sua autonomia, a imagem apenas se torna “falante” para quantos sejam

iniciados e capazes de reconhecer as suas referências e integrá-la num mundo de

signifi cado. Com razão, Simónides de Ceos, no longínquo séc. V a.C., postulou para

a imagem um estatuto similar ao do texto: poema loquens pictura, pictura tacitum

poema debet esse – “um poema deve ser uma pintura que fala, a pintura um poema

sem palavras”32.

Por esse tempo, a proclamação do valor da imagem fazia paralelo com a discussão

da palavra como representação da realidade segundo os parâmetros da physis ou

do nomos, em interpretações mais ou menos antitéticas. A divergência vinha dos

próprios pintores e assentava nos padrões invocados para apreciar a mimesis.

É conhecida a historieta dos dois pintores gregos Zêuxis e Parrásio (na evocação

de Plínio, o Velho)33: num concurso de pintura, Zêuxis, conhecido pelo tratamento

dado às cores e ao contraste de luz e sombra, teria pintado um cacho de uvas com

tal realismo que as próprias aves teriam descido a debicar os bagos; por sua vez,

Parrásio teria pintado um véu com tal perfeição que Zêuxis teria pedido que o seu

rival retirasse a cortina para apreciar a pintura; advertindo que afi nal a pintura era

o próprio véu, Zêuxis saudou o seu rival pela vitória, pois ele tinha enganado só as

aves, mas o outro tinha-o enganado a ele.

Prémio para a capacidade de criar maior ilusão? Seria frustrante que tal acontecesse.

A fi cção desafi a e vence a própria realidade. Ou, por outra parte, a imagem aduz o

que a realidade não contém. Tal como o discurso das palavras propõe juízos e induz

novidades (e estas são tanto maiores quanto mais se aproximam da pintura), também

a imagem vale tanto mais quanto a ela se vinculam signifi cações novas.

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34. Cf. Plínio, o Velho, XXXV, 10, 36.Em seminário de 1964, Jacques Lacan interpretou a fábula dos pintores gregos como

reveladora de um aspecto signifi cativo do conhecimento humano: enquanto os ani-

mais (as aves da anedota) se atêm apenas às aparências e chocam contra a tela, há

humanos que entendem o que está escondido no interior e por isso se mede a sua

inteligência (não era o caso, para voltar à mesma tradição, de Apeles que deprecia

o modo como é apertada a fi vela da sandália, mas, ao passar a outros pormenores,

é repreendido pelo pintor, que se escondera, e aconselhado a deter-se na sua limi-

tação – da chinela que era a sua especialidade34).

Alguém (que discutia o trabalho dos repórteres fotográfi cos das Agências de hoje

e sensível às superações com que tentam escapar ao simples mecanismo da ima-

gem) escrevia recentemente que, se em 1808, Goya tivesse nas mãos uma máquina

fotográfi ca, certamente não existiria sequer o esboço do quadro dos Fuzilamentos

de 3 de Maio. Em contrapartida, havemos de concordar que nada pode substituir

a emoção de colocar a realidade onde se sente que deve estar para exprimir não

o que se vê, mas justamente o que se sobrepõe ao que se vê. A sermos cordatos,

o verdadeiro pintor sente-se mais livre para inventar a realidade desde que a máquina

fotográfi ca apareceu como possibilidade de retratar; no entanto, qualquer bom

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35. Conhecida é a fórmula de Agostinho da Dá-

cia, discípulo de Tomás de Aquino, no seu Ro-

tulus pugilaris: “Littera gesta docet, quid credas

allegoria, / Moralitas quid agas, quo tendas ana-

gogia”. O quadro é mais ou menos largo segundo

os autores: Alain de Lille, no prólogo do Anti-

claudianus explora três modalidades de leitura:

sentido literal para os principiantes; sentido mo-

ral para os espíritos formados; sentido alegórico

para espíritos intelectualmente bem dotados.

36. O nome foi-lhes dado pela escola alemã, por

1930, baseando-se no pressuposto de que eram

destinados a iletrados; não é essa a posição da

crítica: as Bíblias com tal confi guração eram de-

masiado caras para serem acessíveis ao povo sim-

ples; o esquema de compreensão implicava uma

cultura demasiado complexa para ser entendida

por analfabetos. Cf. M. Camille, “Visual Signs of

the Sacred Page: Books in the «Bible moralisée»”,

Word & image, 1989, vol. 5, n.o 1, pp. 111-130.

Dada a oposição entre Antigo e Novo Testamento

é tentador ver nas representações um assomo de

anti-semitismo; assim o faz Sara Lipton, Images

of Intolerance: The Representation of Jews and

Judaism in the Bible moralisée, Berkeley, 1999;

seria diminuir o próprio esquema (que é de base

tipológica e assenta no efeito especular – por

isso invertido – das imagens).

37. Cf. André Grabar, Les voies de la création

en iconographie chrétienne, Paris, Flammarion,

1979, pp. 117-132.

fotógrafo não se contenta com transpor o que todos vêem, pois procura fi xar o que

só ele pode descobrir e fi xar. Não foi por lhe faltarem imagens captadas pela máquina

que Picasso se lançou a criar Guernica...

O homem medieval explora a imagem não pelo valor facial (pelo que aparenta), mas

pelo que a habita ou a faz habitar (pela signifi cação de que está investida ou a que

dá acesso). Dionísio, o Areopagita (quem quer que ele seja), no início do séc. VI,

no tratado da Hierarquia celestial, propõe um percurso gradativo que dá às imagens

sensíveis, atravessadas pela luz, uma função mediadora que leva a objectivar o di-

vi no e torná-lo presente.

O seu texto, oferecido pelo imperador Miguel de Constantinopla, no tempo de Luís,

o Pio, em 827, é traduzido, para latim, por João Escoto Eriúgena, em 862, marca um

tempo – da aceitação das imagens e sua defesa contra os iconoclastas – situa-se na

mesma plataforma. Para Dionísio, as imagens materiais “fazem-nos passar do corpo

ao espírito e dos símbolos piedosos à sublimidade das essências puras”.

Séculos mais tarde, Bernardo distancia-se do uso da decoração carregada para não

impedir a pureza da luz divina enviada ao homem; prefere a interioridade que depois

se dilata em palavras, embora apercebendo-se que, perante o inefável, nada mais

pode haver que gemidos de coração. Outros, como Suger, abade de S. Denis, apos-

tam nessa mesma decoração para tornar mais evidente a manifestação de Deus, que

é luz, e exprimir, complementarmente, o que a linguagem não permite enunciar. Os

símbolos são plurivalentes...

Quanto ao uso do texto, sabemos que o homem medieval preferiu uma leitura inten-

siva a uma leitura extensiva; o seu acto de leitura era lento e como que fi siológico

– não tinha pejo em designá-lo expressivamente por ruminatio; é no claustro escolar

(e não no claustro monástico) que se desenvolve o esquema intelectual da exposição

marcada secundum causas; o contemplativo não terá outras regras de associação

que não seja a de uma acumulação de vivências interiores, mas os pregadores, como

António de Lisboa / Pádua, valem-se da célebre quadriga que os ajuda a percorrer

os vários sentidos: transportados da historia / letra para a anagogia / realidade

celestial, através da moralitas, percebida pela allegoria (o antigo prefi gura o novo,

o natural reenvia para o sobrenatural35). A tipologia do livro bíblico percorre toda

essa escala: a Biblia Historialis apresenta o texto com explicações, como as de Pedro

Comestor; a Biblia moralizata (também conhecida como Biblia allegorizata ou Em-

blemata biblica), composta no séc. XIII, é formada por passos específi cos tomados da

Bíblia e interpretados segundo o sentido moral e alegórico, sendo este basicamente

de concordância entre o Antigo e o Novo Testamento, para o que se constitui um

aparato de elementos iconográfi co. Por seu lado, as Bibliae Pauperum desenvolvem

o paralelismo tipológico entre o Antigo e o Novo Testamento36. Atendendo ao meca-

nismo é patente que desde muito cedo a pedagogia cristã se serve de uma linguagem

imagística em que se articulam representações por justaposição – associando temas

vetero e neo-testamentárias: serve para provar a unidade da história sagrada que

se desenrola num único movimento; o tempo antigo é a imagem do tempo novo,

a profecia é o anúncio do que se concretiza num tempo novo37.

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6. A superabundância de imagens nos nossos dias representa uma alteração signi-

fi cativa no convívio com elas e sua integração como modo de expressão. A invasão,

tumultuosa e agressiva, suscita problemas de ordem antropológica, pedagógica e

social, de selecção e de integração, a tal ponto que não podemos ignorar que ela se

ergue como marca de cultura e de civilização.

Colocando o problema da imagem como dado permanente, ainda que não uniforme,

de uma cultura, que é a nossa, e como elemento estruturante de uma relação com

o mundo e com os outros, teremos de aprofundar o seu estatuto no interior dessa

Ressurreição de Cristo (anunciada pelas “auctoritates”: David, Sofonias, Jacob, Oseias); à esquerda, figura de Sansão que rebenta as portas de Gaza, e, à direita, figura de Jonas que é expelido do ventre da baleia onde tinha ficado encerrado durante três dias. Biblia Pauperum. Holanda, início do séc. XV, Kings 5, fl. 20; cf. Janet Backhouse, The Illuminated Manuscript, Oxford, Phaidon, 1979, pl. 50.

Página da Anunciação numa Bíblia Pauperum já em livro impresso. A cena da visita do Anjo a Maria ocupa o centro: os filactérios registam as palavras que o texto

evangélico lhes atribui; ao lado esquerdo está a tentação de Eva; ao lado direito, a escolha de Gedeão para tomar o comando das operações na libertação do domínio estrangeiro e a demonstração pedida por ele de que seria bem sucedido: a lã de uma

pele de ovelha colocada ao relento só ela ficaria orvalhada quando tudo o mais ficaria enxuta e, inversamente, na noite seguinte, o fenómeno seria o inverso.

Em jogo está o sentido tropológico da interpretação bíblica desenvolvida na pregação. A imagem fixa o que a doutrina expressa discursivamente propõe.

A completar a representação os profetas Isaías, David, Ezequiel, Jeremias.

Os textos que acompanham a imagem interpretam a imagem.

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38. Philippe Meirieu declara peremptoriamen-

te que «toute image se construit comme une

image pieuse; c’est, dans l’histoire, un exercice

d’édifi cation spirituelle, puis morale»: http://sa-

voirscdi.cndp.fr/rencontrelyon/meirieu/meirieu.

htm (consulta: 2007-11-06).

cultura que, desde as origens, incidiu de forma mais directa na análise da palavra

e do discurso, mas nunca recusou a imagem como recurso de representação e de

complementaridade relativamente à palavra, embora esta fosse o modo mais ime-

diatamente disponível para comunicar já que a imagem necessitava de um interme-

diário para o fazer.

Há banalização dela no nosso quotidiano – é evidente. No entanto, não é pouco

salutar advertir que, tanto ou mais do que o texto, a imagem recorta um mundo

próprio que se coloca à parte e resiste à interferência de profanos, pois exige uma ini-

ciação e que esta nem a todos é concedida – pelo menos exige esforço (ascese). Para

ler um texto poderá parecer (por ilusão ou perversão) que basta juntar as letras...,

sem buscar o sentido da expressão. Para olhar uma imagem não basta ter olhos...

Por boas razões, sempre a imagem da divindade fi cava antigamente colocada no

“templo”, espaço destacado do quotidiano e ela própria era considerada como

habitada por aquilo que representava; mesmo dos incrédulos, exigia-se distância

e respeito, pois os adoradores mantinham-se a distância. Nos espaços públicos ou

privados, a imagem tinha motivações e encantos ou reenviava para uma presença.

Por muito que se confundissem por vezes garatujas com imagens, ao ícone (pelo

menos a este, e em razão da identidade que pressupunha) reconhecia-se um carácter

reservado e, de facto, nos materiais ou nas cores, na contenção do desenho e no

afecto que nele se lançava, tudo predispunha para evitar qualquer profanação.

*Não sei se coincido na delimitação dessa sacralidade com outros, mas sou levado a

reconhecer na imagem um recorte de espaço que é também o de signifi cação que

obriga à busca da sua identidade. Um dia com Albert D’Haenens, em Lovaina, fui

levado a perceber que o ritual da escrita pressupõe que o texto é um mundo à parte

e que o instrumento que o copista habitualmente sustenta juntamente com o cálamo

tem metaforicamente uma função quase sacrifi cal.

Nunca tive oportunidade de abordar com A. D’Haenens a transferência dessa pers-

pectiva para a imagem, mas encontrei-a casualmente em Philippe Meirieu quando

insiste em que toda a imagem (mesmo que profana) se constrói como “imagem

piedosa”, pois subjacente tem um exercício de edifi cação espiritual que pode evo-

luir para edifi cação moral38; chegará porventura até à sacralização, já que a imagem

tende a ser interpretada como “presentifi cação” ou símbolo com uma relação de

presença e contacto.

Não terá sido por acaso que, no decurso da história da cultura ocidental, se desen-

rolou a questão iconoclasta em que opunham duas teologias distintas: uma que

tendia a reabilitar a teoria das ideias como matriz de conhecimento (e apostava

na ausência), outra que, por força de um facto de índole teológica, entendia con-

victamente que haviam de ser tiradas as consequências de o Logos / a Palavra ter

tomado corpo para que o Indizível fosse dito e, concomitantemente, o Invísivel se

tornar não só presente, mas visível e tangível – pelo que o somático ganhava pari-

dade com o pneumático.

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O vidente do Apocalipse é o mesmo que escreve o Evangelho de João? Não tenho

argumentos que possam contradizer a tradição e apraz-nos assumir que o contem-

plativo do Logos seja o mesmo que se compraz em recordar que as suas refl exões

saíram da possibilidade que teve em tocar materialmente no Verbo da Vida (veja-se

o início da 1 Ioan. 1, 1-3).

Hildegarda de Bingen precisa do secretário para transmitir as suas visões, mas

algumas vezes se entregou à composição das imagens que, por serem tomadas sob

o efeito da visão, são mais directas. Na ordem do conhecimento, a abstracção ganha

com apoiar-se na materialização, mas o signifi cante toma legitimação de signifi cado

quando abrange a diversidade humana.

7. A multiplicação de imagens corre o risco da banalização. Problemática se tornou

ela desde que fi cou à mercê de um mecanismo multiplicador, como foi a máquina

fotográfi ca, a câmara cinematográfi ca, a câmara de televisão ou outros processos

técnicos.

Não valerá a pena chamar de novo Platão a juízo para termos de nos convencer de

que a realidade subsistente e substantiva não é acessível senão por imagem e de que

esta não é possível senão de costas voltadas para a luz que dimana dessa realidade.

Afi nal, não é a luz que provoca a imagem? A mensagem está no livro X da República

platónica. Fatalidade da condição humana ver de costas? Talvez possamos inverter a

questão para assinalar que, afi nal, o homem é o inventor do seu próprio mundo e não

fi ca eternamente dependente da revelação dos deuses ou na expectativa que ela há-

-de chegar na Parúsia (sendo de Apocalipse, não tem necessariamente de ser fi nal).

Porventura houve momentos em que predominou a ilusão de pensar que havia ade-

quação entre a imagem e o mundo por ela representado: Magritte ironizou quando

representou um cachimbo e escreveu “ceci n’est pas une pipe”; as imagens, mesmo

as mais realistas, são resultado de uma abstracção; as mais abstractas, como as da

geometria, são fruto de um exercício intelectual, mas vivem das projecções exterio-

res, sendo as mais emotivas as que não dispensam sinestesias que falam ao homem

todo através da palavra.

Vale a pena voltar a ler o Ménon de Platão, mas não esquecer também que a plu-

rivalência da linguagem é um incentivo à vigilância intelectual. Prevalecendo-se

do fi lósofo da Academia ou assustando-se com as restrições, alguns esqueceram o

carácter instrumental da imagem; porventura se insistiu demasiado no esvaziamento

dela ou se deu de somenos defi nir o seu estatuto, embora sabendo que não há ideias

sem imagens, que o conhecimento se inicia pela sensação tornada imagem ou que

não há linguagem verbal sem um processo de transferência e identifi cação entre uma

imagem acústica e uma imagem psíquica.

Há pelo menos duas correntes que caminham em paralelo e só por vezes se cruzam.

No início do terceiro livro da República, Cícero assenta a sociabilidade humana em

dois recursos que são a palavra e o número. Agostinho, ao refl ectir sobre os sinais,

no De doctrina christiana, não chega a desenvolver qualquer teoria da imagem, mas

há elementos nas Confi ssões (X, 8, §14) que a deixam pressupor. No comentário

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39. Aug., In Ioh. Evang. tract., 24, 2 (PL 35,

1593): “Nec tamen suffi cit haec intueri in mi-

raculis Christi. Interrogemus ipsa miracula, quid

nobis loquantur de Christo: habent enim si in-

tellegantur, linguam suam. Nam quia ipse Chris-

tus Verbum Dei est, etiam factum Verbi, verbum

nobis est. Hoc ergo miraculum, sicut audivimus

quam magnum sit, quaeramus etiam quam pro-

fundum sit: non tantum eius superfi cie delecte-

mur, sed etiam altitudinem perscrutemur. Habet

enim aliquid intus, hoc quod miramur foris. Vi-

dimus, spectavimus magnum quiddam, praecla-

rum quiddam, et omnino divinum, quod fi eri nisi

a Deo non possit: laudavimus de facto factorem.

Sed quemadmodum si litteras pulchras alicubi

inspiceremus, non nobis suffi ceret laudare scrip-

toris articulum, quoniam eas pariles, aequales

decorasque fecit, nisi etiam legeremus quid no-

bis per illas indicaverit: ita factum hoc qui tantum

inspicit, delectatur pulchritudine facti ut admi-

retur artifi cem; qui autem intellegit, quasi legit.

Aliter enim videtur pictura, aliter videntur litte-

rae. Picturam cum videris, hoc est totum vidisse,

laudasse: litteras cum videris, non hoc est totum;

quoniam commoneris et legere. Etenim dicis,

cum videris litteras, si forte non eas nosti legere:

Quid putamus esse quod hic scriptum est? In-

terrogas quid sit, cum iam videas aliquid. Aliud

tibi demonstraturus est, a quo quaeris agnosce-

re quod vidisti. Alios ille oculos habet, alios tu.

Nonne similiter apices videtis? Sed non similiter

signa cognoscitis. Tu ergo vides et laudas: ille vi-

det, laudat, legit et intellegit. Quia ergo vidimus,

quia laudavimus, legamus et intellegamus.”

40. Cf. Goulven Madec, “Savoir c’est voir: Les

trois sortes des «vues» selon Augustin”, em Voir

les dieux voir Dieu, ed. Françoise Dunand e Fran-

çois Bœsplug, Estrasburgo, 2002, pp. 123-139.

41. Loc. cit.

ao Evangelho de S. João, há um passo que merece atenção pelo que implica de

atenção aos milagres entendidos como signum de uma realidade que deve merecer

leitura; o paralelismo é pictura e littera: reconhecendo que há entre elas diferenças

(aliter uidetur pictura, aliter uidentur litterae), sublinha que a imagem fornece um

conhecimento global (picturam cum uideris, hoc est totum uidisse), mas pressupõe

uma indagação que a torna útil e operativa39. Há que ultrapassar a superfície e

penetrar na profundeza do acontecimento (se é este é da classe do milagre, chama

a atenção; todavia, de pouco serve fi car admirado se a admiração é inconsequente

e não percebe a dinâmica que ele desencadeia, ou seja, se não se atina com o seu

signifi cado vivencial)40; tudo isso leva a supor que o conhecimento não existe se

houver uma percepção exterior: importa não fi car de fora, mas entrar (“tem algo no

interior aquilo que vemos do exterior”). O milagre tem uma linguagem específi ca – o

Verbo de Deus é palavra para o homem. Para ler um texto não basta simplesmente

olhar para as letras que formam as palavras ou identifi car a materialidade destas,

comenta Agostinho; nem basta identifi car a gramática sem atinar com as estruturas

signifi cantes. Também para perceber uma imagem não chega ver-lhe o desenho, há

que procurar-lhe o seu sentido no interior.

8. Tem a imagem refl exibilidade criativa? Obviamente que sim, para que nela se “abra

uma janela sobre o mundo” e ela seja uma “superfície refl exiva” – para me servir de

expressões que encontro em Christine Dubois, quando comenta a expressão “image

abymée” e apresenta o auto-retrato do pintor no interior do quadro que lhe pertence

(como o de Las Meninas de Velásquez)41.

Valho-me de um caso muito concreto que, por ser recente e por me ser de pessoa

de família me faculta uma resposta. Dou-a em primeira pessoa, sem lhe introduzir

qualquer elemento estranho ao que ela me transmitiu e me permite utilizar. Chama-

-se Sara. Foi-lhe proposto que integrasse “uma imagem de um pintor num fundo

recriado”. Assim fez. Foi-lhe, depois, solicitado que constituísse uma memória des-

critiva / relatório do trabalho. Passo-lhe a palavra, sem alterar seja o que for.

“A imagem que escolhi para integrar num fundo recriado faz parte da pintura

«A Família» de Paula Rego que usou acrílico sobre papel montado em tela e cuja

obra data de 1998.

Quando escolhi esta imagem pensei em fazer um projecto diferente, elaborando a

continuidade da pintura a partir da janela aberta que se encontra atrás da criança,

ilustrando o signifi cado do Natal no ponto de vista das crianças. No entanto, como

esse projecto não correspondeu muito bem ao que pretendia realmente ilustrar,

imaginei um novo projecto que deu origem ao trabalho fi nal.

Neste último projecto interpretei a imagem como uma fotografi a, a partir da qual

quis representar a saudade tal como a vejo. Para isso, elaborei uma lista de palavras

/ sentimentos, objectos e cores que, na minha opinião, simbolizam, de certo modo,

a saudade.

No início da execução deste segundo projecto, representei vários objectos que podem

simbolizar a saudade. Mas num terceiro projecto melhorei a representação de ideias

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em relação ao projecto anterior e decidi fazer algumas modifi cações. Considerei a

tesoura como o objecto marcante da ilustração e pretendi que tivesse um tamanho

sufi cientemente grande para que chamasse à atenção. A tesoura surge como uma

adaptação da sua função real à representação daquilo que considero ser o signifi cado

fundamental da saudade: a separação. Deste modo, a tesoura simboliza o elemento

da separação, estabelecendo o corte entre a ligação espacial e temporal que acontece

entre os que partem e os que fi cam e vêem partir. Porém, apesar de ser um objecto

que corta completamente e separa irreversivelmente duas partes, não representa de

todo a separação emocional. É então por isso que a fotografi a acaba por se sobre-

por à tesoura, mostrando que apesar da rotura entre espaços físicos, continuam a

existir laços de afecto, os quais desencadeiam a saudade, precisamente por serem

mais fortes que a própria distância.

A saudade é sempre um sentimento que proporciona vários estados de espírito pró-

prios de quem se sente vazio, tal como a solidão, o abandono e a perda. Ilustrei estes

estados de espírito através do vazio, da melancolia e do abandono bem visíveis num

canto duma casa, talvez mais concretamente no quarto de quem fi cou e viu partir:

cartas e envelopes que exprimem recordação em vez de esquecimento e pressupõem

distância; um cigarro apagado num cinzeiro, mas cuja chama ainda deixara fumo,

o que quer dizer que embora tenha sofrido uma dura separação, ainda existe uma

relação a preservar; um copo transparente, vazio e caído, traduzindo abandono e o

sentimento genuíno que é a própria saudade; o parapeito sóbrio e desocupado e a

Saudade. Sara Saraiva. 2007. (trabalho – integração de uma imagem de um pintor num fundo recriado)

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42. A palavra vem do latim seducere, onde o pre-

fi xo se é marca de afastamento, separação e pri-

vação e o verbo duco pressupõe comando; por si,

o termo deixa entender que pela sedução alguém

é afastado daquilo que é ele próprio.

janela que mostra um céu muito azul, demonstrando não só o vazio e a melancolia

(o parapeito), mas também uma certa esperança no fi m da separação e naquilo que

nos espera lá fora, no exterior, para lá daquela dimensão física (a janela); e fi nalmente

o elemento central da pintura, a moldura que enquadra a fotografi a e que constitui

a recordação / memória dos momentos que antecederam a separação, bem como a

esperança num regresso breve.

Ao escolher as cores, procurei igualmente caracterizar a saudade, preferindo cores

escuras e sóbrias. Pretendi que esta pintura representasse separação e solidão (preto),

melancolia (cinzento), abandono (castanho) e quietação / paz (azul e branco), mas

também amor / ternura (cor-de-rosa) e alguma esperança (verde e azul). Portanto,

no seu conjunto, esta pintura não é muito colorida, antes pelo contrário, tem falta

de cores fortes e alegres / vivas, propositadamente. E a pintura foi executada com

guaches pouco diluídos, na maioria das cores.

Concluindo, esta ilustração mostra o meu olhar debruçado na saudade e, consequen-

temente, a transformação da sua realidade naquilo que considero a verdadeira re-

presentação da saudade. Não pretendi ilustrar a realidade tal e qual como é, embora

tenha utilizado símbolos concretos, mas sim conferir-lhe um carácter diferente e

único, invocando à refl exão acerca do tema que ilustrei e proporcionando interpre-

tações diferenciadas por parte de quem vê esta ilustração.”

9. Talvez porque me era muito chegada a autora deste trabalho senti nela a emoção

primária de quem está por dentro “en abyme” e assim é capaz de construir o seu

mundo, fazendo coincidir “representação e apresentação” e também formar os con-

trastes pela justaposição do que está dentro e o que está fora. A construção é um

mundo novo porque é de quem o construiu e o vê como seu. Senti-me compensado

de tanta repetição e monotonia do já visto e do enfado que pesa na multiplicidade

do que nada tem de novo para oferecer. Compensado me senti sobretudo das con-

tradições que envolvem a usura das palavras e das imagens.

Atribui-se à imagem o poder de seduzir, mas teme-se esse poder, porque incontro-

lável – na verdade, “seduzir” é levar para fora do âmbito conhecido e habitual do

exercício da actividade própria42. Tecem-se louvores ao encanto da imagem, mas

fi camos receosos de que o encanto degenere em encantamento paralisante – que

o mesmo é dizer em “enfeitiçamento” que deixe inactivas as faculdades analíticas.

Admite-se que a imagem pode conter em si uma plenitude de signifi cação (ou até

potenciá-la, como está bem patente na abundância de fi guras no texto literário),

mas coloca-se em dúvida a sua capacidade de gerar conhecimentos que colocamos

do lado de um discurso analítico que confi amos à palavra.

Apesar de todas as reservas, alargou-se tanto o seu domínio que quase não há texto

que não procure a imagem como ilustração: houve tempos, não muito distantes, em

que os jornais mais graves evitavam recorrer a fotografi as para não distrair os seus

leitores, ou por considerarem que mais que dados importava julgar de uma realidade

transposta para a imagem sem um enunciado de ponderação; afectados pela con-

corrência da televisão, não conseguiram resistir ao sortilégio da imagem e tiveram

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43. Serge Tisseron, autor de L’intimité surexpo-

sée, Paris, Ramsay 2002, em entrevista mais re-

cente observou a alteração de comportamentos

relativamente à aceitação da imagem: durante al-

gum tempo pensou-se que bastaria reduzir-lhe o

número de ocorrências ou cercear-lhes o acesso;

alguém terá dito que não compraria um aparelho

de televisão, outro terá opinado que haveria que

excluir as imagens dos manuais escolares; jorna-

listas de Le Monde declaravam-se contra as ima-

gens porque elas eram manipulação emocional; o

problema hoje é gerir o universo de imagens que

não cessam de aumentar e fazer com que crian-

ças e adultos olhem para as imagens de maneira

diferente, o que se deveria fazer através de ima-

gens que lhes ensinassem a ler as imagens.

44. http://www.unesco.org/webworld/points_

of_views/fr_200202_ramonet.shtml Consulta:

2007-11-04.

que demarcar-se para acentuarem quanto ela era tomada como complementar e

não como básica. Facto é que, por ironia, depois de terem aberto as suas páginas à

imagem, eles próprios acabaram por ser vítimas de manipulações internas – como

aconteceu com o circunspecto Le Monde, em data recente43.

À imagem são apontados malefícios. É útil refl ectir sobre a dependência criada (por

crianças, adolescentes e adultos) relativamente à televisão. Muitos se têm ocupado

do tema e têm chamado a atenção para o esmorecimento da capacidade crítica e a

redução do discurso sobre o qual se constrói a relação humana que assume e integra

a experiência quotidiana...

Não tenho competência particular para me pronunciar sobre tal questão, pois me

seria necessário perceber e desmontar o mecanismo da informação que se tornou

preponderantemente imagem. Assustam-me, porém, as refl exões que colho num

texto de Ignacio Ramonet (director de Le Monde diplomatique e professor de teo-

ria da comunicação na universidade de Denis-Diderot, Paris-VII)44. Sem pretender

resumi-las, mas, fazendo-me eco delas, terei de me perguntar se não é tempo de

exorcizar esses poderes que andam à solta.

Facto é que, numa sociedade dirigida pela guerra de audiências, a visualização

tornou-se um expediente de mercantilismo, a informação foi considerada mercado-

ria e perdeu a sua missão fundamental de antes que era a de fornecer dados para

refl ectir sobre a vida em sociedade e enriquecer o debate democrático; a derrocada

consumou-se desde que os órgãos de comunicação social se deram conta de que o

fenómeno emotivo desencadeia adesões e tanto mais marcadas quanto a informação

é torrencial e a visualização pode criar a ilusão de se assistir ao desenrolar dos acon-

tecimentos (ao transmitirem a queda do Muro de Berlim, em 1989, os comentadores

declararam nada mais nada menos que se estava a assistir “ao fazer da História”;

a partir da Guerra do Golfo, em 1991, a notícia tornou-se espectáculo directo – ma-

nobrado pela parte que comandava as imagens). Tomou-se como critério orientador

a hiperemoção e apagaram-se todos os outros que hierarquizavam a importância dos

acontecimentos e sugeriam formas de lhes fazer frente; o débito torrencial das ima-

gens tornou-se recurso comum, gerou-se um mimetismo em que as variantes são ape-

nas de ângulo de objectiva e não de leituras que integram os acontecimentos. Mais

grave ainda, ao que referem os analistas: enquanto a imprensa escrita predominou,

a TV operava a partir dos enquadramentos criados por aquela; desde que se verifi cou

o predomínio da imagem, a entidade reguladora passou a ser a TV a ditar o ritmo e

a hierarquização dos temas noticiosos e a subordinar a ela os modos de referência.

Assim, a imagem tornou-se invasiva, o conhecimento disponibilizado deixou de ter

estrutura e, no caos assim criado, soltaram-se demónios omnipresentes com efeitos

perigosos, pois as consequências nada auguram de bom: saturação (todos falam no

mesmo tom e das mesmas coisas), intoxicação (os produtos são todos iguais), de

deformação (todos vêem o mesmo, sem contraditório), de alienação (projectando

as atenções sobre acontecimentos distantes, defrauda-se a vida colectiva), de his-

terismo colectivo (provocado pela emoção generalizada). Será possível reverter o

processo, sem ser vítima dele?

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45. Serge Tisseron, Enfants sous infl uence, Paris,

10/18 – Fait et Cause, 2003.

46. Entrevista de S. Tisseron a Janique Laudouar,

Parler de l’image, in http://innovalo.scola.ac-

paris.fr/Innovatio/innovatio4/parler.htm Con-

sulta em 2007-11-04.

47. Remeto para dois livros de Régis Debray,

Vie et mort de l’image, une histoire du regard

en Occident, Paris, Gallimard, 1992; Un mythe

contemporain: le dialogue des civilisations, Paris,

CNRS, 2007.

Não vale a pena chorarmos sobre o inevitável, pois a marcha da história é irreversível

e o retrocesso só poderia ser devido a uma catástrofe. A educação para a imagem,

que deveria corresponder a uma sensibilização crítica aos seus embustes, será certa-

mente uma solução. Só que, como lembra Serge Tisseron, “o problema aparece logo

que perguntamos às pessoas que é que entendem por educação para a imagem; se

todos estão acordo em que se torna necessária uma educação para os media, mas

apenas raramente alguém a defi ne; percebe-se que há muitas maneiras diferentes

de a encarar: uma delas que eu proporia é a de procurar conhecer melhor as estra-

tégias espontâneas que as crianças e os adolescentes utilizam para gerir o impacto

emocional das imagens sobre eles”.

O mesmo psicólogo, remetendo para uma obra sua45, em que se ocupa de problemas

de violência juvenil, explica que há uma tríplice estratégia: “algumas crianças sen-

tem-se à vontade para falar do que vêem, outras precisam de passar pelas imagens,

e felizmente há educadores que tomam isso em conta – estas crianças conseguem

discorrer sobre imagens desde que possam tocar-lhes, recortá-las, manipulá-las,

desconstruí-las e reconstruí-las materialmente, com tesouras ou mediante um pro-

grama de tratamento de imagens; depois, há crianças que são os grandes esquecidos:

têm necessidade de passar pelo corpo, pela sensorimotricidade – são crianças que

não se dominam quando lhes mostram as imagens e para as quais haveria que prever

actividades de jogos em grupo para lhes permitir começarem a gerir desse modo o

impacto emocional das imagens sobre eles, a fi m de lhes permitir posteriormente

que falem delas. As crianças devem realizar tudo isto nas melhores condições possí-

veis, isto é, acompanhadas por um adulto porque entre eles, inevitavelmente algum

deles vai ter tendência a perturbar a dinâmica de grupo e a presença do adulto é

indispensável para gerir esta dinâmica”46.

Sugere-se assim uma terapêutica. Por outra parte adianta S. Tisseron que há situa-

ções favoráveis para ela: “Com o desenvolvimento da internet, com o acesso ao

portátil, a reivindicação da intimidade [como argumento para recusar a imagem]

opera mudanças: não se trata já de se fazer reconhecer por um pequeno número

de pessoas, mas de ter o reconhecimento de um número largo e eventualmente de

desconhecidos; como a nova geração cresceu muitas vezes no meio de fi lmagens

que os pais fi zeram, ela cresceu de ambos os lados da barreira; para os jovens,

a televisão prolonga, naturalmente, a sua intimidade; eles querem expor-se: mais

ainda, para se “tornar célebre”, há que dar-se a conhecer no que podem ter de mais

específi co; não se trata de imitar alguém para ser célebre, mas trata-se de se tornar

célebre pela sua originalidade, sem renunciar a si próprio; é o que se pode chamar

desejo de «extimidade»” (deixo a palavra no seu barbarismo, mas que se entende

na contraposição a “intimidade”).

10. Lidar com a imagem tem, todavia, outras incidências. Mais recentemente estalou

um caso típico das aporias sentidas relativamente à integração da imagem e aos efeitos

que ela provoca. Em causa estão aspectos imanentes a culturas diversas e os avatares

do “diálogo das civilizações”, com o embate do sentido primário das representações47.

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48. Reflexão lúcida e serena pode ver-se em

François Bœplug, Caricaturer Dieu? – Pouvoirs

et dangers de l’image, Paris, Bayard, 2006.

A publicação de caricaturas de Maomé num jornal dinamarquês, não obstante a

sua ingenuidade e pobreza estética, desencadeou reacções inesperadas48. Fomos

obrigados a dar-nos conta de que não temos esquemas e categorias amadurecidas

para desatendermos daquilo que é menor, para percebermos a função maior da ima-

gem. No caso concreto, a conceder-se importância ao acontecimento, deveríamos

concentrar-nos em recuperar em proveito próprio a purifi cação de atitudes que de

há muito andavam à solta: o descrédito recaiu sobre a verdadeira imagem religiosa.

É que, uma das questões reais de qualquer religião (e particularmente do Cristia-

nismo, pelo que tem de iconofi lia) é lutar contra as “caricaturas” que continuamen-

te vamos construindo de uma divindade (por natureza, transcendente, inefável e

irrepresentável), sabendo, por outra parte, que, mesmo nas religiões “proféticas”,

particularmente nas que são “crísticas”, a imagem não é mais do que instrumental

na aproximação dessa divindade que se dá a conhecer ao homem e com ele convive

na fronteira do humano.

No Antigo Testamento, está proibida a representação da divindade? É catequético

o Deuteronómio: “Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que Iahweh vos

falou no Horeb, do meio do fogo, não vos façais de insensatos para irdes fazer uma

imagem esculpida em forma de ídolo – fi gura de homem ou de mulher, fi gura de

algum animal terrestre, de pássaro que esvoaça pelo céu, de réptil que rasteja pelo

solo, ou de peixe que se move nas águas abaixo da terra” (Deut. 4, 13-18); mais

sintético é outro enunciado do mesmo livro bíblico, quando se proclama a aliança

do Povo com Deus: “Maldito seja o homem que faz um ídolo na pedra ou no metal”

(Deut. 27, 15); não é menos incisivo outro passo do Levítico: “Não fareis ídolos,

não levantareis imagem ou estela e não colocareis na vossa terra pedras esculpidas

com o objectivo de vos inclinardes diante delas, pois eu sou Iahweh vosso Deus”

(Lev. 26,1). Entenda-se, porém, o que está em causa: reivindicação de transcendência

divina e preservação do monoteísmo. A razão invocada pressupõe que o ídolo é a

confi guração de outra divindade. O monoteísmo exige exclusivismo.

Se estes são os preceitos, é compreensível a revolta de Moisés quando desce da

Montanha sagrada (onde recebera das mãos de Deus as Tábuas da Lei) e encontra o

Povo dançando em torno do bezerro de ouro. Esta sacralização da imagem é tanto

mais marcada e surpreendente quanto fora fabricada com o ouro que as mulheres

haviam trazido do Egipto e signifi cava por isso servidão ... Para quem pretendia ser

livre, o gesto era de hipocrisia e por isso entendemos que sob uma iluminura medieval

se tenha escrito: “comment hypocrite[s] adurent le veel”.

Pode, todavia, a imagem ser eliminada na relação do homem com o transcendente?

Algumas confi ssões cristãs foram radicais em eliminar a imagem. Afi nal a que corres-

pondem essas imagens? Se atendermos à revelação, será útil reconhecer que Cristo,

segundo registo do evangelho de São João, declarou que a Deus ninguém jamais

O viu, mas o Filho de Deus revelou-O por palavras e acentuou também (a Filipe)

que quem o viu a Ele viu o Pai (Ioan. 1,18; 14, 9)... Há dois aspectos a considerar:

Deus é invisível; porém, em Cristo, ele tornou-se visível: a Pessoa de Cristo é Deus

e Homem; a divindade habita a humanidade; o invisível torna-se visível. De facto,

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49. Karl Rahner / Herbert Vorgrimler, Petit dic-

tionnaire de théologie catholique, Paris, Seuil,

1970, s. u. «Image».

como é possível representar a Deus sem O ver? Ou será que, justamente, por nunca O

termos visto, precisamos de O “ver” nas imagens que d’Ele construímos, para não nos

esquecermos de que Ele é? Os místicos consideraram-se incapazes de ter certezas a

respeito de Deus e até a Madre Teresa de Calcutá declarou sofrer pela ausência d’Ele,

admitindo que só o podia ver na imagem refl ectida nos pobres a quem servia.

Em plano de revelação cristã, há que reconhecer o paradoxo que é a manifestação

em Jesus Cristo da “imagem do Invisível” (Col. 1, 15) e o facto do não-reconheci-

mento dessa situação por parte dos que com Ele conviveram para apenas se tornar

perceptível a partir do momento em que a Ressurreição o tornava presente na sua

realidade divina (aos olhos de Madalena, das Santas Mulheres, dos Discípulos: Noli

me tangere – Duccio de Buoninsegna).

Os teólogos admitem que “através da mediação pela imagem (pelos sentidos),

o homem (em paralelo com a meditação centrada sobre a palavra) pode tentar con-

templar a verdade para além das formulações conceptuais”, advertindo que “a forma

e os limites dessa representação «visual» dependem tanto da imagem que representa

como da faculdade imaginativa de cada um”49.

Este processo que assumimos culturalmente só nos envergonha se não entendermos

quanto põe em causa a imagem de nós mesmos – na sobranceria de reduzirmos o

Transcendente ao imanente e na incultura de não advertirmos que cada momento

da história tem de assegurar a continuidade do convívio que implica com as imagens

acumuladas.

Importa saber que formamos continuamente imagens mentais que precedem qual-

quer forma de conhecimento e sua expressão: o processo linguístico baseia-se nesse

suporte, pois não há relação directa de som e palavra; em termos saussurianos, a

forma linguística (sequência de signos fonéticos antes de ser de signos gráfi cos)

resulta da associação entre uma imagem acústica e uma imagem do real, de tal modo

que dessa associação nasce um signifi cante cujo valor provém de saber distinguir a

diversidade dos géneros de imagens, para não confundir o que pode ser graça bre-

jeira e o que é imagem respeitosa – habitada por afecto, na cumulação de presença.

Que se pretende com a sublimação da imagem e que efeito negativo nela existe que

dê razão aos seus detractores? Será que o brilho da cor e o fulgor da luminosidade

confundem em vez de esclarecerem?

Por outro lado, o sincretismo da imagem não deveria permitir uma presença que se

prolongasse em análise? O dinamismo que ela desencadeia não parecia destinado a

descobrir a novidade que ela apresenta? O encanto que globalmente provoca não

seria de esperar que fosse estímulo para uma adesão das diversas faculdades de

conhe cimento? Afi nal, porque é que há medo da imagem? Talvez porque sugere,

mas não informa analiticamente. Mas não será essa a sua grande vantagem? Ou será

que é a sua decomposição que conduz ao conhecimento?

Nessa possibilidade, aproxima-se da imagem a poesia. Foi recentemente apontado

o caso da poesia chinesa que François Cheng (nascido na China, mas naturalizado

francês em 1977 e membro da Academia Francesa desde 2002) tem procurado trazer

ao conhecimento do mundo ocidental. Tomando um dos poemas de Bo Ju-yi que

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50. L’Écriture poétique chinoise, Paris, Seuil,

1977 e 1996.

51. O comentário apresentado em El País, Sába-

do, 20 de Outubro de 2007 (Suplemento “Babé-

lia”), traz o título “Pintar el poema”.

52. Demo-lo em tradução portuguesa em “A

construção do feminino: olhares cruzados (com

leitura de novo poema de Safo”, Euphrosyne, 34,

2006, 9-17:

“Vós, companheiras das Musas de colo violeta,

belas oferendas, donzelas,

sede aplicadas e canto amigo de som claro à

lira!

Quanto a mim, o corpo, que antes delicado fora,

já a velhice

dele tomou conta e brancos se tornaram os

cabelos de negros que eram.

Pesado o coração descaiu, os joelhos soçobram,

eles que noutro tempo foram ágeis para dan-

çar como gazelas.

Tudo isto choro em delongada; mas que fazer

afi nal?

se esta é a inevitável condição humana, nada

mais fi ca para fazer.

É facto que outrora a Titono, dizem, Aurora de

róseos braços

por Amor embevecida em marcha até aos con-

fi ns da terra o levou.

Era ele belo e jovem, mas no seu momento a ele

o atingiu

o tempo da velhice encanecida, a ele que es-

tava de posse de esposa imortal.”

aquele académico inclui em antologia recentemente traduzida para castelhano, mas

publicada em França em 197750, Chantal Maillard51 comentava, com algum enlevo,

mas com demasiada ligeireza e escassez de conhecimentos que “em nenhum lugar

como na China e no Japão têm andado tão relacionadas a pintura e a poesia” e em

tom retórico perguntava: “Se Aristóteles entendia que a palavra poética «pinta»

devido à utilização que faz da metáfora, que não teria ele dito se tivesse visto algu-

mas representações signifi cativas estilizadas em papel ou em seda?”

Traduzo o poema que é sugestivo: “(...) / Noite passada cidade em cima / um

pé neve / Alba conduz ir carvão carrinho / rodar gelado carril / (...)”. Explicava

a comentarista que a língua chinesa permite exprimir-se só com palavras plenas

(substantivos e verbos), sem recurso a palavras gramaticais (pretensamente vazias)

e pretendeu dar-lhe um equivalente explicitando as correlações, transpondo para

uma outra forma discursiva: “Esta noite nevou na cidade / e desde a alba vai com o

seu carrinho pelo caminho gelado”.

Revertendo o processo, lamento o empobrecimento provocado, ainda que a comen-

tarista pretendesse garantir que a primitiva função do poema era espicaçar / acti-

var a imaginação do leitor para a intuição de um signifi cado muito mais complexo.

Esqueceu também essa mesma comentarista que a doutrina que pretende fazer

passar como mérito de Aristóteles pertence a Simónides de Ceos e foi transmitida ao

Ocidente por nomes tão ilustres como Cícero e Horácio... Apelando para um mundo

distante, quis ela chamar a atenção para o efeito da imagem sugerida por palavras

plenas e seus referentes, sem que lhes seja imposta uma sintaxe que condicione uma

semântica. Não precisava de ir tão longe.

Porventura desconhecia a comentarista pérolas como a que constitui o poema de

Safo recentemente descoberto na “coulage” da múmia que foi parar a Colónia e tem

encantado os leitores. Impossível resistir à sucessão de imagens que enlevam só de

as ouvir enunciadas52.

Há o perigo de fi car fascinado pela ilusão e por isso Platão considerou necessá-

rio reportar-se ao mundo das ideias e considerar que a imagem mais não era que

pálido refl exo do real, em nível inferior de conhecimento (“sombra de uma sombra”).

O que o fi lósofo rejeita é a imitação anémica... Entre o grego eîdos e o seu correlato

eidôlon vai, de facto, um abismo, já que o primeiro termo remete para um mundo

autêntico (o “mundo das ideias”) e o segundo apenas deixa entrever um vislumbre

– que tanto é desvirtuamento como pode ser aproveitado para disfarce e desvios de

fi xação indevida (a idolatria – na sua expressão etimológica).

Quando o empirismo aristotélico inverte o processo para reconhecer que o percurso

do conhecimento vai da sensação ao conceito e por este se chega ao conhecimento,

reconhece-se o poder da mimese que arrasta pelo que contém de verdade. O místico

vale-se das representações para atingir a união com o Transcendente que desce até

ele. Todos se deixam atrair pela novidade que a imagem, mais que a escrita, é capaz

de criar. Normalmente reconhecemos o futuro virados para o passado, como Marco

Pólo que Ítalo Calvino fi gurou no seu pequeno / grande livro Le città invisibili. As

palavras guardam imagens e estas retêm mistérios. No prólogo ao comentário do

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53. Hier., Ep. 53 (Ad Paulinum).

54. Claude Collard, op. cit., p. 18.

Apocalipse de S. João, Jerónimo escreveu que nele há tantos mistérios quantas as

palavras e que em cada palavra estão escondidas muitas signifi cações: “tot habet

sacramenta quot uerba [...]; in verbis singulis multiplices latent intelligentiae”53.

Se a imagem fosse um produto natural, não haveria senão que descrevê-la e dizer

onde se coloca. Como construção que é, deve analisar-se para reconhecer nela um

signifi cado – que não é abstracto, mas confi gura uma presença e uma linguagem

de autor. Na sua singularidade de expressão que revela um narrador que a propõe,

deixa o encanto que a torna única – como o texto poético.

“Os fenomenólogos dizem que a imagem é, antes de mais, uma intenção e não um

estado de facto entre dois objectos. Ou seja, a imagem é criada pela vontade de

atingir um objecto através de um outro que se lhe assemelha e o pode representar,

graças a esta semelhança. Não há imagem sem objecto: toda a imagem é imagem

de alguma coisa e é a intenção que cria a imagem. Ela não é redutível à cópia ou

à reprodução: é, antes, uma relação entre o modelo e o objecto que ocupa o lugar

dele. (...) Há que dar à imagem um sentido largo, defi nido pela sua projecção, um

ecrã sobre o qual tudo se pode produzir, como prolongamento do real ou como sur-

gimento de uma segunda realidade”54.

Ao longo da história do livro, houve um convívio permanente de texto e imagem;

o próprio Renascimento que privilegiou o predomínio do texto não esqueceu que,

por vezes, ele não diz mais que a imagem, pois, se um condensa, a outra sugere: os

emblemas de Alciato procuram um convívio em que nem um é explicação do outro

nem o outro é pressuposto para o primeiro nem são postos em concorrência, mas em

articulação, que, postulando o princípio da harmonia, vivem da complementaridade.

Um não é metafórico porque o outro é fi gurado. •

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Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Resumo

Este estudo teve como base um corpus de imagens provenientes de bíblias histo-

riadas do séc. XIII, existentes em Portugal. Centrados na concepção dos programas

iconográfi cos, teólogos e iluminadores, provavelmente seculares, criaram mecanismos

de construção de memória, de modo a veicularem, através das iniciais historiadas,

mensagens que actualizavam o tempo primordial bíblico e, ao mesmo tempo, revelam

intenções moralizadoras do seu próprio tempo, nas quais as relações entre cristãos e

judeus estiveram presentes. O estudo passa por uma abordagem iconográfi ca mas,

como historiadores de arte, essa aproximação leva-nos a formular questões e a esta-

belecer pressupostos epistemológicos à História da Arte Medieval que ultrapassam

aquele método. A historiografi a de arte não se detém apenas no estudo das formas,

da decifração dos conteúdos e funções; consideramos que a história da arte, espe-

cialmente a arte cristã medieval, se institui num momento de abertura onde se intuem

e interpretam os sintomas e se penetram os mistérios. O tema escolhido levou-nos

exactamente para uma refl exão sobre o modo como se exerceu o poder dos cristãos

sobre os judeus, num século em que o cristianismo se impõe no Ocidente através de

uma nova atitude teológica, apoiada pelo poder real, papal e ordens mendicantes.

Do ponto de vista do historiador a questão é complexa e está longe de ser unânime.

Foi nosso propósito indagar como transmitiram os iluminadores os códigos, em diá-

logo com os teólogos, através de uma expressão artística que cumpre uma função

religiosa e propagandística. •

Abstract

This study is based on a corpus of images taken from 13th Century historiated bibles

extant in Portugal. In the design of iconographic programmes, theologians and illu-

minators, probably secular, created memory-building mechanisms within historiated

initials. These acted as a vehicle for messages that updated the primordial biblical

time, simultaneously revealing the moralising intentions of their time, including the

part played by the relationship between Christians and Jews. While the study fol-

lows an iconographic approach, as art historians we must go beyond this method,

asking questions and establishing epistemological premises that are relevant to

Medieval Art History. Art historiography does not stop at the study of form and the

deciphering of contents and function. The study of art, and in particular of Christian

Medieval art, goes through a period of openness in which symptoms must be sensed

and interpreted, and mysteries penetrated. Thus, the subject chosen for this analysis

takes us to refl ect on the way Christian power was exercised over Jews at a time in

which Christianity gained hold of the West by means of a new theological attitude,

backed by royal and papal power, with the support of the Mendicant Orders. From

the point of view of historians this is a complex issue with no unanimous interpreta-

tion. Our purpose, therefore, has been to explore the way in which illuminators, in

conjunction with theologians, transmitted these codes through a means of artistic

expression with religious and propagandistic intentions. •

palavras-chave

idade médiabíblias universitáriasjudeusiconografia

key-words

middle agesuniversity biblesjewsiconography

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representação dos judeus nas bíblias historiadas 1

“Antes da obra de arte visível, houve a exigência de uma “abertura” do mundo visí-

vel, que não mostrava apenas as formas, mas também os furores visuais, realizados,

escritos ou também cantados; não somente chaves iconográfi cas, mas também os

sintomas ou os traços de um mistério.”

Georges Didi-Huberman

Judeus e Cristãos da Europa Medieval

O tema do seminário: Imagem, memória e poder, assim como o desenvolvimento dos

estudos iconográfi cos, motivaram-nos para a refl exão sobre as relações entre judeus e

cristãos e a consequente expressão na iluminura medieval, nomeadamente nas bíblias

universitárias franceses. É nosso propósito contribuir para o conhecimento e divulga-

ção dos programas iconográfi cos destes manuscritos e repensar as posições e atitudes

assumidas relativamente à cultura judaica no seio da medievalidade cristã europeia.

A questão da alteridade tem vindo a merecer cada vez mais atenção por parte dos

historiadores, por vezes revisitando temas já abordados, a fi m de incluir esta variável,

considerada imprescindível na historiografi a actual.

Desde o início da era cristã, que a problemática das relações entre cristãos e

judeus se tem colocado e muito se tem escrito sobre ela. Ainda assim, não nos

adelaide miranda

luís correia de sousaInstituto de Estudos Medievais

FCSH-UNL

1. O presente estudo teve na sua origem a inves-

tigação efectuada para a preparação de uma co-

municação realizada no Seminário Internacional

Imagem, memória e poder – Visualidade e repre-

sentação (sécs. XII-XV), organizado no âmbito do

projecto Imago (POCTI /EAT/45922/2002), do

Instituto de Estudos Medievais, da FCSH – UNL,

nos dias 15 e 16 de Novembro de 2007.

fig.1 drolerie. inicial “s” do prólogo do livro do profeta amós, lisboa, bnp, alc. 458, fl. 261v

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pareceu inoportuno fazer a sua abordagem, partindo das representações fi guradas

que revelaram sintomas ausentes na documentação escrita.

Não só na sociedade actual o sentimento de poder se procura perpetuar e projectar

para as gerações futuras. Mecanismos de construção de memória, tanto na esfera

privada como no domínio da esfera pública, foram sendo construídos e legados com

os mais diversos propósitos, constituindo-se como indícios de primordial valia para

o conhecimento e abordagem ao pensamento de determinada época, comunidade

ou indivíduo. Diversas podem ser também as fontes que veiculam essa memória do

poder, partindo da literatura oral à legislação, passando pelas marcas físicas, atra-

vés do legado de objectos ou obras de arte. Sem dúvida que um dos indicadores de

maior relevo nesta problemática é o lugar na hierarquia social que pode ser explici-

tado através da indicação dos cargos que ocupam, por mera demarcação de origem

familiar ou através de sinais exteriores utilizados de forma deliberada.

Esta temática leva-nos a uma refl exão sobre as relações de poder entre os cristãos

dominantes e as minorias judaicas nos séculos XII e XIII. Estas desenvolveram, em

torno da sua cultura, fortemente imbuída de religiosidade, preceitos e formas de

comportamento social próprios, embora as suas actividades económicas e sociais as

levassem, também, até fi nais do século XII (Dahan 2007, 22), a viver um grau apre-

ciável de convivialidade com as outras comunidades. Apesar do poder económico que

detinham e dos altos cargos conferidos pelos monarcas, a ausência de um território

específi co e autónomo levou-os, como povo, a uma situação defi citária de poder.

Relativamente à presença de judeus na Europa, ela é confi rmada, em Roma, na

segunda metade do século I a.C (Faü 2005, 7). No território ibérico, em particular,

assinala-se a presença dos judeus antes da cristianização do “Velho Continente”, mas

certamente um pouco mais tarde que na península itálica. Como assinala Peter Klein,

a destruição do segundo templo de Jerusalém, em 70 d.C. por Tito Flávio, futuro

imperador de Roma, e as convulsões que levaram àquele desfecho, terão provocado

um acentuado êxodo do povo judaico, sendo a península ibérica um dos destinos

(Klein 2007, 341). No território que viria a ser Portugal, as fontes disponíveis atestam

a presença de judeus a partir do século V.

Antes da fundação da nacionalidade, verifi caram-se momentos de maior ou menor

tensão entre estas duas culturas no seio dos reinos peninsulares, sendo que, em

traços largos, a convivência foi consideravelmente pacífi ca. Aquando do tratado de

Zamora (5 de Outubro de 1143), entre Afonso Henriques e Afonso VII de Castela e

Leão, que reconhece este território como um reino autónomo, os judeus encontra-

vam-se já bastante disseminados por diferentes localidades, onde se organizavam

em comunidades com assinalável importância como Coimbra, Santarém, Lisboa ou

Évora (Ferro 1979, 10).

No quadro da Reconquista, os judeus foram utilizados pelos monarcas na sua políti-

ca de povoamento, tendo sido uma oportunidade para que as suas comunidades se

estendessem a zonas rurais, em pequenos centros urbanos. No reinado de D. Dinis,

são identifi cadas comunidades judaicas em Bragança, Chaves, Mogadouro, Rio Livre,

Castelo Rodrigo, Monforte, Guarda, para além das anteriormente referidas. Na se-

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gunda metade do século XIV, existiam cerca de trinta comunidades que se distribuíam

praticamente por todo o território, indo até ao limite sul, sendo referenciados em

Silves, Loulé e Tavira (Tavares 1992, 15-16).

A documentação mais antiga que confere direitos aos judeus corresponde às Cartas

de Privilégio do reinado de D. Pedro I (1320-1367). Mas atendendo à disseminação

das comunidades por todo o reino e ao papel que tiveram no povoamento, cer-

tamente que teria existido legislação nesse domínio já desde Afonso Henriques.

As cartas de confi rmação, que foram sendo renovadas de reinado em reinado, são

indício sufi ciente para se poder concluir que, apesar de serem consideradas estran-

geiras ( senão não se justifi caria a referida legislação) estas comunidades encontra-

ram aqui as condições sociais que lhe permitiram instalar-se e viver de acordo com

os seus princípios, religião e leis próprias (Tavares 1992, 17-18). Apesar de alguns

tratamentos discriminatórios, como a segregação física e espacial, em determinados

momentos, a situação ter-se-á mantido regular até 1496, aquando da decisão de

D. Manuel I de expulsar os judeus do reino, tomada de posição a que não foi alheia,

certamente, a iniciativa anterior dos Reis Católicos, em 1492, e que provocou um

signifi cativo aumento na população judia em Portugal.

Como se verifi cará, até fi nal do século XV, os judeus portugueses viveram em con-

dições de excepção, se comparadas com as comunidades congéneres dos restantes

reinos peninsulares, em França e noutras regiões da Europa.

As relações entre judeus e cristãos conhecem, pois, na Idade Média, uma longa evo-

lução, ainda longe de estar totalmente clarifi cada, revelando situações muito dife-

renciadas segundo as regiões que lhe servem de palco. Questões teológicas de fundo

separam estes dois povos cujas religiões se baseiam no Livro e na palavra revelada.

Com uma raiz comum no Antigo Testamento, cristãos e judeus separam-se face ao

dogma da Encarnação, central a toda a religiosidade medieval e que informa toda a

originalidade do cristianismo. A partir do momento em que este aceita a origem di-

vina de Cristo, abre-se uma ruptura fundamental entre a nova religião e o judaísmo.

Nos períodos da História em que se verifi caram maiores tensões, as relações entre

judeus e cristãos são ainda abaladas pelo facto de o mundo cristão aceitar a versão

bíblica de que foram aqueles os responsáveis pela morte de Cristo, tema que assume

especial relevância em determinados momentos na Idade Média.

Durante praticamente todo o primeiro milénio da nossa era, foi possível que estas

culturas convivessem e, se não podemos dizer que se aceitavam mutuamente, pelo

menos toleravam-se. Embora com vários episódios de violência, humilhação e exclu-

são, verifi caram-se longos períodos de convivência pacífi ca. Esta situação vai sofrer

alterações signifi cativas no quadro, se assim o podemos dizer, das repercussões da

primeira e segunda cruzadas (1095 e 1147-49). Apesar de um dos motivos comum-

mente invocados ser a libertação dos lugares santos do domínio muçulmano, a pro-

blemática ou discussão acerca da responsabilidade judaica pela morte de Cristo volta

a colocar-se, advindo daí consequências nefastas para algumas comunidades que

foram hostilizadas. Esta reacção é ainda mais clara no decurso da segunda cruzada

(1147-1149) e, após esta, no ano de 1182, em que ocorreu a expulsão dos judeus,

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e confi scação dos seus bens por Filipe Augusto (Cambres 2007, 14-15). Também o

reinado de S. Luís (1226-1270) marcou uma época, relativamente às hostilidades

sobre os hebreus. A atitude de cruzada, assumida por Luís IX, invocando a libertação

de Jerusalém, alcança um sentido mais lato na luta contra o hereticus.

A Disputatio sobre o Talmud, que teve lugar em Paris, em 1240, pretendendo ser um

novo método de debate e refl exão, promovido no âmbito do designado movimento

escolástico, transformou-se mais num tribunal sobre a aceitação ou recusa do Tal-

mud, terminando com numerosos exemplares a serem destruídos pelo fogo. Verifi ca-

-se assim que, após os referidos movimentos de cruzada, a situação dos judeus na

Europa se vai deteriorando, tendo conhecido um dos momentos mais difíceis na sua

expulsão de Espanha, em 1492. A questão não se limitou ao confronto entre cristãos

e judeus no domínio da discussão bíblica, mas estendeu-se à polémica anti-herética,

por via de obras como Liber concordiae, de Joaquim de Fiore (1135-1202), ou o Liber

antihaeresis, de Evrard de Béthune († c. 1212) que juntaram hereges, nomeadamente

cátaros e valdenses, com judeus, lançando sobre eles a desconfi ança e o anátema,

(Miranda Garcia 1994, 263-265).

Apesar do quadro apresentado, no Ocidente os judeus viram nos reis, até ao século XII, os

seus principais protectores. Esta atitude, certamente ao sabor de interesses económicos,

surge através de decretos, cartas e ordenanças, sendo este povo considerado como um

bem próprio do monarca. Eram designados por “os meus judeus”, pelos reis portugueses.

Também a atitude do poder eclesiástico oscilou entre a protecção e a condenação,

expressa através de legislação e obras doutrinárias. Verifi cam-se, portanto, distintas

posturas, conforme se trata do vulgo ou das elites sociais, dependendo também do

momento social e político.

No que concerne às relações com o papado, estas parecem ter sido bastante ambí-

guas. Se, por um lado, a violência contra os judeus e os baptismos forçados foram

rejeitados por Roma, pelo menos desde 1120, por outro, verifi cou-se um assinalável

número de decisões, emanadas de vários concílios, em que claramente se discrimi-

navam pela negativa, sendo de salientar a mais conhecida, saída do IV Concílio de

Latrão, de 1215, que lhes impunha o uso de uma rodela de tecido no vestuário, como

sinal de identifi cação (Cambres 2007, 16).

Gregório Magno (c. 540-604), considerado um dos fundadores do Ocidente, nas

suas obras mostra que adere totalmente às doutrinas que vêem o Judaísmo como

uma religião caduca com o aparecimento de Cristo, mas reconhece o seu papel na

doutrina da salvação. Alexandre II (papa de 1061-1073) também defende os judeus

através de documentação escrita e felicita os bispos de Espanha pela sua defesa.

Calisto II, por meio da bula pontifi cal Sicut Judaeis (c. de 1120), concretizava a

nova situação dos judeus após a primeira cruzada. A acção dos papas neste domínio

traduziu-se pela intenção de proteger pessoas e bens, pela interdição dos baptismos

forçados e proibição de perturbar o culto religioso. Alexandre III (papa de 1159 a

1181) acrescenta a interdição de forçar os judeus a participar nos jogos públicos.

Neste assunto, não poderemos deixar de fazer referência ainda às decisões tomadas

no IV Concílio de Latrão, convocado pelo Papa Inocêncio III (papa entre 1198 e

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2. Talmud (em hebreu תלמוד “estudo”). Trata-se

de uma compilação de textos bastante diversi-

fi cados, que incluem o Direito Civil e Religioso

judaico, baseado nos comentários e interpreta-

ções da Torah. Existem duas versões: o Talmud

de Jerusalém ou da Palestina e o Talmud da Ba-

bilónia.

1216) em Abril de 1213, através da bula Vineam Domini Sabaoth, e iniciado no ano

seguinte, no primeiro dia de Novembro. Desta reunião magna da Igreja, concreta-

mente do seu canon 68, saiu a primeira prescrição legal relativamente à obrigação

dos Judeus ostentarem sinais distintivos. Anteriormente a esta data, esta prática

já se verifi cava em alguns locais, embora não se possa confi rmar se por imposição

ou por vontade própria dos mesmos. Este facto não é surpreendente, uma vez que

parece haver uma clara vontade de se auto afi rmarem e se distinguirem dos cristãos,

adoptando, por exemplo, o uso da característica barba e pe’ot (papilotes), de acordo

com o texto do Livro do Levítico (Lv. 19, 27). Esta atitude de marcar a diferença

verifi cou-se desde o século XI, depois da recepção do Talmud2, no Ocidente, e com

a difusão da Cabala (Blumenkranz 1966, 20). A sua fi rme vontade de manter a sua

cultura própria, impede que se diluam na sociedade cristã. Os diferentes aspectos

do seu quotidiano, sempre ligado aos preceitos da religião, são o motivo das dife-

renças relativamente à maioria da população. O facto de possuírem leis e tribunais

próprios, de terem rituais associados ao fabrico do pão ou à preparação das carnes

para consumo, conferia-lhes uma certa autonomia no seio da própria sociedade,

motivando, certamente, algumas desconfi anças.

Foram prescritos alguns sinais identifi cadores, assim como foi proibido o uso de

algum vestuário para que se não confundissem com outros elementos da sociedade.

No Concílio de Albi, a título de exemplo, realizado em 1254, foi interdito o uso

da chape (um manto redondo), pois poderia confundir-se com as vestes do clero

(Metzger 1982, 141). No entanto, a imposição de sinais discriminatórios como a

rouelle (rodela), um pequeno círculo de tecido, geralmente amarelo, que deveria ser

colocado nas vestes, parece ter sido a medida de maior afronta e a que gerou mais

controvérsia sendo, talvez, a mais humilhante, em nosso entender. Esta iniciativa terá

surgido em França em inícios do século XIII, antes mesmo das decisões do Concílio

de Latrão e seguido posteriormente na maior parte dos outros reinos. Deveria ser

usada por todos, homens, mulheres e mesmo crianças a partir de determinada idade

(Metzger 1982, 148). A ideia parece retomar uma iniciativa muçulmana implemen-

tada pelo califa de Bagdad, Muttawakkil, por volta do ano de 850, que ordenou a

todos os não crentes (neste caso cristãos, judeus e outros), que deveriam usar uma

insígnia que os distinguisse dos crentes de Alá (Miranda Garcia 1994, 258).

Na iconografi a dos judeus, este sinal é, todavia, muito raramente representado.

A colocação da rodela de tecido no vestuário pretendia assinalar a presença de

outrem que não é bem aceite. A cor amarela não é escolhida por acaso; sabemos

que o amarelo é uma cor que atrai o olhar, é visível ao longe e, assim, adverte o

perigo. A forma deste distintivo, e provavelmente também a cor, tinha um signifi cado

preciso: deveria lembrar as moedas recebidas por Judas por ter atraiçoado Jesus.

Em Portugal, em virtude de envergarem o referido distintivo, eram designados por

Judeus de sinal.

A aplicação de tal medida não obteve o efeito esperado, pelo que a deliberação é

proferida cerca de uma vintena de vezes, só em França, entre concílios e ordenações

régias, até meados do século seguinte (Miranda Garcia 1994, 260).

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O Concílio de Viena de 1267, volta a tratar do assunto da identifi cação pública dos

judeus e, em vez da já conhecida rodela colorida fi xada no vestuário, impõe que estes

deverão usar um chapéu pontiagudo, com o formato do referido funil invertido, ou

um penteado com a mesma confi guração. A determinação parece não ter sido muito

contestada pelos judeus, já que o seu uso era habitual.

Este é, de facto, o mais frequente sinal identifi cativo, sendo o mais representado na

iconografi a medieval. Em muitas representações, mesmo em manuscritos hebraicos,

é o chapéu pontiagudo, semelhante a um funil invertido, o único sinal distintivo

que encontramos. Esta distinção teve especial impacto na Alemanha, onde a rodela

teve uma menor aplicação até ao século XV. Mas, ao contrário da rodela, que pro-

curaram recusar, parece que o chapéu foi acolhido e transformado numa das suas

marcas de identidade.

Na arte cristã, o uso de chapéus ou barretes de diferentes formas, mas quase sempre

pontiagudos, associados à fi gura dos judeus, é atestado pelas várias representa-

ções, desde o século XII (Metzger 1982, 148). Importa frisar que durante o período

românico, a fi gura do judeu estava já presente em variados temas da arte cristã, em

cenas do Antigo e do Novo Testamento, sem assumir qualquer traço pejorativo ou

anti-semita, sendo identifi cado na maioria das vezes, precisamente, pelo chapéu

pontiagudo.

A imagem do judeu nas bíblias

universitárias historiadas

Como vimos, o assunto é assaz complexo e importa desde já tornar claro que as

relações com aquela cultura minoritária, no seio do Ocidente cristão, foram bastante

diferenciadas, conforme o momento histórico, político e social. Este é um ponto de

crucial importância na abordagem da questão e que importa reter. Restringimos as

observações a fontes existentes no nosso país, embora algumas provenientes de

outros centros europeus, como Paris, e que integravam as bibliotecas monásticas

portuguesas, o que não deixa de constituir um indicador de gosto e preferência por

estes manuscritos, nomeadamente dos seus programas iconográfi cos. Temos assim

dois universos distintos: o local de produção e o de recepção dos mesmos.

As acesas disputas e debates entre judeus e cristãos que se iniciam em Paris no início

do século XIII, assim como as variadas decisões políticas e consequentes implicações

sociais, não deixaram de ter refl exos nas formas artísticas, nomeadamente nas ilumi-

nuras dos manuscritos que se produziam nos ateliers parisienses ou da sua infl uência,

aos quais as nossas Bíblias pertencem.

O presente estudo teve como base um corpus de imagens provenientes de Bíblias

universitárias historiadas do século XIII existentes em Portugal, cujo trabalho de

catalogação se efectuou no âmbito do projecto Imago. Foi o levantamento fotográfi co

e a elaboração do thesaurus para a descrição das imagens que nos chamaram a aten-

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3. As Bíblias aqui referidas, Alc. 455 e Alc. 458,

actualmente na Biblioteca Nacional de Portugal.

ção para a representação de judeus em algumas das iluminuras constantes nos referi-

dos manuscritos. Os atributos que os identifi cavam, as cenas onde eram representa-

dos, a sua expressão, mas sobretudo a relação de poder que se estabelece, ou não, na

representação entre estes e os cristãos, levou-nos a abordar o tema. Centrámo-nos,

particularmente, sobre duas Bíblias provenientes do fundo de Alcobaça – manuscritos

Alc. 455 e Alc. 4583, que tomamos como um indicador das preferências dos “monges

brancos” e confrontamo-los com outros manuscritos do mesmo período, produzidas

em contextos semelhantes; referimo-nos aos manuscritos bíblicos Lisboa, BNP, IL

34, IL 51, IL 63 e IL 93, provenientes de colecções particulares e integrados mais

tardiamente no fundo da Biblioteca Nacional e a Bíblia, BGUC, cofre 5, de Coimbra.

Centrados na concepção dos programas iconográfi cos destes manuscritos, teólogos e

iluminadores criaram mecanismos de construção de memória, de modo a veicularem,

através das iniciais historiadas, mensagens que actualizassem o tempo primordial

bíblico e, ao mesmo tempo, revelassem as intenções moralizadoras ou ideológicas do

seu próprio tempo, nas quais as relações entre cristãos e judeus estiveram presentes.

O tema escolhido levou-nos exactamente para uma refl exão no âmago desta questão:

como se exerceu, através da imagem, o poder dos cristãos sobre os judeus neste

século XIII em que o cristianismo procura impor-se no Ocidente através de uma nova

atitude teológica do poder real e papal e das novas ordens religiosas – franciscanos

e dominicanos? Se do ponto de vista do historiador esta questão é complexa e está

longe de ser unânime, como vão os iluminadores, sem dúvida em diálogo com os

teólogos, transmitir os códigos através de uma expressão artística que cumpre uma

função religiosa? Estes artistas provavelmente seculares, na maior parte no contexto

da produção universitária parisiense, utilizaram um vocabulário gótico, conheceram

os textos, estiveram porventura em diálogo com as comunidades judaicas, mas que

sensibilidades nos transmitiram? A diversidade de situações que vamos encontrar,

apesar de ser um dos momentos aparentemente mais repetitivos de modelos da

história dos manuscritos iluminados, é notável. Cada ofi cina/artista escolhe uma

determinada cena para transmitir a mensagem de um livro bíblico. Estamos perante

um espaço de abertura. Os que escolhem a mesma cena expressam-na de diferentes

formas, as personagens transmitem expressões, gestos, ritmos, organizam-se nas

iniciais de modo diverso e manifestam perante o mesmo texto bíblico que lhes serviu

de base, a diversidade de abordagens. Ter-se-ão assumido os artistas como servidores

dos poderes instituídos ou tiveram liberdade de tratar o tema em pequenas imagens

que oscilam entre 10 e 300 milímetros? Estas imagens, para além de uma função de

orientação e clarifi cação no texto, constituíram-se como furores visuais, no dizer de

Didi-Huberman, abrindo o códice a uma dimensão estética. O lugar que elas ocu-

pam é, pois, estrutural ao texto já que fazem parte de algo que é inerente à história

da arte ocidental “Contar através de imagens as narrativas históricas, adornar a

palavra e sobretudo ritualizar, tornar presente uma realidade ausente, exprimindo

emoção” (Gregório Magno em carta a Serenus, Bispo de Marselha). Aqui se abre um

vasto campo de interrogações. Consideramos, com Didi Hubermann (1990, 64) que

a História da Arte, especialmente a arte cristã medieval, se institui num momento

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de abertura onde se intuem e interpretam os sintomas e se penetram os mistérios.

Este autor coloca uma questão fundamental na abordagem à arte cristã medieval:

o da tirania do visível que age sobre as imagens do passado como um ecrã, que leva

a construção do iconotecas ou laboratórios ou hipermercados de imagens. Não é por

acaso que, mesmo em manuscritos de tão pequenas dimensões, os clérigos estiveram

conscientes do poder destas imagens. Os cistercienses de Alcobaça, ao incluírem

estes manuscritos na sua biblioteca, mostraram não ser alheios a este movimento

artístico e intelectual do Ocidente cristão, aceitando as novas propostas estéticas.

Se o nosso projecto de estudo dos manuscritos iluminados passa por uma aborda-

gem iconográfi ca, como historiadores de arte essa abordagem leva-nos a formular

questões e a estabelecer pressupostos epistemológicos à História da Arte Medieval

que ultrapassam este método. Como resolveram os iluminadores das Bíblias uni-

versitárias historiadas do séc. XIII, a contradição entre a representação de um povo

eleito, cuja acção no Antigo Testamento é fundamento do cristianismo e o anuncia,

e a reprovação e descriminação crescente das comunidades judaicas, minoritárias?

O cristianismo, ao criar os mecanismos para o controle da ortodoxia, vai servir-se da

imagem que, de forma mais clara que o texto, exprime as contradições da própria

sociedade e, no caso presente, das relações entre cristãos e judeus.

Debra Strickland (2003, 96) defende que o “retrato” que os cristãos apresentam dos

judeus é um retrato mítico, uma imagem mental elaborada a partir do desconheci-

mento dos seus costumes, lançando sobre eles o anátema da rejeição. Daí que alguns

autores defendam que o seu lugar de eleição sejam as margens. Contudo, verifi ca-se

que, sobretudo a partir do século XII, a representação dos judeus não tem um lugar

próprio, podendo assumir conotações positivas ou negativas, central ou marginal,

dependendo dos contextos de representação.

O corpus utilizado para este estudo, como referido anteriormente, constituiu-se

partindo do levantamento das Bíblias historiadas do século XIII, existentes no fundo

da Biblioteca Nacional de Portugal. Fomos especialmente sensíveis às Bíblias que

fi zeram parte do fundo primitivo do Mosteiro de Alcobaça (Alc.455 e Alc.458), de

onde retirámos o maior número de imagens. Se as Bíblias historiadas do século

XIII foram o ponto de partida para o estudo, imediatamente surgiu a curiosidade e

a necessidade de pesquisar esta mesma temática nos manuscritos produzidos em

Portugal. Contudo, a sua ausência levou-nos a apresentar como exemplo, apenas,

o Apocalipse do Lorvão, manuscrito datado de 1189, anterior, portanto, aos manus-

critos que abordaremos.

Apesar do Beato de Liébana, na introdução aos Livros I e II, desenvolver uma teo-

ria acerca da Igreja e da Sinagoga, em que esta última aparece como metáfora

de todos os males do mundo (heresias, falsos profetas, anticristo), está ausente

qualquer referência concreta a práticas ou rituais judaicos (Beato de Liébana 2004,

145). No comentário ao Apocalipse do Lorvão, a heresia parece ter encontrado na

representação dos judeus um meio de fi gurar o mal, ligado intimamente à fi gura

da Besta, na sua dupla fi guração: besta do mar e da terra. Nesta representação

(fi g. 2), estabelece-se uma estreita relação entre o animal apocalíptico (a serpente)

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e os judeus que o veneram. A aproximação parece ser sublinhada pela utilização da

cor vermelha, que aparece nos chapéus dos judeus (pileum cornutum) e no corpo da

serpente marinha, símbolo do mal. O manuscrito, produzido no mosteiro do Lorvão

pelo monge Egeias, surge ligado à resposta do mundo monástico laurbanense face

ao avanço dos almorávidas e como afi rmação de uma ideologia moçárabe. Estes,

considerados os infi éis que adoram as forças do mal, todavia, eram representados

não como muçulmanos mas como judeus, mostrando assim, de certo modo, uma

atitude antijudaica.

Imagens dos judeus e exegese bíblica

«Lieu de débats, la bible est aussi lieu par excelence de l’encontre entre Chrétiens

et Juifs aux XII-XIVème siècle, plus encore, sans doute qu’à l’époque patristique ou

dans le Haut Moyen Age»

(Dahan, 2007: 271)

Voltando aos manuscritos do século XIII, as imagens de personagens judaicas reve-

lam formas de sociabilidade, de hostilidade ou de humor entre as duas realidades

culturais. Cada imagem pode ser vista como um ponto de partida, como elemento

motivador, para a elaboração de um discurso sobre o texto bíblico. Em regra, o pro-

grama iconográfi co está limitado a iniciais historiadas que abrem cada um dos livros,

geralmente apenas uma cena ou referência a um episódio por cada letra. São poucas

as excepções em que tal não se verifi ca. Uma delas, a mais comum, é a letra I (In

principio), que abre o Livro do Génesis que, com frequência, apresenta um conjunto

de cenas ou episódios relacionados com o texto da Criação. A identifi cação dos ele-

mentos iconográfi cos normalmente não levanta problemas, uma vez que, em regra,

estão relacionados com o próprio texto. Ainda assim, não podemos ler as imagens

como simples cenas narrativas; há um outro sentido para cada uma delas, carregam

em si uma mensagem, mais ou menos velada, que ultrapassa a leitura mais imediata,

por vezes conduzindo a uma nova refl exão.

A figura do Judeu no Antigo Testamento

Num primeiro olhar, nestes programas iconográfi cos verifi ca-se uma dualidade de

atitudes face aos judeus. Referidos como o povo eleito inauguram, podemos dizer,

a História da Salvação. Figuras como Moisés, Abraão, Jonas, David, ou Jessé são

repre-sentados na generalidade das Bíblias, não se reconhecendo, como era de es-

perar, qualquer marca de hostilização na sua fi guração. Na maioria das vezes, surgem

sem qualquer atributo que os identifi que como hebreus. Neste caso, é de salientar

Moisés, fi gura reverenciada por cristãos e judeus, frequentemente representado nas

iniciais historiadas nos livros do Êxodo, Números e Deuteronómio, nunca apresentando

fig.2 a vitória do cordeiro. apocalipse do lorvão, lisboa, antt, lorvão 43, cf160, fl.191

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qualquer sinal que o discrimine. A sua imagem está sempre, tal como S. Jerónimo

a defi niu, “Videbant faciem Moysi esse cornutam” (Duchet-Suchaux e Pastoureau

1994 250-251) e ocupa o primeiro lugar na hierarquia das personagens bíblicas do

Antigo Testamento (fi g. 3 e 4).

Nos manuscritos bíblicos estudados, os levitas (sacerdotes responsáveis pelos servi-

ços no Templo) são fi gurados frequentemente com chapéu cónico que os identifi ca

como hebreus, não assumindo, no nosso entender, qualquer sentido pejorativo.

A iconografi a remete para a Antiga Lei em que a prática sacrifi cial era vulgar e um

dos preceitos do rito judaico. O tema é recorrente nos programas iconográfi cos das

Bíblias da época, nesta mesma localização, a abrir o Livro do Levítico. Registámo-lo

nos manuscritos: Alc. 455, fl .31; IL 51, fl .25v e IL 93, fl .41v.

Na inicial V do Livro do Levítico, Alc. 455, fl .31 (fi g. 6), dois sacerdotes, um deles

ajoelhado solenemente, oferecem dois animais para o sacrifício, de acordo com a

tradição judaica. Apresentam a cabeça coberta pelo pileum cornutum, atributo que

os identifi ca, não tendo, como referimos, qualquer conotação negativa. A mesma

fig.3 moisés recebe de deus as tábuas da lei. inicial “h” do livro do êxodo, bíblia (1220-30), lisboa, bnp, alc. 455, fl.18v

fig.4 deus e moisés: “o senhor falou a moisés no deserto do sinai”. inicial “l” do livro dos números, bíblia, lisboa, bnp, alc. 458, fl.37v

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cena está presente no IL 51, fl .25v e remete para rituais que se realizavam em tem-

pos passados, numa alusão ao Antigo Testamento, sendo o povo judeu reconhecido

como precursor do Cristianismo.

Esta atitude é confi rmada pela existência de alfabeto hebraico no Livro das Lamen-

tações, Alc. 248, entre os fólios, 230v à 232.

No manuscrito Alc. 455, o episódio do roubo da Arca da Aliança pelos fi listeus (1.º

Sam. 4), é sintetizado numa representação em que fi guram dois soldados fi listeus

e um judeu, um dos fi lhos de Heli, identifi cado pelo pileum cornutum (fi g. 5). Esta

personagem, representando o Povo Hebreu, surge aqui, naturalmente, como vítima,

assim como no IL 93 (fl .104v). O iluminador recorre novamente àquele atributo para

identicar Esdras no acto de purifi cação do altar (fi g. 7). No entanto, na Bíblia IL 63

(fl .213v), o mesmo sacerdote é fi gurado sem este elemento identifi cador.

Entre os profetas menores, muitos são representados, naturalmente, com atributos

judaicos, veja-se por exemplo o pileum cornutum nas iluminuras do Livro de Sofonias

nos Ms. IL 51, fl .275v, Alc. 458, fl . 264; Livro do profeta Amós, nos manuscritos

fig.6 sacrifício. inicial “v” do livro do levítico, bíblia (1220-30), lisboa, bnp, alc. 455, fl.31

fig.5 o roubo da arca da aliança aos judeus. livro dos reis. lisboa, bnp, alc.455, fl.81v

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IL 34, fl .273v, Alc. 458, fl . 262; Livro de Joel IL 34, fl .272v ou Malaquias, Alc. 458,

fl .267v. O facto não pode ser considerado como um propósito discriminatório, mas

como a identifi cação de fi guras do Antigo Testamento. Estas personagens são, em

regra, apresentadas com muita dignidade como este exemplo do profeta Amós com

chapéu pontiagudo, face a face ao próprio Deus (fi g. 8). Curioso que a auréola de

Cristo tal como o barrete de Amós é verde, sendo igualmente utilizadas as mesmas

cores no vestuário, embora de forma alternada. Ambos estão descalços e apresentam

as mesmas dimensões, o que confere ao profeta maior dignidade.

A figura do judeu no Novo Testamento

Se nas polémicas Adversus Judaeos, numa atitude que remonta a Santo Agostinho4,

os judeus são considerados como os responsáveis pela morte de Cristo, nas repre-

sentações bíblicas em análise, aquele povo é representado numa atitude de polémica

intelectual, de encontro com os cristãos ou numa referência ao Antigo Testamento.

fig.7 aspersão do altar. inicial “e” do livro ii de esdras, lisboa, bnp, alc.455, fl.152

fig.8 deus e amós. inicial “v” do livro de amós, bíblia, lisboa, bnp, alc.458, fl.262

4. Sto Agostinho, Sermo contra Judeos e Alter-

catione Ecclesiae et Sinagogae, in Migne, Patrol.

Lat., XVII, 1181.

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No manuscrito Alc.458, fl .284v (fi g. 9), Jessé é representado adormecido, com cha-

péu pontiagudo vermelho; do seu corpo sai um tronco de árvore que se ramifi ca,

defi nindo e delimitando superfícies onde são representados David, Salomão, a Vir-

gem e Cristo. Este tema iconográfi co, denominado Árvore de Jessé, é vulgarmente

representado no início do Evangelho de S. Mateus, onde o texto refere a genealo-

gia de Cristo (Mt. 1, 1-18). Jessé surge aqui como fi gura histórica que inicia uma

linhagem e há-de assegurar a descendência até ao nascimento do Salvador. Aqui

se juntam os dois Testamentos, numa abordagem judaico-cristã em que prevalece

a atitude histórica de construção das imagens. Em termos iconográfi cos, na Bíblia

IL 51 (fl .268), Jessé surge de cabeça coberta com o pileum cornutum, atributo que

o identifi ca como personagem do Antigo Testamento, não tendo qualquer signifi -

cado negativo, ideia que é reforçada pela presença de duas lâmpadas acesas, sinal

de uma especial dignifi cação da personagem, uma vez que a associa ao simbolismo

da luz (fi g.10). Importa referir que, na tradição judaica, junto da Arca da Aliança

(a Lei), deveriam estar em permanência lâmpadas acesas (ner tamid) simbolizando

a perpétua luz divina dispensada pela Lei (Metzger 1982, 68). Já no manuscrito

IL 63 (fl . 446v) a representação de Jessé e das restantes fi guras bíblicas surgem sem

qualquer atributo que remeta para a ascendência judaica do cristianismo. Todas as

fi guras se apresentam de longas túnicas, cabeças descobertas e sem auréola. Neste

fig.9 árvore de jessé. inicial “l” do evangelho segundo s. mateus, bíblia, lisboa, bnp, alc. 458, fl. 284v

fig.10 árvore de jessé. inicial “l” do evangelho de s. mateus, bíblia, lisboa, bnp, il 51, fl.268

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manuscrito há uma única imagem, a inicial A do Livro de Paralipómenos, em que os

judeus e curiosamente o próprio Moisés recebem o chapéu que os identifi ca como

tal (IL 63 fl .170).

Os judeus na acção evangelizadora de

S. Paulo

Alguma da controvérsia entre a Nova e a Antiga Lei está bem patente no livro dos

Actos dos Apóstolos (Act. 15), atribuído a S. Lucas, nomeadamente as dúvidas e

inse gurança dos primeiros cristãos sobre a necessidade de observância da lei mosaica.

Nas cartas de S. Paulo, esse debate persiste e assume, na iconografi a das iniciais, um

verdadeiro lugar de confronto ideológico, como se pode observar nas iniciais P da

Carta de S. Paulo aos Romanos, Alc. 455 fl . 361, da Carta de S. Paulo aos Hebreus,

fl . 380 e Alc. 458 fl 342, da Carta de S. Paulo aos Colossenses fl .365 e da Carta

aos Coríntios fl . 331v deste mesmo manuscrito. Nas iniciais que abrem as Carta aos

Romanos (fi g. 11) e aos Colossenses, S. Paulo, indubitavelmente uma personagem

maior do Novo Testamento, ergue signifi cativamente a cruz, símbolo cristológico por

fig.11 s. paulo e dois judeus. inicial “p” da carta de s. paulo aos romanos, bíblia, lisboa, bnp, alc.455, fl.361

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excelência face a dois judeus; o iluminador identifi ca-os através do pileum cornutum

mas não lhe confere qualquer sinal pejorativo. O que se encontra em primeiro plano

levanta a mão, virada para a frente, num gesto que indicia uma atitude de oposi-

ção, de dúvida ou de contraponto à nova mensagem. Esta iconografi a repete-se no

IL 34 fl .336 e no IL 51, fl .334v (fi g. 13).

Na carta aos Romanos, S. Paulo dirige-se aos cristãos de Roma referindo que a

salvação está ao alcance de todos e, frisa, em primeiro lugar dos judeus (Rom, 2,

16); parece transparecer a ideia de criticar o formalismo da lei mosaica que, embora

lhe reconheça a sua importância e validade, é algo de árido e sem sentido se não

implicar mudança interior.

Na inicial historiada do início da Carta aos Filipenses Alc. 455 fl 374 (fi g. 12), a inte-

racção parece menos cordata. A cena representada mostra uma atitude de violência

sobre um judeu que se encontra com um joelho por terra, dominado por outra fi gura

que, segurando um bastão, exerce sobre ele violência física; tratar-se-á, de acordo

com as ambiguidades do texto, de uma atitude de conforto, por parte de S. Paulo,

fig.12 s. paulo junto a indivíduo com bastão e um judeu. inicial “p” da carta de s. paulo aos filipenses, bíblia, lisboa, bnp, alc.455, fl.374

fig.13 s. paulo e dois judeus. inicial “p” da carta de s. paulo aos romanos, bíblia, lisboa, bnp, il 51, fl.334v

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face ao sofrimento infl igido àqueles que, seguindo Cristo, seriam violentados ou,

pelo contrário, uma atitude de violência sobre os não cristãos, que se traduz por um

castigo que lhes será infl igido.

A Epístola aos Hebreus, cuja autoria é atribuída a S. Paulo, pela tradição das Igrejas

Orientais, terá sido dirigida a uma comunidade de cristãos que não é explicitada.

A inicial que abre esta carta nos manuscritos Alc.455, Alc.458 e no IL 34, apresenta

sempre a mesma iconografi a: S. Paulo dialogando com judeus (fi g. 14 e 15). A sua

fig.14 s. paulo e dois judeus. inicial “m” da carta aos hebreus, bíblia, lisboa, bnp, alc.455, fl.380

fig.15 cristo, s. paulo e um judeu. inicial “m” da carta de s. paulo aos hebreus, bíblia, lisboa, bnp, alc. 458, fl. 342

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identifi cação é, em todos os casos, conferida pelo barrete pontiagudo, mas que,

também aqui não é representado como sinal de inferioridade. A postura que aquelas

personagens assumem é de absoluta dignidade, apresentando dimensões semelhan-

tes às de S. Paulo. Relativamente ao vestuário, não existe diferenciação signifi cativa

que caracterize os judeus, além do já referido pileum cornutum.

No programa iconográfi co associado às cartas de S. Paulo, parece fi car claro que

os judeus, porque associados à história do Antigo Testamento, constituíam o alvo

principal da acção evangelizadora do apóstolo. Em termos iconográfi cos, o “outro”

é mais uma vez representado como judeu sem, contudo, haver qualquer indício de

tratamento humilhante para com aquele povo.

Igreja vs Sinagoga

Não podemos deixar de referir o tema da Igreja/Sinagoga, uma das iconografi as mais

frequentes no Gótico sobre a oposição entre cristianismo e judaísmo. No entanto, do

nosso ponto de vista, ela põe em relevo o confronto entre duas religiões e não entre

dois povos. A questão é bastante distinta daquela em que temos refl ectido até agora.

Aqui, na dialéctica do poder, é clara a procura de afi rmação de domínio do cristia-

nismo sobre o judaísmo. Esta atitude traduz-se visualmente através de alegorias

tais como a fi guração da Igreja ou a Nova Aliança, em contraponto com a Sinagoga.

Neste domínio, assumem particular importância textos como Altercatio Ecclesiae

contra Synagogam, de autor anónimo do século X ou Altercatio Synagogae et

Ecclesie atribuído a Conrad de Hirsau, autor do século XII, que veicula a polémica

entre “Igreja” e “Sinagoga” (Faü 2005, 30). A origem desta temática remonta a

S. Agostinho e vai tornar-se, como referimos, a fonte de inspiração dos artistas góti-

cos que a exprimem visualmente nos vitrais de Chartres ou na escultura do portal

sul da catedral de Estrasburgo.

A atitude repressiva que se fez sentir a partir da primeira cruzada e reafi rmada no

IV Concílio de Latrão, é visualizada, de algum modo, através de representações do

tema acima referido. Estas imagens, embora frequentes e utilizadas anteriormente

pelos artistas, são particularmente depreciativas para a representação da Sinago-

ga, nas Bíblias Moralizadas, manuscritos de aparato que tinham os monarcas como

destinatários e a partir dos quais se construiu um discurso anti-judaico. Escritos em

vernáculo, este tipo de manuscritos tinha uma função pedagógica e moralizante,

articulando um texto facilmente perceptível com um programa iconográfi co muito

eloquente. Estas imagens e este discurso não tiveram o mesmo eco nas bíblias histo-

riadas universitárias em que a iconografi a da Igreja/Sinagoga aparece apenas como

imagem alegórica, com um carácter doutrinário e teológico. Nestes manuscritos, a

representação é geralmente inserida na inicial I (In principio), que abre o Livro do

Génesis, nos manuscritos em que o estabelecimento da relação entre o Antigo e

o Novo Testamento se traduz pela imagem do Calvário a terminar os Sete dias da

Criação. Embora este tema não esteja representado nos manuscritos acima referen-

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ciados para este estudo, encontramo-lo num manuscrito de Coimbra, BGUC, cofre 5,

fl . 4 (fi g. 16). A Igreja é representada por uma fi gura feminina, coroada, portadora

de uma lança com estandarte e cálice; a Sinagoga, também fi gura feminina, segura

igualmente uma lança, mas quebrada, e volta as costas a Cristo, num signifi cativo

gesto de recusa; a seus pés, lançadas no chão, estão as Tábuas da Lei. O tema procura

demonstrar a cegueira do judaísmo em não ver concretizado no Novo Testamento as

profecias reveladas no Antigo. Por isso, em frequentes representações, a Sinagoga

surge com os olhos vendados.

É interessante comparar esta imagem (fi g. 16) com a da bíblia moralizada de Viena,

Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. Vindobonensis, 2554, fl . 31v e 36v (fi g. 17

e 18). Neste manuscrito, partindo de uma passagem do Livro I de Samuel (I Sam. 6,

10-12), a Igreja surge triunfante, coroada, aureolada e transportada em carro con-

duzido por dois dignitários da Igreja, circundada pelos símbolos dos evangelistas,

erguendo o estandarte e elevando o cálice (fi g. 18). Há, pois, a intenção de conde-

nar o judaísmo, do ponto de vista teológico. Entre os dois manuscritos, produzidos

num período próximo, verifi ca-se uma forma diversa de abordar o tema da Sinagoga:

o manuscrito universitário, embora nele a “Sinagoga” vire as costas a Cristo crucifi -

cado, não o reconhecendo como divindade, aproxima-se das representações do tema,

tal como este aparece tratado na época carolíngia, em que aquela surge sem qualquer

sinal de inferioridade; na bíblia moralizada5 transmite-se uma mensagem de vitória de

Cristo/Igreja sobre a Sinagoga, em que esta é representada derrotada e humilhada.

fig.16 calvário com representação da igreja e sinagoga, coimbra, bguc, cofre 5, fl. 4

5. Neste manuscrito as imagens são apresentadas

duas a duas, lidas de cima para baixo e da es-

querda para a direita; são acompanhadas de dois

pequenos textos, o primeiro retirado da Bíblia, o

segundo explicitando o sentido moralizante.

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6. “A cólera do Senhor manifestou-se assim con-

tra eles e retirou-Se. E desaparecendo a nuvem

de cima da tenda, Maria encontrou-se coberta de

uma lepra branca como a neve” (Nm. 12, 9-10)

A moralização diz-nos que: “Deus ao castigar

Maria e torná-la leprosa signifi ca que Jesus Cris-

to castigou a Sinagoga e a derrubou”.

7. “Maria foi excluída do acampamento, durante

sete dias, e o povo não partiu enquanto Maria

não entrou novamente ali” (Nm. 12, 15)

A moralização refere: “A expulsão de Maria do

acampamento, signifi ca o papa que expulsa da

Igreja os Judeus e os infames”

Neste exemplo (fi g. 17 – medalhões da esquerda), é claro o conteúdo antijudaico

na interpretação de uma passagem do Livro dos Números6. O iluminador recorre à

imagem alegórica da Sinagoga vs Maria, imagem tipifi cada na iconografi a da época,

reforçando o sentido do texto moralizador que se encontra ao lado. Ambos os dis-

cursos concorrem no sentido de inferiorizar o judaísmo, sublinhando a superioridade

da Igreja de Cristo que o deita por terra. A Sinagoga aparece representada curvada,

com os olhos vendados, a lança quebrada e a fi lactera caída.

No par de imagens que se segue (fi g. 17 – imagens da direita), partindo do texto do

mesmo Livro7, o discurso iconográfi co repete visualmente o sentido do texto mora-

lizador, reforçando a mensagem contra os judeus, na medida em que os representa,

identifi cando-os com o pileum cornutum, num momento de humilhação, ao serem

expulsos pelo Papa.

Num outro fólio (fi g. 18 – medalhões da esquerda), tendo como base passagens do

Livro I de Samuel, de novo se alinha um discurso imagético de confronto entre o

fig.17 igreja de cristo e a sinagoga e a expulsão dos judeus do tabernáculo, bíblia moralizada, viena, österreichische nationalbibliothek, codex vindobonensis 2554, fl. 31v

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cristianismo e o judaísmo. A imagem que se contrapõe ao grupo de judeus transpor-

tando a Arca (Judaísmo) é a de uma fi gura feminina, personifi cação da Igreja, numa

atitude vitoriosa. Se o texto bíblico refere que “Tomaram duas vacas que aleitavam

os seus vitelos e atrelaram-nas ao carro, pondo os seus bezerros no curral. Puseram

sobre o carro a arca do Senhor (...) ora as vacas tomaram directamente o caminho

que vai para Bet-Semes e seguiram sempre o mesmo caminho sem se desviarem

nem para a esquerda nem para a direita” (I Sam. 6, 10-12). A moralização explicita

que: “o carro que transporta a arca signifi ca que os quatro Evangelistas carregam a

Igreja. As vacas que puxam o carro signifi cam os bons prelados que têm a função e

o esforço de puxar a Igreja.” Não há assim, no texto, referência clara à Igreja triun-

fante representada pelo iluminador.

No último exemplo que seleccionámos (fi g. 18 – medalhões da direita), de acordo

com o sentido do texto, os Judeus simbolizam os ímpios e os que põem em causa

a Igreja, sendo lançados no inferno, aqui fi gurado na boca de um animal mons-

fig.18 igreja triunfante e condenação dos ímpios, sendo abocanhados por leviathan, bíblia moralizada, viena, österreichische nationalbibliothek, codex vindobonensis 2554, fl. 36v

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truoso. A referência textual aos sarracenos é substituída pela figura do judeu.

É mais uma passagem do Livro I de Samuel que refere: “O Senhor feriu os habitantes

de Bet-Semes porque tinham olhado para a sua arca, e feriu setenta homens”

(I Sam. 6, 13-19).

O sentido moralizante explicita que: “Os sarracenos querendo apoderar-se da arca

foram punidos e mortos por Deus, signifi ca que os povos ímpios que são maus e

ignorantes, que não têm bom senso e sentido da descrição em si, que discutem acerca

da guarda da Santa Igreja, provocam a ira de Deus e serão lançados ao inferno”.

À guisa de conclusão

Tendo em conta que o nosso universo de estudo é muito restrito, sendo os temas

iconográfi cos limitados ao texto bíblico, as refl exões têm forçosamente também que

se limitar a este domínio.

Através da análise das imagens e guiados por uma bibliografi a temática, chegamos

a refl exões que nos remetem para os pressupostos iniciais. Na maioria dos casos

de referência a judeus não encontramos atitudes de hostilidade evidente, nem um

discurso visual único; pelo contrário, os iluminadores revelaram pertencer a grupos

de opinião diversifi cados, refl ectindo as contradições existentes no seio dos poderes

instituídos. No entanto, não raro, encontramos a representação deste povo associada

a textos cujo conteúdo não os menciona o que, quanto a nós, é um sinal de deter-

minado tipo de relacionamento em que o judeu encarna “o outro”.

Estas contradições, ou formas de expressão diversas, porque destinadas a públi-

cos diferentes, levou-nos a estruturar o nosso discurso tendo como elemento de

comparação as Bíblias moralizadas, nomeadamente as de Viena, Österreichische

Nationalbibliothek, Codex Vindobonensis 2554 e Österreichische Nationalbibliothek,

Cod.1179. Destinados a um público aristocrático muito restrito, estes manuscritos

evidenciam, nas suas imagens e textos, um discurso de poder enquanto as bíblias

historiadas de produção universitária, produzidas sobretudo para os intelectuais,

visam uma atitude de refl exão e disputa intelectual. A riqueza das ilustrações das

bíblias moralizadas assim como o seu reduzidíssimo número, leva-nos a afi rmar que

os mesmos se destinariam a uma elite culta muito restrita; talvez alguns prelados ou

para uso privado no seio das famílias reais. Através da leitura comentada do texto

bíblico, acompanhada por um eloquente discurso iconográfi co, não deixariam de

ter infl uência na formação das mentalidades das classes dirigentes, aspecto que

assume singular relevância para o tema que estamos a abordar, na medida em que,

nestes manuscritos, a imagem que se procura incutir sobre os judeus está, em regra,

associada aos inimigos de Cristo, portanto da Igreja. Neles são incluídas representa-

ções que sublinham aspectos negativos e a oposição face ao cristianismo. Ali parece

impor-se a conjugação entre o poder real e o poder eclesiástico numa clara atitude

antijudaica, indício visível de uma mentalidade e contexto social que se viveu na

Europa de 1200. É um momento privilegiado para uma aproximação à mentalidade

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da época, pelo menos neste domínio, e que, neste estudo em particular, lança clara-

mente uma luz sobre o modo como os judeus eram vistos pelos cristãos, pelo menos

em alguns meios intelectuais ligados à Universidade e/ou ordens religiosas, como os

dominicanos, ou junto da elite social que ocupava a cúpula do poder político.

Não deixamos de assinalar que, sendo o século XIII o momento-charneira nesta pro-

blemática, será mais no seu fi nal e durante os séculos seguintes que se verifi carão

os maiores momentos de tensão, nomeadamente com as expulsões de judeus de

alguns territórios (Inglaterra, em 1290, Norte de França, em 1306, região de Saxe,

1342, Áustria, em 1420 e Espanha em 1492), sendo os manuscritos aqui abordados

datados de períodos anteriores.

Se a diferenciação iconográfi ca, sobretudo relativa ao vestuário, existia já desde o

século V, para identifi cação de determinadas personagens, a partir do século XIII

surgem alguns atributos com um intuito assumidamente discriminatório para com

os judeus (Faü 2005,14). Embora respeitando esta ideia, o conjunto de imagens

aqui analisadas, provenientes dos manuscritos da Biblioteca Nacional, não confi r-

mam aquela conclusão. Tal facto não deixa de ser interessante no sentido em que

demonstra, precisamente, a não existência de um discurso único. A identifi cação de

determinadas personagens com os judeus, procura situar o episódio no Antigo Tes-

tamento e não afrontar o judaísmo. Assinale-se a representação de profetas meno-

res ou a dos povos a quem a evangelização se dirige, conforme S. Paulo refere nas

suas Epístolas.

Na inicial antropo-zoomórfi ca que abre o texto do profeta Amós (fi g. 1), o ilumina-

dor representou excepcionalmente o judeu numa atitude transgressora. Identifi ca-

do pelo pileum cornutum, o judeu surge sob a forma de um ser híbrido o que, sem

dúvida, nos remete para um universo do fantástico8. Estamos, como já referimos,

perante um momento de abertura a vários signifi cados – o rosto humano do judeu

num corpo de réptil (?), leva-nos a múltiplas interpretações inviabilizando uma única

leitura iconográfi ca, remetendo-nos para o nível dos “sintomas ou os traços de um

mistério”, em que o poder se exerce, não de uma forma directa mas de um modo

subtil, igualmente opressor. •

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Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Abstract

Because of the distance in time and the lack of testifying documents, one should be

extremely careful when labelling portraits in medieval books of hours as donor por-

traits or owner portraits. There are, however, manuscripts that reveal their fi rst owner

within their decorative programme, and the Lamoignon Hours (Lisbon, Gulbenkian,

ms LA 237) is one of these. This article aims to discuss the iconography of the three

portraits found on f.165v, f.202v and f.286v, as well as the relevance of portraiture

and heraldic insignia in books of hours and the signifi cance of such content to the

original owner and to those who possessed the book afterwards. •

Resumo

A distância no tempo e a ausência de documentação testemunhal obrigam a agir com

cautela quando se pretende confi rmar a representação dos donos ou dos doadores

nos retratos dos Livros de Horas medievais. Existem, porém, alguns manuscritos

que revelam no seu programa decorativo a identidade do seu primeiro proprietário,

como acontece nas Horas de Lamoignon (Lisboa, Museu da Fundação Calouste

Gulbenkian, ms LA 237). O presente artigo explora a iconografi a dos três retratos

que aparecem em f.165v, f.202v e f.286v, e analisa a relevância do retrato e dos

emblemas heráldicos nos Livros de Horas, bem como a importância deste tipo de

conteúdo para o dono original e para os possuidores posteriores do livro. •

key-words

french artfifteenth centuryilluminationbooks of hoursheraldry

palavras-chave

arte francesaséculo xviluminuralivro de horasheráldica

Page 69: Rha 7

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owner portraits and heraldry in the lamoignon hoursragnhild marthine bøInstituto de Estudos Medievais

UNL-FCSH

The Lamoignon Hours was illuminated by the Bedford Master and his assistants in

Paris sometime around 1415. The manuscript is also known as the Book of Hours of

Isabelle of Brittany, and it is now kept as ms LA 237 in the Gulbenkian Collection

in Lisbon. The name Lamoignon comes from an 18th century owner. The manuscript

is richly decorated, and it includes 32 full page miniatures. In style and iconogra-

phy it is strongly connected to two other books of hours from the same master,

namely the Bedford Hours (London, British Library, ms Add 18850) and the Vienna

Hours (Vienna, Österreichische Nationalbiblitohek, ms 1855). Three of the full page

miniatures can be classifi ed as portraits, and there are three folios with coats of arms.

The aim of this paper is to discuss the iconography of the portraits, the relevance

of portraiture and heraldic insignia in books of hours, and the signifi cance of such

content to the original owner and to those who possessed the book afterwards.

I have entitled this paper “Owner Portraits and Heraldry in the Lamoignon Hours”,

well aware of the traps connected both to the word ‘owner’ and ‘portrait’ used in

discussions on medieval manuscripts. For the Lamoignon Hours, however, it is pos-

sible to talk about the manuscript’s owner because the portraits are enriched with

coats of arms. Still, I would not use the term ‘donor portrait’, as I follow an advice

given by Madeline Caviness: “We would do well to refrain from using the standard

term donor fi gure, let alone donor portrait, for owners until we are sure that they

controlled the means of production” (Caviness 1996, 113). Only further research

can tell who controlled the means of production when the Lamoignon Hours was

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being commissioned. Portraits in illuminated manuscripts are often idealised portraits

without a person’s actual features. That said, Eberhard König has noted that the

Bedford Master distinguished clearly between the concepts of an image of an owner

in prayer and an actual portrait, taking the age and facial features of the persons

depicted in the Master’s Grand Heures of the Duc de Berry as the most prominent

example (König 2007, 78).

The three portraits in the Lamoignon Hours appear on f. 165v, in front of text

extracts from the Mass (fi g. 1), on 202v, facing the Marian prayer ‘O Intemerata’

(fi g. 2) – here we see the Bedford Master differing between a owner at prayer and

an actual portrait – , and on 286v, facing the ‘Athanasian Creed’ (fi g. 3). In the two

latter, the portraits are accompanied by heraldry as well, embroidered on cloths

covering the altars in front of the praying owner: the coat of arms of Brittany, i.e.

Ermine, and Guy de Laval, i.e. Gold, fi ve escallops Argent on a cross Gules between

sixteen eaglets Azure on its antependium. The co-existence of the Brittany and Laval

coat of arms and the lady at prayer has led art historians to believe that the book of

fig.1 celebration of the mass, bedford master, lamoignon hours, lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 165v

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hours was made for Isabelle of Brittany (1411-1442), daughter of Jeanne of France

and John IV of Brittany. She married Guy XIV, count of Laval in October 1430, and

the book was for a long time thought of having been made as a present for that

occasion. That is why the manuscript is referred to as the Book of Hours of Isabelle

of Brittany in many publications.

There is a discrepancy, however, between the dress worn by the protagonist and the

coat arms: the blue dress with ermine wore by the lady in the miniature suggest she

is a member of the royal family – which Isabelle was not. And a close examination of

the miniatures demonstrates that the coat of arms has been repainted, as François

Avril noted in an entry on the manuscript written in 2004, suggesting the Lamoignon

Hours was commissioned for Isabelle’s mother, Jeanne of France (1391-1433), the

only daughter of the French King Charles VI and Queen Isabeau of Bavaria to survive

childhood (Avril 2004, 354). Avril is probably aware of, although it is not mentioned

in this entry, that the coats of arms on the pall which is included in the miniature

that is facing the Monday Hours of the Dead on f. 216v, is covered with the arms of

fig.2 jeanne of france at prayer – o intemerata, bedford master, lamoignon hours. lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 202v

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1. Salva nos Domine vigilantes, custodi nos dor-

mientes ut vigilemus cum Christo, et requiesca-

mus in pace.

2. Cf. http://www.ottawa.ca/academic/arts/lfa/

activites/textes/leconte/lec20htm.htm (accessed

23.01.2007). The text is preserved in ms Français

1806, Bibliothèque nationale, Paris.

Brittany impaling those of France, i.e. the coat of arms of Jeanne of France (fi g. 4).

This miniature must be considered the key to the identifi cation of the fi rst owner

of the manuscript, Jeanne of France, apart from being a very early example of a

minia ture where the owner’s coats of arms are present on a pall.

The fi rst portrait appears on f.165v (fi g. 1), at the opening of text extracts from

the Mass. These extracts are accompanied by pedagogical guidelines written in

French, beginning ‘Quant tu te coucheras tu diras se qui sensuit’, i.e. the antiphon

from Sunday Compline1. The following text gives instructions for what to say when

leaving home, passing by the cemetery, and what to say throughout the celebra-

tion of the Mass. The main scene is a Celebration of the Mass, set within a church:

a priest, wearing a blue gown, reads from the Bible, while two clergymen, also in blue

gowns, hold a candle and a torch, respectively. Four adjutants are singing, gathered

around an open book placed on a stall. Eight persons populate the fl oor in front

of the altar; Jeanne of France, wearing a red dress with ermine, folds her hands;

three ladies in waiting, two are reading, seated, one is praying; four men, dressed

in cloths for the nobility, three of them fold their hands, the last one carry an open

book in his hands. The latter might be Jeanne’s husband, the others the husband’s

attendants. In the surrounding roundels, the same princess is depicted in her daily

routines: being dressed by her attendants, going to church, at confession, at her

private devotions, when receiving communion, and when retiring.

Portraits in manuscripts are most frequently found at the Matins of the Hours of the

Virgin, or prefacing the ‘Obsecro te’ or the ‘O Intemerata’. The donor or the owner,

then, is seen at prayer in front of or next to an Annunciation (Matins), a Virgin and

Child (‘Obsecro te’) or a Pietà (‘O Intemerata’). The Lamoignon Hours has a portrait

prefacing the ‘O Intemerata’ on f.202v (Fig. 2). Jeanne of France is shown at prayer,

standing in front of an altar, upon which there is an open book. She is dressed in a

blue dress with a white collar, and her hair is nicely ornamented with fl owers. She is

accompanied by two reading women; one is dressed in a green dress and with the

hair ornamented like Jeanne – a daughter? – The other wears a pink dress of a more

modest look and her hair is covered by a white headgear – a lady in waiting? The

surrounding architecture is that of a church or a (private) chapel, limited by an arcade

and a drapery to the left of the women, and an ambulatorium to the right.

There are fi ve border medallions spread among the fl ower garlands and birds in the

margins, all of them with scenes from story XVIII of the Miracles de Notre Dame, writ-

ten by Jean le Conte at the end of the XIV century, entitled De l’enfant juif que son

pere mist en une fornaise, que la Virge Marie saulva2. In the medallion in the upper

right corner of the folio, three children are kneeling around a communion table inside

a church, and a priest is about to celebrate the communion with them. In the medal-

lion below, a Jewish (indicated as such because of his headgear) man – the father –

puts one of the children from the scene above – the one dressed in red – in an oven.

To the left in the bas-de-page, in the third medallion, three adults save the child from

the fi re. To the right, the father is being caught by the Christians, and in the upper

left corner of the page, in the last medallion, the Jewish father is put inside the oven.

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The reading and possession of books, probably Books of Hours, among the three

women on f. 202v testify to a wish among the nobility to be associated with a cer-

tain knowledge of the written word, and as such also with the word incarnate, the

divine. Jeanne is the only one who gazes upwards, to a representation of the Virgin

and Child, surrounded by St Paul and St Peter and other male saints on their right

side and St Catherine and other female saints on their left, and can be understood

as a visualization of the intercessors of the prayer(s) Jeanne is about to say. This

owner portrait visualizes both the practice of devout prayer and its goal: direct com-

munication with the divine (Smith 2006, 91).

The story of the Jewish boy, with its opposites between ‘good’ (the child, the Chris-

tians) and ‘bad’ (the Jewish father), surely opens up for anti-Jewish sentiments.

Prefacing the Marian prayer ’O Intemerata’ (O, Immaculate Virgin), a prayer that is

addressing the Virgin – and St John the Evangelist – directly in especially urgent

tones 3, it could also be understood as a celebration of the Virgin’s omnipresence that

so miraculously saved this child from being burned alive. As the story of the Jewish

3. Be, at every hour and every moment of my

life, inside and outside me, my steadfast guar-

dians and pious intercessors before God.

fig.3 jeanne of france at prayer – quicumque vult, bedford master, lamoignon hours, lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 286v

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boy is, to the best of my knowledge, not included in any other book of hours, I allow

me to compare the roundels with two altar frontals depicting the scene, namely the

so called Årdal II-frontal (Oslo, Historisk Museum) and the frontal from Vallbona de

los Monges (Barcelona, Museu national d’art de Catalunya). In the Årdal II-frontal,

the story has been interpreted as a Marian miracle, and Mary saving the boy has

been seen as a parallel to the way Christ is saving the souls in Limbo (Wickström

2000, 46). In the Spanish frontal, the story is interpreted as an expression of the anti-

Jewish sentiments found in region around in the middle of the fourteenth century

(Carbonell and Sureda 1997, 389-392). However the interpretation, the inclusion of

the story together with an owner portrait is rather unique, since, as Roger Wieck has

noted, “the main theme of the ‘O Intemerata’ is the faithfulness of the Virgin and

John the Evangelist at the Crucifi xion, a Lamentation often illustrates this prayer”

(Wieck 2001, 498). Being a miracle invoking the Virgin Mary, it is strange that the

Virgin herself is not represented in any of the roundels. Even more so since the story

is included in a book of hours and that they are placed in front of a Marian prayer.

fig.4 office of the dead, bedford master, lamoignon hours, lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 286v

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The last full page miniature in the manuscript, is found on f.286v, in front of the

Athanasian Creed, also known as Quicumque vult, one of the four authoritative

creeds of the Catholic Church, recited at the offi ce of Prime on Sundays (fi g. 3).

Two women are seen praying; Jeanne, dressed in a red dress with ermine, is kneel-

ing on a prie dieu with an open book before an altar, directing her prayers to the

Trinity, depicted above her. In this miniature, however, her hair is covered with a

white veil, not arranged with fl owers. To the left, a seated lady in waiting, dressed

in green, is reading, to the right, a white dog. Female fi gures are representing the

four Cardinal Virtues, Prudence, Temperance, Justice and Fortitude, and the Theo-

logical Virtues Hope, Charity and Faith, thus comprising a complete pantheon of

the virtues essential for all aspects of secular and religious life. Depicting the owner

of the manuscript praying to the Trinity is - as in the O Intemerata – a direct visual

translation of the creed.4

Because Books of hours were private artefacts, made for silent or low speaking

recitation of prayers in privacy, the existence of owner portraits might be surpris-

ing. The lack of public display made them somewhat redundant. On the other hand,

having a prescribed content, the adding of owner portraits, coats of arms and cer-

tain iconographical programmes in books of hours seem to have been the best way

to personalise them5. In her book Art, Identity and Devotion in Fourteenth Century

England. Three Women and their Books of Hours, Kathryn A. Smith analysed three

books of hours made for women discovering that

Through the inclusion of donor and owner portraits, and carefully cho-

sen or edited narrative or devotional imagery, sacred history could be

reconstituted to refl ect the book owner’s point of view. In their unique

pictorial and textual programmes the three books give evidence of the

capacity of the illustrated devotional book to personalize sacred time

for its user, by integrating family history and notions of individual and

familial identity into the Christian salvation history that unfolded on its

pages (Smith 2003, 57-58).

Margaret Manion has also carried out research on books of hours and women. In

her essay Women, Art and Devotion, Three French Fourteenth Century Royal Prayer

Books, she found that the iconography of these three horae “indicate that the wom-

en for whom they were made were trained in a number of different kinds of prayer;

and were expected to devote considerable time to its practice” (Manion 1998, 39).

She linked the iconography to the three principles for a successful vocal prayer put

forward by Durand de Champagne in his Speculum dominarum, written at the end of

the XIII century, i.e. to pay attention to the words so that they are recited correctly, to

pay attention to the sense of what one is saying, and to think on the object of one’s

prayer. The latter is simultaneously the easiest and the most meritorious of these

principles, and present in the three horae in their “frequent depiction of the donors

shown consistently attentive before the objects of their devotion” (Manion 1998, 40).

4. Cf. the line “Fides autem catholica haec est:

ut Deum in Trinitate, et Trinitatem in unitate ve-

neremur”.

5. For further discussions of images/ coats of

arms revealing the identity of the patron, see

Nash 1999, 73ff. and Sandgren 2002, 101-103.

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 97 6

Although the research of Manion and Smith is carried out on 14th century books

of hours, their fi ndings are still valid for books of hours made a century later, as

the Lamoignon Hours. The three portraits of Jeanne of France/ Isabelle of Brittany

praying are not ‘frequent’ – there are manuscripts, like the Savoy Hours made in

the 1330’s for Blanche of Burgundy, which may have had as many as eighty owner

portraits – but they are depicted ‘consistently attentive before the objects of their

devotion’. Besides, they are all accompanied by border programmes that are quite

insisting in guiding the female reader to lead a righteous life: the faithful woman

who submits herself to God throughout the day, a miracle of the best female model

of them all, the Virgin Mary, and personifi cations of the seven cardinal virtues.

Besides, in all the portraits, the princess is accompanied by a small dog, a Fido,

symbol of faithfulness. Being portrayed without her husband, the coats of arms

add a commemoration of the female owner’s family all the same, since a coat of

arms of a married woman always points outside the woman herself. Unless she was

an heiress, the married medieval woman would not have any proper coat of arms,

but quartering the ones from her father and her husband, e.g. the Duke John IV of

Brittany and Count Guy XIV Laval.

We can only guess what happened to the manuscript when Isabelle died in 1444. Did

she want it to pass to one of her own daughters? She had three: Yolande, Jeanne

and Louise6. But then, why would not the new owner modify the coat of arms? If

her oldest daughter Yolande was the one who inherited the book, the question can

be answered by heraldry custom. Yolande is not recorded to have married, and as an

unmarried woman she would normally bear upon a lozenge the paternal arms – or

here, her maternal arms. But why were the coats of arms not altered again? Was the

manuscript hidden for some time? Or forgotten? Or did it simply go out of fashion?

Unfortunately, the manuscripts itself does not give any answers or clues apart from

Lamoignon’s L on f.3.

It should be added as an important fi nal note that the three portraits discussed here

are not an extraordinary feature of the Lamoignon Hours. Similar pictures of women

at prayer are frequently shown in books of hours. In the oeuvre of the Bedford

Master, they appear both in the Sobieski Hours and the Bedford Hours, although

not in the Vienna Hours. In the Lamoignon Hours they personalize the manuscript

together with the adding of coat of arms and the curious inclusion of the miracle

in Bourges. Documentary evidence of most medieval women’s lives is scarce. This

fact has led Kathryn Smith to observe that books of hours “do more than supple-

ment and enrich the sparse information available of their [female] owners: they are

the most tangible and substantial evidence of their owners’ very existence” (Smith

2003, 11). Whoever the future owners of the manuscript were, they would, as we,

practically never have any notion of neither Jeanne of France nor Isabelle of Brit-

tany, where it not for the portraits in their book of hours, and for the fact that the

coat of arms was only altered once. •

6. The fi ve children of Isabelle of Brittany and

Guy of Laval: Yolande (1431-1487), Jeanne

(1433-1498), François (1435-1500), Jean de

Laval (1437-1476) and Louise (1441-1480).

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-354.

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Liturgy of the Medieval Church. Kalamazoo: Medieval Institute Publication, Western

Michigan University, 473-513.

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Resumo

A constituição de bibliotecas privadas a partir de D. João I irá, depois, relacionar-se

com a importância da corte da Borgonha, como centro artístico de Filipe o Bom e

de Isabel de Portugal.

Neste contexto, assume alguma relevância o caso de dois manuscritos, que, embora

atribuídos a ateliês diferentes, possuem relações intrínsecas entre si: o Livro de Horas

de D. Duarte (DGARQ/Torre do Tombo, C.F.140), atribuído ao ateliê do Mestre aux

rinceaux d’or, a operar na região de Bruges e datado de inícios do século XV e o Livro

de Horas dito de “Joseph Bonaparte” (BNF, Paris, manuscrito lat. 10538), atribuído

por Gabrielle Bartz ao ateliê do Mestre de Mazarine, situado na região de Paris e

datado de ca. de 1415. A sua procedência é confi rmada, designadamente, pelos

calendários neles contidos. No entanto, a análise de certas imagens, entre as quais

as do Ofício dos Mortos e de Pentecostes, revestiu-se de uma importância decisiva,

pois permitiu-nos evidenciar este conjunto, assim defi nido pelas semelhanças que

apresentam, constituindo o seu estudo o cerne deste artigo. •

Abstract

The creation of private libraries from the time of King João I of Portugal would be

later related to the importance of the Burgundy court as an artistic centre of Philippe

le Bon and Isabel of Portugal. In the referred context it would seem essential to

discuss the particular case of two manuscripts which, despite their attribution to

different workshops, are intrinsically linked: the Book of Hours of King Duarte I of

Portugal (DGARQ/Torre do Tombo, C.F.140), dated between 1401 and 1433 and

attributed to the workshop of the Maître aux rinceaux d’or, active in the Bruges

area, and the so-called “Joseph Bonaparte” Book of Hours (BnF Paris, manuscript

lat. 10538), attributed by Gabrielle Bartz to the Maître de Mazarine workshop, in the

Paris region, and dated c. 1415. While the different origins of these manuscripts are

confi rmed by their respective calendars, the study of their Offi ce for the Dead and

Pentecost illuminations is of particular interest as it reveals a connection between

them by bringing to light the similarities which constitute the basis of this article. •

palavras-chave

arte francesaséculo xviluminuralivros de horas

key-words

french artfifteenth centuryilluminationbooks of hours

A autora agradece ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, nas pessoas do Director-Geral, Dr. Silves-

tre Lacerda, e das Dr.as Catarina Teixeira de Figueiredo e Maria Teresa Araújo, bem como à Biblioteca

Nacional de França todo o apoio no estudo destes manuscritos.

Agradecimentos que são extensíveis aos professores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

da Universidade Nova de Lisboa, Doutores Adelaide Miranda, José Custódio Vieira da Silva e Carlos

Moura, e às especialistas do estudo da iluminura, as investigadoras Patricia Stirnemann e Claudia Ra-

bel do Institut de Recherche et d’Histoire des Textes / Centre National de la Recherche Scientifi que e

Marie-Thérèse Gousset da Biblioteca Nacional de França.

E ainda à FCT-MCTES pela bolsa de doutoramento (SFRH/BD/63965/2009), graças à qual tem sido

possível o desenvolvimento da sua investigação.

Page 79: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 7 9

ana lemosInstituto de Estudos Medievais

FCSH-UNL

o livro de horas ded. duarte e o ms. lat. 10538 (bnf, paris)as ligações com o ateliê do mestre de mazarine

Tendo em conta as ligações até agora averiguadas pela historiografia artística

sobre o Livro de Horas de D. Duarte (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lis-

boa, Portugal, C.F. 140) e o ms. lat. 10538 (Biblioteca Nacional de França, Paris),

impunha-se proceder ao seu estudo na tentativa de fixar as vias de circulação dos

modelos inerentes aos dois livros de horas tratados neste artigo. Isto, tendo em

conta as novidades resultantes da investigação que temos vindo a desenvolver

sobre a matéria1.

Num trabalho publicado há já bastantes anos sobre o ms. lat. 10538, dito das

Horas de José Bonaparte ou, mais adequadamente, das Horas do Duque da Bor-

gonha, Filipe o Bom, dizia Paul Durrieu (1914, 42) ter o mesmo pertencido a este

príncipe, o mais tardar no 1.º quartel do séc. XV. Atestam-no as suas armas, como

ainda um complemento de orações e algumas iluminuras.

Todos os autores subsequentes são unânimes quanto à presença do manuscrito

na biblioteca de Filipe o Bom, em 1419, à sua passagem por Espanha e ao

regres so a França, no séc. XIX, por intervenção de José Bonaparte, irmão do

imperador e rei daquele país entre 1808 e 1813. Quanto à encomenda2, é con-

siderada por alguns da iniciativa do próprio Filipe o Bom enquanto que, para

outros, ele foi apenas o proprietário da obra. O mesmo Filipe que, em 1419,

nela mandara colocar o seu emblema e acrescentar doze iluminuras, no estilo do

1. No que respeita à atribuição da autoria do Livro

de Horas de D. Duarte ao ateliê do Mestre aux

rinceaux d’or, detectámos recentemente novos

elementos comprovativos das ligações entre este

manuscrito e os do referido ateliê. São relevantes,

a tal propósito, as verifi cadas com um manuscrito

da Biblioteca da Universidade de Aberdeen (cota:

AUL MS 25) e com o Harley 2846, da British Li-

brary (Londres). Relativamente às semelhanças

existentes entre algumas iluminuras do Livro de

Horas de D. Duarte e as composições atribuídas

ao Mestre de Boucicaut, o trabalho levado a cabo

por Gabrielle Bartz na identifi cação do Mestre de

Mazarine, bem como os novos dados que tivemos

oportunidade de reunir, permitem lançar um novo

olhar sobre aquele Livro de Horas. Os resultados

desse estudo foram apresentados na nossa tese de

Mestrado defendida na FCSH-UNL em 2009, tra-

balho que tencionamos publicar muito em breve.

2. Sobre as circunstâncias que a envolveram,

existe uma controvérsia historiográfi ca, de al-

Page 80: Rha 7

o l i v r o d e h o r a s d e d . d u a r t e e o m s . l a t . 1 0 5 3 8 ( b n f, p a r i s )

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 98 0

grupo aux rinceaux d’or3, ilustrando, depois, cerca de 1430-40, os sufrágios e a nar-

rativa da Criação (fl .221v, 234v-3034) com as suas armas nas margens. Já em fi nais do

séc. XV, o manuscrito viria a ser completado por uma Missa de São Gregório (fl .304)5.

No tocante às iluminuras, Victor Leroquais admite revelarem as da parte mais antiga

(do fl .3 ao 231v6) um certo parentesco com as das horas do marechal Boucicaut e

as do manuscrito latino 1141. Parentesco, segundo o autor, denunciado por certos

pormenores típicos do ateliê, como os fundos de céus semeados de estrelas, mais

do que propriamente do conjunto das composições, acentuando, assim, o facto de

as poucas semelhanças entre os dois manuscritos não permitirem inferir uma origem

comum; quando muito, as pinturas seriam originárias do mesmo ateliê (Leroquais

1927, tomo I, 338-342). Maurits Smeyers (1998, 236), para quem as iluminuras da

parte original do manuscrito exerceram uma grande infl uência sobre a iluminura

fl amenga, atribui igualmente a execução a um artista do ateliê do Mestre de Bou-

cicaut7, datando-a de inícios de 1415.

Posteriormente, Gabrielle Bartz, na continuação da sua excelente análise, iria indivi-

dualizar duas personalidades neste ateliê com base no estudo do ms. 469 (Biblioteca

Mazarine, Paris), retirando parte do corpus de manuscritos atribuídos a este artista

e organizando um novo corpus, relativo a outra autoria, a do agora denominado

Mestre de Mazarine8. Christine Geisler Andrews9 dá-nos a saber que G. Bartz sugeriu

que este mestre poderia inicialmente ter trabalhado com Boucicaut, desenvolvendo

depois a sua própria forma de expressão. Mais do que procurar defi nir os aspectos

estilísticos que o distinguem, considera a mesma C. Andrews haver maior utilidade

na análise do resultado dos seus esforços de colaboração, uma vez que as evidências

apontam para que tenham trabalhado juntos. Em sentido oposto, François Avril realça

o facto de praticamente nunca se verifi car, num mesmo manuscrito, a intervenção

simultânea dos dois artistas, Boucicaut e Mazarine; ou de membros dos respecti-

vos ateliês e, destes, inclusive, raramente recorrerem aos mesmos colaboradores,

apontando para a existência de dois ateliês distintos um do outro, não obstante

as relações de estilo e composição constatadas entre ambos (F. Avril 1996, 316).

Chamando ainda a atenção para a clientela dos dois artistas, conclui ter sido a do

ateliê do Mestre de Mazarine predominantemente borgonhesa, dando como exemplo

desse laço privilegiado as iluminuras do Livre des Merveilles (BNF, Paris, ms. franc.

2810), reconhecidas como do estilo do Mestre de Boucicaut mas onde considera

prevalecente a corrente Mazarine (F. AVRIL 1996, 316).

Por outro lado, Millard Meiss10 havia já estabelecido uma ligação entre o ms. lat.

10538 e um Livro de Horas, conservado na Galeria Walters, em Baltimore (ms.260)11,

que faz parte da lista de manuscritos (G. Bartz 1999, 119-123) actualmente atribuídos

ao Mestre de Mazarine.

Com o catálogo da Exposição “Paris.1400. Les arts sous Charles VI”12 acrescentaram-

-se, depois, algumas informações adicionais13 sobre as Horas ditas de José Bonaparte,

datadas de 141514, mencionando as construções complexas desenvolvidas pelo Mes-

tre Mazarine, mesmo nas cenas de escala mais reduzida e a adopção, por parte deste,

de um elemento estrutural da moldura que delimita a composição, onde deparamos

gumas décadas, que se estendeu até aos nossos

dias. O estado actual da questão e as informa-

ções sobre ela obtidas podem ser recapituladas

do modo seguinte: em 1927, Victor Leroquais

(Leroquais 1927, tomo I, 338) ao elaborar a fi -

cha do ms. lat. 10538 aludia indiferentemente

às duas denominações – “Heures de Philippe le

Bon” ou “dites Heures de Joseph Bonaparte”, re-

lativas ao primeiro e último proprietário conheci-

dos. Sistematizando a cronologia dos seus deten-

tores, sabemos que, em 1419, o manuscrito fazia

parte da biblioteca do duque de Borgonha, Filipe

o Bom, tendo, mais tarde, passado para as colec-

ções da coroa espanhola, por via desconhecida

(Sterling 1987, vol. I, 395). A marca de posse de

Filipe V encontra-se, depois, nas armas gravadas

na encadernação. Segundo uma nota do fl .3, o

volume teria ainda sido inteiramente revisto por

um representante do Santo Ofício, antes de se

transferir para as mãos de uma proprietária cujo

nome se perdeu (Leroquais, ob. cit., 340). Até

que, fi nalmente, no início do séc. XIX, José Bo-

naparte o leva consigo, para França.

De acordo, ainda, com o mesmo Leroquais, o

manuscrito foi executado, na totalidade, ou pelo

menos concluído, para Filipe o Bom (ob. cit,

340). A presença do emblema ducal, o denomi-

nado “briquet de Bourgogne”, parecia confi rmar

tal asserção, segundo os dados do catálogo da

exposição de Bruxelas de 1959 (Le siècle d’or de

la miniature fl amande, Le mécénat de Philippe

le Bon. Bruxelas 1959, 29). Millard Meiss acres-

centa, por seu turno, que ele estava na posse do

duque de Borgonha ou, antes de 1419, quan-

do João Sem Medo ainda vivia, ou logo a seguir,

quando o seu fi lho, Filipe o Bom, tomou o poder,

data em que, muito provavelmente, as armas da

Borgonha ali teriam sido colocadas (Meiss 1968,

127-128). Em 1977, Sterling recorda o facto

do duque apreciar os artistas formados no ate-

liê de Boucicaut, a quem encomendara o Livre

des Merveilles du Monde (BNF, Paris, ms. franc.

2810) e muito possivelmente as Horas ditas de

José Bonaparte (Sterling 1977, 426). No entan-

to, em 1987 o mesmo autor regressa ao assunto

afi rmando desconhecer o destinatário do manus-

crito, o que invalidaria a denominação de “Heu-

res de Philippe le Bon”, já que o duque de Bor-

gonha acedera ao poder em 1419 (ob. cit., 1987,

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o l i v r o d e h o r a s d e d . d u a r t e e o m s . l a t . 1 0 5 3 8 ( b n f, p a r i s )

com um esquema análogo à serliana (fl s. 110v, 137v e 186). Dado relevante, que

muito nos interessa, na análise estilística comparativa com o Livro de Horas de

D. Duarte, como veremos adiante15.

A questão da circulação e disseminação dos modelos, abordada por F. Avril (226,

127-139), revela-se fundamental na importância do papel atribuído ao ms. lat.

1053816. Segundo o autor, o livro terá viajado muito cedo de Paris para a Flandres,

tendo servido como modelo nos Países-Baixos meridionais onde “um grande número

de iluminuras deste manuscrito foram visivelmente transpostas por meio de um traço

profundo, executado a ponta seca, ao longo do contorno das personagens bem

como de outros elementos das iluminuras” (F. Avril 2006, 128). Na análise de uma

das suas composições, a de São Lucas (fl .17)17, chama a atenção para a cópia que

considera ser a mais fi el, ou seja, a atribuída ao Mestre de Guillebert de Metz18, a

única que respeita a forma arquitectónica do modelo e mantém o formato quadrado

da iluminura, delimitada por uma moldura interrompida por um arco, no seu lado

superior. Para F. Avril, esta forma específi ca de enquadramento era bastante apre-

ciada pelo Mestre de Mazarine que terá, muito provavelmente, contribuído para a

sua disseminação na região parisiense, nos anos de 1410 (F. Avril 2006, 128). No

manuscrito de D. Duarte, embora o formato de todas as iluminuras seja rectan-

gular, a moldura que delimita a composição é, igualmente, interrompida por um

arco, no seu lado superior, elemento este que não se repete nos outros exemplos

de cópias de composições do ms. lat. 10538, apontados pelo autor19. No entanto,

o tipo de enquadramento das iluminuras do nosso manuscrito assemelha-se mais,

quanto ao formato, ao de algumas iluminuras atribuídas ao grupo aux rinceaux d’or.

O percurso de uma composição de um livro de horas pode, assim, efectuar-se por

contacto directo entre dois manuscritos, como é o caso, apontado por F. Avril, entre

as Horas Beck e o ms. lat. 10538, em que o artista do primeiro copiou literalmente

algumas das composições do segundo, mas também resultar de contacto indirecto,

por via de uma compilação reunida pelo Mestre de Mazarine ou de um livro de

modelos derivado dessa mesma compilação (F. Avril 2006, 128).

Dominique Vanwijnsberghe (2007, 244) avança que o conhecimento das composições

do ms. lat. 10538, retomadas nas Horas de Beck, poder ter ocorrido através da corte

da Borgonha que, ocasionalmente, empregava elementos do grupo de Metz.

Novas ligações estilísticas e iconográfi cas entre algumas iluminuras do ms. lat. 10538 e do

Livro de Horas de D. Duarte podem agora ser consideradas, como de seguida trataremos.

A análise das iluminuras que representam o Pentecostes (Livro de Horas de D. Duarte,

fl .77v; ms. lat. 10538, fl .110v) e as do Ofício dos Defuntos (Livro de Horas de D. Duarte,

fl .323v; ms. lat. 10538, fl .137v) é, neste caso, especialmente importante ao destacar

as semelhanças presentes nos dois manuscritos. Designadamente no que respeita aos

calendários, colocando-os, no entanto, em duas regiões diferentes: o de D. Duarte com

um calendário da região da Flandres e o ms. lat. 10538 com um calendário parisiense.

Como, ainda, o facto das iluminuras do ms. lat. 10538 se encontrarem inseridas

no espaço do fólio sobre um texto de quatro ou cinco linhas, contrariamente às do

manuscrito de D. Duarte, executadas no verso de um fólio deixado em branco, com

vol.I, 395). François Avril, Marie-Thérèse Gous-

set e outros (1996, 316), referem que as Horas

de Bonaparte passaram para as mãos de Filipe o

Bom desde muito cedo, provavelmente por he-

rança. Em 2004, a fi cha no catálogo da exposi-

ção de Paris informa que a encomenda era sem

dúvida borgonhesa, embora a leitura do fl .200,

com uma bannière ostentando as armas de Fran-

ça, venha sugerir a ligação entre o destinatário

do manuscrito e Carlos VI. Reconhecendo, em-

bora, a impossibilidade da confi rmação do facto,

interroga-se, o respectivo autor, se o rei seria o

ministre para o qual o texto apela à misericórdia

divina (fl .134-135v) ou se nele teremos de ver,

sobretudo, um eclesiástico (Paris.1400. Les arts

sous Charles VI. Paris. 2004, 286).

3. Ponto aceite por praticamente todos os histo-

riadores que se debruçaram sobre o estudo des-

te manuscrito. À excepção de M. Meiss (ob. cit,

127), para quem as iluminuras mais tardias foram

executadas por um artista fl amengo, trabalhando

para Filipe o Bom, sem nos propor qualquer nome.

4. Leroquais (1927, tomo I, 342), considera que

as iluminuras dos fólios, mandados acrescentar

para Filipe o Bom, são de qualidade inferior,

tal como Sterling (ob. cit., 1987, vol.I, 395),

que também as avalia como de qualidade me-

díocre. Isto em oposição ao catálogo de 1959,

onde se defende serem elas as mais requinta-

das de todas as que se conservaram, não obs-

tante as suas modestas dimensões (ob. cit., 29).

Dominique Vanwijnsberghe (2007, 97, n.363)

esclarece ainda que o programa iconográfi-

co do manuscrito foi completado por um ilu-

minador fl amengo do grupo aux rinceaux d’or,

a pedido de Filipe o Bom, ca. de 1420-1430.

5. Paris.1400. Les arts sous Charles VI. Paris, Mu-

seu do Louvre, Fayard, 2004, 286.

6. M. Meiss (ob. cit., 128) indica igualmente o

fl .231v como sendo o último do manuscrito origi-

nal, ao qual foram acrescentados outros fólios no

tempo de Filipe o Bom “sometimes, especially in

the borders, imitating the earlier designs”. Dur-

rieu (ob. cit., 42) havia já mencionado a existên-

cia de iluminuras mandadas juntar pelo duque de

Borgonha sem, no entanto, especifi car concre-

tamente os fólios que constituíam o manuscrito

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fig.2 pentecostes, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.77v

emolduramento de página inteira. Interrompidos, superiormente, por um arco que

abarca parte da área fi gurativa, ampliando o respectivo campo, desenham estes

emolduramentos o conhecido esquema, mais tarde denominado motivo serliano,

um elemento associado ao Mestre de Mazarine (Paris 1400, 286). Boucicaut havia

sido considerado, por E. Panofsky, como o autor das longas perspectivas oblíquas,

aprofundadas com a multiplicação dos tramos, embora o exemplo da aplicação do

novo processo, como é sugerido pelo mesmo Panofsky, seja a representação do Ofício

dos Defuntos do ms. lat. 10538, agora atribuído ao Mestre de Mazarine.

Ora, D. Vanwijnsberghe (2007, 35) considera ser extremamente raro encontrar uma

cópia exacta de uma mesma composição, ainda que em artistas trabalhando em

cadeia como o grupo aux rinceaux d’or, sendo mais comum a representação de

motivos individualizados. No entanto, o ms. lat. 10538, recorde-se, é apontado como

um livro de modelos, indiciando as mencionadas iluminuras do Pentecostes e Ofício

dos Defuntos ter havido um contacto directo do iluminador do Livro de Horas de

D. Duarte com o próprio manuscrito.

A similitude entre as duas cenas é fl agrante, desde a concepção espacial da composi-

ção à arquitectura e à forma como os iluminadores vão dispor as respectivas fi guras,

embora subsistam pequenas variantes. Algumas delas são, no entanto, decorrentes

da área geométrica em que cada uma das composições se desenvolve: no manuscrito

de D. Duarte, de formato rectangular e no ms. lat. 10538 de formato quadrangular,

sendo o arco que interrompe a moldura superior, neste último, mais largo.

Na representação do Pentecostes (fig. 1 e 2), o iluminador desenha a mesma

estrutura arquitectónica mas, enquanto no manuscrito de D. Duarte um espaço

primitivo. Este autor limita-se, apenas, a referir

que o calendário é iluminado por 24 pequenas

imagens ao estilo do Mestre de Boucicaut e que,

entre as restantes iluminuras do livro de horas,

“45 sont de notre maître, dont 24 pour les Su-

ffrages des saints”.

7. A atribuição a Boucicaut resulta de uma no-

tícia dando conta de pesquisas em curso, reali-

zadas por Gabrielle Bartz (François Avril, Nicole

Reynaud 1993, 18), que tendem a distinguir duas

personalidades diferentes no ateliê deste Mestre.

O que implicou retirar do corpus de manuscri-

tos que lhe são atribuídos as Horas da Biblioteca

de Mazarine (ms. 469) e, por conseguinte, um

conjunto de outros manuscritos pertencentes ao

mesmo grupo, entre os quais as Horas da colec-

ção Corsini (Florença) e as Horas «dites de Jérôme

Bonaparte» (BNF, Paris, ms. lat. 10538) que põem

em causa a atribuição ao Mestre de Boucicaut.

8. Bartz 1999, 119-123. O Mestre de Mazarine,

assim designado por ter iluminado as Horas de

Mazarine (ms. 469), inclui-se na nova geração de

artistas que em Paris, em princípios do século XV,

contribuiu para um período de mudanças, visível

na concepção das obras produzidas.

9. «The Boucicaut Masters». In Gesta, vol.41,

n.º1, s.l. (2002), 29.

10. Este autor atribuiu a um assistente do Mestre

de Boucicaut “most of the original illumination”

do ms. Lat. 10538 (ob. cit., 127). O catálogo de

1959 (Le siècle d’or de la miniature fl amande,

Le mécénat de Philippe le Bon. Buxelas, Palácio

de Belas Artes, 1959, 29) havia já referido que

as iluminuras da parte primitiva do manuscrito

são de estilo parisiense, segundo a maneira do

Mestre de Boucicaut. Em 1953, Erwin Panofsky,

no seu livro sobre a pintura nos Países Baixos

(2003, 118) ao analisar uma das iluminuras do

ms. Lat. 10538, mais precisamente a composição

do Ofício dos Defuntos (fl .137v), atribui também

a sua execução ao Mestre de Boucicaut; como,

ainda, Sterling (1987, vol.I, 395) que considera

ter este artista contribuído com a maior parte das

composições, datando o manuscrito de 1417-18.

11. M. Meiss (ob. cit., 127-128) informa ter sido

Dorothy Miner a primeira a vislumbrar, em 1949, fig.1 pentecostes, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.110v.

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verdejante separa a moldura da arquitectura, o iluminador do ms. lat. 10538

coloca as bases das colunas junto à moldura inferior, criando um acesso directo

ao interior do edifício. Também neste último manuscrito o iluminador alarga o

campo visual elevando os três arcos e abrindo o espaço entre os arcos laterais,

ocupado por um muro baixo, no de D. Duarte. Aqui, o arco central encontra-se

à mesma altura do telhado, rasgado por águas-furtadas em diagonal nos dois

manuscritos; e, sob o arco que interrompe a moldura superior, um céu azul com

o sol no topo, de onde partem raios, transportando a Pomba, na direcção da

Virgem. O Mestre de Mazarine vai representar a cobertura dos arcos laterais,

bem como o arco central, sobreelevado, no espaço do arco que interrompe a

moldura superior; sobre o céu destaca-se igualmente o sol, mas os raios, que

partem em todas as direcções, fazem lembrar as paisagens dos irmãos Limbourg

e do Mestre de Boucicaut.

O formato quadrangular da cena do Pentecostes no ms. lat. 10538 possibilitou tam-

bém ao artista mostrar o apoio exterior dos arcos, com colunas adossadas ao pano

de muro ainda visível, o que deixou de ser viável no de D. Duarte, em resultado do

traçado rectangular da moldura.

Tanto a cobertura interior do edifício, como as janelas que rasgam os muros laterais e a

abertura em arco, no eixo central da composição, é muito semelhante nos dois fólios.

Entre os principais intervenientes da história sagrada, a Virgem ocupa, naturalmente,

uma posição de destaque. Vemo-la, assim, sentada em ambas as composições, sobre

o eixo central, de túnica e manto azuis, cruzando as mãos sobre o peito. Com a

particularidade de, no manuscrito de D. Duarte, virar as palmas das mãos para o

espectador, o que não deixa de constituir um gesto relativamente pouco frequente.

Já os Apóstolos se encontram dispostos lateralmente, seis de cada lado. Os do

primeiro plano, sentados em faldistórios, de formato e cor idênticos, assumem

uma postura muito semelhante, de mãos postas e cabeça erguida, embora as cores

dos panejamentos sejam diferentes. Enquanto o da esquerda apresenta algumas

semelhanças no tratamento da barba e do cabelo e o da direita no perfi l aquilino do

nariz, fi cam por aqui as afi nidades entre estas fi guras, uma vez que cada artista vai

desenhar o rosto dos Apóstolos de forma particular.

No manuscrito de D. Duarte, as fi guras dispõem-se em planos escalonados, o que

permitiu ao iluminador individualizar o rosto de cada um deles pelo traçado e a cor

do cabelo e da barba. Pelo contrário, o Mestre de Mazarine, ao colocar as fi guras

praticamente ao mesmo nível, desenha apenas o rosto de sete dos Apóstolos (três

à esquerda e quatro à direita), sendo a presença dos restantes visível pela auréola

e parte da testa ou do cabelo.

O artista do manuscrito de D. Duarte demonstra maior apuro nos rostos, tanto dos

Apóstolos como da Virgem, assim como nas mãos, com dedos mais longos e fi nos,

bem como na forma dos panejamentos, com um toque pessoal no desenho das jóias

que prendem alguns dos mantos. Note-se igualmente o esforço do iluminador deste

manuscrito para individualizar e caracterizar a Pomba, ao esmiuçar as penas das asas

e traçar o olho, o bico e as patas.

as relações do ms. lat. 10538 com o livro de Ho-

ras (ms. 260) da Galeria Walters, em Baltimore.

Para Meiss, o ms. lat. 10538 data de ca. de 1416.

12. Paris, Museu do Louvre, Fayard, 2004, 286.

13. São identifi cados dois artistas, trabalhando

em parceria, na qual um deles se distingue pelas

suas carnações verdes, fi guras delgadas e paisa-

gens pobres (Paris.1400. ob. cit. 286).

14. Data que M. Smeyers havia já apontado (ob.

cit., 236).

15. Fl.77v (Pentecostes) e fl .323v (O Ofício dos

Defuntos).

16. O autor (ob. cit., 2006, 127) estabelece a

distinção entre a simples utilização ocasional

de modelos no interior de um ateliê, ou no seio

de um determinado meio artístico, e a circula-

ção prolongada de modelos, cujas cópias teste-

munham o sucesso prolongado de determinada

composição, tanto no espaço como no tempo,

neste último caso, menos frequente.

17. F. Avril 2006, 127-128. O autor consi-

dera o São Lucas (ms. lat. 10538, fl 17), uma

das iluminuras que terá servido de mode-

lo a uma série de cópias, visíveis em diver-

sos livros de horas executados em regiões

diferentes e alguns de datas mais tardias.

18. Antiga colecção privada Helmut Beck (Avril

2006, 127, nota 4); manuscrito actualmente de-

nominado Heures Beck, Tournai, ca. de 1425-

1435, Olim Londres, Sotheby’s, venda de 16 de

Junho de 1997, lote 23 (sobre o manuscrito ver

Vanwijnsberghe, ob. cit., 240-245 e 267-269).

Avril afi rma que o ms. lat. 10538 serviu directa-

mente de modelo a um grande número de compo-

sições do livro de horas da antiga colecção Helmut

Beck, dele literalmente copiadas (Ibidem, 128).

19. Bruges, ms. Rasn. O.v I, n.º 6, fl .7, datado de

ca. de 1430-1440 (São Petersburgo, Biblioteca

Nacional da Rússia, São Marcos no seu estúdio);

Angers, círculo de Jouvenel, ms.155 (1007bis),

fl .17, datado de ca. de 1450 (Grenoble, Bibliote-

ca Municipal, São Marcos no seu estúdio). Ambas

as iluminuras são delimitadas por uma moldura

rematada superiormente em arco.

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De salientar, no entanto, a diferença da paleta de cores de cada um dos artistas,

visível igualmente nas restantes iluminuras analisadas, com excepção de uma, como

diremos. Enquanto no Livro de Horas de D. Duarte as estruturas arquitectónicas des-

tas duas iluminuras são pintadas a rosa, uma das cores predominantes no manuscrito,

no do Mestre de Mazarine apenas a do Ofício dos Defuntos é pintada com essa cor,

sendo a outra a verde.

A estreita relação entre os dois manuscritos é, ainda, acentuada pela representa-

ção do Ofício dos Defuntos (fi g. 3 e 4). Novamente o iluminador do manuscrito de

D. Duarte cria um espaço entre a moldura e a abertura para a cena, preenchido aqui por

um pavimento de pequenos mosaicos. Nos dois manuscritos, as colunas onde os arcos

se apoiam assentam nos muros laterais mas, mais uma vez, o formato quadrangular da

moldura do ms. lat. 10538 vai possibilitar ao artista uma composição mais alargada,

desenhando por inteiro as aberturas laterais em arco, bem como parte do muro.

O formato da moldura condiciona, por outro lado, o traçado do cadeiral do coro,

mais largo e mais baixo no ms. lat. 10538, sendo visíveis os capitéis e o segmento

da coluna onde repousam as nervuras da abóbada. Na composição do de D. Duarte,

é mais estreito e de espaldar mais elevado, até à altura dos capitéis, reduzindo, con-

sequentemente, a visibilidade das colunas aos tramos mais distantes.

O desenho da cobertura abobadada difere igualmente, resultado do espaço onde as

duas composições se desenvolvem. Douradas no manuscrito de D. Duarte, as nervuras

demarcam-se com clareza, no ms. lat. 10538, de moldura saliente, embora com o

mesmo tom de rosa no fragmento observável da cobertura; composto apenas por uma

chave e, no segundo, por parte de outra. Ao invés, no nosso manuscrito, o iluminador

fig.4 ofício dos defuntos, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.323v

fig.3 ofício dos defuntos, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.137v

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tem campo sufi ciente para desenhar três das chaves, mostrando uma porção mais

ampla da abóbada. As aberturas em arco são protegidas por vitrais em ambas as com-

posições, do mesmo tipo dos patentes no Pentecostes do manuscrito de D. Duarte.

Em ambos os manuscritos, o catafalco, a preto, colocado obliquamente no eixo

central da composição, é encimado por círios acesos, acompanhados de brasões no

ms. lat. 10538. Neste último, o féretro encontra-se ainda coberto por um tecido

azul com duas faixas a vermelho, uma vertical e outra horizontal. No de D. Duarte

ele surge a preto, com motivos ornamentais20 a vermelho no topo. Em número de

quatro, os candelabros dispõem-se com as velas acesas, no primeiro plano das duas

composições embora, no do Mestre de Mazarine, apenas três se mostrem alinhados

e o quarto recuado relativamente aos primeiros.

Um pormenor interessante é o facto de, nestes dois manuscritos, o altar se deslocar

para a direita, ocupando nos atribuídos ao Mestre de Mazarine21 o eixo central da

composição, lugar privilegiado da convergência visual.

A disposição das fi guras é muito semelhante, ainda que em menor número no manus-

crito da Biblioteca Nacional de França. As personagens enlutadas, vestidas de negro

e encapuzadas, distribuem-se em ambos os manuscritos à direita e à esquerda, no

primeiro plano da composição; igualmente à esquerda, face a um atril com um livro

aberto, temos um grupo de monges cantores, tonsurados.

Subsistem, no entanto, diferenças notórias, distinguindo-se o artista do de

D. Duarte pela expressividade das formas e o dinamismo das atitudes das suas fi guras,

nomeadamente os monges, que o desenho da boca capta no momento do canto,

enquanto o iluminador do ms. lat. 10538 se alheia da individualização dos rostos dos

participantes do Ofício dos Defuntos. Neste manuscrito, é extremamente curiosa a

fi gura do monge tonsurado diante do atril, de rosto liso sem marcação dos olhos e

da boca, igual à do de D. Duarte, inacabado, talvez, neste último, tendo em conta

a qualidade do desenho dos rostos das restantes fi guras.

A semelhança entre composições do ms. lat. 10538 e o livro de Horas de D. Duarte

não é, de modo algum, circunstancial. Duas outras, em posição invertida, levam-nos

a crer na utilização de um modelo a partir do qual o artista liberta a sua criatividade:

São Tiago (Livro de Horas de D. Duarte, fl .22v; ms. lat. 10538, fl .206v) e São Jorge

(Livro de Horas de D. Duarte, fl .36v; ms. lat. 10538, fl .299).

Virada para a esquerda no ms. lat. 10538 (fig. 6) e na direcção oposta no de

D. Duarte (fig. 5), a figura de São Tiago encontra-se ladeada de rochedos e

árvores, com uma minúscula folhagem amarela. O fundo sobre o qual se recorta

encaminha-nos para a identifi cação do ateliê a que cada manuscrito é atribuído:

o de D. Duarte, ornado de fi nos rinceaux d’or, para o do grupo com o mesmo nome;

o do ms. lat. 10538, com os enrolamentos de folhagens a dourado, para o ateliê de

Mazarine, onde estes motivos estão também presentes.

No topo da iluminura, sobre um céu azul, vemos um Deus Pai, de olhar dirigido

para baixo, fi gura também invertida, com a auréola cruciforme e as mãos erguidas,

rodeado de serafi ns, mais numerosos que no manuscrito do Mestre de Mazarine.

Nesta última versão, o artista omite os raios dourados, incluídos no de D. Duarte.

20. Não identifi cados.

21. Livro de Horas de Corsini, Florença (Bartz,

ob. cit., 150, n.º 30); ms. 469, Biblioteca Maza-

rine, fl .150.

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A fi gura do santo, sempre na condição de peregrino nos dois manuscritos, lendo um

livro, com o manto, o chapéu, o bordão e a sacola, apresenta algumas diferenças,

em particular na paleta de cores.

Note-se que algumas dessas diferenças relacionam ambas as fi guras com uma outra,

também de São Tiago, de um livro de horas atribuído ao Mestre de Boucicaut22. No

manuscrito de D. Duarte, o santo segura o livro aberto com as mãos, apoiando-se no

bordão de peregrino, enquanto no ms. lat. 10538 o livro está na mão esquerda e o

bastão na direita. O bastão do São Tiago do nosso manuscrito assemelha-se mais ao

do Mestre de Boucicaut, embora com mais anéis. Saliente-se igualmente, na compo-

sição deste último, a existência de dois pormenores iconográfi cos que nos sugerem a

possibilidade de o iluminador do Livro de Horas de D. Duarte ter estado em contacto

com modelos deste ateliê: a presença de oliveiras23, bem como um pequeno coelho,

repetido também na representação de São Francisco do nosso manuscrito (fl .26v) 24.

Ao contrário, porém, do São Tiago do manuscrito de D. Duarte, o do ms. lat. 10538

está descalço (como o do ms.2), apesar de colocar o pé direito numa posição muito

semelhante, havendo, independentemente disso, um pormenor curioso a aproximá-

-los: o acessório que pende por baixo do manto do santo no ms.2 e que surge na

continuidade da barba no do Mestre de Mazarine.

A representação de São Jorge (fi g. 7 e 8) insinua novamente o recurso a um mo-

delo, o que nos obriga a considerar também a relação com o mesmo santo do

manuscrito de Aberdeen25. No caso do ms. lat. 10538, Leroquais identifi ca este

fólio como sendo de uma outra mão, inserindo-o num conjunto de seis iluminu-

ras26. Curiosamente, cinco dessas iluminuras (dois santos e três santas), colocam-se

22. Ms.2, Livro de Horas do Marechal de Bouci-

caut, fl .18v (Museu Jacquemart-André, Paris).

23. A representação de oliveiras, tais como as

que podemos observar na iluminura alusiva a

São João Baptista, no manuscrito de D. Duarte,

revela-se um motivo iconográfi co raro, na medida

em que não encontramos mais nenhum exemplo

no conjunto de iluminuras a que tivemos acesso.

No entanto, temos ramos de oliveira no bico da

pomba que anuncia a Noé o fi m do Dilúvio e na

Entrada triunfal de Cristo em Jerusalém; e a ár-

vore, na representação do Jardim do Horto e na

Ascensão de Cristo, que teve lugar no Monte das

Oliveiras. Mencionada em diversas passagens do

Antigo e do Novo Testamento, o iluminador po-

derá ter querido reforçar a ligação entre os dois

Testamentos transmitida pela cena em questão.

Na iluminura representando São Tiago, no livro

de horas do Marechal de Boucicaut (Museu Jac-

quemart-André, Paris, Ms.2, fl .18) podemos ob-

servar a representação de duas árvores a ladear

a fi gura do santo, muito semelhantes às que sur-

gem no nosso manuscrito, embora apresentem

uma folhagem mais densa.

24. Na representação do santo (fl .26v) o ilumina-

dor coloca, à direita, um coelho a sair da toca.

25. Aberdeen, Biblioteca da Universidade, Burnet

Psalter, AUL MS 25.

26. Ob. cit., 1927, tomo I, 338. V. Leroquais

considera como sendo de uma outra mão os se-

guintes fólios: São Jorge (fl .299), São Sebastião

(fl .300), Santa Bárbara (fl .301), Santa Apolónia

(fl.302), Santa Avia (fl.303) e a Missa de São

Gregório (fl .304). Nas diligências que efectuámos

na Biblioteca Nacional de França tivemos a opor-

tunidade de consultar o original, constatando

que o fl .304, o último do manuscrito, representa

uma Deposição de Cristo no túmulo, iluminura

de feitura mais tardia, já renascentista, delimita-

da por uma moldura rectangular, de página in-

teira, ocupando toda a largura do fólio e com as

margens superior e inferior deixadas em branco.

Não encontramos explicação para a ocorrência.

fig.5 são tiago, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.22v

fig.6 são tiago, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.206v

fig.7 são jorge, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.36v

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sequencialmente entre os fólios 299 e 303, inseridas em molduras coroadas por arco

abatido e, à excepção da que representa São Jorge, os restantes aparecem sobre um

fundo vermelho ornado a rinceaux d’or, bastante análogo ao do Livro de Horas de

D. Duarte. Para M. Meiss (1968, 128) o manuscrito original termina no fl .231v, per-

tencendo os restantes, nomeadamente o do São Jorge, ao período de Filipe o Bom27.

27. Não podemos esquecer que o ms. lat. 10538

se encontrava, em 1419, na posse do duque.

fig.8 são jorge, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.299

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Nas duas composições a paisagem é estilizada, havendo as mesmas folhagens a

amarelo pontuando os espaços verdejantes e as árvores. O santo, de armadura com-

pleta (com um turbante no lugar do elmo no ms. lat. 10538; montado a cavalo, sem

escudo, no de D. Duarte) empunha a lança com que trespassa a garganta do dragão;

o cavalo, apoiado nas patas traseiras empina as dianteiras, numa posição de ataque.

Cavaleiro e cavalo adoptam pois, nos dois fólios, uma atitude muito semelhante, dis-

tinta da verifi cada no manuscrito de Aberdeen, onde o iluminador coloca o animal em

posição de passo e focinho virado para o lado contrário ao do dragão. O artista do

manuscrito de D. Duarte, mais uma vez, denota grande qualidade artística na exe-

cução do quadrúpede, de anatomia excelente, onde sobressai o realismo dos cascos,

mais intenso do que os do cavalo do ms. lat. 10538. Os dois cavaleiros, sobre a sela

de arção elevado e pés apoiados nos estribos, têm as mãos livres para fi rmar a lança

e carregar sobre o dragão, não obstante a difi culdade do iluminador do manuscrito

do Mestre de Mazarine em desenhar a inserção do pé no estribo, reproduzindo-a

numa posição anatomicamente impossível. Problema habilmente resolvido pelo de

D. Duarte, mais convincente graças à implantação das esporas de estrelas.

Já a fi gura do dragão difere de modo substancial, em resultado da inventiva de cada

um dos iluminadores. No de D. Duarte ele é de maior porte e o olho demarcado a

vermelho transmite uma certa ferocidade. No entanto, não tem as asas que lhe são

características nas mitologias e lendas, como o do ms. lat. 10538.

Por seu turno, a princesa assemelha-se bastante nos três manuscritos mencionados,

vestida como ditava a moda da época, deslocada para a esquerda nos de D. Duarte

e de Aberdeen, e para a direita no do Mestre de Mazarine, sobre a colina, levando

um pequeno cão pela trela. Os seus gestos diferem em cada um deles, mas os ilu-

minadores do manuscrito de Aberdeen e do ms. lat. 10538 recorreram à mesma

paleta de cores para o seu vestuário: túnica verde e sobreveste vermelha, presa por

um cinto abaixo do peito, com mangas partidas, forradas a arminho. Mais uma vez

constatamos a qualidade do desenho no manuscrito de D. Duarte, no tratamento do

rosto, das mãos e na própria silhueta em “S”, da princesa, sendo notória a diferença

em relação ao ms. lat. 10538, onde deparamos com uma cabeça bastante alongada,

de proporções exageradas relativamente ao tronco.

Destas três composições apenas a do Livro de Horas de D. Duarte e a do Mestre de

Mazarine incluem o castelo com as fi guras do rei e da rainha, pois o iluminador do

manuscrito de Aberdeen, tendo em conta o campo fi gurativo das representações,

não tem possibilidade de desenvolver os planos mais recuados28. A construção do

castelo reveste algumas particularidades: no de D. Duarte, o iluminador desenha as

ameias com um merlão bem recortado nos ângulos, enquanto no ms. lat. 10538 o

parapeito das muralhas é corrido e o merlão substituído por uma pequena saliência.

Neste último, os muros são perfurados por duas aberturas rectas, a do primeiro nível

em capialço e uma água-furtada rasgando a cobertura da torre. Também as fi guras

do rei e da rainha, indiferentes, na composição deste manuscrito, mostram-se, no de

D. Duarte, ostensivamente debruçados sobre as ameias, atentos aos acontecimentos.

Outro elemento a atestar a qualidade da nossa composição é o céu atmosférico, pin-

28. No manuscrito de Aberdeen, o conjunto das

dezasseis iluminuras a que tivemos acesso apenas

em consulta on-line (http://www.abdn.ac.uk/

diss/heritage/collects/bps/), inserem-se, sem

excepção, no texto, podendo surgir representadas

tanto no verso como no recto do fólio. No de D.

Duarte, no ms. lat. 10538 e no Harley 2846 (Bri-

tish Library), as iluminuras são de página inteira.

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tado em gradações sucessivas pelo iluminador do manuscrito de D. Duarte. Num tom

mais claro junto à linha do horizonte, em sucessão de nuvens e neblinas, escurecendo

progressivamente para o alto; o que se distingue da uniformidade cromática, em tom

azul, praticada pelos iluminadores do ms. lat. 10530 e do de Aberdeen.

Não menos signifi cativa, é a harmonia da paleta de cores utilizada pelos iluminadores

do Livro de Horas de D. Duarte e do ms. lat. 10538. Desde as manchas vermelhas

aplicadas no vestido da princesa e no elemento esvoaçante do lambrequin, ao ver-

melho da língua e do sangue jorrando do dragão, como ainda na cruz da túnica do

santo e no escudo (do ms. lat. 10538). O rosa (Livro de Horas de D. Duarte) e o

violeta (ms. lat. 10538) são aplicados na sela e, no manuscrito de Mazarine, tam-

bém na manta que cobre parte do dorso do cavalo, enquanto os tons de castanho

servem no dragão e na lança. O azul, para além do céu, encontra-se na armadura

do São Jorge, reservando-se o branco para o cãozinho que a princesa conduz pela

trela e a túnica sobre a armadura do santo. O castelo apresenta o mesmo tom cinza

violetado, convertido em negro na cobertura (com excepção de uma das coberturas

no manuscrito de D. Duarte, que usa o dourado), sendo os equipamentos do cavalo

e cavaleiro púrpura e dourado no manuscrito de D. Duarte e violeta e dourado no

ms. lat. 10538. Aplicando, por último, o iluminador do nosso manuscrito um tom

cinzento no cavalo, em lugar do branco escolhido pelo do ms. lat. 10538.

Outro aspecto a considerar é o recurso a determinados pormenores, bem concretos,

muito semelhantes nos dois manuscritos, em que se incluem a coroa da Virgem no

Livro de Horas de D. Duarte29 e no ms. lat. 1053830, rematada por folha trilobada, e

a representação de uma fi gura feminina, o corpo em “S”, fi gurando a Virgem Grávida

no nosso manuscrito31 (fi g. 10) e Santa Maria Madalena no da Biblioteca Nacional de

França32 (fi g. 9). Ambas erguendo a ponta do manto na mão esquerda, mas enquanto

a Virgem transporta o livro aberto, Maria Madalena segura o frasco dos unguentos;

um cinto cinge por igual o ventre das duas mulheres e, não fora os atributos icono-

gráfi cos de cada uma delas e a identifi cação pelo texto que acompanham, poderiam

muito facilmente substituir-se uma à outra.

Conclui-se, de tudo isto, em balanço necessariamente breve, como as ligações do

nosso manuscrito – o Livro de Horas de D. Duarte, com a iluminura do primeiro quar-

tel do século XV revestiram um carácter complexo, que a análise das obras, mais do

que qualquer outra coisa, permite entender. O que vai, por conseguinte, ao encontro

do conhecimento mais aprofundado da sua ligação com estes três ateliês, reconheci-

damente dos maiores existentes na época: Boucicaut, Mazarine e rinceaux d’or. •

fig.10 a virgem grávida, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.144v

29. Fls. 32v e 43v.

30. Fls. 22v e 27.

31. Fl.144v.

32. Fl.227v.

fig.9 santa maria madalena, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.227v

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Page 94: Rha 7

Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Resumo

Na Idade Média portuguesa, a preocupação pela salvaguarda da memória indivi-

dual e da imagem social, manifestada através dos jacentes, dispostos sobre as arcas

tumulares, teve nos bispos os primeiros cultores. São ainda do século XIII as primeiras

representações de prelados que constituem, no conjunto, um grupo muito homogé-

neo, denotando uma clarividência exemplar nas propostas iconográfi cas.

Destacam-se, pelo número de exemplares conservados, dois núcleos, o de Coimbra e o de

Évora, signifi cando de algum modo a importância das respectivas dioceses nesta época.

Ao nível artístico, propriamente dito, a obra fundamental é a do monumento

encomendado pelo arcebispo de Braga, Dom Gonçalo Pereira: única obra de que se

conhece o contrato de encomenda e os escultores seleccionados – Mestres Pêro e

Telo Garcia –, é reveladora também de originalidades iconográfi cas e possuidora de

uma qualidade de execução que a colocam como um marco das virtualidades que a

escultura do século XIV vinha conhecendo em Portugal.

No século XV, a representação de jacentes episcopais desaparece quase por completo,

marcando, de forma signifi cativa e algo desconcertante, o fi m de um ciclo iconográ-

fi co fundamental no contexto da tumulária medieval portuguesa e do papel activo (e

pioneiro) que aquela classe social havia desempenhado no referido campo artístico. •

Abstract

In the Portuguese Middle Ages, the concern for the preservation of individual memory

and social image, expressed in the placing of effi gies over tomb chests, had its fi rst

followers among bishops. The earliest representations of prelates, dating as far back

as the 13th century, form a very homogeneous group which manifests an exemplary

clarity of purpose from an iconographic point of view.

Two main centres of production, Coimbra and Evora, stand out because of the

number of existing specimens, refl ecting to a certain extent the importance of their

respective dioceses at the time.

From a purely artistic viewpoint, the most important work is the monument commis-

sioned by the archbishop of Braga, Dom Gonçalo Pereira. Aside from being the only

case for which there is a known commission contract - detailing the chosen sculptors,

Masters Pêro and Telo Garcia - this tomb also reveals iconographic originalities while

presenting a high quality of execution which places it as a reference point of the level

of profi ciency that sculpture was achieving in 14th century Portugal.

The virtual disappearance of episcopal effi gies in the 15th century signals a signifi -

cant and somewhat puzzling end to a fundamental iconographic cycle of medieval

funerary monuments in Portugal, as well as to the active (and pioneering) role that

this social group had played in the referred artistic domain. •

palavras-chave

escultura tumularbispojacenteséculos xiii -xivretrato

key-words

funerary sculpturebishopeffigy13th to 14th centuriesportrait

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 9 5

“sculpto immagine episcopali”jacentes episcopais em portugal (séc. xiii-xiv)

O tema da representação episcopal em jacentes medievais dos séculos XIII e XIV, em

Portugal, por nós apresentado no decurso da 1.ª sessão do Seminário Internacional

Imagem, Memória e Poder – Visualidade e Representação (sécs. XII-XV), organizado

pelo Projecto Imago nos dias 15 e 16 de Novembro de 2007, foi escolhido tendo em

conta duas razões principais.

A primeira razão, que poderemos considerar de fundo, justifi ca-se com uma das duas

áreas temáticas em que está estruturado o referido Projecto Imago1, ou seja, aquela

que se ocupa do levantamento, análise e catalogação, que se pretendem sistemáticas,

da escultura tumular medieval com jacentes, existente em Portugal. Neste contexto,

as representações de bispos, tanto pelo número quanto pela sua precocidade e exem-

plaridade iconográfi cas – constituindo-se, inclusivamente, como um dos grupos mais

signifi cativos e importantes daquela manifestação artística de assumida importância

estética e maior relevo social –, ofereciam-se como um tema de eleição, autêntico

caso de estudo de toda uma problemática de mais vasto alcance.

Pode-se afi rmar que, até ao momento, a maior parte dos estudos e investigações rea-

lizados, no domínio da História da Arte, em torno da escultura tumular medieval por-

tuguesa, tem privilegiado a análise estético-formal. Através dela têm-se estruturado,

com maior ou menor profundidade, linhagens e derivações diversas, assentes quer na

cronologia dos exemplares conservados, quando conhecida (o que sucede na maioria

dos casos), quer nas aproximações formais (particularmente quando as referências cro-

nológicas são incertas), por similitude de recursos técnicos e de identidades estéticas.

1. Sobre os objectivos, realização e alcance do

Projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002),

fi nanciado pela Fundação para a Ciência e a Tec-

nologia, veja-se Ramôa 2007, 324-326.

josé custódio v ie ira da s ilva

joana ramôaInstituto de História da Arte

FCSH-UNL

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s c u l p t o i m m a g i n e e p i s c o p a l i

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 99 6

A outro nível, pode-se também afi rmar que o discurso mais vezes utilizado para

servir de fundo a essas análises, se tem restringido quase só ao da caracterização

do fenómeno da morte na Idade Média, tratado com uma abrangência, porventura

demasiado generalista nas suas vertentes antropológica e de história das mentali-

dades, circunstância que, temos de convir, é naturalmente potenciada e plenamente

justifi cada pelo facto desse discurso se desenvolver, objectivamente, em torno de

monumentos funerários.

Não pondo em questão a oportunidade e, em muitos casos, a qualidade destas

últimas análises e os próprios resultados obtidos, pensamos, no entanto, que terão

fi cado por abordar várias outras interpretações e por questionar outros signifi cados

que, tanto a um nível social quanto mental, o aparecimento dos jacentes medievais

trouxe consigo, uma vez que este fenómeno se constitui indiscutivelmente como uma

das manifestações de maior complexidade e dinamismo do mundo da arte gótica2.

Por consequência, a necessidade de ultrapassar esta espécie de nó górdio da

investigação passava, em nosso entender, por (entre outros aspectos metodológicos)

organizar as diversas representações segundo o grupo social e o género respectivos,

de forma a acentuar ou fazer ressaltar, a par dos aspectos estético-formais propria-

mente ditos, as implicações sociais e culturais profundas inerentes à representação do

jacente medieval, concretização por excelência do retrato escultórico no mundo gótico.

Assim, e atendo-nos ainda aos objectivos inerentes ao referido Projecto Imago,

organizámos, em refl exão conjunta, um primeiro estudo dos jacentes medievais

portugueses3 por grupo e por género, compondo, para tal, uma trilogia de análise:

– o grupo da nobreza, no género masculino, nele se incluindo, naturalmente, as

(poucas) representações de reis4;

– o grupo da nobreza, no género feminino, em que se incluem também representa-

ções de rainhas e princesas5;

– o grupo do clero, restringido aos bispos.

Dentro desta trilogia assim formulada, é este terceiro grupo que nos propomos agora

analisar. As razões para esta análise fi car restrita ao modelo episcopal, deixando de

lado outras representações de clérigos (sobretudo abades), são devidas tanto a uma

estratégia científi ca quanto a problemas de limitação temporal.

A segunda razão desta escolha temática que suporta e justifi ca o discurso que

agora desenvolvemos, embora de carácter mais circunstancial, tem ainda a ver com

o Projecto Imago: comportando o enunciado dos seus objectivos a organização de

um Seminário Internacional onde fosse possível aprofundar a refl exão sobre estas

temáticas em vários países (aproveitando-se para se fazer, em simultâneo, o ponto

da situação na evolução do Projecto), pareceu-nos que o conjunto português de

jacentes episcopais, pela sua homogeneidade e individualidade, se revelava o mais

adequado para ser trazido à refl exão no referido Seminário.

É possível, com efeito, identifi car, desde logo, dois grupos bem defi nidos de jacentes

episcopais, pertencentes, o primeiro e mais antigo, à Sé de Coimbra, o segundo à Sé de

Évora, cada um deles reunindo quatro exemplares. A par destes dois grupos, assim geo-

2. Algumas propostas de entendimento mais

abrangente desta problemática foram já ensaia-

das por José Custódio Vieira da Silva (Silva 2005,

47-81).

3. Convém mais uma vez realçar o facto de o prin-

cipal objecto desta nossa refl exão ser constituído

pela análise dos jacentes de bispos e não pela to-

talidade dos respectivos monumentos funerários.

Por isso, só muito esporadicamente – quando tal

se revele adequado à compreensão de algum as-

pecto mais particular – nos deteremos sobre al-

gum aspecto da iconografi a das arcas tumulares.

4. O grupo da nobreza, no género masculino,

foi já objecto de uma comunicação intitulada A

construção de uma imagem. Jacentes de nobres

portugueses do século XIV, apresentada por José

Custódio Vieira da Silva num Simpósio Internacio-

nal, organizado pela Universidade de León, de 27

a 29 de Setembro de 2007 (Silva 2009, 407-429).

5. Este grupo, sem dúvida o menos estudado de

todos, constitui o tema da tese de Doutoramen-

to de Joana Ramôa, a apresentar na Faculdade

de Ciências Sociais e Humanas da Universidade

Nova de Lisboa e que se desenvolve sob o título

O género feminino. A representação da mulher

na escultura medieval de Portugal e dos reinos

peninsulares de Leão, Castela e Aragão (séculos

XII-XV). O relacionamento do mundo português

com o mundo castelhano-leonês, entre outros

reinos peninsulares, irá permitir alargar extraor-

dinariamente o alcance desta refl exão doutoral,

sendo previsível o aparecimento de novidades

consistentes que exponham, sob nova luz, o con-

tributo fundamental do mundo feminino analisa-

do sob este prisma específi co da manutenção da

memória individual e da imagem social.

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s c u l p t o i m m a g i n e e p i s c o p a l i

grafi camente defi nidos, existem outros exemplares de monumentos funerários isolados

– nas Sés de Braga, de Lisboa e do Porto, na igreja de Balsemão (Lamego) e na Sé de

Viseu6 – circunstância que, no entanto, não é impeditiva de, em alguns casos, o respec-

tivo formulário estético os permitir incluir num daqueles dois grupos mais consistentes.

Se o grupo de Coimbra, como se acaba de afi rmar, é decididamente aquele que con-

serva as representações mais antigas de jacentes episcopais em Portugal (o primeiro,

o do bispo Dom Tibúrcio, é de c. 1253)7, todos eles modelados em calcário brando

e gozando a sua proposta iconográfi ca de uma grande similitude, o grupo de Évora,

apesar de mais tardio (o primeiro jacente, correspondente ao do bispo D. Durando,

será de 1283), não deixa, no entanto, de apresentar também as suas especifi cidades,

seja pelo material utilizado – o mármore branco alentejano –, seja pelo contraste

acentuado que os dois primeiros jacentes apresentam em relação aos segundos.

De qualquer modo, também não deixa de ser uma coincidência assinalável o facto

de ser idêntico o número de jacentes episcopais conservados nos dois grupos,

demonstrativo, em última análise, da importância que a diocese de Évora mantinha,

a par da de Coimbra, no contexto da organização diocesana portuguesa.

No que respeita ao grupo escultórico de Coimbra, temos como primeiro jacente,

porque mais antigo, aquele que encima a arca de Dom Tibúrcio, bispo daquela dio-

cese entre 1234 e 1248, diplomata e apoiante do Conde de Bolonha, futuro Dom

Afonso III, na luta sucessória que este travou contra o irmão, Dom Sancho II. Tal

apoio valeu mesmo a Dom Tibúrcio a proibição de entrar na cidade do Mondego,

ainda activa aquando da morte do prelado (1248), mas que Dom Afonso III trataria

de subverter, impondo o regresso dos restos mortais de Dom Tibúrcio à sede do seu

governo episcopal. Por isso, é na Sé Velha de Coimbra que encontramos, ainda hoje,

6. O bispo de Viseu a que nos referimos é Dom

João Vicente, que governou a sua diocese entre

1444-1463. Trata-se do único jacente episcopal

do século XV, pelo que não o integramos na aná-

lise que vimos fazendo. De qualquer modo, não

deixa de ser assinalável o desaparecimento pra-

ticamente total de jacentes episcopais no século

XV, sem que aparentemente se possam descor-

tinar quaisquer razões justifi cativas desse fenó-

meno. Fica, como dissemos, a excepção prota-

gonizada pelo bispo de Viseu, a quem se deve

também a construção da respectiva capela fune-

rária, de grande originalidade arquitectónica.

7. Anterior aos jacentes episcopais de Coimbra

apenas se conhece, no contexto geral da tumu-

laria medieval portuguesa e se tivermos em conta

que a arca com jacente que se guarda no panteão

régio do Mosteiro de Alcobaça pertence a Dona

Beatriz (e não a Dona Urraca), o jacente de D.

Rodrigo Sanches (†1245), fi lho bastardo de Dom

Sancho I e de Maria Pais Ribeira, conhecida por

Ribeirinha, cujo túmulo se guarda no claustro da

igreja do antigo mosteiro de Grijó, próximo da

cidade do Porto. Neste contexto, o jacente do

bispo Dom Tibúrcio será mesmo o segundo em

Portugal.

fig.1 túmulo com jacente do bispo dom tibúrcio. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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o monumento funerário deste 11.º bispo de Coimbra, concretamente num arcos-

sólio sito na nave lateral direita, para onde foi deslocado da capela-mor no século

XIX – monumento cuja realização, em virtude das vicissitudes sumariamente citadas,

acrescidas do facto de, no único facial decorado, se representar o escudo de Portugal

já com a bordadura de castelos, não deverá ser anterior a 12538.

Esta ligação profunda de Dom Tibúrcio a Dom Afonso III encontra, assim, refl exos

nalguns dos aspectos defi nidores da existência deste monumento funerário: desde

logo, na localização primitiva do túmulo no espaço da capela-mor, numa época em

que o enterramento no interior das igrejas, reservado a fi guras da mais alta hierarquia

social, se concretizava ainda em lugares menos nobres do edifício (Silva 1997, 45-59;

Silva 2003, 15-27) – privilégio que poderá estar relacionado com uma vontade do

rei de homenagear aquele que tinha sido um dos seus grandes apoiantes; depois,

na representação do escudo régio, a par da heráldica do bispo, no facial disponível

da arca9, marcando o que poderá ter sido uma intervenção directa do monarca na

encomenda deste monumento; fi nalmente, na própria inclusão de uma fi gura jacente

no conjunto funerário, cuja notória precocidade no contexto da tumulária nacional

Francisco Pato de Macedo associou, de certa forma, igualmente a este carácter sim-

bólico que em larga medida o túmulo de Dom Tibúrcio parece assumir no quadro de

afi rmação do quinto rei de Portugal (Macedo 1995, 435-437).

Quanto a nós, parece-nos sobretudo fundamental o facto deste pioneirismo da com-

posição de um jacente, tal como concretizado pelo túmulo de Dom Tibúrcio, não se

ter esgotado num programa determinado por condições eventualmente excepcionais

e de grande carga simbólica, mas ter dado o mote a um conjunto de jacentes epis-

copais, de enorme signifi cado no domínio da tumulária medieval portuguesa, que

marca o grupo social do clero com o cunho de uma precocidade admirável.

Desta forma, o jacente de Dom Tibúrcio deve ser entendido como protagonista de

um papel verdadeiramente fundador, papel que desempenha inclusivamente de um

ponto de vista estético e formal, na medida em que, olhando para a representação

deste primeiro jacente de Coimbra, observamos um conjunto de características for-

mais que dá corpo a um verdadeiro modelo iconográfi co, repetido em todo o grupo

da Sé Velha a que aqui nos referimos.

Deitado de costas, o jacente de Dom Tibúrcio enverga as vestes episcopais,

representadas sem pormenores de decoração, mas caindo (a casula) em dobras bem

modeladas que, embora um pouco rígidas, tendem a ganhar a forma própria de um

tecido denso e nobre, como convém a uma fi gura desta posição no quadro hierárquico

social. A estola e a própria alba, de tratamento sumário e movimento vertical bem

defi nido, contrastam, de certo modo, com aquela agitação da casula que o prelado

segura com os braços e que condiciona largamente, com as suas pregas bem vinca-

das, a leitura do corpo da fi gura jacente. A mitra, na cabeça, e o anel, na mão direita,

completam o retrato social da condição episcopal, a que falta somente o báculo,

que certamente se colocaria sob o braço esquerdo do jacente mas que entretanto

se perdeu, no corte substancial que a imagem sofreu, provavelmente aquando da

referida deslocação a que foi sujeita no interior da igreja coimbrã.

8. Segundo os heraldistas, esta iconografi a do

brasão régio com bordadura de castelos é poste-

rior ao casamento de Dom Afonso III com Dona

Beatriz de Castela, ocorrido em 1253. A razão

principal tem a ver com o facto de D. Afonso III

– que substituiu seu irmão, o rei D. Sancho II, no

trono – não ser o primogénito e, como tal, deve-

rem as suas armas trazer uma diferença, que foi

dada com a bordadura formada à custa das armas

maternas, as de Castela (Langhans 1966, 22-23).

9. Uma vez que se encontra inserida num arcos-

sólio, a arca tumular do bispo Dom Tibúrcio tem

apenas um facial disponível para a decoração

(neste caso, o facial maior da direita), que se

encontra preenchido com três brasões, o escudo

régio de Portugal, ao centro, e a ladeá-lo, dois

brasões representativos da linhagem do inumado.

fig.2 túmulo com jacente do bispo dom tibúrcio. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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Nesta escultura representativa de Dom Tibúrcio, a cabeça revela ser, no que respeita

àquela acção fundadora que o jacente desempenha do ponto de vista estético e ico-

nográfi co, uma das partes mais signifi cativas, concretizando caracteres tornados, a

partir deste, identifi cadores dos jacentes episcopais de Coimbra: a almofada única

(sem borlas nem decoração), o rosto oblíquo, a barba de uma ondulação cerrada,

a boca inexpressiva, o cabelo curto, acompanhando os limites da mitra, e, sobretudo,

os olhos fechados, formam, em grande medida, a homogeneidade deste grupo coim-

brão, ao mesmo tempo que o distinguem com bastante clareza dos restantes jacentes

medievais portugueses, mesmo no seio mais restrito da ordem social do clero. Da

mesma forma, o gesto cumprido pelas mãos, cruzadas sobre o peito, aparece como

uma marca comum, embora não exclusiva, neste grupo dos bispos de Coimbra,

reforçando a sua condição de adormecidos na morte, que o fechamento dos olhos

parece sugerir.

Dom Tibúrcio assenta os pés sobre uma fi gura de animal, provavelmente um leão,

que se deita sobre as quatro patas e mostra os dentes numa intenção ameaçadora,

que a desconcertante ingenuidade geral da fi gura não deixa, contudo, cumprir-se em

plenitude. No que respeita especifi camente ao suporte dos pés, os quatro jacentes

de Coimbra apresentam, de resto, soluções variadas, embora a intenção geral que

subjaz às respectivas escolhas iconográfi cas aparente ser muito semelhante.

A Dom Tibúrcio sucedeu, na cátedra conimbricense, o bispo Dom Egas Fafes de

Lanhoso, que governou a diocese entre os anos de 1248 e 1267. As qualidades

governativas do prelado ter-lhe-ão valido a transferência para Santiago de Compos-

tela, onde contudo não chegou a entrar, por ter falecido em Montpellier, no regresso

da viagem a Roma onde havia tido conhecimento da dita nomeação. À época, no

fig.3 túmulo com jacente do bispo dom tibúrcio. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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entanto, já dispunha de uma capela, erguida, por sua expressa vontade, na Sé de

Coimbra, para onde foi levado, permanecendo aí tumulado num monumento fune-

rário que se dota de uma fi gura jacente muito próxima da do túmulo do bispo seu

antecessor, ainda que concretizadora de alguns sinais de evolução.

Encimando uma arca hoje sem decoração e inserida num arcossólio aberto no braço

esquerdo do transepto, o jacente de Dom Egas Fafes de Lanhoso afi rma-se, desde

logo, pelo enorme volume do tronco – por contraste até com uma cabeça bastante

bem proporcionada. O bispo veste o hábito pontifi cal, tratado com grande sim-

plicidade e de que se destaca, no quadro de uma evidente contenção decorativa,

a estola, com o ondulado das franjas de uma das pontas a marcar a composição no

lado esquerdo do jacente – e servindo como único elemento de subversão de uma

absoluta simetria que parece orientar a elaboração desta fi gura. As mãos cruzam--se

sobre o peito e, sob o braço esquerdo, está colocado o báculo que, apesar de muito

danifi cado na parte fi nal, parece ser composto seguindo o mesmo princípio de simpli-

cidade que serve à composição geral do jacente. A cabeça, mitrada, de barba curta e

olhos rasgados10, repousa sobre uma grande almofada, única e sem decoração. Os pés,

a descoberto, assentam sobre dois animais híbridos, com garras de leão e bicos de

ave, colocados de costas voltadas um para o outro, mas interagindo por meio de algo

que ambos parecem segurar com os bicos e sobre o que o bispo faz assentar o báculo.

10. O grau de destruição em que o rosto desta

fi gura jacente se encontra impede-nos de afi rmar

com segurança se os olhos se encontram fecha-

dos (à semelhança do que parece acontecer na

representação do túmulo de Dom Tibúrcio) ou

simplesmente semicerrados.

fig.4 túmulo com jacente do bispo dom egas fafes de lanhoso. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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Neste conjunto de caracteres assim defi nidos, observamos que, se a composição

deste jacente de bispo se revela, no domínio iconográfi co, em tudo semelhante à

proposta (que já considerámos modelar) da fi gura de Dom Tibúrcio – o decúbito

dorsal, as vestes pontifi cais sem decoração, a mitra na cabeça, o anel prelatício

na mão direita, o báculo (que no jacente de Dom Tibúrcio se perdeu) sob o braço

esquerdo, as mãos cruzadas sobre o peito, a almofada única –, no que respeita aos

aspectos propriamente ditos da modelação podemos falar de uma evolução subtil,

nomeadamente na maior fl exibilidade com que as pregas da casula se desprendem,

jogando-se aqui, de forma mais evidente, com os movimentos contrastantes gerados

pela horizontalidade de uns pregueados e a verticalidade de outros.

O mesmo jogo de pregas anima as vestes pontifi cais de que se dota o jacente de

Dom Pedro Martins, bispo de Coimbra entre 1296 e 130111, com túmulo num arcos-

sólio aberto no braço direito do transepto da mesma Sé e que constitui o terceiro

momento deste grupo que agora analisamos. Do monumento original resta apenas

o jacente, que cumpre, no geral, com os mesmos caracteres iconográfi cos dos dois

anteriormente descritos. Assim, observamos uma fi gura colocada em decúbito dorsal

e envergando as vestes pontifi cais (sem decoração), com que se articula exactamente

do mesmo modo que os anteriores jacentes. A fi gura do túmulo de Dom Pedro Mar-

tins cruza igualmente as mãos sobre o peito, à semelhança do que vimos nos bis-

fig.5 túmulo com jacente do bispo dom pedro martins. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

11. Esta é a data conhecida da morte do prelado,

logo também a data aproximada de que dispo-

mos para a feitura do respectivo túmulo.

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pos anteriores, dispondo, sobre o braço esquerdo, de um manípulo cujas pontas se

desenham com nitidez. Se as dobras da casula e da alba parecem dar sinais de uma

muito subtil evolução relativamente ao tratamento das vestes nos jacentes de Dom

Tibúrcio e de Dom Egas Fafes de Lanhoso – estas de pregas mais rígidas e geome-

trizantes –, o geral da composição revela-se um tanto desolador, no achatamento

e na desproporção que, apesar de tudo, ainda dominam a fi gura. Dos elementos

distintivos, por excelência, da condição episcopal, Dom Pedro Martins apresenta

apenas a mitra, colocada na cabeça, e parte do báculo, de que restam somente ves-

tígios, no que seria a parte inferior do mesmo. De entre os caracteres discordantes

nesta fi gura em relação aos dois bispos anteriores – o que poderá estar relacionado

com o hiato (ainda que de poucos anos) que separa o túmulo de Dom Egas Fafes

de Lanhoso do de Dom Pedro Martins12 – destacam-se o rosto, que apesar de muito

danifi cado parece denunciar a ausência de barba e um cabelo mais comprido na nuca,

e o suporte dos pés que, como já referimos, corresponde ao elemento mais variável

neste grupo episcopal da Sé de Coimbra.

No caso concreto de Dom Pedro Martins, a sua fi gura jacente tem os pés, calçados,

assentes sobre uma base paralelepipédica, enquanto o báculo, colocado, em con-

formidade com a norma, do lado esquerdo, se apoia sobre o que parece tratar-se de

uma máscara antropomórfi ca.

Depois de uma governação de apenas um ano do bispo Dom Fernando na cátedra

episcopal de Coimbra (1302-1303), Dom Estêvão Anes Brochado logrou permanecer

nela durante 14 anos, entre 1304 e 1318.

É deste bispo o último túmulo desta série de monumentos com jacentes episcopais

da Sé Velha de Coimbra que temos vindo a observar. Quer na sua colocação origi-

nal na capela-mor, de onde foi deslocado no século XIX, quer na actual localização

fig.6 túmulo com jacente do bispo dom estêvão anes brochado. coimbra. sé velha.© projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

12. Dois bispos medeiam as governações de Dom

Egas Fafes de Lanhoso e de Dom Pedro Martins

na cátedra de Coimbra: Dom Mateus (1268-

1275) e Dom Américo Ebrard (1279-1295). Não

dispomos, na Sé de Coimbra, de túmulos respei-

tantes a qualquer um desses dois prelados.

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num arcossólio da nave lateral direita da igreja, este monumento aproxima-se, desde

logo, largamente do primeiro, o de Dom Tibúrcio. Mesmo em termos iconográfi cos,

o jacente de Dom Estêvão Anes Brochado não só prolonga os dados fundamentais

que vimos repetirem-se em todos os anteriores, como recupera os caracteres de que

o de Dom Pedro Martins se parecia começar a afastar, para concretizar o melhor

exemplar do modelo fundado pela fi gura jacente de Dom Tibúrcio.

Vemos, assim, sobre uma arca de feitura posterior, um jacente deitado de costas,

ostentando as vestes episcopais, também isentas de decoração (como as dos ante-

riores jacentes, o que permite a suposição de que seriam pintadas), mas de pregas

bem defi nidas, marcando com clareza os limites de cada uma das suas componentes

– da casula, presa pelos braços, e da alba, caindo na vertical – e o início de um tra-

tamento mais naturalista, que, por fi m, equilibra satisfatoriamente o movimento das

vestes e os volumes dos pregueados. Neste contexto de predomínio dos ondulados,

evidencia-se a lisura do manípulo, colocado sobre o braço esquerdo, e da estola,

cujas franjas se sobrepõem às pregas da alba, junto aos pés do prelado. O báculo,

agora inteiro, dispõe-se ao longo do corpo, passando por debaixo do braço esquerdo

e apresentando uma terminação bem conservada, com decoração fi tomórfi ca. A ca-

beça, mitrada e assente sobre uma única almofada, ostenta o mesmo tipo de cabelo

geometrizante e de barba cerrada dos dois primeiros jacentes desta série de Coimbra,

que formam, no entanto, parte de um rosto dotado de um naturalismo e de uma

qualidade apreciáveis para a época – naturalismo e qualidade igualmente patenteadas

no tratamento das luvas que lhe cobrem as mãos, também cruzadas sobre o peito.

Sobre a luva da mão direita está colocado, no dedo anelar, o anel episcopal.

Os pés, calçados, assentam sobre um dragão, numa proposta muito original no qua-

dro da tumulária medieval portuguesa, mas que, de qualquer modo, parece prolon-

gar o tal sentido que considerámos próprio e comum às escolhas iconográfi cas dos

suportes destes jacentes episcopais da Sé Velha de Coimbra. Representado agora,

como dissemos, sob a forma de um dragão – o animal considerado o guardião por

excelência dos lugares infernais –, parece ser novamente um sentido apotropaico

e de luta contra as forças do Mal aquele que aqui se enforma no suporte inferior

deste jacente e que o prelado, por nelas assentar (os pés e o báculo), domina. Aos

sinais visíveis do elevado poder episcopal (a mitra, o báculo, o anel), acrescenta-se,

deste modo, a ostentação daquela que é afi nal a vocação maior do bispo enquanto

representante de Deus na terra e do seu papel na difusão, consolidação e vigília

prudente da fé cristã. Com efeito, se o leão que serve de apoio à fi gura do túmulo

de Dom Tibúrcio se conforma, mais facilmente, ao modelo iconográfi co dominan-

te nestes suportes tumulares (normalmente assumindo a forma de leões, de cães

ou de simples mísulas), os restantes três casos deste grupo de bispos de Coimbra

(os animais híbridos do jacente de Dom Egas Fafes de Lanhoso, a máscara antro-

pomórfi ca do de Dom Pedro Martins e, fi nalmente, o dragão do de Dom Estê-

vão Anes Brochado) parecem apontar para uma lógica interpretativa própria que

reconhece estas bases de apoio, mais do que como protagonistas de um papel

de suporte, de acompanhamento ou de protecção, como o lugar privilegiado de

fig.7 túmulo com jacente do bispo dom estêvão anes brochado. jacente-pormenor. coimbra. sé velha.© projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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13. Com excepção do monumento funerário do

bispo D. Pedro II, que se conserva no local ori-

ginal (a sua capela funerária, sita no claustro da

Sé de Évora, ambos os espaços mandados por ele

construir), os outros três jacentes foram deslo-

cados para o Museu Regional de Évora, onde se

mantêm em exposição.

14. A inscrição é a seguinte:

HIC=QUIESCIT=BONE=MEMORIE=DOmNus=D

URAnDus=EPiscoPus=ELBOReNsis=Q(U)I=DEDI

T=INICIUm=HUIC=OPerI=Cuius=AnImA=REQ(u)

IESCAT=IN=PACE=AMen=. (Barroca 2000, 1030).

expressão desse mundo obscuro (do pecado e da heresia) que compete às forças

da Igreja controlar – num prolongamento de modelos iconográfi cos conhecidos da

fi guração da dinâmica entre vencedores – as Virtudes –, e vencidos – os Vícios.

Finalmente, o fechamento evidente dos olhos do jacente de Dom Estêvão Anes Bro-

chado completa o modelo iconográfi co tal como parece sugerido pelo primeiro jacente

deste grupo coimbrão, e serve de nota fi nal a um entendimento deste jacente como

representante de um prelado de meritória governação e feliz na sua condição clara de

justo (perceptível no leve sorrido que os seus lábios esboçam) e defensor da fé em Deus.

O segundo grupo de jacentes episcopais de que nos vimos ocupando, o de Évora, é,

como já afi rmámos, cronologicamente mais tardio do que o grupo de Coimbra13, dado

que o jacente mais antigo, de entre os que se conservaram, deverá ser o do bispo

Dom Durando Pais, falecido em 1283. Iniciador da obra da grande catedral gótica,

fez-se sepultar na respectiva capela-mor, nisso imitando (talvez com legitimidade

acrescida, por dele ser a responsabilidade da construção da nova Sé) o bispo Dom

Tibúrcio, de Coimbra. Em 1718, aquando da remoção para o claustro do monumento

de D. Durando Pais (por motivo da reconstrução da capela-mor da catedral ebo-

rense), perdeu-se infelizmente a arca, tendo restado apenas a tampa com o respec-

tivo jacente, identifi cado por uma inscrição que o individualiza14.

fig.8 túmulo com jacente do bispo dom durando pais. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

fig.9 túmulo com jacente do bispo dom durando pais. jacente-pormenor. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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Dom Durando Pais segue, a nível iconográfi co, o modelo proposto pelos bispos de

Coimbra: vestido com os paramentos episcopais e ostentando os correspondentes

símbolos de poder – mitra na cabeça, anel prelatício no dedo anelar e báculo sujeito

sob o braço esquerdo –, apresenta-se com as mãos cruzadas sobre o ventre (no que

representa uma ligeira variante em relação ao modelo conimbricense) e os olhos

cerrados, enquanto os pés, colocados verticalmente na continuidade do próprio

corpo, repousam sobre um bloco de pedra que ostenta, no lado virado ao observa-

dor, a cabeça e as asas de um anjo. Apesar de uma cuidada e claramente ostentosa

decoração – na casula, bifurcada na ponta e ornada com uma bordadura de fl ores

de lis, na estola e no manípulo com rosetas e estrelas de oito pontas, na mitra e no

lado esquerdo das duas almofadas com elementos geometrizantes –, a escultura é de

difícil execução, revelando artífi ce local, sem contactos com centros mais evoluídos

na produção escultórica: o modelado é grosseiro e muito rígido, os volumes difíceis,

o rosto inexpressivo. Ressalva-se, de qualquer modo, a relativa originalidade de uma

proposta iconográfi ca que, como vimos dizendo, só tem paralelo na que os bispos

de Coimbra primeiro idealizaram.

A estátua jacente de Dom Durando Pais tem uma réplica quase perfeita na represen-

tação de um outro bispo eborense, não identifi cado. Pensamos que, ao contrário de

uma certa interpretação que o dá como sendo Dom Soeiro II (1206-1229), deverá

ser, como refere Virgílio Correia (Correia 1953, 30), a estátua de um bispo posterior

ao próprio Dom Durando Pais. As semelhanças são tão evidentes que, para além de

se deverem eventualmente a artista da mesma ofi cina15, permitem avançar a hipó-

tese de se tratar do jacente de Dom Martinho Pires (1237/1246-1266), antecessor

de D. Durando Pais, ou de D. Domingos Anes Jardo (1284-1289), seu sucessor na

cátedra episcopal de Évora (Jorge 2000). Esteticamente, a estátua de Dom Martinho

Pires/Dom Domingos Anes Jardo (?) apresenta algumas contradições na comparação

com a de Dom Durando Pais: se, no cômputo geral, apresenta maior rudeza no trata-

mento do rosto, das mãos, das vestes episcopais e num certo non fi nito – visível na

almofada onde repousa a cabeça e em todo o lado esquerdo (certamente por estar,

originalmente, encostado ao muro, por esse lado), consegue, no entanto, apresentar

um tratamento volumétrico do corpo mais conseguido. De assinalar que aos pés,

em lugar do anjo do jacente de Dom Durando Pais, representa-se o que parece ser

um dragão. De resto, hieratismo e rigidez muito acentuados serão as características

que melhor poderão caracterizar estas duas primeiras representações eborenses, tão

próximas estética e cronologicamente uma da outra.

O terceiro jacente de Évora, o do bispo Dom Fernando Martins (1297-1313/14),

apresenta, em relação aos dos dois bispos anteriormente considerados, diferenças

absolutamente notáveis, tão mais salientes quanto o espaço de tempo de realiza-

ção que os separa não ultrapassa as duas décadas. Este é também, desde logo, um

outro aspecto que, para além dos já analisados nas duas primeiras representações de

bispos eborenses, contribui para autonomizar este conjunto em relação ao de Coim-

bra, atendendo à maior unidade que, apesar de uma visível evolução, os exemplares

conservados na Sé Velha desta última cidade apresentam.

15. Pedro Dias adianta que deve tratar-se do mes-

mo artista, atribuição que nos parece um pouco

mais difícil de sustentar (Dias 1980, 121-122).

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Tal como o seu antecessor Dom Durando Pais, também Dom Fernando Martins se

fez sepultar em arcossólio disposto na cabeceira da sua catedral, que ele consa-

grou, em 130816. O tratamento plástico do seu jacente, no entanto, revela um salto

qualitativo notável. Em lugar da rigidez de atitude e de composição das vestes que

Dom Durando Pais e Dom Martinho Pires/Dom Domingos Anes Jardo (?) exibem,

o jacente de D. Fernando Martins alcança uma modelação muito mais fl uida e quase

naturalista, particularmente visível na ampla casula, disposta em drapeados e enro-

lamentos laterais sabiamente esculpidos e de uma delicadeza quase táctil, que lhe

chega até aos pés e oculta, inclusivamente, tanto o manípulo quanto a estola, e ainda

no modo como a alba, mais fi na, lhe recobre parte dos sapatos e descansa harmonio-

samente sobre o suporte pétreo, de que está ausente qualquer representação icono-

gráfi ca. Do mesmo modo, «o requinte do lavor dos cabelos e dos ornatos do amito

e da mitra revelam um excelente domínio da matéria pétrea» (Carvalho 2000, 237).

A par da evolução plástica, há outra originalidade neste retrato de Dom Fernando

Martins que importa ressaltar: é o primeiro que, em vez de se apresentar com as mãos

cruzadas uma sobre a outra, como acontece nas outras representações episcopais

– seja nas de Coimbra, em que as mãos se cruzam sobre o peito, seja nas de Évora,

cruzadas sobre o ventre –, tem as mãos, sem luvas, afastadas, a esquerda sobre o

peito, a direita, com o respectivo anel pontifi cal, sobre o ventre. Juntamente com

o naturalismo das vestes, esta é, segundo pensamos, manifestação de uma pres-

sentida tentativa de individualização da personagem, mesmo que, paradoxalmente,

o seu rosto continue a revelar um certo estereótipo apelativo de uma intemporalidade

solene (Carvalho 2000, 237).

16. É interessante anotar uma outra aproximação

que relaciona entre si estes dois bispos, ou seja,

se D. Durando Pais foi o iniciador da obra mag-

nífi ca da catedral eborense, coube a D. Fernando

Martins o privilégio de a consagrar.

fig.10 túmulo com jacente do bispo dom fernando martins. évora. museu regional.© projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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A par desta originalidade, o jacente de D. Fernando Martins apresenta uma ‘ano-

malia’ iconográfi ca, ou seja, o báculo, em lugar de estar seguro, como é usual, sob

o braço esquerdo, encontra-se disposto sob o braço direito. A justifi cação para tal

tem a ver, certamente, com a disposição do túmulo no lado esquerdo da cabeceira,

fi cando o báculo encostado à parede, de modo a não perturbar a visibilidade do

rosto do bispo. Não deixa, no entanto, de constituir um exemplo da falta de rigidez

dos modelos iconográfi cos que, sempre que necessário, se adaptam (nem que seja

de forma mínima e em elementos relativamente secundários) às condições concretas

do lugar para onde são pensados.

A evolução detectada no jacente de Dom Fernando Martins confi rma-se no quarto

monumento subsistente dos bispos de Évora, o mais evoluído de todos tanto a nível

estético quanto iconográfi co e também, por coincidência, o único de que se con-

servou a totalidade da arca funerária. Trata-se do bispo Dom Pedro II (1322-1340),

a quem se devem obras de signifi cativo engrandecimento da sua catedral, como é o

caso, quer da colocação do Apostolado na porta principal (naquilo que representa a

primeira tentativa de adopção de um programa iconográfi co de grande envergadura

no contexto da arquitectura gótica portuguesa), quer da construção do claustro,

com a capela funerária onde se fez sepultar17. A par do Apostolado, este claustro é

também, pela sua qualidade objectiva, uma obra arquitectónica de grande signifi -

cado na arquitectura portuguesa do século XIV, podendo mesmo afi rmar-se que a

sua realização última, em termos de um programa de afi rmação pessoal, se cumpre,

sem reservas, tanto na capela quanto no monumento funerário de Dom Pedro II.

Com efeito, a arca tumular deste bispo eborense, assente em dois imponentes leões

fig.11 túmulo com jacente do bispo dom fernando martins. jacente-pormenor. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

17. Esta deverá ter sido a razão principal por que

se conservou todo o monumento funerário do

bispo D. Pedro II.

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e decorada com um programa iconográfi co de carácter sagrado – nas faces menores,

o Calvário e Cristo em Majestade; nas faces maiores o Apostolado, com seis Apóstolos

de cada lado –, ganha a sua completa realização no jacente, com as feições do rosto

indiciando, de forma perceptível, alguma preocupação de individualismo e o corpo

amparado, à altura dos ombros, por dois anjos18, cujo virtuosismo plástico acentua a

qualidade já enunciada na estátua do seu predecessor, Dom Fernando Martins. Aliás,

Dom Pedro II também apresenta, como este, as mãos colocadas uma sobre o peito,

a outra sobre o ventre, embora em posição inversa (ou seja, a direita sobre o peito

e a esquerda sobre o ventre), dado que Dom Pedro II segura o báculo sob o braço

esquerdo, respeitando-se assim o cânone iconográfi co episcopal. Os pés assentam

directamente sobre um suporte liso, de forma prismática, ornado, no reverso, com

o brasão de armas do bispo.

A delicadeza no tratamento dos panejamentos, o naturalismo das dobras da casula,

a visibilidade do manípulo, a faixa decorada com desenho delicadamente inciso que

forma uma cruz na casula, o amaneiramento dos dois anjos, encontra paralelo na

modelação, em relevo pouco pronunciado, das personagens sagradas que se dispõem

nos quatro lados da arca funerária, ganhando particular destaque o doce humanismo

18. Os anjos assim colocados à cabeceira do ja-

cente de Dom Pedro II, são os segundos a apa-

recer nestes monumentos funerários, depois dos

que amparam o jacente do arcebispo de Braga,

Dom Gonçalo Pereira.

fig.12 túmulo com jacente do bispo dom pedro ii. évora. jacente. sé-claustro. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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fig.13 túmulo com jacente do bispo dom pedro ii. évora. sé-claustro. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

fig.14 túmulo com jacente do bispo dom pedro ii. facial da cabeceira. évora. sé-claustro. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

da fi gura de Cristo na cruz ou ainda a identifi cação individualizada (pouco usual) de

quase todos os Apóstolos pelos respectivos atributos.

A mesma representação de Cristo na cruz, ladeado pela Virgem e por São João, e a

mesma iconografi a do Apostolado, preenchem o facial da cabeceira e o facial maior

da esquerda, respectivamente, da arca tumular de Dom Gonçalo Pereira, um dos

mais eloquentes (senão o mais eloquente de todos) exemplares da estatuária jacente

episcopal da Idade Média portuguesa. Esta coincidência iconográfi ca serve-nos de

pretexto para, depois de analisados os dois grupos episcopais de Coimbra e de Évora,

passarmos à análise e caracterização dos monumentos funerários isolados, come-

çando precisamente pelo do arcebispo bracarense, anterior de cerca de 6 anos ao

do bispo de Évora Dom Pedro II.

Décimo-sexto arcebispo da diocese de Braga (1326-1348), embaixador de Dom Dinis

em Avinhão, auxiliar da rainha Dona Isabel na procura de uma solução de paz entre o

rei e o fi lho desavindos, Dom Gonçalo Pereira foi bispo de Lisboa, em 1322, antes de

ocupar a sede bracarense, em 1326. O seu túmulo, encomendado em 1334, foi colo-

cado em capela anexa à Sé primaz. Fundada ainda em vida pelo prelado, começou a

ser construída em Março de 1332, tendo as obras fi cado concluídas dois anos depois19.

19. A capela, com a designação de Senhora da

Glória, foi instituída a 27 de Abril de 1334, de

acordo com documento guardado no Arquivo

Distrital de Braga (Col. Cronol., cx 12) e publi-

cado por Maria Helena da Cruz Coelho (Coelho

1990, 445-461).

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20. Para consulta deste contrato, tão mais origi-

nal quanto é o único que até agora se conhece

sobre uma encomenda deste tipo, vejam-se Ma-

nuel Monteiro (Monteiro 1980, 304). Carla Varela

Fernandes (Fernandes 1997, doc. I) e José Cus-

tódio Vieira da Silva (Silva 2005, 74-75).

21. Para além do Calvário e do Apostolado, de

que já falámos, a arca tumular de Dom Gonçalo

Pereira, decora-se ainda com um originalíssimo

coral de clérigos, que lhe ocupa o frontal da di-

reita, e com o tema da Virgem com o Menino,

representado no facial dos pés, para além dos

animais apocalípticos, o Boi, o Leão, a Águia e

o Anjo tetramorfos, que acompanham, aos pares,

as fi gurações centrais (já identifi cadas) dos lados

menores da arca.

Não deixa de ser, de alguma forma, surpreendente que apenas um monumento

funerário com jacente dos arcebispos de Braga tenha chegado até nós. A importância

da sede metropolita bracarense, o alcance social e simbólico da erecção destas arcas

tumulares, impositivas da memória dos que nelas repousavam, permitiria supor que,

a exemplo das Sés de Coimbra e de Évora, também a de Braga conservasse um con-

junto signifi cativo de jacentes episcopais. Tal, porém, não acontece. E, no entanto,

o sarcófago do arcebispo Dom Gonçalo Pereira constitui-se em verdadeira excepção,

tão mais surpreendente quanto representa um momento verdadeiramente único

– pelo conhecimento do documento de erecção da correspondente capela funerária,

pelo conhecimento do contrato estabelecido com os escultores, pela qualidade esté-

tica global e pela iconografi a original – da escultura portuguesa do século XIV.

O sarcófago onde foram depositados os restos mortais de Dom Gonçalo Pereira,

exento, esculpido em pedra calcária de Ançã e seguindo a composição tradicional

dos mais ricos túmulos medievais portugueses – arca paralelepipédica decorada nos

quatro faciais, assente sobre seis leões e com jacente sobre a tampa –, resultou,

inclusivamente do ponto de vista das opções iconográfi cas que o decoram, de um

programa bem defi nido pelo próprio arcebispo, expresso no documento de registo

ofi cial da encomenda que celebrou em Lisboa, a 11 de Junho de 1334, com os dois

mestres das imagens, mestre Pêro, morador em Coimbra, e mestre Telo Garcia, habi-

tante da cidade de Lisboa20 – interferência que terá reforçado a exclusividade dada

neste túmulo às temáticas de ordem religiosa, sem nenhuma cedência ao profano

(como acontece noutros casos, nomeadamente com a inclusão ou mesmo a dedicação

exclusiva da arca à decoração heráldica)21.

fig.15 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

fig.16 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. facial da esquerda--pormenor. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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A qualidade revelada nestas representações da arca, nalguns momentos manifesta-

mente superior – nomeadamente no Apostolado – às das fi gurações do túmulo da

rainha Santa Isabel que se supõe ter-lhe servido de modelo, enforma de igual modo

um jacente de grande dignidade, que, como já afi rmámos, é, indubitavelmente,

o ponto culminante da modelação de jacentes episcopais na tumulária medieval

portuguesa.

O jacente de Dom Gonçalo Pereira, em decúbito dorsal, enverga vestes pontifi cais de

grande aparato, inerentes à correspondente categoria arquiepiscopal, completadas

por um báculo fi namente lavrado, colocado sob o braço esquerdo. As mãos enluvadas

do jacente, ostentando enormes jóias e anéis de pedrarias, cruzam-se pelos pulsos

sobre o ventre, num gesto que, em comunhão com o fechamento dos olhos, corres-

ponde a uma verdadeira representação de defunto22. A mitra, ricamente decorada

com pedras preciosas (algumas formando composições semelhantes às dos anéis),

orna a cabeça do arcebispo a qual, sem cabelo visível e apoiada sobre duas grandes

almofadas com borlas nos cantos, é amparada delicadamente pelas mãos de dois

anjos que, deitados sobre o ventre e com o olhar voltado para o alto, se alongam,

com notória elegância, sobre a tampa, dos dois lados da almofada (onde pousam a

mão disponível). No lado oposto, os pés do arcebispo descansam sobre as costas de

um outro anjo, representado a meio corpo e de asas abertas, voltado para o exterior.

fig.17 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. jacente. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

22. Este gesto dos pulsos cruzados com as mãos

em suspenso concretiza um sinal da impotência,

da incapacidade e da passividade de uma perso-

nagem totalmente isenta já de forças (Pasquinelli

2005) – gesto que parece acentuar a verdadeira

condição de cadáver que este jacente de Dom

Gonçalo Pereira corporiza, no que se distancia

de forma subtil dos bispos de Coimbra e do seu

tranquilo adormecimento eterno.

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A qualidade deste jacente, quer ao nível da defi nição do rosto, ostensivamente marca-

do por vincos profundos próprios da meia idade, quer no que respeita ao naturalismo

(quase verismo) com que se desdobram as pregas das vestes, nos dois sentidos,

vertical e horizontal, é manifestamente superior à do bispo de Évora Dom Pedro II,

a que já havíamos reconhecido um apurado nível técnico e estético. Esta afi rmada

diferença é ainda mais notória quando comparados os anjos que se dispõem à cabe-

ceira de ambos os jacentes: os de Dom Gonçalo Pereira são, na verdade, dotados de

um rosto notável, embora os de Dom Pedro II, pela posição e pelo olhar que adop-

tam, tomem, na sua condição actual, parte mais activa na leitura global da tampa.

Em Lisboa, cuja diocese Dom Gonçalo Pereira, antes da sua nomeação para a ar-

quidiocese bracarense, governou entre 1322 e 1326, também se conserva, na res-

pectiva Sé, apenas um monumento funerário com jacente de um seu bispo. Embora

hierarquicamente a diocese de Lisboa ocupasse um lugar inferior às de Braga, Évora

e Coimbra, a afi rmação da importância da cidade, ao longo do século XIV, faria pres-

supor um interesse maior dos seus bispos na execução de monumentos funerários

fig.18 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. jacente-pormenor. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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adequados à importância do seu papel social e religioso. Prova da importância que

Lisboa havia adquirido ao longo do século XIV é o facto de o rei Dom Afonso IV

(1291-1357) ter mandado colocar o seu monumento funerário e o de sua esposa, de

arcas decoradas e com jacente nas tampas, na capela-mor da Sé catedral de Lisboa,

de que ordenara a reconstrução. Maior realce adquire, por isso, a não existência de

monumentos funerários de outros bispos lisboetas, mesmo tendo em atenção a mag-

nitude da destruição causada pelo sismo de 1755 na cidade e também na catedral.

A arca do bispo de Lisboa guarda-se hoje na casa do capítulo do claustro da Sé,

tendo sido para aí deslocada da capela de Santa Ana ou de Santo Amaro, situada

no topo do braço norte do transepto23. De dimensões relativamente reduzidas, não

apresenta qualquer decoração em nenhum dos quatro faciais. Assim, a importância

do respectivo jacente, cuja escultura preenche todo o campo disponível da tampa,

ganha ainda maior projecção.

A identidade deste bispo continua desconhecida. O primeiro a propor uma identi-

fi cação terá sido A. Vieira da Silva que, baseado na lápide encontrada sobre a arca

aquando das escavações do altar de Santa Ana ou Santo Amaro, entendeu tratar-se

do bispo Dom Soeiro II (1211-1233) (Sousa 1951, 8-9). No entanto, bastará a sim-

ples observação do jacente para de imediato se perceber que, dada a relevância da

sua proposta estética, nunca poderá ser obra da primeira metade do século XIII.

A escultura deste bispo ignoto é, além do mais, completamente original no panorama

dos jacentes homónimos que temos vindo a analisar: desde logo pelo seu enqua-

dramento arquitectónico – a cabeça protegida por um arco trilobado, cuja moldura

defi ne o espaço da inserção da estátua até ao supedâneo semicircular em que os

pés se apoiam – que o integra na linhagem das esculturas das fachadas ou gigantes

de uma qualquer catedral de inspiração francesa, de onde parece ter sido arrancada.

Original é também a modelação das vestes episcopais: não só os pregueados são

muito mais complexos, acentuados pelo contraste da mancha lisa das duas faixas

do manípulo, como também o ondeado das vestes litúrgicas, sob a casula, goza de

uma movimentação notável que se não verifi ca em nenhum dos jacentes congéneres

até agora analisados. A maneira como as vestes caem, a forma como as dobras se

desen volvem e contrastam entre si, produz um efeito naturalístico de grande impacto.

Este naturalismo ganha dimensões defi nitivas nos dois outros elementos que contri-

buem para esta originalidade de que vimos falando: a posição das mãos e o talhe do

rosto. Em relação às mãos, enluvadas e, para além do anel episcopal, ornadas com

grandes jóias de formato circular, como sucede com o bispo de Braga Dom Gonçalo

Pereira, surgem-nos pela primeira vez numa posição activa: a mão direita, encostada

ao peito, erguida em gesto de bênção; a esquerda, a meio do corpo, segurando com

fi rmeza o báculo. O rosto largo mas de proporções condizentes com o corpo, apre-

senta, no seu talhe sóbrio, um naturalismo convincente, realçado de modo particular

pelos dois traços enérgicos que, descendo do nariz, acentuam os lábios modelados

num sorriso sereno. Os olhos, que se apresentam fechados, ganham, neste contexto,

uma ambiguidade total, atendendo a que este é o primeiro jacente que, pela posição

das suas mãos, adopta, como já dissemos, uma posição activa: o gesto de bênção da

fig.19 túmulo com jacente de bispo. lisboa. sé-casa do capítulo. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

23. Afirmação de A. Vieira da Silva, citado in

Sousa 1951, 8.

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24. Esta importante informação é avançada por

Carla Varela Fernandes (Fernandes 2001, 95). No

entanto, esta investigadora não levou até ao fi m

a identifi cação provável do bispo como sendo

Dom Teobaldo de Castillon.

mão direita, o báculo seguro pela mão esquerda contrariam a sua imagem de ador-

mecido na morte – ambiguidades e contradições aparentes, já que o naturalismo

da representação medieval não passava, nesta altura, por uma adequação total ao

verismo de atitudes ou representações, antes pela adequação à imagem/mensagem

que se pretendia transmitir. Trata-se, afi nal, de mais uma das razões que contribuem

para a grande originalidade deste jacente.

Todas estas características apontam para uma cronologia de meados do século XIV,

altura em que a cátedra lisboeta foi ocupada por três bispos de origem francesa:

Dom Estêvão de La Garde (1344-1348), Dom Teobaldo de Castillon (1348-1356)

e Dom Reginaldo de Maubernard (1356-1358). O segundo destes pontífi ces, Dom

Teobaldo de Castillon, legou em testamento quantias valiosas para a realização de

obras na catedral, após o terramoto de Agosto de 135624, circunstância que, em

nosso entender, parece perfeitamente plausível (ou ao menos sufi ciente) para que

se lhe possa atribuir este sarcófago guardado na casa do capítulo do claustro da Sé

de Lisboa. Na verdade, o aspecto geral do seu jacente, conforme se depreende da

fig.20 túmulo com jacente de bispo. lisboa. jacente-pormenor. sé-casa do capítulo. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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análise que dele fi zemos, não se integra propriamente nos modelos iconográfi cos

que, desde o bispo Dom Tibúrcio de Coimbra, caracterizam este grupo social. Pen-

samos, pelo contrário, que as suas características formais o integram numa corrente

internacional, possivelmente francesa, como parece comprovar a terminação, em

elegante cabeça de dragão, da crossa do seu báculo, imitando formas semelhantes

difundidas pela ourivesaria esmaltada de Limoges.

A última representação de um jacente episcopal português dos séculos XIII e XIV

pertence ao túmulo de Dom Afonso Pires, vigésimo bispo do Porto (1359-1372).

A exemplo dos seus congéneres de Braga e de Lisboa, é também a única arca tumular

decorada e com jacente de bispos da diocese do Porto que chegou até nós.

Encontra-se Dom Afonso Pires tumulado na Igreja de São Pedro de Balsemão

(Lamego), num sarcófago exento, de granito, composto de uma arca paralelepipé-

dica, decorada em três faciais (um deles apenas num terço da sua superfície), assente

sobre cinco leões e com fi gura jacente sobre a tampa.

Na arca, as representações restringem-se à temática religiosa, corporizada na ico-

nografi a da Última Ceia, que ocupa todo o facial maior da direita; na do Calvário,

restringida a um terço da superfície do facial maior da esquerda, e na da Coroação

da Virgem, no facial da cabeceira. Para lá da considerável excepcionalidade da repre-

sen tação da Última Ceia (apenas repetida, no contexto funerário medieval portu-

guês, no túmulo de João Gordo, na Sé do Porto e, integrada no ciclo da Paixão, no

de Dona Inês de Castro, na igreja do Mosteiro de Alcobaça), é aqui a iconografi a

do Calvário aquela que maior originalidade revela, assumindo um lugar singular no

quadro da tumulária nacional. Desde logo, pela deslocação da mesma de um dos

faciais menores da arca (onde aparecera até então) para um dos faciais maiores,

fig.21 túmulo com jacente do bispo dom afonso pires. balsemão. igreja de são pedro. © projecto imago. fotografia de joana ramôa

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de que ocupa apenas parte, nele se inscrevendo como um selo. Depois, e este é o

aspecto mais signifi cativo, pelo modo como, na multiplicação do número de fi guras

presentes na cena da Crucifi xão (acrescentando, às três tradicionais – Cristo, a Vir-

gem e São João –, a fi guração dos dois ladrões que com Cristo foram crucifi cados

e, a coroar a composição, a do sol e da lua), o Calvário do túmulo do bispo Dom

Afonso Pires se afasta do modelo iconográfi co até então repetido, sem excepção,

nos túmulos que o incorporam, anunciando, de certa forma, aquela que é a fi gura-

ção culminante do século XIV no que aos Calvários diz respeito, a do túmulo da já

citada Inês de Castro25.

O jacente, em decúbito dorsal, enverga as vestes pontifi cais, sem qualquer decoração

incisa, dotando-se, assim, de uma simplicidade, ao nível do trabalho da pedra, que

lembra os bispos de Coimbra – embora nunca possamos esquecer o contributo fi nal

que era, em muitos casos, dado pela pintura. A casula cai em largas pregas horizon-

tais que jogam, junto aos pés, com a verticalidade da alba que lhe está por debaixo

e que nesta zona se revela. A cabeça, com mitra decorada com pedrarias, de onde

sobressaem as orelhas muito desenvolvidas e um fácies bem defi nido a que o ras-

gamento dos olhos, bem abertos, confere um certo sentido orientalizante, repousa

sobre duas almofadas, sem decoração nem borlas – uma de grande dimensão, na

base, e outra mais pequena e em forma de losango, acompanhando, num pormenor

de grande originalidade, o vértice da mitra. A mão esquerda do jacente agarra o

báculo (bastante destruído), a direita (muito danifi cada) cumpriria o gesto da bênção.

Assim, se por um lado este jacente de Dom Afonso Pires revela mãos pouco ágeis na

modelação e difi culdades acrescidas pelo material escolhido – um granito de grão

muito grosseiro a que só a cor (de que restam nítidos vestígios na cena da Coroação

da Virgem) poderia dar, com outra clareza, a leitura dos temas enunciados –, por outro

apresenta claramente uma atitude mais dinâmica do que a maioria dos restantes jacen-

tes que temos vindo a analisar. Com efeito, à semelhança do que observámos no jacen-

te de Lisboa, de que, por esse modo, se aproxima, o bispo do Porto faz-se representar

verdadeiramente no exercício das suas funções e, nesta pose, sublinha ainda mais a

passividade de todos os outros jacentes, particularmente dos de Coimbra e de Braga.

De cada lado do jacente de Dom Afonso Pires, ao nível dos seus antebraços, en-

contra-se, como vimos nos jacentes de Dom Pedro II de Évora e de Dom Gonçalo

Pereira de Braga, um anjo. Aqui, no túmulo de Balsemão, apresentam-se também

em número de dois e sentam-se sobre a tampa, de costas voltadas para o exterior,

numa posição surpreendente, com uma perna disposta para cada lado. Um pouco à

maneira dos anjos do bispo eborense, de que relembramos o tom desafi ante, estes

que acompanham Dom Afonso Pires dirigem igualmente o olhar para o alto (esta-

belecendo, uma vez mais, a ligação entre o mundo terreno e o mundo sagrado) e

colocam as mãos de modo a amparar, uma o ombro, a outra as vestes. Os rostos

angélicos são de difícil leitura, dado o estado de deterioração da pedra e a difi culdade

gerada naturalmente pela já referida grossura do grão do granito em que o túmulo

se encontra esculpido. De qualquer modo, e apesar da certa desproporção que os

defi ne e do trabalho no geral limitado do ponto de vista técnico que revelam, estes

25. Este estudo dirigido à iconografi a do Calvário

na tumulária medieval portuguesa foi já realizado

por Joana Ramôa, em dissertação de Mestrado –

A Iconografi a do Calvário na Escultura Tumular

Medieval Portuguesa. (Ramôa 2008).

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anjos não deixam de surpreender, por um lado, pela originalidade (já sublinhada) da

posição que assumem e que lhes confere um tratamento interessante das costas, por

outro, pela relativa delicadeza de que, apesar de tudo, parecem dotar-se os rostos

no quadro geral de um trabalho bastante tosco.

Num afastamento iconográfi co relativamente aos dois jacentes episcopais que atrás

referimos, o bispo assenta os pés, calçados e visíveis por entre as vestes, sobre dois

cães pequenos, com coleira e sentados nas patas traseiras, de costas voltadas um

para o outro – elemento igualmente de grande originalidade, quer porque, como

pudemos observar, enforma uma situação singular no contexto da tumulária episcopal

(sendo que nenhum outro bispo se faz acompanhar de cães, mais representativos do

mundo senhorial laico), quer porque, concretamente estes animais que encimam a

arca do bispo do Porto, se dotam das formas próprias dos cães que, no geral, acom-

panham os jacentes femininos, mais do que os masculinos, que tendem a rodear-se

de canídeos de maior dimensão.

A análise que acabámos de realizar dos onze jacentes episcopais dos séculos XIII e XIV

existentes em Portugal, permite-nos, para concluir, alinhar algumas considerações.

A primeira é a precocidade destas representações. Na verdade, e como já referimos,

depois da arca tumular de Dom Rodrigo Sanches (†1245) – a primeira, em termos

cronológicos, que se conserva no nosso país –, a segunda é a do bispo Dom Tibúrcio

de Coimbra (c. 1253) e, logo após, as outras desta mesma catedral e também as de

Évora. Confi rma-se, assim, o sentido pioneiro que os membros do episcopado reve-

lam no assumir da sua representação em arcas funerárias dotadas de jacente, nisto

se aproximando do que acontecia, por norma, um pouco por toda a Europa26.

A segunda consideração diz respeito à homogeneidade que, no essencial, todos estes

jacentes revelam na sua representação, oferecendo-se como um verdadeiro modelo

iconográfi co. É verdade que há algumas variações, sobretudo nos gestos, mas esta

circunstância, segundo pensamos, só acrescenta valor à densidade do sentido social

que impregna todas estas representações episcopais. Aliás, é interessante fazer notar

que as diferenças maiores dizem respeito aos jacentes isolados dos bispos de Braga,

Lisboa e Porto, ganhando assim maior destaque a sua não inclusão num grupo como

os que defi nem os bispos de Coimbra e de Évora. Procurou-se, conscientemente ou

não, uma individualização que culmina na proposta, entre todas a mais original, do

bispo do Porto Dom Afonso Pires, um exemplo interessante de como a novidade e

originalidade iconográfi cas não andam necessariamente de mãos com a qualidade

escultórica e estética.

Pode-se, deste modo (e será a terceira consideração), falar de uma consciência assu-

mida de pertença a um grupo. Todos estes jacentes (à excepção, uma vez mais, de

Dom Afonso Pires) têm os olhos fechados, acompanhando, neste pormenor, o que

sucedia em Inglaterra e em Itália (Recht 1999, 347-348)27. Trata-se, por conseguinte,

do assumir da representação da morte cristã, proposta como exemplo aos cristãos,

como se fora um último ensinamento catequético daquilo que é apanágio da função

episcopal. Este pormenor ganha ainda maior consistência se pensarmos que os jacen-

fig.22 túmulo com jacente do bispo dom afonso pires. jacente-pormenor balsemão. igreja de são pedro. © projecto imago. fotografia de joana ramôa

26. Neste contexto, este é mais um argumento a

considerar em relação ao problema da identifi ca-

ção da arca tumular da rainha Dona Beatriz, con-

servada no Mosteiro de Alcobaça, e que, como já

referimos, tem vindo a ser ultimamente identifi -

cada como sendo da rainha Dona Urraca (†1220),

hipótese com a qual não concordamos. A preco-

cidade das representações episcopais portugue-

sas não deixa grande margem de manobra (pese

embora a possibilidade de haver sempre casos de

excepção) para o aparecimento, nos princípios do

século XIII, de uma arca com a monumentalidade,

as representações iconográfi cas e um jacente de

rainha como aquele de Alcobaça. Este é, de qual-

quer modo, um dos temas a ser desenvolvido por

Joana Ramôa na investigação que se encontra a

realizar no âmbito do Doutoramento.

27. Acrescenta este autor que em França só na

primeira metade do século XIV os jacentes come-

çam a ser representados com os olhos fechados,

ao contrário de outras regiões como as já citadas

de Inglaterra e Itália.

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28. LK, I, 138, p. 24. Cit. in Ventura 1998 151,

nota 46. Cfr. também Silva 2005, 56-57.

tes da nobreza em Portugal, tanto masculinos como femininos, se apresentam, por

norma, de olhos abertos. Assim, os bispos assumem a representação do momento da

morte, da passagem para o Além, como a imagem por excelência a deixar na memória

dos vivos, numa verdadeira catequese da bem aventurança cristã que será dada em

recompensa aos justos. O sorriso sereno que parece colorir o rosto de todos eles é

o indício dessa felicidade eterna que, como bons pastores, deixam em exemplo aos

seus fi éis. O dragão e o leão ou os anjos sobre que os seus pés repousam (e que não

se repetem em jacentes de leigos), acentuam e esclarecem esta via de doutrinação

– é a vitória do Bem sobre o Mal, o triunfo da virtude sobre o pecado.

No Livro das Kalendas da Sé de Coimbra resume-se, de forma feliz e inédita,

o sentido último destas representações escultóricas. Ao referir-se a capela de Santa

Clara, mandada construir por Dom Egas Fafes de Lanhoso (†1268) na sua catedral para

aí se sepultar, diz-se expressamente que este bispo «iacet honorifi ce intus in capella

sancte Clare quam construi fecit in próprio monumento sculpto immagine episcopali»28.

A representação, já aqui analisada, de Dom Egas Fafes, cuja imagem, esculpida no

seu monumento, o representa nas suas funções episcopais, desvela a proposta fun-

damental contida nesta iconografi a. O que se procura é o retrato social e não ainda

individual; o que se esculpe, em monumentos de cada vez maior grandiosidade, é a

imagem do estatuto gozado em vida e defi nível pelos respectivos atributos: no caso

dos bispos, e para além dos paramentos pontifi cais, o anel, a mitra, o báculo, como

estando no exercício das suas funções. A par, naturalmente, dos merecimentos esté-

ticos e artísticos que estes monumentos atingem, é esta, talvez, a mensagem mais

profunda destes corpos que, ambiguamente, jazem deitados mas se representam

como de pé – uma, apenas, das muitas ambiguidades com que a imagem medieval

se coloca perante os nossos olhos, num desafi o constante à sua interpretação e

compreensão. •

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fig.23 túmulo com jacente do bispo dom egas fafes de lanhoso. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Resumée

La légende des Trois Maries, les demi-sœurs nées du trinubium de sainte Anne,

fut largement diffusée à partir du XIIIe siècle par la Légende dorée de Jacques de

Voragine. L’émergence précoce du culte et de l’iconographie des Trois Maries à Paris,

à partir du milieux du XIVe siècle, a été favorisée par la rencontre entre un miracle

de guérison, en ordre religieux: les Carmes, en quête de légitimation et une reine

de France: Jeanne d’Evreux, dont la descendance fut exclue de la succession au

trône. L’iconographie des Trois Maries, dont Jean Venette, auteur carme, raconta

l’histoire dans un long récit versifi é, est attestée dans les manuscrits et sur d’autres

supports. •

Resumo

A lenda das Três Marias, as meias-irmãs nascidas do trinubium de Santa Ana, foi

amplamente difundida a partir do século XIII pela Legenda Áurea de Jacques de

Voragine. O surgimento precoce do culto e da iconografi a das Três Marias em Paris,

a partir de meados do século XIV, foi favorecido pela confl uência de um milagre de

cura, uma ordem religiosa à procura de legitimação – a Ordem do Carmo – e uma

rainha de França – Joana de Évreux – cuja descendência fora excluída da sucessão

ao trono. A iconografi a das Três Marias, cuja história é narrada por Jean Venette,

autor carmelita, num longo relato em verso, aparece em manuscritos e em outros

suportes. •

mots-clés

iconographie de mariexivème et xvème siècletrois mariesordre des carmesjoana de évreux

palavras-chave

iconografia marianaséculos xiv e xvtrês mariasordem do carmojoana de évreux

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claudia rabelInstitut de recherche et d’histoire des textes (CNRS)

Paris – Orléans

des histories de famillela dévotion aux trois mariesen france du xive au xve siècletextes et images 1

Jésus avait des frères: les évangélistes le disent à plusieurs reprises2. Pour expli-

quer ces témoignages de l’Ecriture sainte, inconciliables avec la virginité de Ma-

rie, la légende s’en empara et créa autour du Christ une famille charnelle élargie

avec des cousins, à partir du trinubium de sainte Anne, la mère apocryphe de la

Vierge. Après la mort de Joachim, Anne aurait eu deux autres filles, elles aussi

appelées Marie, nées de ses unions avec Cléophas puis Salomé (voir tableau 1).

La tradition de ses trois mariages fut largement diffusée à partir du XIIIe siècle par

la Légende dorée de Jacques de Voragine3. De ce fait, le Christ apparaît à la fin

du Moyen âge issu d’un lignage matrilinéaire. Sur le modèle de l’ancien arbre de

Jessé, dominé par les hommes, les artistes créent l’arbre de la parenté de sainte

Anne, qui souligne le rôle des femmes dans l’histoire du salut4. A cette époque, la

crise démographique contribue à revaloriser le mariage et la maternité; c’est dans

ce contexte que se développe l’iconographie bien connue de la Sainte Parenté

élargie, qui se déploie, surtout à partir de la fin du XVe siècle, dans des tableaux

aux personnages toujours plus nombreux5. On sait beaucoup moins que le culte des

Trois Maries, filles de sainte Anne, se développa dès avant le milieu du XIVe siècle

à Paris, favorisé par la rencontre entre un miracle de guérison, un ordre religieux

en quête de légitimation et une reine de France dont la descendance fut exclue

de la succession au trône.

1. Cette recherche a été une première fois pré-

sentée le 12 juillet 2007 au International Medie-

val Congress à Leeds. Elle prolonge l’enquête,

dont elle reprend des éléments, menée avec Hé-

lène Millet: «Dévotion carme et premiers jubilés:

la Vierge de miséricorde du Puy-en-Velay (début

du XVe siècle)», actes du colloque Jubilé, jubilés,

Le Puy-en-Velay, 2005, sous presse.

2. Matthieu 12, 46 et 13, 55; Marc 3, 31-32;

Jean 7, 3 et 5.

3. La légende est déjà attestée au IXe siècle dans

les Historiae sacrae epitome autrefois attribuées

à Haymon de Halberstadt (PL 118, 824). Jac-

ques de Voragine la rappelle à l’occasion de la

fête de la Nativité de la Vierge (chap. 127). Beda

KLEINSCHMIDT, Die heilige Anna. Ihre Verehrung

in Geschichte, Kunst und Volkstum, Düsseldorf,

Schwann, 1930, en particulier p. 252-262 (lé-

gende du trinubium).

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d e s h i s t o i r e s d e f a m i l l e

La naissance du culte des Trois Maries

à Paris

La miniature des Trois Maries avec leurs sept fi ls, dans un livre d’heures du troisième

quart du XVe siècle à l’usage de Chartres, rappelle l’origine de ce culte6 (fi g. 1). La

Vierge à l’Enfant trône entourée de ses demi-sœurs avec leurs fi ls: Marie Salomé avec

Jean l’évangéliste et Jacques le Majeur, et Marie Jacobé avec Jacques le Mineur,

Joseph le Juste, Jude Thaddée et Simon7. La miniature précède la prière O nobile

collegium sanctarum sororum trium, composée par Pierre Bernard, dit de Nantes. De

1328 à 1335 au plus tard celui-ci fut évêque de Saint-Pol-de-Léon en Bretagne. Très

malade, il s’était retiré au Sud de Paris, à Chailly (aujourd’hui Chilly-Mazarin) près

de Longjumeau où il y avait un prieuré des chanoines du Val-des-Ecoliers. Par cette

prière il s’adressa aux saintes Marie Jacobé et Marie Salomé, sans doute après avoir

appris les récents miracles opérés sur leur tombeau en Provence, aux Saintes-Ma-

ries-de-la-Mer près d’Arles. Les saintes lui apparaissent en son sommeil, le soignent

d’onguents et lui promettent la guérison. La miniature du livre d’heures les montre

comme des mères d’apôtres et des sœurs de la Vierge, mais les fi gure simultanément

comme deux des Saintes Femmes qui, le dimanche de Pâques, s’étaient rendues

en compagnie de Marie-Madeleine au tombeau vide du Christ8. Elles sont munies

ici de véritables pots de médecine qui rappellent leur pouvoir thaumaturge, tout

comme leurs habits blancs semblent rappeler l’événement pascal de la Résurrection,

lorsqu’elles furent accueillies par l’ange (ou deux anges) d’un blanc éblouissant.

A son réveil, Pierre de Nantes est guéri et accomplit le pèlerinage promis sur leur

tombeau. Il compose également un offi ce et fonde trois autels en l’honneur des Trois

Maries, dans la cathédrale de Nantes, sa ville d’origine, à Longjumeau, et à Paris au

couvent des carmes. Il est possible que sa guérison eût lieu vers 1342, date à laquelle

la fête des Trois Maries, le 25 mai, devient fête double dans l’ordre des carmes9. En

effet, nous connaissons l’histoire de Pierre de Nantes uniquement par Jean Fillons

dit de Venette, frère carme au couvent de Paris. Il la raconte à la fi n de son Histoire

des Trois Maries, un long récit en vers achevé en 1357 et écrit à l’instigation d’un

ami qui est peut-être Pierre de Nantes lui-même10.

Cette promotion précoce du culte des Trois Maries s’insère dans la légende de fonda-

tion de l’ordre carme, élaborée à Paris à partir des années 128011. Il fut fondé comme

ordre érémitique vers le milieu du XIIe siècle au Mont Carmel en Terre sainte, avant

d’être assimilé en Occident aux ordres mendiants, à partir de 127412. Souffrant de l’ab-

sence d’un illustre fondateur historique, à l’instar des franciscains et des dominicains,

les carmes faisaient remonter leurs origines beaucoup plus loin, jusqu’au prophète

Elie de l’Ancien Testament. L’ordre, en la personne de saints ermites vivant au Mont

Carmel, y aurait existé sans interruption depuis l’époque du prophète. Bien avant la

naissance du Christ, ces ermites auraient voué un culte à la Vierge qui allait enfanter le

Fils de Dieu. Leur vie au Mont Carmel est enrichie de détails pittoresques, rapportant

entre autres que sainte Anne leur rendait visite avec ses fi lles et ses petits-fi ls. Les

fig.1 les trois maries et leurs enfants. heures à l’usage de chartres, paris (?), 3e quart xve s, stockholm, musée national, b 1211, f. 207v

4. Un des premiers exemples est peint dans un

manuscrit allemand de 1417: Heidelberg, Uni-

versitätsbibliothek, Cod. Pal. Lat. 411, f. 36v

(Amberg ou Heidelberg?), Bibliotheca Palatina,

cat. exp. éd. Elmar MITTLER, Heidelberg, Braus,

1986, vol. 1, p. 190-191 (n.° E 1.2), vol.2, p.139

(fi g. coul.).

5. Sur la Sainte Parenté: Martin LECHNER,

«Sippe, Heilige», dans Lexikon der christlichen

Ikonographie, dir. Engelbert KIRSCHBAUM et

Wolfgang BRAUNFELS, vol. 4, Rome, Fribourg,

Bâle, Vienne, Herder, 1972, col. 163-168; pour

une mise au point récente: Pamela SHEINGORN,

«Appropriating the Holy Kinship. Gender and Fa-

mily History», dans Interpreting Cultural Symbols.

Saint Anne in Late Medieval Society, éd. Kath-

leen ASHLEY et Pamela SHEINGORN, Athens,

Londres, The University of Georgia Press, 1990,

p. 169-198.

6. Stockholm, Musée national, B 1211, f. 207v,

livre d’heures sans doute enluminé à Paris; Carl

NORDENFALK, Bokmålningar fran medeltid och

renässans i Nationalmusei samlingar, Stockholm,

Rabén & Sjögren, n.° 29 p. 108-109 et pl. XIII.

Le culte des Trois Maries est introduit à Chartres

à la fi n du XIVe siècle à la suite de la fondation de

Charles V, cf. infra.

7. Marie, mère de Jacques le Mineur (Marc 15,

40) est traditionnellement identifiée à Marie

Cléophas, sœur de la Vierge selon Jean 19, 25.

Des sept enfants, seul Joseph le Juste ne fait pas

partie des apôtres.

8. Seul Marc 16,1 nomme explicitement les trois

saintes Femmes qui se rendent au Tombeau du

Christ: «Maria Magdalene et Maria Iacobi et

[Maria] Salome».

9. Victor LEROQUAIS, Les bréviaires manuscrits

des bibliothèques publiques de France, Paris, s.

n., 1934, vol. 1, p. CXI.

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carmes, qui devaient régulièrement défendre leur droit de s’appeler «Frères de Notre

Dame du Mont Carmel», pouvaient donc revendiquer une familiarité toute particulière

avec les trois saintes Maries et avec la compagnie des frères apôtres, leurs enfants.

Il est possible que la guérison de son ami Pierre de Nantes ait donné l’idée à Jean

de Venette de «récupérer» les Trois Maries au profi t de son ordre et de son enraci-

nement légendaire en Terre sainte. Pour ce faire, il lui fallut opérer un subtil glisse-

ment. En Provence, Marie Jacobé et Marie Salomé étaient liées à Marie-Madeleine,

formant avec elle le groupe des Saintes Femmes qui s’étaient rendues au tombeau

du Christ. Selon la légende locale, pas antérieure à la fi n du XIIe siècle, elles seraient

venues de Terre sainte et auraient débarqué en Camargue en accompagnant l’illus-

tre pécheresse repentie, sa sœur Marthe, son frère Lazare et Maximin13. De fi gures

secondaires, Jean de Venette fait les protagonistes vedettes, auprès desquelles il

remplace Marie-Madeleine par la Vierge, leur demi-sœur: ainsi, les deux Maries au

pouvoir thaumaturge pouvaient être associées à la mère du Christ, patronne de

l’ordre des carmes, et la nouvelle triade être promue et vénérée comme les fi lles de

sainte Anne. Afi n de valoriser les deux sœurs, il affi rme pour l’arrivée de leurs corps

en Camargue une légende indépendante de celle de Marie-Madeleine, en contra-

diction avec la tradition provençale. L’auteur de l’Histoire des Trois Maries leur crée

une histoire propre, d’autant plus prestigieuse qu’elle passe par le siège de saint

Pierre. A la recherche de son fi ls Jean l’évangéliste, Marie Salomé accompagnée de

Marie Jacobé, quitte en effet la Terre sainte pour Rome. Ne l’y ayant pas trouvé,

elles continuent leur voyage vers le Sud, puis meurent l’une après l’autre à Veroli

où elles sont rapidement vénérées comme saintes14. Leurs reliques sont cédées à un

chevalier provençal qui avait sauvé la ville attaquée par des Sarrasins. Il les translate

en Camargue et les enterre solennellement dans la crypte de l’église qui deviendra

celle des Saintes-Maries-de-la-Mer. L’auteur carme insiste sur le pouvoir des deux

sœurs, qui se révèle plus grand que la volonté du prince: Robert d’Anjou, roi de Sicile

et comte de Provence, ne put séparer les deux corps miraculeusement fusionnés et

dut renoncer à translater l’un d’eux à Marseille.

La promotion des Trois Maries, fi lles de sainte Anne, réussit car, aux dires de Jean

de Venette, Pierre de Nantes leur fonda un bel autel, orné d’un tableau peint, dans

la sacristie de l’église parisienne des carmes:

Un bel autel aussi fonda

A Paris, ou revestiaire

Des Carmelistres le fi st faire

Et de ses mains le dedya

Ou nom des suers ou se fya ;

Belle painture et delittable

Mist sur l’autel en une table15.

La réputation des saintes dut vite se répandre car en 1347, leur fête est solen-

nisée dans le diocèse de Paris et gratifi ée d’indulgences, accordées à tous ceux

10. L’Histoire des Trois Maries est un long récit

de 35 à 40 000 octosyllabes, divisé en deux li-

vres; l’affi rmation de l’auteur de l’avoir traduite

du latin relève sans doute, au moins en partie,

du topos littéraire. Le premier livre raconte l’his-

toire biblique et apocryphe jusqu’à la mort de la

Vierge; le second relate la vie ultérieure de ses

deux sœurs jusqu’à leur mort en Italie du Sud, la

translation de leurs reliques en Provence, le mira-

cle de Pierre de Nantes et le mécénat de Jeanne

d’Evreux. L’œuvre est inédite, mais les passages

se référant à l’histoire récente ont été publiés par

plusieurs auteurs: Etienne-Michel FAILLON, Mo-

numents inédits sur l’apostolat de sainte Marie-

Madeleine en Provence, Petit-Montrouge, Aux

ateliers catholiques, 1848, t. I, col. 1316 et t. II,

col. 945-950; Jean BONNARD, Les traductions

de la Bible en vers français au Moyen Âge, Paris,

Imprimerie nationale, 1884, p. 196-206; Alfred

COVILLE, «Jean de Venette, auteur de L’Histoire

des Trois Maries», dans Histoire littéraire de la

France, t. 38, Suite du XIVe siècle, Paris, Impri-

merie nationale, 1949, p. 355-404. La mise en

prose par Jean Drouyn, datée de 1505 et plu-

sieurs fois éditée au XVIe siècle, peut être consul-

tée sur le site Gallica de la Bibliothèque nationale

de France (http://gallica.bnf.fr/).

Il est diffi cile de suivre les spécialistes selon les-

quels l’auteur de l’Histoire des Trois Maries aurait

eu un homonyme contemporain, carme à Paris et

originaire de Venette près de Compiègne comme

lui, auquel il faudrait attribuer la chronique latine

de 1340 à 1368 (cf. Dictionnaire des lettres fran-

çaises. Le Moyen Âge, nouv. éd. dir. Geneviève

HASENOHR et Michel ZINK, Paris, Fayard, 1992,

p. 290-291 et 1452-1453). Coville, p. 358 iden-

tifi e l’auteur des Trois Maries au Jean de Venette

qui fut prieur du couvent de Paris, dès 1339 pro-

vincial de France puis provincial de Provence.

11. Rudolf HENDRIKS, «La succession héréditaire

(1280-1451)», dans Elie le prophète, II, Au Car-

mel, dans le judaïsme et l’Islam, Paris, Desclée

de Brouwer, 1956 (Etudes carmélitaines, t. 35,

2), p. 34-81.

12. Melchior de SAINTE-MARIE, «Carmel (Ordre

de Notre-Dame du Mont-Carmel)», dans Diction-

naire d’histoire et de géographie ecclésiastique, t.

11, Paris, Letouzey et Ané, 1949, col. 1070-1104.

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d e s h i s t o i r e s d e f a m i l l e

qui «festeront, o l’istoire d’elles prescheront, liront ou escouteront attentilment et

devotement16».

Le rôle de Jeanne d’Evreux

Cette nouvelle promotion des saintes est peut-être directement liée à l’entrée en

scène de la reine Jeanne d’Evreux qui va devenir la véritable bienfaitrice des carmes

parisiens17. De même, ce n’est sans doute pas un hasard si l’essor de la sainte parenté

d’Anne eut lieu en France, au moment même où les descendants par les femmes

étaient exclus de la succession au trône. En 1325, en effet, Jeanne d’Evreux, arrière-

-petite-fi lle de saint Louis, devint la troisième femme de Charles IV qui espérait enfi n

obtenir d’elle un fi ls héritier (voir tableau 2). Mais comme sainte Anne, la reine n’eut

que trois fi lles. A la mort de Charles IV en 1328, Jeanne étant enceinte, le cousin du

roi, fi ls de son oncle paternel, est nommé régent. Lorsqu’elle accouche d’une fi lle

–Blanche, la future duchesse d’Orléans – il monte sur le trône et devient Philippe VI,

premier roi Valois. Contrairement à la grand-mère du Christ et des apôtres, le lignage

royal féminin fut donc refusé à Jeanne d’Evreux18. Mais pendant plus de quarante

ans, jusqu’à sa mort en 1371, la dernière reine capétienne sera la doyenne, estimée

et respectée, de toutes les femmes de caractère qui gravitent à la cour de France au

XIVe siècle, artisane de la paix dans le confl it entre les Valois et les Evreux-Navarre.

Ces reines et princesses, souvent devenues veuves jeunes, sont citées en exemple

de bon gouvernement aux princes qui se querellent et se combattent19. Dans ce

contexte, Jean de Venette ne dut guère avoir de mal à gagner le soutien de Jeanne

d’Evreux pour promouvoir le culte des Trois Maries, «sœurs de noble lignage», modèle

de conduite pour des vies exemplaires d’épouses, de mères ou de veuves, et modèle

de piété, de sagesse et de bonne entente.

Par son engagement auprès des carmes, Jeanne suit l’exemple de son arrière-grand-

-père saint Louis et perpétue ainsi la mémoire de la lignée des Capétiens. Car leur

couvent parisien peut se vanter d’avoir été fondé par le saint roi lui-même qui, en

1254, rentra de Terre sainte avec six frères du Mont Carmel20. Depuis cette époque,

le couvent fut comblé de dons et de faveurs par les rois, reines et princesses. Grâce

à Philippe V, les carmes s’installent en 1318 place Maubert, sur la rive gauche près

de l’université. Après une première chapelle, une église plus vaste est construite à

partir de 1345 environ, largement fi nancée par le don de joyaux et d’argent fait en

1349 par Jeanne d’Evreux. En 1354, elle se rend place Maubert pour assister à la

dédicace de la nouvelle église, en compagnie de trois autres reines, ses nièces Blan-

che de Navarre, veuve de Philippe VI, Jeanne de Boulogne, femme de Jean II le Bon,

et Jeanne, reine de Navarre21. Ce cortège de femmes n’est pas sans évoquer les visites

que sainte Anne et ses fi lles auraient rendues aux frères ermites du Mont Carmel,

telle qu’on le voit sur un des panneaux du grand retable des carmes de Francfort,

peint par un maître fl amand en 149322.

13. Henri LECLERCQ, «Maries-de-la-Mer (Les

Saintes-)», dans Dictionnaire d’histoire et de

géographie ecclésiastique, t. 10, Paris, Letouzey

et Ané, 1931, col. 2119-2128.

14. Jean de Venette se sert ici, à partir de sour-

ces qu’il reste à déterminer, de la légende de Ma-

rie Salomé, vénérée à Veroli depuis la découverte

de ses reliques en 1209; A. COVILLE (cité n. 10),

p. 392-395.

15. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 1531, f. 221.

16. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 1531, f. 222v-

223; E.-M. FAILLON (cité n. 10), t. II, n.° 148

col. 949-952.

17. Voir l’étude, non exempte d’erreurs, de Ma-

rie-Laure LEMONNIER, «Jeanne d’Evreux, reine

de France (1310-1371), bienfaitrice des carmes»,

dans Connaissances de l’Eure, n.° 127, janvier

2003, p. 13-30; n.° 128-129, avril et juillet 2003,

p. 65-75.

18. Il en fut de même pour les autres préten-

dants au trône, petits-fi ls de rois capétiens par

leur mère: Edouard III d’Angleterre et Charles II

de Navarre dit le Mauvais; cette décision fut à

l’origine de la guerre de Cent ans et du confl it

des Valois avec les Evreux-Navarre.

19. Françoise AUTRAND, Jean de Berry. L’art et

le pouvoir, Paris, Fayard, 2000, p. 69-72.

20. Comme le montre un bois gravé des Heures

à l’usage carme imprimées à Lyon (?) en 1516:

Angers, Bibl. de l’Université catholique, imprimé

non coté; bois utilisé plusieurs fois dès le f. 1. Les

anciens historiens de Paris ont tous relevé les fa-

veurs accordées par la maison royale au couvent

des carmes depuis sa fondation; voir notamment

Michel FELIBIEN, Histoire de la ville de Paris...

Justifiée par des preuves authentiques..., éd.

Guy-Alexis LOBINEAU, Paris, Desprez et Deses-

sartz, 1725, t. I, p. 353-358 et t. II, p. 215-228

(preuves).

21. M. FELIBIEN (cité n. 20), t. II, p. 223 : charte

de 1361 confi rmant les dons faits lors de la dé-

dicace de l’église des carmes en 1354; parmi eux

fi gurait une statue d’argent de la Vierge à l’En-

fant, contenant des reliques de son lait et des

cheveux du Christ, qui dut ressembler à celle que

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L’autel des Trois Maries fondé par Pierre de Nantes se trouvait dans la sacristie

détruite lors de la construction de la nouvelle église. Jean de Venette nous apprend

que Jeanne d’Evreux le fi t transférer à un endroit plus prestigieux, derrière le maître-

-autel dans le chœur des religieux. Il cite même le nom de l’artiste du nouveau

tableau d’autel, un certain Maître Thierry, malheureusement inconnu par ailleurs,

auteur de belles peintures des Trois Maries, représentées avec leurs fi ls et leurs époux:

Dedens le cuer sont leur auteulz.

Vous ne verrez jamaiz auteulz

Telz ymages ne telz fi gures,

Qu’i sont toutes les pourtraitures.

N’y a celle ne gette un ris:

Telles les fi st maistre Thierris.

Et ce fi st faire la royne

Jehenne d’Evreux qui tant fu fi ne […]

Derrier le grant autel querez

Au long du cuer la trouvez

L’autel moult bel et les paintures

Des Maries et les fi gures

De leur maris et de leurs fi lx

Tout y est mis, je vous affi s

Ne verrez maiz plus biaux ymages

Si bien pourtraiz ne telz visages.

Tout ce fi st faire une grant dame23.

L’iconographie des Trois Maries

Bien que le récit de Jean de Venette ne lui fût pas explicitement dédié, Jeanne

d’Evreux dut certainement en recevoir un exemplaire. Mais parmi les manuscrits

conservés, les plus anciens datent seulement des années 1380-1395. Ce sont trois

copies parisiennes conservées à la Bibliothèque nationale de France qui permettent

toutefois d’imaginer un luxueux manuscrit de dédicace, car ils possèdent tous l’es-

pace réservé pour des miniatures non exécutées en tête de très nombreux chapi-

tres. L’unique illustration du français 12468 présente les Trois Maries seules, debout

côte à côte (f. 1); en transcrivant les rubriques, le copiste a conservé la mention

des «ymages» ou «hystoires» de son modèle24. Dans les manuscrits français 1531 et

1532, l’iconographie de la miniature frontispice diffère elle aussi de la description

de l’autel fondé par Jeanne d’Evreux (fi g. 2 et 3). La Sainte Parenté s’y organise

autour de la fi gure matriarcale, fondatrice de la lignée; Anne porte sur ses genoux

la Vierge avec l’Enfant, ce qui ajoute le thème de sainte Anne trinitaire25. Ces deux

Jeanne offrit en 1339 à Saint-Denis et qui est

aujourd’hui conservée au Louvre.

22. Retable de la chapelle Sainte-Anne, aujourd’hui

conservé au Musée historique de Francfort sur le

Main; reproduit dans K. ASHLEY et P. SHEIN-

GORN (cité n. 5), «Introduction», fig. 9-24.

23. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 1531, ff. 115-

115v et 221.

24. Eva Lindquist SANDGREN, The Book of

Hours of Johannete Ravenelle and the Parisian

Book Illumination, Uppsala, Uppsala University

Library, 2002, p. 86-87 et fi g. 66.

25. Les manuscrits possèdent, en plus de l’illus-

tration frontispice au f. 1, des miniatures de la

Crucifi xion et de la Dormition de la Vierge (fr.

1531, ff. 73 et 131v ; fr. 1532, ff. 79 et 144).

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exemplaires jumeaux apparaissent étroitement liés au couvent parisien des carmes:

par l’inclusion, à la fi n, des indulgences déjà mentionnées, avec la précision que leur

copie scellée s’y trouve, et par l’ajout d’un portrait d’auteur en tête du livre. Ils se

ressemblent encore par la fi guration des destinataires, une femme (fr. 1531) et un

couple (fr. 1532), en marge du premier feuillet: faisaient-ils partie des laïcs dévots

des Trois Maries qui, en 1401, obtiendront de Charles VI l’autorisation de fonder en

l’église des carmes une confrérie en l’honneur des saintes sœurs26?

L’intérêt porté aux Trois Maries par plusieurs membres de la famille royale est attesté

dans la seconde moitié du XIVe et au début du XVe siècle. La manifestation la plus

éclatante en revient à Charles V. La dévotion du roi a pu être stimulée par celle qu’il

voua à la Trinité et dont les saintes sœurs forment, en quelque sorte, un pendant

féminin, «auréolées» par leurs fi ls dont le nombre sept, hautement symbolique, évo-

que la perfection. En 1367 Charles V se rendit avec la reine Jeanne de Bourbon à

26. Les deux manuscrits appartenaient à Jacques

d’Armagnac, duc de Nemours ; après la confi sca-

tion de ses biens ils passèrent dans la bibliothè-

que des Bourbons où leurs armoiries d’origine fu-

rent surpeintes. La fondation de la confrérie des

Trois Maries au couvent parisien des carmes est

mentionnée par Jacques DU BREUL, Le théâtre

des Antiquitez de Paris, Paris, 1639, p. 431.

fig.3 la sainte parenté, portrait d’auteur et destinataires. jean de venette, histoire des trois maries, paris, fin du xive s. paris, bibl. nat. de france, ms. fr. 1532, f. 1

fig.2 la sainte parenté, portrait d’auteur et destinatrice. jean de venette, histoire des trois maries, paris, fin du xive s. paris, bibl. nat. de france, ms. fr. 1531, f. 1

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Chartres, pour prier la Vierge de leur accorder la naissance d’un fi ls. A cette occasion,

il fonda dans la cathédrale une chapelle dédiée aux Trois Maries, située sous le jubé,

à gauche de l’entrée du chœur. Son autel était orné d’un groupe sculpté des saintes

sœurs, et on y transféra la précieuse relique de leur mère, le chef de sainte Anne.

Le missel destiné à cette chapelle rappelle la fondation royale et précise qu’un an

après, en 1368, le premier fi ls du roi, le futur Charles VI, est né grâce à l’intercession

des Trois Maries27. L’idée de cet acte de dévotion royal pouvait seulement provenir

du milieu des carmes parisiens, dont les bons conseils auraient alors été à l’origine

de la naissance du dauphin...! Un des intermédiaires a sans doute été Jean Golein,

prieur du couvent parisien, confesseur de la reine et, surtout, un des plus prolifi ques

traducteurs au service de Charles V. En 1372 Golein acheva pour le roi la traduction

française du Rationale divinorum offi ciorum de Guillaume Durand. Son infl uence

expliquerait l’image insolite qui illustre le livre 5 dans l’exemplaire de dédicace de

cette encyclopédie liturgique (fi g. 4). Le livre 5 étant consacré à l’offi ce, la miniature

27. Chartres, Bibl. mun., ms. 591, f. 84v (ms.

détruit); Yves DELAPORTE, «Une fondation du

roi Charles V. Notes sur le culte de sainte Anne

et des Trois-Maries», La voix de Notre-Dame de

Chartres, 1914, p. 124-129.

fig.4 clercs chantant l’office devant l’autel des trois maries. guillaume durand, rational des divins offices (trad. jean golein), paris, 1374. paris, bibl. nat. de france, fr. 437, f. 180

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montre des clercs chantant devant un autel. Or cet autel est orné du groupe sculpté

des Trois Maries avec leurs enfants, qui évoque certainement «l’autel du roi Charles»

fondé dans la cathédrale de Chartres. La Vierge y allaite son Fils, peut-être par allu-

sion à la maternité royale désirée28. Dans son manuscrit des Grandes Chroniques de

France, Charles V a tenu à inclure, parmi les événements de son règne, une miniature

de la procession de baptême de son fi ls29. L’enfant est porté par sa marraine, Jeanne

d’Evreux. Ce choix et cette mise en scène ont été interprétés comme la volonté de

souligner la continuité dynastique entre Capétiens et Valois. Ils révèlent peut-être

aussi le rôle infl uent joué par la reine veuve, mécène des carmes et plaidant aux

côtés de Golein pour la dévotion envers les fi lles de sainte Anne.

Dans l’église des carmes de Paris, le «grant autel des trois Maries»30 fondé par Jeanne

d’Evreux et décrit par Jean de Venette, devait être inaccessible aux membres de

la confrérie fondée en 1401, car il se situait dans le chœur des religieux. Pour les

célébrations en l’honneur des saintes sœurs, les confrères devaient donc disposer

d’un autre autel dans l’église. Nous en ignorons tout, à l’exception de quelques

témoignages artistiques indirects.

La Vierge au manteau du Puy-en-Velay

Le premier de ces témoignages est une grande toile peinte, peut-être la plus ancienne

en France, que possède le Musée Crozatier du Puy-en-Velay, en Auvergne31 (fi g. 5).

Il s’agit d’une Vierge de miséricorde du type Mater omnium, qui protège sous son

manteau la chrétienté entière : le clergé à sa droite, du pape à la moniale, et les laïcs

à sa gauche, de l’empereur à la femme du peuple. Cette Vierge au manteau, repré-

sentée ici avec son Enfant, est l’unique exemple connu où ce thème est associé à

celui des Trois Maries: ce sont Marie Salomé et Marie Jacobé qui tiennent ouvert son

manteau derrière lequel apparaissent leurs enfants, exceptionnellement représen-

tés comme adultes. L’iconographie complexe de cette œuvre s’inscrit dans l’histoire

religieuse et politique contemporaine. A l’époque du Grand Schisme, de la guerre

de Cent Ans et des rivalités grandissantes entre les princes de la maison de France,

cette Vierge de miséricorde propose une vision irénique de l’Eglise et invite la famille

humaine à suivre l’exemple d’harmonie fraternelle de la famille de Jésus selon la

chair. Le vaste manteau inscrit un trait d’union rassurant entre l’Eglise triomphante,

la cour céleste des saintes sœurs avec leurs fi ls, et l’Eglise militante des vivants,

priant aux pieds de Marie.

Des éléments historiques, iconographiques et stylistiques indiquent que cette toile

était destinée à l’église des carmes du Puy-en-Velay, haut lieu de pèlerinage marial;

mais qu’elle a été peinte, dans la première décennie du XVe siècle, sans doute par un

des nombreux artistes actifs à Paris dans la sphère des princes «des fl eurs de lis»32. Le

lien entre Paris et Le Puy a pu être établi par Nicolas Coq. Ce frère carme avait fait ses

études de théologie à Paris et devint vers 1406 le prieur du couvent du Puy. C’était

28. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 437, f. 180 (Pa-

ris, 1374). Claudia RABEL, «L’illustration du Ra-

tional des divins offi ces de Guillaume Durand»,

Guillaume Durand, évêque de Mende (v. 1230-

1296), canoniste, liturgiste et homme politique,

actes de la Table ronde, Mende, 24-26 mai 1990,

éd. Pierre-Marie GY, Paris, CNRS, 1992 (p. 171-

181), p. 178.

29. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 2813, f. 446v

(Paris, vers 1375-1377).

30. Une fondation de messes de 1431 (n.st.) le

qualifi e de «grant autel des trois Maries»; Aubin-

Louis MILLIN, Antiquités nationales ou Recueil

de monumens, t. IV, Paris, Drouhin, 1792, p. 24.

31. 1,46 m de haut sur 1,93 m de large. Sur cette

œuvre, voir l’étude d’H. MILLET et C. RABEL ci-

tée n. 1 et dans l’ouvrage toujours fondamental

de Paul PERDRIZET, La Vierge de miséricorde.

Étude d’un thème iconographique, Paris, 1908

(Bibliothèque des Écoles françaises d’Athènes et

de Rome, 101), p. 154-158 et 175-178 n.° 67,

pl. XXI, fi g. 2.

32. Nos conclusions vont ainsi à l’encontre de

celles de Roger GOUNOT, «Observations et hy-

pothèses concernant la Vierge protectrice du

Musée du Puy (nov.-déc. 1417 ?) célébrant la

fi n du grand schisme», dans Gazette des Beaux-

Arts, 83, février 1974, p. 75-88.

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33. Le seigneur en blanc, singularisé par sa re-

présentation de profi l, porte une élégante houp-

pelande ornée de découpures alternativement

blanches et rouges qui reprennent les couleurs

des armoiries des Polignac, fascé: d’argent et de

gueules.

un intellectuel qui avait le profi l pour passer commande d’une œuvre aussi réfl échie.

Pour la fi nancer, il s’est sans doute adressé au puissant seigneur local, le vicomte

de Polignac, Randon-Armand X. A ce bienfaiteur des carmes du Puy il manquait un

héritier. Est-ce que Nicolas Coq lui avait raconté comment le roi Charles V eut un fi ls

grâce aux Trois Maries? Le vicomte de Polignac fut-il incité par cet exemple à faire un

acte de dévotion semblable envers les saintes sœurs? Cette hypothèse ainsi que des

détails vestimentaires permettent de reconnaître le prieur Nicolas Coq et le vicomte

de Polignac dans le frère carme et le seigneur en blanc, placés en bonne position et

exactement en vis-à-vis sous le manteau de la Vierge33.

fig.5 vierge au manteau, paris, vers 1400-1410, le puy-en-velay, musée crozatier

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La Vierge au manteau dans des livres

d’heures royaux

Non seulement les Trois Maries établissent un lien entre la Vierge du Puy, Paris et la

famille royale, mais le thème de la Vierge de miséricorde en constitue un autre. En

effet, trois livres d’heures parisiens étroitement apparentés, sans doute tous des-

tinés à la famille royale et confectionnés à une date très proche, contiennent une

miniature de la Vierge de miséricorde, sujet pourtant rare dans ce type de livres.

Il s’agit des célèbres Heures du duc de Bedford à Londres, dont Patricia Stirnemann

a montré qu’il faut y reconnaître un manuscrit commencé vers 1414-1415 pour

un membre de la famille royale, très probablement le dauphin Louis de Guyenne

(fi g. 6); des Heures Lamoignon de Lisbonne, sans doute enluminées pour Jeanne

de France, fi lle de Charles VI, et d’un manuscrit aujourd’hui à Vienne supposé avoir

appartenu à Charles VII34.

fig.6 vierge au manteau, heures de bedford, paris, vers 1414-1415. londres,

brit. lib., ms. add. 18850, f. 150v

34. Londres, Brit. Lib., ms. Add. 18850, f. 150v;

reprod. dans Eberhard KÖNIG, The Bedford

Hours. The Making of a Medieval Masterpiece,

Londres, The British Library, 2007, p. 108. Lis-

bonne, Musée Calouste-Gulbenkian, ms. LA 237,

f. 258v (dit aussi Heures d’Isabelle de Bretagne,

fi lle de Jeanne de France pour laquelle le manus-

crit a été adapté ; Paris 1400. Les arts sous Char-

les VI, cat. exp. Paris, dir. Elisabeth TABURET-DE-

LAHAYE, Paris, Réunion des musées nationaux,

Fayard, 2004, p. 353-354 n.° 220 où le ms. est

cité sous la fausse cote de LA 143). Vienne, Ös-

terreichische Nationalbibliothek, Cod. 1855, f.

145v ; reprod. dans Hermann J. HERMANN, Die

westeuropäischen Handschriften und Inkunabeln

der Gotik und der Renaissance mit Ausnahme der

niederländischen Handschriften, 3. Französische

und iberische Handschriften der ersten Hälf-

te des XV. Jahrhunderts, Leipzig, Hiersemann,

1938 (Beschreibendes Verzeichnis der illuminier-

ten Handschriften in Österreich, VIII. Band : Die

illuminierten Handschriften und Inkunabeln der

Nationalbibliothek in Wien, Teil 3), p. 173-174,

pl. LI. Je cite les manuscrits dans l’ordre chrono-

logique proposé par Patricia STIRNEMANN (avec

la collaboration de C. RABEL), « The ‘Très Riches

Heures’ and two artists associated with the Bed-

ford workshop », dans The Burlington Magazine,

147, 2005 (August), p. 534-538, en particulier p.

538. Les trois livres d’heures sont sortis de l’ate-

lier du Maître de Bedford qu’on propose d’iden-

tifi er au peintre Haincelin de Haguenau, attesté

au service de Louis de Guyenne (voir en dernier

lieu, E. König, op. cit., 2007).

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35. Seulement dans les Heures Lamoignon de

Lisbonne.

36. Paris, Musée national du Moyen Âge – Ther-

mes de Cluny, Cl. 9188 (14 cm de haut sur 12

cm de large). Adrien de LONGPERIER, dans Jour-

nal des savants, 1874 (septembre), p. 599-600

transcrit la mention fi gurant au dos de l’objet:

«L’an mil CCCC LX VIII donna ceste / paix Iehan

le Barbier orfevre a la / confrarie des trois Maries

dont / sa fi lle tenoit le baston / en ceste esglise

des carmes de Paris». Thomas RICHTER, Paxta-

feln und Pacifi calia. Studien zu Form, Ikonogra-

phie und liturgischem Gebrauch, Weimar, VDG,

2003, p. 41 et n. 87 ignorait qu’il était toujours

conservé; sa fi gure 19 reproduit une autre «paix»

qui peut en être rapprochée stylistiquement.

A cause du format allongé des miniatures, le clergé à gauche et les laïcs à droite se

blottissent davantage en profondeur sous le manteau marial que sur la toile peinte.

La Vierge, couronnée et sans voile comme au Puy, porte sur son bras droit l’Enfant nu

drapé dans un linge, le globe qu’il tient le désigne comme roi céleste. Dans ces trois

livres d’heures, elle est tout d’abord la protectrice des laïcs vers lesquels elle se pen-

che en soulevant délicatement un pan de son manteau. Contrairement à la Vierge au

manteau du Puy, une référence explicite à la maison royale française existe dans les

Heures de Bedford. Il est tentant d’identifi er au premier plan le roi vêtu du manteau

fl eurdelisé des souverains de France, à Charles VI; l’empereur à ses côtés est à la fois

archétypal et historique: son manteau héraldique parti d’Empire et de France permet

de reconnaître Charlemagne, ancêtre homonyme prestigieux du roi régnant. Derrière

celui-ci s’aligneraient alors la reine Isabeau, leurs trois fi ls Louis (au col d’hermine),

Jean et Charles, suivis de deux princesses. La miniature atteste à une date très pré-

coce la superposition de la Vierge de miséricorde à la Vierge au croissant de lune,

sur lequel elle se tient ici debout. Ce dernier thème, à connotation immaculiste,

est né de l’identifi cation avec Marie de la Femme de l’Apocalypse, enveloppée du

soleil et couronnée d’étoiles35, la lune sous ses pieds, qui est sauvée du Dragon

après avoir enfanté un fi ls. La famille royale se confi e ici à la protection d’une

Vierge, reine céleste victorieuse qui triomphe de l’Ennemi: une image d’une puissante

signifi cation à un moment particulièrement noir de l’histoire du royaume de France.

Malgré toutes leurs différences, la Vierge au manteau des Heures de Bedford partage

avec celle du Puy un air de famille certain. Cette «parenté d’esprit» repose surtout

sur un détail troublant: comme sur la toile peinte, l’enlumineur a brisé la symétrie

que le sujet impose pour adopter un point de vue décalé qui favorise le «portrait

de groupe» des laïcs, davantage montrés de face que le clergé. On peut même se

demander si le mouvement ascendant des deux groupes dans la peinture du Puy, qui

s’oppose à l’horizontalité stricte du manteau, ne traduit pas un modèle où la Vierge

se tenait sur un croissant de lune comme dans les Heures de Bedford. Ne pourrait-

-on imaginer l’existence d’un modèle commun, aujourd’hui perdu? La confrérie des

Trois Maries établie à partir de 1401 dans l’église des carmes à Paris n’aurait-elle pas

commandé une œuvre qui aurait pu servir de modèle à la toile du Puy et inspirer,

un peu plus tard, l’iconographie des livres d’heures royaux? L’écho lointain en est

peut-être perceptible dans le seul témoignage matériel conservé de cette confrérie.

Il s’agit d’une «paix» de cuivre doré qu’un certain «Jehan le Barbier orfèvre» offrit

en 1468; sur la face antérieure, à l’intérieur d’un cadre orfévré, les saintes sœurs

avec leurs enfants se détachent en bas-relief sur un fond bleu émaillé36 (fi g. 7). La

Vierge Marie porte l’Enfant vêtu d’une tunique assis sur son bras gauche, comme sur

la toile du Puy; elle est debout sur un croissant de lune comme dans les Heures de

Bedford. Comme les saintes sœurs assistant la Vierge de miséricorde, Marie Salomé

est voilée d’un tissu léger dont l’extrémité plissée retombe sur son épaule gauche;

ce dernier détail, ainsi que la fi guration des deux groupes d’enfants – avec Jacques

le Majeur en pèlerin – rapprochent le baiser de paix de la miniature des Trois Maries

dans le manuscrit français 1532.

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d e s h i s t o i r e s d e f a m i l l e

La parenté de sainte Anne dans les

Heures de Bedford

Les Heures de Bedford tiennent leur nom du couple de possesseurs qui l’acquit au

plus tôt en 1423. En cette année, Jean, duc de Bedford, régent du royaume de France

et d’Angleterre, épouse Anne, fi lle du duc de Bourgogne Jean sans Peur. Parmi les

remaniements du manuscrit, il y eut l’addition de leurs portraits. La miniature qui

montre Anne de Bourgogne est une composition particulièrement élaborée, où l’ico-

fig.7 les trois maries et leurs enfants. «paix» de la confrérie des trois maries dans l’église des carmes de paris, 1468.

paris, musée national du moyen âge, thermes de cluny

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 3 4

nographie de sa sainte patronne a été élargie à celle de toute sa parenté (fi g. 8).

La duchesse est agenouillée en prière devant une sainte Anne trinitaire, dont les

maris sont assis dans des cabinets d’étude superposés qui bordent la miniature à gau-

che: Joachim, Cléophas et Salomé. On peut suivre l’interprétation de Paul Payan qui

identifi e l’homme relégué derrière le fauteuil de la duchesse à saint Joseph. L’auteur

montre qu’en insistant ainsi sur la lignée maternelle du Christ, l’iconographie affi rme

la légitimité d’un héritage par les femmes, ce qui justifi ait les prétentions anglaises

sur le trône du royaume de France37. En bas de page, deux couples encadrent les

armoiries et les emblèmes de la duchesse, Marie Jacobé avec Alphée et Marie Salomé

avec Zébédée. Leurs enfants occupent les médaillons marginaux des deux pages

suivantes où se lit la prière à sainte Anne, aïeule d’une famille nombreuse. Mais

malgré ses prières, la jeune épouse du duc de Bedford ne saura suivre son exemple

puisqu’elle mourra en 1432 sans descendance, après avoir offert à Noël 1430 son

livre d’heures à son neveu, le jeune roi Henri VI.

37. Londres, Brit. Lib., ms. Add. 18850, f. 257v;

reprod. dans E. KÖNIG (n. 34), p. 6. Paul PAYAN,

Joseph. Une image de la paternité dans l’Occi-

dent médiéval, Paris, Aubier, 2006, p. 201-203.

fig.8 anne de bourgogne en prière devant sainte anne trinitaire. heures de bedford, paris, vers 1423, londres, brit. lib., ms. add. 18850, f. 257v

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d e s h i s t o i r e s d e f a m i l l e

Anthroponymie et iconographie témoignent de l’essor du culte de sainte Anne depuis

le milieu du XIVe siècle. Encore absente du tableau d’autel des Trois Maries offert par

Jeanne d’Evreux, elle est représentée dans les miniatures frontispices de l’Histoire des

Trois Maries à la fi n du XIVe siècle. Née en 1404, Anne de Bourgogne est la première

des nombreuses princesses françaises du XVe siècle que leurs parents baptiseront du

nom de la mère de la Vierge. Etait-ce une manière d’anticiper l’éventuelle absence

d’héritier mâle et de pouvoir, dans ce cas, revendiquer la succession au profi t de leur

fi lle, en rappelant l’histoire de son homonyme illustre, la mère de la Vierge?

Les verrières de la cathédrale d’Evreux

Après Charles V et Charles VI, leurs successeurs continuent à être associés à la

dévotion aux Trois Maries, protectrices des rois Valois, cette fois-ci publiquement,

dans des verrières de la cathédrale d’Evreux en Normandie38. L’ambiguïté de l’identité

des Trois Maries: fi lles de sainte Anne ou Saintes Femmes des Evangiles, est résolue

dans les quatre lancettes de la «verrière historique», qui se situe du côté nord dans la

travée reliant le transept au chœur de la cathédrale (fi g. 9). Elle a été offerte par les

38. Les vitraux de Haute-Normandie, Paris, CNRS

Editions, Monum, Éditions du patrimoine, 2001

(Corpus vitrearum. Recensement des vitraux an-

ciens de la France, 6), Maria CALLIAS BEY, Vé-

ronique CHAUSSE, Françoise GATOUILLAT et

Michel HEROLD, p. 36, 144; chapelle axiale, ver-

rières des Deux Maries (baie 3) et de la Vierge

au manteau (baie 4): p. 147 et 148 fi g. 94; «ver-

rière historique» (baie 213): p. 158-159, fi g. 103.

Un siècle après le mécénat de Jeanne d’Evreux,

au couvent parisien des carmes, était-on encore

conscient de son rôle dans la promotion du culte

des Trois Maries dans la ville normande dont le

nom est associé au sien?

fig. 9 les quatre maries. «verrière historique», cathédrale d’evreux, 1450

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d e s h i s t o i r e s d e f a m i l l e

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vainqueurs de la bataille de Formigny en 1450, Pierre de Brèze et Robert de Floques.

La verrière commémorait cette victoire, qui marqua la fi n de la guerre de Cent Ans,

et honorait l’entrée au trésor de la cathédrale des reliques des saintes Marie Jacobé

et Marie Salomé. Ces reliques avaient été données en 1449 à l’évêque d’Evreux,

Guillaume de Floques, par René Ier duc d’Anjou. Ce prince également comte de

Provence vénérait les deux Maries, dont il venait de retrouver les corps, comme il

vénérait aussi leur compagne Marie-Madeleine et sainte Marthe, dans le cadre de

sa politique menée dans le Midi de la France39. A l’arrivée de leurs reliques à Evreux,

les deux Maries sont de nouveau réinterprétées comme demi-sœurs de la Vierge

et mères des apôtres. En même temps, les donateurs de la verrière préservent leur

identifi cation aux Saintes Femmes au Tombeau, en choisissant Madeleine pour la pre-

mière des quatre lancettes40. En dessous des saintes, les places d’honneur aux pieds

de la Vierge et de Marie Salomé, reviennent au pape Nicolas V41 et au roi de France

Charles VII, alors que le dauphin et les deux donateurs sont agenouillés derrière le

pontife. Comme un siècle plus tôt après la guérison miraculeuse de Pierre de Nantes,

les saintes Maries provençales sont désinvesties de leur rôle de premiers témoins de

la Résurrection du Christ, trop proches du mystère insaisissable de Pâques. Suivant

une évolution générale de la piété à la fi n du Moyen âge, elles sont «descendues sur

terre», pour devenir des saintes plus proches des fi dèles. Ces derniers invoquaient en

elles des mères à la tête de familles modèles, bénies de nombreux fi ls illustres. Tout

laïc en désirait, le roi de France en tête comme les deux donateurs, dont les familles

se déploient dans le registre inférieur de la verrière.

Il en allait de même pour le fi ls et successeur de Charles VII. Devenu roi, Louis XI

voua une dévotion particulière à Notre-Dame d’Evreux. Peu après 1465 il fi t magni-

fi quement rebâtir la chapelle axiale dédiée à la Vierge et la fi t orner d’un ensemble

de verrières réalisées vers 1467-1469. Parmi elles, nous retrouvons encore une fois

les Trois Maries, mais disposées sur deux verrières qui se font face. Au Nord, au

sein du vitrail consacré à l’histoire de sainte Anne, une lancette est occupée par ses

deuxième et troisième fi lles accompagnées de leurs fi ls. L’insistance sur sainte Anne

et sa descendance s’explique à un moment où Louis XI, avant la naissance de son fi ls

Charles en 1470, se souciait de sa succession et avait cherché en vain à l’assurer à sa

fi lle aînée Anne. En face, côté Sud, dans une des lancettes du vitrail du «Triomphe de

la Vierge», une Mater omnium protège sous son manteau un petit groupe d’hommes

où Louis XI est «empereur en son royaume», agenouillé directement face au pape

Paul II suivi du cardinal Jean Balue, évêque d’Evreux42. Ici encore, iconographie et

politique, démographie et parenté se trouvent étroitement liées. •

39. Christian de MERINDOL, Le roi René et la

seconde maison d’Anjou. Emblématique, art et

histoire, Paris, Le Léopard d’or, 1987, p. 99, 131,

202, 207.

40. La même solution a été adoptée dans un li-

vre d’heures parisien enluminé dans l’entourage

du Maître de Bedford, où l’ange de la Résurrec-

tion apparaît au tombeau vide du Christ à quatre

Saintes Femmes: Lisbonne, Musée Calouste-Gul-

benkian, LA 141, f. 217v.

41. L’identifi cation du pape à Eugène IV, avancée

par le Les vitraux de Haute-Normandie (n. 38),

semble impossible, ce pape étant mort en 1447,

avant les événements conduisant à la réalisation

de la verrière.

42. Gary BLUMENSHINE, «Le vitrail du triomphe

de la Vierge d’Evreux et Louis XI. Le patronage

artistique des Valois dans la Normandie du XVe

siècle», dans Annales de Normandie, 40, nos 3-4,

1990, p. 177-214.

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d e s h i s t o i r e s d e f a m i l l e

Tableau 2: Généalogie simplifiée des Capétiens et ValoisEn gras : principaux personnages mentionnés dans l’histoire du culte des Trois Maries

Rois de France et de Navarre : date de début de règne soulignée

Tableau 1: Généalogie des Trois Maries

Page 138: Rha 7

Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Abstract

The article presents new stylistic material in support of the discovery (in 2005) that

the Bedford Hours were designed in the years 1414-1415, at the same time as the

Très Riches Heures du duc de Berry. The Bedford Hours would appear to have been

made for the dauphin, Louis de Guyenne, in light of the occurrence of several of

his emblems under the principle miniatures, as well as the calendar programme,

which is inspired by Ovid’s Fasti. The identifi cation of the heraldry in the miniature

of the history of the fl eur de lis (f. 288v) by Michel Pastoureau demonstrates that

the miniature also represents the coronation of Henry V in 1429 in the presence of

Philippe le Bon, Anne de Bourgogne and John de Mowbray, duke of Norfolk and

earl marshall. •

Resumo

Este artigo apresenta novos indícios estilísticos que confi rmam a descoberta (em

2005) de que as Horas de Bedford foram produzidas nos anos 1414-1515, ao mesmo

tempo que as Très Riches Heures do Duque de Berry. As Horas de Bedford pare-

cem ter sido realizadas para o delfi m, Luís de Guyenne, como evidencia a presença

de vários dos seus emblemas nas principais iluminuras, bem como o programa do

calendário, inspirado nos Fasti de Ovídio. A identifi cação da heráldica na iluminura

da história da fl or de lis (f. 288v), por parte de Michel Pastoreau, demonstra que esta

representa igualmente a coroação de Henrique V em 1429 na presença de Filipe o

Bom, Ana de Borgonha e John Mowbray, duque de Norfolk e earl marshall. •

key-words

bedford hourslouis de guyenne (emblems)pragueovid’s fastijohn de mowbray (arms)

palavras-chave

horas de bedfordluís de guyenne (emblemas)pragafasti de ovídiojohn mowbray (armas)

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les très riches heures et les heures bedford

En 2005 Claudia Rabel et moi-même avons publié un article dans le Burlington

Magazine où nous identifi ions la main du Maître de Bedford dans les Très Riches

Heures1. Nous avions placé ses interventions dans le manuscrit avant la mort du duc

de Berry, soit avant 1416. Simultanément avec Catherine Reynolds, nous avions noté

que le Maître de Bedford avait réutilisé dans les Heures Bedford plusieurs composi-

tions provenant des Très Riches Heures. Pour des raisons stylistiques et emblémati-

ques, nous avions argumenté que le destinataire d’origine des Heures Bedford était

le dauphin Louis de Guyenne, qui mourut en décembre 1415.

Or, la datation et le destinataire des Heures Bedford ont toujours posé problème.

Plusieurs historiens avaient déjà noté que les portraits et armoiries de Jean et Anne

de Bedford étaient des ajouts et que les légendes sous chaque feuillet semblaient

avoir ajoutés lors du don du manuscrit au roi Henri IV d’Angleterre en 1430, par

Anne de Bedford. On a donc proposé une datation autour de 1420-1423 pour le

manuscrit; on a situé l’ajout des portraits Bedford autour de la date de leur mariage

le 17 avril 1423; et enfi n, on a considéré que l’ajout des images de l’Arche de Noé

et de la Tour de Babel a eu lieu autour de 1430.

Notre proposition de remonter la datation de tout le manuscrit en 1415 – sauf pour

les parties spécifi quement en rapport au couple Bedford ou au jeune roi Henry IV –

ne passait pas sans controverse, voire même quelques réactions violentes. Dans son

commentaire pour le fac-similé des Heures Bedford et dans son livre grand public,

Eberhard Koenig a cherché à démonter l’argument à plusieurs reprises. En juillet de

cette année, à Londres, lors d’une journée d’études sur les Heures Bedford, nous

avons formulé une réponse, appuyé par les arguments supplémentaires.

1. Afi n d’alléger le texte, les principaux person-

nages et manuscrits mentionnés au cours de

l’article sont cité ensemble dans cette note.

Les personnes

Le dauphin, Louis de Guyenne, meurt le 18 dé-

cembre 1415

Jean duc de Berry meurt en le 15 juin 1416

Les trois frères Limbourg meurent l’un après

l’autre en 1416, avant le duc de Berry

Jean de Lancaster, duc de Bedford, épouse Anne

de Bourgogne en 1423

Jean de Mowbray (1392-1432), second duc de

Norfolk, earl marshall (1412-1432)

Les manuscrits

Les Très Riches Heures (Chantilly, Musée Condé, ms. 65)

Les Heures Bedford (Londres, British Library,

Additional 18550)

Les Heures Lamoignon (Lisbonne, Musée Gul-

benkian, ms. LA 237)

Les Heures de Vienne (Vienna, ÖNB, cod. 1855)

Le missel de Louis de Guyenne (Paris, Bibl. Ma-

zarine, ms. 406 ; laissé inachevé en 1415)

Le bréviaire de Louis de Guyenne (Châteauroux,

BM, ms. 2 ; achevé vers 1413)

New York, Pierpont Morgan Library, M453

(1415-1418 ?)

patric ia st irnemannInstitut de recherche et d’histoire des textes (CNRS)

Paris – Orléans

Page 140: Rha 7

l e s t r è s r i c h e s h e u r e s e t l e s h e u r e s b e d f o r d

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 4 0

Cet article a deux objectifs: présenter aussi clairement que possible le chemin de nos

découvertes et expliquer la logique visuelle et contextuelle de nos arguments.

Tout a commencé en 2003. J’étais en train de lire un nouveau livre sur le Bréviaire

de Châteauroux par Inès Villela-Petit, un manuscrit commandé par le dauphin Louis

de Guyenne, lorsque je me suis arrêtée sur une image de comparaison, un dessin

inachevé dans un missel (Paris, Bibl. Mazarine, ms. 406). Ce missel était également

destiné au dauphin, comme entémoigne le dessin des armoiries. François Avril avait

attribué le feuillet au Maître de Bedford. On a alors conclu que le maître avait laissé

le livre inachevé à la mort du dauphin, en décembre 1415, ce qui permettait de dater

le feuillet vers 1415.

Je me suis arrêtée sur l’image parce que je reconnaissais ce dessin comme l’image en

miroir d’une miniature de la Messe de Noël (f. 158), dans les Très Riches Heures, que

les frères Limbourg avaient laissé inachevée, à l’état de dessin, à la mort du duc de

Berry, en juin 1416 (la peinture du dessin a été achevé par Jean Colombe vers 1485).

Les deux images représentent la Sainte-Chapelle, comme le prouve le reliquaire géant

fl anqué d’escaliers dans les deux images. Celle des Très Riches Heures représente

le duc de Berry assistant à l’apparition miraculeuse des anges apportant les sacre-

ments lors de la messe de Noël dans la Sainte-Chapelle; celle du missel représente

le dauphin assistant à une messe dans la Sainte-Chapelle.

À ce stade se sont posés deux problèmes: qui a dessiné la miniature dans les Très

Riches Heures, et lequel des deux dessins est le premier? Qui copie qui? Qui a eu

l’idée? Le début d’une réponse se retrouvait non pas dans les miniatures mais dans

quatre bordures ajoutées aux images des frères Limbourg (f. 86v, Raymond Diocrès;

152v, Crucifi xion; f. 158, Messe de Noël; f. 182, Résurrection).

C’est l’œil qui cherche qui voit. J’ai regardé attentivement la seule bordure peinte,

celle qui entoure la miniature de l’histoire de Raymond Diocrès (f. 86v). Elle est,

en fait, peinte par deux artistes: un artiste du début du XVe siècle s’est occupé des

tiges, de la fl ore et des oiseaux; et Jean Colombe à la fi n du siècle a peint les scènes.

Spontanément j’ai eu l’intuition de comparer cette bordure avec celles des Heures

Bedford reproduites dans le livre de Janet Backhouse. Deux oiseaux dans la bordure

entourant la miniature de Raymond Diocrès, un paon et un faisan, se retrouvent

successivement dans la bordure de la Trinité et de la Crucifi xion des Heures Bed-

ford. J’avais la preuve que c’était le Maître de Bedford lui-même qui avait dessiné

quatre bordures dans les Très Riches Heures, et avait partiellement peint celle de

Raymond Diocrès.

Notre trouvaille a été présentée le 8 juin 2004 au colloque organisé par Eberhard

König, à Berlin, en l’honneur de François Avril. Lors de ce même colloque, Catherine

Reynolds a démontré que le Maître de Bedford avait emprunté quatre compositions

des Très Riches Heures pour ses miniatures des Heures de Bedford, et pour ma part,

j’en ai trouvé encore une.

Mais les deux questions subsistaient: qui a dessiné la Sainte-Chapelle dans les Très

Riches Heures, et lequel des deux dessins – celui des Très Riches Heures ou celui du

missel de la Mazarine – est le premier?

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Après le colloque en 2004, une longue joute logique s’ensuivait entre Claudia et moi

ainsi que Catherine Reynolds et Nicole Reynaud. Nicole a bien remarqué que nulle

part ailleurs à Paris au début du XVe siècle il existait une conception aussi large, aussi

novatrice. On a brisé l’axe de la Sainte-Chapelle au milieu afi n de montrer les deux

extrémités en même temps.

Millard Meiss avait déjà repéré les petites copies de la Messe de Noël, adaptées

pour illustrer l’offi ce des morts, dans toute une suite de manuscrits peintes vers

1420 par le Maître du Hannibal de Harvard, un artiste dans l’entourage du Maître

de Bedford. Là, déjà, se trouvait, indirectement, la réponse, mais je ne l’avait pas

encore compris: les copies “secondaires” de ce petit maître reprenaient toujours les

détails de la version des Limbourg (orientation, toit au-dessus de la sculpture, clercs

en train de chanter dont un observe les anges), jamais ceux du Maître de Bedford.

Comme je m’en apercevrai plus tard, la conception spatiale novatrice appartenait

bien aux Limbourg2. Bedford avait dû faire une copie fi dèle, tracée ligne par ligne,

qu’il avait gardé dans son atelier. Dans sa version de la Mazarine, il a eu le génie

de renverser la scène, pour adapter l’image à un feuillet recto, mais cette version

n’a eu aucune postérité. Lorsque Bedford peint une image de la Sainte-Chapelle,

durant les années 1420 pour les Bedford dans un pontifi cal, il la présente de manière

frontale. Le manuscrit, qui périt dans une incendie au XIXe siècle, est connu par un

2. Les petits dragons, placés près des arcs en

haut de la miniature, sont une signature des frè-

res Limbourg.

1. pontifical bedford (fac-similé du xixe s.). paris, vers 1430

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fac-similé. On voit que le banc énigmatique dans les Très Riches Heures s’y trouve

de nouveau, comme une sorte de coffre à livres devant le lutrin. Le Maître de Han-

nibal l’a converti en cercueil.

La relation entre les Très Riches

Heures et les Heures Bedford

Comme je l’ai déjà dit, Catherine Reynolds avait identifi é quatre compositions dans

les Heures Bedford empruntées aux Très Riches Heures, reprises avec une grande

exactitude; tous ces emprunts provenaient des quatre cahiers où le Maître de

Bedford avait dessiné les bordures. La précision des emprunts militait pour une copie

directe sur les Très Riches Heures, bien que les reprises ultérieures dans d’autres

manuscrits indiquaient que le maître avait effectivement enrichi son carnet avec au

moins une douzaine de dessins.

Le paon dans la bordure de Raymond Diocrès a la particularité d’engager son cou

dans le feuillage. Selon mes recherches actuelles, ce paon, pris au cou, ne se trouve

que dans les Très Riches Heures et les Heures Bedford. C’est un motif avec une très

courte vie et illustre de nouveau la proximité entre l’intervention du Maître de Bed-

ford dans les Très Riches Heures et la réalisation des Heures Bedford.

Or, la question se posait: quand le Maître de Bedford a-t-il eu les cahiers inachevés

des Très Riches Heures entre ses mains? Avant la mort du duc de Berry ou longtemps

après, vers 1420 par exemple?

Pour répondre à cette question, je voulais savoir si on pouvait déterminer plus pré-

cisément l’ordre des interventions artistiques dans les Très Riches Heures. Utilisant

le CD-rom des Très Riches Heures et les travaux de Millard Meiss, j’ai fait une étude

globale de tous les artistes qui ont participé à l’élaboration de l’enluminure, depuis

les miniatures jusqu’aux bouts-de-ligne. J’ai distingué trois campagnes successives

pendant le premier quart du XVe siècle et, dans chaque campagne, j’ai remarqué que

les artistes des initiales travaillaient en équipe avec les enlumineurs qui exécutaient

les bouts-de-ligne. Dans l’équipe du Maître de Bedford se trouve un enlumineur qui

a réalisé les bouts-de-ligne et un autre qui a peint les initiales. Ce dernier a égale-

ment peint plusieurs bordures dans les Heures Bedford.

Or dans les initiales peintes par cet artiste dans les Très Riches Heures, on observe

trois fois les armoiries et emblèmes du duc de Berry (ff. 168v, 182v, 189). Ceci est

une preuve irréfutable que l’équipe du Maître de Bedford a bien participé à la réa-

lisation des Très Riches Heures du le vivant du duc. Si le duc était déjà décédé, le

peintre aurait simplement rempli l’initiale avec des fl eurs ou de l’ornement, à l’instar

de Jean Colombe à la fi n du siècle.

Mon raisonnement est donc le suivant: vu la proximité des motifs des paons et celle

des emprunts iconographiques entre les Très Riches Heures et les Heures Bedford,

ainsi que la présence dans les Très Riches Heures des armoiries et des emblèmes du

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l e s t r è s r i c h e s h e u r e s e t l e s h e u r e s b e d f o r d

duc de Berry peintes par l’équipe du Maître de Bedford, les Heures dites Bedford ont

été, en réalité, enluminées non pas en 1420 à 1424 mais dans les années 1414-1415.

Reculer une datation de six à dix ans n’est pas normalement une affaire d’état. Mais

dans le cas des Heures Bedford, une telle proposition remet en question la chronolo-

gie de plusieurs autres manuscrits, notamment les Heures Lamoignon et les Heures

de Vienne qu’on a toujours considérées comme des œuvres réalisées vers 14203,

antérieures aux Heures Bedford, et préparatoires aux solutions des années 1420. Cela

remet également en question la datation des œuvres de toute la suite de l’atelier

Bedford, notamment l’artiste de Morgan 453. Si nous replaçons les Heures Bedford

aux années 1414-1415, elles doivent refl éter en plusieurs points ce moment fort dans

l’histoire de l’enluminure française. Je souhaiterais ajouter trois arguments supplé-

mentaires pour étayer une re-datation des Heures Bedford et de toute la chaîne qui

s’ensuit. Notons, tout d’abord, qu’il existe de très fortes similitudes entre les Heures

Bedford et l’œuvre du Maître de Bedford, lui-même, autour de 1413-1414, ce qui est,

à mon sens, le point le plus probant. La parenté de style du Maître de Bedford dans

les Heures Bedford avec d’autres œuvres qu’il a peintes vers 1414-1415 s’illustre plei-

nement par une comparaison avec la Crucifi xion du Missel de Saint-Magloire (Paris,

Bibl. de l’Arsenal, ms. 623, datable peu après 1412)4. Cette même observation a déjà

été faite en 1938 par Hermann, au sujet des Heures de Vienne5, et s’applique égale-

ment aux Heures Lamoignon. Le style et l’iconographie des trois livres d’heures sont

très proches et tous les trois ont été certainement mis en chantier à la même époque6.

Un second argument est d’ordre vestimentaire. Le début du XVe siècle a connu un faste

extraordinaire et ses excès de mode notoires me semblent très présents dans plusieurs

miniatures des Heures Bedford. Celle au feuillet 96, représentant la femme adultère

3. C’est la date proposée par F. Avril dans le cata-

logue Paris 1400, p.353, n.° 220.

4. Voir Paris 1400, cat. n.° 182, pour une repro-

duction de la Crucifi xion au f. 213A verso.

5. Hermann Julius Hermann, Die westeuropäis-

chen Handschriften..., 1938, p. 172.

6. S. Nash a déjà proposé une datation aux en-

virons de 1415-1420 pour les Heures Lamoig-

non en raison du traitement des marges (S.

Nash, L’histoire du Livre d’heures de Jacques II

de Chastillon, Art de l’enluminure, 2, 2002, n.

21, p. 104. Je remercie François Avril pour cette

référence.

2. livre d’heures. prague, fin xive s. prague, musée narodni, knm v h 36, f. 2

3. bréviaire de châteauroux, f. 48vparis, vers 1413

4a et b. très riches heures, f. 60 et 36. paris et bourges, 1411-1416

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6. giovanni di andrea, padoue, 1396.padova, b.c., ms. a.5

Bethsabée, rentrant rapidement chez elle, pieds nus, son corsage défait, jouant avec

ses doigts pour éviter le regard de son mari, me semble emblématique. Le collier à pen-

dants, par exemple, et le chapeau rouge extravagant que portent Uri sont les attributs

des quinze premières années du siècle et ne trouvent pas d’équivalent dans les années

1420. Des parallèles très proches se trouvent dans le calendrier des Très Riches Heures.

Un troisième argument concerne les initiales ornées. Les initiales elles-mêmes sont

assez banales, au feuillage stéréotypé en bleu, blanc et rouge sur fond doré. Mais

lorsque la terminaison d’une lettre se prolonge vers la gauche, le Maître de Bed-

ford a ajouté une terminaison fl orale qui naît d’une petite corolle. Or, ce genre de

prolongement fl oral est inconnu à Paris avant 1410. On le trouve pour la première

fois dans le Bréviaire de Louis de Guyenne à Châteauroux (sans la corolle) et dans

les Très Riches Heures, où ces extensions contemporaines sont toujours ajoutées

après-coup, après que l’initiale ait été peinte, comme on le voit dans les Très Riches

Heures lorsque l’initiale est arrondie à gauche et l’extension fl otte dans la marge.

L’inspiration de ces extensions provient très vraisemblablement d’un artiste pragois

ou des manuscrits enluminés à Prague qui se trouvaient à Paris vers 1411 ou 14127.

Par la suite, ces extensions semblent avoir été favorisées par un petit cercle d’artis-

tes, le cercle du Maître de Bedford.

Le quatrième argument concerne à nouveau Prague, et indirectement l’Italie. A la

fi n du XIVe siècle dans quelques manuscrits des régions de Padoue et de Venise, les

artistes s’amusent à faire métamorphoser les feuilles d’acanthe en dragon. Presque

aussitôt, on trouve des acanthes transformées en dragon dans les manuscrits pragois.

Et sous l’une des miniatures les plus anciennes des Très Riches Heures, exécutée sans

doute aux alentours de 1412, une feuille d’acanthe se change en un dragon doré

attrapant un serpent. La même astuce se retrouve dans les Heures Bedford.

Un dernier motif pragois adopté uniquement par le Maître de Bedford est un oiseau à

long cou hérissé qu’on trouve dans les manuscrits pragois de la première décennie du

XVe siècle. Il se retrouve dans le Bréviaire de Châteauroux, dans les Heures Lamoignon

et à maintes reprises dans les Heures Bedford, où, à terme, le Maître combine les

motifs, qui avaient auparavant un aspect héraldique, dans une sorte de commentaire

sur la violente mutation de la trahison dans l’image de l’Arrestation: la tige végétale

se transforme en dragon, puis en cou hérissé et tête d’animal. L’oiseau au cou hérissé

est un motif à nouveau confi né au cercle de Bedford, notamment dans Morgan 453.

7. Citons à titre d’exemple l’artiste pragois qui

a peint à Paris un manuscrit des Grandes Chro-

niques de France pour Charles VI, Paris, BNF,

fr. 2608 (Paris 1400, cat. n.° 168) ou celui qui

a peint la Vie et l’offi ce de saint Eligius, Paris,

Bibliothèque historique de la Ville de Paris, ms.

réserve 104 (Prague, p. 79, fi g. 6.6). Réciproque-

ment, pendant la première décennie du XVe siècle,

quelques enlumineurs à Prague démontrent une

connaissance directe des styles parisiens.

5. heures bedford, f. 221v. paris, 1414-1415

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7. martyrologe de girona, prague, vers 1410. musée diocésan de girona, md 273, f. 36v 9. heures bedford, f. 249v. paris, 1414-1415

8. très riches heures, f. 38v. paris et bourges, 1411-1416

10. bible de konrad de vechta,prague, 1402-1403. anvers, musée plantin-moretus, cod. ms. 15-1, f. 1

11. bellifortis, avec devises de wenceslas iv,prague, 1405. göttingen, u.l., 2.° cod. ms. philos. 63 cim., f. 85

12. heures bedford, f. 199vparis, 1414-1415

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l e s t r è s r i c h e s h e u r e s e t l e s h e u r e s b e d f o r d

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Il existe donc un milieu très restreint à Paris où, pendant quelques mois, un petit

nombre d’artistes a eu accès à des manuscrits provenant de Prague. À part le Maître

de Morgan 453, l’intérêt de ces artistes pour les nouveautés pragoises n’a pas été

très long et défi nit un point précis dans le temps, entre 1412 et 1415.

Les emblèmes

Les bordures de la plupart des feuillets dans les Heures Bedford comportent des

médail lons historiés accompagnés d’un abondant assortiment de fl eurs, d’animaux

et d’oiseaux. Certains de ces motifs apparemment ornementaux nous semblent imbus

d’une valeur emblématique ou symbolique, soit en raison de leur nombre répété,

soit en raison de leur placement sur le feuillet au centre, sous la miniature. L’usage

des emblèmes ou devises par les membres des familles royales en Europe commence

en Angleterre aux environs de 1330. En France la pratique atteint son apogée sous

le règne de Charles VI. Certaines devises sont bien connues, comme l’ours et le

cygne navré de Jean de Berry, le rabot de Jean sans Peur, le cerf blanc de Charles

VI. D’autres restent à deviner ou à dévoiler grâce à la répétition d’un motif sur les

objets ou dans les livres, où grâce à leur mention dans les comptes ou les inventaires.

L’exposition Paris 1400 en 2004 a stimulé un renouveau d’intérêt pour les devises

royales et c’est ainsi que nous avons suggéré dans l’article de 2005 que certains

motifs dans les bordures des Heures Bedford pouvaient être identifi és aux emblèmes

de la famille royale de France, et plus particulièrement aux devises du dauphin Louis

de Guyenne. Par la suite, nous avons consulté la thèse de Laurent Hablot, soutenu en

2001 à l’université de Poitiers: La devise, mise en signe du prince, mise en scène du

pouvoir. Les devises et l’emblématique des Princes en France et en Europe à la fi n du

Moyen Age. Hablot a trouvé comme devises de Louis les fi gures suivantes: le genêt,

le paon, l’épervier, l’églantine et l’aubépine, branches de mai, un soleil rayonnant.

Son mot était: de bien en mieux, son chiffre la lettre L ou les lettres LM (Louis et

Marguerite) et ses couleurs étaient vert et blanc ou rouge noir et blanc.

L’EPERVIER – Louis est le seul membre de la famille royale à avoir comme devise

l’épervier, qu’il adopte en 1409. Cet oiseau revient dans les bordures des Heures

Bedford vingt-quatre fois, bien plus fréquemment que tout autre oiseau. Il est tou-

jours petit, de la taille des autres oiseaux, mais il est partout. C’est son nombre qui

frappe, ainsi que sa place privilégiée sur certains feuillets. On retrouve l’épervier

dans le bréviaire de Louis à Châteauroux, dans son livre de Térence, dans le missel

à la Mazarine, et enfi n dans un manuscrit de Gaston Phébus (Paris, BNF, fr. 616)

qu’aurait pu lui appartenir, comme l’a noté F. Avril récemment8.

LE PAON – Le paon ne revient que cinq fois, mais toujours dans un lieu fort. Un mâle et

une femelle imitent les poses de saint Jean et la Vierge dans le médaillon de la Crucifi xion

au f. 19 et un magnifi que paon accompagne les éperviers et le coq à la Visitation au f. 54v.

LE GENET – Le genêt est l’emblème de l’ordre du Genêt, fondé d’après la légende

en 1234 par saint Louis. La devise est employée par plusieurs membres de la famille

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l e s t r è s r i c h e s h e u r e s e t l e s h e u r e s b e d f o r d

royale au début du XVe siècle. Charles VI a remit le collier de l’ordre à son fi ls Louis

en 1399 lorsque l’enfant n’avait que deux ans. On trouve la devise à la Nativité

(f. 65) et à la Fuite en Egypte (f. 83). Le motif ne revient pas dans les autres manus-

crits du Maître de Bedford et n’est pas un motif stéréotypé de son répertoire.

LE COQ – Le coq s’observe deux fois dans les lieux prestigieux, sous la Visitation et

la Vierge de miséricorde (f. 150). Le coq n’est pas un oiseau hors du commun dans le

grand assortiment de volatiles qui peuplent les bordures au début du XVe siècle, mais

en 1413 Christine de Pizan a écrit pour le dauphin un ouvrage politique, aujourd’hui

perdu, intitulé l’Avision du coq9. Le coq revient trois fois dans les marges du missel

de Louis de Guyenne et dans son bréviaire.

L’ IRIS – L’iris est une fl eur du répertoire du Maître de Bedford, mais elle se trou-

ve deux fois dans un lieu signifi catif. Un grand pied d’iris s’épanouit sous la mi-

niature des vêpres de l’Offi ce des morts au f. 120. L’iris est l’équivalent héraldi-

que du lys et ici elle fait écho aux fl eurs de lys sur le catafalque du cercueil. La

seconde occurrence est plus ludique. Sous la miniature de la Pentecôte (f. 132)

dans les heures du Saint Esprit, deux putti chevauchent les balais et joutent autour

d’un arbre de mai d’où est suspendu un écu avec une branche de mai. Les iris

qui environ nent leurs têtes ressemblent à des ailes. Nous avons ici très proba-

blement une allusion ludique à l’éducation des jeunes princes de la fl eur-de-lis.

La fl eur de lis a été glosé depuis le XIIIe siècle, et selon Guillaume de Nangis et

13. heures bedford, f. 132, paris, 1414-1415.

8. F. Avril et W. Voelkle, Gaston Phoebus: Le Livre

de Chasse, MS M. 1044, The Pierpont Morgan

Library, New York, Commentaire du fac-similé,

vol. 2, Lucerne, 2006, p. 156-157.

9. I. Villela-Petit a attiré l’attention sur le coq et

l’écrit de Christine dans son livre sur le bréviaire

de Châteauroux.

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 4 8

l’auteur anonyme de la Vie de saint Denis, les trois pétales du lys signifi ent foi,

sapience et chevalerie (fi des, sapientia, militia). Deux éperviers s’envolent au-dessus.

L’occurrence des emblèmes associés avec Louis de Guyenne est particulièrement

bien organisée dans les Heures de la Vierge:

L’heure de Matines n’a pas de bordure, et ainsi aucune devise.

A Laudes, reviennent l’épervier, le paon, le coq et l’églantine.

A Prime, le genêt et l’épervier.

A Tierce, se trouve de genettes, probablement un jeu de mots avec genêt.

A Sexte, deux ailes bleues épousant un vase sont environnées de perroquets. Les

ailes sont un rébus pour la lettre L, un jeu d’héraldique parlant, comme le soulignent

les perroquets qui ont le don de la parole.

A None, la violette peut faire référence à l’emblème de sa belle mère, Marguerite de Ba-

vière, mais le motif est trop répandu dans le répertoire du peintre pour en être certain.

A Vêpres, reviennent le genêt et l’épervier.

A Complies, on trouve l’épervier seul.

L’iconographie

D’autres observations encore renforcent l’attribution du manuscrit au dauphin. Au

feuillet 238, le médaillon dans la marge à droite représente saint Jean et l’ange de

l’Apocalypse. L’ange explique le sens des têtes et des cornes de la bête, selon le

titre au bas du feuillet: Comment l’angle [ange] desclaire a saint jehan la vision et

ly dist la beste qu (i tu) as veue est malice qui monte de l’abisme sept testes sont

vii montaignes. Le rouleau de l’ange fournit l’explication suivante: La beste qui tu

as veue est malice/vii testes sont vii montaignez, x cornesz ce sont x roys. Dans la

marge inférieure, le médaillon représente un noble et cinq rois, dont un tient une

bannière. Le titre en dessous explique: Ce signifi e la puissance de lanticrist qui a

en les armes paintes la femme avec la beste et x roys qui le servent. Les armoiries

sur la bannière sont celles de Flandre ancienne, une allusion très claire à Jean sans

Peur, duc de Bourgogne, celui qui fi t assassiné le prince Louis d’Orléans en 1407 et

qui en 1413 était très certainement considéré comme le servant de l’Antichrist par

Louis de Guyenne. L’allusion devait rester peu visible, presque voilée, car la femme

de Louis de Guyenne, Marguerite, était la fi lle aînée de Jean.

C’est sous la forme d’un lion (lion de Flandre) que Jean sans Peur apparaît dans le

frontispice hautement politisé des exemplaires de la “Justifi cation de Jean Petit”

(par exemple, Chantilly, musée Condé, ms. 878, f. 2), un sermon long de quatre

heures dans lequel Jean Petit justifi e l’assassinat de Louis d’Orléans, symbolisé par

le loup10. Il est donc intéressant d’observer le rôle joué par les lions dans les Heures

Bedford. Lors de la Cène (f. 138), moment où le Christ présage la trahison de Judas,

un lévrier s’attaque à un lion peureux. À la Pentecôte (f. 132), un putto – disons un

jeune homme – force la gueule d’un lion, alors que deux iris couronne la composition.

À nouveau les allusions sont voilées, vu les relations familiales.

10. Pour l’exemplaire de Chantilly, voir Les Très

Riches Heures du duc de Berry et l’enluminure en

France au début du XVe siècle, exposition: Chan-

tilly, Musée Condé, 2004, p. 18-20. Voir aussi

l’exemplaire à Vienne, ÖNB, cod. 2657 dans L’Art

à la cour de Bourgogne, le mécénat de Philippe

le Hardi et de Jean sans Peur, 1364-1419, les

prince des fl eurs de lys, exposition: Dijon, Musée

des Beaux Arts, 2004, n.° 7, p. 39-40.

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l e s t r è s r i c h e s h e u r e s e t l e s h e u r e s b e d f o r d

La représentation de la Vierge de miséricorde dans les heures de la Semaine introduit

la dévotion à la Vierge le samedi, au f. 150v. Cette image présente un des arguments

les plus puissants pour l’attribution à la famille royale de France, et plus précisément

à Louis de Guyenne, en raison notamment de la représentation de Charlemagne à côté

du roi de France, que nous identifi ons avec Charles VI, son “prêt-nom”, et de la pré-

sence du coq dans la marge inférieure au-dessus l’empereur et du roi anonyme, “futur”.

La miniature de la sainte famille avec la duchesse de Bedford (f. 257v), Anne de

Bourgogne, contient encore un emprunt aux Très Riches Heures. Il s’agit de la petite

architecture qui couronne la scène. Elle appartient à un cahier qui ne contient que

deux bi-feuillets. Au XVIIIe siècle le cahier fut relié au début du manuscrit. Je crois

que primitivement Louis de Guyenne se trouvait, ou devait se trouver, agenouillé

devant sainte Anne, et que ce sont ses armoiries qui furent destinées à remplir l’es-

pace sous l’image. Si l’on compare l’image de sainte Anne et celle fi gurant le duc

de Bedford et saint Georges, dans le même cahier, on observe que le traitement de

l’architecture est beaucoup moins sophistiqué dans ce dernier.

En effet, dans les manuscrits de la main de Bedford datable dans les années 1423-

-1430 – tel le pontifi cal de Bedford ou même le bréviaire de Salisbury – les espaces

architecturaux sont simplifi és ou fi gés par rapport aux échappées, moulures et balus-

trades ouvragées qu’on trouve dans les manuscrits autour de 1410-1415. Il me

semble que l’image de sainte Anne, qui devait sans doute se trouver en tête du

manuscrit, a été mise de côté à la mort du dauphin et reprise plus tard.

Pourquoi sainte Anne serait-elle une sainte patronne de Louis? Anne est la sainte

patronne de l’éducation des enfants. Dans la miniature elle est en train de lire un livre

à la Vierge et l’Enfant. Louis était entouré d’intellectuels de haut rang. Son précep-

teur, Jean d’Arsonval, était un maître estimé, et cet éminent humaniste a procuré à

Louis les livres de Jean de Montaigu après que ce dernier fut exécuté par Jean sans

Peur en 1409. Le grand savant Jean Gerson a composé pour Louis une liste de lectu-

res essentielles et l’a conseillé sur la formation d’une bibliothèque car, selon ses mots,

“celle-ci puisse être portative, comme une nouvelle arche du Testament”. Par ailleurs,

dans les litanies des Heures Bedford, saint Nicolas fi gure en tête des confesseurs.

Nicolas protégeait les marchands et marins, mais aussi les étudiants, et un autel

dans la grande salle du Palais de Justice protégeait les enfants, écoliers et étudiants.

Le programme du calendrier s’oriente dans le même sens. Aux travaux des mois et

signes du zodiaque est associé un programme de médaillons très érudit, truffé d’al-

lusions antiques qui s’inspirent des Fasti d’Ovide. Dans ce long poème inachevé,

Ovide raconte, pour les six premiers mois de l’année, les origines du nom des mois

et les rites célébrés chaque jour. C’est une sorte de miroir antique du calendrier

chrétien, un précurseur qui recèle une foule de renseignements historiques et mytho-

lo giques. Le poème était un des textes de base de l’enseignement médiéval; plus

de 200 copies manuscrites sont parvenues jusqu’à nous. L’espace ici ne permet pas

une présentation détaillé des rapports entre le calendrier des Heures Bedford et

les Fasti. Prenons, toutefois, comme exemple le mois de mai. Le médaillon au recto

illus tre Maya et les Pléiades. Le texte, en bas du feuillet, raconte: Comment le moys

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 5 0

de may fut nommé dune des plyades apelee maye mere de mercure; pour ce que

le dit mercure est dit dieu de eloquence et seigneur et maistre de rethorique et de

marchandise. Au verso, les médaillons illustrent, d’une part, le mariage d’Honneur

et Révérence et, d’autre part, la gouvernance des vieux et les jeunes qui portent les

armes pour défendre le pays: Comment honneur fust marie a reverence; et leur fi st

len deux temples; Comment les nobles anciens gouernoient le peuple, et les ioynes

se armorent. Or, dans les vers ovidiens qui introduit le mois de Mai, trois muses offre

trois origines différentes pour le nom du mois. D’abord, Polymnie explique que le

nom est tiré du nom de la fi lle d’Honneur et Révérence, Majesté. Ensuite Uranie

montre qu’il dérive de «maiores», c’est à dire des vieux nobles qui gouvernent alors

que les jeunes prennent les armes; par conséquent, le mois de juin tire son nom de

ces derniers, les «iuvenes». Enfi n, selon Calliope, le mois tient son nom de celui de

Maia, la plus belle des Pléiades et mère de Mercure. Il est très probable que l’auteur

de ce programme soit le précepteur du prince, Jean d’Arsonval.

Le mythe de la fleur de lis et les Bedford

La dernière image dans le manuscrit, au feuillet 288, présente la translation céleste

de la fl eur de lis comme emblème du royaume de France lors de la conversion de

Clovis en 493. Dans la version de l’histoire présenté dans les Heures Bedford, c’est

par l’intermédiaire d’un ermite que le drap fl eurdelisé est transmis à Clothilde, prin-

cesse bourguignonne et femme de Clovis. Clothilde présente l’écu à son mari dans

le palais lors de son sacre. Mais la scène a un double sens qui peut désormais être

déchiffré grâce aux observations de Michel Pastoureau. Le manuscrit, rappelons-le,

a été présenté au jeune roi Henri V d’Angleterre en 1430, l’année après son couron-

nement, par sa tante Anne de Bourgogne. Ainsi, la princesse Clothilde doit certaine-

ment évoquer au jeune roi sa tante, qui était également princesse bourguignonne,

le roi «Clovis» doit évoquer le jeune roi d’Angleterre qui, en raison de la Traité de

Troyes, devient roi de France. L’homme qui soutient l’écu par une corde rouge porte

les couleurs vert-blanc-noir sur son chapeau; ce sont les couleurs de Bourgogne,

celles de Philippe le Bon et de la maison qui soutient la réclamation anglaise pour

la couronne française. Enfi n, au premier plan s’agenouille un homme portant un

surcot armorié. Son identifi cation a jusqu’ici résisté à tout déchiffrement. Il s’agit

sans doute de Jean de Mowbray, duc de Norfolk et earl marshall, dont la charge

était de mettre les éperons du roi lors du sacre. Les armoiries qu’il porte ne sont pas

les siennes mais celles de sa fonction d’earl marshall. Il n’existe aucun témoin avec

les couleurs, les émaux; notre seul autre témoin est un sceau abîmé qui reprend les

meubles: une fasce à trois éperons rangées une en chef et deux en abîme. La super-

position d’un meuble au-dessus de deux est inhabituelle et signale peut-être qu’il

s’agit des armoiries de fonction. Les Heures Bedford nous fournissent ainsi un témoin

unique et hautement politisé, car la scène «mythique» de Clovis décrit en réalité les

événements et personnages présents lors du couronnement en 1429. •

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l e s t r è s r i c h e s h e u r e s e t l e s h e u r e s b e d f o r d

La bibliographie

H. J. Hermann. 1938. Die westeuropäischen Handschriften und Inkunabeln der

Gotik und der Renaissance: 3:französische und iberiscøhe Handschriften der ersten

Hälfte des XV Jahrhundert [Die illuminierten Handschriften und Inkunabeln der

Nationalbibliothek in Wien, VII (3)]. Leipzig: Hiersemann, 142-185.

M. Meiss. 1974. French Painting in the Time of Jean de Berry: The Limbourgs and their

contemporaries. New York.

J. Backhouse. 1991. The Bedford Hours. London.

L. Hablot. 2001. La devise, mise en signe du prince, mise en scène du pouvoir. Les

devises et l’emblématique des rinces en France et en Europe à la fi n du Moyen Age.

Thèse de l’université de Poitiers.

I. Villela-Petit. 2001. Le Bréviaire de Châteauroux, Paris 2003; «Devises de Charles VI

dans les Heures Mazarine...» Scriptorium, 55, n.° 1, 80-92.

Paris 1400: Les arts sous Charles VI, sous la dir. d’E. Taburet-Delahaye; exposition.

2004. Paris: Musée du Louvre.

C. Reynolds. 2005. The Très Riches Heures, the Bedford Workshop and Barthélemy

d’Eyck. The Burlington Magazine. Vol. 147, 526-533.

P. Stirnemann et C. Rabel. 2005. The Très Riches Heures and two artists associated

with the Bedford Workshop. The Burlington Magazine. Vol. 147, 534-538.

Prague. The Crown of Bohemia 1347-1437, sous la dir. de B. Boehm et Ji_í Fajt;

exposition. 2005. New York: Metropolitan Museum of Art.

P. Stirnemann. 2006. Combien de copistes et d’artistes ont contribué aux Très Riches

Heures du duc de Berry, dans E. Taburet-Delahaye (dir.), La création artistique en

France autour de 1400 (actes du colloque 2004 – XIXe Rencontres de l’Ecole du

Louvre. Paris, 365-380.

E. Koenig. 2007. The Bedford Hours, a medieval masterpiece. London.

Page 152: Rha 7

Agradecimentos por ajuda na confi guração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho

de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

Resumo

A Crónica Geral de Espanha, códice pertencente à Academia das Ciências de Lisboa,

desde 1879, é uma cópia quatrocentista da Crónica de 1344 de D. Pedro Afonso,

conde de Barcelos. A sua abundante iluminura é vestígio maior duma produção laica

ligada à corte de Avis, em que o cultivo das letras, a par da constituição de livra-

rias, desde D. João I, mostram um apreço pelo livro que irá continuar no período

manuelino. Este interesse revela-nos uma imagem da realeza que se encontra bem

exemplifi cada nas representações deste códice; é nela que esta refl exão se vai centrar.

Partiremos duma breve e possível análise material do códice, da sua construção,

para tentarmos perceber como a imagem do rei se integra no discurso cronístico,

gerando um discurso com intenções diversas daquelas que presidiram à elaboração

do texto.

Ter-se-á em conta que a imagem participa mais ou menos estreitamente dum con-

texto e da função do objecto, o livro, em que se integra. Aí intervém não apenas

como marcador narrativo do texto, mas como potenciador e gerador de sentido a

que não são alheios o brilho, a cor, a forma, o enquadramento espacial, a profusão

dos ornatos. •

Abstract

The General Chronicle of Spain, a codex belonging to the Academia das Ciências de

Lisboa since 1879, is a 15th century copy of the 1344 Chronicle of D. Pedro Afonso,

count of Barcelos. Its abundant illumination is signifi cant evidence of the secular

production linked to the Avis court, a court in which the cultivation of the arts and

letters, as well as the creation of libraries from the time of King D. João I, show an

appreciation for the arts of the book that will continue in the manueline period.

This interest in books reveals an image of royalty clearly exemplifi ed in this codex’s

miniatures, an image that will form the basis for discussion in this article.

Building on a brief material analysis of the codex and its construction, the aim of

the author is to understand the way in which the king’s image is incorporated into

the chronistic discourse giving rise to a new message with different intentions from

those that underpinned the writing of the text.

The article will consider the greater or lesser interaction of the image with the context

and purpose of the object, in this case the book, of which it forms an integral part.

Far from limiting themselves to the function of narrative markers for the text, images

act by enhancing and generating meanings and, to this end, they make full use of

shine, colour, form, special framing devices and profuse ornamentation. •

palavras-chave

imagempodercrónicacord. duarte

key-words

imagepowerchroniclecolourd. duarte

Page 153: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 1 5 3

imagem e temporepresentações do poder na crónica geral de espanha

1. Os dados materiais1

O códice da Academia das Ciências de Lisboa, M.S.A. 1, Crónica Geral de Espanha,

é uma cópia quatrocentista da Crónica de 1344 de D. Pedro Afonso, conde de Bar-

celos. Pelo que se pode adivinhar da observação indirecta,2 apresenta um projecto

com alguma regularidade no que toca à construção da página. Lindley Cintra anota

a mesma regularidade na sequência e na constituição dos cadernos, apenas com

duas excepções, que não pude conferir, e na empaginação de 42 ou 43 linhas. Do

ponto de vista do texto, faltam poucos títulos dos capítulos e é escrito com letra

regular anotando a grande semelhança com o ms. único do Leal Conselheiro e do

Livro da Ensinança de Bem Cavalgar, (B. N. Paris, ms. portugais 5), semelhanças que

identifi ca, também, na construção da página e na iluminura das iniciais, que mais à

frente designarei de segundo estilo. Está dividido em capítulos, separados por títu-

los e iniciados por letras ornadas, que, por vezes, evidenciam uma certa hierarquia,

mais quanto às unidades de regramento ocupadas que quanto à tipologia do ornato.

Assim, as iniciais de nove ou dez U.R. dizem respeito ao início dos reinados; as res-

tantes, ocupam, em regra, quatro U.R.. O ornato, que se estende, por vezes, pelas

margens e o intercolúnio, apresenta uma tipologia muito variada. Numa primeira

observação, verifi camos que existem sequências alternadas de famílias de motivos ao

longo do códice cuja separação coincide, por regra, com o fi nal de caderno. Simplifi -

horácio augusto pe ixe iro Instituto Politécnico de Tomar

1. Para entender a imagem, é fundamental partir

da análise material do códice em que se integra. Na

verdade, a arquitectura da página defi ne não ape-

nas uma estrutura facilitadora da leitura mas gera,

também, um conjunto de relações significativas,

uma razão gráfi ca, interferindo no sentido, induzin-

do uma lógica no discurso. “Na iluminura medieval

cada motivo figurativo tinha uma dupla função,

como parte da organização ornamental da página e

como elemento de representação”, – PACHT, Otto,

Buchmalerei des Mittelalters. Eine Einführung. (Trad.

ital. consultada: La miniature medievale – Una in-

troduzione, Torino, Bollati Boringhieri editorie, 1987,

p. 189.) – interferindo ambos no signifi cado. Nesse

sentido, a imagem fala, isto é, provoca um discurso,

induz no leitor “graus de expansão de conhecimen-

to” – NASCIMENTO, A. do, “Texto e imagem: auto-

nomia e interdependência em processo de leitura”, in

BRANCO, António (dir. de), Figura. Fac. de Ciências

Humanas e Sociais – Univ. Algarve, Faro, 2001, p. 14.

2. A Crónica Geral de Espanha, um dos mais im-

portantes códices iluminados portugueses do

Page 154: Rha 7

i m a g e m e t e m p o . r e p r e s e n t a ç õ e s d o p o d e r n a c r ó n i c a g e r a l d e e s p a n h a

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 5 4

cando, parece que poderão ser identifi cados pelo menos dois estilos, com variantes,

podendo estas, numa mais atenta observação, confi gurar estilos autónomos.

O primeiro estilo caracteriza-se pelas arquitecturas fi ngidas, as molduras arquitectu-

rais e as fl ores em grinaldas, principalmente no intercolúnio. A variante é o sub-estilo

das fi lactérias, fi tas enroladas que servem para construir iniciais e para a decoração

marginal; podem aparecer em sequências homogéneas ou integrando outros motivos.

As variações notam-se, também, ao nível da intensidade decorativa, da simplifi cação

dos motivos ou da qualidade plástica do seu tratamento. É dentro deste estilo que

existe fi guração quer nas iniciais – historiadas, antropomórfi cas, zoomórfi cas – quer

nas zonas perimetrais, organizada em cenas ou como elementos decorativos.

O segundo estilo caracteriza-se pelas folhagens e ramagens. Mais simples e contido,

este programa privilegia as iniciais, por vezes com extensões pelas margens, excluindo

qualquer tipo de fi guração. É este modelo que nos aparece, também, noutros códices

saídos da mesma ofi cina régia.

A fi ligrana, o ornato geralmente mais utilizado nos manuscritos do fi nal da Idade

Média, porque oferece soluções mais simples para hierarquizar a página, mais rápido,

mais económico, está ausente deste códice.

Parece-nos, pois, que, embora haja uma unidade quanto à defi nição da construção

da página, não há um programa decorativo unitário o que poderá subentender a

intervenção de mais do que um artista e a utilização de mais do que um modelo

decorativo. Este facto leva-nos a por a hipótese de a iluminura ter sido feita após

a escrita, em tempo mais ou menos afastado e em momentos descontínuos, distri-

buindo-se os diferentes cadernos por vários artistas, o que não é um processo co-

mum. A sobreposição do ornato a letras do texto corrobora a hipótese de momentos

diferentes para a escrita e para a iluminura. A descontinuidade do programa pode

envolver, também, a cópia ou, o que é o mesmo, a organização do volume, já que

existem, pelo menos, duas ou três pausas, zonas em branco, em fi m de caderno, que

não estão cabalmente explicadas.

A utilização das margens é uma estratégia decorativa e narrativa especialmente no

primeiro estilo. A ornamentação marginal, iniciada no séc. XIII, desenvolveu-se,

sobretudo, a partir do século XV, começando pelas iniciais, estendendo-se pelas

margens, adquirindo, depois, um carácter mais complexo de acordo com uma hie-

rarquização dos textos e a importância da página. Começaram por ser apenas deco-

radas com tarjas, simples fi letes dourados, grinaldas guarnecidas de ouro, vinhetas,

transformando-se, depois, em suporte de iconografi a, umas vezes fruto da fantasia

do artista, outras vezes ligadas ao texto ou ao signifi cado do assunto tratado, e ainda

ramagens estilizadas em campos fl oridos, paisagens, animais, aves, insectos, etc.

Por vezes transmitem indicações sobre o possuidor do manuscrito pela inclusão de

referências heráldicas, como acontece na Crónica de Espanha da Biblioteca Nacional

de Paris, outras vezes funcionam como o desdobramento da imagem principal e uma

espécie de comentário ao texto, como se evidencia na iluminura da Crónica da Aca-

demia das Ciências. Se, até ao período gótico, a inicial tinha sido o lugar privilegiado

para o ornato, agora esse papel vai caber à cercadura. No manuscrito da Crónica é

século XV, tem estado inacessível há já algum

tempo. A conservação em geral e, particularmen-

te de espécies como esta, pressupõe atitudes e

práticas variadas e complexas, que deverão in-

cluir, também, o seu estudo. Os meios indirectos,

como sabemos, não nos fornecem todos os da-

dos, nomeadamente os que se referem ao estudo

do objecto, á sua construção, ao processo do seu

fabrico, etc. Esta refl exão padece, também, deste

facto, sendo necessariamente muito incompleta,

e ainda mais provisória do que deveria ser.

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ainda o espaço desordenado, sem o rigor construtivo que vemos surgir no fi nal do

século XV; mas é, também, desordenado no sentido de não haver uma lógica evidente

de hierarquização das páginas povoadas por decoração marginal. Se exceptuarmos o

caso da página de abertura que, como veremos, assume características de portada,

a valorização decorativa parece sujeitar-se a uma vontade que não tem a ver com a

lógica da empaginação.

Quanto à letra inicial, em particular no primeiro estilo, assume formas que reeditam

a inicial fi gurativa fantasista românica, tornando-se “um objecto artístico, fi m em

si mesmo,”3 pretexto para fantasias, objecto privilegiado de estudo por parte de

calígrafos, artistas, tratadistas e até matemáticos, prática que o século XV instaurou,

primeiro olhando mais à fantasia e depois mais à regra. No códice da Academia das

Ciências, podemos observar autênticos alfabetos fi gurativos, utilizando fi guração

humana ou animal, mas também elementos arquitectónicos e geométricos, com

tratamento tridimensional, autonomizando-se da leitura.4

Quanto à origem, Cintra situa este códice no ambiente da corte de Avis, próximo de

D. Duarte, enquanto príncipe e rei. Ao argumento formal da escrita, acrescenta a

riqueza ornamental, a provável referência a este códice na lista de livros de D. Duarte,

que poderia ter sido copiado aquando da separação da Crónica de Portugal, que ele

ordenou. E conclui que o códice foi copiado “pelos escribas da câmara de D. Duarte

e decorado pelos seus iluminadores, nas primeiras décadas do século XV.” 5 De facto

parece haver um grupo que continua – chamemos-lhe “os escribas da câmara do

rei”, – visível no ar de família dos trabalhos executados pela ofi cina régia mesmo

em períodos posteriores6. Mas já não poderemos dizer o mesmo para a iluminura, se

atendermos aos diferentes programas referenciáveis na Crónica e à sua excepcional

variedade e riqueza. O estilo das letras fi tomórfi cas e das ramagens de hastes com

folhas de acanto e lanceoladas, prolongando-se nas zonas perimetrais, que identi-

fi camos como um estilo ou programa coerente, vai ser possível referenciá-lo várias

vezes ao longo do século XV. Os iluminadores de D. Duarte, como lhe chama Cin-

tra, poderiam ter o contributo de artista estrangeiro, que transportasse consigo um

programa, hipotéticos modelos e um corpo de imagens que iriam, depois, fornecer

abundante material iconográfi co ao desenho da iluminura da Crónica, pois demonstra

habilidades que não parecem derivar de imitações ocasionais.

A infl uência italiana, algumas vezes pressentida7, poderá ter acontecido de forma

indirecta através de modelos iconográfi cos que circulavam, principalmente por via

aragonesa. Lembremos, a propósito, que D. Duarte casou com Leonor de Aragão

(1428), que seu irmão, o infante D. Pedro se uniu em matrimónio com D. Isabel,

fi lha do conde de Urgel (1429) e que o fi lho destes, o Condestável D. Pedro, autor

ou promotor da recompilação e da cópia do manuscrito da Biblioteca Nacional de

Paris, (Portugais 9), seria, mais tarde, rei de Aragão (1464).

A proximidade da letra da escrita, dos motivos decorativos e até da empaginação que

L. Cintra encontra entre o manuscrito da Crónica e o Leal Conselheiro de D. Duarte,

faz com que se instaure a dúvida sobre a execução da obra nas primeiras duas déca-

das do século XV, como conclui. A sua argumentação não parece assim tão decisiva.

3. Ver PACHT, O., o.c. p.62.

4. Esta estratégia de tratamento da letra, como

objecto autónomo passível de estudo, vai adquirir

um relevo maior no Renascimento, onde calígra-

fos, geómetras e artistas desenvolvem uma tra-

tadística que visa primeiramente a sua beleza for-

mal, sujeita às leis da proporção e do equilíbrio, e

depois uma boa impressão tendo em conta a le-

gibilidade e a adequada atintagem no prelo. Caso

curioso, bem observado por Odete Almeida, em

dissertação de Mestrado a apresentar à Univer-

sidade Nova de Lisboa, é a utilização do ms. da

Crónica da Academia, cerca de cem anos depois,

como modelo das iniciais da Crónica de D. João I

de Madrid, o que vem por em causa a posse do

exemplar, como Cintra conjectura, até meados do

século XVI (CINTRA, L. F. Lindley, Crónoca Geral

de Espanha de 1344 – Edição crítica do texto em

português. Lisboa, Academia Portuguesa de His-

tória, 1951, vol. I, p. CDXCIX).

5. CINTRA, L. F. Lindley, Crónoca..., vol. I, p.

CDXCCIV-CDXCVIII.

6. Vida de Júlio César – 1446-85, Ordinários do

Ofício divino – Alc. 62 (1475) e 63 (1483), Missal

Cisterciense – alc. 459, Livro da Virtuosa Benfei-

toria – cód. 9, Real Ac. de Hist. de Madrid – per-

tenceu ao fi lho de D. Pedro, o condestável – ca.

1430, Vida de Cristo de Ludolfo de Saxónia – Alc.

451-453. No Alc. 451 vê-se no fl . 56v. “Ata aqui

fez o scripvam del Rey” e no fl . 57r a indicação

de que acabou de escrevê-lo e o encadernou Fr.

Bernardo de Alcobaça, 1445-1446. Ver fl .7r.

7. CEPEDA, I. V., “Manuscritos iluminados da

Corte portuguesa no século XV”. In NASCIMEN-

TO, Aires [et al.]; coord. MIRANDA, M. Adelaide,

A Iluminura em Portugal – Identidade e infl uên-

cias. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999, p. 356.

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A Crónica que andava em cadernos na livraria de D. Duarte pode ser muito bem o

exemplar da Academia de Lisboa, que não foi executado no sistema da pécia. Seria

mais lógica a aproximação no tempo dos dois códices, já que tanto se aparentam no

aspecto. O programa ornamental parece apontar para isso.

Um dado interessante a ter em conta, é o regramento da Crónica, feito a tinta azul

violeta, talvez resultante duma receita de turnesol, que vemos utilizada em Portugal

em período mais próximo de meados do século. Uma mera hipótese.

2. Imagem e memória

Antes de olharmos para algumas imagens da Crónica, permito-me lembrar algumas ideias

que nos ajudam a entendê-las melhor. Sabemos que a Idade Média descobriu o sentido

político do tempo, que se discutem os fundamentos do poder, que a História é utilizada

como sua propaganda. Por isso o rei deve preservar o passado, ao mesmo tempo que lhe

compete prevenir o futuro. Desde cedo que existe a consciência de que “os actos régios

devem ser escritos, para servirem de exemplo a todos e não se apagarem da memória dos

homens”8. A imagem, como ouvimos ontem de forma brilhante ao professor Fernando

Galván, tem, também, essa função que é atribuída ao relato escrito9. Lembro, a pro-

pósito, a legenda do retrato póstumo de D. João I, do Museu Nacional de Arte Antiga,

identifi cando-o como a sua verdadeira imagem destinada a conservar a sua memória10.

Uma das fórmulas utilizadas para iniciar os capítulos, “ANDADOS...”, que aparece já

nas crónicas a partir de Afonso X11, antecedendo uma lista de referências cronoló-

gicas, evidencia a necessidade de assinalar, com rigor, os factos e de relacioná-los

com a marcha da História. Este particular início faz com que se repita muitas vezes

a inicial A, tornando evidente e solenizando esse momento através das variadíssi-

mas formas de tratar essa letra, o que acentua a importância da imagem no relato

cronístico, escrito para ouvintes12.

Esta linguagem das imagens, incorporadas na Crónica em tempo diferente do da

escrita, como se viu, introduz um discurso novo, em que o rei se torna presente e

dominante, desempenhando o papel principal. Nele assenta a legitimidade, pro-

curando inverter, desta forma, o pendor senhorial subjacente ao texto da Crónica.

No fi nal do século XV, D. Manuel ainda se esforçará por afi rmar essa legitimidade

de variadíssimas formas, como sabemos, entre as quais o uso propagandístico dos

seus signos e da sua imagem e a promoção da memória do passado da monarquia.

Já aqui se falou do carácter civil da imagem do rei que também transparece nas

representações da Crónica. De facto, é escassa a temática religiosa: dois funerais

e um milagre, o do bispo de Santiago e o touro. Não há santos, mistérios, imagens

de pendor moralizante, atitudes devocionais ou simbólica marcadamente religiosa.

É a fi gura do rei e do seu poder, a vida, a morte, o amor, os jogos e divertimentos,

a música, motivos naturais ou fantásticos, que estão presentes, acentuando a memó-

ria profana que a Crónica nos transmite.

8. MATTOSO, José, Identificação de um país

– Ensaio sobre as origens de Portugal – 1096

-1325. Lisboa, Ed. Estampa, 1985, vol. II, p. 85.

9. Todo o poder tende a encontrar “um repor-

tório de signos que tenham como função dar a

conhecer ao menos a identidade, e, por vezes,

até mesmo a natureza, as aspirações ou as jus-

tifi cações do ou dos poderes que o Estado re-

presenta. Estes signos são geralmente imagens.”

PASTOUREAU, M., Figures et couleurs – Études

sur la symbolique et la sensibilité médiévales. Pa-

ris, Le léopard d’Or, p. 61.

10. «Haec est vera dignae ac venerabilis memo-

riae Domini Ioannis defuncti quondam Portuga-

liae nobilissimi et ilustrissimi regis imago...». Esta

ideia vai ser desenvolvida no século seguinte,

como escreve Francisco de Holanda: “Digo que

estimo somente os claros príncipes e reis ou im-

peradores merecerem ser pintados e fi carem suas

imagens e fi guras e sua boa memória aos futuros

tempos e idades” HOLANDA, Francisco, Do tirar

polo natural. (Santarém, 1549) Intr. e notas de J.

F. ALVES. Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p.14.

11. Ver REPRESA RODRÍGUEZ, Armando (co-

ord.), Las Edades del Hombre – Libros y docu-

mentos den la Iglesia d Castilla y Leon. Burgos,

1990, p. 108.

12. O autor dirige-se frequentemente a ouvintes

e não a leitores com expressões como esta: “Já

ouvistes como a rainha...” (Fl. 294r.).

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A imagem do rei é enquadrada por elementos distintivos e prestigiantes: arquitec-

turas, baldaquinos, músicos, simbologia régia do poder, da força, das virtudes que o

rei deverá possuir ou dos vícios que são atribuídos ao mau soberano.

Vamos, então, observar algumas dessas imagens segundo um percurso que se inicia

na portada, que nos mostra a imagem fundadora ligada ao passado mítico (Hércu-

les), e continua depois, evidenciando um discurso original, pela fi guração da cons-

trução do poder em contraposição aos outros poderes, da simbólica régia, em que

o retrato assume um papel maior, enquanto imagem da majestade, da entronização

como momento inaugural e legitimador do poder, passando por temáticas relativas

às vivências, como a festa, o amor e a morte. Mas, a ausência duma razão gráfi ca

evidente na distribuição destas imagens ao longo do texto, necessita duma inter-

pretação que considere e valorize o conjunto.

3. As imagens

3.1 A imagem do mito fundador – Hércules

A Crónica abre com uma espécie de frontispício, a única página cujas margens se

dispõem em forma de cercadura ordenada. Os elementos da composição são a inicial

inscrita num quadrado, ao alto, alinhada com a coluna de texto da esquerda, e a

cercadura que preenche totalmente as margens e o intercolúnio.

A inicial está inscrita num duplo quadrado, de moldura vermelha, com quatro círculos

nos ângulos. A letra capitular O é construída por quatro fi guras nuas acorrentadas

pelos pés, a serem estranguladas pela cauda de dois dragões enlaçados que preen-

chem o interior, primitivamente dourado sobre um bólus vermelho. Com as cabeças

muito desgastadas só é possível reconhecer, numa delas, um homem de barba, um

pouco calvo. As fi guras alternam nas cores rosa claro e esverdeado, tal como os dra-

gões. Num dos círculos podem, ainda, distinguir-se vestígios de desenho e o furo

do compasso. No interior do quadrado vemos seis pequenos círculos.

As margens regulares, muito danifi cadas pela água e pela guilhotina do encader-

nador, que aparou cerca de dois centímetros na cabeça, na goteira e no pé, são de

difícil leitura a olho nu e à luz normal. Pelo que se pode observar, aí e no intercolúnio

desenvolve-se uma composição unitária que parte da margem de pé, onde se vê um

edifício acastelado, rodeado de casario, uma igreja, à esquerda, três fi guras, à direita,

sobre uma paisagem que continua pela margem de goteira, onde se adivinha, mais

ao alto, uma cena onde intervêm alguns cavaleiros, peões e cães ou outros animais

no meio do arvoredo. Na margem de festo, dois ramos entrançados, com folhas e

fl ores, e na margem de cabeça, quatro aves afrontadas, sobre a continuação da

mesma paisagem.

Na zona inferior do intercolúnio, sobre um monte onde se situa um castelo ou

cidade fortifi cada labiríntica, sobressai uma fi gura seminua, um homem, de pé, com

fig.1 hércules no frontispício, crónica geral de espanha , lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 1r

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um manto e uma clava, dele nascendo um motivo vegetal que se alonga para cima.

Esta fi gura pode ser a imagem de Héracles ou Hércules, munido com a sua clava e

envolto na pele do leão de Nemeia. L. Cintra encontrou uma vaga referência a esta

identifi cação mas, “apesar das circunstâncias”, não concordou com ela13. Não diz

o autor essas circunstâncias, mas podemos imaginar que se queira referir ao texto

dos fl s. 4-6, em que é contada a história de Hércules e os seus feitos em Espanha.

O texto da Crónica abre praticamente com esta história, depois do prólogo, que

enuncia a tarefa de preservar a memória dos feitos “dos mui nobre barões e de

13. L. Cintra diz o seguinte: “Segundo o autor

do Catálogo dos preciosos Manuscritos da Biblio-

theca da Casa dos Marquezes de Castello Melhor,

pág. 4, esta iluminura seria ilustração ao texto do

cap. VI (fl ,4). Não creio. Seria o único caso em

que a ilustração apareceria três fólios antes do

trecho a que se refere. O desenho – um homem

de pé sobre um castelo, ladeado de edifícios e

fi guras humanas – não se liga ao mencionado ca-

pítulo com a evidência que seria necessária para,

apesar das circunstâncias, nos fazer estabelecer

a relação”. Ver L. CINTRA, Crónica...v. I, p. CDX-

CVIII, nota 21.

fig.2 hércules no frontispício, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 1r

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grande entendimento”, entre os quais inclui o “grande Hércules de Grécia” (fl .2 r.),

e depois de fazer a ligação da história hispânica aos tempos bíblicos. Hércules é o

“bathalhador honrado e acabado em força e em lide”, o modelo de todo o nobre

guerreiro. Estende-se a sua história por cinco capítulos, onde para lá do enunciado

dos seus trabalhos, se descreve “como entrou em Espanha e das obras que em ella

fez” (f. 4v.). Construiu torres, a primeira, “mui grande e pos encima hua imagem de

cobre” (fl . 4v), levantou-a em Cádis; depois, ergueu outra imagem em Sevilha; em

seguida esteve em Lisboa, “povoada depois que Tróia foi destruída a segunda vez”

(fl . 5v); e daí foi à Galiza combater Gedeon, que venceu “e mandou logo em aquele

lugar fazer uma grande torre” pondo nos alicerces a cabeça do inimigo, na cidade

de Corunha, que nos aparece no mapa-mundi do beato do Burgo de Osma, como

a torre de Hércules – o farol romano. Depois foi até ao rio Guadiana – “Augua de

Diana” – terra para caçar, criar gado e muito fértil e aprazível, a Lusitânia – jogos de

Diana – (fl . 6v.). Na Crónica, Hércules é o herói construtor de torres, fundador das

cidades hispânicas, mas também da linhagem dos seus reis e senhores que, assim,

encontra uma justifi cação no tempo imemorial, mítico, como a história bíblica e a dos

heróis lendários; isto é, o seu início é garantia de que se perpetuará na imortalidade

como o herói fundador, modelo a seguir: “Hércules era da linhagem dos gigantes e

mui forte, pêro non era cruel nem de mau senhorio; ante era mui piedoso aos bons

e forte aos maus” (6v). Funciona, pois, como um emblema, uma imagem heráldica

que não se encontra expressamente na Crónica, a não ser, numa inicial fi gurada, as

cinco quinas sem qualquer uma das formas convencionais (fl . 26r.).

A imagem de Hércules a introduzir a Crónica, segue o texto, inserindo a história

peninsular num contexto universal. A leitura da restante iluminura é muito difi cul-

tada pelo estado de conservação, como se disse. Parece, contudo, que, mais que a

alusão aos doze trabalhos, talvez se possa imaginar aqui a epopeia de Hércules pela

Espanha, como é descrita na Crónica: a cidade ou castelo pode signifi car uma das

torres que ergueu, ou a cidade de Lisboa cuja equivalência a Tróia o cronista ano-

tou; a paisagem verdejante e aprazível, propícia para a caçada, pode ser a Lusitânia

nas margens do Guadiana, o jardim das Hespérides guardado por um dragão, cujos

pomos dourados podem estar simbolizados nos bezantes inscritos na inicial; mas o

herói fundador, que venceu todos os perigos e todos os seus inimigos e, através do

fogo purifi cador, a própria morte, sobrepujando a torre ou a elevação, funciona como

o farol que ilumina a história peninsular.

Ao longo do códice, especialmente nas letras fi guradas, há motivos que podem

ser, também, identifi cados com Hércules ou os seus trabalhos, como, por exemplo,

um dragão vomitando fogo contra uma fi gura nua armada de bastão (fl .190r.); um

homem lutando com um leão; outro dominando um porco (232 r.) (fl .201r), o caran-

guejo; etc. Mas uma das fi guras equivalentes a Hércules é a do herói por excelência,

o Cid, guerreiro feroz e destemido, também ele invencível e com uma história repleta

de trabalhos e sofrimentos. A adaptabilidade dos mitos antigos à cultura medieval

foi bem vista por Mário Martins em relação à General História de Afonso X, ideias

absorvidas pela a Crónica de 1344 14.

14. MARTINS, Mário, Alegorias, símbolos e

exemplos morais da literatura medieval portu-

guesa. Lisboa, Ed. Brotéria, 1980, p. 250.

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3.2 O tempo da festa – A lenda do bispo e touro

O fl . 155r é o início do reinado de Vermudo II (ou Bermudo) (982-999). Abre com

a inicial C, que faz parte do conjunto que ocupa 9 UR, inscrita num quadrado, em

fundo de ouro picotado aplicado sobre bólus vermelho. A letra, isolada da restante

decoração, é fi gurada com dois homens nus azuis e recobertos de pelos, dispostos

simetricamente e atados por uma corda. Nas margens e no intercolúnio desenvolve-

-se a cena, descrita no texto, relativa ao milagre do chamado arcebispo de Santiago

fig.3 milagre do bispo e do touro, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 155r

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Atalfo ou Adulfo. Na margem de pé, em fundo de ouro picotado e enxaquetado, no

centro duma praça em frente dum edifício, de que vemos apenas a torre depois do

aparo do encadernador, está a fi gura do arcebispo, revestido com as vestes litúrgicas

– a casula, a mitra e o pálio – segurando os chifres dum touro que levanta a cabeça.

Atrás de si, à esquerda, três peões lançam farpas, outro afi a a sua com um canivete e

outro ainda faz soar o holifante. À direita, num palanque, dois espectadores nobres

lançam, também, uma chuva de dardos sobre o animal, o mesmo fazendo um peão

mais abaixo. Um terceiro personagem, vestido de vermelho e cabelos compridos

ruivos e encaracolados, olha para o rei e gesticula. Mais acima, numa varanda do

edifício, coroado e com um bastão na mão direita (ceptro?), o rei tem uma expres-

são de espanto, enquanto o bobo olha para ele sorrindo e apontando para o touro.

O edifício, de que só percebemos a torre, tem uma arquitectura classicizante, rema-

tando com coruchéus góticos. A margem de goteira completa-se com duas pequenas

“ilhas”, uma com roseira de rosas fl oridas e a outra com uma árvore, um veado, um cão e

papoi las. Na margem de festo desenvolve-se, em contínuo, um conjunto de cenas cam-

pestres. No intercolúnio, três fl oreiras e uma árvore com frutos vermelhos (macieira?).

Bermudo II foi o rei da Galiza e de Leão no fi nal do milénio, um ambiente conturbado.

A Reconquista não só não avançava como estava em retrocesso, com arremetidas

contínuas dos muçulmanos: Almançor arrasou Santiago (997) levando consigo os

sinos da catedral para a mesquita de Córdova. A Crónica legitima a sua sucessão ao

trono de Leão, mas, de facto, foi considerado usurpador pela nobreza que tem de

enfrentar várias vezes. As lutas externas e internas são, pois, uma constante para a

afi rmação do seu poder. É neste contexto que se enquadra o episódio do milagre que

apresenta algumas discrepâncias de cronologia e relativas à identifi cação do bispo que

não corresponde ao reinado de Bermudo II15. Chama arcebispo a Atalfo e a imagem

respeita essa identifi cação, – o pálio sobre a casula –, ainda que o primeiro arcebispo

metropolita de Santiago fosse Diego Gelmirez mais de cem anos depois (1120-1140).

A Crónica começa por apresentar o rei de forma positiva, “entendido e bõo”. Porém

o seu perfi l moral e até de guerreiro não é o mais adequado porque:

– “ouve os prazenteiros e maldizentes” que difamaram o arcebispo, e tenta

matá-lo traiçoeiramente, sendo amaldiçoado;

– foi derrotado por Almançor, derrota permitida por Deus por causa dos seus

pecados, ao abandonar a sua esposa D. Vellasquida, embora aqui se justifi que

este acto “ca se nõ avya della entregue”, e no ms. de Paris diz-se que foi “por

nõ se contentar della”16;

– prendeu o bispo de Oviedo, enviando Deus uma grande seca como castigo.

O rei arrepender-se-á “de todollos malles e tortos que fezera contra Deus” empreen-

dendo a reconstrução da igreja de Santiago e de outros lugares devastados por

Almançor, dando esmolas e fazendo “obras de piedade”, obtendo, assim, o perdão

dos seus pecados antes de morrer.

O episódio da crónica descreve pormenorizadamente o episódio do bispo. O rei

convoca-o para Oviedo, mas, antes de ir à presença do soberano, numa sexta-feira

15. Uma rasura corrige a data do início do rei-

nado para 962. Mesmo assim, o bispo Atalfo

ou Adulfo, a que se refere a narrativa, seria bis-

po de Iria entre 847 e 855 (Adulfo I) ou 855 e

877 (Adulfo II). No reinado de Bermudo II fo-

ram bispos de Iria-Santiago D. Pellaio Rodriguez

(977-985) e S. Pedro de Mezonzo (985-1003).

O primeiro arcebispo metropolita de Santiago foi

Diego Gelmirez (1120-1140).

16. Ver CINTRA, v. III, p. 178, nota 4.

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17. Por ex., nos frescos minóicos do palácio de

Cnossos.

18. MARTINS, M. “Os touros nas cantigas de Sta.

Maria de Afonso X”. Estudos de Cultura Medie-

val. Lisboa, Ed. Brotéria, v. III, p. 22 e sg., (Can-

tigas 47 e 144).

19. MATTOSO, J., o.c., p. 129.

santa, passa pela igreja de S. Salvador porque, diz ele aos que o apressam, “ante e

primeiramente queria hyir veer o rei dos reis que era S. Salvador que salvava os reis

e os outros homeens, que aquelle seu senhor”. Depois da missa, revestido ainda dos

paramentos, caminhou ao encontro do rei que, entretanto, havia mandado trazer um

touro bravo das montanhas, “e foysse muy sem medo pêra o paaço del’rey onde já

estava o touro muy bem prestes ante os paaços del’rei e quantos ricos homeens avya

nas Esturias, que veheram aas cortes”. A festa estava montada. A imagem selecciona

o momento em que o arcebispo enfrenta o touro: o rei manda assanhar o animal,

o que fazem os presentes lançando farpas; mas, ao contrário do esperado, a fera não

investe mas levanta a cabeça deixando os chifres nas mãos do arcebispo. Entretanto,

a assistência, “gentes néscias, riiansse e escarneciam do arcebispo” por vir vestido

daquele jeito. A imagem não conta o que aconteceu aos que se riam, mortos muitos

deles pelo touro antes de seguir o seu caminho, mas mostra-nos o espanto do rei, ao

ver o milagre. Acabada a festa, tentou desculpar-se, sem êxito, junto do arcebispo.

A iluminura segue, pois, de perto, o relato evidenciando o aspecto festivo do aconteci-

mento, que a decoração marginal ajuda a compor, contrastando com as intenções do rei.

O rei e a aristocracia dedicam-se frequentemente a diversões de cariz militar que

servem de exercitação guerreira e constituem a afi rmação das virtudes do cavaleiro,

de carácter moral mas marcadas pela violência: os torneios (um deles é descrito e

representado no fl 189r.), as caçadas e outros jogos com animais, entre os quais as

touradas que nos aparecem desde a Antiguidade17. O touro bravo, nas Cantigas de

Santa Maria de Afonso X18, aparece ligado às Maias, às festas da Primavera, mas é

também o disfarce do demónio perseguindo um monge meio bêbado que a Virgem

Maria salva in extremis. O mesmo auxílio recebe, também, um seu devoto. A interven-

ção milagrosa da Virgem fez com que um touro enraivecido caísse de joelhos e fi casse

amansado para sempre. Na iluminura que acompanha esta cantiga, os espectadores

da festa brava, ao longo da rua, lançam sobre o touro uma espécie de bandarilhas.

O touro investe de cabeça baixa “com os cornos merjudos bem como o touro faz”;

depois de amansado, levanta a cabeça, deixando-se tocar, como na iluminura da Cró-

nica. O touro é a força bruta, é também o símbolo da força indomável e dos instintos

primitivos simbolizados no motivo do homem silvestre, que fi gura na inicial, e que

aparece várias vezes ao longo da Crónica, nas iniciais e nas margens.

O tema da festa anda associado à violência. A violência má, a instintiva, simbolizada

no touro e no homem silvestre, tem como contrapartida a guerra conduzida pelo rei

e pelos senhores, e os jogos de cariz militar. É na luta que se defende a honra que é

a superioridade da fi gura do rei e da sua família, uma espécie de virtus materializada

nos símbolos familiares transmissíveis19. Na literatura do tempo, em especial nos

escri tos de carácter moralizante e ascético, a ideia de combate, com fi guras alegóricas

ti ra das da vida guerreira e militar, está sempre presente: cavaleiros, soldados, bata-

lhas, escudos, espadas, fortalezas, couraças. Mas os feitos e as desventuras militares,

abundantemente presentes no relato cronístico, não têm equivalência nas imagens do

códice da Academia das Ciências de Lisboa. A imagem do combate aparece sobretudo

nas iniciais e na fi guração marginal. Pode estabelecer-se a relação entre esta particu-

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lar ausência e a observação do Prof. José Mattoso de que não é enquanto guerreiro

que o senhor peninsular se defi ne, mas enquanto detentor do poder. “A sociedade

não considera a força das armas como a verdadeira ou a mais importante origem do

poder”. Isto antes do séc. XIII. O poder anda associado à posse e administração de

bens e riquezas. O senhor é o proprietário e cabeça de linhagem20. Mas o poder do

rei afi rma-se, também, submetendo os outros poderes não militares. O arcebispo

simboliza o poder eclesiástico, várias vezes afrontado por Bermudo.

Este é o rei que umas vezes é bom, outras vezes tem condutas indignas da sua

função; um rei desprovido de força militar para vencer o inimigo, um rei sem honra,

que se deixa conduzir pelos seus instintos, mas que, no fi m da vida, recupera a sua

dignidade, redimindo-se dos seus pecados. Por isso o vemos aqui, com todos os seus

símbolos: a coroa real, o ceptro, o palácio, ainda que encostado a um dos ângulos

da página, no extremo da diagonal da imagem do selvagem.

3.3 A imagem do rei

Mas olhemos outras imagens do rei que a Crónica nos apresenta: uma série de três

reis de Aragão e Afonso X de Castela. Penso que elas nos mostram os principais ele-

mentos que compõem a imagem que o rei projecta de si. Nela se centram as repre-

sentações do códice da Academia das Ciências, onde a imagem do senhor, quando

aparece, se encontra associada ao rei ou à rainha.

Rei sentado no trono e músicos

A página é o início do reinado de Pedro III de Aragão (1276-1285). A inicial histo-

riada O, está inscrita num quadrado de fundo de ouro sobre bólus vermelho. A letra

enquadra uma cena, compartimentada por motivos arquitectónicos, representando,

ao centro, o rei sentado no trono, vestido com armadura, de espada na mão, ladeado

por dois músicos, um homem e uma mulher tocando alaúde e harpa. Outros dois,

acompanhando duas bailadeiras, surgem na margem de pé, numa cena de ar livre,

por esse motivo tocando instrumentos de maior sonoridade: a charamela e a fl auta e

tambor. Estes últimos são tocados por um só executante – a fl auta de três furos, com

a mão direita, e o tambor, sustentado no pescoço, com a esquerda – sendo a solução

mais frequente para acompanhar danças nos séculos XV e XVI. O espaço das margens

e do intercolúnio é preenchido por videiras carregadas de cachos de uvas estando

penduradas nas gavinhas das margens de pé e de goteira oito gaiolas com pássaros.

O reinado de Pedro III de Aragão não foi pacífi co, tendo de enfrentar revoltas dos

nobres da Catalunha, por cercear os seus privilégios, e o rei francês por ser um obs-

táculo à sua expansão no Mediterrâneo. Os episódios relatados na Crónica mostram

que a superioridade se evidencia especialmente graças à sua astúcia. Se a arma-

dura com que é representado evoca as suas virtudes militares, a música, a dança e

a videira com uvas e as gaiolas, provavelmente alusão à teoria dos oito modos ou

20. MATTOSO, J., o.c., p. 130-132.

fig.4 pedro iii de aragão no trono e músico, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 183r

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regras relativos ao ritmo e à consonância, mostram-nos o lado festivo de protector

das artes e das letras, nomeadamente da poesia trovadoresca de que foi cultor. Será

por isso que Dante, na Divina Comédia, coloca Pedro e o seu rival Carlos I de França

a cantar em coro, às portas do Purgatório.

Os músicos eram presença constante na corte, mas também os príncipes eram inicia-

dos na arte da música e aprendiam a tocar algum instrumento. A tradição da cultura

musical na corte de Aragão podemos conferi-la, mais tarde, pelo facto de Dona

Leonor de Aragão, mulher de D. Duarte, tocar clavicórdio.

fig.5 pedro iii de aragão no trono e músicos, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 183r

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Retrato do rei

A esta imagem podemos associar a do seu sucessor, Afonso III de Aragão (1285-

-1291). O rei está de pé, a coroa real na cabeça e o ceptro na mão direita, no centro

da cidadela que desenha a inicial d. Teve um curto reinado, sem grande história.

Apesar de débil e de ceder perante a nobreza, é elogiado na Crónica: “foi homem

mui mesurado e justiçoso e muito franco e de grande coração”. O castelo, dentro do

qual parece refugiar-se, é motivo repetido mais seis vezes nesta página, sendo o da

margem de pé constituído por quatro bastiões e a torre de menagem. A imagem do

castelo, fortaleza bem edifi cada e inexpugnável onde vive o rei, que repetidamente

nos aparece na iluminura da Crónica desde a primeira página, é símbolo heráldico

do poder. Na cópia alcobacense (Alc. 199) do “Castelo Perigoso”, obra de carácter

moral e ascético, aparece-nos um desenho simples cujas torres se assemelham às

que aqui vemos. Aí, como em outros textos do género, o castelo é, entre outras,

alegoria das virtudes morais. Portanto, símbolo do poder mas, também, das virtudes

que devem compor a imagem do rei.

fig.6 reis de aragão, afonso iii e jaime i, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 185v

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No mesmo fólio, outra imagem representa o rei Jaime II de Aragão (1291-1329),

irmão do Afonso III e seu sucessor. A fi gura, um busto, está inscrita na inicial D,

de 10 U.R., construída com motivos arquitectónicos, em fundo de ouro picotado.

O rei, em posição frontal, tem cabelo curto, moda mais frequente na fi guração da

Crónica21, barbas compridas, encaracoladas e bipartidas; veste de vermelho e tem

rica coroa na cabeça. O texto da Crónica diz que “foi mui bom rei e mui entendido,

mas foi escaso”, deixa, porém, entender que consolidou o reino de Aragão, sub-

metendo a nobreza, enfrentando Castela e a França, e alargando o seu poderio no

Mediterrâneo. A política de casamentos ajudou a fazer a paz: casa primeiro com a

fi lha do rei Castelhano “mas não albergou com ella”, remetendo-a para casa da sua

mãe, depois da morte do rei, para casar com a fi lha de Carlos de França. A paz com

Castela, diz-se na Crónica, foi intermediada por D. Dinis, a instâncias da sua mulher,

Isabel de Aragão, a rainha santa, irmã de Jaime II.

A imagem do rei, com a força do retrato, é a mais elaborada fi gura da Crónica, o que

releva da importância que a iconografi a dos reis de Aragão tem neste códice. Bem

proporcionada e de aspecto solene, evoca a alegoria da “Corte Imperial” (S. XIV),

livro existente na livraria de D. Duarte, em que se descreve a fi gura do imperador, que

é Cristo, “rosto venerável, incutindo amor e temor”, a barba abundante dividindo-se,

no queixo, em duas partes iguais, olhos formosos, simples e claros, cingindo-lhe a

cabeça uma coroa de pedras preciosas. Via-se, na verdade, que ele era o mais per-

feito dos homens22. O particular tratamento da cabeça do rei, a parte mais nobre do

corpo, mostra que o rei é a cabeça do reino tal como Cristo o é da Igreja23.

Estas imagens revelam-nos alguns dos atributos fundamentais da imagem do rei.

Desde logo, a sua majestade, semelhante à Majestas Domini, evidenciada pela entro-

nização e pela posição frontal24. Depois a presença de elementos simbólicos das

funções à volta das quais essa imagem é construída – a coroa, o ceptro, a espada,

a armadura, o vestuário e o seu colorido, a música, o castelo ou o palácio: a manu-

tenção da paz e da justiça através da boa ordem social, o dever de fazer a guerra

contra o infi el e de manter íntegro o território25. Por isso, o rei, pelo seu especial

carisma – uma espécie de dualidade, à semelhança de Cristo, conferida pela graça

divina26 – traz consigo um conjunto de virtudes especiais que tem obrigação de

cultivar”27. Deve ser forte, poderoso nas armas, sábio, prudente, devoto e defensor

da fé, dotado de engenho e até de semblante agradável28. Zurara, na Crónica de

D. João I, conta que, antes de falecer, D. João I repara que tem a barba crescida e manda

que lha fi zessem pois não era decoroso o rei depois de morto ser “espantoso e disforme”29.

É importante que o rei pareça rei pelos seus atributos mas também pelo seu aspecto.

O Poder nasce do rei e da sua proximidade, visível na dignidade do lugar, no fausto

e na beleza da sua corte, na música, no cultivo das letras, na preocupação em pre-

servar a memória. É esta a imagem moderna do poder do rei que as representações

da Crónica pretendem apresentar, que é, também, a da dinastia que D. João I ini-

cia, um rei aclamado, escolhido, que afi rma uma nova legitimidade face aos outros

poderes. D. Duarte mostra que a superioridade moral e intelectual do monarca se

evidencia quando disserta sobre a moral, os bons costumes e até sobre teologia. Ele

21. A moda do cabelo curto, rapado na nuca e

sobre as orelhas, caindo em franja na fronte, pa-

rece que se iniciou em França à roda de 1420.

Ver QUICHERAT, J., Histoire du costume en Fran-

ce depuis les temps les plus reculés jusqu’a la fi n

du XVIIIe siècle. 1875-77, p. 256. É interessante

observar que várias fi guras dos painéis da Vene-

ração de S. Vicente têm o cabelo cortado deste

modo, nomeadamente aquela que tradicional-

mente é identifi cada com o Infante D. Henrique,

mas que, provavelmente, é o seu irmão, o rei

D. Duarte. A moda do vestuário também tem ele-

mentos comuns.

22. Ver texto de MARTINS, Mário, “A corte Impe-

rial”. Alegorias e símbolos..., p. 208.

23. Na Idade Média, o retrato andava associado

ao conceito de imago, que, por meio de elemen-

tos geralmente identifi cáveis, estabelece corres-

pondência com a pessoa que se quer represen-

tar. Não era tanto a semelhança que se procurava

mas o sentido que se pretendia evocar. “A função

mais elementar da imagem é criar um substituto

que representa uma determinada realidade na sua

ausência, ainda que apenas o faça parcialmente”.

Ver, NASCIMENTO, Aires do. “Texto e imagem:

autonomia e interdependência em processo de

leitura”, in BRANCO, António (dir. de), Figura.

Fac. de Ciências Humanas e Sociais – Univ. Al-

garve, Faro, 2001, p. 47.

24. Sobre o tema da representação em posição

frontal e de perfi l, veja-se PASTOUREAU, M.,

Couleurs, images et symboles. Paris, Le Léopard

d’Or, s. d., p. 160. O autor, depois de referir que

os primeiros retratos do s. XIV não representam

um progresso artístico em relação às “imagines”

convencionais e às efígies da fi guração medieval,

chama a atenção para a natureza heráldica, em-

blemática do rosto de perfi l, diferente da vista

frontal que reenvia para o símbolo, representa-

ção duma ideia através da imagem sensível.

25. MATTOSO, J., Identifi cação... II, p. 81. No

fl . 118r. da Crónica, o conde de Castela, Fernão

Gonçalves, faz a seguinte oração: “Senhor, dador

de toda a graça, peçote por mercee que esta ter-

ra que me deste a mandar, que me dês graça que

eu sempre taaes obras em ella faça que sejam a

teu serviço. Em honra do senhorio de Castella e

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entende que o poder nasce, também, do saber, construído na leitura e na escrita e

no enriquecimento dos seus conhecimentos, ouvindo “pessoas de estados e saberes

desvairados”30. A Corte de Avis é uma corte culta, letrada, amante dos livros e da

história. Daí, também, o destaque dado ao rei Afonso X, o sábio.

O rei no trono e músicos – Afonso X, o Sábio

A cena está inscrita na inicial M construída com motivos arquitectónicos, com um

desenho menos elaborado que as anteriores. Começa a parte correspondente à Crónica

de Afonso X, colocada no fi nal do códice. Não existem extensões marginais e o facto

duma parte do desenho ter sido abandonado ou deixado inacabado, pode sugerir

alguma imperfeição. O rei está sentado no trono, ao centro, tendo a trás de si a rainha

que apoia a mão sobre o seu ombro. O corpo do rei roda e coloca o rosto de perfi l,

parecendo que olha e gesticula na direcção dos músicos que ladeiam o baldaquino,

dois tocando charamela e um cantando e marcando o ritmo com as mãos ou com

castanholas. Não tem outro distintivo a não ser o trono real e a música: mas a Crónica

descreve, entre as suas obras, a compilação das leis, que acabou o “livro das partidas”,

que “mandou tornar en linguagem todalas historias da Bibria e os livros das artes, das

naturezas e das astronomias e muitos outros livros de desvairadas sciencias e saberes”

(fl . 321v.). É por isso, penso, que o avô del-rei D. Dinis tem este tratamento especial.

dos seus naturaaes e destroimento dos enmiigos

da tua sancta fe catholica.”

26. WIRTH, Jean, L’image médievale. Naissance

et développements (Vie- XVe siècle). Paris, Meri-

diens Klincksieck, 1989, p. 211.

27. MATTOSO, J., Idententifi cação...II, 81-82.

28. Ibidem, p.82.

29. ZURARA, Gomes E. de, Crónica de D. João I,

Lisboa, 1902, t. 2 129-130. Cit. em Mário Mar-

tins – O Tempo e a Morte, vol. I, p. 53 e sg.

30. D. DUARTE, Livro da Ensinança de bem ca-

valgar toda a sela. Prólogo.

fig.7 afonso x, o sábio, com a rainha e músicos, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 318r

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A aclamação do rei

A inicial historiada D 31, desenhada com motivos arquitectónicos, tem inscrita, adap-

tada à forma da letra, a cena relatada no texto: “Alçaron por rey dom Anrique”, que

tinha apenas doze anos de idade.

O rei menino, Henrique I de Castela, que teria um casamento falhado com a fermosa

Mafalda, fi lha de D. Sancho I, vestindo túnica azul, de ceptro na mão e vestígios

31. Falta no exemplar da Academia a palavra

(D)epois.

fig.8 afonso x, o sábio, com a rainha e músicos, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 318r

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de coroa na cabeça, está de pé diante dum reposteiro, sobre um estrado elevado

recoberto por tecido vermelho e é aclamado pela corte, como se vê pela acção de

ser levantado com ambas as mão por alguns personagens, olhando um deles para

a rainha, sua mãe, sob cujo poder fi cou o rei durante a sua menoridade, e que está

sentada à parte, em trono com dossel, vestindo um manto de cor verde que lhe cobre

a cabeça, alusão ao seu estado de viuvez. Os nobres olham para ela que levanta a

mão direita, gesto que pode signifi car que o poder está no rei ou ainda os conse-

lhos e as recomendações que lhe fez, e que o texto regista. A imagem mostra-nos

uma cerimónia em ambiente civil, o interior do palácio, sem qualquer simbologia

religiosa; porém, a aclamação podia realizar-se em qualquer lugar, como aconteceu

com D. Fernando, fi lho de Dona Beringuella ou Berengária e do rei de Leão, que

foi aclamado rei de Castela no sítio onde se encontrava: “Tomaram logo voz com o

infante e alçaromno por rei sob u olmo”.

Sobre a polémica da existência ou não duma cerimónia religiosa de coroação ou

sagração dos reis portugueses e peninsulares, José Mattoso defende que o acto

civil da aclamação, o que aparece geralmente descrito nas fontes narrativas, não

exclui a possibilidade da realização do acto litúrgico, atestado pelo “Ordo benedi-

cendi regis” existente em Rituais de Braga e de Santa Cruz de Coimbra. A coroa-

ção litúrgica era uma espécie de sancionamento da aclamação, cujo termo “alçar”,

de origem guerreira, se refere à função militar da realeza, o que pode explicar o

fig.9 aclamação do rei henrique i de castela, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 285r

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32. MATTOSO, J., Fragmentos duma composi-

ção medieval. Lisboa, E. Estampa, 1987, p. 221-

-223.

33. Ver CINTRA, vol. IV, p. 544, parte relativa à

Crónica dos reis de Portugal.

carácter civilista da aclamação.32 Mas nem a espada nem o escudo estão presentes

nesta representação da primeira metade do século XV, mas tão só o ceptro e a coroa

real, o que poderá confi gurar a prática seguida na dinastia de Avis. Na verdade,

a construção desta imagem, a presença dum rei menino e da rainha viúva, sua mãe,

permite pensar noutra cena semelhante, contemporânea deste exemplar da Crónica,

que poderia muito bem ter inspirado o iluminador: a aclamação de D. Afonso V, ainda

menino, também, feita pelo regente D. Pedro desta forma simples: “com grande leal dade

e virtude tomouo ele com suas mãaos e assentouo na cadeyra e alevãtouo por rey” 33.

fig.10 aclamação do rei henrique i de castela, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 285r

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3.4 O tempo do amor

Permitam-me que nos alonguemos um pouco mais a olhar para duas outras face-

tas da imagem do rei que a Crónica nos desenha, mostrando-o acima de qualquer

humano, no tempo do amor e no tempo de morrer.

O casamento resulta dum contrato. Tem objectivos políticos, num quadro de alianças

e de interesses, e de perpetuação do poder através da geração de prole numerosa.

A rainha deve dar muitos fi lhos e, quando isso não acontece, o rei pode encontrar nova

consorte. Parece até natural que o rei multiplique a sua descendência com outras damas,

aparecendo os fi lhos na linhagem régia designados por fi lhos de outras mulheres.

Eis alguns problemas mais frequentes, relativos ao casamento, que transparecem

na Crónica.

O parentesco – Os impedimentos canónicos aparecem com alguma frequência.

O episódio de D. Mafalda, fi lha de D.Sancho I, cujo casamento com Henrique I de

Castela foi declarado nulo pelo papa, é um exemplo.

A infertilidade – Afonso X, por não ter fi lhos, cuja culpa é atribuída à rainha, decide

arranjar nova esposa, uma princesa norueguesa. Mas quando a menina casadoura

chegou, a sua mulher estava grávida. A solução foi casá-la com seu irmão, o infante

D. Filipe, que, para o efeito, teve de abandonar a vida eclesiástica. A rainha D. Vio-

lante de Aragão acabaria por ter nove fi lhos. Apesar da intenção do rei em repudiar

a sua legítima esposa, atitude de que se viria a envergonhar, e da numerosa prole

extraconjugal, a imagem, atrás descrita, que a Crónica nos apresenta do casal, evi-

dencia manifestação de afecto, com alguma solenidade mas com um evidente sentido

familiar (fl . 318r)34.

O amor desregrado – O rei, quando se apaixona perdidamente pela sua amante, é

por artes mágicas da mulher, como no caso do rei Afonso VIII de Castela que, sendo

casado com a fi lha do rei Ricardo de Inglaterra, caiu de amores, em Toledo, com uma

jovem judia e “pegousse tanto della que leixou a rainha sua mulher” esquecendo-se

de si e do reino. “E este tam grande amor que elle avia a esta judia que non era senon

por feitiço que lhe ella sabya fazer” (fl . 272v). Os nobres, para defender o reino, não

encontraram melhor solução senão degolá-la. O rei pesaroso, só deixa de pensar na

“maldita” judia por intervenção divina que lhe envia um mensageiro a anunciar-lhe

o castigo do seu pecado: “não fi cará de ti fi lho que reine”.

O casamento forçado – A donzela deve sujeitar-se à vontade política, com excepções,

como é o caso do casamento da irmã de D. Afonso com o rei de Toledo – fl . 160 r.

A Crónica descreve o rei Afonso como prudente, seguindo os conselhos dos sabe-

dores. Nota, porém, que no início não era assim porque “deu com pouco ssiso sua

irmãa por molher a Aabella rey de Tolledo” a fi m de estalecer aliança com ele contra

Córdova. O rei mouro, aliás, “fazia semelhança que era cristão pero encubertamenre”

(fl 160). O casamento não foi, contudo, do “aprazimento de dona Tereyia” e “lhe

pesou muyto por que se fezera”. A cena representada serve para construir a letra A

de forma muito elegante. A rainha, de longo vestido azul, inclinada, aponta com a

mão direita para o alto onde está o seu anjo protector empunhando uma espada.

34. Quem sabe se não terá sido o protótipo da

moderna imagem do rei espanhol que ontem o

Prof. Fernando Galván nos mostrou.

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O rei, com ambas as mãos, de coroa na cabeça, manto vermelho e túnica branca

bordada, arrasta-a para si, puxando-lhe o braço esquerdo. A alcova está representada

por um reposteiro dourado com decoração em picotado, e um chão de ladrilhos

enxaquetados. A imagem e o texto estão de acordo: descreve-se a recusa da mulher

em consumar o matrimónio por ser cristã: “digote que me nõ tangas ca eu quero aver

tal ajuntamento com homem doutra ley”; a ameaça que ela faz ao rei de que se lhe

tocar o seu anjo o matará; a violentação do rei, não se importando com as ameaças,

“travou della per força e jouve com ella”. O texto diz-nos o fi nal da história: ferido,

mas não morto, envia-a para casa de seu pai.

As razões do amor devem respeitar as razões sociais – Os amores de D. Urraca e

D. Pedro de Lara. A cena passa-se num espaço fechado, o jardim verdejante do amor

onde todos os galanteios são possíveis. Os conceitos de vergel ou virgel, horto,

boosco referem-se a estes recantos da vida íntima destinados ao deleite, que, tal

como o jardim do Éden, ou o hortus conclusus do Cântico dos Cânticos, é um lugar

protegido, rodeado por alto muro. No centro, trocando recatados afectos, o conde

D. Pedro de Lara e a rainha Dona Urraca. Conta a Crónica que D. Urraca “dera o seu

amor” ao conde D. Gomez de Castela de quem teve um fi lho. Mas também o conde

fig.11 o rei mouro de toledo aabela e d. teresa, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 160r

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D. Pedro de Lara “ouve o amor della, en tal guisa que fez della o que lhe aprouge”. Os

barões de Castela vendo o que o conde fazia à sua senhora, que fi cava desonrada por

querer casar com um seu vassalo, “foron todos contra elle e nõn quiseron consentir

que se fi zesse tal casamento”. A rainha não fi ca bem na história, mas a sua desonra

deriva não tanto da má fama mas das pretensões dum súbdito a poder mandar por

rei, que acaba morrendo na batalha, mas repentinamente, como um réprobo.

O amor cortês nem sempre é puro. Os amores de D. Urraca e o Cid. Quando

se fala nesta rainha o relato da Crónica parece deixar transparecer que o amor

anda no ar. No início da História do Cid vemo-lo educado na corte do rei

D. Fer nando, em Zamora, onde foi muito bem recebido. O amor intenso que dedicava

a D. Urraca era a forma de corresponder a tantos desvelos. O cronista apressa-se a

esclarecer que não é o que as pessoas pensam: “E dona Orraca... lhe fazia muyta

honra. E esta foy razõ por que a elle amou mais que nem huum dos seus irmaãos.

E non entendades que este amor que lhe assy avya fosse por algua vylania”. No

cerco de Zamora, estando do lado contrário ao da princesa, manda-o el-rei D. Sancho

negociar com a irmã. E aí voltamos a pressentir a intensidade da relação, no con-

tentamento do reencontro, na conversa a sós, nas lágrimas, no tempo que demora a

fig.12 dona urraca e d. pedro de lara, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 266r

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negociar. Tudo negociações e pactos por encomenda do irmão, segundo o cronista.

O texto mostra-nos um amor sem mácula; porém, o iluminador decidiu ir mais longe

nesta intensa relação humana, para lá do simples assentar-se “ambos a fallar em

seu estrado”, construindo, uma letra inicial antropomórfi ca, onde se revela a sua

fértil fantasia precisamente na cena em que se relata o encontro. Ela, pudicamente

coberta apenas com o véu sobre a cabeça, envolve-se num terno amplexo com

um cavaleiro fogoso. Ela reconhece-se, também, pelos belos lábios vermelhos; ele,

pelos bem proporcionados atributos. Mais uma vez a imagem reinterpreta o texto,

introduzindo-lhe novos sentidos.

3.5 A morte do rei – Afonso VI

A morte do rei, não é uma morte qualquer; é sempre anunciada. Só os maus têm uma

morte súbita; o bom cristão pede a Deus, nas Ladainhas, que o livre da morte repen-

tina e imprevista35. Há sempre um tempo, há sempre a possibilidade de arrepender-se

in articulo mortis, de regularizar as suas contas com os inimigos com quem se con-

tendeu, nem sempre com justiça, de fazer os últimos benefícios, de ditar as últimas

vontades, de receber o perdão sacramental da Igreja que, por vezes, lançou anátemas

sobre a conduta rebelde – como a do rei de Aragão D. Jaime que foi excomungado

pelo papa – mesmo quando se é ferido em combate, ou se morre em viagem, debaixo

duma azinheira. O rei Sancho, no cerco de Zamora, cercando dona Urraca, é ferido

35. Uma das invocações das Litaniae é precisa-

mente: A subitanea et improvisa morte, libera

nos Domine.

fig.13 encontro amoroso de dona urraca e o cid, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 205r

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de morte, por um traidor, quando, apeado do seu cavalo, faz aquilo que os homens

não podem deixar de fazer, como se diz eufemisticamente na Crónica. Mas isso não

é representável. O rei deve ser visto sempre envolto na dignidade e na majestade.

A imagem segue o relato. A cena parte da inicial, em que se representa a morte

do rei, continuando pelas margens com o funeral. O rei morto, sob uma azinheira,

com todos os seus atributos, que lhe conferem a dignidade de rei mesmo na morte,

rodeado pelos seus dois fi lhos, lembra-nos um jacente tumular. Na margem de pé,

vemos os funerais, onde a imagem do pranto pelo rei não se faz por intermédio das

carpideiras, proibidas em Lisboa nos fi nais do século XIV, mas pelo silêncio dos panos

negros que envolvem o féretro e os acompanhantes.

4. Nota final com breve observação

sobre a cor do rei

As imagens da Crónica, desenhadas e coloridas, como se disse, no séc. XV, revelam-nos

um dado interessante relativamente às cores utilizadas nas representações do rei. Em pri-

meiro lugar, o ouro está presente, como fundo, em todas as páginas. Este facto é tanto

mais signifi cativo se nos recordarmos que na iluminura portuguesa da época, em que pre-

fig.14 a morte de afonso vi, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 269r

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36. Ex.s – fl .155r. – (cena do touro) rei com man-

to vermelho; fl . 160r – o rei mouro de Toledo com

manto vermelho; fl . 182 r – o rei Pedro III de Ara-

gão com manto escarlate e verde; fl .185v. Afonso

III de Aragão, veste de vermelho e azul; Jaime II

de Aragão, veste de vermelho; fl . 266r – A rainha

veste de vermelho e o conde de Lara, o amante,

de escarlate; fl 287 v, fundo de medalhão verme-

lho; fl .318r. Afonso X, de escarlate.

37. Ver PASTOUREAU, M., Figures et couleur...,

p. 16.

38. O desenvolvimento deste estudo será feito na

dissertação de doutoramento sobre a iluminura

em Portugal nos séculos XIV e XV a apresentar

na UNL – FCSH.

valece a económica fi ligrana, é rara a sua utilização. Esta é, verdadeiramente, uma obra de

aparato em que a fi ligrana desapareceu por completo. Depois, ao contrário daquilo que

acontece na Europa, a cor dominante das vestes reais é o vermelho36, com duas excep-

ções em que prevalece o azul: o rei morto Afonso VI e o rei menino Henrique de Castela.

No fl. 15r. vem uma interessante nota, quando fala do termo do chão de Bello-

tas, sobre o pigmento utilizado para fazer o vermelhão, o mais frequente na ilumi-

nura portuguesa, desde os manuscritos mais antigos – como o Apocalipse de Lor-

vão –: “E em seu termho he o monte que há o vyeiro de que sacam o azougue e

dally o levam para todallas partes d’Espanha e dally sacam muyto vermelhon e muy

bõo que nõ sabem outro tã bõo se nõ aquelle que tragem da terra d’ultramar”.

A existência de matéria-prima tão boa e abundante, pode ser uma justificação

para que o vermelho continue a ser, nas Espanhas, a cor principal, não acompa-

nhando o triunfo do azul na Europa medieval, a partir dos inícios do século XIII37.

Este códice é justamente considerado o expoente da iluminura em Portugal, pela abun-

dância e riqueza dos seus ornatos. A presença do ouro, cuidadosamente brunido e pico-

tado, criando brilho e textura, utilizado com evidente liberalidade, mas também da cor

variada na paleta e nos matizes, a que se deve juntar o desenho executado com mestria,

em especial no primeiro estilo, tornam este livro um objecto faustoso, uma obra própria

de reis. A sua escrita e as suas imagens já não constituem, como no passado, uma grafi a

dirigida aos olhos do espírito, mas à sensibilidade, ao prazer dos sentidos, pelo brilho, pela

cor, pela forma e pela volumetria que a aproxima do real. É nesse sentido, que as imagens

da Crónica, herdeiras da tradição medieval, anunciam já um tempo novo, não apenas

pela sua utilização enquanto promotoras da fi gura e do poder do rei, mas, também, na

forma de abordar a cor e as técnicas da sua aplicação, distantes dos velhos receituários,

e no tratamento da fi guração, participando das inovações da pintura, então arte maior.

Habituado a bons e belos livros, como o seu Livro de Horas, que veio de Flandres,

D. Duarte, o possuidor inicial deste livro da Crónica, poderia ser, também, o encomen-

dador da sua iluminura. As semelhanças decorativas com a cópia do Leal Conselheiro

poderão ir um pouco mais longe e deverão ser aprofundadas noutras direcções: a moda,

o vestuário e até o retrato. O facto de alguma fi guração evidenciar características físicas

particulares, leva-nos a não descartar a suspeita de que o iluminador retratista possa ter

utilizado intencionalmente, como modelos, as personagens que o rodeavam. A galeria

de retratos, iniciada com o de D. João I, teve continuidade na pintura – nos Painéis da

Veneração de S. Vicente –, mas também na iluminura, na Crónica da Guiné – onde

se vê representado D. Duarte ou como, tradicionalmente se diz, D. Henrique – e,

provavelmente, também na cópia da Crónica da Academia das Ciências. Estou con-

vencido que há algumas semelhanças que podem ser mais um indício a colocar esta

obra na rota da corte de D. Duarte e no tempo da regência do Infante D. Pedro38. •

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Resumo

O presente artigo constitui uma abordagem às manifestações da cultura visual na

Sé de Coimbra, em contexto litúrgico, durante o episcopado de Miguel Salomão

(1162-1176). A problemática em epígrafe é analisada numa perspectiva de caso,

relacionada com um diploma conservado, sob a forma de cópia, no Livro preto, em

que se procede à notifi cação da existência de bens pertencentes à catedral, extra-

viados ou indevidamente alienados, a pedido do prelado coimbrão, especifi cando-se

as etapas de construção do templo, tal como as características do altar principal, na

sua relação com imagens de santos. •

Abstract

This article focuses on the manifestations of visual culture in the Coimbra Cathedral,

within a liturgical context, during the episcopacy of Miguel Salomão (1162-1176).

The subject matter of the title is analysed from the perspective of a specifi c case,

that of a copy of a diploma kept in the Livro preto (Black Book). Upon a request

by the coimbran prelate, this document reports the existence of assets belonging to

the cathedral that had been misappropriated or unduly alienated. It also specifi es

the construction phases of the temple, as well as the characteristics of the high altar

with regard to the images of saints. •

palavras-chave

sé de coimbralivro pretoliturgiaiconografiasantos

key-words

coimbra cathedrallivro preto (black book)liturgyiconographysaints

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mário de gouveiaInstituto de Estudos Medievais

FCSH-UNL

imagens de santos na sé de coimbra no episcopado de miguel salomão (séc. xii)

O objectivo desta comunicação é estudar o conjunto das imagens de santos pre-

sentes no mobiliário litúrgico da Sé de Coimbra durante o episcopado de Miguel

Salomão. A análise da problemática aqui proposta decorre da leitura de um diploma

em particular1, conservado sob forma de cópia não-datada no cartulário diocesano

conhecido pela designação de Livro preto, produzido, como memória de arquivo, com

o objectivo de recolher os instrumentos jurídicos probatórios dos direitos, garantias e

privilégios que a Sé de Coimbra e a canónica de St.ª Maria terão adquirido ao longo

dos anos, em particular a partir dos fi nais do século IX2. O diploma ocupa três fólios

do cartulário (fl . 2 v.º-4 v.º), sendo a sua pouco comum extensão, por comparação

à de outras cartas igualmente copiadas e reunidas nesta colectânea documental,

resultado do facto de nele se proceder ao inventário dos bens que confi guram o

património do cabido catedralício na segunda metade do século XII.

A refl exão que aqui propomos corresponde, portanto, a uma análise de caso. O seu

objecto é a relação do património da Sé Velha elaborada a pedido do bispo Miguel

Salomão (1162-1176), com o objectivo de se proceder à notifi cação, numa apolo-

gia de provas a contrario visando refutar as acusações de que o prelado se sentia

vítima, sobretudo depois da concessão da polémica Carta libertatis ao mosteiro

de cónegos regrantes de St.ª Cruz, em 1162, da existência de bens pertencen-

tes à igreja catedralícia extraviados ou indevidamente alienados, complementada

1. LP 3 (s.d.). O diploma foi também parcial-

mente transcrito e comentado em Pierre David,

A Sé Velha de Coimbra das origens ao século XV,

Porto, Portucalense Editora, 1943, pp. 106-107;

e Armando Alberto Martins, «Dois bispos por-

tugueses da segunda metade do século XII», in

Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In memoriam

(Coordenador: Mário Jorge Barroca), vol. II, Por-

to, Faculdade de Letras da Universidade do Por-

to, 1999, pp. 34-35 (apêndice A).

2. Para uma sumária descrição do códice diplo-

mático, leia-se Armando Alberto Martins, O mos-

teiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média,

Lisboa, Centro de História da Universidade de Lis-

boa, 2003, pp. 67-68, no mais alargado contexto

da afi rmação de Coimbra como núcleo de atrac-

ção e produção de códices analisado em Avelino

de Jesus da Costa, «Coimbra – centro de atracção

e de irradiação de códices e de documentos, den-

tro da Península, nos sécs. XI e XII», in Actas das

II jornadas luso-espanholas de história medieval,

vol. IV, Porto, Instituto Nacional de Investigação

Científi ca, 1990, pp. 1309-1334. Tenha-se ain-

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por uma análise sobre os gestos de benemerência episcopal a favor das igrejas de

St.ª Maria, S. João e St.ª Cruz3.

O laconismo do diploma – característica que é transversal a grande parte da docu-

mentação da época4 – não nos permite tecer considerações pormenorizadas sobre as

imagens presentes na catedral à luz de leituras iconológicas, talvez efectuadas pelos

membros da hierarquia eclesiástica ou pelos fi éis que acorriam à igreja em cumpri-

mento das suas práticas de religiosidade pessoal5. É, pelo contrário, possível anali-

sá-las numa perspectiva atenta ao carácter das representações iconográfi cas sobre

suporte existentes no interior do templo, enquanto expressão de um contexto religio-

so em que a narratividade do sagrado se exprime também ao nível da cultura visual6.

A análise passível de ser feita com base neste diploma centra-se no espaço interior da

da em conta, tal como refere o primeiro autor,

que «a leitura dos seus diplomas deve fazer-se

de forma cautelosa e crítica pois, como os já ci-

tados historiadores Gérard Pradalié e Pierre Da-

vid apuraram, vários dos documentos foram, em

épocas de animosidade e disputa de poderes, in-

tencionalmente falsifi cados.» (p. 68, referindo-se

aos trabalhos de Pierre David, «Regula sancti Au-

gustini. A propos d’une fausse charte de fonda-

tion du chapitre de Coimbre», Revista portugue-

sa de história, t. III, 1947, pp. 27-39; e Gérard

Pradalié, «Les faux de la cathédrale et la crise

à Coïmbre au début du XIIe siècle», Mélanges

de la Casa de Velázquez, 10, 1974, pp. 77-98).

3. Para uma análise do contexto histórico de

pontificado de Miguel Salomão, veja-se, em

particular, José Mattoso, D. Afonso Henriques,

Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; com o comple-

mento de Leontina Ventura, «Coimbra medieval»,

in Economia, sociedade e poderes. Estudos em

homenagem a Salvador Dias Arnaut, Coimbra,

Editora Ausência, 2004, pp. 23-40.

4. Analise-se, desde logo, o instrumento à luz do

que escreveu Maria do Rosário Barbosa Morujão,

«A Sé de Coimbra, centro de produção documen-

tal no tempo de D. Afonso Henriques», in Ma-

ria Helena da Cruz Coelho, Maria José Azevedo

Santos, Saul António Gomes e Maria do Rosário

Morujão, Estudos de diplomática portuguesa,

Lisboa, Edições Colibri – Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra, 2001, pp. 141-166. Da

mesma autora, A Sé de Coimbra. A instituição e a

chancelaria (1080-1318), Coimbra, 2005 (Edição

policopiada da Tese de Doutoramento apresen-

tada à Faculdade de Letras da Universidade de

Coimbra).

5. Trata-se de uma problemática relativamente

à qual as fontes disponíveis nos dão apenas es-

cassos testemunhos, conforme se depreende

da leitura de Mary Charles Murray, «Preaching,

Scripture and visual imagery in Antiquity», Cris-

tianesimo nella storia. Ricerche storiche, esegeti-

che, teologiche, vol. XIV/3, Outubro de 1993, pp.

481-503. Tal como nos apontou Giles Constable,

«The language of preaching in the twelfth cen-

tury», Viator. Medieval and Renaissance studies,

vol. 25, 1994, pp. 131-152, esta questão não

pode deixar de ser analisada à luz dos instrumen-

tos de pregação ao serviço dos clérigos, uma vez

que é neles que encontramos os modelos narrati-

vos, na maioria dos casos identifi cados com epi-

sódios das Sagradas Escrituras, e, em particular,

fig.1 coimbra. sé velha. fachada ocidental© fotografia de josé custódio vieira da silva

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igreja, e pode, por esse motivo, relacionar-se com um conjunto de práticas litúrgicas

e paralitúrgicas associadas à existência de relíquias, aí conservadas pelo menos desde

a restauração da diocese, em 1080, na sequência do provimento de Paterno, então

bispo de Tortosa, na cátedra episcopal, poucos anos depois da conquista defi nitiva

de Coimbra pelos cristãos, ocorrida no reinado de Fernando I de Leão, em 10647.

O conteúdo do diploma é bastante variado, pelo que dele podem extrair-se informa-

ções que nos permitem caracterizar vários aspectos da vida dos clérigos coimbrãos

na segunda metade do século XII, ou seja, num período crucial da afi rmação de

Coimbra como capital do reino de Portugal, pouco depois da fundação do mostei-

ro de St.ª Cruz por iniciativa de Afonso I, em 11318. Não se trata de um registo de

inventário semelhante aos que foram até então produzidos por várias comunidades

monásticas do território de fronteira9, geralmente com o objectivo de salvaguardar

os respectivos direitos em acções de litígio movidas por terceiros ou, inclusive, no

quadro de instabilidade política provocado pelo avanço das hostes de Fernando I

no sector ocidental do reino, entre 1057 e 1064, mas de um diploma que procura

especifi car a natureza dos bens reivindicados pela sede diocesana, na sua maioria

parcelas de terra dispersas em ambas as margens do rio Mondego, com os respectivos

prédios rústicos, para além do respectivo regime jurídico de posse e propriedade,

ou inclusive a sua função no quadro das actividades económicas próprias de um

contexto rural medieval.

O primeiro elemento a ter-se em conta nesta análise é, naturalmente, a tipologia do

registo. A expressão que nos permite integrá-lo na categoria de inventário – «Min-

notatjo testamentorum siue hereditatum sedis sanctæ Marie colimbiensis . quæ

distractæ fuerunt . et dilapidatæ . et uenditæ . et a sede alienatæ . per quosdã *ante-

cessores* presumptores eiusdem sedis episcopos» – identifi ca-o como uma relação

das propriedades da igreja de St.ª Maria da Sé de Coimbra alienadas do domínio ecle-

siástico pelos próprios representantes da hierarquia diocesana, sem o consentimento

dos membros da canónica, embora recuperadas e restituídas à igreja, «magno labore

et sudore», pelo bispo Miguel Salomão, tendo como seu coadjuvante o monarca

Afonso I. Esta ideia serve-nos para sublinhar, desde já, um aspecto: não estamos a

falar apenas de uma relação de bens subtraídos à catedral, mas de um instrumento

jurídico que traduz uma política de benemerência concertada entre o bispo e o rei

a favor da diocese, ou que, pelo menos, procura dar uma imagem de proximidade

entre as duas instituições susceptível, dadas as circunstâncias em que o diploma

foi elaborado, de enaltecer a fi gura do prelado coimbrão e a natureza privilegiada

dos círculos de relacionamento da hierarquia diocesana pelos fi nais do século XII.

O diploma prossegue com a enumeração dos nomes de todos aqueles que, «cõtra

ius . et contra rectum», devem ser apontados como responsáveis pelo extravio dos

bens eclesiásticos. Os predecessores de Miguel na cátedra episcopal são vistos,

«per__curiã et negligentjã», como parte implicada no procedimento de alienação

de bens. A lista, contudo, não se esgota nestes casos: os visados são sobretudo os

leigos, detentores das propriedades cujos direitos de posse e usufruto deveriam per-

tencer à sede catedralícia. A condenação do autor material do diploma – cujo nome

do Novo Testamento, transpostos para os regis-

tos pictórico e escultórico nas igrejas medievais.

6. As características gerais dos processos de re-

presentação pictórica em que se atesta a dimen-

são narrativa do sagrado foram analisadas por

Barbara Abou-El-Haj, The medieval cult of saints.

Formations and transformations, Cambridge,

Cambridge University Press, 1997, pp. 33-60.

7. Numerosos testemunhos documentais permi-

tem-nos afi rmar que as relíquias conservadas na

Sé de Coimbra nos fi nais do século XI se identifi -

cam ainda com as que supostamente terão exis-

tido na igreja desde as suas primeiras referências

diplomáticas. Nos finais do século IX, e, mais

concretamente, durante o episcopado de Nausto,

entre 867 e 912 – personagem que inaugura a

sucessão de prelados coeva da presúria da cidade

por Hermenegildo Guterres, em 878 –, surgem já

referências à titularidade celeste de St.ª Maria,

que se afi rma desde o primeiro momento como

orago primário da sede diocesana, então desig-

nada como ecclesia, sedis, canonica sedis, epis-

copalis sedis ou pontifi calis sedis. Por ordem cro-

nológica de referência documental, cf., para St.ª

Maria: LP 360 ([867-912]); LP 456 (1083.08.08);

LP 312 (1083.12.17); LP 101 (1086.03.25, fal-

so); LP 16 (1086.04.13, falso ou interpolado);

LP 170 (1086.04.19); LP 87 (1086.07.12); LP

20 (1086.11.24); LP 558 ([1086-1091]); LP

349 (1087.01); LP 19 e 78 (1087.03.15); LP

373 (1087.03.29); LP 251 (1087.04.26, fal-

so ou interpolado); LP 578 (1087.05, falso);

LP 256 (1087.12.22); LP 398 (1088.01.03); LP

286 (1088.01.16); LP 21 (1088.03.01, falso);

LP 275 (1088.04.14); LP 390 e 552 (1088.09,

falso ou interpolado); LP 384 (1089.02.19);

LP 447 (1089.10); LP 388 (1090.05.26); LP

452 (1091.06.08); LP 343 (1091.07.26); LP

423 (ant. [1092]); DC 775 (1092.04.13); DC

791 (1092); LP 272 e 323 ([1092-1098]); LP

394 ([1092-1098]); LP 415 ([1092-1098]); LP

32 e 173 (1094.02.24); LP 175 (1094.03.23);

LP 385 (1094.04.30); LP 280 (1094.08.01);

LP 82 (1094.11.13); LP 302 (1095.02.26);

LP 418 (1095.07.18); LP 49 (1095.12.24);

LP 45 (1096.02.15); LP 246 (1096.04.18); LP

420 (1096.10.03); LP 290 (1097.04.29); LP

289 (1097.04.30); DC 869 (1098.01.10); LP

427 (1098.12.03); LP 317 (1099.01.04); LP

47 (1099.03.19); LP 48 (1099.03.20); LP 43

(1100.12.19); EMP, vol. II, t. 1, n.º 42 ([fi nais

do séc. XI]); para S. Pedro: LP 170 (1086.04.19);

para S. Martinho: LP 170 (1086.04.19); LP 390 e

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nunca chega sequer a ser mencionado, facto relativamente comum na Alta Idade

Média quando se trata de títulos jurídicos com o carácter de inventários patrimo-

niais – recai sobre quem, por inerência de funções, deveria proteger e salvaguardar

o património eclesiástico de alienações indevidas. Mas faz sentir-se também sobre

os fi éis que retinham para si esses direitos, expoliando a igreja dos bens que haviam

sido legitimamente adquiridos ao longo dos anos, e fazendo a sua própria alma

precipitar-se sobre o «abismo da danação», para recuperar a expressão consignada

no texto. Trata-se, em termos gerais, de nomes de cristãos e de judeus estabele-

cidos no vale do rio Mondego, em referências isoladas, ou, por vezes, associadas

entre si de forma a sublinhar a existência de vínculos de consanguinidade e paren-

tesco, por vezes identifi cados também com base nos locais onde eram proprietários.

Se grande parte dos nomes identifi ca personagens obscuras, cujo percurso biográfi co

é hoje difícil de se reconstituir com precisão, não pode deixar de apontar-se, entre

os nomes citados, o de um alcaide, um besteiro e um pescador. Estão, portanto,

representados indivíduos de condições sociais diversas, na sua maioria pequenos ou

médios proprietários de bens situados em meio rural e urbano, chegando o número

de leigos mencionados nesta perícope – a expressão «et alij quamplures» indica-

-nos que não se trata de uma lista completa – a ascender a quarenta indivíduos.

Os lugares contemplados – S. Martinho do Bispo, Marrondos, Areias, Fontoura, Anta-

nhol e Mouriscas – são identifi cados de forma muito sumária, mas, no seu conjunto,

permitem-nos obter uma primeira imagem da cartografi a do património alienado: as

margens do rio Mondego.

Segue-se no diploma a caracterização dos bens propriamente ditos. O documento

adopta aqui uma dupla estratégia: enumera primeiro os bens situados em meio rural,

e só depois passa para os bens implantados em meio urbano. Num caso como nou-

tro, a tipologia das propriedades é muito variada. Estamos perante uma relação de

propriedades constituída por parcelas de terra situadas em ambas as margens do rio

Mondego, cujos limites e confrontações são defi nidos no texto e caracterizados com

base nos seus elementos constituintes – unidades de exploração agrícola de tipo vila

ou casal, alegadamente compradas por quantias variáveis de moeda ou doadas aos

cónegos, dotadas de infra-estruturas rústicas, como moinhos, para além de algumas

mais escassas igrejas10 – e inclusive nos direitos que também outros colectivos reli-

giosos, como os cónegos de S. Jorge, St.ª Justa e St.ª Cruz de Coimbra, ou ainda os

monges de St.ª Maria de Alcobaça, auferiam, legítima ou ilegitimamente, da posse

destas parcelas de terra.

Com base neste diploma, a canónica afi rma-se como detentora de um signifi cativo

número de casas, igualmente compradas ou doadas pelos seus proprietários, ou até

em trânsito de litígio com outros indivíduos e instituições, situadas tanto no interior

como no exterior do perímetro de muralhas da cidade. Ao enumerar as propriedades

situadas em meio urbano, o inventário volta a referir como o bispo se terá dedicado

pessoalmente, com o auxílio de Deus e de St.ª Maria, à tarefa de reconstituição do

património perdido, contando para isso com o apoio do monarca. Neste passo, coloca

a tónica sobre o percurso biográfi co do prelado11, referindo como, na sequência de

552 (1088.09, falso ou interpolado); para a St.ª

Cruz ou St.º Lenho: LP 19 e 78 (1087.03.15);

LP 47 (1099.03.19); LP 48 (1099.03.20); para

S. Salvador: LP 390 e 552 (1088.09, falso ou in-

terpolado); e, para os Doze Apóstolos: LP 390 e

552 (1088.09, falso ou interpolado). Numerosos

outros diplomas, com diacronia entre [906] (LP

354, de [906.01.11]; cf. LP 355 e LP 356) e 1099

(DC 916, de 1099.09.03), omitem os respectivos

oragos.

8. Sobre o assunto, vejam-se Armando Alber-

to Martins, O mosteiro…, pp. 28-71 e 73-347

(sobretudo as pp. 199-202); e Saul António

Gomes, In limine conscriptionis. Documentos,

chancelaria e cultura no mosteiro de Santa Cruz

de Coimbra (séculos XII a XIV), Viseu, Centro de

História da Sociedade e da Cultura – Palimage

Editores, 2007, pp. 105-178, em especial, as

pp. 153-158 e 601-615, com informações so-

bre o impulso dado pelo monarca português

à fundação do mosteiro, na sua relação com o

desenvolvimento da chancelaria coimbrã. Ain-

da José Mattoso, D. Afonso…, pp. 112-124.

9. A lista é relativamente extensa, pelo que nos

limitamos a citar os documentos elaborados na

segunda metade do século XI: DC 378 (1050),

DC 420 (1059), LP 73 (1064), DC 450 (1065),

DC 459 (1067), DC 549 (1077) e DC 952 (s.d.).

10. A título geral, leiam-se Robert Durand, Les

campagnes portugaises entre Douro et Tage aux

XIIe et XIIIe siècles, Paris, Fundação Calouste Gul-

benkian/Centro Cultural Português, 1982; Deniz

de Ramos, Subsídios para a história da vinha na

Bairrada (séculos X ao XII), Anadia, Associação

de Jornalistas e Escritores da Bairrada, 1991

(compare-se com Robert Durand, «La vigne et

le vin dans le bassin du Mondego au Moyen Âge

(XIIe-XIIIe siècles), Arquivos do Centro Cultural

Português, 5, 1972, pp. 13-37); e Jorge de Alar-

cão, In territorio Colimbrie: lugares velhos (e al-

guns deles, deslembrados) do Mondego, Lisboa,

Instituto Português de Arqueologia, 2004.

11. Leia-se Armando Alberto Martins, O mostei-

ro…, pp. 284-292, com ampla bibliografi a sobre

Miguel Salomão e o desempenho do seu munus

episcopal, na relação com a Sé e o mosteiro de

St.ª Cruz de Coimbra; e, do mesmo autor, «Dois

bispos…», pp. 28-30.

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uma grave enfermidade, Miguel, que desempenhara as funções de prior da Sé, teria

sido acolhido pelos cónegos de St.ª Cruz, não sem antes deixar à comunidade de

St.ª Maria grandes quantidades de consumíveis que garantiriam a subsistência dos

membros da canónica, entre moios de trigo, cevada e milho, quarteiros de chícharo

e outras leguminosas, quinais de vinho e óleo, e ainda gado vário, como cento e

sessenta vacas, cem ovelhas, duas éguas e dois burros.

fig.2 coimbra. sé velha. cabeceira© fotografia de josé custódio vieira da silva

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A partir daqui, descreve-se com algum detalhe o contributo dado por Miguel às

obras de construção da Sé Velha12, sublinhando-se não só os comportamentos de

benemerência por parte do prelado, mas também os que, diligenciados por outros

fi éis, tornaram possível a dotação da catedral. Em honra de Deus e de St.ª Ma-

ria, e procurando a Sua intercessão junto do St.mo Salvador no dia do Juízo Final,

o prelado terá retirado das suas próprias riquezas quinhentos morabitinos para subven-

12. Vejam-se, de António Garcia Ribeiro de Vas-

concelos (Dr.), Sé-velha de Coimbra (aponta-

mentos para a sua história), Coimbra, Imprensa

da Universidade, MDCCCCXXX-MDCCCCXXXV; e

«A catedral de Santa Maria colimbriense ao prin-

cipiar o século XI. – Mozarabismo desta região

em tempos posteriores», Revista portuguesa de

história, t. I, 1940, pp. 113-140; e António No-

gueira Gonçalves, A Sé-Velha conimbricense e as

inconsistentes afi rmações histórico-arqueológi-

cas de M. Pierre David, Porto, MCMXLII. A título

complementar, leiam-se A. C. Borges de Figuei-

redo, Coimbra antiga e moderna, Lisboa, Livraria

Ferreira, MDCCCLXXXVI, pp. 123-144; Vergílio

Correia, «A arquitectura em Coimbra», in Obras,

vol. I: Coimbra, Coimbra, Por Ordem da Universi-

dade, 1946, pp. 58-64; Carlos Alberto Ferreira de

Almeida, «Infl uências francesas na arte români-

ca portuguesa», in Histoire du Portugal. Histoire

européenne. Actes du colloque (Paris, 22-23 mai

1986), Paris, Fondation Calouste Gulbenkian/

Centre Culturel Portugais, 1987, pp. 28-32; e

História da arte em Portugal, 1: Carlos Alberto

Ferreira de Almeida, O românico, Lisboa, Editorial

Presença, 2001, pp. 68 e 130-134.

fig.3 coimbra. sé velha. nave central. tribuna© fotografia de josé custódio vieira da silva

fig.4 coimbra. sé velha. claustro© fotografia de josé custódio vieira da silva

fig.5 coimbra. sé velha. nave central© fotografia de josé custódio vieira da silva

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cionar a edifi cação do templo, e dado aos cónegos outros cinquenta, para além de um

jugo de bois, no valor de doze morabitinos, a ser usado nos trabalhos de construção.

A dotação da igreja, sobretudo no que respeita à composição do seu mobiliário,

parece ter sido também largamente tributária da acção do bispo. Convém, neste

passo, sublinhar mais uma vez que se trata de um instrumento elaborado a pedido do

prelado, pelo que também daqui decorre a centralidade da fi gura episcopal enquanto

agente interveniente no processo de edifi cação e dotação do templo. Contudo, os

seus gestos correspondem a práticas paralelas às de vários outros leigos e religiosos

que também contactaram com as autoridades diocesanas, mesmo antes da ascen-

são de Miguel à cátedra episcopal. O obituário diocesano é prolixo em informações

deste género, até para os séculos XI e XII. Nele se encontram, entre os nomes dos

benfeitores da canónica de St.ª Maria, os dos bispos Paterno, Crescónio, Gonçalo,

Bernardo e João, que terão doado a esta instituição vários livros litúrgicos, canónicos

e patrísticos, para além de paramentos de seda e de linho, como estolas, manípulos

e sandálias, báculos de marfi m, alfaias de prata, entre cálices, urcéolos, colheres,

turíbulos e candelabros, anéis de ouro, um dos quais com uma safi ra incrustrada,

e inclusive uma âmbula de bálsamo13; o do prior Martinho Simões, associado a um

cálice de prata e um livro14; os das rainhas Teresa e Mafalda, a indumentárias de seda

e de linho, como capas e mantéis, e novas alfaias litúrgicas, entre acéteres e píxides

de marfi m15; o de João Gondesendes, cavaleiro de Coimbra, a uma cruz, também de

prata, transportada habitualmente em procissões16; ou ainda o de vários outros leigos

e religiosos, na maioria dos casos acompanhados de livros com os mesmos conteúdos

temáticos e alfaias destinadas às celebrações do culto litúrgico17.

Se estas fi guras desempenham um papel fundamental no crescimento do patrimó-

nio diocesano, sobretudo a partir da conquista da cidade, num momento em que

os velhos mosteiros rurais ligados à nobreza condal, como Lorvão e Vacariça, pas-

sam para segundo plano no quadro das práticas de benemerência dos pequenos e

médios proprietários rurais do Entre-Douro-e-Mondego, o mesmo deve dizer-se a

respeito de Miguel, de origem moçárabe, prior da Sé Velha e cónego do mosteiro de

St.ª Cruz, que, entre 1162 e 1176, desempenhou funções de bispo de Coimbra após

a destituição de João Anaia. Tendo recebido a sua formação cultural e intelectual

no meio catedralício, foi primeiramente diácono, desempenhando, nessa qualidade,

funções como notário ao serviço do cabido, e, posteriormente, cónego regrante no

mosteiro de fundação régia, onde se encontrava quando foi eleito bispo, após um

longo período de sede vacante, depois da forçada demissão de João, pontífi ce entre

1147 e 1155, e para o qual voltou. Como sétimo prelado da diocese restaurada de

Coimbra, exerceu o seu munus episcopal durante cerca de catorze anos, até à altura

em que, após resignação das funções episcopais, voltou a recolher-se ao mosteiro de

origem, onde veio a morrer a 5 de Agosto de 1180. Ao longo do seu pontifi cado – que,

no dizer de Armando Alberto Martins, «tinha como plano unir no mesmo espírito de

fraternidade e colaboração as duas instituições canonicais da cidade»18 –, desenvol-

veu uma intensa actividade no sentido de favorecer a consolidação da autoridade

episcopal numa das mais importantes cidades de um reino ainda em alargamento de

13. LK, t. I, pp. 70, 112, 205 e 305; e t. II, p.

122. Isaías da Rosa Pereira, «Livros de Direito na

Idade Média», Lusitania sacra. Revista do Centro

de Estudos de História Eclesiástica, t. VII, 1964-

1966, pp. 22-23, anexo, doc. n.º 9, alíneas e e

h; Avelino de Jesus da Costa (P.e), A bibliote-

ca…, pp. 58-60, apênd. I, n.os 2-3, 8, 12 e 14.

14. LK, t. I, p. 275. Avelino de Jesus da Cos-

ta (P.e), A biblioteca…, p. 59, apênd. I, n.º 7.

15. LK, t. II, pp. 229 e 293. Avelino de Jesus da

Costa (P.e), A biblioteca…, p. 60, apênd. I, n.os

9 e 15.

16. LK, t. I, p. 319. Avelino de Jesus da Costa

(P.e), A biblioteca…, p. 58, apênd. I, n.º 1.

17. LK, t. I, pp. 73, 79, 83, 125 e 215; e t. II,

pp. 132, 172, 217, 242, 249-250 e 288. Aveli-

no de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, pp.

59-61, apênd. I, n.os 4-6, 10-11, 13 e 16-20.

18. Armando Alberto Martins, O mosteiro..., p.

286. Segundo testemunho de Miguel Ribeiro

de Vasconcelos, «notam-se quatro épocas na

vida deste bispo: a primeira, quando foi prior da

Sé; a segunda, quando largou o priorado para

passar ao mosteiro de Santa Cruz; a terceira,

quando foi bispo; a quarta, quando renunciou

ao bispado e voltou para Santa Cruz» (apud Ar-

mando Alberto Martins, O mosteiro…, p. 286).

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 8 6

fronteiras. É disso exemplo a elaboração do Livro preto, enquanto repositório dos

direitos jurisdicionais e dominiais da diocese, e, naturalmente, enquanto suporte

material do diploma que temos vindo a mencionar. Da sua actuação como prelado

restam hoje, para além de alguns documentos avulsos ou integrados na colecção

diplomática, duas importantes notícias: a memória funerária do obituário da catedral,

hoje conhecido pela designação de Livro das calendas19, que nos permite falar de

Miguel como um dos principais benfeitores da canónica de St.ª Maria, e o supra-

citado instrumento de inventário20.

No seu conjunto, estes dois registos dão-nos testemunho das obras de construção da

Sé Velha, aí se encontrando alguns elementos que nos remetem para os momentos de

sufragação da catedral coimbrã na segunda metade do século XII, tal como para os

agentes implicados nos trabalhos de construção ou inclusive as quantias dispendidas

pelas autoridades da diocese como forma de pagamento pela presença de mestres

e serviçais. Parecem-nos especialmente relevantes, até pelo pormenor com que são

descritos nos registos, os dados que nos permitem reconstituir parcialmente o interior

da estrutura eclesiástica. Há elementos que nos permitem caracterizar o mobiliário aí

presente por doação do bispo, e que por isso também sustentam um melhor enten-

dimento da natureza das representações visuais dominantes neste contexto litúrgico

e paralitúrgico adaptado aos cânones da reforma romano-cluniacense. A análise que

se pode fazer, a partir do inventário, de alguns dos bens móveis e imóveis legados

à catedral por Miguel, que, pelo facto de conterem representações pictóricas, nos

permitem falar da presença de determinados episódios escriturísticos, associados a

modelos específi cos de santidade cristã, como parte integrante do programa visual

concebido pelas autoridades diocesanas, é disso um claro exemplo.

Estas imagens surgem descritas no inventário, ainda que muito sumariamente, em

ementas isoladas, onde cada objecto surge na sua individualidade própria. Aten-

dendo a que estas descrições não são apenas simples enumerações de bens, daqui

decorre a possibilidade de se efectuar uma leitura mais pormenorizada das respec-

tivas características técnicas e estéticas, e, consequentemente, do âmbito temático

das imagens presentes no interior do templo. Contudo, pelo facto de pertencerem a

um programa iconográfi co concebido e desenvolvido numa mesma etapa de sufra-

gação da Sé Velha, é também necessário integrá-las numa perspectiva de análise

de conjunto, para que possamos compreendê-las como elementos simbolicamente

relacionados entre si num mesmo contexto litúrgico e paralitúrgico.

Ao mestre Bernardo, que se terá dedicado às obras de construção da igreja durante

cerca de dez anos, Miguel doa cento e vinte e quatro morabitinos, para além de lhe

conceder alimentação e vestuário; ao seu sucessor, Soeiro, destina uma veste, um

moio de pão e um quinal de vinho; e ao mestre Roberto, que se terá deslocado de Lis-

boa a Coimbra pelo menos em quatro ocasiões, entre 1162 e 117621, com o objectivo

de inspeccionar o andamento das obras e contribuir para a melhoria da porta principal

da igreja, concede, de cada vez, sete morabitinos, e sustenta as respectivas despesas

de alimentação à base de pão, carne e vinho, tanto para si, como para os seus qua-

tro serviçais e quatro burros22. Apesar de se encontrar implícito nesta passagem do

19. LK, t. II, pp. 73-74 (ementa de 5 de Agosto).

Sobre a morte de Miguel, veja-se ainda EMP, vol.

II, t. 1, n.º 165 (1180.08.05).

20. LP 3 (s.d.).

21. Segundo Carlos Alberto Ferreira de Almeida

(História…, pp. 133-135), «sabe-se que o Mes-

tre Roberto, arquitecto da Sé de Lisboa, veio

quatro vezes a Coimbra, entre 1162 e 1176, para

resolver problemas da sua construção, mormente

os da fachada. A este arquitecto, seguramente

estrangeiro, se deve atribuir o projecto da obra.

Não admira pois que esta catedral tenha bastan-

tes coisas em comum com a de Lisboa, mormente

no uso de galerias de circulação que tanto ani-

mam os seus muros e a caracterizam. Trabalharam

ainda na Sé conimbricense os mestres arquitectos

Bernardo e depois Soeiro. A datação da Sé Velha

de Coimbra não tem grandes problemas. Pensada

a partir dos meados do século XII, as suas obras

foram impulsionadas pelo bispo D. Miguel Salo-

mão a partir de 1162. Na década de 80 abre-se

ao culto, embora as obras de ultimação e da tor-

re cruzeira continuem e cheguem aos inícios do

XIII» (p. 133).

22. Veja-se, sobre estas duas fi guras, António Gar-

cia Ribeiro de Vasconcelos (Dr.), Sé-velha…, vol.

II, pp. 67-93. A construção da Sé de Lisboa foi

iniciada pouco depois da conquista da cidade por

Afonso I de Portugal, em 1147, tendo o primeiro

bispo da recém-restaurada diocese sido Gilberto

de Hastings, provável fundador das paróquias de

S. Vicente de Fora, N.ª Sr.ª dos Mártires e St.ª

Justa, morto em 1164. Em 1149, o monarca por-

tuguês concede ao bispo trinta e duas mesquitas,

com as respectivas herdades e rendimentos, para

as obras de construção da catedral. À constru-

ção da igreja ter-se-ão seguido a defi nição dos

respectivos limites jurisdicionais, a instalação do

cabido e a fundação de uma escola catedralícia,

destinada a garantir as práticas de administra-

ção da diocese e instrução do clero. Sobre as

circunstâncias que terão envolvido a sagração

do primitivo edifício afonsino e a sua evolução

institucional na época medieval, leia-se Carlos

Guardado da Silva, Lisboa medieval. A organiza-

ção e a estruturação do espaço urbano, Lisboa,

Edições Colibri, 2008, pp. 203 e 216-229 (com

breve ref.ª à acção de Roberto nas pp. 216-217).

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diploma um especial cuidado com o acesso principal ao templo, nada nos é avançado

quanto à natureza das representações iconográfi cas dominantes na porta da igreja.

As imagens que de alguma forma se relacionam com memórias sagradas, e que são

alvo da nossa mais cuidada atenção, restringem-se ao interior do templo, e tendem,

naturalmente, a distribuir-se à volta do centro simbólico da estrutura eclesiástica:

o altar principal23. É aí que vamos encontrar o mobiliário litúrgico, algum do qual

com representações iconográfi cas, a que várias das últimas ementas do inventário

se referem. Quanto a esta questão, o primeiro elemento a destacar-se tem a ver com

o facto de Miguel ter doado quarenta morabitinos para as obras de construção e

decoração da mesa e das colunas do altar da Beatíssima Mãe de Deus, tal como de

pavimentação das absides da igreja com pedra quadrada de boa qualidade. Em honra

de St.ª Maria e da St.ma Trindade, doou ao templo, para remissão de seus pecados e

remédio de sua alma, sob intercessão de Deus Misericordioso, uma cruz de ouro puro

no valor de setecentos morabitinos, destinada a permanecer «in perpetuum» no altar

da Virgem, no interior da qual ordenou fossem guardadas relíquias várias. Embora

sem particularizar a natureza das relíquias – a ementa remete-nos genericamente

para a existência de «de sepulco dñi pars una maior, et aliae particulae *minores*» –,

a sua associação à Cruz de Cristo permite-nos pensar na hipótese de se tratar de

relíquias do St.º Lenho, que, na verdade, existem na Sé de Coimbra pelo menos

desde 1099, data em que são aí mencionadas pela primeira vez24. A estas juntam-se

ainda duas outras relíquias que o inventário descreve, com algum pormenor, como

fazendo parte da morfologia do próprio objecto: duas pedras provenientes do Monte

Calvário, uma das quais ostentando, ao centro, a imagem esculpida do Senhor do

Crucifi xo, trazendo junto aos Seus pés as relíquias da St.ª Cruz. Na representação

do crucifi xo encontrava-se, de um lado, a imagem de St.ª Maria, e, do outro, a de

S. João. A outra pedra, extraída igualmente do Monte Calvário, permanecia fi xa na

base da cruz áurea, presa ao suporte metálico, e ostentava, no seu interior, relíquias

do St.º Lenho dispostas de forma a reproduzir a imagem do instrumento de suplício

de Cristo, o Salvador dos homens e Redentor do mundo.

Para além deste importante testemunho, que nos remete para o fenómeno de cir-

culação de relíquias da Terra Santa e a sua deposição na Sé Velha de Coimbra nos

fi nais do século XII, num contexto associado a obras de construção da igreja, e, por

conseguinte, de sagração de um novo templo na cidade25 – recorde-se que o bispo

Gonçalo Pais trouxera de Jerusalém relíquias do St.º Lenho e de St.ª Maria; de

Constantinopla, relíquias de mártires e apóstolos; e de Roma, relíquias de S. Pedro

e S. Paulo, para além de vários paramentos eclesiásticos de seda, entre estolas,

manípulos e sandálias, uma tábua de marfi m insculturada com a representação do

Senhor do Crucifi xo e diversas alfaias litúrgicas de prata26; e que, ainda antes dele,

o cônsul Sesnando Davides solicitara ao prior Martinho Simões a trasladação de parte

das relíquias do St.º Lenho conservadas na catedral, para que pudesse proceder-se

à sagração da igreja de S. Miguel, por si fundada na cidade num contexto de revi-

talização dos antigos espaços de culto cristão no quadro do estabelecimento das

autoridades leonesas na fronteira do Mondego, por volta de 108727 –, outras ementas

23. Leia-se António Garcia Ribeiro de Vasconcelos

(Dr.), Sé-velha…., vol. II, pp. 9-66. O autor pro-

põe a identifi cação do altar mencionado no instru-

mento com um altar encontrado no cemitério de

St.º António dos Olivais (freg. de St.º António dos

Olivais, conc. de Coimbra, dist. de Coimbra), em

1931, reintegrado na capela-mor da Sé, em 1932,

juntamente com duas colunas românicas vindas do

acervo do Museu Nacional Machado de Castro.

Trata-se, segundo António de Vasconcelos, de um

testemunho arquitectónico do acto de sagração

da igreja e sua abertura ao culto em Novembro

ou Dezembro de 1184, no episcopado de Martim

Gonçalves (1183-1191) (identifi cação e proposta

de datação aceite por Vergílio Correia, António No-

gueira Gonçalves e José Maria Cordeiro de Sousa,

mas contestada por Pierre David, Costa Pimpão e

Manuel Luís Real, conforme se depreende do co-

mentário de Mário Jorge Barroca à extensa biblio-

grafi a produzida sobre o tema em EMP, vol. II, t.

1, n.º 150, de [1174.11.12-1175.06.23]). O altar,

fabricado em calcário, teria sido assente a meio da

abside da igreja, apresentando uma epígrafe co-

memorativa da sagração gravada na secção lateral

superior do respectivo pé, publicada mais recen-

temente, com análise das respectivas variantes de

leitura e proposta de fi xação do texto epigráfi co,

por Mário Jorge Barroca, que, na peugada de Pier-

re David, o atribui a uma data crítica situada entre

[12 de Novembro de 1174] e [23 de Junho de

1175]. A sua reconstituição, sem abreviaturas, é

feita pelo epigrafi sta nos seguintes termos: «Con-

sacrato Fuit In Era M CC XX II Per Manus Domnus

Michael Episcopus Colimbriensis Regnante Dom-

no Alfonso Anno Regni sui X’VI ET ETATIS FILII

EIUS REGIS SANTII XXI». O paralelo português

mais próximo do altar coimbrão é, ainda segundo

Mário Jorge Barroca, o pé-de-altar da igreja de

Vestiaria, em Alcobaça, hoje reaproveitado como

pia de água benta (sobre o signifi cado simbólico

do altar como núcleo da celebração eucarística na

diplomática conimbricense, veja-se ainda Mário de

Gouveia, «As mãos na cultura letrada das socie-

dades de fronteira da Alta Idade Média hispâni-

ca. Expressões diplomáticas de funcionalidade e

ritualidade», in O corpo e o gesto na civilização

medieval [Actas do encontro, 11-13 de Novem-

bro de 2003; coordenação de Ana Isabel Buescu,

João Silva de Sousa e Maria Adelaide Miranda],

Lisboa, Edições Colibri – Núcleo Científi co de Es-

tudos Medievais/Instituto de Estudos Medievais

da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da

Universidade Nova de Lisboa, 2006, pp. 150-152).

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do inventário permitem-nos reconstituir o espaço interior da estrutura com base no

seu mobiliário litúrgico. À frente do altar principal, uma tábua prateada, sem função

clara no registo, até por se tratar de uma referência simples, sem mais pormenores,

mas sufi cientemente valorosa – sessenta e oito morabitinos – a ponto de fi gurar no

inventário de bens; no mesmo local da igreja, uma outra tábua, desta vez dourada,

mandada elaborar ao mestre Ptolomeu, que se terá dedicado à tarefa durante cerca

de um ano, valendo cento e cinquenta morabitinos; sobre o altar, uma terceira tábua,

provavelmente de madeira dourada e de pequenas dimensões, contendo a repre-

sentação da Anunciação, valendo dez morabitinos. Para uso nas diversas acções de

culto, dois cantarinhos destinados à infusão do vinho e da água, no valor de nove

morabitinos; um gomil com a sua bacia, também de serviço do altar, elaborados

pelo ourives Félix em troca de sete morabitinos; e um cálice de ouro puro, mandado

fazer pelo prelado, sob determinação de Afonso I, com base na fortuna entesourada

da cátedra. Salientando outros pormenores relativos à indumentária dos sacerdotes

ofi ciantes, o diploma termina com uma passagem alusiva à doação episcopal de

quatrocentos morabitinos para as obras de construção da igreja de S. João, à qual

24. LP 47 (1099.03.19) e LP 48 (1099.03.20).

25. As ligações entre Portugal e a Terra Santa

encontram-se atestadas desde épocas remotas,

ajudando-nos, desta maneira, a explicar a pre-

sença na Sé de Coimbra, durante o século XII, de

elementos próprios da cultura religiosa com ori-

gem oriental, entre relíquias, alfaias e paramentos

litúrgicos. Estes testemunhos prendem-se, funda-

mentalmente, com o desenvolvimento das primei-

ras acções de Cruzada da Cristandade ocidental,

sob impulso das monarquias europeias e da cúria

pontifícia romana, a partir do século XI (Armando

de Sousa Pereira, Representações da guerra no

Portugal da Reconquista (séculos XI-XIII), Lisboa,

Comissão Portuguesa de História Militar, 2003,

pp. 143-169), tal como do incremento das prá-

ticas de peregrinação aos lugares santos (José

Mattoso, D. Afonso…, pp. 88-90). Apesar de

bastante datados, vejam-se, em particular, José

Barbosa Canaes de Figueiredo Castello, «Apon-

tamentos sobre as relações de Portugal com a

Syria no seculo 12.º», in Memorias da Academia

Real das Sciencias de Lisboa. Classe de Sciencias

Moraes, Politicas e Bellas Lettras, 2.ª série, t. I,

parte I, Lisboa, Typographia da Academia, 1854,

pp. 49-97; e Luís G. de Azevedo, «Idade Média.

Notas de história e de crítica», Brotéria, vol. I,

fasc. VIII, Julho de 1925, pp. 317-327.

26. LK, t. I, p. 205. Avelino de Jesus da Costa

(P.e), A biblioteca…, pp. 36 e 59, apênd. I, n.º 8.

27. LP 19 e 78 (1087.03.15). Os contornos da

acção política de Sesnando Davides como cônsul

de Coimbra foram estudados por Emilio García

Gómez e R. Menéndez Pidal, «El conde mozárabe

Sisnando Davídiz y la política de Alfonso VI con

los taifas», Al-Andalus. Revista de las escuelas de

estudios árabes de Madrid y Granada, vol. XII,

fasc. 1, 1947, pp. 27-41; Maria Helena da Cruz

Coelho, «Nos alvores da história de Coimbra. D.

Sesnando e a Sé Velha», in Sé Velha de Coimbra.

Culto e cultura, Coimbra, Catedral de Santa Maria

de Coimbra, 2005, pp. 11-39; e Leontina Ventu-

ra, «As cortes ou a instalação em Coimbra dos

fi deles de D. Sesnando», in Estudos de homena-

gem ao Professor Doutor José Marques (Organi-

zação: Departamento de Ciências e Técnicas do

Património – Departamento de História), vol. III,

Porto, Faculdade de Letras da Universidade do

Porto, 2006, pp. 37-52.

fig.6 coimbra. sé velha. representações zoomórficas© fotografia de josé custódio vieira da silva

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o prelado teria também feito chegar uma cruz de prata, pesando oito marcos, por

alma da rainha Mafalda, entretanto falecida28. Dada a falta de clareza da passagem,

não nos é fácil compreender se a cruz terá resultado de um gesto de benemerência

do prelado ou se, pelo contrário, este se terá limitado a doar à igreja, em cumpri-

mento de eventuais disposições testamentárias da primeira, uma cruz anteriormente

na posse da rainha29.

Chegados a este ponto, o que nos parece interessante destacar é a possibilidade de

estas imagens serem analisadas também à luz das relíquias, reais ou representativas,

que se conservariam no interior do templo desde a restauração da diocese nos fi nais

do século XI. Ao contrário do que acontece com a Sé de Braga, em cujo colégio de

santos padroeiros se integram as fi guras de S. Salvador, St.ª Maria, S. Pedro, S. Paulo,

S. João Baptista e S. Miguel30 – facto que nos permite falar desta igreja como um

espaço colocado sob a protecção de diversas entidades celestes –, as relíquias guar-

dadas na Sé de Coimbra apontam para um conjunto muito mais restrito de santos

padroeiros, em que se destaca apenas a fi gura de St.ª Maria, documentada desde

[867-912] como tutelar da igreja. Alguns outros testemunhos permitem-nos, talvez,

alargar a S. Salvador31 – paralelamente à St.ª Cruz ou ao St.º Lenho32 –, tal como a

S. Pedro33 e S. Martinho34, o quadro de memórias sagradas afectas ao templo coim-

brão. Contudo, as informações disponíveis são não só menos abundantes para estas

últimas instâncias – um a três registos para cada santo –, como parecem estar asso-

ciadas a actos da prática reputados falsos ou interpolados pela crítica, na sequência

dos trabalhos desenvolvidos por autores como Pierre David35 e Gérard Pradalié36.

Devem, portanto, ser analisados com cautela. Pese embora o facto de se tratar de

documentos falsos, podem, todavia, esconder um fundo de verdade destinado a

sublinhar a suposta veracidade das afi rmações históricas neles contidas.

A imagem que prevalece quando analisamos as memórias fundadoras do sagrado

catedralício coimbrão, das presúrias de Afonso III das Astúrias à reforma implemen-

tada no quadro do concílio de Burgos, é a de uma igreja dedicada, por excelência,

à Mãe de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo. É, pelo menos, sob este título

celeste que a igreja é comummente citada até ao surgimento dos primeiros indícios

documentais que nos apontam para a recepção dos cânones da reforma litúrgica

romano-cluniacense na fronteira ocidental do reino de Leão. Entre os fi nais do

século IX e os fi nais do século XI, adopta-se na sede diocesana o orago que se

encontra representado num maior número de igrejas do território de Entre-Douro-

-e-Mondego. Esta disseminação do culto mariano pelas pequenas e médias igrejas

da região, para a maioria das quais a documentação é muito pobre em pormenores

históricos, pode, talvez, refl ectir a implementação de um culto “ofi cial” da diocese

tendo como modelo a memória litúrgica associada à igreja catedralícia. Se a sede

diocesana é dedicada a St.ª Maria, as restantes igrejas situadas no interior do perí-

metro de muralhas da cidade colocam-se sob invocação de santos evangélicos e

apostólicos: são os casos de S. Salvador e S. Miguel, tal como de S. Pedro e S. João,

duas das quais – S. Sal vador e S. Pedro – integrando, respectivamente, o padroado

dos mosteiros de Vacariça e Lorvão pelo menos desde 106437 e 98038. Por sua vez, os

28. Mafalda morre a 3 de Dezembro de 1157

(José Mattoso, D. Afonso…, pp. 223-226).

29. A semântica da locução verbal patente na

oração «Jbi etiam fecit dari unã crucem argen-

teã, VIIJº . marcas appendentem . pro anima

illustrissimae Reginae domnae . Mahaldae»,

parece remeter-nos para o cumprimento de

uma deliberação de interposta pessoa, até por

se omitir aí a comum indicação de posse dada

pela utilização de pronomes pessoais ou de ou-

tras expressões alusivas à propriedade jurídica

sobre determinado bem móvel ou imóvel, como

«de meo proprio» ou «de suo proprio», patentes

ao longo do documento. Não é de excluir-se a

hipótese de a cruz ter pertencido a Mafalda e,

por sua morte, sido doada a S. João de Almedina

por Miguel. Contudo, importa ter em conta que a

passagem surge transcrita nas ementas diplomá-

ticas dedicadas à enumeração dos bens do pre-

lado que foram doados às duas igrejas coimbrãs.

30. Leia-se Mário de Gouveia, «S. Miguel na re-

ligiosidade moçárabe (Portugal, séc. IX-XI)», in

Culto e santuari di san Michele nell’Europa me-

dievale/Culte et sanctuaires de saint Michel dans

l’Europe médiévale (Atti del congresso internazio-

nale di studi [Bari – Monte Sant’Angelo, 5-8 apri-

le 2006]; a cura di Pierre Bouet, Giorgio Otranto,

André Vauchez), Bari, Casa Editrice Edipuglia,

2007, pp. 81-112, em especial as pp. 87-88.

31. LP 390 e 552 (1088.09, falso ou interpolado).

32. LP 19 e 78 (1087.03.15), LP 47 (1099.03.19)

e LP 48 (1099.03.20).

33. LP 170 (1086.04.19).

34. LP 170 (1086.04.19) e LP 390 e 552

(1088.09, falso ou interpolado).

35. Veja-se Pierre David, «Regula…», pp. 27-39.

36. Veja-se Gérard Pradalié, «Les faux…», pp. 77-98.

37. LP 73 (1064). Para outras referências à igre-

ja, LP 372 (1086.08.11), LP 41 (1093.02.27), LP

175 (1094.03.23) e LP 174 (1095.03.03).

38. DC 129 (980.11.12). Para outras refe-

rências à igreja, LP 558 ([1086-1091]), DC

683 (1087.04.25), DC 791 (1092), DC 800

(1093.12.20) e DC 838 (1096.11.01).

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 9 0

templos situados no exterior das muralhas adoptam, em contraponto a estas entida-

des celestes, referenciais sagrados conotados com uma mensagem martirial: são os

casos das igrejas do arrabalde ribeirinho, consagradas inicialmente a St.ª Cristina39 e a

S. Cristóvão40, e dedicadas, a partir da conquista da cidade, a S. Tiago e S. Bartolo-

meu, respectivamente, para além do de St. Justa41. Nestes casos, a adopção de novos

cultos apostólicos em detrimento de cultos martiriais poderá, talvez, corresponder a

uma de várias manifestações associadas à difusão dos cânones religiosos defi nidos,

com o apoio da monarquia leonesa, no quadro da reforma romano-cluniacense.

A substituição dos mártires pelos apóstolos pode entender-se como sintoma da

tendencial adopção de cultos universais que se verifi ca a partir dos fi nais do século

XI, mais consentâneos com os modelos de religiosidade que se difundem um pouco

por todo o território cristão hispânico.

Não podemos, à falta de informações seguras, pronunciar-nos aqui sobre a hipó-

tese, avançada por vários investigadores, de estas imagens terem tido um papel

fundamental, em substituição dos livros, na instrução religiosa dos leigos, ou até

dos clérigos, que acorriam à igreja42. A hipótese pode pressupor, como é natural,

o entendimento de que estes eram capazes de proceder à leitura das imagens com

base nos textos que lhe conferem pendor narrativo. Sobre esta hipótese, os nossos

diplomas são omissos. É, portanto, possível analisar-se a questão apenas numa pers-

pectiva comparada, atenta à documentação que terá sido produzida na diocese em

épocas mais tardias, tal como à que, sendo sua contemporânea, tem, pelo contrário,

distinta proveniência.

O que podemos afi rmar é que, pelos fi nais do século XII, são visíveis no interior da

Sé Velha de Coimbra, e, em especial, junto do altar de St.ª Maria, testemunhos de

uma cultura visual atenta a alguns dos mais signifi cativos episódios das Sagradas

Escrituras, em particular do Novo Testamento. Estes testemunhos correspondem a

um mobiliário litúrgico portador de imagens sagradas com um sentido narrativo,

patente no carácter historiado das suas representações pictóricas e escultóricas: são

os casos dos episódios da Anunciação, numa tábua de madeira dourada colocada

sobre o altar, ou da Crucifi xão, numa das relíquias provenientes do Monte Calvário,

guardada no interior de uma cruz de altar. A estes casos, acrescentemos as imagens

individualizáveis do Cristo Crucifi cado, de St.ª Maria e de S. João, tal como a da

própria Cruz, representada quer sob a forma de alfaia, quer sob a forma de relíquias,

num inequívoco sintoma de devoção litúrgica ao Salvador a que também o meio

canonical crúzio se mostrava receptivo, nomeadamente através da comemoração

das festas da Invenção e Exaltação da Cruz, patentes nos seus calendários, depois

que nele passou a venerar-se a relíquia do St.º Lenho, doada por Sancho I, embora

pertencente ao seu avô, o conde Henrique de Borgonha, juntamente com um cálice

de ouro, em 1210. Em ambos os casos, podemos falar de registos iconográfi cos

que reproduzem ciclos litúrgicos com formulários e cerimónias próprias, e que esses

ciclos são consentâneos com a natureza predominantemente evangélica das relíquias

depositadas na catedral pelo menos desde os fi nais do século XI, enriquecidas com a

chegada de novas relíquias do Oriente, em particular de Jerusalém, Constantinopla

39. DC 15 (907.04.13) e DC 37 (933.03.04).

40. DC 74 (957.11.02).

41. LP 427 (1098.12.03).

42. Leia-se Danièle Alexandre-Bidon, «Une foi en

deux ou trois dimensions? Images et objets du fai-

re croire à l’usage des laïcs», Annales HSS, n.º 6,

Novembro-Dezembro de 1998, pp. 1155-1190.

43. Armando Alberto Martins, O mosteiro…, p.

707. A reconstrução manuelina da igreja continu-

ará a fazer do altar-mor o altar da Cruz, embora

mais ornamentado e associado a fi guras em re-

presentação dos mistérios da Invenção e Exalta-

ção da St.ª Cruz. Não se tratava apenas da Cruz

exposta, mas de um Crucifi xo com o Corpo de

Cristo Crucifi cado.

44. Refi ra-se que, para além dos diplomas co-

ligidos no Livro preto, que nos dão abundantes

exemplos da recepção de episódios da Bíblia

nos diplomas monásticos e eclesiásticos da épo-

ca (Maria Teresa Nobre Veloso, «A presença da

Bíblia nos documentos do Livro preto da Sé de

Coimbra», in Estudos em homenagem ao Profes-

sor Doutor José Amadeu Coelho Dias [Organi-

zação: Departamento de Ciências e Técnicas do

Património e Departamento de História], vol. 2,

Porto, Faculdade de Letras da Universidade do

Porto, 2006, pp. 233-245), também a produção

letrada crúzia integra, a partir dos fi nais do sé-

culo XII, narrativas historiográfi cas e hagiográfi -

cas em que a recepção da cultura bíblica é um

tópico constante (Armando de Sousa Pereira,

«Motivos bíblicos na historiografi a de Santa Cruz

de Coimbra dos fi nais do século XII», Lusitania

sacra. Revista do Centro de Estudos de História

Religiosa da Universidade Católica Portuguesa,

2.ª série, t. XIII/XIV, 2001-2002, pp. 315-336).

45. Armando Alberto Martins («Dois bispos…»,

p. 29) sintetiza o conteúdo deste documento nos

seguintes termos: «[A Carta libertatis] permitia a

esta instituição [mosteiro de St.ª Cruz] eximir-se

dos poderes do bispo, mais livremente edifi car o

seu património, alargar o âmbito da sua infl uên-

cia local e regional» (sobre esta questão, vejam-

se ainda A. G. da Rocha Madahil, O privilégio do

isento de Santa Cruz de Coimbra, Coimbra, Biblio-

teca Municipal, 1940; e Armando Alberto Martins,

O mosteiro…, pp. 284-292). Após a outorga do

documento, o bispo terá dado conhecimento da

carta ao papa Alexandre III, de forma a obter a

sua confi rmação. As reivindicações do prelado vi-

riam a ser alcançadas pela bula Ad hoc universalis

ecclesiae, de 16 de Agosto de 1163 (LS, pp. 101-

102 e 103-106). Neste aspecto em particular, a

acção enérgica de Miguel terá suscitado forte

oposição na diocese, mormente entre os cónegos

do seu cabido, para quem a concessão de regalias

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a favor do mosteiro crúzio terá sido feita de forma

constrangente e pouco clara. É disso exemplo o

facto de, após o regresso de Miguel a St.ª Cruz, os

clérigos locais terem escrito cartas difamatórias da

sua pessoa e acção ao papa, acusando o bispo de

ter ele próprio delapidado o património da Sé em

benefício da comunidade regrante de St.º Agos-

tinho (Carl Erdmann, Papsturkunden in Portugal,

Berlim, Weidmannsche Buchhandlung, 1927, pp.

257-258, n.º 84, de 1181.03.12). Domingos, có-

nego e mestre da Sé, em resposta ao inquérito

mandado instaurar por Inocêncio III, ainda antes

de 1 de Novembro de 1200, terá mesmo referi-

do que, caso as medidas propostas pelo prelado

tivessem sido aplicadas em conformidade com o

disposto, o gesto marcaria o «initium destructionis

Colimbriensis ecclesiae» (Armando Alberto Mar-

tins, «Dois bispos…», pp. 29 e 38, notas 17 e 19).

46. Veja-se, in genere, História…, pp. 168-175.

Os trabalhos de referência sobre o assunto são da

autoria de Maria Adelaide Miranda. Entre os mais

revelantes estudos desta autora sobre a iluminura

românica portuguesa, vários dos quais apontan-

do no sentido do predomínio das representações

iconográfi cas de origem veterotestamentária na

produção medieval de manuscritos iluminados,

destaquem-se, entre outros, os seguintes títulos:

A iluminura de Santa Cruz no tempo de Santo An-

tónio, Lisboa, Edições Inapa, 1996; «A iluminura

de Santa Cruz no contexto da iluminura europeia

medieval», Bibliotheca portucalensis, II.ª série,

n.os 15-16, 2000-2001, pp. 67-97; «Do sagrado

ao humano na iluminura românica em Portugal»,

in Estudos medievais. Quotidiano medieval: ima-

ginário, representação e práticas (Coordenação

de Amélia Aguiar Andrade e José Custódio Viei-

ra da Silva), Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pp.

67-94; e «Iluminura românica em Portugal», in La

miniatura medieval en la Península Ibérica (Joa-

quín Yarza Luaces, ed.), Múrcia, Nausícaä, 2007,

pp. 375-418. As suas relações com o ciclo me-

morialístico neotestamentário, de temática cristo-

lógica, foram abordadas, pela mesma autora, em

«A iconografi a de Cristo na iluminura românica de

Santa Cruz de Coimbra», in Carlos Alberto Ferreira

de Almeida. In memoriam (Coordenador: Mário

Jorge Barroca), vol. II, Porto, Faculdade de Le-

tras da Universidade do Porto, 1999, pp. 83-95.

e Roma, durante o episcopado de Gonçalo Pais. Tal como salientámos há pouco,

o modelo de adoração patente na Sé é também seguido na igreja do vizinho mosteiro

de St.ª Cruz, cujo altar-mor românico, segundo as descrições conhecidas, exibia uma

grande Cruz, objecto de adoração e fonte de espiritualidade, ladeada pelas imagens

da Virgem Maria e de S. João Evangelista43.

À semelhança do que tem sido apontado para outras igrejas, a abside principal do

templo, com o seu prolongamento natural pela nave, poderá ter proporcionado à

assembleia eclesiástica condições de legibilidade de ciclos memorialísticos cristãos44,

facto que, como é evidente, não pressuporia necessariamente a recepção efi caz

dessa mensagem no seio da assembleia dos fi éis. A falta de condições de lumino-

sidade característica dos espaços de culto medievais, sobretudo em contextos de

arte românica, como é o caso da Sé Velha ainda na segunda metade do século XII, e

também a grande riqueza de alfaias e paramentos litúrgicos própria destes espaços

solenes, pode ter difi cultado a sua leitura e interpretação pelo conjunto dos cren-

tes, numa altura em que se tornava cada vez mais necessário o desenvolvimento

de novas formas discursivas, em larga medida apoiadas no incremento da cultura

visual, visando a difusão dos ciclos memorialísticos ligados à vida de Cristo e dos

Seus santos. Contudo, num instrumento de inventário como o que se produziu a

pedido de Miguel – cuja autenticidade importa averiguar mais detalhadamente num

posterior estudo, até por se lhe estar subjacente um discurso de enaltecimento da

imagem pública do prelado indissociável dos graves confl itos institucionais entre a

Sé e o mosteiro de St.ª Cruz durante o seu pontifi cado, na sequência da concessão

da denominada Carta libertatis ao mosteiro regrante, em 1162, no próprio ano da

morte do seu primeiro prior, Teotónio45, e que, em certa medida, o diploma do Livro

preto deixa transparecer no tom apologético pessoal que caracteriza os seus fólios –,

o acesso ao mobiliário terá proporcionado, pelo menos ao autor material do registo,

a caracterização dos elementos supostamente doados pelo bispo à canónica de St.ª

Maria e colocados junto ao altar da Virgem, razão pela qual terá sido possível a iden-

tifi cação das fi guras de Cristo Crucifi cado e de St.ª Maria ou S. João no mobiliário

eclesiástico, a descrição pormenorizada de um dos Crucifi xos visível junto ao altar

da nave principal, ou, inclusive, a identifi cação dos respectivos suportes materiais,

tal como de algumas técnicas decorativas de excepção, merecedoras de destaque

no momento em que se terá elaborado o instrumento. Este facto só se compreende

se analisado sob a perspectiva de um agente capaz de proceder à descodifi cação

dos motivos pictóricos ou escultóricos e à sua inserção nos ciclos iconográfi cos da

Anunciação e da Paixão e Ressurreição de Cristo. Não obstante, se o posicionamento

relativo destas representações na estrutura principal da igreja, e, em especial, no

altar, terá sido pensado de forma a se valorizarem os ciclos iconográfi cos do Novo

Testamento em detrimento dos do Velho Testamento, correntes na produção de

manus critos iluminados coeva46, só uma mais detalhada análise das fontes nos poderá

ajudar a esclarecer. •

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v a r i a · p e t e r k l e i n - b e a t o d e l i é b a n a

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José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol

Mosteiro da Batalha. Scala/IPPAR, 2008Francisco Teixeira

Jérôme Baschet: L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008Joana Ramôa

Joana Ramôa

Christus Patiens. Representações do Calvário na escultura tumular medieval portuguesa.

Lisboa: Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / UNL, 2008.Luís Afonso

Dominique Machabert (dir.)

Siza au Thoronet: le parcours et l’Oeuvre. Parenthèses, 2007Luísa Castro Caldas

C . Cosmen Alonso; M. V. Herráez Ortega; M. P. Gómez-Calcerrada (Coord.). 2009

El Intercambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las Cortes Europeas en la Baja Edad Media.

Léon: Universidad de León, 2009Joana Ramôa

Rece

nsõ

es

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 91 9 4

Como ponto prévio à apresentação da importantíssima obra de José Custódio Vieira

da Silva, desta feita realizada conjuntamente com Pedro Redol – especialista no

estudo de vitrais – convém aditar uma pequena nota sobre o relevante trabalho

da editora Scala, em particular no que se refere à colecção em que esta obra se

insere e que já habitou os leitores a obras escritas por conceituados especialistas dos

monumentos estudados, à presença de uma síntese rigorosa, dando conta do estado

actual dos conhecimentos e uma qualidade de imagens que permite facilmente ao

leitor acompanhar as leituras elaboradas nos corpos dos textos.

O que se diz em cima sobre esta colecção em geral resume, de facto, as qualidades

mais impressivas do mais recente trabalho de José Custódio Vieira da Silva, sendo

ainda de realçar que esta obra põe à disposição de todos os interessados por arqui-

tectura medieval um estudo detalhado e inovador sobre o Mosteiro da Batalha, uma

construção da maior relevância no território português.

Das inovações de leitura que decorrem de uma pormenorizada análise formal e

estilística do Mosteiro, deve realçar-se a clarifi cação, na continuação de trabalhos

anteriores, da importância do tardo-gótico na arquitectura e da sua complexidade

estética que decorrem de um trabalho exemplarmente apresentado ao longo de 11

capítulos que detalharemos seguidamente.

No primeiro capítulo, José Custódio Vieira da Silva estuda os problemas relativos à

fundação desta casa religiosa, para o que legitimamente valoriza o testamento de

D. João I, seu fundador, distanciando-se de outras análises, nomeadamente de Elie

Lambert – em que a matriz da argumentação se baseava no muito citado plano Ber-

nardino, existente em várias igrejas dos mosteiros cistercienses.

O segundo capítulo – “ O programa construtivo e os arquitectos “ – permite ao leitor

obter um conhecimento global sobre os responsáveis pelo estaleiro do Mosteiro, des-

de Afonso Domingues até ao início do século XVI, distinguindo os diferentes espaços

que foram da responsabilidade edifi catória de cada um. No capítulo seguinte, são

explicitados os precedentes arquitectónicos susceptíveis de serem detectados numa

francisco te ixe iraInstituto de História da Arte – FCSH/UNL

josé custódio vieira da silva e pedro redol. 2008 mosteiro da batalhascala / ippar

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análise formal e estilística do convento dominicano. Aí, as soluções arquitectónicas

de Afonso Domingues são associadas à arquitectura medieval edifi cada especialmente

em Lisboa e Santarém, sendo igualmente sublinhadas outras comparações, por exem-

plo com o Mosteiro de Leça do Bailio.

José Custódio Vieira da Silva, numa via já percorrida por Mário Tavares Chicó e Gérard Pra-

dalié, associa algumas soluções arquitectónicas do Mosteiro com o coro alto de S. Fran-

cisco de Santarém, mas colocando a hipótese inovadora do próprio Afonso Domingues

ter a responsabilidade dessa invulgar solução construída na igreja escalabitana.

Os capítulos seguintes oferecem uma análise arquitectónica e da escultura monumen-

tal dos diferentes espaços, a começar pela igreja, o que encontra a sua justifi cação

– como o autor sublinha – não só pela sua importância simbólica, como pelo próprio

destaque que lhe foi concedido por D. João I, bem como pela sua importância na

arquitectura medieval portuguesa.

Ao longo da obra, a refl exão sobre os diferentes espaços funcionais desta casa religiosa

permite a José Custódio Vieira da Silva pôr em relevo dois aspectos fundamentais:

por um lado, a existência de características relevantes que integram a arquitectura do

Mosteiro na corrente mediterrânica; por outro, a importância do tardo-gótico para a

compreensão de muitas soluções arquitectónicas e escultóricas.

O destaque para a direcção de mestre Huguet à frente do estaleiro é justamente evi-

denciado pela introdução de um conjunto de novidades no panorama da arquitectura

portuguesa: a existência de arcobotantes sobre as naves laterais; a capela-mor com

dois andares ou a sala do capítulo que este mestre cobriu com uma abóbada única.

O estudo do trabalho escultórico, desenvolvido a par da fi na análise arquitectónica,

permitem ao autor levantar os principais aspectos presentes no conjunto edifi cado,

em que se sublinha a importância do estaleiro como ofi cina de escultura para o século

XV. Vários aspectos de índole iconográfi ca e estilística são destacados: a importância

da heráldica; o importante programa iconográfi co do portal principal, com caracterís-

ticas iconográfi cas e de composição pouco comuns; a imagem do mestre pedreiro ou

a fi gura arcaizante da Virgem. Deste modo, o autor debruça-se sobre um conjunto de

soluções iconográfi cas que merecem a atenção de quem quer utilizar esta obra ape-

nas como um guia seguro para a leitura das imagens existentes, embora as refl exões

expostas mereçam também a atenção do investigador pelas questões que sugerem

e, em particular, pelo confronto que merecem com leituras anteriores, desde as mais

antigas de Vergílio Correia até às mais recentes de Paulo Pereira.

O último capítulo dedicado aos vitrais – e da autoria de Paulo Redol – apresenta de

um modo necessariamente sucinto as grandes questões que o conjunto de painéis

suscita. A cronologia do programa de vitrais, a extensão dos restauros efectuados

no século XIX, os vitrais encomendados por D. Manuel I e a presença documentada

de mestres estrangeiros e de pintores na sua realização.

Com esta obra o leitor dispõe de um estudo rigoroso, aliado à elegância da escrita,

que pode ser utilizado como um guia seguro para a visita do mosteiro de Batalha.

O investigador encontrará análise e perspectivas cuja novidade merece também uma

cuidadosa refl exão. •

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1. E que, em última instância, legitima a prática

por si só dessa etapa primária de classifi cação

temática das imagens a que, nesta perspectiva,

corresponderia a iconografi a – parcela apenas

de um estudo mais abrangente sobre a imagem,

portanto iconológico.

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Fazer justiça à expansividade e à exuberância das fi gurações da Idade Média ocidental

(ou dar justo aprofundamento à ideia que já antes Jean Wirth encerrara na expressão

a prodigiosa inventividade da arte religiosa medieval) – eis aquela que avulta e é

assumida como premissa fundadora desta obra de Jérôme Baschet, a mais recente do

antropólogo historiador, professor na Universidade de Paris e de Chiapas, no México,

e um dos principais medievalistas franceses da actualidade. Publicada em meados

do ano de 2008, esta obra gozou da reunião de um conjunto de análises particula-

res (pequenos estudos centrados em objectos concretos da materialidade artística

do Ocidente medieval) já realizadas pelo autor, aqui apresentadas como aplicações

exemplares de uma metodologia e de uma forma de entender a imagem medieval

cujos princípios defi nidores ocupam as páginas dos capítulos de refl exão teórica que

cimentam e se antepõem aos referidos ensaios de iconografi a medieval.

O título da obra é sugestivo, consciente e, como percebemos desde a leitura dos

primeiros parágrafos, provocatório – ou, pelo menos, provocadoramente remediado.

Assim, constatamos que o recurso ao termo iconografi a, que permite ao autor situar,

com efi cácia, a sua investigação no domínio particular do estudo das imagens, e se

baseia na recusa deliberada do binómio hierárquico que o mesmo tende a estabe-

lecer com o conceito de iconologia1, é, nesta obra, indissociável de uma vontade

de contribuir para a revisão defi nitiva do conteúdo de que o citado termo – o de

iconografi a – é sistematicamente dotado, com consequências notáveis no próprio

entendimento das imagens.

A iconografi a de Aby Warburg e, sobretudo, de Erwin Panofsky não está longe mas

antes omnipresente, permanentemente ecoando na mente do leitor informado e mesmo

avivando, a espaços, o próprio discurso do autor, numa demonstração clara da força e

da resistência (e, porventura, também da ausência, em simultâneo, de outra constru-

ção teórica similar sufi cientemente sólida) dos Estudos de Iconologia de E. Panofsky,

com 70 anos de existência. O debate permanece aceso; a metodologia por (re)defi nir.

jérôme baschet. 2008l’iconographie médiévaleparis: gallimard

joana ramôaInstituto de História da Arte – FCSH-UNL e bolseira da Fundação para a Ciência e a

Tecnologia (FCT).

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2. Otto Pächt – Questions de méthode en histoi-

re de l’art. Paris: Macula, 1994, p. 93.

3. Jérôme Baschet – L’iconographie médiévale.

Paris: Gallimard, 2008, p. 18.

Com efeito, à urgência de uma tal revisão (assim como à difi culdade da defi nição de

um método) revelam-se particularmente sensíveis os novos olhares que se lançam

sobre a realidade imagética da Idade Média, de que Jérôme Baschet é representante,

estando inerente à iconologia panofskiana uma relação entre a imagem e o texto

que, concebida para um contexto intelectual e artístico muito concreto (a Florença

de Quatrocentos) serve abusivamente os interesses de uma interpretação tão encan-

tatória quanto esgotada da arte medieval como bíblia dos iletrados.

Esta sobrevalorização da palavra, que tem efectivamente acarretado um certo enten-

dimento da imagem como ilustração, como forma de tradução visual do pensamento

de poetas e profetas, de teólogos e Padres da Igreja, constitui a pesada herança do

olhar primeiro da iconografi a sobre a arte cristã, para cuja cristalização – acusa Bas-

chet – muito contribuiu a obra de Émile Mâle.

Na realidade, ao papel lógico e convincente de tradução quase literal da palavra

dos Evangelhos (no contexto de uma religião do livro em que mesmo aquela retira

a sua credibilidade de uma procurada anunciação no Antigo Testamento), a imagem

medieval tende a opor uma liberdade inventiva – arriscando-se, por vezes, nos limi-

tes da ortodoxia – que difi cilmente se contém nos horizontes bem delimitados de

tipos iconográfi cos estanques. De facto, como diz Otto Pächt, “dans la plupart de

ces manifestations, il [l’art chrétien] constitue un énoncé sui generis sur le monde et

l’existence humaine, la vie quotidienne comme les fi ns dernières, un énoncé qui ne

se substitue à rien et auquel rien ne peut être substitué” (Pächt 1994, 93), mesmo

que profunda e inquestionavelmente religioso. Se já em 1994, Otto Pächt procurava

assim escapar às consequências de uma historiografi a da arte demasiado submissa ao

império da linguagem verbal, este é também e ainda, 14 anos depois, um dos vectores

fundamentais do combate de Jérôme Baschet por um justo e global entendimento

da imagem medieval. Imagem e não arte – para escapar ao uso anacrónico de um

conceito forjado pela Estética dos séculos XVIII e XIX; imagens mais do que ima-

gem – para debelar a convicção da existência de uma forma unívoca de as conceber;

imago melhor que imagem – por naquela se conterem aspectos existenciais próprios

da imagem medieval, tais são a natural dualidade (não dualismo) entre o corpo e o

espírito (e o paradoxo sobre o qual assenta a Igreja da possibilidade de materializar

o espiritual), a profunda ligação da imagem ao divino e o seu papel frequentemente

intermediário na relação que com ele estabelece a humanidade. Para Jérôme Bas-

chet, o termo imago “engage la défi nition de l’humain et du divin; il implique aussi

l’histoire de leur rapport, depuis son origine [o momento em que o homem é criado

à imagem de Deus], jusqu’à sa fi n [no fi m dos tempos, quando os corpos gloriosos

dos eleitos se unirem a Deus], en passant par cette charnière qu’est l’Incarnation

[o fenómeno da imagem de Deus] et qui, pour l’humanité, ouvre d’un même coup le

chemin d’un rapport d’image avec Dieu et la possibilité d’un chemin vers Dieu par

l’image” (Baschet 2008, 18).

Entender a imagem medieval equivale, assim, na construção teórica do autor, sobre-

tudo a conceber um quadro de relações – relações que são intrínsecas à imagem (e

que se tecem, nomeadamente, entre formas e conteúdos) e relações que a mesma

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estabelece, desde logo, com o seu referente (numa dinâmica que vai muito para lá

da mera signifi cação), mas também com todo um conjunto de realidades sociais e

práticas (lugares, gestos, palavras, outros tipos de objectos...) que lhe estão asso-

ciadas, que lhe determinam o(s) signifi cado(s) e sobre os quais ela mesma infl ui.

Importa, por isso, mais do que perscrutar modalidades individuais de recepção das

imagens (a que nos impeliria o seu entendimento numa perspectiva eminentemente

doutrinal), procurar restabelecer o modo pelo qual a imagem organiza a sua própria

percepção, tendo em conta aspectos determinantes da sua existência como sejam

a localização da imagem ou as suas condições de legibilidade – sendo que, muitas

vezes, a difi culdade na leitura toma parte no funcionamento signifi cante da imagem,

entrando em concordância com o conceito medieval de conhecimento, que merece

ser desvendado, descodifi cado lentamente. Jérôme Baschet chama mesmo a atenção

para os casos em que a visibilidade clara e absoluta não revela ser condição para o

exercício efi caz das funções da imagem. Assim, mais do que representar, ela simples-

mente é, o que não equivale, contudo, genericamente a uma qualquer confusão com

o estatuto de superioridade e autónomo do referente que lhe serve de base. Basta,

em certas ocasiões, para que a sua efi cácia se exerça, que haja um reconhecimento

da presença efectiva da imagem, mesmo que a sua leitura (e, portanto, a percepção

do seu signifi cado) seja difícil ou mesmo impossível: “le mode d’être de l’image relève

ici d’une visibilité qui ne se manifeste que pour mieux se dérober à une complète

révélation. Néanmoins, des éléments de sens s’en détachent, peu à peu, sur fond

d’une surabondance sémantique toujours inaccessible” (Baschet 2008, 57).

Corroborando a insustentabilidade de uma assimilação das funções da imagem

medieval à prática pedagógica, esta mesma refl exão introduz-nos noutro dos pos-

tulados maiores desta obra de Jérôme Baschet, que corresponde ao sublinhar de

uma inseparabilidade entre a imagem e a matéria em que ela ganha forma, que

passa assim, nos antípodas da teorização anti-formalista de Panofsky, pelo reforço

do papel da materialidade no desempenhar das funções da imagem, no modo como

ela é percepcionada e, portanto, na construção dos seus signifi cados. É, por isso,

num contínuo reenvio entre o ser-imagem e o ser-objecto (conceitos a que Jérôme

Baschet recorre, numa actualização e revisão dos de conteúdo e forma, considera-

dos demasiado estanques e individualistas) que a imagem medieval tece a sua rede

de relações, dotando-se de capacidade operatória: “des images médiévales, on dira

qu’elles sont dans l’histoire. Non parce qu’elles refl ètent la réalité ou témoignent

des mentalités d’une époque, mais parce qu’elles sont engagées dans des actes

sociaux et qu’elles contribuent à nouer des interactions entre les hommes, comme

entre la terre et le ciel, tout en créant des confi gurations signifi antes singulières.

Les images sont dans l’histoire, non tant parce qu’elles sont le produit du réel (et

de l’idéel), mais parce qu’elles produisent du réel (et de l’idéel)” (Baschet 2008, 9).

É desta teorização que parte o conceito de imagem-objecto, com o qual Jérôme Bas-

chet procura defi nir o funcionamento e o estatuto das imagens medievais, nomea-

da mente através do sublinhar do que considera tratar-se de uma sua inescapável

ligação à materialidade de um qualquer objecto, fazendo simultaneamente jus à ati-

4. Jérôme Baschet - Ob. Cit., p. 57.

5. Idem, p. 9.

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2. “ . . . la notion d’image est au cœur de

l’anthropologie chrétienne, puisqu’elle défi nit le

rapport entre Dieu et l’être humain, créé «à son

image et à sa ressemblance» (Genèse 1, 26)”

(Baschet 2008, 16).

3. Jean-Pierre Vernant – De la présentifi cation

de l’invisible à l’imitation de l’apparence. Image

et signifi cation. Paris: La Documentation fran-

çaise, 1983, pp. 25-37.

tude estética nelas presente e que a substituição pura e simples do termo arte pelo

de imagem para a realidade medieval pode fazer negligenciar. Estamos, sem dúvida,

perante um conceito pertinente e desafi ador, ainda que profundamente ligado a

um contexto absolutamente religioso e, particularmente, cultural. Não se trata, de

qualquer forma, de promover uma concepção unívoca da relação entre a imagem e

a sua objectualidade; pelo contrário, sublinha o autor que esta se pode estabelecer

segundo diferentes modalidades, daí decorrendo a existência de diferentes tipos de

imagens-objecto. Não se trata igualmente de encerrar a imagem numa coisidade

inerte – donde a insistência no referido conceito de ser-imagem (que se articula

com o de ser-objecto na formulação da imagem-objecto), com que Jérôme Baschet

procura corroborar o carácter operante e activo da imagem, seguindo a ideia de

imagem-corpo de Jean-Claude Schmitt - conceitos que revelam ser, simultaneamente,

indissociáveis do quadro disciplinar de ambos autores e de uma reclamação subtil

mas consciente do estudo da imagem para o domínio antropológico2.

A própria Idade Média manifesta estar consciente desta dupla existência da imagem-

-objecto e é, de resto, da sua explicitação que nascerá parte das suas possibilidades

de legitimação. Vemos, assim, por exemplo São Tomás de Aquino refl ectir nesta dupla

dimensão existencial da imagem, conferindo fi nalmente a exclusividade ao ser-ima-

gem (nas palavras de Jérôme Baschet) no uso legítimo em contexto devocional. Com

efeito, à manifesta ausência de uma defi nição normativa da iconografi a no contexto

do Ocidente medieval e à inexistência de um controlo formal exercido pela autoridade

eclesiástica (condições de base para a proclamada liberdade inventiva da imagética

deste período) opõe-se (talvez em parte justifi cando-as) o que parece tratar-se de

uma noção clara das relações que com o seu referente a imagem religiosa estabe-

lece, portanto, da apreensão pacífi ca do convívio entre matéria e espírito que nela

se verifi ca. Com efeito, difundindo-se por um caminho que lhe é em grande medida

aberto pelo fenómeno encarnacional, a imagem medieval em contexto cristão oci-

dental difi cilmente se confundirá com a realidade ou entidade sobrenatural que ela

representa (mesmo que para tal nela fi gure a inscrição que a defi na como imagem

de) e esse reconhecimento da sua condição de imagem (e apenas de imagem) revela

ser uma primeira necessidade para que seja possível chegar a Deus através dela.

E, na verdade, o fi el medieval sabe-o: a imagem é, para ele, não o próprio Deus ou

o próprio santo que ela representa, mas um lugar privilegiado para a manifestação

destes últimos que lhe servem de referente. Não será legítimo, deste modo, falar,

para a imagem-objecto defi nida por Jérôme Baschet, de representação (pois cor-

remos o risco de limitar os sentidos da imagem e de menosprezar a sua existência

própria, que vai além da simples mimesis), nem de presença (pois a força sobrena-

tural que a vem habitar não é permanente nem lhe é inerente). Mais pertinente será

o conceito de presentifi cação, defi nido por Jean-Pierre Vernant3 – signifi cando que

a presença divina que pode ocorrer na imagem não é garantida nem permanente,

mas processa-se no espaço de uma interacção social. Nesta, por norma, entram

igualmente em jogo um conjunto de imagens mentais que a imagem-objecto induz

(percepção) e de representações preexistentes que ela mobiliza e reconfi gura (pro-

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jecção), assim como uma série de práticas e de outras formas de comunicação (a

palavra, a música, o gesto...) que com ela interagem e que participam activamente

no estabelecimento das relações inter-humanas e entre o humano e o divino que

dão sentido à imagem, que ela estimula e que Jérôme Baschet coloca no centro

das preocupações do iconógrafo medievalista. Não se trata, assim, de buscar todas

as signifi cações da imagem, per se, nem de perscrutar a totalidade dos modos de

recepção de que a imagem é objecto, tanto quanto de procurar repô-la na sua rede

de relações, descortinando os moldes e o grau de efi cácia da sua capacidade opera-

tória. Não se trata da leitura das formas nem do aprofundamento dos conteúdos, mas

do entendimento de ambos enquanto dimensões inter-penetrantes de uma mesma

entidade que intervém na construção do real e na activação de condutores para a

sua articulação com o sagrado.

Para esta metodologia de análise, Jérôme Baschet propõe a designação de icono-

grafi a relacional – pois terá por objectivo maior restabelecer o quadro relacional no

seio do qual a imagem defi ne e põe em exercício o(s) seu(s) sentido(s), colocando

de parte, a priori, qualquer dicotomia redutora entre forma e conteúdo e buscando

um entendimento verdadeiramente global e “contextualizado” da imagem – e serial –

pois baseada na confi guração de uma série que reúna todo o conjunto de imagens

que, mesmo (algumas) na sua ausência, estabeleçam relações com a imagem em

estudo (e que podem ser de reverência ou de fi liação reivindicada, de emulação e

de amplifi cação, de radicalização ou de eufemismo, sempre de deslocamento, seja

explícito ou não). Esta série assim reunida não corresponde ao conceito de ciclo

iconográfi co, embora possa englobá-lo, e pode mesmo ser, quando o estudo assim

o justifi car, transtemática - numa linha de investigação que se revela particularmente

interessante quando as próprias imagens medievais, por localização ou outros facto-

res potenciadores de uma associação entre si, estabelecem relações que naturalmente

lhes alteram o sentido (seguindo o princípio de que a imagem não vive isolada nem

funciona como entidade autónoma e estanque, fechada em si mesma), sentido que

não pode ser, assim, resumido à soma do estudos das duas temáticas em questão.

Sem lhe ser possível escapar em absoluto à componente de forte idealismo, a essa

aspiração totalizadora difi cilmente articulável com as condicionantes de uma inves-

tigação contida nos limites do humano que desde Panofsky insufl a o trabalho de

todo o iconógrafo, cabe a Jérôme Baschet o mérito de concretizar a proposta de

um método – um dos terrenos mais sensíveis no campo da História da Arte – e de,

para tal, reunir e desafi ar algumas ideias cristalizadas, dando voz ao debate que há

muito anima o estudo das imagens medievais e esforçando-se por sistematizar e dar

novos fundamentos a propostas de entendimento que se pouco têm de verdadeira-

mente novas são, por isso mesmo, o testemunho claro da necessidade de continuar

a consolidá-las e a defendê-las assim, em obra própria e com a mesma veemência

de algo que é dito pela primeira vez.

Num universo onde a imagética chega por vezes a sobrepor-se ao real, como é o do

homem contemporâneo, a refl exão sobre as imagens ganha pertinência acrescida e

novos contornos acrescem à discussão. Se não é este mundo da imagem-ecrã, como

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o autor lhe chama, que Jérôme Baschet pretende abordar, é também por distanciação

dele mesmo que defi ne o conceito central de imagem-objecto para a medievalidade,

visando com ele conceber uma relação entre imagem e suporte, conteúdo e mate-

rialidade de características próprias e radicalmente diversa da actual.

Concebidas no seio e como parte integrante de uma complexa rede de dinâmicas

relacionais (desde logo, entre o Homem e a divindade, entre os vários elementos de

uma ordem social que elas representam e de que participam, entre múltiplas con-

fi gurações de um sistema de comunicação em que o verbal e o fi gurativo, forma e

conteúdo actuam conjuntamente e se defi nem mutuamente, sem nunca, contudo, se

assimilarem em absoluto), as imagens medievais parecem, assim, continuar a negar-

-nos a captação absoluta e defi nitiva das múltiplas signifi cações que põem em jogo

e que estão longe de se esgotar na identifi cação de todas as suas componentes – do

mesmo modo que o sentido de uma frase não se procura somente na signifi cação e

no conhecimento individual dos seus elementos constituintes.

Continua a ser, assim, um conhecimento sempre parcial e desvelado de forma gra-

dual aquele que de si elas nos propõem – e qualquer metodologia que se pretenda

dignifi cadora da complexidade deste objecto de estudo permanecerá, porventura,

continuamente idealista ou resignadamente parcelar. •

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r e c e n s õ e s · c h r i s t u s p a t i e n s

O livro em epígrafe corresponde, em grande parte, à dissertação de mestrado em

História da Arte Medieval apresentada por Joana Ramôa, em 2007, na Faculdade de

Ciências Sociais e Humanas da UNL. Esta dissertação foi desenvolvida pela autora

enquanto bolseira de investigação do projecto IMAGO, uma base de dados de icono-

grafi a medieval que se encontra em livre acesso através da internet1. Deste modo, até

ao momento, o livro em apreço constitui um dos outputs científi cos mais relevantes

do referido projecto2. A metodologia seguida na componente mais inovadora e pro-

fícua do livro de Joana Ramôa assenta na análise formal e compositiva de uma série

iconográfi ca principal, no caso as representações do Calvário existentes na escul-

tura funerária portuguesa do século XIV, complementada por uma série iconográfi ca

secundária, a Estigmatização de S. Francisco esculpida em obras do mesmo tipo.

Conforme destacou Jérôme Baschet3, a análise serial implica o recurso a sistemas

informáticos de armazenamento e indexação de imagens, de modo a tratar de forma

sistemática e exaustiva obras com a mesma iconografi a. Este trabalho, facilitado pelos

computadores, torna mais simples a identifi cação das mudanças, das constantes e

dos pequenos detalhes que as imagens de uma série apresentam, o que por vezes

permite avançar com interessantes descobertas e interpretações.

joana ramôa. 2008christus patiens. representações do calvário na escultura tumular medieval portuguesa(século xiv)lisboa: instituto de história da arte – faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa

luís u. afonsoInstituto de História da Arte, FL-UL

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Independentemente da qualidade da organização e indexação informática dos dados

recolhidos, nada poderá resultar dos mesmos sem a participação criativa dos inves-

tigadores. No caso concreto deste livro, as vantagens e potencialidades da base de

dados referida seriam perfeitamente estéreis sem a perspicácia, a competência e o

profundo interesse pela arte medieval que Joana Ramôa revela. Embora os capítulos

iniciais sejam demasiado genéricos, não temos dúvidas em como este livro constitui

uma mais-valia para os estudos de arte medieval portuguesa, em particular no domí-

nio da escultura funerária gótica, uma área onde se têm feito importantes progressos

nos últimos anos4, mas onde ainda há muito a pesquisar.

Este livro pode ser dividido em duas partes distintas, tanto na temática como na

metodologia. A primeira parte (pp. 17-83), que corresponde aos capítulos I e II,

trata de aspectos introdutórios e de contextualização. Incide, sobretudo, na evolu-

ção iconográfi ca do tema do Calvário (cap. I), desde o período paleocristão até ao

fi nal do século XIV, e no esboço de um quadro histórico (cap. II) dedicado às gran-

des linhas da espiritualidade medieval e à relação que a Igreja foi mantendo com a

imagem durante o mesmo período. Metodologicamente, é um trabalho que assenta

na sintetização de literatura crítica e não sobre fontes primárias. A segunda parte

(pp. 85-146), constituída pelos capítulos III a VII, é dedicada à representação do

Calvário e da Estigmatização de S. Francisco na escultura funerária portuguesa do

século XIV. Esta parte do livro, ao contrário da anterior, resulta da análise directa de

dez monumentos funerários góticos, a saber, os túmulos de Martim Afonso Chichorro

(†1314, Santarém), da rainha Isabel de Aragão (c.1330, Coimbra), de Fernão Sanches

(c.1335, Porto), de João Gordo (c.1330-40, Porto), do arcebispo Gonçalo Pereira

(1334, Braga), do bispo de Évora Pedro II (†1340, Évora), do bispo do Porto Afonso

Pires (†1362, Balsemão - Lamego) e de Inês de Castro (1358-60, Alcobaça), todos

eles com representações do Calvário, e ainda os túmulos de Leonor Afonso (c.1325,

Santarém) e do rei Fernando I (c.1382, Santarém), estes dois com representações da

Estigmatização de S. Francisco.

Em relação à primeira parte deste estudo, capítulos I (pp. 23-50 ) e II (pp. 51-83),

julgamos que o seu interesse é menos signifi cativo, pelo que, em nossa opinião, os

seus conteúdos poderiam ter sido abreviados sem que o livro perdesse a qualidade

e a relevância que possui no panorama da historiografi a da arte medieval portugue-

sa. De facto, não obstante a rigorosa apresentação das metodologias a seguir e dos

problemas a investigar (pp. 23-27), estes dois capítulos iniciais encontram-se depen-

dentes de fontes algo datadas. No capítulo dedicado à iconografi a de Cristo em geral,

e do Calvário em particular, as obras mais utilizadas pela autora foram publicadas

em 19285, 19396, 19407, 19458 e 19579. Consequentemente, a refl exão apresentada

não refl ecte uma outra problemática que actualmente envolve a questão da génese

e evolução da iconografi a de Cristo e do Calvário.10

Quanto ao capítulo dedicado à apresentação das grandes linhas da espiritualidade

medieval e à relação entre a imagem e a Igreja, desde o período paleocristão aos

inícios do século XV, parece-nos desviar-se um pouco dos objectivos centrais da

obra. Teria sido talvez mais útil para o leitor a limitação desta análise contextual ao

1. Esta base de dados inclui, para já, apenas

informações referentes à iluminura e à escul-

tura funerária gótica portuguesa. Ainda assim,

constitui, sem sombra de dúvidas, uma das mais

importantes ferramentas de trabalho que o his-

toriador da arte medieval portuguesa tem à dis-

posição na Web: http://imago.fcsh.unl.pt/. Re-

alizada a partir de um projecto fi nanciado pela

Fundação para a Ciência e Tecnologia (referên-

cia POCTI/EAT/45922/2002), espera-se que

esta base de dados venha a ter continuidade em

termos de fi nanciamento por parte da mesma

instituição e que alargue os géneros artísticos

inventariados a curto prazo.

2. Entretanto, e resultantes do referido projecto,

foram também já publicados os seguintes artigos

na área da escultura tumular medieval: Ramôa,

Joana. 2008. Os Centros de Produção Escultó-

rica Medieval de Coimbra e Santarém: um olhar

dirigido à iconografi a do Calvário na Escultura

Tumular Medieval Portuguesa. Arte Teoria. 11:

109-123; Silva, José Custódio Vieira da e Ra-

môa, Joana. 2008. O Retrato de D. João I no

Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Um novo

paradigma de representação. Revista de História

da Arte. 5: 76-95; Silva, José Custódio Vieira da.

2009. A Construção de uma Imagem. Jacentes

de Nobres Portugueses do século XIV. El Inter-

cambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las

cortes europeas en la Baja Edad Media. Léon:

Universidad de León, 407-429.

3. Baschet, J. 1996. Inventivité et sérialité des

images médiévales. Pour une approche icono-

graphique élargie”. Annales. Histoire, Sciences

Sociales, 51: 93-133. Um assunto que o autor

continua a rever e a alterar, tendo dado à estam-

pa várias versões do mesmo trabalho, designada-

mente “Porquoi élaborer des bases de données

d’image? Propositions pour une iconographie

sérielle”. Bolvig, A. e Lindley, P. (eds). 2003.

History and Images: Towards a New Iconology.

Turnhout: Brepols, 59-105; Baschet , J. 2008.

Pour une iconographie sérielle. L’Iconographie

Médiévale. Paris: Gallimard, 251-280.

4. Sem pretendermos ser exaustivos, gostaría-

mos de sublinhar os estudos mais recentes de-

senvolvidos por Silva, José Custódio Vieira da.

2003. O Panteão Régio do Mosteiro de Alco-

baça. Lisboa: IPPAR, 2005. Memória e Imagem.

Refl exões sobre escultura tumular portuguesa.

Séculos XIII e XIV. Revista de História da Arte, 1,

46-81. Fernandes, Carla Varela. 2001. Memórias

r e c e n s õ e s · c h r i s t u s p a t i e n s

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 92 0 4

período que corresponde, de facto, ao objecto de estudo da autora, ou seja, a Baixa

Idade Média e em especial o século XIV.

O enorme valor deste livro reside, portanto, na segunda parte da obra, que corres-

ponde aos capítulos III a VII (pp. 85-146), onde a autora estuda directamente vários

monumentos funerários góticos portugueses. A partir de um sólido e apurado cotejo

compositivo e formal das representações do Calvário na tumulária trecentista nacio-

nal, a autora propõe a identifi cação de dois modelos artísticos para a representa-

ção deste tema. Através de uma análise sustentada nas características plásticas das

obras, a autora considera que estes modelos correspondem à cultura artística de dois

núcleos escultóricos distintos, um situado em Coimbra, outro situado em Santarém.

Em termos compositivos, o Calvário do grupo de Coimbra segue um modelo vertical,

dispondo Cristo, a Virgem e S. João numa estrutura triangular, enquanto que o grupo

de Santarém segue um modelo horizontal, com estas fi guras praticamente ao mesmo

nível, notando-se, por exemplo, o alargamento do braço da cruz e a presença do

titulus (ausente no grupo coimbrão). Por outro lado, Joana Ramôa destaca que as

fi guras do primeiro modelo, de Coimbra, assumem uma maior desproporção entre a

cabeça e o corpo e que as suas fi guras possuem uma natureza mais ondulante. Em

contrapartida, o segundo modelo, de Santarém, acentua formas mais angulosas e

apresenta proporções mais equilibradas nos corpos11.

A importância de Coimbra na produção escultórica portuguesa do século XIV é bem

conhecida. Porém, em relação a Santarém a situação é bem diferente, pelo que as

propostas de Joana Ramôa assumem a maior relevância e merecem o mais elevado

destaque. Talvez devido à adulteração e destruição dos principais monumentos fune-

rários góticos de Santarém, bem como devido à deslocação das suas principais obras

remanescentes para outros locais – designadamente para o Convento do Carmo em

Lisboa –, a excelência e a identidade do núcleo escalabitano não recebeu ainda o

estudo merecido. O trabalho desenvolvido na segunda parte deste livro por Joana

Ramôa constitui, por isso, um valiosíssimo contributo para o aprofundamento dos

estudos dedicados à escultura gótica portuguesa, ao contribuir para se delimitar

com maior rigor as características do núcleo coimbrão, ao nível da arte tumular,

e ao apresentar, com consistência, notáveis contributos referentes à idiossincrasia do

núcleo escalabitano. Por todos estes motivos, o livro de Joana Ramôa deve merecer

toda a atenção dos historiadores da arte medieval portuguesa, revestindo-se de um

carácter renovador que importa estimular e enaltecer. •

r e c e n s õ e s · c h r i s t u s p a t i e n s

de Pedra. Escultura tumular medieval da Sé de

Lisboa. Lisboa: IPPAR, 2005. Poder e Represen-

tação. Iconologia da família real portuguesa –

primeira dinastia, séculos XII a XIV. Dissertação

de Doutoramento em História da Arte apresen-

tada à Universidade de Lisboa. Barroca, Mário.

2002. Escultura gótica. História da Arte em Por-

tugal, Vol. II. Lisboa: Presença, 157-246, e por

nós próprios, 2003. O Ser e o Tempo. As idades

do homem no gótico português. Casal de Cam-

bra: Caleidoscópio.

5. Bréhier, L. L’Art Chrétien. Son développement

iconographique des origines à nos jours. Paris:

Lib. Renouard-H. Laurens.

6. Doncoeur, P. 1939. Le Christ dans l’art fran-

çais. Paris: Lib. Plon.

7. Kitzinger, E. e Senior, E. Portraits of Christ,

Harmondsworth. Penguin Books.

8. Trens, M. El arte en la Pasion de Nuestro

Señor (siglos XIII al XVIII). Barcelona: Amigos de

los Museos.

9. Réau, L. 1957. Iconographie de l’Art Chrétien,

vol. III. Paris: PUF.

10. Por exemplo, a autora segue um modelo ex-

plicativo marcado pela «mística imperial», uma

ideia formulada na década de 1930 e desenvol-

vida por autores como A. Grabar, E. Kitzinger ou

E. Kantorowicz. Este modelo foi posteriormente

refutado por autores como T. Mathews. 2003.

The Clash of Gods. A reinterpretation of Early

Christian Art, 6.ª ed. rev., Princeton e Oxford,

Princeton University Press, que não só sublinha-

ram a importância do polimorfi smo das primei-

ras imagens de Cristo, como destacaram a forte

analogia entre essas imagens e a representação

das divindades pagãs.

11. Seria interessante procurar perceber até que

ponto estes modelos são conjugáveis com outras

representações do Calvário realizadas na mesma

época mas em suportes diferentes, designada-

mente na iluminura e nas estelas funerárias.

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 2 0 5

1. O Thoronet, fundado em 1146 pelos monges

cistercienses de Tourtour no vale desabitado de

Var, é uma das três importantes abadias cister-

cienses da Provença (juntamente com Silvacane

e Sénanque), sendo considerada um marco do

românico desta região francesa. Totalmente des-

provido de elementos escultóricos, este mosteiro

destaca-se pelos seus elementos arquitectónicos

e a simplicidade emanada das formas geométricas

de um edifício que se desenrola à volta do magní-

fi co claustro decorado por arcos de volta perfeita.

Sans qu’aucune explication ne s’impose, il semblait qu’en invitant Álvaro Siza à

l’abbaye de Thoronet, on ne se trompait pas. Que c’était une bonne, une excellente

idée, une évidence même.

O livro Siza au Thoronet: le parcours et l’oeuvre, editado em 2007, é coordenado por

Dominique Machabert, escritor e jornalista interveniente na Faculdade de Arquitec-

tura de Clermont-Ferrand e conhecedor profundo da obra da Escola de Arquitectura

do Porto. Repleto de imagens e desenhos, este livro compõe-se de textos descritivos

de um percurso criado para um monumento românico francês, o mosteiro cisterciense

do Thoronet1, e de percursos da obra de Siza Vieira.

Esta publicação parte de um convite dirigido a Álvaro Siza Vieira, arquitecto portu-

guês, de reconhecido prestígio internacional, para visitar o Mosteiro do Thoronet,

apresentar aí as suas obras e pensar numa intervenção original a expor neste espaço,

num período entre Junho e Outubro de 2007.

Num tom coloquial e intimista, os dois personagens principais – Dominique Macha-

bert e Álvaro Siza Vieira – envolvem-se numa trama sobre o acto criativo e a sua con-

ceptualidade, bem como refl ectem sobre intervenções em monumentos ou edifícios

históricos. Se o arquitecto-autor relata momentos, sensações, para além das entre-

vistas em discurso directo transcritas por entre o texto compositivo, o arquitecto-

-interveniente ganha também um papel principal e activo nesta obra.

O livro encontra-se dividido em duas partes relacionadas entre si. A primeira é relativa

a uma visita de Álvaro Siza Vieira ao mosteiro, com o intuito de criar uma instalação/

intervenção para este edifício classifi cado, mostrando-se grafi camente esta visita e

esta intervenção bem como um conjunto de raciocínios e diálogos sobre o projecto

dominique machabert (dir.). 2007siza au thoronet: le parcours et l’oeuvreparenthèses

luísa castro caldasFCSH-UNL

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pensado para o mosteiro. Esta parte incorpora também as infl uências e aspectos do

momento criativo do arquitecto.

A segunda parte é constituída por sete obras de arquitectura do arquitecto portu-

guês escolhidas por Dominique Machabert mas comentadas por outros intervenien-

tes conhecedores desses projectos, todos encadeados num objecto comum ligado à

intervenção de Siza Vieira no Thoronet.

Termina com uma entrevista ao arquitecto sobre o percurso por ele criado para este

mosteiro francês e ainda com uma análise e refl exão sobre uma série de hipóteses

criadas pelo entrevistador em relação a obras projectadas por Álvaro Siza, a sua

relação com o espaço bem como a utilização e reabilitação de imóveis com interesse

histórico, abordando-se, a este nível, casos concretos como os de Varsóvia, do Porto,

de obras de Fernando Távora e do próprio Siza Vieira, como o Chiado, em Lisboa.

O coordenador do livro inicia o seu discurso com a confi rmação da certeza do convite

endereçado a quem considera um dos grandes mestres da arquitectura mundial2.

Evidencia a forma como Álvaro Siza se relaciona com o Espaço, com o Lugar e como

inicia o processo produtivo, através de um primeiro esquiço, tomado como ponto de

partida para um entendimento da implantação, da forma e das proporções. Acentua o

acto criativo como um acto conceptual que mais tarde se desenvolverá em contextual.

É evidente, neste primeiro texto, a dedicação e homenagem que o autor pretende

fazer a Siza Vieira. A forma como descreve as técnicas criativas, o local de trabalho,

a modéstia que considera ser contraditória da complexidade das suas obras arquitec-

tónicas mostram-nos a proximidade e o acompanhamento do trabalho por parte de

Dominque Machabert. Por isso entende que a confrontação do pensamento, obra e

trabalho de Álvaro Siza com uma obra produzida por uma Regra imposta e restrita

representaria um enorme desafi o, que ele ousou propor.

O tom coloquial da obra desenvolve-se ao longo dos restantes capítulos, iniciando-

-se com a descrição da viagem de carro até ao Thoronet e o primeiro contacto com o

local. Há um tom intimista no texto do autor, permitindo-nos, como num romance,

vivenciar toda esta experiência.

O ponto inicial da visita leva-nos ao momento em que Siza Vieira, chegado ao mosteiro,

procura uma planta para uma orientação espacial. Dominique Machabert entrega-lhe

então um simples plano turístico com informações básicas, não lhe possibilitando o

acesso a nenhum outro mais aprofundado. Siza Vieira perde algum tempo a rodar o

seu mapa sem encontrar um ponto de partida e um trajecto. Este episódio é primor-

dial na actuação que o arquitecto virá a ter no local: será esta difi culdade, idêntica à

de um mero turista ou um visitante vulgar do monumento, que o irá obrigar a defi nir

uma estratégia de percurso considerada correcta para o verdadeiro entendimento do

edifício. É sem dúvida este o momento que marcará o percurso que o irá conduzir

à compreensão do espaço e à sua refl exão. Siza Vieira considera que a necessidade

de conduzir o visitante o fará compreender verdadeiramente o espaço e valorizá-lo.

Para efectivar este objectivo projecta uma intervenção muito ténue no espaço

monástico, marcada pela simplicidade dos materiais que escolhe, como a madeira,

o mármore e o ferro. Ao colocar estas peças temporais, sólidas mas discretas, pretende

2. Dominique Machabert terá tido um contacto

próximo com a comunidade portuguesa durante

a sua infância e adolescência, levando-o a de-

senvolver um fascínio por Portugal, tornando-o

seu objecto de estudo e a arquitectura produzi-

da pela Escola do Porto o veículo para as suas

análises em tom intimista. Tradutor de textos

publicados por Álvaro Siza Vieira, torna-se assim

um conhecedor do percurso deste arquitecto ga-

lardoado internacionalmente.

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uma intervenção delineativa da concepção do espaço. A peça em mármore assume-se

como uma marca de fl echa; o bloco em madeira defi ne-se pela sua verticalidade e

proximidade às técnicas construtivas originais; o ferro encontra-se orientado hori-

zontalmente sobre um cabo delimitativo do trajecto.

Esta escolha é acompanhada de uma entrevista onde o tema da reabilitação e seu

impacto no edifício em ruínas é alvo de comentários por parte do arquitecto. Con-

cretamente, Siza Vieira retrata dois tipos de intervenção: a recuperação integral ou a

transformação total ou parcial por parte dos arquitectos que a projectam. Considera

que o importante, o que defi ne a arquitectura, é a continuidade e não a ruptura,

mostrando que o papel do arquitecto é compreender e estudar um edifício para com

a sua acção evidenciar a sua história, a sua existência. Este princípio está explícito na

intervenção que desenvolve aqui no Thoronet, onde o arquitecto procura entender

o espaço e a sua história e uso primitivo antes de projectar – trata-se de um acto

refl exivo que tem em conta o pré-existente. É que, se por um lado, o entendimento

da arquitectura de hoje e a sua evolução não é possível sem a compreensão da ar-

quitectura produzida no passado, por outro lado, essa mesma arquitectura de hoje,

quando aplicada à estrutura de um edifício pré-existente, deverá sempre partir de

uma refl exão e investigação por parte do arquitecto antes da concepção do projecto.

O respeito pelo uso, vivências, memórias do imóvel é fulcral para uma valorização e

não alteração do edifício aquando da sua reabilitação.

A segunda parte do livro é constituída por 7 projectos do arquitecto em Portugal e no

estrangeiro. A escolha do autor não é meramente uma escolha das obras que consi-

dera as melhores e reveladoras da arquitectura de Siza Vieira; é, antes, marcada pela

intervenção no Thoronet. O autor pretende, através dessas 7 obras, focar aspectos

que de alguma forma se interligam com o monumento cisterciense. Há referências

ao contacto da arquitectura com a natureza e sua integração na paisagem, como é

exemplo o projecto do Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Com-

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postela ou a Piscina de Leça da Palmeira e o Restaurante Boa Nova em Matosinhos;

a criação e relação com o objecto religioso e a sua mística, como a igreja paroquial

de Marco de Canaveses; ou ainda o entendimento e valorização do pré-existente,

como o Sítio Arqueológico de Cusa, na Sicília. Para simbolizar um projecto dotado

de um percurso como ponto fulcral do entendimento do edifício apresenta-se a casa

Vieira de Castro em Famalicão.

As imagens dos edifícios são acompanhadas por textos encomendados a conhece-

dores ou actores destes projectos. O próprio Dominique Machabert insere outras

visões pessoais e intimistas, permitindo uma abordagem diferente destes projectos,

interligando-os num percurso da arquitectura e de estilo de Siza Vieira, sendo eles

mesmos fundamentais para o entendimento do percurso proposto por este último

para o Thoronet.

Este livro é um projecto intimista do autor, mostrando de uma forma muito pessoal

e visual um processo criativo. Todo ele se desenvolve ao redor do tema percurso ou

percursos: há uma análise da obra do arquitecto por parte de alguém que conhece

profundamente o seu trabalho, motivo mais que sufi ciente para aliciar Siza Vieira a

intervir neste monumento francês.

O título, Siza au Thoronet: le parcours et l’oeuvre, é muito bem conseguido, pois

resume todo o conceito a desenvolver na narrativa, ou seja, tanto incide sobre o

momento específi co da deslocação de Siza Vieira ao local, como o Percurso e a Obra

acabam por refl ectir, nesta intervenção no Thoronet, toda uma longa carreira de

produção arquitectónica.

É um livro que aborda temas como a reabilitação, a arquitectura e a sua relação com

a natureza e a luz ou a ambiguidade entre o projecto e o espaço, tornando-se uma

obra que espelha as preocupações e as refl exões de inícios do século XXI. •

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O presente livro recolhe as comunicações de 23 investigadores participantes no Sim-

pósio Internacional «El Intercambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las Cortes

Europeas en la Baja Edad Media», que decorreu na cidade de León entre 27 e 29 de

Setembro de 2007 e cuja organização esteve a cargo do Instituto de Estudios Medieva-

les e do Departamento de Património Artístico e Documental da Universidade de León.

Esta reunião científi ca, de acordo com a opinião expressa por Maria Victoria Herráez

Ortega nas páginas de apresentação do volume agora publicado, propunha-se ques-

tionar e aprofundar, como um dos seus objectivos fundamentais, a importância do

mecenato artístico na Baixa Idade Média.

Partindo-se da verifi cação que a encomenda régia foi, a par da iniciativa eclesiástica,

o principal motor da actividade criadora nessa época, o desafi o colocado aos diversos

investigadores foi o de aprofundar os estudos sobre o papel desempenhado por

esses patronos na encomenda artística, sabendo-se que a personalidade, a formação,

a situação política e o poder económico dos diferentes soberanos e grandes senhores

c. cosmen alonso; m. v. herráez ortega; m. p. gómez-calcerrada, (coord.). 2009el intercambio artístico entre los reinos hispanos y las cortes europeas en la baja edad medialeón: universidad de león

joana ramôaInstituto de História da Arte – FCSH-UNL e bolseira da Fundação para a Ciência e a

Tecnologia (FCT).

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foram alguns dos factores que condicionaram o resultado fi nal dessas criações. Em

simultâneo, as relações de diversa índole estabelecidas entre as Cortes dos diferentes

reinos europeus, potenciando as respectivas relações culturais, suscitaram o inter-

câmbio artístico e favoreceram a introdução de novas correntes em alguns lugares.

O foco das atenções, decorrendo naturalmente da opção tomada por parte dos res-

ponsáveis pela realização do Simpósio, centrou-se, como se depreende também do

próprio título da publicação, na situação dos reinos hispânicos.

São estas, por consequência, as questões principais cujas respostas (ou a sua pro-

blematização) emergem dos estudos reunidos neste volume de 429 páginas, em boa

hora publicado pela Universidade de León, sob a coordenação de Concepción Cosmen

Alonso, María Victoria Herráez Ortega e María Pellón Gómez-Calcerrada, docentes e

investigadoras desta mesma Universidade. Como afi rma a principal responsável por

esta iniciativa, María Victoria Herráez Ortega, estes estudos resultam da investigação

realizada propositadamente para este efeito, tanto por investigadores já consagrados

e com um largo currículo na História, na Literatura e na História da Arte, quanto por

jovens investigadores.

Entre alguns dos nomes aqui reunidos, contam-se os de José Manuel Nieto Soria, da

Universidade Complutense de Madrid, com um estudo sobre «La dimensión cultural

de la diplomacia castellano-leonesa en la época trastámara»; de Fernando Gómez

Redondo, da Universidade de Alcalá de Henares, com um estudo sobre «Doña María

de Molina y el primer modelo cultural castellano»; de Rafael López Guzmán, da Uni-

versidade de Granada, sobre «Relaciones artísticas entre el sultanato nazarí y el Reino

de Castilla»; de Didier Martens, da Universidade Livre de Bruxelas, sobre «Isabelle la

Catholique et la fondation d’une esthétique hispano-fl amande: une approche typolo-

gique»; de Francesca Español Beltrán, da Universidade de Barcelona, sobre «Artistas y

obras entre la Corona de Aragón y el reino de Francia»; de Javier Martínez de Aguirre,

da Universidade Complutense de Madrid, sobre «La rueda de la Fortuna: Carlos III

el Noble de Navarra (1387-1425) en Paris, de rehén a promotor de las artes»; e de

José Custódio Vieira da Silva, da Universidade Nova de Lisboa, sobre «A construção

de uma imagem. Jacentes de nobres portugueses do século XIV».

A diversidade e riqueza dos estudos apresentados evidencia o acerto e a importância

da iniciativa levada a cabo pela Universidade de León, que permitiu, mais do que abrir

alguns novos campos temáticos, aprofundar sobretudo outros já existentes, colo-

cando em saudável confronto perspectivas e abordagens diferenciadas. O complexo

mosaico político e cultural da Península Ibérica na Baixa Idade Média ganha, desta

forma, novos contornos, aprofundando-se situações cuja pluralidade de perspectivas

permite enriquecer sobremaneira o conhecimento das suas originalidades culturais,

que se manifestam mesmo quando se absorvem infl uências provenientes doutras

partes da Europa. •

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v a r i a · p e t e r k l e i n - b e a t o d e l i é b a n a

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O Projecto IMAGO: a constituição de uma base de dados

digital de iconografi a medieval.

José Custódio Vieira da Silva, Adelaide Miranda, Joana Ramôa

Alle origini della memoria fi gurativa: S. Elisabetta D’Ungheria

(1207-1231) e Isabella D’Aragona, Rainha Santa de Portugal

(1272-1336) a confronto in uno studio iconografi co comparativo

Giulia Rossi Vairo

Imagens de Azul. Evidências do emprego do Azul Cobalto

na cerâmica tardo medieval portuguesa

Rui André Alves Trindade

Do Jardim Místico ao Jardim Profano:

para uma leitura dos jardins medievais portugueses

Costanza Ronchetti

..................................................................................

A Escultura em Portugal. Da Idade Média ao início da Idade

Contemporânea: história e património

Pedro Flor, Teresa Vale

Apresentação do projecto IMAGO no Seminário Livre

Inter-Universitário 2008/2009 do IEM/GAHOM

Joana Ramôa

Vari

a

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O projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002), fi nanciado pela Fundação para a

Ciência e a Tecnologia (F.C.T.) e desenvolvido no âmbito da investigação associada

ao Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da

Universidade Nova de Lisboa, teve o seu início a 1 de Setembro de 2005 e o encer-

ramento ofi cial a 31 de Agosto de 2008, cumprindo, neste período aparentemente

limitado de 3 anos, com o objectivo fundamental de constituição de uma base de

dados iconográfi ca digital – a primeira realizada em Portugal –, relativa à Idade

Média portuguesa e particularmente centrada nos campos artísticos da iluminura e

da escultura tumular – http://imago.fcsh.unl.pt.

O entendimento completo da novidade de semelhante proposta, bem como do

alcance, no domínio da investigação sobre a Idade Média, de um tal esforço de reu-

nião e de racionalização a que a constituição de uma base de dados desta natureza

corresponde, concretiza-se em pleno no seio de uma consciência da importância dos

estudos iconográfi cos no desenvolvimento da historiografi a artística, e, em geral, no

conhecimento das mentalidades medievais.

Com efeito, nunca será demais insistir na enorme carência existente neste domínio

específi co da investigação em Portugal – o da Iconografi a –, sem tradição no qua-

dro dos estudos nacionais e de que se lançam agora, com passos sólidos, apesar de

iniciais, algumas bases fundamentais de sustentação do que se deseja que venha

a ser um domínio científi co bem delineado, próspero e continuamente enriquecido

por uma séria articulação interdisciplinar. Deste modo, foi objectivo verdadeiramente

fundador do projecto Imago contribuir para o enraizamento seguro da Iconografi a

como área de investigação de grande fôlego em Portugal (ultrapassando o domínio

da simples curiosidade, animado, a espaços, por interesses ocasionais) e impulsionar

os estudos sobre a Idade Média, de forma abrangente, através da construção de uma

base de dados aspirando de futuro à formação de um centro de iconografi a medieval.

A própria integração de um projecto desta natureza num Instituto de Estudos

o projecto imagoa constituição de uma basede dados digital de iconografia medieval

josé custódio v. s ilva; adelaide miranda; joana ramôa

v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

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v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

Medievais justifi ca-se e procura corroborar este mesmo entendimento profundo de

que, revestindo-se as imagens de uma memória social, o seu estudo e percepção em

plenitude só benefi ciarão com o diálogo, para o qual deste modo pretendemos contri-

buir, entre as diversas áreas do saber sobre a medievalidade, nomeadamente a História

e a Literatura, para além, como é evidente, da História da Arte, da qual partimos e

fora da qual não entendemos, de resto, o nosso estudo nem o nosso pensamento.

Assumindo-nos como devedores da longa tradição iconográfica germânica e,

sobretudo, francesa, coube-nos, como investigadores do projecto Imago, realizar o

esforço inédito da constituição de uma base de dados iconográfi ca digital que coloca,

desde agora, a investigação portuguesa a par do que há alguns anos vem sendo feito

naqueles e noutros países (acrescente-se a Inglaterra, por exemplo), com a mais valia

de à catalogação dos livros iluminados (que tendem a constituir objecto exclusivo

dessas outras bases estrangeiras) se acrescentarem representações com suporte na

fig.1 página inicial da base de dados imago (http://imago.fcsh.unl.pt/)

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v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

pedra, nomeadamente em arcas tumulares – tornando, deste modo, a iconografi a o

verdadeiro cerne e linha condutora de toda a base de dados Imago.

Iniciado o trabalho de investigação, revelou-se indispensável, num primeiro mo mento,

a concepção de um tesauro descritivo das imagens, adequado a cada uma das

áreas nas quais se optou por concentrar o projecto – iluminura e escultura tumu-

lar –, instrumento de base fundamental para a descrição das representações e garante

da efi cácia e da facilidade da consulta no âmbito da base de dados informatizada.

Seguiu-se a elaboração de uma fi cha de catalogação para as peças (no caso da escul-

tura tumular) e as iluminuras (no caso dos códices), num processo feito de reelabora-

ções sucessivas, tendo em conta os interesses da investigação e a sua articulação com

as propostas e a experiência nesta área de trabalho dos programadores informáticos.

Para além destes contributos, assim articulados, os consultores internacionais, selec-

cionados pela sua experiência e saber na área da iconografi a medieval, em geral, e

da catalogação de imagens em bases de dados, em particular – Patrícia Stirnemann

(Centre National de la Recherche Scientifi que, Paris), Claudia Rabel (CNRS, Paris) e

Fernando Galván (Universidad de León) – revelaram-se auxiliares preciosos, pelas suas

sugestões e críticas, neste mesmo processo de elaboração das fi chas de catalogação

e de defi nição da estruturação temática da base de dados. Defi nido, estudado e

enquadrado o corpus de estudo a catalogar, estabelecido, nos seus termos essenciais,

o tesauro descritivo e a rede hierárquica dos temas, bem como as fi chas de análise

fig.2 campos de pesquisa avançada na área da escultura

fig.3 ficha técnica da escultura

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v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

das peças e das iluminuras, coube, num terceiro momento, a construção da base de

dados informática ao CITI – Centro de Investigação para Tecnologias Interactivas –,

empresa sedeada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL), cuja capaci-

dade e méritos, atestados, de resto, por vários prémios recebidos nesta e noutras

áreas da programação, se revelaram indispensáveis à obtenção, em tempo útil, dos

resultados esperados.

Com a base de dados digital construída e consolidada -trabalho em que o diálogo

permanente entre programadores e investigadores foi manifestamente frutífero e

enriquecedor –, tornou-se possível a catalogação directa na base, para além do seu

carregamento com toda a informação entretanto recolhida e que vinha sendo tratada

segundo uma metodologia de trabalho com duas vertentes fundamentais: a recolha

de imagens das peças e a sua análise e descrição completas, in situ, tanto da escul-

tura como da iluminura; o trabalho de gabinete, feito da selecção e tratamento das

imagens recolhidas, assim como da realização da fi cha fi nal de catalogação, comple-

tada pelos dados obtidos com a investigação, a pesquisa e o levantamento de fontes

históricas, literárias, fi losófi cas e religiosas, em bibliotecas e arquivos.

Assim, e tendo em vista a integração na base de dados Imago do maior número de

peças possível e, particularmente, daquelas que entendemos serem as mais repre-

senta tivas do panorama escultórico tumular medieval português, a nível de todo

o território nacional, foi realizado trabalho de campo e, consequentemente, cata-

loga das as arcas tumulares dos núcleos de escultura de: Lisboa (São Domingos de

Benfi ca; Museu Arqueológico do Carmo; Sé; Igreja de São Domingos do Rossio),

Odivelas(Antigo Convento de São Dinis e São Bernardo), Santarém (Igreja da Graça;

Igreja de Santa Clara; Museu de São João de Alporão; Igreja de São Nicolau), Faro

(Sé), Alcobaça (Mosteiro de Santa Maria), Batalha (Mosteiro de Santa Maria da Vitó-

ria), Lamego (Capela de São Pedro de Balsemão; Igreja de São João de Tarouca),

Porto (Sé; Museu de Soares dos Reis), Viseu (Sé), Oliveira do Conde (Igreja Matriz),

Oliveira do Hospital (Capela dos Ferreiros, Igreja Matriz), Coimbra (Mosteiro de Santa

Clara-a-Nova; Sé Velha; Museu Machado de Castro), Tentúgal (Mosteiro de São Mar-

cos), Évora (Sé; Museu Regional), Estremoz (Igreja de São Francisco), Reguengos de

Monsaraz (Igreja de Nossa Senhora da Lagoa), Ourém (Igreja da Colegiada), Abrantes

(Igreja de Santa Maria do Castelo), Grijó (Mosteiro de São Salvador) e Braga (Capela

da Glória, Sé) – num total de 63 peças e 461 imagens catalogadas na base de dados.

No que se refere ao campo artístico da iluminura, igual trabalho foi realizado,

seguindo os mesmos pressupostos, embora neste caso as maiores difi culdades com

que o projecto se deparou no que respeita à propriedade das imagens, assim como

o número muito superior (quase inesgotável) de códices existentes em bibliotecas e

instituições portuguesas, tenham exigido um esforço de inventariação que continua

em curso e deverá, desejadamente, continuar no futuro, acompanhando o avanço

signifi cativo que se vem manifestando nesta área de estudos e gozando, nomeada-

mente, do interesse e dos conhecimentos dos novos investigadores.

A superação das referidas difi culdades implícitas a um processo como o do projecto

Imago, de recolha e disponibilização on line de imagens de peças artísticas, em ter-

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mos de direitos de autor, passou pelo estabelecimento de uma série de contactos,

no sentido de se obterem ou simples autorizações, ou, em casos mais complexos

(sobretudo no que respeita à iluminura), a assinatura de protocolos mais abrangentes

com as instituições de cultura adequadas – processo no qual, apesar da morosidade

inerente, são merecedores de realce o acolhimento e a compreensão revelados por

todos os responsáveis e técnicos que com o projecto Imago contactaram. Desta forma,

e para além de se evitar a repetição de trabalhos já realizados, todos os direitos de

propriedade sobre as imagens fi caram salvaguardados, devendo os interessados na

sua utilização (fora do âmbito de consulta na base) e reprodução adquiri-las nos sites

das respectivas instituições, seus legítimos possuidores. De tal modo, obtiveram-se

autorizações e/ou assinaram-se protocolos com: o IGESPAR (Instituto de Gestão do

Património Arquitectónico e Arqueológico), a BNP (Biblioteca Nacional de Portu-

gal), a Academia de Ciências de Lisboa, a BGUC (Biblioteca Geral da Universidade de

Coimbra), a BPMP (Biblioteca Pública Municipal do Porto), a BPE (Biblioteca Pública

de Évora), o Palácio Ducal de Vila Viçosa, o MNAA (Museu Nacional de Arte Antiga),

o Museu Calouste Gulbenkian, párocos e entidades religiosas responsáveis por alguns

dos objectos artísticos inventariados. Estabelecidos estes acordos, tornou-se possível

a realização da reportagem fotográfi ca e a catalogação das iluminuras de 127 manus-

critos, dos quais 2 Missais, 98 Bíblias, 23 Livros de Horas, 2 Speculum Historiale,

1 Homiliário, 1 Crónica Geral de Espanha, 1 Breviário da Condessa de Bertiandos,

v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

fig.4 campos de pesquisa avançada na área da iluminura

fig.5 ficha técnica da iluminura

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1 Missal de Estêvão Gonçalves e 1 Diadema Monachorum – correspondendo, até ao

momento, a 600 catalogações na base de dados Imago.

Para além de levar a cabo a fotografi a, análise e catalogação das peças escultóricas e dos

manuscritos (verdadeiro cerne do trabalho a que nos propusemos), o projecto I mago

teve na sua própria divulgação, em revistas e eventos científi cos nacionais e internacio-

nais, uma das vertentes de actuação fundamentais – no quadro de um esforço de divul-

gação e de partilha de experiências e conhecimentos que julgamos ser hoje um dos prin-

cipais desafi os e deveres de todo o projecto de investigação (individual ou colectivo).

Foi neste contexto e tendo em vista essa mesma partilha que, para além dos 23 arti-

gos publicados na sequência da investigação desenvolvida, o projecto se empenhou

directamente na organização de um Seminário Internacional, decorrido nos dias 15-16

de Novembro de 2007, e que teve por principal objectivo a apresentação pública da

base de dados Imago, então ainda em fase de consolidação. Subordinado ao tema

v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

fig.6 ficha técnica com galeria de imagens

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Imagem, Memória e Poder. Visualidade e Representação (sécs. XII-XV), contou este

encontro ainda com a participação de 16 especialistas, nacionais e estrangeiros, de

História, História da Arte, Ciências Musicais e Codicologia – formando, deste modo,

um leque abrangente de comunicações de grande interesse, cujo teor é tema do

presente número da Revista de História da Arte, editada pelo Instituto de História da

Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Podemos, deste modo, afi rmar que, com a efectiva disponibilização on line de uma

base de dados plenamente arquitectada e consolidada, para além de preenchida

com alguns dos elementos iconográfi cos que entendemos serem mais signifi cativos

e representativos do panorama medieval português, vemos cumprido o propósito

central do projecto que integrámos e com o qual, ou melhor, com esse seu fruto

inovador e de longo alcance que é a base de dados digital, pretendemos continuar a

facilitar e estimular o trabalho dos investigadores que à Idade Média se dediquem,

contribuindo com esta centralização e divulgação de uma informação até agora dis-

persa e muitas vezes difícil de obter.

O projecto Imago, delineado, projectado e impulsionado, desde o início, por José

Custódio Vieira da Silva (coordenador do projecto e responsável pela investigação

na área da escultura tumular) e Maria Adelaide Miranda (responsável pela área da

iluminura), contou ainda, na sua equipa, com uma bolseira, Joana Ramôa, e outros

três investigadores, com trabalho e estudos desenvolvidos e em desenvolvimento na

área da iluminura, Ana Lemos, Luís Correia de Sousa e Ragnhild Marthine Bø – estes

últimos integrados no projecto num processo de alargamento do grupo inicial que

resultou em mais valias de grande signifi cado, tendo permitido, desde logo, ampliar

a investigação, alargar o número de dados recolhidos e potenciar os resultados e o

alcance do projecto, mormente no que se refere à divulgação da investigação, levada

a cabo nos termos a que atrás nos referimos. •

v a r i a · o p r o j e c t o i m a g o

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1. Rossi Vairo, Giulia. 2008. Sainte Elisabeth de

Hongrie (1207-1231) et Isabel d’Aragon, Rai-

nha Santa de Portugal (1272-1336): affi nités

et différences. In Sainte Elisabeth (1207-1231)

huit siècles de rayonnement européen Colloque

international. Paris, 16-17 novembre 2007: in

corso di stampa.

2. Per evitare confusione ed equivoci, ma anche

per rispetto delle origini, nel corso di questo ar-

ticolo chiamerò l’una Elisabetta, l’altra, Isabel-

la, poiché, sebbene per il mondo cattolico siano

entrambe Sancta Helisabecta, è con il nome di

Santa Isabel, Isabella, quasi sempre accompa-

gnato dall’appellativo di Rainha Santa, che è

ricordata dalla storiografi a e nelle fonti porto-

ghesi.

Il 2007 è stato l’anno delle celebrazioni dedicate a sant’Elisabetta d’Ungheria: in

tutta Europa sono stati organizzati convegni, mostre, congressi per commemorare

l’ottavo centenario della nascita di colei che è stata defi nita la prima santa euro-

pea per la rapida diffusione ed internazionalizzazione del culto subito dopo la sua

canonizzazione, avvenuta nel 1235, soltanto quattro anni dopo la sua scomparsa.

In occasione del convegno conclusivo dell’”anno elisabettiano”, tenutosi a Parigi nel mesi

di novembre, è stata presentata una comunicazione dedicata alla disamina delle affi nità

e differenze ravvisabili fra sant’Elisabetta d’Ungheria e sant’Elisabetta del Portogallo1.

Lo studio che segue nasce come approfondimento di un aspetto specifi co affrontato

nel corso dell’intervento, ovvero la parziale sovrapposizione dell’iconografi a delle due

sante. In particolare, saranno prese in esame le prime testimonianze iconografi che

delle due Elisabette cui ancora oggi si deve far risalire la loro memoria fi gurativa:

l’Elisabethschrein, per Elisabetta d’Ungheria, e la monumentale arca sepolcrale, per

Isabella d’Aragona2.

Elisabetta d’Ungheria nacque probabilmente a Pressburg, oggi Bratislava, nel 1207

dall’unione del re Andrea il Gerosolimitano e Gertrude di Merania. Nel 1221, a quat-

tordici anni, andò in sposa a Ludwig IV, langravio di Turingia: dal matrimonio nac-

quero tre fi gli, Ermanno, Sofi a e Gertrude. Nel 1224, il consorte, in nome dei buoni

rapporti con l’imperatore Federico II e sollecitato da papa Onorio III, partì per la IV

v a r i a · a l l e o r i g i n i d e l l a m e m o r i a f i g u r a t i v a

alle origine della memoria figurativa:sant’elisabetta d’ungheria (1207-1231) e isabella d’aragona, rainha santa de portugal (1272-1336) a confronto in uno studio iconografico comparativo

giul ia ross i va iroInstituto de História da Arte

FCSH-UNL

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 92 2 2

3. Dell’ampia bibliografi a dedicata alla fi gura di

sant’Elisabetta d’Ungheria mi limiterò a citare

alcune delle opere più recenti: Blume, Dieter (a

cura di). 2007. Elisabeth von Thüringen: eine

europäische Heilige, Petersberg: Imhof, 2 voll.;

1981. Sankt Elisabeth: Fürstin, Dienerin, Heilige,

Sigmaringen: Jan Thorbecke Verlag KG.

crociata affi dando la moglie e i fi gli al frate premostratense Corrado di Marburgo,

inquisitore e acceso sostenitore in Germania delle crociate. La principessa rimase ve-

dova nel 1227, dopo la morte di Ludwig sopraggiunta per peste, ad Otranto, ancor

prima che s’imbarcasse per la Terra Santa. In seguito, la langravia, allontanata dalla

corte dai fratelli del marito, si trasferì a Marburg dove, assistita da fra Corrado, sua

guida spirituale, condusse una vita poverissima, dedita alla carità e alla cura dei più

bisognosi e degli ammalati, distribuendo i propri beni e impiegando la sua dote in

opere pie. Nel 1231, a soli ventiquattro anni, si spense a causa degli stenti e delle

privazioni. Attorno alla sua sepoltura, divenuta, subito dopo la scomparsa, luogo di

pellegrinaggio da parte della popolazione locale molto legata affettivamente alla

giovane donna, iniziarono a verifi carsi eventi prodigiosi tali da richiedere, nel 1233,

l’istruzione del processo di canonizzazione. Il 27 maggio del 1235, a Perugia, Gre-

gorio X proclamava la santità di Elisabetta, per la cui causa canonizationis si erano

mobilitate le grandi potenze politiche del tempo: la famiglia dei langravi di Turingia,

l’Ordine Teutonico, nella persona del langravio Corrado, Gran Maestro dell’Ordine, e

soprattutto l’imperatore Federico II di Hohenstaufen, che, successivamente, si recò

personalmente a rendere omaggio alla tomba della neo santa3.

Esattamente quaranta anni dopo la morte di Elisabetta, a Saragozza nasceva Isabella

dall’unione di Pietro III d’Aragona e Costanza di Sicilia. L’infanta aragonese visse la

v a r i a · a l l e o r i g i n i d e l l a m e m o r i a f i g u r a t i v a

fig.1 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. veduta d’insieme.© bildarchiv foto marburg

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 2 2 3

sua infanzia alla corte di Barcellona fi no a quando, nel 1282, appena dodicenne, andò

in sposa a Dinis, giovane re del Portogallo. Nel corso della sua esistenza, Isabella

svolse un’intensa attività diplomatica, all’estero, nell’ambito della politica peninsulare

portata avanti dal marito, e nel suo regno, quando intervenne nello scontro fra il re e

il fi glio ed erede al trono, Afonso, scontro degenerato nella guerra civile che, a più ri-

prese, si protrasse dal 1319 al 1324. A seguito della morte del consorte, la regina ma-

dre decise di ritirarsi a Coimbra nel palazzo fatto appositamente costruire in prossimità

del Monastero di santa Clara e di sant’Isabel da lei fondato dove, dedita alla preghiera

e all’assistenza dei più bisognosi, trascorse il resto della sua vita conclusasi nel 1336.

Per la canonizzazione di Isabella, nota alla Cristianità come sant’Elisabetta del Porto-

v a r i a · a l l e o r i g i n i d e l l a m e m o r i a f i g u r a t i v a

fig.2 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. veduta generale della tomba all’interno del coro basso della chiesa. © foto dell’autore fig.3 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. © foto dell’autore

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 92 2 4

4. Anche per sant’Isabella mi limiterò a menzio-

nare soltanto alcune opere, anche oggi di rife-

rimento: Vasconcelos, António de. 1893-1894.

Evolução do culto de Dona Isabel de Aragão

esposa do rei Lavrador Dom Dinis de Portugal

(a Rainha Santa). Coimbra: Imprensa da Univer-

sidade, 2 voll.; 1999. Imagen de la Reina San-

ta: Santa Isabel, infanta de Aragón y reina de

Portugal, Zaragoza, Real Capilla de Santa Isabel

(San Cayetano), 13 de mayo-4 de julio. Zarago-

za: Diputación Provincial de Zaragoza, 2 voll.

5. Della copiosa bibliografi a sul tema della santi-

tà nel Medioevo, si veda: Vauchez, André. 1989.

I laici nel Medioevo: pratiche ed esperienze reli-

giose, Milano: Mondadori; Idem. 1989. La san-

tità nel Medioevo, Bologna: Il Mulino; Idem.

1990. Ordini mendicanti e società italiana XIII-

XV secolo, Milano: Mondadori; Idem. 1993. La

spiritualità nell’Occidente medievale, Milano:

Mondadori; Idem. 2000. Santi, profeti e visio-

nari. Il sopranaturale nel Medioevo, Bologna: Il

Mulino; nello specifi co, sulla santità femminile

nel Medioevo, si veda: Muñoz Fernandez, An-

gela. 1988. Mujer y experiencia religiosa en el

marco de la santidad medieval, Madrid; Klani-

czay, Gabor. 1995. I modelli di santità femmi-

nile fra i secoli XIII e XIV in Europa centrale e in

Italia. In Graciotti, Sante, Vasoli, Carlo (a cura

di). 1995. Spiritualità e lettere nella cultura ita-

liana e ungherese del Basso Medioevo, Firenze,

79-109.

gallo, ma per la Chiesa portoghese semplicemente come la Rainha Santa, si dovette

attendere quasi tre secoli: beatifi cata da Leone X nel 1516, su richiesta del re por-

toghese Manuel, fu elevata agli onori degli altari soltanto il 25 maggio del 1625 a

seguito dell’intervento risolutivo di Filippo III, all’epoca re di Spagna e Portogallo4.

Dal punto di vista storico biografi co, sono ravvisabili alcune analogie fra la vita di

Elisabetta e quella di Isabella; anche sul piano più propriamente spirituale numerose

sono le affi nità fra le due donne: entrambe rappresentano un modello femminile di

santità laica, entrambe sono ricordate per la loro religiosità nel contempo attiva e

devota5.

In realtà, ad unirle fu innanzitutto un legame di parentela diretto: i nonni, da parte

paterna, erano Jaime I el Conquistador e Jolanda d’Ungheria, sorella di Elisabetta di

cui era dunque pronipote. Anzi, proprio per rendere omaggio alla sua illustre fami-

liare, le fu dato il nome di Isabel, traduzione portoghese di Elisabetta. Nella scelta

del nome, il suo destino: senza temere d’incorrere in errore, si può affermare che

sant’Elisabetta costituì un esempio da imitare e a cui ispirarsi per Isabella d’Aragona.

Il ricordo di sant’Elisabetta torna nel corso di tutta l’esistenza di Isabella: a lei e alla

madre del Secondo Ordine, santa Chiara, la regina decise di dedicare la chiesa del

monas tero clariano fondato a Coimbra durante la cerimonia di consacrazione dell’8

luglio del 1330. Il tempo ha cancellato la duplice intitolazione, conservando solo

quella di santa Clara, ma è un vero peccato che ciò sia avvenuto poiché essa costituisce

una possibile chiave di lettura per interpretare il monumento; d’altra parte ritengo

v a r i a · a l l e o r i g i n i d e l l a m e m o r i a f i g u r a t i v a

fig.4 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare, cristo tra gli apostoli. © bildarchiv foto marburg

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6. Si veda: Prata Figueira, Ana Paula Santos.

2000. A fundação do mosteiro de Santa Clara

de Coimbra. Da instituição por D. Mor Dias à

intervenção da rainha Santa Isabel. Dissertação

de mestrado em História Medieval. Faculdade de

Letras, Universidade de Coimbra: texto polico-

piado, 2 vol. Rossi Vairo, Giulia. 2001. Isabella

d’Aragona, Rainha Santa de Portugal, e il Mo-

nastero di Santa Clara e Santa Isabel di Coimbra

(1286-1336). Collectanea Franciscana, 71/1-2,

pp.139-169. Macedo, Francisco Pato de. 2006.

Santa Clara-a-Velha de Coimbra. Singular mos-

teiro mendicante. Dissertação de doutoramento

em História da Arte Medieval. Faculdade de Le-

tras. Universidade de Coimbra: Coimbra: texto

policopiado. Idem 2009. Isabel de Aragão em

Santa Clara a Velha de Coimbra. Anais VII EIEM

– Encontro Internacional de Estudos Medievais.

Idade Média: permanência, atualização, resi-

dualidade. Fortaleza – Rio de Janeiro: Premius

Editora, 304-328.

7. Fra il XIII e il XIV secolo in Portogallo sor-

sero nove monasteri tutti dedicati alla memoria

di Santa Chiara: a Entre-os-Rios nel 1256-58,

poi trasferito a Oporto nel 1416; a Lamego,

nel 1258, poi trasferito a Santarém nel 1259;

a Coimbra, nel 1286, rifondato nel 1314-17; a

Lisbona nel 1288; a Vila do Conde nel 1317; ad

Amarante, nel 1333; a Guarda, nel 1344; a Beja

nel 1343-45; a Portalegre, nel 1370; si veda:

Andrade, Maria Filomena de. 2005. O processo

fundacional dos conventos de clarissas no Por-

tugal medievo. Fundadores, fundaciones y espa-

cios de vida conventual: nuevas aportaciones al

monacato femenino, coord. María Isabel Vifor-

cos, Maria Dolores Campos Sánchez – Bordona.

León: Universidad de León, 79-102.

8. Per una descrizione dell’Elisabethschrein e

della sua decorazione, si veda Kindler, Anette.

2007. Scheda 129. In Blume 2007, 2, 201-206.

9. Per una descrizione approfondita della tom-

ba e del suo programma iconografi co, si veda

Macedo, Pato. 1999. O túmulo gótico de Santa

Isabel. In Imagen de la Reina Santa: Santa Isa-

bel, 1, 93-114.

sia altrettanto signifi cativa la sua perdita, dal momento che esso, dopo la morte della

sovrana, diventerà a tutti gli effetti il mausoleo della Rainha Santa6.

Sempre nell’intento di glorifi care la memoria della prozia e, in continuità con la pie-

tosa tradizione da lei avviata, nel 1327 Isabella fece costruire, nelle immediate vici-

nanze del monastero, un ospedale intitolato a sant’Elisabetta per prestare soccorso

poveri e ammalati, alla cui assistenza avrebbe provveduto la comunità del cenobio

e, all’occasione, lei stessa.

Alla luce di questi fatti, si può dire che il culto della santa di Turingia sia stato, se

non proprio introdotto – ma non mi risultano in Portogallo chiese e monasteri a lei

dedicati prima dell’intervento in tal senso della regina –7, sicuramente alimentato e

incoraggiato dalla pronipote, da sempre vicina alla spiritualità francescana.

Anche dal punto di vista iconografi co, è interessante osservare alcune similitudini fra

sant’Elisabetta e sant’Isabella: esse infatti hanno in comune vari attributi che ne con-

sentono una rapida identifi cazione: la corona, le rose, l’essere rappresentate in abito

da terziaria francescana, soprattutto in epoca moderna per la prima (sebbene nessuna

delle due abbia mai professato nel Terzo Ordine) e addirittura scene ed episodi che

le vedono protagoniste singolarmente, quando le si rappresenta dedite alla cura e

all’assistenza di malati, poveri, lebbrosi, intente a distribuire cibo ed elemosine. Tale

è la sovrapposizione fra l’iconografi a delle due sante in alcune opere, in particolare di

pittura, che talvolta bisogna ricorrere alla loro datazione per non incorrere in errore.

Rimanendo su questo piano, desidero soffermarmi su quelle che sono da considerarsi

le prime testimonianze iconografi che relative alle due sante, le prime immagini cui far

risalire la loro memoria, prima che la storia e gli uomini intervenissero a modifi carne

il ricordo, ovvero: l’Elisabethschrein, l’arca reliquiario conservata nella sacrestia della

chiesa di sant’Elisabetta a Marburg, opera di maestranze di area renana, eseguita fra

il 1235/6 e il 12498, e la monumentale tomba di Isabella, frutto della collaborazione

del maestro aragonese Pero e del maestro Telo di Lisbona, sicuramente pronta al

momento della consacrazione della chiesa di santa Clara e sant’Isabel e oggi all’in-

terno del coro della chiesa del monastero seicentesco di santa Clara a Nova, sempre

a Coimbra9. In realtà, assieme al reliquiario, per Elisabetta devono essere contemplate

anche le splendide vetrate della cappella maggiore della chiesa di Marburgo, non

solo perché la loro realizzazione è praticamente coeva allo schrein, ma anche per la

perfetta corrispondenza iconografi ca e concettuale riscontrabile fra i programmi deco-

rativi delle due opere, entrambe eseguite per celebrare la vita della santa, sebbene

con fi nalità lievemente distinte; e seppure il confronto verterà principalmente fra lo

schrein e la tomba, quando la circostanza lo richiederà, si farà esplicito riferimento

anche alle vetrate.

Prendendo in esame le prime opere realizzate per eternare il ricordo delle due donne,

l’arca reliquiario e il monumento, possiamo osservare delle interessanti corrispon-

denze ed analogie, così come delle signifi cative differenze: in entrambi i casi, esse

furono destinate ad ospitare i loro resti mortali di cui costituiscono il primo deposito.

Nel caso di Elisabetta, a seguito della canonizzazione, si procedette alla dissezione

del corpo more teutonico, come era in uso presso alcune monarchie, ad esempio in

v a r i a · a l l e o r i g i n i d e l l a m e m o r i a f i g u r a t i v a

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10. Il reliquiario della testa di S. Elisabetta,

identifi cato come tale su base indiziaria solo nel

1955, si trova allo Statens Historika Museum di

Stoccolma. Si tratta di un cosiddetto “reliquiario

coronato”: si dice infatti che Federico II giunto

in pellegrinaggio sulla tomba di Elisabetta abbia

voluto coronarne il capo. Di conseguenza, s’im-

pose d’urgenza la realizzazione di un reliquiario

apposito (1235/6). Esso è il risultato dell’assem-

blaggio d’oggetti di diversa tipologia: un calice

in oro con il bordo, i manici e il piede decorati da

pietre preziose, ricostruzione di un antico calice

forse della fi ne del X secolo. Nel XIII secolo ven-

ne posizionato su di un nodo di raccordo con un

piede d’argento e coperto da una calotta su cui

è inserita una corona. Il reliquiario del braccio di

S. Elisabetta, manufatto di raffi nata orefi ceria e

pietre preziose, si trova nella Schlosskapelle di

Bendorf-Sayn e si ritiene essere stato realizzato

fra il 1240/50. Sui reliquari di S. Elisabetta, si

veda: Reudenbach, Bruno. 2007. Kopf, Arm und

leib. Reliquien und reliquiare Der heligen Elisa-

beth. In Blume 2007, 1, 193-202.

11. Fu proprio l’Ordine Teutonico ad innalzare a

proprie spese la prima chiesa dedicata a Elisabet-

ta di Turingia, sancendo la nascita del culto litur-

gico dopo la traslazione in loco delle sue spoglie

mortali nel 1249, la chiesa mausoleo di S. Elisa-

betta di Marburgo. La costruzione fu avviata nel

1236 ed il cantiere si protrasse nel tempo, ve-

nendo ad acquisire forme e dimensioni maesto-

se: alla sua decorazione e ornamento concorse-

ro maestri di diversa provenienza e, a tutt’oggi,

essa custodisce opere d’arte, manufatti e arredi

straordinari. Sui rapporti fra Elisabetta e l’Ordi-

ne teutonico, si veda il volume: Arnold, Udo e

Liebing, Heinz (a cura di). 1983. Elisabeth, der

Deutsche Orden und ihre Kirche: Festschrift zur

700 jährigen Wiederkehr der Weihe der Elisa-

betkirche Marburg (Quellen und Studien zur Ge-

schichte des Deutschen Ordens, 18), Marburg:

Elwert Verlag e Boockmann, Hartmut. 1981.

Die Anfänge des Deutschen Ordens in Mar-

burg und die frühe Ordensgeschichte. In Sankt

Elisabeth: Fürstin, Dienerin, Heilige, 137-150.

Francia o in Inghilterra, per cui fu necessario creare più reliquiari che accogliessero

le diverse porzioni delle sante spoglie, per alimentare e allo stesso tempo controllare

il culto della neo santa10. Lo schrein conserva la maggior parte delle ossa (la parte

considerata più pregiata del corpo del santo, perché più duratura nel tempo) e ini-

zialmente fu collocato nel coro orientale della chiesa, in corrispondenza dell’altare

principale, nello spazio conventuale accessibile solo ai frati dell’Ordine Teutonico11,

seppure visibile anche dall’esterno. Così, il sepolcro, che fi no alla canonizzazione

aveva custodito il cadavere, al momento della traslazione delle spoglie rimase com-

pletamente vuoto, eppure offerto alla devozione dei pellegrini nella navata setten-

trionale della chiesa.

La morte colse Isabella il 4 luglio del 1336 ad Estremoz, dove si era recata per cer-

care di portare la pace fra il fi glio, Alfonso IV, e il nipote, Alfonso XI, re di Casti-

glia venuti ancora una volta a contesa. Subito si pensò di trasportare il corpo a

Coimbra, luogo eletto dalla regina madre per la propria sepoltura, nonostante la

stagione calda e la notevole distanza fra le due città scoraggiasse l’impresa. Per

meglio affrontare il viaggio, preservare l’integrità del cadavere ed evitarne la de-

composizione, si procedette all’imbalsamazione, pratica di origine orientale assai

diffusa nei paesi dell’Europa meridionale. Per il trasferimento, il corpo fu posto

in una semplice cassa di legno ricoperta di cuoio. Arrivata a Coimbra dopo sette

giorni di viaggio, essa fu inizialmente vegliata all’interno del coro dalla comunità

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fig.5 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare, la crocifissione. © bildarchiv foto marburg

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di clarisse, per poi essere inserita all’interno del monumento funerario collocato

in una cappella fatta costruire di proposito ancora in vita Isabella, ovvero in uno

spazio pubblico accessibile ai fedeli, sebbene la tomba sia stata quasi da subito

circondata da alte grate di ferro per scongiurare eventuali profanazioni. Il sarco-

fago custodì il corpo della regina fi no al 1677, quando, a causa delle frequenti e

distruttive piene del Mondego che ciclicamente invadevano la chiesa e i locali del

monastero, si decise la sua traslazione presso la chiesa del nuovo monastero di

Santa Clara a Nova, costruito su di un’altura, lontano dalle acque del fi ume. In quest’

occasione, il cadavere della regina fu riposto all’interno di una nuova teca in argento

e cristallo, collocata nella cappella maggiore, in posizione sopraelevata e dietro l’al-

tare. Anche l’antico monumento fu trasferito nel nuovo monastero e sistemato nel

coro delle clarisse, nel rispetto delle volontà espresse dalla regina nel suo secondo

testamento redatto nel 1327.

Sia lo schrein di Elisabetta che la tomba di Isabella sono capolavori d’arte plastica,

sebbene realizzati con l’impiego di materie prime e tecniche diverse, straordinari per

la loro fattura, caratterizzati da una materialità e una concretezza appositamente

ricercate, affi nché i visitatori potessero stabilire con essi un contatto visivo e tattile,

se non fosse per gli espedienti messi in atto per scoraggiare il fanatismo dei devo-

ti. Essi hanno la funzione di conferire “consistenza” all’immagine di colei i cui resti

custodiscono. Sono opere preziose e pregiate anche per la qualità dei materiali uti-

lizzati: se per lo schrein di Elisabetta ciò risulta del tutto evidente, anche l’opzione

della pedra de Ança, tipica della regione di Coimbra, per la tomba di Isabella è frutto

di una scelta meditata e indicativa di un’appartenenza.

Ma già soffermandosi su questi primi elementi emerge una signifi cativa differenza: lo

schrein custodisce le spoglie proclamate sante della langravia Elisabetta ed è proprio

per questo motivo che viene commissionata un’opera tanto preziosa e speciale. Così

non è per la regina Isabella che, al momento della collocazione del cadavere all’inter-

no del sarcofago, santa ancora non è, seppure molto amata, già appellata come bena-

venturada, ovvero beata, da coloro che lo scortano in corteo da Estremoz a Coimbra,

e che, per altro, ha disposto personalmente l’esecuzione del suo monumento, aspetto

da non sottovalutare e sul quale tornerò opportunamente in seguito.

In entrambi i casi, il corpo (o quel che restava di esso) è oggetto, subito dopo la

morte, di devozione pubblica e privata: pubblica, da parte dei fedeli e dei pellegrini

accorsi sul luogo della sepoltura; privata, da parte della comunità conventuale che

ne custodisce gelosamente il ricordo, ovvero i frati dell’Ordine Teutonico per Elisa-

betta, le clarisse per Isabella. Ma mentre per Elisabetta viene studiato un espediente

per tutelare l’esclusività dei frati, conservando in uno spazio loro riservato le spoglie

all’interno del prezioso reliquario e offrendo ai pellegrini un locale apposito dove pre-

gare, una cappella, costruita sul luogo della tomba originaria ormai vuota, nel tempo

dotata di un altare, di un nuovo monumento con copertura a baldacchino, retabli,

affreschi, statue, per Isabella non vengono rispettate le prerogative delle clarisse e

il corpo della regina è collocato in uno spazio sì accessibile ai pellegrini, al di là della

grata del coro, ma circondato da alte inferriate.

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fig.6 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare del rilievo di sant’elisabetta a figura intera.© bildarchiv foto marburg

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Lo schrein fu commissionato per sostituire la semplice cassa di legno che aveva inizial-

mente ospitato il corpo di Elisabetta: raffi nato manufatto di orefi ceria, realizzato con il

concorso di diverse tecniche e l’applicazione di perle, gemme, pietre preziose e semi-

preziose, su di una base di rame dorato e argento, ha le forme, non casuali, di un edi-

fi cio a sala con transetto, tanto che per esso si è parlato di micro-architettura. Sotto

gli archi trilobati e i frontoni ogivali dei lati lunghi si trovano: da una parte, al centro,

Cristo assiso in trono benedicente fra sei apostoli, anch’essi seduti; dall’altra, la scena

della Crocifi ssione – oggi non più integra poiché manca il crocifi sso e sono visibili solo

le fi gurine di san Giovanni e della Madonna – fra i restanti sei apostoli; sui lati brevi,

da una parte, la Vergine Maria, patrona dell’Ordine Teutonico e prima dedicataria

della chiesa di Marburg, con il Bambino in braccio, e, dall’altra, sant’Elisabetta; sui

lati spioventi dell’arca sono scolpite in bassorilievo otto scene della vita della santa.

Il programma iconografi co dello schrein fu deciso da altri e deve essere sicuramen-

te letto in relazione alle prime fonti agiografi che, redatte immediatamente dopo la

morte della donna: con esso si è voluto non solo glorifi care la santa, ma anche rac-

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fig.7 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare dei rilievi di uno dei lati spioventi del reliquiario: primo piano del langravio ludwig, nell’atto di congedarsi da elisabetta. © bildarchiv foto marburg

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12. Caesarius von Heisterbach, Das Leben der

Heiligen Elisabeth, ed. Könsgen, Ewald. 2007.

Marburg: Veröffentlichungen der Historischen

Kommission für Hessen; Theodoricus de Apol-

da, Das Leben der Heiligen Elisabeth, ed. Rener,

Monika. 2007. Marburg: Veröffentlichungen der

Historischen Kommission für Hessen.

13. Sulla relazione fra Elisabetta d’Ungheria e

Corrado di Marburgo, si veda Werner, Matthias.

1981, Die heilige Elisabeth und Konrad von

Marburg. In Sankt Elisabeth: Fürstin, Dienerin,

Heilige, 70-77.

contare il suo percorso spirituale verso la santità12. Disposti in ordine cronologico, gli

otto rilievi devono essere letti da destra verso sinistra, a partire dal lato lungo dove

è rappresentata la Maestà di Cristo: cinque sono biografi ci, i restanti tre indicativi

dell’attività assistenziale della langravia. Le tre scene iniziali narrano la “preistoria”

di Elisabetta: il langravio Ludwig IV, suo sposo, è protagonista assoluto del primo

rilievo assieme al vescovo Corrado di Hildesheim, ritratto nel momento in cui accetta

di portare la croce, ovvero di aderire alla crociata; nel secondo è l’addio fra i due

coniugi, avvinti in un tenero abbraccio, persi l’uno nello sguardo dell’altro; nel terzo

è la scena in cui due uomini abbigliati come pellegrini porgono alla giovane donna

i resti del marito raccolti in una sacca e la fede nuziale. Da questo momento in poi

Elisabetta smetterà gli abiti regali per vivere pienamente la sua vedovanza e dedicarsi

alla carità: così è ritratta nel quarto rilievo, intenta nell’atto di donare i suoi beni e le

sue vesti ai poveri. Nelle scena immediatamente successiva è rappresentata mentre

riceve l’abito dal suo confessore e guida spirituale, colui che per primo proclamerà la

sua santità, fra Corrado di Marburgo13. Di seguito, è raffi gurata mentre mette in atto

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fig.8 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare dei rilievi di uno dei lati spioventi del reliquiario: sant’elisabetta dona i suoi abiti ai poveri e sant’elisabetta accoglie i pellegrini della terra santa che recano i resti dello sposo ludwig. © bildarchiv foto marburg

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gli insegnamenti di Cristo: quando distribuisce elemosine ai poveri; quando nutre gli

affamati; quando offre da bere agli assetati e mentre è intenta nella lavanda dei piedi.

La complessità del programma iconografi co dello schrein è evidenziata dai rimandi

concettuali fra i rilievi dei due lati: ad esempio, alla prima scena con Ludwig prota-

gonista che sposa la causa della Crociata, corrisponde quella in cui Elisabetta, a suo

modo, accetta di portare la croce, quando riceve l’abito e con esso abbraccia una vita

di penitenza, rinuncia e abnegazione. Questo passaggio è sottolineato dalla scena

della Crocifi ssione che campeggia al centro del fi anco che presenta i rilievi dedicati

all’Elisabetta soror in saeculo.

fig.9 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare del rilievo di uno dei lati spioventi del reliquiario: sant’elisabetta che riceve l’abito da fra corrado di marburg. © bildarchiv foto marburg

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14. Kindler, Anette. 2007. Das Marburger Fen-

ster. In Blume 2007, 2, 234-238.

Nelle vetrate della cappella maggiore della chiesa sono narrate le Storie della vita

di sant’Elisabetta, corrispondenti in tutto e per tutto a quelle rappresentate sul re-

liquairio, per la scelta degli episodi, l’iconografi a dei personaggi, la composizione

delle scene, tanto da far supporre che alcune maestranze impegnate nell’uno furono

attive anche nelle altre; di certo furono realizzate in contemporanea, dal momento

che erano sicuramente pronte entro il 1249-5014. Le fi nestre che erano offerte allo

sguardo diretto dei pellegrini per alimentare la loro devozione ed invitarli a seguire

l’esempio della santa, presentano dodici scene, ovvero quattro in più rispetto allo

schrein; sono disposte su due colonne e devono essere lette dal basso verso l’alto.

Senza voler sviluppare il tema delle analogie e delle differenze fra un’opera e l’altra,

vorrei solo ricordare che fra le scene aggiunte nelle fi nestre è l’ospitalità di Elisabetta

a due pellegrini e il momento del trapasso di Elisabetta, ritratta sul letto di morte

mentre un angelo porta in cielo la sua anima che ha le fattezze di un neonato.

Complessivamente, l’immagine di sant’Elisabetta che ci restituiscono questi due ca-

polavori è di grande umanità, umiltà e semplicità; eppure l’iconografi a della santa

subirà nel giro di pochissimi anni una trasformazione sostanziale. La giovane donna

sobriamente abbigliata, il volto incorniciato da bende, come era uso per le donne

maritate all’epoca, in testa una sorta di berretto che nasconde i capelli raccolti in un

lezioso chignon e, una volta morto il marito, la vedova dalle chiome coperte dal velo,

il più delle volte scalza e priva di qualsiasi ornamento, con indosso una tunica stretta

in vita dalla corda, in cui sono evidenti tre nodi allusivi ai voti di obbedienza, castità e

povertà, e un lungo manto anonimo, lascerà presto posto all’immagine sofi sticata della

bella principessa, elegantemente vestita, abbellita da qualche gioia e soprattutto dalla

corona, saldamente fi ssata sul velo, spesso impreziosito da trame raffi nate, che le co-

pre il capo da cui il più delle volte spuntano le bionde chiome sciolte o raccolte in gra-

ziose acconciature (così appare anche nel monumento di Isabella d’Aragona). Inoltre,

se prendiamo in considerazione il rilievo a fi gura intera, lievemente aggettante, pre-

sente su uno dei lati brevi del reliquario, ciò risulta ancora più evidente: qui la santa è

rappresentata priva di qualsiasi ornamento, essenziale nella sua semplicità, il volto e il

collo fasciati, veste un pesante mantello dal fi tto panneggio che non lascia intravedere

le forme; unico attributo distintivo, un libro con la copertina decorata da alcune pietre

preziose, le Sacre Scritture, che stringe fra le mani e in cui risiede tutta la sua forza.

In tutti i modi, sia nella prima che nella seconda versione, non fu certo Elisabetta

a stabilire come avrebbe dovuto essere ricordata, ma sono altri che decidono come

vogliono conservarne e tramandarne la memoria, aggiungendo o togliendo elementi

identifi cativi della sua persona a seconda della loro percezione della sua santità.

Lo stesso non si può certo dire per il monumento funerario di Isabella d’Aragona: fu

realizzato ancora in vita la regina, la sua collocazione fu disposta proprio da lei e fu

lei stessa a dare indicazioni sull’iconografi a della tomba che rifl ette l’immagine con

cui Isabella vuole essere ricordata dai posteri.

Nel gennaio del 1325 la sovrana ha perso il consorte, il re Dinis; poco dopo, nel

luglio del 1326, anche l’amata nipotina Isabel che aveva tenuto a battesimo,

muore: ormai vedova, medita sulla sorte comune a tutti i mortali che l’attende e

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15. Ariès, Philippe. 1975. Storia della Morte in

Occidente dal Medioevo ai giorni nostri, Milano:

Rizzoli, 49.

commissiona l’esecuzione del suo sepolcro. Ma, come scrive Philippe Ariés, “nel-

lo specchio della propria morte, ogni uomo riscopriva il segreto della sua indivi-

dualità” (ARIES, 1975, 49)15: così Isabella stabilisce che il suo monumento debba

essere un unicum, che si distingua nettamente da quello del marito – si servi-

rà di altri maestri e opterà per un diverso programma decorativo –, se non fos-

se per quell’iniziale scelta di collocare la tomba di fronte all’altare della cappella

maggiore, al centro della navata mediana della chiesa da lei fondata, come aveva

già fatto il reDinis per il suo sarcofago nella chiesa del Monastero di S. Dinis e

S. Bernardo di Odivelas.

Per la maggior parte della sua esistenza Isabella è regina e da regina muore. Colpisce

nella ricca decorazione scultorea dell’arca, solo apparentemente di facile interpreta-

zione, la sua statua giacente: è rappresentata vestita con l’abito dell’Ordine di santa

Chiara, su cui indossa un lungo mantello, che però, negli orli ricamati e dorati della

maniche e della veste, tradisce una certa preziosità; ai piedi dei calzari dalla punta

molto accen tuata, ostentazione del lusso di chi le indossa; il capo è coperto dal velo,

fermato dalla corona, ed è protetto da un baldacchino che rievoca nelle forme certe

strutture gotiche del tempo, riccamente decorato con rilievi al suo esterno; la vita è

cinta da una lunga corda che riporta ben sei nodi, più un ornamento che un simbolo;

le mani sono incrociate poco al di sotto del petto e la destra è adagiata su di un pic-

colo libro d’ore chiuso. In evidenza sono gli oggetti allusivi al pellegrinaggio che la

fig.10 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. particolare dei calzari. © foto dell’autore

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16. Su Isabella d’Aragona pellegrina a Santiago

de Compostela, si veda Baquero Moreno, Hum-

berto. 2002, Santa Isabel, rainha de Portugal,

peregrina a Santiago, in Portugal na memória

dos peregrinos. Actas de las Jornadas sobre

o Caminho de Santiago (Porto, 29-30 marzo

2001), Santiago de Compostela, 17-26.

sovrana compì a Santiago di Compostela nel 1325 dopo la morte del marito e, in senso

lato, alla sua condizione di pellegrina sulla terra: sulla destra, il bastone, sulla sinistra,

la borsa a tracolla, decorata da una conchiglia e ripiena di monete ben visibili16. Lungo

il corpo, gli stemmi che ricordano, e ricorderanno per sempre, le origini e l’attuale

presente della giacente: in una sequenza che si ripete su entrambi i lati, secondo un

ordine diverso, sono rappresentati lo scudo della Corona portoghese, lo scudo della

Corona d’Aragona e lo scudo con l’aquila imperiale di Federico II Hohenstaufen; al

di là delle ripitture dei secoli successivi, il volto appare ben delineato, non segnato

dall’età, anzi vigoroso e sereno, gli occhi spalancati sull’eternità che l’attende.

Non si può certo dire che nella rappresentazione della defunta domini l’umiltà, bensì

l’umanità intesa come individualità: è un’immagine di forza – ricordiamo che quando

l’opera fu scolpita Isabella aveva fra i 54 e i 59 anni, ha fatto il suo percorso di vita

e opera una scelta consapevole –, di sontuosità, di prestigio, di orgoglio per le pro-

prie origini quella che ci restituisce il monumento: esso “non è più contrassegno del

luogo dell’inumazione, ma è già commemorazione del defunto, immortale fra i santi

e celebre fra gli uomini” (ARIES, 1975, 101).

fig.11 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. particolare, le sante chiara, caterina d’alessandria ed elisabetta d’ungheria. © foto dell’autore

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Nella tomba di Isabella, a differenza del reliquiario di Elisabetta, non c’è narrazione,

non c’è menzione della “preistoria” della futura santa, se non per quegli scudi che

rimandano alle origini dinastiche della sovrana, c’è solo l’hic et nunc. Il re Dinis non

fi gura affatto, a differenza del caso della langravia dove il marito è protagonista as-

soluto nella scena iniziale e assieme a lei nelle due successive, in corpore et in spiritu:

si può dire che lo schrein celebri la santità della coppia dei langravi, anche se, formal-

mente, soltanto Elisabetta è elevata agli onori degli altari (il marito sarà solo beati-

fi cato). Eppure anche Dinis, oltre ad essere il compagno di una vita, con alti e bassi,

ha avuto un ruolo nell’evoluzione del percorso spirituale di Isabella: insieme hanno

incoraggiato la diffusione degli Ordini Mendicanti e di altri movimenti religiosi nel

territorio del regno; insieme hanno sostenuto con dotazioni e donativi monasteri ed

ospedali; insieme hanno intrapreso e condiviso attività caritative per i più bisognosi;

ma il ruolo svolto dal re in tal senso non viene ricordato nel monumento.

Nonostante ciò, a ben vedere, esistono delle analogie fra l’arca reliquiario di Elisa-

betta e il sarcofago di Isabella, ravvisabili in alcuni temi iconografi ci che si ripetono

nell’uno come nell’altra: così, come nel riquadro che illustra la morte della santa nelle

vetrate di Marburg, anche al centro del lato esterno del baldacchino della tomba della

regina compare il motivo dell’elevazione in cielo dell’animula della defunta, secondo

un modello iconografi co d’origine bizantina assai diffuso nel Medioevo in tutta Eu-

ropa. All’interno di un medaglione quadrilobato, un angelo con le ali spiegate reca

su di un panno l’anima della regina, rappresentata come una bambina, nuda e con le

mani giunte. In entrambe le opere torna il tema del pellegrinaggio: nel caso di Eli-

sabetta, in un rilievo dello schrein gli uomini che le comunicano la morte del marito

vestono da pellegrini, ma anche nelle vetrate, in uno degli episodi aggiunti, fi gura

la langravia che accoglie due uomini chiaramente abbigliati come pellegrini, uno dei

due con indosso il caratteristico cappello a falde larghe e a tracolla la bisaccia con tre

conchiglie. Nel monumento è Isabella che si presenta come pellegrina dell’apostolo

di Compostela: ancora una volta è lei la protagonista, in qualche maniera “racconta”

l’esperienza realmente vissuta, quando, dopo la morte del marito, si recò sulla tomba

dell’Apostolo per raccomandare al santo l’anima dei sui cari defunti. Presenta alcuni

attributi identifi cativi del pellegrino, il bastone, la borsa su cui campeggia la famosa

conchiglia, però stride quella sacca piena di monete, allusiva alla generosità nel di-

stribuire elemosine, ma anche alla ricchezza della sua proprietaria.

Altra interessante analogia è nella raffi gurazione di Cristo fra gli apostoli, presente

nel reliquiario. Però, nell’archetta – reliquiario di Elisabetta, si tratta di un Cristo

benedicente, assiso in trono fra gli apostoli distribuiti sui due lati lunghi e, inoltre, nel

secondo fronte essi sono disposti attorno alla scena della Crocifi ssione; nel sarcofago

di Isabella, Cristo fi gura su uno dei lati lunghi dell’arca, è ritratto in piedi, coperto

da un lungo manto mentre mostra i segni della Passione, in mezzo agli apostoli. In

entrambi le opere è rappresentata la professione di fede dei diretti seguaci di Cristo,

nella cui morte e resurrezione risiede la salvezza degli uomini.

Fra la realizzazione del reliquiario di sant’Elisabetta e la tomba di Isabella d’Aragona è

trascorso quasi un secolo: in questo tempo, seppure molto lentamente, è cambiata la

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percezione della santità laica, anche di quella femminile, laddove si è passati dall’exem-

plum estremo incarnato da sant’Elisabetta che opera una scelta di vita radicale di rinun-

cia, di povertà, di penitenza ed obbedienza, alla stregua di S. Francesco, suo punto di

riferimento, alla proposizione di un modello comportamentale differente, più facilmen-

te imitabile, che, seppure ugualmente caratterizzato dalla preghiera e dalla dedizione

verso l’altro, è in realtà connotato dall’esercizio costante delle virtù rimanendo nel

mondo: a questo modello sembra aderire anche Isabella per la sua forma vitae.

È cambiato anche l’atteggiamento degli uomini di fronte alla morte: quello che era

solo un passaggio da un mondo all’altro, è diventato un evento da celebrare affi nché

resti nel ricordo di coloro che sopravviveranno. In questo contesto, l’arte funeraria si

è evoluta in senso realistico e a favore di una maggiore personalizzazione.

Questi cambiamenti, che investono il campo della spiritualità e della mentalità, si

rifl ettono anche nelle due opere che sono il prodotto di una temperie culturale e

spirituale precisa. Ma, sebbene in entrambi i casi si tratti di manufatti che vogliono

esaltare la defunta, bisogna sempre però rammentare che per Elisabetta ciò avviene

in maniera passiva, in quanto sono altri ad operare le scelte defi nitive, mentre per

Isabella è lei stessa che, se non proprio in maniera diretta, sicuramente consapevole,

che lavora alla costruzione della sua memoria.

Così sarà anche quando Isabella vorrà ricordare, nella sua tomba, colei a cui nel corso

della sua esistenza si è ispirata: infatti tra i rilievi che ornano il lato breve ai piedi della

fi gura giacente della sovrana, fi gura l’immagine scolpita di sant’Elisabetta accanto a

santa Chiara e a santa Caterina d’Alessandria. Vi è rappresentata secondo l’iconografi a

tradizionale, o per meglio dire, degli inizi del XIV secolo: il velo sul capo fermato dalla

corona, un lungo abito, stretto in vita da una cintura e sopra un mantello chiuso sul

petto da una spilla, la mano sinistra adagiata sul vestito, mentre la destra solleva ben

evidente un libro chiuso, il Libro delle Sacre Scritture. •

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1. (Carvalho 1922, 37). Taxas dos Ofícios

Mecânicos da Cidade de Coimbra no ano de

MDLVVIII. Coimbra, 1922. Cfr. O Regimento dos

Oleiros de Coimbra do século XVI, onde são bem

explícitos os dois procedimentos de impermea-

bilização através da aplicação do vidrado, a uti-

lização de galena a qual se confi gurava com os

procedimentos de mono-cozedura, a utilização

do óxido de chumbo que implicava já um pro-

cedimento mais evoluído, próximo das técnicas

da proto-majólica em que a peça teria que so-

frer por duas vezes a ida ao forno cerâmico, uma

para cozer o barro transformando-o em chacota

e, posteriormente, uma segunda cozedura para

aplicação do vidrado.

Uma das problemáticas em que temos refl ectido nos últimos anos de investigação é a

questão do emprego do azul ou óxido de cobalto com fundentes à base de chumbo,

na produção cerâmica medieval e tardo medieval.

Simbolicamente, o azul, em várias culturas, era tido como a cor do céu, da imensidão

da água e observado pelos pensadores como cor transparente, pura, imaterial e cor do

divino, da verdade e da fi delidade, no que diz respeito às três religiões monoteístas,

e ainda do apego à verdade e ao fi rmamento celeste. Na arte pictórica da cristandade

medieval, o azul é a cor da santidade; cor do manto da Virgem, vestida de túnica

vermelha, que não esquece o apego à vida terrestre (Lexikon.1997.30). Daí que o

seu emprego na arte atingisse grande procura.

A paleta medieval de óxidos corantes para aplicação na cerâmica era constituída

pelo óxido de ferro para obtenção dos amarelos; pelo óxido de cobre para obtenção

dos verdes; pelo manganês, com vários graus de diluição, para obtenção dos roxos,

púrpuras, castanhos e negros; pelo óxido de estanho para obtenção dos brancos;

pelo alcalino de cobre para obtenção dos verdes turquesas e, fi nalmente, pelo óxido

de cobalto, que tanto era utilizado diluído para a obtenção dos azuis como saturado

para obtenção dos negros e mesmo púrpuras.

Nos processos de impermeabilização da chacota cerâmica através do uso do vidrado,

estes corantes eram misturados com um fundente primeiramente à base de galena1;

posteriormente, já a partir, pelo menos, da transição do século XV para o XVI,

a mistura dos óxidos corantes fazia-se com um fundente à base de óxido de chumbo

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

imagens de azul.evidências do emprego do azul cobalto na cerâmica tardo medieval portuguesa

rui andré alves tr indadeInstituto de História da Arte

FCSH-UNL

Agradeço ao Professor Doutor José Custódio Vieira da Silva, nosso orientador de

Doutoramento, pela significativa orientação crítica que em muito contribuiu para a

execução deste texto.

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que, nos documentos medievais portugueses, aparece geralmente denominado de

azougue. Este processo manteve-se até ao presente – principalmente na louça rústica

da Estremadura portuguesa e mais propriamente na zona saloia – com a utilização

somente do fundente de chumbo sobre a pasta cerâmica ou sobre a chacota. Este

processo de “envernizamento” dava às peças a cor vermelha acastanhada, original

da pasta, com acabamento vítreo. Das seis cores base da paleta medieval, três são já

conhecidas e utilizadas nomeadamente na cerâmica europeia desde o Baixo-Império,

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

irão. fragmento de duas grandes placas relevadas (em cima, 43,5x34cm; na base, 38,5x59cm), vidradas a azul de cobalto e decoradas com inscrições corânicas.

cobalto aplicado directamente sobre marna, com fundente de chumbo.

segunda metade do século xiii. museu britânico, londres. cfr. porter, vanetia,

islamic tiles. ed. british museum. london,1995.

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isto é, o cobre, o ferro e o manganês. O estanho, o azul e o azul turquesa, são de

proveniência oriental, resultante do contacto da Europa com a civilização Árabe.

Os três primeiros corantes2, eram já empregues no vidrado cerâmico, conhecido e

aplicado desde a Antiguidade. Encontram-se documentados, por via arqueológica,

em peças cerâmicas de relevo da Pérsia e da Mesopotâmia, datadas de cerca de

VI a.C., nos conhecidos frisos dos “archeiros” e da “caça aos leões” no palácio de

Dário e na porta de Ishtar, da cidade de Babilónia, conservada no Berlim Staaliches

Museum, de cerca 575 a.C.

No mundo romano, durante o período Imperial, o emprego do vidrado em cerâmicas

de uso comum e aplicada na arquitectura encontrava-se sistematizado, na Europa

Ocidental. Com o colapso do Império, durante algum tempo os investigadores duvida-

ram do emprego do vidrado aplicado na louça ainda datável do período do Baixo-

-Império. Porém, esta opinião acabou por fi car invalidada pelo facto de que, na

transição da Antiguidade Tardia para a Alta Idade Média, terem sido encontrados

novos e seguros indícios do uso sistematizado de vidrados em peças cerâmicas Galo-

-Romanas do século V, pese embora que a terracota sigilata, material de barro cozido

brunhido, foi usual na cerâmica comum e ao que parece continuou a sê-lo após as

invasões bárbaras3.

O emprego de uma camada vítrea tanto na cerâmica comum como naquela aplicada

à arquitectura, teve não só como fi nalidade um acabamento mais perfeito das peças,

como também a obtenção de uma impermeabilidade que aumentava a resistência da

peça cerâmica, protegendo a pasta cozida e impedindo que esta se desfi zesse em pó

pela acção dos sais, pelo seu uso e repetido aquecimento no lar, pela absorção das

gorduras e, no que respeita aos revestimentos cerâmicos, pela acção corrosiva do

guano ácido das aves e dos elementos naturais.

No caso das peças empregues na arquitectura, o vidrado permitia um acabamento

brilhante e resistente, de alto efeito decorativo, o mesmo acontecendo à louça de

aparato utilizada como baixela de mesa, consolidando assim a etiqueta medieval.

No século IX, a grande novidade técnica empregue na cerâmica islâmica foi o esmalte

de estanho para a obtenção de superfícies brancas e opacas que, juntamente com

o fundente de chumbo transparente, garantia à peça uma opacidade e brancura das

superfícies vidradas. A divulgação do vidrado de estanho, desde a sua origem até

chegar à Europa, inicia-se provavelmente na China. No Médio Oriente é já conhecido

no Egipto desde a época Sayta, no século X (Caviró 1975, 60).

Importado o procedimento do Oriente para a Península Ibérica, são já conhecidos

no século XI, em Medina Al-Zara, vidrados de estanho em peças de lustro metálico

sobre vidrados estanífero as quais terão sido importadas possivelmente do Oriente.

Em Málaga e Almeria, nos começos do século XI, fabricavam-se ainda peças de refl exo

metálico mas com base cromática dada por engobes brancos, cobertos de branco

de estanho, sob fundente de chumbo, ao contrário das peças de Medina Al-Zara

(Villalba 1983, 34).

Na cerâmica ibérica, o emprego de óxido de estanho parece remontar aos séculos

X e XI, sendo deste período as primeiras notícias da importação deste metal, origi-

2. Por defi nição, podemos distinguir dois géne-

ros de cores; aquelas que são derivadas de pig-

mentos naturais e inorgânicos, que se designam

por pigmentos e as outras, derivadas de produ-

tos orgânicos, vegetais, animais que se denomi-

nam de corantes. Neste texto, por conveniência

da escrita, algumas vezes referir-nos-emos a co-

rante como óxido ou a pigmento.

3. “Durante a monarquia Visigótica, después da

la caida del Império Romano, la qual fue des-

truida por la invasion de los árabes en la oitava

centuria, el mismo estilo de la industria cerâ-

mica, copiado de los romanos , continuaba en

España”. Marti 1996, Vol.II, 66; Passelac 1996,

11-38; Trindade 2006, 177. Mais tarde, observa-

se em Portugal que o hábito de brunir louça se

prolongou até ao século XVI. Vasconcelos 1988,

45.

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

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nário de portos ingleses, para as olarias levantinas (Marti. 1996, 58). Com efeito,

o emprego de estanho como material de cobertura, permitia uma manipulação mais

fácil e resultados mais atractivos para conseguir a opacidade e limpeza da cor branca

do que o emprego da técnica de engobe branco sobre a pasta que, coberta com

óxido de chumbo, deixava sempre uma tez amarelada na peça, como verifi camos nas

produções cristãs da Europa Central.

O vidrado estanífero é composto por uma mistura de óxido de chumbo e de óxido

de estanho, geralmente de três partes de fundente chumbo para uma parte de esta-

nho. Esta fórmula era a empregue em vidrados hispano-mouriscos simples durante

a Idade Média até ao presente. Outra mistura, cronologicamente situada a partir do

início do século XV, consistia em baixar para duas partes de chumbo para uma de

estanho quando o objectivo fosse o de conseguir um vidrado de qualidade superior

e por isso mais espesso e menos brilhante. A esta última fórmula podia também ser

adicionada a sílica, que se mostrava fundamental para uma melhor cristalização do

esmalte, o sódio, sob a forma de sal marinho, usado nas peças de faiança e a alumina

que aumentava a aderência do esmalte ao barro, tornando mais difícil o seu desta-

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

espanha, valência. prato de aparato decorado com motivos a azul sobre

branco de estanho. transição do século xv para o xvi. museu nacional de cerâmica gonzalez marti, valência. cfr.

ferrer, maria paz soler. história de la carámica valenciana. tomo ii . ed vicent

garcia editores, valência. 1988.

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camento. O arsénico é utilizado actualmente na constituição de vidrados estaníferos

mas é provável que a sua utilização seja já ancestral, na melhoria das qualidades deste

acabamento vidrado (Marti. Vol.I. 1996, 59). A fórmula podia ser melhorada com a

adição de outros componentes usados no fabrico do vidro como a cal, a potassa e a

soda, em percentagens mínimas, no intuito de se conseguir um vidro mais encorpado.

Estas últimas fórmulas tiveram o seu início de aplicação a partir dos meados do século

XVI e ainda se encontram correntes em algumas indústrias cerâmicas tradicionais até

praticamente aos nossos dias.

O desenvolvimento destas técnicas fez com que gradualmente, a partir do século X,

o vidrado de estanho começasse a ser vulgarizado tornando-se, a partir do século

seguinte, corrente nos processos de acabamento do material cerâmico, tanto na louça

como em materiais de revestimento (Marti. Vol.I. 1996, 27). Na azulejaria, é a partir

do século XII que o emprego deste corante natural se sistematiza na Península Ibérica

nos meios laborais dos oleiros mouros. Dentro dos dados disponíveis, parece ser do

consenso geral que a introdução da tecnologia do vidrado de esmalte estanífero na

Europa foi feito pelos países do Sul, nomeadamente pela Península Ibérica, onde há

conhecimento do uso deste material pelo menos a partir do século X.

Porém, outra teoria expressa a opinião de que a tecnologia do vidrado estanífero se

introduziu na Europa igualmente por contacto com a civilização islâmica, mas por via

da Itália (Lemmen 1998, 38), sendo essa região o ponto de partida para a execução

da azulejaria e cerâmica na técnica da majólica.

Por outro lado, fi cou demonstrado, em trabalho recente, que as primeiras evidências

conhecidas sobre a presença de óxido de estanho em cerâmica de contexto cristão

europeu são de facto provenientes de Portugal e encontram-se documentadas em

peças dos pavimentos cistercienses, da segunda metade do século XIII, conservadas

na Abadia de Santa Maria de Alcobaça, as quais, em tempo útil, foram sujeitas a

análises físico-químicas (Trindade 2006, 193).

As primeiras notícias do uso deste material para norte dos Pirinéus são mais tardias e

provêem da região de Toulouse e Narbone, datáveis do século XIV, sendo secundadas

por outras ainda mais tardias que referem o uso de esmalte de estanho na região de

Florença, no fi nal do mesmo século (Hennesy 1980, 34).

Em Portugal, uma das fontes mais antigas sobre o fabrico de óxidos corantes foi

escrita pelo próprio D. Duarte, incluída no Livro dos Conselhos ou Livro da Cartuxa

(D. Duarte 1982). Nele está registado um número variado de informações que vão

desde a correspondência até receitas e “mezinhas” para várias enfermidades, além de

outra informação mais curiosa. A forma como vem escrito é extremamente elucida-

tiva do empenho e da atenção que D. Duarte punha nos assuntos que o rodeavam,

tratando-se sem dúvida de um precioso auxiliar de memória escrito pelo próprio rei,

cujo estudo necessário contribui gradualmente para devolver a este monarca a impor-

tância que merece no contexto da dinastia de Avis.

“Cores das pedras que se açharão nos vieiros” é um texto de conteúdo bastante

denso e com uma forma de escrita confusa, não ajudando muito ao seu entendimento;

daí que, segundo cremos, tenha vindo a passar despercebido ao longo dos anos.

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

portugal. palácio nacional de sintra. n.º inv., pns 70. prato de aparato [brasero] em técnica de lustro metálico decoração relevada com gomos radiais. cordas segmentadas com pontuações de azul de cobalto aplicado espessamente. manises, valência, espanha. meados ou segunda metade do século xv. cfr. trindade, rui andré alves trindade. “cerâmica hispano mourisca de reflexo metálico nas colecções do palácio nacional de sintra”. in, vária escrita. cadernos de estudos arquivísticos, históricos e documentais. n.º 8, ed. da câmara municipal de sintra. sintra, 2001. © fotografia de rui trindade

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4. Cfr. Apêndice documental. Doc. 1.

5. A palavra alquímica, de Alquimia, é utilizada

aqui fora do contexto esotérico, geralmente atri-

buído ao termo. Trata-se do manuseamento de

materiais químicos por via empírica, forma que

se afasta da Química, que opera com os mesmos

elementos por via do método científi co.

6. São de referir: Historia Naturalis de Plínio, o

Velho, no seu 36.º volume, onde são abordados

no início da produção de vidro e as composi-

ções dos seus elementos assim como as matérias

corantes; os escritos de Isidoro de Sevilha, da

transição do século VI para o século VII; o tra-

tado De Universo, de Mauro de Mongúcia, do

século IX, onde vem descrita possivelmente a

mais antiga descrição de fornos de fundição de

vidro; em conformidade com o anterior, está o

Codex Luccensis 490 ou I Trattati attorno le Arte

fi gurative in Itália e nella Península Ibérica, de

autor anónimo, possivelmente grego a habitar

em Itália pela centúria de 800 e conservado na

biblioteca de Nápoles; o tratado Mappae Cla-

vícula, anónimo do século X ou do século XI; o

tratado De Coloribus et Artibus Romanorum, do

século X, atribuído a Heraclio, datado da transi-

ção do século XIV para o século XV e o tratado

Memoria del magistério de fare fenestre de vetro

et de colori, de António de Pisa. (Jorge Cordeiro

1983, 7).

7. Cfr. Apêndice documental. Doc. 2.

8, Idem ib..b.

9. Idem ib..c.

10. Idem ib..d.

O texto relata a forma de conseguir cores através de minerais que naquela época

eram simplesmente designados por “pedras”. No texto parecem ser identifi cados

o fulminato de prata, a prata negra, a galena, o acetato cóprico, o verde óxido de

cobre, o branco chumbo, o óxido de ferro e o manganês. Curiosamente não existe

qualquer referência ao azul4.

Neste texto, encontramos também alguns processos de manuseamento alquímico5 de

minerais que importa referir e que, apesar de muito sucintos no documento, se encon-

tram mais desenvolvidos no importante manuscrito De Diversis Artibus, de Theophilus

(Jorge; Cordeiro. 1983. 5, 244) que constitui, além de outros6, a mais importante e

completa fonte medieval, em forma de tratado, sobre o fabrico de vitrais e ourivesaria,

artes aparentemente sem ligação com a manufactura da cerâmica, mas que um olhar

mais atento consegue estabelecer relações. A importância do De Diversis Artibus

relaciona-se com o facto de estarmos perante um documento sobre a manufactura

de determinados elementos e componentes que são comprovados pela prática, isto

é, o De Diversis Artibus afasta-se da maioria dos tratados medievais pelo seu rigor

nas discrições, não enveredando pelo caminho da invenção.

No documento de D. Duarte encontramos, entre outros elementos que não podemos

identifi car, o procedimento de separar o ouro da prata [Estas som as pedras que som

açhadas nos vieiros das quaes sae prata fyna e som de çinquo maneyras.(...)iiij he

branca mizcrada com amarelo/], que no tratado de Teófi lo corresponde à compli-

cada operação, descrita no capitulo LXX, do livro terceiro, “como separar o ouro da

prata”7. Outro procedimento descrito por D. Duarte é a forma de conseguir o verde de

cobre [A pedra de Cobre he uermelha e tyra a verde e há sabor como fez de ujnagre],

que no tratado de Teófi lo corresponde ao capítulo XXXVI, “O Verde Hispânico”, do

livro primeiro8. O mesmo acontece com a preparação do mínio, derivado do branco

de chumbo [A pedra do chumbo he poluorenta e muy de dentro he calor de cinza],

que através do processo explicado por Teófi lo se torna, ao fi m de algumas opera-

ções, rubro que é o fundente conhecido por mínio9. Embora não venha referido por

D. Duarte a manufactura do verde turquesa, vale a pena escutar as palavras de Teófi lo

no fabrico desse corante10.

Estranhamente, D. Duarte não se debruça sobre o fabrico do azul. No seu livro pes-

soal de apontamentos não existem praticamente referências tanto técnicas como

especulativas sobre esta cor que sabemos ser tida na Idade Média como a principal

de todas as cores e muito apreciada. Não havendo explicação plausível para esta

omissão, importa por isso ter uma visão alargada dos vários tipos de azul que então

se produziam.

O pastel dos tintureiros é uma cor azul, extraída por maceração das folhas da planta

isatis tinctoria Lineu (Serrão 1981, 12). Este vegetal é nativo das regiões do Mediter-

râneo, tendo a sua cultura sido desenvolvida durante a Idade Média primeiramente em

França, a qual se tornou um grande centro exportador. Em Portugal, a isactis tinctoria

Lineu crescia espontaneamente em todas as margens do Douro, não despertando

interesse até meados do século XV, período a partir do qual o Infante D. Henrique viu

o seu potencial económico. Terá sido cerca de 1445 que o Infante iniciou o cultivo

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

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11. Sobre o emprego do azul pastel em tecidos

de Alcobaça fica ou ficará provavelmente por

aferir qual a sua infl uência cromática exercida

na tradicional louça de Alcobaça, cuja decora-

ção efectuada por belos matizes de azul ganhou

fama, mesmo sabendo-se que esta louça só te-

nha iniciado a sua produção na segunda metade

do século XIX. Sobre a louça de Alcobaça, Cfr.

Cerâmica de Alcobaça. 1992.

12. Não havendo em Portugal tal registo de te-

cidos e tapetes, vale a pena efectuar uma visita

ao Instituto de Valência de D. Juan, em Madrid.

À parte de possuir uma das maiores colecções

de cerâmica medieval do mundo, com particular

destaque para as louças de aparato em técni-

ca de refl exo metálico, provenientes do Levante

espanhol, o Instituto possui ainda uma invulgar

colecção de tecidos e de rendas medievais. Tudo

leva a crer que o panorama do uso de têxteis

deste género, altamente elaborados e ricos, te-

nha também sido uma realidade no nosso país.

São identifi cados padrões cristãos, persas, tur-

cos, marroquinos e mouriscos (mudéjares).

13. Carta de Privilégio de 7 de Janeiro de 1434

a Adela Sevilhão. “Mouro tapeteiro, morador em

lisboa e que tem sua tenda em que lavra, bem

como aos criados a quem ensina fazer tapetes”.

Os privilégios são os mesmos concedidos a outro

mouro tapeteiro por carta de 27 de Dezembro

de 1435. Chancelaria de D. Afonso V. L.º 11, fl .

7. (Marques 1944, 488); Carta de Privilégio a

27 de Dezembro de 1435 a Caçome, morador

em Lisboa, fi lho de Mafomede Laparo, mestre

de fazer tapetes e que tinha a sua tenda em que

lavrava. Seria isento de pagar em peitas, fi ntas

e talhas, serviços e préstimos e bens assim de

pagar os tributos que pagavam os mouros ao

rei; “Ninguém poderá pousar nas suas casas de

morada, adega e cavalariças e tomar-lhe besta,

pão e vinho etc(...)”. Estas isenções seriam ex-

tensivas aos criados que com ele lavrassem nos

tapetes e “poderiam ir além mar, pelas tintas e

outras cousas necessárias ao seu ofício e levar

consigo um homem, mas daria fi adores de como

ia e voltava ao reino em tempo devido”.Chan-

celaria de D. Afonso V, L.º 11, fl . 95. (Marques

1944, 492).

sistematizado da planta do pastel com a consequente produção de azul, tendo por

isso o privilégio régio do exclusivo do pastel e da construção de engenhos nos sítios

que julgasse apropriados. Em 1490 esse monopólio foi dado a Luís Domingues, nas

comarcas da Beira, Trás-os-Montes e entre o Douro e o Minho.

O pastel foi profusamente empregue na tinturaria de tecidos, dos quais os mais

conhecidos terão sido os de Alcobaça, cuja produção se manteve durante vários

séculos, culminando nas recentemente quase desaparecidas chitas de Alcobaça11.

Ainda no século XV, o pastel foi introduzido nas ilhas atlânticas. O seu cultivo em

Cabo Verde não resultou como aconteceu com o índigo, então conhecido por anil,

mas desenvolveu-se em especial nos Açores, onde constituiu fonte de riqueza até

ao século XVIII.

A tinturaria em Portugal durante a Idade Média teve alguma expressão e qualidade, em-

bora não sejam conhecidos no país os produtos de tais manufacturas então existentes12,

no entanto, sobre essa actividade, então nas mãos de tintureiros mouriscos, vale talvez

a pena recordar dois casos de fabricantes de tapetes da primeira metade do século XV:

Adela Sevilhão, mouro tapeteiro e Mafomede Láparo, mestre de fazer tapetes, que

estavam autorizados pelo rei a ir a Marrocos à procura de tintas para o seu ofício13.

Proveniente de uma planta, o azul pastel não poderia de forma alguma ser utilizado

tanto no fabrico cerâmico como na pintura, dado que facilmente seria calcinado logo

nos primeiros patamares térmicos do forno, durante a cozedura da louça, assim como

se, misturado com um emulsionante, facilmente perdia a cor por oxidação, no caso

de ser aplicado à pintura.

No século XVI, Garcia da Orta, no seu Colóquios dos Simples e Drogas da Índia,

publicado em Goa em 1563, fala-nos também de azuis extraídos de plantas com

emprego diversifi cado na farmacopeia e na tinturaria de tecidos14. Orta refere-se ao

anil com certo desprendimento, classifi cando-o uma matéria mercantil mais própria de

«contratadores» do que de «fi lósofos» (Orta. 1987. 96). Orta indica que o seu nome

indiano é nil, o qual provem do sânscrito nili, derivado da palavra nila que signifi ca

azul. A descrição do seu fabrico teria já sido feita por Marco Pólo, no século XIII, e as

maneiras de apreciar o anil eram bem conhecidas no Oriente pelos portugueses que,

ao melhor e mais leve, davam o nome de anil de nadador que valia trinta fanões15 a

farazola16, enquanto que o de menor qualidade, “anil pesado, que tenha areia”, valia

apenas dezoito a vinte fanões a farazola17.

Outro azul, de proveniência mineral, era o azul cerúleo, conhecido na Antiguidade

por azul Egípcio, que, ao que parece, não só era usado na pintura como também nas

cerâmicas turquesas e azuis egípcias da Antiguidade, nas quais o pigmento corante

não era aplicado directamente sobre a pasta cozida mas sim misturada com esta em

estado cru e juntamente com serradura. A exposição ao calor do forno fazia com que

a serradura se queimasse inteiramente e desaparecesse, deixando na peça minúsculos

orifícios pelos quais a acção do calor vitrifi cava inteiramente a peça. Com a fusão

do vidrado desapareciam igualmente as irregularidades e os orifícios deixados pela

incineração da serradura. O fabrico do azul cerúleo vem descrito no capítulo XI do

livro VII do tratado de Vitrúvio18.

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

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14. Do número de plantas que fornecem o anil

ou índigo só duas eram importantes principal-

mente para a indústria, pela excelência do seu

produto. Uma é originária das Índias orientais e

a outra ou lhe atribuíam a mesma procedência

ou a consideravam indígena da África tropical e

em muitos lugares mesmo brotavam espontâne-

as. O anileiro é um arbusto que fl orescia bianu-

almente mas ao cabo dum ano, estava esgotado

devido às duas ou três colheitas sucessivas que

se faziam. O processo industrial para a prepara-

ção do anil não era complicado. Na época da fl u-

orescência, secavam-se as plantas, reduziam-se

a fragmentos. Posteriormente, pouco a pouco,

o líquido ia tomando uma cor verde amarelada.

Este, agitava-se bem para que o líquido com as

folhas pudesse fartamente absorver o oxigénio

do ar para pouco depois passar à cor azul inten-

sa. Pela adição de água de cal, depositava-se e

era então que se tomava o precipitado, enxu-

gando-o e premindo-o, estando pronto para ser

comercializado. Peixoto 1895/1972, 355.

15. Unidade monetária utilizada na Índia no

século XVI, que valia entre 20 a 27 reais. Orta

1987, 93.

16. Unidade de peso utilizada na Índia no século

XVI que, conforme as localidades, variava entre

o seu peso entre 8 e 11Kg. Orta 1987, 93.

17. Orta 1987, 86. Cfr. Apêndice documental.

Doc.3.

18. Vitrúvio 2006, 281. Cfr. Apêndice documen-

tal. Doc. 4.

Na paleta das cores, o azul ultramarino tem sido ao longo de séculos extremamente

valorizado relativamente à variedade dos pigmentos tradicionais, não só pelo seu

valor cromático como também pelos signifi cados a que está associado e pela sua

durabilidade e pureza da cor.

Fontes do século XVI designam a lazurite como o azur, nome derivado e asso-

ciado ao lápis-lazúli, mineral de cor azul do qual originalmente provém (Harley

1985, 43).

O lápis-lazúli existe na natureza em várias partes do globo; porém, o mais antigo

local conhecido da extracção deste mineral situa-se em Kokcha, região que no pre-

sente pertence ao Afeganistão, de onde se crê que provém a maioria do lápis-lazúli

usado na Europa durante a Idade Média até ao início da época Moderna, tanto em

pigmentos para pintura como também na ourivesaria.

Os depósitos de lápis-lazúli situavam-se em locais remotos e de pouca acessibilidade,

difi cultando aos europeus o conhecimento da sua extracção e preparação, sendo, por

isso, quase nula durante a Idade Média a manufactura com vista à obtenção de um

pigmento. O azul era exportado durante essa época para a Índia e para a Europa que

o recebia através da rota do Mediterrâneo, onde era conhecido por Azul de Veneza,

nome que era refl exo do poder marítimo e comercial daquela cidade do Adriático.

A obtenção deste pigmento mineral iniciava-se com a obtenção do melhor lápis-

-lazúli, que deveria apresentar uma cor escura livre de veios castanhos ou impurezas

derivadas das pirites. A verifi cação da genuinidade do lápis-lazúli e do pigmento

dele derivado era obtido através do calor, que mantinha inalterável a cor azul azurite

depois de exposta a altas temperaturas nas fornalhas, ao contrário de outros materiais

provenientes de minerais que, após esta operação, alteravam a sua cor.

Aquecido o lápis-lazúli genuíno, o primeiro procedimento era mergulhá-lo em líquido

frio, iniciando-se com o choque térmico um processo de fractura que facilitava a sua

pulverização. Ao material azul resultante, após a remoção das escórias, dá-se o nome

de lazurite. O pigmento podia então ser extraído através do recurso ao vinagre forte,

sendo a cor resultante da solução neste líquido.

A lazurite foi usada com vários géneros de aglutinantes adicionados ao pigmento,

como as soluções de resina, ou pez de louro, para pintura simples em suporte de

madeira; cera virgem para pintura em encáustica, sobre suporte de madeira; óleo de

linhaça, óleo de noz e mastique, para pintura a óleo, tanto em suporte de madeira

como em tela; água para a obtenção da aguarela, sobre suporte de papel; e gema de

ovo para pintura a têmpera, sobre madeira, pergaminho ou papel.

A pureza da cor da lazurite nestas soluções era a que resultava do material em sus-

pensão nos aglutinantes, fi cando em depósito a cor mais impura, geralmente apre-

sentando um azul acastanhado. Como se depreende, a obtenção da lazurite – azul

ultramarino – era assim um processo caro, dispendioso, cuja manufactura requeria alta

experiência do manipulador. Em consequência disso, e enquanto não foi descoberta

uma forma industrial de a produzir, a lazurite foi, durante os séculos XVI e XVII, um

dos mais caros pigmentos existentes no mercado, conservando a sua reputação como

o “diamante de todas as cores”.

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19. O Lápis Armenius, parece corresponder à pe-

dra arménia referida por Garcia de Orta nos seus

Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, já que

o autor o compara com o lápis-lazúli. Orta 1987,

212. O mesmo Lápis Armenius é referido por Vi-

trúvio relativamente ao facto de ser um pigmen-

to extremamente caro e difícil de conseguir e

muitas vezes usado ao “desbarato” juntamente

com crisocola – malaquite, pigmento verde azei-

tona e com a ostrum – púrpura. Vitrúvio 2006,

274 e 279.

A azurite, é o nome moderno de um mineral azul, material do qual, por acção química,

se consegue o carbonato de cobre. No estado natural, a azurite encontra-se em

estreita ligação com depósitos de malaquite. No século XVII, à azurite dava-se o nome

de Lápis Armenius19, nome utilizado desde a Antiguidade. O pigmento preparado

deste material era também chamado azul bice (que corresponde na moderna indús-

tria das cores ao azul de cobalto e ao ultramar de cobalto) e noutras fontes coevas é

designado pelo azul montanha. Porém, o nome de Lápis Armenius foi durante algum

tempo erradamente interpretado, reportando-o ao lápis-lazúli.

No estado natural, este material pode apresentar uma cor azul escura como o lápis-

-lazúli, mas o pigmento extraído dele é completamente diferente, não resultando

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portugal. palácio nacional de sintra. quarto de d. sebastião. azulejo de padrão vegetalista com o motivo da parra e da gavinha. o seu formalismo respeita os modelos góticos dos ladrilhos vidrados em técnica de alto relevo. foram certamente as primeiras peças de relevo com vidrado policromado executadas em portugal. o azul de cobalto é empregue nos remates de ligação produção portuguesa dos finais do século xv. cfr. trindade, rui andré alves. revestimentos cerâmicos portugueses. meados do século xiv a meados do século xvi. ed. colibri. faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa. lisboa 2007. © fotografia de rui trindade

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igualmente nele a aplicação dos processos de manufactura que se utilizavam para a

obtenção do puro lápis-lazúli.

Para a obtenção da azurite, o método mais usual era esmagar o mineral que poste-

riormente era sujeito a uma lavagem em solução de vinagre forte, com o objectivo

de remover as impurezas verdes para, posteriormente, ser lavado com água corrente.

Tradicionalmente, fazia parte do processo adicionar à água da última lavagem maté-

rias aderentes ou colantes como o mel ou a cola de peixe, com o objectivo de o pig-

mento em partículas se separar das escórias minerais restantes.

Mas outros azuis conhecidos podiam igualmente ser manufacturados a partir do cobre

e usados no século XVI, mesmo antes da introdução do fabrico da azurite, como seja

o caso do acetato de cobre, muito utilizado nas ligas metalúrgicas de latão e cobre.

O azul de cobre era tradicionalmente preparado em recipientes de latão; o resultado

da cor dependia das quantidades de sal e amoníaco (clorido de amoníaco) para a

obtenção de um produto azul à base de cobre. As circunstâncias da descoberta do

azul de cobre não fi caram documentadas, sendo por isso desconhecidas.

O azul de cobalto ou esmalte misturado em silício era um corante mineral utilizado

para obtenção de vidro colorido de azul e vidrados azuis aplicados à cerâmica.

Antes de avançarmos para as questões históricas, convém esclarecer que o cobalto

não se encontra na natureza de forma pura. Pertencendo à classe dos metais, o miné-

rio de cobalto está sempre associado a outro metal que é o arsénio e, na natureza,

esta associação aparece das mais diversas formas, dando assim origem a outros miné-

rios de cobalto. Passemos em breve revista os principais minérios de cobalto, os quais,

pela ordem aqui apresentada, apontam para a sua crescente raridade na natureza.

O minério de que se extrai o óxido de cobalto ou azul de cobalto para aplicação cerâ-

mica é a Cobaltite, integrada no grupo dos sulfuretos (CoAsS) e na qual se encontra

associado, além do arsénio, o enxofre. A Cobaltite está intimamente relacionada com

os depósitos de cobre e, como sucedâneo da sua extracção, encontra-se em quan-

tidades mínimas. Como mineral, a cobaltite apresenta nos depósitos um aspecto de

cristalização cúbica parecido com as pirites, mas, ao contrário destas, que são dou-

radas, a cobaltite é prateada. O processo de obtenção de tintas azuis para esmalte

cerâmico já vem da Antiguidade e ainda hoje predomina na indústria (Medenbach

1983, 66; O´Donoghueth 1976, 160).

A Safl orite, integrada no grupo dos sulfuretos (CoAs2), tem na sua composição a

habitual associação ao arsénio. A sua aparência como mineral, na natureza, apresenta

cor verde com cristalização microscópica prismática hexagonal. A Safl orite é aplicada

na indústria no fabrico de insecticidas, têmpera para endurecimento de metais e para

fi ns médicos (Medenbach 1983, 70; O´Donoghueth 1976, 160).

A Eritrite ou Flor de Cobalto, integrada no grupo dos fosfatos (Co3[AsO4]-8H2O),

deve o seu nome ao facto de se apresentar na natureza como um cristal vermelho

roxo parecido com uma fl or devido ao seu aspecto de efl orescências, com a sua cris-

talização microscópica prismática hexagonal. Mais uma vez aqui o cobalto aparece

associado ao arsénio. A Eritrite foi identifi cada em 1754 por J. F. Henkel na sua obra

História das Pirites, devendo o seu nome, Flor de Cobalto, a este cientista. Alguma

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confusão tem havido em publicações relativas à história das tintas e das cores ao

atribuírem a descoberta da Cobaltite – matéria prima conhecida desde a Antiguidade

para a produção de tintas azuis e de aplicação nos esmaltes, como já referimos – a J.

F. Henkel. Porém, este cientista descreveu somente a Eritrite. Esta deve o seu nome

ao geólogo e mineralogista F. S. Beudant, que a baptizou com base na palavra grega

erythros, que signifi ca vermelho (Medenbach 1983, 184; O´Donoghueth 1976, 160).

A Skuterudite ou esmaltina está integrada no grupo dos sulfuretos (CoAs3) tendo

na sua composição a habitual associação ao arsénio. Aparece na natureza em cristais

cúbicos, octaédricos e dodecaedros rombos, sendo possível aparecer em agregados

granulados. É um importante minério de extracção de cobalto. Encontra-se em fi lões

hidrotermais de média e alta temperatura e está associada a depósitos de níquel e

prata (Medenbach 1983, 74; O´Donoghueth 1976, 160).

Por volta de 3500 a 2800 a.C., já se produzia cerâmica em Uruk, no sul da Mesopo-

tâmia, perto de onde surgiu a cidade de Babilónia, desenvolvendo-se um estilo de

cerâmica ricamente decorada na técnica de engobe ou com motivos gráfi cos incisos.

Mas foi só a partir de 2000 a. C que começaram a aparecer as primeiras cerâmicas

vidradas a azul de cobalto, cujo acabamento foi primeiramente aplicado a ladrilhos

decorativos e mais tarde aplicado à olaria. É também nesta época que se começou a

fabricar de forma sistemática o vidro.

A descoberta da mistura de areia, quartzo e fundentes alcalinos foi de facto impor-

tante para a história da cerâmica vidrada antiga. A esta pasta vítrea, fundida em for-

nos, podia-se então misturar os primeiros óxidos corantes descobertos nessa época,

que eram: o de cobre, que em base alcalina dava o turquesa; o estanho, para obtenção

do branco e, já nesta época, o de cobalto, para a obtenção dos azuis, em aplicações

vidradas coloridas (Cooper 1993, 19).

Tanto quanto é possível aferir, terá sido esta a primeira aplicação conhecida do cobalto

em vidro e em cerâmica. Porém, houve necessidade de resolver um problema técnico

na cerâmica. O fundente primitivo de vidro junto com os óxidos corantes aplicado ao

barro durante a monocozedura, liquefazia-se com facilidade e pela acção gravítica,

facilmente escorria para a base da peça; daí que a sua aplicação inicial somente tenha

sido em placas de barro – ladrilhos – decorativos. Porém, são poucas as peças de

olaria conhecidas com o fundente primitivo, sendo nesta época que os oleiros me-

sopotâmicos descobrem as vantagens do fundente à base de chumbo que, além de

permitir um brilho acentuado, fazia aderir a camada vítrea ao barro, com resultados

apreciáveis (Cooper 1993, 19).

No século IX, os oleiros árabes do Médio Oriente, ao aplicarem profusamente nas

cerâmicas o acabamento vidrado adicionado com o branco de estanho, viram quase

de imediato as possibilidades decorativas dadas por este material e cedo começaram

a decorar as suas produções de pratos e outra louça branca com vários corantes metá-

licos. O verde de cobre e o púrpura, dado pela diluição acentuada do manganésio,

foram bastante utilizados; no entanto, as manufacturas mais populares e aprecia-

das, foram aquelas decoradas a azul cobalto, que nesta época era proveniente da

península da Arábia, onde se haviam encontrado extensos depósitos de cobaltite.

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O cobalto arábico, junto com aquele já produzido no Afeganistão, sustentou uma fl o-

rescente industria cerâmica no Oriente Médio, com centros de produção localizados em

Kashan, perto de Teerão, Rayy, a norte do Irão, Rakka a norte da Mesopotâmia e Gar-

gun, próximo do mar Cáspio. A apurada técnica cerâmica alcançada, marcada pela louça

Seljúcida de profundos tons de azul e azul turquesa, teve o seu apogeu no século XIII,

extinguindo-se abruptamente no mesmo século pela invasão mongol (Cooper 1993, 68).

Uma das cores que pode ser manufacturada com o cobalto é o smalte – esmalte.

O nome esmalte provém do francês antigo – esmal, cujo emprego está atestado desde

o século XII. No Languedoque, desde o século IX conhece-se já o termo derivado do

latim smaltum, que depois se transforma em esmaut. Na Alemanha, a palavra para

este material é schmelzen, derivada da raiz indo-europeia em uso no norte da Ale-

manha com o nome de smelzan (Cooper 1993, 68).

O azul cobalto foi um pigmento conhecido desde a Antiguidade mas só no século

XIX se isolou o seu elemento químico.

O óxido cobalto, quando aquecido e misturado com sílica, formava o conhecido saffer

ou saffre, derivado do nome safi ra. Misturado em fusão com potassa obtinha-se um

vidro azul ao qual se dava o nome de smalt.

A cobaltite encontra-se no seu estado natural em várias partes do mundo e foi sempre

explorado, desde as épocas egípcia e suméria, para a coloração do vidro.

A chegada do cobalto à Europa é obscura; porém, é provável que já desde a Antigui-

dade tenha sido conhecido em todo o império romano.

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

portugal. lisboa, escavação do corpo santo, lisboa, 1996. fragmento de

faiança. emprego do óxido de cobalto bastante diluído sobre fundo branco

de óxido de estanho. decoração com motivos caligráficos muçulmanos. cerâmica portuguesa, da transição do século xv para o xvi ou primeira

metade do século xvi. cfr. trindade, rui andré alves. 0. ed. colibri. faculdade

de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa. lisboa 2007.

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Na Idade Média, era já conhecida na Saxónia a extracção do cobalto associado à

prata, ao arsénio e ao bismute. Durante séculos tornou-se a fonte do cobalto utili-

zado na Europa. O nome de cobalto era aplicado a um metal que estava associado

a outro metal, o arsénio, pensando-se que este, pelo seu uso prejudicial à saúde,

contaminava o cobalto, sem se suspeitar, contudo, que se estava na presença de dois

metais extremamente tóxicos. Outra versão, mas de origem germânica, para explicar

a origem do seu nome, dá conta que a palavra cobalto deriva do nome de gnomos

malignos – os Kabolde (Medenbach 1983, 66) – que viviam nas minas quando os

mineiros encontravam o metal, pelo que tinham que o tapar rapidamente pelo mal

que fazia à saúde.

No século XVI, os mineiros trabalhavam em estreita aproximação com o cobalto e

o arsénio, usando grandes protecções de couro com máscaras e luvas para prote-

ger o corpo da corrosão e intoxicação provocado pelo arsénio e a sua consequente

absorção cutânea.

A entrada do azul de cobalto na Europa ter-se-á feito pelo sul da Espanha. Por volta

de 1248, e com a reconquista de Sevilha, a Espanha muçulmana fi cou confi nada à

sua parte sul. É também por esta época que chegam ao Al Andaluz refugiados do

Iraque, recém invadido pelo império mongol. Nessa mole humana, fugida à guerra

e às depredações, vinham oleiros iraquianos que pela primeira vez introduziram na

península o azul de cobalto (Cooper 1993, 86).

Na transição do século XIV para o século XV, são descobertos em Chovar, província

de Castellón, depósitos de minério de cobalto, o que terá signifi cativa importância

para a expansão comercial e artística da louça e azulejos levantinos nas cores azul

e branca. Este azul de cobalto, considerado ao tempo “magnífi co”, misturado com

areias siliciosas formava um azul muito vivo e fácil de aplicar no barro biscoitado.

Apresentava também uma excelente solidez de cor após a cozedura, como testemu-

nham as peças cerâmicas levantinas daquele tempo. A descoberta dos depósitos de

cobalto foi gratamente recebida pelos artistas cerâmicos, que já vinham trabalhando

o cobalto importado desde o início do século XIV, tanto em Espanha como noutros

reinos europeus, resultando daí uma enorme procura do produto (Marti 1996, Vol. I

100, 193).

No entanto, apesar da facilidade do acesso ao azul cobalto, alguns centros cerâmi-

cos ibéricos optam por continuar a produzir louça vidrada, nos tons verde, branco e

manganés, usuais no século XIII e XIV. É o caso dos centros produtores de Teruel e

de Toledo. Neste último, o azul de cobalto é introduzido tardiamente na produção

de vidrados, já no século XVI (Tubino 1979, 30).

Segundo os dados disponíveis, o primeiro registo documental da manufactura do

cobalto no norte da Europa é de 1470 (Harley 1985, 54). Cinco anos depois, um

fabri cante, de origem francesa, instalado em Weidermhammer, começou a produzir

com regularidade saffre, mas terá sido só em 1540 que, na mesma localidade, se

inicia a produção regular de vidro colorido de azul de óxido de cobalto. Estes dados

são confi rmados documentalmente para o norte da Europa. O que parece não haver

dúvida é que de facto a introdução do emprego do óxido de cobalto na Europa do sul

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

portugal. igreja de s, lourenço, azeitão.nossa senhora do rosário. terracota vidrada com policromia de azul de cobalto e branco de estanho ( os restos de policromia dourada foram aplicados posteriormente apresentando técnicas do século xvii). emprego do óxido de cobalto em camada bastante espessa, do que resulta um azul ultramarino saturado. a razão desta aplicação de vidrados deve-se ao fundente de chumbo existente dentro dos processos hispano mouriscos. primeira metade do século xvi. cfr. trindade, rui andré alves. revestimentos cerâmicos portugueses. meados do século xiv a meados do século xvi. ed. colibri. faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa. lisboa 2007. © fotografia de rui trindade

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20. Cfr. Apêndice documental. Doc. 5.

21. Note-se que as relações comerciais entre

Portugal e a Alemanha (Prússia) se iniciaram

ainda no reinado de D. João I, em 1430 (Duarte

2007, 174).

proveio do Médio Oriente. Neste contexto, as investigações documentais apontam

para o emprego do óxido de cobalto na Península Ibérica, nomeadamente em Valência

e na Catalunha, pelo menos desde os fi nais do século XIV e o início do século XV,

sendo duvidoso que a sua chegada à Europa se tenha feito por via italiana.

Noutro quadrante geográfi co, a famosa cerâmica azul e branca da dinastia Ming,

cujo fabrico se compreende entre 1368 e 1644, é a que pode reclamar mais atenção

estética e técnica no nosso trabalho, pelo emprego sistemático do azul de cobalto.

O azul de cobalto nas suas diversas formas proveniente da Pérsia e Afeganistão, era

importado para a China desde o século XIV, justifi cado pela expansão do comércio

verifi cada no início da dinastia Ming.

Muito antes, era já utilizado na Pérsia, na decoração da olaria vidrada. Estas produ-

ções persas, exportadas para a China, eram muito apreciadas, levando os chineses a

tentarem fabricar a sua própria louça azul. O cobalto importado da Pérsia era caro;

porém, o seu poder corante era extremamente rentável o que justifi cava o inves-

timento. Este era ainda mais elevado se o óxido de cobalto fosse misturado puro,

ou sujo, com manganês, com o qual se obtinha um azul carregado mais próximo da

gama dos violetas.

No século XIV já os chineses extraíam o azul de cobalto; no entanto, de início a cor

era impura pela sua má preparação, produzindo na cerâmica cinzentos azulados. Esta

mistura era melhorada com a adição do cobalto importado da Pérsia, com a qual se

obtinha na porcelana um vidrado de azuis intensos que muitas vezes tomava o nome

apelativo de azul de Sumatra (Cooper 1993, 54).

Em Portugal, no século XV, trabalhava-se já com o azul de cobalto, provavelmente na

sua aplicação em vidro ou em ourivesaria com suporte em metal precioso, parecendo

ser mais tardio o seu emprego na cerâmica. Sabe-se que, em 1424, vivia em Évora

Abraão, judeu esmaltador que aparece referido numa procuração feita por Jacob

Abete (Pereira 1998, 133). A designação da profi ssão de esmaltador não levanta

dúvidas relativas à actividade e ao emprego do smalt. Esta palavra era utilizada na

Europa para designar o óxido de cobalto, não fazendo por isso sentido que Abraão

não trabalhasse com este material.

Outra referência, não menos interessante, ao azul de cobalto vem vinculada na carta

de quitação de João Gonçalves, passada em 1434, já em pleno reinado de D. Duarte,

mas ainda passada em nome de D. João I20. Neste documento, o tesoureiro mor de

D. João I recebe naquela data duas onças de “azur de acre”. Igualmente recebeu

“azur d Alemanha huu arratell e duas onças”, porção que foi reforçada com dois

arráteis de “azull d Alemanha”. Parece não haver dúvidas que da Alemanha para

Portugal só poderia vir o azul cobalto, ainda não utilizado na cerâmica mas somente

na ourivesaria e no vitral. É importante sublinhar que a fonte portuguesa antecipa-

-se, em cerca de quarenta anos, à primeira fonte alemã sobre a produção de azul de

cobalto naquele país21.

Quanto ao azul de Acre, parece também não haver dúvidas que se trata do azul de

cobalto proveniente do Médio Oriente. Esta fonte documental, apresenta-se assim

de crucial importância não só para a historia da aplicação e uso do azul de cobalto

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em Portugal como também para a história da ourivesaria e do vitral no século XV, não

sendo porém, ao que parece, conhecidas ainda nesta época a aplicação do corante

azul na cerâmica portuguesa.

Durante o século XVI, a aplicação do óxido de cobalto tanto na cerâmica como na

coloração do vidro tinha larga difusão, mas só no fi nal do século XVII a sua aplicação

no vidro foi ilustrada por Kunchel com a edição, em 1689, da Ars Vitraria Experimen-

talis. De acordo com este autor, o cobalto era colocado num forno ou fornalha de

revérbero ou de ambiente oxidante regulável, de forma que o fogo fosse tão intenso e

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j. kunckel. ars vitraria experimentalis, 1689. forno para a extracção de cobalto durante o século xvii. na imagem, o forno possui uma longa chaminé para a saída de fumos e depósito do arsénio, permanecendo o cobalto calcinado na fornalha. cfr. herley, r.d.. artists’ pigments. ed. butterworths, 2.ª edition. london

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forte que chegasse ao topo do forno. Neste processo, o arsénio contido ou associado

ao cobalto era libertado pela acção de altos patamares térmicos, através de um fumo

branco conduzido por uma longa chaminé horizontal que chegava a atingir dezenas

de metros. À medida que o fumo arrefecia, o arsénio ia-se depositando por preci-

pitação, devido à condensação, nas paredes inferiores da chaminé, para mais tarde

ser recolhido pelos operadores em forma de pó, separadamente, para a obtenção do

óxido de cobalto. Esta era uma parte do processo para o fabrico do arsénio puro.

No decorrer da operação de incineração do cobalto, quando o fumo branco deixava

de aparecer no escape da chaminé, signifi cava, para o operador, que todo o arsénio

contido no cobalto se tinha esgotado, sinal de que óxido de cobalto se tinha retido na

fornalha. Depois de retirado, o produto era passado pelo crivo onde era separado das

pequenas escórias resultantes do processo de incineração, sendo de seguida moído e

acondicionado em fôrmas onde endurecia de tal forma que era vendido em barras, as

quais, como veremos adiante, eram chamadas “pães” em Portugal. A dureza destes

“pães” era de tal forma que, para o cobalto ser utilizado e desfeito, tinha que ser

partido a martelo e depois esmagado em almofariz, até fi car em pó.

Na Ars Vitraria Experimentalis, Kunchel adverte que o esmalte pode ser feito adi-

cionando areia e potássio ao saffre, resultando daí um silicato de cobalto que vitri-

fi ca por aquecimento. Para esta operação, os compostos devem ser misturados em

partes iguais em cadinhos de barro refractário que, indo à fornalha, devem sofrer

a acção de alta temperatura durante, pelo menos, doze horas sendo a massa vítrea

dai resultante sempre mexida com frequência até às primeiras seis horas. No fi nal

deste processo, a massa vítrea é removida e colocada em água. O choque térmico

daí resultante, fazia com que a matéria se pulverize em grãos, os quais eram depois

facilmente lavados e esmagados no almofariz. Neste processo, a massa vítrea em pó

era acondicionada em contentores de acordo com o seu grau de cor, sendo que o

melhor pigmento apresentava um violeta azulado escuro, de grande grau de satura-

ção e pureza, quase se confundindo com o negro. O pigmento de menor qualidade

apresentava cor azul saturado.

Seguindo as fontes anglo-saxónicas, o smalt foi manufacturado na Holanda durante

o século XVI e o pigmento produzido adquiriu uma reputação de excelente quali-

dade, atestada pelas produções cerâmicas daquele país. No século XVIII, iniciou-se

o processo de fabrico em Inglaterra através de holandeses imigrados, embora, em

1573, o esmalte fosse já familiar e, ao que parece, fabricado localmente mas sem a

qualidade indispensável para o seu uso (Harley 1985, 54).

Será ingenuidade pensar que a falsifi cação de produtos industriais é fruto dos tempos

modernos. No século XVI, o elevado preço do azul de cobalto atingido nos mercados

fez com que este pigmento fosse falsifi cado com o evidente objectivo do lucro, sendo

assim misturado com a cal, o cré e o pó de giz, com vista a fazer render o produto e

sobretudo o elevado investimento (Harley 1985, 54).

É no reinado de D. Manuel, no entanto, que aparece entre nós a primeira referência

documental ao fabrico de azul, através da síntese mineral, assim como a primeira

notícia do emprego do azul de cobalto em cerâmica.

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22. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 6.

23. Convém sublinhar que nesta época, como se

encontra implícito na nossa demonstração, não

era ainda possível distinguir, ao nível etimoló-

gico e do vocabulário, os pigmentos e corantes

que temos vindo a tratar.

24. Este potencial da existência de cobalto é

confi rmado por estudos laboratoriais e no ter-

reno, efectuados recentemente nos arredores

de Beja, principalmente no sítio da Palmeira. O

que parece fi car provado é que a exploração foi

possível e talvez confi rme as nossas razões rela-

tivas ao documento do pintor Jorge Afonso. (F.

Tornos; C. M.C. Inverno; C. Casquet; A. Mateus;

G. Ortiz; V. Oliveira. 2004, 143-181; Mateus. A. ;

Figueiras J. ; Gonçalves M.A.; Fonseca 1998, 7).

25. O arsénio era também utilizado na constitui-

ção do refl exo metálico dourado misturado com

cobalto e prata. Marti 1996, Vol.1, 327.

De tal trabalho de “fazer o azul” foi incumbido Jorge Afonso, pintor régio que, para

esse propósito se instalou em Aljustrel, no Alentejo, para aí estabelecer uma fábrica

de azul, em 1521. Uma referência numa carta de quitação de 1552, leva a pensar que

esta actividade se manteve, pelo menos, durante aquele intervalo de tempo22.

Em abono da verdade, este documento e o nome de Jorge Afonso foram já referidos

anteriormente por outros historiadores, no contexto do estudo da pintura portuguesa

do século XVI. Da leitura então efectuada pensou-se que o azul em causa seria a

azurite, empregue profusamente como pigmento em trabalhos de pintura a óleo desta

época; porém, pela análise do documento, que agora voltamos a trazer à discussão,

cremos que podemos ir mais longe na sua leitura.

No documento não vem referido, naturalmente, de que tipo de azul se trata23. Numa

primeira leitura, subsiste assim a dúvida sobre o tipo de azul que se está a descrever,

se a azurite, com condições de formação natural nos depósitos minerais de pirites

ferrosas e cobre, ou do azul de cobalto, também associado aos mesmos depósitos

mas sempre associado ao arsénio e este, por inerência, quase sempre associado aos

depósitos de cobre e ferro.

Em Aljustrel, a extracção do cobre e do ferro remonta à Antiguidade, sendo por isso

possível de se tratar de um daqueles azuis, ambos com aplicação directa tanto na

preparação de tintas para pintura como na preparação de corantes para a cerâmica,

vidraria e ourivesaria esmaltada24.

Seja como for, o azul produzido foi relativamente pouco, no espaço de trinta e um

anos, o que leva a pensar que se tratava de uma actividade química artesanal não

só para responder a um consumo reduzido, como também pelo facto de que a pro-

dução de cobalto tanto em minas de ferro ou cobre, ser sempre, por regra, residual.

Por outro lado, a pequena quantidade de azul fabricada não tem implicações no seu

alto rendimento, já que o seu poder corante é enorme e a sua fusão no forno é rela-

tivamente fácil, atingindo patamares de 750º. Dito por outras palavras, um grama de

azul puro pode produzir uma tinta saturada – que se apresenta de cor negra – que

misturada com outras cores ou diluída, produz um rendimento assinalável.

Analisando mais em profundidade o documento, parece não haver dúvidas de que se

trata da produção de azul de cobalto, já que é bem explicita a produção de dois pro-

dutos os quais estão, no texto, associados: o azul e as cinzas. Desde logo a pergunta

é legítima: de que cinzas se tratava? Escórias? Outra cor, ou outro produto associado

ao azul? Quanto às escórias, parece não fazer sentido vendê-las já que, como vimos,

na produção do lápis-lazúli as escórias dariam outro azul de menor qualidade, o que

não acontece na preparação da azurite e do óxido de cobalto.

Por outro lado, tanto quanto se sabe, não são conhecidos depósitos minerais de lápis-

-lazúli em Portugal. Quanto ao facto de se tratar de cor cinzenta, tal parece não fazer

sentido pois que, na síntese subtractiva das cores, o cinzento obtém-se facilmente

com várias misturas de cores. Resta a terceira hipótese e, quanto a nós, a mais viável.

Este cinza referido no documento terá sido certamente o arsénio que, como vimos,

aparece como sucedâneo no fabrico do azul de cobalto ou óxido de cobalto e com

utilidade na farmacopeia medieval e na indústria, nomeadamente na cerâmica, sendo

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26. Estas cinzas não devem ser confundidas com

o “mazacoto” – cinza alcalina empregue para o

fabrico do vidro – o qual se obtém das cinzas

da fornalha após a combustão de determinados

arbustos. Por outro lado, as cinzas referidas no

documento são em reduzida quantidade e peso

o que, para ser o “mazacoto” produzido em

trinta anos, as quantidades deveriam ser mais

elevadas.

27. As olarias régias de Lisboa eram ofi cinas que

possuíam nas suas portas as armas reais. Viterbo

Vol. V, 254-255; 163 -168. Cfr. Apêndice Docu-

mental. Doc. 7.

possivelmente já utilizado em tempos medievais na melhoria do vidrado estanífero25.

O arsénio de cor branco acinzentado será então o produto referido como as “cimzas”;

doutro modo não haveria necessidade de o referir nem de o vender26.

Parece assim demonstrado o fabrico em Portugal, no primeiro quarto do século XVI,

de azul de cobalto, o qual foi essencial para a produção de louça azul e branca dentro

da técnica da proto-majólica e da majólica portuguesa. O destino deste azul seria

certamente as olarias de Beja, Coimbra e as olarias régias de Lisboa27.

Quanto à personagem de Jorge Afonso, pintor régio, coaduna-se com o perfi l do pin-

tor da Renascença, o qual reunia em si os três pilares herdados dos sistemas artísticos

medievais: o conhecimento da arte e a sua execução; o conhecimento dos materiais

e o seu manuseamento alquímico.

Na cerâmica de construção produzida em Alcobaça nos séculos XIV e XV, a cor do

azul escuro ou azul azeviche é bem visível numa enorme quantidade de peças que em

tempos lajeavam várias alas da abadia. Numa primeira análise, tais peças suscitam no

investigador uma ambiguidade técnica, já que aplicar azul em materiais de construção

não parece muito razoável. Porém, este azul é dado pelo tipo de pastas argilosas recolhi-

das em depósitos de margas da era geológica do Secundário, as quais, após a cozedura,

ganhavam cor azulada que era mais avivada com o acabamento de fundente transparente.

Digna de interesse sobre o uso do azul de cobalto na cerâmica, apresenta-se ainda a

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

portugal. museu municipal de silves. prato fundo. faiança portuguesa.

segunda metade do século xvi. emprego do óxido de cobalto, bastante diluído,

sobre o branco de estanho a estrutura decorativa deste género de peças,

anuncia a decoração exuberante dos pratos de aranhões de faiança

portuguesa do século xvii

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28. Marcos Pires, que faleceria em 1522, depois

de ter recebido avultadas quantias pelos encar-

gos assumidos, era detentor de um património

avultado composto por vários bens móveis e de

raiz, parte deles adquiridos, ao que tudo indica,

com dinheiro das empreitadas da coroa. Viterbo,

Sousa 1988. Dicionário Histórico e Documental

dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores

Portugueses. 2.ª ed. III Tomos. Imprensa Nacio-

nal Casa da Moeda. Lisboa, Vol.I, 309 e seg.

29. Em Alcobaça foram recentemente exuma-

dos alguns tijolos cujo miolo é composto por um

material argiloso de tons negros e azul azeviche

cobertos por fina camada de argila vermelha.

Algumas destas peças, já desgastadas pelo uso,

apresentam na superfície aquele material que,

molhado, deixa transparecer tons de azul. Po-

rém, é conhecida em alguns depósitos Ibéricos

uma argila azul de elevada plasticidade tam-

bém utilizada na olaria, a qual apresenta depois

de cozida os habituais tons de avermelhados e

ocres, (Lynggaard, Finn 1992. Tratado de Cerá-

mica. Omega: Barcelona, 14). É por isso duvido-

so que as telhas do tipo noticiado na medição

dos paços de Coimbra fossem constituídas por

aqueles materiais. Pelo contrário, antes parecem

ser tijoleiras ou telhas cobertas possivelmen-

te com azul de cobalto com óxido de chum-

bo. Outra possibilidade para conseguir o azul

naquela época, obtinha-se através do almagre

em pó, adicionado com ferrocinato de potássio

em combinação submetida ao calor da fornalha

de oleiro cujo pó resultante era posteriormente

aplicado na peça. Ribeiro, Margarida 1991. “O

Património Cerâmico Linguístico Português sob

Infl uência Islâmica”, in Actas do Colóquio Inter-

nacional de Cerâmica Medieval no Mediterrâneo

Ocidental 1987. Campo Arqueológico de Mérto-

la. Lisboa, 491-496.

30. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 8

avaliação feita, no ano de 1523, em Coimbra, por Gonçalo Madeira, dos trabalhos que

Marcos Pires executou nos paços de el-rei. D. Manuel nomeou-o mestre das obras

reais daquela cidade em 1517, atendendo ao prestígio de bom ofi cial no seu ofício

de pedreiro28. Neste ano, e incluídas nas obras de que foi encarregue, contavam-se

as dos paços de el-rei, as quais não satisfez na totalidade, pelo que se teve de efec-

tuar a medição das obras executadas até àquela data e a inventariação e penhora

dos seus bens e dos herdeiros, recorrendo-se inclusivamente aos bens dos fi adores

para se liquidar o débito devido à coroa, num complicado processo, elucidativo do

controle exercido pela fazenda real nestes casos.

É neste contexto que encontramos valiosas informações sobre o paço de Coimbra,

nomeadamente sobre os materiais cerâmicos usados em ladrilhamentos. De realçar

a referência à diferença de materiais como o tijolo, tijolo roçado e as telhas de

cobertura, e ainda de tijolo azul, o que, na nossa leitura, indica o ladrilho vidrado

monocromo, coberto com óxido de cobalto ou seus derivados29, cujo preço elevado,

referido por milheiro, é bem ilustrativo de material caro em relação aos demais30.

Mais adiante, pela comparação de orçamentos, constata-se serem os mesmos “tijelos

azuis” referidos como “tijelos mazajs”, “tijelos muzaal”, “tijelos mazuel”. Detur-

pações da palavra azul? Mais interessantes se tornam estas informações de tijolos

azuis quando a seguir, no inventário feito dos bens de Marcos Pires, verifi camos que

este mestre pedreiro era detentor de imóveis na zona das olarias, tudo indicando ter

também possuído uma olaria de onde possivelmente provinham os tijolos para os

“cayamentos que aviam de ser ladrylhados de tijolo azul a sua custa”, o que pode

pressupor terem sido fabricados por ele.

O interesse acrescido que suscita a enumeração destas peças não se fi ca só pela

importante evidência técnica, como também por o seu registo neste documento de

1523 as relacionar com o termo utilizado já por “Valemtim Fernandes”, em 1508,

defi nindo azulejos como tijolos, isto é, exactamente o mesmo material cerâmico de

que nos fala Gonçalo Madeira, medidor das obras de Marcos Pires. A diferença é que

o primeiro os qualifi ca de vidrados e o segundo de azuis, não levantando por isso

dúvidas de que ambos se referem ao ladrilho vidrado monocromo, hoje designado

de azulejo e incluído na terminologia dos “azulejos arcaicos” conjuntamente com o

azulejo hispano mourisco.

Sendo evidente a impossibilidade de trazer para discussão neste artigo todas as fon-

tes dispersas sobre este assunto, aquelas que apresentámos, suscitam desde logo a

nossa meditação.

À parte as considerações sobre os vários azuis minerais já referidos e aqueles apon-

tados por Garcia da Horta, parece não haver dúvidas de que os mesmos provêm de

matérias vegetais. Por outro lado, no corpus documental reunido no Arquivo Histórico

Português, nomeadamente nas Cartas de Quitação de El Rey D. Manuel, encontramos

bastantes apontamentos sobre o anil ou outros azuis que seriam usados tanto na tin-

turaria de tecidos como na pintura, possivelmente na cerâmica e outras actividades.

Nesses documentos, a par de uma panóplia variada de produtos e tintas, o azul ou

o anil aparecem numa referência muito vaga, levando a que não seja possível esta-

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31. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 9. belecer uma comparação e de que anil se trata. Nestes casos, será perigoso arriscar

tanto a origem como também a sua fi nalidade. Porém, a excepção que confi rma esta

regra, vem apontada num documento singular do “Livro da tauxasão das mercadorias

que vem e qustumão vir aos senhores portugueses da nassão de Portugal Regidentes

nestas vastas partes de framdes E barbante”. Trata-se de uma listagem de 1572 de

produtos exportados de Portugal para Antuérpia, sede nessa época da feitoria por-

tuguesa na Flandres, os quais, saídos do país para serem comercializados naquela

cidade, eram alvo de taxa fi scal devida à coroa portuguesa.

O documento é bastante interessante porque nele encontramos taxados cento e

sessenta e sete produtos que então eram exportados para aquela parte da Europa:

açúcar, azeite, água ardente, água de canela (perfume), anis, amêndoa, azebre, algo-

dão, pau Brasil, de Pernambuco e ébano, canela, canfor( álcool), cardamomo, cravo

da Índia, canela diluída em água; couros, cortiça, salsaparrilha, marfi m, erva doce,

enxofre, fi gos, gengibre, goma arábica, goma laca, graxa, lacre, malagueta, marme-

lada, noz moscada, panos da Índia, passas, pimenta, plumas, sabão, sedas, sumagre,

vinhos, vinagre, entre outros. Neste outro item, estão três qualidades de azul ou, se

quisermos, de anil: o anil da Índia, o anil da Berbéria e o pastel das ilhas31.

Confrontando estes três azuis, parece não haver dúvidas de que o anil da Índia deverá

corresponder ao anil de nadador cuja cor hoje se chama de “azul pavão”, usado na

tinturaria fi na de tecidos e já descrito por Garcia da Horta; o pastel das ilhas, tinta

v a r i a · i m a g e n s d e a z u l

portugal. museu municipal de silves. prato fundo. faiança portuguesa.

segunda metade do século xvi. emprego do óxido de cobalto, bastante diluído,

sobre o branco de estanho

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azul acinzentada, próxima do “índigo” para tingir tecidos grosseiros; fi nalmente,

o anil da Berbéria que geografi camente correspondia a Marrocos, o qual, era vendido

em várias modalidades, nomeadamente em forma de pão, isto é, de acondicionamento

idêntico àquele que já antes vimos para a comercialização do azul de cobalto.

Parece não existir muitas dúvidas em considerar este anil de Berberia como azul de

cobalto, pois não faz sentido que das três qualidades de azul apontadas todas se

destinem ao mesmo fi m ou, em último caso, à pintura de iluminura.

O anil de Berbéria, terá sido certamente o azul de óxido de cobalto, crucial para a

pintura cerâmica em azul e branco e na técnica da majólica que se consolidou siste-

maticamente em Portugal, a partir da segunda metade do século XVI, cujas produções

obtiveram posteriormente tanta expansão comercial em várias partes do mundo.

Na história da cerâmica portuguesa, foi ainda no primeiro terço do século XVI que o

azul de cobalto terá tido as suas primeiras aplicações sistemáticas nos revestimentos

cerâmicos e na louça de branco de estanho, com pequenos apontamentos de azul

de cobalto e com decoração primeiramente com motivos hispano muçulmanos e que

mais tarde evolui para composições lineares e em espiral, que são de facto a raiz

gráfi ca dos “aranhões” mais tardios.

Este cenário coloca, ao nível histórico e artístico, a questão levantada da grande

infl uên cia técnica, estética e artística da cerâmica portuguesa na cerâmica dos países

baixos, nomeadamente na de Delft. É um facto que a louça holandesa infl uenciada

pela porcelana da China, só começa a ser produzida a partir de dois momentos bem

defi nidos. O primeiro, após a fundação, em 1604, da primeira Sociedade Anónima

existente na Europa – A Companhia das Índias Orientais – e a segunda, cerca de

1624, quando começam a existir seguramente os primeiros registos documentais

dessas faianças holandesas (Baart 1988, 18-24).

Com efeito, tem sido consensual, ao nível da Historiografi a da Arte, uma proposta que

sempre pareceu paradoxal e contraditória. Como podemos aceitar, sem questionar,

que sendo os portugueses os primeiros na Europa a importar maciças quantidades

de porcelana da China, azul e branca, desde o início do século XVI, tenham sido os

holandeses de Delft, praticamente um século depois, os primeiros a inspirar-se nas

composições da louça chinesa e a infl uenciar a produção portuguesa? Como podemos

então interpretar as posturas do Regimento dos oleiros de Lisboa, de 1572, quando

uma das provas exigidas para obter a carta de ofi cio era a de executar a “louça de

feição de porcelana” ou seja, contrafacção em faiança das porcelanas Ming, azuis e

brancas? Por outro lado, questiona-se onde se encontra a louça portuguesa deste

género, produzida no século XVI e certamente fabricada ainda antes da publicação

do regimento de 1572.

Neste campo da investigação histórica e artística, é muito cedo para avançar conclu-

sões precisas e muito caminho de pesquisa falta ainda percorrer. É importante refl ectir

no sentido de que começam a estar reunidas as condições para que se possa aferir

com mais apuro de que algumas peças cerâmicas portuguesas de aparato, atribuídas

ao «reduto patriótico da louça portuguesa do século XVII», tenham sido fabricadas

no país, ainda nos meados ou fi nais do século XVI. •

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imagem do pigmento do óxido de cobalto para uso na cerâmica. os pigmentos modernos sintetizados, já não apresentam as características físicas dos antigos e são muito menos tóxicos devido à normalização industrial. no passado, o pigmento era compactado em pequenos tijolos ou pães e apresentava igualmente a cor negra. a elevada toxidade deste pigmento associado à de outros pigmentos à base de metais como níquel, crómio, antimónio e o chumbo, talvez não seja alheia à quantidade de oleiros que encontramos nos registos que vão dos finais do século xvi ao século xviii, nos hospitais de lisboa.cfr. chavarria, jaquim, esmaltes, aula de cerâmica. ed. estampa. lisboa,1999

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Apêndice documental

Doc.1.

“Cores das pedras que se açharão nos vieiros

Estas são as cores das pedras que som açhadas nos vieiros as do ouro som de tres maneiras

amarelas e uermelhas e pretas.

A que for amarela de fora será uermelha[1] de dentro e luzente com olhos luzentes.

A uermelha de fora será amarela de dentro e luzente Com pouca uermelhidom.

A que for de prata [sic] de fora sera vermelha e dentro tyrando amarelo com veas brancas estas

pedras deuem ser fendidas [sofrer fusão] em çenrradas d osos com anacmº e com sabom e

com chumbo continuando fogo per .v. ou vj. oras. //Estas som as pedras que som açhadas nos

vieiros das quaes sae prata fyna e som de çinquo maneyras. A Prymeira he branca. A 2.ª. he

preta[2] a .3.ª he uerde, a iiij he branca mizcrada[3] com amarelo[4]/ as prymeiras brancas

som pesadas e esperas de fora e quando as quebrarem de dentro som uerdes com brancura[5].

A 2.ª pedra he pesada e luzente / quando a quebrarem de dentro será mezcrada branca lu-

zente de dentro, A verde.iij. he pesada e pouco branca com vermelho e olhos brancos luzentes.

A 4.ª branca será pesada e mizcrada de dentro com vermelho/. A 4.ª [sic] branca pesada com

amarelo/ e quando a quebrarem fará dentro olhos brancos luzentes/ estas pedras deuem ser

fendidas com cerrada e sabom e dar lhe fogo bper .Vj. oras// A pedra de Cobre he uermelha e

tyra a verde e há sabor como fez de ujnagre[6]. A pedra do chumbo he poluorenta e muy de den-

tro he calor de cinza[7]/ e outras tyrão a Color d amarelo[8] e outras tyrão a Color de negro[9]”.

D. Duarte. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. Op. cit..pp.176 e seg.. [1] fulminato de pra-

ta; [2] psatenosa ou prata negra; [3] prata; [4] enxofre; [5] acetato coprico; [6] verde óxido de

cobre; [7] branco chumbo, ou minio, ou “branco transparente”; [8] óxido de ferro; [9]manganês.

Doc.2.

“LXX. Como Separar o Ouro da Prata.

Quando tiveres raspado o ouro da prata colocas o pó num pequeno vaso, onde se costuma der-

reter ouro ou prata, e tapa-o com um pequeno pano de linho para que nada saia pelo sopro do

fole. Coloca-o frente ao forno e derrete-o. Acrescenta um pouco de enxofre em porpoção com

a quantidade do pó, e mexe cuidadosamente com uma vara fi na de carvão até que desapareça

o fumo. Verte-o, então, imediatamente, num molde de ferro. Em seguida, bate-o levemente

sobre a bigorna para reduzir alguma parte preta quimada pelo enxofre, pois é prata. Porque

o enxofre não ataca o ouro, mas apenas a prata. Esta separa-se do ouro que conservarás

cuidadosamente. Torna a derreter esse ouro no mesmo vaso e acrescenta-lhe enxofre. Quanto

tiver sido mexido e vertido, separa a parte negra e guarda-a; continua até que o ouro venha

puro. Coloca então todos os bocados pretos que conservaste cuidadosamente no vaso feito

de osso e cinza , deita-lhe chumbo e aquece-o até recuperares a tua prata. Mas se quizeres

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conservar a prata negra para servir de nigela[?] Antes de a queimares, acrecenta-lhe cobre

e chumbo consoante a medida mencionada acima, e mistura-os juntamente com o enxofre.”

(Jorge 1983, 5 – 244).

b “XXXVI. O Verde Hispânico.

Se queres preparar verde hispânico toma placas de cobre, bem batidas, lima-as com

cuidado dum lado e do outro, deita-lhes vinagre puro aquecido sem mel nem sal, e

coloca-as numa pequena abertura de madeira escavada, pelo processo explicado atrás.

Passadas duas semanas, verifica e lima-as até teres cor suficiente”. Idem ib.. p. 48.

c “XXXVII. O Branco Cera e o Mínio.

Para preparar o branco de cera tens que adelgaçar placas de chumbo, colocá-las secas numa

madeira escavada, tal como o cobre anterior e deitar-lhes algum vinagre ou cobrir de urina.

Passado um mês, tira a tampa e recolhe todo o branco que houver e coloca tudo como antes.

Quando já tiveres o sufi ciente e quiseres fazer mínio, esfrega o branco de cera numa pedra sem

água e mete-o em dois ou três vasinhos novos, que colocas sob carvão a arder. Terás um estreito

ferro curvo com uma pega de madeira e largo no cimo, para que possas mexer e misturar essa

mesma cera de vcz em quando. Faz isso muito tempo até que o mínio se torne completamente

rubro”. Idem ib.. p. 48. O Mínio, ou óxido de chumbo é utilizado na manufactura da cerâmica

como fundente transparente ao qual se adicionam os óxidos corantes, sendo igualmente o

componente importante para o fabrico do cristal de chumbo.

d “XXXV. O Verde Mar.

Se desejares preparar a cor verde, toma um pouco de madeira de carvalho, escava-a em forma

de concha, com o comprimento e a largura que quiseres. Toma uma tacinha cheia de sal muito

concentrado, põe-na ao lume e cobre-a com carvões durante a noite. De Manhã, esfrega-a cui-

dadosamente sobre uma pedra seca. Junta pauzinhos fi nos, coloca-os na tal madeira escavada,

de forma a que dois terços da cavidade fi quem debaixo e um terço acima, cobre cada lado com

folhas de cobres, deita-lhe mel puro em cima e espalha um pouco de sal moído, coloca tudo

isso sobres pauzinhos e tapa com outra peça de madeira, própria para isso, de modo a que não

possa sair qualquer vapor. Faz então uma abertura e escava-a num canto dessa mesma madeira

deita vinagre aquecido ou urina quente até encher um terço e fecha logo a abertura. Deves

colocar a madeira em tal sítio que a possas cobrir de esterquilínio. Passadas quatro semanas,

tira a tampa e retira e guarda tudo quanto encontrares sobre o cobre. Substitui o que tiraste

sobre o cobre e coloca tudo como fi zeras anteriormente”. Idem ib.. 47 e seg.

Doc. 3.

“Anil nam he simple medecinal, senam mercadoria, e per isso nam há que falar nelle. E por vos

tirar decuidados, sabei que o anil he chamado assi dos arábios e turcos e de todas as lingoas,

e somente o Guzarate, que he onde se faz, o chama gali, e porém já agora o chama nil. He

herva que se semea e parece com a quenós chamamos mangiriquam; e assi a colhem e põem a

sequar per tempo, e molhada a pisam com páos, e dês que he bem pisada a ajuntam e põem a

enxugar per dias, e quando a enxugam ou está enxuta, parece de cor verde, e quando mais se

vay enxugando parece de cor azul crara, e depois escura, até que venha ser o mais fi no escuro

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que pode ser; e quando he mais puro e limpo da terra he milhor, e a prova mais certa he qui-

mado com uma candea, e não hade fi car com arêa, senão com huma farinha muito delgada;

e outros o lanção em agoa, e, se nada, yemse por bom; de modo que há de ser leve e de boa

cor. E porque he muito grave cousa hum fi lósofo estar mais nisto, será bem que comamos, e

lexemos o anil aos contratadores”. Orta 1987, 86.

Doc. 4.

“O Azul cerúleo. O fabrico do azul cerúleo foi instituído em Alexandria, e, posteriormente

Vestório iniciou a sua feitura em Putéolos. A sua natureza e o modo como foi descoberto são

dignos da mais admiração. Tritura-se, com efeito, areia com fl or de nitro, tão subtilmente que

fi que como farinha; salpica-se então com limalha de cobres raspado com grosas e mistura-se

tudo, de modo que fi que conglomerado, em seguida fazem-se bolas com a ajuda das mãos e

assim se comprimem para que sequem; uma vez secas, colocam-se num pote cerâmico de barro

e levam-se ao forno; assim, à medida que o cobres e a areia se reforçam entre si aquecendo

completamente sob veemência do fogo, dando e recebendo os respectivos suores, abandonam

as suas propriedades e destruídas as suas forças pela intensidade do fogo tomam uma cor

azul-cerúlea”. Vitrúvio 2006, 281.

Doc. 5.

“Trelado da quitaçom de Joham gonçalluez thesoureiro moor d el Rey.Dom Johãm Pela Graça

de deus Rey de Portugal E do Algarue E ssenhor de çêupta A quantos Esta Nossa carta de

quitaçom escripta em este caderno Virem fazemos saber que nos recebemos conto e Recado de

Joãm gonçalluez scudeiro nosso criado e thesoureiro moor de todo aquello que por nos ouue

de amjnistrar E rreceber e despender no dicto ofi cio de tesouraria Seis annos que se começarom

primeiro dia Janeiro que foy da Era do naçimento de Nosso SenhorJesu christo de mjll e iiijc

xxiiijº annos que nos em ello comeou de serujr em pos Lourenço martjnz d albergaria que em

ello foy nosso thesoureiro moor E sse acabarom esse dia iiijc xxx annos., em quall tenpo sse

mostrou que ell Reçebeo de desuairados almoxarifes e Recebeores E ofi ciais nossos E rreque-

Redores moores de pedidos E ssacadores delles E tiradores de dizimas de crelizias E comunas

de Judeus E mouros e de mesmo que lhe mandamos cunprir e fazer pera nosso serujço esto que

se adiante seguem. Primeiramente em no primeiro anno., da dita Era iiijc xxiiijº Reçebeo.,

(...) Jtem de tigellos d aluanaria quinhentos peças [sic].

(...) Jtem D azur de acre duas onças.

(...) Jtem de azur d Alemanha huu arratell e duas onças.

Item em o segundo., anno de iiijc e ujnte çinquo annos Reçebeo.,

(...) Jtem de azull d alemanha dous arrates.,

Ao todo nos dictos quator[sic] anos Esto que sse logo ssegue.,

(...) Jtem de tegellos de barro de desuairadas fyções quatrocentas e dez peças”.

Publicado em Chancelarias Portuguesas. D. Duarte. Volume II, Tomo 2. documento 41, 62 e seg.

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Doc. 6.

“Mandey tomar comta a Jorge Affonso, meu pintor que foy que teve carguo de receber o azul

que se achou nas minas de Aljustrel o ano de 521 e pella recadação da dita conta se mostra

carreguar sobre elle a recepta: de Dinheiro 21:680 reaes que recebeu per venda de azul; e

de azul 2 quimtaes 22 arretes e 3 quartas e de cimzas 2 arrobas 17 arrates 3 quartas; e de

jaspes de moer o dito azul, 1 e de balanças 3 com seus pesos. O qual dinheiro, azul e cousas

que asy recebeo despendeo e entregou per meus mandados e do veedor de minhas obras, sem

fi car devendo cousa algua como se vio pella recadação da dita conta, que foy tomada pello

contador Custodio de Abreu com Mateus da Maya escrivão e vista per Duarte Abreu provedor

de minhas contas e por tanto deu por quite e livre ao dito Jorge Affonso e a todos os seus

herdeiros(...) e pera fi rmeza dello lhe mandey pasar esta minha carta de quitação per mym

asynada e assellada do meu sello pendente. Mateus da Maya a fez em Lixboa ao primeiro de

Dezembro de 1552. Entrando na dita contia acima 14:314 rs. De que lhe fi z quyta e mercê.”

Chancelaria de D. João III. Livro 1.º de Privilégios. fl . 111v.. Publicado in, “Cartas de Quitação

del Rei D. Manuel, doc. 783”. Arquivo Histórico Português. Vol.X. Lisboa 1916, 15.

Doc. 7.

“(...)Refaçã e adubem e aproueitê as suas proprias custas e despesas em tall maneira que sem-

pre sejam casas e temdas dolarias melhoradas e nam pejoradas e ponham logo na frontaria

das ditas casas e temdas as armas delRey noso senhor em pedras bem abertas py(n)tadas de

maneira que em todo o tempo se posa saber como as ditas temdas dolarjas sam do dito senhor

e a elle pertemçê o foro dellas (...) anno do neçimento de noso Senhor Jhsuu Christo de mjll e

bc e x annos(...)”. – Chancelaria de. D. Manuel, liv. 8. fl . 33v.

Doc. 8.

“Mediçam das obras dos paços delrey Noso Senhor que fez Guomçalo Madeyra per mandado de

Vasco Ribeyro das obras de Marcos Pirez mestre delas. (...) Aposentamentos dos jnfantes(...)

Item diseram que nas casas que estavam ladrilhadas açhavam nouenta tres braças a iiijc Lx

reaes a braça momta quoremta e dous mjl e seteçemtos e oytenta reaes.

item diseram que mediram todalas guarnyçoes das paredes e que açhauam bijc Riij bvraças

e dos vãos xxxbj braças majs que sam per todas bijc Lxxix braças e b palmos a cento reaes a

braça em que momta xxbij ixc reaes. Soma ijc Liiijªijc Lxxxb {290.285$00} reaes.

item diseram que mediram os telhados nos quaes acharam quynhemtas e trinta braças de que

avia daver çem mil reaes se chegasem a b.c braças e se majs fosem nom avia daver majs que

os ditos çem mjl {100.000$00} reaes e destes lhe foy descomtados quatro mjl telhas que ele

gastou no ladrilhar dos cayamentos que aviam de ser ladrylhados de tijolo azul a sua custa

e ele felos da dita telha que lhe ade ser descontada a mjl e oytoçemtos reaes {1.800$00} por

mjlheiro em que momtam bij ijc {7.200$00} reaes asy qye ha daver deles nouenta e dous mjl

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e oytoçemtos reaes {92.800$00} e oluylho[sic] aviam de ser Lxxx braças e he xj braças e xxx

iiij palmos que lhe descomtam a mjl reaes a braça em que momtam cymco mil e oytemta bij

reaes e meo {5875$00} e asy adaver Lxxxbij bijc xij {87.712$00} rs. (...)”.

Torre do Tombo – Corpo cronológico , parte 1.ª, maço,27 . doc.117. (Viterbo 1988, Vol.II, 309

a 328).

Doc. 9.

“Livro da tauxasão das mercadorias que vem e qustumão vir aos senhores portugueses da nas-

são de Portugal Regidentes nestas vastas partes de framdes E barbante para por ela se comtar

ho direito do trebuto que devem a dita nasão desde primeiro do mes de novembro do anno

pasado de 571, ate houtro tal mês do prezemte anno de 572, feitas pelos senhores comsules

e deputados deste dito anno.

(...).

anill[sic]da Imdia, hum quarto.................................................................46£.

anil da Imdia, hum barril posto em............................................................23£.

anil da Imdia, hum fardo posto e contado em..............................................20£.

anil de Berbéria, hum fardete ou pao posto em............................................3£.

anil de Berbéria, hum quarto posto em......................................................25£.

(...).

canfor, hum caixão posto em...................................................................15£.

canfor, hum barril ou jara.....................................................................12£.

camfor[sic] refinada, hum barril posto em................................................15£.

(...).

Goma arabiqua, hum quoarto................................................................10£.

Goma arábica, hua pipa posta em .........................................................20£.

Goma arábica,

Goma alacar, posta em.........................................................................40£.

(...).

Pastel das ilhas, o quintal a..................................................................13s.

(...)

assinaram todos od ditos senhores cônsules deputados aos vimte e dous dias do mês de mayo

João Fernandez escrivão da dita nasão o fez de mill e quynhentos e setemta e dous annos”.

Casa da feitoria portuguesa em Antuérpia, liv. B , fl .56v. “Maria Brandoa, a do Crisfal. A Feitoria

de Flandres”. In, Archivo Histórico Portuguez. Vol. VIII. [1.ª ed.], Lisboa, 1910. Archivo Histó-

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Santarém, 2001. pp.30 e seg.

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v a r i a · d o j a r d i m m í s t i c o a o j a r d i m p r o f a n o

do jardim místico ao jardim profanopara uma leitura dos jardins medievais portugueses

costanza ronchett i

Departamento de Ciências Musicais

FCSH-UNL

espelho da salvação humana, ca 1500, chantilly, musée condé, ms. 1363

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1. Neste trabalho optou-se por inserir as cita-

ções em língua original, com excepção dos tex-

tos extraídos da Peregrinatio de Jerónimo Mün-

zer, originariamente em latim.

«Un giardino è una costruzione delicata; una volta abbandonato, soggetto alle

incursioni degli estranei e del tempo, si cancella facilmente; anche le strutture

più consistenti che lo caratterizzano - fontane, bacini, padiglioni, voliere – sono

destinate a lasciare tracce piuttosto labili.» (Cardini e Miglio 2002; 5) 1

Para podermos descrever um jardim de que o tempo não guardou vestígios, devemos

recorrer a outras fontes e é aquilo que nos propomos fazer para tentar visualizar o espaço

que lhe era reservado, em Portugal, no perímetro e na vivência de um palácio medieval.

O período para o qual queremos dirigir a atenção é o da dinastia de Aviz, que se inicia

com a subida ao trono de D. João I, em 1385, até aos primeiros anos de reinado de

D. Manuel I, no fi nal do século XV. A razão da escolha deste período prende-se com

dois aspectos fundamentais para a questão em apreço: primeiro, a viragem histórica,

política e, o que mais nos interessa, social, produzida pela tomada de poder do Mestre

de Aviz, após a crise de 1383-1385; segundo, o facto de, para o período manuelino,

já existirem aquelas fontes de informação de que a época em estudo carece.

À falta de testemunhos concretos, teremos que tentar reproduzir o imaginário do

jardim medieval nas três ópticas fundamentais, isto é: a visão mística do jardim,

enquanto horto do Senhor, lugar de oração e de meditação; a visão lúdica do jardim,

lugar privilegiado da poesia e dos amores cortesãos; a visão que os documentos não

literários da época nos permitem construir.

É necessário ter presente que esta realidade não é limitada ao território português,

dado que, um pouco por toda a Europa, a falta de vestígios arquitectónicos do jardim

medieval obriga a seguir este mesmo critério de análise por toda a bacia norte do

Mediterrâneo. Por esta razão as nossas observações serão acompanhadas, como se

fossem notas à margem, de descrições, situações e documentos coevos, retirados de

outros países como a Alemanha, a França ou a Itália.

O nosso percurso, em vez de seguir a linha ascensional da terra em direção ao céu, de

acordo com as regras da cosmologia medieval, seguirá numa degradação plotiniana do

divino e etéreo para o humano e terrestre. Começaremos portanto pelo jardim místico,

descendo para o jardim de deleite, até poisar no jardim do paço medieval.

O jardim como espaço catártico: O Boosco

deleytoso e O Orto do Esposo

Trata-se de dois textos em prosa, em língua portuguesa, ambos anónimos. Enquanto a

datação do segundo, de fi nais do século XIV, inícios do século XV, é confi rmada pelos

dois manuscritos presentes na Biblioteca Nacional de Lisboa, do primeiro sabe-se

apenas que o texto existente, impresso em Lisboa a 24 de Maio de 1515, é da respon-

sabilidade de Hermano de Campos, «bombardeiro d’el-rei nosso Senhor»; contudo, de

acordo com José Leite de Vasconcelos, a sua estrutura linguística coloca-o em época

anterior, permitindo assim considerar as duas obras contemporâneas.

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A ordem em que foram colocados os dois títulos não é casual, pois pode usar-se o pri-

meiro para chegar ao segundo, andando pelo boosco deleytoso até ao orto do Esposo.

«Sendo eu mezquinho pecador em tal estado hia muyto amyude andar e espaçar

per huû cãpo muy fremoso coprido d’ muytas eruas e frolles de boo odor. Mais

nun [...] sobre my parriam aquella treuas muy escuras [...] me çercauom em der-

redor e dêtro em aminha conciençia.» (Boosco Deleytoso, II)

Assim, a Alma começa o seu percurso nos limiares de um bosque onde encontra o seu

anjo da guarda que, segurando-lhe na mão, leva o mezquinho pecador até à realiza-

ção espiritual. É o tema recorrente do percurso per aspera ad astra que, através dos

chants royaux sur la conception, frança, 2.º quart. séc. xvi, ms. francês 1537, pintura sobre pergaminho

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exercícios espirituais e dos colóquios com preclaros exemplos de virtude, leva a alma

até à purifi cação. Embora a imagem faça lembrar a de Virgílio que guia Dante desde a

selva obscura e aspra e forte do pecado até à selva spessa e viva que envolve o Paraíso

Terrestre, a obra foi justamente aproximada e comparada com o De vita solitaria de

Petrarca, onde o poeta conversa com uma longa série de célebres “solitários” para que

justifi quem e autorizem a sua busca de uma solidão pura, nunca ameaçada pela anxietas

e pelo tedium. Em Petrarca, o locus amoenus, lugar de deleite, retiro do mundo onde

rezar, meditar e dedicar-se ao estudo dos clássicos em tranquila solidão, é um espaço

objectivo, real: Vaucluse. No boosco deleytoso os lugares são imaginários, menos erudi-

tos, mas talvez mais poéticos. A Alma atravessa, de mão dada com o seu anjo guiador,

relvados viçosos que escondem pedras e espinhos cortantes, até chegar a clareiras, ver-

geis ou castelos onde se encontra uma fremosissima dama sempre diferente, carregada

dos atributos simbólicos de cada uma das Virtudes e a quem, cheio de espanto, o peca-

dor, com os giolhos em terra roguey [...] me desse consolaçom e remedyo em minhas

tribullaçoões (Boosco Deleytoso, IV). Não é tanto a descrição pormenorizada de um jar-

dim como locus amoenus, que aqui temos; é mais a imagem do jardim como negação do

tempo e da morte, onde a alma se purifi ca do pecado e volta à integridade originária.

O percurso entre uma clareira e outra é feito por zonas confusas e ruidosas de águas

turbulentas, enquanto o relvado é sem movimento e sem vento, porque o movimento

e o vento representam a inquietude e a instabilidade. Continuando o seu percurso,

a Alma encontra ilustres fi guras e claros exemplos que podem levá-la a entender e

desejar a vida solitária na qual se encontram os meios para alcançar o «alto monte»

onde é possível contemplar e receber o Esposo: o seu Orto.

Proveniente do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, O Orto do Esposo é uma obra

de doutrinação moral que procede através de exempla, de histórias e contos tradi-

cionais, utilizando a Bíblia, bem como todos os autores mais abordados na Idade

Média, num tecido repleto de alegorias. Comparando as Sagradas Escrituras com o

jardim de Éden, o autor devolve-nos, ponto por ponto, uma descrição cuidadosa do

espaço e dos símbolos do jardim místico.

«A Sancta Escriptura he tal como ho orto do parayso terreal deleitoso porque

ella he muy fremosamente apostada cõ marauilhosos e[n]xertos e muy gra-

ciosamête afeytada com muy graciosas plantas e he aprouada muy comprida-

mête cõ especias de muy bõõ odor, e com fl ores muy resplandecentes he muy

deleitosamente cheyrada, e cõ fructos muy dilicados he muy auõdosamête de-

leytosa, e cõ muy tenperados orualhos he muy blandamête regada, e he muy

saudauelmête abalada cõ uentos muy mansos de grande temperança, e cõ muy

deleitossos cantares daues he muy docemente resoada, e con muy linpos ryos

he muy abastossamente circûdada, e cõ muy fortes sebes he muy seguramête

guardada, e cõ guardadores muy preuistos he con grande vigilya gouernada.

E, porque êno parayso terreal ha estas cousas, porê he cõparada e semelhan-

te a Sancta Escriptura ao orto do parayso terreal.» (Orto do Esposo 1956, 14)

a árvore da igreja cristã, paris, biblioteca das artes decorativas

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Além da comparação pormenorizada que se segue a esta descrição introdutória e que

ajuda na leitura dos símbolos da iconografi a do Éden, o texto refere-se também a um

elemento extremamente importante para o desenho do jardim medieval, a veda ção

ou cerca do Paraíso terrestre «cercado ê redor de muro de fogo [...] defensom de

angios bõõs pera no leyxar hy chegar os maaos spiritus» (Orto do Esposo, 1956, 15)

que delimita o espaço do hortus conclusus.

Temos, portanto, nestas duas obras todos os elementos descritivos do jardim místico

que a iconografi a paralelamente ilustra e que, como veremos, desenhará a natureza

que emoldura a poesia cortesã, revestindo assim com a mesma forma o conteúdo

sagrado e o profano.

Do Hortus conclusus, do Hortus deliciarum,

do Locus amoenus

Os jardins do Pentateuco e do Evangelho constituem o paradigma do jardim de toda

a época da alta Idade Média, aos quais sucessivamente se juntou o arquétipo do

hortus conclusus saído do Cântico dos Cânticos, cuja escrita é atribuída a Salomão e

que a Vulgata difundiu entre os literatos e os artistas da época.

Dirigindo-se à sua amada, o autor do Cântico dos Cânticos usa estas palavras: «Hor-

tus conclusus soror mea, sponsa, hortus conclusus, fons signatus» (citado em Araújo

1962, 62), adjectivando a mulher de jardim fechado, fonte sigilada e provocando

com estas duas imagens o fascínio e a sensualidade do espaço íntimo ocultado,

o desejo de descobrir aquilo que o espaço fechado esconde e, ao mesmo tempo,

o respeito pelo pudor que o sela. No seu comentário ao Cântico dos Cânticos, Bernardo

de Claraval (1090-1153) descreve o jardim de forma quadrada que refl ecte os quatro

cantos do universo, cujo centro é constituído por uma árvore (árvore da vida) ou por

uma fonte ou poço (fonte de sabedoria, símbolo de Cristo e dos quatro rios do Paraíso),

onde o amante e a amada, a criatura e o criador, se escondem para reencontrar-se.

Na sua visão alegórica do jardim, aquele autor cisterciense refere duas tipologias que

serão fonte de inspiração para a iconografi a e a literatura seguinte, o hortus conclusus

e o hortus deliciarum.

O primeiro, um jardim secreto e fantástico, dentro do claustro, oferece protecção

contra o mal. Aqui se encontram plantas cheias de signifi cados simbólicos: a rosa, que

representa a Virgem, mas também símbolo do sangue divino e, pelos seus espinhos,

símbolo das penas de amor; o lírio, símbolo da pureza e da pobreza; as violetas, sím-

bolo da modéstia e da humildade; a romã, que representa a sólida união da igreja; a

palmeira, símbolo da justiça, da vitória e da fama; a fi gueira, metáfora da doçura, da

fertilidade, do bem-estar, da salvação; a oliveira, símbolo da misericórdia e da paz;

o trevo, que alude à Trindade.

O segundo, hortus deliciarum, é o mais cantado pela literatura cortesã. Os romances

de Chrétien de Troyes descrevem-no como um espaço vedado, cheio de frutos e fl o-

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res eternas, envolto por uma atmosfera mística. Jean de Meung, no célebre Roman

de la Rose, refere as várias espécies de árvores de fruto, as plantas ornamentais e o

elemento refrescante da água. Como metáfora do “amor cortesão”, o hortus delicia-

rum é o percurso que o cavaleiro deve fazer para chegar à felicidade. São, portanto,

estes dois horti as duas metades da vagem que encerra o locus amoenus, a paisagem

literária “por excelência”, o tópico da descrição da natureza desta época.

Na descrição poética, o jardim é, então, um espaço fechado em que se entra por

uma porta, circundado por um muro que separa o que está dentro do que está fora,

évard de conty, livro moralizado dos insucessos de amor, frança, séc. xv,

paris, bibliothèque nationale, ms. francês 143

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a realidade exterior e a interior: o espaço do jardim é um fresco alegórico de um

lugar sem tempo, lugar da eterna primavera, sempre cheio de frutos e fl ores que não

conhecem a caducidade. As iluminuras mostram cercas de canas entrelaçadas com

roseiras, mas também paredes de tijolo que tornam diferente e íntimo o espaço que

circunscrevem.

Voltando agora às imagens do locus amoenus que as literaturas, de par em passo

com o retrato dos livros iluminados e de algumas pinturas nos devolveram, Marie-

-Thérèse Haudebourg escreve:

«Très tôt et naturellement, à l’image biblique du jardin du paradis, hérité de la Perse

antique, les auteurs chrétiens avaient allié le topos du locus amoenus tel qu’il est

exprimé par Virgile et d’autres poètes antiques. C’est pourquoi du jardin d’éden,

lieu de pureté que ni le péché ni la concupiscence ne devaient souiller, on est revenu

si facilement aux jardins des romans courtois qui semblent en défi nitive comme des

refl ets inversés du jardin d’éden. Avec la poésie de cour, le jardin, voué par les moi-

nes à la prière ou à la gloire de Dieu, devient donc parage d’amour: locus amoenus,

le lieu de délices propice aux rencontres des amants.» (Haudebourg 2001, 144)

É, com efeito, a descrição de uma estratégia para os encontros de Tristão com a rainha

Isolda que nos permite visualizar o vergel do palácio real, situado por trás da câmara

do rei e da das mulheres, em direcção à fl oresta: rodeado por uma cerca de tábuas

pontiagudas cingida por um fosso; um grande pinheiro que estende as suas ramas até

ao relvado; no centro do vergel, de uma fonte de pedra brota a água que se escoa por

dentro de um pequeno canal, também de pedra, e corre até à câmara das mulheres,

dividindo-a ao meio. É pelo fl uxo da água que Tristão faz chegar as mensagens à sua

amada e é por baixo da ramagem do grande pinheiro que os amantes se encontram.

E durante um destes encontros o fascínio do luxurioso vergel do rei por debaixo das

estrelas leva Isolda a comentar:

«N’est-ce pas ici le verger merveilleux dont parlent les lais bretons? Une mu-

raille d’air infranchissable l’enclôt de toutes parts; parmi les arbres en fl eur le

héros vit sans vieillir entre les bras de son amie et nulle force hostile ne peut

briser la muraille d’air.» (Tristan et Iseult, XIV Le Coudrier et le chèvrefeuille)

Com igual poesia e ainda maior defi nição, no início do terceiro dia do Decameron,

Boccaccio oferece uma das mais belas descrições de um jardim cortesão:

«Appresso la qual cosa, fattosi aprire un giardino che di costa era al palagio, in

quello, che tutto era d’attorno murato, se n’entrarono [...]. Esso avea d’intorno da

sè e per lo mezzo in assai parti vie ampissime, tutte diritte come strale e coperte

di pergolati di viti [...]. Le làtora delle quali vie tutte di rosaj bianchi e vermigli,

e di gelsomini erano quasi chiuse [...]. Nel mezzo del quale [...], era un prato di

minutissima erba, e verde tanto che quasi nera parea, dipinto tutto forse di mille

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varietà di fi ori, chiuso d’intorno di verdissimi e vivi aranci e di cedri [...]. Nel mezzo

del qual prato era una fonte di marmo bianchissimo e con maravigliosi intagli.

Iv’entro,[...] per una fi gura la quale sopra una colonna che nel mezzo di quella

diritta era, gittava tanta acqua e sì alta verso il cielo, che poi non senza dilettevol

suono nella fonte chiarissima ricadea [...]. La qual poi per occulta via del pratello

usciva, e per canaletti assai belli e artifi ciosamente fatti, fuori di quello, divenuta

palese, tutto lo ‘ntorniava; e quindi per canaletti simili, quasi per ogni parte del

giardin discorrea [...].» (Boccaccio, Decameron, Giornata III, Introduzione)

Apesar da literatura portuguesa não oferecer descrições tão extensas e pormenoriza-

das, temos, no entanto, um belo exemplo, embora tardio, dado pela mão de Bernar-

dim Ribeiro, na sua Menina e Moça, onde a ama, relembrando o encontro furtivo de

Beliza com Lamentor, adormece a desinquieta Aónia com a lengalenga da sua história:

«Mal cuidava eu o que havia de acontecer à senhora Belisa quando aquela

noite, depois de dormirem todos, nos alevantámos nós sós, caladamente, e pelo

laranjal do jardim, que com a espessura do arvoredo fazia então maior escuro,

p assámos cheias de medo. E vós pegada em mim toda tremendo, fomos sair

pela portinha falsa que no mais escuro lugar dele estava, aonde achámos a La-

mentor aguardando-nos já havia pedaço, todo cheio de esperanças tão longas,

que enfi m haviam de vir ser assim esperanças e não mais.» (Ribeiro, Menina e

Moça, Bimarder e Aónia)

boccaccio, decameron, ilustração do séc. xv, frança (rouen), maître de

l’échevinage, xv séc., ms. francês 129, pintura sobre pergaminho

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Como refere Ilídio Araújo, foi avançada a hipótese de esta cena poder ser enquadrada

na Quinta da Sempre-Noiva, perto de Arraiolos, mandada construir por D. Afonso de

Portugal, bispo de Évora e que, na altura em que Bernardino Ribeiro lá emoldurara

os encontros dos amantes, já teria passado às mãos da fi lha, D. Beatriz. Ora, é bem

possível que para descrever este encontro, o autor tenha usado os elementos descri-

tivos que tinha ao seu dispor e, portanto, achamos lícito pensar que, no momento em

que o autor escreveu estas páginas, os jardins ainda pudessem ter esta confi guração,

herança de uma tradição passada e ainda não fruto da nova tendência renascentista.

Vimos assim variamente repetido este desenho de jardim fechado que a descrição

luminosa de Boccaccio que citámos parece contradizer, derrubando as vedações

enclausurantes e abrindo os espaços do jardim italiano renascentista. Contudo, é

necessário lembrar o valor cívico de que se reveste este jardim do Decameron: na

sua fuga desatinada da epidemia, o jardim é um lugar onde a brigada de jovens se

recompõe e volta a adquirir o controle sobre a vida. No entanto, os jardins das novelas

que, à vez, os jovens vão contando à espera de voltar à vida normal, correspondem

perfeitamente à descrição do hortus conclusus. Considerando, portanto, esta abertura

“boccaccesca” como uma excepção, o jardim íntimo e isolado é a conotação constante

desta época que nos é transmitida pela literatura e que o próprio termo “jardim”, na

sua etimologia gótica garda, “fechadura”, confi rma. É verdade que em Portugal o

termo jardim começa a ser utilizado, em forma erudita, apenas com D. João III; porém

a imagem que nos chega deste espaço parece conformada à sua etimologia.

Entrando nos jardins medievais

Baixando à terra, por assim dizer, encontramos a Europa numa época de grandes acon-

tecimentos e mudanças: a Guerra dos 100 anos enfurece, fazendo de moldura ao cisma

avinhonense; a peste de 1348 já passou, mas os seus resquícios ainda se fazem sentir;

Granada, por sua vez, continua nas mãos dos Árabes. Estão presentes todos os elemen-

tos de insegurança e desequilíbrio que levam à busca da felicidade imediata e efémera.

Se, por um lado, é o momento em que os reis e os nobres encomendam livros de

horas para poder segredar com o Divino, rezar e meditar, é também verdade que os

encomendam cada vez mais ricos e preciosos, como elemento de ostentação da sua

opulência. E esta atitude refl ecte-se ainda mais na arquitectura da época. Se quiser-

mos uma belíssima junção destes dois aspectos, basta pensarmos nos sumptuosos

palácios do Duque de Berry iluminados nas suas Très Riches Heures.

Nos paços da realeza e da nobreza portuguesas não iremos à procura de tanto fausto

e, por enquanto, ainda menos nos seus jardins:

«Estou convencido que nos primeiros séculos da monarquia a jardinagem tinha um

caracter modesto e rudimentar. Os jardins reaes eram uma reprodução modesta

dos de Alcino, com as suas hortas e pomares, não esquecendo os canteiros de

plantas therapeuticas.» (Sousa Viterbo 1906, 10)

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É esta a visão que Sousa Viterbo tem dos jardins dos paços reais, afi rmando também

que não haverá obras de arte até ao século XVII, assim como a construção de jardins bo-

tânicos destinados ao estudo das plantas é adiada até ao último quartel do século XVI.

Com efeito, as poucas referências a hortas dos paços reais anteriores à época manue-

lina dão-nos essencialmente conhecimento da sua existência e também de um certo

cuidado por parte dos reis para com eles, aparecendo em documentos que referem

a compra de um imóvel onde são nomeados os “pomares”, como é o caso do docu-

mento que prova a compra do Paço de Água-de-Peixes por D. Dinis “com pomar,

vinha azenha e casas” (citado em Carita 1987, 32).

les très riches heures du duc de berry, março, ilustração do séc. xv, frança,

chantilly, museu de condé

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De um ponto de vista estrutural, a planta dos paços e das casas da nobreza, por aquilo

que nos é possível deduzir dos seus vestígios, era o contrário do modelo da prece-

dente casa romana e dos palácios árabes, ambos edifi cados em volta de um espaço

central ajardinado, de um pátio habitualmente com uma fonte ao centro, mas que

não dispensava uma horta exterior com diversa fi nalidade, enquanto, «[...] o paço

medieval se fecha ao exterior e se estrutura para dentro, numa concepção que tem

tanto de intimidade quanto de necessidade mínima de defesa, numa época em que

a segurança era reduzida.» (Silva 2002, 33). Fecha-se, sim, mas não em volta de um

espaço aberto, ao ar livre. O paço é um bloco único limitado na parte da frente por um

pátio de entrada e, na parte de trás ou de um dos lados, por uma horta. Nem o Paço

da Vila de Sintra escapa a este paradigma. Com efeito, a parte do palácio edifi cada

por D. João I estrutura-se toda em volta de um pátio central, o pátio do Esguicho,

com o grande tanque dos Cágados, existindo também outro, mais pequeno, o pátio

de Diana, que obedece à mesma disposição. Isto leva sem dúvida a pensar que o seu

perímetro seja de construção árabe, assim como, provavelmente, o seu requintado

sistema de canalização das águas, para cuja manutenção sabe-se que chegou a existir

uma inteira geração de mestres-de-obras. No entanto, o paço joanino funcionava

como uma unidade, sendo a sequência das divisões no seu interior em funil, desde

a sala até à trascâmara, sem que o percurso tivesse como fi nalidade o debruçar-se

sobre o dito pátio. E mais, até às destrutivas remodelações dos anos 30 do século

transacto, o palácio tinha de facto um pátio de entrada em frente ao corpo central e

nas traseiras encontravam-se, e estes ainda hoje se encontram, embora com outros

nomes, os Pomares da Rainha e o Pomar do Sol.

Mas voltando a D. João I, a grande reviravolta por ele operada deixa claras marcas na

lógica e na qualidade de vida da corte. Constrói o Mosteiro da Batalha e St.ª M.ª da

Oliveira em Guimarães e reestrutura e amplia palácios como o Paço da Vila de Sintra,

como já vimos, o reduto castelar de Leiria ou os Paços da Alcáçova de Lisboa. Ao

mesmo tempo cria as condições que incentivam também a nova nobreza a construir e,

sem dúvida, como se pode notar pelos alvarás de obras e outros inventários da época,

dedica uma maior atenção ao conforto e à qualidade de vida dentro dos palácios, não

esquecendo certamente os seus espaços ajardinados. Poderíamos até ousar a hipótese

que a estes cuidados acrescidos não seja alheia a presença de D. Filipa de Lencastre,

pois é notório o interesse dos britânicos pela jardinagem já naquela altura.

Na mesma linha, a escritura de aforamento do rei D. Afonso V dos Paços do Arcebispo

na Alcáçova de Lisboa, além de nos fornecer informações sobre as plantas escolhidas

(ciprestes, laranjeiras e limoeiros), também já testemunha o cuidado que este rei tinha

para com os seus “pomares”, o que nos leva a pensar que na época a sua fruição já

não tivesse uma conotação meramente hortícula, mas também de deleite.

É também de notar que as plantas referidas neste e noutros documentos da época

são essencialmente plantas de alto porte, o que prova a infl uência dos jardins árabes

para os quais, diversamente do modelo italiano e francês, as plantas usadas eram pre-

valentemente árvores, desenhando assim a parte frondosa do jardim num nível mais

alto e entregando a parte térrea à pedra mármore, à água e aos seus pequenos canais.

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2. O manuscrito original do Itinerarium sive pe-

regrinatio excellentissimi viri, artium ac utrius-

que medicinae Doctoris Hieronimi Monetarii de

Feltkirchen, civis Nurembergensis, encontra-se

na Biblioteca de Munique. Para facilitar a com-

preensão, aqui será usada a tradução portugue-

sa de Basílio Vasconcelos in “Itinerário” do Dr.

Jerónimo Münzer (excertos), Coimbra, Imp. da

Universidade, 1931, e a espanhola de José Ló-

pes Toro in Jerónimo Münzer, Viaje por España

y Portugal 1494-1495, Madrid, Talleres Alduc,

1951.

Voltando aos cuidados mostrados por D. Afonso V, também não é de espantar que a

sua irmã, a Infanta D. Leonor, durante a navegação ao encontro do Imperador Frede-

rico III, seu esposo, que a aguardava em Pisa, tendo parado em Ceuta, e hospedando-

-se no grande palácio real outrora residência do rei de África e de Aníbal, segundo

nos relata o bispo Nicolau Lankmann de Valckenstein seu acompanhante, aí tenha

plantado com as suas próprias mãos, dentro do hortus pulcherrimus, ao lado de um

esplendoroso balneário, um ortulum, um jardinzinho para recordação e, como prova

da dedicação de que tinha revestido este acto, «ortulanu summe commendavit, cui

pro arra unum ducatum tribuit.» (Valckenstein, Desponsatio et Coronatio Serenissimi

Domini Imperatoris Friderici III et eius Auguste Domine Leonore, § 31, 1992, 58).

E aproveitando esta deixa do nosso bispo, vamos então demorar-nos um instante

ao pé desta fi gura que começa a entrar também na cena dos jardins portugueses:

o ortolanus, ou seja, o jardineiro.

Enquanto as ordens de D. Afonso V para os cultivos na Alcáçova de Lisboa são

dirigidas ao vigário, D. João II sente a necessidade de entregar estas tarefas a um

verdadeiro profi ssional do ofício e manda chamar Gomes ou James Fernandes, hor-

telão e guarda da famosa horta de Valência, da qual voltaremos a falar mais adiante.

E chama-o para trabalhar «na horta dos paços de Évora que, além das plantas de uso

doméstico e dos pomares, seria semeada de hervas de virtude» (Sousa Viterbo, 1906,

71), informando-nos assim da dupla função do jardim do paço.

O cargo de Gomes Fernandes começa em 1494 com um ordenado de 17.000 reais,

pagos metade no princípio do ano e metade no S. João, mais o aproveitamento da

horta e D. Manuel confi rma-o, em 1496; suceder-lhe-á Pasquim Velanes, de provável

origem italiana, a quem, por sua vez, segue António Monteiro e, a partir daí, uma

série de nomes, às vezes ligados uns aos outros por parentesco, cujas pegadas Sousa

Viterbo segue atentamente de paço em paço, entre Évora, Salvaterra, Almeirim, Alhos

Vedros, por Portugal fora.

O álbum de fotografias de um turista pasmado

Este último passeio pelos jardins medievais será feito na companhia de Jerónimo

Münzer, um abastado médico alemão que, fugindo à peste que naquela época en-

furecia em Nuremberga, a 2 de Agosto de 1494, com três jovens, fi lhos de ricos

mercadores, António Herwart, Gaspar Fischer e Nicolas Wolkenstein, partiu rumo à

Península Ibérica.

O relato da viagem2 começa na fronteira entre Catalunha e Rossilhão, na cidade de

Perpinhão, e é uma galeria de verdadeiras fotografi as tiradas por um viajante extrema-

mente curioso e entusiasta que não podemos deixar de imaginar com uma expressão

de surpresa e maravilha desenhada na cara. As descrições sobre a arquitectura, a vege-

tação e a maneira de viver e de receber das pessoas com quem o viajante tem opor-

tunidade de cruzar-se na sua estrada, riquíssimas de pormenores, começam a ser um

pouco mais abreviadas até sair de Portugal, uma vez entrados na Galiza, com excepção

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do encontro com os Reis Católicos, em Madrid, episódio fulcral desta peregrinação.

Do ponto de vista que mais nos interessa, o percurso do Doutor Münzer é semea-

do de jardins, pátios, pomares e terrenos férteis dos quais elenca todos os tipos de

cultivos com a mesma abundância de pormenores e com o mesmo olhar maravilhado

com que descreve os animais mais insólitos que, naquela época, os reis e senhores

costumavam mandar vir de terras longínquas para seu deleite.

E logo no primeiro dia de viagem, chegados a Perpinhão,

«Estábamos hospedados en las afueras de la ciudad, junto a la muralla, en casa

de cierto caballero llamado Don Sigisberto, cuya casa era tan magnífi ca, que la

toma rías por algún castillo o palacio. Habia detrás de la casa, hacia el norte, dos

extensos y muy alegres huertos, construídos como los claustros y cercas de los

monasterios en Alemania. Todo el contorno estaba cubierto por diferentes clases

de ubérrimos racimos, y sus costados, de árboles de la más variadas especies. [...]

Los huertecillos aquellos estaban sembrados de todas las especies de frutos [...],

los granados, los naranjos, las viñas, las higueras, los almendros, los nísperos,

los melocotoneros [...]. Un acueducto sabiamente dirigido regaba con la mayor

facilidad aquellos huertos [...]. No bastaría una hora para enumerar aquellas

delicias. Nunca vimos huertos semejantes.» (Münzer 1951, 1-2)

Se bem que este comentário fi nal seja repetido várias vezes ao longo da peregrina-

ção, estamos perante um exemplo de amplo hortus conclusus no espaço de uma casa

senhorial. Estamos a entrar na zona que viu a dominação árabe e não admira que o

viajante alemão fi que tão estupefacto quer com as obras de hidráulica quer com a

enorme variedade de frutos e árvores que a fl ora mediterrânica oferece.

Prosseguindo no seu percurso, os quatro companheiros chegam a Barcelona, onde

encontram a lonja dos mercadores, uma construção arquitectónica imponente, pois o

seu pátio conta dez fi leiras de laranjeiras e limoeiros, «en medio una fuente saltarina,

y a los lados asientos cuadrados de piedra.» (Münzer 1951, 5). É curioso encontrar o

elemento jardim numa construção destinada aos negócios e veremos outras estruturas

do mesmo género ao longo da viagem.

Extremamente interessantes são as notas relativas a Valência que é descrita como

uma cidade pujante, fértil e rica em todos os recursos. Aqui encontra a Casa de Ino-

centes y de Locos, de que nos deixa uma vivíssima, quase arrepiante descrição, mas,

sobretudo, é levado a visitar o horto da cidade

«que está excelentemente plantada de limoneros, naranjos, cidros y palmeras.

Y todas sus cercas cubiertas con las ramas y hojas de los naranjos. Hay también

mesas, altares, púlpitos, naves, asientos, todo deliciosamente construído con

arrayán, que es mixto entre frutal y arbusto, de hojas siempre verdes, como el

boj. Tiene fl ores blancas y muy olorosas, como el lirio de los vales. Siempre está

verde como el boj. Con facilidad se inclina, se conduce, se alarga y se dobla para

todas partes. Así, con él se forman variadas fi guras.» (Münzer 1951, 18)

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planta de saint-gall segundo desenho sobre pergaminho do séc. ix, saint-gall, stiftsbibliothek

Pomarius Hortus

Herbolarius

Temos aqui um verdadeiro exemplo de arte paisagista, talvez inesperado nesta altura,

que não parece dever-se à herança árabe e, por acréscimo, num espaço social que não

tem nada a ver com la Huerta del Rey que a alegre companhia irá visitar logo a seguir.

E fi nalmente chegamos a cruzar um hortus muito particular que até aqui não tinha

sido visto: o horto do mosteiro. Se, por um lado, numa primeira fase, a chegada dos

povos invasores do norte de Europa não habituados às temperaturas e às vegetações

mediterrânicas e provavelmente com uma alimentação preferencialmente proteica e

pouco atenta a certos requintes aromáticos, tinha abafado a tradição romana dos

topiarii, por outro, não tinha com certeza abrandado o crescimento das hortas no

espaço dos edifícios monásticos, que juntam o interesse de pôr a bom fruto a terra

para produzir alimentos e remédios vegetais necessários aos monges, ao de possuir

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3. Esta descrição não pode deixar de nos lem-

brar a estrutura que se encontra no Paço da Vila

de Sintra que já mencionámos.

atributos inerentes à simbologia cristã. Os jardins dos edifícios da ordem beneditina

tinham o seu espaço ajardinado geometricamente dividido em fi las de alegretes

articulados em xadrez segundo regras precisas e a abadia de Cluny destinara um

espaço considerável aos claustros e às zonas cultivadas com perfumes e aromas que

pudessem ligar ao universo alegórico espiritual.

Em seguida, o Doutor Münzer visita o mosteiro da Ordem dos Pregadores, fora de

Valência, onde vivem seis frades, a quem o rei deu um excelente lugar

«donde tienen preciosos y extensíssimos huertos, con muchas palmeras y dátiles

– que en otro tiempo pertenecieron a los más ricos de los sarracenos – de los

cuales pueden vivir. Tienen mucha agua de manantial. [...] ¡Oh, que bellos

serían estos huertos cuando estaban en su esplendor los sarracenos, que son

muy habilidosos en la exquisita disposición de los huertos, del frutos y de las

cañerías, que si no lo ve uno difi cilmente se cree.» (Münzer 1951, 32-33)

Não é, sem dúvida, o mais característico horto monástico; no entanto, é interessante

esta junção entre as duas tradições, cristã e muçulmana. No fundo, a ideia de jardim-

-paraíso oriental defi ne uma tipologia muito próxima da claustral. O jardim islâmico

ocupa o centro da casa assim como o claustro ocupa o centro da zona habitacional do

mosteiro; um mesmo palácio pode ter vários jardins que comunicam entre si através

de pequenas portas laterais assim como o mesmo mosteiro pode ter mais do que um

claustro, enquanto a horta é virada para o espaço exterior. A cartuxa de Santa Maria

de las Cuevas, que o nosso viajante encontrará perto de Sevilha, é um exemplo:

«Tiene excelentes celdas, y sobre ellas los dormitorios, hermos huertos y claustros

preciosamente construídos delante de las celdas. En la parte central, un huerto tan

ameno, con varios dibujos de mirto, arrayán y jazmín, que es casi increíble. [...]

Fuera del monasterio y de las celdas hay dos huertos que riegan con agua traída de

Betis con dos mulas. Huertos, repito, agradabilísimos, con cidros, naranjos, grana-

dos, higueras, almendros, vides y perales, cuyos frutos estaban aún pendientes de

los árboles. ¡No he visto, en verdad, huertos mas hermosos!» (Münzer 1951, 63-64) 3

Retomando então o percurso do nosso viajante, chegamos a Granada. De todo o

percurso feito por Espanha até agora, podemos dizer que o desenho do jardim que

se apresenta já não é apenas um desenho imaginário e ainda menos os jardins de

La Alhambra que chegaram até nós. Vamos limitar-nos, portanto, a referir apenas a

maravilha provocada no visitante alemão pela famosa fonte dos Leões:

«en el centro de uno de los palacios, una gran taza de mármol, que descansa

sobre trece leones esculpidos también en blanquísimo mármol, saliendo agua de

la boca de todos ellos como por un canal. [...] No creo que haya cosa igual en

toda Europa. Todo está tan soberbio, magnífi ca y exquisitamente construído, de

tan diversas materias, que lo creerías un paraíso.» (Münzer 1951, 37)

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No dia de São Martinho, a pequena comitiva parte de Sevilha em direcção a Portugal,

onde entra, por Serpa, no dia seguinte e a partir deste momento, até sair defi niti-

vamente da península, com excepção da descrição da casa do cardeal Don Pedro de

Mendoza, em Guadalajara, por onde passará logo após a visita aos Reis Católicos em

Madrid, as descrições de jardins, até aqui tão entusiastas e pormenorizadas, não pas-

sam de pequenos apontamentos quase exclusivamente reservados a hortos e claustros

dos mosteiros. Isto pode ter a ver com uma certa exigência de brevidade ou com a di-

minuição de interesse dos espaços ajardinados. No entanto, o relato continua salpi cado

pelas descrições dos campos e dos cultivos que se estendem entre as várias povoa-

ções e dos mercados, mantendo-se constante o fascínio pelas maravilhas botânicas.

Chegados a Évora, onde na altura D. João II residia, o Doutor Münzer relata:

«Há em Évora um lindo palácio real e uma lindíssima igreja abobadada, que é

sé episcopal, com um famoso claustro; passeando sôbre ela, como se fôsse um

terraço, vimos a situação da cidade, que é grande, maior que Ulm. No páteo do

palácio real vimos também um camelo novo e bonito, que o rei mandou trazer

da África, onde êles abundam.» (Münzer 1931: 13)

Durante a sua estadia em Évora, a pequena companhia sentou-se quatro vezes à

mesa com o rei e um dia «em que o Rei almoçava no jardim orlado de laranjeiras,

ao pé do castelo de Évora...», descreveu para o visitante alemão as maravilhosas

árvores da ilha de São Tomé, «tão altas que um fundibulário difi cilmente lhes atinge

o cume com uma pedra» e cujos frutos, parecidos com cabeças, são usados como

vasos. «Êsse jardim, onde êle almoçou, era novo; havia quatro anos que o tinham

plantado e rodeado duma sebe de canas. O Rei disse-me que nessa ilha o jardim se

desenvolveria tanto em oito meses como em Évora em quatro anos.» (Münzer 1931,

59-61). Fica, portanto, confi rmado o cuidado de D. João II para com o jardim e a

transformação da horta ou pomar em jardim de lazer.

A 26 de Novembro, chega Jerónimo Münzer a Lisboa, onde diz que existem dois caste-

los reais, dos quais não fornece mais descrições. No entanto, delicia-se com o pátio da

sinagoga dos judeus, coberto por uma videira cujo tronco mede quatro palmos de cir-

cunferência. Visitando os conventos do Carmo e da Trindade, descobre mais uma mara-

vilha botânica, «uma grande árvore chamada dragão, da qual corre sangue de dragão

que é uma seiva avermelhada» (Münzer, 1931, 19) e à qual dedica duas páginas inteiras.

O incansável alemão sobe também ao castelo «com palácios, páteos e outras cou-

sas» que não descreve e onde encontra dois leões «os mais bonitos que tenho visto»

(Münzer, 1931, 22). E este é o último apontamento que encontramos no percurso

português, mas, como já foi dito, também o resto da viagem não nos oferece imagens

pitorescas como as do percurso por Catalunha e Andaluzia. E por muito que isso possa

de facto depender de uma forma mais rápida de relatar a viagem, não podemos pôr

de lado a questão da imanência da herança árabe naqueles territórios.

Ao longo deste trabalho não nos detivemos nos aspectos ligados à fi losofi a dos jardins-

-paraíso do mundo muçulmano, tocámos apenas em pontos onde os jardins árabes se

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cruzavam com os europeus. Queremos portanto fechar este texto usando como lacre uns

versos de Ibn J āţima, mestre de Almeria, de meados do século XIV, que, não resumindo

esta fi losofi a, lançam seguramente a imaginação no fascínio do símbolo dos sentidos:

Anda como una gacela que se aleja de nosostros,

su talle es tan frágil, que parece va a romperse.

La deseé en una fi esta, en médio de un jardín

que nos enviaba el perfume del âmbar desde su arboleda.

Me llamó y dijo: ¿Es que eres insensible?

¿Que jardín puedes desear después de verme?

Su espesura, las ramas, el perfume, el rocio,

sus hojas, las palomas, la duna, el laurel,

su verdor, el vino, los dulces, las canciones,

sus narcisos, el azahar, el mirto, la rosa,

son mis vestidos, mis brazos, mi aliento, mis favores,

mis pendientes, mis joyas, mis caderas, mi talle,

mi cara, mi saliva, mis pechos, mi voz,

mis ojos, mi boca, mis cabellos, mi mejilla;

cuando aparezco, aparece mi hermosura y si me oculto

no hay pena que se esconda ni belleza que se muestre.4 •

4. Tradução de Soledad Gilbert in El Diwan de

Ibn Jatima de Almería: poesia arabigoandaluza

del siglo XIV, Barcelona, Universidad de Barce-

lona, Publicaciones del Departamento de Árabe

e Islam, 1975.

a história de bayad e riyad, espanha ou marroco, séc. xiii, vaticano, biblioteca apostolica vaticana, ms. árabe 368

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r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 92 8 2

no

tíci

a

A ESCULTURA EM

PORTUGAL

Da idade média

ao início da idade

contemporânea:

história e património

O Colóquio Internacional A Escultura em

Portugal. Da Idade Média ao início da

Idade Contemporânea: história e patri-

mónio, decorreu entre 12 e 14 de Março

2009, no Palácio Fronteira, em Lisboa.

Organizado pela Fundação das Casas de

Fronteira e Alorna, que acolheu a ideia

inicialmente proposta por Pedro Flor e

Teresa Leonor Vale, o colóquio tinha por

objectivo primeiro apresentar, preferen-

cialmente mas não exclusivamente numa

perspectiva histórica, a escultura existen-

te em Portugal, criada entre a Idade Mé-

dia e o início da Época Contemporânea.

Entre os seus objectivos contava-se o

de desenvolver uma abordagem plu-

rifacetada da temática eleita, não só

procedendo à identifi cação e análise de

obras e artistas, mas também de pro-

gramas iconográfi cos e soluções deco-

rativas. Ainda no âmbito da abordagem

histórica pretendiam os organizadores

questionar a existência de uma escul-

tura portuguesa, detentora de caracte-

rísticas particulares, passíveis de serem

objectivamente identifi cadas, bem como

o papel desempenhado pela presença

de obras importadas, reconhecíveis en-

tre nós desde muito cedo. O colóquio

tinha ainda por fi nalidade compreender

e aprofundar questões inerentes à sal-

vaguarda, conservação e preservação do

património escultórico nacional.

A Comissão Científi ca do colóquio era

constituída pelos Professores Doutores

Jean-Marie Guioullet, José Custódio

Vieira da Silva, Natália Ferreira-Alves,

Pedro Flor e Teresa Leonor Vale, tendo

a coordenação científi ca e executiva sido

assegurada por Pedro Flor, Teresa Leo-

nor Vale, Maria João Pereira Coutinho e

Sílvia Ferreira.

Para uma mais efi caz organização dos

sub-temas contemplados, identifica-

ram-se as seguintes áreas temáticas,

nas quais se enquadraram as 22 co-

municações que ao longo dos 3 dias

da iniciativa foram apresentadas pelos

26 participantes: I. Abordagem históri-

ca, II. A escultura e as outras artes e III.

O património escultórico: sua conserva-

ção, preservação e salvaguarda.

Assim, as comunicações incluídas no pri-

meiro quadro temático, permitiram efec-

tivamente traçar um percurso desde a

escultura românica até àquela neoclássi-

ca, passando pelo Renascimento, Barro-

co e Rococó, considerando não só a pro-

dução nacional, como também as peças

importadas. Houve desse modo lugar a

uma análise, por vezes mais abrangente,

por vezes mais aprofundada, de obras

e artistas nacionais e estrangeiros que

se encontram ou encontraram no nosso

país e que nem sempre foram objecto

do olhar atento e cuidadoso do qual são

merecedores.

O segundo conjunto de comunicações,

consagrado ao sub-tema da escultura e

as outras artes, facultou uma aborda-

gem diversifi cada que passou pela re-

lação da escultura com as outras artes

(nomeadamente aquelas denominadas

decorativas) ou domínios (urbanismo) e

pela representação da própria escultura

(na azulejaria).

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quisa de arquivo e a observação cuidada

e demorada da obra de arte. As novida-

des documentais que surgiram durante

as intervenções e as diferentes propos-

tas de trabalho sugeridas, sem esquecer

as novas perspectivas metodológicas de

abordagem à escultura foram constantes

ao longo dos três dias, proporcionando

um clima de debate profundo e varia-

do que se estendeu, por vezes, até ao

terraço do magnífi co Palácio Fronteira

durante as pausas para o café.

No colóquio A Escultura em Portugal foi

ainda possível estabelecer contactos di-

versos entre os comunicantes e os parti-

cipantes que ultrapassaram largamente

a meia centena, registando-se sempre

uma óptima assiduidade em sala. Neste

encontro de carácter científi co procu-

rou-se, sobretudo, promover o encurta-

Finalmente, a terceira área temática,

dedicada à conservação, preservação

e salvaguarda do património escultóri-

co existente em Portugal, contou com

comunicações que, para além de apre-

sentarem intervenções específi cas, co-

locaram em evidência a importância da

interdisciplinaridade e a concreta neces-

sidade da constituição de equipas pluri-

disciplinares neste domínio.

Durante as sessões, ouviram-se repeti-

damente apelos ao estudo integrado e

exaustivo de inventário e de arquivo, à

sistematização da informação recolhida

e à promoção de projectos de investi-

gação de fundo. Existe uma quantidade

signifi cativa de obras de arte escultó-

ricas que carecem de estudo alargado,

desejavelmente sob uma perspectiva in-

terdisciplinar, tomando por base a pes-

mento de distâncias entre investigado-

res e estudiosos nacionais e estrangeiros

provenientes das mais diversas áreas de

interesse que, deste modo, tiveram a

oportunidade de contactar entre si e

partilhar experiências variadas no campo

da investigação da História da Arte. Es-

pera a Fundação das Casas de Fronteira

e Alorna e os organizadores publicar um

volume de actas que constituirá, certa-

mente no futuro, uma obra de referência

para todos aqueles que analisam, discu-

tem e estudam com profundidade a arte

da escultura. •

Pedro FlorTeresa Vale

Page 284: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 92 8 4

dos), concretamente no âmbito da in-

vestigação levada a cabo pelo grupo de

Antropologia Histórica sobre o Ociden-

te Medieval (o GAHOM), que se integra

na École des Hautes Études (EHESS,

Sorbonne) e está associado ao Centre

National de la Recherche Scientifi que

(CNRS, Paris).

À partilha de metodologias, difi culda-

des, léxicos e soluções que o debate

com investigadores empenhados em ta-

refas idênticas sempre traz e que, numa

segunda fase do projecto Imago, de que

se aguarda aprovação pela FCT (Fun-

dação para a Ciência e a Tecnologia),

actuarão no enriquecimento da base de

dados já construída, acresce sublinhar-

-se o facto de esta mesma apresentação

ter proporcionado a integração da base

de dados Imago (única do género em

contexto português) na rede europeia

de catalogações de índole iconográfi -

ca, em que os centros de investigação

franceses continuam a ocupar um lugar

pioneiro e orientador. •

Joana Ramôa

Apresentação do

projecto IMAGO

no Seminário Livre

Inter-Universitário

2008/2009 do IEM /

GAHOM, na EHESS

(Paris IV, Sorbonne)

A divulgação do projecto Imago (POC-

TI/EAT/45922/2002), entendida como

parte fundamental do desenvolvimen-

to e do enriquecimento da investigação

levada a cabo e da sua articulação vi-

tal com a comunidade (científi ca e mais

geral), tem vindo a operar-se, como de

resto se disse no espaço próprio de que

a apresentação do mesmo projecto goza

nesta revista, por vias diversifi cadas, de

entre as quais ressalta a publicação de

uma obra e de um conjunto de artigos

assentes nos resultados e nos questio-

namentos que foram, simultaneamente,

resultando e estimulando o trabalho

de todos os investigadores envolvidos.

Esta mesma preocupação com a divulga-

ção da inédita reunião de dados e ima-

gens a que corresponde a base Imago

assenta na dupla consciência da enorme

carência existente neste domínio especí-

fi co da investigação em Portugal – o da

Iconografi a – e da importância que estas

bases de dados assumem na actualida-

de, mesmo como instrumentos de novas

metodologias de trabalho que estão a

ser propostas e que gozam da ampliação

signifi cativa de horizontes e das ilações

possíveis que o alargamento de corpus

de estudo por esta via vem proporcionar.

Assim, foi no contexto de uma sessão do

Seminário Livre Inter-Universitário or-

ganizado no ano lectivo de 2008/2009

pelo Instituto de Estudos Medievais

(FCSH), realizada na Universidade de

Paris IV (Sorbonne), em Novembro de

2008, que mais uma vez pudemos, de

resto numa das suas primeiras apresen-

tações orais públicas, dar a conhecer

o projecto de investigação Imago, os

seus princípios defi nidores, métodos de

trabalho e resultados fi nais, nomeada-

mente a um grupo de investigação que

alimenta, no presente momento, uma

base iconográfi ca semelhante (embora

seguindo a vertente mais tradicional da

catalogação centrada em livros ilumina-

Page 285: Rha 7

Nikias SkapinakisPAISAGEM DE LISBOA, 1972Óleo sobre tela, 100 x 81 cm

António Costa PinheiroD. NUNO CONDESTÁVEL, 1966Óleo sobre tela, 150,8 x 110,3 cm

José EscadaSEM TÍTULO, 1970

Acrílico sobre papel colado em tela, 66 x 51 cm

Joaquim RodrigoVAU V, 1980

Vinílico sobre platex, 99,5 x 150,2 cm

Maria Helena Vieira da SilvaGAYA, 1971

Óleo sobre tela, 162,3 x 113,8 cm

José de Almada NegreirosFAMÍLIA, 1940

Gouache e aguarela sobre papel, 65,5 x 53,5cm

Dordio GomesCEIFEIROS EM DESCANSO, N.DAT

Óleo sobre platex, 27 x 35 cm

Manuel AmadoPORTA DA ESTAÇÃO, 1986Óleo sobre tela, 126 x 89,8 cm

Paula RegoA PONTE (CÃO), 1972

Acrílico e colagem sobre tela, 38,3 x 46 cm

René BertholoUM CATALÃO EM MOSCOVO, 1991

Óleo sobre tela, 116 x 80,8 cm

João HoganALTO DOS SETE MOINHOS, 1950

Óleo sobre tela, 97,3 x 130,5 cm

Júlio ResendeSARGACEIRO, 1971

Óleo sobre tela, 146,7 x 97 cm

Mário CesarinySEM TÍTULO, 1973

Óleo sobre tela, 50,3 x 65,3 cm

Júlio PomarTIGRE, 1980

Óleo sobre tela, 115,1 x 79,5 cm

Eduardo LuizMORT DE REMBRANT, 1985

Óleo sobre tela, 114,2 x 162,5 cm

António DacostaSEREIA, 1983

Óleo sobre tela, 89 x 116 cm

Nadir AfonsoLEIPZIG, 1988

Óleo sobre tela, 86,8 x 121,2 cm

Álvaro LapaDA SÉRIE MORADAS NA MÃE-TERRA, 1973

Tinta acrílica e tinta de impressão sobre platex 61 x 68,2 cm

Pedro ChorãoLEFT 7, 1992

Acrílico sobre tela, 96,8 x 162,1 cm

Manuel CargaleiroJANELAS E VARANDAS DE AZULEJOS, 1988

Óleo sobre tela, 111 x 60 cm

Carlos BotelhoSEM TÍTULO (VISTA DE LISBOA), 1970

Óleo sobre tela, 54 x 73 cm

Eduardo NeryESPAÇO VIRTUAL, 1991

Spray acrílico sobre madeira, 75 x 92cm

Graça MoraisO ESPIRÍTO DO AMOR AUTÊNTICO, 1987

Óleo sobre tela, 100 x 81,4 cm

MenezDUAS FIGURAS FEMININAS, 1988Acrílico sobre tela, 125,8 x 144,2 cm

António CharruaSEM TÍTULO, 1981

Óleo sobre madeira, 80,8 x 241 cm

Eduardo VianaCABEÇAS DE MULHER, (C.1914)Óleo sobre madeira, 31,5 x26,3 cm

António Silva PortoLUGAR DA PENHA,

MARGEM DO TEJO, 1890-93Óleo sobre tela, 114,5 x 72 cm

José MalhoaVOLTA DA FEIRA (CHEGADA DOZÉ PEREIRA À ROMARIA), 1905

Óleo sobre tela, 73,3 x 56,6 cm

João VieiraQUATRO ESTAÇÕES, 1989

Acrílico sobre papel, sobre platex 153,8 x 116,2 cm

Ângelo de SousaSEM TÍTULO (DA SÉRIE CAVALOS), 1965

Tintas Astralith Premier sobre cartolinacolada em platex, 100,7 x 70,9 cm

Armanda PassosSEM TÍTULO, N.DAT.

Óleo sobre tela, 129,9 x 96,4 cm

José Júlio de Sousa PintoO HÓSPEDE

INCONSOLÁVEL, 1884Óleo sobre tela, 126 x 97 cm

Columbano Bordalo PinheiroRETRATO DE JOVEM FUMANDO

CACHIMBO (AUTO –RETRATO), N. DAT.Óleo sobre tela, 34,4 x 25 cm

Amadeo de Souza – CardosoSEM TÍTULO (PAISAGEM), (C.1910)

Óleo sobre tela, 50,3 x 61,3 cm

Luís Noronha da CostaSEM TÍTULO (DA SÉRIE MAGRITTE

APÓS POLANSKI), 1969Tinta celulósica sobre platex, 69,5 x 79,8 cm

José GuimarãesSEM TÍTULO, 1986

Pasta de papel policromado coladosobre madeira, 198,8 x 99,3 cm

Jorge MartinsSEM TÍTULO, 1988-92

Óleo sobre tela, 88,8 x 150,5 cm

António PaloloSEM TÍTULO, 1992

Acrílico sobre tela, 100,1 x 100,1 cm

Eduardo BatardaPOR VOCAÇÃO, 1991

Acrílico sobre tela, 95,3 x 128,3 cm

Carlos CalvetSEM TÍTULO, 1969Acrílico sobre tela,137,8 x 198,5 cm

Jorge PinheiroA VELHA, 1964

Óleo sobre tela, 121 x 111,7 cm

No Millennium bcp gostamos de pensar que a colecção de arte que fizemos, ao longo da nossa história, tem mais

sentido se for partilhada, proporcionando a sua fruição por pessoas que de outro modo não teriam oportunidade

de a ela aceder. "Arte Partilhada Millennium bcp" foi a forma que encontrámos de o fazer, circulando pelo País uma

selecção de cerca de quatro dezenas de quadros dos mais representativos autores portugueses da nossa colecção.

Visite-nos, porque partilhar é também uma arte.

A arte de partilhar

Page 286: Rha 7
Page 287: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 2 8 7

normas de redacçãoNormas de redacção de artigos /recensões

01. objectivosA diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparação

desta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têm como

objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente

o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo

para a qualidade da informação e documentação.

02. publicação de artigos02.1 formataçãoaplicação: Microsoft Offi ce Word

tipo de letra: Times New Roman; tamanho 12 pt.

numeração das páginas: Sequencial

notas de rodapé: Numeração automática

parágrafos: Alinhamento à esquerda com duplo espaçamento, não indentados.

02.2 tamanho Não deve exceder as 5000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (com espaços).

02.3 línguaAceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês.

02.4 título Claro e sintético em maiúsculas.

02.5 subtítuloOpcional.

02.6 resumoOs resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200 palavras, ou cerca

de 7500 caracteres (com espaços), em português e, sempre que possível, em inglês.

02.7 palavras chavePara cada artigo deverão ser indicadas até 5 palavras chave.

02.8 nota biográfica sobre o autor• Assinatura a acompanhar o artigo

• Afi liação Institucional

• Contacto de email (opcional)

02.9 citaçõesDevem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por:

(apelido do autor, data de edição da obra citada, nº da página).

02.10 sistema abreviado autor-dataAs referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autor data, página).

Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47).

No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262).

Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados

como notas fi nais, e não como referências bibliográfi cas abreviadas.

02.11 bibliografiaToda a bibliografi a segue as seguintes normas: exemplos (Monografi as):

• Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte.

Artigos de publicação em série.

• Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva.

O Mundo da Arte, Iª série: 111-123.

Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão

consultar as normas de publicação no site: www.chicagomanualofstyle.org

02.12 ilustrações• Fotografi as, desenhos, quadros, gráfi cos, mapas, devem ser fornecidas em papel

ou digitalizadas a 300 dpi’s, em formato jpg ou tif, com o máximo de 28x22 cm;

• Cada imagem digital deverá ser gravada num fi cheiro;

• Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel,

numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda;

• No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar,

do seguinte modo: fi g.1; fi g.2; etc.;

• Deverá ser entregue um fi cheiro independente com a relação de todas as imagens,

legendas, e respectivos fi cheiros que contêm essas mesmas imagens.

exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG)

> Foto001.jpg

regulations in the writingRegulations in the writing of articles /critiques

01. aimsDue to the sheer diversity of authors that contribute with their articles to the

magazine, we fi nd that it is necessary to have rules and regulations to maintain

a sort of consistency of the contents of each publication. Thus it is imperative

that these regulations are followed in regards to the documents produced

so as to contribute to the quality of the information and documentation.

02. publishing of articles02.1 formatapplication: Microsoft Offi ce Word

font: Times New Roman; font size 12 pt.

page numbering: Sequential

footnotes: Automatic numbering

paragraph: Left side alignment with double spacing, no indentation.

02.2 size Should not exceed 5000 words or about 30 000 characters (with spaces).

02.3 languageWe accept articles in Portuguese, Spanish, French and English.

02.4 title Clear and concise in capital letters.

02.5 subtitleOptional.

02.6 abstractAbstracts to the articles should not exceed 1 200 words, or around 7 500

characters (including spaces), in Portuguese and, if possible, in English.

02.7 keywordsFor each article a maximum of 5 keywords should be selected.

02.8 small biography of the author(s)• A signature to go with the article

• Institutional affi liation

• Email contact (optional)

02.9 quotesShould be presented between quotation marks and accompanied by:

(Author’s last name, date of edition of the quoted text, page number).

02.10 abbreviated system author-dateThe references in the text will follow the Chicago abbreviated system (author date,

page). For example (Grimal 1988, 65) or (Hauschildt e Arbeiter 1993,47). In case

of two or more authors the use of et al is applicable. (Laumann et al. 1994, 262).

News articles, interviews and personal communications must appear in footnotes,

rather than in abbreviated bibliographical references.

02.11 bibliographyAll bibliography should abide by the following rules: examples (Monographs):

• Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte.

Articles published in series.

• Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva.

O Mundo da Arte, Iª série: 111-123.

In cases not considered by these examples, the authors should consult the rules

of publication at the site: www.chicagomanualofstyle.org

02.12 images• Photos, drawings, tables, graphs and maps should be give either in paper format

or digitalised in 300 dpi’s, in jpg or tif format, with a maximum of 28x22 cm;

• Each digital image should be saved in a different fi le;

• All non-digitalised images should be handed in on paper, sequentially numbered

and accompanied by an inscription;

• The text should mention the exact location where the image is to be inserted

in the following manner: fi g.1; fi g.2; etc.;

• A distinct fi le should be handed in with the relations between all the images,

the respective inscriptions and fi les that contain the images.

exemple: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG)

> Foto001.jpg

Page 288: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 92 8 8

02.13 créditos das ilustrações• No caso de os autores incluírem qualquer material que envolva a autorização

de terceiros, é da responsabilidade destes obter a autorização escrita e assumir

os seus eventuais encargos. No entanto, excepcionalmente, e a analisar caso

a caso, o IHA pode intervir no pedido de autorização assumindo os custos.

• Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte

modo: autor, data, copyright.

03. publicação de recensões03.1 obra recenseada• Deverá ser identifi cada com: autor, data de edição, título, local de edição e editora.

• A citação de outras obras para além da recenseada será feita somente no texto.

03.2 tamanhoAs recensões não devem exceder as 1000 palavras (aprox. 6500 carac. com espaços).

03.3 outras regrasAs recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente:

02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

04. direitos de autorNo caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva

a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva

autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa

autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso,

o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.

05. revisões de provasO autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versão fi nal

a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendo possível alterações

substantivas. A revisão fi nal das provas é da responsabilidade do Conselho

Editorial, que garante a reprodução fi dedigna dos textos.

06. envio dos trabalhos06.1 material em formato digitalTodo o material digital deverá ser enviado para: [email protected]

06.2 material em formato não digitalTodo o material não digital deverá ser assinado, e enviado para:

Instituto de História da Arte – Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

07. selecção e publicação de artigos/recensões07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revista de História

da Arte serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial, cujo parecer

fundamentará a decisão de publicação. Este poderá, caso entenda necessário,

recorrer ao seu conselho de referees, solicitando parecer científi co. Em qualquer

dos casos, é obrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver Anexo 1).

07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia dos artigos propostos para

publicação, a sua originalidade científi ca.

07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se

o direito de proceder à uniformização das referências bibliográfi cas, bibliografi a

e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem

o sentido do texto.

07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte

reservam-se o direito de proceder à:

• reprodução, qualquer que seja o suporte

• colocação à disposição do público universitário ou outros

• divulgação, nas suas várias modalidades: redes digitais, sites...

• distribuição e venda de exemplares da obra

07.5 Os autores serão informados no prazo de 3 meses, qual a data da publicação.

07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista.

Para os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos. •

02.13 credit for the images• If the authors include any material which involves the authorization of others,

it is their responsibility to obtain a writing authorization and to take on the costs

that it may imply. However, in certain situations to be analysed case-by-case,

the IHA may intervene in the authorization by taking on the costs.

• Credit should be given for each image by this order: author, date, copyright.

03. publishing critiques 03.1 reviewed work• Should be identifi ed in the following way: Author, date of publication, title,

place of publication and publisher.

• Quotations from other works, besides the one reviewed, should be done in the text.

03.2 sizeAll critiques should not exceed 1000 words (around 6 500 characters with spaces).

03.3 other rulesThe critiques should follow the aforementioned regulations, namely:

02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

04. author’s rightsIn case the authors include any material involving a third party, it is entirely his

or her own responsibility to acquire its authorization in writing and to assume any

costs. However, in exceptional situations to be analysed case-by-case, the Institute

of History of Art may intervene in the authorization by taking on the costs.

05. proofreadingThe author will receive proofs of his or her article to guarantee that the fi nal draft

to be published coincides with the article submitted, as substantial alterations

are not permitted. The fi nal proofreading is entirely the responsibility of the

Publishing Committee, who will guarantee that the reproduction of the texts

is faithful to the original.

06. delivery of articles06.1 material in digital formatAll digital material should be sent to the following email: [email protected]

06.2 material in non-digital formatAll non-digital material should be signed and sent to:

Instituto de História da Arte –Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

07. selection and publication of articles/critiques07.1 All articles/critiques applied for publication in Revista de História da Arte

will undergo an appreciation of the Publishing Committee, upon whose judgement

the decision of publication will be based. If necessary, it may resort to its referees

committee, which will provide a scientifi c analysis. In any case, an evaluation sheet

(see Appendix 1) must always be fi lled out.

07.2 During evaluation the Publishing Committee will always favour articles

for their scientifi c uniqueness.

07.3 The Publishing Committee and Board of the Revista de História da Arte are

entitled to proceed with the uniformity of bibliographical references, bibliography

and formal alterations, considered essential, as long as they do not change the

meaning of the text.

07.4 The Publishing Committee and the Board of the Revista de História da Arte

are entitled to:

• reproduce the work, regardless of format

• place the work at the disposal of the academic community and others

• disseminate the work, in various ways: digital networks, sites...

• distribute and sell copies of the work

07.5 Authors will be informed of the date of publication in the space of 3 months.

07.6 After publication, each author will receive a copy

of the magazine. Authors of articles will receive 30 addendums of their article. •

Page 289: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 2 8 9

appendix 1Evaluation sheet for any proposal of articles to be fi lled out by

the members of the Publishing Committee and/or the International

Referees Committee, in regards to their respective specialities.

title of article

reception of the originalsent to refereereferee code

01. Does the article fall under a number of the Revista

de História da Arte, focusing on the methodological questions?

Sim Não

02. Does the article seem:

Publishable in its current form

Publishable with some minor modifi cations

Publishable if it is rewritten

Not publishable

03. The article is:

Too long (indicate where it can be shortened)

Too short (indicate where it should be more elaborated)

Appropriate

04. Article’s presentation

Structure

Bibliography

05. Article’s content

(use a sheet as attachment and insert suggestions to the

author(s), by using some of the following topics if necessary):

• Theme, novelty, relevance

• Review of the state of the theme

• Theory (the author’s grasp of the subject, theoretical

confrontation, questioning, depth, etc.)

• Methodology (problem formulation, object delimitation,

models, hypothesis, investigative strategies, procedures,

defi nition of concepts, treatment of data, development

of the analysis, validity of the conclusions, etc.)

• Empirical data (analysis support, sources, selective

information)

• Exposition (plans, balance, sequences, conciseness)

• Suggestions (written in pencil on the original text)

06. Remarks (not signed) •

anexo 1Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida

pelos membros do Conselho Editorial e/ou do Conselho de

Referees internacional, em face das respectivas especialidades.

título do artigo

recepção do originalenvio ao refereecódigo de referee

01. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista

de História da Arte centrado nas questões metodológicas?

Sim Não

02. O artigo parece-lhe:

Publicável na forma actual

Publicável com ligeiras modifi cações

Publicável se for refeito

Não publicável

03. O artigo é:

Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado)

Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido)

Apropriado

04. Apresentação do artigo:

Estrutura

Bibliografi a

05. Conteúdo do artigo

(utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es),

recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes):

• Tema, novidade, pertinência

• Revisão do estado da questão

• Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico,

problematização, profundidade, etc.)

• Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto,

modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos,

defi nição de conceitos, tratamento de dados,desenvolvimento

da análise, fundamentação das conclusões, etc.)

• Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação

seleccionada)

• Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão)

• Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original)

06. Comentários (não assinados) •

Page 290: Rha 7

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Page 291: Rha 7

r e v i s ta d e h i s tó r i a d a a r t e n.º 7 - 2 0 0 9 2 9 1

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** inclui portes de envio

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Instituto de História da Arte

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Universidade Nova de Lisboa