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texto de Leonel Severo Rocha sobre teoria sistêmica no séc. XXI

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  • Sequncia n 28, junho/94, pag. 15

    O ENFOQUE SOCIOLGICO

    DA TEORIA E PRTICA

    DO DIREITO

    Niklas LuhmannProf. Emrito da Universidade de Bielefeld

    Traduo deCristiano PaixoDaniela Nicola eSamantha Dobrowolski

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    - I -Quando a sociologia empreendeu seu caminho histrico, encontrou a maioria

    dos campos de atividade humana ocupados por interpretaes e teorias. Existiaminmeras interpretaes religiosas e dogmticas bem elaboradas. Havia concepesmorais e teorias ticas. Havia sido explicado o sentido da atuao econmica, emparte no contexto de racionalidade privada, em parte no meta-contexto de uma ordemeconmica nacional e internacional cujo surgimento nos esmagava. Existiam teoriasdo Estado, propostas de ordenao poltico-constitucionais, uma pedagogia da for-mao e, last but not least, um grande nmero de conceitos de luta ideolgica,surgidos em conseqncia da Revoluo Francesa e da industrializao.

    Neste mundo, no era fcil determinar o sentido de uma nova disciplina que sechamava sociologia. O relativismo histrico e poltico-ideolgico pode apenas fazersurgir uma nova variante. Para a unidade da nova disciplina, teria sido mais conveni-ente definir seu objeto tambm como uma unidade, sem levar em conta todas asdisciplinas que j tratavam do pensamento e atuao humanos. Desta forma surgiu, agrosso modo, um novo conceito de sociedade que no continuava a antiga tradi-o europia de uma societas civilis, tampouco o conceito de sociedade do sculoXIX, vinculado economia. Isto teve de conduzir, conseqentemente, a que todo oconhecimento, desde a escolstica at a teoria da relatividade, desde as interpreta-es da trindade at a gentica de Mendel, e incluindo a prpria sociologia comoproduto da sociedade, se colocassem nas mos da sociologia1. Inobstante, no exis-tia nenhuma teoria e sobretudo, nenhuma metodologia emprica. Alm disso, a socio-logia, ao consumar uma pretenso desta ndole, deveria ter reclamado uma espcie desoberania suprema no sistema das disciplinas cientficas. Porm, este havia justa-mente substitudo a ordem hierrquica que ainda predominava no sculo XVIII, seconsolidando como uma justaposio estritamente horizontal; uma estrutura que aprpria sociologia, enquanto imposta pela sociedade, deveria tornar aceita e explicada.

    No de estranhar que, numa situao semelhante, as pretenses e asrealizaes tenham divergido profundamente. O fato de que esta situao teveum efeito estimulante e impulsionou grandes projetos, pode-se comprovar emautores que hoje figuram entre os clssicos da disciplina. Como tudo isto nopossibilitou uma consolidao terica, essa disciplina ainda hoje sofre asconseqncias que ela mesma originou. Empreendeu-se apenas um projeto de conso-lidao: a teoria do sistema geral da ao de Talcott Parsons. Esta teoria, contudo,exclui significativamente o problema ora tratado : segundo o qual os atores costu-mam j saber por que atuam, como atuam, podendo apoiar tal conhecimento em umasemntica elaborada que o oriente. A teoria de Parsons evita este problema -

    1 Acerca da crtica de semelhantes ambies, ver Friederich TENBRUCK, Die unbewltigten Sozialwissenchaften,Zeitschrift fr Politik,27,1980,pp.219-230; e Emile Durkheim und Geburt der Gesellschaft aus dem Geist der Soziologie,Zeitschrift fr Soziologie,10,1980,pp.333-350.

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    ao partir de uma anlise dos componentes do conceito de ao - redescobrindo-o ereintegrando-o na teoria como cultura. Na realidade, trata-se de uma construogenial que, todavia, tem como preo sua reduo a um aparato conceitual meramenteanaltico e, em ltima instncia, o rebaixamento do problema a um dos componentesda ao.

    Seja qual for a opinio sobre este intento: a sociologia tem que saber mais, dealguma maneira, que os prprios atores; seja por que relativize seu conhecimentocomo cultura, reduzindo-o a um fator, entre os outros determinadores da ao; sejapor que se baseie em uma suspeita geral referente motivao, no assumindo aconvico do ator com respeito ao sentido de sua atuao, mas sim racionalizandoseu sentido, como efeito de socializao, de privaes ou de necessidades de com-pensao2. Tambm o estruturalismo, com sua desconstruo do indivduo, elegeueste caminho3. A tcnica emprica da anlise de estruturas latentes outra possibili-dade4. Apesar de tudo, at agora no se conseguiu explicar a funo prtica dassupra-formas culturais, surgidas em uma espcie de relao de feedback com osproblemas de atribuio de sentido, e que encobrem - profissional ou literariamente -a ao. Existem - para que nos aproximemos de nosso tema -investigaes a partirdestes pontos, mas no h nenhuma sociologia da teoria jurdica satisfatria; e, semela, tambm no pode existir uma sociologia satisfatria do sistema jurdico que seespelhe nesta teoria.

    - II -Gostaria de mostrar que os novos desenvolvimentos relativos a uma teoria

    dos sistemas auto-referentes abrem novas perspectivas para esta problemtica. Pen-so, sobretudo, na teoria dos sistemas autopoiticos5, que se reproduzem por meiosprprios, ou nos second order cybernetics, que apontam para a unio de auto-referncia e observao6, ou tambm nas investigaes que, por um lado, incluemos conhecidos paradoxos da auto-referncia no clculo lgico7, e, por outro , tratam-nos como fatos em sistemas empricos8. Estas aventuras teri-

    2 Acerca deste principle of suspicion, ver Philippe VAN PARIJS, Evolutionary Explanation in the Social Science: AnEmerging Paradigm, Londres, 1981, p.129 e s., com a notvel advertncia de que, apesar de tudo, existe algo parecido a unauthotizative Self-Knowledge do ator (p.130).3 Acerca de sua relevncia para a teoria juridica (legal theory), ver Thomas C.HELLER, Structuralism and Critique,Stanford Law Review, 36, 1984, pp.127-198.4 Acerca de uma variante sociolgico-juridicamente significativa, ver agora Rolf ZIEGLER, Norm, Sanktion, Rolle: Einestrukturale Reconstruktion soziologischer Begriffe, Klner Zeitschrift fr Sozialogie und Sozialpsycologie, 36, 1984, noprelo.5 Ver Humberto R. MATURANA/Francisco J.VARELA, Autopoieses and Cognition: The Realization of the Living, Dordrecht,1980; Francisco J.VARELA, Principles of Biological Autonomy, Nova York, 1979.6 Ver Heinz von Foerster, Observing Systems, Seaside Cal.1981.7 Acerca de self-indication, Francisco VARELA, !A Calculus for Self-Reference, International Journal of General Systems,2, 1975, pp.5-24.8 Ver, por exemplo, Anthony WILDEN, Systems and Structure: Essays in Communication and Exchange, 2.ed., Londres,1980; Yves BAREL, La paradoxe el le systme: Essai sur le fantastique social, Grenoble, 1979. Ver tambm Douglas R.HOFSTADTER, GDEL, ESCHER, BACH, An Eternal Golden Braid, Hassocks, Sussex UK, 1979.

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    cas tm lugar em mbitos de discusso interdisciplinar. A prpria sociologia apenasse deu conta de sua existncia9. As consideraes que seguem, portanto, no po-dem se apoiar em um consenso estabelecido, nem no campo sociolgico, nem nojurdico.

    Tanto o sistema jurdico como o cientfico, e, dentro deste ltimo, a discipli-na especfica da sociologia, ho de ser considerados, pois, como sistemas auto-referentes. Cada um destes sistemas constitui, por si mesmos, tudo aquilo quefunciona como uma unidade para o sistema. Isto no se refere apenas unidade dosistema, as suas estruturas e processos, mas tambm aos elementos que o constitu-em (autopoiesis). Para esta contnua produo e reproduo de unidade, sorequeridas distines que permitam indicar o que ser utilizado como unidade e oque no ser10. To logo a distino mesma seja a indicadora, quer dizer, converta-se em objeto da mesma operao distintiva, surge um paradoxo11. A unidade, que hde ser determinada somente mediante uma distino, no pode distinguir-se daprpria distino. Isto equivaleria a pedir ao direito (ou no direito) a distinguirentre o que direito e o que no . No obstante, precisamente neste paradoxoque se baseiam todos os sistemas auto-referentes, no o convertendo, porm, emobjeto de suas prprias operaes. Summum ius, summa iniuria, poder-se-iaexclamar como grito desesperado - porm, precisamente no sentido de que esteprincpio no pode ser introduzido no sistema como diretiva, e, apesar disto, o siste-ma se baseia exatamente nele. O paradoxo no nenhuma contradio e, por isso,tampouco a promessa de uma sntese da dialtica conduz mais longe. O paradoxono afirma: jurdico igual a antijurdico , mas sim, jurdico por causa de antijurdico12.Este problema escapa a todo nivelamento lgico. Pode, entretanto, serdesparadoxalizado por meio da codificao sistemtica.

    Atravs da aceitao de um cdigo binrio (jurdico/antijurdico), o sistemaobriga a si prprio a essa bifurcao, e somente reconhece as operaes como per-tencentes aos sistema, se elas obedecem a esta lei. Igual ao jardn de los senderosque se bifurcan, , todavia, possvel andar sobre ambas as trilhas ramificadas simul-taneamente; porm, a noo do tempo necessria para isto no pode ser indicada nosistema e, um texto que se referisse a ela, haveria de ser, por sua vez, codifica-

    8 Acerca do incio de uma teoria dos sistemas sociais sobre estas bases, ver Niklas LUHMANN, Soziale Systeme: Grundrisseiner allgemeinem Theorie, Frankfurt, 1984.10 Fundamentamos esta tese de uma funo bsica de distino e indicao (disctinction, indication) em George SPENCERBROWN , Laws of Form, 2.ed., Nova York, 1972.11 A lgica de SPENCER BROWN exclui, entretanto, este caso, ou trata-o como anulao da distino: sem embargo, verVARELA, ob.cit. (1975), que o integra no clculo como terceiro valor da self-indication.12 Da mesma forma o paradoxo era um tema central das tragdias gregas. Precisamente por defender seu direito (atravs davingana, desobedincia ou inocncia), o heri cai no antijurdico. Intentou-se resolver este problema com ajuda da lgica,como se tratasse de evitar uma contradio no direito, e isto conduziu ao descobrimento da forma lgica do paradoxo(Epimenides).

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    do13. Entretanto, este significativo silncio do paradoxo pode ser solucionado tambm deforma diferente; poder-se-ia, por assim dizer, solucion-lo tecnicamente melhor mediantesua codificao. Se os sistemas se baseiam em uma diferena codificada (verdadeiro/falso, jurdico/antijurdico, ter/no ter), toda auto-referncia teria lugar dentro destescdigos. Opera dentro deles como relao de negao, que excepciona terceiras possibi-lidades e contradies; precisamente este procedimento que estabelece o cdigo nopode ser aplicado unidade do prprio cdigo. A no ser: por um observador.

    - III -Enquanto a teoria do direito e a dogmtica jurdica esto comprometidas com a

    reproduo do sistema jurdico e, por conseguinte, ho de colaborar na anulao de seuparadoxo e na sua codificao, a sociologia pode observar e descrever o sistema baseadoem seu paradoxo constituinte. Isto no a aproxima de um conhecimento superior. Pelocontrrio, a sociologia aprende, exatamente, a partir desta forma de observao, j que, seela mesma fosse teoria do direito, teria que aceitar uma anulao do paradoxo do sistema.A observao do paradoxo conduz a sociologia ao problema de como ela prpria, en-quanto cincia, poderia desparadoxalizar seu prprio paradoxo : o paradoxo de que exis-tem teses que so falsas por que so verdadeiras. Um sistema no pode ter uma estruturaauto-referente sem se chocar com semelhantes problemas. Precisamente por essa razo, aobservao ab extra oferece a vantagem de poder descrever outro sistema que no sejahermeticamente auto-referente.

    A anlise sociolgica da atividade jurdica tem se aproximado desta problem-tica em alguns aspectos. O chamado labeling approach descreve, por exemplo, ocomportamento de distino e indicao da polcia com distines (baseadas emteorias da profisso, organizao ou classes) que transcendem a diferena entre jur-dico e no jurdico; enquanto que a polcia baseia-se simplesmente no fato de queladres so ladres e assassinos so assassinos. Em seguida, faremos uma coloca-o mais sistemtica das teorias do labeling, da justia de classe, do desigual acessoao direito, etc. Neste contexto, reformular-se- uma srie de temas que gozam de largatradio, tanto na teoria jurdica, como na sociologia.

    Comecemos com o velho problema da faticidade da validez normativa. Noseria equivocado, nem muito produtivo, afirmar, com Kelsen, que a cincia do direitose ocupa da validez das normas e a sociologia, pelo contrrio, dos fatos14. A questo como poder-se-ia tematizar esta diferena na sociologia. O que Kelsen jencontrou feito a resposta de George Jellinek e Max Weber: a sociologia se ocupada convico ftica da validez (legtima) das normas15. Com isto a relao resultadefinida ou psicologizada de forma circular (ao que Kelsen se ope com

    13 Ver o texto de Jorge Luis BORGES, El jardn de los senderos que se bifurcan em: Ficciones, Madri, 1972.14 Entre outras, em: Der soziologische und der juritische Staatsbegriff, Tbingen, 1922.15 Ver somente George JELLINEK, Allgemeine Staatslehre, 3.ed., 6.reimpresso, Darmstadt, 1959, pp.333 e s.

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    razo). Esta situao da teoria, que paralisa toda a discusso sobre a legitimidade supervel, se se v ( como socilogo) a qualidade normativa de uma comunicaona faticidade de uma expectativa contraftica16. Portanto, uma expectativa tem umapretenso normativa, se sua comunicao promete que dita expectativa ser mantidamesmo em caso de desiluso. Isto somente a manifestao de uma inteno subje-tiva. O direito se produz, ento, pela seleo e generalizao de semelhantes preten-ses normativas. Estas so vlidas ao serem aceitas por outros, ao perdurarem, ouseja, quando podem ser repetidas em outros casos e formalizadas de maneira geral erelativamente livre do contexto. A semntica do dever simboliza o resultado desemelhante processo de generalizao.

    Se se admite este conceito de norma, ele pode ser integrado em uma teoria daautopoiesis do sistema jurdico17.Autopoiesis significa que um sistema reproduz oselementos de que constitudo, em uma ordem hermtico-recursiva, por meio de seusprprios elementos. Isto ocorre ou no, de um momento para outro; no existemmeias tintas ou terceiras possibilidades. Neste sentido, a comunicao autopoiticado direito transmite, tanto na vida cotidiana como na prtica organizada da deciso,a qualidade normativa da comunicao para a comunicao, e reproduz, com isso, a simesma. Isto pode ser realizado segundo o cdigo do direito, tanto atravs do smbolocomunicativo jurdico, como tambm por mediao do smbolo comunicativoantijurdico (mas no, por exemplo, atravs do smbolo comunicativo til). Aambivalncia contraditria assegura a universalidade do cdigo; ele pode ser aplica-do a todo comportamento humano e a todas as situaes relevantes neste contexto,j que tudo ou jurdico, ou antijurdico (mas no: um pouco jurdico).

    O estrito hermetismo recursivo do sistema, que corresponde sociologicamen-te diferenciao social de um sistema funcional para o direito, significa que nopode haver nem input normativo, nem output normativo. O direito no pode importaras normas jurdicas de uma ambiente social (no existe nenhum direito natural),tampouco pode dar normas a este ambiente (as normas jurdicas no podem valercomo direito fora do direito). A normatividade o modo interno de trabalhar do direi-to, e sua funo social consiste, precisamente, em que cumpra a misso de disponibi-lidade e modificao do direito para a sociedade. Todo contato do sistema jurdicocom o ambiente deve, portanto, utilizar uma forma diversa de expectativa. Toda orien-tao do direito com relao ao seu ambiente utiliza a cognio. Quer dizer, baseia-seem expectativas que se modificam em caso de desiluso. Em total contraposio coma atividade normativa, a atitude cognoscitiva est disposta a aprender. Pressupe umesquema de aprendizagem que pr-determina com suficiente clareza o que entraria emjogo como expectativa substitutiva, ao no se cumprir uma expectativa. Na medidaem que semelhantes esquemas de aprendizagem possam ser desenvolvidos, tam-

    16 Ver Niklas LUHMANN, Rechtssoziologie, 2.ed., Opladen, 1983, pp.40 e s.17 Ver Niklas LUHMANN, Rechtssoziologie, cit., pp.254 e s.; LUHMANN, Die Einheit des Rechtssystems, Rechtstheorie,14(1983), pp.129-154.

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    bm o direito poder aprender e adaptar-se ao seu ambiente18.Este conceito terico possibilita a reformulao do paradoxo constituinte do

    direito: o sistema jurdico opera simultaneamente sob premissas normativas ecognoscitivas; est disposto a aprender e a no aprender, na medida de sua prpriaestrutura diferenciadora. um sistema fechado e aberto: fechado por que abertoe aberto por que fechado19. Abertura e no abertura no supem nenhuma contradi-o, j que no esto definidas no sentido de uma mtua relao excludente; suacontradio, porm, situa o sistema sob exigncias especficas de anulao de seuparadoxo. A questo se coloca desta forma: como pode o sistema combinar aprendi-zagem e no aprendizagem, no sentido de uma relao de mtuo incremento e, pormeio disto, adaptar-se evoluo social.

    - IV -Para a recombinao contnua de reproduo fechada e orientao ambiental

    aberta, ou seja, de modelos normativos e cognoscitivos de expectativa, o sistemajurdico dispe de duas formas de comunicao: decises e argumentos. Decisesjuridicamente vinculantes produzem-se quando o sistema jurdico utiliza a capacida-de do sistema poltico de impor decises coletivamente vinculantes, mesmo em casode resistncia. A integrao da capacidade de aprendizagem se realiza aqui medianteprogramas de deciso, que adaptam sua aplicao s circunstncias de uma situaoconcreta. Se isto no for suficiente, se prev tambm a variabilidade dos programasde deciso, e se chega finalmente ao princpio da positividade do direito. O direito vlido, ento, em razo de decises que estabelecem sua validade. O prprio sistemajurdico h de acreditar nesta razo de validade. Em troca, a sociologia est em condi-es de remeter esta ltima a um paradoxo e tirar disto suas concluses: o direitopositivo vlido, por que poderia ser modificado por uma deciso; mesmo que nestemomento ningum pense nisto, ou ningum possa iniciar um procedimento de modi-ficao. Portanto, a validade se baseia na possibilidade de sua negao. Tambm possvel dizer em uma formulao terico-sistemtica em voga: o direito produz apossibilidade de sua eliminao, inibe esta possibilidade para o caso normal e desinibeesta inibio sob condies especiais (as quais, segundo o direito vlido, podemtambm incluir casualidades).

    A argumentao, mediante a qual se delimitam os espaos de deciso(qualquer que seja o seu nvel) e se reduzem sem deciso os nus da deciso,coloca problemas sistmicos de outra ndole. Tambm aqui se pode constataruma diferena entre o critrio sistmico-interno e a observao sociolgica.Dentro do sistema jurdico recomenda-se acreditar na possibilidade de fundamenta-o, ainda que no em determinadas razes. Como conceito global de18 Neste caso, h que se observar que tambm a aprendizagem, como processo, um acontecimento meramente sistmico-interno, um momento da autopoiesis do sistema, j que o sistema no pode aprender fora de si mesmo. Ver HumbertoMATURANA, Reflexionen: Lernen oder ontogenitischer Driff. Delfin, I,II,(1983), pp.60-71.19 Consideraes semelhantes persegue de forma multifactica Edgar MORIN em: La Mthode, tomo I, Paris, 1977, tomo II,Paris, 1980.

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    todas as razes importantes resulta quase imprescindvel a razo20.A partir de pontos de vista como o da justia de classes ou da tcnica de

    trabalho jurdico insensvel, o estilo jurdico de argumentao tem sido criticado nasltimas dcadas de forma veemente, porm superficial21. Uma observao sociolgica,que trabalhe com a teoria sistmica, eleger um enfoque completamente distinto.

    Seu ponto de partida ser o seguinte problema: como possvel que os argu-mentos no se justaponham de forma isolada e sem nenhuma vinculao, mas sim,que se apiem mutuamente, de maneira mais ou menos positiva ou negativa. Partindoda teoria da informao, esta relao de apoio pode ser chamada de redundncia.Significa que o valor informativo (efeito surpresa) de um argumento diminuir pelofato de que j se conhea outro argumento22. O ordenamento dos argumentos evita -na medida em que se torna mais consistente -, o trabalho de informar-se e conduz,desta forma, deciso. Uma redundncia suficientemente densa a condio prviapara que um argumento se substitua por outro com vistas a algumas conseqncias;tambm , igualmente, condio prvia para que se capte o valor polmico de umargumento e se possa continuar a polmica como polmica sobre argumentos. So-mente a redundncia pode, baseando-se na argumentao, determinar o que h paradecidir: somente assim a deciso pode ter um resultado igualmente perceptvel paratodos os implicados. Se a redundncia demasiadamente escassa, sequer est asse-gurado que se imponha, apesar de toda a vontade de decidir e de todo o poder. Nestesentido est plenamente justificado contrapor argumentao e decisionismo.

    Todavia, a redundncia tem qualidades que o labor jurdico conheceou desconhece. Sua estrutura simtrica. Se um argumento diminui o valor informa-tivo de outro, tambm ocorre o contrrio. Se se argumenta com razes, porque as razes fundamentam. Ademais, a redundncia aumenta nos casos polmicose, como sabe qualquer terapeuta familiar, nos casos patolgicos. De umapalavra surge outra, quase sem valor informativo para o observador. O interesse dosistema pelo processamento de casos jurdicos no pode, porm, ser interpretadosimplesmente como interesse pelo aumento da redundncia. O jurista profissional-mente comprometido h de saber utilizar e diminuir a redundncia ao mesmo tempo.Deve saber reduzir e aumentar, simultaneamente, a insegurana, que surgiu peladependncia de informaes ulteriores, e dirigi-la com base nelas.

    20 Precisamente os socilogos, que tratam de fazer justia ao seu objeto, reconhecero este fato. Ver Helmut SCHELSKY,Die juritische Rationalitt, em: Die Soziologen und das Recht, Opladen, 1980, pp.34-76.21 O interesse pela filosofia prtica e pela argumentao racional se renovou como reao, sobretudo, contra a crtica baseadaem Marx. Ver, p.exe., Ralf DREIER, Recht-Moral Ideologie: Studien zur Rechtstheorie, Frankfurt, 1981. Neste contexto dediscusses , talvez, Habermas o que mais se aproxime do paradoxo, ao inclinar-se para os dois lados.22 Este conceito de redundncia pressupe uma diferena dos argumentos e se baseia nas relaes entre eles. Outra forma desua aplicao designa a igualdade dos elementos. Neste caso, a redundncia se baseia nos elementos do prprio sistema, ese converte em entropia. Acerca da redundncia no sentido aqui indicado, ver tambm Henri ATLAN, Entre le cristal et lafume: Essai sur lorganisation du vivant, Paris, 1979.

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    Isto pode ser produzido de forma muito trivial e simples, se o jurista guardar para si aprpria opinio com relao aos implicados23. Uma forma mais desejada aassimetrizao da redundncia, utilizando-se a argumentao como busca de razesimparciais. As teorias da argumentao jurdica que, de incio, definem a argumenta-o como um intento de fundamentao24, obstaculizam as possibilidades de obser-vao do sistema jurdico. Um socilogo, como observador, reservar-se- a questoreferente adjudicao, perguntando-se se as razes so eleitas como causa dafundamentao, ou se a fundamentao eleita como causa das razes. O socilogoaveriguar como procede o jurista ao ter que aumentar e diminuir a redundncia25.O socilogo observar o manejo do paradoxo do sistema.

    Formas mais antigas da argumentao jurdica haviam pressupostoo direito como um conjunto de leis, idias pr-concebidas, conceitos e lugares-comuns, intentando derivar deles a deciso sobre o caso. A argumentao teveque realizar a reduo do aspecto concreto ao geral, tratando o arsenal defundamentos como um fato incontestvel. Hoje rechaa-se amplamente esta forma deargumentao como jurisprudncia dos conceitos ou jurisprudncia analtica.Foi substituda, ao menos na teoria, por um modo de interpretao mais pragmtico,utilitarista, scio-tcnico, orientado para as conseqncias. As decises devem serjustificadas pelos seus resultados, e a argumentao h de se originar nisto. Nestecontexto,os resultados no so simplesmente fatos, mas diferenas. Depende dadiferena que possa introduzir a deciso (ou a argumentao, ou a regra em que seapia) em comparao com o que o caso seria sem ela. Desde que se imps a juris-prudncia dos interesses, considera-se de bom estilo jurdico argumentar-se comos resultados e com as conseqncias da deciso, e valor-los. Esta forma de decisoe de argumentao no deixou de ser questionada26,mas parece ser imprescindvel,j que, sem ela, no seria possvel atuar. A sociologia cons-

    23 Acerca do significado da manuteno da insegurana atravs da colocao da deciso no procedimento jurdico, verNiklas LUHMANN, Legitimation durch Verfahren, reimpresso, Frankfurt, 1983.24 Assim, por exemplo, Robert ALEXY, Theorie der juritischen Argumentation: Die Theorie des rationalen Diskurses alsTheorie juritischer Begrndung, Frankfurt, 1979, seguindo Habermas, e em concordncia com o critrio jurdico-terico ejurdico-metdolgico dominante.25 Ver Rdiger LAUTMANN, Justiz, die stille Gewalt: Teilnehmende Beobachtung und entscheidungssoziologischeAnalyse, Frankfurt, 1972.26 Ver Niklas LUHMANN, Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Stuttgart, 1974, pp.31 ss. e, no contexto de uma discussosobre o sentido americano do liberalismo, Ronald DWORKIN, Taking Rights Seriously, Cambridge Mass., 1978. A subse-qente discusso manteve o critrio da orientao s conseqncias, mas tentou diferenciar. Ver sobretudo Gunther TEUBNER,Folgenkontrolle und responsive Dogmatik, Rechtstheorie, 6, 1975, pp.179-204; Thomas W.WALDE, JuritischeFolgenorientierung, Knigstein Ts., 1979; Gertrude LUBBEWOLF, Rechtsfolgen und Realfolgen, Freiburg, 1981; HubertROTTLEUTHNER, Zur Methode eineer folgenorientierten Rechtsanwendung, em Wissenchaften und Philosophie alsBasis der Jurisprudenz, Beiheft 13 do Archiv fr Rechts - und Sozialphilosophie, Wiesbaden, 1981, pp. 97-118; WinfriedHASSEMER, ber die Bercksichtigung von Folgen bei der Auslegung der Strafgesetze, Festschrift Helmut Coing,Mnchen, 1982, pp.492-524.

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    tatou, de incio, com satisfao que, com a jurisprudncia dos interesses e com aorientao para as conseqncias cresce tambm a demanda de conhecimentoemprico, sociologicamente elaborado. Ao aumentar o distanciamento (inclusive comrespeito a si mesma), a sociologia nota, desde logo, que dessa forma no possvelsatisfazer a demanda. Quem poder dizer, com a segurana necessria, se as conse-qncias que no surgem imediatamente da deciso, produzir-se-o realmente? Quemexcluir que se apresentem conseqncias inesperadas, que podem mudar a valoraoda deciso a posteriori? Quem garantir que a deciso mesma manter-se- de formaconstante? Estas perguntas pertencem ao repertrio standard da teoria da deciso eda sociologia, e no podem ser ignoradas. Se o sistema jurdico, apesar de tudo,pratica a orientao para as conseqncias, fa-lo- sem levar em conta estas reser-vas. Em muitos casos isolados, isto pode ser incuo ou acertado. O princpio tericode que toda justificao pode se concentrar, em ltima instncia, apenas nas conse-qncias, conduz, no obstante, ao paradoxo: o impossvel postulado como neces-srio27.

    Uma segunda reflexo assinala que o princpio de orientao para as conseq-ncias no pode ser generalizado. Ele deve ser reservado para a prtica profissionaldo jurista, e para o trabalho de deciso organizado legislativa ou judicialmente. Setodo mundo se orientasse livremente pelas conseqncias, isto equivaleria a umdestes strange loops28, com os quais o paradoxo atrai a ateno sobre si. Para oconsumidor jurdico cotidiano, as conseqncias dependem, em primeiro lugar, dofato de se ele surpreendido ou no, se o adversrio se decide ao pleito ou no, ouseja, se o sistema jurdico intervm ou no. Isto tambm pode ser formulado como oproblema do free rider. A funo do direito consistiria em excluir o free riding: oaproveitar-se da ordem sem obedec-la. Seria um paradoxo introduzi-lo novamenteno sistema jurdico como clculo juridicamente justificado.

    Como de costume, paradoxo no significa, aqui, impossibilidade no mundoreal ou interrupo da reproduo autopoitica do sistema. Pelo contrrio, precisa-mente o tratamento do paradoxo, a auto-eliminao do paradoxo do sistema, o queinteressa. Se a sociologia, a partir deste ponto de vista, pergunta pelas conseqnci-as desta crescente orientao para as conseqncias dentro do sistema jurdico,duas hipteses se impem: a diferena do sistema entre um trabalho profissionalmen-te organizado e seu pblicotornar-se- mais aguda, e, ao mesmo tempo, produzir-se- uma sobrecarga e insegurana para a prtica jurdica que tem que manter estadiferenciao. Aparentemente, as antigas formas hierrquico-autoritrias da legisla-o e da jurisdio so substitudas a partir do alto por uma nova diferenciao, quepressupe que o povo obedecer s regras, enquanto que os juristas podero modi-

    27 Observe-se que a necessidade do impossvel implica uma inverso lgica da definio de contingncia. Contingente algo que no nem necessrio, nem impossvel, e precisamente isto define, em ltima instncia, a possibilidade da deciso.28 No sentido de HOFSTADTER, ob.cit.: something in the system acts on the system as if it were outside, p,691.

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    fic-las de acordo com suas conseqncias29.

    - V -Em relao ao mesmo sistema jurdico resulta que o paradoxo de sua auto-

    referncia apresenta inexatides na auto-observao, como as que se encontram,freqentemente, nos esboos paradoxais de Maurits Escher. Funciona, no mais dasvezes, mas tambm h elementos significativos que no permitem uma fixao unvoca.Duas tradies importantes do pensamento jurdico ocuparam-se deste problema; eupenso que a sociologia poderia comear uma terceira tradio.

    Sob os uspices do direito natural, foi colocado o problema da derrogao deum direito jusnaturalisticamente fundamentado. Analisaram-se casos como o do rou-bo por necessidade30, o do interesse pblico pela conservao da ordem ou o darazo de Estado, nos quais teve que ser aceita uma infrao do direito normalmentevlido31. Os objetivos da construo vacilavam numa questo: se havia de se aceitarsemelhantes casos como infrao ao direito natural por razes convincentes, ou seseria possvel fundament-los dentro do direito natural, por ex., como limitao dapropriedade ou privilgio do poder estatal (ius eminens)32.

    A tradio da antigidade oferecia, ademais, a possibilidade de introduzir umaespcie de direito amortizador, por detrs do direito propriamente dito, com denomi-naes como aequitas, eqidade. Em todo caso, existia um confronto com o problemada deficincia lgica da ordem jurdica e, pelo menos em casos isolados, com a expe-rincia de que o direito era evidentemente a causa de sua prpria injustia.

    Com uma diferenciao do direito mais intensa e uma sistematizao mais vi-gorosa de sua autonomia, este leque de ofertas de solues parece haver perdido suaplausibilidade. Foi substitudo, como se j se conhecesse Gdel, pela hiptese deque a unidade lgica do sistema no pode ser produzida de forma interna, mas abextra. Este ab extra era, de incio, a vontade e a especial providncia divina33.

    Ao longo da secularizao, este lugar foi ocupado pelo conceito de poderpoltico (que se transladou paulatinamente desde a potesta potentia29 A conseqncias similares, conduzem as discusses sobre a tica utilitarista. Ver, por exemplo, em J.J.C.SMART, Anoutline of a System of Utilitarian Ethicas, em id. e Bernard WILLIAM, Utilitarism.For and Against, Cambridge Engl., 1973,pp.2-74 (42 ss.).30 Ver P.J.MONTES, precedentes doctrinales del estado de necesidad en las obras de nuestros antiguos telogos yjurisconsultos. La ciudad de Dios, 142 (1925), pp.260-274 e 352-361.31 Ver Rodolfo DE MATTEI, Il problema della Deroga e la Ragin di Stato, em Enrico CASTELLI (editor), Cristianesimoe Ragion di stato, Roma-Milano, 1953, pp.49-60.32 A limitao ou a justificao especfica parece ter sido , primeira vista, a soluo jurdica adequada; mas com ela, somenterepetiu-se o problema da inexatido. Havia que se imaginar a concepo jurdica de um carniceiro medieval, no caso de queaqueles que estavam convencidos de terem fome, se precipitassem sobre os mostradores de carne escolhendo as melhorespartes.33 Introduzidos j nos sculos XVI e XVII atravs do conceito da legitimao imediata do poder poltico. A poltica comoesta especial providncia divina em Pedro BARBOSA HOMEN, Discurso de la jurdica e verdadera razn de estado(1629) cit. segundo Pierre MESNARD, Barbosa Homen el la conception baroque de la Raison dEtat, em: CASTELLI(editor), ob.cit., pp.109-116 (113).

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    e vis). Depois da derrocada da estrutura contratual do direito natural, que somen-te pde justificar-se circularmente e no foi capaz de solucionar o problema do direito resistncia, restou apenas a possibilidade de reduzir a origem do direito violnciapura34.

    Kant sistematiza esta idia35. Desde ento, tem-se aceitado a concepo deque a violncia, sem ser juridicamente qualificvel em sua origem, conduz, inobstante,ao estado legal - ou, para express-la em uma formulao mais recente: inogni violenza vi un carattere di creazione giuridica36. Entretanto, a origem naviolncia no compreendida como uma tese histrica que no tenha nada a vercom a atualidade. Se se interpretasse historicamente a tese da origem do direito naviolncia, isto conduziria somente auto-referncia, quer dizer, concepo de que odireito, medida em que se distanciasse de sua origem, deveria constituir-seem origem de si mesmo. No obstante, a violncia um contnuo fenmeno secund-rio do direito, ainda que externo. A partir do ponto de vista do direito, que se utilizada violncia legal e no daquela contrria lei, trata-se da externalizao daquelasdiferenas lgicas do direito, de forma a admitir o paradoxo constituinte. Diz-seassim: que o sistema jurdico pode superar toda classe de imprecises, contradiesestruturais, lacunas, etc., j que, ao final, o poder poltico apia tudo o quese decide. A referncia externa da violncia reintroduzida no sistema como ambigi-dade. A ambigidade vertida nos textos, e com ajuda deles pode-se demonstrarque, no caso concreto, todavia possvel clarear algo. A estrutura profundaque produz as regras e os argumentos , em ltima instncia, o poder juridicamentecondicionado. J que -como no caso do paradoxo-tampouco se pode modificar estefato, somente resta a possibilidade de cuidar da cultura jurdica e envolver aviolncia com as filigranasde figuras idealizadas com esmero, de forma que, em cir-cunstncias normais, somente se chega a decises pontuais que se qualificam oudesqualificam a si mesmas como violncia. Por conseguinte, a vio-

    34 Uma fundamentao cuidadosa (qualquer outra suposio deveria reduzir a origem do direito ao direito mesmo, ou seja,argumentar de forma circular) em Simon-Nicolas-Henri LINGUET, Thorie des loix civiles, ou Principes fondamentaux dela societ, 2 tomos, Londres, 1767, especialmente tomo I,pp.284 ss. Tambm uma das primeiras fundamentaes sociolgicasdo direito: cest la societ qui a produit les loix, et non les loix qui ont produit la Siciet (p.230) e, como argumento contraa fundamentao circular do direito: Toute rgle commune suppose des rapports, et la decouverte de ses rapports, desconaissances; mas celle-ci, do naissent-elles?(p.234).35 Com isto aceita, ao mesmo tempo, a colocao tradicional sob o ttulo acertado Vom zweideutigen Recht ( da justiaambivalente). A eqidade converte-se em um direito sem coero, o estado de necessidade chega a ser uma coero semdireito, e a problemtica se reduz imperfeio lgica do ordenamento jurdico, j que essa ambigidade se baseia no fatode que existem casos de direito duvidoso, para cuja deciso no se pode imputar a nenhum juiz. Citaes do apndice daIntroduo teoria do direito, Metaphysik der Sitten I, segundo a edio de J.H.von KIRCHMANN, Leipzig, 1870, pp.35ss. De forma sistemtica, Kant deduz desta ambigidade uma confuso das razes objetivas e subjetivas da prtica jur-dica. Este fato, por seu turno, basei-a-se no pressuposto duvidoso de que exista um sujeito que sabe diferenciar se suaatuao determinada de forma subjetiva ou objetiva, por coero ou liberdade.36 Eligio RESTA, Lambiguo diritto, Milano, 1984, p,10 ( ogni sublinhado no original).

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    lncia se disfara de discricionariedade, de conceito jurdico indeterminado, de elei-o metodicamente incontrolvel do mtodo de interpretao, apenas devendo-seestar atentos no admisso de demasiadas ambigidades desta categoria37. Emltima instncia, o jurista pode decidir sobre todos os assuntos jurdicos, ainda quenem sempre de maneira especificamente jurdica.

    Tudo isto certo, mas satisfaz a teoria? O fato de se centrar em um ponto devista externo permite opinies a favor e contra o direito. Se se est contra, classifica-se o critrio externo como violncia. Se se est a favor, denomina-se paz. Desta forma,algum pode se enervar indefinidamente. Tambm se descreve, com acerto, areproblematizao da violncia como arte do tratamento da ambigidade. Ainda queno se queira renunciar a semelhantes enfoques, poder-se- perguntar, contudo, seno seria possvel uma ampla teoria que abarque muito mais.

    O problema da auto-referncia paradoxal apresenta muitas facetas que passama se destacar segundo a teoria com base na qual est constituda a auto-referncia;ou -dito de maneira mais geral- segundo seja observada. As duas teorias tratadas - ouseja, a teoria da derrogao e da violncia- perceberam o paradoxo como contradioou inexatido, intentando sua anulao. A sociologia, muitas vezes teoricamente su-perficial, tende a interpretar o paradoxo -por exemplo, o equvoco da violncia- cul-pando a sociedade por sua m configurao38. Com uma teoria que considera a auto-referncia como estrutura constituinte de sistemas, e trata, portanto, os paradoxoscomo um fenmeno real, se chega a pontos de partida completamente distintos. Nes-te caso, o amplo e muito evoludo repertrio da anlise terico-sistmica pode serrelacionado diretamente com o problema da unidade paradoxal do sistema jurdico. Seisto assim, a teoria jurdica pode se integrar em um marco terico mais geral que lhefacilita possibilidades de comparao. Observar, a partir deste ponto de vista, comoum sistema ordena sua auto-referncia, anula seu paradoxo, assimetriza sua simetriarecursiva, faz com que toda soluo deste problema aparea como contingente;inobstante, limita, ao mesmo tempo, como anlise funcional, o enfoque a outras pos-sibilidades, funcionalmente equivalentes. Ento, haveria que perguntar: sob que con-dies especficas podem ser realizadas simultaneamente a abertura e a no aberturado sistema, existindo uma complexidade crescente? Ou, como se pode proteger, con-tra a recursividade, a transformao da redundncia (simtrica) em fundamentaes(assimtricas)? Ou, como possvel apresentar a unidade da diferena entre o jurdico eo no jurdico, ou entre o poder que estabelece o direito e o poder que o mantm (Benja-min) como inexatides relativas no sistema, transformando-as, assim, em operaes dosistema? Ou, que conseqncias podem ser esperadas em caso de fracasso? Ou,

    37 Ver Karl-Heinz LADEUR, Abwgung - ein neues Paradigma des Verwaltungrechts. Von der Einheit der Rechtsordungzum Rechtspluralismus, Frankfurt, 1984.38 No deveramos esquecer que esta classe de sociologia deixa insatisfeitos a maioria dos socilogos e que, portanto, se estrealizando, no mais das vezes, investigao sem um marco terico universal.

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    mais concretamente, que possibilidades tm os terroristas que se baseiam na especu-lao de Benjamin, segundo a qual o povo honra os atos violentos dos grandescriminosos com admirao secreta39?

    Aqui no podemos aprofundar semelhantes posicionamentos. Para terminar,h que mencionar, somente, a pouca importncia que tm para o sistema jurdico.Tambm isto se deduz do enfoque terico que apresentamos aqui. O problema noconsiste no grande abismo que, pressupostamente, existe entre teoria (abstrata) eprxis (concreta). O problema surge diretamente da teoria dos sistema autopoiticos.A cincia se reproduz como cincia, e no como direito. O direito se reproduz comodireito, e no como cincia. A reproduo se realiza no mbito dos acontecimentosfticos elementares, no mbito da comunicao de momento a momento. Isto requerum mnimo esforo estrutural, mas no, ou apenas em raras ocasies, reflexo. Aoaumentar a complexidade, o direito pode desenvolver tcnicas para correlacionarcasos similares, reencontrar decises prvias semelhantes, armazenar tpica ouconceitualmente experincias convincentes; sobretudo, devido formao das no-vas geraes, capaz de desenvolver frmulas de aprendizagem e dogmtica maissistematizadas, que podem englobar, cada vez mais, casos distintos num princpio.Finalmente, pode avaliar os esforos diferenciando a filosofia do direito ou a teoriajurdica, com ajuda das quais se reflete a unidade do sistema, apesar das necessriasdistines internas.

    Tudo isto tem escassa importncia para o renascimento dirio do direito. Emcasos isolados, a teoria pode prestar ajuda para a fundamentao da deciso. Far-se- mais justia a ela se se admitir que ela prpria que elege os casos para reproduzir-se como uma espcie de prxis peculiar. What is necessary for the reproduction oftheoretical practice, a este resultado chega tambm a mesma teoria do direito, is notcontrol of the full run of legal outcomes, but rather continuing domination overparadigmatic or semiotically central events40. A prpria teoria determina os casosadequados, j que ela que, com ajuda das experincias dos casos, h de mudar emdeterminadas circunstncias.

    Se isto vlido para uma relao sistmico-jurdica entre teoria e praxis, tantomais ser para as teorias produzidas pela sociologia ao realizar sua prpria autopoiesis,as quais utiliza para observar o sistema jurdico. Neste caso, trata-se de uma investi-gao para possibilitar uma investigao ulterior, de verdades que podem ser trans-mitidas de modo que, num tratamento posterior, se convertam em verdades ou falsi-dades. O acoplamento institucional, na Universidade, da formao e reproduo deteorias, conduziu a valoraes equivocadas que precisam ser corrigidas urgentemen-te. E, precisamente a sociologia, que deveria conservar um sentido especial para ascircunstncias reais, haveria de compreender tal situao em primeiro lugar.

    39 Ver Walter BENJAMIN, Zur Kritik der Gewalt, em : Gesammelte Schriften, II, I, Frankfurt, 1977, pp.179-203 (183).40 Thomas HELLER, ob.cit.p.189.

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    Baseando-se nestes pressupostos, se pode prognosticar um bom futuro parauma colaborao mais estreita entre sociologia do direito e teoria jurdica. Ambas tmuma enorme necessidade de recuperao no que tange teoria e situao geral dediscusso interdisciplinar. O conceito da teoria dos sistemas auto-referentes supeuma oferta de discusso, no uma oferta de fuso. Teses como a constituio parado-xal e a anulao contingente do paradoxo, a abertura graas ao fechamento, a intro-duo da diferenciao entre sistema e ambiente, o acesso de realidade de um secondorder cybernetics graas observao e outras, fundamentam-se exclusivamente nadiferenciao. No comeam ou terminam a anlise com a unidade, mas sim com adiferena. Baseiam-se, em ltima instncia, numa hiptese, que toda lgica da refle-xo h de pressupor: toda evoluo e construo de uma complexidade mais ricapressupe linhas divisrias e, somente desta forma, pode o mundo observar-se a simesmo.