Rex Stout Um Cadáver de Luxo
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Rex Stout
Um Cadáverde Luxo
Tradução deMARIA HELENA PIRES
Título original:DEATH OF A DOXY
© 1966 by Rex StoutDireitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP: 22.461 — Tel.: 286-7822
Endereço Telegráfico: NEOFRONTRio de Janeiro — RJ
Revisão:MARIA DE FÁTIMA BARBOSA
NEIDE ROMANA MOREIRA
PAULO GUANAES
http://groups.google.com/group/digitalsource
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Stout, Rex.S888c Um Cadáver de luxo / Rex Stout ; tradução de MariaHelena Pires. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984.
Tradução de: Death of a doxy
1. Ficção policial e de mistério (Literatura estadunidense) I. Título
84-0127 CDD — 813.0872
CDU — 820(73)-312.4
CONTRA CAPA
Viva, Isabel Kerr era cobiçada por todos os homens. Morta,
se transforma num incômodo. Principalmente para aqueles que
a tinham protegido. A fim de abafar o escândalo de uma ligação
amorosa que envolveu a jovem e um dos homens mais
importantes dos Estados Unidos, Nero Wolfe é chamado para
enfrentar um dos maiores desafios de sua carreira. É essa a
trama de Um cadáver de luxo, de Rex Stout, o mesmo autor de
Um discurso fatal, com que a Nova Fronteira relançou no Brasil
os casos do “mestre dos detetives particulares americanos”.
ORELHAS DO LIVRO
Um cadáver de luxo
No chão atapetado de um luxuoso quarto cor-de-rosa, um
cadáver de mulher. Contrastando com a delicadeza de seu
cabelo e os olhos azuis, o sangue do crânio afundado pelo peso
de um cinzeiro de mármore. Rendas sensuais envolvem o corpo
inerte de Isabel Kerr, ex-corista de teatro e amante de um
homem muito influente. Que motivos haveria para matar a linda
Isabel? Quem seria o assassino, numa manhã fria do inverno
nova-iorquino?
Esta a trama central de Um cadáver de luxo. Lembra um
roteiro de cinema em suas primeiras cenas, com um misto de
tensão, mistério e intriga, à maneira do mestre Alfred Hitchcock.
No entanto, o que as páginas iniciais desse livro anunciam é o
segundo romance da série começada por Um discurso fatal, com
o qual a Nova Fronteira relançou no Brasil as aventuras do
famoso detetive Nero Wolfe.
Gordo, bebedor de cerveja, requintado gourmet e criador
de orquídeas, Nero Wolfe é o personagem principal de 46 títulos
de Rex Stout. Graças a ele, Stout — antes malsucedido em três
romances ‘de idéias’ — enveredou pelo gênero policial, foi
traduzido no mundo inteiro e vendeu até hoje 80 milhões de
exemplares.
Constantemente comparado a Agatha Christie,
principalmente pelo bom gosto, raciocínio lógico e a dose certa
de suspense e violência, esse americano avesso ao contato
social e à mediocridade é responsável também pela criação de
Archie Goodwin. Eficiente e destemido auxiliar de Nero Wolfe,
ele se torna peça indispensável para destrinchar casos
enigmáticos, como o que empolgará o leitor de Um cadáver de
luxo.
Capa: Jader Marques Filho/Victor Burton
Ilustração: Ingrid Von Steurer/Gilberto Zavarezzi
Um Cadáver de Luxo
CAPÍTULO I
FIQUEI DE PÉ, olhando à minha volta. É de rotina, ao sair de um
lugar onde não se deveria estar, supor se e onde se tocou nas
coisas, mas desta vez era mais do que uma simples rotina.
Precisava ter certeza. Havia muitas coisas na sala: cadeiras
ornamentadas, uma grande televisão de luxo, uma lareira de
mármore, sem fogo, uma mesinha de café em frente a um
grande sofá com várias revistas, e assim por diante. Quando me
certifiquei de que não tocara em nada, virei-me e entrei no
quarto de dormir. Quase tudo nele era macio demais para
guardar uma impressão digital: o tapete de parede a parede, a
colcha cor-de-rosa na cama de tamanho acima do comum, as
cadeiras estofadas, a frente de cetim cor-de-rosa nas três peças
de mobília. Fui dar mais uma olhada no corpo de uma mulher,
no chão, a uns sessenta centímetros da cama, deitada de costas
com um braço dobrado. Não precisara tocar para verificar que
era um cadáver, nem precisara ver a parte afundada do crânio,
mas haveria a chance num milhão de eu ter colocado os dedos
no cinzeiro pesado de mármore? Os tocos e cinzas que estavam
lá antes encontravam-se agora espalhados, e era quase certo
que ele afundara o crânio da mulher. Abanei a cabeça; eu não
teria sido tão estúpido.
Saí. Obviamente tive de usar meu lenço na maçaneta, na
parte de dentro e na de fora, e chamei o elevador com o nó dos
dedos e, dentro do elevador, fiz o mesmo quando apertei o
botão 1. Limpei o botão 4, que apertara ao subir, com o meu
lenço. Não havia ninguém no pequeno saguão lá embaixo, e
como usava luvas quando entrara, não me preocupei com as
maçanetas do lado de fora da porta. Tomei a direção oeste, para
a avenida Lexington, e coloquei as luvas. Era o dia mais frio do
inverno, com um vento penetrante.
Não tento pensar muito quando estou andando, pois se
esbarra nas pessoas, mas em todo caso nem precisava adi-
vinhar nada, quanto mais pensar. Eu precisava, sim, fazer umas
perguntas, e a pessoa a quem fazê-las morava no segundo
andar de um prédio sem elevador, na rua 52, entre a 8.a e a 9.a
Avenidas. Como estava na rua 39, teria que andar treze
pequenos quarteirões para cima e quatro longos quarteirões
transversais. Pelo meu relógio eram 16:36h. Apanhar um táxi a
essa hora do dia é um inferno, e eu não tinha pressa. Ele estava
trabalhando. Fui a pé.
Faltava um minuto para as cinco horas quando entrei
numa cabine telefônica de uma lanchonete na 8.a Avenida e
disquei um número. Quando Fritz atendeu, pedi-lhe que o
chamasse na estufa, e, depois de esperar um pouco, ouviu-se
um grunhido:
— Sim?
— Sou eu — disse. — Encontrei um obstáculo com esse
trabalhinho particular e não sei quando voltarei. Provavelmente
não chegarei a tempo para jantar.
— Está em apuros?
— Não.
— Se precisar de você, posso lhe falar?
— Não.
— Muito bem. — E desligou.
Ele estava sendo tolerante, pois se tratava de um assunto
meu e ele nada tinha a ver com isso. Detesta ser incomodado
quando está com as orquídeas, e se estivesse fazendo um
trabalho para ele, diria que eu deveria ter falado com Fritz.
Após sair e andar mais meio quarteirão para oeste, com o
rosto gelado, mas o sangue circulando bem, entrei num
vestíbulo e apertei o botão marcado com o nome Cather. Mesmo
depois de ter apertado mais duas vezes, o porteiro eletrônico
não funcionou — conforme eu esperava. Estava frio demais para
ficar ali, por isso voltei à 8.a Avenida, pensando em tomar cinco
ou seis dedos de bourbon. Mas só gosto de tomar bourbon para
relaxar, não quando tenho de ficar alerta; assim, dirigi-me ao
balcão de uma lanchonete e tomei café.
Após o café, fui a uma cabine e disquei um número, e
desliguei depois de o telefone ter tocado dez vezes sem
resposta. Voltei ao balcão e tomei um copo de leite. Fui
novamente à cabine; não obtive resposta e pedi um sanduíche
de pão de centeio com corned beef e café. Nunca se compra
pão de centeio na velha casa de tijolo da rua 35 Oeste. Só às
6:20h, na minha quinta visita à cabine, depois de comer o
segundo pedaço de torta de abóbora e beber a quarta xícara de
café, uma voz disse alô.
— Orrie? Aqui é Archie. Você está sozinho?
— Claro. Estou sempre sozinho. Você foi lá?
— Sim. Eu...
— O que você pegou?
— Prefiro lhe mostrar. Estarei aí em dois minutos. — Que
diabos, eu vou...
— Estou perto. Dois minutos. — Desliguei o telefone.
Não parei para vestir o casaco e as luvas. Um bom teste de
habilidade de sobrevivência é ficar dois minutos num vento de
zero graus. Ao apertar o botão no vestíbulo, ouvi imediatamente
o clique de abrir a porta. Quando entrei e comecei a subir as
escadas, Orrie falou lá de cima:
— Que diabos, eu podia ter ido.
Uma vez Nero Wolfe, querendo se exibir, me disse:
— Vultus est index animi — e eu respondi: — Isso não é
grego.
— Não — disse ele — é um provérbio em latim. ‘O rosto é o
espelho da alma.’
Bem, depende do rosto e da alma. Numa mesa de pôquer,
à sua frente, o rosto de Saul Panzer é uma amostra do nada.
Mas continuamos tentando e era o que eu fazia com o rosto de
Orrie Cather, depois que ele me disse para entrar, tomou meu
casaco e chapéu e nos sentamos. Fiquei a olhá-lo, até que
perguntou:
— Não sabe quem sou?
— Vultus est index animi — respondi.
— Ótimo — disse ele. — É o que sempre imaginei. Que
diabos há com você?
— Simples curiosidade. Será que está brincando comigo?
— Ora, vamos. Brincando como? Para quê?
— Eu gostaria de saber. — Cruzei as pernas. — Está bem,
aqui está meu relatório. Fiz tudo o que o roteiro mandava.
Cheguei às 4:15h em ponto, apertei a campainha diversas vezes
e, como esperava, não tive resposta. Usei a chave que me deu,
fui ao quarto andar de elevador, usei a outra chave e entrei. Não
havia ninguém na sala e fui até o quarto. Não digo que tivesse
alguém lá, pois um cadáver não é alguém. Estava no chão, não
muito longe da cama. Nunca vi Isabel Kerr ou um retrato seu,
mas creio que era ela. Usava uma coisinha cor-de-rosa com
rendas e sandálias rosas, sem meia. Alguns...
— Quer dizer que estava morta?
— Não interrompa. Alguns centímetros acima de um metro
e meio, 55 quilos, rosto oval, bem-feito, olhos azuis, o cabelo
dourado cor de mel e orelhas pequenas...
— Meu Deus. Meu Deus!
— É ela?
— Sim.
— Pare de me interromper. O Sr. Wolfe nunca interrompe.
Não tive que tocá-la para me certificar. Havia um ferimento na
testa e um achatamento do crânio, alguns centímetros acima e
atrás da orelha esquerda. No chão, a uns dez centímetros de
seu ombro direito, havia um cinzeiro de mármore,
suficientemente pesado para afundar um crânio mais grosso
que o dela. Num braço e numa perna havia manchas roxas.
Lividez cadavérica, caso não saiba. A testa já estava fria e...
— Você disse que não a tocou.
— Eu toco com os dedos. Colocar um pulso contra uma
testa ou uma perna não é tocar. A perna, também fria. Já era um
cadáver no mínimo há cinco horas, talvez há mais tempo. O
cinzeiro estava vazio. Havia tocos e cinza no tapete, mas nada
no cinzeiro. Fiquei lá dentro uns seis minutos. Não me agradava
a idéia de ficar lá para procurar alguma coisa. — Pus a mão no
bolso e apanhei uma coisa. — Aqui estão as suas chaves.
Ele nem as viu. Os dentes estavam cerrados. Abriu-os para
dizer:
— Brincando com você. Pelo amor de Deus. Brincando com
você.
— É claro que estou curioso.
Ele se levantou e saiu por uma porta. Atirei as chaves na
mesa e olhei em volta. Era um quarto de bom tamanho, com
três janelas, e a mobília servia para um solteirão não muito
exigente. A única luz provinha de duas lâmpadas presas à
parede, mas havia uma lâmpada, ao lado de uma poltrona, que
não estava acesa. Orrie voltou com uma garrafa e dois copos,
oferecendo-me um, mas eu recusei, agradecendo, pois acabara
de jantar. Colocou um copo sobre a mesa e no outro colocou
bebida, deu um bom trago, fazendo uma careta, e sentou-se.
— Brincando com você — repetiu. — Tolice. Pode me
perguntar onde eu estava desde as oito horas da manhã e se
posso provar.
Abanei a cabeça.
— Já que só estou curioso, isso seria demais. Se eu
quisesse ser desagradável teria começado gritando alguma
coisa como: “Por que deixou o cinzeiro no chão?” É claro que
temos de considerar os fatos, um deles é que eu talvez seja a
única pessoa, além de você, a saber que a morte dela é como se
cravassem um espinho na sua carne. Um espinho bem fundo.
Por isso, é claro que estou curioso sobre um detalhe. Você a
matou?
— Não. Meu Deus, Archie, pensa que sou trouxa?
— Não. Você não é um gênio, mas não é um trouxa. Afinal
de contas, se você me chamou, sabia que eu ia lá hoje. Seria
ótimo se você pudesse provar onde estava.
— Não posso. — Olhava em minha direção, mas
provavelmente não estava me vendo. Tomou um grande gole de
uísque e engoliu duas vezes. — Conforme lhe disse, estou
fazendo um serviço para Bascom. Saí às oito horas, e um pouco
antes das nove achei o suspeito, a quem segui o dia inteiro.
Foi...
— Seguiu sozinho?
— Sim. Simples rotina. Das 9:15 às 12:35h fiquei no
saguão de um prédio.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Então ainda estou curioso. Se as nossas posições fossem
inversas, você também estaria; mas é só isso, só curiosidade.
Quer me perguntar alguma coisa?
— Sim, quero. Você estava de luvas e tinha as chaves.
Sabia que havia acontecido alguma coisa lá. Por que não deu
uma olhada rápida?
Sorri para ele:
— Você não está realmente falando sério.
— Lógico que estou.
Acenei com a cabeça:
— De vez em quando você é realmente um trouxa. —
Levantei-me. — Como sabe, Orrie, e como eu também sei, você
acha que seria ótimo se tivesse o meu emprego. Está certo, não
há nada de errado na ambição. E se você ficasse ambicioso
demais? E se você soubesse que não havia nada lá que o
inculpasse? E se você tivesse arranjado tudo para que um
homem, eu, chegasse lá às 4:15h e outro homem, talvez um
policial que tivesse recebido um telefonema anônimo, chegasse
uns minutos mais tarde? Não seria acusado de assassinato, pois
a autópsia provaria a hora da morte, mas estaria com as chaves
e as luvas de borracha, e com isso eu teria conseguido uns dois
anos de cadeia. É claro que não acreditei realmente nisso, mas
como sou do tipo nervoso...
— Bolas. — Ele continuava no mesmo lugar, a cabeça
atirada para trás. — O que você vai fazer?
Olhei para o relógio:
— O jantar já deve estar quase no fim, e de qualquer
maneira já comi. Vou para casa saborear e repetir o crème
Gènoise. Você pega oito biscoitos de amêndoas feitos em casa e
deixa de molho em meia xícara de conhaque. Coloca duas
xícaras de leite puro, meia xícara de açúcar e a casca de meia
laranja, cortada bem fina, dentro...
— Deixe de palhaçada! — gritou ele. — Você vai contar
para Wolfe?
— Preferia não contar.
— Vai?
— Do modo que as coisas estão agora, não.
— Ou vai dizer para Saul ou Fred?
— Não. Nem a Cramer nem a J. Edgar Hoover. — Fui até o
sofá apanhar meu casaco e meu chapéu. — Não faça nada que
eu não faria. Você sabe o que os médicos chamam de ética
profissional?
— Sim.
— Bem, espero sinceramente que você não precise.
E fui embora.
CAPÍTULO II
O NEW YORK TIMES sabe como escrever as coisas: “Ao que tudo
indica Miss Kerr não trabalhava em lugar algum nem exercia
qualquer atividade.” Não se pode colocar as coisas melhor,
deixando a mente aberta a todos os tipos de pensamentos.
Na mesa da cozinha, onde tomo café, com o Times à
minha frente, coloquei melado de Porto Rico sobre os bolinhos
de aveia e disse a Fritz:
— Seria um bom assassinato para se trabalhar.
Na mesa grande, inspecionando cogumelos secos en-
quanto me observava para ver quando precisaria fazer mais
bolinhos, Fritz abanou a cabeça e disse:
— Nenhum assassinato é bom de se trabalhar. Quando o
caso é de assassinato, a campainha da porta me assusta e
nunca sei se você vai voltar vivo.
Disse-lhe que estava me enganando, nunca o vira com
medo, espetei mais um pedaço de bolo com melado e comecei
novamente a ler o artigo do Times. Eu sabia mais do assunto do
que o jornal, o que me parecia ótimo. Os únicos dados novos
para mim era que o corpo fora descoberto por Stella, a irmã de
Isabel Kerr, que Stella era a mulher de Barry Fleming, professor
de matemática na escola Henry Hudson, que Stella fora ao
apartamento um pouco antes das sete da noite de sábado,
menos de três horas após eu ter saído de lá, que Isabel morrera
aproximadamente entre oito horas e meio-dia, que Stella não
queria falar com os repórteres e que o escritório da polícia e o
do Promotor Público haviam começado uma investigação
rigorosa. O retrato de Isabel provavelmente fora desencavado
numa agência teatral, pois exibia um sorriso de corista. O de
Stella fora tirado quando um policial a conduzia pela calçada.
Até aí, tudo bem. Mas se o que eu fizera pelo Orrie não
fosse brincadeira, se ele não estivesse me enganando, e eu
realmente não acreditava que ele estivesse, logo haveria brigas
e discussões. Terminei o café e fui ao escritório, onde liguei o
rádio. No noticiário das dez horas não havia nada. Quando Wolfe
desceu da estufa, às onze, o rádio ainda estava ligado. Dirigiu-se
à sua escrivaninha e sentou-se na única cadeira onde seu corpo
volumoso realmente sente-se bem acomodado, olhou aborrecido
para o rádio e depois para mim, perguntando:
— Há alguma coisa urgente?
— Sim, senhor — respondi. — Será que os Bravos vão jogar
em Milwaukee ou em Atlanta? Além disso, hoje é domingo, dia
de descanso.
— Pensei que você tivesse um compromisso.
— O compromisso é às treze horas e talvez eu não vá. O
almoço deve ser bom, mas depois tem um sujeito que vai ler
poesia,
— Poesia de quem?
— Dele mesmo.
— Ugh!
— Certo. Acredito que Miss Rowan sabia que ele estava
com fome e apenas queria dar-lhe o que comer, mas aí o sujeito
disse que faria um grande favor a ela e a seus amigos, e ela não
pôde recusar. Ele chama de epiton porque é um poema épico e
leva horas para recitar.
O canto de sua boca elevou-se meio centímetro.
— Bem feito.
— Sim. O que ela fez no carro aquela noite foi por
obrigação, mas você nunca a perdoará. Talvez eu não vá.
— Vá — disse ele, com um gesto.
Pegou sua cópia do Times de domingo e começou a ler.
Recebemos três exemplares, quase dez quilos de jornal — um
para ele, um para mim e o outro para Fritz.
Ao ouvir no noticiário do meio-dia que não diziam nada de
novo sobre o crime, decidi que seria tolice ficar sentado a tarde
inteira brigando com o Times, prendendo a respiração a cada
meia hora ao ouvir as notícias, e subi os dois andares até meu
quarto. Como já fizera a barba, tinha só que mudar de camisa e
vestir um dos meus quatro ternos. Ao descer, avisei na cozinha
e no escritório que já ia sair. Fui à garagem na 10.a Avenida
onde guardamos o Heron que pertence a Wolfe, mas que eu
dirijo. Aos domingos, muitas vezes se encontra onde estacionar.
Às 4:25 eu estava sentado numa cadeira confortável na sala do
apartamento dúplex de Lily Rowan, ao alto de um prédio na rua
63, recostado, com os olhos fechados, tentando decidir qual
deles eu preferia ter no meu time, Willie Mays ou Sandy Koufax.
O poeta, um cara de rosto longo de barbicha, que não parecia
estar com fome, pois acabara de fazer uma boa refeição, ainda
recitava, mas há mais de uma hora que eu não o escutava. Era
apenas um barulho ao fundo. Sentindo que me cutucavam no
ombro, abri os olhos e vi Mimi, a empregada. Mexendo os lábios,
pronunciou a palavra “telefone” sem fazer ruído. Levantei-me,
dirigi-me a uma porta no canto da sala e entrei no escritório
onde fica a escrivaninha, na qual Lily faz os cheques para as
causas que os merecem. Peguei o telefone e falei:
— Aqui é Archie Goodwin.
— Creio que leu sobre o assassinato de uma mulher
chamada Isabel Kerr? — respondeu a voz de Wolfe.
Respondi que sim.
— Eu também. Parker está aqui. Ele recebeu um tele-
fonema de Orrie Cather, pedindo que fosse à delegacia de
polícia na rua 20, o que ele fez. Orrie está sob custódia como
testemunha do crime. Ele deu ao Sr. Parker algumas
informações, não muitas, e lhe disse que perguntasse a você.
Por quê?
— Porque sim. Parker ainda está aí?
— Sim.
— Chegarei dentro de vinte minutos.
Desliguei, fui à cozinha e disse a Mimi que avisasse a Lily
que eu precisava sair, apanhei meu casaco e chapéu na
entrada, saí e chamei o elevador. O carro estava logo após a
esquina da Avenida Madison. Ao entrar, tomando a direção
oeste, disse a mim mesmo que era melhor continuar pensando
em Willie Mays e Sandy Koufax. Não havia nada que pudesse
fazer até ter conversado com Parker. Ao entrar na garagem,
decidi definitivamente ficar com Willie Mays. O braço de Koufax
era muito problemático. Portanto, sentia-me como se tivesse
realizado alguma coisa de valor quando subi os degraus do
pórtico, entrei, tirei o casaco e o chapéu, e me dirigi ao
escritório.
Nathaniel Parker, o advogado que Wolfe utiliza em caso de
necessidade, estava sentado na poltrona vermelha, e na
mesinha ao lado havia uma garrafa de uísque, uma de soda,
uma vasilha com gelo e um copo. Wolfe estava à escrivaninha,
bebendo cerveja. Como aos domingos não sobe para ver as
orquídeas na estufa, é o dia em que bebe mais cerveja. Há mais
de dois meses que não via Parker e ele se levantou para apertar
minha mão. Eu disse a Wolfe:
— Isto vai ser pior do que ouvir poesia.
Fui até a minha mesa, girei a cadeira, sentei-me e disse a
Parker:
— Se você vai soltá-lo, preferia esperar até vê-lo.
— Você iria esperar muito tempo — respondeu Parker. —
Acho que vão ficar com ele. Ao menos é o que parece, pelo
modo que falam...
— Acusação de assassinato?
— Ainda não, mas acho que será em breve. Talvez
amanhã.
Wolfe grunhiu, em minha direção:
— Foi ele quem matou aquela mulher? Foi esse o seu
assunto pessoal de ontem?
— Vamos ficar calmos — sugeri. — Se ele disse para me
consultar, quero saber exatamente o modo como falou. — Virei-
me para Parker: — Quer explicar, por favor?
— Lógico. — O advogado tomou um gole e pousou o copo
na mesa. — Ele não falou muito. Disse que não responderia a
nenhuma pergunta, nenhuma mesmo, antes de falar comigo. É
claro que conhece todas as regras. Mas nem comigo se abriu.
Nem ao menos me disse se conhecera a mulher ou se tivera
alguma relação com ela. Só me disse três coisas. Um, ele não a
matara nem estivera perto dela ou de seu apartamento ontem
em hora alguma; dois, onde ele estava ontem. Três, eu deveria
vir aqui e você decidiria o que me dizer. Quando saí de lá, ficou
combinado que ele contaria onde estivera e o que fizera ontem,
e ficaria mudo sobre qualquer outro assunto, e que amanhã,
após ter falado com você, eu iria vê-lo.
— Você é advogado dele?
— Concordei com isso. Condicionalmente, até ter falado
com você.
— Então sou eu quem decido?
— Sim. Ele me pediu para lhe dizer que quer que você
decida como vai proceder.
— Isso é ótimo. Aprecio muito isso, alguém confiar em mim
desta forma. Deixe-me coçar o nariz.
Cocei-o com a ponta do dedo, com os olhos fixos no globo
vermelho em cima da estante, mas sem realmente vê-lo. Não
demorei muito tempo, porque na realidade era muito simples:
ou tudo ou nada, e não tinha importância se Parker ouvisse
agora ou no dia seguinte. Levantei-me:
— Pensei que aos domingos, no inverno, você jogasse
bridge.
— E jogo. O chamado de Cather interrompeu o jogo.
— Minha sugestão é voltar e continuar a jogar. Decidi como
agir. Vou contar tudo ao sr. Wolfe. Prefiro que ele me olhe
aborrecido enquanto eu conto para ele, do que quando eu
contar para você. Mais tarde eu ou ele lhe contaremos. Amanhã
de manhã seria ótimo. Se preferir, pode esperar na sala da
frente, mas vai demorar um pouco.
Os lábios de Wolfe estavam tão comprimidos que quase
não os via. Pegou a garrafa e pôs um pouco de cerveja no copo.
Parker apanhou o copo e o esvaziou, colocou-o sobre a mesa,
levantou-se, olhou para mim e disse:
— Gostaria que você me dissesse só uma coisa,
confidencialmente: foi ele quem a matou?
— Mesmo que soubesse — respondi — não seria
confidencial. Não sou seu cliente.
Encaminhei-me para a entrada, mas fiquei segurando seu
casaco nas mãos alguns minutos enquanto ele falava com
Wolfe. Finalmente apareceu, levou algum tempo ajeitando o
cachecol, abotoando o casaco e pondo as luvas, e encolheu os
ombros quando uma lufada de vento o atingiu ao atravessar a
soleira da porta. Ao voltar ao escritório, vi que Wolfe reabrira o
livro que lia agora, Convite para um inquérito policial, de Walter
e Miriam Schneir. Era infantil. Ele estava acentuando o fato de
que sua leitura de domingo fora estragada, primeiro por Orrie,
depois por mim. Ao sentar-me, disse-lhe:
— Se estiver no meio de um capítulo, não tenho pressa
alguma.
Resmungou, pôs o livro na mesa e olhou-me, aborrecido.
Comecei a falar:
— Anteontem, sexta à tarde, Orrie me telefonou e marcou
um encontro comigo à noite. Talvez você se lembre que eu,
infelizmente, não estava aqui para ajudá-lo a comer o frango
Souvaroff. Encontrei-me com Orrie às sete horas no Giordano,
um restaurante na rua 39 Oeste. Agora...
— Não faça resumos.
— Não farei. Agora vou lhe dizer o que ele me disse. Ele
estava numa enrascada. Ia se casar com uma garota chamada
Jill Hardy, uma aeromoça. Mostrou-me um retrato dela. Haviam
marcado para o princípio de maio, quando ela teria férias. Mas
havia um obstáculo. Uma outra moça, de nome Isabel Kerr,
estava criando objeções. Ela mesma queria se casar com ele, e
achava que ele era, ou seria, o pai da criança que ela esperava
para daqui a sete meses. Queria brigar por isso, em público, se
necessário. Disse que tinha em seu poder, talvez numa gaveta
trancada no seu apartamento, certos objetos que podia usar.
Um desses objetos era sua licença de investigador particular,
que retirara do bolso dele uma noite, cerca de um mês atrás. E
também uns retratos e cartas, e talvez outras coisas que Orrie
não sabia quais seriam. O problema principal não era que ela
pudesse fisgá-lo, mas sim que estragaria seu relacionamento
com Jill Hardy.
— Ela não podia obrigá-lo a casar-se. Para que casar? —
Wolfe resmungou.
— Está bem, esse é o seu ponto de vista, mas não era o de
Orrie. Ele queria aqueles objetos e tinha quase certeza de que
estavam no apartamento. Sabia que ela ia ao cinema de tarde,
duas a três vezes por semana, e quase sempre aos sábados.
Tinha as chaves do apartamento. A idéia dele era que eu iria lá
no dia seguinte, sábado, que agora é ontem, às 4:15h, tocaria a
campainha; ninguém viria atender, entraria e daria uma
espiada. Não gostei muito da idéia. Se fosse para Saul ou Fred,
faria com prazer, porém, apesar de não ter nada contra Orrie,
não pediria suas meias emprestadas. Explicou que não me
envolveria, acontecesse o que acontecesse. Se ela estivesse lá e
atendesse à porta, eu iria embora. Era quase certo que ela não
voltaria antes de eu ir embora, mas se ela ou outra pessoa
entrasse, eu seria delicado e diria que não tinha arrombado a
porta para entrar, eu usara as chaves que ela lhe dera.
— Então você foi — falou Wolfe, zangado.
— Não me apresse. Disse a ele que não faria nada se não
soubesse de tudo. Demorou algum tempo e fiz muitas
perguntas, mas precisava saber se Isabel Kerr era procurada,
podia ser a filha fugitiva de um embaixador. Não. Há três anos
tinham-na retirado da fila de coristas e a colocaram no ninho de
amor que ainda ocupava. O detalhe mais difícil de conseguir foi
o nome de quem a salvara. Orrie dizia não saber, mas era claro
que sabia, e insisti. O nome dele é Avery Ballou, presidente da
Federal Holding Corporation. Aparentemente Isabel tinha
alguma qualidade apreciada por ele, pois ainda pagava o
aluguel, a conta do armazém e ia vê-la duas ou três vezes por
semana, de noite. Mas ela sabia que esse tipo de relação não
dura para sempre, e de qualquer modo queria Orrie. Tinham se
encontrado em algum lugar, isso é irrelevante, há cerca de um
ano, e ela vinha... bem, alimentando-o com a comida de Avery
Ballou, e decidira que o queria para sempre. Acreditei nisso. As
mulheres não se apaixonam por Orrie com a fúria e rapidez que
acredita, mas não é feio e às vezes os olhos das mulheres se
fixam nele.
— Então você foi.
— Sim. Não estou me desculpando, mas parecia
aconselhável. Embora ele não seja como Saul Panzer, há anos
que trabalha bem para você... está bem, para nós. Fez alguns
trabalhos muito bons e nunca nos enganou, pelo menos que a
gente saiba. Então ontem à tarde eu fui lá, de luvas, com um
punhado de chaves, e cheguei exatamente às 4:15h. Ninguém
respondeu ao toque da campainha e por isso entrei e subi. É
uma dessas casas de quatro andares remodelada, elevador sem
cabineiro, não tem porteiro nem empregado, e ninguém me viu.
Já que leu o artigo no Times, sabe o que encontrei. Não fiquei lá
para usar as luvas ou chaves; eu achei que Orrie não valia tanto
assim. De qualquer forma, mesmo que achasse os objetos, era
natural que encontrassem suas impressões digitais, já que três
dias antes ele estivera lá durante horas. Por isso, fui-me
embora.
— Alguém o viu?
— Não. Telefonei para você não me esperar para o jantar
e...
— Isto foi às cinco horas.
Isso era bem dele. Nunca parece reparar em nada, mas
sabe de tudo. Acenei com a cabeça.
— Sim. Caminhei quase meia hora até chegar ao endereço
de Orrie, ou perto. Esperei ele vir, subi ao seu apartamento,
contei-lhe o que acontecera e devolvi-lhe as chaves. Perguntei
se ele a matara e me respondeu que não. Seguira uma pessoa
para Bascom o dia inteiro, mas não pode fornecer provas.
Durante as horas importantes, de oito horas até o meio-dia, ele
está sem cobertura. Queria saber por que eu não procurara as
coisas. Espicacei-o um pouco, não muito, voltei para casa e
servi-me duas vezes de crème Gènoise. Sabia que o iriam
apanhar. Se não fosse por mais nada, por suas impressões. Isso
foi o urgente no rádio hoje de manhã.
— Você devia ter-me dito.
— De que adiantaria? Só iria estragar o seu dia.
— Por isso você foi ouvir um homem ler poesia.
Inclinei um pouco a cabeça:
— Olhe, é bom esquecer de mim. Você está aborrecido e
quer um alvo, mas não sou eu. Se você se esquecer de Orrie,
não terá nenhum alvo e vai poder voltar para o seu livro.
Olhou o livro, apanhou-o e depois o colocou de volta na
escrivaninha. Pegou o copo de cerveja, franziu a testa porque já
estava sem espuma, mas bebeu-o assim mesmo até o fim,
colocou o copo novamente na bandeja e a empurrou para longe.
— Orrie — disse ele. — Maldito seja. O caso é: será que ele
a matou? Se matou, o problema é do sr. Parker e podemos
deixá-lo com ele. Se não matou, estamos...
O telefone tocou e girei minha cadeira para atendê-lo.
— Residência do sr. Nero Wol...
— Archie, aqui é Lon. Estou espantado de você estar aí.
— Não deveria estar?
— É claro que não. Com seu companheiro na gaiola?
— Não sei do que está falando. Passei a tarde num recital
de poesia e acabo de chegar.
— Você quer dizer que não sabe que Orrie Cather foi preso
no caso do assassinato de Isabel Kerr?
— Foi mesmo?
— Sim. Se for de ajuda ter alguma coisa publicada, estou
às ordens. Não espero que me mostre todas as cartas de Wolfe,
mas se houver alguma coisinha que...
— Lógico. Com toda a certeza. Logo que souber de alguma
coisa quente, ou mesmo morna, lhe telefono. Agora estou
ocupado. Estou contando ao sr. Wolfe sobre um lindo poema
que o homem leu.
— Aposto que está. Não há nada que dê só um parágrafo?
— No momento, não. Obrigado por telefonar.
Desliguei o telefone, girei a cadeira e contei a Wolfe:
— Lou Cohen tentando pescar alguma coisa, deve estar em
casa já que hoje é domingo. Uma das matérias de amanhã da
Gazeta vai começar assim: “Orrie Cather, detetive particular,
assistente de confiança de Nero Wolfe, está sendo mantido
como testemunha em conexão com o assassinato de Isabel Kerr.
O sr. Cather tem sido um colaborador importante no sucesso
espetacular de muitos casos famosos de Nero Wolfe. Archie
Goodwin, que é apenas o menino de recados de Nero Wolfe,
disse...”
— Cale a boca!
Levantei os ombros e suspendi as mãos, com as palmas
para fora.
Ele deu um murro na mesa com tanta força que a garrafa
tremeu, enquanto gritava:
— Ele a matou?
— Passo o lance! — respondi com firmeza.
— Isso não basta. Quando esteve com ele na sexta à noite,
estava planejando um assassinato? Quando o viu ontem à noite,
ele se sentia culpado?
— Passo assim mesmo. Na sexta à noite, ele podia não ter
planejado nada. Pode ter ido lá ontem de manhã, não se sabe
por que, e ter perdido a cabeça. Quanto a ontem de tarde, o que
você quer dizer com ‘se sentia culpado’? Já sentaram-se aqui
assassinos, que olharam você nos olhos e responderam a suas
perguntas, e quando saíam você não tinha certeza. Agora eu é
que não tenho certeza. É claro que você quer um veredicto, mas
eu não o tenho.
— Você gosta de dar vantagens. Qual é a vantagem?
— Posso apostar a mesma quantia e aceito ele ser culpado
ou não. É claro que, fazendo assim, estou ignorando minha
preferência pessoal. Preferia que ele não o tivesse cometido.
Preferia não ver a manchete ASSISTENTE DE NERO WOLFE CONDENADO
POR HOMICÍDIO — e você também não gostaria. As pessoas que só
lêem as manchetes poderiam pensar ser eu.
— Você se recusa a solucioná-lo.
— Sim.
— Então chame Saul e Fred para virem aqui logo que
puderem.
CAPÍTULO III
WOLFE ESTAVA FAZENDO um discurso às 9:50h.
Saul Panzer, 1,70m, setenta quilos, nariz e orelhas
grandes, cabelos cor de ferrugem, estava sentado na cadeira de
couro vermelho com uma garrafa de Montrachet 1958 na
mesinha ao lado, tendo na mão um cálice. Fred Durkin, 1,73m,
95 quilos, careca e volumoso, estava numa das cadeiras
amarelas, em frente à escrivaninha de Wolfe, com uma garrafa
de Canadian e uma jarra d’água na mão. A água não fora
tocada. Eu não tinha o que beber. Desde cedo Fritz saíra para
tratar de assuntos particulares, e por volta de sete horas Wolfe e
eu comemos, concentrando-nos principalmente num prato de
carne temperada e gelatina, feito com cabeça e pé de porco.
Creio que, no total, já passei mais de dez horas olhando Fritz
fazer esse prato, tentando descobrir por que o dele é tão melhor
do que o de qualquer outra pessoa, inclusive o que minha mãe
costumava fazer em Ohio, mas finalmente desisti. Talvez seja o
modo como segura a colher quando retira a gordura.
Saul e Fred já haviam recebido todas as explicações,
exceto uma, o nome do homem que salvara Isabel Kerr do
mundo do teatro. Orrie não gostaria disso, mas dissera a Parker
que eu decidisse como resolver as coisas, e se os dois deviam
tomar uma decisão tinham de saber de todos os fatos. O nome
do ‘padrinho’ não tinha a menor importância. Após terem feito
algumas perguntas e recebido as respostas, Wolfe começou a
falar.
— Não é apenas uma questão de pensar num método de
defesa eficiente. Se Orrie matou aquela mulher para evitar que
ela interferisse em seus planos pessoais, nem eu nem vocês
somos obrigados a enganar os agentes da Justiça. Certamente
podemos ter simpatia com a desgraça, mas não com
contravenção de Nemesis. O sr. Parker é um advogado
competente e podemos deixar o caso com ele. Mas se não a
matou, tenho uma obrigação que não posso ignorar. Sou levado
a isso não só pela sua longa associação comigo, mas também
por meu amor-próprio. Vocês devem saber que não sinto
nenhuma afeição por ele; freqüentemente ele me embaraça;
não tem a dignidade de um homem que encontrou o seu lugar e
o ocupa, como você tem, Fred; nem a integridade de um homem
que reconhece sua superioridade, mas a restringe a áreas que
lhe são aceitáveis, como você, Saul. Mas se não matou aquela
mulher, pretendo libertá-lo.
Levantou a mão com a palma para fora:
— A questão é: foi ele quem a matou? Como não possuía
uma opinião própria definida, perguntei a Archie. Pensei que ele
ao menos tivesse palpites, sim ou não. Ele sempre tem palpites,
mas desta vez falhou. Disse que apostaria o mesmo dinheiro.
Archie? Isso foi há quatro horas. E agora?
Abanei a cabeça:
— Ainda passo. Que diabo. Vá em frente, comece alguma
coisa e vamos ver o que conseguimos!
— Não. Teríamos assumido um compromisso e
cometeríamos enganos. Fred, você conhece Orrie há mais
tempo do que eu. Já lhe descrevemos toda a situação. O que
você acha?
— Jesus! — disse Fred.
— Isso não ajuda nada. Ele apenas diria a Orrie que não
pecasse mais. Será que ele a matou?
Fred pôs o copo na mesa e mexeu-se na cadeira. Olhou
para Saul, depois para mim, e novamente para Wolfe:
— É muito difícil. Será que entendi bem? Se decidirmos
que ele a matou, você fica de fora e Parker se encarrega do
caso. Se decidirmos que é inocente, você tentará provar isso, e
a única maneira de prová-lo, obviamente, seria encontrar o
assassino e prendê-lo. É isso?
— Sim.
— Então minha resposta é de que ele é inocente.
— Essa é sua opinião verdadeira?
— Para ser franco, não. A única forma de se ter certeza de
que ele a matou seria se confessasse, e Orrie nunca confessaria.
Mas nós conhecemos Orrie. Ele sempre fez o que quis com as
mulheres, e elas consentiam. Quero dizer, elas não podiam
evitar de proceder assim. Mas agora, aparentemente, está
fisgado e quer se casar. Por isso, se essa Isabel Kerr se metesse
em seu caminho, se realmente o atrapalhasse... bem, eu não
sei. Quero dizer, acho que realmente sei. Mas você nos chamou
para ajudar a decidir, não foi?
— Sim.
— Então eu digo não. Ele não a matou.
Wolfe nem mesmo fechou a cara para ele. Se eu desse um
palpite desses, receberia o que merecia, mas ele sabe como
funciona a mente de Fred e portanto recebera o que pedira.
Disse apenas:
— Isso não é nada decisivo. — Virou a cabeça e perguntou:
— Saul?
— Não — disse Saul. — Para falar como Archie gosta,
aposto um contra vinte como ele não a matou.
— É mesmo? — respondeu Wolfe, surpreso. — É uma
opinião ou só uma aposta?
— Chame de uma conclusão. Dou de cinqüenta a um. Não
estou dizendo que seja superior a Archie. Como ele sabe tudo o
que sei, você pode ficar imaginando por que ele não se decidiu,
mas isso é óbvio. Ele está envolvido pessoalmente. Não é
vaidoso.
— Tolice. Você o está lisonjeando.
— Não, senhor. Deixe eu explicar direito. Primeiro, digamos
que Orrie tenha planejado tudo. Quando estava com Archie, na
sexta à noite, pretendia ir lá de manhã e matá-la, e quando
Archie fosse de tarde, com luvas e chaves, ou encontraria o
corpo ou, se alguém o tivesse descoberto antes dele,
encontraria os carros da polícia do lado de fora e uma porção de
policiais lá dentro. Isto é totalmente impossível. Não sei se sabe,
mas Orrie acha que Archie é o mais rápido e esperto agente que
existe. Não há a mínima chance de que ele, deliberadamente,
sentasse à sua frente e pensasse nesse tipo de situação. De
qualquer modo, para quê? Se ia matá-la, para que toda essa
confusão com Archie?
— Está bem, pode eliminar isso — respondi. — Eu já pensei
nisso. Na sexta à noite ele não estava nem ao menos pensando
em vê-la, quanto mais matá-la. Mas se no sábado de manhã,
sem pensar nas conseqüências, tivesse resolvido isso? E se ela o
provocou?
— E ele a matou — Saul confirmou. — Se ficou para
revistar o apartamento a fim de procurar os objetos que queria
ou não, voltou depois à sua tarefa de seguir alguém. Deveria
tomar uma decisão difícil, telefonar para dizer que não fosse,
dando um motivo qualquer. Admito que não conseguisse pensar
num motivo bastante bom e ter decidido que seria muito
arriscado. Seria melhor deixar você ir. Mas aí entra o ponto
principal. Você o conhece, assim como eu. Sabemos exatamente
como a sua mente funciona. Você ouviu quando perguntei ao sr.
Wolfe se alguém lhe telefonara ontem entre 4:30 e 6:30h, e ele
disse que não. Esse é o ponto decisivo.
— Ótimo. Formidável.
— É muito simples. Você não percebeu, pois está
pessoalmente envolvido. Aqui temos Orrie no seu trabalho de
seguir alguém, já tendo cometido o assassinato. Decide não
avisá-lo. Ele sabe que quando você for lá e encontrar o corpo vai
ficar imaginando coisas sobre ele. Sabe que você o imagina com
a respiração suspensa até que você diga que objetos achou e
apanhou. Sabe que, se não tivesse ido lá para matá-la, estaria
terrivelmente ansioso para saber como você tinha se saído,
digamos de 5:30h em diante, e ele teria lhe telefonado.
Portanto, ele o chamaria. Mas não chamou. Essa é a questão.
— Espere um pouco — disse eu. — Assim não pode ser. Se
ele não a matou, por que não me chamou?
— Ele teria chamado talvez assim que chegasse em casa,
mas você ligou primeiro. Se ele a tivesse matado, não esperaria
até chegar em casa. Como você sabe, o pior defeito dele é o de
se adiantar muito. Sabia que a coisa mais natural seria lhe
telefonar e, adiantando-se, provavelmente seria em torno das
cinco horas. Com toda a certeza até as 5:30h. Que diabos, ele
não é uma pessoa estranha sobre a qual damos palpites; nós o
conhecemos como a palma de nossas mãos.
Virou-se para Wolfe:
— Como você e Archie não se decidiram e Fred disse sim e
não, o meu voto é decisivo. Se acreditar nisso, resolver levá-lo
adiante e quiser me encarregar disso, não cobrarei nada, nem
despesas. Não gosto de Orrie tanto quanto vocês, mas é claro
que gostaria de reforçar meu voto.
— Eu também — disse Fred. — Eu votei não.
Era uma oferta extraordinária. Saul, que cobra dez dólares
a hora e é o que recebe, podia fazer essa oferta, mas Fred não
ganha tanto e tem uma mulher e quatro filhos.
Wolfe levou os olhos em minha direção, firmando-se nos
meus.
— O caso — disse eu — é que estou pessoalmente
envolvido. Tudo depende, em parte, em como Orrie pensa que
sou esperto e rápido, e isto limita os meus movimentos. Mas
depende também em como considero Saul esperto e detestaria
causar-lhe embaraços. Vou mudar meu voto e dizer não, mas
não aposto vinte a um.
Ele deu uma inspiração profunda pelo nariz, prendeu o ar
por três segundos e depois o expeliu através da boca aberta.
Virou a cabeça para olhar o relógio de parede, segurou as
extremidades dos braços da poltrona com os dedos crispados e
emitiu um Grrrhhhh! Era duro de roer. Já se passara um mês
sem nenhum negócio, e agora ia ter de trabalhar de graça.
Olhou para Saul:
— Quando pode começar?
— Agora — disse Saul.
— E você, Fred?
— Terça-feira — disse Fred. — Estou com um trabalhinho,
mas amanhã posso terminar tudo.
— Já sabem da situação — Wolfe grunhiu. — Não temos
nenhum dado. Nunca tivemos tão pouco. Nem ao menos
sabemos o que a polícia encontrou, se é que encontrou alguma
coisa, que envolva Orrie. Nesse ponto o sr. Parker pode nos
ajudar. Archie, a polícia ainda está infestando a vizinhança?
— Lógico. Sem dúvida estão se concentrando em Orrie,
tentando encontrar alguém que o tenha visto ontem pela
manhã. Para conseguir provas contra ele é preciso que alguém o
tenha visto lá.
Virou-se para Saul:
— Teremos de começar com banalidades. Quais são os
outros moradores do prédio? Quem foi visto entrando ou saindo
ontem de manhã? Alguém viu Archie entrar ou sair ontem de
tarde? Isso talvez seja um ponto importante. Você começa nisso
amanhã, e Fred irá se encontrar com você na terça, mas é
melhor telefonar duas vezes por dia, para saber se pensamos
em alguma coisa melhor.
Virou-se para mim:
— Você vai ver alguém. Quem é?
— Jill Hardy. Se estiver disponível. Se não estiver em Roma
ou Tóquio — respondi, depois de cinco segundos.
— Se estiver, fale com a irmã. A sra. Fleming, não é?
— Talvez, mas prefiro falar com Jill Hardy. Quer vê-la?
— Só se você julgar necessário. — respondeu com uma
careta.
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se:
— Que diabos, vou para a cama. Aprecio a sua oferta, Saul,
e a sua, Fred, mas a responsabilidade é minha. Pagarei o de
costume e, é claro, as despesas. Boa noite.
Dirigiu-se para a porta.
CAPÍTULO IV
ENQUANTO EU TOMAVA o café da manhã às 8:10h de segunda-feira,
comendo brioches, presunto grelhado e geléia de uva, pensava
em diversas coisas ao mesmo tempo.
Primeiro, por que Fritz era tão teimoso a respeito de sua
geléia? Por que, ao menos uma vez, não experimentava fazê-la
com metade do açúcar e o dobro do sauterne? Há anos vinha
lhe pedindo isso.
Segundo, por que os jornalistas eram tão preguiçosos? Se
o Times achava que devia dar prosseguimento à notícia do
assassinato com uma fotografia, com certeza podiam ter
arranjado uma do Orrie, mas tinham a audácia de exibir a de
Wolfe tirada há mais de oito anos. Ele devia processá-los por
invasão de privacidade. Ele não fora preso. Pelo que os jornais
sabiam, nem estava na história. Podia não ser preguiça, é claro;
talvez ainda estivessem aborrecidos por causa de uma carta que
uma vez escrevera ao crítico de restaurantes.
Terceiro, eu devia lhe falar pelo interfone ou subir, antes
de sair? Fritz nada me dissera quando desceu com sua bandeja
vazia, por isso, aparentemente, eu tinha de prosseguir conforme
as instruções, mas não custava nada verificar.
Quarto, onde estava Jill Hardy? Orrie me dissera que
trabalhava na Pan Am, mas com um simples telefonema não me
forneceriam o seu endereço. Na noite anterior tentara localizá-la
nos catálogos dos cinco distritos, mas não havia nenhuma Jill
Hardy. Parker poderia consegui-lo quando falasse com Orrie,
mas para isso eu deveria esperar. Assim que terminasse a
segunda xícara de café estaria pronto para partir e quanto mais
cedo eu...
O telefone tocou. Fritz ia atender: ele e Wolfe consideram,
de comum acordo, que ao se fazer uma refeição nada nem
ninguém deve interrompê-la. Mas estiquei o braço e atendi.
— Escritório de Nero Wolfe. Quem fala é Archie Goodwin.
— Oh! Eu... É mesmo Archie Goodwin?
— Certo.
— O Archie Goodwin que trabalha para Nero Wolfe?
— Deve ser, já que a senhora ligou para o número de Nero
Wolfe.
— É claro. Meu nome é Jill Hardy. O senhor prova-
velmente... o senhor já deve ter ouvido esse nome.
Sua voz era o que Lily Rowan chama de mezzotinto, boa e
cheia, mas com limites definidos.
— Sim, creio que sim.
— Através de Orrie Cather.
— Certo.
— Então o senhor sabe quem eu sou. Estou chamando...
acabei de ler o jornal da manhã. É verdade o que houve com
Orrie? Ele foi preso?
— Pode-se dizer que sim. Ele está detido como teste-
munha. Isso significa que a polícia acha que ele sabe de coisas
que não lhes contou e querem que conte.
— Sobre um assassinato?
— Aparentemente.
— Devem estar loucos!
— É possível. Está em casa, srta. Hardy?
— Sim, no meu apartamento. Sabe...
— Um momento, por favor. Como acabou de dizer que viu
no jornal, imagino que a polícia ainda não foi vê-la. Mas irá. Pelo
menos, é possível. Preciso lhe fazer uma pergunta. Pelas coisas
que Orrie disse, presumi que vocês pretendem se casar. Talvez
não tenha entendido direito...
— Entendeu, sim. Vamos nos casar em maio.
— Todos já sabem? Já contou a alguém?
— Disse a algumas pessoas... amigos. Vou continuar
trabalhando durante algum tempo e uma aeromoça não pode...
— Eu sei. Mas se Orrie contou aos seus amigos, e contou a
mim, você vai logo, logo receber visitas. Se quiser...
— Quero saber por que foi preso! Quero saber... ele estava
trabalhando para Nero Wolfe?
— Não. Há mais de dois meses que não faz um serviço
para o sr. Wolfe. Se quiser...
— Por que vou ter visitas?
— Preferia não lhe contar por telefone. É muito com-
plicado. Se quiser saber o que aconteceu antes de a polícia ir lhe
fazer perguntas, por que não vem aqui e me faz as perguntas?
Escritório de Nero Wolfe, rua 35 Oeste, 938. Estarei...
— Não posso; às 10:30h tenho de partir num vôo para o
Rio.
— Então vou apanhá-la e poderemos falar a caminho do
aeroporto. Sou um bom motorista. Qual é o endereço?
— Não creio... — Silêncio. — E se Orrie... — Mais silêncio.
— Veremos. — Desligou.
Comi outro brioche e uma fatia de presunto, sem perder
tempo. Talvez ela se decidisse em poucos minutos. Quando Fritz
trouxe o café, disse-lhe que, quando se quer ver alguém e não
se sabe onde está, tudo o que se tem a fazer é emitir ondas, e
ele perguntou se tínhamos um cliente.
— Sim e não — respondi. — Um trabalho para alguém, sim.
Um freguês que possa receber a conta, não. Você me ouviu falar
o nome de Orrie, de maneira que é bom saber que ele se
encontra numa situação difícil e nós vamos tirá-lo disso. Como
se diz em francês ‘a irmandade dos homens’?
— Isso não existe em francês. Então seu assunto pessoal
no sábado era esse. Prefiro que seja Orrie do que Saul ou Fred,
mas mesmo assim...
O telefone tornou a tocar. Atendi.
— É Jill Hardy de novo, sr. Goodwin. Já arranjei tudo.
Estarei aí em meia hora.
— Que bom. Importar-se-ia de me dar seu telefone e
endereço? É só para termos em mãos.
Ela não se importava. O endereço era rua Nutmeg, 217, no
Village. Ao terminar o café, fui para o escritório e o escrevi num
pedaço de papel, e pensei no problema: deveria colocá-lo na
pasta de Orrie? Decidi que não, apanhei uma nova pasta e
coloquei CATHER , ORRIE, CLIENTE. Dentro de dez minutos Wolfe
estaria entrando no elevador para ir à sua sessão matinal com
as orquídeas, de nove às onze, por isso chamei-o no interfone.
Demorou a atender.
— Sim?
— Bom dia. Creio que gostaria de saber que, quando
descer, é possível que Jill Hardy ainda esteja aqui. Ela chegará
dentro de uma hora, ou menos.
— Já a encontrou?
— Ora, claro. É fácil quando se sabe como procurar.
— Pretensioso — disse, e desligou.
Enquanto limpava as mesas e cadeiras, retirava as folhas
velhas dos calendários, mudava a água da garrafa na mesa de
Wolfe e abria a correspondência, decidi que Jill Hardy seria alta,
rígida, olhos rápidos e argutos, tipo de um sargento, mas o
canto dos olhos seria um pouco amendoado devido a algum
oriental que entrara em seus ancestrais. Devia ser uma pessoa
fora do comum para prender Orrie dessa forma, mas havia outra
razão por que ela teria de ser assim. Como já havíamos decidido
eliminar a culpa de Orrie, quanto mais cedo achássemos alguém
para lhe tomar o lugar, melhor. É claro que Jill Hardy era
candidata ao posto, e se parecesse uma vilã simplificaria as
coisas.
Diabos, ela não era assim. Quando a campainha tocou,
logo após as 9:30h, fui à entrada e, através do vidro da porta,
que só permitia ver de dentro para fora, vi uma moça manequim
40, com casaco de couro preto e gola de pele, um rosto
pequeno e oval, rosado pelo frio, grandes olhos cinzento-
azulados e um chapéu de couro e pele. Depois que abri a porta,
e ela entrou e tirou o casaco, parecia ainda menor no terninho
azul-escuro muito bem-feito. Ela devia atingir, raspando, o limite
mínimo de altura para o seu trabalho. No escritório, pedi-lhe que
sentasse numa das cadeiras amarelas. A poltrona de couro
vermelha fica muito longe da minha escrivaninha.
— Agora estou mais calma — disse ela, ao se sentar. —
Você se parece um pouco com Orrie. É do mesmo tamanho.
Isso não me pareceu o modo ideal de se iniciar uma
conversa amigável. Eu não me pareço com Orrie. Ele é bonitão e
eu não sou. Meu nariz é pequeno demais para o meu rosto, mas
deixei de me preocupar com isso quando tinha doze anos. Disse-
lhe então:
— Não estou surpreso que Orrie tenha decidido se amarrar,
agora que a conheço. Vou dar-lhe de novo os parabéns quando
estiver com ele.
Ela não ligou para a lisonja.
— Quando irá vê-lo?
— Não tenho certeza. Talvez hoje à tarde.
— Queria vê-lo, mas não sei como fazer. O que faço?
— Se eu fosse você, não tentaria apressar as coisas. Pode
ser que ele consiga fiança. O advogado dele é bom. Quando foi
a última vez que o viu?
— Por que o prenderam? — perguntou ela. — O que ele
sabe de assassinato? Você disse que ele não estava trabalhando
para Nero Wolfe?
— Sim, não estava. Não creio, srta. Hardy, que possa lhe
dizer alguma coisa que já não saiba, pois leu o jornal. Creio que
aquela mulher, Isabel Kerr, estava envolvida em algum caso no
qual ele estava trabalhando, mas é pura adivinhação de minha
parte. Outro palpite é que ele esteve no apartamento dela
recentemente, e encontraram as suas impressões e o
detiveram. A senhorita sabe que, às vezes, os detetives
particulares entram em alguns lugares para revistá-los, mas se
esse fosse o caso Orrie não teria deixado impressões, pois teria
usado luvas. Pode ser também que ele não estivesse lá a
negócio, apenas socialmente. Sabe se ele conhecia a srta. Kerr?
— Não. — Sua testa estava franzida.
— Nunca mencionou seu nome?
— Nunca.
— Quando o viu pela última vez?
Ela ignorava as perguntas muito bem. Ainda estava de
testa franzida.
— Você disse que preferia não dizer, pelo telefone, por que
motivo alguém iria me ver. No entanto, parece que não está me
contando nada de novo. O senhor é amigo íntimo de Orrie, mas
não parece saber de nada. Por que alguém iria me visitar? Quer
dizer, seria a polícia?
Decidi que, se continuasse pisando em ovos, não con-
seguiria nada:
— Não quero assustá-la, mas creio que deveria saber como
está a situação.
— Eu também. Penso exatamente da mesma forma.
— Ótimo. Quando um homem é preso, tem direito a
chamar um advogado. Orrie chamou Nathaniel Parker; Parker foi
vê-lo e depois veio aqui conversar com o sr. Wolfe e comigo.
Orrie sabia que ele iria fazer isso. A polícia não segura um
homem, sem direito a fiança, só porque imagina que sabe
alguma coisa. Ele está lá porque pensam que matou Isabel Kerr.
Eles não acreditam apenas que ele saiba alguma coisa sobre o
assassinato, acham que o cometeu.
Seus olhos estavam fixos em mim, bem abertos:
— Não acredito.
— Se não acredita que foi ele, eu também não. Se não
acredita que pensam que foi Orrie, pergunte a eles. Ou ao seu
advogado. Como o sr. Wolfe não acredita ser ele o assassino,
pretende trabalhar no caso e descobrir quem o cometeu. Sobre
a sua pergunta, por que motivo irá receber visitas, vou lhe dizer:
assim que os tiras descobrirem que Orrie vai se casar com você,
e isso não vai demorar muito tempo, vão querer lhe fazer
perguntas. Como as que lhe fiz: sabe se ele conhece Isabel Kerr,
e como a outra que não respondeu, quando o viu pela última
vez? Só perguntei duas vezes, mas eles vão ficar insistindo. Vão
querer saber onde e como passou a manhã de sábado; é esse o
tipo de mentalidade que eles têm. Vão começar a pensar se a
senhorita esteve lá com ele, e talvez até a tivesse segurado
enquanto ele apanhava o cinzeiro. Também tenho esse mesmo
tipo de mentalidade. Como penso que Orrie não a matou, tenho
de descobrir quem o fez, e poderia ter sido você. Onde estava
no sábado de manhã?
Seu queixo tremia:
— Pensei que fosse amigo de Orrie — disse. — O senhor
não falaria assim comigo se ele estivesse aqui.
— Claro que sim, e ele entenderia. Não iria gostar, mas
entenderia. — Inclinei-me em sua direção, os cotovelos
encostados nos joelhos. — Ouça, srta. Hardy. Gosto de sua
aparência e de sua voz. Suas mãos são bonitas. Disse que nunca
ouviu falar de Isabel Kerr, e não tenho prova alguma de que isso
não seja verdade; assim, aparentemente, está fora de suspeita.
Mas, na verdade, gostaria muito que me dissesse quando viu
Orrie pela última vez e onde esteve no sábado de manhã.
— Por que eles pensam que ele a matou? — perguntou ela.
— Por que iria matá-la?
. — Não sei. Pode ser que mais tarde tenha alguma idéia,
talvez hoje à tarde, se conseguir vê-lo, pelas perguntas que lhe
fizeram. Talvez pensem que sabem de algum motivo, mas não
necessariamente.
— Como poderia ter um motivo?
— Vai ter de perguntar a eles, não a mim, pois acho que
eles estão por fora. Suponho que seja possível condenar um
homem por assassinato, sem provar o motivo, mas os jurados
não gostam dessa idéia.
— Jurados? Quer dizer que eles... vai haver um
julgamento?
— Sinceramente, espero que não.
Seus olhos me fitavam:
— Acho que realmente pensa assim.
— Penso mesmo.
— Sábado de manhã estava em casa, na cama, onde fiquei
até depois do meio-dia. Vim num vôo de Caracas, que deveria
chegar à meia-noite, mas só aterrissou depois das duas da
manhã. Vi Orrie naquela noite. Jantamos num restaurante.
Quando estou a bordo de um avião tenho de responder a tantas
perguntas que em terra mal as escuto. — Levantou-se e deu um
passo em minha direção: — Levante-se e ponha seus braços em
volta de mim.
Era uma ordem, e eu obedeci. Ela não levantou os braços
para que pudéssemos nos abraçar, mas quando eu estava com
os dois braços ao seu redor, segurou meu paletó pelas lapelas
com as duas mãos, e escondeu o rosto no meu peito. O terninho
azul-marinho parecia de lã, mas hoje em dia nunca se sabe. Não
a apertei, apenas segurei-a de uma forma amiga e firme,
tentando descobrir se sabia que estava em apuros e tentava me
conquistar para seu lado, ou se estava tentando me seduzir,
caso a culpa de Orrie fosse definitivamente eliminada ou se era
apenas um hábito. Não usava perfume, ou usava só um pouco, e
tinha um cheiro gostoso. Nunca se sabe quanto tempo teria
durado se não fosse pela campainha da frente.
Educadamente, retirei meus braços, fui até o corredor, vi
quem era, voltei para a sala e lhe disse:
— É um tira, um que eu conheço. Já que não está com
pressa de encontrá-lo, é favor se esconder. — Abri a porta da
sala da frente: — Fique aqui. Não precisa ficar preocupada com
nenhum barulho, é a prova de som. Pode até espirrar.
De um modo geral, as aeromoças sabem como reagir. Sem
uma palavra, apanhou a bolsa, que deixara cair ao chão quando
me abraçou, dirigiu-se à porta que eu segurava e passou para a
outra sala. Ao fechá-la, a campainha tocou de novo. Não bati
nenhum recorde indo até a porta, e se o inspetor Cramer
notasse o casaco de couro preto no cabide, isso era com ele. Era
a mim que queria ver, pois sabia que Wolfe nunca estava
disponível antes das onze, e uma pergunta a mais sem que eu
respondesse não tinha importância alguma. Abri a porta e disse:
— Desculpe, estava ocupado bocejando — e deixei-o
entrar. Seu rosto redondo e grande estava mais vermelho que
de costume, por causa do frio. Às vezes não quer que eu o ajude
a tirar o casaco, pois quer ficar com os olhos fixos em mim, mas
desta vez consentiu que ficasse atrás dele para ajudá-lo,
enquanto se dirigia ao escritório. Não reparara no casaco de
couro preto, mas notou a cadeira amarela perto de minha
escrivaninha e, ao abaixar seu grande assento na cadeira de
couro vermelha, perguntou:
— Visita?
Acenei que sim:
— Já veio e já foi. Você liberou Orrie?
— Não. Ainda não e não tão depressa assim. A não ser que
você possa me dar uma boa razão. Pode?
— Claro. É inocente.
— Continue.
— Parker veio aqui após vê-lo ontem; Orrie lhe disse que
era inocente. Conhecemos Orrie há muito tempo e sabemos que
não é mentiroso. Portanto, o sr. Wolfe vai investigar o caso. Sem
dúvida veio por isso, para perguntar se ele vai se intrometer. Ele
vai.
— Não preciso perguntar isso. Vim conseguir informações.
— Ajeitou-se melhor na cadeira: — Quando foi que viu Cather
pela última vez?
Abanei a cabeça:
— Sem comentários.
— Alguma vez lhe falou de Isabel Kerr?
— Passo.
— Alguma vez lhe falou de Jill Hardy?
— Sem comentários.
— Você não vai conseguir nada com isso, Goodwin. Se um
homem é acusado, ele pode calar a boca, mas você não foi
acusado de nada. Mas, que diabo, você pode ser acusado.
— Parece que vou bocejar de novo — eu disse. — Vamos
ter que passar por isso tudo de novo? Não estou dizendo que
não responderei a pergunta alguma sobre Orrie Cather. Se me
perguntar onde ele compra seus sapatos ou quando foi a última
vez que o sr. Wolfe deu-lhe um trabalho, terei prazer em lhe
dizer, até por escrito. Mas esse tipo de perguntas que está
fazendo, não. É claro que se demonstrar que ele cometeu
assassinato e prová-lo, e se puder provar que eu possuía
informações úteis, pode me autuar por obstruir a Justiça, e
estarei perdido. Mas se, ao contrário, ficar claro que, em vez de
obstruir a Justiça, eu lhe presto um favor, tentando ajudar o sr.
Wolfe a descobrir quem realmente matou Isabel Kerr, ele e eu
deveríamos ser festejados com uma parada, cheia de papel
picado, mas não insistiremos nisso.
Abriu os lábios, que estavam muito apertados, para dizer:
— Você já tentou isso antes.
— Sim. Por isso é que pergunto se temos que passar por
tudo de novo! — Olhei para meu pulso. — O sr. Wolfe vai descer
dentro de vinte minutos. Fique, se acha que pode assustá-lo
mais do que a mim.
Começou a bater com a ponta do seu pesado sapato no
chão, enquanto olhava a cadeira vazia de Wolfe. Isso não era
muito satisfatório, pois no tapete grosso não fazia barulho como
no linóleo do seu escritório. Olhava a cadeira e não para mim,
pois não era a minha atitude o que o preocupava. Já tinha a
resposta a uma pergunta — qual seria a atitude de Wolfe — e
agora a pergunta era: por quê? Será que tínhamos alguma coisa
e, se tivéssemos, qual era?
— Ocorreu-me que podíamos fazer um trato — disse eu. —
Teria de receber a aprovação do sr. Wolfe, mas tenho certeza de
que aprovaria. Prestaremos um depoimento, cuja última
sentença dirá que inclui tudo que sabemos, e tudo o que Orrie
disse e fez de que tenhamos conhecimento, sobre qualquer
assunto que se relacione com o assassinato, e trocaremos tudo
só para dar uma olhadela em seu arquivo. O arquivo todo. Seria
um achado para nós dois. Você saberia exatamente o que temos
e nós saberíamos por que você se arrisca a conservá-lo preso
sem fiança. Não acha justo?
— Ora, bolas — disse Cramer. Levantou-se: — Vim por uma
razão, para dizer a Wolfe uma coisa, mas você pode dizer a ele
por mim. Diga-lhe que é uma pena que eu não possa lhe
mostrar o diário de Isabel Kerr. Se ele o lesse, mudaria de idéia
quanto a se intrometer no caso. E aqui vai um aviso para você.
Quando decidir matar alguém, assegure-se primeiro de que ele
não mantém um diário. Ou ela. — Virou-se e saiu do escritório.
Fiquei onde estava. Seria uma pena estragar uma deixa de
saída tão boa. Quando ouvi a porta de frente abrir e fechar, fui
até o corredor dar uma olhada, para ter certeza de que ele
estava do lado de fora quando a fechou, depois voltei ao
escritório e pensei numa coisa: deveria deixar Jill Hardy na
poltrona vermelha quando Wolfe descesse? Se eu a deixasse na
sala da frente e dissesse o que acontecera, era quase certo que
se recusaria a vê-la, e era melhor que a visse. Dentro de três
minutos seriam onze horas. Decidi trazê-la, por isso abri a porta
e olhei para um quarto vazio. Ela saíra sem uma deixa, pela
porta que dá para o corredor. Fui dar uma olhada no cabide: seu
casaco sumira. O interfone chamou no escritório e fui atender.
Era Wolfe, na estufa, querendo saber se ela já se fora. Respondi
que sim, e em um minuto ouvi o barulho do elevador descendo.
Entrou, trazendo na mão as orquídeas diárias para a sua mesa
— um cacho de Odontoglossum hellemense que, de acordo com
os registros que faço, é um enxerto de harvengtense e crispum.
Para quem gosta de orquídeas, esta é uma maravilha, mas no
momento não me interessavam. Sentei-me, em ponto de
ebulição, enquanto ele as colocava no vaso, acomodava-se na
poltrona e olhava a correspondência. Quando terminou de ler a
carta de um homem do norte que envia carne de veado, o único
item importante, eu disse, em voz um tanto alta:
— A srta. Kerr mantinha um diário.
Ele colocou a carta na mesa, levantou os olhos, fitou-me
durante cerca de meio minuto e então perguntou:
— Como conseguiu tirar isso dele?
— Dele quem?
— Do sr. Cramer, naturalmente.
Fitei-o, incrédulo:
— Para ver a rua de lá de cima você tem que pôr a cabeça
bem de fora.
— Nunca fiz isso. Mas é claro que ele viria, logo, e quem
mais poderia fornecer tal informação? Como arrancou isso dele?
— Está bem, vou fazer o meu relatório.
E foi o que fiz, começando com Jill Hardy. Às vezes, ao
relatar uma informação, é essencial dizer palavra por palavra;
porém, mesmo quando não é, faço dessa forma, pois treinei
para isso e acho mais fácil. Como de costume, encostou-se na
poltrona com os olhos fechados. Fui em frente, de Jill Hardy até
Cramer, já que não houvera interrupção, apenas uma mudança
de elenco. Quando terminei, abriu um pouco os olhos, fechou-os
de novo e resmungou:
— Nada.
— Certo — concordei. — Quanto a ela, se é uma mentirosa,
é das grandes. Orrie tem certeza de que ela não sabe nada
sobre Isabel Kerr; se sabe, vamos ter de investigar muito para
prová-lo. Se ela não sabe, podemos riscar isso por completo e
não serve para nada. Quanto a Cramer, ele provavelmente tem
um diário, mas, e daí? Sabíamos que ele tinha qualquer coisa
importante, e duvido que o diário diga no fim: “Ele está pegando
o cinzeiro e vai me acertar com ele”, que é o importante. Talvez
Cramer precisasse ter um diário para lhe mostrar que seria
ótimo, para Orrie, se ela morresse; mas nós não, pois já
sabíamos disso. O que precisamos é de outra pessoa para quem
a morte dela tenha sido de encomenda. De certo modo, é bom
para Jill Hardy, mas duvido que ela soubesse. Como o senhor
diz, nada.
Ele abriu os olhos:
— Você acha que Orrie a matou.
— Não. Examinei sob todos os ângulos o que Saul disse, e
concordo. No mínimo, existe uma dúvida razoável, o que já
basta para um júri, por isso basta para mim. De qualquer modo,
Cramer conhece nossa posição. Se descobrirmos que foi Orrie,
nunca o perdoarei. Tiro a garota dele. Ela já pensa que sou
parecido com ele.
— E agora? Quem? — Wolfe rosnou.
— Creio que a irmã. Ou Avery Ballou.
— Temos que conversar a respeito do sr. Ballou. A irmã
primeiro. — Esticou o corpo e apanhou o volume de Convite
para um inquérito policial.
CAPÍTULO V
HAVIA UM BARRY FLEMING no catálogo telefônico do Bronx.
Endereço: avenida Humboldt, 2.938. É claro que não disquei o
número. De acordo com o Times, ela não falava com repórteres,
e sem dúvida pensaria que eu tentava enganá-la. Consultei o
guia de ruas do Bronx a fim de localizar a avenida Humboldt e aí
ri de mim mesmo, quando minha mão automaticamente se
dirigiu a um bolso para apanhar o chaveiro. Por causa de uma
coisa deplorável que acontecera há alguns anos, prometera a
mim mesmo nunca ir a um encontro que tivesse alguma ligação
com assassinato sem levar um revólver, e as regras que você
faz consigo mesmo são as mais difíceis de quebrar, mas há um
limite. Fratricídio não é impossível de acontecer, mas era
exagero imaginar que Stella Fleming poderia ter matado sua
irmã e, portanto, estaria pronta para atirar em qualquer pessoa
que se aproximasse. Pelo menos era assim que pensava, até
que tivesse uma oportunidade de vê-la. Tornei a colocar o
chaveiro no bolso, disse a Wolfe que não me esperasse para o
almoço, e saí. Ao descer as escadas da varanda, levantei a gola
do casaco, embora o trajeto até a garage, depois de dobrar a
esquina, fosse curto. O gelo estava se prolongando através do
mês de janeiro, e o vento piorava ainda mais as coisas.
Já eram 12:20h quando deixei o Heron num estacio-
namento e caminhei um quarteirão e meio até o número 2.938.
Era um prédio comum, de tijolo, de dez andares, que se
encontra em todos os cinco distritos, mas principalmente no
Bronx. Talvez não fosse o Barry Fleming que eu procurava, mas
isso logo se esclareceria. O chão de cerâmica do corredor não
tinha tapete, e sim uma passadeira de borracha. Não havia
porteiro, mas o ascensorista estava lá, um sujeito pálido, com
um uniforme que há muito não via tintureiro, encostado na
parede. Adiantei-me e disse:
— Fleming, por favor.
— Não há ninguém lá — respondeu abanando a cabeça.
— Eu sei que a sra. Fleming não está recebendo pessoas
estranhas, mas não sou jornalista. O assunto que quero discutir
com ela é pessoal, e tenho certeza de que quererá falar comigo.
No seu caso, o rosto era o espelho da mente. Não ficara
impressionado nem iria ficar. A questão era só de preço. Tirei as
luvas, apanhei a carteira e retirei um cartão e da carteira de
notas tirei cinco dólares.
— Estou falando sério. Quer ver a minha licença? Leve-me
lá em cima e, se ela não me deixar entrar, lhe dou o dobro.
Apanhou o cartão, examinou-o, pegou o dinheiro e enfiou
no bolso, dizendo:
— Estou falando sério, não há ninguém em casa. Ela saiu
mais ou menos às dez.
O que ele merecia era um bom soco, mas não seria a coisa
certa naquele momento. Perguntei apenas:
— Sabe onde ela foi?
Abanou a cabeça:
— Não faço a mínima idéia.
— Sabe quando volta?
— Não, não sei.
Dei-lhe um sorriso amável:
— Esta informação não vale cinqüenta centavos, quanto
mais cinco dólares. — Tomei a apanhar a carteira de dinheiro e
retirei uma nota de dez dólares: — Qual é o andar?
— Sétimo. Sete D.
— Preciso vê-la, e ela precisa me ver. Leve-me até lá e
ficarei esperando. Você já está com o meu cartão. Se quiser,
apanhe uma almofada de carimbo e tire minhas impressões
digitais.
Aí ele me surpreendeu. Em alguma parte do corpo ele
devia ter um coração, pois disse:
— Pode ser que ela fique fora o dia inteiro e lá não tem
onde sentar.
— Sempre sobra o chão.
Ele me olhou nos olhos pela primeira vez:
— Nada de bobagens, cara. As fechaduras são muito boas.
— Não sei nada sobre fechaduras. Até ela chegar, não há
nada lá que me interesse.
Dirigi-me ao elevador e apertei as pontas de todos os dez
dedos na moldura de metal, na altura dos olhos:
— Pronto, agora estou fichado.
Ofereci-lhe novamente os dez dólares. Apanhou a nota,
seguiu-me até o elevador, fechou a porta e operou a manivela.
Há muitas coisas interessantes a serem feitas enquanto se
espera num corredor de um prédio de apartamentos durante
quatro horas e vinte minutos. Pode-se contar as manchas e
decidir qual é o lado que tem mais, se o direito ou o esquerdo.
Pode-se tentar diferenciar os cheiros e decidir, no geral, quantos
odores diferentes há. Pode-se ouvir os gemidos da porta do 7B,
imaginar se a criança é menino ou menina, qual a sua idade, e o
que você faria se estivesse lá dentro. Quando as pessoas
chegam ou saem, pode-se encará-las e ver quais as que olham
para trás e quais as que fingem que não o viram. Quando uma
senhora robusta, de ombros largos, vira-se, após enfiar a chave
na fechadura do 7C e pergunta: “Está à espera de alguém?”,
você pode responder clara e delicadamente: “Estou”, e notar a
sua reação. No conjunto, o tempo foi bem utilizado. Só fiquei
com pena de não ter trazido um tablete de chocolate, cinco ou
seis bananas e um litro de leite.
Devo admitir que olhava com freqüência para o relógio.
Quando a porta do elevador se abriu e dela saiu um homem,
eram 4:50h. Ao caminhar pelo corredor, presumi que iria para o
apartamento E ou F, mas parou à minha frente e me disse:
— Soube que está esperando a minha mulher.
Bem, é claro que sim:
— Sim, senhor, isto é, se o senhor é Barry Fleming.
— Ela não quer vê-lo. Está perdendo o seu tempo. Ela não
quer falar com ninguém.
Acenei que sim:
— Eu sei, mas creio que falará comigo, se me deixar
explicar o que desejo.
Coloquei a mão no bolso para apanhar meu cartão, mas
antes de tirá-lo ele disse:
— Sei quem você é. Isto é, vi o cartão que deu para o
cabineiro do elevador. Você é Archie Goodwin?
— Sou eu. Em pessoa. Olhe, sr. Fleming, por que não deixa
ela decidir? Quando chegar, dir-lhe-ei sobre o que desejo lhe
falar, e ela decidirá. Não insistirei, só vou lhe perguntar.
— Sobre o que quer lhe falar?
Preferia dizer a ela, mas marido é marido.
— Sobre um homem — disse eu. — Seu nome é Orrie
Cather, e a polícia pensa que ele matou Isabel Kerr. Ele trabalha
às vezes para Nero Wolfe, e o sr. Wolfe e eu o conhecemos
muito bem, e acreditamos não ser ele o culpado. O senhor sabe
que trabalho para Nero Wolfe?
— Naturalmente.
— Estamos investigando o caso e gostaria muito de
perguntar à sua mulher se ela poderia fornecer qualquer
informação que ajudasse. Sem dúvida ela quer que apanhem o
assassino de sua irmã, e o punam, mas se Orrie Cather for
inocente, ela não gostaria que fosse condenado. O senhor não
gostaria, não é?
— É claro que não. — Estava apertando os lábios e olhando
para mim, franzindo a testa. Era de minha altura, de ombros e
quadris estreitos, um rosto comprido com maçãs salientes.
Continuou: — Não gostaria que um homem inocente fosse
punido por qualquer coisa, certamente não por assassinato. Mas
duvido muito que minha mulher possa lhe dar alguma
informação útil. Ela não está... não aceitou bem o que
aconteceu.
— É claro. Acredite-me, não quero tornar as coisas mais
difíceis para ela.
— Bem... onde está o seu casaco?
— Ali. — Apontei para ele, no chão, encostado à parede.
— Apanhe-o. Não adianta ficar esperando aqui fora.
Com o chaveiro na mão, foi até a porta do 7D. Ao voltar
com o casaco, estava com a porta aberta e eu entrei. O
vestíbulo era do tamanho de uma mesa de bilhar. Ele pendurou
o meu casaco no armário antes de tirar o seu, e quando
pendurava o dele a porta se abriu e uma mulher entrou. Ao me
ver, encarou-me por um segundo e em seguida virou-se para
ele:
— Barry! Você o deixou entrar?
Pelo seu tom de voz, vi que tivera sorte de ele ter chegado
antes.
— Vamos, querida — colocou um braço ao redor de seus
ombros e beijou-lhe a face. — Ele só quer umas informações,
caso tenhamos alguma. Pensa que...
— Não temos informações para ninguém! E você sabe
disso!
— Mas a senhora deve ter uma preferência, sra. Fleming —
falei então. — Se um homem inocente for condenado pelo
assassinato de sua irmã, o problema é que o culpado fica livre. É
isso o que a senhora quer?
Olhou para mim, de baixo para cima, pois tinha pouco mais
de um metro e meio.
— Não é de sua conta o que eu quero — respondeu ela, e
falava sério.
— Não — disse eu — mas é da sua conta. Não sou um
repórter tentando conseguir uma manchete. Sou um detetive
particular tentando conseguir alguns fatos. Já tenho alguns. Sei
porque a senhora não quer ver os repórteres, porque não tem
informação para ninguém. Porque a sua irmã era uma amásia e
a senhora...
— Minha irmã era o quê?
— A, M, Á, S, I, A, amásia. Gosto mais dessa palavra do que
concubina ou amante. Eu não...
Precisei parar, a fim de proteger o meu rosto. Quando uma
mulher voa em cima de você para unhá-lo, a sua reação
depende da mulher. Se ela for mesmo feroz, talvez você tenha
até de bater, mas com Stella Fleming, de alcance curto, bastava
mantê-la longe com o braço esticado e a palma da mão sobre a
sua boca. Seu marido segurou-a por trás, pelos ombros, puxou-a
e disse:
— É melhor ir embora.
Eu concordava com ele, mas ainda bem que Wolfe não
podia ler meus pensamentos em onda curta, pois ele pensa que
eu entendo as mulheres. Ela virou-se e começou a lhe bater no
peito com os punhos, chiando:
— Não quero que ele vá embora. — E aí, calmamente, sem
pressa, começou a tirar o casaco. Quando ele o segurou, ela me
disse: — Entre, por favor — muito delicadamente, e tomou a
direção da sala. Ele, após fechar a porta do armário, fez um
gesto para que eu a seguisse, e eu a segui.
Acendera as luzes e sentara-se num sofá, roendo as unhas.
Estivera ocupado demais para ver realmente como era e, ao
cruzar para me sentar numa cadeira, vi que não se parecia com
a irmã, pois tinha cabelos e olhos castanhos e um rosto
redondo. Ao me aproximar, perguntou:
— Por que disse isso?
— Para dar impacto. — Sentei-me. — Tinha de fazer isso.
Ou então...
— O que eu quis dizer foi, por que mentiu assim sobre a
minha irmã?
Abanei a cabeça:
— Comigo isso é perda de tempo, sra. Fleming. Ambos
sabemos que não é mentira, portanto não falemos mais nisso.
Não é importante, pelo menos para mim. Eu só disse isso para...
— O senhor conhecia minha irmã?
— Não. Até ontem, nunca tinha ouvido falar nela.
— Então como pode saber...
Dei-lhe mais três segundos, mas ela deixou a frase em
suspenso. Fazendo um gesto com a mão, respondi:
— É óbvio. Uma corista abandona...
— Ela era atriz.
— Está bem. Uma atriz abandona o teatro, aluga um
apartamento de trezentos dólares, não tem emprego, come
bem, veste-se bem, tem um carro, usa um perfume de trinta
dólares. Quem não saberia? Quem não sabe? Isso não tem
importância, não agora. O que...
— Para mim, é. É a coisa mais importante do mundo.
— Ora, querida — disse Fleming. Sentara-se no sofá ao seu
lado.
— Bem, se é importante para a senhora, é sobre isso que
quer falar. Vá em frente.
— Ela tinha 28 anos. Tenho 31. Só tinha 25 anos quando...
parou de trabalhar. Quando nossa mãe morreu, ela tinha seis
anos e eu nove, e quando nosso pai morreu ela tinha doze e eu
quinze. É por isso que é tão importante.
— Com certeza. — concordei.
— O senhor não é repórter. William me disse o seu nome,
mas não me lembro.
— William é o ascensorista — disse Fleming.
— Obrigado — disse para ele. Para ela: — Meu nome é
Archie Goodwin. Sou detetive particular. Trabalho para Nero
Wolfe e vim...
— O senhor é um detetive?
— Sim.
— Então o senhor sabe muita coisa. O senhor falou que
não gostaria que o assassino de minha irmã não fosse
condenado, e não, eu não gostaria, mas se ele for preso e
houver um julgamento, ninguém vai falar sobre a minha irmã o
que o senhor falou. Se alguém dissesse isso no tribunal, sairia
nos jornais. Se alguém vai dizer isso, não deve haver
julgamento. Mesmo que ele saia impune. Por isso o senhor não
sabia o que eu queria.
Embora por motivos diferentes, ela era a segunda mulher
no mesmo dia que não queria um julgamento.
— Agora sei — respondi — e se esse é seu ponto de vista
não discuto. Até concordo, pelo menos em parte. A senhora não
quer um julgamento, mesmo que apanhem o homem certo. O
que eu não quero é que julguem o homem errado, e é isso o que
vai acontecer, a não ser que alguém o impeça. É claro que leu
os jornais.
— Li todos.
— Certo. Então sabe que prenderam um homem chamado
Orrie Cather e que ele já trabalhou para Nero Wolfe. Já viu ou
ouviu esse nome antes? Orrie Cather?
— Não.
— Tem certeza? Sua irmã nem ao menos o mencionou?
— Não. Tenho certeza que não.
— O sr. Wolfe e eu o conhecemos bem. Não acreditamos
que matou a sua irmã. Não digo que saibamos tudo sobre ele.
Pode ser que matasse, pode ser que tenha uns... ahn... contatos
que não conhecemos. Pode ser até que ele fosse o sujeito que
estava pagando o aluguel do apartamento de sua irmã, e as
outras... A senhora está abanando a cabeça.
— Ela não abanou a cabeça — disse Fleming.
— Desculpe, pensei que estivesse. De qualquer forma,
pagando o aluguel ou não, não acreditamos que ele a tenha
matado, e é por isso que o sr. Wolfe mandou-me aqui para vê-la.
Se ele for a julgamento, a senhora sabe o que acontecerá. Tudo
que descobriram sobre sua irmã virá à baila. Como a senhora
sabe, se houver uma dúvida razoável, o júri deve absolver um
homem. Queremos estabelecer uma dúvida razoável para a
polícia, a fim de que não vá a julgamento por júri, e pensamos
que poderia ajudar. A senhora via sua irmã freqüentemente,
não?
— O senhor é muito esperto — disse Fleming. — Mas devo-
lhe lembrar que, para minha mulher, o julgamento do homem
certo será tão ruim como o do homem errado. Não concordo
com ela, absolutamente, mas Isabel era irmã dela.
— Não — respondi. — Não estou sendo esperto. Só
precisamos de uma dúvida razoável. Por exemplo, se provarmos
à polícia que há outro homem, ou mulher que tinha um bom
motivo? Ou se descobrirem que Isabel disse a alguma pessoa...
podia ser à sua mulher... que alguém ameaçara matá-la? Se e se
e se. Para o objetivo que o sr. Wolfe e eu pretendemos, não
precisa ser um motivo suficientemente forte para acusá-lo e
julgá-lo, apenas a dúvida. Mas mesmo que o prendam, para sua
mulher o seu julgamento talvez não seja tão mal como o de
Orrie Cather com certeza será. Sabemos algo sobre o que
suspeitam de Orrie.
— O que é?
— Não posso lhe contar. É confidencial.
Ele me fitava, apertando os olhos:
— Sabe, sr. Goodwin, sou professor de matemática e gosto
de problemas. Como isto nos atinge de perto, embora atinja
mais à minha mulher do que a mim, não é apenas um problema,
mas mesmo assim a mente está habituada. — Pôs a mão no
joelho da mulher: — Espero que não se importe, querida, admito
que gostaria de ajudar neste problema. Mas não o farei. Sei
como se sente. Faça exatamente o que tem vontade.
— Bastante justo — respondi. E virando-me para ela: — Via
sua irmã freqüentemente, não?
— Sim — respondeu, colocando a sua mão sobre a dele.
— Uma ou duas vezes por semana?
— Sim. Quase sempre jantávamos juntas no sábado e
íamos ao teatro ou ao cinema. Meu marido joga xadrez nos
sábados à noite.
— De acordo com os jornais, a senhora foi lá anteontem,
tocou a campainha, não obteve resposta, e o zelador abriu-lhe a
porta. É verdade?
— Sim.
— Esse momento, quando entrou no quarto, é importante.
Não quero causar-lhe impacto de novo, sra. Fleming, juro que
não, mas é importante. Qual foi a primeira coisa em que pensou,
quando viu o cadáver de sua irmã no chão?
— Eu não... não foi um pensamento.
— Primeiro foi o choque, é claro. Mas quando a senhora viu
o... quando verificou que ela fora assassinada, seria natural
pensar ele a matou ou ela a matou, qualquer coisa assim. Por
isso é importante; quase sempre a primeira idéia é a correta.
Quem era ele ou ela?
— Não havia nenhum ele ou ela. Não pensei em nada
disso.
— Tem certeza? Numa hora dessas nossa mente divaga.
— Eu sei, mas não pensei numa coisa dessas naquela hora
ou em qualquer outra, que ele ou ela a matou. Nem tentaria
adivinhar quem a matou. Tudo o que sei é que não deve haver
julgamento.
— Haverá um julgamento, o de Orrie Cather, a não ser que
encontremos um modo de impedi-lo. Sua irmã alguma vez lhe
mostrou seu diário?
Franziu a testa:
— Ela não tinha um diário.
— Tinha, sim. A polícia está com ele. Mas como...
— O que há nele?
— Não sei. Não o vi. Como...
— Ela não deveria ter feito isso. Isso torna as coisas piores.
Ela não me disse. Devia estar naquela gaveta que sempre trazia
trancada. Não tenho o direito de ficar com ele? Não posso fazer
com que me entreguem o diário?
— Agora não. Mais tarde, pode. Se houver um julgamento,
será uma evidência. É chamado de prova. Como a senhora
nunca o viu, vamos para outra coisa. Parece um caso sem
esperança, pois só conheço a senhora para me fornecer
informações. Sem dúvida a pessoa certa para isso seria o
homem que pagava o aluguel do apartamento, o carro, o
perfume e todo o resto, mas não sei quem é ele. A senhora
sabe?
— Não.
— Isso me surpreende. Pensei que soubesse. A senhora e
sua irmã eram muito chegadas, não?
— Certamente.
— Então a senhora deve saber quem ele é. Como disse que
não podia adivinhar quem a matou, não vou lhe perguntar isso,
apenas quem a conhecia bem. É claro que contou à polícia.
— Não, não contei.
Levantei uma sobrancelha:
— A senhora se recusa a falar com eles também?
— Não, mas não pude lhes dizer muita coisa porque não
sei. Era... — Parou, abanou a cabeça e virou-se para o marido: —
Conte para ele, Barry
Ele apertou-lhe a mão:
— Pode-se dizer que Isabel vivia duas vidas. Uma delas era
com minha mulher, sua irmã, e, um pouco mais afastada,
comigo. A outra era com seu... bem, chamemos de seu círculo.
Minha mulher e eu sabemos muito pouco sobre ele, mas
acreditávamos que seus amigos provinham, na maioria, do
mundo do teatro. Obviamente, devido às circunstâncias, minha
mulher preferia não se juntar a eles.
— Não era o que eu preferia — corrigiu ela. — Assim é que
era.
Isso ajudava muito, um círculo completo de amizades, mas
era de se esperar.
— Está bem, a senhora não pode me fornecer nomes que
não sabe. Não há ninguém, ninguém mesmo, que a senhora
conhece e ela conhecia?
— Não.
— Dr. Gamm — disse Fleming.
— Oh, é claro — falou ela.
— Médico dela?
— Nosso também — Fleming concordou. — Um interno. Ele
é, pode-se dizer, um amigo meu. Joga xadrez. Quando Isabel
teve uma bronquite séria uns dois anos atrás, eu...
— Quase três anos — corrigiu ela.
— Foi? Eu o recomendei. É viúvo, com dois filhos.
Convidamos ele e Isabel aqui para jogar bridge, umas duas ou
três vezes, mas ela não jogava bem.
— Ela jogava pessimamente — disse Stella Fleming.
— Não tinha nenhum jeito com cartas — disse Fleming. —
Seu nome é Theodore Gamm, com dois emes. Seu consultório
fica na rua 78, em Manhattan.
Era de se presumir que ele estava ajudando a resolver o
problema e apreciei muito isso; pelo menos, tinha um nome e
endereço. Tirei meu caderno de bolso e anotei para mostrar que
estava atento.
— Ele não vai poder contar nada — disse ela, perfei-
tamente calma, mas de repente se levantou, tremendo, os
punhos cerrados, os olhos como brasa. — Ninguém pode! Não
podem, não podem! Saia! Saia!
Fleming, também de pé, estava com o braço em seus
ombros, mas ela não tomava conhecimento. Se eu tivesse ficado
sentado, quieto, é provável que em alguns instantes tivesse se
acalmado de novo, mas desde o café da manhã eu não havia
comido nada. Acenei para Fleming, ele fez que sim também, e
fui para a entrada, apanhar meu casaco e meu chapéu, e saí. Ao
entrar no elevador, William me disse:
— Então entrou, hein?
— Graças a você, amigo, ao dizer aos dois que eu estava lá
— respondi.
Na rua estava ainda mais frio, mas o carro pegou
rapidamente, como devia, e fui para a via principal.
Pouco depois das 6:30h, ao entrar no escritório, Wolfe
estava à escrivaninha, olhando carrancudo um documento de 5
cm de grossura, parte da transcrição do julgamento Rosenberg,
que mandara buscar após ler os três primeiros capítulos de
Convite para um inquérito policial. Minha mesa estava limpa,
sem memorandos ou mensagens de chamados telefônicos.
Arranquei uma página do meu caderno de bolso e a fiquei
estudando, até que Wolfe pigarreou, momento em que me
levantei e passei-lhe a folha.
— Pronto — disse eu. — O nome e o endereço do médico
que tratou de Isabel Kerr quando teve bronquite há quase três
anos.
— E...? — ele grunhiu.
— Vai achar mais interessante se eu contar os antece-
dentes. Passei uma hora com o sr. e a sra. Fleming. Quer agora
ou depois do jantar?
Olhou o relógio. Trinta e cinco minutos para se comer uma
fritada de anchova.
— É urgente?
— Não, que diabo.
— Então pode esperar. Saul telefonou duas vezes. Nada.
Fred vai trabalhar com ele de manhã. Telefonei para o sr.
Parker; ele veio depois do almoço e lhe descrevi a situação, tudo
o que era relevante, exceto o nome de Avery Ballou. Telefonou
depois. Viu Orrie e conseguiu que você o veja amanhã de
manhã, às dez horas. Acha que é melhor.
— Orrie foi acusado? De homicídio?
— Não.
— Mas sem fiança?
— Sim. O sr. Parker não quer insistir. — Olhou de relance
para a folha que eu lhe entregara: — O que é isso? Este homem
a matou?
— Não, ele a curou. Tenho muito orgulho desse nome. Foi
só o que consegui.
— Ora... — Largou a folha e continuou a ler a transcrição.
Não se pode falar de negócios à mesa, mas de assassinos
e crime sim, e a conversa girou sobre o caso Rosenberg durante
o jantar, desde a fritada de anchova, caçarola de perdiz sem
azeitona no molho, musse de pepino e a sobremesa. Era uma
discussão teórica, pois os Rosenberg morreram há muitos anos;
mas os jovens príncipes morreram há cinco séculos e uma vez
Wolfe levou uma semana investigando esse caso, e depois tirou
a Utopia de More das prateleiras, pois achou que More
incriminara Ricardo III.
Só parou quando estávamos de volta ao escritório, depois
de beber seu café. Empurrou a bandeja para um lado e
perguntou se tinha de ser verbatim. Respondi que sim e
comecei. Quando lhe contei do acerto que fizera com William,
apertou os lábios, não por objeção, mas apenas reagindo ao fato
de que era dinheiro posto fora, pois não poderíamos cobrar de
Orrie. Em seguida recostou-se e fechou os olhos, parou de
reagir, como de costume, até eu terminar.
Então abriu os olhos e perguntou:
— Você não almoçou? Não comeu nada?
Abanei a cabeça:
— Se tivesse saído, talvez custasse cem dólares para subir
de novo. William é um sanguessuga.
Esticou o corpo:
— Nunca faça isso.
— Para mim é bom. Estava com 250 gramas acima de meu
peso. Você comenta ou eu?
— Você.
— Primeiro, Stella matou sua irmã? — falei, depois de meio
minuto. — Aposto dois contra um que não. Ela...
— Só dois?
— É o máximo. A coisa mais importante do mundo, disse
ela. Se ainda é tão importante com ela morta, como era quando
estava viva? Descontrolou-se duas vezes na minha frente;
simplesmente não consegue suportar isso. Se foi lá sábado de
manhã e... preciso explicar?
— Não. Por que dois contra um? Por que não igual ou
menos?
— Porque, segundo se sabe, uma mulher só mata a irmã se
a odeia ou se tem medo dela. Não é o caso de Stella. Ela a
amava e queria... bem, salvá-la. Digamos três contra um. De
qualquer modo, mesmo que tenha sido ela, é impossível. Tente
provar. Mesmo que conseguíssemos o bastante para nos
satisfazer, Cramer e o promotor público nunca acreditariam,
quanto mais o júri. Por isso esqueça essa possibilidade. Quanto
a ele, não aposto nada. Podia ter um motivo, como qualquer
pessoa, mas no momento o único visível é que ele a matou para
que sua mulher parasse de se preocupar com ela, o que é inve-
rossímil. Mas por que ele me deixou entrar ?
— Para que ela não o encontrasse no corredor.
— Talvez, mas podia ter-me posto para fora e chamado a
polícia, se precisasse. É só um comentário; talvez fosse porque
ele gosta de problemas, ou talvez pensasse ser bom para ela. É
mais do que um comentário, é uma conclusão: se eles estão por
fora, não têm nenhuma idéia de quem estava por dentro. Ela
disse que nem tentaria adivinhar, e eu acredito, pois não sabe
disfarçar. Quando joguei um verde, dizendo que talvez fosse
Orrie que pagasse o aluguel, não foi apenas a expressão do
rosto que mudou, chegou até a abanar a cabeça. Mais tarde,
disse que não sabia quem era, mas ela sabe. Mas, que diabo,
nós também sabemos.
— Se Orrie contou tudo.
— Contou, sim. Ele queria contar tudo o que sabia. Mas
guardei o melhor para o fim: a outra vida de Isabel. O círculo.
— Sim — ele resmungou.
— Sim o quê?
— Isso amplia a investigação. Era de se esperar, logo que
você soube que suas relações com a irmã eram restritas. Uma
mulher que come por tolerância, sem um contrato,
naturalmente prefere não comer sozinha. Você está rindo?
— Sim. A maior parte dos homens não relacionaria isso
com comida. Está bem, então temos um círculo... como era de
se esperar. Dezenas, talvez centenas. Deus do céu! Sugiro mais
uma vez que consideremos Avery Ballou.
— Já o estou levando em consideração. Mas queria antes...
não importa. Discutiremos isso pela manhã, depois de você ter
visto Orrie.
Apanhou a transcrição.
CAPÍTULO VI
QUANDO SE PROCURA um homem sob custódia em Manhattan, o
lugar onde está depende parcialmente do porquê ele está lá.
Pode ser uma delegacia de polícia, uma sala na prisão da
cidade, uma sala no escritório do promotor público ou a gaiola.
Não sei quantos policiais chamam de ‘gaiola’, mas o sargento
Purley Stebbins diz assim. É uma sala nua e malcheirosa, com
cerca de dez metros de comprimento, dividida ao meio por uma
grade de aço, que vai do centro de um balcão largo, de madeira,
até o teto, com cerca de uma dúzia de cadeiras de madeira de
cada lado, o mesmo tipo de cadeiras para visitas e visitados.
Democracia.
Sentado numa das cadeiras do lado dos visitantes, às
10:10h da manhã de terça-feira, eu não estava animado.
Pensara que iria ver Orrie numa sala no escritório do promotor
público, até Parker me telefonar, dizendo que seria na Prisão
Municipal. Pensara, então, que seria numa sala. Mas me levaram
até a gaiola, e lá estava eu, com mais quatro visitantes, sendo
que o mais próximo, uma mulher gorda, de meia idade, de olhos
vermelhos, se encontrava apenas a dois metros de distância.
Gostaria de acreditar que estavam apenas mostrando o que
pensavam de Nero Wolfe e Archie Goodwin, mas não pude.
Haviam decidido que Orrie Cather era um assassino, embora
ainda não tivessem proferido a acusação, e não estavam se des-
cuidando. Tinha de tentar fazê-los engolir essa idéia.
Uma porta se abriu na parte dos fundos, do outro lado do
balcão com a grade, e Orrie entrou, algemado, com um tira bem
atrás. O tira conduziu-o a uma cadeira à minha frente, ficou
olhando até que ele se sentasse, e disse: “Quinze minutos”, e
voltou para a parede, onde outro tira esperava em pé. Os meus
olhos e os de Orrie se encontraram através da grade, da melhor
forma possível. Suas pálpebras estavam inchadas. Uma vez ele
me dissera que levava dez minutos, toda manhã, só escovando
o cabelo, mas naquela manhã não escovara.
— Talvez tenha uma escuta — eu disse.
— Creio que não — respondeu. Suas mãos algemadas
estavam no balcão. — Arriscado demais. O protesto seria muito
grande.
— Bem, tudo que podemos fazer é falar baixo. Parker já lhe
disse que o sr. Wolfe, Saul, Fred e eu decidimos que você não a
matou e estamos investigando.
— Sim, sei que ele teria de fazer isso. Não sou seu Archie
Goodwin, mas, mesmo sendo eu, teria de fazer isso.
— Prefiro me considerar como o ‘meu’ Archie Goodwin,
mas não falemos disso agora. Tenho algumas perguntas a fazer,
mas Parker disse que você queria me ver. Então?
— Quero que me faça um favor, Archie, um grande favor.
Quero que vá ver Jill Hardy e diga a ela...
— Já falei com ela. Ontem de manhã foi ao escritório, não
interrompa, e tivemos uma conversinha. Não sei o que você lhe
disse sobre Isabel Kerr, por isso eu...
— Nunca lhe disse nada sobre Isabel Kerr. Ela não sabia
que havia uma Isabel Kerr. Raios, o que você lhe contou?
— A mesma coisa que você: nada. Naturalmente, é esse o
favor que você ia pedir, e já está feito. Disse a ela que os tiras
pensavam que você a matara, e nós achávamos que não, e
iríamos investigar, e que nada sabíamos sobre Isabel Kerr. Agora
eu tenho...
— Você é maravilhoso, Archie. Maravilhoso.
— Ponha isso por escrito e mandarei emoldurar. Tenho
perguntas a fazer e não temos muito tempo. Você contou
alguma coisa?
— Não. Estou mudo.
— Continue assim. Como sabe, Parker concorda. O que
eles têm? Sabemos que estão com sua licença e outros objetos,
já que você não os tem nem eu, as suas impressões digitais e o
diário dela, mas isso é...
— O diário dela?
— Sim. Você não sabia que tinha um?
— Deus do céu, não.
— Tinha, e está com eles; pelo menos é o que Cramer diz.
Mas não disse o que está escrito. Provavelmente você está nele,
mas queremos sua opinião a respeito de outro assunto: será que
ela colocaria o nome dele no diário? O nome que tive de
arrancar de você?
— Oh... — Pensou um pouco no assunto. — Sei. Talvez isso
seja um ponto a verificar. Não creio que ela fizesse isso. É claro
que o diário estava escondido; mesmo assim, tenho quase
certeza de que não faria isso. É mais do que apenas uma
opinião. Digo que não.
Olhei para o pulso. Ainda faltavam seis minutos.
— Agora a pergunta principal: quantas pessoas sabiam
sobre você e ela?
— Ninguém.
— Bolas, você não pode ter certeza.
— Pelo que saiba, ninguém. Você já me ouviu esbravejar e
falar, Archie, mas nunca me ouviu falar dela. Algumas vezes ela
me assustava. Já tive mulheres apaixonadas por mim antes, mas
ela era obcecada. Eu gostava dela, era boa, mas obcecada.
Depois que começamos o nosso caso nunca estivemos juntos
em outro lugar que não fosse o seu apartamento. Ela queria
assim, e para mim era ótimo. Mas julguei-a de forma totalmente
errônea. Contei-lhe que conhecera Jill, sabe como é, apenas que
conhecera uma aeromoça; e então, como um idiota, achei que
poderia acostumá-la com a idéia de que ela não poderia esperar
ser a minha única garota, já que eu não era o seu único contato.
Mas eu fiquei obcecado, pela primeira vez na minha vida. Por Jill.
E ela... já lhe disse como aceitou isso. Era ela que tinha de se
casar comigo, pelo amor de Deus. Disse-lhe que tudo o que eu
ganhava era cerca de metade do que ela gastava naquele
apartamento; respondia dizendo que um quarto com banheiro
bastaria para nós, mesmo depois que o bebê chegasse. Esse
tipo de besteira. Nem por um minuto acredito que houvesse um
bebê, e mesmo se houvesse, de quem seria? Estou respondendo
às suas perguntas. Não falei a ninguém a respeito dela e duvido
que ela tenha contado a alguém sobre mim.
— Mas ela lhe falou sobre outras pessoas, não foi?
— Sobre algumas, sim. Você sabe, só fofoca, falou, sim.
— Qual deles a matou? Quem tinha motivos para matá-la?
— É natural que tenha pensado a esse respeito — assentiu.
Se algum dia falou uma só coisa sobre alguém, que pudesse
fornecer uma pista, não consigo me lembrar. Sei que só há uma
única maneira de você me soltar, e Deus sabe que quero lhe dar
palpites, mas juro que não posso. Claro, ela me contou sobre
diversas pessoas, homens que tentavam cantá-la, mulheres de
quem gostava e algumas de que não gostava, mas já pensei
nisso mil vezes e não consigo pensar em nada. Sei que você
precisa ter alguma pista para começar e, além de Jill, é sobre
isso que eu desejava lhe falar. A mulher de quem mais gostava,
e quem mais via, é uma cantora de cabaré chamada Julie
Jaquette. Seu verdadeiro nome é Amy Jackson. Na semana
retrasada estava no Ten Little Indians, e talvez ainda esteja lá.
Talvez seja o melhor palpite. Conseguiu alguma coisa? Qualquer
coisa?
— Não. Você chegou a conhecer a irmã dela, Stella
Fleming?
— Não. Isabel falava a seu respeito. Dizia que, quando
estivéssemos casados, não só ela estaria feliz, mas também sua
irmã. Pensava que isso me entusiasmaria, fazer duas mulheres
felizes ao mesmo tempo.
— Você deveria ter ficado contente. Ela alguma vez
mencionou... — Parei, pois íamos ser interrompidos. O tira se
aproximava. Tocou o ombro de Orrie, o que era desnecessário, e
disse que o tempo terminara. Falei mais alto:
— Qual o seu nome?
Ele me olhou de cima para baixo:
— Meu nome?
— Sim. Seu nome.
— Meu nome é William Flanagan.
— Outro William. — Levantei-me. — Vou denunciá-lo por
brutalidade. O sr. Cather está detido apenas como testemunha
material. O senhor não precisava agarrá-lo pelo ombro.
Virei-me e caminhei em direção à porta, e o tira que me
trouxera veio para meu lado, assim que peguei na maçaneta.
William Flanagan não interrompera nada importante; eu ia
apenas perguntar se Isabel alguma vez mencionara o dr. Gamm.
No táxi, indo para casa, fiquei deprimido. Esperara
conseguir alguma idéia de Orrie, pelo menos algum lampejo,
mas ao virarmos na rua 35 para o oeste, verifiquei que estava
pensando na aparência dele, e nas coisas que falara,
procurando alguma pista, o que era tolice, pois estava
definitivamente fora de suspeita. O caso é que só se consegue
tirar alguma coisa do pensamento colocando outra no seu lugar.
A idéia de que Orrie poderia ter acertado Isabel Kerr com aquele
cinzeiro entrara na minha cabeça assim que vira seu crânio
afundado e, não importa o que eu fizesse, ficaria lá até que
tivesse X ou Y como substituto de Orrie. Depois de três dias e
noites, ainda não havia um X ou Y que valesse a pena. Mesmo
assim, dizem vocês, eu não deveria considerá-lo culpado já que
o havíamos inocentado; têm toda a razão, mas vocês não sabem
de muita coisa.
A fim de demonstrar como me sentia, ao entrar no es-
critório não abri a gaveta de cima do lado esquerdo para
apanhar o bloco onde lanço as despesas semanais. Por isso teria
de pagar a despesa do táxi, três dólares e 75 centavos. Wolfe
dissera que assumiria toda a responsabilidade, mas até termos
alguma coisa positiva ele nada poderia assumir, e não é só ele
que tem amor-próprio. Como já eram onze horas e alguns
minutos, acabara de descer da estufa e examinava a
correspondência. Quando descobriu que nada havia de
interessante, nem cheques nem listas de colecionadores de
orquídeas, empurrou a pilha para um lado e deu-me bom-dia.
Respondi que nada havia de bom nele, e, para provar, fiz-lhe um
relatório palavra por palavra de minha conversa com Orrie,
terminando com o comentário de que era melhor ele interrogar
o próximo suspeito, já que eu não conseguira nada com as três
pessoas com quem conversara, Jill Hardy e os Fleming.
— De qualquer forma — eu disse — o culpado é um
homem. Admito que, para você, seria demais entrevistar Julie
Jaquette, mas ela pode esperar até que você tenha falado com
Avery Ballou.
Ele franziu a testa:
— E o dr. Gamm?
Franzi a testa também:
— Você não pode adiar isso para sempre. Como sabe,
concordo com você que alguns casos, como provas para
divórcio, são muito sórdidos. Mas qualquer trabalho é sórdido,
se o ponto principal for quem dormiu ou está dormindo com
quem. Embora seja verdade que Ballou provavelmente não
pagava o aluguel para lhe ler poesias, e que se deve presumir
que o sexo era o fator preponderante, esse não é o ponto
principal e você pode se esquecer dele. Você pode fingir que ele
a matou porque ela o ironizou quando ele disse uma palavra
errada.
Os lábios dele estavam apertados. Respirou fundo três
vezes:
— Muito bem. Traga-o aqui.
— Está certo, mas não sei quando nem como. Dei uma
verificada nele ontem à noite. Não é apenas presidente da
Federal Holding Corporation, é também diretor de outras nove
grandes companhias. Possui uma casa na rua 67, uma em
Rhinebeck e outra em Palm Beach. Tem 56 anos, um filho e
duas filhas, todos casados. Deveria telefonar ao banco para
saber quanto possui em conta, e não queremos anunciar o fato
de que está curioso a seu respeito, mas é...
— Eu disse para trazê-lo aqui.
— Eu ouvi. Estou explicando que não seria aconselhável
dizer à recepcionista, em seu escritório, e à pessoa subalterna a
quem ela me indicasse, que um detetive particular, chamado
Nero Wolfe, quer consultá-lo sobre um assunto confidencial
demais para qualquer outra pessoa ouvir. Se eu telefonar, vai
ser ainda pior. Portanto, preciso bolar alguma coisa e Jullie
Jaquette teria de esperar.
— Saul disse alguma coisa? — perguntou Wolfe, com um
grunhido.
— Telefonou às nove horas. Fred estava com ele,
investigando. Vai telefonar à uma hora.
— Ora, não se pode colocar um prodígio num serviço de
rotina. Tire ele disso e diga-lhe que procure a srta. Jaquette.
Dela ele conseguirá alguns nomes e então Fred poderá ajudá-lo.
Esticou-se para apanhar uma carta:
— Apanhe seu caderno de notas. A carta daquele imbecil
de Paris tem de ser respondida.
CAPÍTULO VII
NAQUELA TARDE, às quatro horas, eu me encontrava de pé num
corredor de mármore de um conglomerado financeiro de
quarenta andares em Wall Street, esperando em frente ao
elevador que marcava ‘32.° ao 40.°’. Já estava preparado. Trazia
na mente uma imagem de Avery Ballou, que vira num número
atrasado da revista Fortune, na Biblioteca Pública de Nova
Iorque, e no bolso um cartão. Era igual ao que dera a William, o
ascensorista, com meu nome no meio e o nome, endereço e
telefone de Nero Wolfe em letras menores no canto inferior,
porém eu juntara mais alguma coisa. Embaixo do meu nome,
batera à máquina: “Havia um diário no quarto cor-de-rosa, e a
polícia está com ele.” Com isso, o espaço em branco estava
preenchido.
Talvez estivesse exagerando. Era possível que a mulher e
a família de Ballou soubessem como ele passava algumas
noites, sem falar nos amigos e alguns funcionários da empresa.
Mas era provável que não soubessem. No artigo da revista
alguns adjetivos a seu respeito eram ‘astuto’, ‘arredio’,
‘conservador’ e ‘escrupuloso’. Não engulo todos os adjetivos que
leio, mas se só a metade deles estivesse certa ainda assim seria
um assunto muito delicado. Por isso esperei cem minutos no
corredor de baixo, em vez de subir ao 34.° andar. De qualquer
maneira, era melhor do que o corredor da avenida Humboldt,
2.938, especialmente depois das cinco horas, quando todos os
elevadores despejavam um bando de franguinhas, uma visão
muito agradável. Sei que as frangas que põem ovos não formam
bandos, mas se usassem elevador em vez de asas teriam de se
reunir assim.
Às 5:38h olhei para o meu relógio, e dois minutos depois
Avery Ballou apareceu. Um dos que desceram com ele no
elevador continuou ao seu lado, conversando enquanto
andavam. Seis passos atrás, lá segui eu, esperando que se
separassem, e foi o que fizeram, na calçada. O outro homem foi
em direção à Broadway e Ballou ficou parado. Aproximei-me,
coloquei-me à sua frente e disse:
— Tenho a certeza de que isso o interessará, sr. Ballou.
Pode ler com esta luz?
Durante um segundo, pensei que fosse me ignorar, e ele
também pensou, mas olhou meu rosto, o rosto másculo e
honesto que lançara mil cartões, apanhou-o, inclinou-o a fim de
poder ler melhor e focalizou o olhar. Tive bastante tempo para
analisá-lo. Seu capote cinza-escuro lhe custara trezentos, talvez
quatrocentos dólares e o chapéu cinza-escuro uns quarenta
dólares. Sua cabeça era do tamanho certo para o seu corpo
grande e forte; o rosto, embora com algumas rugas, não tinha
pelancas. Continuava sem pelancas quando acabou de ler o
cartão, colocou-o no bolso e olhou para mim.
— Interessará a mim?
— É claro que aqui não é lugar para discutirmos isso. O
melhor lugar é o escritório de Nero Wolfe. Ele sabe mais coisas
sobre aquele quarto de dormir cor-de-rosa do que a polícia, e
sobre o homem que a polícia detém, e sobre o senhor. A melhor
hora seria agora. Isso é tudo o que tenho a lhe dizer, sou apenas
um mensageiro. Mas o senhor deve admitir que foi muita
consideração minha não ter ido ao 34.° andar e entregar este
cartão para qualquer pessoa levar ao senhor.
Ele virou totalmente a cabeça — para ver se havia um
policial por perto? Não. Um automóvel Rolls-Royce se
aproximara e parara, e um motorista uniformizado saltava.
Ballou virou-se para mim e perguntou:
— Onde é?
— Rua 35 Oeste, número nove-três-oito.
— Está de carro?
— Aqui, não.
— Se for comigo, ficará com a boca fechada.
— Certo. Já disse o que tinha a dizer.
Foi até ao Rolls, entrou e eu o segui. O motorista fechou a
porta e se colocou atrás do volante. Quando começou a andar,
Ballou lhe disse que faríamos uma parada e deu o endereço. Ao
pararmos num sinal na esquina, pensei que era a primeira vez
que eu entregava um suspeito de assassinato na velha casa de
tijolos no seu próprio Rolls-Royce. Como não conversamos,
passei o resto da viagem concentrando-me no carro e concluí
que era mais macio que o Heron, mas não arrancava tão rápido.
Chegamos lá depois das seis, de forma que Wolfe já teria
descido. Embora não seja tão infantil como ele, a ponto de me
exibir, gosto de fazer as coisas bem feitas. Por isso, após
guardar o capote e o chapéu de Ballou e o meu, no corredor,
entrei no escritório, anunciando:
— Sr. Ballou — e me afastei. Ele entrou, parou, olhou ao
redor e perguntou:
— Esta sala tem microfones?
— Diabos — disse Wolfe — em breve será impossível
conversar em qualquer lugar sobre qualquer coisa. Posso lhe dar
a minha palavra de honra de que o que dissermos não será
gravado, e dou-a agora, mas, embora saiba o que minha palavra
vale, o senhor não sabe. — Apontou para um vaso: — O
microfone poderia até estar ali, mas não está.
Ballou retirara o cartão do bolso do capote e estava com
ele nas mãos. Mostrou-o:
— O que existe a respeito de um quarto cor-de-rosa e um
diário?
Wolfe fez um gesto:
— É óbvio. É um truque para trazê-lo aqui. Mas não falso;
verdadeiro. O quarto é cor-de-rosa, como sabe, já que passou
muitas horas nele, e a srta. Kerr escrevia um diário, que está
nas mãos da polícia.
Fez um gesto em direção da poltrona vermelha:
— Por favor, sente-se; é melhor quando os olhos ficam no
mesmo nível.
— Nunca passei uma hora num dormitório cor-de-rosa.
— Então por que está aqui?
— Porque conheço a sua reputação. Sei que é capaz de
manobras complicadas e está claro que pretende me envolver
numa delas. Portanto, quero lhe dizer, não tente isso.
Wolfe abanou a cabeça:
— Não adianta, sr. Ballou. O caso não é se eu sei de sua
relação, de mais de três anos, com a srta. Kerr, nem é a
evidência que tenho em mãos para sustentar o que digo. O caso
é, poderia se evitar trazer a público essa evidência e, se
podemos, como? Isso é o que lhe interessa. Para mim, é: matou
aquela mulher? Se matou, vou provar e o senhor está perdido.
Se não, não desejo expor sua ligação com ela, e pode ser que
nunca venha a público. Não estou sendo exagerado ao dizer que
isso depende principalmente de sua franqueza comigo.
Ballou virou a cabeça quando passei por trás dele a fim de
alcançar a minha escrivaninha. Olhou-me quando sentei, olhou
para Wolfe, foi até a poltrona vermelha, sentou-se
confortavelmente, sem pressa, e disse a Wolfe: — Estou
ouvindo.
Wolfe girou a cadeira para ficar bem à sua frente.
— Algumas coisas que vou lhe dizer talvez sejam novidade,
outras não. Sem dúvida o senhor sabe que um homem chamado
Orrie Cather encontra-se detido como testemunha, mas a
qualquer momento será acusado de homicídio. Tenho motivos
suficientes para saber que é inocente. Há anos, em várias
ocasiões, o sr. Cather vem trabalhando para mim e estou com
uma obrigação. Para cumpri-la, devo violar uma confidência. Há
cerca de um ano o sr. Cather tem relações íntimas com a srta.
Kerr. Visitava-a freqüentemente no seu apartamento com o
quarto cor-de-rosa, nas horas em que ela sabia que o senhor
não iria, e lá ficaram traços de sua presença e da intimidade que
desfrutavam, embora não visíveis para o senhor, mas
descobertos por uma busca. A polícia os encontrou e é por isso
que o pegaram. Deseja fazer algum comentário?
— Estou ouvindo. — Pelo rosto de Ballou, poder-se-ia
pensar que estava ouvindo uma simples proposta.
— A srta. Kerr contou ao sr. Cather muitas coisas a seu
respeito, seu provedor, mas naturalmente não lhe contou nada
sobre ele, seu amante. Aparentemente ela o colocou no seu
diário, mas não o senhor. Se estivesse, já teria recebido a visita
de um policial ou do promotor público. Já recebeu?
— Estou ouvindo.
— Assim não serve. Preciso saber, e isto não lhe impõe
obrigações. Alguém foi visitá-lo?
— Não.
— Recebeu qualquer indicação de que o seu nome talvez
seja importante no assassinato de Isabel Kerr?
— Não.
— Então não está no diário. Só sei de uma coisa sobre o
diário: a polícia o encontrou no apartamento da srta. Kerr. Um
policial, um inspetor, contou ao sr. Goodwin que estava em
poder deles. Nada sei sobre o seu conteúdo, exceto que não o
menciona, e isto é sorte. É provável que o promotor público não
acuse o sr. Cather de assassinato até descobrir quem pagava o
apartamento; pelo menos é isto que a prudência determina. O
senhor espera que ele nunca saiba, e para mim tanto faz.
Wolfe inclinou a cabeça:
— Esse é o ponto principal, sr. Ballou. Se o sr. Cather for a
julgamento, o senhor será envolvido. Ele vai depor, vai falar e
com toda a certeza dirá o seu nome, e aí será um inferno. Talvez
haja uma chance, uma chance muito boa, de que se o próprio
assassino for denunciado, julgado e condenado, seu nome
nunca venha à baila; mas se o sr. Cather for julgado, seu nome
se tornará público, com toda a certeza. Presumindo, como eu,
que está inocente, não quero que seja julgado, e, agora que lhe
descrevi a situação, o senhor também não. Temos um objetivo
em comum, e espero que o senhor me ajude a consegui-lo:
identificar o homem que matou Isabel Kerr. Se o senhor recusar,
naturalmente pensarei que o senhor é o assassino; se não for,
perderia muito tempo valioso, e isso seria uma pena. Será que
expus tudo com clareza?
O rosto de Ballou parecia mais enrugado, mas não caído.
Respirou fundo, passou a palma da mão na testa e disse:
— Posso beber alguma coisa?
Levantei-me, enquanto dizia que sim, certamente, diga o
que quer, pois era mais rápido do que chamar Fritz. Respondeu
gim com gelo e casca de limão, e dirigi-me para a cozinha. Fritz
cortou tirinhas de casca de limão enquanto eu apanhava o gim,
o copo e uma vasilha com gelo. Quando entrei de novo no
escritório, a poltrona vermelha se encontrava vazia. Ballou
estava perto do globo, girando-o com um dedo. Ao colocar a
bandeja na mesinha, ele voltou, sentou-se, pôs uma pedra de
gelo no copo, despejou o gim, torceu dois pedaços de casca de
limão, colocou-os no copo e mexeu. Estava de volta na minha
cadeira e ele ainda mexia a bebida. Finalmente apanhou o copo,
tomou dois goles médios e colocou-o de novo na bandeja.
— Sim — disse — está tudo bem claro.
Wolfe abriu os olhos e grunhiu.
— É óbvio — disse Ballou — que estou numa enrascada.
Não posso verificar nada do que o senhor disse. Desejava um
drinque, tomo um logo que chego em casa, mas o que eu queria
mesmo era ainda tempo para pensar. Decidi que talvez os fatos
sejam como o senhor os relatou, em parte porque não vejo o
que o senhor poderia ganhar em inventá-los. A única alternativa
é levantar-me para ir embora, e isso eu não posso arriscar. Só
tenho uma pergunta: quando a srta. Kerr... quando esse
homem, Cather, soube de meu nome?
Wolfe virou-se para mim:
— Temos essa informação, Archie?
— Não, senhor. — Disse a Ballou: — Posso descobrir, se for
importante.
— Poderia ter sido há quatro meses?
— Claro.
— Gostaria de saber. Talvez não seja importante agora,
mas gostaria de saber. — Apanhou o copo e deu um gole. —
Sobre o seu palpite de que talvez eu tenha matado a srta. Kerr,
só posso dizer que não fui eu. Será que um homem na minha
posição, desta importância... Não, isso não o impressionaria.
Para mim, a idéia é simplesmente fantástica. O senhor disse
esperar que eu o ajude a identificar o homem que a matou. Se
não foi Cather, e se os fatos são como o senhor os descreve, é
claro que quero, mas como?
— Primeiro o senhor — disse Wolfe. — Onde estava sábado
pela manhã?
— Estava em casa a manhã toda, até as três horas.
Tínhamos convidados para o almoço.
— Se necessário, poderia provar onde estava a cada meia
hora, a partir de oito até o meio-dia?
— Creio que sim. Houve vários telefonemas.
— E sua esposa pode?
— E por que diabos ela precisaria?
Wolfe abanou a cabeça:
— Não comece com isso. O senhor manteve sua pose
maravilhosamente bem; não estrague tudo agora. Não sou eu
quem está querendo envolver sua mulher, são as circunstâncias.
Ela conhecia sua ligação com a srta. Kerr?
— Não.
— Tem certeza?
— Absoluta. Tomei muitas precauções.
Wolfe franziu a testa:
— Veja como é difícil. Talvez seja desejável que o sr.
Goodwin ou eu vejamos a sua esposa, mas com que desculpa,
sem implicá-lo? Precisamos arranjar isso, de alguma forma, e o
sr. Goodwin...
— Não vai se arranjar nada! O senhor não vai ver minha
mulher!
— Olhe a pose. Como o senhor próprio admitiu, está numa
enrascada; não esperneie. Se não foi o senhor nem sua mulher,
quem foi? Preciso de algum fato, uma sugestão, um nome. O
senhor passou com ela muitas horas, intimamente. O senhor
talvez tenha de passar muitas horas comigo. Ela deve ter-lhe
contado sobre os lugares aonde ia e as pessoas que conhecia.
Conte-me.
Um músculo tremia no pescoço de Ballou.
— Eu insisto, insisto, que minha mulher não seja
perturbada. É claro que o senhor espera ser pago. Nunca
‘esperneio’. Quanto quer?
Wolfe acenou com a cabeça.
— No seu caso, isso é óbvio. Os homens com dinheiro
sempre acham que não há outra forma de pagamento. Fui
contratado pelo sr. Cather e o senhor não pode me contratar ou
pagar. É claro que o estou forçando, mas só para conseguir
informações. Só perturbaremos a sua esposa se for estritamente
necessário. Do senhor quero todos os fatos, todos...
O telefone tocou. Virei-me e atendi:
— Escritório do sr. Nero...
— É Saul, Archie. Estou...
— Espere.
Descansei o fone e fui até a cozinha, onde falei por outro
telefone.
— Temos visitas. Está bem, pode dizer.
— Você vai ter mais visitas. Estou derrotado. Encontrei
quem fosse igual a mim. Julie Jaquette. Daria uma semana de
pagamento para saber se você poderia ter dado conta dela. O
problema é que, em parte, Nero Wolfe é uma celebridade, diz
ela, mas é principalmente por causa das orquídeas. Se ele lhe
mostrar as orquídeas, ela lhe contará tudo sobre Isabel Kerr. Ela
não vai me dizer nada. Nada mesmo.
— Ora, ora. Eu teria levado uns dez minutos.
— Não amole. Eu disse o pagamento de uma semana. Ela...
— Onde você está?
— Numa cabine telefônica na rua Christopher. A cabine do
Ten Little Indians tinha uma fila. Ela está de folga até as oito e
depois das 9:10h até 10:15h...
— Então é fácil. Traga-a às 9:10h.
— Ao diabo, que é fácil. — O telefone desligou e ele sumiu.
Não espero que acreditem em mim, quando disser as
primeiras palavras que ouvi quando voltei a entrar no escritório,
mas acho que vocês têm o direito de saber por que obtivemos
tão pouca informação de Avery Ballou, como Saul recebera de
Julie Jaquette. As palavras ditas por Ballou eram: — Rudyard
Kipling.
Ao me dirigir à minha mesa, virei a cabeça para que meus
olhos se fixassem nele. Ao sentar-me, Wolfe lhe perguntou:
— Os poemas?
— Principalmente os poemas — disse Ballou — mas
algumas das histórias também. E Robert Service e Jack London.
Um pouco de outros autores, mas desses três, Kipling, Service e
London, eu tinha as obras completas lá, encadernadas em
couro. Há uma coisa que desejava perguntar, mas ainda não
perguntei, e o senhor deve saber. Será que podem conseguir
minhas impressões digitais nessas encadernações? O couro não
é liso, é ondeado.
Wolfe virou a cabeça:
— Archie?
— Provavelmente não — disse eu a Ballou — não de couro
ondeado, mas suas impressões devem estar em outras
superfícies. Suas impressões estão registradas em algum lugar?
— Não sei. Simplesmente não sei.
Os ombros de Wolfe levantaram-se um milímetro e
desceram.
— Então, quanto a isso só pode aguardar. Mas não é fácil
crer, sr. Ballou, que o senhor passava lá dez ou mais horas por
semana, quinhentas horas por ano, durante três anos, e a srta.
Kerr nunca lhe tenha falado como passava as outras...
vejamos... quase 25 mil horas. Os lugares que freqüentava, as
pessoas que via.
— Fui obrigado a lhe dizer — respondeu Ballou — sob
coação. Apesar das intimidades físicas, não trocávamos idéias.
Mas eu não lia aqueles poemas e histórias só para ouvir a minha
voz. Não a obrigava a ouvir. Ela os compreendia, gostava deles,
e conversávamos a respeito. O senhor sabe que não estou
gostando disto. É a primeira vez na minha vida que tenho
vontade de dizer a um homem para ir para o inferno e não
posso.
— Mesmo assim, custa-me a crer. Ela nunca falou da irmã?
— Sim. Falou dela, sim, mas ao acaso e muito raramente.
— O senhor não sabia que a irmã dela desaprovava muito
essa ligação?
— Não, nem sei agora.
— Ela desaprovava e desaprova. A srta. Kerr nunca
mencionou este nome: Julie Jaquette?
— Creio que não. Se o fez, foi casualmente e não me
lembro.
— Notável. O senhor esteve com ela, intimamente,
freqüentemente, durante um período de três anos. Eu queria e
esperava que me desse alguns nomes e o senhor forneceu três:
Jack London, Roberto Service e Rudyard Kipling. — Wolfe
empurrou a cadeira para trás. — Uma pergunta: por que
desejava saber quando o sr. Cather ouviu seu nome pela
primeira vez?
— Oh... eu estava curioso.
— O senhor disse que agora não tinha importância.
Quando teve importância, e por quê?
— Eu quis dizer importante para mim, não para o senhor,
não para o que o senhor pretende fazer. O que vai fazer? O
senhor diz que não posso contratá-lo ou pagar, mas por que
não? Não há conflito algum entre os interesses de Cather e os
meus, pelo que disse. Dez mil dólares agora como sinal? Vinte
mil?
— Não — Wolfe levantou-se. — Já estou comprometido.
CAPÍTULO VIII
ÀS 9:15H ESTÁVAMOS novamente no escritório e Fritz já retirara a
louça do café; por isso, embora eu ainda não soubesse, a cena
estava preparada para um dos espetáculos mais
impressionantes que a velha casa de tijolos jamais viu. Após ter
levado Ballou até a porta, fui à cozinha e contei a Wolfe sobre o
telefonema de Saul. É claro que ele teria apreciado mais a sopa
de cebola e o peixe de Kentucky se eu tivesse esperado, mas se
eu dissesse na hora do café teria criado uma atmosfera ruim. A
pergunta era o que agüentaria mais, o apetite ou a digestão, e é
preciso muita coisa para perturbar o seu apetite.
A digestão, obviamente, também sofrera. Bebeu mais café
do que de costume, esvaziando o bule, e agora que o tinham
levado e eu estava lá — em geral saio às terças à noite —,
tentava continuar a conversa do jantar sobre o Vietnã, mas ele
não estava realmente interessado no Vietnã. Wolfe teria de
suportar não apenas uma mulher, o que já é bastante ruim, mas
uma cantora de cabaré, o que é um absurdo. Um modo horrível
de passar a noite. Quando a campainha tocou, olhou-me
zangado, embora devesse ter guardado o olhar para Saul, e foi
isso o que lhe disse ao me levantar.
Mesmo através do vidro, no qual só se via de dentro para
fora, ao aproximar-me da porta, ela chamava a atenção. Tinha
uns cinco centímetros a mais do que Saul, e se o casaco fosse
de pele verdadeira, deveria ter umas cem peles. Ao entrar, deu-
me um sorriso ofuscante, e outro após lhe pendurar o casaco.
Saul tentava não rir. Ela segurou o meu braço e perguntou:
“Onde está ele, Archie?”, numa voz modulada e carinhosa, e
continuou segurando-me o braço até o escritório, mas então
largou-me, dançou até o meio da sala, ficou de frente para a
mesa de Wolfe, deixou a bolsa cair ao chão e começou a cantar:
“Homem forte, vá, vá,
Homem forte, fique forte,
Fale forte, aja forte,
A-a-a-a-m-m-m-m-me forte!
Vá-vá-vá-vá-vá-vá
Homem forte, homem forte,
A-a-m-m-m-m-m-m-me forte,
Vá!”
Esticou dois braços longos, nus e bem-feitos para ele e
disse:
— Agora as orquídeas. Mostre-as.
Foi realmente impressionante. E devo admitir que Wolfe
também foi. Vi que lhe dirigiu a mesma carranca que faz quando
uma palavra cruzada não vai para frente. Virou a carranca para
mim e perguntou:
— Foi você quem sugeriu isto?
— Não — respondeu ela. — Ninguém nunca me sugere
nada. Não precisa. Agora as orquídeas, homem. Vamos!
— Senhorita Jackson... — disse ele.
— Aqui não — disse ela. — Sou Julie Jaquette.
— Aqui não — respondeu ele. — É possível que há muito
tempo, em circunstâncias diferentes, eu tivesse apreciado sua
apresentação, mas não aqui e...
— Não é uma apresentação, homem, sou eu.
— Não acredito. A pessoa que entrou aqui e cantou aquela
besteira é incapaz de comer, dormir, ler ou escrever... ou amar.
A senhora pode amar?
— Hum! Se posso!
Wolfe acenou:
— Viu? Há um minuto atrás, a senhora diria: “Se sou,
homem.” Estamos progredindo. Quanto ao seu desejo de ver
minhas orquídeas, isto é fácil. O sr. Panzer ou o sr. Goodwin
poderão levá-la numa hora adequada, talvez amanhã. Agora
temos outros assuntos a tratar e o tempo é curto. A senhora
quer que o homem que matou Isabel Kerr seja denunciado e
punido?
— Sim, maldito seja ele, quero. Quero, homem.
Wolfe fez uma careta:
— Não volte ao que era. Também quero descobrir quem é,
pois é o único modo possível de libertar um homem que está
sob custódia. Orrie Cather. Talvez a srta. Kerr tenha lhe falado
sobre ele.
Do alto dos seus um metro e setenta ela o encarava:
— Está doente? — perguntou ela.
— Não. Estou amargurado, mas não doente. Se pensa que
o sr. Cather a matou, está errada, não foi ele, e vou descobrir
quem foi. Foi a senhora?
Saul e eu estávamos entre ela e a porta. Virou-se para nós
e falou, pronunciando bem as palavras:
— Seu rato.
— Não sou culpado — disse Saul. — Desde o princípio você
disse que achava que ele a matara. Você também deixou claro...
— Você disse que Nero Wolfe queria que eu ajudasse a
condená-lo.
— Não disse. Eu disse apenas que ele queria que você
ajudasse. Você também deixou bem claro que não me diria
nada.
Ela olhou em volta, foi até a minha cadeira, sentou-se e
olhou para Wolfe. Seria difícil tirá-la de lá, por isso sentei-me na
poltrona vermelha e Saul foi para uma das amarelas.
— Então acha que irá libertá-lo. Porque ele trabalha para
você. Tolice. Diga-me como.
Wolfe abanou a cabeça:
— Não posso. Não sei como. É evidente que a senhora
acha que ele é culpado, e naturalmente disse à polícia por que,
mas eles ainda não estão satisfeitos. Ele se encontra detido
apenas como testemunha. Por que tem tanta certeza?
— Diabos, eu avisei a ela.
— A senhora a avisou que o sr. Cather a mataria?
— Não, mas eu a preveni de que ninguém sabia o que ele
faria. Creio que sabe que ele queria se casar com outra moça?
— Sim.
— Estava tudo numa confusão medonha, como acontece
quando as pessoas se descontrolam. Os idiotas tinham um lugar
perfeito. Quem quer que fosse que lhe pagava as contas, ela
nunca me disse quem era, ele mantinha um lugar para ela, onde
ia sempre que ele precisava dela e não se pode querer coisa
melhor. Ficava lá sozinha a maior parte do tempo, e tinha um
homem que a fazia sentir-se bem, e isso é o máximo. Ele tinha
uma mulher boa, pronta quase o tempo todo, de graça, e não se
pode querer coisa melhor. A situação perfeita. Mas ela decide
que tem de casar com ele, e ele decide que tem que se casar
com outra mulher, e ela até tem um bom emprego... é
aeromoça. Sabe disso?
— Sim.
— E se ela tivesse miolo, desejaria ficar solta. Mas nenhum
deles tinha nada na cabeça. Avisei a Isabel que devia se livrar
dele, pois estava preocupado e podia fazer qualquer coisa, mas
ela não quis me ouvir. Ela o apertou e ele a matou. Quando a
cabeça das pessoas pára de funcionar, deve-se cair fora. Mas
ele a matou, e agora ele é quem terá de cair fora.
— Já contou isso tudo à polícia?
— É claro que contei.
— E se ele não a matou?
— Tolice.
Wolfe olhou-a. Como seus olhos estavam acostumados a
me ver quando olhavam para aquela cadeira, teve de ajustar a
vista.
— A senhora joga algumas vezes? Gosta de apostar?
— Que pergunta boba. Quem não gosta?
— Ótimo. Saul, que vantagem você daria à srta. Jackson de
que Orrie Cather não matou Isabel Kerr?
Saul nem hesitou:
— Dez contra um. — Tirou a carteira do bolso e começou a
tirar notas. — Cem contra dez.
— Talvez ela não tenha dinheiro. Quer...
— Sempre tenho dinheiro. — Abriu a bolsa, colocada sobre
a minha escrivaninha, depois de apanhá-la no chão, onde a
jogara enquanto cantava. — Mas quem decide?
— O promotor público — disse Saul. — Cem contra dez de
que ele nem vai a julgamento. Archie Goodwin pode ficar com o
dinheiro?
— Não. Nero Wolfe. — Levantou-se e entregou a Wolfe
uma nota e Saul entregou-lhe as dele. Wolfe verificou a quantia
de Saul, cinco notas de vinte dólares, abriu uma gaveta e
colocou-as lá. Ela voltou para minha cadeira, recolocou a bolsa
sobre a minha escrivaninha e disse a Wolfe:
— Agora me conte por que acabei de perder dez dólares.
Ele abanou a cabeça.
— É melhor aguardar os acontecimentos. Queria apenas
demonstrar que estamos agindo baseados em conclusões, não
em conjeturas. Sente uma certa animosidade contra o sr.
Cather?
— O que é animosidade?
— Hostilidade. Raiva.
— É claro que não. Não detesto ninguém.
— Se ele não matou a srta. Kerr, está disposta a perder
aqueles dez dólares?
— Por que não? É uma aposta.
— Então, se outra pessoa a matou, preferia que fosse
punida com justiça em vez de o sr. Cather ser punido
injustamente?
— Sem dúvida.
— Ótimo. Vocês eram amigas íntimas. A srta. Kerr lhe fazia
confidências, exceto pelo nome da pessoa que lhe pagava as
contas. Que tipo de mulher era ela? Essa pergunta não é feita ao
acaso; preciso saber. Como era ela?
— Era um amor. Uma ótima mulher, até cair por aquele
cretino. Ela conhecia o jogo e sabia das regras. Sempre
conservava a dignidade, até o fim. Tinha um coração grande e
bom, mas nunca o deixava sangrar. Prefiro não ter nenhum
coração do que tê-lo sangrando por toda a parte. Uma das
razões por que éramos tão íntimas é que sabíamos para que
servem e para que não servem os homens... até aquele idiota
do Cather aparecer.
— A senhora o conhece?
— Não. Nunca o vi nem quero vê-lo.
Wolfe olhou para o relógio:
— Precisa voltar às 10:15h?
— Às 10:10h. Preciso trocar de roupa.
— Então não temos muito tempo. Peço que aceite uma
hipótese. Suponhamos que soubesse, com toda a certeza, que
ele não a matou. Então quem foi? De quem a senhora
suspeitaria?
— Isso é fácil. Do lagosta, é claro.
— O quê? Lagosta?
— Desculpe-me. Do homem que pagava as contas.
— A senhora nem ao menos sabe o nome dele.
— E que tem isso? Ele gastava cerca de vinte mil dólares
por ano. Talvez isso o deixasse liso. Talvez estivesse se
empenhando. Descobriu a respeito de Cather e a matou. É fácil
como o ABC.
— Muito bem, vou pensar nisso. Mas continuemos com a
hipótese. Deixemos ele também de lado. Quem seria então?
Vocês duas não tinham muitos amigos em comum?
— Sim. Se quiser chamá-los de amigos, por delicadeza. É
claro que tínhamos.
— Suponhamos que tenha sido um deles. Qual deles?
Ela disse uma palavra que deveria ter guardado consigo, já
que havia uma senhora presente.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Wolfe.
— Quero dizer que os conheço. Não se mata alguém a não
ser que se tenha um motivo, e, mesmo sem motivo, é preciso
ter peito. Eles não se enquadram.
— Nenhum?
— Não.
— A senhora daria ao sr. Goodwin ou ao sr. Panzer alguns
desses nomes enquanto lhe mostram as orquídeas?
— Não podem me mostrar as orquídeas. Tenho de ir
embora.
— Talvez amanhã de manhã.
— Teria que trazê-las para mim na cama. Espalhar todas à
minha volta. Eu gostaria disso, mas ele não. De manhã, na
cama, sou horrorosa.
— Então de tarde. Já conheceu o dr. Gamm?
— Teddy? — Deu uma risada. — Sim, conheço Teddy. Creio
que é um bom médico, mas como homem pode ficar com ele.
Teve idéia de ficar com Isabel e isso foi mesmo uma idéia louca.
Deus sabe qual a idéia que vai arranjar agora.
— Essa não serviu?
— Lógico que não.
— Já conheceu a irmã da srta. Kerr? A sra. Fleming?
Ela fez sinal que sim:
— Aquela formiga. Tive uma idéia. E não é engraçada.
Creio sinceramente que ela pensava que Isabel estaria melhor
morta. Está bem, se não foi Cather nem o lagosta, foi ela. —
Olhou o relógio de parede: — Preciso ir embora. — Saiu da
minha cadeira: — Venha comigo. Por que não? Arranjo uma
mesa de frente e coloco um refletor em cima de você. Farei uma
bruta propaganda. Direi aos trouxas que Nero Wolfe em pessoa
está aqui e vai se levantar. Se não quiser, pode ficar sentado,
eles que fiquem de pé nas cadeiras para vê-lo. Para mim será
um troféu no meu sutiã. Venha. A cerveja é por conta da casa.
A cabeça de Wolfe estava inclinada para trás a fim de
poder olhá-la.
— Recuso seu convite, srta. Jackson — disse ele — mas
desejo que passe bem. Tenho a impressão de que sua opinião
sobre os nossos semelhantes e suas qualidades é bem parecida
com a minha.
Levantou-se. Ele quase nunca se levanta para pessoas que
chegam ou partem, homem ou mulher. E repetiu:
— Desejo que passe bem, senhorita.
— Grande homem — disse ela. Virou-se: — Venha você,
Archie. Este Panzer é um rato.
CAPÍTULO IX
QUARENTA E SETE HORAS mais tarde, às nove horas de quinta à
noite, Wolfe colocou a xícara de café sobre a mesa e disse:
— Quatro dias e noites, e nada.
Coloquei minha xícara na mesa:
— Concordo.
Na verdade, havia uma coisa. Os resultados eram zero,
mas não os esforços. Em algum lugar dos nove cadernos de
notas na minha escrivaninha — escrevo esses relatórios na
minha própria máquina, no meu quarto, não no escritório —
estão os nomes de quatro homens e seis mulheres, fornecidos
por Jaquette-Jackson quando veio ver as orquídeas, na quarta à
tarde. Saul e Fred haviam entrevistado as pessoas. Do ponto de
vista da utilidade, nada. Sem dúvida, tudo é possível. Era
possível que uma das mulheres pensasse que Isabel surrupiara
seu batom, ficasse furiosa e a matasse, ou que um dos homens
detestasse Rudyard Kipling e não suportava uma mulher que
tinha o livro encadernado em couro, mas é preciso alguma coisa
mais do que dez bilhões de possibilidades para se trabalhar.
Qualquer coisinha serve, mas é preciso alguma coisa.
Estatísticas, por exemplo. Há dois tipos de estatística: o
tipo que se consulta e o tipo que a gente inventa. Acho que esta
é do segundo tipo: para cada mil assassinatos cometidos por
amadores, 83 são de uma mulher matando outra porque roubou
o seu marido, ou uma parte dele. Portanto, do ponto de vista
estatístico, na lista de nomes que havíamos reunido a única
pessoa com um motivo conhecido era a sra. Avery Ballou, e
obviamente isso a colocava em primeiro lugar. O difícil era como
abordar o assunto. Se eu lhe perguntasse se sabia que há três
anos seu marido lia poemas de Kipling para a mulher que fora
assassinada a semana passada, Ballou nunca mais falaria
conosco, e podia ser que precisássemos dele para alguma coisa.
Assim, na quarta-feira, após o café, telefonei para Lily Rowan e
lhe perguntei se conhecia a sra. Avery Ballou. Ela disse que não,
e do pouco que sabia a seu respeito não tinha vontade de
conhecê-la.
— Então não vou insistir — respondi. — Mas preciso
descobrir se quero conhecê-la. Isso é só entre nós. Não preciso
de uma descrição detalhada, só de algumas palavras,
principalmente queria saber quais os assuntos que mais lhe
interessam. Por exemplo, se coleciona autógrafos de detetives
particulares famosos, pois seria perfeito.
— Não é possível que seja tão idiota assim.
Respondi que poderia ter outro hobby pior, e tinha pressa
na resposta, por isso ela me telefonou uma hora depois.
Conseguira mais do que eu pedira, por isso vou omitir a maior
parte. A sra. Ballou em solteira era Minerva Chadwick, dos
Chadwick do aço e estradas de ferro. Casou-se com Ballou em
1936. O filho e as duas filhas estavam casados. Era chamada de
Minna pelos amigos. Nunca dava grandes festas mas gostava de
receber alguns amigos, poucos, para jantar. Pertencia à Igreja
Episcopal, mas raramente ia à igreja. Não gostava muito de
Paris e detestava a Flórida. Gostava de cavalos e tinha quatro
árabes, mas seu principal interesse eram cães de fila irlandeses,
dos quais possuía 12 ou 14...
Perdi o meu tempo e o de vocês, pois obviamente o
assunto era cães irlandeses. Tudo o que sabia sobre eles é que
eram grandes, por isso chamei um homem que conhece
cachorros, e consegui algumas informações. Em seguida liguei
para o número do telefone da residência Ballou, que constava
na lista, na rua 67. Quando uma voz de mordomo atendeu
“Residência da sra. Ballou”, disse-lhe que meu nome era Archie
Goodwin e que gostaria de marcar um encontro com a sra.
Ballou para lhe pedir um conselho sobre um cão de fila irlandês.
Disse, então, que ela não podia atender e lhe daria o recado.
Dei-lhe o meu número de telefone. Cerca de meio-dia veio um
chamado, uma voz feminina bem comercial que disse ser a srta.
Corcoran, secretária da sra. Ballou, e que tipo de conselho eu
desejava sobre cães irlandeses. Disse a ela que pretendia
adquirir um e não sabia qual o canil que possuía os melhores
cães, e um amigo me dissera que a sra. Ballou conhecia mais
sobre eles do que qualquer outra pessoa no país. Respondeu
que, se eu viesse às cinco horas, a sra. Ballou me receberia. Isso
era ótimo, pois Jackson-Jaquette iria chegar às duas e meia para
ver as orquídeas.
Creio que vocês não têm um grande interesse em passar
mais duas horas com Julie Jaquette ou com a srta. Jackson, e já
lhes falei sobre a lista de dez nomes que me dera, por isso vou
pular esta parte e dar-lhes o prazer de conhecer Minna Ballou. O
cenário e os figurantes correspondiam à expectativa: o
mordomo que me deixou entrar, com olhos espertos e
cuidadosos, que em dez segundos já haviam me analisado; o
capacho que protegia os dois primeiros metros do tapete da sala
de entrada, maior do que o Keraghan do escritório de Wolfe, que
mede 4,20m por 7,80m; a criada de uniforme que torceu o nariz
ao apanhar o meu chapéu e o casaco; o elevador com painéis
laqueados de vermelho; a srta. Corcoran, de meia-idade,
cabelos cinzentos, olhos cinzentos, que me esperava quando saí
no 4.° andar; a sala para onde me levou, tendo à esquerda uma
escrivaninha, uma máquina de escrever e arquivos, e à direita
um sofá, poltronas macias e uma mesa de centro. Espalhados
pela sala havia retratos de cavalos e cachorros, mas não vi
nenhum de Avery Ballou. Sua mulher estava estirada no sofá, de
costas, com um robe de banho vermelho desbotado, que descia
quase até os tornozelos. Quando entrei, virou a cabeça e disse:
— Esperava que não viesse. Estou cansada. — Apontou
para uma cadeira perto do pé do sofá. — Sente-se ali.
Obedeci à ordem e fiquei de frente para ela. Seus lábios e
nariz eram finos, e uma ponta de seu cabelo castanho tingido
caía-lhe na testa. Estava descalça e os dedos dos pés eram
grossos. Sorri-lhe amigavelmente.
— Não vai dizer nada? — perguntou.
— Se não estiver cansada demais — disse eu. — Creio que
a srta. Corcoran contou-lhe o que eu disse ao telefone. Na
verdade, é uma amiga minha que quer um cão de fila irlandês.
Ela mora em Westchester. Moro na cidade, e creio que um
apartamento não é lugar para um cão irlandês.
— Não é mesmo.
— Alguém lhe disse que devia mandar buscar um na
Irlanda.
— Quem lhe disse isso?
— Não sei.
— Quem quer que seja é um tolo. Os criadores comerciais
na Irlanda têm um tipo inferior. A maior criadora de cães de fila
do mundo é Florence Nagle, na Inglaterra, mas não cria
comercialmente e tem muito cuidado para quem os vende.
Todos os bons criadores fazem isso. Eu só vendo como um favor
muito especial. Adoro cães de fila e eles me adoram. Quando
estou lá, dormem oito no meu quarto.
Dei-lhe um sorriso:
— E seu marido gosta disso?
— Duvido que preste atenção. Ele não distinguiria um cão
de fila de um avestruz. Qual é o nome de sua amiga?
— Lily Rowan. Tem uma casa perto de Katonah.
— Para que ela quer um cão de fila?
— Bem, em parte por proteção. Não há vizinhos por perto.
— Só isso não basta. É preciso amá-los. Você tem de
aceitar quando um rabo derruba acidentalmente um vaso ou um
abajur. Será que ela sabe que um macho bom pesa cerca de 65
quilos e que quando fica nas patas traseiras tem quase 1,80m?
Será que ela sabe que, quando ele pula em cima de alguém
porque gosta da pessoa, ela cai? Sabe que ele tem de correr
quatro quilômetros e meio por dia e você deve ir atrás numa
caminhonete? Diga a ela para arranjar qualquer cachorro, um
dinamarquês ou um doberman.
Abanei a cabeça:
— Não acho que isso seja correto, sra. Ballou.
— Eu acho. Por que não?
— Porque acho que a srta. Rowan está preparada para
amar um cão de fila irlandês. Faz perguntas sobre canis, mas,
não satisfeita, ouve dizer que a pessoa que mais conhece sobre
eles é a senhora; e me pediu para tentar vê-la porque acha que,
com a senhora, um homem teria mais chance do que uma
mulher. Disse-lhe que ela mesma poderia fazer isso, procurando
seu marido, mas respondeu que não sabia se ele estava
interessado em cães irlandeses. Parece que não está.
Fechou os olhos e abriu-os de novo.
— Meu marido não se interessa por mais nada a não ser
finanças e o que ele chama de estrutura da economia. Como é o
nome daquela inglesa que escreve livros a este respeito?
— Barbara Ward.
Ela acenou com a cabeça.
— Ela o interessaria, mas nenhuma outra mulher seria
capaz disso. Qual é o nome de sua amiga?
— Lily Rowan.
— Sim. Estou cansada. Parece que o senhor é inteligente.
Acha que um cão de fila seria feliz com ela?
— Acho, ou não estaria aqui.
— Ela quer um macho ou uma fêmea?
— Ela pediu que lhe perguntasse. Qual aconselharia?
— Depende. Teria de saber... ela mora no campo.
— Não no inverno. Tem um apartamento na cidade. — Não
disse que seu dúplex ficava a cerca de quatrocentos metros de
onde eu estava.
— Teria de vê-la. — Virou a cabeça para o outro lado. —
Célia, tomou nota do nome? Lucy Rowan?
A srta. Corcoran, na escrivaninha, disse que escrevera o
nome, e a sra. Ballou virou-se para mim:
— Diga a ela que chame a srta. Corcoran. É isso que
deveria ter feito em vez de amolá-lo. Não sei seu nome... não
tem importância. — Fechou os olhos.
Levantei-me e fiquei de pé, pensando que seria mais
educado agradecê-la com os olhos abertos, mas como não se
abriram, agradeci assim mesmo, e ela disse, ainda com os olhos
fechados:
— Pensei que já tivesse ido embora.
Se eu fosse um cão de fila, teria abanado a cauda ao sair
da sala e quebrado alguma coisa. A srta. Corcoran, que me
levou até ao elevador para ter certeza de que eu iria mesmo
embora, disse-me que entre dez e onze da manhã seria a
melhor hora para a srta. Rowan telefonar.
Há dias que não dava uma boa caminhada, desde sábado,
e como ainda não eram cinco e meia, decidi economizar na
despesa de táxi. Mas antes precisava dar um telefonema. Por
isso, fui à avenida Madison, achei uma cabine, disquei para Lily
Rowan, expliquei a situação e disse-lhe que, pela manhã,
deveria ligar para a srta. Corcoran e dizer-lhe que decidira
comprar um dachshund. O que ela respondeu é irrelevante e
pessoal. Ao sair, levantei a gola do casaco e coloquei as luvas. O
inverno estava com força total.
Se estão pensando que os auxiliares faziam todo o serviço,
Saul e Fred examinando os dez nomes que Julie Jaquette me
dera e eu entrevistando uma mulher estranha, não é verdade.
Às 6:15h, quando entrei no escritório, lá estava Wolfe à
escrivaninha com um livro, e vi logo que não era Convite para
um inquérito policial. Era O livro da selva, de Rudyard Kipling.
Por isso, encaminhei-me na ponta dos pés para a minha
escrivaninha, a fim de não perturbá-lo. Ao terminar um
parágrafo e levantar os olhos, perguntei:
— Você não se sentiria melhor lendo em voz alta? Faça de
conta que eu sou ela.
Não deu importância a isso e perguntou:
— Saiu-se melhor?
— Não, senhor. A não ser que queira um cão de fila
irlandês para caçadas. A sra. Ballou está de fora. Mesmo que
alguém lhe tenha contado tudo, com todos os detalhes, ela não
teria ido lá decidir a questão com Isabel Kerr porque: (a) estaria
cansada demais; e (b) teria esquecido do nome e do endereço.
Como a srta. Jackson alargou os seus horizontes em relação às
mulheres, talvez não concorde.
Fiz o relatório. Era tão curto que ele mal havia se sentado
confortavelmente, encostando-se para trás com os olhos
fechados, quando cheguei ao fim — o telefonema para Lily
Rowan.
— Há uma diferença entre ela e você — eu disse. — Você
fecha os olhos para se concentrar no que estou dizendo, e ela
fecha os dela na esperança de que eu não esteja lá. Nem
prestou atenção quando, por duas vezes, arrastei o nome do
marido dela para a conversa. Juro que poderia ter lhe contado
tudo sobre Isabel Kerr e o quarto cor-de-rosa, e quando ele
chegasse em casa do trabalho ela nem se preocuparia de
mencionar o fato para ele.
Wolfe grunhiu e abriu os olhos.
— Como é que oito cachorros daquele tamanho podem
passar a noite no quarto dela? — perguntou.
— Isso também me preocupou — concordei. — Se
calcularmos uma média de dois metros quadrados por cachorro,
e mais talvez se...
A campainha da rua tocou e fui atender. Era um homem de
capote marrom, grosso, de tweed e chapéu liso azul-marinho, de
abas estreitas, ridículo, e calculei que era um dos sujeitos que
Saul ou Fred descobriram. Mas ao abrir a porta ele disse:
— Sou o dr. Gamm. Theodore Gamm, médico. O senhor é o
homem que visitou o sr. e a sra. Fleming na segunda à tarde?
Confirmei e ele continuou:
— Insisto em ver Nero Wolfe — e se eu não tivesse me
afastado, passaria por cima de mim.
Sem dúvida, não é assim que as coisas são feitas. Primeiro
se diz alguma coisa e depois é que se insiste. Ele nem tinha
físico para insistir, o que ficou claro após tirar o casaco. Era todo
arredondado, ombros redondos e quadris redondos e rosto
redondo, e a careca no topo de sua cabeça mal batia no meu
queixo. Coloquei-o na sala da frente, fui para o escritório pelo
caminho mais longo, pelo corredor, e disse a Nero Wolfe que o
dr. Theodore Gamm insistia em lhe perguntar por que me
mandara falar com o sr. e a sra. Fleming. Ele olhou o relógio e
resmungou:
— O jantar é para daqui a meia hora.
Respondi que a sra. Ballou só me tomara dez minutos, abri
a porta que liga à sala da frente e mandei-o entrar. Ao
encaminhá-lo para a poltrona de couro vermelho, Wolfe disse
qualquer coisa sobre vinte minutos. A poltrona é funda, e
quando viu que seus pés não tocavam o chão, escorregou para
a frente, cravou os olhos em Wolfe e disse:
— O senhor está com o peso muito acima do normal.
Wolfe concordou:
— Trinta e cinco quilos. Talvez quarenta. A morte se
encarregará disso. Isso é da sua conta?
— Sim, é. — Curvou os dedos redondos nos braços da
poltrona. — Qualquer coisa que interfira com a saúde natural é
um despropósito e me indigna. — Sua voz era mais forte do que
ele próprio. — Foi a minha preocupação com a saúde que me
trouxe aqui... a saúde de uma das minhas pacientes, a sra.
Barry Fleming. O senhor mandou um homem, aquele homem —
seus olhos vieram rápidos na minha direção e voltaram para
Wolfe — para atormentá-la. Ela já estava num estado de tensão
e agora talvez entre em colapso. Pode me dar uma justificativa?
— Facilmente — disse Wolfe, com as sobrancelhas
levantadas. — Tanto para a intenção como para o fato, mas o
senhor está reclamando do fato. O estado de tensão da sra.
Fleming é causado, em parte, pelo choque da morte de sua
irmã, mas principalmente pelo medo de que o seu modo de vida
viesse a público. O sr. Goodwin prestou-lhe um serviço,
mostrando-lhe que isso será inevitável se não se adotar certas
atitudes. Isso deveria induzi-la a reagir, não a ter um colapso, se
ela é...
— Que tipo de atitudes?
— O único tipo que adiantaria alguma coisa. Ela lhe contou
tudo o que o sr. Goodwin lhe disse?
— Seu marido me contou. Que se o homem que pren-
deram, Orrie Cather, for julgado, tudo sobre Isabel será
revelado. Que Cather é inocente, e a única esperança é
conseguir provas suficientes para libertá-lo. Você chama isso
prestar-lhe um serviço?
— Se for válido, sim. É óbvio. Tem alguma dúvida?
— Sim. Acho que foi um truque sujo. Por que diz que
Cather é inocente? Pode prová-lo?
— Não, mas pretendo.
— Não acredito. Creio apenas que está tentando levantar
bastante poeira para que fique difícil condená-lo. Não há motivo
para querer agradar a sra. Fleming, mas se quisesse, poderia.
Bastava persuadir Cather e seu advogado a não deixarem que
certos fatos se tornassem públicos no julgamento. Sei que não o
fará, mas poderia.
— O senhor gostaria que eu fizesse isso?
— Lógico. Para a sra. Fleming isto... poderia lhe salvar a
vida.
— Mas sabe que não o farei?
— Sei.
— Então por que se deu ao trabalho de vir?
— Porque ela me pediu. Ambos pediram. Acham que foi só
um truque, mandá-lo dizer aquelas baboseiras, e eu também
acho. Por que diz que Cather é inocente?
Wolfe apertou os olhos:
— Doutor, devia arrumar melhor as coisas na sua mente.
Conforme o sr. Goodwin explicou à sra. Fleming, é de seu
interesse que Cather esteja inocente, mas o senhor não gosta
disso. Discorda. Será que está menos preocupado com a saúde
de sua paciente do que com a sua? O senhor matou Isabel Kerr?
Gamm arregalou os olhos:
— Ora, seu... — engoliu em seco: — Maldita impertinência
a sua!
— É claro que acha assim. Mas já que presumi que o sr.
Cather não a matou, por motivos que prefiro não declinar,
preciso saber quem foi. O senhor pode ser o culpado, pois as
repetidas propostas que fez a ela foram recusadas. Humilhações
constantes podem se tornar insuportáveis. É tudo uma questão
de caráter e temperamento, e nada conheço do seu; teria de
consultar pessoas que o conhecem bem, por exemplo, o sr. e a
sra. Fleming. Mas posso coletar dados. Onde estava o senhor no
sábado passado, de oito ao meio-dia? Se puder estabelecer...
Parou, pois a sua platéia estava indo embora. O dr. Gamm
não tinha o físico ou o estilo para fazer uma saída emocionante.
Seu andar era como um gingado, mas dirigiu-se à porta e saiu.
Levantei-me devagar e fui pelo corredor, e lá cheguei quando
ele abria a porta da frente. Após ter saído, voltei ao escritório,
levantei os braços para esticá-los, dei um bocejo e disse:
— Mais um eliminado. Ele não teria ido embora, não
ousaria ir, se fosse culpado, até descobrir se você sabia alguma
coisa e o quanto sabia. Pelo menos, tentaria saber.
Os lábios de Wolfe estavam apertados. Ao falar, afrouxou-
os:
— Ou ele é um assassino ou um idiota.
— Então ele é um idiota. Acho...
O telefone tocou e fui atender. Era Saul, dando notícias
sobre dois nomes. Disse a ele que também descobríramos dois
nomes e desejei que tivesse melhor sorte no dia seguinte.
Nem ele nem nós tivemos melhor sorte. Quinta-feira foi um
dia mais vazio do que quarta, embora eu fizesse força, já que
Wolfe me elogiara. Em parte era porque ele estava
desesperado, mas na quarta à noite disse-me para verificar
pelas redondezas. Era a primeira vez que me mandava fazer
uma coisa que Saul já fizera, e devo admitir que seria muito
satisfatório se eu conseguisse alguma coisa: por exemplo, um
porteiro do outro lado da rua, que vira um estranho entrar no
prédio no sábado de manhã — poderia ser o dr. Gamm, Stella
Fleming, Barry Fleming, Julie Jaquette ou mesmo Avery ou Minna
Ballou. Ou um estranho mesmo, e teria de descobrir quem era.
Diabos!, afinal de contas são só 12 milhões de pessoas na área
metropolitana. Na verdade, foi uma palhaçada da qual ninguém
riu. Não só Saul e Fred já haviam falado com todos, como os
tiras já haviam investigado, tentando descobrir alguém que vira
Orrie Cather nas redondezas. Durante o dia, longo e cansativo,
falei com mais de quarenta pessoas, de todas as idades,
tamanho e cor, e essas pessoas já haviam respondido tantas
vezes às mesmas perguntas que sabiam as respostas de cor. Às
seis e meia achei que já era o suficiente e fui para casa jantar.
Lá, a única coisa que acontecera foi que Parker telefonara para
dizer que vira Orrie de novo, falara com um assistente do
promotor público, que lhe dissera não ser aconselhável começar
a tomar providências para que ele saísse sob fiança.
Assim, ao voltarmos ao escritório após o jantar, depois de
ter bebido o café, Wolfe disse:
— Quatro dias e noites, e nada.
Coloquei a xícara sobre a mesa e respondi:
— Concordo.
— Que diabo — disse Wolfe — faça perguntas.
— Se houvesse alguma pergunta boa, você já a teria feito.
Está bem: Jill Hardy. Por que me fez colocar os braços em volta
dela? Porque matara Isabel Kerr e ia confessar, e estava me
adulando, mas Cramer interrompeu?
— Não quero bobagens. Quero uma pergunta.
— Eu também. Stella Fleming. É sujeita a ataques; por
exemplo, quando avançou para cima de mim para me arranhar.
Mas se no sábado de manhã teve um ataque e matou sua irmã,
será que voltaria aquela noite e pediria ao porteiro para deixá-la
entrar a fim de ‘descobrir’ o cadáver? Não acredito nisso. Mil
contra um.
— Isso é negativo. Quero alguma coisa positiva.
— Vamos tentar isto. Barry Fleming. Por que me pediu para
entrar, sabendo como sua mulher se sentia? Porque eu lhe
dissera que iríamos inocentar Orrie, e ele queria descobrir se
sabíamos ou desconfiávamos de que ele matara Isabel. Isso é
positivo.
— Mas nada vale sem um motivo.
— Bem, se quer um motivo, a sra. Ballou. Estava fingindo
ao conversar comigo. Ela é realmente um terror e louca pelo
marido. Está fervendo de ciúme. Só que nesse caso eu sou um
trouxa e terá que me despedir.
— Vou pensar no assunto. E o sr. Ballou?
Abanei a cabeça:
— Agora é a sua vez. Você o interrogou.
— Por enquanto, eu o rejeito. Arrebentar o crânio daquela
mulher com um cinzeiro foi um ato de paixão, que não é próprio
dele. Mais uma coisa: por que queria saber quando Orrie ouviu o
nome dele pela primeira vez? Por que já não é mais importante,
mas assim mesmo gostaria de saber?
Abanei novamente a cabeça:
— É melhor pularmos isso. Talvez fosse simples curio-
sidade, para ver se coincidia com uma mudança que notara nela
ao lhe ler Kipling, Service e London. Isso não ia lhe interessar.
Concordo que o método não combina com ele. Está bem, agora
a srta. Jackson. Ela também é sua, desejou até que ela passasse
bem.
— Não. Sua.
— Obrigado. Não há nada que não pudesse ou não
quisesse fazer, se estivesse com vontade. Mas não consigo
imaginar uma razão para querer ver Isabel morta. Se houvesse,
ao falar com os amigos comuns, Saul e Fred teriam percebido
alguma coisa. E não perceberam. De qualquer forma, está
eliminada, já que você desejou que ela passasse bem. Por isso
só nos resta o dr. Gamm.
— Bolas.
— Concordo. Não temos nada. No domingo à noite você
disse que nunca tivemos tão pouco, e a situação não mudou.
Não acontece nada em lugar algum. Estive pensando, durante o
jantar, quando você comentava o que pretendem fazer com a
ilha Ellis, que talvez você devesse fazer um acordo com Cramer.
Falo sério. Seus cientistas não deixaram uma polegada daquele
apartamento sem examinar e há uma chance de, quem quer
que seja que a assassinou, ter deixado lá suas impressões
digitais, uma pelo menos. Descobriram Orrie tão depressa que
talvez tenham outras possibilidades guardadas. Ofereça a Cra-
mer trocar os dados que possuímos pelas impressões que eles
têm. Com sua palavra de honra, que ele sabe que você cumpre.
Não enterraria Orrie mais ainda e talvez nos desse uma pista.
Do jeito que estão as coisas, não há nada para fazer amanhã.
Wolfe levantou o queixo:
— Não.
— Não o quê? Você prefere...
A campainha tocou. Fui lá, dei uma olhada, coloquei a
cabeça dentro do escritório e disse:
— É o sr. Ballou. Não parece muito alegre.
CAPÍTULO X
SE, DE ALGUM MODO, Avery Ballou perdesse todo seu dinheiro,
fosse expulso de seu emprego de presidente da Federal Holding
Corporation, mesmo assim não passaria fome. Nunca tinha visto
um embrulho mais bem-feito e bem amarrado do que o que ele
pusera na mesa de Wolfe antes de se sentar. Qualquer setor de
despacho de mercadorias o teria contratado na hora. Presumo
que ele mesmo tenha feito o embrulho por causa do seu
conteúdo, mas admito que o banco também poderia tê-lo feito.
Suas rugas estavam cada vez mais profundas e sua aparência
era tão cansada como sua mulher dizia se sentir. Sentou-se,
abaixou a cabeça e esfregou a palma da mão na testa, devagar,
de trás para frente. Na terça-feira, após fazer isso, pedira uma
bebida, mas agora, aparentemente, isso já não bastava.
Levantou a cabeça, endireitou os ombros, olhou para Wolfe e
disse:
— O senhor falou que eu não podia contratá-lo nem pagá-
lo.
— E eu lhe disse o motivo — respondeu Wolfe.
— Eu sei. Mas a situação é... quero que o senhor re-
considere a sua decisão. — Virou-se para mim: — O senhor disse
que poderia descobrir quando aquele homem, Cather, soube o
meu nome. Conseguiu?
Abanei a cabeça:
— O senhor disse que já não era importante.
— O senhor também disse que poderia ter sido há mais de
quatro meses.
— Certo. Ou oito meses, ou dez.
— Quatro é o suficiente. — Voltou-se novamente para
Wolfe. — Sei que o senhor tem uma larga experiência, mas
talvez não perceba a necessidade de uma boa reputação para
um homem na minha posição. Byron disse: “A glória e o nada de
um nome”, mas ele era um poeta. Um poeta pode tomar
liberdades, que seriam fatais para um homem como eu. Como
lhe disse, tomava grandes precauções ao visitar a srta. Kerr.
Ninguém que me visse entrar ou sair daquele prédio poderia ter-
me reconhecido. Confiava inteiramente em sua discrição;
financeiramente, fui mais do que liberal com ela. Tinha certeza
absoluta de que ninguém, ninguém mesmo, sabia do meu...
passatempo.
Parou, creio que esperando comentários. Wolfe fez-lhe a
vontade:
— O senhor deveria saber que os únicos segredos em
segurança são os que o senhor mesmo já esqueceu.
Ele acenou com a cabeça:
— Suspeito agora de que há muitas coisas que deveria
saber e não sei. Não devia ter confiado tanto na srta. Kerr. Fui
um tolo. Deveria saber que ela poderia... arranjar uma
companhia. Acho que foi isso o que aconteceu com Cather, não?
Ela se apaixonou por ele?
Wolfe virou-se para mim:
— Archie?
— Morria de amores — contei para Ballou. — Queria se
casar com ele.
— Entendo. Fui um tolo. Mas isso explica por que ela lhe
disse o meu nome, e isso é importante. Ela era discreta, mas é
claro que com ele não precisava. Não é assim?
Queria uma resposta, e Wolfe a deu:
— Sim.
— Ele sabia meu nome, e mais ninguém. Então é um patife
e um chantagista. Há quatro meses venho lhe pagando mil
dólares por mês. É quase certo de que também é um assassino.
Ele a matou. Não sei por que o fez, mas é um canalha.
Os olhos de Wolfe encontraram-se com os meus. Levantei
uma sobrancelha. Seus olhos voltaram-se para Ballou:
— Por que diabos você não me disse isso antes? Há dois
dias?
— Não percebi naquele dia. Só agora, depois de considerar
a situação. O senhor havia me dado um grande susto. E disse
que Cather não a matara. Acho que matou. Ele é um patife.
Creio que será julgado e condenado, e é por isso que estou aqui.
Da outra vez, o senhor disse que, se ele fosse julgado, meu
nome seria inevitavelmente trazido a público, e isso não pode
acontecer. Meu nome ligado não só a uma moça, mas a um
assassinato que provoca sensacionalismo... Isto não deve
acontecer. — Apontou para o pacote sobre a escrivaninha de
Wolfe. — Aquele pacote contém cinqüenta mil dólares em notas
de cinqüenta. O senhor disse que já foi contratado, mas não
precisa ficar preso a um chantagista e assassino.
Parou para dar uma inspiração profunda:
— Esses cinqüenta mil dólares são apenas um sinal. Estou
numa situação pior do que imaginava, e tenho de sair dela, o
preço não importa. Admito que não sei como isso poderá ser
feito, mas o senhor conhece Cather e saberá como lidar com
ele. Não estou pedindo nem esperando que faça nada ilegal. Se
existem provas para julgá-lo e condená-lo, muito bem, a lei é
assim. Mas meu nome não deve aparecer. O senhor disse que,
se ninguém me procurou, meu nome não está naquele diário e
também é evidente que Cather não mencionou meu nome à
Polícia. Não é verdade?
— Sim. — Wolfe beliscava o lábio com o polegar e o
indicador. — O senhor está indo depressa demais, sr. Ballou.
Concordo que não deva ficar comprometido com um chantagista
e assassino, mas será que estou? Preciso saber mais coisas.
Descreva o homem a quem tem dado dinheiro.
— Nunca o vi. Mando o dinheiro pelo correio.
— Quando pediu o dinheiro, e como?
— Pelo telefone. Em setembro, uma noite, quando eu
estava em casa, disseram-me que um homem, que dizia se
chamar Robert Service Kipling, estava ao telefone e desejava
falar comigo. É claro que fui atender. Disse-me que não
precisava explicar por que usava esse nome e mandou-me ir a
uma farmácia perto de casa e aguardar um telefonema. Sabe
porque eu fui. Às dez horas, o telefone da cabine tocou e eu
atendi. Era a mesma voz. Não preciso lhe dizer o que falou.
Disse-me o bastante para me convencer de que sabia de minhas
visitas àquele apartamento e sua finalidade. Disse que não
queria interferir, mas achava que deveria lhe demonstrar o
quanto eu lhe era grato por sua consideração. Ordenou-me que
lhe mandasse pelo correio dez notas de cem dólares no dia se-
guinte, e enviasse a mesma quantia no dia quinze de cada mês.
Disse que faria isso.
Esfregou a testa com a palma da mão:
— Sei que é errado, em princípio, submeter-se a chan-
tagem. Mas a ameaça não era contar tudo, não disse que tinha
provas em seu poder, apenas deixou bem claro que deveria lhe
pagar ou parar de ir lá. Não respondeu às minhas perguntas,
como descobrira meu nome, mas era óbvio que não tinha
apenas me visto e reconhecido, por causa das coisas que
contou. Bastava o que disse: seu nome era Robert Service
Kipling. Coloquei o dinheiro no correio no dia seguinte, e desde
então faço isso a cada mês. Preferi pagar a abandonar tudo.
Agora, sei. Não há dúvida de que era Cather. A srta. Kerr contou
tudo a ele.
— É uma suposição bem razoável — Wolfe concordou —
porém nada mais. Qual o nome e endereço?
— Obviamente era falso. O endereço era Caixa Postal,
Estação Grand Central, na esquina da avenida Lexington com a
rua 45. O nome era Milton Thales.
— Thales? T,H,A,L,E,S?
— Sim.
— É mesmo. Interessante. — Wolfe fechou os olhos por um
instante e depois os abriu. — Não fez nada para descobrir quem
era ele?
— Não. Para quê? De que adiantaria?
— Se fosse o sr. Cather, talvez tivesse evitado isso. Falou
alguma coisa à srta. Kerr?
— Sim. Perguntei se contara a alguém, a qualquer pessoa,
o meu nome, e ela disse que não. Mentiu. Ficou muito... bem,
ficou indignada. Fiquei surpreso com sua reação. Não parecia
ser...
Parou, apertou os lábios e franziu a testa, depois acenou
com a cabeça:
— Compreendo. É claro. Eu disse que não sabia por que ele
a matara, mas é óbvio. Ela sabia que devia ser Cather, contou a
ele, disse-lhe que devia parar com isso, e ele a matou. Meu
Deus, se eu soubesse... maldito seja. Maldito!
Estava mais emocionado do que pensei que pudesse ficar,
e ia lhe oferecer uma bebida, quando Wolfe falou:
— Uma coisa: a voz no telefone? Tem certeza de que era
um homem?
— Bem. Ele disfarçava, uma voz em falsete, mas não tenho
dúvidas de que era um homem.
— Ele se comunicou outra vez com o senhor? Telefonou?
— Uma vez. No dia 17 de dezembro. O mesmo nome,
Robert Service Kipling. Telefonou para a minha casa. Disse que
pensou que eu gostaria de saber que o material estava sendo
bem recebido, e foi só isso.
Wolfe recostou-se, fechou os olhos, entrelaçou os dedos
sobre a barriga e começou a mexer os lábios para dentro e para
fora. Ballou começou a falar, e eu fiz sinal para que parasse,
mas realmente não tinha importância. Quando os lábios de
Wolfe começam a se mexer assim, para dentro e para fora, ele
se abstrai completamente e não ouve mais nada. Ballou abaixou
a cabeça e fechou os olhos. Foi como se eu estivesse sozinho
durante três minutos. Finalmente Wolfe abriu os olhos e
perguntou-me se podia chamar Saul e Fred, e respondi que sim,
mas não sabia quando. Disse:
— Telefone da cozinha. Mande que venham imediatamente
— e eu fui.
Não preciso usar a massa cinzenta para dar uns telefo-
nemas chamando uns caras — tive de tentar três números até
achar Saul — e, assim, a minha mente trabalhava em outras
coisas. Não imaginava Orrie como um chantagista; isto era tão
absurdo que nem valia a pena pensar. O problema era por que
Thales seria um nome interessante para um chantagista? Wolfe
falara sério; não era o tom de voz que usa quando está fingindo.
Se ele achava interessante, eu também deveria achar, já que sei
tudo o que ele sabe. Eu daria uma nota novinha de um dólar
para saber quantas pessoas que lêem esta história descobrirão.
Eu nada havia descoberto, quando voltei ao escritório, embora
ainda tentasse durante uns cinco minutos, depois que falei com
Saul.
Dei dois passos para dentro do escritório e parei. A pol-
trona vermelha estava vazia. Perguntei:
— Pôs ele para fora?
Fez que não com a cabeça:
— Está na sala da frente. Deitado. É claro que Saul e Fred
não devem vê-lo. Conseguiu falar com eles?
— Já estão a caminho. — Fui até a minha escrivaninha: — É
pena que Orrie tenha se rebaixado a praticar chantagem, mas
com as despesas do anel de casamento, mobília, licença... as
despesas crescem.
— Tolice.
— Você pode dizer isso, com cinqüenta mil na sua frente.
Por que é interessante ele ter escolhido Thales como nome?
— Você está pronunciando errado. O sr. Ballou também
está.
— Não é Thales?
— Claro que não. É Ta-les.
— Oh, por isso é interessante.
— O Milton também é interessante. Tales de Mileto, do VI e
VII séculos antes de Cristo, era o mais importante dos sete
‘homens sábios’ da Grécia antiga. É de três séculos antes de
Euclides. Foi o fundador da geometria de linhas. Foi a pessoa
que fez a primeira previsão de um eclipse solar, no dia certo. Foi
o primeiro grande nome na história da matemática. Tales de
Mileto.
— Macacos me mordam. — Sentei-me e examinei o que
dissera. — Macacos me mordam. Foi coragem. Ballou foi à
faculdade. Podia ser que gostasse de matemática. Podia saber
tudo sobre Tales de Mileto.
— Mas ele sabia que o cunhado da srta. Kerr era professor
de matemática?
— Provavelmente não. Quem esperaria que um maldito
chantagista tivesse senso de humor? Já contou a Ballou?
— Não. Isso pode esperar. Queria cerveja.
— E eu leite. — Levantei-me. — Agora, sim, temos com que
trabalhar.
Fui até a cozinha. Fritz estava lá embaixo, no seu quarto,
mas não precisei dele. Enquanto punha o leite no copo, a
cerveja e o copo na bandeja e levava para o escritório, só
pensava nesse novo mistério, relembrando aquela tarde de
segunda-feira, como Barry Fleming agira, sua aparência e o que
dissera. Depois de tomar uns dois goles de leite, lembrei-me de
que tínhamos um convidado e fui à sala da frente perguntar se
desejava beber alguma coisa. Estava estirado no sofá, o braço
sobre os olhos. Não queria nada. Neste curto espaço de tempo,
Wolfe fora apanhar um livro na estante, um volume da
Enciclopédia Britânica, e estava com ele aberto. Ao apanhar
meu copo, disse:
— Tales aperfeiçoou a teoria do triângulo escaleno e a
teoria das linhas. Descobriu o teorema que os lados de um
triângulo, de ângulos iguais, são proporcionais. Descobriu que,
quando duas linhas retas se cruzam, os ângulos verticais
opostos são iguais e que o círculo é dividido pelo seu diâmetro.
— Puxa! — eu disse.
Fred chegou quase às onze horas. Levei-o para a cozinha,
pois Wolfe ainda consultava a enciclopédia, embora talvez já
não se ocupasse com Tales há muito tempo. Quando Saul
chegou, mandei-o ficar na cozinha com Fred, e disse a Wolfe
que nos comunicasse quando estivesse pronto para nos receber.
Ele me olhou zangado, pois estava no meio de um artigo
interessante. Eu sei que era interessante porque não há uma
única página, em todos os vinte e quatro volumes, que ele não
ache interessante. Fui à cozinha e trouxe os dois; Saul sentou-se
na poltrona vermelha e Fred numa das amarelas.
Que eu saiba, foi o encontro mais curto que já houve com
os seus ajudantes. Wolfe começou:
— Peço desculpas por chamá-los tão tarde numa noite de
inverno, mas preciso de vocês. O homem que pagava o
apartamento da srta. Kerr, vamos chamá-lo de X, está na sala
da frente. Veio me dizer uma coisa que deveria ter dito há dois
dias. Em setembro, um homem telefonou para ele, exigindo
dinheiro. O homem sabia de suas visitas ao apartamento e
ameaçou torná-las impraticáveis, caso não pagasse por isso: mil
dólares na hora e mil dólares por mês, em dinheiro, a ser
remetido pelo correio para uma caixa postal, sob um nome
fictício, é claro. O dinheiro foi enviado, um total de cinco mil
dólares. X está convencido, e considera suas razões válidas, de
que o chantagista é Orrie Cather. No domingo à noite pedi que
me dessem suas opiniões sobre se Orrie matara a srta. Kerr.
Agora pergunto se acham que ele é um chantagista. Foi ele
quem fez a chantagem contra X? Fred?
Fred, concentrado, tinha a testa franzida:
— Foi como o senhor disse? Chantagem pura e simples?
— Sim.
Fred abanou a cabeça:
— Não, senhor, impossível.
— Saul?
— Para ter certeza de que entendi bem — disse Saul — isto
foi na época que Orrie ainda a visitava?
— Sim.
— Então a resposta é não. Como Fred disse, impossível. Só
um perfeito canalha faria isso.
— Isso é satisfatório — respondeu Wolfe. — Archie e eu já
chegamos a uma conclusão e sei, quase com certeza absoluta,
quem é o chantagista, mas queria primeiro ouvir a opinião de
vocês. Mas não foi só por isso que os chamei; preciso dar umas
instruções para amanhã. Archie, eles podem esperar no seu
quarto?
Para não se arriscar, não queria que esperassem na co-
zinha. E se um tigre faminto entrasse pela janela da cozinha e
eles fugissem corredor afora e encontrassem Ballou? Disse que
seriam bem-vindos ao meu quarto, para esperar, contanto que
não mexessem em nada, e se dirigiram à escada. Wolfe esperou
dois minutos, para dar tempo de subirem os dois andares, e
então disse para trazer Ballou. Ainda estava no sofá, mas, ao me
ver entrar, sentou-se e começou a falar. Eu lhe disse que
contasse tudo a Wolfe, e ele se levantou, indo para o escritório.
Ao cruzar o portal, juro que seu primeiro olhar foi para o pacote
na mesa de Wolfe. Mesmo quando se está desesperado, um
hábito é sempre um hábito.
Ao sentar-se, começou a dizer:
— Estive pensando no assunto. Respondi a todas as
perguntas e lhe fiz uma proposta liberal, mais do que liberal. Ou
aceita ou não. Da outra vez o senhor disse que Cather não é um
assassino. Não tente me dizer agora que não é um chantagista.
— Está antecipando o que vou dizer — falou Wolfe. — O sr.
Cather não é um chantagista.
Ballou fitou-o, espantado:
— O senhor realmente... depois do que eu... — Levantou-se
e apanhou o pacote: — Por Deus, o senhor realmente está do
lado dele.
— Estou, mesmo. Posso lhe dizer o nome do chantagista.
Sente-se.
— Eu já lhe dei o nome.
— Não. O senhor só conhece seu noms de guerre, Robert
Service Kipling e Milton Thales. Seu verdadeiro nome é Barry
Fleming. O marido da irmã da srta. Kerr.
— Isso é absurdo. Até uma hora atrás o senhor nem sabia
que eu fora chantageado.
Wolfe teria de inclinar a cabeça para trás para focalizar seu
rosto; mas como não gosta de fazer isso, não focalizava nada.
— Para um homem de negócios, o senhor é extremamente
obtuso. Está numa enrascada, e eu sou sua única esperança.
Precisa de ajuda, e não pode ir a um advogado ou a qualquer
pessoa, sem divulgar a sua ligação com a srta. Kerr e um
assassinato. Mas o senhor fala e age como se a situação
estivesse sob seu controle. Levanta-se repentinamente e
apanha o pacote de dinheiro. Tolice. Provavelmente nada mais
tem a me dizer. Ou senta e ouve ou vai embora.
Temos de reconhecer que o presidente da Federal Holding
Corporation tinha orgulho e coragem. Se pusesse o pacote de
volta na mesa de Wolfe, estaria obedecendo a uma ordem, por
isso não o fez. Colocou-o na mesinha ao lado da poltrona e foi ali
que o deixou ao sentar-se, já controlado.
— Estou ouvindo — disse.
— Assim está melhor — disse Wolfe. — Primeiro, o sr.
Cather, Podemos conhecer um homem bem e isso não exclui o
fato de que talvez seja um assassino, mas não um chantagista.
Assassinato pode ser repentino, mas não chantagem. Quatro de
nós, que conhecemos Bem o sr. Cather há anos... os dois
homens que mandei buscar, o sr. Goodwin e eu... concordamos
que quem o chantageou não pode ser o sr. Cather. Agora,
quanto ao chantagista. Este nome, Milton Thales... pronunciou-o
assim e quase todos os americanos o fariam. Mas se eu pronun-
ciar Ta-les, isso aviva a sua memória?
— E deveria?
— Sim.
Ele estava com a testa franzida:
— Ta-les... ora, é mesmo. Um grego antigo... eclipse do
sol... geometria...
Wolfe acenou com a cabeça:
— Isso basta. Um nome famoso na história da matemática.
Tales de Mileto. Milton Thales. Barry Fleming, cunhado da srta.
Kerr, ensina matemática no ginásio. A srta. Kerr disse seu nome
para a irmã, e ela contou para o marido. Por isso sei o nome do
chantagista.
— Ta-les — disse Ballou. — Tales. Mileto. Milton. Por Deus,
acho que acertou. E Isabel... a srta. Kerr me afirmou que não
dissera meu nome a ninguém. Ela mentiu. Quantos mais
saberão!
— Provavelmente mais ninguém. Essas duas pessoas eram
especiais para ela. Acredito que só cinco pessoas sabem de sua
ligação com a srta. Kerr: o sr. Cather, o sr. e a sra. Fleming, o sr.
Goodwin e eu. E só três pessoas sabem que houve chantagem,
além do chantagista: o sr. Goodwin, o senhor e eu. Os dois
homens que estão lá em cima, onde nada podem ouvir, sabem
sobre a chantagem, mas não seu nome. Chamo a sua atenção
para um detalhe. Meu objetivo é soltar o sr. Cather antes que o
acusem de homicídio. É provável que pudesse conseguir isso
simplesmente contando à polícia que o sr. Fleming estava
fazendo chantagem. Pelo menos atrairia a atenção deles para
outro lado, mas não pretendo ou desejo fazer isso. Devo-lhe
alguma consideração, já que foi por seu intermédio que soube
da chantagem. Devo-lhe muito.
Ballou esticou a mão e bateu no pacote:
— E há isto, também.
— É seu. Não o aceitei. Nem aceitarei, até concluir, com
certeza, que não matou aquela mulher. Um chantagista não é
ipso facto um assassino. Devo-lhe muito, pois gastamos quatro
dias inúteis tentando encontrar alguém com um motivo
plausível e falhamos. O motivo que sugeriu para o sr. Cather
serve admiravelmente ao sr. Fleming. Agora uma pergunta:
após o primeiro telefonema do chantagista, quanto tempo
depois o senhor contou à srta. Kerr?
— Imediatamente. Um ou dois dias depois.
— Falaram nisso mais alguma vez? Ela ou o senhor?
— Sim. Ela me perguntou duas ou três vezes se ainda
continuava. Contei-lhe sobre o telefonema em dezembro. A
última vez que me perguntou foi em janeiro. Em meados de
janeiro.
Wolfe concordou:
— Ela sabia que deveria ser seu cunhado e disse-lhe que
parasse com isso, e ele...
— Melhor ainda — interrompi. — Ela ia denunciá-lo. Contar
à irmã. Talvez achasse melhor parar do que matá-la, mas
preferia matá-la a deixar que sua esposa soubesse. Talvez não
seja ipso facto um assassino, mas ipso Archie Goodwin ele é.
— O sr. Goodwin se precipita, algumas vezes — disse
Wolfe a Ballou. — Já viu e conversou com o sr. e a sra. Fleming,
durante bastante tempo. — Apontou para o pacote. — Esse
dinheiro. Se eu o merecer, quero recebê-lo, mas não pode me
contratar agora. Meu propósito é inocentar o sr. Cather; o seu é
evitar que seu nome se torne público. Se conseguir servir aos
seus propósitos, sem prejudicar os meus, é o que farei. Quando
for embora, leve o pacote; aqui, no meu cofre, poderia afetar os
meus processos mentais. Há...
— O que vai fazer? — perguntou Ballou, de novo arrogante.
— Não sei. O sr. Goodwin, sr. Durkin, sr. Panzer e eu vamos
fazer uma reunião agora. — Olhou o relógio: — Já é quase meia-
noite. Se não quer que mais dois homens saibam do seu
segredo, vá embora.
CAPÍTULO XI
NA SEXTA À TARDE, à uma hora, eu estava sentado numa cadeira
num quarto de hotel, junto a uma atraente jovem, na cama.
Na reunião de quinta à noite, que durara mais de duas
horas, foram discutidos vários procedimentos. Dois deles —
conseguir um retrato de Ballou para mostrá-lo aos empregados
do Correio Geral e descobrir se vinha gastando mais dinheiro do
que deveria — foram descartados logo de saída, pois só
confirmariam a chantagem, e isso já era considerado como
certo.
Um ponto óbvio era descobrir onde estivera sábado de
manhã, mas não estávamos prontos para isso. Se não tivesse
álibi, seria fácil. Se tivesse, deveríamos esperar para destruí-lo,
assim que soubéssemos de alguma coisa que o incriminasse.
Teríamos de arranjar três retratos dele, de alguma forma, um
para Saul, um para Fred e outro para mim, e percorrer
novamente a vizinhança, a fim de descobrir se alguém o vira no
sábado de manhã. É claro que os tiras vinham fazendo isso há
quatro dias com retratos de Orrie. Fred concordava e Saul
estava disposto a tentar, mas Wolfe vetou a idéia. Disse que
estava cansado de banalidades.
Daríamos tudo a Cramer. Saul sugeriu, e creio que tinha
razão. Podíamos dizer tudo, exceto o nome de Ballou. Não nos
prejudicaria, não iria impedir nosso trabalho e daria a Cramer
alguma coisa para pensar, e na qual trabalhar, além de Orrie
Cather. Se no meio das impressões que estavam no
apartamento houvesse algumas de Fleming, ou uma que fosse,
o caso iria para frente. Wolfe não concordou. Argumentou que
seríamos uns ineptos se chamássemos a polícia para investigar
Fleming antes de nós; no mínimo, arrancariam o nome de X de
Fleming ou da esposa, e isso nós não déramos nem a Saul e a
Fred. Os cinqüenta mil não estavam no cofre, para não afetar os
seus processos mentais, mas ele sabia muito bem onde
estavam.
Eu fiz a sugestão que lhe deu uma idéia brilhante. A
sugestão nada tinha de brilhante; simplesmente traria os
Fleming ao escritório para conversar com Wolfe. Como era do
nosso conhecimento, muitas pessoas contavam mais do que
pretendiam ao conversar com Wolfe; por isso, por que não dar
uma oportunidade a eles? Saul e Fred ficariam escutando no
buraco na sala da frente, e depois teríamos outra reunião. O
único que os tinha visto era eu. Saul e Fred acharam ótima a
idéia, mas Wolfe continuou sentado, Olhando-me aborrecido, o
que era natural, pois teria outra reunião com uma mulher. Ele
continuou sentado e aborrecido, e nós ficamos sentados,
olhando-o. Após cerca de meio minuto, falou:
— Seu livro de notas.
Girei a cadeira, apanhei-o e uma caneta.
— Uma carta. Papel timbrado comum. Para o sr. Milton
Thales, aos cuidados do sr. Barry Fleming, e o endereço. Caro sr.
Thales. É um truísmo que as pessoas dotadas de um aumento
repentino de rendimentos frequentemente gastam tudo, vírgula,
ou quase tudo, vírgula, em coisas que anteriormente não
podiam adquirir. Ponto parágrafo. É possível que o senhor seja
um admirador de orquídeas, vírgula, e que gostasse de comprar
alguns pés de orquídea com uma parte dos cinco mil dólares de
renda extra que recebeu durante os últimos quatro meses.
Ponto. Se este for o caso, vírgula, terei prazer em lhe mostrar a
minha coleção, vírgula, caso telefone marcando um encontro.
Sinceramente seu.
Joguei o caderno na mesa.
— Maravilhoso, isso fará com que ele venha e ela não.
Talvez. Se for para o endereço de sua residência e ela estiver lá
quando for entregue e ele não, pode ser que venha ela, mas não
ele. De acordo com as estatísticas, 74 por cento das esposas
abrem as cartas, com ou sem o auxílio de uma chaleira. Por que
não mandá-la para a escola?
— São duas horas da madrugada de sexta — disse Saul. —
Ele só a receberia na segunda.
Wolfe resmungou. Eu disse:
— Diabo!
— A idéia é ótima — falou Saul. — Ele vai começar a suar
antes de vir para cá, e isso já ajuda, e terá de vir. Mesmo que
não a tivesse matado, teria de vir. Mas posso sugerir uma
correção?
— Sim.
— A carta poderia ser mais ou menos assim... está com o
caderno, Archie? Caro sr. Thales. Como sabe, vírgula, eu era a
amiga mais íntima de Isabel, vírgula, e contávamos muita coisa
uma à outra. Uma das coisas que ela me contou foi como o
senhor conseguiu aqueles cinco mil dólares e como ela se sentia
quanto a isso. Não revelei a mais ninguém porque ela me disse
em confiança... não, mude isso. Mude ‘porque ela me disse em
confiança’ para ‘porque lhe prometi não dizer a ninguém’.
Depois: talvez o senhor deseje demonstrar a sua gratidão
dando-me parte dos cinco mil, vírgula, pelo menos a metade.
Espero que os traga até domingo à tarde. Trabalho à noite. Meu
endereço está na parte superior e o meu telefone é... Seria
assinada por Julie Jaquette. Creio que deveria ser manuscrita;
duvido que use uma máquina de escrever.
Fred disse:
— Aí ele a mata e nós o agarramos.
Saul concordou:
— Matará se nós deixarmos, e se matou Isabel Kerr. Se já
estiver acostumado. — Para Wolfe: — Creio que seria mais
rápido do que se viesse do senhor. Eu sou um rato, não iria
conseguir que ela a escrevesse, mas Archie pode.
— Claro — falei. — Direi a ela que lhe mandarei orquídeas
no seu enterro. — Olhei para Wolfe: — Você disse que gostaria
que ela passasse bem.
— Então você vai levantar dificuldades — disse Wolfe.
— Não, senhor. Gosto da idéia. Estou apenas dizendo que
não vai ser fácil convencê-la; se concordar, não podemos perdê-
la de vista por um segundo. E se não concordar? Ela mesma
disse que ninguém a induz a nada.
— Mas você gosta da idéia?
— Sim. Se não der certo, colocaremos a culpa em Saul.
— Culpar alguém é tolice. O conteúdo da carta é im-
portante. Leia.
Foi por isso que, na sexta à tarde, uma hora, estava
sentado numa confortável poltrona, num quarto do 9.° andar do
Hotel Maidstone, Parque Central Oeste, na quadra dos Setenta.
Julie Jaquette não estava estirada na cama; encostada em três
travesseiros, bebia sua terceira xícara de café; já comera
torradas, ovos com bacon, pão doce com geléia de morango,
enquanto eu lhe explicava o negócio da chantagem, inclusive
Ta-les de Mileto, mas sem falar no nome de Ballou. Era um
quarto grande e agradável; ainda mais agradável pelo vaso com
um ramo de Vanda rogersi que eu lhe trouxera, colocado sobre
uma mesa. Colocara uma das flores na frente do decote em V da
roupa que usava, uma coisa azul-claro com mangas e sem
babados. Dissera que de manhã, na cama, ela era feia, mas na
verdade não era nada má. Olhos brilhantes, cara limpa e um
tipo de robustez misturado com dureza.
— Pobre Isabel — disse ela. — Isso é que é falta de sorte,
um chantagista como cunhado e um assassino como namorado.
Meu Deus.
— E um burro como amigo.
— Ela só tinha uma única amiga. Eu.
— Certo. Só a chamei de burra, profissionalmente. Se
falasse em termos pessoais, chamaria de gatinha, coelhinha ou
cordeirinha. Faça...
— Você se dá conta que isto é uma cama? Que eu podia
esticar meu braço e o agarrar?
— Sim, vigio cada movimento que faz. Chamei-a de burra
profissionalmente porque, no minuto em que ouviu que sua
amiga Isabel fora assassinada, você decidiu que o culpado era
Orrie Cather e não se afasta dessa idéia, nem mesmo quando o
terceiro detetive mais esperto de Nova Iorque lhe dá uma
vantagem de dez a um. Seria...
— E quem são os dois mais espertos?
— Nero Wolfe e eu, mas não diga que fui eu quem contou.
Levaria uma hora para explicar por que nós três inocentamos
Orrie, e mesmo assim talvez você não mudasse de idéia. Mas
agora acho que sabemos quem a matou. O chantagista. Barry
Fleming. O marido da irmã dela.
Ela pôs a xícara na bandeja.
— É, você tem suas razões.
— Se quer dizer provas, não. Mas se há outro bom
candidato, não pudemos encontrá-lo ou encontrá-la, e tentamos
muito. Barry Fleming é perfeito. É óbvio que Isabel contou a
Stella quem lhe pagava as contas... X, para você... e Stella
contou a Barry, já que ele não poderia fazer a chantagem se
não...
— Talvez eu seja burra, mas sei contar até dois e posso
dizer o alfabeto de trás para frente.
— Um burro poderia dizer de trás para frente. Quando X
contou para Isabel que estavam fazendo chantagem, ela viu que
deveria ser Barry. Tentou fazer com que parasse, mas ele não
parou. Finalmente, disse que iria contar a Stella; provavelmente
já ameaçara antes. Isso foi no sábado pela manhã. Disse-lhe que
finalmente decidira contar a Stella, quando a visse naquela
noite, e ele a matou. Conte até dois.
— Não me canse. — Empurrou a mesa, o vaso balançou e
eu pulei para salvá-lo. Ela escorregou na cama, jogou um dos
travesseiros ao chão e colocou a cabeça nos outros dois.
— Você é esperto, e também tem agilidade — disse ela. —
Entraria facilmente no teatro como bailarino. Deixe seu nome
com a moça na entrada. Contou isso tudo aos tiras?
— Não.
— E por que não?
Achei que não havia necessidade de lhe falar sobre os
cinqüenta mil dólares:
— Porque gostam de culpar Orrie, ele está preso e não
temos provas. Nem uma só. A razão de estar lhe dizendo isto é
que pensamos que você estivesse disposta a ajudar. Você
realmente quer que o assassino vá para a cadeia, não quer?
— É claro.
— Então, pode ajudar. Você escreveria uma carta para
Fleming, chamando-o de Thales, dizendo que quer os cinco mil
dólares tirados de X, ou pelo menos a maior parte. Diga que
Isabel lhe contou tudo, talvez até insinue que você presume que
ele a matou e sabe o motivo. É claro que ele teria de vê-la e, se
matou Isabel, deveria matá-la, e para nós seria fácil conseguir
provas disso. E então o pegaríamos. Final feliz.
Ela riu e a risada era tão gostosa que me contagiou e ri
também. Quando parou, disse:
— Você não é casado, é?
Abanei a cabeça:
— Não.
— Nunca?
— Não. Já pedi umas mil em casamento.
— Aposto que sim. Fui casada uma vez, e que ano passei!
Sabe o que vou fazer quando sair?
— Não.
— Vou ficar de pé na janela e olhar para fora e pensar que
é uma pena que isso não vá funcionar. De qualquer forma, se
vou ser assassinada, tudo o que você iria conseguir seria uma
viagem ao cemitério. Esta carta... exatamente o que quer que
eu diga?
Fiz um gesto com a mão:
— Esqueça disso. Uma piada é para se dar risadas, e eu já
ri.
— Bolas. — Apontou-me o dedo. — Ouça.
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA. Você veio para me
convencer. Não estrague tudo com uma piada boba. Dou dez
contra um, vinte contra um, que você e Nero Wolfe já a
escreveram e está com ela no bolso. Vamos vê-la.
Ela teria me apanhado, se não tivesse tido o trabalho de
decorá-la. Eu disse:
— Graças a Deus, você decidiu não casar comigo. Ficaria
exausto só para conseguir me manter ao seu lado. Muito bem,
nós conversamos sobre o conteúdo da carta. Mas se você a
escrever e eu a colocar no correio, a partir do momento em que
ele a receber você se torna uma presa fácil. Amanhã é sábado.
Se escrevê-la agora e eu a colocar no correio, ele irá recebê-la
amanhã de manhã. Pode ser que se mexa rápido e tente
qualquer coisa. Às dez horas, amanhã de manhã, estarei aqui
fora, no corredor, e Saul Panzer, o rato, estará lá embaixo na
recepção. Quando você sair, sairemos com você, e ficaremos ao
seu lado; e você não vai tentar nada só para mostrar para que
servem os homens ou não servem. Estaremos lá no Ten Little
Indians, assim como Fred Durkin, e um de nós passará a noite
aqui, no corredor. E continuaremos assim até que aconteça
alguma coisa.
— Isso é loucura. Como poderia acontecer alguma coisa
com esses homens todos, esses heróis, aqui?
— Deixe isso conosco. Não podemos tomar conta dos
detalhes até que ele reaja. Você está disposta a tentar?
— Claro. Do modo que me convenceu, terei que tentar. De
qualquer forma, quero tentar... Nunca ninguém tentou me matar
e isso fará com que me sinta importante. Toda a minha vida quis
me sentir importante.
— E todo mundo também quer. Mas vamos deixar claro
uma coisa: você deve aceitar suges... deve obedecer ordens. Vai
fazer exatamente o que mandarmos. Quer jurar na Bíblia?
— Não, alguns dos caras lá são terríveis, e as mulheres
também. Um aperto de mão é o suficiente. Apertemos a mão. —
Estendeu a mão.
Era um contato puramente profissional, mas na verdade
tinha mãos atraentes, e eu lhe disse isso.
— Antes de começarmos a escrever a carta — eu disse —
devo mencionar a possibilidade de Stella abri-la e lê-la. A
situação, assim, seria totalmente diferente, mas talvez seja até
melhor. De qualquer modo, amanhã é sábado e ele
provavelmente estará em casa. Agora, quanto à carta:
pensamos em endereçá-la a Milton Thales, aos cuidados de
Barry Fleming, mas isso seria só uma jogada. O sr. Wolfe gosta
de jogadas. Como você o chamaria, Barry ou sr. Fleming?
— Como nunca o vi, sr. Fleming.
— Certo. Em papel timbrado do hotel. Caro sr. Fleming.
Como sabe, eu era a melhor amiga de Isabel, e contávamos
tudo uma à outra. Ela me falou sobre Milton Thales, como o
senhor conseguiu aqueles cinco mil dólares e como ela se sentia
quanto a isso. Disse-me também que ia contar à irmã dela, mas
que antes o avisaria. Isso não me surpreendeu, pois a conhecia
muito bem. Mas fico imaginando se teria alguma coisa a ver
com o que lhe aconteceu, e gostaria de saber. Outra coisa, con-
siderando a forma como conseguiu esses cinco mil dólares, não
creio que devam ficar com o senhor. Penso que deveria dá-los a
mim e eu daria a alguma instituição de caridade. Espero que me
procure em breve. Moro neste hotel. Atenciosamente. É claro
que podemos alterar as palavras, contanto que todos os pontos
sejam cobertos.
Ela estava de testa franzida:
— São muitas mentiras para uma carta tão curta.
— Só uma mentira: que ela lhe contou. Na verdade, quem
lhe contou fui eu. Todo o resto é verdade. Você realmente ficou
imaginando se isso tinha alguma coisa a ver com o que
aconteceu e gostaria de saber. Está se arriscando para
descobrir.
— Estou me arriscando porque você, com sua fala macia,
me convenceu. Nunca pensei...
— Um momento. Não há possibilidade de minha fala macia
convencer você a fazer o que não quer. Você quer fazer isto?
— Maldito seja, quero. — Sentou-se, e a orquídea caiu do
V. — Vá para o outro quarto e eu sairei em dez minutos. Não
posso escrever na cama.
Tomei nota de quanto tempo levou. Foram vinte e dois
minutos. Ninguém é perfeito.
CAPÍTULO XII
EM 1958, UM HOMEM CHAMADO Simon Jacobs não deveria ter sido
esfaqueado até a morte e seu corpo arrastado para trás de um
arbusto no parque Van Cortland, mas foi, e Nero Wolfe e eu
nunca mais nos esquecemos disso. Deveríamos ter previsto que
isso poderia acontecer e tomado providências, coisa que não
fizemos. Para esse tipo de mancada, uma vez é mais que
suficiente, e isso justifica o fato de eu não ter chegado ao Hotel
Maidstone às dez horas de sábado. Cheguei às nove e meia. A
entrega de correspondência na cidade de Nova Iorque é terrível,
mas havia uma chance num bilhão de o carteiro chegar ao
número 2.938 da avenida Humboldt mais cedo, àquela manhã, e
pelo metrô é rápido.
O gerente de um hotel não gosta quando um hóspede lhe
diz que quer colocar um guarda do lado de fora de sua porta
porque acha que vai ser assassinado; assim, nada contamos ao
gerente do Maidstone. Em vez disso, convidamos o tira do hotel,
quero dizer, o agente de segurança, para o quarto, e Julie
Jaquette lhe contou que um homem a vinha importunando e
dissera que talvez até tomasse um quarto no hotel, e ela não
queria encrenca. O fato de ele já ter ouvido falar de Nero Wolfe
e Archie Goodwin ajudou, e eu lhe passei uma nota. Ofereceu-se
até para providenciar uma cadeira.
Como eu trouxera o Times e uma revista, não precisei
inventar jogos para passar o tempo. Nas maçanetas ela colocara
avisos de ‘Favor não perturbar’, e as camareiras não entraram
no quarto. Durante toda a manhã o tráfego foi fraco. Espero que
não pensem que sou um esnobe, mas decidi que preferia os
moradores do 7.° andar na Avenida Humboldt, 2.938, aos do 9.°
andar do Hotel Maidstone. Eles também tinham uma aparência
de estarem preocupados, mas tinha a impressão de que
agüentaria ouvir os seus problemas. É claro que as pessoas em
hotéis não são como as pessoas de casa. Tentava responder por
que isso seria assim quando uma das portas, a do quarto de
dormir, abriu-se o bastante para que ela enfiasse a cabeça e
perguntasse:
— O que deseja comer no almoço?
Olhei para o relógio. 11:50h.
— Eu me arranjo. Mais tarde vai subir um empregado. Já
está tudo providenciado.
— Ah-ah, você está relaxando. Vou pedir o café. E se ele
der um jeito no garçom e envenenar o café? Terá de prová-lo.
Senão, para o que você serve?
— Peça dose dupla.
— Sempre tomo ovos com bacon. Vou abrir a outra porta.
E foi o que fez. Num minuto a porta se abriu um pouco,
mas não entrei. Lembre-se de Simon Jacobs e dê uma olhada no
garçom enquanto ele estiver aqui fora, no corredor. Às vezes
acontece de a diferença entre ser sensato e ser tolo não
depender de você, mas de alguém ou de outra coisa. Daquela
vez era tolice ficar no corredor Para dar uma olhada no garçom.
Quando ele chegou, às 12:30h, empurrando o carrinho de
comida pelo corredor, fiquei vigiando, enquanto entrava na
porta do quarto, e então fui para a outra.
A refeição foi servida no quarto de dormir, ela na cama e
eu à mesa que o garçom trouxera. Estava com a mesma roupa
azul da véspera, o que me fez sentir em casa. Como Fritz nunca
frita ovos, eles me fazem sentir que estou fora de casa. Falamos
sobre Isabel, ou melhor, ela falou. Vinha tentando encontrar um
modo de persuadi-la a desistir de se casar, e achava que talvez
tivesse conseguido. Explicou-me que a razão de não haver um
bom marido é porque não existe uma boa esposa, e vice-versa,
e como se pode sair dessa situação? Já estávamos comendo pão
doce com geléia, e ela me dizia como Isabel tinha razão ao
achar que não servia para o teatro, quando o telefone tocou e
ela se virou para atendê-lo.
A primeira coisa que disse foi “Alô”, e a segunda coisa foi
“Sim, sr. Fleming, aqui é Julie Jaquette”, e corri para o outro
quarto, apanhei o telefone, mas não ouvi muita coisa. Ele disse:
“Duas horas, está bem?”, e ela disse “Duas e meia seria
melhor”, e ele: “Está bem, estarei aí.” E foi tudo. Ao entrar
novamente no quarto, perguntou-me se ouvira a conversa; eu
disse que sim e fui até a mesa. Ela falou:
— Acho melhor decidirmos a qual instituição de caridade
daremos o dinheiro. Ou já decidiu isso também?
— Isso não tem graça — respondi, servindo-me café. —
Vou chamá-la de Julie.
— Isso também não tem graça. Será que ele vai trazer seu
próprio cinzeiro?
— Claro. Presumo que ele vem aqui.
— Sim.
— Eu lhe disse que não poderíamos tomar conta dos
detalhes até vermos como ele reage. Certamente não pretende
chegar, mandar telefonar, tomar o elevador, entrar, matá-la e
sair de novo.
— Então você pode ficar no armário. Ou aqui. — Empurrou
a mesa que ficava sobre a cama. — Vou me vestir com a minha
melhor roupa. Leve o café para o outro quarto..
Obedeci. Para um hotel, a sala de estar não era feia. Havia
um tapete verde-escuro, paredes pintadas de verde-claro,
cadeiras e um sofá grande, com uma janela para o Parque
Central. Depois de terminar o café, fui à janela a fim de dar uma
olhada. Era sábado, mas também era fevereiro, e tudo estava
parado no parque. Sob as árvores havia ainda um pouco de
neve, mas só se podia chamá-la de branca porque não era
negra.
Quando Julie entrou, estava de preto: um vestido preto
bem simples, com manga curta e sem enfeites. Sei quando as
coisas assentam bem, e do modo que assentava nela,
demonstrava por que ela o chamava de seu melhor vestido.
Elogiei-a e a levei até a janela.
— Vou lhe dar uma ordem — eu disse. — Está vendo
aquela parede de pedra ali? A que horas você chega do
trabalho?
— Cerca de uma e meia. Minha última canção é a uma
hora.
— Ótimo. O parque estará vazio. Por isso, quando chegar
em casa hoje à noite, acenda as luzes e fique aqui olhando para
o parque, e o homem atrás do muro de pedra, com o rifle
encostado na parede, puxa o gatilho e, se ele for bom, você cai.
Portanto, você não deve ficar em pé aqui e olhar para fora.
Antes de sair, deve abaixar a persiana e fechar a cortina. Isto é
uma ordem.
— Uma ordem muito tola. Aqui em cima? Neste ângulo?
Pegue um rifle e tente. Você nem atingiria a janela.
— Pois, sim. Antes dos meus 12 anos matei muito esquilo
com um 22 em árvores quase desta altura. Vai obedecer às
ordens ou não?
Ela concordou, e fomos nos sentar no sofá enquanto
discutíamos o que fazer. Ela queria que eu ficasse no outro
quarto, escutando, e dava as razões para isto: se ficasse na sala
com ela, poderia dizer alguma coisa que ele não gostasse, mas
à qual ela não poderia fazer objeção, com Fleming lá. Os ânimos
se esquentaram e a uma certa altura ela ameaçou sair da
história, deixando que eu o recebesse lá embaixo, mas
finalmente concordamos que ficaria presente, para ser visto e
não ouvido, a não ser que eu pensasse ser absolutamente
essencial. Mal nos falávamos quando o telefone tocou e
informaram que o sr. Fleming estava na portaria e queria subir.
Fiquei no sofá e não me levantei quando bateram à porta; ela foi
abrir e ele entrou. Vendo-os, e não sabendo da situação, pensar-
se-ia ser ela, e não ele, que precisava ser vigiada. Ela se virou
para fechar a porta e ele se virou para mantê-la sob seus olhos,
e só depois de ela passar, ele se virou e me viu.
Ele falou “oh”, mas sem saber que dissera alguma coisa.
Ficou nos olhando. Julie encarou-o e disse:
— Acho que já conhece o sr. Goodwin. Dê-me o seu
casaco.
Sua boca abriu, mas não saiu nenhum som. Tentou
novamente e conseguiu:
— Pensei que você... pensei que era particular.
Ela fez sinal, concordando:
— Suponho que preferiria manter isso só entre nós dois,
mas pensei que seria melhor ser cuidadosa com um... com o
senhor. Está com o dinheiro?
Ele tinha problemas com os olhos. Queria olhar para ela,
mas os olhos queriam me incluir também.
— Creio que está havendo um mal-entendido muito sério.
Creio que Isabel lhe disse algumas coisas que não são verdade.
Receio...
— Que tolice. Milton Thales. Ta-les. Sei exatamente onde
arranjou esse nome e de quem o tirou. Só não contei aos tiras
porque Isabel não gostaria disso. Ela queria que o senhor
devolvesse o dinheiro, e é o que estou fazendo. Creio que
também gostaria que contasse à irmã dela, e é o que eu deveria
fazer, mas antes quero o dinheiro. Está com ele?
— Não. Realmente, srta. Jaquette...
— Bolas. — Virou-se para mim: — O que acha, sr.
Goodwin?
Ainda por cima, toda formal. Podia ter-me chamado de
Archie.
— Acho que está perdendo seu tempo — eu disse. — Acho
que devíamos chamar o inspetor Cramer para vir buscá-lo.
Sugiro Cramer porque ele é o encarregado de homicídios, e
talvez esteja interessado.
Levantei-me e me dirigi à mesa onde estava o telefone,
levantei-o do gancho e comecei a discar.
A voz de Fleming não era um grito, mas bem alta:
— Não!
Virei-me:
— Não?
— Vou-lhe dar o dinheiro. — Do ângulo em que eu estava,
a luz refletia nas maçãs do seu rosto. — Não pude apanhá-lo
hoje, o banco está fechado. Trago segunda-feira.
Coloquei o telefone no gancho. Julie disse:
— Quero tudo. Cinco mil.
— Sim, naturalmente. — Seus olhos me acompanharam
até o sofá e viraram-se em seguida para ela. — Quando disse...
não creio que Isabel quisesse que contasse à minha mulher,
agora que ela... tenho certeza de que não gostaria. Prometa-me
que não o fará. Vou lhe dar o dinheiro.
Julie abanou a cabeça:
— Não prometo nada.
— Prometa-me que nada lhe contará antes de segunda-
feira. Podemos falar sobre isso na segunda. Posso lhe dizer por
que... falaremos sobre isso.
Então falei, pois considerava essencial ele saber que ainda
tinha algum tempo para gastar:
— Também estou presente. Não posso falar pela srta.
Jaquette, mas falo por mim. Prometo nada dizer à sua esposa
até que tenha devolvido o dinheiro, contanto que seja na
segunda-feira. Então veremos.
— Está bem — falou ela. — A promessa de Archie nada
vale sem a minha. Também prometo.
Colocou o chapéu na cabeça. Se tivesse consciência de
que colocara o chapéu num quarto de senhora, e com ela
presente, ficaria chocado. Queria dizer mais alguma coisa, mas
não sabia o quê; virou-se, todo duro, bem devagar, e se dirigiu
para a porta. Esqueceu-se novamente de sua educação, pois ao
fechar a porta deixou uma pequena fresta aberta. Julie foi lá,
empurrou-a até fechar, voltou para o meu lado e perguntou:
— Como me saí?
— Péssima. Você me chamou de sr. Goodwin e depois de
Archie. Ele vai pensar que você não sabe o que quer.
— Acho que você é quem não sabe. Pensei que a idéia
fosse acuá-lo para me matar.
— Para tentar isso. Assim soa melhor, agora que já estou
acostumado com você.
— Está bem, você estragou tudo. Devia ter ficado no outro
quarto. Agora ele sabe que terá de matá-lo também.
— Não sabe. Já não lhe expliquei? Sente-se. — Bati com a
mão no sofá e ela sentou. — É simples. Ele pensa que não irão
prendê-lo por assassinato sem você, pois é a única que pode dar
um motivo para isso. Obviamente, você não iria ao tribunal jurar
que Isabel lhe afirmara que iria dizer a ele que contaria a Stella
sobre a chantagem, mas ele acha que sim. Ele também acha
que você irá contar a Stella, não antes de segunda, mas logo
após, e aparentemente isso, para ele, é o pior, não sei por quê;
ele deve ver nela coisas que não vejo. Por isso você é perigosa,
mas eu não sou. Meu testemunho é de ouvir dizer. Sob o ponto
de vista dele, só posso contar o que você me disse, mas você
pode contar o que a própria Isabel lhe falou. Isso vale tanto para
o tribunal como para Stella. Ela provavelmente acreditaria em
você, mas não em mim. Não temos uma única prova que o ligue
com a chantagem ou com o crime, mas se ele lhe der cinco mil
dólares em dinheiro, isso seria uma prova. Ele nunca lhe dará o
dinheiro. Por isso você terá de ser calada, mas eu sou só uma
amolação. Desculpe.
— Bem, você me envolveu...
— Até o pescoço. Peço desculpas por uma coisa. Devia ter
dito que, uma vez começado o jogo, você não poderia sair.
Desculpe.
— Não quero sair. Acho que ele a matou.
— É claro que sim.
— O que faremos agora?
— O que você planejou, caso possa levar um acompa-
nhante. São três horas da tarde de um sábado. Se quiser sair,
Saul Panzer está lá embaixo. Se ficar, estarei no corredor.
— Joga biriba?
Respondi que sim e assim passamos a tarde, depois de ter
descido e dito a Saul que estava livre o resto do dia, contanto
que chamasse Fred e lhe dissesse para estar na entrada ou no
salão do hotel às 6:55h, preparado para passar a noite no
corredor do 9.° andar, depois que voltássemos do Ten Little
Indians. As três horas de biriba me custaram 8 dólares e 75
centavos. Ela não era tão boa assim e eu não sou tão ruim, mas
como ela ia perder dez dólares para Saul por causa de sua
aposta, achei melhor facilitar um pouco. Ela baralhava as cartas
melhor do que qualquer pessoa que conheço, exceto Lou Cohen.
Paramos às seis horas para os sanduíches e o café, pedidos ao
serviço de quarto, e para ela mudar de roupa.
Já conhecia alguns cantos de Manhattan, onde fora em
quase todos com Lily Rowan, mas nunca estivera no Ten Little
Indians, na rua Monarch. Passei a noite lá dentro, no camarim de
Julie, que era muito grande, cerca de cinco por sete e meio, bem
de acordo com a atriz principal num lugar que cobrava quatro
dólares de couvert. Enquanto ela estava no seu campo de
batalha, permaneci na retaguarda, num dos flancos; Fred no
centro, perto da porta. Julie merecia o que ganhava, cerca de
mil dólares por semana, talvez mais. Isto não é um relatório
sobre uma artista, por isso só direi o seguinte: merecia o que
ganhava. A multidão de sábado à noite certamente também
pensava assim; gostava dela. Por falar nisso, eu também, mas
por outros motivos. Um deles gostava tanto dela que apareceu
em seu camarim cerca de meia-noite, tão bêbado que tive de
ser muito cuidadoso para não derrubá-lo.
Quando nós três saímos para a noite fria de inverno, não
tivemos problemas com táxi, pois Julie contratara um motorista
de táxi para apanhá-la toda noite, à 1:15h da madrugada.
Durante a ida para o hotel, ela e Fred recomeçaram uma
discussão iniciada na ida para a boate: haviam concordado que
seria uma boa idéia ela alugar um de seus quatro filhos para o
verão e estavam discutindo qual deles e qual o preço.
Conhecendo-o, eu esperava que ela não acreditasse que ele
falava sério, e conhecendo-a, esperava que ele não pensasse
que ela falava sério.
Quando paramos na frente do Maidstone, o porteiro lá
estava para abrir a porta. Saímos e o táxi foi embora. Não ia
entrar; devia substituir Fred no corredor às dez horas e devia já
estar na cama há duas horas. Estávamos juntos na calçada, Julie
no meio, quando dispararam o primeiro tiro. Reagi ao barulho,
um estampido seco e alto, e Fred reagiu a bala, embora não
percebesse logo isso. Ele caiu. Não tenho certeza se o segundo
tiro foi disparado antes, depois ou enquanto eu me jogava sobre
Julie. Vocês acham que minhas maneiras seriam mais delicadas
se eu apenas a protegesse. Concordo. Mas para fazer isso di-
reito tem-se de saber de que direção vêm as balas. Depois que
ela estava no chão, a protegi. Virei-me a fim de olhar para cima
e o idiota do porteiro estava de pé, com a boca aberta, olhando
para o outro lado da rua. Não houve mais tiros. Disse a Julie:
— Fique deitada, não se mexa.
Assim que fiquei de pé, Fred disse:
— O danado me acertou.
Estava apoiado sobre um joelho, com a outra perna
estendida, segurando-se com a mão. Perguntei onde, e ele disse
que na perna. O porteiro disse:
— Veio lá do muro, eu vi.
Julie não disse nada, felizmente. Olhei ao meu redor. Um
garoto de recados estava saindo do hotel. Um homem e uma
mulher haviam parado na esquina e estavam de olhos
arregalados. Na outra direção, um policial vinha a galope. Disse
novamente a Julie para ficar deitada e fui até o muro, aos pulos.
Ele podia ser louco o bastante para ficar lá, pensando que ela se
levantaria e assim poderia tentar de novo. Tive de pular para
ver por cima do muro. Praticamente não havia luz, mas neve
suficiente para ver uma coisa tão grande como um homem, e
ele não estava lá. Quando voltei, o policial, inclinado sobre Fred,
dizia ao garoto de recados para chamar uma ambulância. Julie
não se mexera. Ajudei-a a levantar-se, disse a Fred que voltaria
logo e a levei para o hotel. O tira disse para esperar, queria
saber nossos nomes, e respondi que ele me ouvira dizer que
voltaria, e continuei a andar. O homem da recepção e o
ascensorista lá estavam, e um apanhou a chave enquanto o
outro nos levou para cima. Julie tentava não tremer;
conseguindo, decidi que ela não queria que eu a segurasse pelo
braço enquanto andávamos do elevador até seu quarto.
Dentro, na sala de estar, ela falou:
— Aposto que meu casaco está imundo — e tirou-o antes
que eu pudesse ajudá-la.
— É isso mesmo — eu disse — algum dia lhe direi como
você é ótima, corajosa, esperta, não deu um pio, mas agora
estou ocupado. Se estivesse 18 centímetros para a esquerda e
fosse três centímetros mais alta, você agora estaria no céu.
Sorte, foi só isso: pura sorte, e sou eu quem devia saber o que
fazer. Vou lá embaixo ver como está Fred. Quando voltar, você
já vai estar de malas prontas.
— Malas prontas?
— Certo. Vai para o que chamamos de Quarto Sul na casa
de Nero Wolfe, o quarto acima do dele; tem três janelas que dão
para o sul. Você vai gostar. É muito agradável no inverno.
Ela abanou a cabeça:
— Não... não quero me esconder.
— Ouça, gatinha, cordeirinho, amorzinho. Perdi o direito de
dar ordens. Será que tenho de implorar, pelo amor de Deus?
Na calçada, já havia um grupo de pessoas, uma dúzia mais
ou menos. Fred estava deitado de costas e o garoto colocara
uma almofada sob sua cabeça. Uma mulher dizia que ele iria
apanhar uma pneumonia. O policial e o porteiro estavam do
outro lado da rua, junto ao muro de pedra. Abaixei-me e
perguntei a Fred qual fora a perna, e ele respondeu que era a
esquerda, um pouco acima do joelho, e do jeito que doía, devia
ter atingido o osso. Perguntei se perdera sangue, e respondeu
que não muito, pois pusera a mão em cima e não sentira sair
muito, e perguntou:
— E ela, está bem?
Respondi que sim. Continuei:
— Quando voltar do hospital vou levá-la para casa comigo.
Não quero...
— Você não vai a nenhum hospital. Leve ela agora. O tira
fez umas perguntas, mas eu não sei nada, sei?
— É claro que sabe. Sabe que Nero Wolfe o contratou para
ser seu guarda-costas, e só sabe isso.
— E já basta. Ui... Leve-a agora. Já estive em hospitais
antes. Não a deixe sozinha. O maldito quase conseguiu pegá-la
e nós estávamos ao seu lado. Só queria...
Parou porque o tira chegara. Queria nossos nomes, e dei
alguns, os de Fred, Julie e o meu. Mais nada. Só sabia que
alguém atirara. Primeiro ele decidiu bancar o durão, mas mudou
de idéia, e aí chegou a ambulância. Esperei até que Fred fosse
colocado nela. Então entrei no Maidstone e subi ao 9o andar.
Ao bater na porta, ouvi a voz de Julie:
— É você, Archie?
— Não. É um escoteiro.
Então ela abriu a porta e eu entrei. Ao seu lado estava uma
mala grande e uma sacola grande.
— Não pedi que as levassem para baixo porque pensei que
você talvez mudasse de idéia.
Apanhei as duas malas.
CAPÍTULO XIII
NO DOMINGO DE MANHÃ, às nove horas, entrei na cozinha, dei bom-
dia a Fritz, apanhei suco de laranja na geladeira, sentei na mesa
do café, bocejei, olhei de lado para The New York Times e
esfreguei os olhos. Fritz aproximou-se com um papel na mão e
perguntou:
— Estava bêbado quando escreveu isto?
Olhei para ele, piscando os olhos:
— Não, só exausto. Nem me lembro do que disse. Por
favor, leia.
Ele pigarreou:
— Três e vinte da madrugada. Há uma convidada no
Quarto Sul. Conte para ele. Farei seu café. A. G.
Deixou o papel cair na mesa:
— Contei para ele, perguntou quem era, e o que pude
dizer? E você vai lhe fazer o café na minha cozinha?
Tomei um enorme gole de suco. Sugeri:
— Vamos ver se o que falo faz sentido. Só dormi quatro
horas, exatamente a metade do que necessito. Quanto a dizer a
ele quem é ela, isso é responsabilidade minha. Admito que é sua
função fazer o café, mas ela gosta de ovos fritos, e isso você
não faz. Vamos ao que realmente importa. Nesta casa há um
homem mais alérgico do que ele a mulheres, e é você. Por Deus,
eu estou sendo honesto! — Tornei a beber suco. — Não se preo-
cupe, esta mulher tem alergia a homens ficarem na casa dela.
Quanto aos ovos, faça-os... você sabe como... com vinho tinto e
caldo de carne...
— Vinho da Borgonha.
— É isso aí. Com bacon canadense, Isso lhe mostrará para
que servem os homens. Em geral, ela toma café às doze e
trinta. Ainda estou disposto a lhe fazer o café, se...
Ele disse alguma coisa em francês, bem alto, talvez fosse
um palavrão. Estava no fogão, fritando lingüiça. Peguei o Times.
Como Wolfe só vai à estufa por pouco tempo aos do-
mingos, quando vai, pensei que lá pelas dez horas já teria
descido. Mas ainda eram 9:50h, quando ouvi o barulho do
elevador e depois seus passos no corredor. Já não o via desde
sexta à noite, há quase quarenta horas. Em vez de parar no
escritório, os passos continuaram, a porta se abriu e ele
apareceu.
— Então, está vivo — disse.
— Mas é só isso. — concordei. — Não conte comigo para
nada.
— Quem é a hóspede?
— A srta. Jaquette. Para você, srta. Jackson, Julie para mim.
Ela também está viva, mas não é minha culpa. Atiraram nela
esta manhã, à 1:30h, na frente do seu hotel, por trás do muro
do Parque Central. Não vimos quem atirou. Fred foi atingido na
perna e foi levado ao Hospital Roosevelt. Quando telefonei para
lá, hoje de manhã, estava dormindo. Ontem à noite, ao chegar
em casa, telefonei para a mulher dele. Liguei também para Saul
e lhe disse para ficar de prontidão. Trouxe Julie comigo para
casa porque, com Orrie preso e Fred no hospital, estamos
desfalcados. Além disso, fiquei cansado de ouvir as balas
passarem assobiando perto de mim. Ela toma café na cama,
Fritz vai prepará-lo e eu o levarei para ela lá por volta de meio-
dia e meia. Creio que isso abrange tudo.
— O atirador não foi visto.
— Não, senhor, mas era Barry Fleming. Sua reação à carta
foi ir vê-la ontem de tarde. Isso deixou claro que era o
chantagista, e o tiroteio provou que é o assassino. Portanto,
agora só precisamos de provas. Mas creio que você quer um
relatório completo.
Ele concordou e fomos para o escritório. A correspondência
de sábado estava sobre a minha mesa, ainda sem abrir. Não sei
por que ele faz isso, mas creio que é para me mostrar que não
interferirá na minha rotina, se eu não interferir na dele. Fritz
também não interferira: a parte de cima da minha escrivaninha
estava mais cheia de pó do que costuma ficar num dia. Coloquei
meu exemplar do Times na mesa e sentei-me em cima,
começando o relatório. Só foi verbatim em certos trechos, os
que achei essenciais, pois pensei não haver necessidade de ele
saber que ela me perguntara se eu sabia que aquilo era uma
cama ou que eu a chamara de coelhinha. Em geral, quando
termino, ele abre os olhos e se apruma na cadeira, mas daquela
vez ficou um minuto inteiro sem se mexer. Finalmente,
recomecei a falar:
— Se está esperando comentários, nada tenho a dizer.
Podia dizer que sabemos quem foi, mas não podemos provar;
isso é óbvio. Quanto à noite passada, ele possui um rifle, ou
conseguiu um, mas onde o conseguiu? Saul e eu vamos procurar
as respostas, e depois o que faremos? A primeira bala atingiu o
osso de Fred e o atravessou, indo bater no prédio, que é de
pedra, e a segunda provavelmente acertou no prédio.
Precisaríamos de mais de seis especialistas para identificar as
balas como vindas de seu rifle, três de cada lado. Se ele tivesse
acertado e a matasse, isso seria...
— Bolas. Isso é besteira. Temos o que procurávamos, isto
é, a prova de que nossa teoria de ele ser o assassino está
correta. Há alguma dúvida de que agora poderemos libertar
Orrie?
— Não.
— Então isso não nos preocupa mais. Suponha que vamos
em frente, arranjamos uma prova conclusiva de que Fleming
matou Isabel Kerr, é isso o que queremos? Se a conseguirmos, e
dermos ao sr. Cramer, o que acontecerá?
— Três coisas. Uma, vão deixar Orrie de lado bem
depressa. Duas, Fleming será preso, julgado e provavelmente
condenado. Três, tentarão manter o nome de Ballou fora de
tudo, mas não conseguirão. Não, são quatro coisas. Quatro,
você não vai conseguir pôr mais os olhos naquele pacote de
dinheiro.
Ele acenou:
— O que foi que eu disse a ele?
— Se conseguir fazer o que ele quer sem prejudicar seus
interesses, você o fará.
— E então?
— Bem, você pode tentar. Hoje são seis de fevereiro, e até
agora não entrou nada ainda, nada temos em vista, e sei quanto
sai em dinheiro, pois sou eu quem faz os cheques. Quer minha
opinião?
— Sim.
— Não sei como iremos conseguir isso. Se vamos libertar
Orrie, e é o que faremos, teremos de entregar Fleming, com ou
sem provas, e ele lhes dará Ballou, e a polícia deverá visitá-lo.
Esse é o problema. Mesmo que mantenham tudo em segredo e
não deixem os jornais saberem o nome dele, é lógico que no
tribunal o nome vai aparecer, e aí ele vai achar que não lhe
deve nada. E você também pensará assim. Como sabe, sou
muito a favor de receber pagamento. Detestaria que um cheque
meu fosse devolvido por falta de fundos. Mas você pediu a
minha opinião.
— Você não entendeu. Quero a sua opinião sobre o risco,
não sobre a possibilidade. Será que isto colocaria em risco a
nossa finalidade?
— Não. É como se Orrie já estivesse fora da cadeia.
— Então não há risco algum. O problema é expor o
assassino sem...
A campainha tocou, fui até o corredor, dei uma olhada e
voltei;
— É Cramer. Diga a Fritz para abrir. Vou lá em cima dizer a
ela que não cante “Homem forte vá-vá” com a porta aberta.
E dirigi-me para a escada.
A porta realmente estava aberta, embora se encontrasse
fechada quando passei por ela às nove horas. Levantei a mão
para bater na porta, mas não foi necessário, pois ouvi-a dizer:
— Meu Deus, você já está de pé e todo vestido.
Estava sentada numa cadeira perto da janela. Seu pijama
era verde-escuro com listras; os pés descalços, o cabelo todo
despenteado. Fechei a porta.
— Sabe — comentou ela — abri a porta só pelo prazer de
abri-la. Há anos que não tenho um quarto onde possa deixar a
porta aberta. Estou de pé porque acordei. Nunca fico acordada
na cama, a não ser que esteja lendo ou comendo.
Respondi, aproximando-me:
— Infelizmente, vai ter de esperar um pouco para comer. O
inspetor Cramer está aqui. Ele provavelmente acha que você
está aqui, pois o policial a viu sair comigo, mas talvez neguemos
isso. Se admitirmos, e ele insistir em vê-la, podemos dizer que
isso terá de ser adiado porque, após os acontecimentos da noite
passada, você se encontra em estado de choque. Ou pode ser
que o traga até aqui e acabemos logo com isso. Como preferir.
Achei melhor lhe perguntar primeiro.
Empurrando o cabelo com a mão, observou:
— Um inspetor, hein?
— Sim. Um velho amigo nosso. Ao contrário.
— Preferia acabar logo com tudo.
— Está bem. Provavelmente vai querer vê-la sozinho, e não
no escritório, pois sabe que lá existe um buraco onde ouvimos e
vemos tudo. O que deseja tomar para esperar os ovos? Serve
suco de laranja e café?
— Prefiro um suco de uva.
— Está bem. Fritz vai trazer, e mais tarde trarei Cramer.
Ele talvez...
— Aqui?
— Lógico. O quarto tem escuta, mas ele não sabe disso, e
estaremos ouvindo. Talvez lhe peça para ir com ele ao escritório
do promotor público, mas você não irá. Para levá-la, por lei,
precisaria de um mandado, e não o tem. Agora o...
— Como sabe que não o tem?
— Sei de tudo, exceto como ser guarda-costas de uma
moça. Agora vem a pergunta principal. Lembra-se do roteiro? Do
que dissemos ontem à noite?
— O que você disse. Sim.
— Vamos confirmar?
— Não. ZYXWVU...
— É mesmo, eu sempre me esqueço. Fritz vai trazer o suco
e o café. Tranque a porta. Pode ser que o sr. Wolfe decida que
você não está aqui, para ganhar tempo, e Cramer vai subir
correndo para irromper no quarto. Uma vez dentro, a polícia
pode se mover à vontade e ninguém pode impedi-la, mas não
pode arrombar portas, ou melhor, não deve. Se alguém bater na
porta, não responda.
— Que diabos. Eu devia estar dormindo profundamente.
Saí, dizendo que ela podia dormir a tarde inteira.
Ao entrar no escritório, parei ao ver uma cena inesperada,
caseira e muito agradável. Não consegui ver Wolfe à
escrivaninha, pois a página do jornal, aberta, o escondia. Na
poltrona vermelha, Cramer lia a seção de esportes, com as
páginas também abertas. Vendo que Cramer entrara e ainda
estava lá, fui à cozinha, disse a Fritz qual o nome da nossa
hóspede, pedi-lhe que levasse suco de uva e café, mas que não
batesse à porta, só dissesse seu nome. Voltei ao escritório, onde
Wolfe ainda estava escondido. Sentei-me à minha mesa e fiquei
apreciando a cena alguns minutos. Aí tossi. Imediatamente
Wolfe dobrou o jornal, colocou-o sobre a mesa e falou:
— O sr. Cramer quer saber sobre aquele incidente da noite
passada. Já que você esteve lá e eu não, insisti em esperá-lo. —
Virou-se e perguntou: — Sim, sr. Cramer?
Cramer dobrou a seção de esportes e colocou o jornal na
mesinha ao seu lado. Olhou para Wolfe, dizendo:
— Você sabe que desejo saber por que eles escoltavam
aquela moça, e de quem a protegiam. Se sabiam que estava em
perigo, sabem quem disparou aqueles tiros. Durkin diz que não
sabe, mas que você sim. Não preciso que Goodwin me diga isso.
É possível até que ele não saiba, e você sim. Ataque com
intenção de matar é delito grave, e você sabe quem o cometeu.
E eu sou um oficial da lei. Está bem claro?
Wolfe concordou:
— Bem claro. Também está claro que seu verdadeiro
interesse não é um ataque com intenção de matar, mas um
ataque que já matou. Soltou o sr. Cather?
— Não. E eu não...
— Está pronto para soltá-lo?
— Não! Quero uma resposta. Quem disparou aqueles tiros
contra a moça?
Wolfe virou-se para mim:
— Você sabe, Archie?
— Não, senhor, não sei. Posso dar palpites, mas não na
frente de um agente da lei. Seria difamação. Poderia ser Orrie
Cather, mas como está na cadeia isso o inocenta, a não ser
que...
Cramer disse alto um nome que não repito aqui porque
suspeito que alguns dos leitores dessas histórias são professoras
aposentadas.
— Também não sei — disse Wolfe. — Sr. Cramer, por que
não falamos francamente? O senhor veio aqui segunda-feira
passada, fingindo que esperava colher informações que
fortalecessem seu caso contra o sr. Cather, embora soubesse
que nada conseguiria. Pelo menos, não do sr. Goodwin. O que
desejava realmente era saber se o fato de eu apoiar o sr. Cather
seria mais do que uma simples formalidade. E agora o que o
senhor deseja é saber se conseguirá alguma prova que
enfraquecerá seu caso contra o sr. Cather. Por que não ser
sincero e me perguntar?
— Está bem, vou perguntar. Conseguiu?
— Sim.
— Que prova?
— Não estou ainda pronto a revelá-la.
— Meu Deus, e você ainda admite. Admite que tem provas
num caso de assassinato e as está escondendo.
Wolfe concordou:
— Isto é um ponto interessante. Se eu suprimir provas que
ajudem a condenar um homem por assassinato, estou
atrapalhando a lei, sim. Mas se suprimo provas que ajudariam a
libertar um homem, isso também é obstrução da lei? Creio que,
juridicamente, essa questão nunca surgiu. Podíamos perguntar a
uns...
— Perguntar coisa nenhuma. Se tem provas que ajudariam
a inocentar Cather, elas ajudariam a condenar outra pessoa. E
eu as quero.
— Isso é tolice. Milhares de homens foram declarados
inocentes por terem álibis, sem isso trazer culpa a outros. Não
possuo provas, nenhuma mesmo, que ajude a condenar alguém
pelo assassinato de Isabel Kerr. Tenho suspeitas, conjeturas,
mas isso não é prova. Quanto ao fato de estarmos protegendo a
srta. Jaquette, e os tiros disparados contra ela, em que isso
afeta seus esforços para in-culpar o sr. Cather? Como o sr.
Goodwin afirmou, não poderiam ter partido dele, já que se
encontra detido. Sob suspeita de assassinato.
— Ele não foi acusado de homicídio.
— Você está com ele preso sem fiança. Consideremos uma
hipótese. Suponhamos que a srta. Jaquette tivesse razões de
recear que alguém pudesse usar de violência contra ela, razões
essas que não queria revelar, e pedisse proteção e alguém
atirasse nela. Acha que poderia obrigá-la a contar seu segredo,
ou poderia me obrigar?
— Bolas. — Cramer estava ficando rouco. Sempre fica
rouco quando conversa com Wolfe. — Agora é a sua vez de ser
sincero. Você pode me dar a sua palavra de honra que a está
protegendo e que os tiros disparados contra ela não têm
conexão alguma com o assassinato de Isabel Kerr?
— É claro que não. Suspeito que haja uma ligação. Se for
verdade, gostaria de conseguir provas.
—- Ainda não as conseguiu?
— Não.
Cramer tirou um charuto do bolso, enrolou-o na palma das
mãos, colocou-o na boca, mordendo-o. Mas o ato de enrolá-lo
soltara o papel que o cobria, e uma ponta subiu e lhe tocou o
nariz. Ele tirou o papel, olhou-o zangado e jogou na direção da
minha cesta de papéis, caindo perto. Bateu na borda e correu
pelo chão. Transferiu o olhar zangado em minha direção e falou:
— Está bem, Goodwin. Onde está ela?
Levantei a sobrancelha:
— Está falando da srta. Jaquette?
— Sim, estou. Ontem à noite você saiu com ela. E a trouxe
para cá.
Acenei, concordando:
— Isso é o que o sr. Wolfe chama de uma conjetura. O
senhor não sabe se eu a trouxe, assim como não sei quem
disparou os tiros. O senhor está pensando que vou despistar,
mas não vou. Ela está no Quarto Sul. Estava lá, conversando
com ela, quando o senhor chegou.
— Agora sou eu que vou bater um papo com ela. Vou subir.
Sei o caminho.
— A porta está trancada. Pensamos que seria melhor. —
Levantei-me: — Mas acho que você merece uma chance. Com
um novo prefeito e um novo comissário, você realmente merece
uma chance.
Fomos andando. No corredor, parou em frente ao elevador,
mas continuei caminhando até a escada e ele acabou vindo
também. Os policiais devem se manter em forma. Ao chegarmos
ao patamar do segundo andar, gritei o nome dela, e a porta do
seu quarto se abriu. Pusera a roupa azul, e estava de chinelos.
Apresentei-os, perguntei se queria mais café e os deixei.
Tinha certeza de que Wolfe fora para a cozinha; por isso,
ao descer as escadas, virei à direita. Lá estava ele, na única
cadeira que Fritz admite na cozinha, cujo assento era
suficientemente amplo para mim, mas não para ele. Já abrira a
porta de um certo armário e ligara o interruptor. Fritz estava
num dos bancos perto da grande mesa, descascando cebola
roxa para os ovos com Borgonha, e sentei-me no outro banco.
Ouvia-se a voz de Cramer saindo do armário: — Sei disso,
sei que fez. A senhorita fez uma declaração completa, e
apreciamos muito este tipo de cooperação. Mas o que
aconteceu ontem à noite introduziu um novo tipo de...
elemento. Aqueles dois homens, Archie Goodwin e Fred Durkin,
estavam lá para protegê-la, não?
JULIE: — Sim.
CRAMER: — Pedira essa proteção a Nero Wolfe?
JULIE: — Sim.
CRAMER: — Quando?
JULIE: — Oh... acho que foi sábado
CRAMER: — Por que precisava de proteção?
JULIE: — É melhor eu contar a verdade.
CRAMER: — Sim, é sempre bom.
JULIE: — Cá entre nós, eu não precisava de proteção. Mas
uma noite, creio que foi terça, vim aqui porque Nero
Wolfe queria me ver, e encontrei Archie Goodwin. E
voltei no dia seguinte, na quarta, e Archie foi me
mostrar as orquídeas e conversamos durante muito
tempo. O senhor tem certeza de que isto é
confidencial?
CRAMER: — É.
JULIE: — Pelo amor de Deus, não diga nada a ele, mas perdi
o controle. Que homem! Tinha de ficar com ele. Por isso
eu... bem, tomei umas providências. Talvez ele não
queira que o senhor saiba disso, mas passou o dia
inteiro de sábado lá, no meu hotel, a partir das dez da
manhã. Talvez o senhor não aprove. Suponho que seja
casado, mas quando quero alguma coisa, geralmente
consigo.
Wolfe me olhava, e sacudi a cabeça. Não sugerira nada
disso. Só tinha pena de não estar lá para ver a cara de Cramer,
zangada.
CRAMER: — Quer dizer que... está dizendo que... a senhorita
disse que tomou providências. Que providências?
JULIE: — Disse a Archie que um homem estava me
perseguindo, que eu estava com medo e queria
proteção dia e noite. O senhor pode entender muito
bem por que eu queria dia e noite.
CRAMER: — Qual é o nome do homem que a estava
perseguindo?
JULIE : — O senhor não é um inspetor?
CRAMER: — Sim.
JULIE: — Então devia prestar mais atenção. Ninguém estava
me perseguindo. Eu não precisava de proteção.
Precisava de Archie.
CRAMER: — Se não precisava de proteção, por que alguém
atirou na senhorita, tentando matá-la?
JULIE: — Já pensei a respeito. Só porque atingiu Fred, ao
meu lado, isso não significa que quisesse atirar em
mim. Talvez estivesse atirando em Fred. Ou talvez em
qualquer pessoa. Como aquele rapaz no Brooklyn que
atirou numa mulher que passava num carro. Gostam
de...
CRAMER: — Pare com isso. Não acredito numa palavra do
que está dizendo. Sabe qual é a pena por prestar
declarações falsas a um oficial que investiga um crime?
JULIE: — Não. Qual é?
CRAMER: — Até cinco anos na cadeia.
JULIE: — Que crime o senhor está investigando? Archie me
disse que estava investigando o assassinato de minha
amiga, Isabel Kerr, mas não é o que parece. O senhor
só me faz perguntas sobre a minha proteção e de
alguém disparar uma arma. Devo ser uma estúpida.
CRAMER: — Não, srta. Jaquette, não é uma estúpida. É uma
boa mentirosa. Ótima. Espero que saiba o que está
fazendo. Sabe que Wolfe e Goodwin são os detetives
mais espertos de Nova Iorque?
JULIE: — Não sei nada sobre Nero Wolfe. Sei muita coisa
sobre Archie.
CRAMER: — Bem, é verdade. Quanto estão lhe pagando?
JULIE: — Pagando? Bem, primeiro sou uma mentirosa, e
agora, o que sou?
CRAMER: — Isso é o que eu gostaria de saber. Ainda acha
que Orrie Cather matou sua amiga, Isabel Kerr?
JULIE: — Nunca disse isso.
CRAMER: — Não precisava. Pelo que disse e escreveu na sua
declaração, era óbvio. Lembra-se do que disse?
JULIE: — É claro que lembro. Sei o alfabeto de trás para
frente.
CRAMER: — Quer fazer alguma retratação?
JULIE: — Não, era tudo verdade.
CRAMER: — Então pensa ainda que ele a matou.
JULIE: — Precisa ouvir melhor o que lhe digo. Eu lhe disse
que não falei isso.
CRAMER: — Mas insinuou. Não se esqueça de que temos
uma declaração sua assinada. Não se esqueça disso.
Cinco segundos de silêncio, a não ser por um leve ruído
que podia ser Cramer, levantando-se da cadeira.
CRAMER: — Vou avisá-la novamente, srta. Jaquette. Prestar
falso testemunho a um oficial que investiga um crime
de morte é um delito grave. Quer reconsiderar o que
disse?
JULIE: — Não, obrigada. Pode deixar a porta aberta.
Outro ruído fraco, a porta abrindo. Saí da banqueta, fui ao
armário e desliguei o interruptor. Dirigi-me à porta que dá para
o corredor e a abri. Passos pesados desciam as escadas. Cramer
apareceu, virou para a esquerda e passou pela porta do
escritório sem olhar para dentro. Deve ter me visto ao colocar o
casaco, mas não se despediu. Depois que saiu e a porta estava
bem fechada, virei-me e disse:
— Foi tudo improvisado. Não havia nada disso no roteiro.
Gostei muito de tudo. É melhor preparar os ovos, Fritz, ela deve
estar com fome.
Fui em direção à escada e subi os dois andares. A porta
estava totalmente aberta. Ela, de cócoras no chão, olhava sob a
mesa. Ao ouvir meus passos, virou a cabeça, levantou-se e
disse:
— Estou procurando o microfone.
— Você não vai achá-lo aí. Não é tão fácil assim. Ouvimos
muito bem.
— Você ouviu?
— Lógico. Não sei por que chamou você de mentirosa.
Percebia-se logo que era verdade. Quando quer os seus ovos?
— Agora. Agora mesmo.
— Estão quase prontos. Vá para a cama que eu vou trazer.
CAPÍTULO XIV
OBVIAMENTE NÃO CONTO tudo que acontece; por exemplo,
telefonemas que nada têm a ver com a progressão do caso ou
da falta de provas. Jill Hardy telefonara duas vezes, dr. Gamm
uma, Lou Cohen duas vezes, e Nathaniel Parker três. Mas vou
falar no telefonema de Parker naquela tarde de domingo, pois o
que ele queria fazer talvez tivesse ajudado ou prejudicado.
Decidira que ia pedir habeas corpus na segunda de manhã, para
soltar Orrie, e Wolfe levou dez minutos para fazê-lo desistir. Não
foi fácil. Wolfe não podia lhe dizer que não estávamos mais
preocupados com Orrie, que agora tínhamos outros suspeitos
em vista.
Isto é, talvez tivéssemos. Não recebera instruções, não
houve conversa, nada, ao ir para a cama no domingo à noite,
depois de ganhar US$ 1.25 de Julie no jogo de biriba. Aos
domingos o Ten Little Indians ficava fechado. Julie tirara um
cochilo de tarde, e eu fora dar uma volta. Wolfe ficou com o
Times e um livro, e provavelmente, enquanto eu estava fora,
brigou com a televisão, sua briga semanal. Isso pode ocorrer a
qualquer noite, quando se aborrece com um livro, mas em geral
é nos domingos à tarde, quando a TV deveria estar com bons
programas. Passa de um canal a outro, ficando cada vez mais
aborrecido, até ter certeza de que os programas estão piorando
ao invés de melhorar, e então desiste.
A única vez que ele e Julie ficaram juntos foi durante o
jantar, completamente diferente de qualquer outra refeição
naquela mesa, pelo menos que eu me lembre. Em geral Wolfe
está disposto a conversar bastante, com ou sem visitas, mas
naquela vez, desde os bouchées de Netuno até a musse de
castanha, ele não só deixou uma convidada, uma mulher, falar o
tempo todo, como até a incentivou. Fez-lhe perguntas, dúzias de
perguntas, sobre seu trabalho, sua origem e as pessoas que
conhecia. Ao chegar o café, concluí que só havia uma única
explicação possível: ele decidira que eu não conhecia as
mulheres tão bem quanto imaginara, e ele é quem tinha de
tomar a dianteira. Podia ter-lhe dito que aquele tipo de
aproximação não ajudaria muito, mas aparentemente eu não
era mais considerado um especialista.
Por isso foi uma surpresa quando, ao entrar na cozinha na
segunda-feira, Fritz me disse que ele queria falar comigo. Subi
um andar, bati na porta, entrei e Wolfe disse:
— Bom dia. Será que podemos confiar naquela mulher
num assunto que exige perícia e discrição?
— Depois daquele interrogatório todo, você deveria saber
— respondi.
— Não sei. Você sabe?
— Sim. Perícia, sim. Você ouviu como ela foi com Cramer.
Iria depender se ela gosta ou não da situação, qualquer que
fosse. Discrição também depende, isto é, nunca diria nada, se
não quer que se saiba. Ela não é do tipo que fala só para ouvir a
sua própria voz.
— Quanto existia de verdade no que ela contou para
Cramer?
— Nada. Ela nunca pensaria “que homem!”, pois acha que
nenhum homem é assim.
— Então vou aceitar o risco. Peça a Ballou para vir aqui às
onze horas. Diga que só preciso dele por dez minutos. A srta.
Jaquette não deverá vê-lo. Você pode se encarregar disso?
Disse que sim, subi um andar para ver se havia sinal de
vida. Eram 8:45h, porém, como tinha ido dormir cedo — para ela
— talvez estivesse com a porta aberta. Não estava. Pedira que,
ao acordar, tocasse o telefone da cozinha ou o do escritório
quando quisesse o café, e esperasse meia hora. Fui para o
escritório fazer meu serviço.
Não sabia se Avery Ballou era o tipo de presidente que
chega cedo, e esperei até 9:45h para chamá-lo. ÊÉ claro, uma
mulher respondeu e passou para um homem. Este disse que só
daria meu nome ao sr. Ballou se eu dissesse o que desejava:
este é um dos modos como os empregados mais novos ficam
sabendo o que os mais velhos estão fazendo. Acabei
convencendo-o, finalmente, que bastava o nome, e que Ballou
gostaria de falar comigo, mas esperei muito antes de ouvir sua
voz:
— Goodwin? Archie Goodwin?
— Sim. Sr. Ballou?
— É
— Houve um prosseguimento naquele assunto que
discutimos quinta à noite, e precisamos lhe contar o que houve.
Pode vir aqui às onze? Mesmo endereço.
— Na manhã de hoje?
— Sim.
— Acho que não posso. É urgente?
— Sim. Serve também onze e meia ou meio-dia, mas onze
horas seria melhor. Não deve levar mais do que dez minutos.
— Aguarde na linha... Está bem, estarei lá às onze, ou logo
após.
Se o executivo novo estivesse escutando, ficaria imagi-
nando o que poderia fazer Ballou pular assim, e gostaria de
saber.
Depois de falar com a estufa para avisar a Wolfe que ele
viria, pensei no meu problema. Mesmo que Julie estivesse
acordada, não seria aconselhável subir e dizer a ela que vinha
um homem, mas que não devia vê-lo, e por isso pedir que
permanecesse no quarto com a porta fechada. Ela era uma
garota ótima, corajosa, destemida e esperta, e talvez fosse para
o meu quarto, que dá para a rua 35, olhar pela janela, só para
ajudar. Não seria justo tentá-la desse jeito. Por isso fui à
cozinha, expliquei a situação ao Fritz e combinei com ele que,
quando a campainha tocasse, eu iria até a porta, ele iria para o
patamar do segundo andar e ficaria lá com o aspirador de pó. Se
a porta dela estivesse aberta, passaria o aspirador no tapete do
corredor. Ele me disse que não podia levar uma hora passando o
aspirador naquele tapete, e eu respondi que não precisava.
Na verdade, foram só oito ou nove minutos. Wolfe desceu
às onze em ponto, como sempre faz, e eu ainda não terminara
de verificar a correspondência, quando a campainha tocou.
Esperei até Fritz começar a subir as escadas, então deixei-o
entrar, guardei seu casaco e chapéu e levei-o até o escritório.
Ficou de pé, dizendo a Wolfe que não tinha tempo para se
sentar.
— Gosto que os olhos fiquem no mesmo nível — respondeu
Wolfe. — Só leva três segundos para se sentar.
Ballou se sentou.
— Vou ser o mais breve possível — disse Wolfe. — O
primeiro ponto é que agora sei que não matou Isabel Kerr, pois
estou quase certo de quem a matou. Foi o cunhado. O
chantagista. O segundo ponto é que não há mais problemas em
atingir o meu primeiro objetivo, isto é, libertar o sr. Cather. Isso
já está garantido. O terceiro ponto: gostaria de ganhar aqueles
cinqüenta mil dólares. Como posso ganhá-los?
— Pensei que já tivesse entendido. Não quero ser en-
volvido nessa confusão. Não deixe que meu nome apareça. Não
consigo comer, não consigo dormir. Uma dúzia de vezes quis
entrar em contato, mas tenho medo de falar ao telefone.
Wolfe abanou a cabeça:
— Precisa haver uma definição. Seu nome já é conhecido
agora. Cinco pessoas o conhecem: o sr. e a sra. Fleming, o sr.
Cather, o sr. Goodwin e eu. Quanto aos últimos três, o melhor
que pode conseguir é a promessa de que não diremos a
ninguém. Quanto ao sr. e sra. Fleming, seria melhor criar uma
situação que tornasse muito improvável algum dia revelarem
quem o senhor era. Não posso abrir seus cérebros e tirar as
células onde seu nome se encontra. O senhor compreende isto.
— Sim.
— O senhor seria o juiz da situação. Quero ganhar o
dinheiro, não extorqui-lo. Agora o quarto ponto, a razão pela
qual precisava vê-lo sem demora. Para ter alguma esperança de
êxito, preciso de ajuda. Preciso da cooperação de uma moça
chamada Julie Jaquette ou Amy Jackson, que era amiga...
— Conheço o nome. Sei quem é.
— A srta. Kerr lhe contou.
— Sim.
— Ela não sabe seu nome nem precisa saber. Ela o chama
de lagosta. Quero pedir que ela me ajude, sem dizer o seu
nome, e quero dizer a ela que, se tivermos êxito, receberá
cinqüenta mil dólares em dinheiro. O senhor dará?
Ballou olhou para ele de cara amarrada. Wolfe continuou:
— O senhor me disse que os cinqüenta mil dólares eram só
um sinal e deixou subentendido que haveria mais, se eu fizesse
o que pediu. Não vou pedir mais. Num dia ou dois tudo estará
terminado, ou então nada vou conseguir. O senhor só pagará se
eu tiver êxito, contra o que já houve antes, para que não haja
idéia de chantagem. Além disso, as vantagens são pequenas.
Qual é a vantagem contra nós, Archie?
Não perdi tempo em pensar:
— Mil contra um.
— Isso não adianta nada — disse Ballou. — O senhor sabe
que estou numa enrascada. Disse que é minha única esperança.
O que são outros cinqüenta mil, ou dez vezes cinqüenta? Se o
senhor acha que ela pode ajudar, tudo bem. Isso não quer
dizer...
Ele não foi interrompido; eu é que fui, pelo barulho do
aspirador. Levantei-me e fui até o corredor, fiquei parado junto à
escada, não ouvi vozes, só o aspirador. Pensava que, de
qualquer maneira, a conversa já terminara, e ia me virar e lhe
mostrar a porta, quando ele saiu. Fui ao cabide, e já estava com
seu casaco e chapéu na mão quando ele chegou lá. Seu carro
estava na frente de casa. Fui com ele até lá, esperei até o carro
sair, antes de entrar e subir até o segundo andar.
Fritz limpava o tapete com vontade, e Julie, de pijama e
descalça, estava de pé na porta, a olhá-lo. Ele, de costas, fingia
não saber que ela estava lá. Desliguei o aspirador com o pé e
falei:
— Podia ter esperado até ela acordar.
— Estou acordada — disse ela. — Que horas são? Esqueci
de dar corda no relógio.
Ouviu-se um grito vindo de baixo:
— Archie! Onde você está? — Disse onde eu estava, e veio
outro grito: — Diga à srta. Jaquette que quero falar com ela!
Não fazia nem três minutos que Ballou saíra, e ele já criava
uma situação, que consegui contornar. Disse a Julie que seu café
só ficaria pronto dentro de meia hora, e perguntei se ela se
importaria de tomar suco de uva e café no escritório, enquanto
Wolfe lhe explicava uma coisa. Perguntou-me por que eu não
podia explicar, e respondi que Wolfe sabia mais palavras.
Enquanto trocava de roupa, desci e agradeci a Fritz ter ajudado
numa hora de necessidade, pedi café para nossa hóspede e
enchi um copo com suco de uva.
E depois disso tudo, quando fui ao escritório, Wolfe disse
que talvez fosse melhor ele me explicar tudo, e então eu
explicaria a ela. Não tentei dissuadi-lo. Só disse não. Admito que
ainda estava aborrecido, pois fora pura sorte ela não ter sido
morta. Acredito em sorte, mas não devemos exagerar. Depois
de tudo o que eu lhe dissera sobre abaixar a persiana e fechar
as cortinas, deveria ter dado uma espiada atrás do muro antes
de ela sair do táxi.
Quando desceu, não com aquela coisa azul, mas num
vestido de lã verde, a bandeja estava sobre a mesinha ao lado
da poltrona vermelha. Sentou-se, apanhou o copo e disse:
— Estou toda confusa. Esta é a primeira vez em não sei
quantos anos que não tomo café na cama. Espero que a sua
explicação valha a pena.
Wolfe a encarava, com os lábios apertados:
— Peço desculpas. Mas não podemos perder tempo. Eu
disse “nós” porque vou propor um trabalho em conjunto. A
senhorita tem todo o dinheiro de que precisa, srta. Jaquette?
Ela parou com o copo a meio caminho da boca:
— Que pergunta mais idiota.
— Mas não sem razão. Nem é impertinente. Preciso saber
se a oportunidade, um pouco remota, mas é uma possibilidade,
de ganhar cinqüenta mil dólares lhe interessaria. Interessa?
— Essa é ainda mais idiota.
— Interessaria?
— Está me perguntando?
— Estou.
— Cinqüenta mil em dinheiro?
— Sim.
— Menos o imposto de renda?
— Até pagá-lo. Não estou sugerindo nada; estou decla-
rando um fato: seria em dinheiro, e a senhorita não assinaria
nenhum recibo.
Ela tomou um pouco de suco:
— Sabe o que eu faria se tivesse cinqüenta mil dólares de
uma só vez? Iria para a faculdade durante quatro anos. Ou
cinco. — Bebeu mais um pouco de suco. — Creio que alguma
boa universidade. Terminei o segundo ciclo. Sinto que há muitas
coisas que deveria saber, mas não sei. Sempre sinto isso. O
senhor está falando sério?
— Sim. Há uma possibilidade de ganhar cem mil dólares, e
repartiríamos ao meio. Viria do homem que pagava as contas de
Isabel Kerr... o homem que a senhorita chama de lagosta. Ele
esteve aqui agora e...
— Ele esteve aqui? O senhor o conhece?
— Sim. Foi a terceira vez que esteve aqui. Veio duas vezes
na semana passada. É um homem rico e de projeção. Será
chamado de X, até o fim. Receia que seu nome venha a público
em relação com o que ele chama de seu ‘divertimento’ e um
assassinato sensacional, e a senhorita, o sr. Goodwin e eu
tentaremos impedir isso. Se conseguirmos, ele pagará. Dou-lhe
a minha palavra, pagará. Está com um medo horrível. Devo
continuar?
Ela colocara o copo sobre a bandeja, embora não estivesse
vazio.
— O senhor está falando sério?
— Sim.
— É mesmo verdade?
— Sim.
— Está bem, continue. Como poderemos evitar isso?
— Esse é o problema. Talvez não consigamos, mas não é
inteiramente impossível. Se continuar, irei contar-lhe coisas que
não poderá repetir, mas primeiro precisa responder a duas
perguntas. Está disposta a ajudar?
— Como? Não vejo como posso ajudar.
— Você já ajudou. Confirmou, sem dúvida alguma, a
identidade do chantagista. A do assassino foi estabelecida por
uma conclusão lógica. Está disposta a nos ajudar nisso?
Ela me olhou. Não só retribuí o olhar, como fiz que sim com
a cabeça. Respondeu para Wolfe:
— Sim, estou disposta.
— Promete guardar segredo sobre o que lhe direi?
— Sim, isso é fácil. Isso eu posso fazer.
— Então a senhorita é um modelo de virtude. Mas há
coisas que deve saber. Por exemplo, o sr. Goodwin e eu
soubemos o nome de X através de Orrie Cather. A srta. Kerr só
disse o nome dele a duas pessoas: Orrie Cather e sua irmã.
Podemos presumir isso com segurança, já que nem lhe contou.
A sra. Fleming contou ao marido; portanto, há cinco pessoas que
conhecem o nome dele. Eu me responsabilizo por três dos cinco
nomes: do sr. Goodwin, do sr. Cather e meu. Teríamos algumas
dúvidas sobre o sr. Cather se fosse julgado por assassinato, mas
não o será. Portanto, sobra apenas o sr. e a sra. Fleming como
as únicas fontes que poderão contar o nome de X. Estou
explicando, para que fique bem claro.
— E está mesmo. Já lhe disse que sei o alfabeto de trás
para frente?
— Já disse ao sr. Goodwin e ao sr. Cramer. Eu também sei.
Agora vou lhe contar o fato que nos dá a nossa chance em mil.
Há uma pessoa que detesta que se publique o nome de X
associado com o da srta. Kerr ainda mais do que o sr. X. Conte
para ela, Archie.
Levei cinco segundos, não para calcular isso, mas para
perceber que eu nunca encarara as coisas sob esse ângulo.
Disse a Julie:
— Stella. No sábado lhe contei como reagiu, não foi? Ela
não quer um julgamento nem que apanhem o homem culpado.
É claro que o nome de X só apareceria ligado a Isabel. — Olhei
para Wolfe: — É mesmo. Com todos os diabos. Mas como?
— É para isso que precisamos da srta. Jaquette. — Seus
olhos se estreitaram ao fitá-la. — Quer café? Está ficando frio.
Ela apanhou o copo, bebeu o resto do suco, recolocou-o
sobre a mesa, pôs café na xícara e tomou um gole. Olhou para
Wolfe e balançou a cabeça:
— Não entendo. O que há de tão formidável nisso?
— Por causa das possibilidades que isso representa.
Suponhamos que a sra. Fleming saiba, ou mesmo suspeite, que
seu marido matou sua irmã, e sabe por que, e sabe também que
pode ser preso e acusado a qualquer instante, e mais tarde irá a
julgamento. O que ela podia fazer?
— Não sei. Não a conheço.
— O que ela faria, Archie?
— Também não sei o que ela faria — respondi. — Mas sei
que faria qualquer coisa, sem hesitar, para evitar que ele ou
qualquer outra pessoa contasse tudo sobre Isabel e X. É claro
que não quer que isso vá a julgamento. Não sei até que ponto
ela gosta dele. Se gostar muito, a despeito do fato de ter
matado Isabel, pode ser que fuja com ele, ou, se pensa que ele
vai agüentar tudo e ficar com o bico calado, pode ficar ao seu
lado e lutar. Se não gostar dele o suficiente, pode mandá-lo para
a China ou mesmo matá-lo. A única coisa certa é que ela faria o
necessário para ter certeza, por exemplo, de que Orrie não fosse
a julgamento como testemunha da acusação, e ter de responder
perguntas sobre Isabel. Ou que X não testemunhasse sobre a
chantagem. Obviamente também teremos de contar a ela sobre
a chantagem. Para ter certeza dessas coisas, explodiria o
tribunal, se tivesse uma bomba — terminei, olhando para Julie:
— Portanto, aí está. Diga a ela o que disse ao sr. Fleming
naquela carta. Ele, por causa da carta, tentou matá-la com uma
arma. Ela não fará isso, mas alguma coisa vai fazer.
Sua testa estava franzida:
— Por que você não pode lhe contar?
— Não acreditaria em mim. Você pode lhe dizer coisas que
Isabel lhe contou, mas eu não posso. Conforme disse naquela
carta.
— Aquela carta era só mentira.
— A única mentira era que Isabel foi quem lhe contou. O
que você afirmou que ela lhe contara era verdade, e ele provou
isso. Sabe que Barry estava fazendo chantagem com X?
— Claro.
— Acha que há alguma dúvida de ser ele quem atirou em
você?
— Não.
— Acha que tentaria matá-la se fosse só porque você sabia
sobre a chantagem e queria o dinheiro, se ele também não
tivesse matado Isabel? Lembre-se, eu estava lá, e ele sabia no
que eu estava trabalhando. No assassinato. Acho que seria
ótimo se você pudesse pegar os cinqüenta mil dólares, mas
também pensei que quisesse pegar o assassino de Isabel. Foi
isso o que você disse. Acha que há alguma dúvida de que ele a
matou?
— Não.
— Então conte até dois.
Apanhou a xícara para dar um gole, mas como já esfriara,
bebeu tudo e colocou a xícara sobre a mesa.
— Ele não seria acusado se ambos fugissem.
— É certo — concordei. — Mas estaria perdido, e não se
apresentaria para dizer o nome de X. Mas algum dia seria
encontrado; e depois? Como disse o sr. Wolfe, talvez não
consigamos, mas não é inteiramente impossível.
— Ela mora no Bronx.
— Certo.
— Eu teria de ir lá?
— Espero que não. Ele deveria lhe trazer os cinco mil
dólares hoje, e Deus sabe onde está ou o que vai tentar.
Durante algum tempo não quero mais ser guarda-costas.
— Traga-a aqui — disse Wolfe.
— Se você acha que não vou atrapalhar, estarei presente
— disse a Julie.
— Que homem! — disse ela, enquanto punha mais café na
xícara.
Girei a cadeira, apanhei o catálogo telefônico do Bronx.
encontrei o número, peguei o telefone e disquei, com esperança
que a sra. Fleming estivesse em casa e atendesse* ao telefone.
Estava, foi sua voz que disse alô.
— Aqui é Archie Goodwin, sra. Fleming. Talvez se lembre,
estive aí há uma semana.
— Eu me lembro.
— Então talvez se lembre de que eu disse que a polícia
prendera o homem errado e que estava procurando o culpado.
Encontrei-o e gostaríamos de lhe falar sobre ele, e perguntar
como deveremos proceder. Sabemos que a senhora espera não
haver um julgamento, e queríamos discutir esse assunto com a
senhora. Será que podia vir aqui, ao escritório de Nero Wolfe?
Agora?
Silêncio. Prolongou-se tanto que pensei que havia des-
ligado. Mas, não. Finalmente eu disse:
— Sra. Fleming? — mas o silêncio continuou.
Por fim ouvi sua voz:
— Sr. Goodwin?
— Sim?
— Qual é o endereço?
Dei-lhe o endereço.
CAPÍTULO XV
FOI UMA DECISÃO DIFÍCIL, e Wolfe levou cinco minutos para tomá-la.
E o almoço? Quando desliguei, após dar o endereço a Stella
Fleming, eram 12:10h. Será que ela viria imediatamente, e
quanto tempo demoraria para chegar? O almoço foi, é e sempre
será à 1:15h. Uma situação impossível. Wolfe sentou-se, levou
cinco ou seis minutos de cara amarrada para tomar uma
decisão, levantou-se e foi para a cozinha. Segui-o, já que
também costumo me alimentar. Julie não tinha problema, pois
sua omelete e a lingüiça estavam quase prontas. Vencemos
bem a crise. Julie comeu na minha mesa de café, Wolfe e eu nos
sentamos em banquetas na mesa grande, e comemos esturjão,
faisão defumado, aipo, três qualidades de queijo e cerejas ao
brandy, com especiarias. Já que era um lanche e não uma
refeição, não era proibido falar de negócios, e por isso
discutimos o que seria feito. Achava que Wolfe deveria estar
presente, e ele achava que não; deixamos Julie decidir e ela
concordou com ele. No corredor, do lado da cozinha, há um
buraco na parede coberto com um painel deslizante. No lado do
escritório, o buraco é coberto por uma gravura de uma catarata,
pela qual pode-se enxergar o outro lado. Wolfe ficaria ali numa
banqueta. Sobre o outro ponto principal, de ser eu quem deveria
chefiar o ataque, fomos unânimes.
Quando ela chegou, à 1:20h, comecei a atacar desde o
corredor. Do outro lado do cabide, há uma cadeira e um banco,
muito práticos, mas ela não colocou a bolsa ali, enquanto eu a
ajudava a tirar o casaco, e não gostei do modo como se
agarrava a ela. Além disso, ainda me sentia abalado quanto às
balas atiradas contra Julie, embora não fosse minha culpa. Por
isso, quando ela se virou, mudando a bolsa da mão direita para
a esquerda, agarrei a bolsa. Ela tentou pegá-la de volta, mas
segurei-a firmemente, talvez até de maneira um pouco bruta,
esquivei-me e abri a bolsa. Reclamando, avançou para mim.
Empurrei-a de novo e enfiei a mão na bolsa. Agarrei uma coisa e
puxei-a para fora. Ela recuou, ofegante, por isso pude olhar e
ver o que era. Era uma automática Bristol, calibre 22, com a
coronha trabalhada, e estava carregada. Coloquei-a no bolso do
paletó e entreguei-lhe a bolsa.
— Desculpe se fui grosseiro — eu disse. — Devido ao que
aconteceu aqui uma vez, sempre revisto as pessoas.
Ela tentava se controlar, e tinha esperanças de conseguir.
Encolhera. Não só parecia menor do que há uma semana, mas
até o seu próprio rosto havia encolhido. Sua face era cheia,
agora estava encovada. Apanhou a bolsa e me disse:
— Dê-me a pistola.
— Não é uma pistola, é um brinquedo. A senhora a
receberá de volta. Conforme lhe expliquei, revisto todo mundo,
e neste momento fico feliz em tê-lo feito. Há uma moça aqui que
vai lhe dizer coisas que não gostará de ouvir, e a senhora é
muito impulsiva. O seu nome é Julie Jaquette e era a melhor
amiga de sua irmã. Creio que já a conheceu...
— Eu era a melhor amiga de minha irmã.
— A senhora é quem sabe. Vamos entrar. — Apontei com a
mão. — A porta é a da esquerda, que está aberta.
Pensei que ia recuar, e ela também. Mas eu estava com a
pistola e poderia tê-la carregado debaixo do braço. Virou-se e
encaminhou-se pelo corredor, saltos batendo no chão, e a segui.
Deu dois passos para dentro do escritório e parou. Continuei e
fui até onde estava Julie, que se encontrava de pé ao lado da
minha escrivaninha. Tirei a pistola do bolso e mostrei-a para ela.
— Isto estava na bolsa dela — disse, e virei-me para
perguntar a Stella: — Onde seu marido guarda o rifle?
Acho que nem me ouviu. Puxei uma das cadeiras amarelas
e sentou-se. Julie sentou-se na outra. Devolvi a pistola ao bolso,
sentei-me na escrivaninha e disse a Julie:
— Já conhece a sra. Fleming.
Ela acenou:
— Isso estava na bolsa dela? Como tirou de lá?
— Tirando. Os tiros de sábado à noite não foram dis-
parados com ela — virei-me para olhar Stella. — Seu marido
atirou na srta. Jaquette no sábado à noite, mas errou. Por isso
perguntei onde ele guarda o rifle.
Olhou-me espantada, o queixo caído:
— O quê? Meu marido o quê?
— Tentou matar a srta. Jaquette. Estou lhe contando com
delicadeza, pois vêm aí coisas piores. Disse-lhe ao telefone que
descobri o culpado. A srta. Jaquette está aqui porque me ajudou
a encontrá-lo. Creio que o melhor modo é lhe mostrar uma cópia
da carta enviada ao seu marido na sexta-feira passada. — Abri a
gaveta e apanhei a cópia. — Quer que eu leia?
Olhou para Julie:
— A senhorita mandou uma carta para o meu marido?
— Sim.
Esticou a mão:
— Deixe-me vê-la.
Entreguei-lhe a cópia. Leu-a rapidamente, e depois a leu
de novo, devagar. Olhou para Julie:
— De que se trata? Quem é Milton Thales?
Julie olhou para mim, o que não deveria ter feito. Presumia-
se que estivesse colaborando. Arregalei um pouco os olhos e ela
voltou-se para Stella.
— Seu marido é Milton Thales. Disse na carta que Isabel
me contara tudo, mas a única coisa que não me contou foi o
nome do homem que pagava suas contas, por isso vou chamá-lo
de X. Você é a única a quem ela disse o nome dele, e...
— Ela não me disse o nome dele.
— Ela me afirmou que lhe dissera. Isabel não era
mentirosa.
Assim, sim. Que mulher! Ela continuou:
— Por isso, quando X recebeu o telefonema de um homem
que sabia tudo e disse a X para lhe mandar dinheiro, mil dólares
por mês, endereçado a Milton Thales, através de caixa postal, e
X contou a Isabel, ela sabia que Milton Thales deveria ser seu
marido. Pois nenhum outro homem poderia saber o que Milton
Thales sabia. Isabel sabia que você deveria ter contado ao seu
marido e ele...
— Não contei ao meu marido.
— Deve ter contado, porque se...
Interrompi:
— Não adianta, sra. Fleming. Isso já foi confirmado. Seu
marido recebeu essa carta sábado de manhã. Telefonou para a
srta. Jaquette no hotel à uma hora. Às duas e meia, foi
pessoalmente lá. Eu estava com a srta. Jaquette. Ele nos contou
que não trouxera os cinco mil dólares extorquidos de X porque o
banco não estava aberto. Disse que traria na segunda-feira.
Hoje. Que horas ele chegou em casa no sábado à noite?
Não houve resposta. Ela me olhava fixamente.
— Sei que chegou em casa tarde, pois à uma e meia da
manhã estava atrás de um muro no Parque Central com um rifle
ou um revólver, atirando na srta. Jaquette do outro lado da rua,
quando saímos de um táxi. Trouxe a srta. Jaquette para ficar
aqui, por isso não sabemos se ele tentou entrar em contato com
ela hoje, e sinceramente isso não nos interessa. O essencial é
que a senhora disse a ele o nome de X. Ele fez chantagem com
X e Isabel sabia. Isso já está resolvido.
Suas mãos estavam sobre o joelho, e esfregava as unhas
nas palmas. Arranhava-as, mas não a mim.
— Não acredito — disse, tão baixo, que mal ouvi. Repetiu,
mais alto: — Não posso acreditar.
— É duro, mas ainda vem o pior — continuei. — Isso ainda
não está provado, mas será. Agora, só temos o que Isabel
contou à srta. Jaquette. Não só lhe contou sobre a chantagem,
como lhe disse que iria contar ao seu marido que decidira lhe
dizer tudo. Ao ouvir isso pela primeira vez, quando a srta.
Jaquette me contou, fiquei imaginando por que a polícia estava
prendendo Orrie Cather em vez de seu marido. Mas então a srta.
Jaquette me disse que não falara à polícia sobre a chantagem. A
senhora pode lhe perguntar por quê. Talvez porque não
imaginou o que isso significava. Se falasse à polícia sobre a
chantagem, sobre tudo o que Isabel lhe contara, seu marido es-
taria agora na cadeia, junto com Orrie Cather ou no lugar dele,
como suspeito de assassinato. E quando contarmos a eles que
seu marido foi visitar a srta. Jaquette no sábado à tarde e tentou
matá-la nessa mesma noite, então tudo estará terminado. Eles
conseguirão as provas; por exemplo, seus movimentos na
manhã em que Isabel foi morta; será preso por assassinato,
julgado e provavelmente condenado. No telefone disse que
achara o homem certo, e achei: Barry Fleming.
Parara de se unhar e as mãos estavam fechadas em punho
e, enquanto eu falava, acenara três vezes: pequenos acenos
involuntários, sem saber que os fazia, como quando balançara a
cabeça, ao lhe dizer que talvez fosse Orrie Cather quem pagasse
o aluguel. Agora murmurou consigo mesma:
— Então é por isso.
Não lhe perguntei que ‘por isso’ era, pois não estava
buscando provas. Precisamos de provas a fim de demonstrar
alguma coisa ao promotor público, ao juiz ou aos jurados, e não
era isso o que desejávamos. O seu ‘por isso’ talvez fosse alguma
coisa, ou coisas, que ele fizera ou dissera. Por exemplo, onde
dissera que estava, mas não estava, na manhã que Isabel
morrera. O que quer que fosse, tornou as coisas mais simples do
que pensei. Pensei que ela tivesse pelo menos três ataques,
especialmente depois que achara seu brinquedinho na bolsa, e
lá estava ela falando baixinho consigo mesma. Julie disse:
— Não precisa atingi-la tão duramente.
Isso era desnecessário; não dei importância. Que diabo, ela
trouxera uma pistola, mesmo que não tivesse idéia do que fazer
com ela. Provavelmente para me derrubar, se chamasse Isabel
de ‘amásia’. Continuei falando com Stella:
— Talvez tente imaginar por que desejávamos discutir isso
com a senhora. Como é praticamente certo de que foi ele quem
matou Isabel, por que não dissemos tudo à polícia? Sem dúvida
teremos de fazer isso, mas não me esqueci do que a senhora
me disse aquele dia: a reputação de sua irmã era a coisa mais
importante do mundo. Nada sei sobre o seu relacionamento com
seu marido, mas pensei que talvez pudesse fazer alguma coisa.
Talvez a senhora possa persuadi-lo a ir à polícia e confessar que
a matou, dando um motivo totalmente diferente, alguma razão
que não mencionasse chantagem, X e tudo o que a senhora não
quer que venha a público. Não sei se isso é possível, mas pensei
que gostaria de ter uma oportunidade. Não podemos esperar
muito tempo, não mais do que um ou dois dias. Digamos até
quarta-feira pela manhã.
— Hoje é segunda-feira — disse ela. Sua voz voltara ao
normal.
— Certo.
— Quero aquela carta.
A carta caíra ao chão quando começara a se unhar, e eu a
apanhara e pusera sobre a minha escrivaninha.
— É só uma cópia a máquina — eu disse.
— Quero-a.
Dobrei-a e a entreguei. Então pediu:
— A pistola.
— Quando for embora. De quem é, sua ou do seu marido?
— Dele. Ganhou várias medalhas de tiro ao alvo. —
Colocou a carta na bolsa, olhou para Julie e disse: — Tudo por
causa de gente como você.
— Bobagem — disse Julie. — Qualquer pessoa pode dizer
isso a uma outra. Você quer dizer, realmente, que tive má
influência sobre Isabel. Fui melhor para ela do que você. Eu
realmente a amava, mas e você? Pelo que ela me disse, o que...
Isso foi o bastante. Eu me descuidara um pouco, e ela agiu
repentinamente. Atirou-se sobre Julie tão depressa que estava
em cima dela antes de conseguir me mexer, e novamente não
seria culpa minha se Julie tivesse se machucado ou pelo menos
levado uns bons arranhões. Julie levantou os joelhos e, com os
pés fora do chão, o impacto a derrubou e a cadeira caiu de
costas. Stella ia se atirar sobre ela, mas eu a alcancei e segurei
seus ombros por trás. Puxei-a, prendi-lhe os braços, mas ela
disse:
— Agora estou bem — e estava.
O ataque terminara tão depressa quanto começara. Julie
levantou-se, arrumou os cabelos e observou:
— Por mim, pode até bater nela.
Wolfe então falou, numa voz gelada:
— Senhora Fleming.
Nós todos nos viramos. Ele estava na porta.
— O sr. Goodwin foi generoso demais, dando-lhe até
quarta-feira de manhã. Seu prazo se esgota amanhã de manhã,
no máximo. Leve-a para fora, Archie.
Stella seguiu-o com os olhos até sua cadeira. Depois ficou
a procurar a bolsa. Apanhei-a de onde a deixara cair, coloquei a
pistola dentro e lhe disse:
— Na porta lhe entrego a bolsa.
Dirigi-me para a porta e ela me seguiu.
CAPÍTULO XVI
ÀS QUATRO HORAS, Julie estava numa cadeira ao lado da janela no
Quarto Sul e, pelas aparências, muito interessada numa revista.
Eu estava de pé na porta. Não estávamos conversando. Eu lhe
perguntara se devia telefonar ao Ten Little Indians para dizer
que ela não podia ir esta noite, ou se preferia telefonar ela
mesma. Respondeu que nenhuma das duas coisas, ela ia lá, e
eu disse que não ia. A conversa ficara muito desagradável. Em
certo momento ela me pediu o número de telefone de Saul
Panzer, a fim de que ela o chamasse para levá-la, já que eu
receava me expor. Em outro momento eu disse que duvidava se
a maioria dos fregueses iria embora quando soubesse que ela
não iria aparecer. Em outro ainda, ela perguntou se realmente
ela ficaria ali contra a sua vontade, presa à força. Às quatro
horas ficou claro que não iríamos mais nos falar.
Ouviu-se então o ranger do elevador, e ela levantou a
cabeça para ouvir. Quando o rangido parou e ouviu-se o som da
porta do elevador se abrindo, atirou a revista sobre a mesa,
levantou-se e saiu andando. Ao se aproximar da porta desviei-
me, delicadamente, e ela a atravessou, foi até a escada e
começou a subir. Ia pedir ajuda ao dono da casa ou ajudá-lo com
as orquídeas; para mim tanto fazia. Desci os dois andares até o
escritório, liguei para o Ten Little Indians, disse que a srta.
Jaquette estava resfriada e não poderia ir. Não disse onde ela
estava, pois poderiam mandar flores, e aqui não se precisava de
mais nenhuma.
Já que eu era o carcereiro, não podia dar uma volta, e de
qualquer modo tinha de ouvir o noticiário a cada meia hora para
saber se algo de novo acontecera no caso de assassinato, como,
por exemplo, que um homem chamado Barry Fleming estava no
escritório do promotor público para interrogatório, com relação
ao assassinato de sua cunhada. Nada aconteceu. Passei as duas
horas seguintes na minha escrivaninha e no arquivo, com os re-
gistros de germinação. Numa ocasião dessas, é bom ter alguma
coisa para se fazer que só precise de uma pequena porção da
nossa inteligência, como escrever nos cartões certos itens tais
como os resultados de um cruzamento entre Odontoglossum
crispo-harryanum x aireworthi ou Miltonia vexillaria x roezli.
Quando voltaram juntos no elevador às seis horas, estava
ocupado demais para virar ao menos a cabeça. Notei, porém,
uma presença junto ao meu ombro direito, e uma voz
perguntou:
— Posso ajudar?
Então estávamos nos falando. Respondi:
— Não, obrigado.
— Telefonou para lá?
— Sim, você está com um resfriado.
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Aparentemente, fizemos as pazes.
— Oh, eu nunca fico zangada por muito tempo. De
qualquer modo, sabia que você tinha razão. Só queria ver até
que ponto você chegaria. Eu poderia ter dito uma coisa, poderia
ter ameaçado de chamar a polícia. Evidentemente, a única coisa
que você e Nero não suportam é que alguém diga qualquer
coisa à polícia. Ela já saiu há mais de quatro horas. Que diabo,
que estará fazendo?
Esta era a segunda vez que eu ouvira uma mulher chamá-
lo de Nero, mas da outra vez fora uma piada. Com Julie, saíra de
forma natural. Se ela passava dois dias e duas noites na casa de
um sujeito, comia com ele, colaborava com ele, ajudava-o com
as orquídeas, seria tolice chamá-lo de senhor. Se ela
conseguisse os cinqüenta mil e escolhesse uma universidade
que não fosse muito distante, iria visitá-la depois que estivesse
lá algum tempo, para ver o efeito que ela causava. Obviamente
ela teria mais efeito sobre a universidade do que a universidade
sobre ela.
Aceitei a sua oferta em me ajudar nos registros de
germinação.
Ao jantar, Wolfe não repetiu a atuação do dia anterior. Não
era mais necessário fazer-lhe perguntas, e ele a pôs no seu
devido lugar ao discutir a diferença entre imaginação e invenção
na literatura. De vez em quando ela conseguia falar alguma
coisa. Em determinado momento, enquanto ele estava com a
boca cheia de miolo, ela disse:
— Você está falando difícil de propósito. Mostre-me uma
coisa num livro e me pergunte se é imaginação ou invenção, e
vou acertar sempre; quero ver você provar que estou errada.
Isso não é modo de se falar com um homem que está
fazendo o possível para que se possa freqüentar uma
universidade.
Enquanto Fritz servia o cafezinho, no escritório, Julie disse:
— Daria uma nota novinha de um dólar para saber o que
ela está fazendo. Qual é seu telefone? Vou ligar para ela.
— Pois, sim — respondi.
— Como você não tem nervos, incomoda os meus. Você
não daria nem um níquel furado para saber o que ela está
fazendo.
— E para quê? — perguntou ele, bebendo café.
Era óbvio que já estavam cheios um do outro; ao
terminarmos o café, levei-a até o porão. No porão há o quarto e
o banheiro de Fritz, uma despensa e uma sala grande com
bilhar. Quando contara isso para ela, respondera que queria
aprender a usar um taco. Isso tiraria Stella Fleming de sua
cabeça, para não falar da minha. Mas ela não teve a lição de
bilhar. Acabara de tirar a coberta da mesa, apanhara um taco e
arrumara as bolas, quando a campainha tocou. Se eu não a
tivesse segurado pelo braço, teria subido antes de mim, e
estava rente ao meu calcanhar quando cheguei no corredor e
espiei pelo vidro. Julie disse:
— Meu Deus, ela estragou tudo.
Fui ao escritório e disse a Wolfe:
— Cramer.
Ele levantou os olhos do livro e apertou os lábios. Disse a
Julie:
— Vá para a cozinha e fique lá.
A campainha tocou novamente. Julie foi, mas não para a
cozinha, e sim para o corredor, onde estava o buraco. Eu lhe
disse:
— Se espirrar, queimo você em óleo fervente — e fui abrir
a porta.
Pelo olhar que Cramer me dirigiu, estava pronto para me
queimar em óleo, caso eu espirrasse ou não. Foi só o que me
dirigiu, aquele olhar. Enquanto eu pendurava seu casaco, ele já
estava na porta do escritório, e quando lá cheguei, estava
sentado na poltrona vermelha, falando:
— ... e você sabia que Barry Fleming disparou aqueles
tiros, e quero saber como sabia disso. Você também sabia que
Barry Fleming matou Isabel Kerr, e quero saber como descobriu.
Adeus, cinqüenta mil dólares, pensei, ao dirigir-me à minha
escrivaninha. Fleming agora estava preso e apostava dez contra
um que o fariam falar, não importa o que Stella fizera. Talvez já
o tivessem feito falar. Wolfe disse:
— O senhor está furioso, sr. Cramer.
— E estou mesmo.
— Então está em desvantagem. Não quer colocar em
ordem os seus pensamentos?
— Quero que responda a umas perguntas!
— Se souber as respostas. O senhor afirmou que eu sabia
que Barry Fleming matou Isabel Kerr. Devo lhe lembrar que, na
noite passada, disse-lhe que não tinha provas que pudessem
condenar qualquer pessoa por aquele assassinato; eu só tinha
suspeitas. Repito a mesma coisa. Ainda não tenho provas. O
senhor tem?
— Tenho.
— Barry Fleming está preso?
— Não. — O maxilar de Cramer estava rígido. — Olhe,
Wolfe, você conseguiu o que queria. Você queria soltar Cather, e
conseguiu. Ele está livre. Bem, não preciso de provas para
Fleming, mesmo que você as tenha. Preciso de fatos. Quero
saber se Barry Fleming disparou aqueles tiros em Julie Jaquette
e, se foi ele, por quê.
Os ombros de Wolfe levantaram-se alguns milímetros e
desceram de novo.
— Isso é importante? Importante para você? Pois você o
considera como assassino... ou será que não pensa assim? Disse
que ele não está preso. Se acha que, por acaso, eu estou com
ele aqui, esperando por você...
— Ele não está aqui. Está morto.
— É mesmo? Morte violenta?
— Sim.
O canto da boca de Wolfe levantou-se um pouco.
— O sr. Goodwin, a srta. Jaquette e eu não saímos de casa
o dia inteiro. Portanto, se pensa que...
— Ora, pare com isso. Ele se matou. Há três horas. Deu um
tiro na testa com uma automática Bristol 22. Pertencia a ele,
tinha porte de arma. E quero...
— Com licença. Em casa?
— Sim. Eu...
— Havia algum policial lá? Já o haviam interrogado?
— Não. Se você...
— Então como pode saber que ele matou Isabel Kerr?
Como pode saber de qualquer coisa? Não espere que lhe
esclareça tudo. Já lhe disse duas vezes, não tenho provas.
— Que diabo, não quero provas. Não sobre Isabel Kerr. Se
quiser provas a respeito dele, está bem. Quando chegou em
casa esta tarde, ele e a mulher conversaram, disse ela, e ele
escreveu alguma coisa e assinou. Ela saiu para ir ao mercado
comprar umas coisas e ficou fora uma meia hora. Quando
voltou, estava morto. Como sei que matou Isabel Kerr? Ela
estava com a prova, escrita e assinada por ele.
Apanhou um pedaço de papel do bolso de cima do paletó.
— Já comparamos com a sua caligrafia, mas o laboratório
irá verificar. — Desdobrou o papel. — Está assinado. A data é de
hoje.
Começou a ler:
“A quem interessar possa:
Declaro que no sábado, 29 de janeiro de 1966, bati na
cabeça de minha cunhada, Isabel Kerr, com um cinzeiro e
a matei. Não foi premeditado. Fiz isso em um momento de
raiva e ressentimento incontroláveis. O ressentimento vem
se acumulando há três anos. Ela vive no luxo e minha
mulher e eu pagávamos por tudo. Todas as minhas
economias já tinham ido embora e logo ficaria sem nada,
mas ela não queria saber disso. Minha mulher era tão
ligada a ela que não fazia o que precisava ser feito. Naque-
la manhã de domingo tentei mais uma vez persuadir
Isabel, mas não consegui, e perdi o controle. Acertei-a com
o cinzeiro. Não pretendia matá-la, mas não espero perdão,
nem mesmo de minha mulher. Ela insiste que devo
escrever isto para que tenha provas das circunstâncias
sobre a morte de Isabel. Ela não me prometeu nada e não
sei o que vai fazer com isso.
Barry Fleming”
Cramer dobrou a nota e a colocou novamente no bolso.
— Naturalmente, a primeira coisa que você vai dizer, e foi
o que eu disse, é que ele não diz que vai se matar. Não diz
adeus. Mas é freqüente não dizerem adeus. A pistola estava lá,
no chão, e a bala entrou na têmpora direita no ângulo certo. Ela
falou alguma coisa com o policial na delegacia, mas agora está
sedada. É claro que mais tarde vamos interrogá-la, mas não
espero muito disso. Estou lhe contando porque isso resolve o
caso Kerr, e não faz mal que você saiba, mas não resolve tudo.
Os tiros disparados contra Julie Jaquette. Ontem você me disse
que não sabia quem atirou.
— Não sabia. Ainda não sei.
— Isto é uma mentira deslavada.
— Só minto quando é necessário. Agora não é necessário.
Ontem lhe disse que suspeitava haver uma ligação entre o
assassinato da srta. Kerr e os tiros disparados contra a srta.
Jaquette; eu suspeitava, mas não sabia com certeza. — Wolfe
fez um gesto com a mão. — Sr. Cramer, há certos detalhes que
não pretendo tornar públicos e, de qualquer forma, o senhor
agora não precisa deles e não teria como utilizá-los. O
assassinato foi esclarecido e o culpado está morto. Mas o senhor
não é apenas um policial, com seus deveres e obrigações, é
também um homem curioso, e eu o provoco. Por isso vou lhe
contar o seguinte: descobri, não importa como, quem fornecia o
dinheiro para Isabel viver uma vida de luxo e riqueza, e certos
fatos pertinentes, e isso fez com que eu acreditasse que Barry
Fleming a matara. Também descobri, mais uma vez não importa
como, que Barry Fleming temia que a srta, Jaquette contasse
alguns fatos que ele achava que ela ouvira de Isabel Kerr.
Portanto, ela estava em perigo e devia ser protegida. Não sabia
se fora ele quem disparara os tiros; nem sei agora. Quanto a eu
estar mentindo, dou-lhe minha palavra de honra de que tudo o
que acabei de lhe dizer é a verdade. A srta. Jaquette ainda está
aqui, e se tiver tempo disponível, poderá vê-la. Presumo que ela
o provocaria, como o fez ontem.
Cramer olhou-me. Sabia, por experiência própria, que
quando Wolfe dá a sua palavra de honra fala sério. Olhou-me
com os olhos semicerrados, testa franzida, até que comecei a
imaginar se a minha gravata estava torta:
— Pensei que sempre fizesse tudo certinho — disse ele. —
Sempre arrogante. O tiro passou a que distância dela? Trinta
centímetros?
O que eu gostaria de fazer não se pode fazer a um tira,
especialmente um inspetor. A única coisa que podia fazer era
olhá-lo também de esguelha. Ele se levantou e olhou para
Wolfe, de cima para baixo.
— Ainda estou curioso — disse ele. — Soube de muita
coisa, e, é claro, soube de Cather. Você percebeu que, se ele
não tivesse ficado calado, se nos tivesse contado o que lhe
contou, tudo, já teria saído há algum tempo, e Fleming estaria
preso, mas vivo. Lógico que você sabe. Mas você tinha de agir
assim. Para mostrar mais uma vez como é esperto. Como eu
desejo... ora, o que adianta
Virou-se para tomar a direção da porta, mas antes de lá
chegar parou e virou-se.
— Não acha que devia mandar flores para o enterro?
Se ele não tivesse feito aquela piadinha, eu o teria ajudado
a vestir o casaco. O tiro errara por um metro, não trinta
centímetros. Ao ouvir a porta da rua fechar, fui dar uma olhada.
Ele já saíra. Chamei Julie. Estava com uma cara estranha, como
se estivesse tentando dizer o alfabeto de trás para a frente e
não soubesse como começar. Parou, olhou para mim, e a peguei
pelo braço para levá-la ao escritório. Sentou-se na poltrona
vermelha e disse a Wolfe:
— Você sabia que isso iria acontecer. Você sabia.
Olhou-a, aborrecido.
— Não sabia. Não sou astrólogo. Foi Archie, e não eu,
quem lhe deu a idéia. “Arranje um motivo totalmente diferente”,
foi a sugestão dele, e ela fez isso. Brilhantemente. Archie, o que
eu realmente disse a X?
— Você disse: “Quanto ao sr. e sra. Fleming, o melhor que
eu poderia fazer seria criar uma situação que tornasse bastante
improvável que jamais contassem o que sabiam.” Fim da
citação. E que ele seria o juiz da situação.
— Eu disse que ela era uma formiga — disse Julie. — Meu
Deus, ela deve ser... primeiro a irmã e depois o marido. O que
você está fazendo, Archie?
Tirei uma moeda do meu bolso e a joguei para cima:
— Estou decidindo uma coisa que não pode ser concluída
de outra forma. — Inclinei-me para olhar. — Coroa. Ela atirou
nele.
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Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure :
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA LINOLIVRO S/C COMPOSIÇÕES GRÁFICAS LTDA. E
IMPRESSA NA GRAFICA EDITORA BISORDI LTDA., PARA A EDITORA NOVA FRONTEIRA
S.A., EM ABRIL DE MIL NOVECENTOS E OITEN-TA E QUATRO.
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