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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB V.9 nº 1 janeiro/junho 2010 Brasília ISSN – 1518-5494 R  e  v i   s  t  a  d  o P r  o  g r  a m  a  d  e P  ó  s -  G r  a  d  u  a  ç  ã  o  e  A r  t  e  d  a  U n B  |   V  .  9 n º  1  j   a n  e i  r  o  /   j   u n h  o 2  0 1  0 ISSN – 1518-5494 SEMINÁRIOS

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnBV.9 nº 1 janeiro/junho 2010BrasíliaISSN – 1518-5494

R  e vi   s  t  a d  oP r  o gr  am a d  eP  ó  s - Gr  a d  u a ç ã  o em

 Ar  t  e d  a UnB |   V . 9 nº  1  j   an ei  r  o /   j   unh  o2  0 1  0 

SSN – 1518-5494

SEMINÁRIOS

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BrasíliaISSN – 1518-5494

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor 

 José Geraldo de Sousa Júnior 

Vice-Reitor 

 João Batista de Sousa

INSTITUTO DE ARTES

Diretora

Izabela Costa Brochado

Vice-Diretora

Nivalda Assunção

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

Programa de Pós-Graduação em Arte

Coordenador 

Nelson Maravalhas Jr.

REVISTA VIS

Editor 

Nelson Maravalhas Jr.

Editores Convidados

Geraldo Orthof e Roberta Kumasaka Matsumoto

Editores Colaboradores

Fátima Burgos e Pedro Alvim

Conselho Editorial

 Jorge Coli (UNICAMP), Luis Sérgio Oliveira (UFF), Jorge Anthonio e Silva (UNISO), Nelson Maravalhas Jr. (UnB), Maria

Beatriz Medeiros (UnB), Nivalda Assunção (UnB), Roberta Matsumoto (UnB) e Pedro Alvim (UnB)

Projeto Gráfico

Henrique Meuren

Capa

Henrique Meuren

Foto da Capa

Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na improvisação – UnB maio de 2009. Dançam: Eva Maria Maria e Marcos

Menezes

Revisão

Lilian Garcez

  V822 Programa de Pós-Graduação em Arte

Universidade de Brasília

Campus Universitário Darcy Ribeiro

Prédio SG-1

Brasília-DF - 70910-900

Telefone: 55 (61) 3307 1173

Fax: 55 (61) 3274-5370

[email protected] 

• Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização de seus autores.• As imagens de documentação da Universidade de Brasília fazem par te do acervo do Cedoc-UnB.• Disponível também em: <http://www.vis.ida.unb.br/posgraduacao>

VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte – V. 9nº 1 janeiro/junho 2010, Brasília: Programa de Pós-Graduaçãoem Arte, 2010176 p.

SemestralISSN 1518-54941.Artes Visuais. 2.Ar te Contemporânea. 3.Interdisciplinaridade.4. Artes no Brasil. 5. Processos Artísticos.

CDU 7(05)

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SUMÁRIO

EDITORAL

TEORIA E HISTÓRIA DA ARTEA Itinerância dos Artistas: O Olhar Estrangeiro e o Rio de Janeiro do Século XIXAngélica Madeira

A Lógica da Aparência (O Jogo do Sensível Segundo Duchamp)Walter Romero Menon Junior

Matisse, Newman, Bené Fontele:A Paixão como o Re-encontro com a Imagem do DemiurgoVera Pugliese

POÉTICAS CONTEMPORÂNEASElsewhere in Contemporary Art:Topologies of Artists’ Works, Writings, and ArchivesSimone Osthoff 

A Fragilidade como Potência: Precariedade e ImagemLuciana Paiva

As Sombras dos Cantos: Um Estudo dos Espaços Públicos e Privados da CasaCecília Mori Cruz

PROCESSOS COMPOSICIONAIS PARA CENADe Roda Viva a Os Sertões: Aspectos de uma Trajetória TeatralMarianna Monteiro

A Imagem na Improvisação: A Dança do ImprevistoCarla Sabrina Cunha

O Rei Lear , suas Referências e NíveisSuzi Frankl Sperber

ARTE E TECNOLOGIAInterfaces Computacionais: Perspectivas PoéticasCleomar Rocha

Senhas para a Apropriação Dissidente da Tecnologia pela Ar te_HackeamentoDaniel Hora

Entre o Real e o Imaginário: A Poética de uma Experiência VividaGabrielle Patrícia Augusta Corrêa de Oliveira

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RESENHASBlue HeartCHURCHILL, Caryl. London: Nick Hern Book, 1997. 96 p.Laura Alves Moreira

Maciej Babinski – EntrevistasAZEVEDO, Gisel Carriconde. Brasília: CÍRCULO DE BRASÍLIA, 2006, 298 p.Isabel Candolo

What is Dance? Readings in Theory and CriticismCOPELAND, Roger & COHEN Marshal (eds.). New York: Oxford University Press, 1983.582 p.Cínthia Nepomuceno

Oswaldo Goeldi: Iluminação, IlustraçãoRUFINONI, Priscila Rossinetti. São Paulo: COSAC NAIFY e FAPESP, 2006, 316 p.Fabio Fonseca

O Projeto de Rembrand.O Ateliê e o MercadoALPERS, Svetlana. São Paulo: Cia das Letras, 2010, 375 p. Juliana de Souza Silva

O Mundo Codificado: por uma Filosofia do Design e da ComunicaçãoFLUSSER, Vilém. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007. 224 p.Carlos Praude

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EDITORAL

Este número da Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília é osegundo planejado de forma articulada à disciplina Seminário Avançado, estruturado a partir de umconjunto de falas proferidas por professores e pesquisadores de diversas universidades.  O número especial de janeiro/junho de 2008 (v. 7, n° 1) inaugurou a publicação de textos rela-O número especial de janeiro/junho de 2008 (v. 7, n° 1) inaugurou a publicação de textos rela- tivos às palestras oferecidas no quadro da disciplina Seminário Avançado. No período em questão,a disciplina havia estabelecido uma pauta de reflexão sobre “perspectivas para a investigação naarte”, que funcionou como elo entre os diversos temas escolhidos pelos convidados. O momentoera marcado, além disso, pela abertura do curso de Doutorado em Artes na UnB .  Hoje o PPG-Arte/UnB continua a abrigar as linhas de pesquisa de Arte e Tecnologia, PoéticasContemporâneas, Processos Composicionais para a Cena e Teoria e História da Ar te, vinculadasà área de concentração Arte Contemporânea. Durante o primeiro período de 2009, o Seminá-rio Avançado esteve sob a responsabilidade de quatro professores-representantes das linhas depesquisa, que, no presente número, ocupam a função de editores convidados. Os palestrantesconvidados pelos professores-representantes tiveram autonomia na escolha dos temas de suaspalestras, não havendo uma definição prévia do eixo temático.  Outra diferença em relação ao momento anterior foi o estabelecimento de um compromissocom a publicação de textos de estudantes dos cursos de mestrado e doutorado, a partir de umaseleção feita pelos professores dos trabalhos apresentados ao longo da dis ciplina. Este número darevista apresenta, assim, uma amostra das pesquisas realizadas por mestrandos e doutorandos quecursaram, de forma simultânea, o Seminário Avançado em 2009. Decidiu-se também pela inclusãode uma seção de resenhas de livros (que pode estender-se, futuramente, a outros tipos de pro-duções, exposições e diferentes formas de inter venção artística), buscando estimular junto aos es- tudantes a elaboração de textos críticos sobre obras recentemente publicadas e/ou de circulaçãorestrita no Brasil, que têm servido de referência a pesquisas feitas no PPG-Arte.  Os artigos da revista continuam a exprimir uma diversidade de abordagens e pontos de vista,o que, como já ocorria, tende a refletir um triplo viés: análise do estado contemporâneo dasartes, desdobramentos críticos do projeto moderno e releitura permanente do legado poéticoe teórico da tradição. Este segundo número da revista com textos ligados ao Seminário Avançado propõe-se a cumprir uma função de registrar e acompanhar os trabalhos de pesquisa teórica epoética desenvolvidos no PPG-Arte/UnB. Como na edição anterior, buscamos a contribuição depesquisadores externos a esse quadro institucional específico, abrindo espaço, contudo, para oinício de um processo de reflexão sobre a produção intelectual e poética que vem sendo aquirealizada, tendo em vista um aumento do diálogo entre as linhas de pesquisa e um maior conheci-

mento do direcionamento dos trabalhos realizados em nosso meio acadêmico.

Geraldo Orthof Roberta Kumasaka Matsumoto

Fátima BurgosPedro Alvim

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TEORIA E HISTÓRIA DA ARTE

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A Itinerância dos Artistas:O Olhar Estrangeiro e o Rio de Janeiro do Século XIX

ANGÉLICA MADEIRA*

ResumoEste artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa sobre a constituição e organização do campo das artes nas

cidades-capitais do Brasil, com o foco no Rio de Janeiro do século XIX. Trata-se da expansão de um dos tópicos da palestra

proferida no Instituto de Artes da UnB, em 2009. Ao invés de apresentar toda a pesquisa, como na versão oral, preferi

deter-me sobre a questão da modelagem europeia de todo o processo civilizador pelo qual passaram as cidades brasileiras

no século XIX, particularmente notável no Rio de Janeiro, que representou o papel de cidade-modelo, sendo a capital

política e cultural do país.

Palavras-chave: Campo artístico. Artes visuais. Rio de Janeiro. Século XIX.

 Abstract

This article presents the partial results of a research about the constitution and organization of the field of arts in the capitals cit-

ies of Brazil, focusing Rio de Janeiro in the XIXth Century. It devellops a topic from the speech given in the Arts Institute of Brasilia

University, in 2009. Instead of present all the research, as in the oral version, I have preferred to focus on the European modelling

of the civilisatory process in which were involved the Brazilian cities in the XIX th Century, especially remarkable in Rio de Janeiro,

which played the role of model city, as the politic and cultural capital of Brazil.

Keywords: Artistic field. Visual arts. Rio de Janeiro. XIXth Century.

* Angélica Madeira é Doutora em Semiótica pela Universidade Paris VII, professora e pesquisadora do Departamento de

Sociologia da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco – MRE. Publicou os livros Leituras Brasileiras: Itinerários no

Pensamento Social e na L iteratura (Ed. Paz e Terra, 1999) e Descobertas do Brasil (Ed. da UnB, 2001), em parceria com Mariza

Veloso, além de diversos artigos em periódicos nacionais e estrangeiros sobre literatura e cultura urbana. Publicou, em

2005, pela Editora da UnB, o Livro dos Naufrágios – Ensaio Sobre a História Trágico-Marítima, que recebeu o Prêmio Sérgio

Buarque de Holanda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o Prêmio de melhor obra publicada em Ciências Sociais,

pela Anpocs – Associação Nacional de Pesquisadores em Ciências Sociais, em 2006. Sua pesquisa atual trata da Itinerância

dos artistas nas cidades-capitais.

Parte-se aqui do pressuposto de que existe um forte elo entre campo artístico e campo político.A cada mudança de capital e a cada mudança política, há rearranjos de instituições e dos gruposque definem uma época, seu gosto artístico e o estilo de vida das cidades. A hipótese sobre aItinerância dos artistas comporta uma dimensão ao mesmo tempo histórica e sociológica e se

formula com base em documentos e na constatação empírica do fluxo de artis tas, de obras e demodelos de arte que acompanha a migração das capitais. Este texto busca comparar dados e ava-liar a pertinência e o rendimento de categorias de análise já testadas sobre Brasília e que, agora,

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orientam os estudos sobre a Itinerância dos artistas no Rio de Janeiro do período imperial. Foramexaminados parte da documentação disponível nos arquivos, obras literárias e relatos de épocapara compreender a dinâmica do trabalho intelectual e artístico, assim como os procedimentosconcretos, equipamentos e instituições criadas para o funcionamento da vida artística na capitaldo Vice-Reinado e do Império. Examina-se aqui tanto a presença dos ar tistas – viajantes europeusno Rio de Janeiro – quanto os estudos dos artistas brasileiros na Europa. As duas posições evi-denciam a pertinência do tema: o molde e a moldura do olhar brasileiro, a visibilidade possível naforça do olhar estrangeiro.  O interesse sociológico da Itinerância é evidente . Trata-se de um poderoso conceito mediadorque permite pensar a prática e recobre uma camada semântica densa que inclui a experiênciado exílio, do turismo, da emigração por busca de trabalho ou de refúgio político. Para os artistas,a Itinerância tanto pode referir-se à prática artística e aos circuitos institucionais nos quais estaprática está enredada como à atitude existencial exigida dos próprios artistas e que os faz tãodisponíveis para mudanças.  Itinerância ajuda a compreender o quanto o devir profissional de um artista está relacionadoaos circuitos sociais e institucionais que pontuam seu percurso e como ele se desloca dentrodesse circuito, onde se dão os agenciamentos sociais e se estabelecem as regras e as hierarquias.No interior dos circuitos ou em intersecções entre eles definem-se práticas e habitus, as trocaspossíveis nos espaços destinados ao ensino, à exibição e à consagração da arte. A inserção doartista nos circuitos, os grupos aos quais está ligado, permite compreender como o poder sereorganiza internamente ao campo artístico.

As motivações das viagens são diversas. Elas variam de acordo com a inserção nos circuitos,sempre em um duplo viés: por um lado, mudanças históricas que conduzem a rejeições raciaisou de credo, perseguições políticas; por outro lado, acontecimentos que propiciam iniciativas,como missões artísticas e científicas. Embora essas reflexões possam servir para pensar outrasconfigurações sócio-históricas, elas aqui são chamadas a explicar a situação das artes e dos ar- tistas no Brasil dos oitocentos. Como tornar produtivo um conceito como Itinerânci a? Comofazê-lo trabalhar para orientar a pesquisa, tomando como estudo de caso a cidade do Rio de Janeiro no século XIX?

Rio de Janeiro nos Séculos XVIII e XIX

Sabe-se que, ao longo de todo o período colonial, houve um fluxo considerável de informações ede modelos, traçados e livros ilustrados, trazidos por padres, arquitetos, músicos, intelectuais e ar- tífices que viajavam pelos raros núcleos urbanos para exercer seu ofício onde houvesse demanda

de arte.  O Rio de Janeiro já era urbano e belo desde o início do século XVIII. Angariara prestígio e au-O Rio de Janeiro já era urbano e belo desde o início do século XVIII. Angariara prestígio e au- tonomia, uma cidade portuária importante, principalmente na gestão de governantes ilustrados. Oaqueduto da Lapa, erguido entre 1719 e 1724, na administração de Aires Saldanha, levava as águasdo rio Carioca até um chafariz, onde desaguava em dezessete bicas1. Ainda no mesmo séculoXVIII, D. Luis de Vasconcelos, considerado um vice-rei esteta, foi o responsável por encomendas deobras públicas que trouxeram grande embelezamento à cidade, como o chafariz do Paço, o pro- jeto paisagístico, as esculturas e o portão do Passeio Público, obras de Valentim da Fonseca e Silva.Escultor e artífice da pedra, Mestre Valentim foi encarregado de produzir elementos para ornarmuitas outras fontes e praças, pontos da cidade frequentados pelos habitantes e pelos viajantes.Quando, na segunda metade do século XVIII, o Rio se torna a capital do Br asil, mudanças políticas

1. Esse chafariz era localizado onde hoje se encontra o Largo da Carioca.

e um forte terremoto haviam alterado profundamente a Metrópole, que entrava em sua fase maisiluminista e laica, mais imponente e mais autoritária.  A transferência da sede do Governo- Geral de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, en-A transferência da sede do Governo- Geral de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, en-contra numerosas explicações, dentre as quais a de natureza geopolítica: a situação geográfica,mais central em relação à totalidade do território do que a cidade baiana, o que permitiria termaior controle, evitando o desmembramento, como indicavam os conflitos nas zonas de fron- teira com as terras sob o domínio espanhol. Também exaustivamente citado é o argumento, deordem econômica, da importância crescente que foi ganhando o por to do Rio como portal parao escoamento do ouro de Minas Gerais, do açúcar e de outras matérias-primas para a Europa. Aatração paisagística parece também ter sido uma forte razão para a transferência da capital: uma topografia irregular e surpreendente, morros e pântanos, florestas e fontes, altas pedreiras emer-gindo do mar.

O Rio torna-se capital em um momento de rupturas políticas e estéticas importantes ocorridasem toda a Europa e, particularmente em Portugal, na passagem do reinado de D. João V (1697 –1750) para D. José I (1750 – 1777). Neste momento, o poderoso ministro, o marquês de Pombal,comandou mudanças institucionais importantes, principalmente reformas urbanas em Lisboa, atin-gida pelo terremoto de 1755.  Definiu-se então um novo gosto artístico, mais classicizante, que se refletiu sobre a capital daColônia, promovendo a passagem do Rio barroco para a cidade pombalina do século XVIII, umacidade menos católica e mais austera. O centro da produção artística deixa de ser a igreja e osmosteiros e passa a concentrar-se no Paço, sobretudo após a expulsão dos jesuítas, em 1759, ea chegada de D. Luis de Vasconcelos, que governou por doze anos e foi responsável por trans-formações urbanísticas e pelo embelezamento da cidade2. Desde este momento que antecede àchegada da corte portuguesa, nota-se uma preocupação em dotar a cidade de equipamentos ur-banos, espaços públicos que suscitassem a criação de novos hábitos civilizados, como o de passearnos jardins, espaços adequados e agradáveis para a população mais abastada, que começa, então, afrequentar locais protegidos, como o Passeio Público, já que as ruas, tomadas pelos escravos, eraminterditadas às pessoas de bem.  A configuração colonial da cidade se rompe com a vinda da Corte Real portuguesa, em 1808e, mais precisamente, com a elevação do Brasil ao estatuto de Reino-Unido, em 1815. A presen-ça da família real, cuja viagem fora motivada pelas guerras napoleônicas, trouxe consequênciasincontestes do ponto de vista civilizacional para a cidade. Com a comitiva de D. João VI, vieramartistas, arquitetos, cientistas, naturalistas, músicos; objetos de arte como quadros – alguns mestresquinhentistas e pintores barrocos italianos, origem principal do acervo do Museu de Belas Artes –, pratarias, esculturas e uma imensa biblioteca, com 70 mil volumes, de que até hoje se orgulhaa cidade do Rio de Janeiro3. Assiste-se então à criação de várias instituições – embora não de

universidades – exigindo intelectuais, naturalistas e ar tistas. Das instituições criadas, merecem des- taque o Horto Real, atual Jardim Botânico; a Escola Naval, em 1808; a Academia Real Militar, em1811; a Escola médico-cirúrgica, em 1813; a Imprensa Regia e a Escola de Ciências, Artes e Ofícios,em 1815 (VELOSO, M. e MADEIRA, A., 1999, 64).  A partir daí, o Rio tornou-se definitivamente a capital do século XIX brasileiro, sede da Corte,com todas as implicações materiais e simbólicas já exploradas por Norbert Elias (1993) em rela-ção à Europa: modelo de civilização e locus do poder.

Indiscutível marco e ruptura na orientação do campo das artes foi a chegada ao Rio de Janeiro,em 1816, de um número significativo de ar tistas, o que ficou conhecido como “Missão Francesa”.

2. D. Luís de Vasconcelos (1742-1809) foi o 12º. Vice-Rei e Capitão de Mar e Terra do Estado do Brasil, de 1778 a 1790.

3. A Biblioteca Real, formada a partir das bibliotecas de D.João VI e do Conde da Barca, foi aberta à livre frequência do pú-

blico em 1814 e funcionava no hospital da Ordem Terceira dos Carmelitas, atrás da igreja do Carmo, no centro da cidade.

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A partir daí – e tendo que superar fortes impedimentos – redefiniu-se o gosto artístico e a arteacadêmica adquiriu uma hegemonia que duraria os dois impérios, isto é, todo século XIX. As di-ficuldades encontradas pelos artistas franceses Taunay, Lebreton, Debret e Hercule Florence noBrasil eram de ordem política stricto sensu, pois, como artistas acolhidos na Corte, não poderiamdeixar de sofrer as consequências da mudança de regime político acarretadas pelo evento daIndependência, em 1822, que retardou em mais de dez anos a abertura da Academia Imperialde Belas Artes. As dificuldades eram também internas ao mundo das artes, pois embora rarefeitoe disperso, este era composto por artistas de formação erudita como Manuel da Cunha (1737-1809) e Manuel Dias de Oliveira, o Brasiliense (1764-1837), ambos de origem humilde, nascidosno Brasil, mas formados na Europa, o primeiro em Lisboa, o segundo, na Academia de San Luccade Roma. Estes artistas dedicavam-se basicamente à pintura religiosa, de forte travo lusitano nasconvenções iconográficas e na palheta sombria, composta de castanhos e vermelhos fechados, eficaram conhecidos como Escola Fluminense, segundo a consagradora Memória sobre a Escola An-tiga de Pintura Fluminense, lida na sessão de 30 de novembro de 1841 do Instituto Histórico Bra-sileiro, por Araújo Porto-Alegre. Um artista como Leandro Joaquim, aluno de Manuel da Cunha,deixou cenas únicas da vida urbana do Rio, uma série de seis medalhões ovais, anteriores a 1792,representando as lavadeiras no banhado da Lapa, com o aqueduto do rio Carioca já construído,ou os pescadores na praia da Glória, com a igreja ao fundo4.  Como em todas as partes do mundo ocidental, antes da criação de escolas públicas, o ensinodas artes se dava em estúdios particulares, onde os aprendizes de um ofício se exercitavam emdesenho, pintura, gravura, escultura, fundição ou ciselamento, nos gêneros em voga em cada época.Viam-se mais como oficiais/ artífices, ou seja, como pessoas que possuíam o domínio técnico deum ofício, do que como artistas, no sentido que lhes foi atribuído pelo idealismo, de gênios ouseres excepcionais.

4. As seis telas ovais foram pintadas para ornamentar um dos pavilhões do Passeio Público. Todas medem 88 X 114 cm e

estão guardadas no Museu Histórico Nacional.

5. Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal Suivie du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil, publicado em Paris, em 1826.

Denis viveu no Rio entre 1816 e 1820. Em Paris, tornou-se diretor da Biblioteca de Sainte Geneviève, onde recebia seus

amigos e diplomatas brasileiros.

Viagens

Ao longo de todo o século XIX, as viagens tiveram grande importância tanto para a ar te europeiaquanto para a arte brasileira. A voga do exotismo, antes concentrada no Oriente, transfere-seagora para as Américas que, além de paisagens sublimes, possuía também civilizações perdidas, re-ais ou imaginárias. Ferdinand Denis foi um elo importante. Tendo vivido quatro anos no Rio comofuncionário consular, após seu retorno a Paris publicou um compêndio de literatura portuguesae brasileira5 e tornou-se o principal inter locutor dos brasileiros que para lá se dirigiam, como o jácitado Araújo Porto-Alegre, Gonçalves de Magalhães e Torres Homem, intelectuais que tiveramproeminência nas instituições do Primeiro Reinado.

  Neste período, o Rio ficou conhecido como a Meca dos artistas estrangeiros. Atraídos ao mes-Neste período, o Rio ficou conhecido como a Meca dos ar tistas estrangeiros. Atraídos ao mes-mo tempo pela exuberância da natureza, tão decantada e valorizada pelo Romantismo, e por umacorte receptiva às ar tes e ciências em geral, eles chegavam com regularidade, em grupos ou indivi-dualmente, instalavam-se na cidade por um tempo mais ou menos longo, dependendo do interes-se e das condições que encontravam. Para um grande número deles, o Rio era apenas um pontode chegada da Europa e de partida para a exploração de paragens mais exóticas e desconhecidas,ponto de entrada nos Trópicos. A arquiduquesa da Áustria, a cultivada Dona Leopoldina, perten-

cente à casa de Habsburgo, conhecida por seu requinte e sofisticação, atraiu artistas de toda a Eu-ropa – alemães, austríacos, suíssos, suecos, espanhóis, italianos, dinamarqueses e russos – em buscade patronato em uma Cor te recentemente instalada e, portanto, com demanda potencial para oserviço dos ar tistas, pintores de retratos e pintores históricos para registrar os acontecimentos.  A vida intelectual e artísti ca brasileira ficou, a partir de então, fortemente marcada por duas evi-A vida intelectual e artística brasileira ficou, a partir de então, fortemente marcada por duas evi-dências: a centralização na Corte – o Rio era o ponto de chegada e de partida de todos, onde sedesenvolveu mais rapidamente a civilização de gosto europeu, com a abertura dos portos, a entradade mercadorias, o mar, em tudo a cidade era voltada para a Europa – e, em segundo lugar, as viagensem mão inversa, que punham os artistas brasileiros em contato com ideias e tendências europeias.  Se havia artistas e naturalistas europeus acompanhando missões científicas ou diplomáticas,como Burchell, Rugendas, Thomas Ender, Lord Chamberlain ou Maria Graham , havia também osraros artistas brasileiros agraciados com prêmios de viagem nos salões oficiais da Academia, queseguiam todos os anos para a Europa.  O ano de 1815 é marcante no campo político por ser a data da elevação da autoestima dosbrasileiros, momento em que o Brasil se torna Reino-Unido a Portugal e Algarves. Para o campodas artes, 1816 foi marco fundamental: data da chegada dos artistas franceses. Não há consensoentre os historidores sobre o estatuto da “Missão Francesa”. O fato é que a 26 de março de1816, a bordo do veleiro americano Calphe, desembarcam no Rio de Janeiro artistas de muitasespecialidades, sob o comando de Joachin Lebreton. Grandjean de Montigny, Debret, Taunay ePradier são alguns dos que participaram desta expedição, que introduziu uma ruptura em relaçãoà visualidade e à mentalidade tradicionais. Dela resultou um acervo de documentos importantespara a compreensão do período e, particularmente, do olhar estrangeiro sobre o Brasil. Segundointerpretação recente, a vinda dos artistas franceses ocorreu a partir de uma iniciativa deles pró-prios (SCHWARCZ, 2008): um encontro providencial entre o marquês de Marialva, Lebreton eHumboldt, que parece ter comentado, entusiasmado, sobre a receptividade da América para asartes e ciências, a partir de sua observação da vida intelectual da Cidade do México. A hipótesemais provável é que tenham querido se afastar da corte de Napoleão, já derrotado em Waterloo.Organizada a viagem e chegados a seu destino, foram necessários outros entendimentos entre oconde da Barca, o marquês de Aguiar e Lebreton para a fundação da Academia. Ficaram todos tãoenvolvidos com os acontecimentos políticos de 1822 que só conseguiram pôr em funcionamentoa Academia em 5 de novembro de 1826, inaugurando uma sede própria dez anos depois, emprédio cujo projeto era de autoria de Grandjean de Montigny.  Outro fato é que aqueles artistas, acolhidos por D.João VI e seus ministros como pintores earquitetos da corte, trouxeram uma redefinição completa das regras, dos temas e dos códigos es- téticos vigentes – ainda lusitanos e católicos, herança colonial – e conseguiram, não sem enfrentarresistências dos pintores e ar tistas que exerciam suas atividades na cidade, impor a ar te acadêmica

como hegemônica durante mais de um século. Há uma enorme literatura sobre a mutação bruscados hábitos e práticas sociais acarretados pela presença da Família Real na cidade, tornada modeloe parâmetro para as classes burguesas e abastadas. Assim também é notada a presença bastantenumerosa de estrangeiros, o que contribui para a modelagem de um habitus urbano no Rio de Janeiro – o cosmopolitismo, gosto pela adoção de modas – antes que em qualquer outra cidadebrasileira, o que leva Maria Graham a afirmar em seu diário, em 1821, que o Rio era a mais euro-peia das cidades brasileiras.  A capital do Império apropriava-se do novo, modificava seus hábitos, seus trajes, aumentava onúmero de passeios em lajes de granito e de ruas pavimentadas – Ouvidor, Lavradio, Alfândega,Sacramento, Lampadosa – , onde se instalava o comércio de luxo: modistas, joalheiros, chapeleiros,alfaiates, sapateiros, confeiteiros e livreiros. No dizer de um viajante que passou por lá em 1836,o botânico inglês Gardner, a rua do Ouvidor era a “Regent Street”do Rio, encontrando-se nelaquase todos os objetos de luxo europeus ( MELLO-LEITÃO, 1937, 117).

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  A partir da Independência, em 1822, mesmo que dois imperadores portugueses tenham ocu-A partir da Independência, em 1822, mesmo que dois imperadores portugueses tenham ocu-pado o trono, os governantes empenharam-se em organizar a nação em outras bases, chamandoos intelectuais a esta tarefa. Nosso Romantismo não foi nenhum vento de revolta, mas um mo-mento de construção de narrativas oficiais sobre a jovem nação livre. Era ainda muito recente amudança do estatuto colonial. Lê-se, em tudo, um espírito contemporizador, um conservadorismoe um aulicismo que impregnaram a literatura, a historiografia, a pintura e a arte oficial que se de-senvolvia em torno da Cor te e, a par tir do II Império, em torno do próprio Imperador, numa asso-ciação pouco comum entre liberalismo e monarquia. Quase todos os viajantes, artistas, cientistas enaturalistas estrangeiros que visitavam o Brasil eram recebidos na Cor te, pois era tradição daquelaCasa Real valorizar músicos, escritores, naturalistas, artistas, o que torna possível afirmar que, deD.João VI aos Imperadores, está em curso um projeto civilizador, um projeto de anexação culturaldo Novo Mundo ao imaginário do continente europeu.  A independência não poderia deixar de ser um marco político com profundas implicações nocampo do ordenamento jurídico e no plano estético. Era necessário implementar instituições quepermitissem estabelecer uma nova ordem jurídica e criar uma elite capaz de assumir postos admi-nistrativos e políticos.6 Uma instituição responsável pela pesquisa e pela escrita da história nacionalfoi criada em 1836, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB –, que espalhou-se soba forma de sucursais nas capitais das províncias e manteve correspondentes em academias cien- tíficas de várias partes do mundo, levantando, analisando e repatriando para o Brasil documentosimportantes para a escrita da história nacional.

6. Daí a decisão de criar os cursos jurídicos, implantados em 1827 em Olinda e em São Paulo.

7. O Lyceu de ar tes e ofícios foi fundado em 1815 por D. João VI, sendo desativado e refundado, em 1856, pelo Comen-

dador Francisco Bethencourt Silva.

Os Pensionistas do Imperador 

Artistas brasileiros agraciados com prêmios de viagem tornavam-se “os pensionistas do Impera-dor”, com direito a estudar na Europa por vários anos. Iam para Roma ou Florença, onde PedroAmérico ficou oito anos e Victor Meireles, seis. Os bolsistas da segunda geração - Almeida Junior,Rodolfo Amoedo, Pereira da Silva - preferiam Paris, onde frequentavam os ateliers dos artis tas di- tos “pompiers”, como Cabanel, Hanoteau, Bouguereau, Gerôme, Bonnat e Baudry, mestres de trei-no acadêmico eclético e com o gosto pela eloquência, sobretudo no gênero de pintura histórica ealegórica (MADEIRA, A. 1990). Aquela educação artística – tanto o aprendizado técnico quanto amodelagem do olhar – toma a Europa como único parâmetro civilizacional para os artistas, o quelhes provoca, no seu retorno ao Brasil, um profundo mal-estar, sentimentos ambivalentes e umdesconforto diante da estreiteza, ou dos limites, da vida intelectual e artística local, sobretudo após1850, toda ela girando em torno das instituições oficiais apoiadas pelo Imperador.

Lyceu de Artes e Ofícios

Outra instituição importante para a formação dos artistas foi o Lyceu de Artes e Ofícios7, pelo qualpassaram artistas e artesãos de talento. O Lyceu era sustentado por uma sociedade benemérita,Sociedade Propagadora das Belas Artes, e voltado para a educação popular. Seu segundo fundador,o Comendador Francisco Joaquim Bethencourt Silva, embora de origem simples – o pai era umcarpinteiro português – era diplomado arquiteto pela Academia, onde fora aluno de Grandjeande Montigny. Sua preocupação com a instrução pública levou-o a criar cursos noturnos profissio-

nalizantes, voltados para operários, artífices e mulheres. O Lyceu não queria ser um arremedo daAIBA8. Ministrava-se ali o ensino do desenho e da matemática para aplicá-los às várias ramificaçõesda indústria fabril e manufatureira. Também eram organizados eventos, concursos e exposiçõesque incluíam artistas sem espaço na AIBA, considerada um apanágio das elites. De fato, a crer nodepoimento de Porto-Alegre, a AIBA era constituída por um grupo de franceses bastante fechado,com muita dificuldade de assimilar um novo membro, mesmo quando este havia sido aluno de umdos mestres mais prestigiados da Academia, como no caso do próprio Porto-Alegre, aluno de Jean-Baptiste Debret. Debret veio na Missão de 1816 e ficou no Brasil por 15 anos, ocupando o cargode pintor da corte, onde além de imortalizar rituais como a coroação de D. Pedro I, ou a chegadade Dona Leopoldina, em pinturas a óleo sobre telas de grande dimensão, retocava carruagens emontava cenários para a aparição dos monarcas. A título de anotações deixou vários cadernosde aquarelas e desenhos, observando e registrando de forma perspicaz os costumes da rua e osescravos, em momento de nítida transição histórica. O acervo de imagens-documentos deixadopor ele é de suma importância para o entendimento do Brasil, mais precisamente da passagem doBrasil colonial ao imperial (NAVES, 1996).  Porto-Alegre indignava-se com a arrogância dos franceses e com a pouca clareza de suas pre-Porto-Alegre indignava-se com a arrogância dos franceses e com a pouca clareza de suas pre-miações e promoções. Dizia sentir-se perseguido pelos colegas estrangeiros que, injustamente,falavam mal do Brasil e dos brasileiros:

Ressenti-me e repeli com energia tanta ingratidão para com um país que havia acolhido esses estrangeiros,

que os nutria e lhes dava uma posição muito além de seus méritos, e de suas qualidades pessoais. (PORTO-

ALEGRE apud GALVÂO, 1959, p. 63)

  Outros modelos estéticos e gêneros pictóricos foram trazidos pelos vários artistas que visita-Outros modelos estéticos e gêneros pictóricos foram trazidos pelos vários artistas que visita-vam e montavam ateliers na cidade. O principal achado desse segmento da pesquisa, até agora,foi constatar que ao mesmo tempo em que o Lyceu e a Academia, instituições oficiais e de maiorprestígio, congregavam artistas e professores consagrados e recebiam estrangeiros para tempora-das, representando a formalização do ensino das ar tes no Brasil, havia artistas independentes quemantinham estúdios e ateliers livres na cidade, ensinando, pintando, recebendo encomendas – pai-sagens, santos, ornatos, retratos – de um mercado incipiente e nem sempre visível.  Artistas estrangeiros como Facchinetti ou Henri-Nicolas Vinet, apesar de ligados ao Imperadore à AIBA, mantiveram ateliers livres, especializando-se em paisagens, encantados com os hori-zontes imensos, ressaltando o que havia de grandioso e de sublime na natureza tropical. Assim também ocorreu com Biard, que passou dois anos e foi muito bem recebido pela corte, ou comFerdinand Krumholz, que permaneceu por quatro anos no Brasil como professor da AIBA, entre1848 e 1852, a convite de Porto-Alegre, que o conhecera em Lisboa, na Academia Real. Abraham

Buvelot, Adolphe Patermont, Edoardo De Martino são alguns dos pintores estrangeiros que passa-ram pelo Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e deixaram registros de sua passagem.Tudo indica que esta prática dos artistas independentes se sustenta ao longo do tempo. Maispara o fim do século, provavelmente em 1878, chega ao Brasil um pintor alemão chamado GeorgGrimm. Acompanhar seu percurso é um estudo de caso da Itinerância dos ar tistas.  Grimm tentava escapar do autoritarismo e da perseguição aos católicos que se seguiram ao fimda guerra entre Prússia e Alemanha, em 1870, motivo, aliás, de significativo êxodo de ar tistas e in- telectuais insatisfeitos com a situação política de seu país. Nascido em Immenstadt e formado pelaAcademia de Belas Artes de Munique , Grimm é acolhido no Rio de Janeiro por um conterrâneo,comerciante abastado, Friedrich Anton Steckel que, juntamente com mais dois irmãos, mantinhaloja de decoração à rua do Lavradio, número 16. Ali se contratavam serviços para pintura de casas

8. Academia Imperial de Belas Artes.

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e navios, fingimento, douração, decoração, tabuletas; vendiam-se tintas, vernizes e outros apetre-chos de pintura. Grimm trabalha nessa loja até 1882, data em que tem a oportunidade de exporseus trabalhos em uma mostra grande e importante organizada pela Sociedade Propagadora dasBelas Artes, no Liceu de Artes e Ofícios. Das 418 obras expostas, 128 eram de Grimm. Tamanhofoi o sucesso do pintor que uma semana depois recebeu um convite da parte do Ministério dosNegócios do Império para integrar o corpo docente da Academia, cujo diretor, à época, era Anto-nio Nicolau Tolentino. Grimm, de personalidade um pouco rude, severo e franco, vestindo-se comnegligência, segundo seu discípulo Antonio Parreiras, não foi bem recebido pelos colegas. Rompecom a AIBA e, com ele, afasta-se o grupo considerado o mais talentoso, o que afeta o status doensino oficial da instituição. O grupo é formado por Grimm e outros sete ar tistas, dentre os quaisseu amigo Thomas Georg Driendl, Hipólito Caron, Giambattista Castagneto e Antonio Parreiras9.No atelier da Boa Viagem, em Niterói, eles iniciam a prática de pintar ao ar livre. O grupo tem seuapogeu em1884, quando todos os seus membros são premiados em consagradora Exposição daSociedade Propagadora das Belas Artes. Em 1887, atingido por uma tuberculose, Grimm volta àEuropa em busca de melhores condições de tratamento. Morre em Palermo, Itália, no mesmo ano.  Neste final de século XIX, no plano das ideias, os interesses voltam-se para ideologias liberaise progressistas, e tudo o que diga respeito ao passado fica esquecido, considerado como sinô-nimo de atraso e de desleixo. Esta desvalorização da tradição lusitana segue paralelamente àvalorização da civilização francesa, o que atinge seu ápice na transição do século XIX para o XX,quando ocorre um fato conhecido como o “bota abaixo” (1900). A urbanização embelezadora ea consequente mudança nos costumes passam à historiografia como a belle époque carioca. 10 Sãodemolidos imensos casarões coloniais, bem como sobrados imperiais do centro da cidade ocupa-dos pela população pobre, para dar lugar a novas praças e avenidas, palácios de mármore e cristal,pontilhados de estátuas importadas diretamente das fundições francesas. Segundo os jornais daépoca, eram as “picaretas regeneradoras”, que deixavam para trás a imunda e retrógrada cidadecolonial (SEVCENKO, 1985:30).  Esse momento é tematizado na literatura não como uma abstração, mas por meio de umapercepção viva, encarnada, dos contemporâneos que assistiam às enormes transformações quese processavam na cidade, tanto no campo social como na visualidade, na arquitetura,11 ondedominou o ecletismo; em seguida, o art nouveau e, posteriormente, o art-déco, sucedendo-se,superpondo-se, sinônimos de bom gosto e de modernidade (SEVCENKO, 1985). Com a Repú-blica, as elites locais tornam-se mais intolerantes em relação às práticas populares e às tradiçõesafricanas, defendendo, de modo incondicional, a modernização e o reforço de hábitos civilizados, a julgar pelas crônicas da época. A velha cidade tinha seus dias contados, as casacas e cartolas negrasdo Império cediam lugar ao paletó de casemira claro e ao chapéu de palha da Primeira República.

9. Os outros membros do grupo são Domingo Garcia y Vasquez, J.J.França Junior e J.F. Gomes Ribeiro.

10. O “bota abaixo”, assim denominado pelos jornais da época, foi o movimento das grandes demolições que antecede-

ram às reformas embelezadoras e higienizadoras do governo de Rodrigues Alves, com Oswaldo Cruz e Pereira Passos à

frente.

11. O romance de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá , tematiza esta questão de modo patético.

Considerações finais

No Rio de Janeiro do século XIX, dificilmente se pode falar de campo (em sentido sociológicoestrito), na medida em que toda a vida cultur al da cidade estava muito vinculada ao poder político.Não há autonomia e este segmento erudito da arte conhece demanda e produção bastante re-duzidos, poucas escolas e raros espaços expositivos.

  A primeira metade do século foi o momento de formação de uma intelligentsia e de um novoimpulso no esforço para a implantação de um processo civilizador – e modernizador – na cidade.O Rio de Janeiro, sede da Corte, palco das transformações urbanas visíveis, tornou-se o principalmodelo dos novos hábitos, dos novos costumes, difundindo-os por todas as capitais das provínciasdo Brasil, que passaram a compartilhar o ideal de modernização.

Foi construída uma periodização para marcar os momentos de inflexão ao longo da históriada Itinerância dos ar tistas: suas razões, sua rede de relações, suas escolhas, estéticas e políticas. Osrecortes temporais buscam criar nexos entre os dois campos, permitem visualizar a dinâmica dasrelações sociais em ação no “mundo da arte”.  Em todas as etapas da pesquisa, teóricas ou empíricas, foi levado em consideração o modo deorganização dos grupos, o vínculo entre estética e política, com ênfase no conceito de Itinerância,confirmando sua utilidade para pensar, do ponto de vista da sociologia da cultura, a produção es- tética das cidades. Na realidade, se tomarmos o exemplo do grupo de maior prestígio no Rio de Janeiro dos oitocentos – os artistas ex-alunos da AIBA –, observa-se o quanto a cidade e a institui-ção atraem os talentos de todas as partes do Brasil, assim como os que chegam da Europa. VictorMeireles vem de Santa Catarina; Augusto Rodrigues Duarte vem de Portugal, menino, e volta àEuropa para estudar em Paris; Pedro Américo vem de Areias, Paraíba; Rodolfo Amoedo, de Salva-dor; Almeida Junior, de Itu, São Paulo; Belmiro de Almeida, de Minas Gerais; Lucílio Albuquerque,do Piauí; José Maria de Medeiros, de Faial, Cabo Verde; Castagnetto é genovês; Modesto y Brocosé de origem espanhola, como Garcia y Vazquez, natural de Vigo; Eliseu Visconti é de origem italiana;os irmãos Bernardelli, de origem chilena, vêm da Argentina. Araújo Porto- Alegre (1806-1879),primeiro filho do Br asil a entrar como professor na Academia, veio do Rio Grande do Sul. AntonioParreiras e Pinto Bandeira são de Niterói. Nascidos e criados no Rio de Janeiro, há França Júnior,Firmino Monteiro, Estevão Silva, Décio Vilares, João e Arthur Timóteo da Costa e João Zeferinoda Costa (1840-1915), que também estudou na Europa e foi professor da Academia. A cidade ea Academia exerciam grande poder de atração, principalmente sobre os aspirantes a artistas dasregiões mais próximas, como os fluminenses e capixabas.

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A Lógica da Aparência(O Jogo do Sensível Segundo Duchamp)

WALTER ROMERO MENON JUNIOR *

ResumoEste texto pretende analisar a ar ticulação intrínseca entre figuração e enunciação, elucidando-a a partir da analogia pres-

suposta entre três noções básicas: a de paganismo, elaborada por Jean-François Lyotard; a de Mana, observada por Marcel

Mauss; a de Infra-mince, desenvolvida por Marcel Duchamp. Nosso objetivo é evidenciar que a lógica da aparência, se-

gundo a noção de Duchamp, pressupõe necessariamente que a função do enunciado é a da figuração, assim como a da

figuração, a de enunciar. Tal articulação condiciona o uso da linguagem e envolve toda produção de sentido. Tendo em vista

que, no âmbito do uso da linguagem, o pragmático é primordial em relação ao sintático e ao semântico, defenderei que

no ato de enunciar, a linguagem se faz jogo – jogo de linguagem, nos termos de Wittgenstein –, jogo em que aquilo que se

enuncia, o referente, tem sua efetividade, no sentido de Wirklichkeit, como realidade efetiva, em contraposição à realidade

compreendida como potencialidade ou como necessidade. Assim, a efetividade do referente abarca e constitui o que pode

ou o que é necessariamente dito no enunciado como o “isto” que é aí figurado, enquanto figuração de si mesmo. Portanto,

enunciado, referente e conceito, são sinônimos e o enunciar/figurar é o lugar possível da experiência sensível.

Palavras-chave: Infra-mince. Enunciado. Figurar. Mana. Jogos de linguagem.

 Abstract

In this paper I analyse and clarify the intrinsic connection between “figuration” and “statement” using an analogy between three

basic notions: the paganism elaborated by Jean-François Lyotard, the Mana studied by Marcel Mauss and the infra-mince developed

by Marcel Duchamp. Our objective is to show that the logic of appearance, according to the notion of Duchamp, inevitably presup-

poses that the function of a statement is to make a figuration, and equally, that the function of a figuration is to make a statement.

This connection sets the conditions for the use of language and the production of meaning. In language, the pragmatic domain pre-

cedes the syntactic and the semantic: the language itself becomes a game: a language game in Wittgenstein’s terms. All statements

are part of a language game. It is in the context of this game that what we say has its effectiveness, in the sense of Wirklichkeit: the

effective reality rather than potential or necessary reality. Therefore, the effectiveness of the referent encompasses and constitutes

what can be, or is necessarily, said in the statement as the “this” that is figured there as its figuration itself.Thus,the statement, thereferent and the concept are synonymous, and the statement / figuration represents the location of sensible experience.

Keywords: Infra-mince. Statement. Figuration. Mana. Language game.

* Doutor em filosofia pela Universidade Paris VIII, Mestre em Comunicação Social pela UnB, Walter Menon é atualmente

pesquisador colaborador no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Ar tes UnB e na Faculdade de Comunicação

da mesma universidade. Paralelamente, desenvolve trabalho como artista plástico desde 1998.

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I

Nas Notas, Marcel Duchamp prescreve a fórmula para dar a aparência, “os ares”, de uma demons- tração (l’allure d’une démonstration) a um texto que faz referência a uma obra. Ele apresenta estafórmula aprofundando sua estrutura prescritiva quanto à composição mesma do texto, a fim dedemonstrar a ligação estreita entre enunciar e tornar visível. Duchamp inventa a noção de lógi-ca da aparência para mostrar a similaridade entre a composição do texto e aquela do quadro,demonstrando, pela estreita ligação entre enunciar e tornar sensível, que a pintura apenas pode“aparecer” na condição de analogia entre os diversos eventos plásticos e as formas da lógica do texto: axiomas, conclusões necessárias e assim por diante.

Dar ao texto os ares de uma demonstração ligando as decisões tomadas por fórmulas convencionais de

raciocínio indutivo em certos casos, dedutivos em outros. Cada decisão ou evento da pintura torna-se ou

um axioma ou uma conclusão necessária, segundo uma lógica da aparência. Essa lógica da aparência será

exprimida somente pelo estilo (fórmulas matemáticas, etc.) e não retirará da pintura seu caráter de mistura

de eventos imaginados plasticamente, pois cada um desses eventos é uma excrescência da pintura original.

Como excrescência o evento permanece somente aparência e não tem outra maneira de se apresentar que

não seja a de significação de imagem (contra a sensibilidade plástica). (DUCHAMP, 1999 : 47)

  Na lógica da aparência, a figuração e a enunciação funcionam como um único dispositivo es-Na lógica da aparência, a figuração e a enunciação funcionam como um único dispositivo es-sencial que permite a manifestação de arranjos circunstanciais constitutivos da linguagem. Deixa-se aparecer, nos enunciados afirmativos e descritivos, a função prescritiva que condiciona os ar-ranjos entre elementos plásticos de uma obra. Deixa-se aparecer, em outros termos, o acordoentre linguagem e experiência sensível, pelo qual tais formas de enunciados deixam efetivamentever o que não pode ser visto fora do enunciado, quer dizer, ver uma obra de arte. Esta fórmu-la duchampiana para configurar uma obra particular – cuja propriedade é a de representar asmaneiras de “fazer ver” pela linguagem – apresenta-se sempre por um processo de abstraçãode suas regras de enunciação em uma figuração singular, cuja universalidade, paradoxalmente, éincontestável.  Evento singular de atualização de um arranjo de elementos plásticos, derivados de um conjuntode arranjos possíveis de enunciados, a arte torna visível a dinâmica de tornar visível esta dinâmicae, por conseguinte, expõe (torna visível) a presentificação do arranjo de elementos linguísticos,como o “tornar visível” da articulação estrutural da figuração. É um bricolage, um trabalho demontagem que se faz sem bricoleur , sem o montador; um arranjo que obedece às regras deassociação de ideias, semelhantes àquelas que regem a magia, segundo observou Marcel Mauss.Este trabalho pode-se denominar associação entre signos por regras de afinidade, de simpatia,

sendo que estas regras mesmas podem ser consideradas signos de ligação entre signos. Signosque têm por função principal significar as propriedades específicas de cada signo nos contextosde suas articulações e , assim, promover-lhes o aparecer nas formas “sintéticas” que caracterizamo que Charles Sanders Peirce chama de s ignos-pensamento (PEIRCE, 1995: 269). Uma lógica dossignificantes que se produz no interior mesmo da estrutura dialógica da linguagem. Nesta lógica,desprovida de todo controle lógico por parte dos interlocutores e na qual a diferença subjetivaque existe entre eles nada inclui, os interlocutores são reduzidos a signos, cujo significado é o deserem meras instâncias implicadas no jogo de “se deixar falar pela linguagem” e cuja função é a depromover a comunicação entre estas múltiplas instâncias. Assim, as associações, as combinaçõesdos significantes, concretizam-se por afinidade em uma composição; tornam-se, pela afinidade desuas formas fonéticas, figurações das “ações” que evocam eventos no processo de concretizaçãodo fluxo contingente da vida. A afinidade que ordena a linguagem é a mesma que comanda amagia. A fórmula de Duchamp se aproxima, desta maneira, daquela da magia pensada por Marcel

Mauss e que, acreditamos, encontra-se na raiz da forma performativa de enunciação (AUSTIN,1990)1. À medida que todo enunciado demonstrativo, afirmativo, etc. pode ser reduzido à suaforma performativa, e se esta se compor ta como uma formulação mágica, então, todo enunciado traz em seu bojo um poder de encantamento, isto é, de fazer compreender e sentir, de maneirainelutável, o que nele está dito.

O encantamento se faz pela palavra que atravessa o locutor e atinge o auditor. Para a magiafuncionar, basta que cada um assuma a posição ideal daquele que crê no poder da palavra de cr iareventos unicamente ao ser pronunciada conforme uma formulação precisa. Eis aí a razão pelaqual as posições no circuito comunicacional são estruturalmente equivalentes; e eis aí, também,porque este circuito constitui, basicamente, uma experiência comum compart ilhada na palavra, in-dependentemente dos indivíduos, quer dizer, independentemente de uma expressão qualquer desua singularidade. A repetição ritualizada da palavra implica a possessão pela palavra que impõeum único e mesmo lugar de fala a todos os interlocutores. Este é um jogo que ocorre sem a par- ticipação dos jogadores, pois o jogo estético da linguagem consiste em realizar a experiência dese deixar jogar pelo jogo. Os jogadores introjetam as regras representadas no lugar de fala idealcomo forma de vida autônoma, livre de toda coação, salvo a de “gozar” da liberdade de escolherfazer parte do jogo, “gozo” imposto pelo fato de que não há vida “autêntica” fora da experiênciaestética primordial de criar mundos no compartilhar da linguagem.2

  Podemos observar o mesmo, a mesma estrutura performativa e seus efeitos, tanto na arte abs-Podemos observar o mesmo, a mesma estrutura performativa e seus efeitos, tanto na ar te abs- trata, na poesia concreta ou nas experiências fonéticas de Duchamp e dos dadaístas, como nosgestos e materiais improvisados de Jackson Pollock, nas assemblages surrealistas, nas ins talações, naarte computacional, etc. Os exemplos são intermináveis, visto que a regra é a mesma para todos:não há regras externas ao jogo e estas se fazem sozinhas à medida que o jogo é jogado.

1. Originalmente, performativo designa um tipo de enunciado no qual o que se diz realiza-se como uma ação. Entretanto,

Austin pensa todos os outros casos de enunciado: declarativos, constatativos, etc, como tipos de performativos. Desta

forma, todo enunciado seria um ato de f ala.

2. A ideia de uma pluralidade de mundos possíveis remonta a Leibnitz, entretanto é o filosofo Nelson Goodman que

desenvolve esta noção no sentido do pragmatismo contemporâneo, no qual não há um mundo original com suas versões,

mas somente as versões (ver versões e visões in GOODMAN, 1995: 38).

II

Quero, a partir de agora, analisar este tipo específico de jogo de linguagem, em que criar regrasfaz parte do jogo, em termos de uma narrativa que narra a si mesma, isto é, cuja essência consisteem contar a sua própria história. A cada atualização da magia da palavra no ritual da fala, não ésomente o auditor que sofre o encantamento, o mágico/locutor também é tomado pela fórmulamágica, ele também é um “canal”, um médium pelo qual atravessam os significantes que se ar ticu-lam em narrativas, nas quais se f azem figurar pela dramaturgia de personagens emblemáticos. Es- tes personagens são a evocação da maneira correta, paradigmática, de contar o relato, quer dizer,de deixar as regras do jogo de linguagem jogarem o jogo da narrativa a cada situação de narração.Tal dramaturgia reproduz, a cada vez, segundo um ritual estrito, o papel de um único e mesmo

personagem como o “diferente” que encarna as regras do jogo, isto é, da narrativa, intrínsecas aoritual da palavra que faz aparecer o mundo. Seguindo o relato no sentido do seu fim último, que éo de reproduzir as regras da narrativa a cada narração, o narrador aponta tais regras como as leisintrínsecas ao mundo que ele quer figurado na narrativa.  Encontra-se aqui a noção de “paganismo”, desenvolvida por Jean-François Lyotard. Este autorpensa que, no paganismo, a narrativa se caracteriza por uma ausência de autonomia em relação

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aos papéis que devem ser representados na narração, e o narrador, segundo este modelo, figurainvariavelmente inscrito na narração. Ele é “narrado” como parte da narrativa, enquanto esta énarrada por ele da maneira que ela lhe foi transmitida: narrador e personagens da narrativa seconfundem. O narrador é, portanto, um ponto de passagem (point de relais) por onde transcorrea narrativa, intrínseco ao narrado e, ao mesmo tempo, atravessado por este.

[...] Pelo contrário, no paganismo, existe a intuição, a ideia (se eu posso dizer, no sentido quase kantiano do

 termo) inversa. Isto é, a ideia de que nenhum enunciador não é nunca autônomo. Que todo enunciador é

sempre ao contrário alguém que é primeiramente um destinatário, e eu diria: um destinado. Eu quero dizer

com isso que é alguém que, antes de ser enunciador de uma prescrição, foi ele mesmo o receptor de uma

prescrição, da qual ele é simplesmente o relais, e que foi também o objeto de uma prescrição. (LYOTARD e

THÉBAUD, 1979: 78)

  Entretanto, se seguirmos esta descrição de Lyotard do paganismo, chegaremos a identificar umanoção de liberdade que se encontra na aderência intencional do narrador face à narrativa que onarra. O narrador está completamente livre da responsabilidade de sua posição. Ele se liber ta da tarefa de se representar na origem do narrado, tornando-se autônomo em relação à própria in- tencionalidade de fazer do ato de narrar o significado da expressão de sua individualidade. Ocuparo lugar do narrador significa, em última instância, delegar ao “outro”, de palavra, o trabalho quelhe é próprio, isto é, o tr abalho de narrar. Ao introduzir a narrativa, o narrador apresenta-se comoaquele que repete a intenção de um “outro” narrador originário. O narrador atual identifica-se,desta maneira, com aquele “outro”. Ele hipostasia-se em uma origem que, para ser a origem donarrado, não pode estar contida na narrativa, mas que, entretanto, não pode deixar, ao mesmo tempo, de nela estar contida. Assim sendo, o nomear do narrador originário acontece efetiva-mente dentro da narrativa: “um tal que contou esta história, etc.” Assumir a posição do narradorsignifica, portanto, “tornar-se” o “outro” pelo qual o narrado foi transmitido no transcorrer danarração. O testemunho original dos eventos, seu primeiro narrador, desaparece incorporadona narrativa para dar lugar a uma origem mítica. Consequentemente, o narrador é o destinatáriode sua própria palavra, ele é sempre e antes de tudo destinatário dele mesmo. A prescrição damaneira de contar os eventos – a “lei” da narrativa – vem de outro lugar, do “outro”, e ela é incor-porada pelo narrador como sua própria voz, porque este aceita ser seu destinatário. Ele não podefazer de maneira diferente, sendo que, para que possa ser o narrador, deve estar necessariamenteidentificado ao “outro” ao qual a narrativa foi contada na origem, e que, por conseguinte, é o nar-rador originário. Ele se identifica, porém, sem que seja preciso um movimento intencional para secolocar no lugar do “outro”, simplesmente porque há apenas o “outro” como posição possível nanarrativa. Tendo que necessariamente assumir a posição de destinatário da palavra do “outro”, o

narrador torna-se o “outro da fala”, que não é, de maneira nenhuma, o “outro que fala”. Dito deoutra forma, o narrador torna-se simplesmente o ponto de passagem da temporalidade intrínsecaà dinâmica da linguagem que se conta ela mesma.  Neste sentido, a descrição da maneira dos Cashinahua narrar, feita pelo antropólogo AndréMarcel d’Ans e comentada por Lyotard, é exemplar. Ao situar a estrutura pagã da narrativa emuma coletividade não ocidental e que, portanto, não concebe uma noção de narrativa que privi-legia o polo do narrador – no nosso esquema dialógico, aquele do enunciador – como sendo opolo da “autoridade de fala”, Lyotard reencontra a possibilidade de um modelo de utilização dalinguagem não “intencional” e não “utilitária”.

Eu tomarei como exemplo o caso dos Cashinahua que são os índios do alto Amazonas dos quais trata André

Marcel d’Ans em o Dit des vrais hommes. É uma coleção de relatos que são de vários tipos, uns são de cunho

sagrado, transmitidos com uma grande rigidez e de uma maneira cantada e ritualizada. Os outros são, pelo

contrário, relatos profanos que são contados a par tir de um pedido e o seu narrador multiplica os contornos

retóricos para que eles ganhem ainda mais relevo. Existem, então, os dois extremos. Porém, em todos os

casos, cada vez que uma historia é contada nesta etnia, o narrador começa sempre dizendo “eu vou contar

a historia de X (e aqui consta o nome próprio do herói da história) tal qual eu sempre a escutei”. “E agora,

acrescenta ele: escutai-a.” Por conseguinte ele se apresenta sem dizer s eu próprio nome, ele não faz mais que

relançar a narrativa, ele se apresenta ele mesmo como tendo sido, primeiro, o narrado de uma historia, da

qual, ele é atualmente o narrador.

Todo narrador s e apresenta como tendo sido um narrado: não como autônomo, mas pelo contrário, como

heterônomo. A lei de sua narrativa, se eu posso falar de lei neste caso, é uma lei que ele recebeu. É somente

no fim da narrativa – que ele acabará sempre dizendo: “aqui acaba a história de X; aquele que vo-la contou

é Y –, que son nom est donné , ou plutôt son double nome: seu nome cashinahua e seu nome em por tuguês ou

espanhol a depender se ele tiver sido registrado no Brasil ou no Peru, pois o território está sobre a fronteira.

É somente neste momento que seu nome de narrador, seu nome próprio, será dado. Após, mas não antes. E

o que é surpreendente é que quando um dos seus auditores retomar, na sua vez, novamente, esta narrativa,

ele “esquecerá” o nome do precedente narrador, pois o nome do narrador que o precede não é menciona-

do. “Ouviu-se sempre dizer”. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 79-80)

  Ora, seguindo o comentário de Lyotard, verifica-se que não há, portanto, polarização do dis-Ora, seguindo o comentário de Lyotard, verifica-se que não há, portanto, polarização do dis-curso na narrativa pagã. Se, por um lado, a linguagem é um jogo que se joga a dois, por outro,parece claro não existir nenhuma posição exterior ao jogo a par tir da qual se poderia fazer con-siderações a seu respeito a fim de ditar, segundo critérios universais, quais seriam as boas regras ese elas estariam sendo, efetivamente, aplicadas corretamente. Este “olhar” privilegiado é um efeitoda utilização da linguagem. Por sua própria natureza de linguagem, ele é apenas uma das versõespossíveis produzidas pela utilização das variáveis intrínsecas às regras do jogo de linguagem. Orelato se faz independentemente da intenção subjetiva dos diferentes narradores, cuja função é,unicamente, a de manter a narrativa em movimento. Os sujeitos estão desde sempre sujeitos àlinguagem, à sua passagem. Eles são os médiuns pelos quais a fala se faz modular na encarnaçãodas variáveis de suas regras. Assim, no ato de sua pronunciação, a fala fixa as formas distintas deprescrever sua própria utilização: faz-se necessário contar a história de um outro – o herói – talqual ela foi contada por um outro a mim; aquele que conta a história é aquele a quem a históriafoi contada. O “aquele” é sempre o “outro”. Faz-se necessário que seja um outro e não eu queconte a his tória, porque o “outro” que fala por “mim” é sempre a fala ela mesma, isto é, a li ngua-gem na sua forma dialógica que fala, a cada vez, através de um “outro” que é o “eu” que podeapenas falar por “outro”. Estabelece-se, assim, a heteronomia estrutural da linguagem. Ora, estavoz “diferente”, da diferença que se faz a cada vez que se dá o narrar, esta “lei” da narrativa pagã,consiste, com efeito, em ser a dinâmica mesma da linguagem: dinâmica de enunciação e, portanto,

de autonomia de fala, de uma fala livre de limites impostos pela subjetividade dos interlocutores eque faz com que a linguagem “fale” por eles.  Ao deixar-se falar pelo “outro” hipostasiado da linguagem, o destinatário torna-se o modelo daautonomia, exatamente da maneira pretendida pela forma de vida teorizada pela arte desde oséculo XIX, encarnada primeiramente na figura do gênio romântico e, depois, na sociedade idea-lizada das vanguardas. Esta forma de autonomia, entretanto, é a atualização daquela outra – maisfundamental no que concerne ao uso da linguagem – representada pela figura emblemática domago, cujo gesto originário da criação de um mundo à imagem da sua palavra é o gesto funda-mental de todo jogo de linguagem. Este ato de autoengendramento do mundo pela fala reflete aordem de associações por uma afinidade entre signos que se transformam em lei universal pelaforça de sua repetição encantatória. “Compreender que as leis são apenas o fundamento comumda natureza e da arte”, como diz Klee (1985: 51), ecoa a ideia de que na articulação de signos a“norma”, a “lei” ou as “leis” intrínsecas a esta ar ticulação refletem certa ordem comum ao mundo

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e à linguagem. O mundo, entendido como o conjunto de referentes possíveis de serem enuncia-dos, implica a maneira pela qual a linguagem é utilizada, isto é, a sua função produtiva, ou melhor,construtiva, no sentido da poiesis grega.  Se, por um lado, a produção de significação resulta sempre de uma experiência comum dalinguagem, faz-se necessário, por outro, que os interlocutores aceitem a lei da pragmática da lin-guagem como norma interna a cada interlocutor. É necessário que eles aceitem a heteronomia,o “outro” da linguagem, como única forma de autonomia. Assim, pensar a u tilização da linguagemcomo ação heterônoma ou autônoma resulta no mesmo. O polo do sujeito da enunciação per-manece presente no discurso apenas através da intencionalidade de su a reivindicação de pertençaao polo do destinatário, ou seja, ao polo do que Lyotard denomina tradição.

[...] Estamos em um modo de transmissão dos discursos que se faz insistindo sobre o polo da referência

(aquele que fala é alguém que foi “falado”) e sobre o polo do narratário (narrataire) (aquele que fala é aquele

à quem se falou). O sujeito da enunciação não espera de nenhuma maneira reivindicar sua autonomia em

relação ao seu discurso, ele reivindica, muito pelo contrário, pelo seu nome próprio e pela história que ele

conta, seu pertencimento à tradição. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 81)

  Para que a narrativa possa se transmitir, o enunciador deve, necessariamente, reduzir seus dese-Para que a narrativa possa se transmitir, o enunciador deve, necessariamente, reduzir seus dese- jos a um só: o de pertencer a uma tradição. Logo, pode-se dizer que há um ato de vontade, umaescolha. Isto é, a escolha de submeter seu papel de enunciador à força do desejo de ser o destina- tário, o herdeiro de uma história, na qual ele está inserido como enunciador. O que ele enuncia, nomomento em que conta a história, é que sua posição de enunciador sempre foi legitimada pelofato de que ele é o destinatário da narrativa e, logo, destinado a ocupar, a representar o papel denarrador. Ele é o destinatário porque ele mesmo se enuncia, e se anuncia, nesta posição, a cadavez que narra a história. Sendo os polos do enunciador e do auditor transformados pela força danarrativa em pontos de passagem, pontos de relais, não há possibilidade de julgar verdadeiro oufalso o que é narrado. É completamente impossível encontrar alguma relação de correspondênciacom o mundo externo ao narrado para tentar fazê-lo corroborar a narrativa, assim como nãohá critérios externos para julgar a maneira mesma desta ser narrada; o mundo, na sua essência,confunde-se com a narrativa, não podendo existir fora da s ua lógica. Posto que o narrado é “pos-suído” por sua destinação, determinado por sua “lógica interna”, de se dizer por si só, as diversasinstâncias do narrado, os destinatários que estão concernidos por esta “lógica”, ou seja, que devemfazer viver o narrado são e estão, por sua vez, simultaneamente, “possuídos” e “em possessão” desua força de transmissão.  A “lei” interna da narrativa, sua força de transmissão, caracteriza-se por ser um conjunto deprescrições de modos de se narrar. Este conjunto de prescrições tem por finalidade reduzir to-

dos os sujeitos de fala à única instância do destinatário. As prescrições tornam-se “leis” internas ànarrativa pelo efeito da crença necessária na coesão do conteúdo narrado, reiterada pela formaritualizada da narrativa. Faz-se necessário crer que os referentes articul am-se entre si, obedecendoàs “leis” da narrativa, inscritas aí como em sua própria “natureza”. Na maneira de narrar os refe-rentes, no modo em que estes aparecem na narrativa, encontram-se reproduzidas as tais “leis” queregem a “natureza” dos referentes. Todavia, a maneira de reunir os referentes, articulando o narra-do na narrativa, é, por definição, a imagem mesma do princípio de autonomia na sua autogênese,à qual os destinatários são incorporados ao incorporarem a crença nesta. Na maneira de contar, onarrado se fixa na crença de sua eficácia, à medida que ela se reproduz como “lei”, a despeito devariáveis mais ou menos circunstanciais de transmissão.  Se o efeito da narrativa é, portanto, o de produzir no destinatário a crença em sua condiçãode destinatário das “leis” de transmissão do narrado – entendidas como “leis” estruturais da or-dem na qual os referentes se articulam – não é menos verdade que seja preciso crer na eficácia

da narrativa em produzir tal crença. Faz-se necessário, então, que aquele que ocupa a posição dedestinatário aceite ser o dispositivo de transformação de enunciados prescritivos em enunciadosafirmativos, nomeando-se a si mesmo como o destinatário do poder intrínseco à narrativa de secontar, ela mesma, por intermédio de “sujeitos/relais”. O “artista”, por conseguinte, encontra-sena posição prototípica do destinatário, concebido como o dispositivo de transformação de enun-ciados performativos em enunciados assertivos, transformação cujo efeito “mágico” é a criaçãoda experiência sensível de si mesmo, do outro e do mundo, pela ação da palavra. O destinatário,“fazendo ver” (figurar) o que o narrado deve fazer crer que ele pode “fazer ver”, deixa aparecera dinâmica de enunciação como dinâmica de criação de um lugar de partilha narrado. Este lugar,vivido como o único real possível, renova-se permanentemente em novas fórmulas de narrar, emnovas versões deste real. O destinatário/artista inventa a partilha do real no ato de narrar pelarepetição de fórmulas de dizer, no sentido da tradição de Lyotard, que são modos de fazer, isto é,de produzir a diferença.

[...] Eu considero que esta tradição não significa de forma alguma, como se diz geralmente, uma relação com

o tempo que seria uma relação de conservação, na qual o que seria importante seria guardar as coisas para

preservá-las de uma usura temporal e de recusar o que é novo. De fato (André Marcel d’Ans insiste), o na-

rrador dispensa tesouros de invenção retórica e poética indo, claro, até os jogos de palavras, aos traits d’esprit ,

e mesmo até a mímica, para animar sua narração. Neste nível, quer dizer, a um nível que nós chamaremos

“artista”, estes indígenas são extraordinariamente produtivos e eles são perfeitamente capazes de distinguir

os bons narradores dos medíocres. O traço pertinente não é a fidelidade, não é porque o narrado está bem

conservado que se é um bom narrador, pelo menos para as narrativas profanas. Pelo contrário, porque o

narrado se restabelece, porque ele se inventa, porque nele se introduzem episódios diferentes que delineiam

o motivo sobre uma trama narrativa, é que ela permanece estável. Quando nós dizemos tradição, nós pensa-

mos identidade sem diferença. Ora, de fato, existe evidentemente diferença, os relatos se repetem, mas não

são jamais idênticos. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 82)

  Não se trata, por conseguinte, de conservar os relatos da tradição pela repetição. Trata-se, an-Não se trata, por conseguinte, de conservar os relatos da tradição pela repetição. Trata-se, an- tes, de fixá-los, cada vez sob uma fórmula diferente, em uma figuração derivada de um conjuntocompletamente plausível de variações do mesmo conteúdo. Este conjunto de variações – quepoderia caracterizar a deformação do relato em função dos aspectos subjetivos que aí são adicio-nados – adquire sua verossimilhança pelo fato de se encontrar, ele mesmo, previsto na dinâmicade narração que estrutura o relato. O relato tem por finalidade dar vida à partilha da experiênciaestética de suas versões como forma de vida coletiva de produção de identidade.  Uso aqui o termo “forma de vida”, conservando e ampliando a noção de Lebensform de Wit- tgenstein (2001: § 23). Uma forma de vida é, neste sentido, o falar uma língua, mas também – no

contexto de nosso trabalho – as prescrições de como o narrador deve narrar tal passagem, ou,ainda, a decisão sobre se esta passagem deve ou não fazer par te do relato. Tais prescrições que ,em última instância, derivam da maneira pessoal de narrar, do “estilo” ao qual o narrador devepermanecer fiel para poder fazer o narrataire, o narrador potencial, crer que a sua maneira denarrar é intrinsecamente essencial ao desenrolar do relato.  O “traço pertinente” mencionado por Lyotard parece ser o “como” a fidelidade à tarefa denarrador se mantém intacta pela sua inscrição na ação do relato através do papel do narrataire,a saber, do destinatário, revelando, assim, a trama narrativa na destinação do narrador. Esta tramaurde-se à medida do desenrolar do relato. O “traço” se impõe pela coerência estrutural e estru- turante do relato como o relato da legitimidade daquele que ocupa o lugar do narrador, pois esteestava destinado à tarefa de narrar. O relato, o narrado, consiste, portanto, em “narrar-se a si mes-mo” a partir do lugar do narrador, pois o relato não se pode fazer sem um destinatário que contaa história de sua destinação. Paradoxalmente, o estilo, a maneira de dar forma ao relato, instaura

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a linha de coesão entre a diversidade de versões possíveis. O narrador imprime sua marca norelato, mas somente para conservar-se como traço de união entre o relato e o destinatário queo narrador tem sido, desde sempre. O narrador repete, assim, o esquema fonoauditivo intrínsecoaos atos de fala, pelo qual o sujeito da enunciação e o sujeito audit or são unidos. A estrutura aquirealçada é a da prosopopéia original, apontada por Humboldt e atualizada na antropologia filo-sófica de Jacques Poulain (2001: 80-91). Todo ato de fala, toda enunciação, conserva e se articulaa partir da estrutura audiofônica originária da linguagem: o fato de que falar, em última instância,significa projeção e recepção de sons simultaneamente, que nosso cérebro interpreta sempre naforma de diálogo. Elimina-se a diferença entre a experiência de contar e aquela outra de escu- tar o relato. O relato é narrado através da exper imentação destes dois polos como uma únicaforma de vida compar tilhada, visto que são intercambiáveis. Em consequência, o “traço”, o estilo, torna-se forma de vida no movimento circular de sua afirmação – a tautologia fundamental quedetermina todo ato de fala – escandido pela repetição de suas modulações.  O “deixar fazer” de uma articulação, de um rearranjo contínuo das formas de presentificaçãodo relato, transforma-se em sua lei de transmissão e, ao mesmo tempo, em procedimento de transmissão da lei. O “traço” que circula do destinador ao destinatário torna-se, por sua vez, o“traço” que faz circular o relato deste para aquele, reduzindo-os ao trabalho de relayers, de “re-colocadores” do relato em movimento. Compartilha-se, assim, a legitimidade do relato como orelato da partilha do seu “Don”, isto é, o “traço”. Sua pertinência se transmite por formas varia-das de reiteração da identidade de cada individuo (envolvido em narrar e escutar o relato) como próprio relato. O ato de contar a história é também o ato de esquecer sua posição de des- tinador, identificando sua maneira de contar a his tória à h istória contada, no momento mesmoem que se conta a história. Como um “Don”, cujo destinador é o destinatário, o “traço” que ocaracteriza, seu estilo, torna-se o “traço” da narrativa que o atravessa. A força performativa da falado destinador, o que dá sua força de verdade, consiste em se fazer esquecer, fazendo esquecera diferença entre recur sos retóricos, formais, empregados para atualizar a narrativa, e a narr ativaela mesma. O “Don” do relato consiste, desta maneira, na possibilidade que este tem em comu-nicar-se, isto é, em relançar-se (relayer ) através dos diversos destinatários. Quando o narrador/destinatário deixa-se atravessar pela narrativa e, por isso, afirma sua posição de narrador dentroda narrativa, ele vive este atravessar-se como a experiência estética de sua significação: a de serforma de vida da linguagem. Forma de vida à qual adere naturalizando-a pela ritualização dasvariantes formais que cria, vividas como possibilidades únicas de existência. Sem a identificaçãoplena com a linguagem, o narrador deixa de ser destinatário e, portanto, desaparece. Neste sen- tido, criar é experimentar novas formas de narrativa de um mesmo relato. Contar é apresentara narrativa como a única forma de existência possível daquele que narra. A experiência estéticado narrar-se ao narrar qualquer relato – de deixar-se atravessar pela lógica simpática da cadeia

de significantes na dinâmica de transmissão de uma tradição – torna-se o cerne de toda formade vida legítima.

É um fenômeno de entropia ou uma experimentação? Eu tenho uma tendência a pensar que se trata antes

de uma experimentação. A- demais, que sejam as mesmas tramas narrativas que retornam, o que isto pode

querer dizer? Os relatos populares, se eles podem tornar-se extremamente simples, provérbios, moralida-

des, tornar-se quase um problema de ritmo do discurso, de gênero; tal pai, tal filho , (pedra que rola não cria

limo) Pierre qui roule n’amasse pas mousse, etc. (vê-se claramente a proximidade com a música, não somente

por que há rima, frequentemente, mas também porque são fenômenos rítmicos da língua, que fazem com

frequência pensar ao Sprechgesang ), isto não se faz por acaso: na transmissão desses relatos, na repetição

de seus rótulos, o que é importante, é contar a história servindo de “relais”, é ser o “traditor” (traditeur ) do

relato, porque no simples fato de relayer  esquece-se, justamente, de algo. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 83)

 

Deve-se ressaltar que a experimentação dos fenômenos rítmicos da linguagem, aos quais Lyo-Deve-se ressaltar que a experimentação dos fenômenos rítmicos da linguagem, aos quais Lyo- tard faz referência, é a essência mesma da sua dinâmica marcada pela temporalidade individual decada destinador, que é transformada, pelo exercício da n arração, na temporalidade característicado destinatário do relato. A maneira de o destinador imprimir seu próprio ritmo, sua própriamodulação à partilha do relato, instaura, na diferença, a ausência de diferença entre o que desti-nador conta e su a maneira de contar. Esta identidade, consequentemente legitimada pela fala dodestinador, faz com que , no transcorrer da narrativa, compartilhe-se um “metarrelato” que lhe éintrínseco. “Metarrelato” que conta que o destinador é também o destinatário. Verifica-se, então,que o objetivo do relato é a partilha da condição de destinatário e a finalidade da partilha, por suavez, o relato ele mesmo. Deste circuito deriva a autonomia do relato. Nele reside a possibilidadede todo processo de criação que, no meu entender, funda o fazer artístico na sua generalidade: ode fazer aparecer o que é da ordem de um relato compartilhado como forma de vida de uma co-munidade, como sendo criação individual, fazendo, assim, crer que a criação individual é contida norelato como seu corolário necessário. Como a noção de ressonância em Kandinsky, ou a de manada magia estudada por Mauss, a linguagem é alguma coisa que se par tilha e, ao mesmo tempo, éaquilo que permite e constitui a partilha: a heteronímia, a alteridade. A linguagem se constrói cons- truindo o referente, em uma relação dialógica, com quem o “outro” que eu sou, enquanto auditorde mim mesmo, deve estar em concordância. A estrutura dialógica da linguagem e, portanto, daarte, é pagã, isto é, construída através de afinidades entre elementos formais que, basicamente, sãoelementos de um circuito de estímulo e resposta fonoauditivos, que determinam, entretanto, todaforma de experiência sensível.

Eu creio que este traço é profundamente pagão. Esta relação ao tempo, que é tão surpreendente que ela nos

faz dizer as piores besteiras sobre a sociedade sem história, se traduz em uma pragmática que tem por efeito

que nenhum discurso possa se apresentar como autônomo, mas ao contrário, sempre como um discurso

recebido. O que tem por consequência que os relatos com seu ritmo próprio s ão narrativas que se veiculam,

por assim dizer, independentemente na boca e através das orelhas dos indivíduos destes povos, e que se

esquecem à medida que a narrativa transcorre, e que, então, repetem-se como essas músicas repetitivas, sua

repetição marcando o batimento proteron/usteron, um dois, um dois, que é a díade, quer dizer, o elemento

métrico o mais simples. Eu diria, mais genericamente, no nível que os linguistas chamam a pragmática do

discurso, em particular a propósito daquele dos discursos narrativos, sobre os quais eu penso, de mais a mais,

que eles são a forma popular do discurso, que os indivíduos são introduzidos na linguagem, não falando, mas

escutando, e que o que as crianças escutam, são histórias. Primeiramente a delas próprias, pois elas são aí

nomeadas. Isto implica o contrário da autonomia, a heteronomia. (LYOTARD e THÉBAUD, 1979: 84)

  A forma dialógica, pragmática, reflete simplesmente aquela outra da lógica rítmica da linguagem,

a da sua musicalidade, quer dizer, da materialidade lógico-estrutural da dinâmica de construção dosentido. Não obstante, na perspectiva que venho desenvolvendo aqui, não há, efetivamente, nomodelo pagão, uma predominância da heteronomia em relação à autonomia, pois a heteronomiapressupõe a autonomia da linguagem e tal autonomia concretiza-se tão somente pelo exercícioda narração, logo pela heteronomia. Ao compartilharem-se as regras de linguagem na narração,estas se tornam a voz dos destinatários. Autonomia e heteronomia constroem-se no processo ena temporalidade da n arrativa, de maneira unívoca. Nesta univocidade, quer dizer, na identificaçãoessencial entre o falante e a linguagem falada, funda-se toda experiência sensível, estética. Sentiré sentir o referente em uma experiência que só é possível pela identificação plena deste com oseu enunciado, do enunciado com o enunciador e deste com o auditor. Nesse sentido, não há umenunciado e um referente ao qual o enunciado se refere, algo fora da linguagem posto aí, no mun-do, ao qual o enunciado faz menção ao referir-se a um referente qualquer. Referente e enunciadosão um só e têm sua efetividade na dinâmica dialógica da linguagem. Uso o termo efetividade, aqui,

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em uma aproximação com o termo alemão Wirklichkeit : o real que não é nem o que está dado nomundo e pode-se descobrir, nem o que está sintetizado em um conceito. Porém, efetividade signi-fica, aqui, algo mais abrangente: que o necessário é uma possibilidade e, portanto, apenas possívelno contingente, mas que, da mesma maneira, o contingente só pode dar-se no necessário.

III

No projeto abstracionista da arte, a linguagem constitui o agenciamento de elementos formais eplásticos, conforme as leis de afinidade, dos quais o artista é apenas um médium, o meio pelo qualas configurações deste agenciamento se produzem. Como afirma Deleuze, o agenciamento temduas faces: ele é o agenciamento coletivo do enunciado e o agenciamento maquínico do desejo.Tomo aqui a expressão “maquínico do desejo” no sentido daquilo que, no decorrer da narrativa,confunde-se com o próprio relato, isto é, com a própria dinâmica dos atos de fala. Deleuze diráque não há agenciamento maquínico social do desejo que não seja agenciamento coletivo daenunciação (DELEUZE e GUATTARI, 1975: 145-147). Assim, se analisarmos o espiritual teoriza-do por Kandinsky, por exemplo, veremos que ele consiste em uma pura articulação associativa,um agenciamento, dos elementos da linguagem em uma dinâmica de partilha do enunciado. Oespiritual, antes de tudo, abriga esta capacidade de produzir a experiência da efetividade do refe-rente no enunciado: ao utilizar a linguagem, agencia-se coletivamente a significação do enunciadoenquanto experiência sensível do que nele está referido. O espiritual na arte abstrata se perpetua,portanto, nas suas formulações não visuais, não retinianas, da arte contemporânea. Ao mesmo tempo, justamente porque a arte permanece sempre a configuração múltipla do princípio prag-mático da linguagem, é que uma obra dita abstrata, uma pintura de Kandinky, por exemplo, estásempre sujeita ao mesmo princípio normatizador da dinâmica enunciativa. Mesmo uma obra vi-sual abstrata, aparentemente desprovida de todo elo com enunciados verbais, só encontra lastroporque o espiritual é uma figuração do agenciamento da dinâmica de linguagem. O espiritual seautodetermina como o campo específico de experimentação do sensível, possível apenas comoexperiência da partilha coletiva do enunciado.  O espiritual, nesta perspectiva, encontra-se no centro da tendência à fragmentação do discursoda grande narrativa do saber, tal qual ela foi pensada e diagnosticada por Lyotard. A disposição àdescentralização do discurso conser va, com efeito, o espiritual nos procedimentos utilizados paradeterminar o fim da absolutização do relato do saber, cuja raiz especulativa caracterizou o séculoXIX e que serviu de modelo para o século XX. O espiritual, identificado ao principio pragmáticoda linguagem, conservou-se no seio de cada jogo de linguagem, de cada discurso, como o saber totalizante que se engendra sozinho pela sua própria lógica interna. Como ressalta Lyotard, o es-

pírito especulativo estabeleceu a essência criativa do discurso científico e esta lógica especulativacontém, ela mesma, o germe da sua não legitimação como discurso hegemônico. Isto porque aexigência de legitimação que o enunciado especulativo contém deve, ela também, ser necessaria-mente legitimada no interior de sua própria lógica do espírito especulativo. O enunciado especula- tivo torna-se, desta maneira, parte de um jogo de linguagem que podemos denominar de jogo delinguagem especulativo. (LYOTARD, 1979: 64-65)

IV

A noção de autoengendramento se conserva no modelo dos jogos de linguagem pela atualiza-ção, em cada partida jogada, das regras necessárias à legitimação da sua autonomia. Esta noçãosobrevive na forma germinal do diálogo entre linguagem e os seus destinatários impondo, assim,

as leis da pragmática dos enunciados como o único real possível. O modelo da narrativa pagã deLyotard passa a ser o paradigma de todo processo de emancipação do discurso que se pretendeigualitário, no qual todas as instâncias da narrativa são reduzidas àquela do destinatário. Os nar-radores são atravessados pela palavra que se fala a ela mesma, obedecendo às suas próprias leis,exatamente como no modelo peirciano de semiose. Os três modelos: o do paganismo, o da se-miose e o dos atos de fala, todos estruturados de acordo com a prosopopéia original que regula o jogo de linguagem, se equivalem. O mesmo ocorre com os jogos de linguagem – e o relato pagãoé um caso de jogo de linguagem –, quando estes se fazem de maneira autônoma. A autonomiade um jogo de linguagem se mede pela simples aplicação consensual das regras performativas deenunciação, com o intuito de determiná-las como lei interna da linguagem. Consequentemente,em um único jogo de linguagem, as regras se confundem com a utilização das mesmas, exata-mente como se verifica no caso da abstração pictórica. O lugar de fala da linguagem, o Tertius3,quer seja o Deus das religiões monoteístas, o Espírito hegeliano, o espiritual na arte, ou, ainda, oconceito como obra de arte, trata-se sempre de um resíduo tardio da dinâmica de sensibilizaçãoaudiofônica, característica dos relatos das sociedades ditas primitivas, ou sem história linear, cujofuncionamento consiste em deixar as instâncias da “minha fala”, a instância do eu, e da “sua fala”, ado outro, aparecerem como “a fala dela”, isto é, da linguagem.  Podemos afirmar, então, que a forma de vida original da arte é engendrada pela prosopopéiaoriginal e análoga àquela da narrativa pagã. Este modelo de vida pode corresponder, efetivamente,àquele do individualismo liberal do capitalismo tardio, pois no experimentalismo perpétuo das no-vas formas de sensibilidade , trata-se de experimentar novas maneiras de contar o mesmo relato,no qual não há mais posição privilegiada do discurso, quer dizer, no qual o locutor e o auditor de-saparecem para assumirem o papel de simples legatários, destinatários da linguagem. Estabelece-se, portanto, no seio da pr agmática de linguagem, um campo onde qualquer experiência encontrasua legitimação. O relato pagão é, portanto, o horizonte ideal de utilização da linguagem, para oqual tende toda pr agmática de linguagem. Na narrativa pagã, toda e qualquer experiência singular – por ser da ordem do destinador/destinatário da narrativa, que encarna o Tertius de linguagem – tende a ser vivida como experiência coletiva da linguagem. Este é o tipo de experiência queconstitui a base de todo consenso.  Ora, pode ser que a alteridade absoluta da linguagem, o Tertius, seja simplesmente uma dasversões de um ideal de consenso, imposto pela utilização das regras de enunciação à comunidadede locutores como única forma de vida possível. Neste sentido, podemos dizer que há um relatoprimeiro legitimador do consenso, que o apresenta sob a forma de vida autônoma da linguageme que engendra, por sua força performativa, todos os outros relatos nos quais os locutores sãoapenas destinatários. O consenso detém, por conseguinte, o lugar de um poder de fala única, ado Tertius. Posto que hegemônico, na sua maneira de se autoengendrar como a única instância

possível de experiência, o consenso é o metarrelato que se conta a si mesmo como o lugar deemancipação da fala que acontece em cada contar específico.

3. Noção apresentada por Jacques Poulain como o Tiers de linguagem, literalmente o “terceiro” de linguagem, que significa

a linguagem como um lugar de fala, ela mesma autônoma. Preferimos substituir “terceiro” pelo termo latim Tertius. Para

conhecer o desenvolvimento detalhado desta concepção, ver POULAIN, 2001, capítulo III.

V

Nas práticas e instituições representativas das sociedades capitalistas avançadas, a experiência to- tal do real, no consenso produzido pelo u so da linguagem, torna-se a forma de vida pela qual ovalor de verdade dos relatos é sempre o mesmo. Porque justamente tais relatos contam todos

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fundamentalmente a mesma história – a do poder de verdade da fala compartilhada de maneiraconsensual – mesmo os relatos contraditórios encontram aí sua legitimidade. Este tipo de lógica seassemelha àquela analisada por Marcel Mauss, característica das sociedades nas quais reina a ordemmágica da afinidade. Determinada por afinidades associativas entre elementos concebidos a partirde uma mesma “substância”, esta seria uma lógica metafísica e metalógica. Ela se resumiria a uma“capacidade”, um “atributo” de linguagem pelo qual os membros da comunidade de falantes são“possuídos”, uma “qualidade mágica” cujo poder de transformar tudo em mana – o agente, o ritual,o objeto mana, etc, – é analogo àquele outro poder, da pragmática da linguagem, que é o de tudo transformar em linguagem. Da mesma maneira que o Espírito especulativo encarnava-se no granderelato do Saber , os jogos de linguagem são o lugar de possessão deste outro espírito, o “outro ab-soluto” da linguagem, que guarda uma proximidade radical com o mana. Marcel Mauss apresentaos significados de“o ser que é o mana” e dos múltiplos modos que este tem de se transmitir e sepresentificar.

A mana  não é simplesmente uma força, um ser, é, sim, uma ação, uma qualidade e um estado. Em outros

 termos, a palavra é, ao mesmo tempo, um substantivo, um adjetivo e um verbo. Diz-se de um objeto que ele

é mana, para dizer que ele tem esta qualidade; e neste caso, a palavra é um tipo de adjetivo (não se pode

dizê-lo de um homem). Diz-se de um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem mana, o “mana de fazer

isso ou aquilo”. Emprega-se a palavra mana em diversas formas de diversas conjugações, ela significa, então, ter

mana, dar mana, etc. Em suma, esta palavra subsume um monte de idéias que nos designaríamos por: poder de

feiticeiro, qualidade mágica de alguma coisa, coisa mágica, ser mágico, ter poder mágico, ser encantado, agir ma-

gicamente; ele nos apresenta, reunidos sob um vocábulo único, uma série de noções, das quais, nos entrevimos

o parentesco, mas que estavam alheias a nós, dadas à parte. Ele realiza esta confusão de agente, rito e coisas

que nos pareceu ser fundamental em magia. (MAUSS, 1995: 101)

  O mana é, então, justamente esta função da linguagem de ser o transcendente absoluto, isto é,de ser, ao mesmo tempo, o referente, suas propriedades (o que faz com que ele seja isso e não ou- tra coisa) e a ação de indicá-lo pelo enunciado e, desta maneira, constituir a sua especificidade. Emoutros termos, a linguagem e a partilha da linguagem constituem o mana no capitalismo avançado: aforma do mana de se manifestar e de ser o lugar do aparecer do mundo se conserva na hipóstaseda linguagem. A linguagem/mana abarca tudo através das múltiplas versões de construção do realna partilha comum da linguagem. Cada jogo de linguagem é mana e tem mana. Aquele que jogao jogo da linguagem e que conta o “fazer isto ou aquilo”, conforme as leis do mana, é, ou possui, também, o mana. O mana concentra, simultaneamente, o poder ilocutório de fazer com que se re-alize o que é dito no enunciado, pelo simples fato de o dizer, assim como o poder de fazer ver queo que é dito no enunciado. Concentra o poder apodítico e apofântico do referente na efetividade

do enunciado. A linguagem/mana  é a linguagem e a coisa agenciada (o referente). Ela é também oagenciamento (o ato de fala) e o protocolo do agenciamento (as regras do jogo de linguagem).

A idéia de mana é uma das idéias confusas, da qual nós nos cremos estar desembaraçados, e que, por con-

seguinte, temos dificuldade de conceber. Ela é obscura e vaga e, entretanto, de um emprego estranhamente

determinado. Ela é arbitrária e geral e, entretanto, plena do concreto. Sua natureza primitiva, quer dizer com-

plexa e confusa, nos proíbe fazer uma análise lógica, devemos nos contentar de apenas poder descrevê-la. Para

M. Codrington, ela se estende ao conjunto de ritos mágicos e religiosos, ao conjunto de espíritos mágicos e

religiosos, à totalidade das pessoas e das coisas intervindo na totalidade dos ritos. O mana é propriamente o

que faz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor religioso e mesmo valor social. A posição social dos

indivíduos está na razão direta da importância de seu mana, particularmente a posição na sociedade secreta; a

importância e a inviolabilidade dos tabus de propriedade do mana do individuo que os impõe. A riqueza deve

ser efeito do mana; em certas ilhas, a palavra mana designa mesmo o dinheiro. (MAUSS, 1995: 102)

  A linguagem, a entidade compartilhada e o próprio partilhar, explica a onipresença do mana,na qual não há separação entre o concreto e o abstrato. O mana é falado e fala; é o objeto dadescrição e é, ele mesmo, o descrito; diz o verdadeiro porque a linguagem tem e é o mana. Ter eser mana determina sempre um enunciado verdadeiro. Pode-se, portanto, dizer que o enunciadoé a constatação do mana pelo mana, primeiramente porque é o mana que julga no enunciado e,em seguida, porque o objeto de julgamento é o mana ele mesmo, visto que não se pode construir juízos fora do mana.  Se, à época do capitalismo contemporâneo, a ausência do absoluto torna-se o Absoluto pela“transcendentalização” do múltiplo, isto se dá, a meu ver, em uma relação direta com a sobrevi-vência do esquematismo e do mecanismo de agenciamento típico do mana no uso da linguagem,portanto, nos usos, nas práticas sociais e nas construções teóricas. O mana permanece funda-mentalmente a articulação dinâmica da linguagem e suas múltiplas configurações nos jogos delinguagem. Encarnado no corpo social, bem como no corpo individual, o mana é o “outro” da lin-guagem pelo qual os seres de fala são possuídos; o “outro” que fala por eles, para que possam, efe- tivamente, fazer uso da palavra. Em seu diálogo perpétuo com ele mesmo, o mana determina aosfalantes, em ultima instância, a função de serem pontos de passagem (relais), pontos de aceleração,de mudança de temporalidade na transmissão do mana. O mana faz da linguagem uma forma devida onipresente. O sujeito falante permanece, por conseguinte, o médium pelo qual a linguagem torna-se experimentação estética de si mesma. Se representar tudo o que não é linguagem na ex-perimentação da palavra constitui, portanto, o mana da linguagem, não é menos verdade que esterepresentar é a linguagem do mana. Esta representação é o único real possível, ela é a efetividadedaquilo que pode ser experimentado no enunciado. O mana instaura e é instaurado pela opera-ção de dar passagem ao relato, fundamento de todo ato de fala.

VI

Gostaria de introduzir aqui a noção de  infra-mince, elaborada por Marcel Duchamp, para melhorentendermos a extensão e a força estética contida na hipóstase da linguagem, intrínseca à dinâmi-ca pragmática e identificada ao mana. No mana encontra-se, por assim dizer, um funcionamentoequivalente àquele de infra-mince. O infra-mince deve ser identificado, a meu ver, simultaneamente,ao funcionamento próprio dos jogos de linguagem e à articulação essencial entre propriedadesformais e/ou físicas de objetos. Na perspectiva pragmática, falar de signos e objetos resulta nomesmo. Duchamp trabalhara vários anos sobre a noção de infra-mince, na tentativa de verificá-laem uma série de situações de transformação de signos. Dos quarenta e seis itens das Notas querepresentam o desenvolvimento da noção de infra-mince, ressalto os itens de um a sete, porque

neles encontra-se a evidência do que estou chamando de mana: o traço de uma passagem, istoé, de qualquer coisa que passou, que não é mais, mas que persiste na ação de passar e de deixarpassar outra coisa. O infra-mince integra as noções de possível, de devir, de alegoria, de analogia, dereciprocidade, de associação, de atributo (o infra-mince não é um substantivo), de similaridade, demúltiplo, em uma dinâmica relacional na qual os elementos implicados seriam os pontos de pas-sagem do relato pagão. Tais pontos são intervalos, são pausas que relançam a dinâmica de articu-lação entre as noções acima elencadas, a fim de dar passagem, em seu fluxo contínuo, a esta coisaque passa, que é a própria linguagem. Encontramos no infra-mince o mesmo tipo de articulaçãocaracterística do mana:

1. o possível é um infra-mince.

 A possibilidade de vários tubos de cor tornarem-se um

Seurat é “a explicação” concreta do possível como infra-mince.

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O possível implicando o devir – a passagem de um a outro

tem lugar no infra-mince.

 Alegoria sobre o “esquecimento”

2. analogia infra-mince

3. “portador de sombra”

sociedade anônima dos portadores de sombra representada por todas

as fontes de luz (sol, lua, estrelas, velas, fogo -)

incidentemente:

diferentes aspectos da reciprocidade – associação fogo-luz 

(luz negra, fogo-sem-fumaça = certas fontes de luz)

os portadores de sombra trabalham no infra-mince

4. “ o calor de uma poltrona (que acaba de ser deixada) é um infra-mince.”

5. infra-mince (adject.) não nome – nunca fazer deste um substantivo

O olho fixa fenômeno infra-mince

6. “ a alegoria (em geral) é uma aplicação do infra-mince.”

7. semelhança/similaridade

O mesmo (fabricado em série)

 Aproximação prática da similaridade.

No tempo um objeto não é o mesmo no 1 segundo

De intervalo.

Qual relação com o princípio de identidade? (DUCHAMP, 1999: 21)

  No infra-mince se discerne o “falar outro” do “outro”, que é a persistência de uma função, oíndice de um funcionamento: o fazer passar o “isto” a “aquilo”. O infra-mince, todavia, também é oíndice de alguma coisa que passa: o traço, a marca do relato que passa de um a outro destinatá-rio e que, ao passar, torna-se outro relato. Portador de uma dupla condição de signo indicial, eleindica não somente a passagem, mas também o que passa, como dois momentos principais dofuncionamento da linguagem, quer dizer, do infra-mince ele mesmo. E posto que, pelo princípio deautonomia da linguagem (a alteridade que se autoengendra), não possa haver predeterminaçãono funcionamento da linguagem, o infra-mince determina o acaso como estrutura e origem dorelato. Por isso Duchamp pode dizer que Seurat é a explicação concreta do infra-mince. Seurat torna-se médium, ponto de passagem e de associação contingente entre os tubos de cor, cujoefeito é a imagem da pintura de Seurat. Ao mesmo tempo, Seurat é o nome da metanarrativa da transformação dos tubos de cor (“isto”) em pintura (“aquilo”) e, também, o nome do que é con- tado, narrado no quadro, isto é, que “aquilo” é um Seurat. Considerando-se que a possibilidade de transformação se transmite como virtude mágica, como mana, e que o ato mesmo de transmitir

esta possibilidade é mana, a transmissão do mana e a maneira de transmiti-lo (o que deixa traço)podem ser considerados infra-mince. Neste sentido, o infra-mince  indica também o protocolo, oprocedimento utilizado para que tal pintura seja uma obra de Seurat. O nome “Seurat” torna-se também infra-mince, isto é, um atributo, um modo de funcionar da transformação, da passagem de tubos de cor, o “isto”, a uma obra de arte reconhecida como um “Seurat”, o “aquilo”.  O fato de o infra-mince apresentar uma imprecisão estrutural – o acaso é que determina assuas articulações – indica que esta imprecisão encontra-se na raiz mesma das dinâmicas arcaicasda linguagem que se mantêm vigentes, cujo fim é reduzir a linguagem à sua forma performativa. Oinfra-mince tem um papel essencial na representação e na transmissão dos diversos efeitos com-portamentais dos atos de fala. No infra-mince objetiva-se um campo de experimentação do realcomo dinâmica de recepção e de doação espontânea de significação que nos atinge sem que seja-mos obrigados a elaborar um juízo sobre sua validez. Uma vez que esta dinâmica é compartilhadasimultaneamente como entidade transcendental (a linguagem hipostasiada, o Tertius) e como a

partilha ela mesma, os efeitos sobre os interlocutores aparecem como signos da presença mágicade uma essência comum, o mana. Ainda que tal essência, o mana, seja o resultado das várias ex-periências “moleculares” de utilização da li nguagem – os jogos de linguagem – ela permanece estainstância absoluta que determina a maneira de utilização da li nguagem e, portanto, as experiênciassensíveis dos interlocutores.  No encantamento provocado por sua própria fala, cada interlocutor sente e faz sentir sua ex-No encantamento provocado por sua própria fala, cada interlocutor sente e faz sentir sua ex-periência sensível, contida na partilha do enunciado, conforme os modos de iteração do “outro”da linguagem. Se seguirmos as descrições dos itens um, seis e sete da definição de infra-mince,perceberemos que esta iteração manifesta-se sempre como alegoria. Entretanto, na alegoria re-side a figuração do mesmo no outro, a encarnação do “outro” absoluto da linguagem, visto que alinguagem é sempre um terceiro, o Tertius que fala no lugar do locutor e do auditor. Na alegoria,insistimos, encontra-se condensada a noção da alteridade constitutiva da narrativa pagã que é omodelo da instância pragmática da linguagem. A alegoria, a partir das observações de Duchamp,abriga as bases para um tipo de relação de analogia intrínseca a todo jogo de linguagem e que de-fine a relação de equivalência entre os diferentes polos do diálogo. Visto que no  infra-mince o de- terminante é o acaso, cada ponto de passagem (o interlocutor/narrador) equivale a outro ponto,pois cada um é a alegoria de si mesmo como o outro. Da mesma maneira, cada referente equivalea outro. Tudo pode se substituir a tudo e cada enunciado é tão verdadeiro quanto o s eu contrário,com a condição de per tencer a falas diferentes, a jogos de linguagem diferentes. A analogia infra-mince resume, portanto, a associação entre signos, cuja semelhança deriva de forças simpáticasconvergentes, as mesmas das relações mágicas. Tal analogia é uma ação que mimetiza, no ato defala, o ato mágico do destinador/locutor de se fazer incorporar pela linguagem/mana. Por estemotivo, tendo em vista que o saber é sempre construído por  e na experimentação estética, e queesta é experimentação de e na linguagem, o ato de fala constitui o protótipo da ação ar tística.

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Matisse, Newman, Bené Fonteles:A Paixão como o Re-encontro com a Imagem do Demiurgo

VERA PUGLIESE *

ResumoO presente artigo se baseia na pesquisa de Doutorado, cujo objeto é a associação de três séries de obras – o Chemin de

la Croix, de Henri Matisse (1948-51); as Stations of the Cross, de Barnett Newman (1958-66) e os Sudários, de Bené Fonteles

(2001-04) – frente às relações projetivas formadas na espessura do olhar do historiador da arte diante das imagens. Este

 texto apresenta o estudo preliminar para o recorte desse objeto, que suscitou questões teóricas impostas pela categoria

de identificação “autoimpingida” desses artistas com a Paixão de Cristo. A análise de seus discursos conduziu à percepção

do processo de criação como um constrangimento pela vontade do tema (Matisse), pela vontade da forma (Newman) e

pela vontade do processo que tomou forma (Bené). A investigação da natureza da vontade formal transfigurada sintoma-

 ticamente em imagem, alterando suas intenções, levou à indagação sobre a polêmica da conceituação de estilo e como ela

caberia, hoje, na História da Arte.

Palavras-chave: Historiografia da Ar te. Didi-Huberman. Estilo. Formalismo. Vontade da forma.

 Abstract

The subject of this PhD research project is the association of three series of works: Henri Matisse’s Chemin de la Croix (1948-51),

Barnett Newman’s Stations of the Cross (1958-66) and Bené Fonteles’ Sudários (2001-04) in view of the projective relations

formed in the dense perception experienced by an art historian before images. The paper features a preliminary study aimed at

addressing a subject that has raised theoretical questions stemming from these artists’ self-inflicted identification (category) with the

Passion. An analysis of their discourses led to a perception of the creation process as constrained by thematic will (Matisse); formal

will (Newman); process will, in which process has gained form (Bené). An investigation of the nature of formal will – symptomatically

transfigured into image that itself changes intentions – in turn led to an inquiry into the controversy surrounding the conceptual

formulation of style and its place in art history today.

Keywords: Historiography of Art. Didi-Huberman. Style. Formalism. Will of Form.

* Doutoranda e Mestre (2005) na Linha de Pesquisa “Teoria e História da Arte” do Programa de Pós-Graduação em

Arte da Universidade de Brasília; Bacharel em Filosofia pela USP, 1997; Licenciada em Educação Artística pela FASM, SP,

1991. Lecionou no Curso de Especialização em História da Arte - FADM/BSB (2008-2009), na Universidade Mackenzie/SP

(1993-98) e na FAAP/SP (1993-99). É professora do Departamento de Ar tes Visuais da UnB.

[email protected]

I. Introdução

Este estudo inicial que visa situar o objeto de minha dissertação de Doutorado se debruça sobre aespessura do olhar entre aquele que vê a obra de ar te e a própria obra, porque trata do espaço- tempo em que sua percepção se abre a uma rede de relações. Diante da obra, nos desfiguramos

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enquanto sua imagem se modifica. Mas quando a obra concerne a uma transformação exemplar,como a tragédia expressa pela Paixão na cultura cristã ocidental, esses conteúdos se desdobram.A Paixão progride como um caminho marcado por etapas fundamentais da transfiguração do Jesus terreno em Cristo celeste, emblematizada pela crucificação, símbolo da morte e da ressur-reição. Em outra instância, é o reencontro do indivíduo com a totalidade da qual foi cindido, o que tange à questão do sublime. O escopo desta pesquisa é compreender como o tema foi assumidopor três artistas que se tornaram sujeito e objeto de seu próprio processo de criação por meioda identificação com Cristo, e suas implicações formais e filosóficas para a teoria e história da arte .

A primeira obra é o Chemin de la Croix (Fig. 1), painel cerâmico da Capela do Rosário que HenriMatisse realizou entre 1948 e 1951, em Vence. A segunda é a série The Stations of the Cross, queBarnett Newman pintou entre 1958 e 1966, hoje na National Gallery of Art, de Washington. E,finalmente, os Sudários, que Bené Fonteles criou entre 2001 e 2004, expostos em Brasília e emSão Paulo (2003-2004).

O interesse por essas séries foi motivado pela investigação da relação entre o artista e sua obra,desdobrada na relação sujeito/objeto como projeção do artista sobre s ua obra. É, ainda, possívelinterpolar o olhar – elemento principal dessa relação – para pensar na relação de outros indivídu-os, seja o fruidor, o crítico ou o historiador da arte , com a imagem. Daí a questão da categorização

do sujeito à qual esse indivíduo se refere metodologicamente.  A escolha dessas obras se impôs devido à sua expressa identificação com a categoria “autoim-A escolha dessas obras se impôs devido à sua expressa identificação com a categoria “autoim-pingida”, que envolve a relação do artista com o tema, com o pathos de processo de criaçãocomo purgação em direção a uma ascese espiritual que possui outra natureza, passível de se rela-cionar com uma espécie de constrangimento formal pela Darstellbarkeit  (figurabilidade).  Se essa identificação diz respeito à dupla natureza de Cristo, dela deriva o enfrentamento aopróprio Deus devido à tomada para si da Paixão pelo artista, como deificação do processo decriação artística e não como sua humanização. A desobediência ao Segundo Mandamento1 tam-

Figura 1:

Henri Matisse, Chemin de la Croix , 1948 e 51, Chapelle du Rosaire, Vence.

1. “Não fará para ti imagem de escultura, figura alguma do que há em cima, nos céus, e abaixo, na terra, nem nas águas,

debaixo da terra” Ex 20, 4. Outras referências a essa proibição existem em: Ex 23,024; Ex 32, 1-4 e 28; Ex 34, 12-14; Lv 26 ,

1; Nm 25,-1-13; Dt 4, 15-20; Dt 27, 15; 2Mc 12, 40; Is 37, 19, além das alusões a sinais visuais de transferência da imagem

divina para suportes naturais que concernem à possibilidade da própria imagem de Deus. (BESANÇON, 1997, 106-21).

bém ocorre porque a imagem que se faz a partir do humano poder de cr iá-la se projeta no Cria-dor, assumido, em alguma instância, como o próprio artista.

O problema suscitado pela abordagem do processo de criação desses artistas é o da expressãoplástica do conflito inerente ao tema, já que essas três séries pertencem a campos plástico-concei- tuais diferentes. Se é possível verificar, malgrado suas diferenças, todo um conjunto de elementos,fatores de conexão, funções sintáticas, dispositivos simbólicos, interesses, características recorren- tes ao Expressionismo Abstrato e ao Informal com o qual Matisse teve contato no final da décadade 1940, a obra de Bené provém de outro sistema.  Por outro lado, a riqueza da associação entre essas obras talvez permita verificar a relação entresujeito/objeto, segundo a categoria de relação figura/fundo na Modernidade, e o problema dalinguagem indicial, da abstração formal e expressiva, bem como as operações sintático-conceituaiscontemporâneas, relacionando o sujeito da obra a seu próprio meio. A metáfora do artista comodemiurgo faz a mediação dessa associação, que instiga a pesquisa sobre a expressão formal e con-ceitual de tal metáfora em suas implicações.  Para que este mortal possa alçar a categoria de demiurgo, o artista precisa ingressar em um ritode passagem, um caminho exemplar de purificação. Este processo exige um pathos de sofrimento,de sacrifício. Urge verificar se as imagens criadas por Matisse, Newman (Fig. 2) e Bené, com vistasa esse thelos, expressam ou encarnam tal processo, e se seria possível relacionar os modos e asnaturezas dos agenciamentos da imagem nas três séries.

  Inicialmente, pode-se suspeitar que os registros de identificação sejam o intelectual, hipótese re-Inicialmente, pode-se suspeitar que os registros de identificação sejam o intelectual, hipótese re-forçada pelos depoimentos dos artistas, ou o visceral, concernente à sua experimentação pessoal,verificada no contexto dos dados biográficos contemporâneos aos respectivos contextos poé- ticos dos processos de criação dessas obras. Não se pode esquecer, contudo, o que se poderiachamar de registro simbólico, referente ao sistema de crenças de cada ar tista. É forçoso investigar também o nível dos desenvolvimentos plástico-formais, no qual se buscou imagens que fossemeficazes nos registros acima elencados, respondendo a demandas de diferentes naturezas. Maso que seria a eficácia da imagem relativamente à questão do olhar e da projeção em diferentescampos plástico-conceituais?  A partir do inventário dos dados para iniciar essa investigação, suspeita-se que o problema daforma seja crucial, já que a dupla transgressão que ele envolve se refere a dar forma à condição

Figura 2:

Barnett Newman, The Stations of the Cross,  1958-66, National Gallery of Ar t de Washington

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humana: ao homem como imagem de Deus. Nos três casos, de modos diferentes e em poéticasdiversas, houve também a negação da conformação plástica da imagem de Cristo, visto que osartistas buscaram aludir à sua natureza divina, impalpável e poderosa por meios indiretos nosprocedimentos utilizados, mas de forma coerente com seus repertórios e linguagens individuais.Some-se a isso a rejeição ao conceito da forma como designação da figura: a Vorstellung  (repre-sentação), nos depoimentos dos três artistas. Esta rejeição se faz pelo deslocamento da linguagemicônica para uma linguagem indicial, em Matisse; pela depuração simbólica da imagem como duasforças em paralelismo, em Newman; pela transposição da imagem como dado para o processoconceitual transtextual, segundo o dispositivo da apropriação, em Bené (Fig. 3).

  Esses três procedimentos, que talvez visassem ao evitamento da própria imagem, como desviosdo peso da transgressão ao Segundo Mandamento, são reverberados pelos discursos dos três ar- tistas, que despistam a autoria da forma para um terceiro sujeito: a própria forma. De modos dife-

rentes, a realização artística aparece como um constrangimento: pela “vontade” do tema, no casode Matisse; por uma “vontade” da forma, para Newman; pela “vontade” do processo de criaçãoque tomou forma, em Bené. As figuras que surgiram pelas mãos dos artistas teriam sido, de certomodo, contingências de uma vontade além deles. Qual a natureza dessa vontade da forma que se transfigura sintomaticamente em imagem, alterando suas intenções e propostas conscientes?  Embora os três artistas tenham desenvolvido suas séries mediante poéticas e recortes tem-Embora os três artistas tenham desenvolvido suas séries mediante poéticas e recortes tem-porais tão diversos, é possível cogitar que os desenvolvimentos dessas obras comportassem dis-positivos da mesma natureza, coerentes com a problematização do tema pelos próprios ar tistas,expedientes que remetem à triangulação artista/obra/referente, interceptados pela lógica da pro- jeção do artista sobre o referente que, tomando para si o tema, procurou encarná-lo na obracomo sua própria ressurreição. Poderia o vestígio do artista na imagem formada ser aquele doprocesso de formação da imagem como ato criador de sua própria restituição como imagem?Seria esta indagação destinada à ordem plástica ou à ordem simbólica do processo de criação?

Figura 3:

Bené Fonteles, Sudário, 2001-04, Estação Pinacoteca, São Paulo

II. O Processo de Criação a o Ato Formador da Imagem

No plano metodológico, é possível indagar se a eficácia simbólica das imagens assim formadaspode se abrir a uma investigação da ordem epistemológica do ato de Darstellbarkeit . É necessárioverificar que conceitos permitiriam relacionar o plano formal à Darstellbarkeit , em busca da especi-ficidade da obra de arte, e quais seriam as suas implicações.  Ao investigar a relação entre o olhar e a imagem na especificidade da obra de arte em minhapesquisa de Mestrado (PUGLIESE, 2005), o quadro teórico aberto por Georges Didi-Huberman(1992) para o estudo do Chemin, de Matisse, apontou para a questão da constituição do con-ceito operacional de estilo na historiografia da arte. Buscou-se compreender o alargamento docampo fenomenal da história da arte crítica proposta por Aby Warburg (1999), que deslocou osujeito em relação ao seu objeto de estudo, abrindo as imagens e suas poéticas à complexidadede subdeterminações e colocando em pauta o problema do estilo e do agenciamento das eficáciasformais operados historicamente pelo conceito de Pathosformeln (fórmulas de pathos).

Para compreender o Darstellbarkeit  como trabalho da imagem, seria necessário recorrer a con-ceitos de Erwin Panosfky (1979), para quem a história dos estilos seria o princípio controladordo método iconográfico vinculado ao conceito de Gestaltungswillen (vontade da forma), de AloïsRiegl, para o qual o estilo seria uma decorrência do Kunstwollen (querer artístico).  A pesquisa do Mestrado abriu campo para novas associações e indagações, que demandaramum novo estudo, a ser desenvolvido no Doutorado, a partir da associação entre o Chemin, asStations  e os Sudários, cujos agenciamentos trazem à baila os dispositivos de norma  e forma(GOMBRICH, 1988), em confronto com os poderes da imagem (MARIN, 1992). A questãoda tragédia da Paixão no interior de uma história da arte que se vê como crítica problematizaduplamente a criação da imagem.

III. Um Problema Historiográfico

A necessidade de adotar como objeto de estudo a associação entre as três séries de obrasmencionadas concerne ao seu desenvolvimento projetivo em relação à Divindade, que reverberade modo sintomático o indivíduo-artista em seu processo de criação, cuja imagem se replica,antropomorfizada, remetendo à própria fratura temporal do indivíduo diante da voracidadedo tempo.  O escopo da investigação dessas séries, cujos repertórios e sintaxes pertencem a diferentesmomentos do Moderno e do Contemporâneo, refere-se à noção da origem repetida e à demandade uma imagem-fênix (ou imagem-Cristo), que morre para renascer (DIDI-HUBERMAN, 1990).

Este objeto comporta a duplicidade da mortalidade e da imortalidade da arte – e do homem – no símbolo da Ressurreição ou na busca do arquétipo da matriz e se relaciona ao mergulhofantasmático e crente do recalque da perda . Paralelamente, a nova teoria da arte francesa assumemetodologicamente a fratura do tempo histórico por meio do conceito de anacronismo. Areivindicação de Didi-Huberman (1990) ao historiador da arte é que não se ignore o aspectosintomatal da disciplina e que se faça uso do deslocamento causado por ele como sujeito, aoinvés de remeter o trauma da cisão para o inconsciente, sob o risco de perder-se novamente emuma história da arte dogmática. Nas respostas de Matisse e Newman às críticas sobre a pretensaliteralidade de suas obras, eles se remeteram conscientemente à busca da sutura, da ritualizaçãoda perda por meio do deslocamento epistemológico assumido por eles ao longo da criação dassuas séries. Daí a necessidade da apreensão da estrutura simbólica do tema das três séries deobras estudadas, que toca tanto a dupla natureza do protagonista da Paixão, como a ameaçafrente à proibição da criação da imagem.

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  Pretende-se verificar se nessas três séries de obras o Darstellbarkeit,   que remete ao trabalhodo sonho de Sigmund Freud (2001), realizou-se munido de preocupações estéticas e de questõesformais, assim como se a plasticidade desse trabalho teria sido assumida como um incarnat   daprópria Darstellbarkeit : uma encarnação ao mesmo tempo da forma e do processo no qual a formafoi plasmada. Essa proposta se estabelece simultaneamente na espessura do olhar, projetando talespessura na própria encarnação do olhar na matéria da obra, a partir da escolha do tema, numdiscurso visual desdobrado sobre si próprio e que se redobra na questão da identificação.  A escolha dessas obras se pretende como uma dobra que transgride a linearidade de umanarrativa histórica, inserindo-se na própria fratura da história da arte, na fratura da imagem e dosujeito que produz história da arte, em busca de uma imagem-síntese. Trata-se da história da artecomo imagem dialética, que se oferece como ponte fulgurante, como o acesso patológico dereconhecimento do indivíduo frente ao universal para permitir a emersão da consciência sobre opróprio processo de construção histórica, consciente de suas fissuras.

O deslocamento proposto pela estratégia da montagem deve permitir ao sujeito reconhecer-sediante do simbólico e não diante de uma realidade objetiva. A intenção não é a de perceber algumasorte de objetividade histórica, mas o nexo entre forma e conteúdo, sem descosê-lo.  Warburg (1999) pressupunha tal nexo no conceito de Pathosformeln , apreendendo a ambiguidadeque a figuração comporta. Para evitar o paradoxo e subsumir a forma ao conteúdo, Panofsky (1979) tomou emprestado o sentido dos “sintomas culturais” de Ernst Cassirer para a constituição de seuGestaltungswillen . Carlo Guinsburg (1991) vê nessa atitude uma rejeição ao formalismo e, até mesmo,ao ato formador da imagem ligado ao inconsciente do artista, entendido aqui como Darstellbarkeit .  Didi-Huberman (2000) compreende o sujeito diante da imagem como o eixo da produçãohistoriográfica. Esta formulação é tanto problemática quanto problematizadora da própria disciplina,pois o historiador da arte, como sujeito, deve se deslocar em função das categorias do visível, dolegível e do invisível, conforme o objeto de estudo lhe exija. Baseado em Hubert Damisch, eleinverte a ordem iconográfica, partindo do legível e utilizando recursos tanto da iconografia quantoda semiótica, principalmente a de Louis Marin. Ainda no âmbito do legível, o autor busca tambéma forma na apreensão do visível, deslocando-se para o campo estrutural de forças que animam aimagem. O campo formal, contudo, abre-se para a questão do ato formador, causando um novodeslocamento do sujeito que, utilizando recursos da fenomenologia merleau-pontyana, transfigura-se quando passa a perceber a espessura entre ele e a obra.  O deslocamento epistemológico que se pretende compreender tem como centro funcional o trabalho de Darstellbarkeit  como formação da imagem no inconsciente, que produz deslocamentosde conteúdos para seus substitutos figurados. Diferentemente da Vorstellung, o visível da imageminerte em relação ao sujeito cognitivo, o Darstellung   (figuração) é a imagem constituída peloinconsciente do sujeito no trabalho do sonho como ato de recognição mnemônica, como “função

do desejo” que anseia pela reatualização da origem como primeira presença, daí o componente derepetição da série (PUGLIESE, 2005, 295).  É necessário investigar se o Darstellung  como “quase-presença” pode ser relacionado ao problemado nexo forma/conteúdo nas diferentes poéticas do Chemin, das Stations e dos Sudários, a fim deatingir tanto a eficácia simbólica da imagem quanto a atividade dinâmica do sujeito diante dela.Essa noção se refere ao questionamento de Jean-François Lyotard (1979), Damisch (1992) e Didi-Huberman (2002) sobre a “presenciabilidade” das imagens com as quais o historiador da arte entraem contato no trabalho constitutivo do discurso histórico, colocado diante das imagens e criandocadeias associativas entre elas. Tais associações fugiriam ao seu controle consciente, num trabalho deDarstellbarkeit   como formação de imagens sintéticas por meio dos dispositivos da condensação edo deslocamento.  Baseada no conceito de história de Walter Benjamin (BUCK-MORSS, 2002), esta proposta éexpressa mediante a montagem de um processo análogo ao da recognição mnemônica, mas que

leva em conta fatores impor tantes, como o das diferentes temporalidades presentes na memóriado historiador da arte e o das diferentes temporalidades presentes na própria imagem diante daqual o sujeito se coloca (PUGLIESE, 2005, 296-7).

IV. A Imagem e sua Eficácia Simbólica

Este tema é um ponto nevrálgico da cisão entre o formalismo e a iconologia, justamente no tocante à relação entre a eficácia da imagem e o conceito de estilo. Ao criticar as antinomiasformais de Heinrich Wölfflin, Panofsky (1979) criou o conceito da Gestaltungswillen,  que seriaintrínseco a um determinado Zeitgeist , já que o olhar necessariamente cultural do artista estariasubsumido a uma certa Weltanschauung , rejeitando a esfera das volições inconscientes do artistae a psicologia da arte. Esse conceito foi aproximado aos outillages mentaux  dos Annales nainvestigação iconográfica, tanto na história da arte como na história.

O problema do estilo envolve o conceito de Kunstwollen, de Riegl (1978), que seria uma forçainerente ao homem em manifestar a Weltanschauung  de um Zeitgeist , mas ligada inconscientementeà configuração estrutural das formas que se impõem à criação artística independentemente daintenção consciente do artista. Ao negar a taxonomia de matriz biológica dos estilos, regida pelasequência temporal de Johann Winckelman, e o determinismo da Gestaltungswillen, a noção deKunstwollen pode ser aproximada do conceito de vie des formes de Henri Focillon (1988), querecusou os estilos como provenientes das modificações históricas ou das necessidades de seusconteúdos literários.

As formas, assim, obedeceriam apenas às suas leis imanentes. Se essa questão se relaciona como formalismo, ela está intimamente ligada à da projeção do artista na imagem por meio do seupróprio ato formador, o que também interessou a Lyotard: “o segredo talvez resida nesse poderdo sensível que consiste em atrair a si o signo segundo o eixo da designação. Porém este podernão é mais que o da fantasmática que aspira a realizar o desejo em imagens.” (1979, 24).  Antes disso, porém, haveria uma crítica interna da Iconologia por parte de Ernst Gombrich(1990), que não admitia substituir um modelo classificatório operacional pela formaçãomorfogenética dos estilos, mal-entendido talvez gerado pela indistinção dos conceitos de norma eforma. Assim, o que seria assimilado como “características estilísticas” deveria ser percebido como“termos de exclusão”, que seriam utilizados conscientemente pelo artista.  A noção de concatenação temporal dos estilos e seu determinismo ainda entram em conflitocom as formulações sobre o tempo em Warburg, mediante o conceito de sobrevivência da imagem(DIDI-HUBERMAN, 2002). Isso permite a Didi-Huberman (2000) perceber o anacronismo dediferentes modelos de tempo por meio do deslocamento epistemológico do sujeito diante da

obra de arte , compreendendo o tempo complexo da obra que dialoga com a sobredeterminaçãodo próprio sujeito. Essa desterritorialização da imagem e do tempo histórico combate o cunhoevolucionista que impregna a noção tradicional de estilo.

Além disso, o conceito de Pathosformeln deriva do conceito de “participação mística” de LucienLevy-Bruhl (2008), assentado na relação de indivisibilidade entre sujeito e objeto. O sujeitoparticiparia das propriedades do mundo por meio da similaridade ou contiguidade de imagens,que se manifestariam em uma latência que seri a sua própria eficácia simbólica.

O problema dessa eficácia revelaria a noção dos poderes da imagem, que não seriam fruto deum determinismo histórico ou estilístico, mas marcados por uma condensação da cultura em ummomento histórico de modo particularmente significativo na temporalidade. Ambas as noções se tornariam inteligíveis por meio da noção de pujança mitopoética, não sendo a eficácia uma meraconvencionalização de tipos, mas a revelação de certas Pathosformeln. Estas fórmulas sobreviveriamno tempo mediante sobredeterminações culturais na memória coletiva.

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  Quanto ao olhar do historiador da arte sobre a obra, este deveria assumir a categoria cognitivado sujeito capaz de dar conta do paradigma perceptual de sentido/pathos e, para tal, ele deveria sepermitir sofrer um deslocamento epistemológico homólogo. Este deslizamento joga dialeticamentecom a categoria do sujeito analítico que investiga as categorias do visível e do legível da imagem ese deve à compreensão da presença do indivíduo diante da imagem. A imagem, por sua vez, passaa ser entendida como dialética e sobredeterminada, portadora do paradoxo visual do legível,percebida em sua relação com o mundo do qual o próprio sujeito participa. Didi-Huberman(1995) nomeou dois paradigmas de apreensão do objeto artístico, o sentido-sema e o sentido-aisthésis, respectivamente às categorias do visível e do legível da imagem.

No que toca o sentido-aisthésis, a necessidade da investigação formal que leva ao problemados campos plástico-conceituais a partir dos quais o artista dá forma à imagem – conduzindo àquestão do estilo – visa a estabelecer parâmetros conceituais e metodológicos que se relacionamcom a investigação da visibilidade e legibilidade da imagem.  Damisch (1985) e Didi-Huberman (2000) compreendem o conceito da imagem como sintomada memória, imiscuindo o presente no passado anacrônica e criticamente, já que esta operaum jogo de presentes reminiscentes. O conceito de sintoma presente no invisível da imagemdemanda um terceiro paradigma da História da Arte, o sentido- pathos, e diz respeito à relaçãosintomatal de Lyotard (1979), que questiona o postulado linguístico da arbitrariedade entre signoe significante.

V. Considerações

A necessidade de associar o Chemin  e as Stations  aos Sudários  de Bené Fonteles surgiu daconscientização de sua estrutura de duplo fantasmático do artista, que pode ser análoga aoconceito-função do sintoma e que opera as categorias do visível, do invisível e do legível, emborasuas respectivas imagens atravessem deslizamentos do conceito de imagem em discussões teóricase plásticas. O sintoma, esse poder da imagem, não é transcendente ou numinoso, mas revela odesejo do sublime e da potência transcendental da imagem mediante os conceitos de origem e daimagem como restituição de um “outro” pelo artista, e a negação desse mesmo desejo.  Com base em Benjamin, Didi-Huberman (2000) acusa a postura do historiador da arte quebusca uma “restituição” do passado como um recalque sintomatizado pela “grande narrativa”, pelorigor do método e pela doutrina da certeza, partindo de dogmas obsedantes tomados comoaxiomas, acusados como sintomas da cegueira funcional de uma historiografia evolucionista e,portanto, teleológica. Ele prevê o caminho da problematização da história da arte estruturadacomo montagem por meio de uma heurística negativa que dialetize os dois sentidos dessa

disciplina: o genitivo objetivo e o genitivo subjetivo.  Além desse desafio, resta a dificuldade que reside em associar essas duas Via Crucis  deMatisse e Newman aos Sudários de Bené. Esta recente série de obras se vincula a um campoplástico-conceitual bastante diverso do moderno, envolvendo operações de conceptualizaçãoe apropriação de diferentes naturezas, que se referem a outros conceitos e a outras poéticas.Interessa justamente assumir metodologicamente essa dificuldade na pesquisa.

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PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979.

PUGLIESE DE CASTRO, V. M. Entre o anônimo La Vierge Enfant e o São Domingos, de Matisse: imagem e olhar na histo-

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WARBURG, A. The renewal of pagan antiquity: contributions to the cultural History of the European Renaissance (texts

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POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Elsewhere in Contemporary Art:Topologies of Artists’ Works, Writings, and Archives

SIMONE OSTHOFF *

* Assistant professor of critical studies in the School of Visual Arts at Penn State University, is a Brazilian-born artist and wri-

 ter centering her research on the institutionalization of experimental practices and on contested histories of contemporary

art. Her new book about art, design, and media explores the Jornal do Brasil Sunday supplement during the utopian years

between 1956 and 1961.

* Simone Osthoff é professora adjunta de estudos críticos na Escola de Artes Visuais da Pennsylvania State University. Seus

numerosos ensaios, entrevistas e resenhas sobre arte e mídia, com foco na práticas Latino-Americanas e nas questões que

elas levantam, foram publicados internacionalmente e traduzidos para oito idiomas. Ela é autora do livro Performing the

 Archive: The Transformation of the Archive in Contemporary Art From Repository of Documents to Art Medium [Performances

de arquivo: a transformação do arquivo na arte contemporânea de repositório de documentos à meio de arte] (Atropos

Press, 2009).

ResumoO artigo aponta para as relações cada vez mais fluidas entre arte, mídia e documentação na arte contemporânea, que

 tanto requerem quanto sugerem novas metodologias e proximidades com a história da arte, a teoria e a crítica. A autora

emprega o conceito de topologia como uma possibilidade ao examinar duas obras de 2004: o estúdio-arquivo de Paulo

Bruscky, em que verifica-se a passagem de um arquivo de obras de arte para o arquivo enquanto obra de arte, e a expo-

sição Rabbit Remix de Eduardo Kac, na qual o artista emprega a mídia como meio.

Palavras-chave: Topologia. Arquivo. Arte contemporânea. Paulo Bruscky. Eduardo Kac. Mídia. História da arte. Teoria.

Crítica.

 Abstract

This article calls attention to the increasingly fluid relations between art, media and documentation in contemporary art, which

simultaneously urge and suggest new methodological approaches from and to art history, theory and criticism. The author puts

forward the concept of topology as one such approach by examining two artworks from 2004: Paulo Bruscky’s studio-archive as

it changes function from an archive of art works to the archive as artwork, and Eduardo Kac’s Rabbit Remix, in which the artist

employed the media as medium.

Keywords: Topology. Archives. Contemporary art. Paulo Bruscky. Eduardo Kac . Media. Art histor y. Theory. Criticism.

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On September 2004, when I arrived in Rio de Janeiro on my way to the 26th São Paulo Bienal, imagesof Eduardo Kac’s GFP Bunny  – his transgenic rabbit created in 20001 – were strategically placed throughout the city on three types of advertising displays: illuminated advertising signs mountedabove digital clocks/thermometers put on view the enigmatic, fluorescent-green bunny; panels atbus stops announced Kac’s solo exhibition at Laura Marsiaj Contemporary Arts in Ipanema; andconstantly rotating displays in kiosks showed images of cultural events in the city, among them Kac’sGFP Bunny  and Bebel Gilberto’s new CD album cover. A week later, at the São Paulo Bienal, Kacpresented a transgenic installation entitled Move 36, which along with Paulo Bruscky’s apartment/studio/archive – one of the biennial’s eight special rooms – was identified by the media as a “must-see” presentation among the event’s 135 works by artists from 62 countries. Interviews with bothartists and images of their installations appeared in the major newspapers and magazines of Rio

de Janeiro and São Paulo prior to, during, and after the opening of the exhibition.2 I have exploredaspects of Kac’s and Bruscky’s multifaceted works elsewhere, and in this article I focus on the issues

1. GFP Bunny  was Kac’s second transgenic work, created in February 2000 with the birth of the hybrid albino rabbit “Alba”

in a laboratory in Jouy-en-Josas, France. Alba contained the GFP (green fluorescent protein) gene of a jellyfish. She is

normally white and glows green only when illuminated with a special blue light. Kac originally envisioned GFP Bunny as a

 three-phase project: the first was the creation of a new being through molecular biology; the second its public presentation

in a gallery exhibition; and the third was the integration of the animal into the artist’s family home in Chicago. However,

after the French lab refused to release the rabbit as previously agreed, a worldwide media controversy followed, and Kac

employed the media frenzy as material in the new phase of GFP Bunny , as exemplified in the photographs, drawings, and

other works in his exhibition Rabbit Remix.

2. Among many others, see Fabio Cypriano, “O Ateliê faz o artista,” and Alfons Hug, “Mundo conceitual reflete crise da pin-

 tura,” both in Folha da São Paulo (Folha Ilustrada), December 22, 2003, E6. BRAVO!, September 2004, featured a number of

Figure 1:

Digital street clock in Copacabana beach with image of Eduardo Kac’s 2000 GFP Bunny , a public intervention in Rio de

 Janeiro as part of his solo show Rabbit Remix at the gallery Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brazil, 2004

(artwork © Eduardo Kac; photograph by Nelson Pataro, provided by the ar tist).

raised by Bruscky’s archive and by Kac’s new books, as well as the unsettled place of this theoreticaland archival material within their own work and in art institutions, including the writing of ar t historyand criticism.3

  A classic mathematical joke states that “a topologist is a person who doesn’t know the differencebetween a coffee cup and a doughnut,” as both forms belong to the same class of round objectswith a hole in them – topologically called a torus – and can theoretically be transformed into oneanother. The use in art history of such a broad and uncommon term as topology allows one togo beyond the “vanishing point” and the habit of thinking about art in terms of the “projections”of perspective theory. “Points of view come packed with a full kit of ready-made subjects andobjects, planes of representation, and radiating ‘cones of vision.’” (KUNZE, 2005). Topology allowsfor linking near and far, up with down, in with out, in a paradoxical continuous space most easilyunderstood by the classic example of the Möbius strip. Furthermore, topology underlines areader-response theory. In a participatory paradigm, the artwork often unfolds in real time, and the viewer-reader must complete the work’s meaning. As the boundaries between ar t’s insideand outside become less clear, meaning and authorship become more collective and distributed.In a participatory paradigm, for instance, completeness is no longer possible, desirable, or takenfor granted. The artist’s role as theoretician and archivist further disr upts boundaries between artproduction and its documentation, and therefore the traditional hi erarchies between artists, critics,and art historians. Bruscky’s and Kac’s simultaneous practices of art making, archiving, and writing,as they move through various media, sites, institutions, and fields of knowledge, put into practice topological approaches to art.  Since the beginnings of their careers in the 1970s and 1980s respectively, Bruscky (born 1949)and Kac (born 1962) have often performed outside traditional art institutions and practices, forgingcomplex relations between word and image, concept and medium, performance and documentation.Approaching art and life without regard for national borders or the categorical boundaries of traditional media, they have eschewed traditional venues, opting instead to invent new ones. Whileboth artists were born in Brazil, Bruscky has always been based in that country. Kac, however, spentonly the first nine years of his career in Brazil (1980–88) and emerged in the subsequent yearswith the international art scene and the internet as his natural environments. Like other artists whoengaged art with sites and knowledge from elsewhere in the cultural field, such as Robert Smithsonand Hélio Oiticica, Bruscky and Kac have continuously drawn elements from art, technology, science,visual poetry, philosophy, and popular culture, promoting the blurring of distinctions among the artistand the theorist, the curator, the archivist, the historian, and the cultural critic. 4 (OLEA, 2004)

critical articles and historical highlights of all twenty-six biennials beginning in 1951. See also Maria Hirszman, “Bruscky leva

seu ateliê a Bienal,” O Estado de São Paulo (Caderno 2/Especial), September 23, 2004, H-14; Caroline Menezes, “Uma nova

genética para a ar te: Eduardo Kac usa genes para discutir relação entre ser vivo e tecnologia,” Jornal do Brasil (Caderno B),September 30, 2004, B4; Giselle Beiguelman, “O xeque-mate cibernético,” Folha de São Paulo (Caderno Mais!), September

19, 2004, 14-15; and “A Coelha Transgênica,” Veja Rio, September 22, 2004, 43

3. Simone Osthoff, “Object Lessons,” World Art , Spring 1996, 18–23, was my first ar ticle about Kac’s work. My most recent

is “From Mail Art to Telepresence: Communication at a Distance in the Works of Paulo Bruscky and Eduardo Kac,” in At a

Distance: Precursors to Art and Activism on the Internet , ed. Annmarie Chandler and Norie Neumark (Cambridge, MA: MIT

Press, 2005), 260–80.

4.  In this essay Olea underlines the importance of the theoretical production of Latin American avant-garde artists

 throughout the twentieth century from Mexico to Argentina. Many of these seminal writings and manifestos are translated

in the comprehensive catalogue’s appendix. The exhibition Panaroma da Arte Brasileira 2001, curated by three artists – Ri-

cardo Basbaum, Paulo Reis, and Ricardo Resende – showcased Bruscky as an example of the artist-curator. See Ricardo

Basbaum, “O Artista Como Curador” [The Artist as Curator], in Panaroma da Arte Brasileira 2001, (São Paulo: Museu de

Arte Moderna de São Paulo, 2001), 35–40.

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From Archive of Artworks to Archive as Artwork 

Bruscky’s studio, located in a two-bedroom apartment in the Torreão neighborhood of Recife,on Brazil’s Northeast coast, has for eighteen years housed one of the most important collectionof Mail Art in the country – fifteen thousand works – along with the artist’s own oeuvre, books,newspaper articles, and other works ranging from artists’ books and sound poems to films andvideos. Packed to the ceiling with papers, files, and all kinds of objects from brushes to kitchenutensils, this impressive studio-archive left Recife for the first time to be exhibited as an installationat the 26th São Paulo Bienal (September 26 – December 19, 2004). Over the years Bruscky hasmade the archive available to artists, students writin g theses, critics, and journalists. I went there for

Figures 2 and 3:

Paulo Bruscky’s archives in Torreão neighborhood, Recife, Brazil (photographs by Léo Caldas, provided by the artist).

 the first time in May of 2002 to interview Bruscky. Another visitor was Alfons Hug, the curator of the 26th São Paulo Bienal. “When he visited the studio,” Bruscky recalled, “he came in, looked atevery room without saying a word, came back into the living room, and proposed to exhibit thewhole studio exactly as it was in the biennial. I did not expect that reaction, but I agreed, since myart and life have always been inseparable, and the studio-archive is clearly an expression of that.How do we give form to knowledge? In this space I make no difference between my works andeverything else here, the archive, my library, my life. I spend more time here than at home.”5

  Bruscky was interested in research from an early age, but in the 1970s his interest acquiredan added social and political dimension, a sense of personal responsibility toward historyand the preservation of a collective memory. “Each era has its own stories and histories. Iwas a victim of the dictatorship and had works destroyed by the police. Not only was mypersonal testimony important to preserve but also that of other artists involved in the MailArt movement.”6 When Bruscky emerged in the art scene in the late 1960s and early 1970s,censorship and repression were commonly imposed by a military dictatorship responsible forone of Brazil’s darkest periods of state political oppression, which began in 1968 and extended through the 1970s . (This era witnessed a wave of mili tarized regimes across Latin America, not just in Brazil, generally support ed by the US government.) During this time, the practice ofmaking art – especially experimental art – was a difficult and dangerous proposition. In spiteof this climate, artists continued to resist authoritarian structures by pushing the boundaries ofexperimentation and the limits of public freedom. Bruscky participated in this and became acurator, creating in Recife a hub for the Mail Art movement. He later became a pioneer of faxart and xerox art (the name photocopy art received in Brazil). Not used to relying on publicor official institutions for support, he developed instead a strong artists’ network: “After all, thedocumentation of works made in the 1970s is in the hands of the artists.” He exchanged lettersand works with Gutai and Fluxus artists, among them Saburo Murakami, George Maciunas,and Dick Higgins, and learned about these movements from articles sent to him by the artistsalongside letters and works.7 He created a number of international events in Recife such as the Artdoor  exhibition (on billboards across the city) with the participation of Christo, among otherwell-known artists.  Bruscky’s archive is not only a seven-thousand-book library and information retrieval systemcontaining extensive correspondence with artists, such as Meret Oppenheim. The collections ofsound poetry and taped interview range from Dada artists to an unpublished conversation withHélio Oiticica. Bruscky has give the archive’s large collection of comic books to his son, who isworking with the medium. “Humor, puns, and word play are always present in my work. Humoris antityranny, antiauthoritarian,” comments Bruscky, who has always taken the sliding meaningof signifiers seriously and, as part of the process, in bohemian fashion, hosts in his studio every

Saturday a group of artists who join him in conversation and the drinking of a good cachaça.

5. Paulo Bruscky, interview with the author during the installation of the São Paulo Bienal, September 23, 2004. Translation

mine. All further quotes from the ar tist are from this interview.

6. Bruscky was jailed three times, in 1968, 1973, and 1976. After 1976 he received death threats over a period of six

months and was constantly followed by the police until he denounced this situation in a solo show at a Recife art gallery,

making public the threats he had been, up to that point, undergoing privately. He was never associated with a political party,

and his militancy was first and foremost cultural and artistic.

7. The Gutai group, founded in Osaka in 19 54, included Jiro Yoshihara, Kazuo Shiraga, and Saburo Murakami. With an em-

phasis on performance, they reinterpreted Abstract Expressionism, then propagating through the media, thus creatively

misreading modernism. A similar creative response is found among Neoconcerte artists in Rio de Janiero in the late 1950s

in relation to geometric abstraction. See Yve-Alain Bois’s entry for the year 1955 in Art since 1900, ed. Hal Foster, Rosalind

Krauss, Yve-Alain Bois, and Benjamin H. D. Buchloh (London: Thames and Hudson, 2004), 373.

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  An important cultural activist working outside the hegemony of Brazil’s major cultural centers(Rio de Janeiro and São Paulo), Bruscky, who has never sold a work in his life, is experiencing anew wave of recognition from major museums and cultural institutions in Brazil.8 Despite all theexposure and attention his work is receiving, being part of the biennial was for him not new, nordid it excite him nearly as much as the precious rare books and catalogues he found on incursionsinto used-book stores during his daily walks between the hotel and the Ibirapuera park, where thebiennial pavilion is located.9 A few days prior to the opening of the biennial, I asked Bruscky whatmight happen to the contents of the archive when it is exhibited primarily for its formal, personal,and idiosyncratic qualities, as a type of Merzbau. He didn’t seem concerned with either the possibleloss of content or the meanings the archive might acquire in this new context. He told me that,for one thing, the biennial docents were carefully instructed by the art historian who knows hiswork best – Cristina Freire – to address the content of the work as well as his working process.Bruscky’s long experience with institutions, curators, and critics, as well as with their limitations, ledhim to work with the certainty that time will tell.

The question of the institutional location of the archive – physical, ontological, and historical – has become increasingly relevant to the writing of contemporary ar t history. As a powerfulmediator between memory and writing, the archive constitutes a fertile territory for historical and theoretical scrutiny, especially for those engaged in writing the history of post-1960s art. In ArchiveFever , Jacques Derrida, focusing on Sigmund Freud’s archive, raised questions that foreground whatDerrida sees as the inherent instability of representational processes. Probing which data belongedinside the archive and which outside, Derrida asked, for instance, which letters and documentsbelonged to Freud’s personal family history and which to his professional life and to the historyof psychology. The deconstruction of the clear boundaries between personal and public spheresperformed by Derrida in relation to Freud’s archives slowly undermined common assumptionsabout origins, genealogy, authority, power, legality, and legitimacy.  Archival Fever  was prompted, aswas my interest in Bruscky’s archives, by the process of transforming the subject’s house into amuseum, and thus by “the passage from one institution into another.” (DERRIDA, 1996, p.3)  Besides Derrida’s important examination of the archive, two other books have broadened issuesof histor y, memory, and representation, offering useful alternative methodologies and approaches to archives. The first is Ann Reynolds’s original approach to Robert Smithson’s archive, which useda morphological methodology not very common among historians, but employed by Smithsonhimself as his working method. These morphological connections of eclectic material, such asimages and written texts, diverse authors, disciplines, and concepts from popular and eruditeculture, are “categories of thought and images that remain invisible to established hierarchies ofinterpretation.” (REYNOLDS, 2003, p.XV). The second book, written from the point of view ofperformance studies and focusing on inter-American cultural relations, is Diana Taylor’s The Archive

and the Repertoire, in which Taylor examines the hegemonic power of text-based archival sourcesover performative, oral, and other ephemeral forms of knowledge. (TAYLOR, 2003).  The experimental, concept-based, and often ephemeral aspects of contemporary art, whichhave only increased since the 1960s, producing fluid lines between work and documentation,certainly benefit from the issues raised by all three books, which pose relevant methodologicalchallenges to more positivist approaches to documentation in art history and criticism. Bruscky’s

8. Bruscky’s first large retrospective exhibition was held at the Observatório Cultural Malakoff, Recife, in 2001. In 2002

Bruscky’s videos were screened at the Fundação Joaquim Nabuco, Recife, at the Cinemateca de Curitiba, Curitiba, and at

 the Agora art center in Rio de Janeiro, accompanied by roundtable discussions. A comprehensive book about Bruscky’s

multifaceted oeuvre, written by Cristina Freire, curator of the Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, is forthcoming.

9. Bruscky’s work had been showcased in the São Paulo Bienal twice before, in 1981 and in 1989, when he was also invited

 to exhibitedheliografias (works created with the technique commonly employed to print architectural blueprints).

Figures 4 and 5:

Paulo Bruscky’s archives at the 26th São Paulo Bienal, 2004 (photograph by the author).

and Kac’s works, writings, and archives put into play logical topologies that often escape thechronological and medium-based analytical methods of art history and criticism.

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The Artist as Theorist: Art Writing as Topology

In September 2004, while Laura Marsiaj Contemporary Arts in Rio de Janeiro showcased Kac’ssolo show, his work was simultaneously exhibited at the Gwangju Biennale and the São PauloBienal, as well as in group shows in Chicago, Lima, and other cities. On top of this busy exhibitionschedule, Kac was also finishing the production of two books, each collecting writings from adifferent period of his career. The first, Luz & Letra (thus far available in Portuguese only), is ananthology of his articles and essays written between 1981 and 1988 and published in the mostimportant newspapers in Rio de Janeiro and São Paulo, along with an appendix of projects andsketches of the period. (KAC, 2004) Examining the broad field of visual culture in the 1980s, thesearticles have had a lasting impact. In their visionary originality, they were early critical probes at the in tersection of art, literature, technology, and popular culture. Written in an elegant, direct,and informative style, from a perspective both Brazilian and international, Kac’s essays challengedestablished artistic values and venues, while opposing the label of the 1980s generation in Brazilas primarily a “return to painting” movement. In the preface to Luz & Letra, the art critic PauloHerkenhoff, a former curator at the Museum of Modern Art in New York, stresses the impor tanceof Kac as theoretician: “This book is a document of Brazil, which retrieves the decade of the 1980s – a period thought to have been lived under the tyranny of painting – as a moment of gestation ofnew ideas. Eduardo Kac is a precursor among precursors of media ar t theory […] his action wasalways characterized by an intention to alter a system of hierarchies through the rescuing of artistsand experiences.” (HERKENHOFF, 2004, p.18)  Kac’s second book, with selected essays from 1992 to 2002 was published in 2005 by Universityof Michigan Press and titled Telepresence and Bio Art: Networking Humans, Rabbits, and Robots. In theforeword, James Elkins points out:

This is an unusual book, because Kac has participated in the movements he discusses. He is an artist and also,

at times, an historian. The combination is rare. A comparison might be made to Robert Motherwell, except

 that as an historian he was more concerned with surrealism than the art of his own generation: he separated

documentation from creation in a way that Kac does not. Eugène Fromentin might be another example, and

among near-contemporaries there are Meyer Schapiro, Leo Steinberg, and David Summers. It’s a short list. The

closest comparisons may be to Moholy-Nagy, or to Paul Signac, who wrote a history of French painting up to

and including his own generation, or, though he’s not much of an historian, Frank Stella. (ELKINS, 2005, p.vi)

  Elkins is right in positioning Kac as a historian “at times,” because most of the time, the artist is a theoretician. In his writings, the historical research is at the service of his theoretical argumentation.10 Kac’s book articulates several new concepts he has introduced, such as telepresence art, telempathy,

and performative ethics. Kac’s work and essays about a new art based on the networking of humans,plants, animals, and machines not only examine current issues in science, technology, and culture,

10. Among Kac’s contributions as a historian is the Leonardo editorial project titled “A Radical Intervention: Brazilian Elec-

 tronic Art.” For the most recent article of this ongoing series, Kac invited scholar Ruy Moreira Leite to write a paper about

what Kac saw as the ar tist Flávio de Carvalho’s pioneering use of the media. In 1956 the São Paulo artist and provocateur

de Carvalho introduced his summer garment New Look  in now-legendary Experiences for the press and on the streets of

São Paulo. In 1957 he introduced it on TV. Carvalho’s garment consisted of a short pleated skirt, a blouse with puffy short

sleeves, a hat made of s emitransparent fabric, and fishnet tights. See Rui Moreira Leite, “Flávio de Carvalho: Media Artist

Avant la Lettre,” Leonardo 37, no. 2 (April 2004): 150–57, available online at http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/

isast/spec.projects/brazil.html. Further editorial projects by Kac are: Signs of Life: Bio Art and Beyond   (Cambridge, MA: MIT

Press, 2006); and Media Poetry: Poetic Innovation and New Technologies (Bristol: Intellect, 2006), first published as a special

issue of the journal Visible Language 30, no. 2 (1996).

but also create dialogue with other artists and radical thinkers, often across time and space, wholike him seek or have sought art’s meaning in nontraditional places and fields of knowledge.

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11. In Rabbit Remix Kac exhibited a series of photographs, drawings, a flag, a web piece, and a limited-edition artist’s book

entitled It’s not easy being green!

Figures 6, 7, 8, 9, 10 and 11:

Eduardo Kac, Free Alba!, 2001, series of six color photographs mounted on aluminum with Plexiglas, each 36 x 46-1/2 in.

(91.4 x 118.1 cm), edition of 5, shown in the exhibition Rabbit Remix at Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro,

Brazil, 2004 (artwork © Eduardo Kac). Media coverage of Kac’s GFP Bunny included articles in the Washington Post , Folha de

São Paulo, Le Monde, Ann Arbor News, Boston Globe, and Die Woche. Kac incorporated the coverage in Free Alba!

  The meaning Kac gives the word aesthetics, for instance, can be understood as both a topos(a theme) and also as a topology (either physical or logical). In the case of information networks,processes of communication can differ depending upon whether one is referring to a physical topology (e.g., the shape of a local area network) or a logical topology (e.g., the protocols that allowdata flow within the networks). Kac’s topological aesthetics emphasizes communication processesin real-time events and, since his employment of biotechnology as a medium, in the creation andsocial integration of new life forms. Didier Ottinger, the chief curator of the Centre GeorgesPompidou, Musée National d’art moderne, Paris, compared the impact of Kac’s redefinition ofaesthetics to that of Marcel Duchamp’s:

Eduardo Kac’s GFP Bunny set off shockwaves in the field of art comparable to those caused by Marcel Du-

champ’s urinal. Following the example of its sanitary forerunner, the rabbit’s “prestige” grows in proportion to

its invisibility. The animal, “created” by a French laboratory (the INRA at Jouy-en-Josas), was never exhibited in the public space for which it was conceived. On the other hand, its photograph did make the front page of

 the world’s most important newspapers. Like the urinal, the fluorescent rabbit raises questions that prompt

us to redefine our own ideas and aesthetic criteria. (OTTINGER, 2004, p. 66-68)

  There is indeed an uncanny juxtaposition between the publications of Kac’s writings from the1980s and his 2004 solo exhibition Rabbit Remix.11 The show orchestrated the presence of GFPBunny  in the global media and a further intervention in the public space of Rio de Janeiro – thescene where the artist first started reclaiming public space in the early 1980s, while contributing to the erosion of censorship and the return of a democratic regime. The drawings and large

12. Barry Gewen, “State of the Ar t,”New York Times, December 11, 2005. Gewen underlined the bleak state of contempo-

rary ar t criticism by mentioning critics from Clement Greenberg and Michael Fried to Harold Rosenberg, Hilton Kramer,

and, more recently, Donald Kuspit, who have lamented the gratuitous excesses and lack of restraint in art from the second

half of the twentieth century. Even when enlisting more sympathetic critics of contemporary art, such as James Elkins, Ar-

 thur Danto, and the October  group, Gewen observed they have not offered very positive answers to the question “Is the

avant-garde running out of steam?”

photographs the artist exhibited in Rio de Janeiro continued the discussion of bio art in relation to science, ethics, religion, and family, issues Kac addresses in many forms beyond the gallery, suchas articles and interviews, lectures and debates, and public interventions. Kac’s remixing of the GFPBunny  icon, which includes the reappropriation of the media response to his work, both verbal andvisual, employs the media as a medium.

A Topological Approach to Art and the Crisis of Criticism

In the course of the several decades that their trajectories span, Bruscky and Kac have forged through their practices the very space in which their work takes place. Unlike contemporaries whohave relied on established media (such as painting) and whose work is embraced and circulatedfreely in acknowledged institutions (such as museums), Bruscky and Kac have often worked withnew technologies and remote communication, short-circuiting the effects of institutional andmarket validation as well as physical distance in the circulation of their works. In their case thecommunicative act itself often constitutes the work. Thus, it is clear that the artists have takena position that is critical of the institutional and discursive limitations that have not been able toincorporate and engage with their practices. This critique, which is often implicit in the materialmanifestation of their works, at times becomes explicit, as in the case of Bruscky’s exhibition of hisarchive and Kac’s books – both of which have I sought to highlight here.  Whether Bruscky and Kac perform criticism as an art practice or art as a critical practice, theirmultiple roles as ar tists, researchers, archivists, and theoreticians offer new topological approaches to the historicization of art since the 1960s. If there is a common agreement in current discussionsof art criticism, it is the recognition of a general crisis as foregrounded by the 2002 Octobergroup roundtable “The Present Conditions of Art Criticism,” by James Elkins’s 2003 booklet WhatHappened to Art Criticism? , by Raphael Rubinstein’s 2003 article “A Quiet Crisis,” and by NancyPrincenthal’s 2006 article “Art Criticism, Bound to Fail.” (KRAUSS et alii. 2006, p. 43-47). Othercritics have also called attention to the apparent paradox between the vibrant expansion of theglobal art market and the simultaneous demise of criticism in recent decades, pointing to theincreased inability of contemporary critics to make value judgments, as art criticism becomes evermore informative and promotional than critical. 12 The relationships among art history, art criticism,critical theory, and literary criticism are more fluid than ever.  Judgment, in the sense of keeping up standards of “quality,” however important in the past, nolonger seems to be the most important function of the ar t critic. Whether critics write in a moresubjective and impressionistic literary style or base their work on more rigorous theories such assemiotics, psychoanalysis, and Marxism, art’s meaning and interpretation are increasingly an ongoing,

largely “collaborative” process negotiated among multiple readers-viewers-participants andinstitutions, including those in the cultural industry. The role of the mass media and the art marketin imposing the cultural value of an artist is paramount but seldom if ever analyzed or critiqued.  It is not uncommon for critics to collaborate with avant-garde projects; examples includeClement Greenberg in relation to Abstract Expressionism, Ferreira Gullar and Mario Pedrosawithin the Neoconcrete movement, Lucy Lippard in relation to Conceptual art and the women’s

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art movement, Rosalind Krauss in relation to Minimalism and Postminimalism, Guy Brett in relation to the kinetic and participatory works of artists such Hélio Oiticica and Lygia Clark, and FrankPopper in relation to new media art. For Krauss, an important function of criticism is “scanning thehorizon for some new blip appearing on it.”13 Her statement can be understood in relation to thepresent and future of ar t, but also in relation to the past, which is always written from the present,as previously overlooked contributions are found and old legacies reinterpreted anew.  In these discussions , however, there is rarely a reference to the vibrant expansion and the formalor intellectual innovations of new media art, perhaps because the new media embrace a temporalityand spatiality produced by the constant acceleration, overload, and complication of our natural andcultural environments. This development may be perceived to be at odds with the traditional focusof the humanities – but certainly not with the routine experiences of using cell phones, iPods,DVDs, ATM machines, e-mail, web searching and online commerce, to name a few common usesof contemporary technology that may be combined with watching TV and listening to the radio. Is this growing complexity good? What does “good” mean? Understanding the heterogeneous valuesand truths of our denser information environment and making sense of the paradoxical, unforeseenrelations among these elements are in large part what art and critical theory do best, especiallywhen working together. Elsewhere in contemporary ar t, less-examined histories also suggest thatart since the 1960s has continuously thrived in direct dialogue with criticism.  As with other artists who archive and write about the movements they participate in, the firstimpetus for Bruscky and Kac to document, to identify predecessors, and to cultivate a networkof collaborators might have been prompted by the need to create a critical space for their work to develop.14 As Bruscky’s studio-archive has exemplified – changing its function from an archiveof artworks to the archive as artwork – art and documentation may easily change places in hispractice according to the institutional context in which they appear. And as we saw with Kac’sRabbit Remix, the artist has transformed the media and public reception of hi s GFP Bunny  into thematerial for a new series of artworks.  The subtitle of Kac’s 2005 book – Networking Humans, Rabbits, and Robots – highlights a radicaland hybrid connectivity in which, I argue, his books are themselves a constitutive element, asnetwork hub.15 Kac has often approached art institutions less as containers of culture and more asinterface – as one more node of his networked ecologies. Such was the case of his telepresenceinstallation Rara Avis (1996), in which the artist brought the internet into his gallery for the first time, to connect local and remote participants in the experience of a large aviary from the point ofview of a telerobotic macaw.16 Likewise, Kac’s writings connect hybrid aesthetic elements such aslanguage, light, and life, but can at the same time be seen at the crossroads of multiple institutionalcontexts such as the studio, the internet, the museum, the art market, scholarly research, and themass media.

13. Krauss, October  100, 216.

14.  Other examples in the United States, besides Kac’s Telepresence & Bio Art, include Donald Judd, Complete Writings

1959–1975 (Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 2005); Andrea Fraser,  Museum Highlights: The Writings of

 Andrea Fraser (Cambridge, MA: MIT Press, 2005); Martha Rosler, Decoys and Disr uptions: Selected Writings, 1975–2001 (Cam-

bridge, MA: MIT Press, 2004); Robert Smithson, The Collected Writings, ed. Jack Flam (Berkeley: University of California Press,

1996); and Joseph Kosuth, Art after Philosophy and After: Collected Writings, 1996–1990 (Cambridge, MA: MIT Press, 1991).

15. Simone Osthoff, “Eduardo Kac: Networks as Medium and Trope,” in Ecosee, ed. Sid Dobrin and Sean Morey (State Uni-

versity of New York Press, forthcoming).

16. Rara Avis premiered as part of the exhibition Out of Bounds: New Work by Eight Southeast Artists , curated by Annette

Carlozzi and Julia Fenton at Atlanta’s Nexus Contemporary Art Center, June 28 – August 24, 1996. In 1997, Rara Avis trav-

eled to three other venues: the Jack Blanton Museum of Art, Austin, Texas; the Centro Cultural de Belém, Liston, Portugal;

and the Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre, Brazil, as part of the Bienal de Ar tes Visuais do Mercosul.

This essay was originally published in Art Journal (Winter 2006): 6-17.

Figure 12:

Paulo Bruscky, Mail Art envelope with an X-ray of the ar tist’s face, 1976, dimensions TKTK (artwork © Paulo Bruscky).

  The juxtaposition of the publication of Kac’s Luz & Letra with his exhibition Rabbit Remix revealsa direct relationship from the beginning of his career among his work, his critical writings, thegallery space, and the space of the mass media. In September of 2004 these multiples arenas wereoccupied simultaneously by the glowing rabbit icon, which also appeared throughout the city of Rio,continuing its four-year rapid propagation along with a controversy of unforeseen scale and speed.  Bruscky’s archives and Kac’s new books are more than collections of objects or texts to beconsulted at a later time by an isolated researcher. The active and public diffusion of these artists’archives and books plays a direct role in the kind of art these artists make and the space inwhich the works circulate, as the works engage multiple institutional spaces topologically. Theunique relations created between Bruscky’s archives and Kac’s writings and their respective artisticproductions – which for the most part have privileged real-time events, indexical processes, liveinterventions, and (in Kac’s case) life creations – are examples of the complex issues involvedin writing the history of contemporary art, in which the boundaries between work, writing,documentation, and reception are often fluid and include the multiple institutional spaces theartists help transform.17

17. See Cristina Freire, Poéticas do Processo (São Paulo: Iluminuras, 1999), in which the Brazilian curator and ar t historian

explores the uncertain place, both physically and conceptually, of the 1970s artistic production within the archives of the

Museu de Arte Contemporânea of São Paulo, Brazil, which contains works by both Bruscky and Kac, among others.

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A Fragilidade como Potência:Precariedade e Imagem

LUCIANA PAIVA *

ResumoCertas propostas poéticas parecem potencializar-se a partir de sua própria indeterminação e fragilidade. A redução, o

deslocamento e a metáfora do deserto apresentam-se aqui como noções que nos conduzem a pensar sobre os limites da

própria experiência visual. A instalação All, desenvolvida entre 2008 e 2009, é apresentada como o ponto de par tida e de

convergência das questões abordadas.

Palavras-chave: Artes visuais. Instalação. Redução. Fragilidade.

 Abstract

Some poetic propositions seem to be enhanced by means of their own fragility and indetermination. Strategies such as reduction,

displacement and the evocation of the desert as a metaphor are presented in this essay as notions that enable us to reflect onto

the boundaries of visual experience itself. The installation All, developed throughout 2008 and 2009, is presented both as a starting

point, as well as a point of convergence to the themes developed.

.Keywords: Visual arts. Installation art. Reduction. Fragility.

* Artista Visual e pesquisadora. Possui mestrado em Arte na linha de Poéticas Contemporâneas pela Universidade de

Brasília (2010), sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Orthof, e bacharelado em Artes Plásticas (2006) pela mesma institui-

ção. Realiza exposições regulares desde 2004 e tem interesse nos seguintes temas de pesquisa: palavra e imagem, livro de

artista, animação e instalação.

Sou partidário do movimento mínimo,

da menor alteração que provoca a maior 

revolução na percepção da realidade.

 Jorge Macchi

As considerações a seguir integram a pesquisa realizada durante o curso de Mestrado em Arte

e partem de questões que perpassam a produção poética realizada a partir do ano de 2005. En- tretanto, a instalação All [Figs. 1 e 2], elaborada durante o curso, apresenta-se como o ponto deconvergência da abordagem realizada na presente pesquisa. A instalação consiste na apropriaçãode papéis laminados utilizados para embalar chocolate  Alpino e na disposição dos mesmos naparede, com focos de luz em alguns pontos, sob os papéis. Cada embalagem, cuidadosamenteesticada para que fique no formato quadrado, é disposta com a face dourada virada para aparede, de modo a produzir um reflexo amarelado nas áreas iluminadas. Além disso, é possí-vel entrever alguns focos de luz por pequenos furos provocados pela manipulação dos papéis,

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sendo que a visualização deste detalhe ocorre somente com a aproximação em direção a cadamódulo específico.

1.  Iremos privilegiar aqui algumas questões relativas à abordagem sobre a redução e suas implicações no contexto

dessa pesquisa.

2. PRECARIOUS In: Merriam-Webster Online. Disponível em: <http://www.merriam-webster.com/>

3. “Con respecto a la escala de las obras, en general no trabajo c on la espectacularidad, tiendo a una arte íntimo, que logre una

conexión fuerte, casi individual con el espectador. No tengo muy claro el por qué, pero me gustaría que el espectador tuviera con

algunas de mis obras la relación que podr ía establecer con un libro”.

Entrevista concedida pelo artista à Ana Paula Cohen na ocasião da XXVI Bienal de São Paulo. (MACCHI, 2004). Disponível

em: <http://www.jorgemacchi.com/cast/tex01.htm>

4. “É importante manter em mente que tanto a decisão de Duchamp quanto a de Malevich foram renúncias – por parte

Figuras 1 e 2:

 All, Luciana Paiva, 2009, detalhes da instalação.

 tísticas. Procura-se estabelecer relações com artistas contemporâneos, como Jorge Macchi (1963)e Francis Alÿs (1959), cujas estratégias utilizadas aproximam-se da realizada em All, bem como re-alizar pontes através da História da Arte que auxiliem a abordagem das questões levantadas. Para tanto, optou-se pela escolha de uma temática comum que conecte essas propostas, identificada nanoção de “precariedade” que, ao longo da pesquisa, é desmembrada em quatro possibilidades deinvestigação: a vertigem, a noção de redução, a efemeridade e a apropriação de materiais ordiná-rios em propostas artísticas, subvertendo seu uso cotidiano1.  O sentido de precário pode ser compreendido em sua acepção etimológica como “aquele quepede ou suplica”2. Nesse sentido, a imagem precária que desejamos evocar é um convite, queconvoca nosso olhar e reivindica nossos afetos. Tal imagem não se impõe ao olhar, mas precisa dedisponibilidade e atenção para que esse encontro se realize. O movimento proposto é, portanto, ode atentar-se para esta experiência afetiva e particular propiciada por uma relação de cumplicida-de entre obra e observador, que nos parece essencial nesta investigação.  A arte apresenta-se como um local de refúgio não por gerar um conforto superficial e aparente,como o evocado, por exemplo, nas imagens publicitárias; mas, justamente, por opor-se a isto, sendoum campo de incer teza, onde a visão converte-se em imprecisão de limites e contornos, os mate-riais podem reivindicar sua desintegração e a obra em si adquire uma pluralidade de sentidos pos-síveis. Em suma, um espaço de constante questionamento onde é possível “(...) esburacar o véu decegueira que a racionalização e o tecnicismo contemporâneo nos impõem” (SOUZA, 2007, 35).  As propostas artísticas tornam-se uma passagem, uma abertura para um espaço não acabado,vertiginoso e incerto; um espaço potencial que nos permite reconsiderar certezas, firmando-secomo um campo onde ainda é possível assumir o risco de sonhar.

Movimento Mínimo: O Deserto é Mais

Ao falar sobre sua produção, o artista argentino Jorge Macchi resume, em parte, a relação quedeseja que o espectador mantenha com seus trabalhos: íntima ou individual, próxima daquelaestabelecida com um livro3. Para o artista, essa e outras estratégias, como lidar com mínimos des-locamentos, pequenos acasos cotidianos e alterações quase imperceptíveis no espaço expositivopotencializa a percepção em um sentido praticamente oposto ao da espetacularização.

Segundo Barbara Rose, a ideia de “mínimo irredutível” na arte é iniciada pelas questões lançadaspor Kasemir Maliévitch e Marcel Duchamp, que irão influenciar toda uma geração de ar tistas pre-ocupada com a simplicidade da redução e com uma aproximação ao mundo das coisas:

It`s important to keep in mind that both Duchamp`s and Malevich`s decisions were renunciations – on Duchamp`s

part, of the notion of the uniqueness of the art object and its differentiation from common objects, and on Malevich`spart, a renunciation of the notion that art must be complex.4 (ROSE, 1965, 277).

  A utilização de um material industrial reaproveitado, o deslocamento deste material para o es-A utilização de um material industr ial reaproveitado, o deslocamento deste material para o es-paço da galeria e sua reconfiguração poética no contexto da instalação suscita o levantamento deconsiderações a respeito da valorização de instâncias efêmeras, banais e frágeis em propostas ar-

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  A influência dessas decisões reverbera na produção de um grupo de artistas da década de 60,chamado de Minimalista,5 fundamental para chegarmos ao conceito de “mínimo” que queremosutilizar aqui, principalmente pela busca em estabelecer outra forma de relação entre o espec- tador e o objeto fundada, essencialmente, na relação entre o corpo e a percepção do espaçoque o circunda.6 Além disso, havia a necessidade, por parte desses artistas, de contrapor-se aoexpressionismo abstrato, propondo uma arte que se apresentasse de maneira impessoal e que,de certo modo, neutralizasse o “eu” do artista, acentuando, assim, a experiência do espectador.Deste modo, a repetição, a horizontalidade e a ideia de uma percepção do objeto desvencilhadada emoção biográfica do autor são algumas estratégias utilizadas por eles e incorporadas por todauma geração posterior que vem “(...) declarar a excentricidade da posição que ocupamos relativa-mente a nossos centros físicos e psicológicos” (KRAUSS, 1998, 334).  O “movimento mínimo” proposto por Macchi segue esta vertente, que aposta em uma forçaequivalente e oposta à do expressionismo abstrato ou à ideia de uma arte grandiosa e imponente.Entretanto, para Macchi, o que está em questão é fundamentalmente uma carga afetiva atribuídaao material. Não existe neutralidade, mas também não se deseja exaltar o gesto do artista. Ogesto é sintético, reduz-se a uma escolha, e o afeto contido em cada escolha potencializa-se porimplicar em várias renúncias:

 Mirar y seleccionar, ese es mi trabajo. En la medida en que el objeto está cambiado de contexto, de función, de esca-

la y hay una oscuridad alrededor, uno centra la atención inmediatamente en él y tiene otra significación. Por supuesto

que no es un método mío: desde Duchamp eso es moneda corriente en el arte contemporáneo. El trabajo de todo

artista es un trabajo de selección: un pintor que está delante de su tela elige constantemente colores. A mí no me

 gusta elegir colores, prefiero elegir determinadas formas u objetos que me llamen la atención.7 (MACCHI, 2004).

  A instalação All, realizada durante o curso de Mestrado em Arte, parte dessa mesma noçãode seleção proposta por Macchi. Os módulos quadrados que compõem o trabalho são papéislaminados reutilizados. A busca de variação na repetição, a utilização de um material produzidode forma industrial e a ocupação do espaço da galeria são algumas das características que podemser mencionadas em relação ao legado minimalista. Porém, em  All o gesto é potencializado comoescolha afetiva. Por ser uma maneira pouco virtuosa e quase infantil de lidar com o material, ogesto que nos interessa é trivial, capturado no horizonte efêmero do cotidiano. A precariedade dopapel laminado reaproveitado torna-se necessária para sua potencialização, para a passagem doordinário uso de embalagem à invenção deste papel como retalho de um céu, embalagem de luzque forma suas próprias constelações. Não se trata, portanto, apenas de evidenciar as variaçõesvisuais de cada módulo, os rasgos e amassados de sua superfície frágil. O irresistível das proprieda-des que o material apresenta é que, se formos capazes de seguir suas marcas, de ler suas “digitais”,

de Duchamp, do caráter único do objeto de ar te e sua diferenciação dos objetos comuns, e por parte de Malevich, uma

renúncia da noção de que a arte deve ser complexa.” (tradução livre).

5. “Minimalismo” ou “Arte Literalista” era a nominação dada por teóricos da época à produção de um grupo composto prin-

cipalmente por Donald Judd, Robert Morris, Dan Flavin e Carl Andre, que, durante a década de 60, realizava trabalhos com

características comuns. Os artistas não se consideravam um grupo, tanto que cada um desenvolveu suas próprias teorias.

6. Rosalind Krauss nos aponta a forte influência das ideias de Merleau-Ponty e de sua Fenomenologia da percepção (1945)

na elaboração deste pensamento. (KRAUSS, 1998, 319)

7. “Olhar e selecionar, esse é o meu trabalho. Na medida em que o objeto está fora de contexto, de função, de escala e

existe uma obscuridade ao redor, pode-se imediatamente centrar a atenção nele e ter outra significação. Certamente, este

não é um método meu: desde Duchamp isso é moeda corrente na arte contemporânea. O trabalho de todo artista é um

 trabalho de seleção: um pintor diante de sua tela elege constantemente as cores. Eu não gosto de eleger cores, prefiro

eleger determinadas formas ou objetos que me chamem a atenção.” (tradução livre).

perceberemos que elas sugerem uma s ituação constelar própria, inventada a partir da percepçãode um cotidiano banal, mas secretamente fantástico.

8. “Simplicidade da forma não se iguala necessariamente à simplicidade da experiência.” (tradução livre)

9. “Suprematismo” ou “novo realismo pictórico” são as denominações do movimento criado por Maliévich, Olga Rózanova

e Ivan Kliun em 1915. As composições suprematistas propõem um distanciamento da pintura figurativa, baseando-se, prin-

cipalmente, na ideia de “economia” e “não objetividade”. (MALIÉVITCH, 2007).

Figuras 3 e 4:

Horizonte, Jorge Macchi, 2002.

  A repetição do quadrado como superfície, rearranjado no espaço expositivo, também nos re-A repetição do quadrado como superfície, rearranjado no espaço expositivo, também nos re-

mete à busca de uma simplicidade da forma, sendo que, como nos aponta Robert Morris, “simpli-city of shape does not necessarily equate with simplicity of experience.”8 (MORRIS, 2003, 830). DesdeMaliévitch, a forma quadrada surge como símbolo de máxima redução, sendo que, para o pensa-mento suprematista9 é justamente essa representação não objetiva, quase didaticamente encontra-da na forma do quadrado (que se contrapõe às formas orgânicas encontradas na natureza), quelivra a arte de uma representação ilusionista e permite a percepção do que é realmente essencial:o sentimento. Posteriormente, como o próprio Maliévitch já apontava, a simplicidade do quadradosalta do plano pictórico e suas possibilidades continuam a ser exploradas de várias formas.

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10. “(...) toda obra de arte teve e ainda tem uma janela utópica por onde podemos ver uma paisagem no processo de

constituição.” (SOUZA, 2007, 33)

11. Aqui, também podemos pensar no deserto como em um espaço acolhedor de todas as utopias, heterotópico, portan-

 to, no sentido definido por Foucault. FOUCAUT, Michael. Of other Spaces (1967), Heterotopias. Disponível:

<http://foucault.info/documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.en.html>

12. “A imensidão do deserto vivido repercute numa intensidade do ser íntimo” (BACHELARD, 2003, 209.)

  Para esclarecer sua ideia de não objetividade, Maliévitch utiliza a imagem do “(...) ‘deserto’, noqual nada além do sentimento pode ser reconhecido” (MALIÉVICH 1999, 345). Nesse momentoo deserto representa um esvaziamento necessário para o surgimento de novas possibilidadespictóricas a serem exploradas. A imagem do deserto (que será posteriormente reutilizada inúme-ras vezes por outros artistas como metáfora e como espaço de produção) carrega o conteúdoalmejado, pois parte do princípio de um espaço teoricamente vazio, ou ainda, “cheio de ausências”(MARQUES, 2001, 22). Uma imagem que, por sua eficácia, pode conter qualquer outra.  Para nós, é importante resgatar o deserto como espaço potencial onde ainda cabe produzirimagens, sem a interferência dos excessos de um mundo dominado por imagens esvaziadas. O ar- tista Helio Fervenza apresenta as condições deste esvaziamento atual, pensando na desertificaçãocomo nestes “espaços de grande adversidade e aridez” que vinculariam a produção de arte a um tipo de produção econômica ligada ao capital multinacional (FERVENZA, 2003). Fervenza utiliza ametáfora do deserto, resgatando o sentido de adversidade mencionado por Hélio Oiticica (1937-1980) para indicar a condição da vanguarda brasileira, bem como sua proposta de reconfiguração.Essas imagens acrescentam, portanto, o sentido de resgatar o deserto como imagem utópica,como uma paisagem “inacabada”10. Porém, não mais como uma metáfora da tabula rasa e simcomo paisagem receptora que se reapresenta a cada nova experiência11.  Nesse sentido, aproximamo-nos das considerações de Gaston Bachelard, que apresenta na no-Nesse sentido, aproximamo-nos das considerações de Gaston Bachelard, que apresenta na no-ção de deserto a medida da expansão de um universo íntimo. Uma “interiorização do deserto”não corresponderia a um vazio interior ou a uma escassez de recursos, ao contrário, a imensidãocontida nesta imagem remeteria à nossa “consciência imaginante”12. O deserto seria, portanto, umespaço vazio em potencial para aquele que se arrisca a imaginá-lo.

Figuras 6:

Sem título, Mira Schendel, 1964.

Figuras 7:

1st wire bridge, Richard Tuttle, 1971.

  Mira Schendel utiliza-se muito bem dessa noção de um vazio potencial e de um espaço nãoobjetivo e não figurativo, noção aberta por Maliévich, tempos atrás. Embora a artista recusasse serenquadrada nos grupos de sua época, sua obra parte de uma linha formal construtiva exploradapelos concretistas brasileiros, mas “(...) em lugar da positividade concreta há um certo ceticismodifuso, talvez um pessimismo sutil. Seus trabalhos são densos, austeros, preservam o sujeito no li-mite de sua expressividade mínima” (MARQUES, 2001, 21). Assim, acaba por aproximar-se de umaorganicidade não racional e espiritual, que despontava como oposição ao pensamento concretista,apontando para afinidades com o Neoconcretismo13.

  Ao marcar o quadrado na superfície pictórica emplastada de tinta [Fig. 6], a artista resgata, pormeio de uma alteração sutil, um espaço de intimidade dentro do próprio quadro, pois seu traço trêmulo é fronteira, demarca um limite que não precisa mais remeter-se ao da tela, mas que re-verbera na intimidade da própria artista. Em seus trabalhos o “(...) vazio que evoca o absoluto, o tempo imanente e eterno, contrasta com a efemeridade do gesto inacabado” (MARQUES, 2001,29). Trata-se, portanto, de acrescentar um ponto de vista mais despretensioso em relação ao gestoe à intencionalidade do artista.  Neste sentido, a “ponte” de Richard Tuttle [Fig. 7] conecta-se intimamente com isto que “(...) naaparente fragilidade consegue garantir uma sustentação arquitetônica”, presente na obra de MiraSchendel (2001, 29). A delicadeza de First Wire Bridge atenta justamente para um espaço interme-

diário entre objeto e sombra projetada. O vazio delimitado pelo arame já não importa tanto quan- to o espaço criado pela ponte invisível que conecta as duas partes do trabalho. Além disso, a dispo-sição quase imperceptível do trabalho no espaço expositivo exige um olhar extremamente atento.  A estratégia de Tuttle acaba por transformar o próprio espaço de exposição neste local esvazia-A estratégia de Tuttle acaba por transformar o próprio espaço de exposição neste l ocal esvazia-do, onde o espectador é convocado a estar atento à mínima alteração, correndo o risco, caso nãoesteja realmente disponível, de perder seus referenciais.14 Isso se dá não apenas pela simplicidade

13. “A ruptura neoconcreta na arte brasileira data de março de 1959, com a publicação do  Manifesto Neoconcreto pelo

grupo de mesmo nome, e deve ser compreendida a partir do movimento concreto no país, que remonta ao início da

década de 1950 e aos artistas do Gr upo Frente, no Rio de Janeiro, e do Grupo Ruptura, em São Paulo”. NEOCONCRE-

TISMO In: Enciclopédia Itaú Cultural de artes visuais. Disponível em: <www.itaucultural.org.br/>.

14. Na ocasião da 25º Bienal de São Paulo (2003), a artista Ana Miguel também falava do deserto como este espaço extre-

mamente extenso, onde é necessário o máximo da nossa atenção para que o mínimo detalhe seja percebido.

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da estrutura em questão, mas, principalmente, pela escala reduzida do trabalho, que acaba porampliar o espaço ao redor. O observador converte-se, portanto, neste ser atento que obser va osdetalhes e que precisa estabelecer uma relação de proximidade com o que obser va.  Em All, assim como em outros trabalhos produzidos anteriormente ao curso de Mestrado, essaproximidade também é convocada. Se, à primeira vista, uma visão distanciada sugere uma compo-sição constelar geometrizada pelo formato quadrado e repetitivo da embalagem e pelo reflexoproduzido em alguns pontos, com a aproximação percebe-se que cada embalagem iluminada também se revela enquanto um pequeno nicho estrelado. A ideia de repetição, evidente na dispo-sição modular dos papéis, reaparece na imagem de pequenos nichos contidos em outro, maior. Decerto modo, o detalhe acaba por conter o todo, tornando a alternância entre próximo e distanteum jogo circular e reafirmando a necessidade de atenção ao detalhe e ao ínfimo. Pois, “(...) apenasao concentrarmos o olhar sobre algo que parece insignificante, é que o seu significado cósmico esua capacidade de desestabilizar expectativas ganham vida.”. (PÉREZ-BARREIRO, 2007, 36)

“Por Que Isto não é Nada?”

O olhar atento é como uma ponte que pode nos conduzir ao segredo escondido nas superfíciesque nos cercam. O deslocamento desses detalhes para o contexto da galeria gera um caminho demão dupla, pois acabamos por transportar essa nova relação estabelecida com as coisas de voltapara o cotidiano.

Ao encontrar em seu caminho uma estrutura que parece um aglomerado de materiais, semsentido lógico no sistema dos objetos que têm propósitos funcionais, Richard Tuttle pergunta-se:“por que isto não é nada?” 15. O que existe naquela superfície que captura o olhar? O que faltapara que o olhar lançado sobre isto que nomeamos de nada pela simples falta de habilidade, oude necessidade de um nome, possa concretizar-se como um ato artístico?

Um grande artista pode f azer arte simplesmente ao lançar um olhar. Uma série de olhares poderia ser tão

sólida quanto qualquer coisa ou lugar, mas a sociedade continua a privar o artista de sua “arte de ver”. (SMI-

THSON, 2006, 197.)

  A arte nos surge, portanto, como a possibilidade de manter os segredos em suspensão, como aresistência a uma comercialização da intimidade, pois mesmo que toda proposta possa ser institu-cionalizada e abarcada por sistemas sociais que tentem compreendê-la e atribuir-lhe uma função(social, cultural, comercial), o que ocorre de fato é que todo trabalho oferece uma resistência.Existe algo que escapa e que não é facilmente capturável. Algo que conduz toda tentativa de ex-

plicação elucidativa a um ponto de vista, pois “todo olhar sobre a obra é um olhar com cicatrizes”(PANITZ, 2001, 41).Podemos, portanto, pensar que qualquer proposta artística surge como aparição efêmera do

ponto de vista do observador. Para além da materialidade física proposta, nenhum trabalho existe,de fato, fora do que articulamos como versão sobre ele. Nenhum trabalho exclui a memória, oinstante em que o vemos e a construção individual que somos. O que fazemos é apenas compar- tilhar as mesmas superfícies e aferir as marcas que possibilitam redescobrir o cotidiano e dotá-lode novas possibilidades.

15. Fala do artista, retirada do vídeo Richard Tuttle: Never Not an Artist. 2005.

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As Sombras dos Cantos:Um Estudo dos Espaços Públicos e Privados da Casa

CECILIA MORI CRUZ *

ResumoO presente texto configura-se como um estudo teórico-poético da casa como espaço que compõe as dimensões do

público e do privado. Para tanto, foram feitos alguns levantamentos a partir de minha produção recente de ateliê que, em

seguida, foram relacionados com estudos teóricos e históricos sobre os espaços da casa, suas funções e seus significados,

cruzando alguns conceitos como sombra (em Tanizaki), sfumato (em da Vinci), limite (em Halbwachs e em Paul-Lévy e

Segaud) e abjeção (em Bataille e em Kristeva).

Palavras-chave: Sombra. Casa. Limite. Público e Privado. Canto.

 Abstract

The present article was made on the purpose on initiating a theoretical-poetical study of the house as a space that composes

the public and the private dimensions. Therefore, some surveys from my recent artistic production were made, then followed by

theoretical and historical studies on spaces of the house, its functions and its meanings in order to cross them with concepts such

as shadow (according to Tanizaki), sfumato (‘s da Vinci), limits (according to Halbwachs and Paul-Lévy and Segaud) and abjection

(according to Bataille and Kristeva).

Keywords: Shadow. House. Limit. Public and Pri vate. Corner.

* Doutoranda em Poéticas Contemporâneas do PPG-Arte/UnB, sob orientação do Prof. Dr. Geraldo Orthof. Artista

visual, ganhadora do prêmio Artista Revelação do Salão de Artes Visuais do MAB (2001). Bacharel pelo VIS, UnB (2003).

Bolsista (CNPq) do PIP - Itinerâncias Urbanas (SOL, UnB), orientada por Angélica Madeira (2000-2003). Mestre em Poéti-

cas Contemporâneas (2007) pelo PPG-Arte, UnB, orientada por Geraldo Or thof, com bolsa CAPES.

[email protected]

1. BOTTON, Alain de. A Arquitetura da Felicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 119.

Sem homenagear nenhum deus, uma peça de arquitetura

doméstica, não menos do que uma mesquita ou capela, pode nos

ajudar na celebração do nosso eu genuíno.

Alain de Botton1

As conexões a seguir integram o projeto, na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, doDoutorado em Arte. Essas reflexões partem das experiências de ateliê do ano de 2009 alia-das a conceitos da história e da teoria da arte, bem como de outras áreas do conhecimento,gerando um trânsito ininterrupto entre teoria e prática. Maria Beatriz de Medeiros, a partir de

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sua leitura de Heidegger, indica que as investigações artísticas concebem o questionado: “... [ainvestigação em arte] não define, não determina, mas concebe. Faz nascer o processo/produtoartístico da própria pesquisa para, assim fazendo, concebê-lo. […] Determinar, do nosso pontode vista, só seria possível no instante do sublime, ou melhor, seria impossível, já que esse é indi-zível” (MEDEIROS, 2004, p. 4).

A instalação Vestígios de Sombras é construída de fios de lã branca com nós aleatórios e de tamanhos diversos em seu comprimento, fixados às paredes de um canto d a casa por agulhasde máquina de costura industrial. Sendo as paredes da casa de cor branca e estando os fiospresos em paredes que se tocam a 90º, a forma de visibilidade da obra se dá pela projeção desua sombra nas paredes.

Essas sombras das linhas e seus nós são imagens distorcidas com relação às linhas materiais,devido ao ângulo de inclinação dessas linhas nas paredes e ao ângulo formado entre o pontode luz e as mesmas linhas, como pode ser visto na figura 1. As imagens das sombras, porém,mesmo distorcidas, tornam-se as formas mais visíveis da obra e, consequentemente, a demons- tração do real, seu vestígio. Ess e índice de que há algo ali, um algo não visto, dá-se no espaçosensível do monocromo, na sobreposição do branco no branco. Os vértices das paredes reve-lam as linhas, mas a revelação não deixa de velar. Pensar em uma revelação que vela acaba pornos apresentar uma ambiguidade dialética, tal como é pensar em uma topologia dos espaços aomesmo tempo públicos e privados de uma casa.

Figura 1:

Cecilia Mori, Vestígios de Sombras, projeto Moradas do Íntimo, 2009.

  A casa, entendida como o espaço delimitado de habitação dos seres humanos, surge juntocom a linguagem, segundo as antropólogas Françoise Paul-Lévy e Marion Segaud (1983). Paraas autoras, não se sabe ao certo se foi com o surgimento da linguagem que os seres humanossentiram a necessidade de dividir o mesmo espaço físico, ou se, na própria coabitação, formou-se a linguagem.  No texto La Notion de Limite, Paul-Lévy e Segaud relacionam o desenvolvimento do neocór- tex, nos ancestrais diretos do homo sapiens, com o aparecimento da dimensão simbólica, emfunção de uma delimitação do lugar de convivência de um grupo. Com isso, segundo as autoras,a relação de interdependência entre o espaço e os grupos sociais forma e constitui a identidade

desses grupos. As sociedades “estão situadas no espaço, em um espaço que elas particularizame que as particular iza” (PAUL-LÉVY e SEGAUD, 1983, p. 28, tradução nossa).  Na visão de Paul-Lévy e Segaud, a delimitação espacial ocorre tanto no âmbito individualquanto no coletivo. Esta delimitação formaria tanto os espaços de habitação (como as casas)como os de convivência (como os bairros, as cidades e os territórios nacionais). Assim, as auto-ras consideram a elaboração do limite físico como um elemento fundamental na constituição ena representação dos sistemas espaciais das sociedades, uma vez que será apenas com a per-cepção dos contornos, e das consequentes identidades, que os indivíduos e grupos desejarãocriar laços sociais com outros indivíduos e/ou grupos.

Diante da mesma noção, porém do ponto de vista de outra disciplina, a psicanálise consideraa percepção do limite, da fronteira entre o eu e o Outro, um fundamento na constituição dapersonalidade. Para essa corrente do pensamento, o eu vai até o ponto de enfrentamento como Outro. No início da constituição do sujeito, fase autoerótica, este não reconhece o Outro e,por isso, ainda se encontra em fase de formação, sob o olhar da psicanálise. Seria apenas com asfrustrações geradas pelo reconhecimento da alteridade que as esferas psíquicas se constituiriam(Cf. Freud, 1930 [1961]).  Maurice Halbwachs também relaciona o espaço de vivência dos seres humanos com sua pró-Maurice Halbwachs também relaciona o espaço de vivência dos seres humanos com sua pró-pria constituição enquanto indivíduo e/ou grupo, declarando que as imagens do mundo exteriorsão inseparáveis do sujeito. Para o autor, essa relação não é uma simples harmonia, ou umacorrespondência física entre as aparências dos lugares e das pessoas. Ao contrário, afirma que:

Nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a

maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lembram-nos nossa família e

os amigos que víamos geralmente nesse quadro (HALBWACHS, 2006, p. 137).

  O autor complementa, afirmando que “quando um grupo está inserido numa parte do es-O autor complementa, afirmando que “quando um grupo está inserido numa parte do es-paço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às coisasmateriais que a ele resistem” (Ibid , p. 139). Desta forma, entendemos que o lugar marca o grupoe/ou indivíduo, ao mesmo tempo em que é marcado por ele. Então, as ações do grupo podemse traduzir em termos espaciais, evidenciando que cada aspecto de um lugar tem um sentidoque é inteligível apenas aos membros do grupo.  Os grupos estão ligados a um lugar e é o fato de estarem próximos no espaço que cria, en-Os grupos estão ligados a um lugar e é o fato de estarem próximos no espaço que cria, en- tre seus membros, relações sociais. Para Halbwachs, uma família ou um casal pode ser definidocomo um conjunto de pessoas que vivem na mesma casa, sob o mesmo teto. Assim, se os ha-bitantes de uma cidade ou de um país formam uma sociedade, é porque estão reunidos numamesma região do espaço. Com isso entendemos o espaço como mais do que uma porção de

 terra, como uma condição clara da existênc ia desses grupos .  Esses lugares, uma vez que definem e são definidos pelos indivíduos e pelos grupos sociais,são tanto os espaços públicos quanto os privados, tanto as cidades quanto as casas. SegundoGaston Bachelard, “a casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos. Noreino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em devaneios opostos” (BACHELARD,1989, p. 59). As casas, dessa forma, poderiam ser pensadas como uma célula soci al, ou seja, umapequena representação de um grande grupo social. Nelas teríamos indivíduos que se relacio-nam. Como resultado desse relacionamento, eles constroem laços afetivos, mas também têmconflitos éticos, morais e políticos.  A casa, mesmo quando abriga grandes famílias, é a morada do eu. Ao mesmo tempo em queela é o espaço da coletividade, é o espaço da individualidade. Ela é público-privada. Mesmo nacasa de pessoas que moram sós, ela não é apenas o espaço da intimidade, este poderia ser oquarto. A casa tem espaços desenhados para o grupo e para o indivíduo, tem sala de estar e

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banheiro. Mesmo os espaços da casa que foram pensados para a convivência do grupo são, também, muitas vezes utilizados pel o indivíduo. Com isso a casa, por ter esses dois tipos de es-paço, promove a experimentação dos limites entre o espaço público e o pri vado. É um e outro;é um ou outro.  Pensar a casa como espaço entre público e privado não se faz apenas na relação que seushabitantes têm com o espaço, mas também na relação que o indivíduo tem com a cidade oucom a sociedade. A casa não é tão pessoal quanto o corpo do ser, como também não é tãoexterior ao ser. Paradoxalmente, ela é tão pessoal quanto o ser, como é também exterior ao ser.A exterioridade e a interioridade da casa podem ser pensadas tanto em relação ao corpo doser que a habita quanto em relação ao espaço social em que ela se encontra. Em uma cidade,a casa é o núcleo do particular e, para o sujeito que vive em grupo, ela é o primeiro ponto deencontro com os outros.  Assim, se a casa possui espaços que são coletivos ou individuais, e outros que são ao mesmo tempo coleti vos e individuais, a própria casa se configur a como uma combinação do coletivocom o indivíduo. Esta percepção de uma ambiguidade dos espaços constitutivos da casa faz delaum tema a ser estudado para além de seus aspectos mais subjetivos, como a interpretação eos sentimentos adquiridos com o tempo de vivência no local. Esta seria uma investigação dolar. Pesquisar a casa implica na junção do lar a seu espaço físico, do mensurável ao imensurável.  Na Merzbau, de Schwitters, as funções dos espaços e das coisas da casa foram repensadas,quando não subvertidas. As paredes não eram mais divisórias, tinham buracos e passagens, alémde volumes das colagens, tão valorizadas pelos dadaístas. Muitos quartos e salas da casa, que opróprio artista habitava com sua família, tinham seu aspecto interior mais parecido com umafachada externa de um prédio público (pelos detalhes em seu acabamento) do que com umambiente interno, promovendo uma inversão entre o interior e o exterior e, muitas vezes, umacoexistência entre eles.

Figura 2:

Kurt Schwitters, Merzbau (Hanover), 1933.

  De acordo com os sete princípios de Leonardo da Vinci, em seu Tratado sobre a Pintura, – Curio-sità, Dimostrazione, Sfumato, Arte/Scienza, Corporalità e Connessione – o sfumato consistiria, além da técnica de esfumaçar as linhas de uma pintura para uma maior ilusão de profundidade, na capaci-dade de aceitar a ambiguidade e o paradoxo. Esta ambiguidade visa estudar a união entre os doisopostos, sem que isso resulte em uma anulação de um desses contrários.

  Além do concreto e do sensível, do público e do privado, do exterior e do interior, da cidade edo corpo, do coletivo e do individual, a casa apresenta outras relações paradoxais, que fazem delaa própria imensidão íntima, de Bachelard (Op. Cit.): o interior que vai para o além (e não que estáno além) do interno e se funde, adquirindo a imensidão, com o externo. A casa, na sua imensidãoíntima, é o próprio limite entre o dentro e o fora. A casa, então, causa abjeção.  Em Powers of Horror  (1982), Julia Kristeva desenvolveu a noção de abjeção como uma operaçãopsíquica pela qual a identidade subjetiva e a de grupo se constituem ao se estabelecerem nos espa-ços entre o indivíduo e o Outro. A abjeção é o estado de fusão com o Outro, o que se encontrafora do ser com o ser. O sentimento de abjeção emana do sentido das pessoas de ordem biológi-ca, social ou espiritual. “Podemos chamá-la de fronteira; abjeção é, sobretudo, ambiguidade. Porque,ao passo que libera a apreensão, não corta radicalmente fora o sujeito/assunto que o ameaça – aocontrário, a abjeção reconhece-o como em estado de constante perigo” (KRISTEVA, 1982, p. 9, tradução nossa).  A abjeção, então, é um estado de crise, de autodesgosto e desgosto com relação aos outros.Não é a repulsa física ou a falta de limpeza que causa a abjeção, mas o que perturba a identidade,ao mesmo tempo em que a constitui: “é algo que simultaneamente fascina e repele, aflige e alivia.Não existe fora do ser e, mesmo assim, o ameaça” ( Ibid , p. 4, tradução nossa).  O abrangente mundo da abjeção completa o eu com um simultâneo sentimento de horror epaz. Assim o eu reconhece que nunca poderá conter o abjeto, e que o fato de ele estar dentro doeu incentiva a busca por ele. É da própria natureza do abjeto apontar a permanente cisão ou criseque residem na vida do indivíduo: “eu experimento a abjeção somente se o Outro se estabeleceue substituiu o que será ‘eu’. Não apenas um outro com quem eu me identifico e que incorporo,mas um Outro que me precede e me possui, e, por tal possessão, me causa/faz ser” ( Ibidem, p. 10, tradução nossa).  A ligação da abjeção com o estranhamento, cunhado por Freud, foi ressaltada por Kristeva . Paraela, porém, o que distingue esses dois conceitos é a situação limítrofe presente na abjeção, que éelaborada pela falha em reconhecer seus familiares. Nada é familiar, nem mesmo a sombra de umamemória.  A abjeção, assim como o estranhamento, é uma sensação de espanto sofrida pelo sujeito, mas,no estranho, essa sensação ocorre quando o sujeito se identifica no Outro e, na abjeção, há umasensação de desgosto e ameaça pelo que é excluído, por não saber que o que é expelido é parteconstituinte do seu ser. Nas palavras de Julia Kristeva: “uma ameaça que parece emanar de umexorbitante exterior ou interior, descartado além do espaço do possível, do tolerável, do pensável.Ele permanece aqui, bem perto, mas não pode ser assimilado.” ( Ibid., p. 1, tradução nossa). No casodo abjeto, sua causa é também sua consequência.  No caso da casa, como dito anteriormente, os espaços e as relações estabelecidas por quem

habita a casa configuram-se como limítrofes. Tanto as relações familiares ou de grupo quantoos lugares em que se dão essas relações lidam com as dificuldades e conflitos em fixar seuslimites. Especificamente pensando seus espaços físicos, os corredores, as portas, os canos e osralos seriam exemplos dos abjetos da casa, pois ao mesmo tempo em que demonstram o limiteentre os espaços circundantes, são o próprio ponto de contato entre eles, são espaços que “nãorespeita(m) fronteiras, posições e regras. O entre, o ambíguo, o composto” (KRISTEVA, 1982, p. 4, tradução nossa).  A dificuldade em lidar com o abjeto – com o entre – se dá, segundo alguns pensadores, comoGeorges Bataille (Cf. Bataille, 2006), com o fato de que nossa civilização ocidental, ainda hoje, se vêcalcada em na concepção de um mundo cindido, dualista, formado por infinitas relações ambivalen- tes como céu e inferno, bem e mal, vida e morte, belo e feio, homem e mulher, sublime e grotesco.  Em suas topologias analíticas, Bachelard percebe o canto como o espaço de recolhimento e desolidão: “todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gosta-

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mos de nos encolher, de nos recolher em nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja,o germe de um quar to, o germe de uma casa” (Ibid , p. 145).  Ainda sobre o canto, o filósofo o relaciona com o silêncio. Para ele, “sob muitos aspectos, ocanto ‘vivido’ rejeita a vida, restringe a vida, oculta a vida” ( Ibid , p. 145-6). Assim, o ato de recolher-se em um canto traria um aspecto de proteção, não apenas por ser o canto um espaço fechado eque evoca a intimidade, mas também por ser o canto o local mais distante da iluminação central,como nos lembra Junchiro Tanizaki. Para o pensador japonês, o excesso de luz, tão valorizada pornós ocidentais, tem como a única função “espantar todo e qualquer resquício de penumbra queporventura se formasse pelos cantos” (TANIZAKI, 2007, p. 57).  Com isso podemos pensar que, no canto, habita a sombra. No caso do canto da obra abaixo, asombra não só está presente como é aprisionada pelas várias linhas, que criam diversas manchasde linhas, que, por sua vez, as eliminam. Esse labirinto de linhas e sombras evoca a imobilidadedas teias de aranha, mas, paradoxalmente, não a permanência. Para Tanizaki, a beleza inexiste naprópria matéria, ela é apenas um jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre matérias. Elainexiste sem a sombra.  A série Canto (da qual as obras Vestígios de Sombra e Ponto e Linha sobre Canto fazem parte)elabora um estudo poético e topológico do canto. Em Ponto e Linha sobre Canto, a precisão daslinhas pretas horizontais é posta em xeque pela deformação dessas mesmas linhas, causada pelassuas sombras. Triângulos são formados nas sombras completando e , ao mesmo tempo, desestabi-lizando a plenitude das linhas horizontais. Os pontos, bem marcados na obra (imagem 4, em de- talhe ao lado), ainda potencializam a sensação de desequilíbrio da instalação, mesmo esta tendosido construída de forma centralizada, a partir do centro do canto da parede. A soma dos pontos/nós às linhas intensifica essa s ituação de ambiguidade, que chama a atenção para o momento limí- trofe, mas que não limita os contrários sem, com isso, promover a exclusão de um lado pelo outro.

Figura 3:

Cecilia Mori, Ponto e Linha sobre Canto, da série Canto, 2009.

Figura 4:

Cecilia Mori, Ponto e Linha sobre Canto (detalhe), da série Canto, 2009.

  A criação objetivando a valorização da sensação, a aisthesis (MEDEIROS, 2005), é uma dasbases principais do ato artístico. Assim, é no espaço da arte, e não no da ciência, que é per-mitido – para não dizer recomendado – pecar, distorcer conceitos, forçar uma coexistência deações e sentimentos contrários e contraditórios, enfim, abordar a ambiguidade e o paradoxo,que são presentes nos seres humanos, no mundo, na vida.  A arte, dentre outras características, pode ser pensada o como campo do artifíci o e das in-A arte, dentre outras características, pode ser pensada o como campo do artifício e das in-certezas, por não acreditar que a razão e sua estrutura lógica de pensamento seja a única formade experimentação possível da realidade. Então, a arte pode operar de acordo com o princípioda penumbra, que não é nem claro nem escuro, pois ela é tanto da ordem do irracional (sepensamos nas dimensões da arte que dizem respeito ao artista e à sua sensibilidade) quanto doracional (se pensamos nas suas técnicas, teorias, História, linguagens...). A arte pode promoverela mesma a abjeção.  O debate sobre os espaços público e privado atravessam a história da humanidade, pois es-O debate sobre os espaços público e privado atravessam a história da humanidade, pois es-

 tão intimamente ligados à formação da espécie humana. A casa, célula social das ci dades, repre-senta essas relações que o indivíduo constrói com o coletivo. Assim, para estudar a casa, deve-seestudar o ser e o mundo.  Ao relacionar os espaços limítrofes da casa com a noção de sombra, com o sfumato de daVinci, com as ideias de limite e de abjeção, o que é público torna-se privado, e vice-versa Aopensarmos na casa como espaço de abjeção, podemos integrar todos os espaços da casa, ospúblicos e os privados, íntimos, possibilitando com isso uma nova forma de convivência entre osujeito e o Outro, como também propor uma outra/nova relação entre o indivíduo e seu espa-ço, tornando-o mais fluido e ilimitado: da linha do desenho à mancha da pintura.

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PROCESSOS COMPOSICIONAIS PARA CENA

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De Roda Viva a Os Sertões:Aspectos de uma Trajetória Teatral

MARIANNA MONTEIRO *

ResumoNesse artigo trago algumas reflexões sobre a encenação de Os Sertões pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona, resultantes do

acompanhamento dos ensaios no ano de 2005. A trajetória do grupo Oficina vem configurando, a partir da década de

70 do século XX, uma proposta teatral que tem como característica essencial ampliação e consolidação do coro, que

funciona como detonador da par ticipação e interação com o público, permitindo que o trabalho circule livremente entre

o teatro, o ritual e o drama social.

Palavras-chave: Teatro Oficina. Performance. Drama social. Contracultura.Teatro político.

 Abstract

This essay is about the staging of Os Sertões by Teatro Oficina Uzina Uzona, the reflections resulting from my watching the rehears-

als in 2005. By contextualizing José Celso Martinez Corrêa’s staging of Os Sertões in the history of the Oficina group, I demonstrate

the construction of a dramatic proposal which has been elaborated since the 1970’s with recurring topics. The necessity of under-

standing the practice of the Oficina group from these elements is clear; however, the chorus, with its increasing role, stands out as an

essential characteristic of the history of the group. It acts as a detonator of the participation and interaction with the public, allowing

the work to combine play with ritual and social drama.

Keywords: Oficina group. Performance. Social drama. Counterculture. Political theatre.

* Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP, autora de Noverre:

Cartas sobre a Dança ( Edusp, 1998), A Dança na Festa Colonial (Hucitec/Edusp/Imprensa Oficial, 2001) e Dança Afro: uma

Dança Moderna Brasileira (no prelo). Dirigiu os vídeos Lambe Sujo, uma Ópera dos Quilombos e Balé de Pé no Chão, a Dança

 Afro de Mercedes Baptista. É pesquisadora de performance, teatro e cul tura popular.

[email protected]

Nas considerações abaixo, estão em foco alguns aspectos da montagem e adaptação teatral daobra Os Sertões, de Euclides da Cunha, pelo grupo Oficina. Apresento algumas reflexões surgidasao longo do acompanhamento de ensaios no ano de 2005, durante aproximadamente dois meses,quando pude observar a natureza dos processos criativos do grupo, que vou analisar levando em

consideração a preponderância paulatina e crescente do coro em suas montagens.  Muito antes de pensar em tornar-me uma pesquisadora de artes cênicas, o Teatro Oficina jáocupava um lugar central nas minhas considerações e na minha própria formação teatral e política.Acompanhei os seus trabalhos desde as remontagens de Pequenos Burgueses e Andorra. Conhecio prédio do teatro antes e depois da reforma de Flávio Império e Rodrigo Lefèvre e foi ali que,pela primeira vez, dei-me conta da existência de diversos tipos de palco: arena, italiano, “sanduíche”

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(com plateia dos dois lados do palco), etc., percebendo que a variedade de espaços cênicos, bemcomo a opção por um ou outro tipo de dispositivo, consistia em uma das questões centrais dalinguagem teatral moderna.  Assisti à volta do Oficina para seu espaço, depois do incêndio de 1966, com a montagem an-Assisti à volta do Oficina para seu espaço, depois do incêndio de 1966, com a montagem an- tológica de O Rei da Vela e, logo a seguir, as montagens de Roda Viva e Galileu Galilei, que servirampara colocar-me diante de outras tantas questões relativas à linguagem teatral.  O teatro brasileiro, desde a década de 60, estava profundamente vinculado aos movimentossociais. No caso do Oficina e do Arena, o sentido de uma militância social e política sobrepujavao de mero entretenimento e lazer. O desenvolvimento do teatro brasileiro pós Teatro Brasileirode Comédia (TBC) foi progressivamente afirmando uma vocação política da arte a serviço de transformações sociais. O golpe de 64 mudou totalmente os percursos possíveis desta arte enga- jada: impedida de associar-se claramente aos movimentos sociais, agora reprimidos e colocados naclandestinidade, esta arte pública, no entanto, continuava extrapolando o sentido de mero entre- tenimento. Para a classe média e o público estudantil, frequentar determinados teatros implicavaem identificar-se com questões sociais e nutrir esperança de transformações e r upturas sociais. Irao teatro, no caso do Arena e do Oficina, representava, por si, uma tomada de posição políticacontra a ditadura.  No caso do Oficina, podemos dizer que as encenações de O Rei da Vela e, na sequência, de RodaViva e Galileu Galilei, configuraram um caminho muito particular em termos artísticos, que inaugu-rou novos parâmetros de criação teatral. Para atender às novas condições sociais e políticas, o Ofi-cina acabou modificando profundamente a concepção de ar te engajada, conferindo ao coro umaimportância emblemática e significativa desta transformação na maior parte de sua dramaturgia.  O primeiro espetáculo que atribui um papel tão fundamental ao coro é Roda Viva, em 1968,seguido de Galileu Galilei, no mesmo ano. Nos dois casos, o coro era recrutado em meios juvenis,composto de atores com pouquíssima experiência tanto teatral quanto política. O que era novonesta fórmula não era a convivência no interior de um mesmo espetáculo entre atores mais oumenos experientes e sim o protagonismo do coro, que passou a ter muito mais importância eprestígio que os antigos atores e os seus respectivos papéis. No novo contexto histórico, era atra-vés do coro que a função política e social dos espetáculos mantinha-se de pé .  Com a montagem de O Rei da Vela, o sentido da atividade teatral do Oficina transformara-seprofundamente, e havia espaço para uma nova geração entrar em cena. Sua primeira aparição foicomo coro na peça Roda Viva, um coro agressivo que desafiava a passividade habitual do público teatral burguês.  Durante a temporada de Roda Viva, a invasão do teatro pelo Comando de Caça aos Comunistas(CCC)1 explicitou ainda mais o sentido político da performance  teatral do grupo. Mobilizaram-segrupos de estudantes de esquerda para garantir a segurança do público e do elenco, assim como a

continuidade da temporada, que passou a ter um sentido muito evidente de resistência e de oposi-ção à ditadura e às forças de direita. Não se tratava mais de um teatro político, no sentido de umaabordagem de temas políticos representáveis sobre o palco; o que ocorria neste espetáculo erauma conjuração de forças, no aqui e agora, que acirrava conflitos entre interesses sociais divergentes.  Depois de Roda Viva, o Oficina já não era o mesmo. Um novo grupo de jovens atores haviase integrado à companhia, vindo a constituir, na montagem seguinte, o coro de Galileu Galilei. Apartir da cena O Carnaval do Povo, de Galileu Galilei, José Celso Martinez Corrêa reedita o coro deRoda Viva, que havia se tornado símbolo de resistência, irreverência, além de propulsor de novasrelações entre palco e plateia e transgressor de valores morais e comportamentais. A permanên-

1. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) foi uma organização direitista anticomunista brasileira, composta por

estudantes e intelectuais, os quais, durante o Regime Militar no Brasil, agiram em favor do mesmo, denunciando e atacando

atividades e pessoas contrárias ao governo.

cia do coro com as mesmas características, tanto em Roda Viva como em Galileu Galilei, mostravaque sua função dramatúrgica ia muito além do plano ficcional. Não se tratava mais de representaruma determinada força social, mas sim de constituir-se enquanto tal, de fato. Vem daí a substituiçãoda palavra teatro pela palavra “te(ato)”, proposta pelo grupo, logo a seguir, quando montaram oespetáculo intitulado Gracias Señor . “Te(ato)” e coro são realidades que se articulam e aparecem, apartir de então, como uma tópica recorrente no percurso artís tico do Oficina.  O Carnaval do Povo tornou-se uma fórmula dramatúrgico-política muito eficiente, que passou aser usada em diversas circunstâncias e contextos. A partir de uma cena da peça de Bertolt Bre-cht, instaura-se um momento anárquico de quebra das hierarquias aprisionadoras do teatro e dasociedade. Trata-se da ruptura de normas cotidianas estabelecidas, por meio da mobilização depulsões e da eliminação de comportamentos reprimidos.

Acompanhei, como público fiel, essas transformações do grupo naquele pós-64, uma sucessãode propostas em busca de um teatro capaz de responder aos impasses criados pela derrota dosprojetos da esquerda brasileira com o golpe de 64. Esse processo culminou com a encenação deGracias Señor , uma guinada definitiva na forma do Oficina fazer teatro.  Gracias Señor  ou Trabalho Novo, como inicialmente foi chamado, estreou em 15 de maio de1971, em Brasília. Foi primeiramente apresentado como uma grande performance realizada nocampus da Universidade de Brasília, congregando uma multidão de estudantes para uma atuaçãoem grupo nos espaços externos da Universidade. Numa época em que qualquer manifestação derua estava absolutamente proibida, em nome do combate à subversão, por meio dessa espéciede “happening” (pelo menos esta era a referência que tínhamos quando nos defrontávamos comesse tipo de intervenção teatral) o Oficina buscava desenvolver o que já não era bem um espe- táculo teatral, mas alguma coisa que ocupava o lugar de entrecruzamento entre um drama social,um rito e o teatro propriamente dito.  Depois de tentativas de trabalho com o Living Theater e com o grupo argentino Os Lobos, oOficina, seguindo a tendência internacional, transforma-se numa comunidade de trabalho e devida, renegando a forma empresarial de organização da produção teatral e propondo-se a viajarpelo país e pela América Latina, recolhendo “experiências” em busca de novas formas de atuaçãoe funcionamento. Nesta viagem de redescoberta do Brasil, o grupo chegou a pensar em encenarou filmar a obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, o que revela a constância de certas abordagensdo grupo em meio a tantas transformações. A montagem posterior da obra de Euclides da Cunharetoma, então, propostas muito mais antigas.  As experiências teatrais realizadas Brasil afora, que atingiram seu clímax em Brasília, estão naorigem da encenação de Gracias Señor  em São Paulo, logo a seguir, que representou uma verda-deira “refundação” do grupo de teatro Oficina.  Roda Viva, Galileu Galilei e Gracias Señor  marcam, na trajetória do Oficina, o advento do coro

como uma força coletiva, transformadora da própria realidade do trabalho cênico. A relação hie-rárquica entre coro e protagonistas se inverte, gerando uma grave cisão interna no grupo, de umlado a nova geração de atores e, de outro, os atores mais antigos e experimentados, que nãoaceitam a importância cada vez maior desses “recém-chegados”.  Para o elenco mais antigo, também convulsionado pela experiência antropofágica de O Rei daVela e pela radicalidade da proposta de encenação de  A Selva na Cidade, não havia caminho devolta: viam-se comprimidos entre a opção de serem engolidos pela indústria cultural (provavel-mente a televisão, em momento de grande expansão no país) e a de enfrentarem um caminhoque, para muitos, parecia absolutamente suicida. O preço a pagar pela inversão da hierarquia entrecoro e protagonistas era altíssimo, pois implicava em aceitar o que parecia ser um retrocesso naqualidade artística do trabalho.  A montagem de Gracias Señor , além de garantir um papel central para o coro, acabava porquestionar outras tantas separações: atores e público, teatro e ri tual, teatro e vida, marginal e herói,

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etc. O teatro deixava de ser exclusivamente o locus de uma representação, ainda que a metafori-zação de temas políticos, para tornar-se o palco de uma ação efetiva, cujo caráter, balbuciado emseus primeiros momentos, o público era chamado a definir em conjunto com os atores. Saía-sedo quadro das luta de classe para o quadro de uma revolução cultural e comportamental, quepedia uma nova relação com o corpo, com o sexo, entre os gêneros, uma ressignificação de nossaexistência social e individual.

Gracias Señor despertou muita polêmica; antigos aliados do Oficina deixaram de apoiá-lo, consi-derando que as novas propostas eram alienadas, pequeno-burguesas e politicamente equivocadas.Lembro-me de tomar o par tido do Teatro Oficina nessas polarizações ideológicas. Mais afeita àsexperiências de renovação teatral que o grupo propunha com suas montagens do que preocu-pada com os rumos do pensamento e da cultura de esquerda no país, eu, naquele instante, faziaparte de uma juventude atraída pela contracultura, parte integrante de uma não muito nobre“geração da ditadura” e, por conta disso, muito próxima daqueles elementos que compunham ocoro do Oficina. Isto explica o fato de que em 1975, ao iniciar uma carreira de atriz, tenha acaba-do por integrar o grupo Oficina, que, na ocasião, reagrupava-se em Lisboa, depois de sofrer umarepressão multifacetada no Brasil2: política, moral e criminal.  Em Portugal, com o nome de Oficina Samba, apoiado pelo governo português e pelo Movi-Em Portugal, com o nome de Oficina Samba, apoiado pelo governo português e pelo Movi-mento das Forças Armadas – MFA, o grupo buscava fazer um teatro político engajado na chamadaRevolução dos Cravos. O Oficina Samba propunha a vida em comunidade, ao mesmo tempoem que reencenava o Carnaval do Povo nas ruas, praças e fábricas de um Portugal em estado deebulição. Esta cena representava a continuidade do caminho iniciado com Roda Viva, o da “desmi-metização” da ação teatral, pela atuação do coro, que se convertia em força social e em modeloutópico de vida comunitária possível.  Para integrar-se na Comunidade Oficina Samba, era necessária a imersão em códigos e referên-Para integrar-se na Comunidade Oficina Samba, era necessária a imersão em códigos e referên-cias bastante complexos e específicos que, de alguma forma, alimentavam os processos identitá-rios do grupo e das pessoas dentro do grupo. Era preciso compreender o impasse criado com amudança política no país através do golpe de 64, assumir a derrota das esquerdas e estar dispostoa defender uma nova possibilidade de criação, atuação e comunicação com o público para “iniciar-se” no Oficina. O trabalho adquiria um sentido forte de resistência, a partir de polarizações tantoestéticas quanto políticas, o que se dava por meio da consolidação e elaboração da experiênciapassada do grupo.  O ponto de partida era a morte do teatro convencional, aquele que sacraliza a divisão palco-plateia, teatro e vida, cultivando a passividade do espectador. Desde 1971, o Oficina convertera-seem laboratório de procedimentos teatrais aliados a estratégias de sobrevivência, e a continuidadedesses laboratórios era a referência comum, unificadora do grupo de “atores-comunicadores”reunidos em Portugal, já que muitos nem se conheciam, por terem sido integrantes do Oficina em

momentos diversos da trajetória do grupo.  Em Portugal, no entanto, embora o coro já estivesse “no poder”, a transição ainda estava acaminho e revelava-se difícil. Uma dualidade se mantinha quando o grupo optava por atuar tantono teatro convencional quanto em espaços não convencionais: comunidades, teatros de fábrica,universidades, praças públicas. O grupo trabalhava em Lisboa, com os dois referenciais simulta-neamente: no palco, a apresentação da “peça do século” (sic), Galileu Galilei, enquanto a cena doCarnaval do Povo, protagonizada pelo coro, expandia-se e adquiria independência nas interven-ções fora dos teatros. A decisão de remontar Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, repetia uma antigaestratégia do Oficina: a volta temporária para o teatro de palco e plateia como uma espécie derecuo estratégico.

2. Em 1974, o teatro Oficina foi tomado pela polícia e vários membros do grupo foram presos, acusados de tráfico e

consumo de drogas.

  Continuava, contudo, a busca por uma nova forma de teatro. De fato, o trabalho do Oficina emPortugal caracterizava-se por uma certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que encenavaGalileu Galilei num dos principais teatros públicos de Lisboa, em meio a veludos e dourados, abriao espetáculo com uma “gira” de pontos de umbanda: um Ogã de Candomblé tinha a funçãode conjurar as forças espirituais do candomblé e da umbanda para favorecer as “incorporações”dos personagens nos “atores-cavalos”. Um “texto” paralelo corria ao lado do texto de Brecht. Opercurso do grupo se fazia na intersecção entre uma tradição teatral consolidada e o trabalhocoletivo e inovador já iniciado no Brasil.

Figura 1:

Carnaval do Povo, no Teatro São Luis- Lisboa, 1975.

Figura 2:

Carnaval do Povo, nas ruas de Lisboa,1975.

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  Já de volta ao Brasil, na condição de público e fora do grupo, continuei acompanhando a luta doOficina até que o grupo encontrasse a forma de intervenção teatral que, nos anos oitenta/noven- ta, permitiu-lhe renascer, dando os primeiros sinais de novamente ocupar um espaço importantena cena político-cultural e, o que é mais importante, mostrar-se capaz de constituir um públicopróprio e de estabelecer um verdadeiro diálogo com amplas esferas da sociedade.

Sabendo estar fora do âmbito desse texto traçar os detalhes dessa trajetória, passo a descrevero trabalho do grupo já em 2005, quando volto a acompanhar os ensaios da adaptação de Os Ser-tões, na qualidade de observadora, intrigada e querendo compreender o sentido dessa nova fase.Meu interesse é estimulado pela suposição de que a trajetória do Oficina é capaz de revelar co-nexões fundamentais entre os dramas sociais e as performances estéticas, o que me leva a analisarsua trajetória fora dos parâmetros da crítica teatral, ou mesmo da história do teatro, e a tentarcompreender sua experiência teatral enquanto performance, entendida aqui como lugar onde oritual, o teatro e o drama social convergem, conversam e interagem.  Com esse breve e parcial histórico do grupo, tive apenas a intenção de evidenciar uma mudan-Com esse breve e parcial histórico do grupo, tive apenas a intenção de evidenciar uma mudan-ça irreversível de eixo no trabalho do Oficina, constituída pela emergência e centralidade do coro,processo que até hoje marca o trabalho do grupo. Reconhecida a sua importância no percursodo Teatro Oficina, interessei-me por compreender como o grupo iria operar no caso específicoda encenação do texto de Euclides da Cunha.  O trabalho de campo consistiu basicamente no acompanhamento dos ensaios. Mal conhecen-O trabalho de campo consistiu basicamente no acompanhamento dos ensaios. Mal conhecen-do os atuais integrantes do grupo, pude assumir um papel de observadora, todavia sem conseguirdeixar de ser afetada por um turbilhão de memórias, significados e lembranças corporais. Come-cei a fazer um caderno de anotações, onde registrava as derivações ou concentrações de s entidoque a própria encenação ia me propondo no confronto com as memórias pessoais.  Apesar da heterogeneidade dos materiais observados – soluções cênicas, metodologias de tra-Apesar da heterogeneidade dos materiais observados – soluções cênicas, metodologias de tra-balho de voz e de corpo, interpretação do texto, adaptação da obra literária, relação entre as pes-soas, os conflitos entre elas, as identidades, as tensões, o processo de escolha de elenco, a atuação junto à mídia, ao governo e à sociedade civil, a composição do público, suas formas de participa-ção etc. –, percebia que a encenação de Os Sertões mobilizava antigas fidelidades, “reatualizava”identidades e sentidos, como se o Oficina construísse um sistema de códigos passíveis de combi-nações diversas, combinando e recombinando elementos já trabalhados em outras encenações.Seria, então, possível perceber focos originários e multiplicadores dessas miríades de significados?Haveria um legado das experiências passadas do grupo, passível de ser circunscrito e identificado?Contrariando certas interpretações da história do grupo, acredito que o Teatro Oficina, longe deacabar em 1974, prosseguiu em suas experiências até transformar-se no Oficina Uzyna Uzonados dias de hoje . Dessa trajetória ininterrupta origina-se uma forma nova de conceber a atuação teatral, tanto no que diz respeito aos meios quanto aos fins. Podemos identificar na proeminência

progressiva do coro a recusa em separar a eficácia do entretenimento; a relativização da repre-sentação em nome do “te-ato”, da celebração e do ritual; a abertura à praça pública, à efetividadedas ruas.  Os significados das encenações, das intervenções no espaço, das ações ritualizadas seriam múl-Os significados das encenações, das inter venções no espaço, das ações ritualizadas seriam múl- tiplos e móveis, adaptar-se-iam aos diversos contextos e propostas do grupo, mas teriam comoeixo um tipo de relação definido entre a cena e o drama social e, o que me parece de grandeinteresse, esta parece ter sido uma condição meticulosamente construída e aperfeiçoada em cadafase do Oficina, um trabalho lento de elaboração de uma atuação cênica que estivesse no limiarentre o teatro, o ritual e o drama social.  Absolutamente singular e específico daquele momento era a opção pela adaptação da obrade Euclides da Cunha. A princípio, fiquei totalmente absorvida pela observação da “leitura” que ogrupo fazia do texto de Euclides da Cunha. Não se tratava do tradicional “trabalho de mesa”, da tradicional leitura conjunta do texto pelos atores. Cada ator possuía um exemplar da adaptação,

um xerox encadernado, que pendia com barbante dos ombros de todos eles. O texto era objetode cena, passível de contrarregragem, um adereço fundamental com o qual o ator performava asua “leitura”.  O que não posso deixar de observar é que, embora o procedimento se apresentasse comoinicial e provisório, já que os atores nem tinham ainda decorado o texto, ele se movia num ter-reno previamente preparado. Os atores podiam manipular o texto em cena porque a cena jánascia dupla: era a expressão de significados construídos a partir do texto de Euclides da Cunha,mas, simultaneamente, a expressão pública das próprias atuações: “leituras” de Os Sertões  poradolescentes e crianças do Projeto Bixigão3, atores negros “lendo” a obra de Euclides da Cunha, opróprio Zé Celso (um diretor-ator e sua dança-combate) na cidade, “lendo” episódios marcantespara a constituição de identidades brasileiras, era isso que o “coro-grupo” falava nas margens do texto de Euclides.  Não era casual a importância do texto nos ensaios, pois era sua construção que possibilitavao trânsito horizontal do coro às personagens e vice-versa, sem que uma hierarquia viesse a seestabelecer entre os dois polos. O texto euclidiano ora aparecia na boca de algum personagem,ora de outro, ora aparecia na voz dos diversos coros: coro dos jagunços, coro de soldados, “coro-plantas”, “coro-topografias”, “coro-entidades abstratas” (república, teatro), “coro-seres mitológicos”(Penteu, Mandrágoras). A redistribuição do texto entre os mais diversos sujeitos, nem semprehumanos, nem sempre minerais, nem sempre definidos sexualmente, permitia que o jogo cênicose estabelecesse a partir de um único ponto fixo, o aqui e agora da performance, o preciso lugaronde se encontravam teatro e ritual.

Na montagem de Os Sertões, o texto de Euclides é vocalizado quase integralmente através dedeslocamentos importantes na passagem para a situação performática. A configuração de umprotagonista possibilita que público e atores reencarnem entidades introjetadas e passíveis deserem restauradas reflexivamente, retomando a postura crítica, debochada e livre inaugurada comO Rei da Vela. Os personagens de Os Sertões, Floriano Peixoto, Moreira Cezar, Tamarindo, Pageú,equivalem a Heloisa de Lesbos, Abelardo I e II, em O Rei da Vela, personagens sem nenhum valor transcendente, mas portadores de uma carga reflexiva intensa.  O texto de Os Sertões presta-se, no Oficina, a vocalizações rimadas que dão origem a composi-ções musicais de um caráter muito específico, poemas musicados, decerto inspirados em Oswaldde Andrade que, no livro Poesias Reunidas, parodiando as “Indústrias Reunidas Matarazzo”, dizque suas poesias eram mais poderosas do que as megaindústrias de São Paulo. O Oficina acreditainteiramente que, com a poesia, é possível derrubar paredes , construir teatros e encaminhar-separa o poder maior, “o poder de Presença Humana diante da Presença do Poder Maquínico, opoder das máquinas de desejo como as do Teatro Oficina diante das máquinas castradoras e deespeculação do capitalismo” (Corrêa, José Celso, 2006)

  Como bem apontou José da Costa,

(...) ao vocalizar o texto de Euclides e incorporá-lo teatralmente, o elenco do Teatro Oficina não tem pruri-

dos de fender aquele texto, de mostrar, ao lado da obra original, a si próprio (suas visões e posicionamentos)

como um outro texto paralelo e interagente, contrapontual em relação ao texto lido (2006, p. 5).

  Essa leitura de Os Sertões abre novas possibilidades semânticas às margens do texto euclidiano,construindo uma dramaticidade capaz de pur gar a derrota de Canudos e todos os outros massa-cres, atuais ou passados, através da instauração de um pulmão criativo e livre no meio do bairrodo Bexiga. A meu ver, constitui-se, neste momento, o elo que faltava: o deslocamento fatal do lugar

3. Projeto de atuação social que consiste em oficinas gratuitas para crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, ministra-

das por componentes do Oficina. Os participantes dessas oficinas par ticipam do elenco da peça..

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do teatro para a praça pública, para a Ágora, com a proposta de construção de um “teatro deestádio”, bandeira levantada por Oswald de Andrade que, latente por muitos anos, converte-se,agora, em proposta central do Oficina.  O choque com interesses contrários é imediato, justamente os interesses da indústria do en-O choque com interesses contrários é imediato, justamente os interesses da indústria do en- tretenimento, representados pelo Grupo Silvio Santos, que planeja fazer um shopping center  namesma área que o Oficina pretende erigir o seu teatro de Estádio. A partir de então um novo texto performático se impõe, no qual os “personagens” são advogados, arquitetos, moradoresde rua, membros da escola de samba Vai-Vai, da comunidade judaica, da prefeitura, urbanistas, oministro da cultura, os órgãos de proteção ao patrimônio. O “desmassacre” deve ser tão amploquanto o massacre.  A dissolução dos protagonistas clássicos permite um mergulho no aqui e agora da performan-ce a partir de um corpo previamente desconstruído pelo ritual báquico. De posse de um novoesqueleto, o “trans-homem”, atualiza o poder de intervenção do teatro no drama social. A lutapelo espaço do teatro, uma constante na trajetória do Oficina, toma a forma da proposta atual deconstrução de um teatro para as multidões.  O processo de montagem de Os Sertões durou anos, alternando ensaios fechados e ensaios-manifestações, abertos. Alguns destes ensaios abertos constroem grandes cenas, que só se rea-lizam com o público. O que define a abertura do ensaio é a natureza do ritual a ser realizado,e o ritual é sempre conjuração de forças em torno de um projeto coletivo de transformação. Aatuação política e a atuação cênica unem-se em um ritual desmascarador e “desmassacrador”.Mais uma vez, a tradição do Oficina é posta em ação e confunde-se com o movimento do mundo.

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De Roda Viva a Os Sertões: Aspectos de uma Trajetória Teatral

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A Imagem na Improvisação:A Dança do Imprevisto

CARLA SABRINA CUNHA *

ResumoO artigo propõe uma reflexão sobre a improvisação na dança a partir do Butoh e sua relação com a imagem sômato-

sensitiva do organismo do ator/dançarino segundo a neurologia, delineando aspectos do teatro contemporâneo. O texto

apresenta, ainda, o relato de parte do processo criativo utilizado na pesquisa de doutorado “Corpo/Imagem na Improvisa-

ção”, em andamento na linha de pesquisa Processos Composicionais para a Cena, do PPG – Arte da UnB.

Palavras-chave: Dança. Improvisação. Butoh. Imagem.

 Abstract

The article proposes a reflection on improvisation in dance from Butoh and its relationship with the somatosensory image of the

body of the performer according to neurology, outlining aspects of contemporary theater. The text also presents the report of part

of the creative process used for the ongoing doctoral research Body/Image in Improvisation, in the line of research of Compositional

Processes for the Stage at PPG – Arte/UnB.

Keywords: Dance. Improvisation. Butoh. Image

* A autora graduou-se em Interpretação Teatral pela Escola de Comunicações e Ar tes da USP, onde também obteve seu

 título de Mestre em Artes Cênicas. Na Itália, trabalhou junto a cooperativas sociais e à Danceability . Estudou Butoh com

grandes mestres, entre eles Yoshito Ohno, e participou da Cia Jinen Group de Butoh de Atsushi Takenouchi. Atualmente é

doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, sob a orientação da Profª Drª Soraia

Silva, e professora do curso de Licenciatura em Dança no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília

(IFB). Seu trabalho recente (2010) pode ser visto e comentado no site: www.perpetuailusao.com.br.

[email protected].

… e era meu avô já surdo querendo ouvir os pássaros pintados no

céu da igreja.

(Carlos Drumond de Andrade)

1 – As inquietações

A sala vazia e a sensação de fluidez e confiança na condução da aula para os movimentos queestão por existir no espaço. Uma aula aparentemente não preparada.  Como preparar uma aula de improvisação? A partir do uso de imagens; um corpo que tradu-Como preparar uma aula de improvisação? A partir do uso de imagens; um corpo que tradu-za imagens. Como propor este tema dignificando o processo criativo implícito na improvisação, tornando-a a própria dança? Quais são os segredos da improvisação? Qual é, finalmente, a técnica

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escondida da dança do imprevisto? Talvez a vida nos dê respostas.  O quanto é possível viver o cotidiano de forma programada? Será possível? Será que a maioriadas pessoas acredita ser possível tal programação?  Se os dois elementos mais importantes da vida, nascimento e morte, não podem ser totalmen-Se os dois elementos mais importantes da vida, nascimento e morte, não podem ser totalmen- te programados, o que dirá o decorrer do tempo existente entre eles.  A dança não existe dissociada da vida. Os corpos são os mesmos, aquele que vive, aquele quese expressa através de movimentos. Só dança realmente quem isso compreende. Não se trata deproduzir passos, mas de abrir espaço para novos passos a cada dia, a cada dança.  Seria o significado da dança inerente ao significado de improvisação? Supomos que a dançacontemporânea seja assim representada: dança > improvisação. A dança contém a improvisação,mesmo se não claramente expressa. O primeiro movimento é sempre inédito, ainda que mais tarde venha a ser coreografado, mas o seu nascimento teve origem no cérebro do dançarino e,nesse exato momento, era já improviso, era já vida, era já imagem.

2 – A Imagem na Neurologia e no Butoh

Segundo o neurologista António Damásio (2000), temos a seguinte definição de imagem:

(…) imagens como padrões mentais com uma estrutura construída com os sinais provenientes de cada uma

das modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva. A modalidade sômato-

sensitiva (a palavra provém do grego e significa “corpo”) inclui várias formas de percepção: tato, temperatura,

dor, e muscular, visceral e vestibular (sic). A palava  imagem não se refere apenas a imagem visual, e também

não há nada de estático nas imagens (…) As imagens de todas as modalidades “retratam” processos e en-

 tidades de todos os tipos, concretos e abstratos. As imagens também “retratam” as propriedades físicas das

entidades, bem como as ações destas. (p. 402)

  Partindo das proposições acima e de minha experiência em dança Butoh, dei início à pesquisada imagem na improvisação e comecei o Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação no antigoNúcleo de Dança da UnB, atual centro de vivência.

Figura 1:

Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009. Dançam: Eva Maria Maria e

Marcos Menezes.

  Os encontros aconteceram uma vez por semana, com duas horas de duração, os participantesforam tanto alunos da UnB como pessoas da comunidade. Interessa notar que o gr upo era mul- tidisciplinar, pois agregava alunos de artes plásticas, estudantes de psicologia, atores e dançarinos:um campo formado de corpos e linguagens artísticas variadas, possibilitando maior riqueza deinformações para o estudo da improvisação, partindo da dança Butoh.  O Butoh, que se consagrou na década de 60 com Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, propõe umadança cujo movimento parta de impulsos internos do dançarino/ator, um reconhecimento docorpo japonês em meio a uma sociedade marcada por guerras e por mudanças de costumesinfluenciadas pelo ocidente. A negação de Hijikata da dança clássica ocidental e da dança tradi-cional japonesa, que se traduzia em uma repetição de símbolos através das gerações, resultouno Butoh, em que “(...) forma indica uma qualidade e uma quantidade de energia provenientesde modelos naturais, que provocam no corpo uma transformação sensorial percebida externa-mente como uma imagem capaz de invocar no ator e no público um correspondente conteúdoemotivo” (D’ORAZI, 2001, p.119, tradução nossa).  Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno trabalhavam com o uso da imagem na dança. Segundo D’Orazi,o primeiro enfatizou “que o trabalho corporal torna possível a materialização da imagem”, en-quanto o segundo “privilegiou o conteúdo emotivo”. “Para Hijikata é o trabalho físico o pro-dutor da imagem; Ohno acreditava que a mudança mental produzia também a mudança física”(D’ORAZI, 2001, p. 119, tradução nossa).  Assim, deu-se o nascimento de uma nova linguagem, também chamada de body revolution (re-volução do corpo), em que o movimento é proveniente de impulsos interiores, como se cadaparte do corpo constituísse um universo à parte do organismo, adquirindo vida própria atravésdas imagens que permeiam o corpo, como pregam alguns dançarinos de Butoh, um deles AtsushiTakenouchi1, para quem dançar a morte é uma forma de oração, sobretudo dançar em espaçosmarcados por acontecimentos trágicos, na busca de redenção e purificação do l ocal2.  Na aula de Butoh conduzida por Takenouchi a presença da imagem é uma constante parao estímulo da dança no corpo do intérprete. Aqui, esbarramos no conceito fundamental de serdançado, que significa ser dançado por um elemento estranho ao corpo, neste caso as imagenssugeridas através da fala de Takenouchi durante toda a improvisação.  O deixar-se conduzir por tais imagens, que num primeiro momento são imagens vindas doexterior do corpo dançante – a voz do proponente –, requer do dançarino o que Soraia MariaSilva (2007) chamou de dansintersemiotização, que seria a tradução corporal feita pelo artista dadança ao entrar em contato com outras artes como literatura, música, imagem, escultura. Silva(2007) indica o início deste processo no ocidente:

(...)com o aparecimento da dança/teatro na Alemanha, surgida a patir dos estudos de Laban (início do sécu-

lo XX) e de outras grandes personalidades da dança e do teatro, como Isadora Duncan, Stanislávsky, MaryWigmam, Kurt Jooss, Nijinsky, Oscar Sclemer e outros. Na nova estética, a organização cênica espaço – tem-

poral por meio do movimento passou a priorizar a teatralidade corporal. Essa teatralidade corporal procura

evidenciar o gesto expressivo que busca, na figura metafórica cênica criada, uma resposta corporal (mais

concreta ou abstrata, ligada à sensação, ao sentimento ou à emoção) provocada pela interação imagética

com outras linguagens. (p. 93)

  A dansintersemiotização e o ser dançado representam elementos fundamentais que caracteri-zam a improvisação no âmbito da presente pesquisa.

1. Atsushi Takenouchi, dançarino e professor de Butoh, realiza seminários pelo mundo e foi discípulo de Kasuo Ohno. Tive

meu primeiro contato com aulas de Butoh com A. Takenouchi, o que me permitiu reunir um vasto material sob a forma de

anotações durante os anos em que morei na Europa, experiência que estou usando na presente pesquisa.

2. Por exemplo, quando Takenouchi dança em espaços que, na época do nazismo, s ervir am de campo de concentração na

Polônia, ou no ex- presídio medieval de Vicopisano, performance da qual fiz parte, na província de Pisa, Itália.

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4 – Processo

Na improvisação através da imagem temos:  4.1 – A imagem proposta

Chamamos a imagem proposta, seja através da fala ou da fotografia, de imagem contemplati-Chamamos a imagem proposta, seja através da fala ou da fotografia, de imagem contemplati-va, aquela que exerce uma sensação, emoção ou sentimento como primeiro impacto no corpodo ator/dançarino.  4.2 – A apropriação da imagem pelo corpo  Chamamos a apropriação da imagem que se dá pelo reconhecimento e localização desta nocorpo, envolvendo pele, ossos, nervos e muscul atura, de imagem afetiva.  4.3 – A tradução da imagem no espaço (dansintersemiotização) e o ser dançado  Chamamos a tradução da imagem no espaço e a capacidade de ser dançado de imagem invi-sível. Esta compreende e, ao mesmo tempo, transcende a expressão do corpo e seus desenhosno espaço, atingindo um estado poético. Aqui, o improvisador está em cena. O que se vê resulta

da imagem que dança o ator/dançarino, unido à percepção do público.  A imagem invisível é silenciosa e muitas vezes de difícil explicação por meio de palavras, estána atmosfera criada e faz a conexão entre o ator/ dançarino e o público. Por não se tratar deuma linguagem escrita ou de uma narrativa corporal que dê indicações para que o público pos-sa entender uma mensagem específica, situamos o trabalho realizado no referido laboratóriocomo pertencente às formulações do teatro pós-dramático, que, segundo Lehmann (2007),considera que a recepção “manifesta a exigência de substituir à percepção uniformizante e ex-cludente uma percepção aberta e fragmentada” (p.138). O público compreende, sim, mas talveznão como está acostumado, a partir de uma narrativa linear: a hierarquia dos recursos teatraissofre alterações, o texto não ocupa lugar central, os elementos cênicos utilizados se alternamem sua sobrevalênci a. (LEHMANN, 2007)

3 – Improvisação e Imagem

A escolha do Butoh para pesquisar a imagem na improvisação foi de fundamental importânciapor tratar-se de uma dança de improvisação por excelência, em que o uso da imagem enquantopropulsora do movimento e criadora da atmosfera respeita a individualidade de cada corpo emseu modo de expressão.  Encontramos em Giorgio Salerno (1998) o depoimento da dançarina Yomiko Yoshioka sobreo seu percurso de aprendizagem no Butoh. Em suas palavras, o movimento não pode ser ape-nas determinado pela vontade e pela consciência; são múltiplos os elementos que influenciamo agir, por isso “mais do que dançar, se é dançado; mais do que mostrar algo, transforma-senesse algo”(p.165, tradução nossa). Não se trata de anular a raz ão, mas de afirmar “(...) a pró-pria identidade e, ao mesmo tempo, ser capaz de negá-la” (Kazuo Ohno, apud SALERNO, 1998,p.166, tradução nossa).  O conceito de ser dançado3 nos remete à ideia de um corpo-recipiente, de um objeto quecontém, que abriga vários outros objetos ou possibilidades, de um corpo que, além de abrigar,possui a capacidade de transformar-se no ente abrigado.  Assim, partimos para a execução de exercícios específicos visando à reflexão constante so-Assim, partimos para a execução de exercícios específicos visando à reflexão constante so-bre o comportamento do ator/dançarino. Cada movimento é integrado ao fluxo de pensa-mento e às construções imagéticas que se dão durante todo o tempo: uma demanda física deconcentração absoluta.

3. Esta conclusão surge a partir do trabalho prático que venho desenvolvendo junto aos participantes no Laboratório

Corpo/Imagem na Improvisação.

Figura 2

Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009 . Dança: Sabrina Cunha

  A imagem invisível que estamos experimentando como elemento resultante da improvisaçãonas aulas do laboratório identifica-se com o tipo de recepção proposta por Lehmann (2007,p.140), chamada de imagem de sonho, e indica não uma reação coletiva comum, mas uma liber-

dade e uma reação arbitrária, uma comunidade do diferente. Ainda que o público esteja diantede uma mesma improvisação, as perspectivas de cada um não estão fundidas em um todocomum, e a compreensão disso transforma a necessidade de entender o que se vê em necessi-dade de compartilhar diferentes percepções do que foi visto.  Jerzy Grotowiski (2001), na fase de sua pesquisa do teatro como veículo, aprofunda-se naquestão da importância da recepção quando o espectador torna-se testemunha; a partir deentão, o trabalho deixa de ter um caráter espetacular para ocupar um território mais íntimo ehumano, em que previlegia-se a troca, o compartilhar um momento, o encontro entre ator e testemunhas. Neste ponto encontramos uma semelhança com o Butoh , que também toca um território í ntimo de quem o pratica e, por consequência, de quem o ass iste, expondo em cenauma humanidade muitas vezes bizarra e de grande força expressiva, criando uma atmosferacomum habitada por várias possibilidades imagéticas.

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5 – Por Enquanto...

O improvisador concentra em si, em seu corpo, as possibilidades de construção da sua dança,o lugar  primeiro de sua criação é seu corpo: “uma obra in situ produz o lugar que ela mesmaocupa e se confunde com el e” (CAUQUELIN, 2008, p.74).  Improvisar, tocar o sutil, dançar improvisando uma sensibilidade que transcende os olharescotidianos que habitam a nossa vida, significa encontrar um lugar  adequado dentro do corpo.Este lugar  é indeterminado e móvel, respeita uma lei instável que abriga os estados mentais, sen-soriais e de humor, influenciando na qualidade expressiva dos movimentos. Importa saber queeste lugar , apesar de ser influenciável, é independente, portanto uma vez nele, pode-se exercerescolhas. Encontrar o lugar  é o primeiro passo para a improvisação.

Figura 1:

Foto de Ricardo Padue. Laboratório Corpo/Imagem na Improvisação – UnB, maio de 2009 . Dançam: as mãos.

  Dentro deste lugar  que supomos ser o corpo, elemento vasto, ainda há que se encontrar olugar  de estar no momento da improvisação com a imagem, em uma busca do lugar dentro dolugar. Seria uma espécie de lugar  certo onde concentrar a atenção para abandonar-se ao movi-mento recôndito, deixando emergir o movimento acordado pela imagem e ser por ela dançado.  Estamos no caminho, no por enquanto, investigando a dança do imprevisto que sabemos situ-ada entre o nascimento e a morte.

ReferênciasCAUQUELIN, Anne. Frequentar os incorporais. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

DAMASIO, Antonio. O mistério da consciência . São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

D’ORAZI, Maria Pia. Kazuo Ono. Palermo: L’Epos, 2001.

GROTOWSKI, Jerzy. Il Teatro laboratorium di Jerzy Grotowski 1959-1969.  Pontedera: Fondazione Pontedera Teatro, 2001.

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós dramático. São Paulo: Cosac Nayf, 2007.

SALERNO, Giorgio. Suoni del corpo segni del cuore. Milano: Costa&Nolan, 1998.

SILVA, Soraia. Poemadançando: Gilka Machado e Eros Volúsia. Brasília: UnB Editora, 2007.

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O Rei Lear , suas Referências e Níveis

SUZI FRANKL SPERBER *

ResumoO artigo analisa o Rei Lear , de William Shakespeare, a partir da noção de teatro pós-dramático, com o intuito de ressaltar

as novidades introduzidas pelo teatro elisabetano, especialmente aquelas que s urgem no Rei Lear , tais como: os sentidos do

 título e suas origens; as relações com o Eclesiastes, tomando como tópicos “as ilusões da vida humana”, “precariedade da

vida humana, sabedoria e insensatez”, “as vicissitudes do presente”, “justiça e retribuição”,“exploração e concorrência des-

leal”, “a solidão e seus inconvenientes”, “o poder político e seus riscos”, “sábio e as arbitrariedades da corte” e “as previsões

da adversidade”. Ao longo do texto, haverá referências ao tema da loucura 1 e a períodos históricos.

Palavras-chave: Rei Lear. William Shakespeare. Eclesiastes. Criação a partir de um mote. Loucura. História.

 Abstract

 An analysis of King Lear by William Shakespeare, departing from the concept of post-dramatic theater, in order to assert the origi-

nality of Elizabethan drama, more specifically as introduced in King Lear, the senses of the title and its origins and the relations with

Ecclesiastes, taking as topics “illusions of human life”; “precariousness of human life, wisdom and folly”; “vicissitudes of the present”;

“justice and retribution”; “exploitation and unfair competition”; “loneliness and its drawbacks”; “political power and its risks”; “the

wise man and the arbitrariness in the court” and “predictions of adversity”. The analysis will include the theme of madness, as found

in Erasmus of Rotterdam, as well as referential approaches to History.

Keywords: King Lear. William Shakespeare. Ecclesiastes. Creation of a play from a motto. Madness. History.

* Mestre e Doutora em Teoria Literária, USP. Livre-docente em Teoria Literária junto ao DTL-UNICAMP. Publicou 8 pre-

fácios; 160 artigos, alguns traduzidos p. japonês, alemão, espanhol e francês; 20 livros, dentre os quais Língua e Literatura: o

professor pede a palavra. São Paulo: Cortez, 1981; Sperber (org.) Re-edição de Natalika, de Guilherme de Almeida, Campinas:

Editora Unicamp, 1993 ; Sperber (org.) Re-edição de Guilherme de Almeida. Encantamento. Acaso. Você. Campinas: Editora

UNICAMP, 1997; Adna Candido de Paula e Suzi Frankl Sperber. Teoria Literária e Hermenêutica Ricœuriana. Um diálogo p ossí-

vel. Dourados-MS: Editora UFGD, 2010; Sperber, S.F. (org.). Presença do sagrado na literatura. Campinas: IEL-UNICAMP, 2011

(no prelo); traduções de poesia. Docente por três semestres de curs os na Universidade de Colônia - Alemanha. Bolsa Pro-

dutividade Pesquisa – CNPq. Coordenadora e pesquisadora do Projeto Temático “Memória(s) e pequenas percepções”.

Coordenadora do GT Literatura e Sagrado-ANPOLL. Líder Círculo de Estudos Avançados em Dramaturgia – CNPq.

1. cf. Erasmo de Rotterdam.

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Introdução

Um Salto no Tempo

Em sua obra Postdramatisches Theater , publicada em 1999, na Alemanha, Hans-Thies Lehmannretoma antigas teses teatrais e afirma que, do teatro elisabetano ao teatro burguês do final doséculo XX, a cena tem funcionado sempre dentro dos princípios da mímesis e da catharsis aristo- télica2. Apesar de vir sustentando a função de porta-voz da esfera crítica pública desde o séculoXX, no século XXI o teatro estaria à procura de si mesmo, tentando reconstruir um diálogo como seu público.  Lehmann pondera que, se o teatro perdeu seu fascínio frente aos grandes meios de comu-nicação de massa, por outro lado surgem, ao final do século XX, formas de ação teatral quepesquisam novas possibilidades de comunicação contrárias ao poder absoluto das pseudoesferaspúblicas na mídia, estabelecendo espaços próprios de comunicação diferenciada. Disto decorre osurgimento de uma mescla de linguagens, a incorporação de diferentes artes e a tônica na relaçãocom o público.  Esta nova forma teatral não procura suscitar a adesão do espectador, mas provocar sua per-cepção ou emoção significativa. Os aspectos fragmentários destes textos, ou destas montagens,permeiam uma reescritura cênica que engloba os aspectos textuais, cenográficos e os problemaspropostos por um jogo não necessariamente psicológico.  Esta é a teoria do teatro pós-dramático. De fato, as pesquisas no teatro pós-dramático dãoênfase a situações e não a ações. Isto tem levado a uma recepção difícil, quando não perturbada.Considero que tanto o rótulo para estas novas pesquisas – o teatro pós-dramático – como aspróprias situações postas em cena guardam algo do que está no nome: o drama (mesmo sendopós-drama). Portanto, a novidade, mesmo negando o drama (ou a tragédia) ou procurando auto-nomia em meio ao entrelaçamento de diferentes ar tes, não perde as referências fundamentais da tragédia e do drama, fundadas na existência humana, que poderão ser chamadas de miméticas ecatárticas, ou que estão a ela associadas: vida e morte, nostalgia do encontro e da relação amoro-sa. Por este motivo estão presentes referências das grandes peças teatrais do passado, que traba-lharam com uma proposta de totalidade, com a ilusão e com a reprodução do mundo.

O Rei Lear  em Análise

A referência ao olhar de Lehmann parecerá estar completamente fora de lugar num estudo doRei Lear , de William Shakespeare. O grande Autor trabalha com totalidade, ilusão e reprodução

do mundo, que constituem o modelo do teatro dramático elisabetano por excelência. Em quemedida, porém, poderíamos considerar que existe uma (muitas, provavelmente) leitura (leituras)possível(eis) de Lear  em que o triângulo drama/ação/imitação cede espaço para uma comunica-ção diferenciada, que mescla linguagens advindas de referências muito diferentes entre si, situadaspara além do que se aceita e se entende como teatro elizabetano? Uma leitura que incorporepelo menos uma ar te dentro da ar te (o teatro), incluindo dialogismos, diferentes vozes, com umaestratégia cênica e dramática cuja tônica resida na relação com o público, na mescla de influênciase em uma costura que pareça histórica, mas que passeie entre a magia da poesia, criadora de

2. “Para sintetizar melhor seu conceito, Lehmann observa que totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem o

modelo do teatro dramático. E que a realidade do novo teatro começa exatamente com a desaparição do triângulo dra-

ma, ação, imitação, o que acontece em escala considerável apenas nas décadas finais do século XX.” (GUINSBURG, Jacó e

FERNANDES, Silvia [orgs.]. O Pós-dramatico: um conceito operativo?  São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 13).

imagens, e a crueza da realidade, no contraponto gerador de outra coisa, outro sentido, ancestrale, ao mesmo tempo, moderno?  A análise que se propõe caminhará a partir da compreensão do Rei Lear . Só então, com todasas referências necessárias, voltarei à reflexão sobre a hipótese de Lehmann (Lehmann, 1999).  A cena teatral caracterizou-se, durante o chamado teatro dramático, por interpretar textospré-escritos. Segundo a crítica contemporânea que revê os clássicos, os textos pré-escritos se-riam de difícil interpretação justamente por não contarem com a encenação, que corresponde auma leitura e interpretação. Daí textos pré-escritos e não improvisados serem vistos por algunscomo menos tangíveis, compreensíveis, por objetivarem conflitos psicológicos e morais entre aspersonagens, conflitos que sempre contêm não ditos e interstícios que afundam no insconsciente.Este seria, a meu parecer, um quadro temático narrativo que serviria mais ao cinema e à televisãoque ao teatro. As noções de tragédia e de comédia, aparentemente separadas, já começam a semesclar tanto na Idade Média, nas festas carnavalescas, como nos Autos de Gil Vicente e no teatroshakespeareano e elisabetano. Em qualquer pesquisa que se faça, encontramos a indicação dasmesclas entre tragédia e comédia e o comentário sobre a ironia shakespeareana. Portanto, nesteuniverso teatral, os princípios da mímesis e da catarse não vigoram3. O cômico do Rei Lear , com aloucura do rei caído em desgraça pela traição de suas filhas, a quem, por afeto, havia presenteadocom todo seu patrimônio, proporcionava o alívio cômico ao público, fazendo ressaltar, como peloefeito do chiaroscuro, a tragédia pessoal de Lear, e a nacional, da Inglaterra maltrapilha por causada guerra civil. Já teríamos aí um dado que afetaria a hipótese do teatro pós-dramático. Sem in-corporação de TV, tela, projeções, o teatro shakespeareano incorpora o teatro dentro do teatroe, dependendo da encenação, elementos circenses propostos pelo Bobo. A poesia materializa amagia, sem deixar de incorporar, em encenações contemporâneas, projeções que caracterizam amodernidade, ou, por relações associativas, a poesia mágica desperta imagens no receptor, que vêaquilo que é sugerido pela palavra.  O pequeno grupo de estudos campineiro “Literatura e Dramaturgia” reuniu-se diversas vezespara discutir a peça Rei Lear , de William Shakespeare. Muitos aspectos foram levantados, muitasanálises foram propostas. Dentre elas, sugeri que Shakespeare, ao redigir e encenar o Rei Lear,possivelmente teve, no horizonte de provocações ou de estímulos, dois textos relevantes: o Ecle-siastes (ou Coélet ), do Velho Testamento, e o Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam. As refe-rências reconhecidas como contemporâneas a Shakespeare incluem a história da Grã Bretanha,especialmente aquela encontrada nas Crônicas de Raphael Holinshed  (1587) e na Historia RegumBritanniae, de Geoffrey de Monmouth, de 1135.  Shakespeare cria, nesta tragédia, personagens que serão atingidos seja pela cobiça, prepotência,orgulho, inveja, ganância, traição, indiferença, antiética, seja por outros atributos do gênero. Seriauma punição? As personagens reúnem mais de uma destas características, sempre combinadas

com outros vícios, contrapostos a variações do que seria o Bom e o Bem.  Em ata da reunião inicial do grupo de estudos acima referido apareceram os seguintes temas:  • Divisão das personagens em três modalidades ou grupos: aquele que parece ser aquilo quenão é (Edmundo); aquele que age segundo aquilo que de fato é (Cordélia); aquele que parece seroutro para conseguir o que quer (Kent).  • O papel do “desaparecimento” do Bobo na obra.  • A densidade da obra que, por seu caráter moderno, engloba temáticas metalinguísticas, filo-• A densidade da obra que, por seu caráter moderno, engloba temáticas metalinguísticas, filo-sóficas, sociais, etnológicas, históricas, políticas, psicológicas, psicanalíticas e religiosas. Há o teatro

3. O teatro elizabetano tem seu auge de 1562 a 1642. As peças caracterizam-se pela mistura sistemática do sério e do

cômico, da ironia e da realidade, dos gêneros; pelo abandono das unidades aristotélicas clássicas; pela variedade na escolha

dos temas, tirados da mitologia, das literaturas medieval e renascentista e da história; por uma linguagem que mistura o

verso mais refinado à prosa mais descontraída.

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dentro do teatro. Uma das per sonagens da peça é sacrificada: Cordelia. O nome Cordelia proviria,presumivelmente, da peça The Faerie Queene (1590) de Edmund Spenser, em que também há umapersonagem chamada Cordelia, que morre enforcada, como no Rei Lear .  • A existência de um possível anagrama, no qual LEAR seria uma variação de REAL.

O Título e o Nome da Personagem

Começo pelo nome da personagem-título da peça. A personagem histórica na qual a peça estábaseada seria o legendário Leir of Britain, um rei céltico mitológico pré-romano. A grafia do nomedeste rei céltico é LEIR. Diz-se, também, que existe uma relação entre Leir e os deuses marinhosgaleses e irlandeses Llyr e Ler (derivado do Céltico Leros, que quer dizer mar )4. Segundo Geoffreyof Monmouth, estudioso da obra, Leir é o epônimo do fundador de Leicester (Legra-ceaster ouLigora-ceaster, em anglo-saxão), conhecido como Cair Leir, em galês, sendo Leir um hidrônimoderivado do celta Ligera ou Ligora. A que vêm tais considerações? Apesar destas referências querhistóricas, quer mitológicas, o nome grafado por Shakespeare é diferente das três variantes encon- tradas. Proponho que esta grafia diferente – LEAR – pode corresponder a uma prática retóricados sécs. XV e XVI (desde cerca de 1430 até cerca de 1530), usada por poetas menores (chama-dos de rhétoriqueurs), que produziram suas obras no período compreendido entre as de FrançoisVillon e as de Clément Marot. A poesia dos rhétoriqueurs se caracterizava pelo uso de artifícioscomo as metáforas, jogos poéticos como acrósticos, palíndromos, rimas equivocadas, a aliteração,a annominatio, a amplificatio e a anáfora, forçados que eram a usar formas congeladas, fixas. A fimde conseguir transmitir alguma nuança, tais poetas usavam anagramas que indiciavam um sentidoimportante para o texto. Considero que, se Shakespeare não grafou Leir, ou Llyr, ou Ler, é porquequeria que seu leitor (do programa, por exemplo) percebesse que LEAR era anagrama de REAL. João Guimarães Rosa usa práticas paralelas em Grande Sertão: Veredas (“Rosmes!” é anagrama de“Semsor”).  O nome de Cordelia também é referência histórica. Segundo Geoffrey of Monmouth, a rainhaCordelia foi uma legendária rainha dos Bretãos. Era a filha mais nova e preferida do já referido Leire a segunda na sucessão da Bretanha, irmã mais nova de Goneril e Regan. Quando Leir decidiudividir seu reino entre suas filhas e seus maridos, Cordelia recusou-se a bajulá-lo. Decepcionado eindignado, visto que acostumado à bajulação na Corte, Leir a puniu, não lhe dando nenhuma porçãode seu reino, portanto retirando o seu dote e negando-lhe, inclusive, as suas bênçãos a qualquereventual marido. Aganippus, o rei dos Francos, quis casar-se com Cordelia apesar da atitude de Leir,manifestando seu apreço pelo caráter da princesa. Segundo os dados históricos levantados, Cor-delia mudou-se com seu marido para a Gália (que poderia ser um território abrangendo a França,

Luxemburgo e a Bélgica), onde teria vivido por muitos anos. Leir teria sido exilado da Bretanha efugido para a Gália. Procurou, então, restaurar seu trono, com a ajuda do exército gaulês. Foram bemsucedidos e Leir pôde reinar. Três anos depois da morte de Leir, Aganippus morreu. Cordelia voltou,então, para a Bretanha e foi coroada rainha. Ela reinou durante cinco anos. Neste período, seus sobri-nhos tornaram-se maiores de idade e decidiram derrubá-la do trono. Ela lutou pessoalmente em di-versas batalhas, acabou sendo capturada e presa pelos sobrinhos, suicidando-se pela decepção e dor.

O levantamento histórico, normalmente apresentado como fonte para a criação de Shakespe-O levantamento histórico, normalmente apresentado como fonte para a criação de Shakespe-are, interessa-me para analisar as diferenças entre o relato histórico e o ficcional: a personagemCordelia da peça teria reagido de forma semelhante à Cordelia histórica, mas o desenlace de cadahistória difere. Talvez este desenlace guarde conexões com o REAL indiciado por Lear. O quesignifica este REAL?

4. Os nomes não estão etimologicamente relacionados.

A Vítima Sacrificial

Observei que Cordelia, a preferida, a amada, a invejada, é sacrificada. Por que Cordelia se tornaum bode expiatório? Trata-se da vítima sacrificial, necessária, segundo René Girard (GIRARD, 1961,11-12), para estancar a violência paroxística e indiscriminada desencadeada pela indireta e anteriormanifestação de amor e apreço de Lear por Cordelia – e pelo erro trágico da mesma, ao comentarque seu amor pelo pai não seria extraordinário, mas correspondente ao esperado de um amorfilial. A verdade corresponde ao real, ao bom, ao bem. A verdade é desejável. As irmãs de Cordelia,contudo, já se haviam manifestado – e bajulado o rei. Imitá-la levaria ao desastre de suas ambições.Era necessário, portanto, que as irmãs desqualificassem os valores de Cordelia. A verdade é carac- terizada como correspondente à falta de amor. A hipocrisia e a mentira se apresentam como o real.Neste jogo de inversões, também são atingidos os súditos leais. A lealdade precisa ser sacrificada,antes que revelada. “O desejo adulto não difere em nada do desejo infantil, salvo que o adulto, emparticular em nosso contexto cultural, normalmente tem vergonha de se modelar por outro; ele tem medo de revelar sua falta de ser. Declara-se altamente satisfeito consigo mesmo; apresenta-secomo modelo para os outros; cada um repete: “imitai-me”, a fim de dissimular sua própria imitação”(GIRARD, 1972, 204-205). A imitação deveria proceder do valor ético de Cordelia. Como os valo-res foram invertidos, a temática corresponderá ao “mundo às avessas”, estudado inicialmente porErnst Robert Curtius e, depois, por Mikhail Bakhtin. O avesso da verdade, da lealdade, da hones- tidade corresponderá à imitação invertida, às avessas, consistindo na mentira, traição, deslealdade,lisonja, desonestidade.  Há outro objeto do desejo, mais forte e de outra natureza: é o poder. As irmãs e Edmund dese-Há outro objeto do desejo, mais forte e de outra natureza: é o poder. As irmãs e Edmund dese- jam o poder absoluto. Segundo Girard (GIRARD, 2000, 84), caso sujeito e modelo se encontremem um mesmo mundo, o objeto desejado pelo sujeito está ao alcance do modelo, e instaura-se arivalidade. Esta rivalidade é tal que se reforça por si mesma:

Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simé-

 trica; pois, à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-

lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de

seu imitador.(GIRARD, 2000, 87).

  À medida que esse mecanismo se desenvolve, os dois tornam-se cada vez mais semelhantes eindiferenciados e o conflito torna-se cada vez maior, chegando a um ponto em que o objeto dodesejo desaparece e resta a rivalidade.

Nesse jogo mimético entre os rivais,

[...] caminha-se sempre para uma simetria maior e, consequentemente, para mais conflito, já que a simetria sópode produzir duplos. Os duplos surgem com o desaparecimento do objeto, e, no calor da rivalidade, os rivais

se tornam cada vez mais indiferenciados, idênticos... Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armaze-

nando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções...(GIRARD, 2000, 87).

  O desencadeamento desse mecanismo mimético torna-se cada vez mais atraente para os ob-O desencadeamento desse mecanismo mimético torna-se cada vez mais atraente para os ob-servadores: a disputa pelo objeto valoriza-o, provocando a cobiça, até que, com o crescimento dadisputa, o objeto sai do campo da consciência, desaparecendo “dilacerado e destruído no conflito”,diz Girard (GIRARD, 2000, 87).  A proliferação de duplos é acompanhada de um aumento crescente de violência. Todos os mem-A proliferação de duplos é acompanhada de um aumento crescente de violência. Todos os mem-bros da comunidade são envolvidos no jogo mimético, que desemboca no que o autor denominade “crise sacrificial”: a luta de todos contra todos, o mergulho de toda a sociedade numa situaçãocaótica e indiferenciada, o desaparecimento da ordem cultural.

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  O que estanca essa violência indiscriminada é a canalização gradual das energias conflituosassobre um único indivíduo, o bode expiatório, sobre quem a comunidade inteira deposita a res-ponsabilidade da desordem. Na peça, há dois causadores da desordem: Lear e Cordelia. Lear, pordividir o reino, o que o enfraquece e o leva a ser expulso, exilado. O reino passa a ser regido pelosgenros, mais do que pela filhas de Lear. Emasculado por lhe ser negada a guarda de direito a umrei, Lear enlouquece. Sobram, ainda, os três ambiciosos: Goneril, Reagan e Edmund, que lutarãoentre si, desqualificando um ao outro, armando embustes para eliminar o rival. Restam, também,os súditos fiéis, que procuram preservar o poder de Lear. Estes têm o seu modelo de legislador,de rei justo, que é o mesmo, Lear. Como eles não são Lear e como seu modelo precisa de suaajuda, ele não precisa ser desejado por eles. Daí ser desnecessária a competição entre os súditosleais. Estes serão ameaçados, ainda, pelos súditos desleais e rivais. Os súditos fiéis são o Condede Kent, o Conde de Gloucester e Edgar, filho legítimo de Gloucester, que também serão bodesexpiatórios. Logo, aos olhos dos invejosos e desejosos do objeto cobiçado – o Bem e a Justiça,encarnados, sobretudo, em Cordelia –, os súditos fiéis também precisarão ser punidos. Gloucesteré expulso, depois de ser cegado. Kent é expulso e decide submergir na corte, vestindo-se comomendigo, a fim de proteger seu rei. Edgar precisa fugir, porque é acusado pelo meio-irmão de que-rer envenenar o pai. A própria Cordelia menciona seu erro (no sentido de hamartía):

Cordelia: We are not the first 

Who, with best meaning, have incurr’d the worst.

For thee, oppressed king, am I cast down;

 Myself could else out-frown false fortune’s frown. 5(SHAKESPEARE, 1955, 938 – KingLear, Ato V, Cena III, 3-6)

  Como Cordelia voltou ao reino, ela será o último bode expiatório de Edmund, que mandarámatá-la e tentará apresentar o assassinato como suicídio (esta parte do enredo imaginário deEdmund corresponde à história real da Cordelia histórica, porém só o suicídio seria semelhante enão as demais circunstâncias). Edmund precisava fazê-lo para garantir seu poder. Quando este searrepende, porque sabe que morrerá, portanto não se beneficiará do assassinato, já é tarde.

5. CORDÉLIA — Os primeiros não somos a ficar sobre braseiros com boas intenções. Rei oprimido, por ti, somente, falta-

me o sentido, que eu, por mim, poderia, carrancuda, enfrentar as carrancas da Fortuna.

6. Refiro-me, neste ponto, ao conceito do homo sacer , de Giorgio Agamben, que se encontra na obra de mesmo nome

(2002).

Ilusão

A ação de Cordelia sublinha o ilusório do mundo. Seria o REAL a VERDADE? Seria a loucura? Aação do Rei Lear poderia indiciar a ilusão de desejar a manifestação absoluta de amor, que nãolhe basta e que o leva à loucura. Poderíamos pensar que o erro trágico foi cometido por Lear,mas o erro tr ágico é mesmo a il usão, a vida como ilusão. O conceito barroco de ilusão, um tanto

inesperado em Shakespeare, é temático, por exemplo, em Calderón de la Barca (La vida es sueño).A canalização gradual das energias conflituosas sobre uma única pessoa, bode expiatório, sobrequem toda a comunidade deposita a responsabilidade da desordem, leva a violências outras eà criação de bodes expiatórios intermediários, numa multiplicação indicativa de que cada gesto,cada ganância, cada jogo pelo poder é ilusório. O assassinato de cada bode expiatório reforça,na comunidade, a sensação de que a ordem e a paz voltam a reinar e a crença de que existemresponsáveis por aquele estado de coisas – um de cada vez – o bode expiatório da hora. ComoCordelia é a culpada máxima, aquela que é sagrada e que poderá ser morta sem julgamento6,

ela adquire um poder sobre-humano aos olhos de Lear – e a nossos olhos de espectadores –, jáque não só foi capaz de provocar a derrocada de todo um sistema social como, uma vez morta,poderá haver um novo pacto e uma nova ordem social. Tanto em Shakespeare como em Coélet , amulher, mesmo tendo coração, é suspensa e questionada por sua falta de força, sendo entendidacomo unidade só quando relacionada a um parceiro, a um homem. Por este motivo, Cordélia nãopoderá ser salva. Tal aspecto relaciona-se a uma nova consciência da noção de família em umasociedade aparentemente monárquica, noção essa que aparece em Shakespeare avant la lettre. Anoção de família como núcleo central e molecular da sociedade provém de Hobbes7, cujo Leviatã (obra publicada em 1651) é posterior a Shakespeare. O núcleo da sociedade deveria ser ocupadopela figura masculina – o pater familias – análoga às noções de “cidadão” e de “urbs”, que provêmdo Iluminismo e do conceito de Citoyen (HOBBES8). Na obra shakespeareana, especialmente noRei Lear , o poder é estruturado de tal forma que é preciso haver um pater famílias. Este, porém, éLear, anagrama de Real, portanto seu avesso, caracterizado como ingênuo, vaidoso, frívolo e pre-sunçoso: isto é, louco. Lemos no Elogio da Loucura:

Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim (Loucura), no fim dos seus dias! Mas, tenho pena deles e

estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades poéticas socorrem piedosamente, com o divino segredo da me-

 tamorfose, os que estão prestes a morrer: Fetonte transforma-se em cisne, Alcion em pássaro, etc. Também

eu, até certo ponto, imito essas benéficas divindades. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da

sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o provérbio:

Os velhos são duas vezes crianças . (ROTTERDAM, 2002, 8)

  “Os velhos são duas vezes crianças” é um provérbio que se aplica fundamentalmente a Lear,que se veste de trapos e se coroa com flores. Esta imagem é graciosa em dois sentidos: tem graça,sendo engraçada, irônica, ao mesmo tempo em que tem graça, numa acepção teológica, enraizada tanto no Judaísmo como no Cristianismo. Nessa última acepção, o termo é definido como umdom gratuito e sobrenatural concedido por Deus à humanidade, que consiste em prover todosos bens necessários à sua existência e à sua salvação. Esta dádiva é motivada unicamente pela mi-sericórdia e pelo amor de Deus à humanidade, logo, movida por Sua iniciativa própria, ainda queem resposta a algum pedido a Ele dirigido. A Graça de Lear tem conotação sagrada, ainda que demaneira “torta”: misto de Graça e de riso, ironia, a figura de Lear não chega a ser trágica. Sua forçavem de uma grandeza metafísica, mística, e, ao mesmo tempo, francamente Humana.  Em outro nível, a loucura de Lear e a cegueira de Gloucester dão-se as mãos. A culpa narcísicade ambos explica porque foram enganados – e maltratados. A culpa narcísica é o elo entre a ca-racterização das personagens do Rei Lear , o Eclesiastes e o sentido patriarcal, dilacerado na socie-dade descrita na tragédia. A noção protetora da família, da comunidade e, por extensão, do mundo

político, é suspensa, destruída. Shakespeare, mesmo apresentando a monarquia, já critica a moralburguesa. Esta, forjada a partir dos séculos XVI-XVII, considera a família como correspondente ao

7. A propriedade, para Hobbes (1995), é uma espécie de prescrição de regras ditadas pela soberania, através das quais o

homem deve saber quais os bens de que pode gozar, e quais as atitudes que pode tomar para com os outros. A proprie-

dade, portanto, é uma lei civil e, como tal, uma segurança para o cidadão. Mas essa esperança ( salus populi) nasce a partir

de uma demarcação dos limites da propriedade privada: os valores entendidos como meum e tuum. A limitação do “meu”

e do “teu” faz com que o que exista além do “meu” seja o estranho, que não deve desfazer a harmonia da composição

fechada. O meum torna-se valor sublime, quase um extremo de maniqueísmo incontido. “Essas regras da propriedade (ou

meum e tuum), tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis” (HOBBES, 1995,

cap. XVII)

8. HOBBES, Thomas. Leviathan. Chapter xx: “Of dominion paternal and despotical”. In http://www.infidels.org/library/historical/ 

thomas_hobbes/leviathan.html. Acesso em fevereiro 2010.

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menor núcleo detentor e definidor de propriedade, núcleo que precisa ser conservado devido aovalor conservador da propriedade – o que, desde o século XVI, é atribuído ao papel indispensávelda mulher, nos tratados de casamento9. Ora, tudo o que venha a perturbar ou comprometer estasegurança e harmonia é loucura, ou disparate, merecendo censura. Um “outro” que perturbe aautonomia absoluta deste substituto do estado político deve ser, pelo menos, criticado. Para a mo-ral burguesa, a noção de perda de identidade está fortemente vinculada ao papel social e políticodo indivíduo. Diz o Eclesiastes, mais recentemente nomeado segundo seu nome hebraico, Coélet ,acerca da sabedoria e da insensatez: “Depois examinei a sabedoria, a tolice e a insensatez, pensan-do: ‘O que fará o rei que virá depois de mim?’ Fará o que já foi feito” (Eclesiastes 2.12, 2002).  Neste ponto, retomo a hipótese de Coélet  (O Eclesiastes) como ponto de partida para a cria-ção do Rei Lear . Observei que a sabedoria leva vantagem sobre a insensatez, como a luz sobre as trevas. A peça apresenta Lear louco e Gloucester cego. Edmund levará vantagem sobre a insensa- tez do rei, e sobre a cegueira do pai, que só quer morrer.

13 Então percebi que a vantagem da sabedoria sobre a insensatez é a vantagem da luz sobre as trevas. 14 O

sábio tem os olhos abertos, e o insensato caminha na escuridão. Mas logo notei que ambos têm o mesmo

destino.15 Então pensei: «Vou ter o mesmo destino que o insensato! Para que me tornei sábio?» E concluí que tam-

bém isso é fugaz (ilusão). 16 De fato, a lembrança do sábio desaparece para sempre, como a do insensato.

Bem logo tudo ficará esquecido: o sábio morre da mesma forma que o insensato. (Eclesiastes 2.13-16, 2002)

  É o caso de Cordelia, que morrerá, apesar de sábia, assim como do Bobo – nada bobo –, que também é assassinado, enforcado.  Diversos outros trechos são aplicáveis ao Rei Lear :

3.16 Observei outra coisa debaixo do sol: Em lugar do direito, encontra-se a injustiça; e, em lugar do justo,

encontra-se o injusto. 17 E concluí que o justo e o injusto estão debaixo do julgamento de Deus, porque

existe um tempo para cada coisa e um julgamento para cada ação. (Eclesiastes 3.16-17, 2002)

4.13 Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato, que não aceita mais conselho, 14 mes-

mo que o jovem tenha saído da prisão para reinar, e ainda que tenha nascido mendigo no reino. (Eclesiastes

4.13-14, 2002)

8. 5 Quem obedece às ordens, não incorre em pena alguma. A mente do sábio conhece o tempo e o jul-

gamento, 6 porque para cada coisa há um tempo e um julgamento. Sobre o homem pesa um grande mal: 7

ninguém sabe qual será o seu futuro. De fato, quem pode saber o que vai acontecer? 8 Ninguém é capaz de

dominar sua própria respiração: o dia da morte está fora do nosso domínio. Da luta na vida ninguém podefugir; nem a maldade salva aquele que a comete. (Eclesiastes 8.5-8, 2002)

  Edmund, o mau, de fato também morre.

4.2 Todos têm o mesmo destino, tanto o justo como o injusto, o bom e o mau, o puro e o impuro, quem

sacrifica e quem não sacrifica. O bom é tal qual o pecador, e quem jura é igual a quem evita o juramento. 3

O mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol é que todos têm o mesmo destino. Além disso, o co-

ração dos homens está cheio de maldade, e a insensatez se abriga no coração deles durante todo o tempo

que vivem. Depois eles se dirigem para junto dos mortos. (Eclesiastes 4.2-3, 2002)

9. Em verdade, o papel da mulher de mantenedora dos bens familiares existe desde um dos textos ancestrais de nosso

mundo ocidental: na Odisséia, este é um dos papéis de Penélope.

10.16 Ai de você, país governado por um jovem, e cujos príncipes se banqueteiam desde o amanhecer. 17 Feliz

de você, país governado por um rei nobre, e cujos príncipes comem na hora certa para se refazerem, e não

para se banquetearem.20 Não fale mal do rei, nem mesmo em pensamento, e não fale mal do poderoso, nem

dentro do seu próprio quarto: um passarinho poderá ouvir, e um ser alado qualquer poderia contar o que

você falou. (Eclesiastes 10.16-17; 20, 2002)

  A roda da ambição, que gera vítimas e algozes, revela que tanto elas como os sábios vivem emilusão. Ser mau para obter bens e poder é ilusão, assim como ser bom e sábio leva ao mesmo fim,sendo ilusão também: “1.8Toda explicação fica pela metade, pois o homem não consegue terminá-la. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se far ta de ouvir” (Eclesiastes 1.8, 2002).  No Eclesi astes, lemos ainda: “19 O que aconteceu, de novo acontecerá; e o que se fez, de novoserá feito: debaixo do sol não há nenhuma novidade” (Eclesiastes 1.9, 2002).  O que vemos no Rei Lear  foi teorizado por René Girard (Girard, 1961): o desejo mimético e avítima sacrificial não são novidades. Ao mesmo tempo, o argumento de “o que aconteceu, de novoacontecerá” presta-se a justificar referências históricas diversas (há outras mais, além das expostas), tão frequentemente usadas por Shakespeare: “1.10 Às vezes, ouvimos dizer: ‘Veja: esta é uma coisanova!’ Mas ela já existiu em outros tempos, muito antes de nós” (Eclesiastes 1.9-10, 2002).  Perguntaram-me se o Eclesiastes não poderia ser aplicado a toda a obra de Shakespeare. NoRei Lear , observamos a abordagem de diferentes tópicos do Eclesiastes, como “as ilusões da vidahumana”; a “precariedade da vida humana, sabedoria e insensatez”; “as vicissitudes do presente”; o tema da “justiça e retribuição”; “a exploração e a concorrência desleal”; “a solidão e seus inconve-nientes”; “o poder político e s eus riscos”; “o sábio e as arbitrariedades da cor te” e “as previsões daadversidade”. Em outras obras shakespeareanas não observo a frequência de temas paralelos. EmHamlet , a personagem-título passa por vicissitudes que poderiam ser entendidas como provindasda ambição e da cobiça, portanto da ilusão. Mas, sem dúvida, o tema forte da peça é a culpa.  Minha hipótese é a de que o Eclesiastes10 teria fornecido uma espécie de mote, inspirando aescrita do Rei Lear : “1 Palavras de Coélet, filho de Davi, rei de Jerusalém”.2 “Ó suprema fugacidade”,diz Coélet, “ó suprema fugacidade! Tudo é fugaz!” (Eclesiastes 1.1-2, 2002)11. Outras forças culturaisou históricas do tempo de Shakespeare teriam reforçado o mote e a inspir ação, inclusive na bus-ca do Real – oposto à Ilusão e à fugacidade. Por isso a criação shakespeareana provoca emoçãosignificativa no público e, sem dúvida, mesmo tendo sido criada e apresentada na primeira décadado séc. XVII, constitui-se como uma arte total, transversal, inspirada por universos diferentes epor recursos plurais. Cada cena tem uma ligação com a anterior e com a posterior, mas a cena da tempestade tem uma força e uma autonomia vinculadas ao sagrado, à Graça, distinguindo-a dasdemais. Mesmo a cena da morte de Lear, que sublinha a sua transformação, também marca umadistinção em relação ao luxo e ao poder ambicionados em toda a peça.

  Volto, assim, a Lehmann . É óbvio que o Rei Lear  não é atravessado pelas artes da imagem, pelocinema, pelas artes pláticas e pelo circo, como ocorre no teatro pós-dramático. Se levarmos emconta a caracterização de Erich Auerbach do teatro elisabetano, veremos que nele se observauma consciência mais livre: as desgraças transcendem o herói e devastam toda a sociedade; existeuma multiplicidade de temas (como, no Rei Lear , a ambição e a inveja, a desobediência civil e oseu contrário, a crítica explícita e a loucura, tudo com notável liberdade de movimentos e girandoem torno do mote da ilusão); além da história nacional, outros gêneros estão presentes, comohistórias fabulosas, novelas e contos de fadas. Assim, neste mundo diversificado, há espaço para afantasia e a magia, que se manifestam pela poesia, ação e encenação livre não mimética, como, por

10. Sem dúvida, Shakespeare cria a partir de diversos estímulos. Ele não deixa de ter como base para os dramas históricos

as crônicas de Edward Hall (1548) e Raphael Holinshed (1587).

11. Há traduções do Eclesiastes, como a presente, que usa o conceito da fugacidade. Outras, repisam o da ilusão.

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exemplo, na extraordinária cena em que Gloucester é guiado pelo filho até a borda de um pre-cipício – conforme o projeto de Gloucester, mas inventado por Edgar, seu filho legítimo –, numacena mágica e quase trágica.

Act 4. Scene VI

SCENE VI. Fields near Dover.

Enter GLOUCESTER, and EDGAR dressed like a peasant.

GLOUCESTER — When shall we come to the top of that

same hill?

EDGAR — You do climb up it now: look, how we labour.

GLOUCESTER — Methinks the ground is even.

EDGAR — Horrible steep. Hark, do you hear the sea?

GLOUCESTER — No, truly.

EDGAR — Why, then, your other senses grow imperfect

by your eyes’ anguish.

GLOUCESTER — So may it be, indeed: methinks thy voice

is alter’d; and thou speak’st in better phrase and matter

 than thou didst.

EDGAR — You’re much deceived: in nothing am I changed

but in my garments.

GLOUCESTER — Methinks you’re better spoken.

EDGAR — Come on, sir; here’s the place: stand still. How

fearful and dizzy ‘tis, to cast one’s eyes so low! The crows

and choughs that wing the midway air show scarce so

gross as beetles: half way down hangs one that gathers

samphire, dreadful trade! Methinks he seems no bigger

 than his head: the fishermen, that walk upon the beach,appear like mice; and yond tall anchoring bark, diminish’d

 to her cock; her cock, a buoy almost too small for sight:

 the murmuring surge, that on the unnumber’d idle pebbles

chafes, cannot be heard so high. I’ll look no more; lest my

brain turn, and the deficient sight topple down headlong.

GLOUCESTER — Set me where you stand.

EDGAR — Give me your hand: you are now within a foot

of the extreme verge: for all beneath the moon would I not

leap upright.

Ato 4, Cena VI

Região perto de Dover. Entram Gloster e Edgar vestido

de camponês.

GLOSTER — Quando chegaremos ao topo desta colina?

EDGAR —  Já a estás escalando. Vê, vê como nos dá

 trabalho.

GLOSTER — Tenho a impressão de que o terreno é plano.

EDGAR — Horrivelmente abrupto. Não ouves o barulho

do mar?

GLOSTER — Em verdade, não.

EDGAR — Então é porque os teus outros sentidos

ficaram imperfeitos devido à angústia dos olhos.

GLOSTER — É possível. Parece-me que tens a voz mudada

e que falas agora com mais sentido e melhor expressão.

EDGAR — É puro engano de tua parte; em nada estou

mudado, a não ser por estas vestes.

GLOSTER — Não; parece-me que te exprimes melhor.

EDGAR — Vamos, senhor; eis o lugar. Chegamos. Fica

quieto. Como é terrível! É de dar vertigens olhar para

baixo desta distância. Como os corvos e as gralhas que

voam neste espaço intermediário ficam pequeninos como

besouros! Vê-se à meia altura, suspenso, um homem que

procura funcho. Profissão arriscada! Tenho a impressãode que ele é do tamanho da cabeça. Os pescadores que

andam pela praia parecem ratos; a barcaça, ali ancorada,

parece tão pequena como o próprio escaler, e o barquinho

ficou parecendo uma boia, pequenina demais para ser

vista. As ondas agitadas, que batem nas inumeráveis e

preguiçosas pedras, não se fazem ouvir, tal é esta altura.

Não consigo olhar assim por mais tempo: tenho medo de

 ter vertigens, e temo perder o equilíbrio e cair de cabeça

para baixo.

GLOSTER — Coloca-me no ponto em que te encontras.

GLOUCESTER — Let go my hand. Here, friend’s, another

purse; in it a jewel well worth a poor man’s taking: fairies

and gods prosper it with thee! Go thou farther off; bid me

farewell, and let me hear thee going.

EDGAR — Now fare you well, good sir.

GLOUCESTER  — With all my heart.

EDGAR — Why I do trifle thus with his despair is done

 to cure it.

GLOUCESTER — [Kneeling] O you mighty gods! This

world I do renounce, and, in your sights, shake patiently

my great affliction off: if I could bear it longer, and not fall

 to quarrel with your great opposeless wills, my snuff and

loathed part of nature should burn itself out. If Edgar live, O,

bless him! Now, fellow, fare thee well. He falls forward 

EDGAR — Gone, sir: farewell. And yet I know not how

conceit may rob the treasury of life, when life itself yields

 to the theft: had he been where he thought, by this, had

 thought been past. Alive or dead? Ho, you sir! friend! Hear

you, sir! speak! Thus might he pass indeed: yet he revives.

What are you, sir?

GLOUCESTER — Away, and let me die.

EDGAR — Hadst thou been aught but gossamer, feath-

ers, air, so many fathom down precipitating, thou’dst shiver’d

like an egg: but thou dost breathe; hast heavy substance;

bleed’st not; speak’st; art sound. Ten masts at each make not

 the altitude which thou hast perpendicularly fell: thy life’s a

miracle. Speak yet again.

GLOUCESTER — But have I fall’n, or no?

EDGAR — From the dread summit of this chalky bourn.

Look up a-height; the shrill-gorged lark so far Cannot be

seen or heard: do but look up.

EDGAR — Dai-me a mão; só um passo vos separa da

borda extrema. Por quanto há debaixo da lua, eu não

saltara dessa altura.

GLOSTER — Solta-me a mão; recebe esta outra bolsa;

dentro dela há uma joia que merece ficar com algum pobre.

Os deuses todos e as fadas te protejam. Vai-te embora; dize

adeus, pois desejo ouvir teus passos.

EDGAR — Passai bem, bom senhor.

GLOSTER — Agradecido de todo coração.

EDGAR (à parte)  — A brincadeira que faço com a

desgraça dele, visa, tão-somente, curá-lo.

GLOSTER — Ó deuses grandes, renuncio a este mundo

e, em vossa vista, paciente, me despojo do meu grande

sofrimento! Pudesse eu suportá-lo por mais tempo, sem

luta abrir com vossa vontade irresistível, este abjeto morrão

da natureza se deixara consumir até ao fim. Se ainda com

vida estiver meu Edgar, oh! abençoai-o! E agora, amigo,

adeus. (Cai para a frente).

EDGAR — Adeus, senhor; já fui embora. ( À parte)

Conceber não posso como a imaginação roubar consegue

da vida a rara joia, quando a própria vida se presta ao

roubo. Se se achasse onde pensava estar, neste momento

pensar já não pudera. Vivo ou morto? ( A Gloster ) Então,

senhor! Amigo! Estais me ouvindo? Poderia morrer... Mas

não; revive. Que sois, senhor? Dizei-me.

GLOSTER — Vai-te embora e deixa-me morrer.

EDGAR — Se algo mais fosses do que ar, teia de aranha,

leve pluma, caindo assim de tantas braças do alto, partido

 já estarias como um ovo. Mas respiras, possuis pesadocorpo, não perdes sangue, estás inteiro, filas. Dez mastros

superpostos não bastaram para medir a altura de onde

caíste perpendicularmente. Verdadeiro milagre é tua vida.

Vamos, fala!

GLOSTER — Mas eu caí ou não?

EDGAR — Sim, lá do pico desta penha calcária. Olha

para o alto; ver e ouvir não se pode a cotovia de garganta

estridente. Olha para o alto!

(SHAKESPEARE, 1955, 933-34).

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  Edgar inventa o local da perdição, criação poética, cênica, fantásti ca, para que não exista a per-Edgar inventa o local da perdição, criação poética, cênica, fantástica, para que não exista a per-dição. Gloucester, cego, não vê por onde anda e acredita nas palavras que ouve. Nós, receptores,apesar de sabermos que se trata de uma fantasia, construímos mentalmente, magicamente, asimagens suscitadas pelas palavras.  A loucura é sabedoria e criação. Este é o REAL. Fruto de um evento dissociativo, a loucuradesvela o quanto a cobiça, a ambição, os esforços, a luta pelo poder – aparentemente “normais”,são inúteis, porque ilusórios. Verdade e honestidade, também elas são ilusões, e a reestruturaçãoda sociedade só será possível a partir de uma transformação, de uma purificação, de uma asceseque renove os quadros e elimine das bordas do poder aqueles cuja ação é nefasta. Nesta peça, épreciso que a loucura corresponda a uma trajetória de ascese e que a vítima sacrificial não sejapoupada, a fim de que se instaure um novo tempo. Este novo tempo indiciado não depende decatarse: é expresso no texto. É projeção para o futuro. Entre magia, poesia, ironia, sacrifício, paixãoe ascese, a mimese reúne o alto e o baixo e vai além, de modo que o receptor não pode vivera catarse. A relação com o público dá-se na surpresa, em certo temor diante do sagrado quehumaniza o rei e na lamentação diante da imperfeição humana. A conclusão da peça sublinha ex-pressamente as novas perspectivas:

ALBANY: The weight of this sad time we must obey; / Speak what we feel, not what we ought to say./The

oldest hath borne most: we that are young / Shall never see so much, nor live so long. (King Lear , Ato V, cena

III. SHAKESPEARE, 1955, 942).

  Os novos limites precisam ser obedecidos, correspondem ao REAL, mas um real feito de emo-Os novos limites precisam ser obedecidos, correspondem ao REAL, mas um real feito de emo-ção e sem conveniências, diferente, apesar de tudo, daquele dos mais velhos, que viveram mais tempo.

11 As palavras dos sábios são como ferrões, e as sentenças coletadas são como estacas fincadas. Umas e

outras provêm do mesmo pastor. 12 Além disso, meu filho, preste atenção: escrever livros é um trabalho sem

fim, e muito estudo. 13 Fim do discurso. De tudo o que se ouviu o resumo é este: Tema a Deus e observe

seus mandamentos, porque esse é o dever de todo homem. 14 Deus julgará toda obra, até mesmo a que

estiver escondida, seja boa, seja má. (Eclesiastes 12, 11-14, 200 2)

  Retomo Lehmann, para quem a totalidade, a ilusão e a reprodução do mundo constituem omodelo do teatro dramático. Shakespeare, em Rei Lear , ao por em discussão a ilusão, a concepçãodo mundo e os seus “valores” como ilusão também, revê a imitação, propõe o fim de um tempo eo começo de uma nova era, formada por seres de outro calibre. O que parece s er dramático, ou trágico, corresponde à trajetória iniciática de Lear. Entendo que, de algum modo, certo tratamento

dado à trama e às personagens, à poesia e à palavra, suspendem o triângulo drama/ação/imitaçãono Rei Lear , revelando que o novíssimo tem ecos e radículas no passado, até num passado de 400anos atrás.

12. ALBÂNIA — Do tempo triste somos os arrimos; digamos tão-somente o que sentimos. Muito o velho sofreu; mais

desgraçada nossa velhice não será em nada

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ARTE E TECNOLOGIA

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Interfaces Computacionais:Perspectivas Poéticas

CLEOMAR ROCHA *

ResumoO texto discute as poéticas das interfaces, a partir da caracterização das interfaces computacionais, e analisa alguns traba-

lhos em arte tecnológica, buscando esclarecer de que modo a poética é instaurada.

Palavras-chave: Poética.Interfaces computacionais. Arte tecnológica.

 Abstract

The paper discusses the poetics of interfaces, the characterization of computer interfaces, and it examines some works of techno-

logical art and how the poetic is established.

Keywords: Poetic. Computer interface. Technological art.

* Possui graduação em Letras pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iporá (1991), mestrado em Artes pela

Universidade de Brasília (1997), doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da

Bahia (2004) e pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Atualmente é professor adjun-

 to da Universidade Federal de Goiás e pós-doutorando em Estudos Culturais pelo Programa Avançado de Cultura Con-

 temporânea da UFRJ. Tem experiência nas áreas de Artes, Comunicação e Design, atuando principalmente nos seguintes

 temas: design de interfaces, comunicação mediada por computador, educação a distância e arte tecnológica.

Interfaces Computacionais

A despeito dos vários usos do termo interface, que por vezes significa articulação, intersecção, des-dobramento, suporte, fronteira, abrangência, e tantos outros, admite-se que o vocábulo, muito emvoga e quase um coringa, tome assento aqui como interface computacional, cujo sentido mais aceitoé de ser a parte de um sistema computacional e seu software que as pessoas podem ver, ouvir, tocare com que podem conversar, direta ou indiretamente, sendo composto por dois componentes: en- trada e saída de dados (GALITZ, 2002). Mas, não raro, como apontado, deparamo-nos com sentidosdiversos para o termo, quase sempre com base na relação etimológica: inter (entre) + face (superfí-cie), aquilo que se encontra entre duas superfícies. Noutras tantas acepções, interface é um lugar ouambiente onde elementos se encontram (LAUREL, 1990; SANTAELLA, 2003; ROCHA, 2003), em

clara referência ao processo interativo, admitindo-se que usuário e sistema agem na interface.  Contudo, as interfaces computacionais não se configuram como lugar, embora a metáfora deespaço-informação possa conduzir a este pensamento. Aliás, metáfora talvez seja o pr incipal recur-so de linguagem nos ambientes computacionais, sendo acompanhado de perto pela metonímia(ROCHA, 2009). A questão que emerge, neste contexto, é de como somos levados a crer na me- táfora não a compreendendo enquanto tal. A utilização de verbos como navegar, imergir e tantos

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outros, é reflexo da metáfora da cibernética – de origem grega, que significa timoneiro, governa-dor (EPSTEIN, 1986). “Mar de informação” atende ao mesmo princípio.

Ocorre, entretanto, que o exercício poético é, desde Aristóteles (1999), o conhecimento quese tem para construir efeitos, ou, melhor dito, o reconhecimento das estratégias de produção doencantamento. É a técnica utilizada para a criação do círculo mágico, ou da magia das artes, quecausam, alcançam o encantamento. Se assim o é, a metáfora é recurso da poética, por esta in stau-rar aquela, reconhecendo seus efeitos. Criar a magia de uma imagem estereoscópica não significacrer em sua profundidade, como somos conduzidos a crer pela percepção visual. Nisto consiste amagia: fazer crer no que de fato não é. São os recursos técnicos e de linguagem que concretizama ilusão, conduzindo os leitores, agentes fruidores, interatores, usuários, enfim, a uma condição deentrega, de aceitação.  Isto faz com que uma tela renascentista pareça possuir a profundidade que meus olhos sãolevados a crer existir, mas minha mente sabe inexistente. Isto faz com que uma tela LCD, uma pro- jeção ou uma TV me faça crer que sou eu ali, quando de fato tenho uma representação, um signo.O que há neste espaço que continua sendo bidimensional, mesmo com recursos estereoscópicos,são pontos de luz, emitida ou projetada, ainda que sua modificação no tempo seja conduzida porminhas ações.  Então a interface computacional é algo que se posta à minha frente, ou a meus lados, invadindomeu olho com sua luminosidade, prendendo minha atenção com suas respostas automáticas, porvezes estando ao meu redor, na forma de sensores, por vezes me olhando, por meio de câmeras.A interface computacional se converte em várias formas e meios, pois é mecanismo de entradae saída de dados dos sis temas computacionais. E se é nestes mecanismos que percebo o sistema,sua existência, e mesmo minha representação, então me deixo levar pelo pensamento de que éna interface que eu me encontro com o sistema. Cria-se a ilusão.

Interface de usuário, ponto de contato para o intercâmbio entre humanos e máquinas, pode assumir muitas

formas. É na interface, a ser usada pelo observador ativo de acordo com as regras do mundo particular de

ilusão, que as estruturas de simulação projetadas para comunicação encontram-se com os sentidos humanos.

(GRAU, 2007, 220)

Talvez pudéssemos dizer que é na linha telefônica que eu encontro o amigo com quem eu falo,ao longe. Mas não, apesar de objetivamente esta aproximação ser possível, no campo da experi-ência não o é. Definitivamente, a experiência com um simples telefone não se compara com ouso do Skype. Ao menos não no que se refere a metáforas das interfaces. Objetivamente, porém,a correspondência faz sentido. Igualmente faria sentido identificar a bandeira da Presidência daRepública hasteada no Planalto, indicando a presença do Presidente, e um ponto de luz verde no

Gtalk , indicando que estou disponível para bate-papo. Trata-se de experiências muito diferentes,embora o recurso simbólico aja de modo similar em ambos os exemplos. A poética cria as expe-riências, distinguindo-as, ainda que objetivamente os recursos sejam similares.  Voltemos às interfaces computacionais, com vistas a caracterizá-las, uma vez que elas parecemde difícil delimitação, como se observou. É possível caracterizar as interfaces a partir de obser va-ções específicas, como apontado:

Caracterização das interfaces

Vínculo a sistemas computacionaisPertencimento a um s istema computacionalTratamento lógico de informação

  As interfaces computacionais são parte de um sistema computacional, de modo a cumprir coma função básica de entrada e saída de dados, no fluxo usuário-sistema, o que atende aos doisprimeiros itens de sua caracterização. Aqui não se confunde interface com suporte, como, porexemplo, quando se usa cartões com inscrições para visualização de elementos em RealidadeAumentada. Se assim o fosse, cores também passariam a ser interfaces, com o uso do Processing,e mesmo a mão que clica o mouse seria interface. Contudo, ou se admite a visão de Weibel, queafirma que “[n]o interactuamos con el mundo, sólo con la interfaz del mundo” (1996, 25), em que tudo é interface, ou se aceita que interfaces são elementos específicos, como apontado.  Acerca do terceiro ponto de caracterização, o tratamento lógico da informação, a defesa argumen-Acerca do terceiro ponto de caracterização, o tratamento lógico da informação, a defesa argumen- ta que a interface não apenas conduz uma informação, comportando-se como meio ou suporte, emum ato físico, mas trata a informação de um modelo semiótico a outro, em uma espécie de tradução:

...a palavra [interface] se refere a softwares que dão forma à interação entre usuário e computador. A interfa-

ce atua como uma espécie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra.

(JOHNSON, 2001, 17)

  Neste contexto a interface diz do compartilhamento de informações entre usuário e sistema,sem que, no entanto, as partes usem o mesmo código.

Interfaz – Conexión entre dos dispositivos de hardware, entre dos aplicationes o entre un usuario y una

aplicación que falicita el intercambio de dados, mediante la adoción de reglas comnes, físicas o lógicas. Este

dispositivo permite paliar los problemas de incompatibilidad entre do sistemas, actuando como un conversor

que permite la conexión. (GIANNETTI, 2002, 195)

  É justamente na tradução do código de máquina, digital, que a ilusão se constrói na e pelainterface, a partir de vários procedimentos, com destaque para a metáfora. As línguas naturais, ametáfora visual, os sons, tudo contribui para produção do encantamento, principalmente com a vi-vacidade tida na cor-luz e no feedback  instantâneo do sistema, via interatividade, que forja a crençana manipulação direta, no lidar com os próprios signos e não com as interfaces. É neste universomágico que se estabelecem as poéticas das interfaces, que, per se, já deveriam ser consideradascomo tal, mas alcançam aprimoramento no campo artístico, resultando em trabalhos sedutores,instigantes, incômodos, estranhos, belos, em toda a gama de adjetivos que é própria da arte, comocampo mágico de construção da experiência sensível.

De Encantamentos

Em um exercício taxionômico, arbitrário por natureza, e não uma verdade incontestável,é possívelclassificar as interfaces em três categorias, a saber:

Categorias Modo de acionamento ExemploFís icas Acionamento f ís ico-motor    Mouse, teclado, joysticks, volantesPerceptivas Acionamento via exteroceptores

 – sensações/percepçõesInterface gráfica - GUIInterface sonora – entrada e saídaMarcação – touchscreen

Cognitivas Acionamento porreconhecimento

Telas de toques múltiplos, câmeras, sen-sores de movimento, de gestos, de posi-ção do equipamento e/ou do usuário…

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Considerada a particularidade de a interface ter por função a entrada e saída de dados do sistemaao qual pertence, importa observar que o sistema lança mão de várias interfaces simultaneamen- te, como do teclado para entrada e da tela (GUI – Graphic User Interface) para saída, ou mesmodo mouse ou câmera para entrada e dos sons e imagens projetadas para saída. Isto quer dizer queos sistemas mais complexos adotam as três categorias de interface como padrão. É justamenteneste conjunto que se têm as mais exitosas experiências na arte tecnológica, certamente em fun-ção da ilusão tida, uma verdadeira experiência. Alcança-se, com todas as categorias, o pretendidopor Normam:

The real problem with the interface is that it is an interface. Interfaces get in the way. I don’t want to focus my ener-

 gies on an interface. I want to focus on the job. . . . An interface is an obstacle: it stands between a person and the

system being used. . . . If I were to have my way, we would not see computer interfaces. In fact, we would not see

computers: both the interface and the computer would be invisible, subservient to the task the person was attempt-

ing to accomplish. (NORMAM, 1999, 219)

  As poéticas das interfaces ultrapassam justamente esta barreira, fazendo crer que não há in-As poéticas das interfaces ultrapassam justamente esta barreira, fazendo crer que não há in- terfaces ou computadores, somente nós e as informações. É o que ocorre, por exemplo, em TextRain, de Camille Utterback & Romy Achituv: a experiência sensível diz que nosso corpo se con-verte em obstáculo, de fato, para as letras que caem na forma chuva de palavras. E, aos barrá-las,formamos palavras.

Figura 1:

Text Rain, de Camille Utterback & Romy Achituv

  Ou Robotic Sculptires, de Ken Ribaldo, que, poeticamente, usa estruturas de bambu (que pare-cem mais próximas, orgânicas, naturais), para compor seus braços mecânicos articulados, em cujasextremidades sustenta câmeras e sensores, fazendo os braços se moverem quando estamos pró-ximos, buscando nossos corpos e projetando as imagens nas paredes laterais. O estranhamento éclaro, e o encantamento, idem, visto que não estamos diante de padrões numéricos ou de equipa-mentos cheios de fios e placas. São braços que se movem e tentam nos tocar. Lindos braços debambu que buscam o contato e captam nossa imagem.

Figura 2:

Robotic Sculptires, de Ken Ribaldo

Figura 3:

Op-Era, de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat

  O encantamento se faz notar também nas imagens “manipuláveis”, com a rápida resposta dosistema, que recebe a informação de uma interface, processa esta informação e a devolve na for-ma de mudança da imagem ou de elementos desta, como ocorre em Op-Era, de Rejane Cantonie Daniela Kutschat, uma fascinante experiência de manipulação da imagem-luz, com ilusão deestereoscopia, ou imersão perceptiva na imagem.

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  Os jogos poéticos de criação de encantamento seriam, por assim dizer, um percurso na históriadas linguagens (verbais, visuais, sonoras) como um todo, não apenas das Artes, embora ali elesfloresçam mais, certamente com a contribuição de um preparo receptivo. E eis que este preparo também ocorre nas interfaces computacionais, que podem ser tidas como um novo aspecto daslinguagens – alguns pesquisadores identificam tratar-se de uma nova linguagem, no que tenho mi-nhas reservas – em função de não serem regidas pelo signo da representação, mas da simulação,embora em vários casos haja, de f ato, a primeira. Não é de se estranhar que as poéticas contem-porâneas encontrem nas interfaces um quinhão para seu labor, o que por um lado fascina commaior facilidade o usuário/interator; de outro, porém, exige experiências sensíveis mais interessan- tes e fundantes do que as interfaces de dispositivos como o iPad podem oferecer.

Perspectivas

As recentes pesquisas para dispositivos computacionais, inclusive nas Artes, observam alguns inte-ressantes aspectos a serem implementados nas interfaces, notadamente na categoria das interfa-ces cognitivas, ainda que não se restrinjam a estas. Se a condução evidente é para a manipulaçãodireta, conceito usado por Engelbart desde os anos 1960, é certo que a liberação do corpo hu-mano de elementos físicos para a alimentação do sistema é caminho seguro. Nada mais de tecla-do ou mouse: as telas, agora sensíveis a múltiplos toques, podem até prescindir do toque. Câmerase sensores assegurarão que o sistema receba a ordem e processe as informações, em respostascada vez mais automáticas. Passaremos do toque ao gesto, tendo como resultado experiênciasinterativas mais sedutoras e simples.  De outro lado, deixaremos de ver e acionar botões para sermos vistos por estes sensores, porestas câmeras, que reconhecerão variações e quase vontades, o que parecerá mágica. O sistemanos oferecerá água quando observar que temos sede, ao reconhecer aspectos específicos, comoa imagem de nossos lábios secos, a mudança sutil de nosso timbre de voz ou o tilintar da línguaem uma boca seca. Mas parecerá mágica.

Figura 4:

Telas com manipulação a partir de tecnologia multi-touch

Fonte: http://www.smashingmagazine.com/2007/11/26/monday-inspiration-user-experience-of-the-future/

Poderemos manipular imagens à vontade, via gestos. Ao ensaiar passos de dança, o sistema poderáreconhecer nosso desejo de dançar e nos oferecer a música certa. E, mesmo sabendo que o sistema

analisou nossos passos para criar uma correspondência entre o ritmo e nossas músicas mais ouvidas,alcançando como resultado talvez a música que pensávamos ou outra próxima, parecerá mágica.  Poderemos conversar com os sistemas dotados dos recursos de ASR ( Automatic speech recog-nition – reconhecimento automático da fala) e de NLU (Natural language understanding  – compre-ensão da linguagem natural) (WHITE, 1995) e, mesmo sabendo que são máquinas, preferiremos tratá-las como iguais ou melhores que nós, visto que não apenas a aprovamos no teste de Turing,mas a consideramos uma poderosa ilusão, na qual repousamos nosso mais profundo desejo desermos o centro do universo, do universo pessoal do qual somos, efetiva e fenomenologicamente,o centro.

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Senhas para a Apropriação Dissidente da Tecnologiapela Arte_ Hackeamento

DANIEL HORA *

ResumoAs articulações entre a arte e as práticas e valores da cultura hacker  estabelecem um fenômeno histórico para a reflexão

crítica sobre o uso das tecnologias de comunicação contemporâneas. Adotado como conceito de produção da diferença,

o hackeamento pode ser identificado em operações de trabalho colaborativo, de apropriação e de intervenção nas mídias

promovidas por artistas e coletivos interessados nas oportunidades de resistência e construção de subjetividades dissiden-

 tes que escapam aos meios tecnológicos de poder.

Palavras-chave: Estética. Arte e tecnologia. Cultura hacker.

 Abstract

The connections between art and the practices and values of hacker culture provide a historical phenomenon for critical reflection

on the use of contemporary communication technologies. Adopted as a concept of difference production, hacking can be observed

in the operations of collaborative work, appropriation and intervention in the media, promoted by artists and collectives interested

in the chances of resilience and construction of dissenting subjectivities that escape technological instruments of power.

Keywords: Aesthetic. Art and technology. Hacker culture.

* Pesquisador na área de artes, tecnologia e comunicação. Ganhador do prêmio Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética 2009.

Bacharel em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo, especialista em Crítica de Arte pela Universidade Com-

plutense de Madrid e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

[email protected]

1. O substantivo hackeamento é um neologismo que adotamos para traduzir para o português o duplo sentido da palavra

hacking , que no inglês indica tanto a ação de um hacker  quanto o seu efeito.

Sistemas Instáveis

A produção artística constitui um território de abordagens complexas, com capacidade para incitare sustentar a apropriação social (e a) crítica dos saberes e das práticas da tecnologia na contempo-raneidade. Com esta afirmação, não almejamos um fechar de olhos condescendente para a eventu-al captura da arte em benefício de interesses político-econômicos codificados e redistribuídos pelo

maquinário do mundo. Em lugar disso, optamos pela observação das correntes de resistência contraa dominação e por uma investigação sobre os fluxos de emergência de antídotos, paradoxalmenteinerentes, depuradores e impulsionadores do próprio processo de desenvolvimento tecnocientífico.  A arte que se manifesta assim, no cenário da cultura digital, deve ser pensada em suas afinidadese articulações com as táticas de hackeamento1, entendidas aqui como formas de produção de dife-

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renças na tecnologia e pela tecnologia (JORDAN, 2008; WARK, 2004). Essa produção artística ehacker  2  promove subversão, interferência e expansão da operacionalidade dos dispositivos abor-dados por arranjos de ativismo e colaboracionismo. Esses arranjos são agenciamentos de defesada liberdade e do compartilhamento da informação, da descentralização e da descrença em auto-ridades unidimensionais, das possibilidades de criação e de benefício da vida pela tecnologia e dopróprio princípio de autopropagação dessa mesma ética (RAYMOND, 2003).  Segundo a perspectiva mais operacional, estamos tratando da artemídia, aquela que se caracterizapelo desvio do projeto industrial por meio da apropriação e da intervenção nos canais tecnológicosde difusão e de entretenimento (MACHADO, 2007). Por outro lado, se adotamos o ponto de vistacomunitário de produção da diferença, assumimos a via das poéticas relacionais, que se especificampela capacidade de estabelecer formas em decorrência de relações intersubjetivas, resultantes daassociação, por retomada e descaminho ou por embate aleatório, de objetos, imagens, ideias, pro-cessos e situações (BOURRIAUD, 2002). A arte_ hackeamento3  afeta, portanto, tanto as técnicasquanto as lógicas, de modo recíproco.  Conforme indica Boaventura de Sousa Santos (2000), todo conhecimento é uma prática socialque dá sentido e ajuda a transformar outras práticas. Se as sociedades complexas são configura-ções de conhecimentos e se a verdade de cada saber reside em sua adequação à pr ática que visaconstituir, a crítica da teoria implica a crítica da prática social a que ela se adapta. Nessa avaliação,o dissenso se expressa como reverberação das senhas tomadas e rompidas pela produção dadiferença no  hackeamento.  Para enfrentar a questão de uma arte que transita por ilicitudes conveniadas de restrição dofazer e do pensamento, recorremos à hipótese de legitimação pela paralogia de Lyotard (2002,111-120). Assim como nesse modelo de valoração, a arte_ hackeamento é um “lance de importân-cia” desconhecida, “feito na pragmática dos saberes”, porém distinto da inovação, a serviço doaprimoramento da eficiência do sistema vigente. Vale aqui o dissenso, a determinação de regrasparticulares e a negação dos modelos de sistemas estáveis da ciência, ilusoriamente imune a in-fluências da práxis.  A arte_ hackeamento é aquela que possibilita a recomposição de circuitos e de rotinas de co-municação produtiva e reflexiva. É uma arte tecnológica, que se faz pela técnica, no sentido dahabilidade (τέχνη  –  tékhne), mas também se conjuga com a lógica da ciência (επιστήμη  –  episteme).Por essa via, converte-se em instrumento para reação contra a profusão de estímulos sensoriaisdifundidos e acumulados nas diversas camadas de sentido do mundo codificado. Afirma-se, assim,como ruptura dos códigos da caixa-preta dos aparelhos que transformam seus usuários em me-ros operadores de programas predeterminados (FLUSSER, 2002, 2007).

2. Admitimos que o hacker  é aquele que se deleita com a exploração e expansão comunitária das capacidades da tecno-

logia (RAYMOND, 2003), sobretudo no que se refere aos programas e à montagem de componentes da informática. Essa

definição é adotada pelos próprios hackers, que demarcam uma ética própria para se diferenciar daqueles que utilizam a

 tecnologia para invadir sistemas, programar vírus e promover roubos e destruição de dados – os chamados crackers.

3. Para a grafia do termo arte_ hackeamento, em lugar do hífen, sinal com valor de união, preferimos o uso do traço inferior,

caractere largamente utilizado na informática para substituição do espaço em branco em aplicações e sistemas que não o

suportam – a exemplo dos endereços de internet ou de correios eletrônicos.

Aplicativos da Dissidência na Arte_ Hackeamento

Abertura à participação e compartilhamento, táticas do “faça-você-mesmo” e interferências nasmídias são alguns dos traços que podemos considerar recorrentes na arte_ hackeamento. Estes traços estabelecem dimensões híbridas que não promovem especificidades de correntes e sub-

grupos, mas sim contínuas combinações entre seus interesses e meios de realização, bem comoagenciamentos com outras possibilidades para além de seus limites.  Em primeiro lugar, estabelecemos a ligação das poética s colaborativas , relaciona is, com o pa-Em primeiro lugar, estabelecemos a ligação das poéticas colaborativas, relacionais, com o pa-radigma do copyleft , forma de licenciamento que permite ao usuário a modificação e cópia dosoftware ou outro conteúdo, desde que o resultado seja compartilhado com outros interessados.Em projetos como Free Beer  (figura 1), de 2005, e Guaraná Power 4, de 2003, o coletivo Superflexsubverte a tecnologia econômica da indústria de bebidas. No primeiro caso, coloca em circulaçãouma cerveja de código aberto, passível de adaptações, aprimoramentos, e partilha de novas re-ceitas. Já com Guaraná Power , apropria-se da linguagem visual da marca Antarctica, que é adaptadapara utilização em um produto alternativo, feito em parceria com uma cooperativa de guaranai-cultores do Amazonas.

Figura 1:

Rótulo com a receita de uma das versões da Free Beer.Fonte: http://freebeer.org/blog/label/

4. Os projetos podem ser conhecidos nos endereços da internet www.freebeer.org e www.guaranapower.org.

5. Sigla para Free/Libre Open Source Software.

  Os trabalhos do Superflex orientam-se, notadamente, pelos conceitos derivados do software livree do código aberto (FLOSS5), segundo os quais o que interessa é a disponibilidade dos dados deum programa para a alteração e aprimoramento de um produto dentro de uma comunidade deinteressados. Representam, ainda, interferências em circuitos de promoção, um deles baseado na ex-clusividade do aparato de fabricação e da própria receita; o outro, acomodado sobre o apelo visualdos elementos de publicidade. Por fim, são exemplos da abordagem imediata e direta – do arrega-çar de mangas para a ação autônoma em searas inicialmente consideradas alheias ao mero usuário.

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  Passemos a outros exemplos, mais voltados à intervenção nos dispositivos e redes de comuni-Passemos a outros exemplos, mais voltados à intervenção nos dispositivos e redes de comuni-cação. Com o projeto Radio Bikes, de 2000, o coletivo Critical Art Ensemble coloca em circulaçãobicicletas transformadas em rádios nômades, que emitem notícias fascistas alteradas, em uma ini-ciativa de mídia tática. O coletivo etoy 6, por sua vez, realiza projetos como o “sequestro” de meca-nismos de busca – Digital Hijack , de 1996 – e a batalha eletrônica pelo direito de uso do domínioetoy.com na internet , em resposta ao processo judicial aberto contra o grupo pela loja virtual debrinquedos norte-americana eToys – TOYWAR (figura 2), de 1999 a 2000.

6. A documentação sobre os projetos está disponível nos sites dos coletivos, nos endereçoswww.critical-art.net e www.

etoy.com, respectivamente.

Figura 1:

Página do site do coletivo etoy sobre o projeto TOYWAR.Fonte: http://history.etoy.com/

  Nesses exemplos, as tecnologias de comunicação são hackeadas, ou seja, passam por um pro-cesso de produção de diferenças, com a finalidade da paródia e do protesto. As bicicletas do Cri- tical Art Ensemble são emissoras ambulantes que difundem a deturpação das mensagens de umafilosofia política autoritária. Sugerem a contaminação e o desvio cotidianos, das ruas, como modode resistência.  O sequestro digital e a TOYWAR do etoy ressaltam o caráter político da internet . No primeirocaso, a intervenção em mecanismos de busca transforma o internauta em “refém” de resultados

Figura 3 e 4:

Vista do ambiente e do robô da instalação Spio.

Fonte: http://bambozzi.wordpress.com/

que o levam à página do projeto Digital Hijack , repleta de mensagens sobre a subversão dos fluxosde informação na rede. No segundo caso, encontramos a realização de uma campanha eletrônica,que envolve vários ativistas, hackers, jornalistas, DJs, artistas e intelectuais em ações de difamação eataques remotos para a derrubada do site comercial da eToys. Após a retirada da ação da justiça,o coletivo etoy adota a perda de valor acionário da empresa reclamante durante o período dedisputa como indicativo para considerar a mobilização promovida como a performance mais carada História da Arte.  Por fim, o “faça-você -mesmo” (do it yourself ), conceito identificado com a cultura punk , está ex-presso em modalidades de bricolagem da ar te_ hackeamento, que ecoam a atitude dos clubes dehackers dos anos 70, que se formavam com o propósito de desenvolver computadores caseiros – o chamado hackeamento de hardware (LEVY, S., 2001). Entre os trabalhos de arte relacionadosao “faça-você-mesmo”, pensamos na instalação Spio  (figuras 3 e 4), de 2004 a 2005, de LucasBambozzi. O trabalho é constituído por um ambiente onde um aspirador de pó robótico rodeia opúblico, captando sua imagem pelas câmeras de vigilância instaladas sobre ele, para projetá-las emuma das paredes. Deste modo, um eletrodoméstico hackeado com sistema de vídeo passa a de-sempenhar a função de espião das reações daqueles que visitam e exploram o espaço montado.

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(Re)programabilidade como Fato Artístico e Atitude Política

A hibridização das artes e das mídias ocorrida desde o advento da fotografia (MACHADO,2007; SANTAELLA, 2005) implica que a reflexão artística esteja atenta ao papel legitimador dopoder cumprido pela tecnologia. Para Santaella, a questão é saber quais são as reações possíveisante a hegemonia da mídia e que papel a arte pode desempenhar em um período de conti-guidade e sobreposição de diferentes culturas ligadas aos meios da comunicação oral, escrita,impressa, de massa, midiática e digital.  Se a fotografia é o ponto de partida para a hibridização mencionada, cabe então rever opensamento de Walter Benjamin (1994) sobre a reprodutibilidade técnica da arte e seus efei- tos n a políti ca. Nesse sentido, devemos considerar que con texto atual das mídi as digi tais nosimpõe a ampliação dos termos usados por Benjamin com a proposição da ideia de (re)progra-mabilidade tecnológica.  Não estamos mais lidando com o fenômeno artístico intercalado por técnicas fotográficas (deregistro da luz) ou por técnicas precedentes e subsequentes. Em lugar disso, tratamos agora daincorporação de conhecimentos e de programas tecnológicos na máquina de fotografia e nasmídias híbridas sucessoras, que absorvem procedimentos dos meios de comunicação anteriores.

Devemos considerar – ainda – que a digitalização institui uma condição em que as imagenssão sistemas dinâmicos mutáveis, passíveis da interação coletiva por meio dos algoritmos (SAN-TAELLA, 2003). Em vez da dispersão do belo pela distribuição de réplicas autênticas extraídas donegativo, conforme a reprodutibilidade analisada por Benjamin, alcançamos a condição em quecódigos de origem são destinados à recombinação, pós-produção ou reprogramação.  As consequências dessa transição parecem acentuar os impactos prévios. Em Benjamin, a técni-As consequências dessa transição parecem acentuar os impactos prévios. Em Benjamin, a técni-ca surgia para emancipar a arte do ritual e do mito. Deste modo, ela passaria a exercer um papelcada vez mais importante, exercitando-nos em novas percepções, mas abrindo caminho para aestetização da política pelo fascismo. Com a reprogramabilidade tecnológica, o efeito colateral dacaptura pelos mecanismos de dominação segue presente, porque embora haja uma difu são maisampla dos dispositivos de produção e dif usão, o que torna mais nivelado e complexo o jogo entresubjugadores e rebeldes, certos códigos de acesso, de acionamento e de transmissão são aindaprivilégio dos conglomerados de poder.  A politização da estética indicada por Benjamin como antídoto à estetização fascista da polí-A politização da estética indicada por Benjamin como antídoto à estetização fascista da polí- tica deve então s er trabalhada de uma nova maneira. Como ponto de par tida, talvez possamosrecorrer à provocação de Lev Manovich (2005) que, ao identificar a materialização e superaçãodos projetos da arte moderna pela tecnologia telemática, arrisca-se a identificar o software comoa atual vanguarda, as novas mídias como a própria ar te e os cientistas de computadores como osartistas de nossa época.

Para reverter o projeto de realização de rotinas predestinadas ao aprimoramento tecnológicopor meio da retroalimentação humana, Flusser, por sua vez, sugere o contrabando de elementosnão previstos no programa dos dispositivos. A arte seria, então, um caminho para experimentar,vencer, enganar, desviar, jogar contra o aparelho. Uma visão crítica atenta à ambiguidade velada dasintenções codificadoras “do fotógrafo” (e, por extensão, de todo aquele que produz arte) e damáquina (FLUSSER, 2002, p. 42-43 e 51).  A proposta de Flusser é semelhante à de Stiegler, no ponto em que este ressalta a importânciada singularidade incalculável e consistente da diferença vivenciada nas experiências ar tísticas. Anteo ímpeto do capitalismo hiperindustrial de levar ao esgotamento do desejo pela oferta excessivade produtos para o consumismo gregário (a dessingularização e hipersincronização das condutaspelo condicionamento estético), Stiegler defende a necessidade ( il faut ) do defeito (défaut ), cujamanifestação se daria no trabalho ar tístico de dilatação do sensível e de socialização expansiva dadiversidade diacrônica (STIEGLER, 2007, p. 21-22, 23-29 e 38).

  A essa altura, retomamos o hackeamento como senha conceitual para a apropriação dissente da tecnologia na arte. Pois, conforme os exemplos de artistas e coletivos citados acima nos apontam,a aproximação entre a produção artística e ação hacker  nos oferece, graças a essa abordagem, aoportunidade de recordar que há um grau de vulnerabilidade da maioria ante ao uso da máquina,mas que a ameaça de uma ditadura cibernética encontra resistência na capacidade de subversãoe ruptura (TAYLOR, 1999).  Na conjuntura política das senhas e códigos que resguardam o poder da indústria, o hackea-mento se coloca como tática fluida de exploração e interferência nos fluxos de acomodação dacultura movidos pelas forças socioeconômicas que se sobrepõem às demais (THOMAS, 2003).Na conjugação da arte_ hackeamento, abrem-se espaços de ocupação coletivista, desenvolvimentode sociabilidade e reprogramação tanto dos meios e finalidades das tecnologias de comunicação,quanto das próprias subjetividades construídas a par tir dos agenciamentos que são impulsionadospelas mídias.

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Entre o Real e o Imaginário:A Poética de uma Experiência Vivida

GABRIELLE PATRÍCIA AUGUSTA CORRÊA DE OLIVEIRA *

ResumoO texto parte da observação de uma experiência concreta da realidade para confrontá-la com formulações conceituais de

autores provenientes de diferentes campos do conhecimento e com algumas linguagens ar tísticas já existentes, visando à

elaboração de uma proposta de experimentação artística cuja dramaticidade apoie-se predominantemente na visualidade.

Busca-se, desta forma, um entrelaçamento entre a pesquisa empírica, a reflexão teórica e a construção de uma poética.

Palavras-chave: Real. Imaginário. Experimentação artística.

 Abstract

The text proposes an intertwining of empirical research, theoretical reflection and the construction of a poetic. From the observa-

tion of a specific and concrete experience of reality, and compare this experience with certain conceptual propositions of authors

located in different fields of knowledge, we seek to present a proposed experiment whose artistic composition elements originate

both from the concrete fact as the theoretical propositions and also some existing artistic languages.

Keywords: Real. Imaginary. Artistic experimentation.

* Bacharel em Sociologia e Política, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Mestre em Arte na linha de pes-

quisa Arte e Tecnologia, onde defendeu a dissertação Lucian@: cartografia artística e afetiva em contexto ciber-urbano , sob

orientação da professora doutora Maria Luiza Fr agoso. Em busca de uma poética do tempo em que vive, tem realizado

experimentações a partir da mistura de elementos da performance artística, da hipermídia, das ciências sociais, da filosofia

da diferença e do espaço urbano.

1. Para não ocupar o espaço restrito deste artigo e por ter já feito, alhures, a descrição mais detalhada de Luciana, indico

ao leitor a leitura do texto  A poética do corpo transgressivo no espaço urbano, que pode ser acessado pelo endereço ele-

 trônico http://arte.unb.br/7art/textos/gabriellecorrea.pdf. Indico também os vídeos Registrávicos e Luciana Avelino da Silva ,

ambos com a par ticipação de Luciana e que podem ser acessados no site www.youtube.com.

Entre o Real e a Representação Teórica

Este artigo propõe um entrelaçamento entre a pesquisa empírica, a reflexão teórica e a cons- trução de uma poética. A partir da observação de uma experiência concreta e específica darealidade, e da confrontação desta experiência com determinadas proposições conceituais deautores situados em diferentes campos de conhecimento, tenho buscado elaborar um experimen- to artístico cujos elementos de composição sejam originários tanto do fato concreto quanto das

proposições teóricas e também de algumas linguagens artísticas existentes.  O que hoje se tornou uma pesquisa em arte começou a se esboçar alguns anos atrás, quan-O que hoje se tornou uma pesquisa em arte começou a se esboçar alguns anos atrás, quan-do conheci Luciana1, um ser humano que vivia no agitado mundo das ruas da Vila Buarque,

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bairro situado na região central da cidade de São Paulo. A partir desse encontro tenho buscadoengendrar um emaranhado de multiplicidade de conexões, tanto reflexivas quanto estéticas,partindo de uma constatação: a presença do corpo vivo e repleto de significados no espaçocomplexo da metrópole. Tomo como premissa que es ta presença é pu ra potência de produçãode afetos.  Uso o termo afetos no sentido atribuído por Espinosa , de afecções:

...por afetos, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse mesmo corpo é aumentada

ou diminuída, favorecida ou impedida... Um afeto, que chamamos paixão da alma, é uma ideia confusa pela

qual o espírito afirma uma força de existir maior ou menor que antes” (apud DELEUZE, 2002, p. 33).

  Perceber a presença de Luciana na cidade é ser afetado por suas afecções e pela sua capacida-de de penetrar em nossos sentidos e produzir novas ações, que, por sua vez, potencializam umavida que doravante se configura como “um composto de afectos e de perceptos” (DELEUZE EGUATTARI, 1992: 213). Perceber Luciana implica também perceber a cidade, em toda sua ordeme em sua desordem, em suas dimensões públicas e privadas, em seu individual e em seu coletivo. Acarne do corpo em relação ao corpo de pedra da cidade sugere, insinua e deflagra uma profusãode perceptos e de afectos plausíveis.  Dizem Deleuze e Guattari (ibidem, p. 213) que “os perceptos não são mais as percepções... osafetos não são mais sentimentos ou afecções...as sensações, perceptos e afectos são seres que va-lem por si mesmos e excedem qualquer vivido”.  Busco, nesta pesquisa, tomar esta potência de vida que a presença de Luciana no espaço urba-Busco, nesta pesquisa, tomar esta potência de vida que a presença de Luciana no espaço urba-no é capaz de provocar e deslocá-la para o campo dos processos criativos, a partir do rearranjode conceitos e de supor tes técnicos. Esta presença permite pensar três categorias, as quais seriamo eixo de sustentação do experimento ar tístico: corpo, espaço e movimento. O corpo em conta- to com outros corpos; o espaço compartilhado e conflitante; o movimento dissonante e aleatório.  Leon Kossovitch (2004, p. 162) favorece uma leitura do pensamento de Nietzsche que nosimporta reproduzir aqui; diz ele: “a vida da diferença é a criação e dissolução de formas. Poder nãosó criar, mas também destruir, exige um excesso: encontrar prazer e embriagar-se onde as intensi-dades inferiores sofrem, isto é, na destruição.”  Luciana desapareceu das ruas da Vila Buarque em 2005. Diz a população local que ela morreu.Em 2008, quando realizava a pesquisa de campo sobre a vida de Luciana naquele bairro, busqueiinformações sobre o que poderia ter acontecido com ela, em diferentes locais – hospitais, entida-des sociais, instituto médico-legal, albergues – e a única coisa que pude descobrir é que é prati-camente impossível saber sobre o seu paradeiro. Mas sua presença permanece, agora de modosdistintos, permitindo-nos refletir e também criar.

Entre a Representação Teórica e a Construção de uma Poética

A presença de Luciana revela a diferença, embora sua conduta possa ser percebida como umarepetição de padr ão. Em relação à cidade, porém, percebemos sua diferença, porque o compor- tamento e as prátic as cotidianas de Luciana são inversas àquelas da maioria dos citadinos. Lu-ciana, em sua experiência últ ima de vida, encontrava-se livre em relação às redes sociais, ou seja,não vivia ao abr igo de um lar, não convivia com familiares, não t rabalhava, enfim, não estava ligadaa nenhum tipo de processo produtivo. Desse modo, podemos inferir que Luciana está numarelação inversa à realidade da cidade, uma vez que a cidade é o espaço por excelência da socia-bilidade entre os indivíduos, que, por meio do trabalho, promovem as condições de existênciacoletiva, ainda que estas condições sejam desiguais para a maioria dos cidadãos.

  Deslocar esta presença de Luciana não para os discursos estéticos, mas para as práticas po-Deslocar esta presença de Luciana não para os discursos estéticos, mas para as práticas po-éticas, significa potencializar o que esta vida lhe ofereceu em termos de formas de negação dasociabilidade comum. Luciana se associou à comunidade pela sua transgressão e não por meiodas regras impostas e seguidas por seus membros. Uma vez assim estabelecida a relação docorpo de Luciana com o espaço ao seu redor, quanto mais se explora sua potência de afetar,mais se evidencia o quanto este corpo e todas as ideias que lhe são agregadas são passíveis desofrer alterações e, por conseguinte, de também alterar nossa capacidade de sentir, refletir e nosembriagar em meio ao caos da existência.  O termo potência utilizado aqui está contaminado pelo pensamento de Espinosa (Apud De-leuze, 2002, p. 103), quando este lhe confere o seguinte s ignificado: “toda potência é inseparávelde um poder de ser afetado, e esse poder de ser afetado encontra-se constante e necessaria-mente preenchido por afecções que o efetuam”. E, quanto ao termo embriaguez, é mister queo reportemos ao pensamento de Nietzsche, quando este, segundo Kossovitch (2004), entendeque “a repetição afirmada, implícita num aumento de intensidade , desencadeia o comportamen- to cujo princípio é o prazer, ou, ainda, o estado de embriaguez.” (KOSSOVITCH, 2004: 162).  Assim, esta pesquisa começa a fazer sentido quando o processo deflagrado, primeiro pela per-Assim, esta pesquisa começa a fazer sentido quando o processo deflagrado, primeiro pela per-cepção, depois pelo pensamento e a ação, passa a operar um sistema de classificação, ou melhor,de significação de Luciana. Em princípio, minha observação era contaminada pelo discurso dosenso comum: uma louca de rua, um pária social; depois, busquei encaixá-la nos discursos filosó-ficos, sociológicos e antropológicos: uma máquina de guerra, um outsider , um sujeito liminal2; porfim, alcancei as categorias dos discursos3 estéticos, chegando ao limite de afirmar que Luciana éuma obra de arte, performática, conceitual e efêmera.  Trilhar estes caminhos possibilitou, ao menos, urdir uma espécie de malha comunicativa, capazde produzir uma intensa circulação de mensagens em diferentes mídias e em variados espaçosde discursos4. O desafio, agora, é fazer com que esta malha, este complexo sistema de classifi-cação, seja submetido a um segundo modo de produção de afectos e de perceptos 5, isto é, aprocessos que possibilitem a realização de um experimento artístico, inspirado na experiênciade vida de Luciana, a partir da mistura de diferentes linguagens poéticas.  A presença de Luciana no espaço da rua é algo que se repete no cotidiano da cidade. Desdeque as cidades foram criadas, pode-se perceber a presença de pessoas que, numa espécie denomadismo urbano, vagam pelas ruas. Esta presença permanece, mesmo depois que a socieda-de ocidental criou instituições de controle e confinamento dessas pessoas – hospitais, prisões,hospícios. Devido à sua potência simbólica, este personagem citadino adentra a memória dapopulação, impregnando o imaginário coletivo.

Flávio Ferraz de Carvalho (2000), em seu estudo sobre os loucos de rua, faz a seguinte afir-Flávio Ferraz de Carvalho (2000), em seu estudo sobre os loucos de rua, faz a seguinte afir-mação a propósito dessa presença e do seu poder de afetar a população:

Tendo vivido tanto tempo na cidade, vagando pelas ruas e expondo publicamente sua experiência de

loucura, é natural que essas pessoas tivessem aguçado a curiosidade e a imaginação populares. Daí o apa-

recimento de uma série de histórias que versavam sobre a vida dessas pessoas e que se foram tornando

2. Estes conceitos são elaborados , respectivamente, por Deleuze-Guattari, Norbert Elias e Victor Turner.

3. Utilizo o termo discurso na acepção que Michel Foucault lhe atribui, isto é, de algo que investe os seres humanos de

desejo e de poder.

4. Estou considerando a variedade de atividades produzidas em razão desta pesquisa: a pesquisa de campo sobre L uciana e

sua relação com o bairro Vila Buarque, que possibilitou o contato com pessoas e instituições; a participação em congressos,

encontros e debates; a publicação de artigo; a produção de vídeos; a exposição, em espaços artísticos, de experimentos

poéticos com a utilização de equipamentos tecnológicos, como câmera de vídeo, aparelho de TV e computador.

5. Os conceitos de afectos e de perceptos serão articulados mais adiante neste artigo.

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parte do repertório da narrativa oral comunitária, sendo transmitidas de pessoa a pessoa oralmente e atra-

vessando as gerações que as conheceram. Essas histórias, algumas vezes, ganhavam um colorido fantástico,

como que impregnadas pela própria “desrazão” inerente a seu protagonista. (229).

  Quando realizei a pesquisa de campo no bairro onde Luciana viveu, pude constatar que, trêsanos após seu desparecimento das ruas, sua presença permanecia viva na memória da popula-ção local. Frases como “ela era uma louca”, “uma pessoa muito inteligente”, “falava muita coisainteressante, mas sem muito sen tido”, “ela marcou a Vila Buarque”, contribuem para a afirmaçãode que pessoas como Luciana têm o poder de penetrar no imaginário coletivo e de ter sua ex-periência de vida reelaborada pela capacidade humana.  Ao deslocar esta experiência de vida para o campo da criação poética, meu intento é multipli-Ao deslocar esta experiência de vida para o campo da criação poética, meu intento é multipli-car o sentimento de potência do fato real e, como um vírus pestífero, contaminar o público comesta experiência, transmutada pelos movimentos do corpo, pela presença das narrativas oraisregistradas em vídeo, por efeitos de projeção imagética e pela manipulação sonora dos ruídosurbanos. Antes de descrever esta proposta de experimento artístico, gostaria de me deter umpouco mais nas ideias de Antonin Artaud, e em sua proposta de realização de um teatro dacrueldade.  Para além das propostas de um teatro de estados de alma, psicológico e racionalista, Artaud(1999) propunha uma arte cênica que pudesse afetar o público como quem é afetado por umapeste. Sobre o termo crueldade, assim o autor definiu seu sentido:

Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no

sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor, fora de cuja necessidade

inelutável a vida não consegue se manter : o bem é desejado, é o resultado de um ato, o mal é per manente.

(119)

  Tais proposições deste autor contribuem para a formulação de uma poética que, acredito, tenha uma sintonia com a experiência de vida de Luciana e com o que esta experiência podenos oferecer em termos de reflexão sobre a realidade em que estamos inseridos. Retomar estaexperiência comum, cotidiana e pública numa proposta de experimento artístico tem o significa-do de potencializar a própria vida no que ela possa ter de c ruel, sim, mas também de afetivo, decômico, de jogo e de estratégia de sobrevivência. A experiên cia de vida de Luciana no espaçoda rua revela a repetição da tragédia humana e também seus mecanismos de defesa contra asmazelas de uma sociedade que, para além de seus procedimentos de controle e de disciplina, torna a existência do indiví duo uma luta pela garantia de sua vida, esta vida que, em si, já é puropoder.

A proposta de experimento artístico que tenho desenvolvido nesta pesquisa, a partir da ex-A proposta de experimento artístico que tenho desenvolvido nesta pesquisa, a partir da ex-periência de vida de Luciana, é uma mistura entre a linguagem do teatro, da dança e do audio-visual. Com o repertório tanto imagético quanto das narrativas colhidas na pesquisa de campo, tenho investigado as possibilidades de uma composição cênica entre o mundo real e o espaçoda representação arti ficial. Trazer para a cena a presença de Luciana em vídeo, e também na ora-lidade das nar rativas gravadas, e com ela contracenar, por meio do movimento corporal e vocal,utilizando também o recurso de projeção de vídeo em tecido transparente.

Após a realização de experimentos utilizando a projeção em tecido transparente, pude explo-Após a realização de experimentos utilizando a projeção em tecido transparente, pude explo-rar a visualidade plástica desta técnica. Entre elas, destaco a relação entre a imagem videográficae o corpo em ação, formando uma silhueta em movimento capaz de causar grande impactovisual.  Os processos que envolvem a construção dramatúrgica deste experimento serão mediadospor vídeos, mas também por ruídos captados na região onde viveu Luciana. O texto, se assim

podemos chamá-lo, será construído não apenas com palavras escritas, mas contará com a inser-ção de relatos das impressões suscitadas pela realidade de vida de Luciana. Outro elemento queserá explorado na composição visual do trabalho são os desenhos produzidos por ela.  Por fim, gostaria de destacar que este experimento terá como elemento plástico preponde-Por fim, gostaria de destacar que este experimento terá como elemento plástico preponde-rante a visualidade. Mais do que as palavras refletidas e organizadas no discurso, importa nesteexperimento o impacto que a presença viva do indivíduo é capaz de deflagrar e ativar no outro:a emoção, o sentimento e o pensamento.

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ReferênciasARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo . tradução Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

FERRAZ, Flávio Carvalho. Andarilhos da imaginação: um estudo sobre os loucos de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. Rio

de Janeiro: Ed. 34, 1992.

KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche . Rio de J aneiro: Azougue Editorial, 2004.

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RESENHAS

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Blue HeartCHURCHILL, Caryl. London: Nick Hern Book, 1997. 96 p.

LAURA ALVES MOREIRA *

Depois da longa tradição que declarava a supremacia do texto em detrimento do espetáculo, o“revide” aconteceu e talvez não tenha ainda terminado 1. O teatro tem criado e pensado outrosconceitos de dramaturgia que não se baseiam na palavra, mas no movimento, na imagem, nasonoplastia e em tantos outros elementos.  Neste contexto a dramaturga Caryl Churchill, dona de uma vasta obra que, infelizmente, nãopossui tradução em português, mostra que a contemporaneidade tem – sim – espaço paradramaturgos que sabem pensar o teatro de modo ousado, ora se despedindo das convenções tradicionais de dr amaturgia, ora dialogando com essas convenções.  Com vinte e oito livros publicados em língua inglesa e mais de dez premiações por sua dra-maturgia e espetáculos, a dramaturga mostra também que engajamento social e experimenta-ção teatral não morreram após o teatro de Bertholt Brecht. Aliada às mais novas tendênciasdo teatro contemporâneo e às formulações do teatro pós-dramático, do alemão Hans-ThiesLehmann2, Churchill se caracteriza por um modo diferente de usar os signos teatrais e por uma tendência à autorreflexão e à “autotematização”.  Blue Heart  foi publicada em 1997 e tem muitos elementos interessantes a serem observados.Composta por duas partes, surpreende pelo fato de não configurar dois atos em uma peça,mas, praticamente, duas peças dentro de uma: Heart´s Desire e The Blue Kettle , dois diferentesenredos que são apresentados em duas estruturas completamente diversas.  A primeira parte, Heart’s Desire, apresenta a situação de uma família inglesa (pai-Brian, mãe-Alice, tia-Maise e filho-Lewis), em sua sala de jantar, à espera da chegada da filha que mora naAustrália. A familiaridade gerada pela temática é rapidamente dissolvida, pois logo no início aação da peça, que gira em torno da espera da fil ha e sua chegada, é continuamente interrompida,para logo depois ser retomada em algum ponto anterior. A técnica da interrupção e o contínuoretorno ao ponto de partida ou a outros tantos pontos anteriores à interrupção marcam o

espetáculo e formam uma estrutura labiríntica, cheia de circulares retornos, paralelismos erepetições, que compreendemos tratar de futuros latentes, de desejos que podem ou nãose realizar a todo o instante, desejos e expectativas dos personagens que se misturam e seconfundem, até mesmo com finalidade de nos desconcertar. A fragmentação do tempo, da açãoe da linguagem são características marcantes na parte Heart’s Desire.

* Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, a autora é poeta, atriz e integrante do grupo de teatro

BR-SA. Atualmente está elaborando sua dissertação de mestrado, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arte da

Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Mota.

[email protected]

1. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

2. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Tradução de Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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  O foco, então, não está mais no enredo, mas em sua estrutura, sendo metateatral. O trata-mento da palavra aparece também na sua materialidade, saindo da dimensão pura do diálogopara tornar-se matéria independente a ser manipulada em seu aspecto plástico, seu aspectode palavra e de letra. Terá sua velocidade acelerada, será ocultada, terá frases faladas de formaincompleta: primeiro somente o seu início, depois somente o seu final. Este tratamento acentuao caráter satírico e lúdico da peça.  A segunda parte da peça, The blue kettle, apresenta a situação de um homem de trinta e noveanos que procura senhoras que, em algum período de suas vidas, tenham entregado uma cri-ança para a adoção e, em as encontrando, diz a elas que ele é seu filho perdido que retorna, na tentativa de conseguir algum dinheiro.

O aspecto inovador se encontra no fato de que, ao longo da peça, as palavras (substantivos,adjetivos, verbos) vão, lentamente, sendo substituídas pelas palavras kettle e blue, até que, defato, a atenção se desloque do significado das mesmas e enfatize os sentidos que esta técnicapossibilita. Assim, a autora desloca o foco do enredo para a estrutura teatral e o dirige à lingua-gem, à performance verbal do espetáculo.  Essa substituição gradual que ocorre ao longo do espetáculo produz, novamente, uma as-simetria entre palco e plateia, pois o entendimento não é alterado entre os personagens. Écurioso notar que, mesmo com a substituição de palavras, fato que causa certo desconforto,a intenção não é o distanciamento total. O recurso, que explicita o caráter teatral e estruturaldesta parte, não deve afastar o aspecto afetivo estabelecido com a plateia e seu foco no enredo.Ao saturar os diálogos finais, o espectador está assistindo a um filme estrangeiro sem legendas,mas acompanha até o final a marcação emocional. Existe, aí, uma manipulação dos afetos.  Assim, temos na figura de Churchill uma dramaturga capaz de renovar os conceitos de dra-maturgia e de abrir novos horizontes, descortinando novas técnicas para o fazer teatral.

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Maciej Babinski – EntrevistasAZEVEDO, Gisel Carriconde. Brasília: CÍRCULO DE BRASÍLIA, 2006, 298 p.

ISABEL CANDOLO *

Escrito por Gisel Carriconde de Azevedo,  Maciej Babinski – entrevistas busca reconstruir atravésde uma série de entrevistas a trajetória do artista Babinski que, em seus depoimentos, fala de si,de seu fazer artístico e reflete sobre arte. Resultado de um projeto iniciado em 2004 e patrocina-do pelo Fundo de Apoio à Ar te e Cultura do DF, a autora reproduz em livro quarenta horas dematerial colhido no período de setembro de 2004 a agosto de 2006, entre entrevistas gravadasem Brasília e no Ceará, no sítio do artista. O livro foi publicado pela editora Círculo de Brasília, em2006, traçando um retrato múltiplo do pintor, gravador e desenhista Babinski, artista nascido naPolônia e naturalizado brasileiro.  O trunfo do livro é costurar nas entrevistas as passagens mais marcantes da vida pessoal doartista, com depoimentos e incursões no universo da arte, alinhavando fragmentos da memóriacultural da arte moderna no Brasil. Os assuntos vão se sucedendo de acordo com a conversa eem função dela; o encadeamento das ideias gera um fundo narrativo que permite a nós, leitores,entrarmos no texto como ouvintes privilegiados, como se estivéssemos em uma visita ao ateliêdo artista. Com o desenrolar das perguntas e respostas, vamos, aos poucos, entrando no universode Babinski, que compartilha generosamente sua visão de mundo, suas reflexões e experiênciasartísticas, revelando sua vida pessoal e seu processo criativo.  Assim, acompanhamos Babinski em seu itinerário da Polônia ao Brasil, passando pela França,Inglaterra e Canadá, onde cursou Artes e teve contato com pintores de paisagens e com o grupovanguardista Os Automatistas, que muito influenciou sua produção artística. No Brasil, morou noRio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Brasília. Atualmente divide-se entre Brasília – ondese alimenta intelectualmente – e o sítio no Ceará - onde a paisagem agreste o alimenta sensorial-mente. No Rio e em São Paulo, conviveu com grupos artísticos ligados ao Modernismo brasileiro,onde pôde conhecer pessoalmente e trocar ideias com artistas exponenciais da arte brasileira,como Goeldi, Iberê Camargo e Volpi. Babinski foi professor na Universidade de Brasília, entre

outras instituições. Aprendeu a gostar de dar aulas, mesmo sem ter formação específica, pois, àmedida que foi se construindo como ar tista, desenvolveu também a capacidade de transmitir seuconhecimento e experiência. Aprendeu a amar o Brasil, país adotado por ele como escolha pesso-al; conseguiu se integrar ao país pintando, desenhando e gravando nossas paisagens. Considera-sehoje um ar tista contemporâneo brasileiro, mesmo não sendo aprovado pelo establishment  artís- tico local.  Ao longo do livro são apresentadas questões estéticas, às quais Babinski não se furta em res-Ao longo do livro são apresentadas questões estéticas, às quais Babinski não se furta em res-ponder, expressando, com clareza e sinceridade, sua opinião e sua visão a respeito da arte efalando sobre arte contemporânea e suas novas linguagens. Em suas formulações sobre arte eem sua produção pode-se notar a influência exercida pelo modo de pensar dos automatistas e

* Mestranda na linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade

de Brasília.

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surrealistas, pensamento esse que marcou a geração do conturbado período da Segunda GuerraMundial. Em Babinski, tal influência se mostra na importância dada à gestualidade e sua velocidadena confecção da pintura e ao considerar nociva a presença de uma racionalização excessiva noato de criação. Contudo, essa aparente desvalorização da racionalidade parece ser o contrapontonecessário à busca de equilíbrio entre o visceral e o cerebral na realização do feito artístico, pois,segundo Babinski, é nesse equilíbrio que a grande arte aparece. Babinski não prescinde do dese-nho, o que se constata em suas gravuras.

Há que se considerar que a arte concretiza-se por vários caminhos. Ao se olhar para a tra-Há que se considerar que a arte concretiza-se por vários caminhos. Ao se olhar para a tra-dição vê-se que, no caminhar do homem pela história, espaços e tempos diversos apresentamdiferentes formas de expressão artística. O que Babinski faz é escolher seu caminho e, ao refletirsobre suas escolhas, consegue defendê-las bem. Atento à qualidade do que produz, não seguemodismos, escolhendo as linguagens às quais se afeiçoou e que desenvolveu, capacitando-se, assim,a executá-las com mestria. Para Babinski “ser artista significa, acima de tudo, desejar; sem desejonão existe arte”.

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What is Dance?Readings in Theory and CriticismCOPELAND, Roger & COHEN Marshal (eds.). New York: Oxford University Press, 1983. 582 p.

CÍNTHIA NEPOMUCENO *

Vinte e sete anos após sua primeira edição, a antologia What is Dance?  – editada por RogerCopeland e Marshall Cohen – apresenta a seus leitores um conteúdo que resistiu à passagemdo tempo e, por isso, merece destaque como fonte de pesquisa para a dança. Concebida com opropósito de reunir os melhores textos disponíveis sobre dança na língua inglesa, a coleção é or-ganizada de modo a contemplar as mais variadas discussões e problemas relacionados a essa arte.  O prefácio do livro aponta a resistência de dançarinos, coreógrafos, críticos e historiadores dadança à teorização, considerada irrelevante e/ou impertinente. Uma das causas dessa resistência seriaa ideia de que a dança deveria ter a função de nos proteger da alienação do pensamento, mantendonossos pés no chão. Ainda segundo os editores, as lacunas deixadas por esse tipo de crença fizeramcom que a dança pagasse um alto preço ao permanecer à margem dos discursos acadêmicos.  É interessante observar que a realidade descrita no prefácio do livro, referente aos EstadosUnidos da década de 1980, assemelha-se ao contexto da dança acadêmica brasileira no início doséculo XXI: havia maior interesse da população pelos estudos de dança, ampliação da oferta doscursos em nível superior, debates sobre a vinculação acadêmica da dança às áreas de ar tes ou deeducação física, escassez de produção bibliográfica e notória complexidade dos temas relacionadosà pesquisa. Tendo em vista a realidade da época, a coleção reuniu ar tigos selecionados não apenaspor seus méritos, mas por sua representatividade e pela relevância das questões levantadas porseus autores.  A apresentação dos textos confere à leitura uma sensação de deslocamento no tempo e noespaço, em ruptura com a linearidade cronológica. Divididos em sete partes, os artigos trazemideias, conceitos, descrições, personagens, criadores, intérpretes e estudos, pinceladas de váriosaspectos da arte de dançar. Desse modo, iniciamos a jornada com as cartas de Jean-GeorgesNoverre, escritas em 1760, e, na mesma parte, encontramos Susanne K. Langer falando sobresentimentos e formas, apresentando noções de “poderes virtuais” e do “círculo mágico”. André

Levinson nos presenteia com um ar tigo em que discute conceitos e ideias sobre a dança, de Aris- tóteles a Mallarmé. Em seguida, Paul Valéry nos traz o artigo Filosofia da Dança. Tudo isso ainda naprimeira parte, cujo título é o mesmo que o do livro: What is Dance?   A segunda parte – The dance medium – discute a importância do intérprete em seis textos que tratam do formalismo de Balanchine, da importância de Diaghilev e do teatro de formas animadas,bem como do primitivismo, do modernismo, do balé clássico e suas dissidências. Já a parte três,Dance and the other arts , faz a relação entre dança e demais artes com textos de Richard Wagner,Eric Bentley, Constant Lambert, Bernard Shaw e Theodore Reff.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, s ob a orientação da Profª Drª Roberta K. Matsumoto;

Mestre em Arte (UnB); Bacharel e Licenciada em Dança (UNICAMP). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciên-

cia e Tecnologia de Brasília (IFB) no curso de Licenciatura em Dança.

[email protected]

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  A quarta parte do livro é dedicada aos estilos e gêneros de dança, subdividindo-se em quatrocapítulos: Ballet ; Modern Dance; Post Modern Dance; Style. Em destaque estão os textos de autoriade Michel Fokine, Isadora Duncan e Mary Wigman. Parece-nos importante ressaltar que olivro reproduz concepções hegemônicas sobre a dança, excluindo as produções artísticas afro-americanas, latinas e indígenas, entre tantas outras. Nesta mesma parte, todavia, há o artigo deAnna Kisselgoff – There is Nothing “National” about Ballet Styles  – que, em poucas palavras, tececríticas à estereotipia e nega a existência de um estilo “americano” de ballet , referindo-se ao baléclássico praticado e difundido pelos estadunidenses, convidando-nos à reflexão e à desconstruçãode ideias cristalizadas sobre os estilos e gêneros.  A quinta parte trata de linguagem, notação e identidade. São cinco artigos que discutem aimportância do registro escrito das danças e aprofundam o conceito de dança como linguagemestética. Já na parte seis, estão reunidos artigos sobre crítica de dança. Tendo em conta que amaior parte da historiografia disponível sobre dança foi compilada por críticos especializadosnessa arte, torna-se imprescindível ler com atenção tais artigos. Entre outros, estão sob a mira doscríticos Ana Pavlowa, Martha Graham, Fanny Elss ler, Balanchine e Isadora Duncan.  A sétima e última parte do livro fala sobre dança e sociedade. Traz uma riqueza de abordagens,apresentando estudos antropológicos, além de um interessante artigo de Roland Barthes sobrestriptease. Para os pesquisadores, uma fonte de inspiração!  Obviamente, as quase seiscentas páginas do livro não dão conta de todos os temas relacio-nados à dança, mas conseguem apresentar um pouco de quase tudo que é necessário para, nomínimo, instigar quem se interessa pelo assunto. É uma obra de referência, pois permite umavisão global e, ao mesmo tempo, específica sobre determinados aspectos da dança, estimulandoe abrindo caminhos para o aprofundamento em questões diversas. A obra merece uma traduçãopara a língua portuguesa devido a sua relevância e para que possa atingir um público amplo e di-versificado, constituído por leigos interessados sobre o tema, estudantes dos cursos de graduaçãoem dança, pesquisadores e profissionais que buscam estímulos e referenciais para seus trabalhos.

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Oswaldo Goeldi:Iluminação, IlustraçãoRUFINONI, Priscila Rossinetti. São Paulo: COSAC NAIFY e FAPESP, 2006, 316 p.

FABIO FONSECA *

A partir de leitura que Priscila Rufinoni faz das obras de Oswaldo Goeldi, pode-se entender odesenhista, gravador e ilustrador como um dos principais artistas modernistas brasileiros, senão oprincipal. A autora apresenta um artista à margem do grupo da Semana de 22, porém próximo àpoética modernista, participando da busca de afirmação da bidimensionalidade e da autonomia daobra de arte visual e mantendo uma independência em relação ao mercado de arte de sua época,associado ao aparato estatal. Também foi um ar tista que acompanhou de perto a transformaçãodos processos de industrialização, sendo afetado pela relação com a indústria editorial e com acultura de massa. Ao ilustrar revistas e jornais, sua arte pode ser pensada tanto a partir de umvínculo com os temas, quanto com a visualidade da fotografia e do cinema.  Sem pensar em uma sucessão evolutiva, mas estabelecendo um diálogo com “blocos de expe-Sem pensar em uma sucessão evolutiva, mas estabelecendo um diálogo com “blocos de expe-riências estéticas”, como simbolismo e expressionismo, Rufinoni inicia sua análise desta parcela daobra de Goeldi com as ilustrações para o conto O Gato Preto, de Poe, publicadas na revista LeituraPara Todos. Seus desenhos se aproximam do simbolismo e da linha caligráfica de Alfred Kubin peloaspecto da construção do espaço, formando densos arabescos, no entanto mantêm certa dis- tância do aspecto imagético marcadamente onírico do universo do artista simbolista. Com o usoda xilogravura, sua obra passa do desenho nervoso e simbolista para a demarcação de espaçoscheios e vazios e de áreas de luz e sombra. Nas gravuras produzidas para ilustrar Canaã, de GraçaAranha, Goeldi afasta-se das fisionomias e da dramaticidade, dando à narrativa uma interpretaçãolacônica.  Para Rufinoni, o artista utiliza o jornal como campo de experimentação de novas soluções.Em suas representações urbanas, aparecem os “tipos” criados pelo artista, imagens alegóricas dohomem comum, com chapéus, casacos e guarda-chuvas, a cidade com seus postes e lampiões. Pormeio de um humor irônico e sutil, Goeldi capta, com seu traço rápido, o dado efêmero, o passan- te anônimo. Ao analisar o artista a partir de sua realidade, a autora observa as soluções plásticas

dos artistas alemães da Nova Objetividade, utilizando-os para problematizar a obra de Goeldi. Areferência da gravura alemã dá apoio a uma figuração sem profundidade, afastada da perspectiva,embasada por um geometrismo planificador.  A autora aponta, nas gravuras de Goeldi, tanto a presença de figuras arquetípicas da moderni-A autora aponta, nas gravuras de Goeldi, tanto a presença de figuras arquetípicas da moderni-dade quanto temas de cunho antropofágico ou nativista. As ilustrações produzidas para as obrasmodernistas Cobra Norato, Martim Cererê , Cheiro de Terra  e Poranduba Amazonense geram umainterpretação da fauna e da flora pelo viés primitivista, uma dialogicidade entre o universal e oparticular, representados, respectivamente, pelo eixo Rio/São Paulo e Belém. As representaçõesda fauna e da flora, bem como de “tipos étnicos”, passa pela iconografia dos naturalistas, revisitadaatravés do contato com a obra de seu pai, o zoólogo Emílio Goeldi. No entanto, a autora aponta

* Mestrando na linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade

de Brasília.

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que, mesmo produzindo trabalhos sob encomenda, o artista não apenas ilustra os textos, mas osinterpreta, estabelecendo uma relação de autonomia em seu processo criativo. Os livros de arte,por tomarem parte em um mercado editorial incipiente, constituem também um campo experi-mental para Goeldi, que produz uma reinterpretação mítico-simbólica das formas naturais, usandoa cor em várias matrizes e realizando um embaralhamento dos planos.  Suas ilustrações para as obras de Dostoievski reaproximam o artista do universo simbolista/expressionista, ora sombrio, ora cômico. Nesses ambientes, os lampiões assumem uma impor tân-cia fundamental, transformados em ícones ou fornecendo pretextos para pesquisar fontes de luzque possibilitarão soluções diversas para a iluminação das cenas, aproximando-se, por vezes, daluz bruxuleante de Goya. Outros ícones repetidamente trabalhados em suas ilustrações são ospeixes – alegorias míticas –, o lampião, a casa, o urubu e o chapéu-e-casaco, sinais do misterioso,do sublime inserido, de forma dis creta, no cotidiano.

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O Projeto de RembrandO Ateliê e o MercadoALPERS, Svetlana. São Paulo: Cia das Letras, 2010, 375 p.

 JULIANA DE SOUZA SILVA *

Mesmo após tantos estudos focados nas obras de Rembrandt, ou nos escritos sobre ele, ou mes-mo na vida social do ar tista holandês, Svetlana Alpers entende que a história da arte é um campoem evolução e, assim, parte das lacunas advindas com os estudos modernos sobre Rembrandt apartir da década de 1960 (incluindo o Rembrandt Research Project ) para propor uma análise queagrega o lado artístico, social e econômico da prática de ateliê do artista.  Ao longo dos quatro capítulos, Alpers analisa as intenções de Rembrandt na produção dentroe fora do ateliê, ou seja, na criação e na comercialização das obras. Sua análise de Rembrandtvincula o artista às circunstâncias do meio artístico da Holanda do século XVII, ao contrário decorroborar a noção do gênio isolado que influenciou muitos estudiosos desde o século XIX. Estu-dar a prática de ateliê é, segundo a autora, esmiuçar a maneira de pintar (e desenhar, e gravar) deRembrandt, aproximar-se da idiossincrasia do ar tista que não só estimulava a criação, mas tambémo impelia a organizar a produção de sua equipe dentro do mercado de arte holandês.

A maneira peculiar de Rembrandt é examinada, no primeiro capítulo, sob o ângulo do trata-mento da tinta. Observando e comparando algumas de suas pinturas com a de outros artistascontemporâneos, bem como analisando citações de especialistas e referências biográficas sobreRembrandt (incluindo a descrição feita por alguns de seus aprendizes), Alpers chama a atençãopara a presença visual da tinta na obra do artista. Interpreta o uso do empasto como sendo, maisdo que uma característica formal, a afirmação do ofício do pintor, uma intenção de ir além doefeito óptico da cor, cunhando um trabalho com a matéria pictórica.

Referências teóricas anteriores ou da época de Rembrandt são usadas por Alpers para criar umpanorama de como o pensamento sobre a arte se consolidava na Europa desde o Renascimento,e em que medida esse pensamento permeava o mundo de Rembrandt. Cita, como exemplo, oentendimento de Giorgio Vasari de que a pintura de fatura rugosa necessitava de uma apreciaçãoà distância, justificando a distinção social entre os connaisseurs, capazes de fruir o estilo rugoso, e o

restante da sociedade, habituada à tradição da fatura lisa. Mas Alpers destaca que a materialidadeda tinta em Rembrandt não se baseava no propósito de satisfazer um público seleto e esclarecido,mas em um meio de dar visibilidade ao próprio ofício, de afirmar um tipo de habilidade pictórica.No ato de escavar a superfície úmida de tinta com a ponta do pincel ou do tento, Rembrandtindicava, desde o início da carreira, a associação da visão com o tato, sugerindo qualidades táteispara sua pintura. As mãos seriam o instrumento fundamental do pintor, e seu tratamento da tintarevelaria o domínio desse ofício, a ponto de Rembrandt inventar uma maneira peculiar de pintar.

Alpers desenvolve, no segundo e no terceiro capítulos, a hipótese de que Rembrandt criou umestilo pessoal ao adotar também o modelo teatral, em vez da ar te do passado. Embora não fosseo único a ser inspirado pelo teatro, visto que artistas contemporâneos adaptavam imagens decortejos públicos, de tableaux vivants, dentre outros espetáculos, em pinturas, desenhos e gravuras,

* Mestre em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília. Pesquisadora Colaboradora Júnior do PPG-Arte/UnB.

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Rembrandt levou para o ateliê os jogos teatrais como um recurso pedagógico para o estudo danatureza humana. Tanto as encenações teatrais quanto a realização dos desenhos eram dirigidospor Rembrandt, que possuía incontestável autoridade sobre o ateliê. Esse método contribuiu, se-gundo a autora, para que o artista aperfeiçoasse a reconstrução teatral dos sentimentos humanos,sobretudo por meio da experiência de pintar autorretratos – diante de um espelho, o artista se tornava um ator testando diferentes expressões em si mesmo.

Alpers examina os interesses e ambições de Rembrandt no mundo da arte. O último capítulomostra em que medida o artista partilhava dos novos valores éticos da economia de mercadoholandesa, afirmando sua liberdade ao separar o ambiente doméstico do ateliê, ao distanciar-sedos cânones da tradição (até mesmo em seu método de ensino, substituindo a cópia de obrasdo passado por obras de sua autoria, inclusive autorretratos) e ao emancipar-se da figura do me-cenas, adotando o sistema mercantil para propor preços para suas obras. Em uma interessanteanálise da noção da individualidade do pintor, Alpers afirma que o verdadeiro propósito de Rem-brandt era a “prosperidade econômica de sua arte”, como profissional consciente da singularidadee do valor de sua obra. Recorrendo a outros campos da cultura, com os quais concilia o conhe-cimento artístico, Alpers explica como o idiossincrático Rembrandt, ao incentivar a proliferaçãodo estilo Rembrandt , contribuiu para o sistema da arte e, de certo modo, para o estado atual de“desatribuições” de autoria.

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O Mundo Codificado:por uma Filosofia do Design e da ComunicaçãoFLUSSER, Vilém. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007. 224 p.

CARLOS PRAUDE *

Apresentado como essencial à formação de qualquer designer  ou profissional da comunicação,compreendo que o livro O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, de VilémFlusser, é uma obra preciosa para artistas programadores por esboçar questões pertinentes aocampo da arte computacional sob um prisma filosófico. Neste sentido, pretendo destacar algunspontos que chamaram minha atenção.  Com tradução de Raquel Abi-Sâmara, o livro é uma compilação de diversos textos curtos, rá-Com tradução de Raquel Abi-Sâmara, o livro é uma compilação de diversos textos curtos, rá-pidos e incisivos, que foram estruturados pelo organizador Rafael Cardoso em três seções: Coisas,Códigos e Construções. Os textos se complementam e enfatizam, de forma bastante clara, a reflexãofilosófica que o autor ar ticula sobre temas relacionados com a tecnologia da informação, como osartefatos de software e a codificação dos objetos com que lidamos em nossa vida cotidiana.  Flusser observa que “hoje em dia, sob o impacto da informática, começamos a retornar aoconceito original de matéria como um preenchimento transitório de formas atemporais” (p.24).Para o autor, a ideia da mudança dos estados da matéria proporcionou o surgimento de uma novaimagem do mundo onde a matéria se realiza em campos energéticos de possibilidades que seentrecruzam. Neste cenário, o autor postula que há um despropósito no abuso do conceito de“imaterial” e uma compreensão inadequada do termo informar. Informar corresponde ao proces-so de dar forma a algo, o que significa impor formas à matéria. O autor assinala que isso é de umaatualidade abrasadora e que o que está em jogo são os equipamentos técnicos que permitemapresentar, nas telas, algoritmos em forma de imagens em movimentos.

Para Flusser, se antes o que importava era uma ordenação formal do mundo aparente da ma-Para Flusser, se antes o que importava era uma ordenação formal do mundo aparente da ma- téria, o que está em questão hoje é como tornar aparente um mundo altamente codificado emnúmeros, um mundo de formas que se multiplicam incontrolavelmente. A aparência do materialé a forma e, para Flusser, “no sentido estrito, a forma, é precisamente aquilo que faz o materialaparecer” (p.32).

  Considerando as formas não mais como descobertas ou ficções e sim como modelos, Flusserarticula uma reflexão onde a questão já não s e foca no real, mas sim no que é conveniente, verifi-cando que as formas são recipientes, são modelos construídos especialmente para os fenômenos.O design é um dos métodos de dar forma à matéria. O design mostra que a matéria não é apa-rente, a menos que seja informada, que é quando começa a manifestar-se, ou seja, a tornar-se fe-nômeno. Para o autor, existem dois modos distintos de projetar: o material e o formal. O primeiroresulta em representações, enquanto o outro produz modelos. O modo material enfatiza aquiloque aparece na forma, enquanto a maneira formal realça as características daquilo que aparece.  Flusser considera que “as fábricas são lugares onde sempre são produzidas novas formas dehomens: primeiro o homem-mão, depois, o homem-ferramenta, em seguida, o homem-máquinae, finalmente, o homem aparelho-eletrônico” (p.37). “Quanto mais complexas se tornam as ferra-

* Mestre em Arte e Tecnologia pela Universidade de Brasília.

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VIS | Julho/Dezembro de 2010 Ano 9 nº 1

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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

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mentas, mais abstratas são as suas funções” (p.42). Para o autor, os aparelhos eletrônicos exigemum processo de aprendizagem ainda mais abstrato e o desenvolvimento de disciplinas que, demodo geral, ainda não se encontram acessíveis. A fábrica do futuro deverá assemelhar-se mais alaboratórios científicos, academias de arte, bibliotecas e discotecas do que às fábricas atuais. Ohomem-aparelho do futuro deverá ser pensado mais como um acadêmico do que como umoperário, um trabalhador ou um engenheiro. Na fábrica do futuro, o homem “reconhecerá que fa-bricar significa o mesmo que aprender, isto é, adquirir informações, produzi-las e divulgá-las” (p.43).

Para o filósofo, com o surgimento dos aparelhos eletrônicos e da Tecnologia da Informação,deparamos com “não coisas” denominadas “informações”, que se encontram por todos os lados.Todas as coisas contêm informações. Nosso interesse desloca-se das coisas para as informações.A sociedade ocupa-se cada vez mais da produção de informações, serviços e sistemas. Os valoressão transferidos para as informações, configurando um imperialismo onde a humanidade é domi-nada por grupos que dispõem de informações privilegiadas.  Flusser esboça o pensamento de que “entenderemos que se pode viver de forma diferentee talvez até melhor” (p. 57). Para o autor, a vida entre as coisas pode não ser excepcionalmentemaravilhosa como se pensava antes, e teremos que imaginar essa nova vida com as “não coisas”(p. 58). Na visão de Flusser, o homem não lida mais com as coisas, por isso não pode mais falarde suas ações concretas. O que lhe resta de suas mãos são as pontas dos dedos para operar sím-bolos que lidam com informações. Por não estar interessado nas coisas, no lugar de problemas ohomem tem programas. Para o autor, o surgimento da “não coisa” não atingirá a disposição básicada existência humana, o ser para a morte.

O autor considera que as coisas estão se tornando cada vez menores, enquanto as “não coi-O autor considera que as coisas estão se tornando cada vez menores, enquanto as “não coi-sas” ao nosso redor estão inflando, como é o caso da informática. Neste cenário, a produção deinformações é um jogo de permutação de símbolos. Para jogar com os símbolos, para programar,é necessário pressionar teclas. As pontas dos dedos são órgãos de uma escolha que se realiza deacordo com prescrições programadas, configurando decisões que desencadeiam processos. Parao filósofo, é como se a sociedade do futuro se dividisse em duas classes: a dos programadorese a dos programados. A primeira seria constituída por aqueles que produzem programas e a se-gunda, por aqueles que se comportam segundo o programa. Como os programadores realizamo mesmo movimento de dedos que é feito pelos programados e tomam decisões dentro de ummetaprograma, em um ciclo onde se revela o infinito, Flusser conclui que a sociedade do futuroserá uma sociedade sem classes, uma sociedade de programados programadores: “Somos talveza última geração que pode ver com clareza o que vem acontecendo por aqui”. Para compreen-dermos esse momento, Flusser chama a atenção para o que se entende por “programa” – “esseconceito fundamental dos tempos atuais e futuros” (p.65).  Para Flusser, além do mundo computado pelo nosso sistema nervoso central, “somos capazes

de criar percepções, sentimentos, desejos e pensamentos distintos, alternativos” (p.78).Nesse cenário aparece a comunicação humana, com o propósito de desviar a atenção da faltade sentido de uma vida destinada à morte. É onde se “estabelece um mundo codificado, constru-ído a par tir de símbolos ordenados, no qual se represam as informações adquiridas” (p.96). Parao autor, a comunicação atinge seu objetivo (dar significado à vida) quando há um equilíbrio entrediscurso e diálogo.  Flusser ilustra nossa capacidade de comunicação e percepção ao discorrer sobre a importânciadas superfícies no nosso dia a dia. Para o autor, “o pensamento imagético está se tornando capazde pensar conceitos” (p.118). Códigos imagéticos, por depender de pontos de vista predetermi-nados, são subjetivos, enquanto os códigos conceituais, que não dependem de um ponto de vista,são objetivos. Em sua visão, a mídia linear poderá unir-se à da superfície numa relação criativa,favorecendo o surgimento de novos tipos de mídias, abrindo novos campos de percepção e pen-samento. Se “o significado geral do mundo e da vida em si mudou sob o impacto da revolução na

comunicação” (p.127), Flusser analisa o papel dos códigos e das cores nas superfícies (portadoresde mensagens), para argumentar que devemos aprender os códigos tecnológicos, sob o risco denos tornarmos “condenados a prolongar uma existência sem sentido em um mundo que se tor-nou codificado pela imaginação tecnológica” (p.137).  Se durante quase toda a história ocidental o código numérico permaneceu preso ao códigoalfabético, Flusser aponta para uma situação diferenciada onde o “código numérico evadiu-se docódigo alfabético, e, com isso, pôde livrar-se da obrigação de linearidade e passar dos númerospara as informações digitais” (p.170). Esse ato possibilitou o surgimento de um gesto diferenciadode criação de imagens, proporcionando uma imaginação que se mostra como um ajuntamentode algo calculado para a formação de imagens. Analisando esse gesto, Flusser constata que taisimagens são criadas para que se busque o inesperado em um campo de possibilidades onde serevela uma estética pura. Para o autor, quando as imagens são criadas a partir de cálculos e não decircunstâncias, a experiência estética favorece ao Homo faber  a libertação do Homo ludens.  Diante da atualidade implícita nos textos do filósofo, o livro apresenta-se como uma preciosaobra para artistas computacionais e para a arte que se realiza por meio da Tecnologia da Infor-mação, no sentido de proporcionar um olhar crítico sobre a sociedade midiática em que vivemos.

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DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPG-ARTE NO PERÍODO 1º/2010

BARBOSA, Larissa Ferreira Regis – AMC: Afecção mediada por computar em coletivos performáticos desterrito-rializados. 01/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria Beatriz de Medeiros

CAETANO, Alexandra Cristina Moreira – Interface: Processos criativos em arte computacional.03/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Suzete Venturelli

GUIMARÃES, Marta Mencarini – Mesa de luz: Colagem-composição.05/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso

RIBEIRO, Kaise Helena Teixeira – A dialogicidade no Mamulengo Riso do Povo. 12/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Izabela Costa Brochado

DE OLIVEIRA, Gabrielle Patrícia Augusta Corrêa – Lucian@ cartografia afetiva e artística em contexto ciber-urbano. 16/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso

DE VASCONCELOS, Adriana Santos – A relação de troca artístico-criativa entre preparador de atores, ator e di-retor em Bicho de Sete Cabeças (2000) de Laís Bodansky e O Céu de Suely (2006) de Karim Aïnouz.22/03/2010.Orientador: Profº Dr. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz

HORA, Daniel de Souza Neves – / arte_hackeamento / diferença, dissenso e reprogramabilidade tecnológica.24/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria de Fátima Borges Burgos

NUNES, Francisco Pereira – Platéia ou plateia? A progressiva perda do assento nos teatros de Brecht, Moreno eBoal. 25/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Soraia Maria Silva

DE BRITO, Alessandra Araújo – Dança e dissonância: Poéticas de esculpir o tempo. 26/03/2010.Orientadora: Profª Dra. Soraia Maria Silva

AMARO, André de Borba – O espetáculo cênico e o espírito caleidoscópico. 29/03/2010.Orientador: Profº Dr. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz

PRAUDE, Carlos Corrêa – Arte computacional e experiência estética. 18/06/2010.Orientadora: Profª Dra. Maria de Fátima Borges Burgos

PINHEIRO, Luciana Paiva – Precário: fragilidade e instabilidade na imagem.30/06/2010.Orientador: Profº Dr. Geraldo Orthof Pereira Lima

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB

NORMAS PARA COLABORADORES

1. A revista VIS aceita colaborações de trabalhos originais e inéditos, de autoria individual ou coletiva, sob aforma de ar tigos, ensaios, entrevistas e resenhas, submetidos à apreciação de seu Conselho Editorial. Artigosnão originais, isto é, já publicados, só serão aceitos em caso de edição esgotada ou de tradução para umalíngua diferente da original.

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3. Os textos e as imagens que os acompanharem devem ser submetidos em duas vias impressas idênticas eem arquivo(s) gravado(s) em um disquete ou CD.

4. O Título dos textos deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, em caixa alta e baixa (sóas iniciais maiúsculas), ter no máximo 85 caracteres, não ter palavras ou expressões sublinhadas. Usar itálicosomente para a grafia de palavras estrangeiras. O título e o subtítulo, se houver, devem ser separados pordois pontos (:).

5. A identificação do(s) autor(es) deve:

a) ser digitada em fonte Times New Roman, corpo 12;b) conter, na linha abaixo do(s) seu(s) nome(s), o nome da(s) instituição(ões) a que está vinculado(s)como docente(s); pesquiador(es) ou aluno(s), digitado em fonte Times New Roman;c) em caso de aluno de programa de pós-graduação, especificarse é mestrando ou doutorando;d) conter o endereço eletrônico do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, corpo 12;e) conter, em um único parágrafo, dados biográficos do autor com no máximo 50 palavras, em fonteTimes New Roman, corpo 12.

6. O Resumo deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço entrelinhas 1,5. O Resumodeve ser digitado em um único parágrafo com o mínimo de 400 e o máximo de 800 caracteres, tanto naversão em português quanto na versão em inglês (Abstract).

7. As Palavras-Chave devem ser digitadas em fonte Times New Roman, corpo 12, em sequência na mesmalinha, separadas por ponto (.) e finalizadas também por ponto. Podem ser inseridas de três a cinco Palavras-Chave, seguidas, na linha abaixo, pela versão de cada uma para o inglês (Keywords).

8. O Corpo do texto deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, com espaço entrelinhas du-plo, alinhamento à esquerda, com o máximo de 25 laudas, incluindo referências bibliográficas.

9. Todas as imagens devem ser fornecidas em arquivos separados, em formato .jpg, sua localização no texto

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deve ser indicada pela inserção de legenda e o número de cada arquivo deve corresponder ao número deordem de ocorrência da figura ou tabela no texto.

10. A identificação de cada imagem no texto aparece na parte inferior, precedida da palavra designativa,

seguida de seu número de ordem de ocorrência no texto, em algarismos arábicos, do respectivo título e/oulegenda explicativa de forma breve e clara. A imagem deve ser inserida o mais próximo possível do trecho aque se refere, conforme o projeto gráfico.

11. A obtenção de direitos de reprodução das imagens utilizadas em cada texto, caso não sejam de domíniopúblico, é de inteira responsabilidade do autor.

12. A numeração das notas explicativas é feita em algarismos arábicos, devendo ser única e consecutiva paracada artigo.

13. Para elaboração de referências, elemento obrigatório, recomendamos a norma ABNT NBR6023.

14. Para elaboração de citações, recomendamos a norma ABNT NBR10520.

15. As citações com mais de três linhas devem ser digitadas em parágrafo separado, com espaço entrelinhassimples, corpo 10 e sem aspas. As citações devem ser listadas no final do texto com Referências. Os dadosbibliográficos completos das citações não devem ser inseridos no corpo do texto (ver norma citada no item14).

16. As notas de rodapé devem conter apenas comentários imprescindíveis para a compreensão do texto enão os dados bibliográficos.

17. A editora da revista VIS poderá realizar modificações que visem à correção gramatical, à adequação àsnormas da ABNT e à formatação dos originais de acordo com o projeto gráfico.

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