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  • NOTAS SOBRE A ARQUEOLOGIADE FOUCAULT EM AS PALAVRAS

    E AS COISASttulo

    Notes on Foucaults archaelogy inThe order of things

    Cesar Candiotto[a]

    [a] Doutor em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), Professordo Mestrado em Filosofia da PUCPR, Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    A anlise proposta por Michel Foucault em As palavras e as coisas aponta oslimites de qualquer antropologia assentada na unidade e universalidade deuma suposta natureza humana. Na perspectiva arqueolgica, a figura dohomem uma inveno moderna ambgua e preste a desaparecer, marcadapelo recuo da origem, pela sombra do no-pensamento e pela finitudefundamental. A instabilidade do homem, como objeto das cincias humanas esujeito das filosofias, demonstra o terreno movedio no qual estas se movem.Sustentamos que estas concluses, observveis na investigao de Foucault,so tributrias da histria arqueolgica por ele praticada, alicerada naconcepo de pistm e operacionalizada pelo estabelecimento desimultaneidades entre diferentes ordens do saber e do pensamento.

    Palavras-chave: Arqueologia. Antropologia. Homem. Saber. pistm.

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 13-28, jan./jun. 2009

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    Abstract

    The analysis Foucault proposes in The Order of Things pointsout to the limits of any anthropology which is based on theunity and universality of a supposed human nature. From thearchaeological perspective, mans figure is a modern andambiguous invention, which is about to disappear. Moreover,it is marked by a moving back origin, by the shade of non-thought, and by a fundamental finitude. Mans instability, asan object of human sciences and a subject of philosophies,demonstrates the shifting ground on which they move. Weclaim that these conclusions, observable in Foucaultsreflections, are due to the archaeological history that hepracticed. Further, they are founded on his episteme conceptionand put into action by his establishing simultaneities betweenthe different orders of knowledge and thought.

    Keywords: Archaeology. Anthropology. Man. Knowledge. Episteme.

    INTRODUO

    A maior parte das pesquisas sobre o pensamento de MichelFoucault est concentrada atualmente nas problemticas levantadas nos seuscursos no Collge de France dos anos setenta e incio dos anos oitenta. Essenatural deslocamento de nfase em funo das recentes edies e traduesdaqueles cursos no subtrai a importncia indiscutvel dos notveis livros,sobretudo aqueles publicados por Foucault nos anos sessenta.

    Nesse estudo, nosso interesse est voltado para um dos livros maismarcantes da trajetria foucaultiana: As palavras e as coisas (1999).1 Alm deprojet-lo como um dos intelectuais mais significativos do pensamentocontemporneo, as problemticas a suscitadas tambm despertaram o interessepara seus escritos anteriores, notadamente Histria da loucura na idade clssica(2000a) e Nascimento da clnica (1998). Seja acrescido ainda que dificilmente

    1 Para este estudo, utilizamos a oitava edio de 1999, da traduo para o portugus de SalmaTannus Muchail.

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    Foucault teria publicado A arqueologia do saber (2000b) no fosse a recepocrtica do livro de 1966. Merece ser mencionado tambm que, nas recorrentesleituras que Foucault faz de seu percurso intelectual, desde o final dos anos setentaat 1984, ano de seu desaparecimento, sempre atribuda uma importnciaincontestvel a este livro. Em definitivo, a leitura do fio condutor da problemticada subjetividade no curso A hermenutica do sujeito (2004), poderia ser elaboradacomparativamente s hipteses principais de As palavras e as coisas, como aque descreve a emergncia histrica da finitude humana entre os saberes.2

    As palavras e as coisas um daqueles livros do qual muito se falae pouco se l; livro este cujas hipteses foram prontamente transformadas emjarges em funo do prestgio do autor. o caso da morte do homem, doravanteinseparvel do nome Foucault. Evidentemente, muitos estudos lcidos tm sidopublicados sobre as principais teses desse escrito. Aqui os prescindimos to-somente como precauo diante de possveis omisses inadvertidas.

    Com esse trabalho, almejamos somente identificar uma dassignificativas estratgias arqueolgicas forjadas por Foucault em As palavrase as coisas, que nomeamos de simultaneidades arqueolgicas. Mais do quedefinir em que ela consiste, buscamos enfatizar sua operacionalidade nosdomnios histricos percorridos e, a partir da, indicar alguns desdobramentosconcernentes ao modo como Foucault situa as antropologias, para, enfim, apontaralgumas concluses.

    Status quaestionis

    Um dos diagnsticos mais significativos em As palavras e ascoisas consiste em ter mostrado que o homem uma inveno moderna,recorrentemente ambgua, posto ser ele ao mesmo tempo analisado como objetoemprico por parte das cincias e elevado condio de sujeito transcendentalpelas filosofias. Resulta de tal ambiguidade a impossibilidade de postular suaunidade. Ao contrrio, essa inveno recente na ordem saber, inseparvel desua mltipla e iminente disperso em razo de sua frgil constituio. Fragilidadeque extensiva s cincias que buscam objetiv-lo: as chamadas cinciashumanas, que se movem num terreno movedio, quase inapreensvel.

    2 Esta interpretao notadamente proposta no ensaio: Analitique de la finitude et histoire dela subjectivit, de Batrice Han (2003, p. 165-204).

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    Sustentamos que esse diagnstico de Foucault, na verdade, oefeito da estratgia de anlise por ele empregada no livro de 1966, cujascaractersticas principais esto assentadas na proposio de simultaneidadesarqueolgicas entre os saberes, detalhadas no prximo item. A opo por essaestratgia implicou tomar distncia de uma concepo filosfica de homem,intemporal e universal, em vistas de problematiz-lo a partir do exterior dodiscurso filosfico, ao identificar sua emergncia na histria daqueles domniosque o enfocam como ser vivente, trabalhador e falante.

    Em As palavras e as coisas Foucault empreende esse projeto:descrever, por um lado, descontinuidades histricas entre o final do Renascimento(sculo XVI) e a Idade Clssica (sculos XVII e XVIII), e entre esta e aModernidade (sculos XIX e XX); e por outro, identificar simultaneidadesarqueolgicas entre saberes empricos diferentes entre si, entre estes saberes e osdiscursos filosficos, entre diferentes correntes de opinio em torno de um mesmosaber.3 a partir da proposio dessas simultaneidades numa mesma poca que foipossvel, no incio do sculo XIX, a constituio de um saber em que o homem considerado, ao mesmo tempo, sujeito de conhecimento e objeto do saber.

    Para sustentar essa hiptese, Foucault no permaneceu no terrenoda histria da filosofia; tampouco fez um estudo de histria das cincias. Apertinncia de sua investigao problematizar o homem moderno a partir deuma arqueologia do saber.

    As simultaneidades arqueolgicas

    Foucault mostra em As palavras e as coisas que a rede dos saberesde uma poca est formada por vrias configuraes, tais como discursos literrios,filosficos, cientficos ou, simplesmente, domnios empricos considerados em suapositividade. Por questes de delimitao, nos referimos somente anlisearqueolgica efetuada a respeito dos saberes empricos e do pensamento filosfico.Entendemos que pela relao entre ambos que se sustenta a hiptese de que afigura do homem moderno ambgua, uma dobra meio filosfica, meio positiva.Figura em relao a qual a arqueologia busca estabelecer os contornos, definir aforma. Nada parecido com o que fazem as cincias humanas, que tomam ohomem como objeto j dado, e procuram especificar seu contedo.

    3 Em um estudo ulterior pretendemos enfatizar as descontinuidades em As palavras e as coisas,assim como tambm noutros livros anteriores e posteriores a 1966.

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    Se na tradio da matemtica comea-se apresentando um axiomae somente num momento ulterior ele demonstrado pelos seus teoremas,analogamente queremos discorrer inicialmente sobre o conceito de pistmem As palavras e as coisas, para posteriormente desdobr-lo historicamentemediante aquilo que viemos denominando de simultaneidades arqueolgicas.Suspeitamos, no entanto, que a elaborao feita por Foucault tenha percorridoum caminho inverso: primeiro ele teria examinado os diferentes aspectos dassimultaneidades arqueolgicas para s ento chegar s delimitaes da pistm.

    Considerada um dos conceitos fundamentais no livro As palavrase as coisas, pistm designa as condies histricas a partir das quais filosofiase saberes empricos, cientficos ou no, so apreensveis ao conhecimento. Trata-se da rede, do campo aberto no qual as mltiplas discursividades se relacionamentre si. Foucault afirma que numa cultura especfica, como o caso da culturaocidental europeia, e numa determinada poca, h somente uma pistm.Assim, no renascimento a Semelhana entre coisas e palavras que permite aambas serem conhecidas; a idade clssica marcada pela pistm daRepresentao; e a modernidade, definida pela pistm da Histria.

    Foucault assevera que no pretende fazer uma anlise epocal, aomodo de uma Weltanschauung. Ele somente se atm descrio dasimultaneidade das regras de formao daqueles saberes empricos e filosofiasque, posteriormente, serviro de solo para a constituio das cincias humanas.4

    4 Sobre o carter regional da investigao de Foucault, seu parentesco e suas divergncias com aepistemologia histrica de Bachelard e Canguilhem (MACHADO, 1988, p. 15-32). NoCaptulo X, intitulado As cincias humanas, Foucault mostra que a pistm moderna, seinterrogada pela arqueologia, deve ser representada por um espao volumoso e tridimensionalque inclui as cincias matemticas e fsicas, as cincias positivas da vida, do trabalho e dalinguagem e a reflexo filosfica. Essas trs dimenses constituem o triedro dos saberesmodernos (FOUCAULT, 1999, p. 476). Quando relacionadas duas a duas, tais dimensesformam trs planos: num primeiro plano, temos as matemticas aplicadas, constitudas pelarelao entre as cincias matemticas e as cincias positivas; num segundo plano, temos aformalizao do pensamento, constituda pela aplicao das cincias dedutivas reflexofilosfica; finalmente, num ltimo plano, temos ontologias regionais, quando h umainterrogao filosfica sobre o fundamento das cincias; ou filosofias da vida, do trabalho e dalinguagem, quando conceitos nascidos nas cincias empricas so transpostos para a filosofia.Identificadas as trs dimenses e os trs planos que elas formam, Foucault afirma que aschamadas cincias humanas encontram-se excludas tanto dos planos quanto das dimenses.Paradoxalmente, porm, elas a esto includas na medida em que se situam no nas suassuperfcies ou segmentos e sim no interstcio do volume definido pelas trs dimenses. Naverdade, elas se situam sob suas projees, formando uma regio nebulosa e instvel, nopodendo ser consideradas nem cincias nem filosofias.

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    Em vez de um estudo do classicismo em geral, so objetos de pesquisa osdiscursos da gramtica geral, da histria natural e da anlise das riquezas e suarelao com a filosofia clssica. Ao contrrio de uma investigao sobre amodernidade, so enfatizados os discursos da economia poltica, da biologia eda filologia e sua correlao com o pensamento filosfico moderno.

    Duas consequncias podem ser identificadas: a primeira que,embora a leitura da idade clssica parea conduzir a uma totalidade cultural(FOUCAULT, 2000b, p. 19), o fato de ser uma arqueologia e no a arqueologiamostra que se trata da anlise de discursividades locais. A segunda que,malgrado a maior parte de As palavras e as coisas versar sobre a idade clssica,no sobre ela que se pretende discorrer ou os saberes que a caracterizam, esim mostrar que nessa poca a figura do homem, como objeto de saber, inexiste.

    O estudo comparativo dos clssicos revela que, embora tergiversemsobre objetos diversificados, seus discursos apresentam uma regularidade ouuma espcie de isomorfismo quanto s regras de formao, quando se trata dadefinio dos temas especficos de seu campo de investigao, da formaodos seus conceitos e da construo de suas teorias. Entretanto, para Foucault,estes homens de cincia ou filsofos no tinham clara conscincia dasimultaneidade ou da regularidade de tais regras. Da a hiptese de que h uminconsciente positivo do saber (FOUCAULT, 1994, p. 9)5 numa determinadapoca e numa cultura especfica e que, no entanto, faz parte do discurso cientficoou filosfico do tempo no qual um pensador pode ser situado.

    A elaborao da simultaneidade das regras de formao dediscursos to dspares que permite a Foucault situar os clssicos a partir dapistm da Representao. H uma ordem do discurso que possibilita aossaberes empricos e ao pensamento filosfico serem oferecidos ao conhecimentopelo modo de ser da Representao; ela que define sua existncia, embora,paradoxalmente, s possa ser conhecida por meio deles.

    Para a perspectiva arqueolgica, os discursos filosficos eempricos da idade clssica tm as mesmas condies histricas de possibilidadedefinidas pela pistm que os autoriza; so compreendidos, pois, em termosde sua simultaneidade histrica, desautorizando qualquer interpretao modernaque os considerasse como figuras arcaicas submetidas a possveis retificaespela cincia atual.

    5 Em outra passagem, Foucault esclarece que esse inconsciente do saber toma distncia de algocomo o inconsciente freudiano, ou um pensamento radical esquecido, recoberto, desviadodele prprio; antes, ele se refere s regras especficas que situam os discursos comoverdadeiros numa determinada ordem (FOUCAULT, 1994, p. 284).

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    Na sequncia, explicitamos trs ordens de simultaneidadesarqueolgicas decorrentes de nossa interpretao de As palavras e as coisas.

    Uma primeira ordem de simultaneidades pode ser observvel entreos saberes empricos. A arqueologia assume o risco de mostrar a vizinhanaentre saberes que, aos olhos modernos, no tm qualquer semelhana. Trsdomnios so analisados: No renascimento: as palavras, os seres e os objetos denecessidade; na idade clssica: os discursos, os seres naturais e as riquezas; namodernidade: a linguagem, a vida e o trabalho. Foucault se detm na constituiodesses domnios, principalmente na idade clssica e na sua nova constituio,na passagem para a modernidade.

    Para Foucault, cada um de tais domnios apreensvel por umprincpio orientador, que ele denomina de a priori histrico. Esse a priori nose refere a um estado de conhecimento que se sedimentou nas idadesprecedentes e serve de solo aos progressos da racionalidade; tampouco determinado pela mentalidade ou pelos quadros de pensamento epocais,semelhante ao perfil das grandes opes tericas. O a priori histrico :

    Aquilo que, numa dada poca, recorta na experincia um campo de saberpossvel, define o modo de ser dos objetos que a aparecem, arma o olharcotidiano de poderes tericos e define as condies em que se podesustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro(FOUCAULT, 1999, p. 219).

    Assim, o a priori histrico que sustentou todas as pesquisas emtorno do ser vivo na idade clssica a existncia de uma histria natural; j o apriori histrico que autorizou todos os posicionamentos em torno dofuncionamento da linguagem a existncia de uma gramtica geral; e o apriori histrico que estabeleceu as discusses em torno dos objetos denecessidade a existncia de uma anlise das riquezas.

    Apesar das diferenas que possam existir entre os princpiosorientadores dos discursos, das classificaes e das trocas, os trs sabereshabitam um lugar-comum, que o espao do quadro bidimensional dasidentidades e das diferenas; eles esto dispostos nesse quadro segundo suaestrutura visvel; e, sobretudo, eles se reportam Representao. Mas aRepresentao no est no mesmo nvel daqueles domnios empricos, pois elatem em relao a eles um valor determinante. Todo o sistema clssico da ordemse desdobra pelo espao aberto no interior de si pela Representao, quandoela se representa a si mesma. A linguagem no seno a representao daspalavras; a natureza no seno a representao dos seres; a necessidade no

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    seno a representao da necessidade (FOUCAULT, 1999, p. 289). Palavras,seres e objetos de necessidade no passam de representaes, porque s hum modo de ser na idade clssica, que o da Representao.

    Na modernidade, a historicidade do saber tambm realizada a partirdas simultaneidades arqueolgicas. Emergem novos domnios: a linguagem, a vidae o trabalho; estes, por sua vez, tm como princpios orientadores ou a priorihistricos, respectivamente a filologia, a biologia e a economia poltica. Novos mtodosde conhecimento so empregados: os discursos so substitudos pelos sistemasgramaticais, as trocas pelas formas de produo e as classificaes pelasorganizaes funcionais. Esses saberes so apreensveis ao conhecimento a partirde outra pistm: a da Histria. Como cincia dos acontecimentos, a histriaremete aos antigos, principalmente a Herdoto. Mas como espao prprio do serdas coisas, tal como elas se do ao conhecimento, ela exclusivamente moderna.

    Uma questo a ser dirigida a essa ordem de simultaneidadesarqueolgicas a que segue: por que, na rede da pistm, um saber emprico deveser compreendido a partir de sua simultaneidade com outros saberes diferentes, eno mediante a continuidade atravs do tempo daquele mesmo saber em termos deprogresso dos conhecimentos? Vejamos como o arquelogo responderia tal questo,tomando agora como exemplo o saber que envolve as palavras.6 Na perspectiva daarqueologia, inexiste influncia recproca entre gramtica geral clssica e filologiamoderna. Elas so inapreensveis em termos de progresso da racionalidade e desucesso no tempo. Recorrente a iluso retrospectiva segundo a qual a gramticageral seria o pressgio da gramtica comparada. Na idade clssica, porm, aRepresentao definida pela relao binria entre significante e significado, sendoque entre eles no se interpem a semelhana do sculo XVI, ou a significao dosculo XIX (FOUCAULT, 1999, p. 87). Gramtica geral e filologia no tm osmesmos objetos, mtodos ou conceitos; no habitam o mesmo espao; elas noobedecem mesma pistm; so incompatveis para que possa ser estabelecidaentre as mesmas uma causalidade linear. A gramtica geral pode ser compreendidasomente a partir de sua ordenao num mesmo quadro visvel, ao lado da histrianatural e da anlise das riquezas, em sua relao com a Representao.

    Quando Foucault se refere iluso retrospectiva, diversas vezesquestionada,7 est se dirigindo histria das cincias, que, segundo ele, avalia

    6 Examinamos em detalhe esse domnio de saber em As palavras e as coisas no estudo intituladoA arqueologia da linguagem de Michel Foucault (CANDIOTTO, 2008, p. 227-249).

    7 Para mais esclarecimentos sobre a expresso iluso retrospectiva, FOUCAULT, 1999, p.99, 173, 175, 177, 208, 212, 228, 340, 354, 388.

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    os conhecimentos do passado a partir da atualidade das cincias; tambm estpensando na histria das ideias, que se fundamenta na continuidade e no progressoda razo; e principalmente, est se reportando boa parte da filosofiacontempornea, que v no pensamento clssico o destino do pensamentomoderno.8 A arqueologia levada a cabo por Foucault visa a situar as filosofiasde modo inteiramente diferente de uma histria da filosofia autorreferente; tornaexequvel o posicionamento de saberes empricos de forma radicalmenteestranha, se comparados histria das ideias ou histria das cincias.

    A anlise empreendida por Foucault torna factvel ainda pensarnuma segunda ordem de simultaneidades arqueolgicas, estabelecida entre osdomnios empricos e o pensamento filosfico de uma mesma poca.

    Na idade clssica, saberes empricos e pensamento filosficoesto fundamentados numa ontologia substancial, quer dizer, na continuidadedos seres na sucesso do tempo em virtude de uma semelhana de origem,assim como no encadeamento ininterrupto das ideias, derivado da intuioprimeira do Cogito. Alm disso, tanto os saberes empricos quanto opensamento filosfico so analticos, posto que fazem uso da anlise dos signoscomo mtodo universal do conhecimento. Inexiste cincia das ordens empricassem uma anlise do conhecimento que mostre como a continuidade escondidado ser reconstituda por meio do liame temporal de representaesdescontnuas; impensvel a reflexo filosfica sem uma anlise das razesque compem a simultaneidade do pensamento. Importa que haja tanto nossaberes empricos quanto no pensamento uma ordem, ou seja, a anlise dasrepresentaes segundo suas identidades e diferenas (FOUCAULT, 1999,p. 63-64). A identidade de um ser ou de um pensamento estabelecida peloresduo de suas diferenas; um ser existe em si mesmo e um pensamento em funo daquilo que deles se distingue. Assim a ordem dos signos querepresenta um saber ou um pensamento, analisada em termos de identidadese diferenas, torna o conhecimento clssico uma lgica da identidade.

    8 Um exemplo dessa filosofia a fenomenologia de Husserl que viu no Cogito cartesiano e na analticakantiana a presena latente de um ego transcendental. Como se nota em As palavras e as coisas, oCogito clssico no passava do primeiro elo na cadeia das razes. Na transparncia entre ser erepresentao, o sum cartesiano era somente evidncia do Cogito; mesmo o motivo transcendentalque Kant extrai da crtica de Hume no visa seno possibilidade de uma cincia da natureza. Mas,para Foucault, o solo de onde escreve Husserl outro, no qual, pela primeira vez, estaria emquesto o modo de ser do homem. O cogito moderno muda de funo: o Eu penso no conduz evidncia do Eu sou (FOUCAULT, 1999, p. 447). Do cogito no se deduz a afirmao do ser,embora abra uma srie de interrogaes nas quais o ser se encontra representado.

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    Alm do pressuposto de uma ontologia substancial e doestabelecimento de uma anlise em termos de ordem, os saberes empricos e opensamento filosfico se do a conhecer pelo privilgio do nome. por meiodele que o discurso se articula com o conhecimento.

    A tarefa fundamental para o discurso clssico consiste em atribuir umnome e com esse nome nomear o seu ser. [...] Quando ele nomeava o serde toda representao em geral, era filosofia: teoria do conhecimento eanlise das idias. Quando atribua a cada coisa representada o nomeque convinha e, sobre todo o campo da representao, dispunha a redede uma lngua bem-feita, era cincia - nomenclatura e taxionomia(FOUCAULT, 1999, p. 169).

    Essa a razo pela qual a filosofia clssica ser fundamentalmentenominalista, e o discurso clssico o lugar da ontologia, posto que a atribuio deuma linguagem perfeitamente transparente9 aos seres e s coisas suficientepara nomear seu ser. Depreende-se uma teoria nominalista do conhecimentoque justifica tanto a constituio de filosofias quanto a de saberes, no sentido decincias bem-feitas. Em suma, poderamos afirmar que os saberes empricos eo pensamento filosfico clssicos tm como base uma ontologia substancial,como mtodo uma lgica da identidade e como articulao discursiva uma teorianominalista do conhecimento.

    No comeo do sculo XIX, h um desnvel entre os saberesempricos e o pensamento filosfico, pois eles deixam de habitar um lugar-comum. O pensamento filosfico se desloca para o campo transcendental; ossaberes empricos se dirigem para a espessura das prprias coisas. No entanto, possvel ainda estabelecer simultaneidades arqueolgicas entre eles, porqueambos privilegiam a sntese, e no mais a anlise, como mtodo geral deconhecimento. No mbito dos saberes empricos, o conhecimento d-se pormeio de snteses a posteriori; no mbito do pensamento filosfico, tem-secomo preocupao a fundamentao das snteses por meio de juzos sintticosa priori. As simultaneidades arqueolgicas entre saberes empricos e

    9 A grande utopia do conhecimento clssico, na perspectiva de Foucault, constituir um saberque seja, ao mesmo tempo, uma lngua bem-feita, que funcione como uma lgica. Para saberpor que somente a histria natural e a anlise das riquezas so linguagens bem-feitas, e no agramtica geral, FOUCAULT, 1999, p. 87, 120, 122, 165, 169, 184, 187, 190, 200, 201, 220,221, 257, 281, 388.

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    pensamento filosfico so observveis principalmente porque ambos estoperpassados pela historicidade. Tanto a finitude concreta no terreno dasempiricidades, quanto a finitude fundamental no mbito da filosofia, deixam deindicar negativamente um limite em relao ao infinito. Doravante, a finitude referida positivamente, designando o modo de ser dos saberes e do pensamento.

    Imaginamos ser possvel identificar ainda uma terceira ordem desimultaneidades arqueolgicas em As palavras e as coisas. Trata-se dasimultaneidade entre correntes de pensamento aparentemente opostas10dispostas numa mesma poca. A poderia ser situada a profundidade11 daanlise arqueolgica, contraposta aos efeitos de superfcie proporcionados pelahistria das ideias e pela histria das cincias, caracterizadas como histriasdoxolgicas 12 ou das opinies.

    Como tem sido proposto at aqui, nada melhor do que reportar aoprprio livro para exemplificar tambm essa terceira ordem de simultaneidadesarqueolgicas. O privilgio ser dado agora ao domnio emprico dos objetos denecessidade. Foucault lembra que normalmente a histria da economia do sculoXIX v os fisiocratas e os utilitaristas como representantes de correntes opostas depensamento. Os fisiocratas so tidos como representantes dos proprietrios fundiriosporque depositam sua confiana econmica no setor agrcola sustentando-lhe melhorretribuio. Sendo que a maioria dos fisiocratas tambm detentora de propriedadescultivveis, a renda fundiria considerada um valor fundamental. Os utilitaristas,segundo essa mesma histria econmica, so considerados representantes doscomerciantes e empresrios, posto que suas anlises incidem sobre a economia demercado. As leis de troca, pois, seriam derivadas das necessidades e desejos, dautilidade atribuda aos objetos. As opes tericas entre uma e outra corrente depensamento seriam descobertas pela coerncia dos respectivos interesses(FOUCAULT, 1999, p. 272). Para classificar quem era fisiocrata ou utilitarista nosculo XVIII, a histria doxolgica leva em considerao os interesses em jogo, ospontos e argumentos da polmica, alm da luta pelo poder.

    1 0 A questo das oposies, estabelecida nos debates, opinies, autores e correntes de pensamento quenoutras anlises so responsveis pelo progresso da razo, para a arqueologia no passam de oposiesaparentes; quando muito, segmentos opostos de um mesmo vetor. FOUCAULT, 1999, p. 54, 97,103, 110, 173, 192, 199, 200, 207, 244, 250, 252, 272, 276, 265, 332, 337, 359, 379, 426, 441.

    1 1 Note-se que Foucault nunca diz que a histria das opinies, a histria das ideias ou a histriadas cincias sejam falsas. Ele antes as situa numa camada superficial do pensamento, emoposio camada profunda escavada por sua arqueologia. FOUCAULT, 1999, p. 43, 104,319, 328, 344, 345, 360, 381, 438, 453, 485.

    1 2 Sobre a histria doxolgica, FOUCAULT, 1999, p. 78, 87, 103, 104, 124, 168, 173.

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    A arqueologia, por sua vez, difere significativamente dessa histriadoxolgica. Ela prescinde dos personagens, de sua histria e suas opinies; procuraantes definir as condies a partir das quais foi possvel pensar, em formascoerentes e simultneas, o saber fisiocrtico e o saber utilitarista(FOUCAULT, 1999, p. 278). Para a arqueologia, importa que ambas as correntesde pensamento sejam referidas ao mesmo a priori histrico, que a existnciada anlise das riquezas; esta, por sua vez, oferecida ao conhecimento a partirda pistm da Representao. Ao arquelogo do saber pouco importa saberquem fala, a qual corrente de pensamento pertence, ou quais influncias ele recebe.Foucault quer mostrar que h outra maneira de fazer a histria, considerada emtermos de suas condies de possibilidade e de seus limites de direito; por isso eletenta lhes traar o contorno, a partir de sua periferia, para mostrar de que formaos saberes e seus contedos se imbricam com aquilo que lhes exterior.

    Pensamos que as trs ordens de simultaneidades arqueolgicasidentificadas no livro de Foucault tm essa finalidade precpua, que efetuar ocontorno do pensamento e interrog-lo na direo por onde ele escapa de simesmo (FOUCAULT, 1999, p. 69). Em que pese todas as possveis diferenas,Foucault mostra, neste aspecto, certo parentesco com Kant. Ao dirigir-se aopensamento clssico e perguntar pelas condies da ordem e seus limites de direito,Kant contorna a representao e o que nela dado, para enderear-se quilomesmo a partir do qual toda representao, seja ela qual for, pode ser dada(FOUCAULT, 1999, p. 333). Foucault adverte, porm, ser a tarefa da arqueologiamuito mais complexa que a realizada pela crtica kantiana. Isso porque, se na erada Representao o pensamento podia ser contornado pela crtica, na era da Histriaa arqueologia consegue, no mximo, ater-se a domnios fragmentrios que servemde solo para os discursos que ainda so os nossos. Concebida como o modo de serde tudo o que nos dado na experincia, a pistm da Histria tornou-se oincontornvel de nosso pensamento (FOUCAULT, 1999, p. 300). Isso notvelna anlise do prprio modo de ser do homem, objeto privilegiado dos saberesempricos e entendido como sujeito pelas filosofias modernas.

    O homem como objeto incontornvel

    O arquelogo prope que, analisado na sua coexistncia com as coisas,o homem encontra-se situado numa distncia incontornvel do tempo(FOUCAULT, 1999, p. 466). Qualquer pensamento antropolgico ambguo. Aarqueologia mostra a quase impossibilidade do estudo desse objeto, chamado homem,

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    posto que, no seu modo de ser, ele encontra-se marcado pelo recuo da origem,pela sombra do no-pensamento e pela finitude fundamental. Para Foucault, todopensamento que confere valor transcendental aos contedos empricos ou os deslocapara o lado de uma subjetividade constituinte (FOUCAULT, 1999, p. 342) podeser designado de antropolgico. No primeiro caso, ele est se referindo ao positivismobehaviorista que atribui valor transcendental natureza; e dialtica que faz omesmo com a histria. Aparentemente, tanto a natureza quanto a histria so aomesmo tempo contedo e forma do conhecimento e, desse modo, no tmnecessidade de uma teoria do sujeito ou de uma crtica. Para Foucault, porm, ha um fundo de crtica, embora obscura, quando o positivismo separa conhecimentorudimentar e conhecimento constitudo cientificamente, possibilitando o estudo dascondies naturais do conhecimento; h ainda um fundo de crtica quando a dialticaope iluso e verdade, ideologia e cincia, permitindo o estudo das condieshistricas do conhecimento.

    Alm dessas divises obscuras, est em jogo a separao da prpriaverdade, entre a ordem do objeto de saber e a ordem do discurso filosfico.Verdade do objeto, que se manifesta pelo corpo e pelos rudimentos da percepo;ou que se esboa aps a dissipao das iluses e a desalienao da histria.Verdade do discurso, que permite situar sobre a natureza ou sobre a histria umalinguagem reconhecida como verdadeira. O arquelogo percebe nessa abordagemuma ambiguidade, pois no se sabe se a verdade do objeto que prescreve averdade do discurso, que, por sua vez tem como tarefa descrever sua formaona natureza ou na histria (discurso positivista); ou, se pelo contrrio, a verdadedo discurso filosfico que define e promete a verdade do objeto, seja a naturezaou a histria (discurso escatolgico). Se normalmente a histria das ideias apresentapositivismo e escatologia como discursos alternativos, a arqueologia afirma queambos pensam a partir do objeto, seja ele a natureza ou a histria.

    Mas a filosofia moderna ainda antropolgica quando desloca oscontedos empricos em direo do sujeito transcendental. Nesse caso, elaabsorve as determinaes empricas, anteriores e exteriores ao homem comoobjeto, em favor de um sujeito constituinte que se transforma em condio efundamento daquelas determinaes. Conforme Foucault, a analtica do vividode Merleau-Ponty elevou o homem de lugar de conhecimentos empricos condio do que os torna possveis e forma pura imediatamente presente nessescontedos (FOUCAULT, 1999, p. 442).

    Por conseguinte, as anlises que se fundamentam no objeto e asque se dirigem para o sujeito pertencem a uma mesma rede, segundo Foucault.A natureza do positivismo, a histria da dialtica e o vivido da fenomenologia

    Notas sobre a arqueologia de Foucault em As palavras e as coisas

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    so ao mesmo tempo contedos e formas de conhecimento. nesse aspectoque a arqueologia quer se distinguir de tais filosofias. Podemos ilustrar essadistino lanando mo de alguns conceitos utilizados por Gilles Deleuze, emdiversos de seus estudos.

    A arqueologia se vale da seguinte estratgia: em vez de pensar oexterior (o domnio dos saberes empricos) como dobra do interior (do pensamentofilosfico), ela situa o interior como dobra do exterior. As antropologias,principalmente na sua verso fenomenolgica, tendem a ver a exterioridadecomo dobra da interioridade; j a arqueologia, situa a interioridade como pregada exterioridade. A fenomenologia pensa o vivido, deslocando-o na direo dosujeito constituinte, sem referi-lo ao prprio vivente. A determinao empricano passa de implcito explicitado e constitudo indefinidamente pelo sujeito.Quanto arqueologia, situa nas cincias da vida, do trabalho e da linguagem averdade do homem que, paradoxalmente, no se refere a uma identidade e sima uma disperso constitutiva. Por ser vivente, trabalhador e falante h ao mesmotempo uma anterioridade e uma exterioridade do ser emprico do homem emrelao a qualquer conscincia transcendental. A tentativa arqueolgica de sadade um discurso filosfico na qual o homem sempre constituinte indica, pois,um modo outro de pensar a filosofia.

    Embora trate das filosofias e das cincias da vida, do trabalho e dalinguagem na modernidade, Foucault no pretende fazer uma histria das filosofiasjustaposta a uma histria epistemolgica das cincias. Trata-se somente de umahistria arqueolgica das cincias humanas. Arqueolgica, porque a anlise dopensamento filosfico e dos saberes empricos na idade clssica e suastransformaes no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, respectivamente,serve para demarcar o solo primeiro, as condies de possibilidade, o espao deordem, os sistemas de regras de construo a partir dos quais foram projetadasas cincias humanas: a psicologia, a sociologia e a anlise literria e dos mitos.

    Ao indicar a pertinncia da anlise arqueolgica em As palavrase as coisas, prescindimos da depurao do estatuto das cincias humanas,suas dificuldades ou, at mesmo, sua impossibilidade como cincias propriamentetais, no sentido de que no preenchem os requisitos epistemolgicos deobjetividade e sistematicidade, como as demais cincias. Somente quisemosenfatizar que ao pensar a histria em termos de simultaneidades arqueolgicas,Foucault procura contornar o pensamento moderno e, a partir da, indicar oinsucesso de qualquer antropologia.

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    CONCLUSES

    Algumas concluses podem ser apontadas a respeito da estratgiade Foucault no livro As palavras e as coisas. A primeira delas que, ao analisaro modo de ser dos saberes empricos e do pensamento filosfico nos termos deuma concepo de histria assentada nas simultaneidades arqueolgicas, Foucaultmostra que a o homem uma figura ausente. Quer dizer, ele chega a talconcluso porque as filosofias deixam de ser entendidas a partir de uma histriada filosofia; elas so situadas pela correspondncia com os saberes empricosque lhes so contemporneos. Em vez de serem pensadas a partir de um tempocontnuo marcado pelo progresso da razo, as filosofias so problematizadasnum espao homogneo de relaes. Analogamente, os saberes empricos soinassimilveis a uma histria epistemolgica das cincias em evoluo; issoporque, paradoxalmente, Foucault submete sua compreenso descrio daspistms. Assevera G. Canguilhem (1970, p. 136): Para perceber a pistm,foi preciso sair de uma cincia e de uma histria da cincia, foi preciso desafiara especializao dos especialistas e tentar converter-se num especialista, noda generalidade, mas da inter-regionalidade. Foucault bem sucedido nadescrio dessa rede arqueolgica porque sua perspectiva de anlise estlocalizada ao mesmo tempo dentro e fora da filosofia, como tambm no interiore no exterior de uma histria dos seres, das palavras e das riquezas.

    A segunda concluso est relacionada ainda filosofia moderna.Para Foucault, na sua verso fenomenolgica, a filosofia tornou-seessencialmente antropolgica e por isso naufragou na sua prpria impossibilidade.No somente porque ela trata de responder questo sobre quem o homem,mas principalmente porque no deixa de ser uma reflexo mista na qual ovivido, que permanece emprico, assumido por um sujeito constituinte. Aarqueologia quer apontar as principais caractersticas da filosofia moderna apartir da perspectiva da finitude e, com isso, mostrar o essencial entrelaamentocom seu exterior, ou seja, com as cincias modernas da vida, do trabalho e dalinguagem. Em definitivo, o arquelogo sublinha que o homem somente tornou-se um suposto, um sujeito constituinte para a filosofia, porque antes foiconsiderado objeto constitudo por parte dos saberes empricos. Assentadas nafragilidade desse objeto, as cincias humanas habitam um espao nebuloso;aliceradas num sujeito supostamente constituinte, as filosofias ignoram suaprofunda ambiguidade.

    Notas sobre a arqueologia de Foucault em As palavras e as coisas

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    Recebido: 10/11/2008Received: 11/10/2008

    Aprovado: 20/12/2008Approved: 12/20/2008

    Revisado: 01/10/2009Reviewed: 10/01/2009

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