Rex Stout Um Cadáver de Luxo

254

description

Another wonderful Rex Stou's work

Transcript of Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Page 1: Rex Stout Um Cadáver de Luxo
Page 2: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Rex Stout

Um Cadáverde Luxo

Tradução deMARIA HELENA PIRES

Page 3: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Título original:DEATH OF A DOXY

© 1966 by Rex StoutDireitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP: 22.461 — Tel.: 286-7822

Endereço Telegráfico: NEOFRONTRio de Janeiro — RJ

Revisão:MARIA DE FÁTIMA BARBOSA

NEIDE ROMANA MOREIRA

PAULO GUANAES

http://groups.google.com/group/digitalsource

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Stout, Rex.S888c Um Cadáver de luxo / Rex Stout ; tradução de MariaHelena Pires. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984.

Tradução de: Death of a doxy

1. Ficção policial e de mistério (Literatura estadunidense) I. Título

84-0127 CDD — 813.0872

Page 4: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CDU — 820(73)-312.4

Page 5: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CONTRA CAPA

Viva, Isabel Kerr era cobiçada por todos os homens. Morta,

se transforma num incômodo. Principalmente para aqueles que

a tinham protegido. A fim de abafar o escândalo de uma ligação

amorosa que envolveu a jovem e um dos homens mais

importantes dos Estados Unidos, Nero Wolfe é chamado para

enfrentar um dos maiores desafios de sua carreira. É essa a

trama de Um cadáver de luxo, de Rex Stout, o mesmo autor de

Um discurso fatal, com que a Nova Fronteira relançou no Brasil

os casos do “mestre dos detetives particulares americanos”.

ORELHAS DO LIVRO

Um cadáver de luxo

No chão atapetado de um luxuoso quarto cor-de-rosa, um

cadáver de mulher. Contrastando com a delicadeza de seu

cabelo e os olhos azuis, o sangue do crânio afundado pelo peso

de um cinzeiro de mármore. Rendas sensuais envolvem o corpo

inerte de Isabel Kerr, ex-corista de teatro e amante de um

homem muito influente. Que motivos haveria para matar a linda

Isabel? Quem seria o assassino, numa manhã fria do inverno

nova-iorquino?

Esta a trama central de Um cadáver de luxo. Lembra um

roteiro de cinema em suas primeiras cenas, com um misto de

tensão, mistério e intriga, à maneira do mestre Alfred Hitchcock.

No entanto, o que as páginas iniciais desse livro anunciam é o

segundo romance da série começada por Um discurso fatal, com

o qual a Nova Fronteira relançou no Brasil as aventuras do

famoso detetive Nero Wolfe.

Gordo, bebedor de cerveja, requintado gourmet e criador

Page 6: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

de orquídeas, Nero Wolfe é o personagem principal de 46 títulos

de Rex Stout. Graças a ele, Stout — antes malsucedido em três

romances ‘de idéias’ — enveredou pelo gênero policial, foi

traduzido no mundo inteiro e vendeu até hoje 80 milhões de

exemplares.

Constantemente comparado a Agatha Christie,

principalmente pelo bom gosto, raciocínio lógico e a dose certa

de suspense e violência, esse americano avesso ao contato

social e à mediocridade é responsável também pela criação de

Archie Goodwin. Eficiente e destemido auxiliar de Nero Wolfe,

ele se torna peça indispensável para destrinchar casos

enigmáticos, como o que empolgará o leitor de Um cadáver de

luxo.

Capa: Jader Marques Filho/Victor Burton

Ilustração: Ingrid Von Steurer/Gilberto Zavarezzi

Page 7: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Um Cadáver de Luxo

Page 8: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO I

FIQUEI DE PÉ, olhando à minha volta. É de rotina, ao sair de um

lugar onde não se deveria estar, supor se e onde se tocou nas

coisas, mas desta vez era mais do que uma simples rotina.

Precisava ter certeza. Havia muitas coisas na sala: cadeiras

ornamentadas, uma grande televisão de luxo, uma lareira de

mármore, sem fogo, uma mesinha de café em frente a um

grande sofá com várias revistas, e assim por diante. Quando me

certifiquei de que não tocara em nada, virei-me e entrei no

quarto de dormir. Quase tudo nele era macio demais para

guardar uma impressão digital: o tapete de parede a parede, a

colcha cor-de-rosa na cama de tamanho acima do comum, as

cadeiras estofadas, a frente de cetim cor-de-rosa nas três peças

de mobília. Fui dar mais uma olhada no corpo de uma mulher,

no chão, a uns sessenta centímetros da cama, deitada de costas

com um braço dobrado. Não precisara tocar para verificar que

era um cadáver, nem precisara ver a parte afundada do crânio,

mas haveria a chance num milhão de eu ter colocado os dedos

no cinzeiro pesado de mármore? Os tocos e cinzas que estavam

lá antes encontravam-se agora espalhados, e era quase certo

que ele afundara o crânio da mulher. Abanei a cabeça; eu não

teria sido tão estúpido.

Saí. Obviamente tive de usar meu lenço na maçaneta, na

parte de dentro e na de fora, e chamei o elevador com o nó dos

Page 9: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

dedos e, dentro do elevador, fiz o mesmo quando apertei o

botão 1. Limpei o botão 4, que apertara ao subir, com o meu

lenço. Não havia ninguém no pequeno saguão lá embaixo, e

como usava luvas quando entrara, não me preocupei com as

maçanetas do lado de fora da porta. Tomei a direção oeste, para

a avenida Lexington, e coloquei as luvas. Era o dia mais frio do

inverno, com um vento penetrante.

Não tento pensar muito quando estou andando, pois se

esbarra nas pessoas, mas em todo caso nem precisava adi-

vinhar nada, quanto mais pensar. Eu precisava, sim, fazer umas

perguntas, e a pessoa a quem fazê-las morava no segundo

andar de um prédio sem elevador, na rua 52, entre a 8.a e a 9.a

Avenidas. Como estava na rua 39, teria que andar treze

pequenos quarteirões para cima e quatro longos quarteirões

transversais. Pelo meu relógio eram 16:36h. Apanhar um táxi a

essa hora do dia é um inferno, e eu não tinha pressa. Ele estava

trabalhando. Fui a pé.

Faltava um minuto para as cinco horas quando entrei

numa cabine telefônica de uma lanchonete na 8.a Avenida e

disquei um número. Quando Fritz atendeu, pedi-lhe que o

chamasse na estufa, e, depois de esperar um pouco, ouviu-se

um grunhido:

— Sim?

— Sou eu — disse. — Encontrei um obstáculo com esse

trabalhinho particular e não sei quando voltarei. Provavelmente

não chegarei a tempo para jantar.

— Está em apuros?

— Não.

— Se precisar de você, posso lhe falar?

— Não.

— Muito bem. — E desligou.

Page 10: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Ele estava sendo tolerante, pois se tratava de um assunto

meu e ele nada tinha a ver com isso. Detesta ser incomodado

quando está com as orquídeas, e se estivesse fazendo um

trabalho para ele, diria que eu deveria ter falado com Fritz.

Após sair e andar mais meio quarteirão para oeste, com o

rosto gelado, mas o sangue circulando bem, entrei num

vestíbulo e apertei o botão marcado com o nome Cather. Mesmo

depois de ter apertado mais duas vezes, o porteiro eletrônico

não funcionou — conforme eu esperava. Estava frio demais para

ficar ali, por isso voltei à 8.a Avenida, pensando em tomar cinco

ou seis dedos de bourbon. Mas só gosto de tomar bourbon para

relaxar, não quando tenho de ficar alerta; assim, dirigi-me ao

balcão de uma lanchonete e tomei café.

Após o café, fui a uma cabine e disquei um número, e

desliguei depois de o telefone ter tocado dez vezes sem

resposta. Voltei ao balcão e tomei um copo de leite. Fui

novamente à cabine; não obtive resposta e pedi um sanduíche

de pão de centeio com corned beef e café. Nunca se compra

pão de centeio na velha casa de tijolo da rua 35 Oeste. Só às

6:20h, na minha quinta visita à cabine, depois de comer o

segundo pedaço de torta de abóbora e beber a quarta xícara de

café, uma voz disse alô.

— Orrie? Aqui é Archie. Você está sozinho?

— Claro. Estou sempre sozinho. Você foi lá?

— Sim. Eu...

— O que você pegou?

— Prefiro lhe mostrar. Estarei aí em dois minutos. — Que

diabos, eu vou...

— Estou perto. Dois minutos. — Desliguei o telefone.

Não parei para vestir o casaco e as luvas. Um bom teste de

habilidade de sobrevivência é ficar dois minutos num vento de

Page 11: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

zero graus. Ao apertar o botão no vestíbulo, ouvi imediatamente

o clique de abrir a porta. Quando entrei e comecei a subir as

escadas, Orrie falou lá de cima:

— Que diabos, eu podia ter ido.

Uma vez Nero Wolfe, querendo se exibir, me disse:

— Vultus est index animi — e eu respondi: — Isso não é

grego.

— Não — disse ele — é um provérbio em latim. ‘O rosto é o

espelho da alma.’

Bem, depende do rosto e da alma. Numa mesa de pôquer,

à sua frente, o rosto de Saul Panzer é uma amostra do nada.

Mas continuamos tentando e era o que eu fazia com o rosto de

Orrie Cather, depois que ele me disse para entrar, tomou meu

casaco e chapéu e nos sentamos. Fiquei a olhá-lo, até que

perguntou:

— Não sabe quem sou?

— Vultus est index animi — respondi.

— Ótimo — disse ele. — É o que sempre imaginei. Que

diabos há com você?

— Simples curiosidade. Será que está brincando comigo?

— Ora, vamos. Brincando como? Para quê?

— Eu gostaria de saber. — Cruzei as pernas. — Está bem,

aqui está meu relatório. Fiz tudo o que o roteiro mandava.

Cheguei às 4:15h em ponto, apertei a campainha diversas vezes

e, como esperava, não tive resposta. Usei a chave que me deu,

fui ao quarto andar de elevador, usei a outra chave e entrei. Não

havia ninguém na sala e fui até o quarto. Não digo que tivesse

alguém lá, pois um cadáver não é alguém. Estava no chão, não

muito longe da cama. Nunca vi Isabel Kerr ou um retrato seu,

mas creio que era ela. Usava uma coisinha cor-de-rosa com

rendas e sandálias rosas, sem meia. Alguns...

Page 12: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Quer dizer que estava morta?

— Não interrompa. Alguns centímetros acima de um metro

e meio, 55 quilos, rosto oval, bem-feito, olhos azuis, o cabelo

dourado cor de mel e orelhas pequenas...

— Meu Deus. Meu Deus!

— É ela?

— Sim.

— Pare de me interromper. O Sr. Wolfe nunca interrompe.

Não tive que tocá-la para me certificar. Havia um ferimento na

testa e um achatamento do crânio, alguns centímetros acima e

atrás da orelha esquerda. No chão, a uns dez centímetros de

seu ombro direito, havia um cinzeiro de mármore,

suficientemente pesado para afundar um crânio mais grosso

que o dela. Num braço e numa perna havia manchas roxas.

Lividez cadavérica, caso não saiba. A testa já estava fria e...

— Você disse que não a tocou.

— Eu toco com os dedos. Colocar um pulso contra uma

testa ou uma perna não é tocar. A perna, também fria. Já era um

cadáver no mínimo há cinco horas, talvez há mais tempo. O

cinzeiro estava vazio. Havia tocos e cinza no tapete, mas nada

no cinzeiro. Fiquei lá dentro uns seis minutos. Não me agradava

a idéia de ficar lá para procurar alguma coisa. — Pus a mão no

bolso e apanhei uma coisa. — Aqui estão as suas chaves.

Ele nem as viu. Os dentes estavam cerrados. Abriu-os para

dizer:

— Brincando com você. Pelo amor de Deus. Brincando com

você.

— É claro que estou curioso.

Ele se levantou e saiu por uma porta. Atirei as chaves na

mesa e olhei em volta. Era um quarto de bom tamanho, com

três janelas, e a mobília servia para um solteirão não muito

Page 13: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

exigente. A única luz provinha de duas lâmpadas presas à

parede, mas havia uma lâmpada, ao lado de uma poltrona, que

não estava acesa. Orrie voltou com uma garrafa e dois copos,

oferecendo-me um, mas eu recusei, agradecendo, pois acabara

de jantar. Colocou um copo sobre a mesa e no outro colocou

bebida, deu um bom trago, fazendo uma careta, e sentou-se.

— Brincando com você — repetiu. — Tolice. Pode me

perguntar onde eu estava desde as oito horas da manhã e se

posso provar.

Abanei a cabeça.

— Já que só estou curioso, isso seria demais. Se eu

quisesse ser desagradável teria começado gritando alguma

coisa como: “Por que deixou o cinzeiro no chão?” É claro que

temos de considerar os fatos, um deles é que eu talvez seja a

única pessoa, além de você, a saber que a morte dela é como se

cravassem um espinho na sua carne. Um espinho bem fundo.

Por isso, é claro que estou curioso sobre um detalhe. Você a

matou?

— Não. Meu Deus, Archie, pensa que sou trouxa?

— Não. Você não é um gênio, mas não é um trouxa. Afinal

de contas, se você me chamou, sabia que eu ia lá hoje. Seria

ótimo se você pudesse provar onde estava.

— Não posso. — Olhava em minha direção, mas

provavelmente não estava me vendo. Tomou um grande gole de

uísque e engoliu duas vezes. — Conforme lhe disse, estou

fazendo um serviço para Bascom. Saí às oito horas, e um pouco

antes das nove achei o suspeito, a quem segui o dia inteiro.

Foi...

— Seguiu sozinho?

— Sim. Simples rotina. Das 9:15 às 12:35h fiquei no

saguão de um prédio.

Page 14: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Sozinho?

— Sozinho.

— Então ainda estou curioso. Se as nossas posições fossem

inversas, você também estaria; mas é só isso, só curiosidade.

Quer me perguntar alguma coisa?

— Sim, quero. Você estava de luvas e tinha as chaves.

Sabia que havia acontecido alguma coisa lá. Por que não deu

uma olhada rápida?

Sorri para ele:

— Você não está realmente falando sério.

— Lógico que estou.

Acenei com a cabeça:

— De vez em quando você é realmente um trouxa. —

Levantei-me. — Como sabe, Orrie, e como eu também sei, você

acha que seria ótimo se tivesse o meu emprego. Está certo, não

há nada de errado na ambição. E se você ficasse ambicioso

demais? E se você soubesse que não havia nada lá que o

inculpasse? E se você tivesse arranjado tudo para que um

homem, eu, chegasse lá às 4:15h e outro homem, talvez um

policial que tivesse recebido um telefonema anônimo, chegasse

uns minutos mais tarde? Não seria acusado de assassinato, pois

a autópsia provaria a hora da morte, mas estaria com as chaves

e as luvas de borracha, e com isso eu teria conseguido uns dois

anos de cadeia. É claro que não acreditei realmente nisso, mas

como sou do tipo nervoso...

— Bolas. — Ele continuava no mesmo lugar, a cabeça

atirada para trás. — O que você vai fazer?

Olhei para o relógio:

— O jantar já deve estar quase no fim, e de qualquer

maneira já comi. Vou para casa saborear e repetir o crème

Gènoise. Você pega oito biscoitos de amêndoas feitos em casa e

Page 15: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

deixa de molho em meia xícara de conhaque. Coloca duas

xícaras de leite puro, meia xícara de açúcar e a casca de meia

laranja, cortada bem fina, dentro...

— Deixe de palhaçada! — gritou ele. — Você vai contar

para Wolfe?

— Preferia não contar.

— Vai?

— Do modo que as coisas estão agora, não.

— Ou vai dizer para Saul ou Fred?

— Não. Nem a Cramer nem a J. Edgar Hoover. — Fui até o

sofá apanhar meu casaco e meu chapéu. — Não faça nada que

eu não faria. Você sabe o que os médicos chamam de ética

profissional?

— Sim.

— Bem, espero sinceramente que você não precise.

E fui embora.

Page 16: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO II

O NEW YORK TIMES sabe como escrever as coisas: “Ao que tudo

indica Miss Kerr não trabalhava em lugar algum nem exercia

qualquer atividade.” Não se pode colocar as coisas melhor,

deixando a mente aberta a todos os tipos de pensamentos.

Na mesa da cozinha, onde tomo café, com o Times à

minha frente, coloquei melado de Porto Rico sobre os bolinhos

de aveia e disse a Fritz:

— Seria um bom assassinato para se trabalhar.

Na mesa grande, inspecionando cogumelos secos en-

quanto me observava para ver quando precisaria fazer mais

bolinhos, Fritz abanou a cabeça e disse:

— Nenhum assassinato é bom de se trabalhar. Quando o

caso é de assassinato, a campainha da porta me assusta e

nunca sei se você vai voltar vivo.

Disse-lhe que estava me enganando, nunca o vira com

medo, espetei mais um pedaço de bolo com melado e comecei

novamente a ler o artigo do Times. Eu sabia mais do assunto do

que o jornal, o que me parecia ótimo. Os únicos dados novos

para mim era que o corpo fora descoberto por Stella, a irmã de

Isabel Kerr, que Stella era a mulher de Barry Fleming, professor

de matemática na escola Henry Hudson, que Stella fora ao

apartamento um pouco antes das sete da noite de sábado,

menos de três horas após eu ter saído de lá, que Isabel morrera

Page 17: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

aproximadamente entre oito horas e meio-dia, que Stella não

queria falar com os repórteres e que o escritório da polícia e o

do Promotor Público haviam começado uma investigação

rigorosa. O retrato de Isabel provavelmente fora desencavado

numa agência teatral, pois exibia um sorriso de corista. O de

Stella fora tirado quando um policial a conduzia pela calçada.

Até aí, tudo bem. Mas se o que eu fizera pelo Orrie não

fosse brincadeira, se ele não estivesse me enganando, e eu

realmente não acreditava que ele estivesse, logo haveria brigas

e discussões. Terminei o café e fui ao escritório, onde liguei o

rádio. No noticiário das dez horas não havia nada. Quando Wolfe

desceu da estufa, às onze, o rádio ainda estava ligado. Dirigiu-se

à sua escrivaninha e sentou-se na única cadeira onde seu corpo

volumoso realmente sente-se bem acomodado, olhou aborrecido

para o rádio e depois para mim, perguntando:

— Há alguma coisa urgente?

— Sim, senhor — respondi. — Será que os Bravos vão jogar

em Milwaukee ou em Atlanta? Além disso, hoje é domingo, dia

de descanso.

— Pensei que você tivesse um compromisso.

— O compromisso é às treze horas e talvez eu não vá. O

almoço deve ser bom, mas depois tem um sujeito que vai ler

poesia,

— Poesia de quem?

— Dele mesmo.

— Ugh!

— Certo. Acredito que Miss Rowan sabia que ele estava

com fome e apenas queria dar-lhe o que comer, mas aí o sujeito

disse que faria um grande favor a ela e a seus amigos, e ela não

pôde recusar. Ele chama de epiton porque é um poema épico e

leva horas para recitar.

Page 18: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

O canto de sua boca elevou-se meio centímetro.

— Bem feito.

— Sim. O que ela fez no carro aquela noite foi por

obrigação, mas você nunca a perdoará. Talvez eu não vá.

— Vá — disse ele, com um gesto.

Pegou sua cópia do Times de domingo e começou a ler.

Recebemos três exemplares, quase dez quilos de jornal — um

para ele, um para mim e o outro para Fritz.

Ao ouvir no noticiário do meio-dia que não diziam nada de

novo sobre o crime, decidi que seria tolice ficar sentado a tarde

inteira brigando com o Times, prendendo a respiração a cada

meia hora ao ouvir as notícias, e subi os dois andares até meu

quarto. Como já fizera a barba, tinha só que mudar de camisa e

vestir um dos meus quatro ternos. Ao descer, avisei na cozinha

e no escritório que já ia sair. Fui à garagem na 10.a Avenida

onde guardamos o Heron que pertence a Wolfe, mas que eu

dirijo. Aos domingos, muitas vezes se encontra onde estacionar.

Às 4:25 eu estava sentado numa cadeira confortável na sala do

apartamento dúplex de Lily Rowan, ao alto de um prédio na rua

63, recostado, com os olhos fechados, tentando decidir qual

deles eu preferia ter no meu time, Willie Mays ou Sandy Koufax.

O poeta, um cara de rosto longo de barbicha, que não parecia

estar com fome, pois acabara de fazer uma boa refeição, ainda

recitava, mas há mais de uma hora que eu não o escutava. Era

apenas um barulho ao fundo. Sentindo que me cutucavam no

ombro, abri os olhos e vi Mimi, a empregada. Mexendo os lábios,

pronunciou a palavra “telefone” sem fazer ruído. Levantei-me,

dirigi-me a uma porta no canto da sala e entrei no escritório

onde fica a escrivaninha, na qual Lily faz os cheques para as

causas que os merecem. Peguei o telefone e falei:

— Aqui é Archie Goodwin.

Page 19: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Creio que leu sobre o assassinato de uma mulher

chamada Isabel Kerr? — respondeu a voz de Wolfe.

Respondi que sim.

— Eu também. Parker está aqui. Ele recebeu um tele-

fonema de Orrie Cather, pedindo que fosse à delegacia de

polícia na rua 20, o que ele fez. Orrie está sob custódia como

testemunha do crime. Ele deu ao Sr. Parker algumas

informações, não muitas, e lhe disse que perguntasse a você.

Por quê?

— Porque sim. Parker ainda está aí?

— Sim.

— Chegarei dentro de vinte minutos.

Desliguei, fui à cozinha e disse a Mimi que avisasse a Lily

que eu precisava sair, apanhei meu casaco e chapéu na

entrada, saí e chamei o elevador. O carro estava logo após a

esquina da Avenida Madison. Ao entrar, tomando a direção

oeste, disse a mim mesmo que era melhor continuar pensando

em Willie Mays e Sandy Koufax. Não havia nada que pudesse

fazer até ter conversado com Parker. Ao entrar na garagem,

decidi definitivamente ficar com Willie Mays. O braço de Koufax

era muito problemático. Portanto, sentia-me como se tivesse

realizado alguma coisa de valor quando subi os degraus do

pórtico, entrei, tirei o casaco e o chapéu, e me dirigi ao

escritório.

Nathaniel Parker, o advogado que Wolfe utiliza em caso de

necessidade, estava sentado na poltrona vermelha, e na

mesinha ao lado havia uma garrafa de uísque, uma de soda,

uma vasilha com gelo e um copo. Wolfe estava à escrivaninha,

bebendo cerveja. Como aos domingos não sobe para ver as

Page 20: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

orquídeas na estufa, é o dia em que bebe mais cerveja. Há mais

de dois meses que não via Parker e ele se levantou para apertar

minha mão. Eu disse a Wolfe:

— Isto vai ser pior do que ouvir poesia.

Fui até a minha mesa, girei a cadeira, sentei-me e disse a

Parker:

— Se você vai soltá-lo, preferia esperar até vê-lo.

— Você iria esperar muito tempo — respondeu Parker. —

Acho que vão ficar com ele. Ao menos é o que parece, pelo

modo que falam...

— Acusação de assassinato?

— Ainda não, mas acho que será em breve. Talvez

amanhã.

Wolfe grunhiu, em minha direção:

— Foi ele quem matou aquela mulher? Foi esse o seu

assunto pessoal de ontem?

— Vamos ficar calmos — sugeri. — Se ele disse para me

consultar, quero saber exatamente o modo como falou. — Virei-

me para Parker: — Quer explicar, por favor?

— Lógico. — O advogado tomou um gole e pousou o copo

na mesa. — Ele não falou muito. Disse que não responderia a

nenhuma pergunta, nenhuma mesmo, antes de falar comigo. É

claro que conhece todas as regras. Mas nem comigo se abriu.

Nem ao menos me disse se conhecera a mulher ou se tivera

alguma relação com ela. Só me disse três coisas. Um, ele não a

matara nem estivera perto dela ou de seu apartamento ontem

em hora alguma; dois, onde ele estava ontem. Três, eu deveria

vir aqui e você decidiria o que me dizer. Quando saí de lá, ficou

combinado que ele contaria onde estivera e o que fizera ontem,

e ficaria mudo sobre qualquer outro assunto, e que amanhã,

após ter falado com você, eu iria vê-lo.

Page 21: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Você é advogado dele?

— Concordei com isso. Condicionalmente, até ter falado

com você.

— Então sou eu quem decido?

— Sim. Ele me pediu para lhe dizer que quer que você

decida como vai proceder.

— Isso é ótimo. Aprecio muito isso, alguém confiar em mim

desta forma. Deixe-me coçar o nariz.

Cocei-o com a ponta do dedo, com os olhos fixos no globo

vermelho em cima da estante, mas sem realmente vê-lo. Não

demorei muito tempo, porque na realidade era muito simples:

ou tudo ou nada, e não tinha importância se Parker ouvisse

agora ou no dia seguinte. Levantei-me:

— Pensei que aos domingos, no inverno, você jogasse

bridge.

— E jogo. O chamado de Cather interrompeu o jogo.

— Minha sugestão é voltar e continuar a jogar. Decidi como

agir. Vou contar tudo ao sr. Wolfe. Prefiro que ele me olhe

aborrecido enquanto eu conto para ele, do que quando eu

contar para você. Mais tarde eu ou ele lhe contaremos. Amanhã

de manhã seria ótimo. Se preferir, pode esperar na sala da

frente, mas vai demorar um pouco.

Os lábios de Wolfe estavam tão comprimidos que quase

não os via. Pegou a garrafa e pôs um pouco de cerveja no copo.

Parker apanhou o copo e o esvaziou, colocou-o sobre a mesa,

levantou-se, olhou para mim e disse:

— Gostaria que você me dissesse só uma coisa,

confidencialmente: foi ele quem a matou?

— Mesmo que soubesse — respondi — não seria

confidencial. Não sou seu cliente.

Encaminhei-me para a entrada, mas fiquei segurando seu

Page 22: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

casaco nas mãos alguns minutos enquanto ele falava com

Wolfe. Finalmente apareceu, levou algum tempo ajeitando o

cachecol, abotoando o casaco e pondo as luvas, e encolheu os

ombros quando uma lufada de vento o atingiu ao atravessar a

soleira da porta. Ao voltar ao escritório, vi que Wolfe reabrira o

livro que lia agora, Convite para um inquérito policial, de Walter

e Miriam Schneir. Era infantil. Ele estava acentuando o fato de

que sua leitura de domingo fora estragada, primeiro por Orrie,

depois por mim. Ao sentar-me, disse-lhe:

— Se estiver no meio de um capítulo, não tenho pressa

alguma.

Resmungou, pôs o livro na mesa e olhou-me, aborrecido.

Comecei a falar:

— Anteontem, sexta à tarde, Orrie me telefonou e marcou

um encontro comigo à noite. Talvez você se lembre que eu,

infelizmente, não estava aqui para ajudá-lo a comer o frango

Souvaroff. Encontrei-me com Orrie às sete horas no Giordano,

um restaurante na rua 39 Oeste. Agora...

— Não faça resumos.

— Não farei. Agora vou lhe dizer o que ele me disse. Ele

estava numa enrascada. Ia se casar com uma garota chamada

Jill Hardy, uma aeromoça. Mostrou-me um retrato dela. Haviam

marcado para o princípio de maio, quando ela teria férias. Mas

havia um obstáculo. Uma outra moça, de nome Isabel Kerr,

estava criando objeções. Ela mesma queria se casar com ele, e

achava que ele era, ou seria, o pai da criança que ela esperava

para daqui a sete meses. Queria brigar por isso, em público, se

necessário. Disse que tinha em seu poder, talvez numa gaveta

trancada no seu apartamento, certos objetos que podia usar.

Um desses objetos era sua licença de investigador particular,

que retirara do bolso dele uma noite, cerca de um mês atrás. E

Page 23: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

também uns retratos e cartas, e talvez outras coisas que Orrie

não sabia quais seriam. O problema principal não era que ela

pudesse fisgá-lo, mas sim que estragaria seu relacionamento

com Jill Hardy.

— Ela não podia obrigá-lo a casar-se. Para que casar? —

Wolfe resmungou.

— Está bem, esse é o seu ponto de vista, mas não era o de

Orrie. Ele queria aqueles objetos e tinha quase certeza de que

estavam no apartamento. Sabia que ela ia ao cinema de tarde,

duas a três vezes por semana, e quase sempre aos sábados.

Tinha as chaves do apartamento. A idéia dele era que eu iria lá

no dia seguinte, sábado, que agora é ontem, às 4:15h, tocaria a

campainha; ninguém viria atender, entraria e daria uma

espiada. Não gostei muito da idéia. Se fosse para Saul ou Fred,

faria com prazer, porém, apesar de não ter nada contra Orrie,

não pediria suas meias emprestadas. Explicou que não me

envolveria, acontecesse o que acontecesse. Se ela estivesse lá e

atendesse à porta, eu iria embora. Era quase certo que ela não

voltaria antes de eu ir embora, mas se ela ou outra pessoa

entrasse, eu seria delicado e diria que não tinha arrombado a

porta para entrar, eu usara as chaves que ela lhe dera.

— Então você foi — falou Wolfe, zangado.

— Não me apresse. Disse a ele que não faria nada se não

soubesse de tudo. Demorou algum tempo e fiz muitas

perguntas, mas precisava saber se Isabel Kerr era procurada,

podia ser a filha fugitiva de um embaixador. Não. Há três anos

tinham-na retirado da fila de coristas e a colocaram no ninho de

amor que ainda ocupava. O detalhe mais difícil de conseguir foi

o nome de quem a salvara. Orrie dizia não saber, mas era claro

que sabia, e insisti. O nome dele é Avery Ballou, presidente da

Federal Holding Corporation. Aparentemente Isabel tinha

Page 24: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

alguma qualidade apreciada por ele, pois ainda pagava o

aluguel, a conta do armazém e ia vê-la duas ou três vezes por

semana, de noite. Mas ela sabia que esse tipo de relação não

dura para sempre, e de qualquer modo queria Orrie. Tinham se

encontrado em algum lugar, isso é irrelevante, há cerca de um

ano, e ela vinha... bem, alimentando-o com a comida de Avery

Ballou, e decidira que o queria para sempre. Acreditei nisso. As

mulheres não se apaixonam por Orrie com a fúria e rapidez que

acredita, mas não é feio e às vezes os olhos das mulheres se

fixam nele.

— Então você foi.

— Sim. Não estou me desculpando, mas parecia

aconselhável. Embora ele não seja como Saul Panzer, há anos

que trabalha bem para você... está bem, para nós. Fez alguns

trabalhos muito bons e nunca nos enganou, pelo menos que a

gente saiba. Então ontem à tarde eu fui lá, de luvas, com um

punhado de chaves, e cheguei exatamente às 4:15h. Ninguém

respondeu ao toque da campainha e por isso entrei e subi. É

uma dessas casas de quatro andares remodelada, elevador sem

cabineiro, não tem porteiro nem empregado, e ninguém me viu.

Já que leu o artigo no Times, sabe o que encontrei. Não fiquei lá

para usar as luvas ou chaves; eu achei que Orrie não valia tanto

assim. De qualquer forma, mesmo que achasse os objetos, era

natural que encontrassem suas impressões digitais, já que três

dias antes ele estivera lá durante horas. Por isso, fui-me

embora.

— Alguém o viu?

— Não. Telefonei para você não me esperar para o jantar

e...

— Isto foi às cinco horas.

Isso era bem dele. Nunca parece reparar em nada, mas

Page 25: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

sabe de tudo. Acenei com a cabeça.

— Sim. Caminhei quase meia hora até chegar ao endereço

de Orrie, ou perto. Esperei ele vir, subi ao seu apartamento,

contei-lhe o que acontecera e devolvi-lhe as chaves. Perguntei

se ele a matara e me respondeu que não. Seguira uma pessoa

para Bascom o dia inteiro, mas não pode fornecer provas.

Durante as horas importantes, de oito horas até o meio-dia, ele

está sem cobertura. Queria saber por que eu não procurara as

coisas. Espicacei-o um pouco, não muito, voltei para casa e

servi-me duas vezes de crème Gènoise. Sabia que o iriam

apanhar. Se não fosse por mais nada, por suas impressões. Isso

foi o urgente no rádio hoje de manhã.

— Você devia ter-me dito.

— De que adiantaria? Só iria estragar o seu dia.

— Por isso você foi ouvir um homem ler poesia.

Inclinei um pouco a cabeça:

— Olhe, é bom esquecer de mim. Você está aborrecido e

quer um alvo, mas não sou eu. Se você se esquecer de Orrie,

não terá nenhum alvo e vai poder voltar para o seu livro.

Olhou o livro, apanhou-o e depois o colocou de volta na

escrivaninha. Pegou o copo de cerveja, franziu a testa porque já

estava sem espuma, mas bebeu-o assim mesmo até o fim,

colocou o copo novamente na bandeja e a empurrou para longe.

— Orrie — disse ele. — Maldito seja. O caso é: será que ele

a matou? Se matou, o problema é do sr. Parker e podemos

deixá-lo com ele. Se não matou, estamos...

O telefone tocou e girei minha cadeira para atendê-lo.

— Residência do sr. Nero Wol...

— Archie, aqui é Lon. Estou espantado de você estar aí.

— Não deveria estar?

— É claro que não. Com seu companheiro na gaiola?

Page 26: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Não sei do que está falando. Passei a tarde num recital

de poesia e acabo de chegar.

— Você quer dizer que não sabe que Orrie Cather foi preso

no caso do assassinato de Isabel Kerr?

— Foi mesmo?

— Sim. Se for de ajuda ter alguma coisa publicada, estou

às ordens. Não espero que me mostre todas as cartas de Wolfe,

mas se houver alguma coisinha que...

— Lógico. Com toda a certeza. Logo que souber de alguma

coisa quente, ou mesmo morna, lhe telefono. Agora estou

ocupado. Estou contando ao sr. Wolfe sobre um lindo poema

que o homem leu.

— Aposto que está. Não há nada que dê só um parágrafo?

— No momento, não. Obrigado por telefonar.

Desliguei o telefone, girei a cadeira e contei a Wolfe:

— Lou Cohen tentando pescar alguma coisa, deve estar em

casa já que hoje é domingo. Uma das matérias de amanhã da

Gazeta vai começar assim: “Orrie Cather, detetive particular,

assistente de confiança de Nero Wolfe, está sendo mantido

como testemunha em conexão com o assassinato de Isabel Kerr.

O sr. Cather tem sido um colaborador importante no sucesso

espetacular de muitos casos famosos de Nero Wolfe. Archie

Goodwin, que é apenas o menino de recados de Nero Wolfe,

disse...”

— Cale a boca!

Levantei os ombros e suspendi as mãos, com as palmas

para fora.

Ele deu um murro na mesa com tanta força que a garrafa

tremeu, enquanto gritava:

— Ele a matou?

— Passo o lance! — respondi com firmeza.

Page 27: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Isso não basta. Quando esteve com ele na sexta à noite,

estava planejando um assassinato? Quando o viu ontem à noite,

ele se sentia culpado?

— Passo assim mesmo. Na sexta à noite, ele podia não ter

planejado nada. Pode ter ido lá ontem de manhã, não se sabe

por que, e ter perdido a cabeça. Quanto a ontem de tarde, o que

você quer dizer com ‘se sentia culpado’? Já sentaram-se aqui

assassinos, que olharam você nos olhos e responderam a suas

perguntas, e quando saíam você não tinha certeza. Agora eu é

que não tenho certeza. É claro que você quer um veredicto, mas

eu não o tenho.

— Você gosta de dar vantagens. Qual é a vantagem?

— Posso apostar a mesma quantia e aceito ele ser culpado

ou não. É claro que, fazendo assim, estou ignorando minha

preferência pessoal. Preferia que ele não o tivesse cometido.

Preferia não ver a manchete ASSISTENTE DE NERO WOLFE CONDENADO

POR HOMICÍDIO — e você também não gostaria. As pessoas que só

lêem as manchetes poderiam pensar ser eu.

— Você se recusa a solucioná-lo.

— Sim.

— Então chame Saul e Fred para virem aqui logo que

puderem.

Page 28: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO III

WOLFE ESTAVA FAZENDO um discurso às 9:50h.

Saul Panzer, 1,70m, setenta quilos, nariz e orelhas

grandes, cabelos cor de ferrugem, estava sentado na cadeira de

couro vermelho com uma garrafa de Montrachet 1958 na

mesinha ao lado, tendo na mão um cálice. Fred Durkin, 1,73m,

95 quilos, careca e volumoso, estava numa das cadeiras

amarelas, em frente à escrivaninha de Wolfe, com uma garrafa

de Canadian e uma jarra d’água na mão. A água não fora

tocada. Eu não tinha o que beber. Desde cedo Fritz saíra para

tratar de assuntos particulares, e por volta de sete horas Wolfe e

eu comemos, concentrando-nos principalmente num prato de

carne temperada e gelatina, feito com cabeça e pé de porco.

Creio que, no total, já passei mais de dez horas olhando Fritz

fazer esse prato, tentando descobrir por que o dele é tão melhor

do que o de qualquer outra pessoa, inclusive o que minha mãe

costumava fazer em Ohio, mas finalmente desisti. Talvez seja o

modo como segura a colher quando retira a gordura.

Saul e Fred já haviam recebido todas as explicações,

exceto uma, o nome do homem que salvara Isabel Kerr do

mundo do teatro. Orrie não gostaria disso, mas dissera a Parker

que eu decidisse como resolver as coisas, e se os dois deviam

tomar uma decisão tinham de saber de todos os fatos. O nome

do ‘padrinho’ não tinha a menor importância. Após terem feito

Page 29: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

algumas perguntas e recebido as respostas, Wolfe começou a

falar.

— Não é apenas uma questão de pensar num método de

defesa eficiente. Se Orrie matou aquela mulher para evitar que

ela interferisse em seus planos pessoais, nem eu nem vocês

somos obrigados a enganar os agentes da Justiça. Certamente

podemos ter simpatia com a desgraça, mas não com

contravenção de Nemesis. O sr. Parker é um advogado

competente e podemos deixar o caso com ele. Mas se não a

matou, tenho uma obrigação que não posso ignorar. Sou levado

a isso não só pela sua longa associação comigo, mas também

por meu amor-próprio. Vocês devem saber que não sinto

nenhuma afeição por ele; freqüentemente ele me embaraça;

não tem a dignidade de um homem que encontrou o seu lugar e

o ocupa, como você tem, Fred; nem a integridade de um homem

que reconhece sua superioridade, mas a restringe a áreas que

lhe são aceitáveis, como você, Saul. Mas se não matou aquela

mulher, pretendo libertá-lo.

Levantou a mão com a palma para fora:

— A questão é: foi ele quem a matou? Como não possuía

uma opinião própria definida, perguntei a Archie. Pensei que ele

ao menos tivesse palpites, sim ou não. Ele sempre tem palpites,

mas desta vez falhou. Disse que apostaria o mesmo dinheiro.

Archie? Isso foi há quatro horas. E agora?

Abanei a cabeça:

— Ainda passo. Que diabo. Vá em frente, comece alguma

coisa e vamos ver o que conseguimos!

— Não. Teríamos assumido um compromisso e

cometeríamos enganos. Fred, você conhece Orrie há mais

tempo do que eu. Já lhe descrevemos toda a situação. O que

você acha?

Page 30: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Jesus! — disse Fred.

— Isso não ajuda nada. Ele apenas diria a Orrie que não

pecasse mais. Será que ele a matou?

Fred pôs o copo na mesa e mexeu-se na cadeira. Olhou

para Saul, depois para mim, e novamente para Wolfe:

— É muito difícil. Será que entendi bem? Se decidirmos

que ele a matou, você fica de fora e Parker se encarrega do

caso. Se decidirmos que é inocente, você tentará provar isso, e

a única maneira de prová-lo, obviamente, seria encontrar o

assassino e prendê-lo. É isso?

— Sim.

— Então minha resposta é de que ele é inocente.

— Essa é sua opinião verdadeira?

— Para ser franco, não. A única forma de se ter certeza de

que ele a matou seria se confessasse, e Orrie nunca confessaria.

Mas nós conhecemos Orrie. Ele sempre fez o que quis com as

mulheres, e elas consentiam. Quero dizer, elas não podiam

evitar de proceder assim. Mas agora, aparentemente, está

fisgado e quer se casar. Por isso, se essa Isabel Kerr se metesse

em seu caminho, se realmente o atrapalhasse... bem, eu não

sei. Quero dizer, acho que realmente sei. Mas você nos chamou

para ajudar a decidir, não foi?

— Sim.

— Então eu digo não. Ele não a matou.

Wolfe nem mesmo fechou a cara para ele. Se eu desse um

palpite desses, receberia o que merecia, mas ele sabe como

funciona a mente de Fred e portanto recebera o que pedira.

Disse apenas:

— Isso não é nada decisivo. — Virou a cabeça e perguntou:

— Saul?

— Não — disse Saul. — Para falar como Archie gosta,

Page 31: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

aposto um contra vinte como ele não a matou.

— É mesmo? — respondeu Wolfe, surpreso. — É uma

opinião ou só uma aposta?

— Chame de uma conclusão. Dou de cinqüenta a um. Não

estou dizendo que seja superior a Archie. Como ele sabe tudo o

que sei, você pode ficar imaginando por que ele não se decidiu,

mas isso é óbvio. Ele está envolvido pessoalmente. Não é

vaidoso.

— Tolice. Você o está lisonjeando.

— Não, senhor. Deixe eu explicar direito. Primeiro, digamos

que Orrie tenha planejado tudo. Quando estava com Archie, na

sexta à noite, pretendia ir lá de manhã e matá-la, e quando

Archie fosse de tarde, com luvas e chaves, ou encontraria o

corpo ou, se alguém o tivesse descoberto antes dele,

encontraria os carros da polícia do lado de fora e uma porção de

policiais lá dentro. Isto é totalmente impossível. Não sei se sabe,

mas Orrie acha que Archie é o mais rápido e esperto agente que

existe. Não há a mínima chance de que ele, deliberadamente,

sentasse à sua frente e pensasse nesse tipo de situação. De

qualquer modo, para quê? Se ia matá-la, para que toda essa

confusão com Archie?

— Está bem, pode eliminar isso — respondi. — Eu já pensei

nisso. Na sexta à noite ele não estava nem ao menos pensando

em vê-la, quanto mais matá-la. Mas se no sábado de manhã,

sem pensar nas conseqüências, tivesse resolvido isso? E se ela o

provocou?

— E ele a matou — Saul confirmou. — Se ficou para

revistar o apartamento a fim de procurar os objetos que queria

ou não, voltou depois à sua tarefa de seguir alguém. Deveria

tomar uma decisão difícil, telefonar para dizer que não fosse,

dando um motivo qualquer. Admito que não conseguisse pensar

Page 32: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

num motivo bastante bom e ter decidido que seria muito

arriscado. Seria melhor deixar você ir. Mas aí entra o ponto

principal. Você o conhece, assim como eu. Sabemos exatamente

como a sua mente funciona. Você ouviu quando perguntei ao sr.

Wolfe se alguém lhe telefonara ontem entre 4:30 e 6:30h, e ele

disse que não. Esse é o ponto decisivo.

— Ótimo. Formidável.

— É muito simples. Você não percebeu, pois está

pessoalmente envolvido. Aqui temos Orrie no seu trabalho de

seguir alguém, já tendo cometido o assassinato. Decide não

avisá-lo. Ele sabe que quando você for lá e encontrar o corpo vai

ficar imaginando coisas sobre ele. Sabe que você o imagina com

a respiração suspensa até que você diga que objetos achou e

apanhou. Sabe que, se não tivesse ido lá para matá-la, estaria

terrivelmente ansioso para saber como você tinha se saído,

digamos de 5:30h em diante, e ele teria lhe telefonado.

Portanto, ele o chamaria. Mas não chamou. Essa é a questão.

— Espere um pouco — disse eu. — Assim não pode ser. Se

ele não a matou, por que não me chamou?

— Ele teria chamado talvez assim que chegasse em casa,

mas você ligou primeiro. Se ele a tivesse matado, não esperaria

até chegar em casa. Como você sabe, o pior defeito dele é o de

se adiantar muito. Sabia que a coisa mais natural seria lhe

telefonar e, adiantando-se, provavelmente seria em torno das

cinco horas. Com toda a certeza até as 5:30h. Que diabos, ele

não é uma pessoa estranha sobre a qual damos palpites; nós o

conhecemos como a palma de nossas mãos.

Virou-se para Wolfe:

— Como você e Archie não se decidiram e Fred disse sim e

não, o meu voto é decisivo. Se acreditar nisso, resolver levá-lo

adiante e quiser me encarregar disso, não cobrarei nada, nem

Page 33: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

despesas. Não gosto de Orrie tanto quanto vocês, mas é claro

que gostaria de reforçar meu voto.

— Eu também — disse Fred. — Eu votei não.

Era uma oferta extraordinária. Saul, que cobra dez dólares

a hora e é o que recebe, podia fazer essa oferta, mas Fred não

ganha tanto e tem uma mulher e quatro filhos.

Wolfe levou os olhos em minha direção, firmando-se nos

meus.

— O caso — disse eu — é que estou pessoalmente

envolvido. Tudo depende, em parte, em como Orrie pensa que

sou esperto e rápido, e isto limita os meus movimentos. Mas

depende também em como considero Saul esperto e detestaria

causar-lhe embaraços. Vou mudar meu voto e dizer não, mas

não aposto vinte a um.

Ele deu uma inspiração profunda pelo nariz, prendeu o ar

por três segundos e depois o expeliu através da boca aberta.

Virou a cabeça para olhar o relógio de parede, segurou as

extremidades dos braços da poltrona com os dedos crispados e

emitiu um Grrrhhhh! Era duro de roer. Já se passara um mês

sem nenhum negócio, e agora ia ter de trabalhar de graça.

Olhou para Saul:

— Quando pode começar?

— Agora — disse Saul.

— E você, Fred?

— Terça-feira — disse Fred. — Estou com um trabalhinho,

mas amanhã posso terminar tudo.

— Já sabem da situação — Wolfe grunhiu. — Não temos

nenhum dado. Nunca tivemos tão pouco. Nem ao menos

sabemos o que a polícia encontrou, se é que encontrou alguma

coisa, que envolva Orrie. Nesse ponto o sr. Parker pode nos

ajudar. Archie, a polícia ainda está infestando a vizinhança?

Page 34: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Lógico. Sem dúvida estão se concentrando em Orrie,

tentando encontrar alguém que o tenha visto ontem pela

manhã. Para conseguir provas contra ele é preciso que alguém o

tenha visto lá.

Virou-se para Saul:

— Teremos de começar com banalidades. Quais são os

outros moradores do prédio? Quem foi visto entrando ou saindo

ontem de manhã? Alguém viu Archie entrar ou sair ontem de

tarde? Isso talvez seja um ponto importante. Você começa nisso

amanhã, e Fred irá se encontrar com você na terça, mas é

melhor telefonar duas vezes por dia, para saber se pensamos

em alguma coisa melhor.

Virou-se para mim:

— Você vai ver alguém. Quem é?

— Jill Hardy. Se estiver disponível. Se não estiver em Roma

ou Tóquio — respondi, depois de cinco segundos.

— Se estiver, fale com a irmã. A sra. Fleming, não é?

— Talvez, mas prefiro falar com Jill Hardy. Quer vê-la?

— Só se você julgar necessário. — respondeu com uma

careta.

Empurrou a cadeira para trás e levantou-se:

— Que diabos, vou para a cama. Aprecio a sua oferta, Saul,

e a sua, Fred, mas a responsabilidade é minha. Pagarei o de

costume e, é claro, as despesas. Boa noite.

Dirigiu-se para a porta.

Page 35: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO IV

ENQUANTO EU TOMAVA o café da manhã às 8:10h de segunda-feira,

comendo brioches, presunto grelhado e geléia de uva, pensava

em diversas coisas ao mesmo tempo.

Primeiro, por que Fritz era tão teimoso a respeito de sua

geléia? Por que, ao menos uma vez, não experimentava fazê-la

com metade do açúcar e o dobro do sauterne? Há anos vinha

lhe pedindo isso.

Segundo, por que os jornalistas eram tão preguiçosos? Se

o Times achava que devia dar prosseguimento à notícia do

assassinato com uma fotografia, com certeza podiam ter

arranjado uma do Orrie, mas tinham a audácia de exibir a de

Wolfe tirada há mais de oito anos. Ele devia processá-los por

invasão de privacidade. Ele não fora preso. Pelo que os jornais

sabiam, nem estava na história. Podia não ser preguiça, é claro;

talvez ainda estivessem aborrecidos por causa de uma carta que

uma vez escrevera ao crítico de restaurantes.

Terceiro, eu devia lhe falar pelo interfone ou subir, antes

de sair? Fritz nada me dissera quando desceu com sua bandeja

vazia, por isso, aparentemente, eu tinha de prosseguir conforme

as instruções, mas não custava nada verificar.

Quarto, onde estava Jill Hardy? Orrie me dissera que

trabalhava na Pan Am, mas com um simples telefonema não me

forneceriam o seu endereço. Na noite anterior tentara localizá-la

nos catálogos dos cinco distritos, mas não havia nenhuma Jill

Page 36: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Hardy. Parker poderia consegui-lo quando falasse com Orrie,

mas para isso eu deveria esperar. Assim que terminasse a

segunda xícara de café estaria pronto para partir e quanto mais

cedo eu...

O telefone tocou. Fritz ia atender: ele e Wolfe consideram,

de comum acordo, que ao se fazer uma refeição nada nem

ninguém deve interrompê-la. Mas estiquei o braço e atendi.

— Escritório de Nero Wolfe. Quem fala é Archie Goodwin.

— Oh! Eu... É mesmo Archie Goodwin?

— Certo.

— O Archie Goodwin que trabalha para Nero Wolfe?

— Deve ser, já que a senhora ligou para o número de Nero

Wolfe.

— É claro. Meu nome é Jill Hardy. O senhor prova-

velmente... o senhor já deve ter ouvido esse nome.

Sua voz era o que Lily Rowan chama de mezzotinto, boa e

cheia, mas com limites definidos.

— Sim, creio que sim.

— Através de Orrie Cather.

— Certo.

— Então o senhor sabe quem eu sou. Estou chamando...

acabei de ler o jornal da manhã. É verdade o que houve com

Orrie? Ele foi preso?

— Pode-se dizer que sim. Ele está detido como teste-

munha. Isso significa que a polícia acha que ele sabe de coisas

que não lhes contou e querem que conte.

— Sobre um assassinato?

— Aparentemente.

— Devem estar loucos!

— É possível. Está em casa, srta. Hardy?

— Sim, no meu apartamento. Sabe...

Page 37: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Um momento, por favor. Como acabou de dizer que viu

no jornal, imagino que a polícia ainda não foi vê-la. Mas irá. Pelo

menos, é possível. Preciso lhe fazer uma pergunta. Pelas coisas

que Orrie disse, presumi que vocês pretendem se casar. Talvez

não tenha entendido direito...

— Entendeu, sim. Vamos nos casar em maio.

— Todos já sabem? Já contou a alguém?

— Disse a algumas pessoas... amigos. Vou continuar

trabalhando durante algum tempo e uma aeromoça não pode...

— Eu sei. Mas se Orrie contou aos seus amigos, e contou a

mim, você vai logo, logo receber visitas. Se quiser...

— Quero saber por que foi preso! Quero saber... ele estava

trabalhando para Nero Wolfe?

— Não. Há mais de dois meses que não faz um serviço

para o sr. Wolfe. Se quiser...

— Por que vou ter visitas?

— Preferia não lhe contar por telefone. É muito com-

plicado. Se quiser saber o que aconteceu antes de a polícia ir lhe

fazer perguntas, por que não vem aqui e me faz as perguntas?

Escritório de Nero Wolfe, rua 35 Oeste, 938. Estarei...

— Não posso; às 10:30h tenho de partir num vôo para o

Rio.

— Então vou apanhá-la e poderemos falar a caminho do

aeroporto. Sou um bom motorista. Qual é o endereço?

— Não creio... — Silêncio. — E se Orrie... — Mais silêncio.

— Veremos. — Desligou.

Comi outro brioche e uma fatia de presunto, sem perder

tempo. Talvez ela se decidisse em poucos minutos. Quando Fritz

trouxe o café, disse-lhe que, quando se quer ver alguém e não

se sabe onde está, tudo o que se tem a fazer é emitir ondas, e

ele perguntou se tínhamos um cliente.

Page 38: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Sim e não — respondi. — Um trabalho para alguém, sim.

Um freguês que possa receber a conta, não. Você me ouviu falar

o nome de Orrie, de maneira que é bom saber que ele se

encontra numa situação difícil e nós vamos tirá-lo disso. Como

se diz em francês ‘a irmandade dos homens’?

— Isso não existe em francês. Então seu assunto pessoal

no sábado era esse. Prefiro que seja Orrie do que Saul ou Fred,

mas mesmo assim...

O telefone tornou a tocar. Atendi.

— É Jill Hardy de novo, sr. Goodwin. Já arranjei tudo.

Estarei aí em meia hora.

— Que bom. Importar-se-ia de me dar seu telefone e

endereço? É só para termos em mãos.

Ela não se importava. O endereço era rua Nutmeg, 217, no

Village. Ao terminar o café, fui para o escritório e o escrevi num

pedaço de papel, e pensei no problema: deveria colocá-lo na

pasta de Orrie? Decidi que não, apanhei uma nova pasta e

coloquei CATHER , ORRIE, CLIENTE. Dentro de dez minutos Wolfe

estaria entrando no elevador para ir à sua sessão matinal com

as orquídeas, de nove às onze, por isso chamei-o no interfone.

Demorou a atender.

— Sim?

— Bom dia. Creio que gostaria de saber que, quando

descer, é possível que Jill Hardy ainda esteja aqui. Ela chegará

dentro de uma hora, ou menos.

— Já a encontrou?

— Ora, claro. É fácil quando se sabe como procurar.

— Pretensioso — disse, e desligou.

Enquanto limpava as mesas e cadeiras, retirava as folhas

velhas dos calendários, mudava a água da garrafa na mesa de

Wolfe e abria a correspondência, decidi que Jill Hardy seria alta,

Page 39: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

rígida, olhos rápidos e argutos, tipo de um sargento, mas o

canto dos olhos seria um pouco amendoado devido a algum

oriental que entrara em seus ancestrais. Devia ser uma pessoa

fora do comum para prender Orrie dessa forma, mas havia outra

razão por que ela teria de ser assim. Como já havíamos decidido

eliminar a culpa de Orrie, quanto mais cedo achássemos alguém

para lhe tomar o lugar, melhor. É claro que Jill Hardy era

candidata ao posto, e se parecesse uma vilã simplificaria as

coisas.

Diabos, ela não era assim. Quando a campainha tocou,

logo após as 9:30h, fui à entrada e, através do vidro da porta,

que só permitia ver de dentro para fora, vi uma moça manequim

40, com casaco de couro preto e gola de pele, um rosto

pequeno e oval, rosado pelo frio, grandes olhos cinzento-

azulados e um chapéu de couro e pele. Depois que abri a porta,

e ela entrou e tirou o casaco, parecia ainda menor no terninho

azul-escuro muito bem-feito. Ela devia atingir, raspando, o limite

mínimo de altura para o seu trabalho. No escritório, pedi-lhe que

sentasse numa das cadeiras amarelas. A poltrona de couro

vermelha fica muito longe da minha escrivaninha.

— Agora estou mais calma — disse ela, ao se sentar. —

Você se parece um pouco com Orrie. É do mesmo tamanho.

Isso não me pareceu o modo ideal de se iniciar uma

conversa amigável. Eu não me pareço com Orrie. Ele é bonitão e

eu não sou. Meu nariz é pequeno demais para o meu rosto, mas

deixei de me preocupar com isso quando tinha doze anos. Disse-

lhe então:

— Não estou surpreso que Orrie tenha decidido se amarrar,

agora que a conheço. Vou dar-lhe de novo os parabéns quando

estiver com ele.

Ela não ligou para a lisonja.

Page 40: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Quando irá vê-lo?

— Não tenho certeza. Talvez hoje à tarde.

— Queria vê-lo, mas não sei como fazer. O que faço?

— Se eu fosse você, não tentaria apressar as coisas. Pode

ser que ele consiga fiança. O advogado dele é bom. Quando foi

a última vez que o viu?

— Por que o prenderam? — perguntou ela. — O que ele

sabe de assassinato? Você disse que ele não estava trabalhando

para Nero Wolfe?

— Sim, não estava. Não creio, srta. Hardy, que possa lhe

dizer alguma coisa que já não saiba, pois leu o jornal. Creio que

aquela mulher, Isabel Kerr, estava envolvida em algum caso no

qual ele estava trabalhando, mas é pura adivinhação de minha

parte. Outro palpite é que ele esteve no apartamento dela

recentemente, e encontraram as suas impressões e o

detiveram. A senhorita sabe que, às vezes, os detetives

particulares entram em alguns lugares para revistá-los, mas se

esse fosse o caso Orrie não teria deixado impressões, pois teria

usado luvas. Pode ser também que ele não estivesse lá a

negócio, apenas socialmente. Sabe se ele conhecia a srta. Kerr?

— Não. — Sua testa estava franzida.

— Nunca mencionou seu nome?

— Nunca.

— Quando o viu pela última vez?

Ela ignorava as perguntas muito bem. Ainda estava de

testa franzida.

— Você disse que preferia não dizer, pelo telefone, por que

motivo alguém iria me ver. No entanto, parece que não está me

contando nada de novo. O senhor é amigo íntimo de Orrie, mas

não parece saber de nada. Por que alguém iria me visitar? Quer

dizer, seria a polícia?

Page 41: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Decidi que, se continuasse pisando em ovos, não con-

seguiria nada:

— Não quero assustá-la, mas creio que deveria saber como

está a situação.

— Eu também. Penso exatamente da mesma forma.

— Ótimo. Quando um homem é preso, tem direito a

chamar um advogado. Orrie chamou Nathaniel Parker; Parker foi

vê-lo e depois veio aqui conversar com o sr. Wolfe e comigo.

Orrie sabia que ele iria fazer isso. A polícia não segura um

homem, sem direito a fiança, só porque imagina que sabe

alguma coisa. Ele está lá porque pensam que matou Isabel Kerr.

Eles não acreditam apenas que ele saiba alguma coisa sobre o

assassinato, acham que o cometeu.

Seus olhos estavam fixos em mim, bem abertos:

— Não acredito.

— Se não acredita que foi ele, eu também não. Se não

acredita que pensam que foi Orrie, pergunte a eles. Ou ao seu

advogado. Como o sr. Wolfe não acredita ser ele o assassino,

pretende trabalhar no caso e descobrir quem o cometeu. Sobre

a sua pergunta, por que motivo irá receber visitas, vou lhe dizer:

assim que os tiras descobrirem que Orrie vai se casar com você,

e isso não vai demorar muito tempo, vão querer lhe fazer

perguntas. Como as que lhe fiz: sabe se ele conhece Isabel Kerr,

e como a outra que não respondeu, quando o viu pela última

vez? Só perguntei duas vezes, mas eles vão ficar insistindo. Vão

querer saber onde e como passou a manhã de sábado; é esse o

tipo de mentalidade que eles têm. Vão começar a pensar se a

senhorita esteve lá com ele, e talvez até a tivesse segurado

enquanto ele apanhava o cinzeiro. Também tenho esse mesmo

tipo de mentalidade. Como penso que Orrie não a matou, tenho

de descobrir quem o fez, e poderia ter sido você. Onde estava

Page 42: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

no sábado de manhã?

Seu queixo tremia:

— Pensei que fosse amigo de Orrie — disse. — O senhor

não falaria assim comigo se ele estivesse aqui.

— Claro que sim, e ele entenderia. Não iria gostar, mas

entenderia. — Inclinei-me em sua direção, os cotovelos

encostados nos joelhos. — Ouça, srta. Hardy. Gosto de sua

aparência e de sua voz. Suas mãos são bonitas. Disse que nunca

ouviu falar de Isabel Kerr, e não tenho prova alguma de que isso

não seja verdade; assim, aparentemente, está fora de suspeita.

Mas, na verdade, gostaria muito que me dissesse quando viu

Orrie pela última vez e onde esteve no sábado de manhã.

— Por que eles pensam que ele a matou? — perguntou ela.

— Por que iria matá-la?

. — Não sei. Pode ser que mais tarde tenha alguma idéia,

talvez hoje à tarde, se conseguir vê-lo, pelas perguntas que lhe

fizeram. Talvez pensem que sabem de algum motivo, mas não

necessariamente.

— Como poderia ter um motivo?

— Vai ter de perguntar a eles, não a mim, pois acho que

eles estão por fora. Suponho que seja possível condenar um

homem por assassinato, sem provar o motivo, mas os jurados

não gostam dessa idéia.

— Jurados? Quer dizer que eles... vai haver um

julgamento?

— Sinceramente, espero que não.

Seus olhos me fitavam:

— Acho que realmente pensa assim.

— Penso mesmo.

— Sábado de manhã estava em casa, na cama, onde fiquei

até depois do meio-dia. Vim num vôo de Caracas, que deveria

Page 43: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

chegar à meia-noite, mas só aterrissou depois das duas da

manhã. Vi Orrie naquela noite. Jantamos num restaurante.

Quando estou a bordo de um avião tenho de responder a tantas

perguntas que em terra mal as escuto. — Levantou-se e deu um

passo em minha direção: — Levante-se e ponha seus braços em

volta de mim.

Era uma ordem, e eu obedeci. Ela não levantou os braços

para que pudéssemos nos abraçar, mas quando eu estava com

os dois braços ao seu redor, segurou meu paletó pelas lapelas

com as duas mãos, e escondeu o rosto no meu peito. O terninho

azul-marinho parecia de lã, mas hoje em dia nunca se sabe. Não

a apertei, apenas segurei-a de uma forma amiga e firme,

tentando descobrir se sabia que estava em apuros e tentava me

conquistar para seu lado, ou se estava tentando me seduzir,

caso a culpa de Orrie fosse definitivamente eliminada ou se era

apenas um hábito. Não usava perfume, ou usava só um pouco, e

tinha um cheiro gostoso. Nunca se sabe quanto tempo teria

durado se não fosse pela campainha da frente.

Educadamente, retirei meus braços, fui até o corredor, vi

quem era, voltei para a sala e lhe disse:

— É um tira, um que eu conheço. Já que não está com

pressa de encontrá-lo, é favor se esconder. — Abri a porta da

sala da frente: — Fique aqui. Não precisa ficar preocupada com

nenhum barulho, é a prova de som. Pode até espirrar.

De um modo geral, as aeromoças sabem como reagir. Sem

uma palavra, apanhou a bolsa, que deixara cair ao chão quando

me abraçou, dirigiu-se à porta que eu segurava e passou para a

outra sala. Ao fechá-la, a campainha tocou de novo. Não bati

nenhum recorde indo até a porta, e se o inspetor Cramer

notasse o casaco de couro preto no cabide, isso era com ele. Era

a mim que queria ver, pois sabia que Wolfe nunca estava

Page 44: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

disponível antes das onze, e uma pergunta a mais sem que eu

respondesse não tinha importância alguma. Abri a porta e disse:

— Desculpe, estava ocupado bocejando — e deixei-o

entrar. Seu rosto redondo e grande estava mais vermelho que

de costume, por causa do frio. Às vezes não quer que eu o ajude

a tirar o casaco, pois quer ficar com os olhos fixos em mim, mas

desta vez consentiu que ficasse atrás dele para ajudá-lo,

enquanto se dirigia ao escritório. Não reparara no casaco de

couro preto, mas notou a cadeira amarela perto de minha

escrivaninha e, ao abaixar seu grande assento na cadeira de

couro vermelha, perguntou:

— Visita?

Acenei que sim:

— Já veio e já foi. Você liberou Orrie?

— Não. Ainda não e não tão depressa assim. A não ser que

você possa me dar uma boa razão. Pode?

— Claro. É inocente.

— Continue.

— Parker veio aqui após vê-lo ontem; Orrie lhe disse que

era inocente. Conhecemos Orrie há muito tempo e sabemos que

não é mentiroso. Portanto, o sr. Wolfe vai investigar o caso. Sem

dúvida veio por isso, para perguntar se ele vai se intrometer. Ele

vai.

— Não preciso perguntar isso. Vim conseguir informações.

— Ajeitou-se melhor na cadeira: — Quando foi que viu Cather

pela última vez?

Abanei a cabeça:

— Sem comentários.

— Alguma vez lhe falou de Isabel Kerr?

— Passo.

— Alguma vez lhe falou de Jill Hardy?

Page 45: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Sem comentários.

— Você não vai conseguir nada com isso, Goodwin. Se um

homem é acusado, ele pode calar a boca, mas você não foi

acusado de nada. Mas, que diabo, você pode ser acusado.

— Parece que vou bocejar de novo — eu disse. — Vamos

ter que passar por isso tudo de novo? Não estou dizendo que

não responderei a pergunta alguma sobre Orrie Cather. Se me

perguntar onde ele compra seus sapatos ou quando foi a última

vez que o sr. Wolfe deu-lhe um trabalho, terei prazer em lhe

dizer, até por escrito. Mas esse tipo de perguntas que está

fazendo, não. É claro que se demonstrar que ele cometeu

assassinato e prová-lo, e se puder provar que eu possuía

informações úteis, pode me autuar por obstruir a Justiça, e

estarei perdido. Mas se, ao contrário, ficar claro que, em vez de

obstruir a Justiça, eu lhe presto um favor, tentando ajudar o sr.

Wolfe a descobrir quem realmente matou Isabel Kerr, ele e eu

deveríamos ser festejados com uma parada, cheia de papel

picado, mas não insistiremos nisso.

Abriu os lábios, que estavam muito apertados, para dizer:

— Você já tentou isso antes.

— Sim. Por isso é que pergunto se temos que passar por

tudo de novo! — Olhei para meu pulso. — O sr. Wolfe vai descer

dentro de vinte minutos. Fique, se acha que pode assustá-lo

mais do que a mim.

Começou a bater com a ponta do seu pesado sapato no

chão, enquanto olhava a cadeira vazia de Wolfe. Isso não era

muito satisfatório, pois no tapete grosso não fazia barulho como

no linóleo do seu escritório. Olhava a cadeira e não para mim,

pois não era a minha atitude o que o preocupava. Já tinha a

resposta a uma pergunta — qual seria a atitude de Wolfe — e

agora a pergunta era: por quê? Será que tínhamos alguma coisa

Page 46: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

e, se tivéssemos, qual era?

— Ocorreu-me que podíamos fazer um trato — disse eu. —

Teria de receber a aprovação do sr. Wolfe, mas tenho certeza de

que aprovaria. Prestaremos um depoimento, cuja última

sentença dirá que inclui tudo que sabemos, e tudo o que Orrie

disse e fez de que tenhamos conhecimento, sobre qualquer

assunto que se relacione com o assassinato, e trocaremos tudo

só para dar uma olhadela em seu arquivo. O arquivo todo. Seria

um achado para nós dois. Você saberia exatamente o que temos

e nós saberíamos por que você se arrisca a conservá-lo preso

sem fiança. Não acha justo?

— Ora, bolas — disse Cramer. Levantou-se: — Vim por uma

razão, para dizer a Wolfe uma coisa, mas você pode dizer a ele

por mim. Diga-lhe que é uma pena que eu não possa lhe

mostrar o diário de Isabel Kerr. Se ele o lesse, mudaria de idéia

quanto a se intrometer no caso. E aqui vai um aviso para você.

Quando decidir matar alguém, assegure-se primeiro de que ele

não mantém um diário. Ou ela. — Virou-se e saiu do escritório.

Fiquei onde estava. Seria uma pena estragar uma deixa de

saída tão boa. Quando ouvi a porta de frente abrir e fechar, fui

até o corredor dar uma olhada, para ter certeza de que ele

estava do lado de fora quando a fechou, depois voltei ao

escritório e pensei numa coisa: deveria deixar Jill Hardy na

poltrona vermelha quando Wolfe descesse? Se eu a deixasse na

sala da frente e dissesse o que acontecera, era quase certo que

se recusaria a vê-la, e era melhor que a visse. Dentro de três

minutos seriam onze horas. Decidi trazê-la, por isso abri a porta

e olhei para um quarto vazio. Ela saíra sem uma deixa, pela

porta que dá para o corredor. Fui dar uma olhada no cabide: seu

casaco sumira. O interfone chamou no escritório e fui atender.

Era Wolfe, na estufa, querendo saber se ela já se fora. Respondi

Page 47: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

que sim, e em um minuto ouvi o barulho do elevador descendo.

Entrou, trazendo na mão as orquídeas diárias para a sua mesa

— um cacho de Odontoglossum hellemense que, de acordo com

os registros que faço, é um enxerto de harvengtense e crispum.

Para quem gosta de orquídeas, esta é uma maravilha, mas no

momento não me interessavam. Sentei-me, em ponto de

ebulição, enquanto ele as colocava no vaso, acomodava-se na

poltrona e olhava a correspondência. Quando terminou de ler a

carta de um homem do norte que envia carne de veado, o único

item importante, eu disse, em voz um tanto alta:

— A srta. Kerr mantinha um diário.

Ele colocou a carta na mesa, levantou os olhos, fitou-me

durante cerca de meio minuto e então perguntou:

— Como conseguiu tirar isso dele?

— Dele quem?

— Do sr. Cramer, naturalmente.

Fitei-o, incrédulo:

— Para ver a rua de lá de cima você tem que pôr a cabeça

bem de fora.

— Nunca fiz isso. Mas é claro que ele viria, logo, e quem

mais poderia fornecer tal informação? Como arrancou isso dele?

— Está bem, vou fazer o meu relatório.

E foi o que fiz, começando com Jill Hardy. Às vezes, ao

relatar uma informação, é essencial dizer palavra por palavra;

porém, mesmo quando não é, faço dessa forma, pois treinei

para isso e acho mais fácil. Como de costume, encostou-se na

poltrona com os olhos fechados. Fui em frente, de Jill Hardy até

Cramer, já que não houvera interrupção, apenas uma mudança

de elenco. Quando terminei, abriu um pouco os olhos, fechou-os

de novo e resmungou:

— Nada.

Page 48: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Certo — concordei. — Quanto a ela, se é uma mentirosa,

é das grandes. Orrie tem certeza de que ela não sabe nada

sobre Isabel Kerr; se sabe, vamos ter de investigar muito para

prová-lo. Se ela não sabe, podemos riscar isso por completo e

não serve para nada. Quanto a Cramer, ele provavelmente tem

um diário, mas, e daí? Sabíamos que ele tinha qualquer coisa

importante, e duvido que o diário diga no fim: “Ele está pegando

o cinzeiro e vai me acertar com ele”, que é o importante. Talvez

Cramer precisasse ter um diário para lhe mostrar que seria

ótimo, para Orrie, se ela morresse; mas nós não, pois já

sabíamos disso. O que precisamos é de outra pessoa para quem

a morte dela tenha sido de encomenda. De certo modo, é bom

para Jill Hardy, mas duvido que ela soubesse. Como o senhor

diz, nada.

Ele abriu os olhos:

— Você acha que Orrie a matou.

— Não. Examinei sob todos os ângulos o que Saul disse, e

concordo. No mínimo, existe uma dúvida razoável, o que já

basta para um júri, por isso basta para mim. De qualquer modo,

Cramer conhece nossa posição. Se descobrirmos que foi Orrie,

nunca o perdoarei. Tiro a garota dele. Ela já pensa que sou

parecido com ele.

— E agora? Quem? — Wolfe rosnou.

— Creio que a irmã. Ou Avery Ballou.

— Temos que conversar a respeito do sr. Ballou. A irmã

primeiro. — Esticou o corpo e apanhou o volume de Convite

para um inquérito policial.

Page 49: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO V

HAVIA UM BARRY FLEMING no catálogo telefônico do Bronx.

Endereço: avenida Humboldt, 2.938. É claro que não disquei o

número. De acordo com o Times, ela não falava com repórteres,

e sem dúvida pensaria que eu tentava enganá-la. Consultei o

guia de ruas do Bronx a fim de localizar a avenida Humboldt e aí

ri de mim mesmo, quando minha mão automaticamente se

dirigiu a um bolso para apanhar o chaveiro. Por causa de uma

coisa deplorável que acontecera há alguns anos, prometera a

mim mesmo nunca ir a um encontro que tivesse alguma ligação

com assassinato sem levar um revólver, e as regras que você

faz consigo mesmo são as mais difíceis de quebrar, mas há um

limite. Fratricídio não é impossível de acontecer, mas era

exagero imaginar que Stella Fleming poderia ter matado sua

irmã e, portanto, estaria pronta para atirar em qualquer pessoa

que se aproximasse. Pelo menos era assim que pensava, até

que tivesse uma oportunidade de vê-la. Tornei a colocar o

chaveiro no bolso, disse a Wolfe que não me esperasse para o

almoço, e saí. Ao descer as escadas da varanda, levantei a gola

do casaco, embora o trajeto até a garage, depois de dobrar a

esquina, fosse curto. O gelo estava se prolongando através do

mês de janeiro, e o vento piorava ainda mais as coisas.

Já eram 12:20h quando deixei o Heron num estacio-

namento e caminhei um quarteirão e meio até o número 2.938.

Era um prédio comum, de tijolo, de dez andares, que se

Page 50: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

encontra em todos os cinco distritos, mas principalmente no

Bronx. Talvez não fosse o Barry Fleming que eu procurava, mas

isso logo se esclareceria. O chão de cerâmica do corredor não

tinha tapete, e sim uma passadeira de borracha. Não havia

porteiro, mas o ascensorista estava lá, um sujeito pálido, com

um uniforme que há muito não via tintureiro, encostado na

parede. Adiantei-me e disse:

— Fleming, por favor.

— Não há ninguém lá — respondeu abanando a cabeça.

— Eu sei que a sra. Fleming não está recebendo pessoas

estranhas, mas não sou jornalista. O assunto que quero discutir

com ela é pessoal, e tenho certeza de que quererá falar comigo.

No seu caso, o rosto era o espelho da mente. Não ficara

impressionado nem iria ficar. A questão era só de preço. Tirei as

luvas, apanhei a carteira e retirei um cartão e da carteira de

notas tirei cinco dólares.

— Estou falando sério. Quer ver a minha licença? Leve-me

lá em cima e, se ela não me deixar entrar, lhe dou o dobro.

Apanhou o cartão, examinou-o, pegou o dinheiro e enfiou

no bolso, dizendo:

— Estou falando sério, não há ninguém em casa. Ela saiu

mais ou menos às dez.

O que ele merecia era um bom soco, mas não seria a coisa

certa naquele momento. Perguntei apenas:

— Sabe onde ela foi?

Abanou a cabeça:

— Não faço a mínima idéia.

— Sabe quando volta?

— Não, não sei.

Dei-lhe um sorriso amável:

— Esta informação não vale cinqüenta centavos, quanto

Page 51: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

mais cinco dólares. — Tomei a apanhar a carteira de dinheiro e

retirei uma nota de dez dólares: — Qual é o andar?

— Sétimo. Sete D.

— Preciso vê-la, e ela precisa me ver. Leve-me até lá e

ficarei esperando. Você já está com o meu cartão. Se quiser,

apanhe uma almofada de carimbo e tire minhas impressões

digitais.

Aí ele me surpreendeu. Em alguma parte do corpo ele

devia ter um coração, pois disse:

— Pode ser que ela fique fora o dia inteiro e lá não tem

onde sentar.

— Sempre sobra o chão.

Ele me olhou nos olhos pela primeira vez:

— Nada de bobagens, cara. As fechaduras são muito boas.

— Não sei nada sobre fechaduras. Até ela chegar, não há

nada lá que me interesse.

Dirigi-me ao elevador e apertei as pontas de todos os dez

dedos na moldura de metal, na altura dos olhos:

— Pronto, agora estou fichado.

Ofereci-lhe novamente os dez dólares. Apanhou a nota,

seguiu-me até o elevador, fechou a porta e operou a manivela.

Há muitas coisas interessantes a serem feitas enquanto se

espera num corredor de um prédio de apartamentos durante

quatro horas e vinte minutos. Pode-se contar as manchas e

decidir qual é o lado que tem mais, se o direito ou o esquerdo.

Pode-se tentar diferenciar os cheiros e decidir, no geral, quantos

odores diferentes há. Pode-se ouvir os gemidos da porta do 7B,

imaginar se a criança é menino ou menina, qual a sua idade, e o

que você faria se estivesse lá dentro. Quando as pessoas

chegam ou saem, pode-se encará-las e ver quais as que olham

para trás e quais as que fingem que não o viram. Quando uma

Page 52: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

senhora robusta, de ombros largos, vira-se, após enfiar a chave

na fechadura do 7C e pergunta: “Está à espera de alguém?”,

você pode responder clara e delicadamente: “Estou”, e notar a

sua reação. No conjunto, o tempo foi bem utilizado. Só fiquei

com pena de não ter trazido um tablete de chocolate, cinco ou

seis bananas e um litro de leite.

Devo admitir que olhava com freqüência para o relógio.

Quando a porta do elevador se abriu e dela saiu um homem,

eram 4:50h. Ao caminhar pelo corredor, presumi que iria para o

apartamento E ou F, mas parou à minha frente e me disse:

— Soube que está esperando a minha mulher.

Bem, é claro que sim:

— Sim, senhor, isto é, se o senhor é Barry Fleming.

— Ela não quer vê-lo. Está perdendo o seu tempo. Ela não

quer falar com ninguém.

Acenei que sim:

— Eu sei, mas creio que falará comigo, se me deixar

explicar o que desejo.

Coloquei a mão no bolso para apanhar meu cartão, mas

antes de tirá-lo ele disse:

— Sei quem você é. Isto é, vi o cartão que deu para o

cabineiro do elevador. Você é Archie Goodwin?

— Sou eu. Em pessoa. Olhe, sr. Fleming, por que não deixa

ela decidir? Quando chegar, dir-lhe-ei sobre o que desejo lhe

falar, e ela decidirá. Não insistirei, só vou lhe perguntar.

— Sobre o que quer lhe falar?

Preferia dizer a ela, mas marido é marido.

— Sobre um homem — disse eu. — Seu nome é Orrie

Cather, e a polícia pensa que ele matou Isabel Kerr. Ele trabalha

às vezes para Nero Wolfe, e o sr. Wolfe e eu o conhecemos

muito bem, e acreditamos não ser ele o culpado. O senhor sabe

Page 53: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

que trabalho para Nero Wolfe?

— Naturalmente.

— Estamos investigando o caso e gostaria muito de

perguntar à sua mulher se ela poderia fornecer qualquer

informação que ajudasse. Sem dúvida ela quer que apanhem o

assassino de sua irmã, e o punam, mas se Orrie Cather for

inocente, ela não gostaria que fosse condenado. O senhor não

gostaria, não é?

— É claro que não. — Estava apertando os lábios e olhando

para mim, franzindo a testa. Era de minha altura, de ombros e

quadris estreitos, um rosto comprido com maçãs salientes.

Continuou: — Não gostaria que um homem inocente fosse

punido por qualquer coisa, certamente não por assassinato. Mas

duvido muito que minha mulher possa lhe dar alguma

informação útil. Ela não está... não aceitou bem o que

aconteceu.

— É claro. Acredite-me, não quero tornar as coisas mais

difíceis para ela.

— Bem... onde está o seu casaco?

— Ali. — Apontei para ele, no chão, encostado à parede.

— Apanhe-o. Não adianta ficar esperando aqui fora.

Com o chaveiro na mão, foi até a porta do 7D. Ao voltar

com o casaco, estava com a porta aberta e eu entrei. O

vestíbulo era do tamanho de uma mesa de bilhar. Ele pendurou

o meu casaco no armário antes de tirar o seu, e quando

pendurava o dele a porta se abriu e uma mulher entrou. Ao me

ver, encarou-me por um segundo e em seguida virou-se para

ele:

— Barry! Você o deixou entrar?

Pelo seu tom de voz, vi que tivera sorte de ele ter chegado

antes.

Page 54: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Vamos, querida — colocou um braço ao redor de seus

ombros e beijou-lhe a face. — Ele só quer umas informações,

caso tenhamos alguma. Pensa que...

— Não temos informações para ninguém! E você sabe

disso!

— Mas a senhora deve ter uma preferência, sra. Fleming —

falei então. — Se um homem inocente for condenado pelo

assassinato de sua irmã, o problema é que o culpado fica livre. É

isso o que a senhora quer?

Olhou para mim, de baixo para cima, pois tinha pouco mais

de um metro e meio.

— Não é de sua conta o que eu quero — respondeu ela, e

falava sério.

— Não — disse eu — mas é da sua conta. Não sou um

repórter tentando conseguir uma manchete. Sou um detetive

particular tentando conseguir alguns fatos. Já tenho alguns. Sei

porque a senhora não quer ver os repórteres, porque não tem

informação para ninguém. Porque a sua irmã era uma amásia e

a senhora...

— Minha irmã era o quê?

— A, M, Á, S, I, A, amásia. Gosto mais dessa palavra do que

concubina ou amante. Eu não...

Precisei parar, a fim de proteger o meu rosto. Quando uma

mulher voa em cima de você para unhá-lo, a sua reação

depende da mulher. Se ela for mesmo feroz, talvez você tenha

até de bater, mas com Stella Fleming, de alcance curto, bastava

mantê-la longe com o braço esticado e a palma da mão sobre a

sua boca. Seu marido segurou-a por trás, pelos ombros, puxou-a

e disse:

— É melhor ir embora.

Eu concordava com ele, mas ainda bem que Wolfe não

Page 55: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

podia ler meus pensamentos em onda curta, pois ele pensa que

eu entendo as mulheres. Ela virou-se e começou a lhe bater no

peito com os punhos, chiando:

— Não quero que ele vá embora. — E aí, calmamente, sem

pressa, começou a tirar o casaco. Quando ele o segurou, ela me

disse: — Entre, por favor — muito delicadamente, e tomou a

direção da sala. Ele, após fechar a porta do armário, fez um

gesto para que eu a seguisse, e eu a segui.

Acendera as luzes e sentara-se num sofá, roendo as unhas.

Estivera ocupado demais para ver realmente como era e, ao

cruzar para me sentar numa cadeira, vi que não se parecia com

a irmã, pois tinha cabelos e olhos castanhos e um rosto

redondo. Ao me aproximar, perguntou:

— Por que disse isso?

— Para dar impacto. — Sentei-me. — Tinha de fazer isso.

Ou então...

— O que eu quis dizer foi, por que mentiu assim sobre a

minha irmã?

Abanei a cabeça:

— Comigo isso é perda de tempo, sra. Fleming. Ambos

sabemos que não é mentira, portanto não falemos mais nisso.

Não é importante, pelo menos para mim. Eu só disse isso para...

— O senhor conhecia minha irmã?

— Não. Até ontem, nunca tinha ouvido falar nela.

— Então como pode saber...

Dei-lhe mais três segundos, mas ela deixou a frase em

suspenso. Fazendo um gesto com a mão, respondi:

— É óbvio. Uma corista abandona...

— Ela era atriz.

— Está bem. Uma atriz abandona o teatro, aluga um

apartamento de trezentos dólares, não tem emprego, come

Page 56: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

bem, veste-se bem, tem um carro, usa um perfume de trinta

dólares. Quem não saberia? Quem não sabe? Isso não tem

importância, não agora. O que...

— Para mim, é. É a coisa mais importante do mundo.

— Ora, querida — disse Fleming. Sentara-se no sofá ao seu

lado.

— Bem, se é importante para a senhora, é sobre isso que

quer falar. Vá em frente.

— Ela tinha 28 anos. Tenho 31. Só tinha 25 anos quando...

parou de trabalhar. Quando nossa mãe morreu, ela tinha seis

anos e eu nove, e quando nosso pai morreu ela tinha doze e eu

quinze. É por isso que é tão importante.

— Com certeza. — concordei.

— O senhor não é repórter. William me disse o seu nome,

mas não me lembro.

— William é o ascensorista — disse Fleming.

— Obrigado — disse para ele. Para ela: — Meu nome é

Archie Goodwin. Sou detetive particular. Trabalho para Nero

Wolfe e vim...

— O senhor é um detetive?

— Sim.

— Então o senhor sabe muita coisa. O senhor falou que

não gostaria que o assassino de minha irmã não fosse

condenado, e não, eu não gostaria, mas se ele for preso e

houver um julgamento, ninguém vai falar sobre a minha irmã o

que o senhor falou. Se alguém dissesse isso no tribunal, sairia

nos jornais. Se alguém vai dizer isso, não deve haver

julgamento. Mesmo que ele saia impune. Por isso o senhor não

sabia o que eu queria.

Embora por motivos diferentes, ela era a segunda mulher

no mesmo dia que não queria um julgamento.

Page 57: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Agora sei — respondi — e se esse é seu ponto de vista

não discuto. Até concordo, pelo menos em parte. A senhora não

quer um julgamento, mesmo que apanhem o homem certo. O

que eu não quero é que julguem o homem errado, e é isso o que

vai acontecer, a não ser que alguém o impeça. É claro que leu

os jornais.

— Li todos.

— Certo. Então sabe que prenderam um homem chamado

Orrie Cather e que ele já trabalhou para Nero Wolfe. Já viu ou

ouviu esse nome antes? Orrie Cather?

— Não.

— Tem certeza? Sua irmã nem ao menos o mencionou?

— Não. Tenho certeza que não.

— O sr. Wolfe e eu o conhecemos bem. Não acreditamos

que matou a sua irmã. Não digo que saibamos tudo sobre ele.

Pode ser que matasse, pode ser que tenha uns... ahn... contatos

que não conhecemos. Pode ser até que ele fosse o sujeito que

estava pagando o aluguel do apartamento de sua irmã, e as

outras... A senhora está abanando a cabeça.

— Ela não abanou a cabeça — disse Fleming.

— Desculpe, pensei que estivesse. De qualquer forma,

pagando o aluguel ou não, não acreditamos que ele a tenha

matado, e é por isso que o sr. Wolfe mandou-me aqui para vê-la.

Se ele for a julgamento, a senhora sabe o que acontecerá. Tudo

que descobriram sobre sua irmã virá à baila. Como a senhora

sabe, se houver uma dúvida razoável, o júri deve absolver um

homem. Queremos estabelecer uma dúvida razoável para a

polícia, a fim de que não vá a julgamento por júri, e pensamos

que poderia ajudar. A senhora via sua irmã freqüentemente,

não?

— O senhor é muito esperto — disse Fleming. — Mas devo-

Page 58: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

lhe lembrar que, para minha mulher, o julgamento do homem

certo será tão ruim como o do homem errado. Não concordo

com ela, absolutamente, mas Isabel era irmã dela.

— Não — respondi. — Não estou sendo esperto. Só

precisamos de uma dúvida razoável. Por exemplo, se provarmos

à polícia que há outro homem, ou mulher que tinha um bom

motivo? Ou se descobrirem que Isabel disse a alguma pessoa...

podia ser à sua mulher... que alguém ameaçara matá-la? Se e se

e se. Para o objetivo que o sr. Wolfe e eu pretendemos, não

precisa ser um motivo suficientemente forte para acusá-lo e

julgá-lo, apenas a dúvida. Mas mesmo que o prendam, para sua

mulher o seu julgamento talvez não seja tão mal como o de

Orrie Cather com certeza será. Sabemos algo sobre o que

suspeitam de Orrie.

— O que é?

— Não posso lhe contar. É confidencial.

Ele me fitava, apertando os olhos:

— Sabe, sr. Goodwin, sou professor de matemática e gosto

de problemas. Como isto nos atinge de perto, embora atinja

mais à minha mulher do que a mim, não é apenas um problema,

mas mesmo assim a mente está habituada. — Pôs a mão no

joelho da mulher: — Espero que não se importe, querida, admito

que gostaria de ajudar neste problema. Mas não o farei. Sei

como se sente. Faça exatamente o que tem vontade.

— Bastante justo — respondi. E virando-me para ela: — Via

sua irmã freqüentemente, não?

— Sim — respondeu, colocando a sua mão sobre a dele.

— Uma ou duas vezes por semana?

— Sim. Quase sempre jantávamos juntas no sábado e

íamos ao teatro ou ao cinema. Meu marido joga xadrez nos

sábados à noite.

Page 59: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— De acordo com os jornais, a senhora foi lá anteontem,

tocou a campainha, não obteve resposta, e o zelador abriu-lhe a

porta. É verdade?

— Sim.

— Esse momento, quando entrou no quarto, é importante.

Não quero causar-lhe impacto de novo, sra. Fleming, juro que

não, mas é importante. Qual foi a primeira coisa em que pensou,

quando viu o cadáver de sua irmã no chão?

— Eu não... não foi um pensamento.

— Primeiro foi o choque, é claro. Mas quando a senhora viu

o... quando verificou que ela fora assassinada, seria natural

pensar ele a matou ou ela a matou, qualquer coisa assim. Por

isso é importante; quase sempre a primeira idéia é a correta.

Quem era ele ou ela?

— Não havia nenhum ele ou ela. Não pensei em nada

disso.

— Tem certeza? Numa hora dessas nossa mente divaga.

— Eu sei, mas não pensei numa coisa dessas naquela hora

ou em qualquer outra, que ele ou ela a matou. Nem tentaria

adivinhar quem a matou. Tudo o que sei é que não deve haver

julgamento.

— Haverá um julgamento, o de Orrie Cather, a não ser que

encontremos um modo de impedi-lo. Sua irmã alguma vez lhe

mostrou seu diário?

Franziu a testa:

— Ela não tinha um diário.

— Tinha, sim. A polícia está com ele. Mas como...

— O que há nele?

— Não sei. Não o vi. Como...

— Ela não deveria ter feito isso. Isso torna as coisas piores.

Ela não me disse. Devia estar naquela gaveta que sempre trazia

Page 60: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

trancada. Não tenho o direito de ficar com ele? Não posso fazer

com que me entreguem o diário?

— Agora não. Mais tarde, pode. Se houver um julgamento,

será uma evidência. É chamado de prova. Como a senhora

nunca o viu, vamos para outra coisa. Parece um caso sem

esperança, pois só conheço a senhora para me fornecer

informações. Sem dúvida a pessoa certa para isso seria o

homem que pagava o aluguel do apartamento, o carro, o

perfume e todo o resto, mas não sei quem é ele. A senhora

sabe?

— Não.

— Isso me surpreende. Pensei que soubesse. A senhora e

sua irmã eram muito chegadas, não?

— Certamente.

— Então a senhora deve saber quem ele é. Como disse que

não podia adivinhar quem a matou, não vou lhe perguntar isso,

apenas quem a conhecia bem. É claro que contou à polícia.

— Não, não contei.

Levantei uma sobrancelha:

— A senhora se recusa a falar com eles também?

— Não, mas não pude lhes dizer muita coisa porque não

sei. Era... — Parou, abanou a cabeça e virou-se para o marido: —

Conte para ele, Barry

Ele apertou-lhe a mão:

— Pode-se dizer que Isabel vivia duas vidas. Uma delas era

com minha mulher, sua irmã, e, um pouco mais afastada,

comigo. A outra era com seu... bem, chamemos de seu círculo.

Minha mulher e eu sabemos muito pouco sobre ele, mas

acreditávamos que seus amigos provinham, na maioria, do

mundo do teatro. Obviamente, devido às circunstâncias, minha

mulher preferia não se juntar a eles.

Page 61: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Não era o que eu preferia — corrigiu ela. — Assim é que

era.

Isso ajudava muito, um círculo completo de amizades, mas

era de se esperar.

— Está bem, a senhora não pode me fornecer nomes que

não sabe. Não há ninguém, ninguém mesmo, que a senhora

conhece e ela conhecia?

— Não.

— Dr. Gamm — disse Fleming.

— Oh, é claro — falou ela.

— Médico dela?

— Nosso também — Fleming concordou. — Um interno. Ele

é, pode-se dizer, um amigo meu. Joga xadrez. Quando Isabel

teve uma bronquite séria uns dois anos atrás, eu...

— Quase três anos — corrigiu ela.

— Foi? Eu o recomendei. É viúvo, com dois filhos.

Convidamos ele e Isabel aqui para jogar bridge, umas duas ou

três vezes, mas ela não jogava bem.

— Ela jogava pessimamente — disse Stella Fleming.

— Não tinha nenhum jeito com cartas — disse Fleming. —

Seu nome é Theodore Gamm, com dois emes. Seu consultório

fica na rua 78, em Manhattan.

Era de se presumir que ele estava ajudando a resolver o

problema e apreciei muito isso; pelo menos, tinha um nome e

endereço. Tirei meu caderno de bolso e anotei para mostrar que

estava atento.

— Ele não vai poder contar nada — disse ela, perfei-

tamente calma, mas de repente se levantou, tremendo, os

punhos cerrados, os olhos como brasa. — Ninguém pode! Não

podem, não podem! Saia! Saia!

Fleming, também de pé, estava com o braço em seus

Page 62: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

ombros, mas ela não tomava conhecimento. Se eu tivesse ficado

sentado, quieto, é provável que em alguns instantes tivesse se

acalmado de novo, mas desde o café da manhã eu não havia

comido nada. Acenei para Fleming, ele fez que sim também, e

fui para a entrada, apanhar meu casaco e meu chapéu, e saí. Ao

entrar no elevador, William me disse:

— Então entrou, hein?

— Graças a você, amigo, ao dizer aos dois que eu estava lá

— respondi.

Na rua estava ainda mais frio, mas o carro pegou

rapidamente, como devia, e fui para a via principal.

Pouco depois das 6:30h, ao entrar no escritório, Wolfe

estava à escrivaninha, olhando carrancudo um documento de 5

cm de grossura, parte da transcrição do julgamento Rosenberg,

que mandara buscar após ler os três primeiros capítulos de

Convite para um inquérito policial. Minha mesa estava limpa,

sem memorandos ou mensagens de chamados telefônicos.

Arranquei uma página do meu caderno de bolso e a fiquei

estudando, até que Wolfe pigarreou, momento em que me

levantei e passei-lhe a folha.

— Pronto — disse eu. — O nome e o endereço do médico

que tratou de Isabel Kerr quando teve bronquite há quase três

anos.

— E...? — ele grunhiu.

— Vai achar mais interessante se eu contar os antece-

dentes. Passei uma hora com o sr. e a sra. Fleming. Quer agora

ou depois do jantar?

Olhou o relógio. Trinta e cinco minutos para se comer uma

fritada de anchova.

— É urgente?

— Não, que diabo.

Page 63: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Então pode esperar. Saul telefonou duas vezes. Nada.

Fred vai trabalhar com ele de manhã. Telefonei para o sr.

Parker; ele veio depois do almoço e lhe descrevi a situação, tudo

o que era relevante, exceto o nome de Avery Ballou. Telefonou

depois. Viu Orrie e conseguiu que você o veja amanhã de

manhã, às dez horas. Acha que é melhor.

— Orrie foi acusado? De homicídio?

— Não.

— Mas sem fiança?

— Sim. O sr. Parker não quer insistir. — Olhou de relance

para a folha que eu lhe entregara: — O que é isso? Este homem

a matou?

— Não, ele a curou. Tenho muito orgulho desse nome. Foi

só o que consegui.

— Ora... — Largou a folha e continuou a ler a transcrição.

Não se pode falar de negócios à mesa, mas de assassinos

e crime sim, e a conversa girou sobre o caso Rosenberg durante

o jantar, desde a fritada de anchova, caçarola de perdiz sem

azeitona no molho, musse de pepino e a sobremesa. Era uma

discussão teórica, pois os Rosenberg morreram há muitos anos;

mas os jovens príncipes morreram há cinco séculos e uma vez

Wolfe levou uma semana investigando esse caso, e depois tirou

a Utopia de More das prateleiras, pois achou que More

incriminara Ricardo III.

Só parou quando estávamos de volta ao escritório, depois

de beber seu café. Empurrou a bandeja para um lado e

perguntou se tinha de ser verbatim. Respondi que sim e

comecei. Quando lhe contei do acerto que fizera com William,

apertou os lábios, não por objeção, mas apenas reagindo ao fato

de que era dinheiro posto fora, pois não poderíamos cobrar de

Orrie. Em seguida recostou-se e fechou os olhos, parou de

Page 64: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

reagir, como de costume, até eu terminar.

Então abriu os olhos e perguntou:

— Você não almoçou? Não comeu nada?

Abanei a cabeça:

— Se tivesse saído, talvez custasse cem dólares para subir

de novo. William é um sanguessuga.

Esticou o corpo:

— Nunca faça isso.

— Para mim é bom. Estava com 250 gramas acima de meu

peso. Você comenta ou eu?

— Você.

— Primeiro, Stella matou sua irmã? — falei, depois de meio

minuto. — Aposto dois contra um que não. Ela...

— Só dois?

— É o máximo. A coisa mais importante do mundo, disse

ela. Se ainda é tão importante com ela morta, como era quando

estava viva? Descontrolou-se duas vezes na minha frente;

simplesmente não consegue suportar isso. Se foi lá sábado de

manhã e... preciso explicar?

— Não. Por que dois contra um? Por que não igual ou

menos?

— Porque, segundo se sabe, uma mulher só mata a irmã se

a odeia ou se tem medo dela. Não é o caso de Stella. Ela a

amava e queria... bem, salvá-la. Digamos três contra um. De

qualquer modo, mesmo que tenha sido ela, é impossível. Tente

provar. Mesmo que conseguíssemos o bastante para nos

satisfazer, Cramer e o promotor público nunca acreditariam,

quanto mais o júri. Por isso esqueça essa possibilidade. Quanto

a ele, não aposto nada. Podia ter um motivo, como qualquer

pessoa, mas no momento o único visível é que ele a matou para

que sua mulher parasse de se preocupar com ela, o que é inve-

Page 65: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

rossímil. Mas por que ele me deixou entrar ?

— Para que ela não o encontrasse no corredor.

— Talvez, mas podia ter-me posto para fora e chamado a

polícia, se precisasse. É só um comentário; talvez fosse porque

ele gosta de problemas, ou talvez pensasse ser bom para ela. É

mais do que um comentário, é uma conclusão: se eles estão por

fora, não têm nenhuma idéia de quem estava por dentro. Ela

disse que nem tentaria adivinhar, e eu acredito, pois não sabe

disfarçar. Quando joguei um verde, dizendo que talvez fosse

Orrie que pagasse o aluguel, não foi apenas a expressão do

rosto que mudou, chegou até a abanar a cabeça. Mais tarde,

disse que não sabia quem era, mas ela sabe. Mas, que diabo,

nós também sabemos.

— Se Orrie contou tudo.

— Contou, sim. Ele queria contar tudo o que sabia. Mas

guardei o melhor para o fim: a outra vida de Isabel. O círculo.

— Sim — ele resmungou.

— Sim o quê?

— Isso amplia a investigação. Era de se esperar, logo que

você soube que suas relações com a irmã eram restritas. Uma

mulher que come por tolerância, sem um contrato,

naturalmente prefere não comer sozinha. Você está rindo?

— Sim. A maior parte dos homens não relacionaria isso

com comida. Está bem, então temos um círculo... como era de

se esperar. Dezenas, talvez centenas. Deus do céu! Sugiro mais

uma vez que consideremos Avery Ballou.

— Já o estou levando em consideração. Mas queria antes...

não importa. Discutiremos isso pela manhã, depois de você ter

visto Orrie.

Apanhou a transcrição.

Page 66: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO VI

QUANDO SE PROCURA um homem sob custódia em Manhattan, o

lugar onde está depende parcialmente do porquê ele está lá.

Pode ser uma delegacia de polícia, uma sala na prisão da

cidade, uma sala no escritório do promotor público ou a gaiola.

Não sei quantos policiais chamam de ‘gaiola’, mas o sargento

Purley Stebbins diz assim. É uma sala nua e malcheirosa, com

cerca de dez metros de comprimento, dividida ao meio por uma

grade de aço, que vai do centro de um balcão largo, de madeira,

até o teto, com cerca de uma dúzia de cadeiras de madeira de

cada lado, o mesmo tipo de cadeiras para visitas e visitados.

Democracia.

Sentado numa das cadeiras do lado dos visitantes, às

10:10h da manhã de terça-feira, eu não estava animado.

Pensara que iria ver Orrie numa sala no escritório do promotor

público, até Parker me telefonar, dizendo que seria na Prisão

Municipal. Pensara, então, que seria numa sala. Mas me levaram

até a gaiola, e lá estava eu, com mais quatro visitantes, sendo

que o mais próximo, uma mulher gorda, de meia idade, de olhos

vermelhos, se encontrava apenas a dois metros de distância.

Gostaria de acreditar que estavam apenas mostrando o que

pensavam de Nero Wolfe e Archie Goodwin, mas não pude.

Haviam decidido que Orrie Cather era um assassino, embora

ainda não tivessem proferido a acusação, e não estavam se des-

cuidando. Tinha de tentar fazê-los engolir essa idéia.

Page 67: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Uma porta se abriu na parte dos fundos, do outro lado do

balcão com a grade, e Orrie entrou, algemado, com um tira bem

atrás. O tira conduziu-o a uma cadeira à minha frente, ficou

olhando até que ele se sentasse, e disse: “Quinze minutos”, e

voltou para a parede, onde outro tira esperava em pé. Os meus

olhos e os de Orrie se encontraram através da grade, da melhor

forma possível. Suas pálpebras estavam inchadas. Uma vez ele

me dissera que levava dez minutos, toda manhã, só escovando

o cabelo, mas naquela manhã não escovara.

— Talvez tenha uma escuta — eu disse.

— Creio que não — respondeu. Suas mãos algemadas

estavam no balcão. — Arriscado demais. O protesto seria muito

grande.

— Bem, tudo que podemos fazer é falar baixo. Parker já lhe

disse que o sr. Wolfe, Saul, Fred e eu decidimos que você não a

matou e estamos investigando.

— Sim, sei que ele teria de fazer isso. Não sou seu Archie

Goodwin, mas, mesmo sendo eu, teria de fazer isso.

— Prefiro me considerar como o ‘meu’ Archie Goodwin,

mas não falemos disso agora. Tenho algumas perguntas a fazer,

mas Parker disse que você queria me ver. Então?

— Quero que me faça um favor, Archie, um grande favor.

Quero que vá ver Jill Hardy e diga a ela...

— Já falei com ela. Ontem de manhã foi ao escritório, não

interrompa, e tivemos uma conversinha. Não sei o que você lhe

disse sobre Isabel Kerr, por isso eu...

— Nunca lhe disse nada sobre Isabel Kerr. Ela não sabia

que havia uma Isabel Kerr. Raios, o que você lhe contou?

— A mesma coisa que você: nada. Naturalmente, é esse o

favor que você ia pedir, e já está feito. Disse a ela que os tiras

pensavam que você a matara, e nós achávamos que não, e

Page 68: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

iríamos investigar, e que nada sabíamos sobre Isabel Kerr. Agora

eu tenho...

— Você é maravilhoso, Archie. Maravilhoso.

— Ponha isso por escrito e mandarei emoldurar. Tenho

perguntas a fazer e não temos muito tempo. Você contou

alguma coisa?

— Não. Estou mudo.

— Continue assim. Como sabe, Parker concorda. O que

eles têm? Sabemos que estão com sua licença e outros objetos,

já que você não os tem nem eu, as suas impressões digitais e o

diário dela, mas isso é...

— O diário dela?

— Sim. Você não sabia que tinha um?

— Deus do céu, não.

— Tinha, e está com eles; pelo menos é o que Cramer diz.

Mas não disse o que está escrito. Provavelmente você está nele,

mas queremos sua opinião a respeito de outro assunto: será que

ela colocaria o nome dele no diário? O nome que tive de

arrancar de você?

— Oh... — Pensou um pouco no assunto. — Sei. Talvez isso

seja um ponto a verificar. Não creio que ela fizesse isso. É claro

que o diário estava escondido; mesmo assim, tenho quase

certeza de que não faria isso. É mais do que apenas uma

opinião. Digo que não.

Olhei para o pulso. Ainda faltavam seis minutos.

— Agora a pergunta principal: quantas pessoas sabiam

sobre você e ela?

— Ninguém.

— Bolas, você não pode ter certeza.

— Pelo que saiba, ninguém. Você já me ouviu esbravejar e

falar, Archie, mas nunca me ouviu falar dela. Algumas vezes ela

Page 69: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

me assustava. Já tive mulheres apaixonadas por mim antes, mas

ela era obcecada. Eu gostava dela, era boa, mas obcecada.

Depois que começamos o nosso caso nunca estivemos juntos

em outro lugar que não fosse o seu apartamento. Ela queria

assim, e para mim era ótimo. Mas julguei-a de forma totalmente

errônea. Contei-lhe que conhecera Jill, sabe como é, apenas que

conhecera uma aeromoça; e então, como um idiota, achei que

poderia acostumá-la com a idéia de que ela não poderia esperar

ser a minha única garota, já que eu não era o seu único contato.

Mas eu fiquei obcecado, pela primeira vez na minha vida. Por Jill.

E ela... já lhe disse como aceitou isso. Era ela que tinha de se

casar comigo, pelo amor de Deus. Disse-lhe que tudo o que eu

ganhava era cerca de metade do que ela gastava naquele

apartamento; respondia dizendo que um quarto com banheiro

bastaria para nós, mesmo depois que o bebê chegasse. Esse

tipo de besteira. Nem por um minuto acredito que houvesse um

bebê, e mesmo se houvesse, de quem seria? Estou respondendo

às suas perguntas. Não falei a ninguém a respeito dela e duvido

que ela tenha contado a alguém sobre mim.

— Mas ela lhe falou sobre outras pessoas, não foi?

— Sobre algumas, sim. Você sabe, só fofoca, falou, sim.

— Qual deles a matou? Quem tinha motivos para matá-la?

— É natural que tenha pensado a esse respeito — assentiu.

Se algum dia falou uma só coisa sobre alguém, que pudesse

fornecer uma pista, não consigo me lembrar. Sei que só há uma

única maneira de você me soltar, e Deus sabe que quero lhe dar

palpites, mas juro que não posso. Claro, ela me contou sobre

diversas pessoas, homens que tentavam cantá-la, mulheres de

quem gostava e algumas de que não gostava, mas já pensei

nisso mil vezes e não consigo pensar em nada. Sei que você

precisa ter alguma pista para começar e, além de Jill, é sobre

Page 70: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

isso que eu desejava lhe falar. A mulher de quem mais gostava,

e quem mais via, é uma cantora de cabaré chamada Julie

Jaquette. Seu verdadeiro nome é Amy Jackson. Na semana

retrasada estava no Ten Little Indians, e talvez ainda esteja lá.

Talvez seja o melhor palpite. Conseguiu alguma coisa? Qualquer

coisa?

— Não. Você chegou a conhecer a irmã dela, Stella

Fleming?

— Não. Isabel falava a seu respeito. Dizia que, quando

estivéssemos casados, não só ela estaria feliz, mas também sua

irmã. Pensava que isso me entusiasmaria, fazer duas mulheres

felizes ao mesmo tempo.

— Você deveria ter ficado contente. Ela alguma vez

mencionou... — Parei, pois íamos ser interrompidos. O tira se

aproximava. Tocou o ombro de Orrie, o que era desnecessário, e

disse que o tempo terminara. Falei mais alto:

— Qual o seu nome?

Ele me olhou de cima para baixo:

— Meu nome?

— Sim. Seu nome.

— Meu nome é William Flanagan.

— Outro William. — Levantei-me. — Vou denunciá-lo por

brutalidade. O sr. Cather está detido apenas como testemunha

material. O senhor não precisava agarrá-lo pelo ombro.

Virei-me e caminhei em direção à porta, e o tira que me

trouxera veio para meu lado, assim que peguei na maçaneta.

William Flanagan não interrompera nada importante; eu ia

apenas perguntar se Isabel alguma vez mencionara o dr. Gamm.

No táxi, indo para casa, fiquei deprimido. Esperara

conseguir alguma idéia de Orrie, pelo menos algum lampejo,

mas ao virarmos na rua 35 para o oeste, verifiquei que estava

Page 71: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

pensando na aparência dele, e nas coisas que falara,

procurando alguma pista, o que era tolice, pois estava

definitivamente fora de suspeita. O caso é que só se consegue

tirar alguma coisa do pensamento colocando outra no seu lugar.

A idéia de que Orrie poderia ter acertado Isabel Kerr com aquele

cinzeiro entrara na minha cabeça assim que vira seu crânio

afundado e, não importa o que eu fizesse, ficaria lá até que

tivesse X ou Y como substituto de Orrie. Depois de três dias e

noites, ainda não havia um X ou Y que valesse a pena. Mesmo

assim, dizem vocês, eu não deveria considerá-lo culpado já que

o havíamos inocentado; têm toda a razão, mas vocês não sabem

de muita coisa.

A fim de demonstrar como me sentia, ao entrar no es-

critório não abri a gaveta de cima do lado esquerdo para

apanhar o bloco onde lanço as despesas semanais. Por isso teria

de pagar a despesa do táxi, três dólares e 75 centavos. Wolfe

dissera que assumiria toda a responsabilidade, mas até termos

alguma coisa positiva ele nada poderia assumir, e não é só ele

que tem amor-próprio. Como já eram onze horas e alguns

minutos, acabara de descer da estufa e examinava a

correspondência. Quando descobriu que nada havia de

interessante, nem cheques nem listas de colecionadores de

orquídeas, empurrou a pilha para um lado e deu-me bom-dia.

Respondi que nada havia de bom nele, e, para provar, fiz-lhe um

relatório palavra por palavra de minha conversa com Orrie,

terminando com o comentário de que era melhor ele interrogar

o próximo suspeito, já que eu não conseguira nada com as três

pessoas com quem conversara, Jill Hardy e os Fleming.

— De qualquer forma — eu disse — o culpado é um

homem. Admito que, para você, seria demais entrevistar Julie

Jaquette, mas ela pode esperar até que você tenha falado com

Page 72: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Avery Ballou.

Ele franziu a testa:

— E o dr. Gamm?

Franzi a testa também:

— Você não pode adiar isso para sempre. Como sabe,

concordo com você que alguns casos, como provas para

divórcio, são muito sórdidos. Mas qualquer trabalho é sórdido,

se o ponto principal for quem dormiu ou está dormindo com

quem. Embora seja verdade que Ballou provavelmente não

pagava o aluguel para lhe ler poesias, e que se deve presumir

que o sexo era o fator preponderante, esse não é o ponto

principal e você pode se esquecer dele. Você pode fingir que ele

a matou porque ela o ironizou quando ele disse uma palavra

errada.

Os lábios dele estavam apertados. Respirou fundo três

vezes:

— Muito bem. Traga-o aqui.

— Está certo, mas não sei quando nem como. Dei uma

verificada nele ontem à noite. Não é apenas presidente da

Federal Holding Corporation, é também diretor de outras nove

grandes companhias. Possui uma casa na rua 67, uma em

Rhinebeck e outra em Palm Beach. Tem 56 anos, um filho e

duas filhas, todos casados. Deveria telefonar ao banco para

saber quanto possui em conta, e não queremos anunciar o fato

de que está curioso a seu respeito, mas é...

— Eu disse para trazê-lo aqui.

— Eu ouvi. Estou explicando que não seria aconselhável

dizer à recepcionista, em seu escritório, e à pessoa subalterna a

quem ela me indicasse, que um detetive particular, chamado

Nero Wolfe, quer consultá-lo sobre um assunto confidencial

demais para qualquer outra pessoa ouvir. Se eu telefonar, vai

Page 73: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

ser ainda pior. Portanto, preciso bolar alguma coisa e Jullie

Jaquette teria de esperar.

— Saul disse alguma coisa? — perguntou Wolfe, com um

grunhido.

— Telefonou às nove horas. Fred estava com ele,

investigando. Vai telefonar à uma hora.

— Ora, não se pode colocar um prodígio num serviço de

rotina. Tire ele disso e diga-lhe que procure a srta. Jaquette.

Dela ele conseguirá alguns nomes e então Fred poderá ajudá-lo.

Esticou-se para apanhar uma carta:

— Apanhe seu caderno de notas. A carta daquele imbecil

de Paris tem de ser respondida.

Page 74: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO VII

NAQUELA TARDE, às quatro horas, eu me encontrava de pé num

corredor de mármore de um conglomerado financeiro de

quarenta andares em Wall Street, esperando em frente ao

elevador que marcava ‘32.° ao 40.°’. Já estava preparado. Trazia

na mente uma imagem de Avery Ballou, que vira num número

atrasado da revista Fortune, na Biblioteca Pública de Nova

Iorque, e no bolso um cartão. Era igual ao que dera a William, o

ascensorista, com meu nome no meio e o nome, endereço e

telefone de Nero Wolfe em letras menores no canto inferior,

porém eu juntara mais alguma coisa. Embaixo do meu nome,

batera à máquina: “Havia um diário no quarto cor-de-rosa, e a

polícia está com ele.” Com isso, o espaço em branco estava

preenchido.

Talvez estivesse exagerando. Era possível que a mulher e

a família de Ballou soubessem como ele passava algumas

noites, sem falar nos amigos e alguns funcionários da empresa.

Mas era provável que não soubessem. No artigo da revista

alguns adjetivos a seu respeito eram ‘astuto’, ‘arredio’,

‘conservador’ e ‘escrupuloso’. Não engulo todos os adjetivos que

leio, mas se só a metade deles estivesse certa ainda assim seria

um assunto muito delicado. Por isso esperei cem minutos no

corredor de baixo, em vez de subir ao 34.° andar. De qualquer

maneira, era melhor do que o corredor da avenida Humboldt,

Page 75: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

2.938, especialmente depois das cinco horas, quando todos os

elevadores despejavam um bando de franguinhas, uma visão

muito agradável. Sei que as frangas que põem ovos não formam

bandos, mas se usassem elevador em vez de asas teriam de se

reunir assim.

Às 5:38h olhei para o meu relógio, e dois minutos depois

Avery Ballou apareceu. Um dos que desceram com ele no

elevador continuou ao seu lado, conversando enquanto

andavam. Seis passos atrás, lá segui eu, esperando que se

separassem, e foi o que fizeram, na calçada. O outro homem foi

em direção à Broadway e Ballou ficou parado. Aproximei-me,

coloquei-me à sua frente e disse:

— Tenho a certeza de que isso o interessará, sr. Ballou.

Pode ler com esta luz?

Durante um segundo, pensei que fosse me ignorar, e ele

também pensou, mas olhou meu rosto, o rosto másculo e

honesto que lançara mil cartões, apanhou-o, inclinou-o a fim de

poder ler melhor e focalizou o olhar. Tive bastante tempo para

analisá-lo. Seu capote cinza-escuro lhe custara trezentos, talvez

quatrocentos dólares e o chapéu cinza-escuro uns quarenta

dólares. Sua cabeça era do tamanho certo para o seu corpo

grande e forte; o rosto, embora com algumas rugas, não tinha

pelancas. Continuava sem pelancas quando acabou de ler o

cartão, colocou-o no bolso e olhou para mim.

— Interessará a mim?

— É claro que aqui não é lugar para discutirmos isso. O

melhor lugar é o escritório de Nero Wolfe. Ele sabe mais coisas

sobre aquele quarto de dormir cor-de-rosa do que a polícia, e

sobre o homem que a polícia detém, e sobre o senhor. A melhor

hora seria agora. Isso é tudo o que tenho a lhe dizer, sou apenas

um mensageiro. Mas o senhor deve admitir que foi muita

Page 76: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

consideração minha não ter ido ao 34.° andar e entregar este

cartão para qualquer pessoa levar ao senhor.

Ele virou totalmente a cabeça — para ver se havia um

policial por perto? Não. Um automóvel Rolls-Royce se

aproximara e parara, e um motorista uniformizado saltava.

Ballou virou-se para mim e perguntou:

— Onde é?

— Rua 35 Oeste, número nove-três-oito.

— Está de carro?

— Aqui, não.

— Se for comigo, ficará com a boca fechada.

— Certo. Já disse o que tinha a dizer.

Foi até ao Rolls, entrou e eu o segui. O motorista fechou a

porta e se colocou atrás do volante. Quando começou a andar,

Ballou lhe disse que faríamos uma parada e deu o endereço. Ao

pararmos num sinal na esquina, pensei que era a primeira vez

que eu entregava um suspeito de assassinato na velha casa de

tijolos no seu próprio Rolls-Royce. Como não conversamos,

passei o resto da viagem concentrando-me no carro e concluí

que era mais macio que o Heron, mas não arrancava tão rápido.

Chegamos lá depois das seis, de forma que Wolfe já teria

descido. Embora não seja tão infantil como ele, a ponto de me

exibir, gosto de fazer as coisas bem feitas. Por isso, após

guardar o capote e o chapéu de Ballou e o meu, no corredor,

entrei no escritório, anunciando:

— Sr. Ballou — e me afastei. Ele entrou, parou, olhou ao

redor e perguntou:

— Esta sala tem microfones?

— Diabos — disse Wolfe — em breve será impossível

conversar em qualquer lugar sobre qualquer coisa. Posso lhe dar

a minha palavra de honra de que o que dissermos não será

Page 77: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

gravado, e dou-a agora, mas, embora saiba o que minha palavra

vale, o senhor não sabe. — Apontou para um vaso: — O

microfone poderia até estar ali, mas não está.

Ballou retirara o cartão do bolso do capote e estava com

ele nas mãos. Mostrou-o:

— O que existe a respeito de um quarto cor-de-rosa e um

diário?

Wolfe fez um gesto:

— É óbvio. É um truque para trazê-lo aqui. Mas não falso;

verdadeiro. O quarto é cor-de-rosa, como sabe, já que passou

muitas horas nele, e a srta. Kerr escrevia um diário, que está

nas mãos da polícia.

Fez um gesto em direção da poltrona vermelha:

— Por favor, sente-se; é melhor quando os olhos ficam no

mesmo nível.

— Nunca passei uma hora num dormitório cor-de-rosa.

— Então por que está aqui?

— Porque conheço a sua reputação. Sei que é capaz de

manobras complicadas e está claro que pretende me envolver

numa delas. Portanto, quero lhe dizer, não tente isso.

Wolfe abanou a cabeça:

— Não adianta, sr. Ballou. O caso não é se eu sei de sua

relação, de mais de três anos, com a srta. Kerr, nem é a

evidência que tenho em mãos para sustentar o que digo. O caso

é, poderia se evitar trazer a público essa evidência e, se

podemos, como? Isso é o que lhe interessa. Para mim, é: matou

aquela mulher? Se matou, vou provar e o senhor está perdido.

Se não, não desejo expor sua ligação com ela, e pode ser que

nunca venha a público. Não estou sendo exagerado ao dizer que

isso depende principalmente de sua franqueza comigo.

Ballou virou a cabeça quando passei por trás dele a fim de

Page 78: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

alcançar a minha escrivaninha. Olhou-me quando sentei, olhou

para Wolfe, foi até a poltrona vermelha, sentou-se

confortavelmente, sem pressa, e disse a Wolfe: — Estou

ouvindo.

Wolfe girou a cadeira para ficar bem à sua frente.

— Algumas coisas que vou lhe dizer talvez sejam novidade,

outras não. Sem dúvida o senhor sabe que um homem chamado

Orrie Cather encontra-se detido como testemunha, mas a

qualquer momento será acusado de homicídio. Tenho motivos

suficientes para saber que é inocente. Há anos, em várias

ocasiões, o sr. Cather vem trabalhando para mim e estou com

uma obrigação. Para cumpri-la, devo violar uma confidência. Há

cerca de um ano o sr. Cather tem relações íntimas com a srta.

Kerr. Visitava-a freqüentemente no seu apartamento com o

quarto cor-de-rosa, nas horas em que ela sabia que o senhor

não iria, e lá ficaram traços de sua presença e da intimidade que

desfrutavam, embora não visíveis para o senhor, mas

descobertos por uma busca. A polícia os encontrou e é por isso

que o pegaram. Deseja fazer algum comentário?

— Estou ouvindo. — Pelo rosto de Ballou, poder-se-ia

pensar que estava ouvindo uma simples proposta.

— A srta. Kerr contou ao sr. Cather muitas coisas a seu

respeito, seu provedor, mas naturalmente não lhe contou nada

sobre ele, seu amante. Aparentemente ela o colocou no seu

diário, mas não o senhor. Se estivesse, já teria recebido a visita

de um policial ou do promotor público. Já recebeu?

— Estou ouvindo.

— Assim não serve. Preciso saber, e isto não lhe impõe

obrigações. Alguém foi visitá-lo?

— Não.

— Recebeu qualquer indicação de que o seu nome talvez

Page 79: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

seja importante no assassinato de Isabel Kerr?

— Não.

— Então não está no diário. Só sei de uma coisa sobre o

diário: a polícia o encontrou no apartamento da srta. Kerr. Um

policial, um inspetor, contou ao sr. Goodwin que estava em

poder deles. Nada sei sobre o seu conteúdo, exceto que não o

menciona, e isto é sorte. É provável que o promotor público não

acuse o sr. Cather de assassinato até descobrir quem pagava o

apartamento; pelo menos é isto que a prudência determina. O

senhor espera que ele nunca saiba, e para mim tanto faz.

Wolfe inclinou a cabeça:

— Esse é o ponto principal, sr. Ballou. Se o sr. Cather for a

julgamento, o senhor será envolvido. Ele vai depor, vai falar e

com toda a certeza dirá o seu nome, e aí será um inferno. Talvez

haja uma chance, uma chance muito boa, de que se o próprio

assassino for denunciado, julgado e condenado, seu nome

nunca venha à baila; mas se o sr. Cather for julgado, seu nome

se tornará público, com toda a certeza. Presumindo, como eu,

que está inocente, não quero que seja julgado, e, agora que lhe

descrevi a situação, o senhor também não. Temos um objetivo

em comum, e espero que o senhor me ajude a consegui-lo:

identificar o homem que matou Isabel Kerr. Se o senhor recusar,

naturalmente pensarei que o senhor é o assassino; se não for,

perderia muito tempo valioso, e isso seria uma pena. Será que

expus tudo com clareza?

O rosto de Ballou parecia mais enrugado, mas não caído.

Respirou fundo, passou a palma da mão na testa e disse:

— Posso beber alguma coisa?

Levantei-me, enquanto dizia que sim, certamente, diga o

que quer, pois era mais rápido do que chamar Fritz. Respondeu

gim com gelo e casca de limão, e dirigi-me para a cozinha. Fritz

Page 80: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

cortou tirinhas de casca de limão enquanto eu apanhava o gim,

o copo e uma vasilha com gelo. Quando entrei de novo no

escritório, a poltrona vermelha se encontrava vazia. Ballou

estava perto do globo, girando-o com um dedo. Ao colocar a

bandeja na mesinha, ele voltou, sentou-se, pôs uma pedra de

gelo no copo, despejou o gim, torceu dois pedaços de casca de

limão, colocou-os no copo e mexeu. Estava de volta na minha

cadeira e ele ainda mexia a bebida. Finalmente apanhou o copo,

tomou dois goles médios e colocou-o de novo na bandeja.

— Sim — disse — está tudo bem claro.

Wolfe abriu os olhos e grunhiu.

— É óbvio — disse Ballou — que estou numa enrascada.

Não posso verificar nada do que o senhor disse. Desejava um

drinque, tomo um logo que chego em casa, mas o que eu queria

mesmo era ainda tempo para pensar. Decidi que talvez os fatos

sejam como o senhor os relatou, em parte porque não vejo o

que o senhor poderia ganhar em inventá-los. A única alternativa

é levantar-me para ir embora, e isso eu não posso arriscar. Só

tenho uma pergunta: quando a srta. Kerr... quando esse

homem, Cather, soube de meu nome?

Wolfe virou-se para mim:

— Temos essa informação, Archie?

— Não, senhor. — Disse a Ballou: — Posso descobrir, se for

importante.

— Poderia ter sido há quatro meses?

— Claro.

— Gostaria de saber. Talvez não seja importante agora,

mas gostaria de saber. — Apanhou o copo e deu um gole. —

Sobre o seu palpite de que talvez eu tenha matado a srta. Kerr,

só posso dizer que não fui eu. Será que um homem na minha

posição, desta importância... Não, isso não o impressionaria.

Page 81: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Para mim, a idéia é simplesmente fantástica. O senhor disse

esperar que eu o ajude a identificar o homem que a matou. Se

não foi Cather, e se os fatos são como o senhor os descreve, é

claro que quero, mas como?

— Primeiro o senhor — disse Wolfe. — Onde estava sábado

pela manhã?

— Estava em casa a manhã toda, até as três horas.

Tínhamos convidados para o almoço.

— Se necessário, poderia provar onde estava a cada meia

hora, a partir de oito até o meio-dia?

— Creio que sim. Houve vários telefonemas.

— E sua esposa pode?

— E por que diabos ela precisaria?

Wolfe abanou a cabeça:

— Não comece com isso. O senhor manteve sua pose

maravilhosamente bem; não estrague tudo agora. Não sou eu

quem está querendo envolver sua mulher, são as circunstâncias.

Ela conhecia sua ligação com a srta. Kerr?

— Não.

— Tem certeza?

— Absoluta. Tomei muitas precauções.

Wolfe franziu a testa:

— Veja como é difícil. Talvez seja desejável que o sr.

Goodwin ou eu vejamos a sua esposa, mas com que desculpa,

sem implicá-lo? Precisamos arranjar isso, de alguma forma, e o

sr. Goodwin...

— Não vai se arranjar nada! O senhor não vai ver minha

mulher!

— Olhe a pose. Como o senhor próprio admitiu, está numa

enrascada; não esperneie. Se não foi o senhor nem sua mulher,

quem foi? Preciso de algum fato, uma sugestão, um nome. O

Page 82: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

senhor passou com ela muitas horas, intimamente. O senhor

talvez tenha de passar muitas horas comigo. Ela deve ter-lhe

contado sobre os lugares aonde ia e as pessoas que conhecia.

Conte-me.

Um músculo tremia no pescoço de Ballou.

— Eu insisto, insisto, que minha mulher não seja

perturbada. É claro que o senhor espera ser pago. Nunca

‘esperneio’. Quanto quer?

Wolfe acenou com a cabeça.

— No seu caso, isso é óbvio. Os homens com dinheiro

sempre acham que não há outra forma de pagamento. Fui

contratado pelo sr. Cather e o senhor não pode me contratar ou

pagar. É claro que o estou forçando, mas só para conseguir

informações. Só perturbaremos a sua esposa se for estritamente

necessário. Do senhor quero todos os fatos, todos...

O telefone tocou. Virei-me e atendi:

— Escritório do sr. Nero...

— É Saul, Archie. Estou...

— Espere.

Descansei o fone e fui até a cozinha, onde falei por outro

telefone.

— Temos visitas. Está bem, pode dizer.

— Você vai ter mais visitas. Estou derrotado. Encontrei

quem fosse igual a mim. Julie Jaquette. Daria uma semana de

pagamento para saber se você poderia ter dado conta dela. O

problema é que, em parte, Nero Wolfe é uma celebridade, diz

ela, mas é principalmente por causa das orquídeas. Se ele lhe

mostrar as orquídeas, ela lhe contará tudo sobre Isabel Kerr. Ela

não vai me dizer nada. Nada mesmo.

— Ora, ora. Eu teria levado uns dez minutos.

— Não amole. Eu disse o pagamento de uma semana. Ela...

Page 83: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Onde você está?

— Numa cabine telefônica na rua Christopher. A cabine do

Ten Little Indians tinha uma fila. Ela está de folga até as oito e

depois das 9:10h até 10:15h...

— Então é fácil. Traga-a às 9:10h.

— Ao diabo, que é fácil. — O telefone desligou e ele sumiu.

Não espero que acreditem em mim, quando disser as

primeiras palavras que ouvi quando voltei a entrar no escritório,

mas acho que vocês têm o direito de saber por que obtivemos

tão pouca informação de Avery Ballou, como Saul recebera de

Julie Jaquette. As palavras ditas por Ballou eram: — Rudyard

Kipling.

Ao me dirigir à minha mesa, virei a cabeça para que meus

olhos se fixassem nele. Ao sentar-me, Wolfe lhe perguntou:

— Os poemas?

— Principalmente os poemas — disse Ballou — mas

algumas das histórias também. E Robert Service e Jack London.

Um pouco de outros autores, mas desses três, Kipling, Service e

London, eu tinha as obras completas lá, encadernadas em

couro. Há uma coisa que desejava perguntar, mas ainda não

perguntei, e o senhor deve saber. Será que podem conseguir

minhas impressões digitais nessas encadernações? O couro não

é liso, é ondeado.

Wolfe virou a cabeça:

— Archie?

— Provavelmente não — disse eu a Ballou — não de couro

ondeado, mas suas impressões devem estar em outras

superfícies. Suas impressões estão registradas em algum lugar?

— Não sei. Simplesmente não sei.

Os ombros de Wolfe levantaram-se um milímetro e

desceram.

Page 84: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Então, quanto a isso só pode aguardar. Mas não é fácil

crer, sr. Ballou, que o senhor passava lá dez ou mais horas por

semana, quinhentas horas por ano, durante três anos, e a srta.

Kerr nunca lhe tenha falado como passava as outras...

vejamos... quase 25 mil horas. Os lugares que freqüentava, as

pessoas que via.

— Fui obrigado a lhe dizer — respondeu Ballou — sob

coação. Apesar das intimidades físicas, não trocávamos idéias.

Mas eu não lia aqueles poemas e histórias só para ouvir a minha

voz. Não a obrigava a ouvir. Ela os compreendia, gostava deles,

e conversávamos a respeito. O senhor sabe que não estou

gostando disto. É a primeira vez na minha vida que tenho

vontade de dizer a um homem para ir para o inferno e não

posso.

— Mesmo assim, custa-me a crer. Ela nunca falou da irmã?

— Sim. Falou dela, sim, mas ao acaso e muito raramente.

— O senhor não sabia que a irmã dela desaprovava muito

essa ligação?

— Não, nem sei agora.

— Ela desaprovava e desaprova. A srta. Kerr nunca

mencionou este nome: Julie Jaquette?

— Creio que não. Se o fez, foi casualmente e não me

lembro.

— Notável. O senhor esteve com ela, intimamente,

freqüentemente, durante um período de três anos. Eu queria e

esperava que me desse alguns nomes e o senhor forneceu três:

Jack London, Roberto Service e Rudyard Kipling. — Wolfe

empurrou a cadeira para trás. — Uma pergunta: por que

desejava saber quando o sr. Cather ouviu seu nome pela

primeira vez?

— Oh... eu estava curioso.

Page 85: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— O senhor disse que agora não tinha importância.

Quando teve importância, e por quê?

— Eu quis dizer importante para mim, não para o senhor,

não para o que o senhor pretende fazer. O que vai fazer? O

senhor diz que não posso contratá-lo ou pagar, mas por que

não? Não há conflito algum entre os interesses de Cather e os

meus, pelo que disse. Dez mil dólares agora como sinal? Vinte

mil?

— Não — Wolfe levantou-se. — Já estou comprometido.

Page 86: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO VIII

ÀS 9:15H ESTÁVAMOS novamente no escritório e Fritz já retirara a

louça do café; por isso, embora eu ainda não soubesse, a cena

estava preparada para um dos espetáculos mais

impressionantes que a velha casa de tijolos jamais viu. Após ter

levado Ballou até a porta, fui à cozinha e contei a Wolfe sobre o

telefonema de Saul. É claro que ele teria apreciado mais a sopa

de cebola e o peixe de Kentucky se eu tivesse esperado, mas se

eu dissesse na hora do café teria criado uma atmosfera ruim. A

pergunta era o que agüentaria mais, o apetite ou a digestão, e é

preciso muita coisa para perturbar o seu apetite.

A digestão, obviamente, também sofrera. Bebeu mais café

do que de costume, esvaziando o bule, e agora que o tinham

levado e eu estava lá — em geral saio às terças à noite —,

tentava continuar a conversa do jantar sobre o Vietnã, mas ele

não estava realmente interessado no Vietnã. Wolfe teria de

suportar não apenas uma mulher, o que já é bastante ruim, mas

uma cantora de cabaré, o que é um absurdo. Um modo horrível

de passar a noite. Quando a campainha tocou, olhou-me

zangado, embora devesse ter guardado o olhar para Saul, e foi

isso o que lhe disse ao me levantar.

Mesmo através do vidro, no qual só se via de dentro para

fora, ao aproximar-me da porta, ela chamava a atenção. Tinha

uns cinco centímetros a mais do que Saul, e se o casaco fosse

de pele verdadeira, deveria ter umas cem peles. Ao entrar, deu-

Page 87: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

me um sorriso ofuscante, e outro após lhe pendurar o casaco.

Saul tentava não rir. Ela segurou o meu braço e perguntou:

“Onde está ele, Archie?”, numa voz modulada e carinhosa, e

continuou segurando-me o braço até o escritório, mas então

largou-me, dançou até o meio da sala, ficou de frente para a

mesa de Wolfe, deixou a bolsa cair ao chão e começou a cantar:

“Homem forte, vá, vá,

Homem forte, fique forte,

Fale forte, aja forte,

A-a-a-a-m-m-m-m-me forte!

Vá-vá-vá-vá-vá-vá

Homem forte, homem forte,

A-a-m-m-m-m-m-m-me forte,

Vá!”

Esticou dois braços longos, nus e bem-feitos para ele e

disse:

— Agora as orquídeas. Mostre-as.

Foi realmente impressionante. E devo admitir que Wolfe

também foi. Vi que lhe dirigiu a mesma carranca que faz quando

uma palavra cruzada não vai para frente. Virou a carranca para

mim e perguntou:

— Foi você quem sugeriu isto?

— Não — respondeu ela. — Ninguém nunca me sugere

nada. Não precisa. Agora as orquídeas, homem. Vamos!

— Senhorita Jackson... — disse ele.

— Aqui não — disse ela. — Sou Julie Jaquette.

— Aqui não — respondeu ele. — É possível que há muito

tempo, em circunstâncias diferentes, eu tivesse apreciado sua

apresentação, mas não aqui e...

— Não é uma apresentação, homem, sou eu.

Page 88: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Não acredito. A pessoa que entrou aqui e cantou aquela

besteira é incapaz de comer, dormir, ler ou escrever... ou amar.

A senhora pode amar?

— Hum! Se posso!

Wolfe acenou:

— Viu? Há um minuto atrás, a senhora diria: “Se sou,

homem.” Estamos progredindo. Quanto ao seu desejo de ver

minhas orquídeas, isto é fácil. O sr. Panzer ou o sr. Goodwin

poderão levá-la numa hora adequada, talvez amanhã. Agora

temos outros assuntos a tratar e o tempo é curto. A senhora

quer que o homem que matou Isabel Kerr seja denunciado e

punido?

— Sim, maldito seja ele, quero. Quero, homem.

Wolfe fez uma careta:

— Não volte ao que era. Também quero descobrir quem é,

pois é o único modo possível de libertar um homem que está

sob custódia. Orrie Cather. Talvez a srta. Kerr tenha lhe falado

sobre ele.

Do alto dos seus um metro e setenta ela o encarava:

— Está doente? — perguntou ela.

— Não. Estou amargurado, mas não doente. Se pensa que

o sr. Cather a matou, está errada, não foi ele, e vou descobrir

quem foi. Foi a senhora?

Saul e eu estávamos entre ela e a porta. Virou-se para nós

e falou, pronunciando bem as palavras:

— Seu rato.

— Não sou culpado — disse Saul. — Desde o princípio você

disse que achava que ele a matara. Você também deixou claro...

— Você disse que Nero Wolfe queria que eu ajudasse a

condená-lo.

— Não disse. Eu disse apenas que ele queria que você

Page 89: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

ajudasse. Você também deixou bem claro que não me diria

nada.

Ela olhou em volta, foi até a minha cadeira, sentou-se e

olhou para Wolfe. Seria difícil tirá-la de lá, por isso sentei-me na

poltrona vermelha e Saul foi para uma das amarelas.

— Então acha que irá libertá-lo. Porque ele trabalha para

você. Tolice. Diga-me como.

Wolfe abanou a cabeça:

— Não posso. Não sei como. É evidente que a senhora

acha que ele é culpado, e naturalmente disse à polícia por que,

mas eles ainda não estão satisfeitos. Ele se encontra detido

apenas como testemunha. Por que tem tanta certeza?

— Diabos, eu avisei a ela.

— A senhora a avisou que o sr. Cather a mataria?

— Não, mas eu a preveni de que ninguém sabia o que ele

faria. Creio que sabe que ele queria se casar com outra moça?

— Sim.

— Estava tudo numa confusão medonha, como acontece

quando as pessoas se descontrolam. Os idiotas tinham um lugar

perfeito. Quem quer que fosse que lhe pagava as contas, ela

nunca me disse quem era, ele mantinha um lugar para ela, onde

ia sempre que ele precisava dela e não se pode querer coisa

melhor. Ficava lá sozinha a maior parte do tempo, e tinha um

homem que a fazia sentir-se bem, e isso é o máximo. Ele tinha

uma mulher boa, pronta quase o tempo todo, de graça, e não se

pode querer coisa melhor. A situação perfeita. Mas ela decide

que tem de casar com ele, e ele decide que tem que se casar

com outra mulher, e ela até tem um bom emprego... é

aeromoça. Sabe disso?

— Sim.

— E se ela tivesse miolo, desejaria ficar solta. Mas nenhum

Page 90: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

deles tinha nada na cabeça. Avisei a Isabel que devia se livrar

dele, pois estava preocupado e podia fazer qualquer coisa, mas

ela não quis me ouvir. Ela o apertou e ele a matou. Quando a

cabeça das pessoas pára de funcionar, deve-se cair fora. Mas

ele a matou, e agora ele é quem terá de cair fora.

— Já contou isso tudo à polícia?

— É claro que contei.

— E se ele não a matou?

— Tolice.

Wolfe olhou-a. Como seus olhos estavam acostumados a

me ver quando olhavam para aquela cadeira, teve de ajustar a

vista.

— A senhora joga algumas vezes? Gosta de apostar?

— Que pergunta boba. Quem não gosta?

— Ótimo. Saul, que vantagem você daria à srta. Jackson de

que Orrie Cather não matou Isabel Kerr?

Saul nem hesitou:

— Dez contra um. — Tirou a carteira do bolso e começou a

tirar notas. — Cem contra dez.

— Talvez ela não tenha dinheiro. Quer...

— Sempre tenho dinheiro. — Abriu a bolsa, colocada sobre

a minha escrivaninha, depois de apanhá-la no chão, onde a

jogara enquanto cantava. — Mas quem decide?

— O promotor público — disse Saul. — Cem contra dez de

que ele nem vai a julgamento. Archie Goodwin pode ficar com o

dinheiro?

— Não. Nero Wolfe. — Levantou-se e entregou a Wolfe

uma nota e Saul entregou-lhe as dele. Wolfe verificou a quantia

de Saul, cinco notas de vinte dólares, abriu uma gaveta e

colocou-as lá. Ela voltou para minha cadeira, recolocou a bolsa

sobre a minha escrivaninha e disse a Wolfe:

Page 91: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Agora me conte por que acabei de perder dez dólares.

Ele abanou a cabeça.

— É melhor aguardar os acontecimentos. Queria apenas

demonstrar que estamos agindo baseados em conclusões, não

em conjeturas. Sente uma certa animosidade contra o sr.

Cather?

— O que é animosidade?

— Hostilidade. Raiva.

— É claro que não. Não detesto ninguém.

— Se ele não matou a srta. Kerr, está disposta a perder

aqueles dez dólares?

— Por que não? É uma aposta.

— Então, se outra pessoa a matou, preferia que fosse

punida com justiça em vez de o sr. Cather ser punido

injustamente?

— Sem dúvida.

— Ótimo. Vocês eram amigas íntimas. A srta. Kerr lhe fazia

confidências, exceto pelo nome da pessoa que lhe pagava as

contas. Que tipo de mulher era ela? Essa pergunta não é feita ao

acaso; preciso saber. Como era ela?

— Era um amor. Uma ótima mulher, até cair por aquele

cretino. Ela conhecia o jogo e sabia das regras. Sempre

conservava a dignidade, até o fim. Tinha um coração grande e

bom, mas nunca o deixava sangrar. Prefiro não ter nenhum

coração do que tê-lo sangrando por toda a parte. Uma das

razões por que éramos tão íntimas é que sabíamos para que

servem e para que não servem os homens... até aquele idiota

do Cather aparecer.

— A senhora o conhece?

— Não. Nunca o vi nem quero vê-lo.

Wolfe olhou para o relógio:

Page 92: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Precisa voltar às 10:15h?

— Às 10:10h. Preciso trocar de roupa.

— Então não temos muito tempo. Peço que aceite uma

hipótese. Suponhamos que soubesse, com toda a certeza, que

ele não a matou. Então quem foi? De quem a senhora

suspeitaria?

— Isso é fácil. Do lagosta, é claro.

— O quê? Lagosta?

— Desculpe-me. Do homem que pagava as contas.

— A senhora nem ao menos sabe o nome dele.

— E que tem isso? Ele gastava cerca de vinte mil dólares

por ano. Talvez isso o deixasse liso. Talvez estivesse se

empenhando. Descobriu a respeito de Cather e a matou. É fácil

como o ABC.

— Muito bem, vou pensar nisso. Mas continuemos com a

hipótese. Deixemos ele também de lado. Quem seria então?

Vocês duas não tinham muitos amigos em comum?

— Sim. Se quiser chamá-los de amigos, por delicadeza. É

claro que tínhamos.

— Suponhamos que tenha sido um deles. Qual deles?

Ela disse uma palavra que deveria ter guardado consigo, já

que havia uma senhora presente.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Wolfe.

— Quero dizer que os conheço. Não se mata alguém a não

ser que se tenha um motivo, e, mesmo sem motivo, é preciso

ter peito. Eles não se enquadram.

— Nenhum?

— Não.

— A senhora daria ao sr. Goodwin ou ao sr. Panzer alguns

desses nomes enquanto lhe mostram as orquídeas?

— Não podem me mostrar as orquídeas. Tenho de ir

Page 93: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

embora.

— Talvez amanhã de manhã.

— Teria que trazê-las para mim na cama. Espalhar todas à

minha volta. Eu gostaria disso, mas ele não. De manhã, na

cama, sou horrorosa.

— Então de tarde. Já conheceu o dr. Gamm?

— Teddy? — Deu uma risada. — Sim, conheço Teddy. Creio

que é um bom médico, mas como homem pode ficar com ele.

Teve idéia de ficar com Isabel e isso foi mesmo uma idéia louca.

Deus sabe qual a idéia que vai arranjar agora.

— Essa não serviu?

— Lógico que não.

— Já conheceu a irmã da srta. Kerr? A sra. Fleming?

Ela fez sinal que sim:

— Aquela formiga. Tive uma idéia. E não é engraçada.

Creio sinceramente que ela pensava que Isabel estaria melhor

morta. Está bem, se não foi Cather nem o lagosta, foi ela. —

Olhou o relógio de parede: — Preciso ir embora. — Saiu da

minha cadeira: — Venha comigo. Por que não? Arranjo uma

mesa de frente e coloco um refletor em cima de você. Farei uma

bruta propaganda. Direi aos trouxas que Nero Wolfe em pessoa

está aqui e vai se levantar. Se não quiser, pode ficar sentado,

eles que fiquem de pé nas cadeiras para vê-lo. Para mim será

um troféu no meu sutiã. Venha. A cerveja é por conta da casa.

A cabeça de Wolfe estava inclinada para trás a fim de

poder olhá-la.

— Recuso seu convite, srta. Jackson — disse ele — mas

desejo que passe bem. Tenho a impressão de que sua opinião

sobre os nossos semelhantes e suas qualidades é bem parecida

com a minha.

Levantou-se. Ele quase nunca se levanta para pessoas que

Page 94: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

chegam ou partem, homem ou mulher. E repetiu:

— Desejo que passe bem, senhorita.

— Grande homem — disse ela. Virou-se: — Venha você,

Archie. Este Panzer é um rato.

Page 95: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO IX

QUARENTA E SETE HORAS mais tarde, às nove horas de quinta à

noite, Wolfe colocou a xícara de café sobre a mesa e disse:

— Quatro dias e noites, e nada.

Coloquei minha xícara na mesa:

— Concordo.

Na verdade, havia uma coisa. Os resultados eram zero,

mas não os esforços. Em algum lugar dos nove cadernos de

notas na minha escrivaninha — escrevo esses relatórios na

minha própria máquina, no meu quarto, não no escritório —

estão os nomes de quatro homens e seis mulheres, fornecidos

por Jaquette-Jackson quando veio ver as orquídeas, na quarta à

tarde. Saul e Fred haviam entrevistado as pessoas. Do ponto de

vista da utilidade, nada. Sem dúvida, tudo é possível. Era

possível que uma das mulheres pensasse que Isabel surrupiara

seu batom, ficasse furiosa e a matasse, ou que um dos homens

detestasse Rudyard Kipling e não suportava uma mulher que

tinha o livro encadernado em couro, mas é preciso alguma coisa

mais do que dez bilhões de possibilidades para se trabalhar.

Qualquer coisinha serve, mas é preciso alguma coisa.

Estatísticas, por exemplo. Há dois tipos de estatística: o

tipo que se consulta e o tipo que a gente inventa. Acho que esta

é do segundo tipo: para cada mil assassinatos cometidos por

amadores, 83 são de uma mulher matando outra porque roubou

Page 96: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

o seu marido, ou uma parte dele. Portanto, do ponto de vista

estatístico, na lista de nomes que havíamos reunido a única

pessoa com um motivo conhecido era a sra. Avery Ballou, e

obviamente isso a colocava em primeiro lugar. O difícil era como

abordar o assunto. Se eu lhe perguntasse se sabia que há três

anos seu marido lia poemas de Kipling para a mulher que fora

assassinada a semana passada, Ballou nunca mais falaria

conosco, e podia ser que precisássemos dele para alguma coisa.

Assim, na quarta-feira, após o café, telefonei para Lily Rowan e

lhe perguntei se conhecia a sra. Avery Ballou. Ela disse que não,

e do pouco que sabia a seu respeito não tinha vontade de

conhecê-la.

— Então não vou insistir — respondi. — Mas preciso

descobrir se quero conhecê-la. Isso é só entre nós. Não preciso

de uma descrição detalhada, só de algumas palavras,

principalmente queria saber quais os assuntos que mais lhe

interessam. Por exemplo, se coleciona autógrafos de detetives

particulares famosos, pois seria perfeito.

— Não é possível que seja tão idiota assim.

Respondi que poderia ter outro hobby pior, e tinha pressa

na resposta, por isso ela me telefonou uma hora depois.

Conseguira mais do que eu pedira, por isso vou omitir a maior

parte. A sra. Ballou em solteira era Minerva Chadwick, dos

Chadwick do aço e estradas de ferro. Casou-se com Ballou em

1936. O filho e as duas filhas estavam casados. Era chamada de

Minna pelos amigos. Nunca dava grandes festas mas gostava de

receber alguns amigos, poucos, para jantar. Pertencia à Igreja

Episcopal, mas raramente ia à igreja. Não gostava muito de

Paris e detestava a Flórida. Gostava de cavalos e tinha quatro

árabes, mas seu principal interesse eram cães de fila irlandeses,

dos quais possuía 12 ou 14...

Page 97: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Perdi o meu tempo e o de vocês, pois obviamente o

assunto era cães irlandeses. Tudo o que sabia sobre eles é que

eram grandes, por isso chamei um homem que conhece

cachorros, e consegui algumas informações. Em seguida liguei

para o número do telefone da residência Ballou, que constava

na lista, na rua 67. Quando uma voz de mordomo atendeu

“Residência da sra. Ballou”, disse-lhe que meu nome era Archie

Goodwin e que gostaria de marcar um encontro com a sra.

Ballou para lhe pedir um conselho sobre um cão de fila irlandês.

Disse, então, que ela não podia atender e lhe daria o recado.

Dei-lhe o meu número de telefone. Cerca de meio-dia veio um

chamado, uma voz feminina bem comercial que disse ser a srta.

Corcoran, secretária da sra. Ballou, e que tipo de conselho eu

desejava sobre cães irlandeses. Disse a ela que pretendia

adquirir um e não sabia qual o canil que possuía os melhores

cães, e um amigo me dissera que a sra. Ballou conhecia mais

sobre eles do que qualquer outra pessoa no país. Respondeu

que, se eu viesse às cinco horas, a sra. Ballou me receberia. Isso

era ótimo, pois Jackson-Jaquette iria chegar às duas e meia para

ver as orquídeas.

Creio que vocês não têm um grande interesse em passar

mais duas horas com Julie Jaquette ou com a srta. Jackson, e já

lhes falei sobre a lista de dez nomes que me dera, por isso vou

pular esta parte e dar-lhes o prazer de conhecer Minna Ballou. O

cenário e os figurantes correspondiam à expectativa: o

mordomo que me deixou entrar, com olhos espertos e

cuidadosos, que em dez segundos já haviam me analisado; o

capacho que protegia os dois primeiros metros do tapete da sala

de entrada, maior do que o Keraghan do escritório de Wolfe, que

mede 4,20m por 7,80m; a criada de uniforme que torceu o nariz

ao apanhar o meu chapéu e o casaco; o elevador com painéis

Page 98: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

laqueados de vermelho; a srta. Corcoran, de meia-idade,

cabelos cinzentos, olhos cinzentos, que me esperava quando saí

no 4.° andar; a sala para onde me levou, tendo à esquerda uma

escrivaninha, uma máquina de escrever e arquivos, e à direita

um sofá, poltronas macias e uma mesa de centro. Espalhados

pela sala havia retratos de cavalos e cachorros, mas não vi

nenhum de Avery Ballou. Sua mulher estava estirada no sofá, de

costas, com um robe de banho vermelho desbotado, que descia

quase até os tornozelos. Quando entrei, virou a cabeça e disse:

— Esperava que não viesse. Estou cansada. — Apontou

para uma cadeira perto do pé do sofá. — Sente-se ali.

Obedeci à ordem e fiquei de frente para ela. Seus lábios e

nariz eram finos, e uma ponta de seu cabelo castanho tingido

caía-lhe na testa. Estava descalça e os dedos dos pés eram

grossos. Sorri-lhe amigavelmente.

— Não vai dizer nada? — perguntou.

— Se não estiver cansada demais — disse eu. — Creio que

a srta. Corcoran contou-lhe o que eu disse ao telefone. Na

verdade, é uma amiga minha que quer um cão de fila irlandês.

Ela mora em Westchester. Moro na cidade, e creio que um

apartamento não é lugar para um cão irlandês.

— Não é mesmo.

— Alguém lhe disse que devia mandar buscar um na

Irlanda.

— Quem lhe disse isso?

— Não sei.

— Quem quer que seja é um tolo. Os criadores comerciais

na Irlanda têm um tipo inferior. A maior criadora de cães de fila

do mundo é Florence Nagle, na Inglaterra, mas não cria

comercialmente e tem muito cuidado para quem os vende.

Todos os bons criadores fazem isso. Eu só vendo como um favor

Page 99: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

muito especial. Adoro cães de fila e eles me adoram. Quando

estou lá, dormem oito no meu quarto.

Dei-lhe um sorriso:

— E seu marido gosta disso?

— Duvido que preste atenção. Ele não distinguiria um cão

de fila de um avestruz. Qual é o nome de sua amiga?

— Lily Rowan. Tem uma casa perto de Katonah.

— Para que ela quer um cão de fila?

— Bem, em parte por proteção. Não há vizinhos por perto.

— Só isso não basta. É preciso amá-los. Você tem de

aceitar quando um rabo derruba acidentalmente um vaso ou um

abajur. Será que ela sabe que um macho bom pesa cerca de 65

quilos e que quando fica nas patas traseiras tem quase 1,80m?

Será que ela sabe que, quando ele pula em cima de alguém

porque gosta da pessoa, ela cai? Sabe que ele tem de correr

quatro quilômetros e meio por dia e você deve ir atrás numa

caminhonete? Diga a ela para arranjar qualquer cachorro, um

dinamarquês ou um doberman.

Abanei a cabeça:

— Não acho que isso seja correto, sra. Ballou.

— Eu acho. Por que não?

— Porque acho que a srta. Rowan está preparada para

amar um cão de fila irlandês. Faz perguntas sobre canis, mas,

não satisfeita, ouve dizer que a pessoa que mais conhece sobre

eles é a senhora; e me pediu para tentar vê-la porque acha que,

com a senhora, um homem teria mais chance do que uma

mulher. Disse-lhe que ela mesma poderia fazer isso, procurando

seu marido, mas respondeu que não sabia se ele estava

interessado em cães irlandeses. Parece que não está.

Fechou os olhos e abriu-os de novo.

— Meu marido não se interessa por mais nada a não ser

Page 100: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

finanças e o que ele chama de estrutura da economia. Como é o

nome daquela inglesa que escreve livros a este respeito?

— Barbara Ward.

Ela acenou com a cabeça.

— Ela o interessaria, mas nenhuma outra mulher seria

capaz disso. Qual é o nome de sua amiga?

— Lily Rowan.

— Sim. Estou cansada. Parece que o senhor é inteligente.

Acha que um cão de fila seria feliz com ela?

— Acho, ou não estaria aqui.

— Ela quer um macho ou uma fêmea?

— Ela pediu que lhe perguntasse. Qual aconselharia?

— Depende. Teria de saber... ela mora no campo.

— Não no inverno. Tem um apartamento na cidade. — Não

disse que seu dúplex ficava a cerca de quatrocentos metros de

onde eu estava.

— Teria de vê-la. — Virou a cabeça para o outro lado. —

Célia, tomou nota do nome? Lucy Rowan?

A srta. Corcoran, na escrivaninha, disse que escrevera o

nome, e a sra. Ballou virou-se para mim:

— Diga a ela que chame a srta. Corcoran. É isso que

deveria ter feito em vez de amolá-lo. Não sei seu nome... não

tem importância. — Fechou os olhos.

Levantei-me e fiquei de pé, pensando que seria mais

educado agradecê-la com os olhos abertos, mas como não se

abriram, agradeci assim mesmo, e ela disse, ainda com os olhos

fechados:

— Pensei que já tivesse ido embora.

Se eu fosse um cão de fila, teria abanado a cauda ao sair

da sala e quebrado alguma coisa. A srta. Corcoran, que me

levou até ao elevador para ter certeza de que eu iria mesmo

Page 101: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

embora, disse-me que entre dez e onze da manhã seria a

melhor hora para a srta. Rowan telefonar.

Há dias que não dava uma boa caminhada, desde sábado,

e como ainda não eram cinco e meia, decidi economizar na

despesa de táxi. Mas antes precisava dar um telefonema. Por

isso, fui à avenida Madison, achei uma cabine, disquei para Lily

Rowan, expliquei a situação e disse-lhe que, pela manhã,

deveria ligar para a srta. Corcoran e dizer-lhe que decidira

comprar um dachshund. O que ela respondeu é irrelevante e

pessoal. Ao sair, levantei a gola do casaco e coloquei as luvas. O

inverno estava com força total.

Se estão pensando que os auxiliares faziam todo o serviço,

Saul e Fred examinando os dez nomes que Julie Jaquette me

dera e eu entrevistando uma mulher estranha, não é verdade.

Às 6:15h, quando entrei no escritório, lá estava Wolfe à

escrivaninha com um livro, e vi logo que não era Convite para

um inquérito policial. Era O livro da selva, de Rudyard Kipling.

Por isso, encaminhei-me na ponta dos pés para a minha

escrivaninha, a fim de não perturbá-lo. Ao terminar um

parágrafo e levantar os olhos, perguntei:

— Você não se sentiria melhor lendo em voz alta? Faça de

conta que eu sou ela.

Não deu importância a isso e perguntou:

— Saiu-se melhor?

— Não, senhor. A não ser que queira um cão de fila

irlandês para caçadas. A sra. Ballou está de fora. Mesmo que

alguém lhe tenha contado tudo, com todos os detalhes, ela não

teria ido lá decidir a questão com Isabel Kerr porque: (a) estaria

cansada demais; e (b) teria esquecido do nome e do endereço.

Como a srta. Jackson alargou os seus horizontes em relação às

mulheres, talvez não concorde.

Page 102: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Fiz o relatório. Era tão curto que ele mal havia se sentado

confortavelmente, encostando-se para trás com os olhos

fechados, quando cheguei ao fim — o telefonema para Lily

Rowan.

— Há uma diferença entre ela e você — eu disse. — Você

fecha os olhos para se concentrar no que estou dizendo, e ela

fecha os dela na esperança de que eu não esteja lá. Nem

prestou atenção quando, por duas vezes, arrastei o nome do

marido dela para a conversa. Juro que poderia ter lhe contado

tudo sobre Isabel Kerr e o quarto cor-de-rosa, e quando ele

chegasse em casa do trabalho ela nem se preocuparia de

mencionar o fato para ele.

Wolfe grunhiu e abriu os olhos.

— Como é que oito cachorros daquele tamanho podem

passar a noite no quarto dela? — perguntou.

— Isso também me preocupou — concordei. — Se

calcularmos uma média de dois metros quadrados por cachorro,

e mais talvez se...

A campainha da rua tocou e fui atender. Era um homem de

capote marrom, grosso, de tweed e chapéu liso azul-marinho, de

abas estreitas, ridículo, e calculei que era um dos sujeitos que

Saul ou Fred descobriram. Mas ao abrir a porta ele disse:

— Sou o dr. Gamm. Theodore Gamm, médico. O senhor é o

homem que visitou o sr. e a sra. Fleming na segunda à tarde?

Confirmei e ele continuou:

— Insisto em ver Nero Wolfe — e se eu não tivesse me

afastado, passaria por cima de mim.

Sem dúvida, não é assim que as coisas são feitas. Primeiro

se diz alguma coisa e depois é que se insiste. Ele nem tinha

físico para insistir, o que ficou claro após tirar o casaco. Era todo

arredondado, ombros redondos e quadris redondos e rosto

Page 103: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

redondo, e a careca no topo de sua cabeça mal batia no meu

queixo. Coloquei-o na sala da frente, fui para o escritório pelo

caminho mais longo, pelo corredor, e disse a Nero Wolfe que o

dr. Theodore Gamm insistia em lhe perguntar por que me

mandara falar com o sr. e a sra. Fleming. Ele olhou o relógio e

resmungou:

— O jantar é para daqui a meia hora.

Respondi que a sra. Ballou só me tomara dez minutos, abri

a porta que liga à sala da frente e mandei-o entrar. Ao

encaminhá-lo para a poltrona de couro vermelho, Wolfe disse

qualquer coisa sobre vinte minutos. A poltrona é funda, e

quando viu que seus pés não tocavam o chão, escorregou para

a frente, cravou os olhos em Wolfe e disse:

— O senhor está com o peso muito acima do normal.

Wolfe concordou:

— Trinta e cinco quilos. Talvez quarenta. A morte se

encarregará disso. Isso é da sua conta?

— Sim, é. — Curvou os dedos redondos nos braços da

poltrona. — Qualquer coisa que interfira com a saúde natural é

um despropósito e me indigna. — Sua voz era mais forte do que

ele próprio. — Foi a minha preocupação com a saúde que me

trouxe aqui... a saúde de uma das minhas pacientes, a sra.

Barry Fleming. O senhor mandou um homem, aquele homem —

seus olhos vieram rápidos na minha direção e voltaram para

Wolfe — para atormentá-la. Ela já estava num estado de tensão

e agora talvez entre em colapso. Pode me dar uma justificativa?

— Facilmente — disse Wolfe, com as sobrancelhas

levantadas. — Tanto para a intenção como para o fato, mas o

senhor está reclamando do fato. O estado de tensão da sra.

Fleming é causado, em parte, pelo choque da morte de sua

irmã, mas principalmente pelo medo de que o seu modo de vida

Page 104: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

viesse a público. O sr. Goodwin prestou-lhe um serviço,

mostrando-lhe que isso será inevitável se não se adotar certas

atitudes. Isso deveria induzi-la a reagir, não a ter um colapso, se

ela é...

— Que tipo de atitudes?

— O único tipo que adiantaria alguma coisa. Ela lhe contou

tudo o que o sr. Goodwin lhe disse?

— Seu marido me contou. Que se o homem que pren-

deram, Orrie Cather, for julgado, tudo sobre Isabel será

revelado. Que Cather é inocente, e a única esperança é

conseguir provas suficientes para libertá-lo. Você chama isso

prestar-lhe um serviço?

— Se for válido, sim. É óbvio. Tem alguma dúvida?

— Sim. Acho que foi um truque sujo. Por que diz que

Cather é inocente? Pode prová-lo?

— Não, mas pretendo.

— Não acredito. Creio apenas que está tentando levantar

bastante poeira para que fique difícil condená-lo. Não há motivo

para querer agradar a sra. Fleming, mas se quisesse, poderia.

Bastava persuadir Cather e seu advogado a não deixarem que

certos fatos se tornassem públicos no julgamento. Sei que não o

fará, mas poderia.

— O senhor gostaria que eu fizesse isso?

— Lógico. Para a sra. Fleming isto... poderia lhe salvar a

vida.

— Mas sabe que não o farei?

— Sei.

— Então por que se deu ao trabalho de vir?

— Porque ela me pediu. Ambos pediram. Acham que foi só

um truque, mandá-lo dizer aquelas baboseiras, e eu também

acho. Por que diz que Cather é inocente?

Page 105: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Wolfe apertou os olhos:

— Doutor, devia arrumar melhor as coisas na sua mente.

Conforme o sr. Goodwin explicou à sra. Fleming, é de seu

interesse que Cather esteja inocente, mas o senhor não gosta

disso. Discorda. Será que está menos preocupado com a saúde

de sua paciente do que com a sua? O senhor matou Isabel Kerr?

Gamm arregalou os olhos:

— Ora, seu... — engoliu em seco: — Maldita impertinência

a sua!

— É claro que acha assim. Mas já que presumi que o sr.

Cather não a matou, por motivos que prefiro não declinar,

preciso saber quem foi. O senhor pode ser o culpado, pois as

repetidas propostas que fez a ela foram recusadas. Humilhações

constantes podem se tornar insuportáveis. É tudo uma questão

de caráter e temperamento, e nada conheço do seu; teria de

consultar pessoas que o conhecem bem, por exemplo, o sr. e a

sra. Fleming. Mas posso coletar dados. Onde estava o senhor no

sábado passado, de oito ao meio-dia? Se puder estabelecer...

Parou, pois a sua platéia estava indo embora. O dr. Gamm

não tinha o físico ou o estilo para fazer uma saída emocionante.

Seu andar era como um gingado, mas dirigiu-se à porta e saiu.

Levantei-me devagar e fui pelo corredor, e lá cheguei quando

ele abria a porta da frente. Após ter saído, voltei ao escritório,

levantei os braços para esticá-los, dei um bocejo e disse:

— Mais um eliminado. Ele não teria ido embora, não

ousaria ir, se fosse culpado, até descobrir se você sabia alguma

coisa e o quanto sabia. Pelo menos, tentaria saber.

Os lábios de Wolfe estavam apertados. Ao falar, afrouxou-

os:

— Ou ele é um assassino ou um idiota.

— Então ele é um idiota. Acho...

Page 106: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

O telefone tocou e fui atender. Era Saul, dando notícias

sobre dois nomes. Disse a ele que também descobríramos dois

nomes e desejei que tivesse melhor sorte no dia seguinte.

Nem ele nem nós tivemos melhor sorte. Quinta-feira foi um

dia mais vazio do que quarta, embora eu fizesse força, já que

Wolfe me elogiara. Em parte era porque ele estava

desesperado, mas na quarta à noite disse-me para verificar

pelas redondezas. Era a primeira vez que me mandava fazer

uma coisa que Saul já fizera, e devo admitir que seria muito

satisfatório se eu conseguisse alguma coisa: por exemplo, um

porteiro do outro lado da rua, que vira um estranho entrar no

prédio no sábado de manhã — poderia ser o dr. Gamm, Stella

Fleming, Barry Fleming, Julie Jaquette ou mesmo Avery ou Minna

Ballou. Ou um estranho mesmo, e teria de descobrir quem era.

Diabos!, afinal de contas são só 12 milhões de pessoas na área

metropolitana. Na verdade, foi uma palhaçada da qual ninguém

riu. Não só Saul e Fred já haviam falado com todos, como os

tiras já haviam investigado, tentando descobrir alguém que vira

Orrie Cather nas redondezas. Durante o dia, longo e cansativo,

falei com mais de quarenta pessoas, de todas as idades,

tamanho e cor, e essas pessoas já haviam respondido tantas

vezes às mesmas perguntas que sabiam as respostas de cor. Às

seis e meia achei que já era o suficiente e fui para casa jantar.

Lá, a única coisa que acontecera foi que Parker telefonara para

dizer que vira Orrie de novo, falara com um assistente do

promotor público, que lhe dissera não ser aconselhável começar

a tomar providências para que ele saísse sob fiança.

Assim, ao voltarmos ao escritório após o jantar, depois de

ter bebido o café, Wolfe disse:

— Quatro dias e noites, e nada.

Coloquei a xícara sobre a mesa e respondi:

Page 107: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Concordo.

— Que diabo — disse Wolfe — faça perguntas.

— Se houvesse alguma pergunta boa, você já a teria feito.

Está bem: Jill Hardy. Por que me fez colocar os braços em volta

dela? Porque matara Isabel Kerr e ia confessar, e estava me

adulando, mas Cramer interrompeu?

— Não quero bobagens. Quero uma pergunta.

— Eu também. Stella Fleming. É sujeita a ataques; por

exemplo, quando avançou para cima de mim para me arranhar.

Mas se no sábado de manhã teve um ataque e matou sua irmã,

será que voltaria aquela noite e pediria ao porteiro para deixá-la

entrar a fim de ‘descobrir’ o cadáver? Não acredito nisso. Mil

contra um.

— Isso é negativo. Quero alguma coisa positiva.

— Vamos tentar isto. Barry Fleming. Por que me pediu para

entrar, sabendo como sua mulher se sentia? Porque eu lhe

dissera que iríamos inocentar Orrie, e ele queria descobrir se

sabíamos ou desconfiávamos de que ele matara Isabel. Isso é

positivo.

— Mas nada vale sem um motivo.

— Bem, se quer um motivo, a sra. Ballou. Estava fingindo

ao conversar comigo. Ela é realmente um terror e louca pelo

marido. Está fervendo de ciúme. Só que nesse caso eu sou um

trouxa e terá que me despedir.

— Vou pensar no assunto. E o sr. Ballou?

Abanei a cabeça:

— Agora é a sua vez. Você o interrogou.

— Por enquanto, eu o rejeito. Arrebentar o crânio daquela

mulher com um cinzeiro foi um ato de paixão, que não é próprio

dele. Mais uma coisa: por que queria saber quando Orrie ouviu o

nome dele pela primeira vez? Por que já não é mais importante,

Page 108: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

mas assim mesmo gostaria de saber?

Abanei novamente a cabeça:

— É melhor pularmos isso. Talvez fosse simples curio-

sidade, para ver se coincidia com uma mudança que notara nela

ao lhe ler Kipling, Service e London. Isso não ia lhe interessar.

Concordo que o método não combina com ele. Está bem, agora

a srta. Jackson. Ela também é sua, desejou até que ela passasse

bem.

— Não. Sua.

— Obrigado. Não há nada que não pudesse ou não

quisesse fazer, se estivesse com vontade. Mas não consigo

imaginar uma razão para querer ver Isabel morta. Se houvesse,

ao falar com os amigos comuns, Saul e Fred teriam percebido

alguma coisa. E não perceberam. De qualquer forma, está

eliminada, já que você desejou que ela passasse bem. Por isso

só nos resta o dr. Gamm.

— Bolas.

— Concordo. Não temos nada. No domingo à noite você

disse que nunca tivemos tão pouco, e a situação não mudou.

Não acontece nada em lugar algum. Estive pensando, durante o

jantar, quando você comentava o que pretendem fazer com a

ilha Ellis, que talvez você devesse fazer um acordo com Cramer.

Falo sério. Seus cientistas não deixaram uma polegada daquele

apartamento sem examinar e há uma chance de, quem quer

que seja que a assassinou, ter deixado lá suas impressões

digitais, uma pelo menos. Descobriram Orrie tão depressa que

talvez tenham outras possibilidades guardadas. Ofereça a Cra-

mer trocar os dados que possuímos pelas impressões que eles

têm. Com sua palavra de honra, que ele sabe que você cumpre.

Não enterraria Orrie mais ainda e talvez nos desse uma pista.

Do jeito que estão as coisas, não há nada para fazer amanhã.

Page 109: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Wolfe levantou o queixo:

— Não.

— Não o quê? Você prefere...

A campainha tocou. Fui lá, dei uma olhada, coloquei a

cabeça dentro do escritório e disse:

— É o sr. Ballou. Não parece muito alegre.

Page 110: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO X

SE, DE ALGUM MODO, Avery Ballou perdesse todo seu dinheiro,

fosse expulso de seu emprego de presidente da Federal Holding

Corporation, mesmo assim não passaria fome. Nunca tinha visto

um embrulho mais bem-feito e bem amarrado do que o que ele

pusera na mesa de Wolfe antes de se sentar. Qualquer setor de

despacho de mercadorias o teria contratado na hora. Presumo

que ele mesmo tenha feito o embrulho por causa do seu

conteúdo, mas admito que o banco também poderia tê-lo feito.

Suas rugas estavam cada vez mais profundas e sua aparência

era tão cansada como sua mulher dizia se sentir. Sentou-se,

abaixou a cabeça e esfregou a palma da mão na testa, devagar,

de trás para frente. Na terça-feira, após fazer isso, pedira uma

bebida, mas agora, aparentemente, isso já não bastava.

Levantou a cabeça, endireitou os ombros, olhou para Wolfe e

disse:

— O senhor falou que eu não podia contratá-lo nem pagá-

lo.

— E eu lhe disse o motivo — respondeu Wolfe.

— Eu sei. Mas a situação é... quero que o senhor re-

considere a sua decisão. — Virou-se para mim: — O senhor disse

que poderia descobrir quando aquele homem, Cather, soube o

meu nome. Conseguiu?

Abanei a cabeça:

— O senhor disse que já não era importante.

Page 111: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— O senhor também disse que poderia ter sido há mais de

quatro meses.

— Certo. Ou oito meses, ou dez.

— Quatro é o suficiente. — Voltou-se novamente para

Wolfe. — Sei que o senhor tem uma larga experiência, mas

talvez não perceba a necessidade de uma boa reputação para

um homem na minha posição. Byron disse: “A glória e o nada de

um nome”, mas ele era um poeta. Um poeta pode tomar

liberdades, que seriam fatais para um homem como eu. Como

lhe disse, tomava grandes precauções ao visitar a srta. Kerr.

Ninguém que me visse entrar ou sair daquele prédio poderia ter-

me reconhecido. Confiava inteiramente em sua discrição;

financeiramente, fui mais do que liberal com ela. Tinha certeza

absoluta de que ninguém, ninguém mesmo, sabia do meu...

passatempo.

Parou, creio que esperando comentários. Wolfe fez-lhe a

vontade:

— O senhor deveria saber que os únicos segredos em

segurança são os que o senhor mesmo já esqueceu.

Ele acenou com a cabeça:

— Suspeito agora de que há muitas coisas que deveria

saber e não sei. Não devia ter confiado tanto na srta. Kerr. Fui

um tolo. Deveria saber que ela poderia... arranjar uma

companhia. Acho que foi isso o que aconteceu com Cather, não?

Ela se apaixonou por ele?

Wolfe virou-se para mim:

— Archie?

— Morria de amores — contei para Ballou. — Queria se

casar com ele.

— Entendo. Fui um tolo. Mas isso explica por que ela lhe

disse o meu nome, e isso é importante. Ela era discreta, mas é

Page 112: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

claro que com ele não precisava. Não é assim?

Queria uma resposta, e Wolfe a deu:

— Sim.

— Ele sabia meu nome, e mais ninguém. Então é um patife

e um chantagista. Há quatro meses venho lhe pagando mil

dólares por mês. É quase certo de que também é um assassino.

Ele a matou. Não sei por que o fez, mas é um canalha.

Os olhos de Wolfe encontraram-se com os meus. Levantei

uma sobrancelha. Seus olhos voltaram-se para Ballou:

— Por que diabos você não me disse isso antes? Há dois

dias?

— Não percebi naquele dia. Só agora, depois de considerar

a situação. O senhor havia me dado um grande susto. E disse

que Cather não a matara. Acho que matou. Ele é um patife.

Creio que será julgado e condenado, e é por isso que estou aqui.

Da outra vez, o senhor disse que, se ele fosse julgado, meu

nome seria inevitavelmente trazido a público, e isso não pode

acontecer. Meu nome ligado não só a uma moça, mas a um

assassinato que provoca sensacionalismo... Isto não deve

acontecer. — Apontou para o pacote sobre a escrivaninha de

Wolfe. — Aquele pacote contém cinqüenta mil dólares em notas

de cinqüenta. O senhor disse que já foi contratado, mas não

precisa ficar preso a um chantagista e assassino.

Parou para dar uma inspiração profunda:

— Esses cinqüenta mil dólares são apenas um sinal. Estou

numa situação pior do que imaginava, e tenho de sair dela, o

preço não importa. Admito que não sei como isso poderá ser

feito, mas o senhor conhece Cather e saberá como lidar com

ele. Não estou pedindo nem esperando que faça nada ilegal. Se

existem provas para julgá-lo e condená-lo, muito bem, a lei é

assim. Mas meu nome não deve aparecer. O senhor disse que,

Page 113: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

se ninguém me procurou, meu nome não está naquele diário e

também é evidente que Cather não mencionou meu nome à

Polícia. Não é verdade?

— Sim. — Wolfe beliscava o lábio com o polegar e o

indicador. — O senhor está indo depressa demais, sr. Ballou.

Concordo que não deva ficar comprometido com um chantagista

e assassino, mas será que estou? Preciso saber mais coisas.

Descreva o homem a quem tem dado dinheiro.

— Nunca o vi. Mando o dinheiro pelo correio.

— Quando pediu o dinheiro, e como?

— Pelo telefone. Em setembro, uma noite, quando eu

estava em casa, disseram-me que um homem, que dizia se

chamar Robert Service Kipling, estava ao telefone e desejava

falar comigo. É claro que fui atender. Disse-me que não

precisava explicar por que usava esse nome e mandou-me ir a

uma farmácia perto de casa e aguardar um telefonema. Sabe

porque eu fui. Às dez horas, o telefone da cabine tocou e eu

atendi. Era a mesma voz. Não preciso lhe dizer o que falou.

Disse-me o bastante para me convencer de que sabia de minhas

visitas àquele apartamento e sua finalidade. Disse que não

queria interferir, mas achava que deveria lhe demonstrar o

quanto eu lhe era grato por sua consideração. Ordenou-me que

lhe mandasse pelo correio dez notas de cem dólares no dia se-

guinte, e enviasse a mesma quantia no dia quinze de cada mês.

Disse que faria isso.

Esfregou a testa com a palma da mão:

— Sei que é errado, em princípio, submeter-se a chan-

tagem. Mas a ameaça não era contar tudo, não disse que tinha

provas em seu poder, apenas deixou bem claro que deveria lhe

pagar ou parar de ir lá. Não respondeu às minhas perguntas,

como descobrira meu nome, mas era óbvio que não tinha

Page 114: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

apenas me visto e reconhecido, por causa das coisas que

contou. Bastava o que disse: seu nome era Robert Service

Kipling. Coloquei o dinheiro no correio no dia seguinte, e desde

então faço isso a cada mês. Preferi pagar a abandonar tudo.

Agora, sei. Não há dúvida de que era Cather. A srta. Kerr contou

tudo a ele.

— É uma suposição bem razoável — Wolfe concordou —

porém nada mais. Qual o nome e endereço?

— Obviamente era falso. O endereço era Caixa Postal,

Estação Grand Central, na esquina da avenida Lexington com a

rua 45. O nome era Milton Thales.

— Thales? T,H,A,L,E,S?

— Sim.

— É mesmo. Interessante. — Wolfe fechou os olhos por um

instante e depois os abriu. — Não fez nada para descobrir quem

era ele?

— Não. Para quê? De que adiantaria?

— Se fosse o sr. Cather, talvez tivesse evitado isso. Falou

alguma coisa à srta. Kerr?

— Sim. Perguntei se contara a alguém, a qualquer pessoa,

o meu nome, e ela disse que não. Mentiu. Ficou muito... bem,

ficou indignada. Fiquei surpreso com sua reação. Não parecia

ser...

Parou, apertou os lábios e franziu a testa, depois acenou

com a cabeça:

— Compreendo. É claro. Eu disse que não sabia por que ele

a matara, mas é óbvio. Ela sabia que devia ser Cather, contou a

ele, disse-lhe que devia parar com isso, e ele a matou. Meu

Deus, se eu soubesse... maldito seja. Maldito!

Estava mais emocionado do que pensei que pudesse ficar,

e ia lhe oferecer uma bebida, quando Wolfe falou:

Page 115: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Uma coisa: a voz no telefone? Tem certeza de que era

um homem?

— Bem. Ele disfarçava, uma voz em falsete, mas não tenho

dúvidas de que era um homem.

— Ele se comunicou outra vez com o senhor? Telefonou?

— Uma vez. No dia 17 de dezembro. O mesmo nome,

Robert Service Kipling. Telefonou para a minha casa. Disse que

pensou que eu gostaria de saber que o material estava sendo

bem recebido, e foi só isso.

Wolfe recostou-se, fechou os olhos, entrelaçou os dedos

sobre a barriga e começou a mexer os lábios para dentro e para

fora. Ballou começou a falar, e eu fiz sinal para que parasse,

mas realmente não tinha importância. Quando os lábios de

Wolfe começam a se mexer assim, para dentro e para fora, ele

se abstrai completamente e não ouve mais nada. Ballou abaixou

a cabeça e fechou os olhos. Foi como se eu estivesse sozinho

durante três minutos. Finalmente Wolfe abriu os olhos e

perguntou-me se podia chamar Saul e Fred, e respondi que sim,

mas não sabia quando. Disse:

— Telefone da cozinha. Mande que venham imediatamente

— e eu fui.

Não preciso usar a massa cinzenta para dar uns telefo-

nemas chamando uns caras — tive de tentar três números até

achar Saul — e, assim, a minha mente trabalhava em outras

coisas. Não imaginava Orrie como um chantagista; isto era tão

absurdo que nem valia a pena pensar. O problema era por que

Thales seria um nome interessante para um chantagista? Wolfe

falara sério; não era o tom de voz que usa quando está fingindo.

Se ele achava interessante, eu também deveria achar, já que sei

tudo o que ele sabe. Eu daria uma nota novinha de um dólar

para saber quantas pessoas que lêem esta história descobrirão.

Page 116: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Eu nada havia descoberto, quando voltei ao escritório, embora

ainda tentasse durante uns cinco minutos, depois que falei com

Saul.

Dei dois passos para dentro do escritório e parei. A pol-

trona vermelha estava vazia. Perguntei:

— Pôs ele para fora?

Fez que não com a cabeça:

— Está na sala da frente. Deitado. É claro que Saul e Fred

não devem vê-lo. Conseguiu falar com eles?

— Já estão a caminho. — Fui até a minha escrivaninha: — É

pena que Orrie tenha se rebaixado a praticar chantagem, mas

com as despesas do anel de casamento, mobília, licença... as

despesas crescem.

— Tolice.

— Você pode dizer isso, com cinqüenta mil na sua frente.

Por que é interessante ele ter escolhido Thales como nome?

— Você está pronunciando errado. O sr. Ballou também

está.

— Não é Thales?

— Claro que não. É Ta-les.

— Oh, por isso é interessante.

— O Milton também é interessante. Tales de Mileto, do VI e

VII séculos antes de Cristo, era o mais importante dos sete

‘homens sábios’ da Grécia antiga. É de três séculos antes de

Euclides. Foi o fundador da geometria de linhas. Foi a pessoa

que fez a primeira previsão de um eclipse solar, no dia certo. Foi

o primeiro grande nome na história da matemática. Tales de

Mileto.

— Macacos me mordam. — Sentei-me e examinei o que

dissera. — Macacos me mordam. Foi coragem. Ballou foi à

faculdade. Podia ser que gostasse de matemática. Podia saber

Page 117: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

tudo sobre Tales de Mileto.

— Mas ele sabia que o cunhado da srta. Kerr era professor

de matemática?

— Provavelmente não. Quem esperaria que um maldito

chantagista tivesse senso de humor? Já contou a Ballou?

— Não. Isso pode esperar. Queria cerveja.

— E eu leite. — Levantei-me. — Agora, sim, temos com que

trabalhar.

Fui até a cozinha. Fritz estava lá embaixo, no seu quarto,

mas não precisei dele. Enquanto punha o leite no copo, a

cerveja e o copo na bandeja e levava para o escritório, só

pensava nesse novo mistério, relembrando aquela tarde de

segunda-feira, como Barry Fleming agira, sua aparência e o que

dissera. Depois de tomar uns dois goles de leite, lembrei-me de

que tínhamos um convidado e fui à sala da frente perguntar se

desejava beber alguma coisa. Estava estirado no sofá, o braço

sobre os olhos. Não queria nada. Neste curto espaço de tempo,

Wolfe fora apanhar um livro na estante, um volume da

Enciclopédia Britânica, e estava com ele aberto. Ao apanhar

meu copo, disse:

— Tales aperfeiçoou a teoria do triângulo escaleno e a

teoria das linhas. Descobriu o teorema que os lados de um

triângulo, de ângulos iguais, são proporcionais. Descobriu que,

quando duas linhas retas se cruzam, os ângulos verticais

opostos são iguais e que o círculo é dividido pelo seu diâmetro.

— Puxa! — eu disse.

Fred chegou quase às onze horas. Levei-o para a cozinha,

pois Wolfe ainda consultava a enciclopédia, embora talvez já

não se ocupasse com Tales há muito tempo. Quando Saul

chegou, mandei-o ficar na cozinha com Fred, e disse a Wolfe

que nos comunicasse quando estivesse pronto para nos receber.

Page 118: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Ele me olhou zangado, pois estava no meio de um artigo

interessante. Eu sei que era interessante porque não há uma

única página, em todos os vinte e quatro volumes, que ele não

ache interessante. Fui à cozinha e trouxe os dois; Saul sentou-se

na poltrona vermelha e Fred numa das amarelas.

Que eu saiba, foi o encontro mais curto que já houve com

os seus ajudantes. Wolfe começou:

— Peço desculpas por chamá-los tão tarde numa noite de

inverno, mas preciso de vocês. O homem que pagava o

apartamento da srta. Kerr, vamos chamá-lo de X, está na sala

da frente. Veio me dizer uma coisa que deveria ter dito há dois

dias. Em setembro, um homem telefonou para ele, exigindo

dinheiro. O homem sabia de suas visitas ao apartamento e

ameaçou torná-las impraticáveis, caso não pagasse por isso: mil

dólares na hora e mil dólares por mês, em dinheiro, a ser

remetido pelo correio para uma caixa postal, sob um nome

fictício, é claro. O dinheiro foi enviado, um total de cinco mil

dólares. X está convencido, e considera suas razões válidas, de

que o chantagista é Orrie Cather. No domingo à noite pedi que

me dessem suas opiniões sobre se Orrie matara a srta. Kerr.

Agora pergunto se acham que ele é um chantagista. Foi ele

quem fez a chantagem contra X? Fred?

Fred, concentrado, tinha a testa franzida:

— Foi como o senhor disse? Chantagem pura e simples?

— Sim.

Fred abanou a cabeça:

— Não, senhor, impossível.

— Saul?

— Para ter certeza de que entendi bem — disse Saul — isto

foi na época que Orrie ainda a visitava?

— Sim.

Page 119: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Então a resposta é não. Como Fred disse, impossível. Só

um perfeito canalha faria isso.

— Isso é satisfatório — respondeu Wolfe. — Archie e eu já

chegamos a uma conclusão e sei, quase com certeza absoluta,

quem é o chantagista, mas queria primeiro ouvir a opinião de

vocês. Mas não foi só por isso que os chamei; preciso dar umas

instruções para amanhã. Archie, eles podem esperar no seu

quarto?

Para não se arriscar, não queria que esperassem na co-

zinha. E se um tigre faminto entrasse pela janela da cozinha e

eles fugissem corredor afora e encontrassem Ballou? Disse que

seriam bem-vindos ao meu quarto, para esperar, contanto que

não mexessem em nada, e se dirigiram à escada. Wolfe esperou

dois minutos, para dar tempo de subirem os dois andares, e

então disse para trazer Ballou. Ainda estava no sofá, mas, ao me

ver entrar, sentou-se e começou a falar. Eu lhe disse que

contasse tudo a Wolfe, e ele se levantou, indo para o escritório.

Ao cruzar o portal, juro que seu primeiro olhar foi para o pacote

na mesa de Wolfe. Mesmo quando se está desesperado, um

hábito é sempre um hábito.

Ao sentar-se, começou a dizer:

— Estive pensando no assunto. Respondi a todas as

perguntas e lhe fiz uma proposta liberal, mais do que liberal. Ou

aceita ou não. Da outra vez o senhor disse que Cather não é um

assassino. Não tente me dizer agora que não é um chantagista.

— Está antecipando o que vou dizer — falou Wolfe. — O sr.

Cather não é um chantagista.

Ballou fitou-o, espantado:

— O senhor realmente... depois do que eu... — Levantou-se

e apanhou o pacote: — Por Deus, o senhor realmente está do

lado dele.

Page 120: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Estou, mesmo. Posso lhe dizer o nome do chantagista.

Sente-se.

— Eu já lhe dei o nome.

— Não. O senhor só conhece seu noms de guerre, Robert

Service Kipling e Milton Thales. Seu verdadeiro nome é Barry

Fleming. O marido da irmã da srta. Kerr.

— Isso é absurdo. Até uma hora atrás o senhor nem sabia

que eu fora chantageado.

Wolfe teria de inclinar a cabeça para trás para focalizar seu

rosto; mas como não gosta de fazer isso, não focalizava nada.

— Para um homem de negócios, o senhor é extremamente

obtuso. Está numa enrascada, e eu sou sua única esperança.

Precisa de ajuda, e não pode ir a um advogado ou a qualquer

pessoa, sem divulgar a sua ligação com a srta. Kerr e um

assassinato. Mas o senhor fala e age como se a situação

estivesse sob seu controle. Levanta-se repentinamente e

apanha o pacote de dinheiro. Tolice. Provavelmente nada mais

tem a me dizer. Ou senta e ouve ou vai embora.

Temos de reconhecer que o presidente da Federal Holding

Corporation tinha orgulho e coragem. Se pusesse o pacote de

volta na mesa de Wolfe, estaria obedecendo a uma ordem, por

isso não o fez. Colocou-o na mesinha ao lado da poltrona e foi ali

que o deixou ao sentar-se, já controlado.

— Estou ouvindo — disse.

— Assim está melhor — disse Wolfe. — Primeiro, o sr.

Cather, Podemos conhecer um homem bem e isso não exclui o

fato de que talvez seja um assassino, mas não um chantagista.

Assassinato pode ser repentino, mas não chantagem. Quatro de

nós, que conhecemos Bem o sr. Cather há anos... os dois

homens que mandei buscar, o sr. Goodwin e eu... concordamos

que quem o chantageou não pode ser o sr. Cather. Agora,

Page 121: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

quanto ao chantagista. Este nome, Milton Thales... pronunciou-o

assim e quase todos os americanos o fariam. Mas se eu pronun-

ciar Ta-les, isso aviva a sua memória?

— E deveria?

— Sim.

Ele estava com a testa franzida:

— Ta-les... ora, é mesmo. Um grego antigo... eclipse do

sol... geometria...

Wolfe acenou com a cabeça:

— Isso basta. Um nome famoso na história da matemática.

Tales de Mileto. Milton Thales. Barry Fleming, cunhado da srta.

Kerr, ensina matemática no ginásio. A srta. Kerr disse seu nome

para a irmã, e ela contou para o marido. Por isso sei o nome do

chantagista.

— Ta-les — disse Ballou. — Tales. Mileto. Milton. Por Deus,

acho que acertou. E Isabel... a srta. Kerr me afirmou que não

dissera meu nome a ninguém. Ela mentiu. Quantos mais

saberão!

— Provavelmente mais ninguém. Essas duas pessoas eram

especiais para ela. Acredito que só cinco pessoas sabem de sua

ligação com a srta. Kerr: o sr. Cather, o sr. e a sra. Fleming, o sr.

Goodwin e eu. E só três pessoas sabem que houve chantagem,

além do chantagista: o sr. Goodwin, o senhor e eu. Os dois

homens que estão lá em cima, onde nada podem ouvir, sabem

sobre a chantagem, mas não seu nome. Chamo a sua atenção

para um detalhe. Meu objetivo é soltar o sr. Cather antes que o

acusem de homicídio. É provável que pudesse conseguir isso

simplesmente contando à polícia que o sr. Fleming estava

fazendo chantagem. Pelo menos atrairia a atenção deles para

outro lado, mas não pretendo ou desejo fazer isso. Devo-lhe

alguma consideração, já que foi por seu intermédio que soube

Page 122: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

da chantagem. Devo-lhe muito.

Ballou esticou a mão e bateu no pacote:

— E há isto, também.

— É seu. Não o aceitei. Nem aceitarei, até concluir, com

certeza, que não matou aquela mulher. Um chantagista não é

ipso facto um assassino. Devo-lhe muito, pois gastamos quatro

dias inúteis tentando encontrar alguém com um motivo

plausível e falhamos. O motivo que sugeriu para o sr. Cather

serve admiravelmente ao sr. Fleming. Agora uma pergunta:

após o primeiro telefonema do chantagista, quanto tempo

depois o senhor contou à srta. Kerr?

— Imediatamente. Um ou dois dias depois.

— Falaram nisso mais alguma vez? Ela ou o senhor?

— Sim. Ela me perguntou duas ou três vezes se ainda

continuava. Contei-lhe sobre o telefonema em dezembro. A

última vez que me perguntou foi em janeiro. Em meados de

janeiro.

Wolfe concordou:

— Ela sabia que deveria ser seu cunhado e disse-lhe que

parasse com isso, e ele...

— Melhor ainda — interrompi. — Ela ia denunciá-lo. Contar

à irmã. Talvez achasse melhor parar do que matá-la, mas

preferia matá-la a deixar que sua esposa soubesse. Talvez não

seja ipso facto um assassino, mas ipso Archie Goodwin ele é.

— O sr. Goodwin se precipita, algumas vezes — disse

Wolfe a Ballou. — Já viu e conversou com o sr. e a sra. Fleming,

durante bastante tempo. — Apontou para o pacote. — Esse

dinheiro. Se eu o merecer, quero recebê-lo, mas não pode me

contratar agora. Meu propósito é inocentar o sr. Cather; o seu é

evitar que seu nome se torne público. Se conseguir servir aos

seus propósitos, sem prejudicar os meus, é o que farei. Quando

Page 123: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

for embora, leve o pacote; aqui, no meu cofre, poderia afetar os

meus processos mentais. Há...

— O que vai fazer? — perguntou Ballou, de novo arrogante.

— Não sei. O sr. Goodwin, sr. Durkin, sr. Panzer e eu vamos

fazer uma reunião agora. — Olhou o relógio: — Já é quase meia-

noite. Se não quer que mais dois homens saibam do seu

segredo, vá embora.

Page 124: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO XI

NA SEXTA À TARDE, à uma hora, eu estava sentado numa cadeira

num quarto de hotel, junto a uma atraente jovem, na cama.

Na reunião de quinta à noite, que durara mais de duas

horas, foram discutidos vários procedimentos. Dois deles —

conseguir um retrato de Ballou para mostrá-lo aos empregados

do Correio Geral e descobrir se vinha gastando mais dinheiro do

que deveria — foram descartados logo de saída, pois só

confirmariam a chantagem, e isso já era considerado como

certo.

Um ponto óbvio era descobrir onde estivera sábado de

manhã, mas não estávamos prontos para isso. Se não tivesse

álibi, seria fácil. Se tivesse, deveríamos esperar para destruí-lo,

assim que soubéssemos de alguma coisa que o incriminasse.

Teríamos de arranjar três retratos dele, de alguma forma, um

para Saul, um para Fred e outro para mim, e percorrer

novamente a vizinhança, a fim de descobrir se alguém o vira no

sábado de manhã. É claro que os tiras vinham fazendo isso há

quatro dias com retratos de Orrie. Fred concordava e Saul

estava disposto a tentar, mas Wolfe vetou a idéia. Disse que

estava cansado de banalidades.

Daríamos tudo a Cramer. Saul sugeriu, e creio que tinha

razão. Podíamos dizer tudo, exceto o nome de Ballou. Não nos

prejudicaria, não iria impedir nosso trabalho e daria a Cramer

Page 125: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

alguma coisa para pensar, e na qual trabalhar, além de Orrie

Cather. Se no meio das impressões que estavam no

apartamento houvesse algumas de Fleming, ou uma que fosse,

o caso iria para frente. Wolfe não concordou. Argumentou que

seríamos uns ineptos se chamássemos a polícia para investigar

Fleming antes de nós; no mínimo, arrancariam o nome de X de

Fleming ou da esposa, e isso nós não déramos nem a Saul e a

Fred. Os cinqüenta mil não estavam no cofre, para não afetar os

seus processos mentais, mas ele sabia muito bem onde

estavam.

Eu fiz a sugestão que lhe deu uma idéia brilhante. A

sugestão nada tinha de brilhante; simplesmente traria os

Fleming ao escritório para conversar com Wolfe. Como era do

nosso conhecimento, muitas pessoas contavam mais do que

pretendiam ao conversar com Wolfe; por isso, por que não dar

uma oportunidade a eles? Saul e Fred ficariam escutando no

buraco na sala da frente, e depois teríamos outra reunião. O

único que os tinha visto era eu. Saul e Fred acharam ótima a

idéia, mas Wolfe continuou sentado, Olhando-me aborrecido, o

que era natural, pois teria outra reunião com uma mulher. Ele

continuou sentado e aborrecido, e nós ficamos sentados,

olhando-o. Após cerca de meio minuto, falou:

— Seu livro de notas.

Girei a cadeira, apanhei-o e uma caneta.

— Uma carta. Papel timbrado comum. Para o sr. Milton

Thales, aos cuidados do sr. Barry Fleming, e o endereço. Caro sr.

Thales. É um truísmo que as pessoas dotadas de um aumento

repentino de rendimentos frequentemente gastam tudo, vírgula,

ou quase tudo, vírgula, em coisas que anteriormente não

podiam adquirir. Ponto parágrafo. É possível que o senhor seja

um admirador de orquídeas, vírgula, e que gostasse de comprar

Page 126: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

alguns pés de orquídea com uma parte dos cinco mil dólares de

renda extra que recebeu durante os últimos quatro meses.

Ponto. Se este for o caso, vírgula, terei prazer em lhe mostrar a

minha coleção, vírgula, caso telefone marcando um encontro.

Sinceramente seu.

Joguei o caderno na mesa.

— Maravilhoso, isso fará com que ele venha e ela não.

Talvez. Se for para o endereço de sua residência e ela estiver lá

quando for entregue e ele não, pode ser que venha ela, mas não

ele. De acordo com as estatísticas, 74 por cento das esposas

abrem as cartas, com ou sem o auxílio de uma chaleira. Por que

não mandá-la para a escola?

— São duas horas da madrugada de sexta — disse Saul. —

Ele só a receberia na segunda.

Wolfe resmungou. Eu disse:

— Diabo!

— A idéia é ótima — falou Saul. — Ele vai começar a suar

antes de vir para cá, e isso já ajuda, e terá de vir. Mesmo que

não a tivesse matado, teria de vir. Mas posso sugerir uma

correção?

— Sim.

— A carta poderia ser mais ou menos assim... está com o

caderno, Archie? Caro sr. Thales. Como sabe, vírgula, eu era a

amiga mais íntima de Isabel, vírgula, e contávamos muita coisa

uma à outra. Uma das coisas que ela me contou foi como o

senhor conseguiu aqueles cinco mil dólares e como ela se sentia

quanto a isso. Não revelei a mais ninguém porque ela me disse

em confiança... não, mude isso. Mude ‘porque ela me disse em

confiança’ para ‘porque lhe prometi não dizer a ninguém’.

Depois: talvez o senhor deseje demonstrar a sua gratidão

dando-me parte dos cinco mil, vírgula, pelo menos a metade.

Page 127: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Espero que os traga até domingo à tarde. Trabalho à noite. Meu

endereço está na parte superior e o meu telefone é... Seria

assinada por Julie Jaquette. Creio que deveria ser manuscrita;

duvido que use uma máquina de escrever.

Fred disse:

— Aí ele a mata e nós o agarramos.

Saul concordou:

— Matará se nós deixarmos, e se matou Isabel Kerr. Se já

estiver acostumado. — Para Wolfe: — Creio que seria mais

rápido do que se viesse do senhor. Eu sou um rato, não iria

conseguir que ela a escrevesse, mas Archie pode.

— Claro — falei. — Direi a ela que lhe mandarei orquídeas

no seu enterro. — Olhei para Wolfe: — Você disse que gostaria

que ela passasse bem.

— Então você vai levantar dificuldades — disse Wolfe.

— Não, senhor. Gosto da idéia. Estou apenas dizendo que

não vai ser fácil convencê-la; se concordar, não podemos perdê-

la de vista por um segundo. E se não concordar? Ela mesma

disse que ninguém a induz a nada.

— Mas você gosta da idéia?

— Sim. Se não der certo, colocaremos a culpa em Saul.

— Culpar alguém é tolice. O conteúdo da carta é im-

portante. Leia.

Foi por isso que, na sexta à tarde, uma hora, estava

sentado numa confortável poltrona, num quarto do 9.° andar do

Hotel Maidstone, Parque Central Oeste, na quadra dos Setenta.

Julie Jaquette não estava estirada na cama; encostada em três

travesseiros, bebia sua terceira xícara de café; já comera

torradas, ovos com bacon, pão doce com geléia de morango,

enquanto eu lhe explicava o negócio da chantagem, inclusive

Ta-les de Mileto, mas sem falar no nome de Ballou. Era um

Page 128: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

quarto grande e agradável; ainda mais agradável pelo vaso com

um ramo de Vanda rogersi que eu lhe trouxera, colocado sobre

uma mesa. Colocara uma das flores na frente do decote em V da

roupa que usava, uma coisa azul-claro com mangas e sem

babados. Dissera que de manhã, na cama, ela era feia, mas na

verdade não era nada má. Olhos brilhantes, cara limpa e um

tipo de robustez misturado com dureza.

— Pobre Isabel — disse ela. — Isso é que é falta de sorte,

um chantagista como cunhado e um assassino como namorado.

Meu Deus.

— E um burro como amigo.

— Ela só tinha uma única amiga. Eu.

— Certo. Só a chamei de burra, profissionalmente. Se

falasse em termos pessoais, chamaria de gatinha, coelhinha ou

cordeirinha. Faça...

— Você se dá conta que isto é uma cama? Que eu podia

esticar meu braço e o agarrar?

— Sim, vigio cada movimento que faz. Chamei-a de burra

profissionalmente porque, no minuto em que ouviu que sua

amiga Isabel fora assassinada, você decidiu que o culpado era

Orrie Cather e não se afasta dessa idéia, nem mesmo quando o

terceiro detetive mais esperto de Nova Iorque lhe dá uma

vantagem de dez a um. Seria...

— E quem são os dois mais espertos?

— Nero Wolfe e eu, mas não diga que fui eu quem contou.

Levaria uma hora para explicar por que nós três inocentamos

Orrie, e mesmo assim talvez você não mudasse de idéia. Mas

agora acho que sabemos quem a matou. O chantagista. Barry

Fleming. O marido da irmã dela.

Ela pôs a xícara na bandeja.

— É, você tem suas razões.

Page 129: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Se quer dizer provas, não. Mas se há outro bom

candidato, não pudemos encontrá-lo ou encontrá-la, e tentamos

muito. Barry Fleming é perfeito. É óbvio que Isabel contou a

Stella quem lhe pagava as contas... X, para você... e Stella

contou a Barry, já que ele não poderia fazer a chantagem se

não...

— Talvez eu seja burra, mas sei contar até dois e posso

dizer o alfabeto de trás para frente.

— Um burro poderia dizer de trás para frente. Quando X

contou para Isabel que estavam fazendo chantagem, ela viu que

deveria ser Barry. Tentou fazer com que parasse, mas ele não

parou. Finalmente, disse que iria contar a Stella; provavelmente

já ameaçara antes. Isso foi no sábado pela manhã. Disse-lhe que

finalmente decidira contar a Stella, quando a visse naquela

noite, e ele a matou. Conte até dois.

— Não me canse. — Empurrou a mesa, o vaso balançou e

eu pulei para salvá-lo. Ela escorregou na cama, jogou um dos

travesseiros ao chão e colocou a cabeça nos outros dois.

— Você é esperto, e também tem agilidade — disse ela. —

Entraria facilmente no teatro como bailarino. Deixe seu nome

com a moça na entrada. Contou isso tudo aos tiras?

— Não.

— E por que não?

Achei que não havia necessidade de lhe falar sobre os

cinqüenta mil dólares:

— Porque gostam de culpar Orrie, ele está preso e não

temos provas. Nem uma só. A razão de estar lhe dizendo isto é

que pensamos que você estivesse disposta a ajudar. Você

realmente quer que o assassino vá para a cadeia, não quer?

— É claro.

— Então, pode ajudar. Você escreveria uma carta para

Page 130: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Fleming, chamando-o de Thales, dizendo que quer os cinco mil

dólares tirados de X, ou pelo menos a maior parte. Diga que

Isabel lhe contou tudo, talvez até insinue que você presume que

ele a matou e sabe o motivo. É claro que ele teria de vê-la e, se

matou Isabel, deveria matá-la, e para nós seria fácil conseguir

provas disso. E então o pegaríamos. Final feliz.

Ela riu e a risada era tão gostosa que me contagiou e ri

também. Quando parou, disse:

— Você não é casado, é?

Abanei a cabeça:

— Não.

— Nunca?

— Não. Já pedi umas mil em casamento.

— Aposto que sim. Fui casada uma vez, e que ano passei!

Sabe o que vou fazer quando sair?

— Não.

— Vou ficar de pé na janela e olhar para fora e pensar que

é uma pena que isso não vá funcionar. De qualquer forma, se

vou ser assassinada, tudo o que você iria conseguir seria uma

viagem ao cemitério. Esta carta... exatamente o que quer que

eu diga?

Fiz um gesto com a mão:

— Esqueça disso. Uma piada é para se dar risadas, e eu já

ri.

— Bolas. — Apontou-me o dedo. — Ouça.

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA. Você veio para me

convencer. Não estrague tudo com uma piada boba. Dou dez

contra um, vinte contra um, que você e Nero Wolfe já a

escreveram e está com ela no bolso. Vamos vê-la.

Ela teria me apanhado, se não tivesse tido o trabalho de

decorá-la. Eu disse:

Page 131: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Graças a Deus, você decidiu não casar comigo. Ficaria

exausto só para conseguir me manter ao seu lado. Muito bem,

nós conversamos sobre o conteúdo da carta. Mas se você a

escrever e eu a colocar no correio, a partir do momento em que

ele a receber você se torna uma presa fácil. Amanhã é sábado.

Se escrevê-la agora e eu a colocar no correio, ele irá recebê-la

amanhã de manhã. Pode ser que se mexa rápido e tente

qualquer coisa. Às dez horas, amanhã de manhã, estarei aqui

fora, no corredor, e Saul Panzer, o rato, estará lá embaixo na

recepção. Quando você sair, sairemos com você, e ficaremos ao

seu lado; e você não vai tentar nada só para mostrar para que

servem os homens ou não servem. Estaremos lá no Ten Little

Indians, assim como Fred Durkin, e um de nós passará a noite

aqui, no corredor. E continuaremos assim até que aconteça

alguma coisa.

— Isso é loucura. Como poderia acontecer alguma coisa

com esses homens todos, esses heróis, aqui?

— Deixe isso conosco. Não podemos tomar conta dos

detalhes até que ele reaja. Você está disposta a tentar?

— Claro. Do modo que me convenceu, terei que tentar. De

qualquer forma, quero tentar... Nunca ninguém tentou me matar

e isso fará com que me sinta importante. Toda a minha vida quis

me sentir importante.

— E todo mundo também quer. Mas vamos deixar claro

uma coisa: você deve aceitar suges... deve obedecer ordens. Vai

fazer exatamente o que mandarmos. Quer jurar na Bíblia?

— Não, alguns dos caras lá são terríveis, e as mulheres

também. Um aperto de mão é o suficiente. Apertemos a mão. —

Estendeu a mão.

Era um contato puramente profissional, mas na verdade

tinha mãos atraentes, e eu lhe disse isso.

Page 132: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Antes de começarmos a escrever a carta — eu disse —

devo mencionar a possibilidade de Stella abri-la e lê-la. A

situação, assim, seria totalmente diferente, mas talvez seja até

melhor. De qualquer modo, amanhã é sábado e ele

provavelmente estará em casa. Agora, quanto à carta:

pensamos em endereçá-la a Milton Thales, aos cuidados de

Barry Fleming, mas isso seria só uma jogada. O sr. Wolfe gosta

de jogadas. Como você o chamaria, Barry ou sr. Fleming?

— Como nunca o vi, sr. Fleming.

— Certo. Em papel timbrado do hotel. Caro sr. Fleming.

Como sabe, eu era a melhor amiga de Isabel, e contávamos

tudo uma à outra. Ela me falou sobre Milton Thales, como o

senhor conseguiu aqueles cinco mil dólares e como ela se sentia

quanto a isso. Disse-me também que ia contar à irmã dela, mas

que antes o avisaria. Isso não me surpreendeu, pois a conhecia

muito bem. Mas fico imaginando se teria alguma coisa a ver

com o que lhe aconteceu, e gostaria de saber. Outra coisa, con-

siderando a forma como conseguiu esses cinco mil dólares, não

creio que devam ficar com o senhor. Penso que deveria dá-los a

mim e eu daria a alguma instituição de caridade. Espero que me

procure em breve. Moro neste hotel. Atenciosamente. É claro

que podemos alterar as palavras, contanto que todos os pontos

sejam cobertos.

Ela estava de testa franzida:

— São muitas mentiras para uma carta tão curta.

— Só uma mentira: que ela lhe contou. Na verdade, quem

lhe contou fui eu. Todo o resto é verdade. Você realmente ficou

imaginando se isso tinha alguma coisa a ver com o que

aconteceu e gostaria de saber. Está se arriscando para

descobrir.

— Estou me arriscando porque você, com sua fala macia,

Page 133: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

me convenceu. Nunca pensei...

— Um momento. Não há possibilidade de minha fala macia

convencer você a fazer o que não quer. Você quer fazer isto?

— Maldito seja, quero. — Sentou-se, e a orquídea caiu do

V. — Vá para o outro quarto e eu sairei em dez minutos. Não

posso escrever na cama.

Tomei nota de quanto tempo levou. Foram vinte e dois

minutos. Ninguém é perfeito.

Page 134: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO XII

EM 1958, UM HOMEM CHAMADO Simon Jacobs não deveria ter sido

esfaqueado até a morte e seu corpo arrastado para trás de um

arbusto no parque Van Cortland, mas foi, e Nero Wolfe e eu

nunca mais nos esquecemos disso. Deveríamos ter previsto que

isso poderia acontecer e tomado providências, coisa que não

fizemos. Para esse tipo de mancada, uma vez é mais que

suficiente, e isso justifica o fato de eu não ter chegado ao Hotel

Maidstone às dez horas de sábado. Cheguei às nove e meia. A

entrega de correspondência na cidade de Nova Iorque é terrível,

mas havia uma chance num bilhão de o carteiro chegar ao

número 2.938 da avenida Humboldt mais cedo, àquela manhã, e

pelo metrô é rápido.

O gerente de um hotel não gosta quando um hóspede lhe

diz que quer colocar um guarda do lado de fora de sua porta

porque acha que vai ser assassinado; assim, nada contamos ao

gerente do Maidstone. Em vez disso, convidamos o tira do hotel,

quero dizer, o agente de segurança, para o quarto, e Julie

Jaquette lhe contou que um homem a vinha importunando e

dissera que talvez até tomasse um quarto no hotel, e ela não

queria encrenca. O fato de ele já ter ouvido falar de Nero Wolfe

e Archie Goodwin ajudou, e eu lhe passei uma nota. Ofereceu-se

até para providenciar uma cadeira.

Como eu trouxera o Times e uma revista, não precisei

inventar jogos para passar o tempo. Nas maçanetas ela colocara

Page 135: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

avisos de ‘Favor não perturbar’, e as camareiras não entraram

no quarto. Durante toda a manhã o tráfego foi fraco. Espero que

não pensem que sou um esnobe, mas decidi que preferia os

moradores do 7.° andar na Avenida Humboldt, 2.938, aos do 9.°

andar do Hotel Maidstone. Eles também tinham uma aparência

de estarem preocupados, mas tinha a impressão de que

agüentaria ouvir os seus problemas. É claro que as pessoas em

hotéis não são como as pessoas de casa. Tentava responder por

que isso seria assim quando uma das portas, a do quarto de

dormir, abriu-se o bastante para que ela enfiasse a cabeça e

perguntasse:

— O que deseja comer no almoço?

Olhei para o relógio. 11:50h.

— Eu me arranjo. Mais tarde vai subir um empregado. Já

está tudo providenciado.

— Ah-ah, você está relaxando. Vou pedir o café. E se ele

der um jeito no garçom e envenenar o café? Terá de prová-lo.

Senão, para o que você serve?

— Peça dose dupla.

— Sempre tomo ovos com bacon. Vou abrir a outra porta.

E foi o que fez. Num minuto a porta se abriu um pouco,

mas não entrei. Lembre-se de Simon Jacobs e dê uma olhada no

garçom enquanto ele estiver aqui fora, no corredor. Às vezes

acontece de a diferença entre ser sensato e ser tolo não

depender de você, mas de alguém ou de outra coisa. Daquela

vez era tolice ficar no corredor Para dar uma olhada no garçom.

Quando ele chegou, às 12:30h, empurrando o carrinho de

comida pelo corredor, fiquei vigiando, enquanto entrava na

porta do quarto, e então fui para a outra.

A refeição foi servida no quarto de dormir, ela na cama e

eu à mesa que o garçom trouxera. Estava com a mesma roupa

Page 136: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

azul da véspera, o que me fez sentir em casa. Como Fritz nunca

frita ovos, eles me fazem sentir que estou fora de casa. Falamos

sobre Isabel, ou melhor, ela falou. Vinha tentando encontrar um

modo de persuadi-la a desistir de se casar, e achava que talvez

tivesse conseguido. Explicou-me que a razão de não haver um

bom marido é porque não existe uma boa esposa, e vice-versa,

e como se pode sair dessa situação? Já estávamos comendo pão

doce com geléia, e ela me dizia como Isabel tinha razão ao

achar que não servia para o teatro, quando o telefone tocou e

ela se virou para atendê-lo.

A primeira coisa que disse foi “Alô”, e a segunda coisa foi

“Sim, sr. Fleming, aqui é Julie Jaquette”, e corri para o outro

quarto, apanhei o telefone, mas não ouvi muita coisa. Ele disse:

“Duas horas, está bem?”, e ela disse “Duas e meia seria

melhor”, e ele: “Está bem, estarei aí.” E foi tudo. Ao entrar

novamente no quarto, perguntou-me se ouvira a conversa; eu

disse que sim e fui até a mesa. Ela falou:

— Acho melhor decidirmos a qual instituição de caridade

daremos o dinheiro. Ou já decidiu isso também?

— Isso não tem graça — respondi, servindo-me café. —

Vou chamá-la de Julie.

— Isso também não tem graça. Será que ele vai trazer seu

próprio cinzeiro?

— Claro. Presumo que ele vem aqui.

— Sim.

— Eu lhe disse que não poderíamos tomar conta dos

detalhes até vermos como ele reage. Certamente não pretende

chegar, mandar telefonar, tomar o elevador, entrar, matá-la e

sair de novo.

— Então você pode ficar no armário. Ou aqui. — Empurrou

a mesa que ficava sobre a cama. — Vou me vestir com a minha

Page 137: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

melhor roupa. Leve o café para o outro quarto..

Obedeci. Para um hotel, a sala de estar não era feia. Havia

um tapete verde-escuro, paredes pintadas de verde-claro,

cadeiras e um sofá grande, com uma janela para o Parque

Central. Depois de terminar o café, fui à janela a fim de dar uma

olhada. Era sábado, mas também era fevereiro, e tudo estava

parado no parque. Sob as árvores havia ainda um pouco de

neve, mas só se podia chamá-la de branca porque não era

negra.

Quando Julie entrou, estava de preto: um vestido preto

bem simples, com manga curta e sem enfeites. Sei quando as

coisas assentam bem, e do modo que assentava nela,

demonstrava por que ela o chamava de seu melhor vestido.

Elogiei-a e a levei até a janela.

— Vou lhe dar uma ordem — eu disse. — Está vendo

aquela parede de pedra ali? A que horas você chega do

trabalho?

— Cerca de uma e meia. Minha última canção é a uma

hora.

— Ótimo. O parque estará vazio. Por isso, quando chegar

em casa hoje à noite, acenda as luzes e fique aqui olhando para

o parque, e o homem atrás do muro de pedra, com o rifle

encostado na parede, puxa o gatilho e, se ele for bom, você cai.

Portanto, você não deve ficar em pé aqui e olhar para fora.

Antes de sair, deve abaixar a persiana e fechar a cortina. Isto é

uma ordem.

— Uma ordem muito tola. Aqui em cima? Neste ângulo?

Pegue um rifle e tente. Você nem atingiria a janela.

— Pois, sim. Antes dos meus 12 anos matei muito esquilo

com um 22 em árvores quase desta altura. Vai obedecer às

ordens ou não?

Page 138: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Ela concordou, e fomos nos sentar no sofá enquanto

discutíamos o que fazer. Ela queria que eu ficasse no outro

quarto, escutando, e dava as razões para isto: se ficasse na sala

com ela, poderia dizer alguma coisa que ele não gostasse, mas

à qual ela não poderia fazer objeção, com Fleming lá. Os ânimos

se esquentaram e a uma certa altura ela ameaçou sair da

história, deixando que eu o recebesse lá embaixo, mas

finalmente concordamos que ficaria presente, para ser visto e

não ouvido, a não ser que eu pensasse ser absolutamente

essencial. Mal nos falávamos quando o telefone tocou e

informaram que o sr. Fleming estava na portaria e queria subir.

Fiquei no sofá e não me levantei quando bateram à porta; ela foi

abrir e ele entrou. Vendo-os, e não sabendo da situação, pensar-

se-ia ser ela, e não ele, que precisava ser vigiada. Ela se virou

para fechar a porta e ele se virou para mantê-la sob seus olhos,

e só depois de ela passar, ele se virou e me viu.

Ele falou “oh”, mas sem saber que dissera alguma coisa.

Ficou nos olhando. Julie encarou-o e disse:

— Acho que já conhece o sr. Goodwin. Dê-me o seu

casaco.

Sua boca abriu, mas não saiu nenhum som. Tentou

novamente e conseguiu:

— Pensei que você... pensei que era particular.

Ela fez sinal, concordando:

— Suponho que preferiria manter isso só entre nós dois,

mas pensei que seria melhor ser cuidadosa com um... com o

senhor. Está com o dinheiro?

Ele tinha problemas com os olhos. Queria olhar para ela,

mas os olhos queriam me incluir também.

— Creio que está havendo um mal-entendido muito sério.

Creio que Isabel lhe disse algumas coisas que não são verdade.

Page 139: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Receio...

— Que tolice. Milton Thales. Ta-les. Sei exatamente onde

arranjou esse nome e de quem o tirou. Só não contei aos tiras

porque Isabel não gostaria disso. Ela queria que o senhor

devolvesse o dinheiro, e é o que estou fazendo. Creio que

também gostaria que contasse à irmã dela, e é o que eu deveria

fazer, mas antes quero o dinheiro. Está com ele?

— Não. Realmente, srta. Jaquette...

— Bolas. — Virou-se para mim: — O que acha, sr.

Goodwin?

Ainda por cima, toda formal. Podia ter-me chamado de

Archie.

— Acho que está perdendo seu tempo — eu disse. — Acho

que devíamos chamar o inspetor Cramer para vir buscá-lo.

Sugiro Cramer porque ele é o encarregado de homicídios, e

talvez esteja interessado.

Levantei-me e me dirigi à mesa onde estava o telefone,

levantei-o do gancho e comecei a discar.

A voz de Fleming não era um grito, mas bem alta:

— Não!

Virei-me:

— Não?

— Vou-lhe dar o dinheiro. — Do ângulo em que eu estava,

a luz refletia nas maçãs do seu rosto. — Não pude apanhá-lo

hoje, o banco está fechado. Trago segunda-feira.

Coloquei o telefone no gancho. Julie disse:

— Quero tudo. Cinco mil.

— Sim, naturalmente. — Seus olhos me acompanharam

até o sofá e viraram-se em seguida para ela. — Quando disse...

não creio que Isabel quisesse que contasse à minha mulher,

agora que ela... tenho certeza de que não gostaria. Prometa-me

Page 140: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

que não o fará. Vou lhe dar o dinheiro.

Julie abanou a cabeça:

— Não prometo nada.

— Prometa-me que nada lhe contará antes de segunda-

feira. Podemos falar sobre isso na segunda. Posso lhe dizer por

que... falaremos sobre isso.

Então falei, pois considerava essencial ele saber que ainda

tinha algum tempo para gastar:

— Também estou presente. Não posso falar pela srta.

Jaquette, mas falo por mim. Prometo nada dizer à sua esposa

até que tenha devolvido o dinheiro, contanto que seja na

segunda-feira. Então veremos.

— Está bem — falou ela. — A promessa de Archie nada

vale sem a minha. Também prometo.

Colocou o chapéu na cabeça. Se tivesse consciência de

que colocara o chapéu num quarto de senhora, e com ela

presente, ficaria chocado. Queria dizer mais alguma coisa, mas

não sabia o quê; virou-se, todo duro, bem devagar, e se dirigiu

para a porta. Esqueceu-se novamente de sua educação, pois ao

fechar a porta deixou uma pequena fresta aberta. Julie foi lá,

empurrou-a até fechar, voltou para o meu lado e perguntou:

— Como me saí?

— Péssima. Você me chamou de sr. Goodwin e depois de

Archie. Ele vai pensar que você não sabe o que quer.

— Acho que você é quem não sabe. Pensei que a idéia

fosse acuá-lo para me matar.

— Para tentar isso. Assim soa melhor, agora que já estou

acostumado com você.

— Está bem, você estragou tudo. Devia ter ficado no outro

quarto. Agora ele sabe que terá de matá-lo também.

— Não sabe. Já não lhe expliquei? Sente-se. — Bati com a

Page 141: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

mão no sofá e ela sentou. — É simples. Ele pensa que não irão

prendê-lo por assassinato sem você, pois é a única que pode dar

um motivo para isso. Obviamente, você não iria ao tribunal jurar

que Isabel lhe afirmara que iria dizer a ele que contaria a Stella

sobre a chantagem, mas ele acha que sim. Ele também acha

que você irá contar a Stella, não antes de segunda, mas logo

após, e aparentemente isso, para ele, é o pior, não sei por quê;

ele deve ver nela coisas que não vejo. Por isso você é perigosa,

mas eu não sou. Meu testemunho é de ouvir dizer. Sob o ponto

de vista dele, só posso contar o que você me disse, mas você

pode contar o que a própria Isabel lhe falou. Isso vale tanto para

o tribunal como para Stella. Ela provavelmente acreditaria em

você, mas não em mim. Não temos uma única prova que o ligue

com a chantagem ou com o crime, mas se ele lhe der cinco mil

dólares em dinheiro, isso seria uma prova. Ele nunca lhe dará o

dinheiro. Por isso você terá de ser calada, mas eu sou só uma

amolação. Desculpe.

— Bem, você me envolveu...

— Até o pescoço. Peço desculpas por uma coisa. Devia ter

dito que, uma vez começado o jogo, você não poderia sair.

Desculpe.

— Não quero sair. Acho que ele a matou.

— É claro que sim.

— O que faremos agora?

— O que você planejou, caso possa levar um acompa-

nhante. São três horas da tarde de um sábado. Se quiser sair,

Saul Panzer está lá embaixo. Se ficar, estarei no corredor.

— Joga biriba?

Respondi que sim e assim passamos a tarde, depois de ter

descido e dito a Saul que estava livre o resto do dia, contanto

que chamasse Fred e lhe dissesse para estar na entrada ou no

Page 142: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

salão do hotel às 6:55h, preparado para passar a noite no

corredor do 9.° andar, depois que voltássemos do Ten Little

Indians. As três horas de biriba me custaram 8 dólares e 75

centavos. Ela não era tão boa assim e eu não sou tão ruim, mas

como ela ia perder dez dólares para Saul por causa de sua

aposta, achei melhor facilitar um pouco. Ela baralhava as cartas

melhor do que qualquer pessoa que conheço, exceto Lou Cohen.

Paramos às seis horas para os sanduíches e o café, pedidos ao

serviço de quarto, e para ela mudar de roupa.

Já conhecia alguns cantos de Manhattan, onde fora em

quase todos com Lily Rowan, mas nunca estivera no Ten Little

Indians, na rua Monarch. Passei a noite lá dentro, no camarim de

Julie, que era muito grande, cerca de cinco por sete e meio, bem

de acordo com a atriz principal num lugar que cobrava quatro

dólares de couvert. Enquanto ela estava no seu campo de

batalha, permaneci na retaguarda, num dos flancos; Fred no

centro, perto da porta. Julie merecia o que ganhava, cerca de

mil dólares por semana, talvez mais. Isto não é um relatório

sobre uma artista, por isso só direi o seguinte: merecia o que

ganhava. A multidão de sábado à noite certamente também

pensava assim; gostava dela. Por falar nisso, eu também, mas

por outros motivos. Um deles gostava tanto dela que apareceu

em seu camarim cerca de meia-noite, tão bêbado que tive de

ser muito cuidadoso para não derrubá-lo.

Quando nós três saímos para a noite fria de inverno, não

tivemos problemas com táxi, pois Julie contratara um motorista

de táxi para apanhá-la toda noite, à 1:15h da madrugada.

Durante a ida para o hotel, ela e Fred recomeçaram uma

discussão iniciada na ida para a boate: haviam concordado que

seria uma boa idéia ela alugar um de seus quatro filhos para o

verão e estavam discutindo qual deles e qual o preço.

Page 143: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Conhecendo-o, eu esperava que ela não acreditasse que ele

falava sério, e conhecendo-a, esperava que ele não pensasse

que ela falava sério.

Quando paramos na frente do Maidstone, o porteiro lá

estava para abrir a porta. Saímos e o táxi foi embora. Não ia

entrar; devia substituir Fred no corredor às dez horas e devia já

estar na cama há duas horas. Estávamos juntos na calçada, Julie

no meio, quando dispararam o primeiro tiro. Reagi ao barulho,

um estampido seco e alto, e Fred reagiu a bala, embora não

percebesse logo isso. Ele caiu. Não tenho certeza se o segundo

tiro foi disparado antes, depois ou enquanto eu me jogava sobre

Julie. Vocês acham que minhas maneiras seriam mais delicadas

se eu apenas a protegesse. Concordo. Mas para fazer isso di-

reito tem-se de saber de que direção vêm as balas. Depois que

ela estava no chão, a protegi. Virei-me a fim de olhar para cima

e o idiota do porteiro estava de pé, com a boca aberta, olhando

para o outro lado da rua. Não houve mais tiros. Disse a Julie:

— Fique deitada, não se mexa.

Assim que fiquei de pé, Fred disse:

— O danado me acertou.

Estava apoiado sobre um joelho, com a outra perna

estendida, segurando-se com a mão. Perguntei onde, e ele disse

que na perna. O porteiro disse:

— Veio lá do muro, eu vi.

Julie não disse nada, felizmente. Olhei ao meu redor. Um

garoto de recados estava saindo do hotel. Um homem e uma

mulher haviam parado na esquina e estavam de olhos

arregalados. Na outra direção, um policial vinha a galope. Disse

novamente a Julie para ficar deitada e fui até o muro, aos pulos.

Ele podia ser louco o bastante para ficar lá, pensando que ela se

levantaria e assim poderia tentar de novo. Tive de pular para

Page 144: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

ver por cima do muro. Praticamente não havia luz, mas neve

suficiente para ver uma coisa tão grande como um homem, e

ele não estava lá. Quando voltei, o policial, inclinado sobre Fred,

dizia ao garoto de recados para chamar uma ambulância. Julie

não se mexera. Ajudei-a a levantar-se, disse a Fred que voltaria

logo e a levei para o hotel. O tira disse para esperar, queria

saber nossos nomes, e respondi que ele me ouvira dizer que

voltaria, e continuei a andar. O homem da recepção e o

ascensorista lá estavam, e um apanhou a chave enquanto o

outro nos levou para cima. Julie tentava não tremer;

conseguindo, decidi que ela não queria que eu a segurasse pelo

braço enquanto andávamos do elevador até seu quarto.

Dentro, na sala de estar, ela falou:

— Aposto que meu casaco está imundo — e tirou-o antes

que eu pudesse ajudá-la.

— É isso mesmo — eu disse — algum dia lhe direi como

você é ótima, corajosa, esperta, não deu um pio, mas agora

estou ocupado. Se estivesse 18 centímetros para a esquerda e

fosse três centímetros mais alta, você agora estaria no céu.

Sorte, foi só isso: pura sorte, e sou eu quem devia saber o que

fazer. Vou lá embaixo ver como está Fred. Quando voltar, você

já vai estar de malas prontas.

— Malas prontas?

— Certo. Vai para o que chamamos de Quarto Sul na casa

de Nero Wolfe, o quarto acima do dele; tem três janelas que dão

para o sul. Você vai gostar. É muito agradável no inverno.

Ela abanou a cabeça:

— Não... não quero me esconder.

— Ouça, gatinha, cordeirinho, amorzinho. Perdi o direito de

dar ordens. Será que tenho de implorar, pelo amor de Deus?

Na calçada, já havia um grupo de pessoas, uma dúzia mais

Page 145: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

ou menos. Fred estava deitado de costas e o garoto colocara

uma almofada sob sua cabeça. Uma mulher dizia que ele iria

apanhar uma pneumonia. O policial e o porteiro estavam do

outro lado da rua, junto ao muro de pedra. Abaixei-me e

perguntei a Fred qual fora a perna, e ele respondeu que era a

esquerda, um pouco acima do joelho, e do jeito que doía, devia

ter atingido o osso. Perguntei se perdera sangue, e respondeu

que não muito, pois pusera a mão em cima e não sentira sair

muito, e perguntou:

— E ela, está bem?

Respondi que sim. Continuei:

— Quando voltar do hospital vou levá-la para casa comigo.

Não quero...

— Você não vai a nenhum hospital. Leve ela agora. O tira

fez umas perguntas, mas eu não sei nada, sei?

— É claro que sabe. Sabe que Nero Wolfe o contratou para

ser seu guarda-costas, e só sabe isso.

— E já basta. Ui... Leve-a agora. Já estive em hospitais

antes. Não a deixe sozinha. O maldito quase conseguiu pegá-la

e nós estávamos ao seu lado. Só queria...

Parou porque o tira chegara. Queria nossos nomes, e dei

alguns, os de Fred, Julie e o meu. Mais nada. Só sabia que

alguém atirara. Primeiro ele decidiu bancar o durão, mas mudou

de idéia, e aí chegou a ambulância. Esperei até que Fred fosse

colocado nela. Então entrei no Maidstone e subi ao 9o andar.

Ao bater na porta, ouvi a voz de Julie:

— É você, Archie?

— Não. É um escoteiro.

Então ela abriu a porta e eu entrei. Ao seu lado estava uma

mala grande e uma sacola grande.

— Não pedi que as levassem para baixo porque pensei que

Page 146: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

você talvez mudasse de idéia.

Apanhei as duas malas.

Page 147: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO XIII

NO DOMINGO DE MANHÃ, às nove horas, entrei na cozinha, dei bom-

dia a Fritz, apanhei suco de laranja na geladeira, sentei na mesa

do café, bocejei, olhei de lado para The New York Times e

esfreguei os olhos. Fritz aproximou-se com um papel na mão e

perguntou:

— Estava bêbado quando escreveu isto?

Olhei para ele, piscando os olhos:

— Não, só exausto. Nem me lembro do que disse. Por

favor, leia.

Ele pigarreou:

— Três e vinte da madrugada. Há uma convidada no

Quarto Sul. Conte para ele. Farei seu café. A. G.

Deixou o papel cair na mesa:

— Contei para ele, perguntou quem era, e o que pude

dizer? E você vai lhe fazer o café na minha cozinha?

Tomei um enorme gole de suco. Sugeri:

— Vamos ver se o que falo faz sentido. Só dormi quatro

horas, exatamente a metade do que necessito. Quanto a dizer a

ele quem é ela, isso é responsabilidade minha. Admito que é sua

função fazer o café, mas ela gosta de ovos fritos, e isso você

não faz. Vamos ao que realmente importa. Nesta casa há um

homem mais alérgico do que ele a mulheres, e é você. Por Deus,

eu estou sendo honesto! — Tornei a beber suco. — Não se preo-

Page 148: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

cupe, esta mulher tem alergia a homens ficarem na casa dela.

Quanto aos ovos, faça-os... você sabe como... com vinho tinto e

caldo de carne...

— Vinho da Borgonha.

— É isso aí. Com bacon canadense, Isso lhe mostrará para

que servem os homens. Em geral, ela toma café às doze e

trinta. Ainda estou disposto a lhe fazer o café, se...

Ele disse alguma coisa em francês, bem alto, talvez fosse

um palavrão. Estava no fogão, fritando lingüiça. Peguei o Times.

Como Wolfe só vai à estufa por pouco tempo aos do-

mingos, quando vai, pensei que lá pelas dez horas já teria

descido. Mas ainda eram 9:50h, quando ouvi o barulho do

elevador e depois seus passos no corredor. Já não o via desde

sexta à noite, há quase quarenta horas. Em vez de parar no

escritório, os passos continuaram, a porta se abriu e ele

apareceu.

— Então, está vivo — disse.

— Mas é só isso. — concordei. — Não conte comigo para

nada.

— Quem é a hóspede?

— A srta. Jaquette. Para você, srta. Jackson, Julie para mim.

Ela também está viva, mas não é minha culpa. Atiraram nela

esta manhã, à 1:30h, na frente do seu hotel, por trás do muro

do Parque Central. Não vimos quem atirou. Fred foi atingido na

perna e foi levado ao Hospital Roosevelt. Quando telefonei para

lá, hoje de manhã, estava dormindo. Ontem à noite, ao chegar

em casa, telefonei para a mulher dele. Liguei também para Saul

e lhe disse para ficar de prontidão. Trouxe Julie comigo para

casa porque, com Orrie preso e Fred no hospital, estamos

desfalcados. Além disso, fiquei cansado de ouvir as balas

passarem assobiando perto de mim. Ela toma café na cama,

Page 149: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Fritz vai prepará-lo e eu o levarei para ela lá por volta de meio-

dia e meia. Creio que isso abrange tudo.

— O atirador não foi visto.

— Não, senhor, mas era Barry Fleming. Sua reação à carta

foi ir vê-la ontem de tarde. Isso deixou claro que era o

chantagista, e o tiroteio provou que é o assassino. Portanto,

agora só precisamos de provas. Mas creio que você quer um

relatório completo.

Ele concordou e fomos para o escritório. A correspondência

de sábado estava sobre a minha mesa, ainda sem abrir. Não sei

por que ele faz isso, mas creio que é para me mostrar que não

interferirá na minha rotina, se eu não interferir na dele. Fritz

também não interferira: a parte de cima da minha escrivaninha

estava mais cheia de pó do que costuma ficar num dia. Coloquei

meu exemplar do Times na mesa e sentei-me em cima,

começando o relatório. Só foi verbatim em certos trechos, os

que achei essenciais, pois pensei não haver necessidade de ele

saber que ela me perguntara se eu sabia que aquilo era uma

cama ou que eu a chamara de coelhinha. Em geral, quando

termino, ele abre os olhos e se apruma na cadeira, mas daquela

vez ficou um minuto inteiro sem se mexer. Finalmente,

recomecei a falar:

— Se está esperando comentários, nada tenho a dizer.

Podia dizer que sabemos quem foi, mas não podemos provar;

isso é óbvio. Quanto à noite passada, ele possui um rifle, ou

conseguiu um, mas onde o conseguiu? Saul e eu vamos procurar

as respostas, e depois o que faremos? A primeira bala atingiu o

osso de Fred e o atravessou, indo bater no prédio, que é de

pedra, e a segunda provavelmente acertou no prédio.

Precisaríamos de mais de seis especialistas para identificar as

balas como vindas de seu rifle, três de cada lado. Se ele tivesse

Page 150: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

acertado e a matasse, isso seria...

— Bolas. Isso é besteira. Temos o que procurávamos, isto

é, a prova de que nossa teoria de ele ser o assassino está

correta. Há alguma dúvida de que agora poderemos libertar

Orrie?

— Não.

— Então isso não nos preocupa mais. Suponha que vamos

em frente, arranjamos uma prova conclusiva de que Fleming

matou Isabel Kerr, é isso o que queremos? Se a conseguirmos, e

dermos ao sr. Cramer, o que acontecerá?

— Três coisas. Uma, vão deixar Orrie de lado bem

depressa. Duas, Fleming será preso, julgado e provavelmente

condenado. Três, tentarão manter o nome de Ballou fora de

tudo, mas não conseguirão. Não, são quatro coisas. Quatro,

você não vai conseguir pôr mais os olhos naquele pacote de

dinheiro.

Ele acenou:

— O que foi que eu disse a ele?

— Se conseguir fazer o que ele quer sem prejudicar seus

interesses, você o fará.

— E então?

— Bem, você pode tentar. Hoje são seis de fevereiro, e até

agora não entrou nada ainda, nada temos em vista, e sei quanto

sai em dinheiro, pois sou eu quem faz os cheques. Quer minha

opinião?

— Sim.

— Não sei como iremos conseguir isso. Se vamos libertar

Orrie, e é o que faremos, teremos de entregar Fleming, com ou

sem provas, e ele lhes dará Ballou, e a polícia deverá visitá-lo.

Esse é o problema. Mesmo que mantenham tudo em segredo e

não deixem os jornais saberem o nome dele, é lógico que no

Page 151: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

tribunal o nome vai aparecer, e aí ele vai achar que não lhe

deve nada. E você também pensará assim. Como sabe, sou

muito a favor de receber pagamento. Detestaria que um cheque

meu fosse devolvido por falta de fundos. Mas você pediu a

minha opinião.

— Você não entendeu. Quero a sua opinião sobre o risco,

não sobre a possibilidade. Será que isto colocaria em risco a

nossa finalidade?

— Não. É como se Orrie já estivesse fora da cadeia.

— Então não há risco algum. O problema é expor o

assassino sem...

A campainha tocou, fui até o corredor, dei uma olhada e

voltei;

— É Cramer. Diga a Fritz para abrir. Vou lá em cima dizer a

ela que não cante “Homem forte vá-vá” com a porta aberta.

E dirigi-me para a escada.

A porta realmente estava aberta, embora se encontrasse

fechada quando passei por ela às nove horas. Levantei a mão

para bater na porta, mas não foi necessário, pois ouvi-a dizer:

— Meu Deus, você já está de pé e todo vestido.

Estava sentada numa cadeira perto da janela. Seu pijama

era verde-escuro com listras; os pés descalços, o cabelo todo

despenteado. Fechei a porta.

— Sabe — comentou ela — abri a porta só pelo prazer de

abri-la. Há anos que não tenho um quarto onde possa deixar a

porta aberta. Estou de pé porque acordei. Nunca fico acordada

na cama, a não ser que esteja lendo ou comendo.

Respondi, aproximando-me:

— Infelizmente, vai ter de esperar um pouco para comer. O

inspetor Cramer está aqui. Ele provavelmente acha que você

está aqui, pois o policial a viu sair comigo, mas talvez neguemos

Page 152: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

isso. Se admitirmos, e ele insistir em vê-la, podemos dizer que

isso terá de ser adiado porque, após os acontecimentos da noite

passada, você se encontra em estado de choque. Ou pode ser

que o traga até aqui e acabemos logo com isso. Como preferir.

Achei melhor lhe perguntar primeiro.

Empurrando o cabelo com a mão, observou:

— Um inspetor, hein?

— Sim. Um velho amigo nosso. Ao contrário.

— Preferia acabar logo com tudo.

— Está bem. Provavelmente vai querer vê-la sozinho, e não

no escritório, pois sabe que lá existe um buraco onde ouvimos e

vemos tudo. O que deseja tomar para esperar os ovos? Serve

suco de laranja e café?

— Prefiro um suco de uva.

— Está bem. Fritz vai trazer, e mais tarde trarei Cramer.

Ele talvez...

— Aqui?

— Lógico. O quarto tem escuta, mas ele não sabe disso, e

estaremos ouvindo. Talvez lhe peça para ir com ele ao escritório

do promotor público, mas você não irá. Para levá-la, por lei,

precisaria de um mandado, e não o tem. Agora o...

— Como sabe que não o tem?

— Sei de tudo, exceto como ser guarda-costas de uma

moça. Agora vem a pergunta principal. Lembra-se do roteiro? Do

que dissemos ontem à noite?

— O que você disse. Sim.

— Vamos confirmar?

— Não. ZYXWVU...

— É mesmo, eu sempre me esqueço. Fritz vai trazer o suco

e o café. Tranque a porta. Pode ser que o sr. Wolfe decida que

você não está aqui, para ganhar tempo, e Cramer vai subir

Page 153: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

correndo para irromper no quarto. Uma vez dentro, a polícia

pode se mover à vontade e ninguém pode impedi-la, mas não

pode arrombar portas, ou melhor, não deve. Se alguém bater na

porta, não responda.

— Que diabos. Eu devia estar dormindo profundamente.

Saí, dizendo que ela podia dormir a tarde inteira.

Ao entrar no escritório, parei ao ver uma cena inesperada,

caseira e muito agradável. Não consegui ver Wolfe à

escrivaninha, pois a página do jornal, aberta, o escondia. Na

poltrona vermelha, Cramer lia a seção de esportes, com as

páginas também abertas. Vendo que Cramer entrara e ainda

estava lá, fui à cozinha, disse a Fritz qual o nome da nossa

hóspede, pedi-lhe que levasse suco de uva e café, mas que não

batesse à porta, só dissesse seu nome. Voltei ao escritório, onde

Wolfe ainda estava escondido. Sentei-me à minha mesa e fiquei

apreciando a cena alguns minutos. Aí tossi. Imediatamente

Wolfe dobrou o jornal, colocou-o sobre a mesa e falou:

— O sr. Cramer quer saber sobre aquele incidente da noite

passada. Já que você esteve lá e eu não, insisti em esperá-lo. —

Virou-se e perguntou: — Sim, sr. Cramer?

Cramer dobrou a seção de esportes e colocou o jornal na

mesinha ao seu lado. Olhou para Wolfe, dizendo:

— Você sabe que desejo saber por que eles escoltavam

aquela moça, e de quem a protegiam. Se sabiam que estava em

perigo, sabem quem disparou aqueles tiros. Durkin diz que não

sabe, mas que você sim. Não preciso que Goodwin me diga isso.

É possível até que ele não saiba, e você sim. Ataque com

intenção de matar é delito grave, e você sabe quem o cometeu.

E eu sou um oficial da lei. Está bem claro?

Wolfe concordou:

— Bem claro. Também está claro que seu verdadeiro

Page 154: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

interesse não é um ataque com intenção de matar, mas um

ataque que já matou. Soltou o sr. Cather?

— Não. E eu não...

— Está pronto para soltá-lo?

— Não! Quero uma resposta. Quem disparou aqueles tiros

contra a moça?

Wolfe virou-se para mim:

— Você sabe, Archie?

— Não, senhor, não sei. Posso dar palpites, mas não na

frente de um agente da lei. Seria difamação. Poderia ser Orrie

Cather, mas como está na cadeia isso o inocenta, a não ser

que...

Cramer disse alto um nome que não repito aqui porque

suspeito que alguns dos leitores dessas histórias são professoras

aposentadas.

— Também não sei — disse Wolfe. — Sr. Cramer, por que

não falamos francamente? O senhor veio aqui segunda-feira

passada, fingindo que esperava colher informações que

fortalecessem seu caso contra o sr. Cather, embora soubesse

que nada conseguiria. Pelo menos, não do sr. Goodwin. O que

desejava realmente era saber se o fato de eu apoiar o sr. Cather

seria mais do que uma simples formalidade. E agora o que o

senhor deseja é saber se conseguirá alguma prova que

enfraquecerá seu caso contra o sr. Cather. Por que não ser

sincero e me perguntar?

— Está bem, vou perguntar. Conseguiu?

— Sim.

— Que prova?

— Não estou ainda pronto a revelá-la.

— Meu Deus, e você ainda admite. Admite que tem provas

num caso de assassinato e as está escondendo.

Page 155: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Wolfe concordou:

— Isto é um ponto interessante. Se eu suprimir provas que

ajudem a condenar um homem por assassinato, estou

atrapalhando a lei, sim. Mas se suprimo provas que ajudariam a

libertar um homem, isso também é obstrução da lei? Creio que,

juridicamente, essa questão nunca surgiu. Podíamos perguntar a

uns...

— Perguntar coisa nenhuma. Se tem provas que ajudariam

a inocentar Cather, elas ajudariam a condenar outra pessoa. E

eu as quero.

— Isso é tolice. Milhares de homens foram declarados

inocentes por terem álibis, sem isso trazer culpa a outros. Não

possuo provas, nenhuma mesmo, que ajude a condenar alguém

pelo assassinato de Isabel Kerr. Tenho suspeitas, conjeturas,

mas isso não é prova. Quanto ao fato de estarmos protegendo a

srta. Jaquette, e os tiros disparados contra ela, em que isso

afeta seus esforços para in-culpar o sr. Cather? Como o sr.

Goodwin afirmou, não poderiam ter partido dele, já que se

encontra detido. Sob suspeita de assassinato.

— Ele não foi acusado de homicídio.

— Você está com ele preso sem fiança. Consideremos uma

hipótese. Suponhamos que a srta. Jaquette tivesse razões de

recear que alguém pudesse usar de violência contra ela, razões

essas que não queria revelar, e pedisse proteção e alguém

atirasse nela. Acha que poderia obrigá-la a contar seu segredo,

ou poderia me obrigar?

— Bolas. — Cramer estava ficando rouco. Sempre fica

rouco quando conversa com Wolfe. — Agora é a sua vez de ser

sincero. Você pode me dar a sua palavra de honra que a está

protegendo e que os tiros disparados contra ela não têm

conexão alguma com o assassinato de Isabel Kerr?

Page 156: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— É claro que não. Suspeito que haja uma ligação. Se for

verdade, gostaria de conseguir provas.

—- Ainda não as conseguiu?

— Não.

Cramer tirou um charuto do bolso, enrolou-o na palma das

mãos, colocou-o na boca, mordendo-o. Mas o ato de enrolá-lo

soltara o papel que o cobria, e uma ponta subiu e lhe tocou o

nariz. Ele tirou o papel, olhou-o zangado e jogou na direção da

minha cesta de papéis, caindo perto. Bateu na borda e correu

pelo chão. Transferiu o olhar zangado em minha direção e falou:

— Está bem, Goodwin. Onde está ela?

Levantei a sobrancelha:

— Está falando da srta. Jaquette?

— Sim, estou. Ontem à noite você saiu com ela. E a trouxe

para cá.

Acenei, concordando:

— Isso é o que o sr. Wolfe chama de uma conjetura. O

senhor não sabe se eu a trouxe, assim como não sei quem

disparou os tiros. O senhor está pensando que vou despistar,

mas não vou. Ela está no Quarto Sul. Estava lá, conversando

com ela, quando o senhor chegou.

— Agora sou eu que vou bater um papo com ela. Vou subir.

Sei o caminho.

— A porta está trancada. Pensamos que seria melhor. —

Levantei-me: — Mas acho que você merece uma chance. Com

um novo prefeito e um novo comissário, você realmente merece

uma chance.

Fomos andando. No corredor, parou em frente ao elevador,

mas continuei caminhando até a escada e ele acabou vindo

também. Os policiais devem se manter em forma. Ao chegarmos

ao patamar do segundo andar, gritei o nome dela, e a porta do

Page 157: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

seu quarto se abriu. Pusera a roupa azul, e estava de chinelos.

Apresentei-os, perguntei se queria mais café e os deixei.

Tinha certeza de que Wolfe fora para a cozinha; por isso,

ao descer as escadas, virei à direita. Lá estava ele, na única

cadeira que Fritz admite na cozinha, cujo assento era

suficientemente amplo para mim, mas não para ele. Já abrira a

porta de um certo armário e ligara o interruptor. Fritz estava

num dos bancos perto da grande mesa, descascando cebola

roxa para os ovos com Borgonha, e sentei-me no outro banco.

Ouvia-se a voz de Cramer saindo do armário: — Sei disso,

sei que fez. A senhorita fez uma declaração completa, e

apreciamos muito este tipo de cooperação. Mas o que

aconteceu ontem à noite introduziu um novo tipo de...

elemento. Aqueles dois homens, Archie Goodwin e Fred Durkin,

estavam lá para protegê-la, não?

JULIE: — Sim.

CRAMER: — Pedira essa proteção a Nero Wolfe?

JULIE: — Sim.

CRAMER: — Quando?

JULIE: — Oh... acho que foi sábado

CRAMER: — Por que precisava de proteção?

JULIE: — É melhor eu contar a verdade.

CRAMER: — Sim, é sempre bom.

JULIE: — Cá entre nós, eu não precisava de proteção. Mas

uma noite, creio que foi terça, vim aqui porque Nero

Wolfe queria me ver, e encontrei Archie Goodwin. E

voltei no dia seguinte, na quarta, e Archie foi me

mostrar as orquídeas e conversamos durante muito

tempo. O senhor tem certeza de que isto é

confidencial?

Page 158: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CRAMER: — É.

JULIE: — Pelo amor de Deus, não diga nada a ele, mas perdi

o controle. Que homem! Tinha de ficar com ele. Por isso

eu... bem, tomei umas providências. Talvez ele não

queira que o senhor saiba disso, mas passou o dia

inteiro de sábado lá, no meu hotel, a partir das dez da

manhã. Talvez o senhor não aprove. Suponho que seja

casado, mas quando quero alguma coisa, geralmente

consigo.

Wolfe me olhava, e sacudi a cabeça. Não sugerira nada

disso. Só tinha pena de não estar lá para ver a cara de Cramer,

zangada.

CRAMER: — Quer dizer que... está dizendo que... a senhorita

disse que tomou providências. Que providências?

JULIE: — Disse a Archie que um homem estava me

perseguindo, que eu estava com medo e queria

proteção dia e noite. O senhor pode entender muito

bem por que eu queria dia e noite.

CRAMER: — Qual é o nome do homem que a estava

perseguindo?

JULIE : — O senhor não é um inspetor?

CRAMER: — Sim.

JULIE: — Então devia prestar mais atenção. Ninguém estava

me perseguindo. Eu não precisava de proteção.

Precisava de Archie.

CRAMER: — Se não precisava de proteção, por que alguém

atirou na senhorita, tentando matá-la?

JULIE: — Já pensei a respeito. Só porque atingiu Fred, ao

meu lado, isso não significa que quisesse atirar em

Page 159: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

mim. Talvez estivesse atirando em Fred. Ou talvez em

qualquer pessoa. Como aquele rapaz no Brooklyn que

atirou numa mulher que passava num carro. Gostam

de...

CRAMER: — Pare com isso. Não acredito numa palavra do

que está dizendo. Sabe qual é a pena por prestar

declarações falsas a um oficial que investiga um crime?

JULIE: — Não. Qual é?

CRAMER: — Até cinco anos na cadeia.

JULIE: — Que crime o senhor está investigando? Archie me

disse que estava investigando o assassinato de minha

amiga, Isabel Kerr, mas não é o que parece. O senhor

só me faz perguntas sobre a minha proteção e de

alguém disparar uma arma. Devo ser uma estúpida.

CRAMER: — Não, srta. Jaquette, não é uma estúpida. É uma

boa mentirosa. Ótima. Espero que saiba o que está

fazendo. Sabe que Wolfe e Goodwin são os detetives

mais espertos de Nova Iorque?

JULIE: — Não sei nada sobre Nero Wolfe. Sei muita coisa

sobre Archie.

CRAMER: — Bem, é verdade. Quanto estão lhe pagando?

JULIE: — Pagando? Bem, primeiro sou uma mentirosa, e

agora, o que sou?

CRAMER: — Isso é o que eu gostaria de saber. Ainda acha

que Orrie Cather matou sua amiga, Isabel Kerr?

JULIE: — Nunca disse isso.

CRAMER: — Não precisava. Pelo que disse e escreveu na sua

declaração, era óbvio. Lembra-se do que disse?

JULIE: — É claro que lembro. Sei o alfabeto de trás para

frente.

CRAMER: — Quer fazer alguma retratação?

Page 160: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

JULIE: — Não, era tudo verdade.

CRAMER: — Então pensa ainda que ele a matou.

JULIE: — Precisa ouvir melhor o que lhe digo. Eu lhe disse

que não falei isso.

CRAMER: — Mas insinuou. Não se esqueça de que temos

uma declaração sua assinada. Não se esqueça disso.

Cinco segundos de silêncio, a não ser por um leve ruído

que podia ser Cramer, levantando-se da cadeira.

CRAMER: — Vou avisá-la novamente, srta. Jaquette. Prestar

falso testemunho a um oficial que investiga um crime

de morte é um delito grave. Quer reconsiderar o que

disse?

JULIE: — Não, obrigada. Pode deixar a porta aberta.

Outro ruído fraco, a porta abrindo. Saí da banqueta, fui ao

armário e desliguei o interruptor. Dirigi-me à porta que dá para

o corredor e a abri. Passos pesados desciam as escadas. Cramer

apareceu, virou para a esquerda e passou pela porta do

escritório sem olhar para dentro. Deve ter me visto ao colocar o

casaco, mas não se despediu. Depois que saiu e a porta estava

bem fechada, virei-me e disse:

— Foi tudo improvisado. Não havia nada disso no roteiro.

Gostei muito de tudo. É melhor preparar os ovos, Fritz, ela deve

estar com fome.

Fui em direção à escada e subi os dois andares. A porta

estava totalmente aberta. Ela, de cócoras no chão, olhava sob a

mesa. Ao ouvir meus passos, virou a cabeça, levantou-se e

disse:

— Estou procurando o microfone.

Page 161: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Você não vai achá-lo aí. Não é tão fácil assim. Ouvimos

muito bem.

— Você ouviu?

— Lógico. Não sei por que chamou você de mentirosa.

Percebia-se logo que era verdade. Quando quer os seus ovos?

— Agora. Agora mesmo.

— Estão quase prontos. Vá para a cama que eu vou trazer.

Page 162: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO XIV

OBVIAMENTE NÃO CONTO tudo que acontece; por exemplo,

telefonemas que nada têm a ver com a progressão do caso ou

da falta de provas. Jill Hardy telefonara duas vezes, dr. Gamm

uma, Lou Cohen duas vezes, e Nathaniel Parker três. Mas vou

falar no telefonema de Parker naquela tarde de domingo, pois o

que ele queria fazer talvez tivesse ajudado ou prejudicado.

Decidira que ia pedir habeas corpus na segunda de manhã, para

soltar Orrie, e Wolfe levou dez minutos para fazê-lo desistir. Não

foi fácil. Wolfe não podia lhe dizer que não estávamos mais

preocupados com Orrie, que agora tínhamos outros suspeitos

em vista.

Isto é, talvez tivéssemos. Não recebera instruções, não

houve conversa, nada, ao ir para a cama no domingo à noite,

depois de ganhar US$ 1.25 de Julie no jogo de biriba. Aos

domingos o Ten Little Indians ficava fechado. Julie tirara um

cochilo de tarde, e eu fora dar uma volta. Wolfe ficou com o

Times e um livro, e provavelmente, enquanto eu estava fora,

brigou com a televisão, sua briga semanal. Isso pode ocorrer a

qualquer noite, quando se aborrece com um livro, mas em geral

é nos domingos à tarde, quando a TV deveria estar com bons

programas. Passa de um canal a outro, ficando cada vez mais

aborrecido, até ter certeza de que os programas estão piorando

ao invés de melhorar, e então desiste.

Page 163: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

A única vez que ele e Julie ficaram juntos foi durante o

jantar, completamente diferente de qualquer outra refeição

naquela mesa, pelo menos que eu me lembre. Em geral Wolfe

está disposto a conversar bastante, com ou sem visitas, mas

naquela vez, desde os bouchées de Netuno até a musse de

castanha, ele não só deixou uma convidada, uma mulher, falar o

tempo todo, como até a incentivou. Fez-lhe perguntas, dúzias de

perguntas, sobre seu trabalho, sua origem e as pessoas que

conhecia. Ao chegar o café, concluí que só havia uma única

explicação possível: ele decidira que eu não conhecia as

mulheres tão bem quanto imaginara, e ele é quem tinha de

tomar a dianteira. Podia ter-lhe dito que aquele tipo de

aproximação não ajudaria muito, mas aparentemente eu não

era mais considerado um especialista.

Por isso foi uma surpresa quando, ao entrar na cozinha na

segunda-feira, Fritz me disse que ele queria falar comigo. Subi

um andar, bati na porta, entrei e Wolfe disse:

— Bom dia. Será que podemos confiar naquela mulher

num assunto que exige perícia e discrição?

— Depois daquele interrogatório todo, você deveria saber

— respondi.

— Não sei. Você sabe?

— Sim. Perícia, sim. Você ouviu como ela foi com Cramer.

Iria depender se ela gosta ou não da situação, qualquer que

fosse. Discrição também depende, isto é, nunca diria nada, se

não quer que se saiba. Ela não é do tipo que fala só para ouvir a

sua própria voz.

— Quanto existia de verdade no que ela contou para

Cramer?

— Nada. Ela nunca pensaria “que homem!”, pois acha que

nenhum homem é assim.

Page 164: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Então vou aceitar o risco. Peça a Ballou para vir aqui às

onze horas. Diga que só preciso dele por dez minutos. A srta.

Jaquette não deverá vê-lo. Você pode se encarregar disso?

Disse que sim, subi um andar para ver se havia sinal de

vida. Eram 8:45h, porém, como tinha ido dormir cedo — para ela

— talvez estivesse com a porta aberta. Não estava. Pedira que,

ao acordar, tocasse o telefone da cozinha ou o do escritório

quando quisesse o café, e esperasse meia hora. Fui para o

escritório fazer meu serviço.

Não sabia se Avery Ballou era o tipo de presidente que

chega cedo, e esperei até 9:45h para chamá-lo. ÊÉ claro, uma

mulher respondeu e passou para um homem. Este disse que só

daria meu nome ao sr. Ballou se eu dissesse o que desejava:

este é um dos modos como os empregados mais novos ficam

sabendo o que os mais velhos estão fazendo. Acabei

convencendo-o, finalmente, que bastava o nome, e que Ballou

gostaria de falar comigo, mas esperei muito antes de ouvir sua

voz:

— Goodwin? Archie Goodwin?

— Sim. Sr. Ballou?

— É

— Houve um prosseguimento naquele assunto que

discutimos quinta à noite, e precisamos lhe contar o que houve.

Pode vir aqui às onze? Mesmo endereço.

— Na manhã de hoje?

— Sim.

— Acho que não posso. É urgente?

— Sim. Serve também onze e meia ou meio-dia, mas onze

horas seria melhor. Não deve levar mais do que dez minutos.

— Aguarde na linha... Está bem, estarei lá às onze, ou logo

após.

Page 165: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Se o executivo novo estivesse escutando, ficaria imagi-

nando o que poderia fazer Ballou pular assim, e gostaria de

saber.

Depois de falar com a estufa para avisar a Wolfe que ele

viria, pensei no meu problema. Mesmo que Julie estivesse

acordada, não seria aconselhável subir e dizer a ela que vinha

um homem, mas que não devia vê-lo, e por isso pedir que

permanecesse no quarto com a porta fechada. Ela era uma

garota ótima, corajosa, destemida e esperta, e talvez fosse para

o meu quarto, que dá para a rua 35, olhar pela janela, só para

ajudar. Não seria justo tentá-la desse jeito. Por isso fui à

cozinha, expliquei a situação ao Fritz e combinei com ele que,

quando a campainha tocasse, eu iria até a porta, ele iria para o

patamar do segundo andar e ficaria lá com o aspirador de pó. Se

a porta dela estivesse aberta, passaria o aspirador no tapete do

corredor. Ele me disse que não podia levar uma hora passando o

aspirador naquele tapete, e eu respondi que não precisava.

Na verdade, foram só oito ou nove minutos. Wolfe desceu

às onze em ponto, como sempre faz, e eu ainda não terminara

de verificar a correspondência, quando a campainha tocou.

Esperei até Fritz começar a subir as escadas, então deixei-o

entrar, guardei seu casaco e chapéu e levei-o até o escritório.

Ficou de pé, dizendo a Wolfe que não tinha tempo para se

sentar.

— Gosto que os olhos fiquem no mesmo nível — respondeu

Wolfe. — Só leva três segundos para se sentar.

Ballou se sentou.

— Vou ser o mais breve possível — disse Wolfe. — O

primeiro ponto é que agora sei que não matou Isabel Kerr, pois

estou quase certo de quem a matou. Foi o cunhado. O

chantagista. O segundo ponto é que não há mais problemas em

Page 166: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

atingir o meu primeiro objetivo, isto é, libertar o sr. Cather. Isso

já está garantido. O terceiro ponto: gostaria de ganhar aqueles

cinqüenta mil dólares. Como posso ganhá-los?

— Pensei que já tivesse entendido. Não quero ser en-

volvido nessa confusão. Não deixe que meu nome apareça. Não

consigo comer, não consigo dormir. Uma dúzia de vezes quis

entrar em contato, mas tenho medo de falar ao telefone.

Wolfe abanou a cabeça:

— Precisa haver uma definição. Seu nome já é conhecido

agora. Cinco pessoas o conhecem: o sr. e a sra. Fleming, o sr.

Cather, o sr. Goodwin e eu. Quanto aos últimos três, o melhor

que pode conseguir é a promessa de que não diremos a

ninguém. Quanto ao sr. e sra. Fleming, seria melhor criar uma

situação que tornasse muito improvável algum dia revelarem

quem o senhor era. Não posso abrir seus cérebros e tirar as

células onde seu nome se encontra. O senhor compreende isto.

— Sim.

— O senhor seria o juiz da situação. Quero ganhar o

dinheiro, não extorqui-lo. Agora o quarto ponto, a razão pela

qual precisava vê-lo sem demora. Para ter alguma esperança de

êxito, preciso de ajuda. Preciso da cooperação de uma moça

chamada Julie Jaquette ou Amy Jackson, que era amiga...

— Conheço o nome. Sei quem é.

— A srta. Kerr lhe contou.

— Sim.

— Ela não sabe seu nome nem precisa saber. Ela o chama

de lagosta. Quero pedir que ela me ajude, sem dizer o seu

nome, e quero dizer a ela que, se tivermos êxito, receberá

cinqüenta mil dólares em dinheiro. O senhor dará?

Ballou olhou para ele de cara amarrada. Wolfe continuou:

— O senhor me disse que os cinqüenta mil dólares eram só

Page 167: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

um sinal e deixou subentendido que haveria mais, se eu fizesse

o que pediu. Não vou pedir mais. Num dia ou dois tudo estará

terminado, ou então nada vou conseguir. O senhor só pagará se

eu tiver êxito, contra o que já houve antes, para que não haja

idéia de chantagem. Além disso, as vantagens são pequenas.

Qual é a vantagem contra nós, Archie?

Não perdi tempo em pensar:

— Mil contra um.

— Isso não adianta nada — disse Ballou. — O senhor sabe

que estou numa enrascada. Disse que é minha única esperança.

O que são outros cinqüenta mil, ou dez vezes cinqüenta? Se o

senhor acha que ela pode ajudar, tudo bem. Isso não quer

dizer...

Ele não foi interrompido; eu é que fui, pelo barulho do

aspirador. Levantei-me e fui até o corredor, fiquei parado junto à

escada, não ouvi vozes, só o aspirador. Pensava que, de

qualquer maneira, a conversa já terminara, e ia me virar e lhe

mostrar a porta, quando ele saiu. Fui ao cabide, e já estava com

seu casaco e chapéu na mão quando ele chegou lá. Seu carro

estava na frente de casa. Fui com ele até lá, esperei até o carro

sair, antes de entrar e subir até o segundo andar.

Fritz limpava o tapete com vontade, e Julie, de pijama e

descalça, estava de pé na porta, a olhá-lo. Ele, de costas, fingia

não saber que ela estava lá. Desliguei o aspirador com o pé e

falei:

— Podia ter esperado até ela acordar.

— Estou acordada — disse ela. — Que horas são? Esqueci

de dar corda no relógio.

Ouviu-se um grito vindo de baixo:

— Archie! Onde você está? — Disse onde eu estava, e veio

outro grito: — Diga à srta. Jaquette que quero falar com ela!

Page 168: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Não fazia nem três minutos que Ballou saíra, e ele já criava

uma situação, que consegui contornar. Disse a Julie que seu café

só ficaria pronto dentro de meia hora, e perguntei se ela se

importaria de tomar suco de uva e café no escritório, enquanto

Wolfe lhe explicava uma coisa. Perguntou-me por que eu não

podia explicar, e respondi que Wolfe sabia mais palavras.

Enquanto trocava de roupa, desci e agradeci a Fritz ter ajudado

numa hora de necessidade, pedi café para nossa hóspede e

enchi um copo com suco de uva.

E depois disso tudo, quando fui ao escritório, Wolfe disse

que talvez fosse melhor ele me explicar tudo, e então eu

explicaria a ela. Não tentei dissuadi-lo. Só disse não. Admito que

ainda estava aborrecido, pois fora pura sorte ela não ter sido

morta. Acredito em sorte, mas não devemos exagerar. Depois

de tudo o que eu lhe dissera sobre abaixar a persiana e fechar

as cortinas, deveria ter dado uma espiada atrás do muro antes

de ela sair do táxi.

Quando desceu, não com aquela coisa azul, mas num

vestido de lã verde, a bandeja estava sobre a mesinha ao lado

da poltrona vermelha. Sentou-se, apanhou o copo e disse:

— Estou toda confusa. Esta é a primeira vez em não sei

quantos anos que não tomo café na cama. Espero que a sua

explicação valha a pena.

Wolfe a encarava, com os lábios apertados:

— Peço desculpas. Mas não podemos perder tempo. Eu

disse “nós” porque vou propor um trabalho em conjunto. A

senhorita tem todo o dinheiro de que precisa, srta. Jaquette?

Ela parou com o copo a meio caminho da boca:

— Que pergunta mais idiota.

— Mas não sem razão. Nem é impertinente. Preciso saber

se a oportunidade, um pouco remota, mas é uma possibilidade,

Page 169: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

de ganhar cinqüenta mil dólares lhe interessaria. Interessa?

— Essa é ainda mais idiota.

— Interessaria?

— Está me perguntando?

— Estou.

— Cinqüenta mil em dinheiro?

— Sim.

— Menos o imposto de renda?

— Até pagá-lo. Não estou sugerindo nada; estou decla-

rando um fato: seria em dinheiro, e a senhorita não assinaria

nenhum recibo.

Ela tomou um pouco de suco:

— Sabe o que eu faria se tivesse cinqüenta mil dólares de

uma só vez? Iria para a faculdade durante quatro anos. Ou

cinco. — Bebeu mais um pouco de suco. — Creio que alguma

boa universidade. Terminei o segundo ciclo. Sinto que há muitas

coisas que deveria saber, mas não sei. Sempre sinto isso. O

senhor está falando sério?

— Sim. Há uma possibilidade de ganhar cem mil dólares, e

repartiríamos ao meio. Viria do homem que pagava as contas de

Isabel Kerr... o homem que a senhorita chama de lagosta. Ele

esteve aqui agora e...

— Ele esteve aqui? O senhor o conhece?

— Sim. Foi a terceira vez que esteve aqui. Veio duas vezes

na semana passada. É um homem rico e de projeção. Será

chamado de X, até o fim. Receia que seu nome venha a público

em relação com o que ele chama de seu ‘divertimento’ e um

assassinato sensacional, e a senhorita, o sr. Goodwin e eu

tentaremos impedir isso. Se conseguirmos, ele pagará. Dou-lhe

a minha palavra, pagará. Está com um medo horrível. Devo

continuar?

Page 170: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Ela colocara o copo sobre a bandeja, embora não estivesse

vazio.

— O senhor está falando sério?

— Sim.

— É mesmo verdade?

— Sim.

— Está bem, continue. Como poderemos evitar isso?

— Esse é o problema. Talvez não consigamos, mas não é

inteiramente impossível. Se continuar, irei contar-lhe coisas que

não poderá repetir, mas primeiro precisa responder a duas

perguntas. Está disposta a ajudar?

— Como? Não vejo como posso ajudar.

— Você já ajudou. Confirmou, sem dúvida alguma, a

identidade do chantagista. A do assassino foi estabelecida por

uma conclusão lógica. Está disposta a nos ajudar nisso?

Ela me olhou. Não só retribuí o olhar, como fiz que sim com

a cabeça. Respondeu para Wolfe:

— Sim, estou disposta.

— Promete guardar segredo sobre o que lhe direi?

— Sim, isso é fácil. Isso eu posso fazer.

— Então a senhorita é um modelo de virtude. Mas há

coisas que deve saber. Por exemplo, o sr. Goodwin e eu

soubemos o nome de X através de Orrie Cather. A srta. Kerr só

disse o nome dele a duas pessoas: Orrie Cather e sua irmã.

Podemos presumir isso com segurança, já que nem lhe contou.

A sra. Fleming contou ao marido; portanto, há cinco pessoas que

conhecem o nome dele. Eu me responsabilizo por três dos cinco

nomes: do sr. Goodwin, do sr. Cather e meu. Teríamos algumas

dúvidas sobre o sr. Cather se fosse julgado por assassinato, mas

não o será. Portanto, sobra apenas o sr. e a sra. Fleming como

as únicas fontes que poderão contar o nome de X. Estou

Page 171: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

explicando, para que fique bem claro.

— E está mesmo. Já lhe disse que sei o alfabeto de trás

para frente?

— Já disse ao sr. Goodwin e ao sr. Cramer. Eu também sei.

Agora vou lhe contar o fato que nos dá a nossa chance em mil.

Há uma pessoa que detesta que se publique o nome de X

associado com o da srta. Kerr ainda mais do que o sr. X. Conte

para ela, Archie.

Levei cinco segundos, não para calcular isso, mas para

perceber que eu nunca encarara as coisas sob esse ângulo.

Disse a Julie:

— Stella. No sábado lhe contei como reagiu, não foi? Ela

não quer um julgamento nem que apanhem o homem culpado.

É claro que o nome de X só apareceria ligado a Isabel. — Olhei

para Wolfe: — É mesmo. Com todos os diabos. Mas como?

— É para isso que precisamos da srta. Jaquette. — Seus

olhos se estreitaram ao fitá-la. — Quer café? Está ficando frio.

Ela apanhou o copo, bebeu o resto do suco, recolocou-o

sobre a mesa, pôs café na xícara e tomou um gole. Olhou para

Wolfe e balançou a cabeça:

— Não entendo. O que há de tão formidável nisso?

— Por causa das possibilidades que isso representa.

Suponhamos que a sra. Fleming saiba, ou mesmo suspeite, que

seu marido matou sua irmã, e sabe por que, e sabe também que

pode ser preso e acusado a qualquer instante, e mais tarde irá a

julgamento. O que ela podia fazer?

— Não sei. Não a conheço.

— O que ela faria, Archie?

— Também não sei o que ela faria — respondi. — Mas sei

que faria qualquer coisa, sem hesitar, para evitar que ele ou

qualquer outra pessoa contasse tudo sobre Isabel e X. É claro

Page 172: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

que não quer que isso vá a julgamento. Não sei até que ponto

ela gosta dele. Se gostar muito, a despeito do fato de ter

matado Isabel, pode ser que fuja com ele, ou, se pensa que ele

vai agüentar tudo e ficar com o bico calado, pode ficar ao seu

lado e lutar. Se não gostar dele o suficiente, pode mandá-lo para

a China ou mesmo matá-lo. A única coisa certa é que ela faria o

necessário para ter certeza, por exemplo, de que Orrie não fosse

a julgamento como testemunha da acusação, e ter de responder

perguntas sobre Isabel. Ou que X não testemunhasse sobre a

chantagem. Obviamente também teremos de contar a ela sobre

a chantagem. Para ter certeza dessas coisas, explodiria o

tribunal, se tivesse uma bomba — terminei, olhando para Julie:

— Portanto, aí está. Diga a ela o que disse ao sr. Fleming

naquela carta. Ele, por causa da carta, tentou matá-la com uma

arma. Ela não fará isso, mas alguma coisa vai fazer.

Sua testa estava franzida:

— Por que você não pode lhe contar?

— Não acreditaria em mim. Você pode lhe dizer coisas que

Isabel lhe contou, mas eu não posso. Conforme disse naquela

carta.

— Aquela carta era só mentira.

— A única mentira era que Isabel foi quem lhe contou. O

que você afirmou que ela lhe contara era verdade, e ele provou

isso. Sabe que Barry estava fazendo chantagem com X?

— Claro.

— Acha que há alguma dúvida de ser ele quem atirou em

você?

— Não.

— Acha que tentaria matá-la se fosse só porque você sabia

sobre a chantagem e queria o dinheiro, se ele também não

tivesse matado Isabel? Lembre-se, eu estava lá, e ele sabia no

Page 173: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

que eu estava trabalhando. No assassinato. Acho que seria

ótimo se você pudesse pegar os cinqüenta mil dólares, mas

também pensei que quisesse pegar o assassino de Isabel. Foi

isso o que você disse. Acha que há alguma dúvida de que ele a

matou?

— Não.

— Então conte até dois.

Apanhou a xícara para dar um gole, mas como já esfriara,

bebeu tudo e colocou a xícara sobre a mesa.

— Ele não seria acusado se ambos fugissem.

— É certo — concordei. — Mas estaria perdido, e não se

apresentaria para dizer o nome de X. Mas algum dia seria

encontrado; e depois? Como disse o sr. Wolfe, talvez não

consigamos, mas não é inteiramente impossível.

— Ela mora no Bronx.

— Certo.

— Eu teria de ir lá?

— Espero que não. Ele deveria lhe trazer os cinco mil

dólares hoje, e Deus sabe onde está ou o que vai tentar.

Durante algum tempo não quero mais ser guarda-costas.

— Traga-a aqui — disse Wolfe.

— Se você acha que não vou atrapalhar, estarei presente

— disse a Julie.

— Que homem! — disse ela, enquanto punha mais café na

xícara.

Girei a cadeira, apanhei o catálogo telefônico do Bronx.

encontrei o número, peguei o telefone e disquei, com esperança

que a sra. Fleming estivesse em casa e atendesse* ao telefone.

Estava, foi sua voz que disse alô.

— Aqui é Archie Goodwin, sra. Fleming. Talvez se lembre,

estive aí há uma semana.

Page 174: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Eu me lembro.

— Então talvez se lembre de que eu disse que a polícia

prendera o homem errado e que estava procurando o culpado.

Encontrei-o e gostaríamos de lhe falar sobre ele, e perguntar

como deveremos proceder. Sabemos que a senhora espera não

haver um julgamento, e queríamos discutir esse assunto com a

senhora. Será que podia vir aqui, ao escritório de Nero Wolfe?

Agora?

Silêncio. Prolongou-se tanto que pensei que havia des-

ligado. Mas, não. Finalmente eu disse:

— Sra. Fleming? — mas o silêncio continuou.

Por fim ouvi sua voz:

— Sr. Goodwin?

— Sim?

— Qual é o endereço?

Dei-lhe o endereço.

Page 175: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO XV

FOI UMA DECISÃO DIFÍCIL, e Wolfe levou cinco minutos para tomá-la.

E o almoço? Quando desliguei, após dar o endereço a Stella

Fleming, eram 12:10h. Será que ela viria imediatamente, e

quanto tempo demoraria para chegar? O almoço foi, é e sempre

será à 1:15h. Uma situação impossível. Wolfe sentou-se, levou

cinco ou seis minutos de cara amarrada para tomar uma

decisão, levantou-se e foi para a cozinha. Segui-o, já que

também costumo me alimentar. Julie não tinha problema, pois

sua omelete e a lingüiça estavam quase prontas. Vencemos

bem a crise. Julie comeu na minha mesa de café, Wolfe e eu nos

sentamos em banquetas na mesa grande, e comemos esturjão,

faisão defumado, aipo, três qualidades de queijo e cerejas ao

brandy, com especiarias. Já que era um lanche e não uma

refeição, não era proibido falar de negócios, e por isso

discutimos o que seria feito. Achava que Wolfe deveria estar

presente, e ele achava que não; deixamos Julie decidir e ela

concordou com ele. No corredor, do lado da cozinha, há um

buraco na parede coberto com um painel deslizante. No lado do

escritório, o buraco é coberto por uma gravura de uma catarata,

pela qual pode-se enxergar o outro lado. Wolfe ficaria ali numa

banqueta. Sobre o outro ponto principal, de ser eu quem deveria

chefiar o ataque, fomos unânimes.

Quando ela chegou, à 1:20h, comecei a atacar desde o

Page 176: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

corredor. Do outro lado do cabide, há uma cadeira e um banco,

muito práticos, mas ela não colocou a bolsa ali, enquanto eu a

ajudava a tirar o casaco, e não gostei do modo como se

agarrava a ela. Além disso, ainda me sentia abalado quanto às

balas atiradas contra Julie, embora não fosse minha culpa. Por

isso, quando ela se virou, mudando a bolsa da mão direita para

a esquerda, agarrei a bolsa. Ela tentou pegá-la de volta, mas

segurei-a firmemente, talvez até de maneira um pouco bruta,

esquivei-me e abri a bolsa. Reclamando, avançou para mim.

Empurrei-a de novo e enfiei a mão na bolsa. Agarrei uma coisa e

puxei-a para fora. Ela recuou, ofegante, por isso pude olhar e

ver o que era. Era uma automática Bristol, calibre 22, com a

coronha trabalhada, e estava carregada. Coloquei-a no bolso do

paletó e entreguei-lhe a bolsa.

— Desculpe se fui grosseiro — eu disse. — Devido ao que

aconteceu aqui uma vez, sempre revisto as pessoas.

Ela tentava se controlar, e tinha esperanças de conseguir.

Encolhera. Não só parecia menor do que há uma semana, mas

até o seu próprio rosto havia encolhido. Sua face era cheia,

agora estava encovada. Apanhou a bolsa e me disse:

— Dê-me a pistola.

— Não é uma pistola, é um brinquedo. A senhora a

receberá de volta. Conforme lhe expliquei, revisto todo mundo,

e neste momento fico feliz em tê-lo feito. Há uma moça aqui que

vai lhe dizer coisas que não gostará de ouvir, e a senhora é

muito impulsiva. O seu nome é Julie Jaquette e era a melhor

amiga de sua irmã. Creio que já a conheceu...

— Eu era a melhor amiga de minha irmã.

— A senhora é quem sabe. Vamos entrar. — Apontei com a

mão. — A porta é a da esquerda, que está aberta.

Pensei que ia recuar, e ela também. Mas eu estava com a

Page 177: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

pistola e poderia tê-la carregado debaixo do braço. Virou-se e

encaminhou-se pelo corredor, saltos batendo no chão, e a segui.

Deu dois passos para dentro do escritório e parou. Continuei e

fui até onde estava Julie, que se encontrava de pé ao lado da

minha escrivaninha. Tirei a pistola do bolso e mostrei-a para ela.

— Isto estava na bolsa dela — disse, e virei-me para

perguntar a Stella: — Onde seu marido guarda o rifle?

Acho que nem me ouviu. Puxei uma das cadeiras amarelas

e sentou-se. Julie sentou-se na outra. Devolvi a pistola ao bolso,

sentei-me na escrivaninha e disse a Julie:

— Já conhece a sra. Fleming.

Ela acenou:

— Isso estava na bolsa dela? Como tirou de lá?

— Tirando. Os tiros de sábado à noite não foram dis-

parados com ela — virei-me para olhar Stella. — Seu marido

atirou na srta. Jaquette no sábado à noite, mas errou. Por isso

perguntei onde ele guarda o rifle.

Olhou-me espantada, o queixo caído:

— O quê? Meu marido o quê?

— Tentou matar a srta. Jaquette. Estou lhe contando com

delicadeza, pois vêm aí coisas piores. Disse-lhe ao telefone que

descobri o culpado. A srta. Jaquette está aqui porque me ajudou

a encontrá-lo. Creio que o melhor modo é lhe mostrar uma cópia

da carta enviada ao seu marido na sexta-feira passada. — Abri a

gaveta e apanhei a cópia. — Quer que eu leia?

Olhou para Julie:

— A senhorita mandou uma carta para o meu marido?

— Sim.

Esticou a mão:

— Deixe-me vê-la.

Entreguei-lhe a cópia. Leu-a rapidamente, e depois a leu

Page 178: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

de novo, devagar. Olhou para Julie:

— De que se trata? Quem é Milton Thales?

Julie olhou para mim, o que não deveria ter feito. Presumia-

se que estivesse colaborando. Arregalei um pouco os olhos e ela

voltou-se para Stella.

— Seu marido é Milton Thales. Disse na carta que Isabel

me contara tudo, mas a única coisa que não me contou foi o

nome do homem que pagava suas contas, por isso vou chamá-lo

de X. Você é a única a quem ela disse o nome dele, e...

— Ela não me disse o nome dele.

— Ela me afirmou que lhe dissera. Isabel não era

mentirosa.

Assim, sim. Que mulher! Ela continuou:

— Por isso, quando X recebeu o telefonema de um homem

que sabia tudo e disse a X para lhe mandar dinheiro, mil dólares

por mês, endereçado a Milton Thales, através de caixa postal, e

X contou a Isabel, ela sabia que Milton Thales deveria ser seu

marido. Pois nenhum outro homem poderia saber o que Milton

Thales sabia. Isabel sabia que você deveria ter contado ao seu

marido e ele...

— Não contei ao meu marido.

— Deve ter contado, porque se...

Interrompi:

— Não adianta, sra. Fleming. Isso já foi confirmado. Seu

marido recebeu essa carta sábado de manhã. Telefonou para a

srta. Jaquette no hotel à uma hora. Às duas e meia, foi

pessoalmente lá. Eu estava com a srta. Jaquette. Ele nos contou

que não trouxera os cinco mil dólares extorquidos de X porque o

banco não estava aberto. Disse que traria na segunda-feira.

Hoje. Que horas ele chegou em casa no sábado à noite?

Não houve resposta. Ela me olhava fixamente.

Page 179: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Sei que chegou em casa tarde, pois à uma e meia da

manhã estava atrás de um muro no Parque Central com um rifle

ou um revólver, atirando na srta. Jaquette do outro lado da rua,

quando saímos de um táxi. Trouxe a srta. Jaquette para ficar

aqui, por isso não sabemos se ele tentou entrar em contato com

ela hoje, e sinceramente isso não nos interessa. O essencial é

que a senhora disse a ele o nome de X. Ele fez chantagem com

X e Isabel sabia. Isso já está resolvido.

Suas mãos estavam sobre o joelho, e esfregava as unhas

nas palmas. Arranhava-as, mas não a mim.

— Não acredito — disse, tão baixo, que mal ouvi. Repetiu,

mais alto: — Não posso acreditar.

— É duro, mas ainda vem o pior — continuei. — Isso ainda

não está provado, mas será. Agora, só temos o que Isabel

contou à srta. Jaquette. Não só lhe contou sobre a chantagem,

como lhe disse que iria contar ao seu marido que decidira lhe

dizer tudo. Ao ouvir isso pela primeira vez, quando a srta.

Jaquette me contou, fiquei imaginando por que a polícia estava

prendendo Orrie Cather em vez de seu marido. Mas então a srta.

Jaquette me disse que não falara à polícia sobre a chantagem. A

senhora pode lhe perguntar por quê. Talvez porque não

imaginou o que isso significava. Se falasse à polícia sobre a

chantagem, sobre tudo o que Isabel lhe contara, seu marido es-

taria agora na cadeia, junto com Orrie Cather ou no lugar dele,

como suspeito de assassinato. E quando contarmos a eles que

seu marido foi visitar a srta. Jaquette no sábado à tarde e tentou

matá-la nessa mesma noite, então tudo estará terminado. Eles

conseguirão as provas; por exemplo, seus movimentos na

manhã em que Isabel foi morta; será preso por assassinato,

julgado e provavelmente condenado. No telefone disse que

achara o homem certo, e achei: Barry Fleming.

Page 180: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Parara de se unhar e as mãos estavam fechadas em punho

e, enquanto eu falava, acenara três vezes: pequenos acenos

involuntários, sem saber que os fazia, como quando balançara a

cabeça, ao lhe dizer que talvez fosse Orrie Cather quem pagasse

o aluguel. Agora murmurou consigo mesma:

— Então é por isso.

Não lhe perguntei que ‘por isso’ era, pois não estava

buscando provas. Precisamos de provas a fim de demonstrar

alguma coisa ao promotor público, ao juiz ou aos jurados, e não

era isso o que desejávamos. O seu ‘por isso’ talvez fosse alguma

coisa, ou coisas, que ele fizera ou dissera. Por exemplo, onde

dissera que estava, mas não estava, na manhã que Isabel

morrera. O que quer que fosse, tornou as coisas mais simples do

que pensei. Pensei que ela tivesse pelo menos três ataques,

especialmente depois que achara seu brinquedinho na bolsa, e

lá estava ela falando baixinho consigo mesma. Julie disse:

— Não precisa atingi-la tão duramente.

Isso era desnecessário; não dei importância. Que diabo, ela

trouxera uma pistola, mesmo que não tivesse idéia do que fazer

com ela. Provavelmente para me derrubar, se chamasse Isabel

de ‘amásia’. Continuei falando com Stella:

— Talvez tente imaginar por que desejávamos discutir isso

com a senhora. Como é praticamente certo de que foi ele quem

matou Isabel, por que não dissemos tudo à polícia? Sem dúvida

teremos de fazer isso, mas não me esqueci do que a senhora

me disse aquele dia: a reputação de sua irmã era a coisa mais

importante do mundo. Nada sei sobre o seu relacionamento com

seu marido, mas pensei que talvez pudesse fazer alguma coisa.

Talvez a senhora possa persuadi-lo a ir à polícia e confessar que

a matou, dando um motivo totalmente diferente, alguma razão

que não mencionasse chantagem, X e tudo o que a senhora não

Page 181: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

quer que venha a público. Não sei se isso é possível, mas pensei

que gostaria de ter uma oportunidade. Não podemos esperar

muito tempo, não mais do que um ou dois dias. Digamos até

quarta-feira pela manhã.

— Hoje é segunda-feira — disse ela. Sua voz voltara ao

normal.

— Certo.

— Quero aquela carta.

A carta caíra ao chão quando começara a se unhar, e eu a

apanhara e pusera sobre a minha escrivaninha.

— É só uma cópia a máquina — eu disse.

— Quero-a.

Dobrei-a e a entreguei. Então pediu:

— A pistola.

— Quando for embora. De quem é, sua ou do seu marido?

— Dele. Ganhou várias medalhas de tiro ao alvo. —

Colocou a carta na bolsa, olhou para Julie e disse: — Tudo por

causa de gente como você.

— Bobagem — disse Julie. — Qualquer pessoa pode dizer

isso a uma outra. Você quer dizer, realmente, que tive má

influência sobre Isabel. Fui melhor para ela do que você. Eu

realmente a amava, mas e você? Pelo que ela me disse, o que...

Isso foi o bastante. Eu me descuidara um pouco, e ela agiu

repentinamente. Atirou-se sobre Julie tão depressa que estava

em cima dela antes de conseguir me mexer, e novamente não

seria culpa minha se Julie tivesse se machucado ou pelo menos

levado uns bons arranhões. Julie levantou os joelhos e, com os

pés fora do chão, o impacto a derrubou e a cadeira caiu de

costas. Stella ia se atirar sobre ela, mas eu a alcancei e segurei

seus ombros por trás. Puxei-a, prendi-lhe os braços, mas ela

disse:

Page 182: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Agora estou bem — e estava.

O ataque terminara tão depressa quanto começara. Julie

levantou-se, arrumou os cabelos e observou:

— Por mim, pode até bater nela.

Wolfe então falou, numa voz gelada:

— Senhora Fleming.

Nós todos nos viramos. Ele estava na porta.

— O sr. Goodwin foi generoso demais, dando-lhe até

quarta-feira de manhã. Seu prazo se esgota amanhã de manhã,

no máximo. Leve-a para fora, Archie.

Stella seguiu-o com os olhos até sua cadeira. Depois ficou

a procurar a bolsa. Apanhei-a de onde a deixara cair, coloquei a

pistola dentro e lhe disse:

— Na porta lhe entrego a bolsa.

Dirigi-me para a porta e ela me seguiu.

Page 183: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

CAPÍTULO XVI

ÀS QUATRO HORAS, Julie estava numa cadeira ao lado da janela no

Quarto Sul e, pelas aparências, muito interessada numa revista.

Eu estava de pé na porta. Não estávamos conversando. Eu lhe

perguntara se devia telefonar ao Ten Little Indians para dizer

que ela não podia ir esta noite, ou se preferia telefonar ela

mesma. Respondeu que nenhuma das duas coisas, ela ia lá, e

eu disse que não ia. A conversa ficara muito desagradável. Em

certo momento ela me pediu o número de telefone de Saul

Panzer, a fim de que ela o chamasse para levá-la, já que eu

receava me expor. Em outro momento eu disse que duvidava se

a maioria dos fregueses iria embora quando soubesse que ela

não iria aparecer. Em outro ainda, ela perguntou se realmente

ela ficaria ali contra a sua vontade, presa à força. Às quatro

horas ficou claro que não iríamos mais nos falar.

Ouviu-se então o ranger do elevador, e ela levantou a

cabeça para ouvir. Quando o rangido parou e ouviu-se o som da

porta do elevador se abrindo, atirou a revista sobre a mesa,

levantou-se e saiu andando. Ao se aproximar da porta desviei-

me, delicadamente, e ela a atravessou, foi até a escada e

começou a subir. Ia pedir ajuda ao dono da casa ou ajudá-lo com

as orquídeas; para mim tanto fazia. Desci os dois andares até o

escritório, liguei para o Ten Little Indians, disse que a srta.

Jaquette estava resfriada e não poderia ir. Não disse onde ela

Page 184: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

estava, pois poderiam mandar flores, e aqui não se precisava de

mais nenhuma.

Já que eu era o carcereiro, não podia dar uma volta, e de

qualquer modo tinha de ouvir o noticiário a cada meia hora para

saber se algo de novo acontecera no caso de assassinato, como,

por exemplo, que um homem chamado Barry Fleming estava no

escritório do promotor público para interrogatório, com relação

ao assassinato de sua cunhada. Nada aconteceu. Passei as duas

horas seguintes na minha escrivaninha e no arquivo, com os re-

gistros de germinação. Numa ocasião dessas, é bom ter alguma

coisa para se fazer que só precise de uma pequena porção da

nossa inteligência, como escrever nos cartões certos itens tais

como os resultados de um cruzamento entre Odontoglossum

crispo-harryanum x aireworthi ou Miltonia vexillaria x roezli.

Quando voltaram juntos no elevador às seis horas, estava

ocupado demais para virar ao menos a cabeça. Notei, porém,

uma presença junto ao meu ombro direito, e uma voz

perguntou:

— Posso ajudar?

Então estávamos nos falando. Respondi:

— Não, obrigado.

— Telefonou para lá?

— Sim, você está com um resfriado.

— Aconteceu alguma coisa?

— Sim. Aparentemente, fizemos as pazes.

— Oh, eu nunca fico zangada por muito tempo. De

qualquer modo, sabia que você tinha razão. Só queria ver até

que ponto você chegaria. Eu poderia ter dito uma coisa, poderia

ter ameaçado de chamar a polícia. Evidentemente, a única coisa

que você e Nero não suportam é que alguém diga qualquer

coisa à polícia. Ela já saiu há mais de quatro horas. Que diabo,

Page 185: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

que estará fazendo?

Esta era a segunda vez que eu ouvira uma mulher chamá-

lo de Nero, mas da outra vez fora uma piada. Com Julie, saíra de

forma natural. Se ela passava dois dias e duas noites na casa de

um sujeito, comia com ele, colaborava com ele, ajudava-o com

as orquídeas, seria tolice chamá-lo de senhor. Se ela

conseguisse os cinqüenta mil e escolhesse uma universidade

que não fosse muito distante, iria visitá-la depois que estivesse

lá algum tempo, para ver o efeito que ela causava. Obviamente

ela teria mais efeito sobre a universidade do que a universidade

sobre ela.

Aceitei a sua oferta em me ajudar nos registros de

germinação.

Ao jantar, Wolfe não repetiu a atuação do dia anterior. Não

era mais necessário fazer-lhe perguntas, e ele a pôs no seu

devido lugar ao discutir a diferença entre imaginação e invenção

na literatura. De vez em quando ela conseguia falar alguma

coisa. Em determinado momento, enquanto ele estava com a

boca cheia de miolo, ela disse:

— Você está falando difícil de propósito. Mostre-me uma

coisa num livro e me pergunte se é imaginação ou invenção, e

vou acertar sempre; quero ver você provar que estou errada.

Isso não é modo de se falar com um homem que está

fazendo o possível para que se possa freqüentar uma

universidade.

Enquanto Fritz servia o cafezinho, no escritório, Julie disse:

— Daria uma nota novinha de um dólar para saber o que

ela está fazendo. Qual é seu telefone? Vou ligar para ela.

— Pois, sim — respondi.

— Como você não tem nervos, incomoda os meus. Você

não daria nem um níquel furado para saber o que ela está

Page 186: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

fazendo.

— E para quê? — perguntou ele, bebendo café.

Era óbvio que já estavam cheios um do outro; ao

terminarmos o café, levei-a até o porão. No porão há o quarto e

o banheiro de Fritz, uma despensa e uma sala grande com

bilhar. Quando contara isso para ela, respondera que queria

aprender a usar um taco. Isso tiraria Stella Fleming de sua

cabeça, para não falar da minha. Mas ela não teve a lição de

bilhar. Acabara de tirar a coberta da mesa, apanhara um taco e

arrumara as bolas, quando a campainha tocou. Se eu não a

tivesse segurado pelo braço, teria subido antes de mim, e

estava rente ao meu calcanhar quando cheguei no corredor e

espiei pelo vidro. Julie disse:

— Meu Deus, ela estragou tudo.

Fui ao escritório e disse a Wolfe:

— Cramer.

Ele levantou os olhos do livro e apertou os lábios. Disse a

Julie:

— Vá para a cozinha e fique lá.

A campainha tocou novamente. Julie foi, mas não para a

cozinha, e sim para o corredor, onde estava o buraco. Eu lhe

disse:

— Se espirrar, queimo você em óleo fervente — e fui abrir

a porta.

Pelo olhar que Cramer me dirigiu, estava pronto para me

queimar em óleo, caso eu espirrasse ou não. Foi só o que me

dirigiu, aquele olhar. Enquanto eu pendurava seu casaco, ele já

estava na porta do escritório, e quando lá cheguei, estava

sentado na poltrona vermelha, falando:

— ... e você sabia que Barry Fleming disparou aqueles

tiros, e quero saber como sabia disso. Você também sabia que

Page 187: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Barry Fleming matou Isabel Kerr, e quero saber como descobriu.

Adeus, cinqüenta mil dólares, pensei, ao dirigir-me à minha

escrivaninha. Fleming agora estava preso e apostava dez contra

um que o fariam falar, não importa o que Stella fizera. Talvez já

o tivessem feito falar. Wolfe disse:

— O senhor está furioso, sr. Cramer.

— E estou mesmo.

— Então está em desvantagem. Não quer colocar em

ordem os seus pensamentos?

— Quero que responda a umas perguntas!

— Se souber as respostas. O senhor afirmou que eu sabia

que Barry Fleming matou Isabel Kerr. Devo lhe lembrar que, na

noite passada, disse-lhe que não tinha provas que pudessem

condenar qualquer pessoa por aquele assassinato; eu só tinha

suspeitas. Repito a mesma coisa. Ainda não tenho provas. O

senhor tem?

— Tenho.

— Barry Fleming está preso?

— Não. — O maxilar de Cramer estava rígido. — Olhe,

Wolfe, você conseguiu o que queria. Você queria soltar Cather, e

conseguiu. Ele está livre. Bem, não preciso de provas para

Fleming, mesmo que você as tenha. Preciso de fatos. Quero

saber se Barry Fleming disparou aqueles tiros em Julie Jaquette

e, se foi ele, por quê.

Os ombros de Wolfe levantaram-se alguns milímetros e

desceram de novo.

— Isso é importante? Importante para você? Pois você o

considera como assassino... ou será que não pensa assim? Disse

que ele não está preso. Se acha que, por acaso, eu estou com

ele aqui, esperando por você...

— Ele não está aqui. Está morto.

Page 188: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— É mesmo? Morte violenta?

— Sim.

O canto da boca de Wolfe levantou-se um pouco.

— O sr. Goodwin, a srta. Jaquette e eu não saímos de casa

o dia inteiro. Portanto, se pensa que...

— Ora, pare com isso. Ele se matou. Há três horas. Deu um

tiro na testa com uma automática Bristol 22. Pertencia a ele,

tinha porte de arma. E quero...

— Com licença. Em casa?

— Sim. Eu...

— Havia algum policial lá? Já o haviam interrogado?

— Não. Se você...

— Então como pode saber que ele matou Isabel Kerr?

Como pode saber de qualquer coisa? Não espere que lhe

esclareça tudo. Já lhe disse duas vezes, não tenho provas.

— Que diabo, não quero provas. Não sobre Isabel Kerr. Se

quiser provas a respeito dele, está bem. Quando chegou em

casa esta tarde, ele e a mulher conversaram, disse ela, e ele

escreveu alguma coisa e assinou. Ela saiu para ir ao mercado

comprar umas coisas e ficou fora uma meia hora. Quando

voltou, estava morto. Como sei que matou Isabel Kerr? Ela

estava com a prova, escrita e assinada por ele.

Apanhou um pedaço de papel do bolso de cima do paletó.

— Já comparamos com a sua caligrafia, mas o laboratório

irá verificar. — Desdobrou o papel. — Está assinado. A data é de

hoje.

Começou a ler:

“A quem interessar possa:

Declaro que no sábado, 29 de janeiro de 1966, bati na

cabeça de minha cunhada, Isabel Kerr, com um cinzeiro e

Page 189: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

a matei. Não foi premeditado. Fiz isso em um momento de

raiva e ressentimento incontroláveis. O ressentimento vem

se acumulando há três anos. Ela vive no luxo e minha

mulher e eu pagávamos por tudo. Todas as minhas

economias já tinham ido embora e logo ficaria sem nada,

mas ela não queria saber disso. Minha mulher era tão

ligada a ela que não fazia o que precisava ser feito. Naque-

la manhã de domingo tentei mais uma vez persuadir

Isabel, mas não consegui, e perdi o controle. Acertei-a com

o cinzeiro. Não pretendia matá-la, mas não espero perdão,

nem mesmo de minha mulher. Ela insiste que devo

escrever isto para que tenha provas das circunstâncias

sobre a morte de Isabel. Ela não me prometeu nada e não

sei o que vai fazer com isso.

Barry Fleming”

Cramer dobrou a nota e a colocou novamente no bolso.

— Naturalmente, a primeira coisa que você vai dizer, e foi

o que eu disse, é que ele não diz que vai se matar. Não diz

adeus. Mas é freqüente não dizerem adeus. A pistola estava lá,

no chão, e a bala entrou na têmpora direita no ângulo certo. Ela

falou alguma coisa com o policial na delegacia, mas agora está

sedada. É claro que mais tarde vamos interrogá-la, mas não

espero muito disso. Estou lhe contando porque isso resolve o

caso Kerr, e não faz mal que você saiba, mas não resolve tudo.

Os tiros disparados contra Julie Jaquette. Ontem você me disse

que não sabia quem atirou.

— Não sabia. Ainda não sei.

— Isto é uma mentira deslavada.

— Só minto quando é necessário. Agora não é necessário.

Ontem lhe disse que suspeitava haver uma ligação entre o

Page 190: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

assassinato da srta. Kerr e os tiros disparados contra a srta.

Jaquette; eu suspeitava, mas não sabia com certeza. — Wolfe

fez um gesto com a mão. — Sr. Cramer, há certos detalhes que

não pretendo tornar públicos e, de qualquer forma, o senhor

agora não precisa deles e não teria como utilizá-los. O

assassinato foi esclarecido e o culpado está morto. Mas o senhor

não é apenas um policial, com seus deveres e obrigações, é

também um homem curioso, e eu o provoco. Por isso vou lhe

contar o seguinte: descobri, não importa como, quem fornecia o

dinheiro para Isabel viver uma vida de luxo e riqueza, e certos

fatos pertinentes, e isso fez com que eu acreditasse que Barry

Fleming a matara. Também descobri, mais uma vez não importa

como, que Barry Fleming temia que a srta, Jaquette contasse

alguns fatos que ele achava que ela ouvira de Isabel Kerr.

Portanto, ela estava em perigo e devia ser protegida. Não sabia

se fora ele quem disparara os tiros; nem sei agora. Quanto a eu

estar mentindo, dou-lhe minha palavra de honra de que tudo o

que acabei de lhe dizer é a verdade. A srta. Jaquette ainda está

aqui, e se tiver tempo disponível, poderá vê-la. Presumo que ela

o provocaria, como o fez ontem.

Cramer olhou-me. Sabia, por experiência própria, que

quando Wolfe dá a sua palavra de honra fala sério. Olhou-me

com os olhos semicerrados, testa franzida, até que comecei a

imaginar se a minha gravata estava torta:

— Pensei que sempre fizesse tudo certinho — disse ele. —

Sempre arrogante. O tiro passou a que distância dela? Trinta

centímetros?

O que eu gostaria de fazer não se pode fazer a um tira,

especialmente um inspetor. A única coisa que podia fazer era

olhá-lo também de esguelha. Ele se levantou e olhou para

Wolfe, de cima para baixo.

Page 191: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

— Ainda estou curioso — disse ele. — Soube de muita

coisa, e, é claro, soube de Cather. Você percebeu que, se ele

não tivesse ficado calado, se nos tivesse contado o que lhe

contou, tudo, já teria saído há algum tempo, e Fleming estaria

preso, mas vivo. Lógico que você sabe. Mas você tinha de agir

assim. Para mostrar mais uma vez como é esperto. Como eu

desejo... ora, o que adianta

Virou-se para tomar a direção da porta, mas antes de lá

chegar parou e virou-se.

— Não acha que devia mandar flores para o enterro?

Se ele não tivesse feito aquela piadinha, eu o teria ajudado

a vestir o casaco. O tiro errara por um metro, não trinta

centímetros. Ao ouvir a porta da rua fechar, fui dar uma olhada.

Ele já saíra. Chamei Julie. Estava com uma cara estranha, como

se estivesse tentando dizer o alfabeto de trás para a frente e

não soubesse como começar. Parou, olhou para mim, e a peguei

pelo braço para levá-la ao escritório. Sentou-se na poltrona

vermelha e disse a Wolfe:

— Você sabia que isso iria acontecer. Você sabia.

Olhou-a, aborrecido.

— Não sabia. Não sou astrólogo. Foi Archie, e não eu,

quem lhe deu a idéia. “Arranje um motivo totalmente diferente”,

foi a sugestão dele, e ela fez isso. Brilhantemente. Archie, o que

eu realmente disse a X?

— Você disse: “Quanto ao sr. e sra. Fleming, o melhor que

eu poderia fazer seria criar uma situação que tornasse bastante

improvável que jamais contassem o que sabiam.” Fim da

citação. E que ele seria o juiz da situação.

— Eu disse que ela era uma formiga — disse Julie. — Meu

Deus, ela deve ser... primeiro a irmã e depois o marido. O que

você está fazendo, Archie?

Page 192: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Tirei uma moeda do meu bolso e a joguei para cima:

— Estou decidindo uma coisa que não pode ser concluída

de outra forma. — Inclinei-me para olhar. — Coroa. Ela atirou

nele.

Page 193: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

http://groups.google.com/group/digitalsource

Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure :

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA LINOLIVRO S/C COMPOSIÇÕES GRÁFICAS LTDA. E

IMPRESSA NA GRAFICA EDITORA BISORDI LTDA., PARA A EDITORA NOVA FRONTEIRA

S.A., EM ABRIL DE MIL NOVECENTOS E OITEN-TA E QUATRO.

Page 194: Rex Stout Um Cadáver de Luxo

Não encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo Reembolso Postal àEDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. — Rua Maria Angélica, 168 —

Lagoa — CEP 22.461 — Rio de Janeiro