Revista Tempo Famílias nos seringais: costumes e afazeres ... · A importância da borracha no...
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Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 2 | N.1| junho-dezembro de 2014 | p. 67-81
Revista
Tempo Famílias nos seringais: costumes
Amazônico e afazeres no município de Afuá-PA
Maurício Guedes de Negreiros*
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o cotidiano das
famílias nos seringais no município de Afuá (no estado do Pará),
atentando para a atividade de coleta que durante o período
chuvoso funcionava como uma renda extra num momento em
que a borracha escasseava. Serão discutidas também nesse texto
a participação das mulheres e crianças nas atividades do seringal
– meio tido como masculino. Mesmo tomando conta dos
afazeres da casa, do roçado, da coleta, as mulheres também
foram importantes dentro da economia da borracha, pois tinham
suas estradas para riscar, contribuindo para a renda familiar.
Esse quadro evidencia uma diferença entre os seringueiros
naturais de Afuá e os migrantes nordestinos, pois como muitos
se deslocaram sozinhos, não puderam contar com a cooperação
familiar. Para entender a integração familiar no trabalho nos
seringais da ilha de Afuá estabeleci um diálogo entre as
entrevistas e as referências bibliográficas evidentes nesse
trabalho.
Palavras-chave: Amazônia, seringueiro, família.
Abstract: This article aims to analyze the daily lives of families
in the seringals in the municipality of Afuá (state of Pará),
considering the collection activities during the rainy season that
functioned as an extra income at a time when rubber was
scarce. Will also be discussed in this text the participation of
women and children in the activities seringal - considered
masculine. Even doing household chores, the brushed and the
collect, women were also important within the rubber economy,
for they had their roads to scratch, contributing to the family
income. This table shows a difference between natural tappers
of Afuá and northeastern migrants, because many have moved
alone, they could not rely on the family cooperation. To
understand the family integration into rubber plantations of Afuá
island, I establish a dialogue between interviews and
bibliography references in this work.
keywords: Amazon, rubber tapper, family.
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1. Inverno: coleta na floresta
A estação chuvosa na Amazônia dificultava o comércio da borracha, pois
impossibilitava a extração do látex pelos seringueiros. Neste período, o leite da seringueira
misturava-se com a água e ficava impróprio para comercializar. Dessa forma, para conseguir
algum recurso financeiro era efetuada a coleta na floresta de sementes e frutos, usando o
mesmo processo de comercialização adotado no tempo da borracha. Este comércio de coleta
no período chuvoso estava atrelado, em diversas localidades, à exploração das imensas áreas
verdes da Amazônia... Foi assim no Afuá1 entre 1942 a 1945, durante a o segundo “boom da
borracha”.
A importância da borracha no segundo boom na Amazônia com o advento da Segunda
Guerra Mundial moveu uma grande estrutura governamental para conduzir trabalhadores
nordestinos para serem introduzidos dentro das estradas de seringais. Entretanto, nosso foco
não é prioritariamente os migrantes nordestinos, nossa atenção se volta para os seringueiros
que moravam nas ilhas e para as famílias deles. Nosso objetivo é analisar o cotidiano destas
famílias que trabalharam nos seringais da foz do rio Amazonas, bem como a relação do
seringueiro com o patrão durante o inverno.
Outro ponto a ser analisado dentro desse artigo é a participação da mulher e da criança
de Afuá na produção efetiva da borracha, não só com seus afazeres domésticos, mais indo
para dentro das estradas de seringueiras riscar e coletar o látex, como também produzir a
borracha, com o intuito de aumentar a renda familiar.Dentro da pesquisa realizada tivemos o
privilégio de entrevistar/dialogar com dez moradores que foram seringueiros no período do
segundo ciclo da economia da borracha, onde traçamos um diálogo entre essas memórias e as
bibliografias analisadas na pesquisa.
A exploração da foz do Amazonas vem desde o período colonial, segundo Darcy
Ribeiro:
Já nos primeiros anos do século XVII ali se instalaram soldados e colonos
portugueses, inicialmente para expulsar franceses, ingleses e holandeses que
disputavam seu domínio, depois como núcleos de ocupação permanente. Estes
núcleos encontrariam uma base econômica na exploração de produtos florestais,
como cacau, o cravo, a canela, a salsaparrilha, a baunilha, a copaíba, que tinham
* Graduado em história pela Universidade Federal do Amapá.
*Graduado em História na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) 1 O município de Afuá está localizado ao norte do Marajó, na Microrregião dos Furos de Breves, limitando–se ao
norte com a Ilha Caviana, ao nordeste com o município de Chaves, ao sul com os municípios de Anajás e
Breves, ao sudeste com o município de Anajás, ao sudoeste com os municípios de Breves e Gurupá leste com o
município de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapá.
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mercado certo na Europa e podiam ser colhidos, elaborados e transportados com o
recurso da mão-de-obra indígena, farta e acessível naqueles primeiros tempos. 2
Entretanto, neste trabalho tratamos da exploração da borracha numa estação
especifica: o inverno, período de grandes chuvas, que fazem com que os seringueiros
busquem alternativas para obterem algum lucro. Ocorre que, ao entrevistar os seringueiros das
ilhas, percebi que eles tinham uma atividade econômica comum entre eles durante a chegada
das chuvas, diferentemente dos seringueiros nordestinos que estavam atrelados à dependência
do “patrão”, como atesta Cristina Scheibe Wolff na passagem abaixo
Cortava-se as seringueiras no período de 1 de maio e 31 de dezembro, cada estrada 2
vezes por semana, totalizando geralmente 60 dias de corte por estrada. No tempo
restante pouco se fazia. Onde os “patrões” permitiam, fazia-se roças de mandioca,
milho e outros produtos. Muitos seringueiros iam para as cidades e gastavam tudo o
que tinham podido acumular nos meses de trabalho. Outros ficavam no seringal,
onde alguns “patrões” aproveitavam a mão de obra disponível.3
O controle dos seringueiros pelo “patrão” torna-se visível na palavra “permitia”, ou
seja, dificilmente os trabalhadores tinham total autonomia mesmo em um período que não se
podia coletar o látex. A “subida” para as cidades para gastar tudo que tinham economizado
durante a safra da borracha no período do verão, fortalecia o laço de dependência entre eles.
Endividar-se e depois tirar borracha nas estradas para quitar a dívida... Sempre os cofres
(cadernetas) dos “patrões” estavam abertos para “ajudar” a endividar os seringueiros.
Outro autor, Greg Grandin, também retrata esta questão em sua obra:
Mas na Amazônia os seringueiros muitas vezes passavam os meses “cinzentos e
tristes” da estação da chuvosa, quando a extração do látex se tornava lenta demais,
“em suas cabanas, sem nenhuma ocupação lucrativa”, acumulando mais dividas do
que conseguiriam pagar. 4
“Sem nenhuma ocupação lucrativa”, nesta frase percebe-se que eles não tinham outra
forma de obter um trabalho que trouxessem dividendos para esta categoria de trabalhadores.
Seringueiros dependentes dos “patrões”, mesmo que houvesse permissão para eles lucrarem
com qualquer outro tipo de atividade, estavam vinculados aos desígnios dos seus contratantes.
2 RIBEIRO, Darcy. A Amazônia extrativista. In: Os índios e a civilização: integração das populações indígenas
no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 35. 3 WOLFF, Cristina Scheibe. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto
Juruá, Acre 1870-1945. 1998. 284f. Tese (Doutorado em História) Universidade de São Paulo-SP. 1998. p.65,66. 4 GRANDIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Rio de Janeiro:
Rocco, 2010, p. 43.
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Como é percebido nessas duas citações acima, tanto a Crstina Wolff, com sua pesquisa no
Acre, como Greg Grandin, que estuda o Pará, retratam essa dependência dos trabalhadores
com seus empregadores. Dessa forma, notamos uma diferença entre os seringueiros
nordestinos e os seringueiros locais das ilhas.
Ao entrevistar os seringueiros das ilhas sobre o que faziam quando chegava o inverno,
obtivemos diferentes respostas. A senhora Maria Darcy Guedes de Negreiros, por exemplo,
afirmou que: “juntava caroço... “Vendia” caroço de murumuru, castanha da andiroba, semente
da ucuúba. A ucuúba não podia exportar, então inventaram esse de virola”. Mauro dos Anjos
Lamarão, por sua vez, disse:
nós ia pro mato e pro rio, juntar semente, juntar semente de vergalho de jabuti,
semente de ucuúba, semente de andiroba, e semente de pracaxi, pra vender. Vendia
lá mesmo pro comerciante, e o comerciante embarcava, de quinze em quinze dias.
Quando ele chegava, ia pegando de porto em porto aquela quantidade de semente.
Ainda tinha o caroço de murumuru, o caroço de murumuru era o mais difícil de
juntar.
Já Francisco Paulo de Negreiros destacou que “cortando seringueira na época da
borracha, no período do inverno, que não podia cortar borracha, colhia semente na época. Era
murumuru, castanha da andiroba, a fruta da ucuúba conhecida por virola”.
Ainda que Francisco e Darcy não falassem que o destino das sementes coletadas era
para a venda, fica implícito que se destinava aos barracões dos comerciantes. A coleta de
sementes e frutos trazia uma renda num período em que as dificuldades da estação invernosa
impediam que as seringueiras fossem riscadas, ou seja, como afirmou o entrevistado Dalk
Dias Salomão, “no período verão, porque de inverno não dava pra cortar seringa, enche, aí era
só água, não dava leite né (riso)”.
No verão, havia então a contratação de seringueiros, dentro da própria região das ilhas,
onde se criava um vínculo entre seringueiro e “patrão”, no período de extração da borracha.
Quando o inverno chegava, esse vínculo de contrato acabava. Jacinto da Silva Vaz falou sobre
isto: “é riscava, levava um barco cheio, um barco “porrudo5”entrava nesses rios aí, ia pegando
primeiro pra levar pro serviço, princípio de junho. Aí passava junho, julho, agosto, setembro,
outubro, novembro, fim de dezembro começava chover vinham devolver, trazia de volta”. Ou
seja, o senhor Jacinto mostra nesta fala que o compromisso do “patrão” era durante o verão
para extração do látex, compromisso de buscá-los para tal trabalho e com a chegada das
5 “Porrudo” termo regional para expressar algo ou alguém grande/enorme
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chuvas eram dispensados (fim da contratação), onde o próprio “patrão” trazia-os para suas
casas.
Uma diferenciação geral entre os dois seringueiros — o migrante nordestino e o das
ilhas — pode ser, grosso modo, posta nos seguintes termos: os nordestinos que trabalhassem
na roça, na coleta de sementes, ou quisessem ir para a cidade gastar suas economias, o faziam
com autorização do seu “patrão”. Ou seja, sempre estavam ligados dentro de processo
submissão em relação aos seus “patrões”. Enquanto que os seringueiros das ilhas tinham
liberdade irrestrita para eleger suas atividades alternativas. Apesar de venderem suas sementes
para os comerciantes de Afuá, não tinham nenhuma obrigação de prestar contas com eles,
pois “fim de dezembro começava a chover vinham devolver, trazia de volta”. Sendo assim,
estes podiam fazer qualquer outra atividade, como construir, caçar, pescar, plantar, criar, etc.
O autor João Pacheco de Oliveira Filho dentro de sua obra “O caboclo e o Brabo” faz
uma concisa distinção destas duas formas de trabalho ao retratar dois modelos de seringal:
modelo caboclo e o modelo do apogeu6. O modelo caboclo tem como força de trabalho o
núcleo familiar voltado para a pluralidade funcional, ou seja, para o recurso a outras
atividades de subsistência como: agricultura, coleta na floresta, pesca, caça, pequenas criações
entre outras. O seringueiro e morador de Afuá Jacinto da Silva Vaz mostra essa
independência, ao falar: “aí vinha a extração da fruta. Dela o vinha o murumuru, era a
castanha de andiroba, era a ucuúba. E tinha marisco, [pois] a gente ia mariscar e vendia no
mercado o camarão, peixe. Pescava aí fora no canal”.
Já no modelo do apogeu, predominavam os migrantes nordestinos que trabalhavam
isoladamente, sendo direcionados para a alta produção de borracha, criando uma dependência
em relação ao seu “patrão”. Segundo João Pacheco de Oliveira Filho:
desde o momento em que sai de sua terra o futuro seringueiro já vai se tornando
prisioneiro do agenciador e depois do seringalista, tendo que pagar-lhe todas as
despesas que realizar até e para a obtenção da primeira safra.
[...] O seringueiro nordestino, que migra sem a familia e que tem como objetivo
voltar para a sua terra depois de formar algum pecúlio, aquele que se destina
unicamente à extração de seringa... Uma mão-de-obra dependente e que se enquadra
melhor na organização do seringal... modelo do Apogeu.7
Dentro dessa lógica de dependência para com o “patrão” — agenciador e seringalista
— é que se percebe que há uma diferença entre os seringueiros das ilhas e os seringueiros
6 OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O caboclo e brabo: notas sobre duas modalidades de força de trabalho na
expansão da fronteira amazônica no século XIX. Encontros com a civilização brasileira. N° 11, 1979, p. 101-
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migrantes nordestinos. A coleta independente de sementes e frutos era uma tradição dos
moradores seringueiros de Afuá. A atividade do período chuvoso era uma das alternativas de
aquisição dos meios de sobrevivência no Afuá. Os moradores desta ilha, além de seringueiros
eram, portanto, coletores de sementes, além de pescadores, caçadores, roceiros...
Mulheres e crianças: atividade de homem nos seringais
De que forma a mulher se envolvia dentro desse processo da extração da borracha,
dentro da casa, no roçado? É necessário dar notoriedade para essas trabalhadoras muitas vezes
silenciadas dentro dos escritos historiográficos. Cristina Scheibe Wolff procura abordar
“aspectos da história social das mulheres do Alto Juruá (AC), extremo oeste do Brasil, dando-
lhe visibilidade no processo de constituição dos seringais e da sociedade que ali se formou.8”
A autora esmiúça o cotidiano da mulher do Auto Juruá-Acre, no período de 1870 a 1945,
mulher pertencente às populações menos favorecidas. Ela passa quase que despercebida
dentro da historiografia da Amazônia no ciclo da borracha. As mulheres e crianças das ilhas
do Pará também tiveram uma importante participação dentro do processo da coleta do látex,
no período do segundo ciclo da borracha. Dentro da floresta, em diversas atividades que
supostamente seriam “de homens”, mulheres e crianças tiveram suas participações ativas.
Muitas vezes faziam trabalhos de igual rigor em relação à força física masculina.
Apesar de chegarem ao norte migrantes nordestinos com suas famílias, na maioria das
vezes, esses migrantes vinham para a Amazônia sozinhos, incentivados pela política estatal
durante a batalha da borracha. Talvez seja essa a origem da dificuldade de se reconhecer
presença da mulher dentro ciclo da borracha. Entretanto, a busca de vestígios da presença de
mulheres trabalhando nos seringais tem atraído alguns estudiosos, que vem desmistificando a
ausência das mulheres nas estradas de seringais, como Cristina Scheibe Wolff, citada acima,
Ligia T. L. Simonian, entre outros.
Fortunato de Souza Pelaes, quando perguntado sobre quem ia para estrada extrair leite,
respondeu: “tinha família que era a família toda quando tinha família, a mulher que gostava
de trabalhar ia pro mato com pai, o filho e tudo, não tinham outra coisa, tinham mesmo que
fazer aquilo”. Cândido Galleno Quintas Filho disse: “na estrada ia só homem, criança não. Só
7 Idem, p.135. 8 WOLFF, Cristina Scheibe. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto
Juruá, Acre 1870-1945. 1998. 284f. Tese (Doutorado em História) Universidade de São Paulo-SP. 1998.
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o pai e a mãe, ia só os dois riscar seringueira. Às vezes ia só o pai riscar seringueira, naquele
tempo dava muito dinheiro tirar borracha”. Através dessas duas falas percebemos que a
mulher estava ombreada com seu companheiro dentro da estrada de seringais, mesmo que
haja negação na fala de Cândido Galleno sobre a ida dos filhos para tirar látex. Com isso, é
relevante notarmos que nas ilhas do Afuá encontramos mulheres fazendo nas estradas de
seringa o trabalho que supostamente era atribuído ao homem dentro da floresta.
A autora Ligia T. L. Simonian, ao dissertar sobre a presença da mulher na extração da
borracha, afirma:
é um trabalho masculino, por se um trabalho pesado e perigoso, parece ter
desempenhado um papel importante na persistência do silêncio sobre a existência de
mulheres seringueiras... Já não há como negar o fato de que as mulheres têm
desempenhado um importante papel nesse processo produtivo.9
A autora destaca que mulheres seringueiras começam a germinar de trás de um
silêncio marginalizador, silêncio este que está se quebrando através de informações delas
próprias. Ou melhor, elas nunca negaram ou negariam tais informações, precisavam ser
instigadas por pesquisadores em busca de suas experiências de vida e de trabalho, nas estradas
dos seringais.
Vejamos o relato da senhora Rita Fonseca Nogueira, sobre seu trabalho na extração da
borracha:
...trabalhei na borracha. É o seguinte: você risca, se tiver de riscar, um palmo sabe,
aquele risco e aí encosta a tigela, nesta tigela este leite vem pra dentro, leite da
seringueira, aí você risca todinho, cinquenta, sessenta, cem madeira.
Risquei com vinte tantos anos. Eu já era casada quando aprendi, porque meu pai não
deixava nós trabalhar, tinha os empregados né, pra trabalhar na seringa, ele andava
embarcado, tinha uma canoa chamada Da Luz.
[...] Meu marido era pobre, e o que ele ganhava não dava pra sustentar o conforto
que a gente tava acostumado. Aí eu achei melhor eu ir ajudar ele pra criar meus
filhos. Eu me casei com dezessete anos, não tinha mais pai quando me casei. Aí
minha mãe morreu. Quando minha mãe morreu eu já tinha casado, com pouco
tempo ela morreu, aí eu tive que ajudar ele (marido) pra ver meus filhos bem.
Trabalhar na seringa, de tarde ia juntar caroços, pra quando eu fosse defumar já
tivesse caroço urucuri, chamado caroço, desse tamanho, pra poder defumar a
borracha.
Neste relato, observamos outra situação que levava a mulher para a estrada: a
dificuldade financeira obtida ao ser casar e a busca do conforto que os filhos não tinham. Por
isso Rita Nogueira foi trabalhar com seu marido na extração. E aprendeu a riscar seringueira
depois de casada, quando foi ensinada por seu companheiro, pela necessidade acima exposta.
9 SIMONIAN, Ligia T. L. Mulheres da Amazônia brasileira: entre o trabalho e a cultura. Belém:
UFPA/NAEA, 2001.p.72.
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A julgar pela quantidade de árvores riscadas pelo casal — “cinquenta, sessenta, cem madeira”
— a estrada era bastante grande e Rita não media esforços para dar conta do trabalho. E ela
destacou:
Eu falei pro meu primo, ele trabalhava tirando madeira assim nessa... pro pessoal,
serrando e tudo mais, eu pedia pros meus cunhados, pros primos pra limpar aquele
caminho pra mim cortar seringa.
Depois a minha sogra ficou viúva ai ela veio morar comigo, ela, minha segunda
mãe, muito boa comigo, ai as coisas melhoraram (risos) e eu ia trabalhar sem
preocupação.
Percebe-se a relação de parentesco ao pedir ajuda aos primos ou quando sua sogra foi
morar junto com sua família e ficou cuidando das crianças enquanto ela saia para trabalhar.
Segundo Cristina Donza Cancela: “essa sociabilidade marcada por relações de vizinhança e,
por vezes, de parentesco indica a presença de uma estratégia de sobrevivência desses
grupos”10A observação da autora evidencia que há recorrentemente uma rede de trocas de
favores baseada no parentesco e na vizinhança dentro das camadas populares.
Outro ponto a observar dentro da entrevista com a senhora Rita Fonseca é a múltipla
função. Apesar dela não cuidar das crianças por motivo de ir para o seringal, as crianças
ficavam com a irmã maior. Entretanto, ela tinha uma especial preocupação com a hora de
alimentar as crianças: “ia só eu e uma cachorrinha, eu deixava meus filhos com a maiorzinha
que ficava na casa eu fechava tudo e ia embora. Quando eu vinha de lá dava a alimentação
deles e voltava”.
Ou seja, isso nos remete ao trabalho de Marcos Montysuma e Tereza Almeida Cruz
(2008) sobre essa múltipla tarefa da mulher, como cuidar das crianças, das crias, do roçado,
da casa, providenciar o alimento entre outros, mesmo tendo que trabalhar nas estradas:
Nos aponta uma situação que nos permite deduzir por que as mulheres sempre se
referem ao cortar seringa numa estrada pequena, que cortavam umas duas
estradinhas pequenas, em distinção aos homens, que cortavam estradas longas. É
que as mulheres cortavam estradas pequenas para poder ficar mais tempo em casa,
para poder atender aos serviços domésticos. Ainda que fizessem outros serviços
pesados, se ainda cortassem estradas longas, os serviços ditos da casa, como a
comida, por exemplo, não seriam atendidos a tempo de servir ao esposo que estava
na chamada atividade econômica principal.11
10 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha. Belém (1870-
1920). Tese (doutorado em História social) defendida na USP, 2006, p. 182-239, 285-318. p. 197. 11 MONTYSUMA, Marcos. CRUZ, Tereza Almeida: Perspectivas de gênero acerca de experiências
cotidianas no seringal Cachoeira – Acre (1964-2006). História Unisinos. V. 12, N°3, 2008. p. 226.
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A senhora Rita Fonseca, quando vinha dar alimentação para as crianças,
provavelmente fazia outros trabalhos na casa. Fica implícito que a estrada era próxima de sua
casa. Como afirmam os autores acima citados, trabalhar nas estradas próximas da casa era
condição necessária para se cuidar das atividades do lar.
A preocupação da mulher seringueira afuaense em ajudar seu companheiro com a
extração da borracha e ainda em cuidar dos afazeres fora das estradas também é percebida nas
mulheres seringueiras do Acre, pois, segundo Marcos Montysuma e Tereza Almeida Cruz:
apesar de ainda ter vários homens que pensam que o papel da mulher é cuidar da
casa, e ao homem cabe cuidar dos serviços relativos à floresta, na prática, nas
vivências nos seringais acreanos, a maioria das mulheres enfrenta sozinha todo tipo
de trabalho, ou junto com seus maridos, porque conta também a preocupação e a
solidariedade com o companheiro. 12
Ou seja, as mulheres da floresta, tanto do Acre quanto as das ilhas afuaenses, sempre
estiveram inseridas no trabalho pesado nas estradas. Trabalho este que sempre foi
discriminado e visto apenas como secundário.
Moises Machado Cohen, sobre as mulheres na extração da borracha, disse: “é muito
difícil ter um “sorteiro”, tinha mulher, filho, mulher também cortava, fazia a borracha dela,
separada, comprava roupa e assim iam vivendo né”. E Dalk Dias Salomão: “ia só homem e a
mulher também riscava, ajudava o marido, e os filhos”. Maria Darcy Guedes de Negreiros
destacou: “trabalhei desde sete anos, risquei, tirei leite, defumei pra fazer borracha. Criança
até aos dez anos eu ia com o s meus pais (pra estrada), depois eu ia com meus irmãos, eles
riscaram também”.
Nessas três narrativas de dois seringueiros e da seringueira da ilha é perceptível
presença das famílias nas estradas, onde a mulher realizava a coleta do látex. Todo trabalho
feito pelas mulheres era derivado da “preocupação e [d]a solidariedade junto com seus
maridos”, segundo os autores Marcos Montysuma e Tereza Almeida Cruz. O comando de
toda a negociação da produção era feita pelo marido:
toda produção da família era comercializada pelo marido, (...), que administrava
sozinho os negócios da família. No final do ano, ele costumava repassar dinheiro
para os filhos comprarem algum presente. E a mulher só tinha acesso ao dinheiro
quando precisava. Vemos que, para produzir, todos produziam a borracha, mas o
gerenciamento do dinheiro era centralizado nas mãos do “chefe da família”. 13
12 Idem, p, 227. 13 Idem, p, 226.
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Mesmo quando Moisés destaca que “fazia a borracha dela, separada, comprava roupa”
não se infere daí a independência financeira da mulher, ou a disputa por estrada entre o casal.
Pelo contrário, comprar ou não alguma coisa era uma questão que tinha que passar pelas mãos
do homem. A mulher trabalhava para suprir as necessidades da família, cujos ganhos eram
geridos pelo companheiro.
Essa invisibilidade do trabalho de mulheres seringueiras dentro das estradas dos
seringais vinda através do processo histórico e discriminatório pelos próprios seringueiros e
por alguns escritores do assunto durante muitas décadas está sendo desmistifica pelas próprias
mulheres seringueiras e por novos documentos produzidos que estão contribuindo para acabar
com esse silêncio. As mulheres seringueiras das ilhas do Afuá fazem parte deste grupo de
mulheres que estão contribuindo nesse processo. Pois estiveram ombreadas com seus
companheiros nas estradas para ter uma renda maior e ajudar nas despesas domésticas.
Mulheres além de fazerem todo o processo na produção da borracha, tinham seus outros
afazeres, considerados pelos homens como “coisa” de mulher, como: cuidar da casa, dos
filhos, do roçado, das crias... Trabalhadoras com múltiplas funções.
Outro trabalho pouco reconhecido é o trabalho das crianças14. Dentro das estradas dos
seringais era evidente que a presença de crianças estava mais associada a seringueiros das
ilhas e menos aos migrantes nordestinos, pois na grande maioria destes vinham para a
Amazônia com idade adulta. Mesmo por que não era “negócio” interessante para os
aliciadores desta mão-de-obra trazer mulheres e crianças para a Amazônia. Cristina Scheibe
Wolff, ao se referir sobre mulheres e crianças na Amazônia, argumenta:
A princípio crianças e mulheres eram consideradas totalmente improdutivas para o
seringal, já que não se dedicariam, teoricamente pelo menos, à colheita do látex,
alem disso, a presença de crianças e mulheres, gerava a possibilidade e a
necessidade de plantar alimentos, o que na maioria dos seringais deste período era
proibido aos seringueiros.15
A prática de não trazer mulher e criança decorria do fato de que o seringueiro tinha
que estar totalmente direcionado ao corte da borracha, e a presença destes no seringal poderia
atrapalhar e trazer prejuízo, visto que, no barracão tinha o necessário para o sustento do
seringueiro. No segundo “boom da borracha”, os aliciadores trouxeram para a Amazônia
“soldados da borracha”, jovens solteiros para trabalhar na extração da Borracha. Porém, que
fique claro, também vieram famílias para a Amazônia neste período, mesmo em quantidade
14 Segundo Estatuto da criança e adolescente – ECA – criança é a pessoa com idade inferior a doze anos.
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reduzida. Cristina Scheibe Wolff destaca que: “outra questão interessante, que diferencia este
novo surto migratório do anterior, é que desta vez não vieram apenas jovens solteiros. Estes
eram a maioria, certamente, mas o número de famílias ou pelo menos casais não pode ser
desconsiderado”. 16
Neste período, nas ilhas afuaenses, o trabalho familiar era bastante usado na divisão
das tarefas diárias. E as crianças tinham suas obrigações de trabalho dentro do núcleo
familiar. Muitas delas foram introduzidas dentro da floresta para extração do látex, como
vamos ver vários relatos a seguir de moradores do Afuá.
Ao perguntar sobre a idade com que começou a ir para a estrada dos seringais
Fortunato de Souza Pelaes afirmou: “olha rapaz quando eu comecei trabalhar com a borracha
comecei com meus pais, meus pais trabalhavam na borracha porque naquele tempo no interior
não tinha outra coisa: era borracha mesmo naquele tempo. Então, desde criança eu comecei a
ir pro mato com eles. [...] Quando eu comecei mesmo trabalhar eu tinha uns doze anos,
trabalhei mesmo, só que eu ia com ele desde criança, eu tinha uns doze anos quando eu
comecei a trabalhar”. E Jacinto da Silva Vaz nos relatou: “trabalhei muito, muito... Extraindo
o látex, ajudei a produzir a borracha, ia pra estrada mesmo de borracha, tinha doze anos
quando comecei a riscar a seringueira com meu pai”.
Nestes dois relatos fica notório que as crianças realmente trabalhavam excessivamente
na estrada. É importante ressaltar neste relato que elas foram introduzidas nas estradas pelos
seus pais. Esse fato de levar as crianças para dentro da floresta é típico das famílias dessa
região, pois aprender com os pais as tarefas como pescar, caçar, roçar, era a confirmação que
essas tarefas serão continuadas pelos filhos. E o trabalho da extração da borracha não era
diferente, pois a ajuda de toda mão-de-obra familiar no fabrico da borracha trazia maior
ganho.
Vejamos o relato de Maria Darcy Guedes de Negreiros: “trabalhei desde sete anos,
risquei, tirei leite, defumei pra fazer borracha. Criança até aos dez anos eu ia com os meus
pais (pra estrada), depois eu ia com meus irmãos e irmãs (sendo a mais velha dos irmãos), eles
riscaram também”. A seringueira Maria Darcy disse que começou a trabalhar nas estradas
com seus pais até aos dez anos, mas depois passou a ir com seus irmãos e irmãs, sendo ela a
mais velha dos filhos. Ou seja, ela aprendeu as etapas do trabalho dentro das estradas com
seus pais. Depois tinha a responsabilidade, após os dez anos de idade, de levar seus irmãos
15 WOLFF, Cristina Scheibe. Marias, Franciscas e Raimundas. Op.cit. p.77. 16 Idem, p, 142.
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menores para a floresta, para riscar seringueira. E nesse processo de aprendizagem com o
mais velho, possivelmente também tinha que ensinar seus irmãos a etapa da extração do látex
nas estradas.
Francisco Paulo de Negreiros, ao buscar pela memória sobre o assunto tratado, nos
revela que seu pai faleceu quando ele tinha doze anos de idade, ou seja, cedo teve a
responsabilidade de “gente grande”. Ele nos relatou que: “eu também cortei muita seringa,
desde os cinco anos eu acompanhava minhas irmãs no caminho da seringa, aí depois comecei
a cortar seringa só. Depois de adulto vendi muita borracha até mais ou menos”.
Ao descrever sobre a idade com que começou a trabalhar, percebe-se que aos cinco
anos ele acompanhava suas irmãs para as estradas, ou seja, suas irmãs, seringueiras e também
crianças, foram que o ensinaram a coletar látex. Toda a família, voltou a dizer, estava
envolvida na atividade de produção gomífera.
Já Mauro dos Anjos Lamarão acompanhava outras mulheres, suas tias: “com nove, no
máximo dez anos comecei a andar no mato ajudando a cortar seringueira, ia com minhas tias,
meus parentes, porque eu não me criei com meus pais, eu me criei com minhas tias. Era um
tempo com uma um tempo com outra, era assim, na ilha das Pacas”.
Isso nos mostra que as mulheres estavam diretamente ligadas à extração da borracha
nas estradas das ilhas afuaenses. Não só isso, crianças estavam trabalhando ombreadas com
seus pais. E não podemos deixar de ressaltar que elas tinham um importante papel de passar a
cultura das estradas de seringais para os mais novos, como vimos acima.
Ao tratar da quebra do anonimato das mulheres seringueiras dentro das florestas, Ligia
T. L. Simonian assevera: “o discurso acadêmico, a documentação produzida e a iconografia
continuarão contribuindo para a quebra do silêncio que envolve o trabalho das mulheres
seringueiras em particular e das extrativistas em geral”.17
O silêncio ensurdecedor, o triste apagar da História de histórias de mulheres e crianças
que se embrenharam dentro das estradas das seringueiras, com o mesmo ímpeto dos
seringueiros homens e, a bem da verdade, trabalhando muito mais que os homens — pois
tinham seus afazeres corriqueiros no roçado, na casa, nas crias, entre outros — vem sendo
reconhecido e combatido dentro da historiografia amazônica por pesquisadores que estão
entrando mais profundamente nas memórias silenciadas e que estão fazendo grandes
descobertas, principalmente quando buscam os relatos orais de pessoas que viveram este
17 SIMONIAN, Ligia T. L. Mulheres da Amazônia brasileira: entre o trabalho e a cultura. Belém:
UFPA/NAEA, 2001.p.99.
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período. Dar ouvidos a essas pessoas faz toda a diferença: possibilita quebrar o silêncio no
que diz respeito às mulheres e às crianças trabalhadoras nos seringais.
Depoentes
Moradores antigos do município de Afuá-Pa, ilhas circunvizinhas e em Macapá-Ap.
Sr. Jorge Araujo Filho, 79 anos (03/09/1935), natural do municipio de Afuá;
Sr. Cândido Galleno Quintas Filho, 89 anos (27/09/1925), natural do municipio de Afuá;
Srª. Rita Fonseca Nogueira, 88 anos (04/12/1926), natural do municipio de Afuá;
Sr. Dalk Dias Salomão, 81 anos (19/07/1933), natural do municipio de Afuá
Sr. Moises Machado Cohen, 85 anos (19/11/1929), natural do municipio de Afuá
Sr. Jacinto da Silva Vaz, 79 anos (03/07/1935), natural de Belém
Srª. Maria Darcy Guedes de Negreiros, 81 anos (29/11/1933), natural do municipio de Afuá
Sr. Francisco Paulo de Negreiros, 79 anos (03/05/1935), natural do municipio de Afuá
Sr. Mauro dos Anjos Lamarão, 82 anos (22/12/1932), natural do municipio de Afuá
Sr. Fortunato de Souza Pelaes, 84 anos, natural do municipio de Afuá
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Recebido em: 27/02/2015
Aprovado em: 05/08/2015