Revista Visão c/ Alberto Fernandes

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Terrenos minados No Ano Europeu da Pessoa com Deficiência, aVISAO foiver como se movimentam, fora de casa, aqueles que estão presos a uma cadeira de rodas. Econstatou a facilidade com que as ruas das cidades se transformam em campos deminas GABRIETA LOURENçO I ì lalta deberma. Alberto Femandes fl príra o canoemplena faixa dero- fl dagem. Quando puxa o travão de ! I mão. a sinfonia debuzinas soa al- ta e afinada atrás desi.Se pudese, sairia a correr do ca.rÌo, para entraÍ naquela porta mesmo à beira damovimentada Es- tradaNacional n.o14. no Porto, e deixaÌ seguir os conduiores impacientes. Mas a sua paraplegia impede-o deter a ligeireza quea localização do Cenho de Saúde de Castêlo da Maiaerige. Alberto,30 anos, precisa queaÌguém lhe vá buscar a cadeira de rodas ao por- ta-bagagens e interompa o trânsitoem sentido conuiírio (para evitarum atrope- lamento). Depois, estápronto pam sarr do carro e "rodar> atéà ponâ. Só atéà porta. I-,á chegado, apenas uma ncadetra- -voadorao o ajudaria a ultrapassar o de- grau que temdedescer e osoutros 11que é obrigado a subir. Misúo impossível, portanto. Uma das mútascomque Alberto Femandes se de- para diariamente - tal comoos maisde 150 mil deficientes motores que üvem em Portugal (nrírneros de 2001). Apesar dese comemorar o Ano EuÌopeu daPes- soa com Deficiência e de2004 ser o lirni- te legal paru todos os espaços estarem .adaptados a quem tem dificuldades de mobilidade (zer cai.xa), nascidades por- tuguesas eú4 quas€ tudopor fazer. Ronaldo, um deficiente físico brasileiro que, na companhia deumaamiga, resol- veu realizar o seusonhode conhecer a Europa, senüu essas dificuldades na pele. .A útima etapa foi Lisboa, sobre a qual não tenho muitoa dizer porque esta cida- depraticamente não temneúuma adap- ta@o a ponadores dedeficiência e fiquei restrito ao hotel",contanuma crónica onJine, depois dedescrever o que viu em Bruxelas, na Suíça e em Paris. "Para nào dizer que não saÍ em Lisboa, na útima 114 tarde fomos â um sàoppirrg, onde Liüane se 'esgoelou' para entrar e sair com a ca- deira derodas porque a rampa deacesso eralongae muito inclinad4 e aindaou- viu alguém dizer que o lugar dos deflcien- teseraem casa. ' Desde quefezesta via- gem já passaram cinco anos, masquem anda oelas ruasnuma cadeira de rodas íou cóm um carrinho debebô continua a encontrar muitos obstáculos. Ainda no mês passado, o GEOTA - GrüDode Estudos de Ordenamento do Tenitório e Ambiente - denunciou a falta decondições para quem se desloca deca- deira derodas emLisboa. Instalações sa- nitárias, caixas muìtibanco e cabinas tele- fónicas dedifrcil acesso, esiações deauto- caro queimpedem a passagem, esiacio- namento abusivo, passeios demasiado es- treitos e faltâdepisos rebaúados nas pas- sadeiras foramasprincipais queixas. Osalertas repetem-se - até porque não se hata apenas deumaquestâo demobi- lidade. Pedro Homem Gouveia. arouitec- to especializado emacessibitidades, subli- úa: nÁs baneiras arquitectónicas no es- paço público não ú acentuam como mútasvezes estão nabase dadesigualda- de de oportunidades no acesso à habita- ção, aoemprego, à educação, aolazer e à participação daúda em comunidade.o Cadeira empinada nMal saí do hospital, emcadeira dero- das, percebi quenão era fácil andarpor aí Existem baneims atnís de barreiras,, recorda Alberto Femandes. Foi de um diapara o outro, lá vãoquase seis anos, que ficou sern força na pema esquerda. Depois defazer e refazer exames, chegou o diagnóstico e.com ele, as más noúcias: tumornamedüla. Com24 anos e um ca- samento recente, o anúncio deuma para- plegia nãofoi fácil de enfrentar. No entanto, Alberto Ìesolveu encarar a bataìha diríria que precisou detravar. Mu- dou de casa (depois de meses à procura ìlsÃo 6de Novembro de 2003

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Terrenos minadosNo Ano Europeu da Pessoa com Deficiência, a VISAOfoi ver como se movimentam, fora de casa, aquelesque estão presos a uma cadeira de rodas.E constatou a facilidade com que as ruas das cidadesse transformam em campos de minasGABRIETA LOURENçO

Iì lalta de berma. Alberto Femandes

fl príra o cano em plena faixa de ro-fl dagem. Quando puxa o travão de! I mão. a sinfonia de buzinas soa al-ta e afinada atrás de si. Se pudese, sairiaa correr do ca.rÌo, para entraÍ naquelaporta mesmo à beira da movimentada Es-trada Nacional n.o 14. no Porto, e deixaÌseguir os conduiores impacientes. Mas asua paraplegia impede-o de ter a ligeirezaque a localização do Cenho de Saúde deCastêlo da Maia erige.

Alberto,30 anos, precisa que aÌguémlhe vá buscar a cadeira de rodas ao por-ta-bagagens e interompa o trânsito emsentido conuiírio (para evitar um atrope-lamento). Depois, está pronto pam sarrdo carro e "rodar> até à ponâ. Só até àporta. I-,á chegado, apenas uma ncadetra--voadorao o ajudaria a ultrapassar o de-grau que tem de descer e os outros 11 queé obrigado a subir.

Misúo impossível, portanto. Uma dasmútas com que Alberto Femandes se de-para diariamente - tal como os mais de150 mil deficientes motores que üvemem Portugal (nrírneros de 2001). Apesarde se comemorar o Ano EuÌopeu da Pes-soa com Deficiência e de 2004 ser o lirni-te legal paru todos os espaços estarem.adaptados a quem tem dificuldades demobilidade (zer cai.xa), nas cidades por-tuguesas eú4 quas€ tudo por fazer.

Ronaldo, um deficiente físico brasileiroque, na companhia de uma amiga, resol-veu realizar o seu sonho de conhecer aEuropa, senüu essas dificuldades na pele..A útima etapa foi Lisboa, sobre a qualnão tenho muito a dizer porque esta cida-de praticamente não tem neúuma adap-ta@o a ponadores de deficiência e fiqueirestrito ao hotel", conta numa crónicaonJine, depois de descrever o que viu emBruxelas, na Suíça e em Paris. "Para nàodizer que não saÍ em Lisboa, na útima

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tarde fomos â um sàoppirrg, onde Liüanese 'esgoelou' para entrar e sair com a ca-deira de rodas porque a rampa de acessoera longa e muito inclinad4 e ainda ou-viu alguém dizer que o lugar dos deflcien-tes era em casa. ' Desde que fez esta via-gem já passaram cinco anos, mas quemanda oelas ruas numa cadeira de rodasíou cóm um carrinho de bebô continuaa encontrar muitos obstáculos.

Ainda no mês passado, o GEOTA -GrüDo de Estudos de Ordenamento doTenitório e Ambiente - denunciou a faltade condições para quem se desloca de ca-deira de rodas em Lisboa. Instalações sa-nitárias, caixas muìtibanco e cabinas tele-fónicas de difrcil acesso, esiações de auto-caro que impedem a passagem, esiacio-namento abusivo, passeios demasiado es-treitos e faltâ de pisos rebaúados nas pas-sadeiras foram as principais queixas.

Os alertas repetem-se - até porque nãose hata apenas de uma questâo de mobi-lidade. Pedro Homem Gouveia. arouitec-to especializado em acessibitidades, subli-úa: nÁs baneiras arquitectónicas no es-paço público não ú acentuam comomútas vezes estão na base da desigualda-de de oportunidades no acesso à habita-ção, ao emprego, à educação, ao lazer e àparticipação da úda em comunidade.o

Cadeira empinadanMal saí do hospital, em cadeira de ro-

das, percebi que não era fácil andar poraí Existem baneims atnís de barreiras,,recorda Alberto Femandes. Foi de umdia para o outro, já lá vão quase seis anos,que ficou sern força na pema esquerda.Depois de fazer e refazer exames, chegouo diagnóstico e. com ele, as más noúcias:tumor na medüla. Com 24 anos e um ca-samento recente, o anúncio de uma para-plegia não foi fácil de enfrentar.

No entanto, Alberto Ìesolveu encarar abataìha diríria que precisou de travar. Mu-dou de casa (depois de meses à procura

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de uma onde pudese clcuìar: nnão sãosó as casas antigas que não tém acesos. üprédios em consúu€o absu'dos") e hojeé nai de um menina de dois anos, trabalhanum escritório e desloca-se num citlïoadaotado. Mais: é membro activo da Ro-dar, Associação Portuguesa de l*siona-dos Medulares. que funciona no Porto.

uÉ uma sorte poder conduzir Não te-úo neúuma outra altemativa paru medeslocar para o trabalho., Todas as ma-nhãs, com uma ginástica treinada, Alber-

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to passa da cadeim de rodas para o ban-co do carro e deixa-a ali na garagem doprédio encostada a um pilar, antes de se-guir viagem. No porta-bagagens leva ou-úa, que os colegas de trabalho farão-o fa-vor de tirar quando chegar a Gaia. E estaa sua rotina diária, mas o cenário ganhatons negros quando tem de tratar de al-gum assunto na rua.-

Alberto deixa o carro no parque de es-tacionamento das Galerias Central Plaza,na Maia, onde consegue circüÌar à >

0 que diz a leiEm Portugal, o Decreto-[ei n.' 123/97deteÍmina a eliminação de baneirasnos edifícios públicot equipamentoscolectivos e via pública. 0 prazoìimi-te é 2004 e â fiscalização cabe à Di-recção-GeÍal dos EdiíÍcios e Monu-mentos Nacionais e às entidades li-cenciadoras. As multas para quemnão cumorir as normas vão de 250 a2 5OO euÍos Dara individuais e de 500a dez mileuros para empresas.Algunsexemolos:

. Passeios rêbaixados naspassadeiras pelo menos até 0,2metros, para que a inclinaçãoseia suave

. A inclinação máximadas rampas é de 6010

. Os átrios devem ser (livresde degraus ou de desníveisacentuadosD

. As fechaduras e os manlpulosdas portas devem estaÍ à alturâde 0,90 a 1,10 metros do chão

. As dimensõês mínimasdo interior dos elevadoresdevem ser de 1,10 metros(largura) e í,40 (profundidade)

. A altura máxima da ranhurapara moedas ou cartão,tal como o painel de maÌcaçãode números dos telefonesdeve ter entÍe 1 e 1,30 metros

. As medidas mínimas de umadas cabinas de câsâ de banhodeve seÍ de 2,20 por 2,20merros

. Numa sala de êspedáculoscom menos de 300 lugâÌetdevem existir no mínimotrês de cadêiÍas de rodas

. Num paÌque de estacionamentoparã 25 a cem carrotno mínimo três lugares devemseÍ para deficientes

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No baiÍÍo dê B€ ica, em Lisboa, ondemoÍa, Teresa tem de ultrapassar muitaidifi0ldad€6 quando sai de (õa:rampas demasiado indinadas degrausnas enlÌadat @ÍÌ06 estacionadosnos passeio6 (raramente Íebãixados) ..Até para entrar no seu pÌédio é nece5sáriamuita {giústicar. Vhlc-lhê a aiuda do pai

> ÌERREN0S lVllNADos

vontade e onde até existe alguém que oaiuda com a cadeira. Sobe no espaçosoeievador e sai para a rua. Quando o sinalfica verde, empina a cadeira para conse-zuir descer o passeio e repete o moü-irento para subir o do lado-de lá da pns-sadeira - a cena é a mesma, vezes semconta, até chegar, uns metos à frente, aoedificio das Finanças. Alberto não enhaLimìta-se a apontar a porta da TesourariaDara mostÍar o difrcil acesso. A rampa es-iá h, mas é tão inclinada que, soziúo,numa cadeira de rodas, ninguém a conse-gue descer ou subir Com ajuda, a tarefaóontinua a ser hercúlea e. depois diso.ainda há um degrau alto pam tanspor.

À procura de uma casa de banhooAntes de sair de casa, tenho de pen-

sar se há ou não acessibilidades pará on-de vou. Muitas vezes, acabo por nào ir.'Alberto vai somando os sítios onde dei-xou de entrar. A Sé do Porto é um delesnNão é desculpa os edifícios serem anti-gos. É preciso adapúìos." E nem.ape-nas as enLradas costumam ser oficels.nlá andei, allito, à procura de uma casade banho. Em nenhuma das que encon-trava cabia a cadeira de rodasn, conta, arir (porque, às tantas, mais vaÌe rir). Járiscou vários restaurantes da sua listaDor esta simples razão.-

Para tentar tomaÌ a cidade mais inclu-siva, a Câmara Municipal do Porto

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criou, em Setembro de 2002. a Provedo-ria do Cidadão com Deficiência. nHámuito oara fazer Não se resolvem de re-pente ãnos de esquecimentou, reconhe-òe o provedor Joáo cottim. Debaixo deolho estão as obras de remodelação doHospital de Santo António e as de pre-paração para o Euro'2004. O provedorsó não foi a tempo do Porto 2001: (Á cl-dade, que já tinha obs!ículos, ainda fi-cou piorn A Câmara,_pelo menos, já temuma rampa na enlÍaoa.

A ex-surfista Marta RafaeÌ, 25 anos,que ficou tetraplégica depois de um aci-dente no mar, dispara sem hesitações: (Apartir do momento em que passei a andaÍnuma cadeira de rodas, a minha cidadeficou reduzida aos cenbos comerciais,porque aí não há buracos, rampas malfeitas ou postes de iluminação e caixotesdo lixo no meio dos passeios.o

Em pÍisão domiciliáÌia

Para as estaústicas foi apenas mais um.Para Teresa foi o fim de uma üda e o iní-cio de uma ouúa muito diferente. Há oi-to anos, um acidente de automóvel, emManteigas, deixou-a paraplégica. Eramcinco passageiros e ditou a sorte que elafosse a única a sofrer consequências. Ameio, flcou o curso de Engenharia Civiì,no lnstituto Superior Técnico de Lisboa,e a maioria dos sonhos que se acalentamaos 20 anos. uÉ tudo uma baneira,, de-sabafa Teresa Gonçalves, hoje com 29.

O pai reformou-se paÌa a podeÍ acom-

panhar. É ele que a ajuda a subir uma dasramDas do Cenho Comercial Fonte Nova,em Benfca, onde Teresa vai com frequên-cia por ficar perto de casa e ser acessíveÌ.nDescer ainda desço, porque vou havan-do a cadeira, mas subir sozinha é impos-sível',, afrrma, enquanto o pai a empuÍrapor um declive fugreme. uQuando fazemramDas não pensam em nós mas em caÌ-riúòs de beÈés ou de supermercado."

Na Eshada de Benfica, a calçada Por-tuguesa não recebe manut€nção frequen-te, o que faz com que o chão se banstor-me num piso irregular de altos e baixos.No caminho pam casa, Teresa val numtrepidar constante. .Áqui, tenho sodepomue o passeio é relativamente larSou,áiz.

-oassando ao lado dos carros ali esta-

cionãdos. No entanto, não são poucas asvezes em que é obrigada a ir pela eúada,ooroue nâo sobra espaço para circuìar.-Pura

atravessar as ruas. e à falta de rebai-xamentos, é o pai que a ajuda, levantan-do a cadeira. Afinal, pergunta Teresa, on-de estão os miÌhares de defrcientes ísicosportugueses, que ninguém os vê? oEsüÍofechados em casa, porque é múto com-pücado andarem na ruan, responde desa-nimada. oAs baneiras no espaço públicocondenam muiÌa gente a prisão domici-liiíria, sem apelo nem agmvo', concordao especialista em acesibilidades, PedroHomem Gouveia.

À enhada do prédio de Teresa é neces-sário transpor um degrau. Ela empurra aporta com os pés enquanto o Pai le- >

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