Revoluçâo e socialismo: notas teóricas

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Michel Goulart da Silva�

Quando se menciona a palavra socialismo, normalmente se pensa no sonho de uma sociedade que não se baseie na exploração do homem pelo homem. Uma revolução mudaria profundamente a realidade de opressão e miséria em que vive a maior parte da humanidade, possibilitando a construção de um mundo que se fundamentaria na idéia “de cada um, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (MARX, s/d, p. 215). Não haveria mais classes, desigualdades ou qualquer tipo de divisão na sociedade e a humanidade entraria numa fase histórica de grandes realizações.

Esses são elementos utópicos recorrentemente citados como forma de caracterizar o socialismo e, embora mostre apenas uma pequena parcela dos aspectos que envolvem o pensamento socialista em seu conjunto, não está totalmente equivocada. Contudo, é um grande erro quando o socialismo ou mesmo o comunismo são resumidos ao seu aspecto utópico. Não é possível negar que

na história do pensamento socialista, sempre existiu uma visão salvacionista quase religiosa de suas propostas, com a crença de que ele sanaria todos os males, resolveria todos os problemas, daria fim a todos os conflitos e aliviaria todos os fardos que sempre afligiram a humanidade (MILIBAND, 2000, p. 99).

Contudo, concordar com essa crítica não é o mesmo que resumir o socialismo, enquanto compreensão teórica e política, a uma teleologia política, limitando-o a um guia moral das ações humanas e deixando de lado suas críticas científicas a vários aspectos da sociedade, como a economia e a política. Contudo, nas últimas duas décadas ganharam vazão no mercado editorial críticas ao socialismo e ao comunismo que estão presas às análises superficiais, enfatizando as utopias de futuro ou os “crimes do comunismo”. Como conseqüência, caso não se faça um balanço honesto e preciso a respeito das

1 Mestrando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

sociedades que foram ou são genericamente chamadas de “socialistas” ou de “comunistas”, pode-se cair no risco de reduzir o socialismo, como o faz Antony Giddens (1999, p. 13), a um “impulso filosófico e ético”, que se concretiza em um regime “ditatorial” e em uma ideologia “superada”. Por outro lado, também como conseqüência de uma critica superficial e ahistórica, conclui-se, como o faz Francis Fukuyama (1992, p. 11), que “a democracia liberal pode constituir o ‘ponto final da evolução ideológica da humanidade’ e ‘a forma final de governo humano’.

Nesses discursos ideológicos, o socialismo não teria “dado certo” em função de seus governos “ditatoriais” ou “totalitários”. Sufocando a democracia e a sociedade, o que significa dizer que sufocaram o mercado e a livre concorrência, eles não teriam permitido o desenvolvimento econômico, político e cultural dessas sociedades. Contudo, não é possível estabelecer uma relação direta entre um regime autoritário e, por exemplo, a falência econômica de um modo de produção, pois essa relação entre política e economia está marcada por contradições, limites e possibilidades das mais variadas. O caso brasileiro, neste sentido, é exemplar. Entre 1964 e 1985, quando o Brasil sofreu as mazelas de uma ditadura, pôde-se verificar um grande crescimento da economia do país, o chamado “milagre econômico”. Esse período, contudo, embora os gráficos e as estatísticas mostrassem um país que supostamente se tornaria uma “potência de médio porte”, mostrou-se incapaz de pôr fim à miséria e à fome, ou melhor, pelo contrário, privilegiou o enriquecimento de uma pequena parcela empresarial da população, em aliança com o imperialismo. Por outro lado, o nazismo deu à Alemanha um enorme impulso industrial econômico usando para tanto não apenas a repressão como o trabalho escravo em campos de concentração.

Portanto, não há qualquer sentido em simplificar essa questão de forma mecânica, como conseqüência fazendo uma análise empobrecida dos processos sociais e, principalmente, apostando numa certa compreensão ideológica. Esse raciocínio mecânico, quando produzido pela direita, aposta em uma equação bastante simples, na qual o capitalismo é “inevitável para os países adiantados” e o socialismo “um sério obstáculo à criação de riqueza e

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de uma civilização tecnológica moderna” (FUKUYAMA, 1992, p. 132). Esse raciocínio associa de forma mecânica o capitalismo à prosperidade, ainda que seja um modo de produção que nunca conquistou um funcionamento estável por períodos muito longos, como o demonstram as últimas crises econômicas, desde a década de 1970. Nesse raciocínio, por outro lado, o socialismo seria possível apenas por meio de uma ditadura, utilizando-se de um Estado repressor, que dominasse todos os âmbitos da sociedade, visando um sonho que seria imposto a todas as pessoas.

Essas compreensões mecânicas da realidade social parecem esquecer que as crises do capitalismo são sistemáticas e principalmente que elas têm sua origem na própria estrutura do sistema de acumulação. Os ideólogos que propagam essas compreensões procuram convencer todas as pessoas que “ninguém mais tem qualquer alternativa para o capitalismo – as discussões que restam dizem respeito a até que ponto, e de que maneiras, o capitalismo deveria ser governado e regulado” (GIDDENS, 1999, p. 53). Essas análises dos ideólogos da direita também deixam de lado os aspectos mais relevantes e, em alguns casos, positivos das experiências “socialistas”, como a planificação da economia e a organização de governos por meio de conselhos.

Se a igualação entre socialismo e ditadura serve para desqualificar qualquer tipo de experiência histórica que aponte para a superação do capitalismo, a própria crítica da reprodução do capital, elaborada por Marx, passa a ser considerada “inadequada”, pois supostamente subestima “a capacidade do capitalismo de inovar, adaptar e gerar uma produtividade crescente” (GIDDENS, 1999, 14). Nesse sentido, um dos erros de Marx teria sido apontar que naturalmente se chegaria ao socialismo, ou seja, “previu uma forma final de sociedade, que estivesse livre de contradições, e cuja realização concluiria o processo histórico” (FUKUYAMA, 1992, p. 96). Mas quem se dedica a ler a obra de Marx percebe com facilidade que poucas páginas de sua produção foram dedicadas a imaginar a utopia comunista. Há, nesse caso, muita confusão entre a produção panfletária de Marx, em polêmica com outras tendências do movimento socialista, e sua obra com preocupações que poderíamos chamar de científicas. Normalmente são nos textos que visam fundamentar programática e teoricamente a agitação política em períodos particulares, como o Manifesto comunista e Guerra civil na França, que se encontram rápidas notas acerca de um possível sistema político comunista.

No Manifesto comunista, em particular, primeira apresentação pública do materialismo histórico, Marx e Engels apontaram as profundas contradições que marcam o capitalismo. Nas interpretações vulgares a respeito do marxismo essas contradições são reduzidas à luta de classes, embora nesse texto, por exemplo, verifique-se

uma das primeiras análises de Engels e Marx a respeito das crises periódicas do capital. Para eles, “cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas” (MARX & ENGELS, 2005, p. 45). Outro aspecto do texto, também negligenciado, tem a ver com o próprio caráter político da luta de classes, ou seja, como afirma textualmente, “toda luta de classes é uma luta política” (MARX & ENGELS, 2005, p. 48). Neste caso, a luta de classes não se limita às disputas entre patrões e empregados travadas no interior da fábrica, fazendo-se necessária uma organização política dos trabalhadores. Para eles, “os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais” (MARX & ENGELS, 2005, p. 51).

Se forem esquecidas as mediações políticas, reduzindo o materialismo histórico à análise das estruturas econômicas, ter-se-á um movimento socialista que se limita a sonhar em alcançar uma nova sociedade, sem apontar as ferramentas para que isso se concretize. Essas formulações do socialismo foram comuns na primeira metade do século XIX e, embora tenham sido superadas por elaborações mais consistentes, durante o século XX e ainda hoje mantém seus reflexos. Eduard Bernstein, propondo-se a atualizar as elaborações de Marx, no final do século XIX, afirmava que o caminho para o socialismo poderia ser feito por meio de reformas no sistema de produção capitalista. Segundo ele, “quanto mais se democratizam as organizações políticas de nações modernas, tanto mais diminuem também as necessidades e oportunidades de uma grande catástrofe política” (BERNSTEIN, 1997, p. 25). Neste caso, o socialismo seria mais uma vontade da humanidade do que um processo histórico com causas objetivas, ou seja, “o desejo das classes proletárias industriais de lograrem uma produção socialista é, para a maior parte, mais um assunto de suposição do que uma certeza” (BERNSTEIN, 1997, p. 93).

Se o socialismo fosse apenas uma suposição, não seria necessária uma organização política para organizar e mobilizar as massas de trabalhadores diante das “condições objetivas” para a revolução. Leon Trotsky, escrevendo sob o impacto dos “Processos de Moscou” e da vitória eleitoral nazista na Alemanha, apontava para uma “crise histórica da humanidade”, afirmando: “as condições objetivas necessárias para a revolução proletária não estão somente maduras, elas começam a apodrecer” (TROTSKY, 1989, p. 12). Para ele, diante da degeneração do Estado soviético e das “traições” dos social-democratas, se colocava uma “crise da direção revolucionária”, onde a ausência de uma alternativa política não ameaçava apenas a revolução, mas a própria humanidade. Se não houvesse uma direção política que organizasse a luta pela revolução e mobilizasse o

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proletariado, nunca haveria revolução em qualquer lugar do mundo.

Se de fato o socialismo é algo que tem a ver apenas com vontades humanas, certamente numa conjuntura marcada por um “ceticismo pessimista”, conforme o pensam os ideólogos da direita, a revolução e o marxismo passariam a ser assuntos do passado. Contudo, para apontar no sentido de que as críticas de Marx ao capitalismo estão superadas, seria preciso demonstrar, por exemplo, que a forma de produção do valor se modificou, ou que a exploração da força de trabalho se dê em outros termos que não os da mercadoria, ou que as crises periódicas do capitalismo têm outra origem que não a diminuição da taxa de lucro. Contudo, “o sistema do capital se articula numa rede de contradições que só se consegue administrar medianamente, ainda assim durante curto intervalo, mas que não se consegue superar definitivamente” (MÉSZÁROS, 2007, p. 87, grifos do autor). No cenário contemporâneo não se tem visto análises que consigam demonstrar uma falência do marxismo como ferramenta teórica para análise da sociedade, mas, pelo contrário, seu aprimoramento ao contexto do trabalho precário contemporâneo.

Por outro lado, embora não seja possível afirmar que a teoria marxista está superada enquanto ferramenta para a análise da exploração capitalista, “a força de trabalho se acha hoje bem mais dispersa em termos geográficos”, sendo possível perceber que está “mais heterogênea em termos culturais, mais diversificada étnica e religiosamente, racialmente estratificada e lingüisticamente fragmentada” (HARVEY, 2006, p. 68). Nesse sentido, a possibilidade de desenvolvimento da consciência da classe trabalhadora está minada pelas formas diferenciadas com que se dão as relações de trabalho, por concessões trabalhistas em troca do achatamento dos salários ou pelo processo de cooptação das direções sindicais.

Não é, pois, possível afirmar que as questões objetivas levantadas por Marx para mostrar a possibilidade da revolução estejam superadas. Certamente estão diferentes e trazem elementos de complexidade maiores que aqueles predominantes no século XIX. No entanto, não há coerência em afirmações que partem da premissa de que o capitalismo nunca será superado. Por outro lado, Marx não está superado. O que precisa ser superada é a compreensão que o reduz a um ideólogo, desconsiderando o conjunto de sua análise da sociedade capitalista. Portanto, ainda que haja alguma beleza nas utopias, não é por meio delas que se construirá um mundo novo ou se chegará a uma revolução. Superar as compreensões morais do socialismo pode ser um caminho para que se consiga pensá-lo como possibilidade concreta de futuro, sem idealizar um mundo novo, e não como utopia inevitável para a humanidade.

ReferênciasBERNSTEIN, Eduard. Socialismo evolucionário. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1997.ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto comunista.

São Paulo: Boitempo, 2005.FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último

homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o

impasse político atual e o futuro da social-democracia. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1999.

HARVEY, David. Espaços de esperança. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2006.

MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. In:In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Obras escolhidas. SãoObras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s.d., v. II.

MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.

MILIBAND, Ralph. Socialismo & ceticismo. Bauru: Ed da USC; São Paulo: Ed. da UNESP, 2000.

TROTSKY, Leon. Programa de transição. São Paulo: Informação, 1989.

Como assistir um filme?Nildo Viana, 2009,

Editora Corifeu