REVISTA -...

130
REVISTA 39 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE-UFES Janeiro / Junho 2014

Transcript of REVISTA -...

REVISTA

39

Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE-UFES

Janeiro / Junho2014

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Cadernos de Pesquisa em Educação / Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, v. 19, n. 39 (jan./jun. 2014) — Vitória: PPGE, 1995.

130 p. ; 23,0 cm.

Semestral ISSN Impresso: 1519-4507 ISSN Online: 2317-742X

1. Educação - periódicos. I. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.

CDU 37(05)

Periodicidade: SemestralOs artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores.

Direitos reservadosCaderno de Pesquisa em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Educacional da Universidade Federal do Espírito Santo.

Indexada emEDUBASE (UNICAMP)LATINDEX (México)Directory of Open Acess Journal (DOAJ, Suíça)Portal de periódicos UFES (http://peridicos.ufes.br)

Endereço para correspondênciaAv. Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário de GoiabeirasVitória, Espírito Santo, Brasil / CEP 29070-910Telefone: +55 27 4009-2895URL: http://www.periodicos.ufes.br/educacao

Tiragem: 200 exemplares

REVISTACadernos de Pesquisa em Educação - PPGE-UFES

Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE-UFES Vitória, ES a. 11 n. 39 p. 01-130 jan./jun. 2014

FILOSOFIA E RELIGIÃO

Programa de Pós-Graduação em EducaçãoUniversidade Federal do Espírito Santo - UFES

ISSN Impresso: 1519-4507ISSN Online: 2317-742X

a. 11 - v. 19 - n. 39 - janeiro / junho 2014Vitória-ES

Universidade Federal do Espírito Santo - UFESCentro de Educação - CEPrograma de Pós-Graduação em Educação - PPGE

ReitorReinaldo Centoducatte

Diretora do Centro de EducaçãoCláudia Maria Mendes Gontijo

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em EducaçãoCleonara Maria Schwartz

Comissão Editorial- Profª. Dr.ª Cláudia Maria Mendes Gontijo (UFES)- Profª. Dr.ª Cleonara Maria Schwartz (UFES)- Profª. Dr.ª Eliza Bartolozzi Ferreira (UFES)- Profª. Dr.ª Janete Magalhães Carvalho (UFES)- Profª. Dr.ª Regina Helena Silva Simões (UFES)- Profª. Dr.ª Sonia Lopes Victor (UFES)- Profª. Dr.ª Vânia Carvalho de Araújo (UFES)

Conselho Editorial- Prof. Dr. Bernd Fichtmer (Universität Siegen – Alemanha)- Profª. Dr.ª Célia Linhares (UFF)- Profª. Dr.ª Circe Mary Silva da Silva Dynnikov (UFES)- Profª. Dr.ª Denise Meyrelles de Jesus (UFES)- Profª. Dr.ª Diana Gonçalves Vidal (USP)- Profª. Dr.ª Ester Buffa (UFSCar)- Prof. Dr. Joaquim Garcia Carrasco (Universidade de Salamanca)- Prof. Dr. Manuel José Jacinto Sarmento Pereira (Universidade do Minho)- Profª. Dr.ª Maria Teresa Santos Cunha (UDESC)- Profª. Dr.ª Marisa Bittar (UFSCar)- Profª. Dr.ª Myriam Southwell (Universidad Nacional de La Plata)- Profª. Dr.ª Nilma Lino Gomes (UFMG)- Prof. Dr. Paolo Nosella (UFSCar)- Profª. Dr.ª Vani Kenski (USP)- Profª. Dr.ª Vera Lúcia Gaspar da Silva (UDESC)- Prof. Dr. Wenceslau Gonçalves Neto (UNIUBE)

EditoraProfª. Drª. Regina Helena Silva Simões

Editora ExecutivaProfª. Drª. Vânia Carvalho de Araújo

Secretária ExecutivaQuézia Tosta Ribeiro

Assessoria às publicaçõesGleice Pereira - CRB – 284

Correção ortográficaWilberth Claython Ferreira Salgueiro

CapaArtista Plástico: Valter Natal Valim Carlos

Projeto GráficoEdson Maltez Heringer27 98113-1826 - [email protected]

ImpressãoGráfica da Universidade Federal do Espírito Santo

Informações sobre assinaturas, permutas e distribuiçãoE-mails: [email protected], educaçã[email protected]: +55 (27) 4009-2895, 4009-2549

Sumário

Apresentação ............................................................................ 9-14

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização ............15-29 Marise Nogueira Ramos

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja) ..............30-49 Dante Henrique Moura

A historicidade das reformas da educação profissional ......................50-64 Maria Ciavatta

A formação pedagógica na educação profissional .............................65-74 Suzana Lanna Burnier Coelho

Ensino médio integrado: prescrições e realidade .............................76-85 Marcelo Lima Jaqueline Ferreira de Almeida

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva ...................................... 86104 Gisele Ruiz Silva Paula Corrêa Henning

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo .................................................... 105-124 Kallyne Kafuri Alves Correio Valdete Côco

Orientações aos colaboradores ................................................. 125-128

Ficha para assinantes ................................................................. 129

9Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 9-14, jan./jun. 2014

Desde 1997, no auge do decreto nº 2208, que instituiu o fim da integração compulsória da lei nº 5692/71 de diretrizes e bases, muitos trabalhos ligados à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED) foram publicados. Essa produção emerge no sentido de se opor ao processo de desmonte da educação profissional empreendido pelo neoliberalismo dos governos Fernando Henrique Cardoso.

Com o advento do governo Lula, os educadores e pesquisadores críticos ligados à educação engrossaram com suas formulações o movimento pela revogação do decreto nº 2208 e pela elaboração de outra política educacional que possibilitasse o retorno da integração curricular do ensino médio e a educação profissional técnica de nível médio. Em 2004 e 2008, foi criada uma série de novos dispositivos legais que se incorporaram à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394/96 e à Constituição Federal. Nesse movimento, autores começaram a formular análises sobre o currículo integrado. Para tanto, articulavam integrar o ensino médio e a educação profissional técnica de nível médio com as propostas mais progressistas ligadas aos conceitos de formação humana integral, formação omnilateral – educação politécnica para combater o dualismo escolar reinante na educação brasileira.

No Brasil capitalista em que vivemos, a tradição da função social da educação escolar é a de reproduzir os interesses hegemônicos de perpetuação das clivagens sociais próprias da divisão social e técnica do trabalho.Um dos aspectos segmentadores da sociedade está nas várias diferenciações aos melhores níveis do conhecimento tecnológico e científico. O acesso diferenciado a uma educação pública de qualidade social – que incorpora a inserção no mundo do trabalho para todos os cargos e ocupações – pode ser analisado também pelos currículos escolares, aos quais os indivíduos das muitas classes sociais têm acesso ou não.

Para Ramos (2007), a perspectiva mais adequada de formação que vai na contracorrente reprodutiva da divisão social e técnica do trabalho tem a ver com o princípio de educação politécnica. De acordo com Ramos (2005),

Apresentação

Apresentação

10 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 9-14, jan./jun. 2014

“a integração curricular pressupõe que a relação entre conhecimentos gerais e específicos seja construída ao longo da formação, sob os eixos do trabalho, da ciência e da cultura” (p.1).

Ainda com Ramos (2007), a educação integrada ocorre em “um tipo de escola que não seja dual, ao contrário, que seja unitária”, que garanta a todos “acesso à cultura, a ciência, ao trabalho, por meio de uma educação básica e profissional”. Uma educação que “possibilita a compreensão dos princípios científico-tecnológicos e históricos da produção moderna, de modo a orientar os estudantes à realização de múltiplas escolhas” (p.3).

Alguns trabalhos, desde os anos 1990 e 2000, foram elaborados para analisar as condições sociopolíticas que inviabilizaram a integração curricular tendo como objeto de estudo a relação do ensino médio e a educação profissional; outros, ressaltam as possibilidades da integração na rede federal e em algumas redes estaduais.

A integração curricular, no entanto, constitui-se de enorme complexidade pedagógica e epistemológica. Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) reconhecem que a materialização histórica da integração curricular não se esgota nos seus determinantes pedagógicos e escolares, mas se articulam em questões mais amplas da própria sociedade.

Observando as condições históricas de implementação da integração curricular nas redes estadual e federal, podemos perceber, além das virtudes pedagógicas e políticas da integração curricular do ensino médio com educação profissional técnica de nível médio técnico, uma série de obstáculos que dão conta da baixa incidência no número total de matrículas na educação profissional e média como um todo.

Nos campi do IFES, o pouco peso quantitativo das matrículas no ensino médio integrado e as dificuldades pedagógicas e de se integrarem espaços, conteúdos e tempos e, principalmente, pessoas ficaram evidenciados durante o processo de pesquisa. Por esta razão a própria investigação propunha-se a promover a formação docente em sua estratégia de pesquisa-ação.

Neste sentido, com base num projeto de pesquisa-ação-formação sobre a integração curricular do ensino médio à educação profissional técnico de nível médio no IFES, gestado ainda no ano de 2012, mas que veio a ter maior viabilidade em 2013, tendo sido registrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFES com o nº 4198/2013, os textos aqui apresentados decorrem de evento de pesquisa e de formação realizado em outubro de 2013 no campus Vitória.

Apresentação

11Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 9-14, jan./jun. 2014

Durante o “I Seminário Intercampi de Formação Pedagógica para docentes e gestores da Educação Profissional”, de 17 a 18 de Outubro de 2013, os professores doutores Marise Nogueira Ramos, Dante Henrique Moura, Suzana Bournier e Maria Ciavatta – referências nacionais do campo trabalho e educação, apresentaram suas últimas pesquisas e reflexões sobre a temática do evento.

Figura 01 - Cartaz de divulgação do Seminário

Apresentação

12 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 9-14, jan./jun. 2014

Figura 02 - Abertura do seminário 17 de Outubro de 2013 (+/- 300 participantes)

Marise Nogueira Ramos, docente da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Fiocruz) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em “Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização” destaca que o ensino médio é um campo importante de disputa. Para a autora, o sujeito que está no ensino médio é disputado, pois é nele que se manifestam as relações com a ciência, a tecnologia, a divisão social do trabalho. Ramos aborda a conceituação histórica sobre o trabalho e a educação e no contexto das lutas da sociedade, nos anos 1980 no campo das ideias, fazendo a defesa de uma educação politécnica na perspectiva da formação humana omnilateral. No seu artigo, a autora reflete sobre os sentidos da integração e sobre as experiências integradoras que auxiliam na construção de uma formação que contemple o homem em todos os seus sentidos: filosófico, político e epistemológico. Para Ramos, é importante discutir as possibilidades e os limites do ensino médio, os desafios de se fazer integração de modo a tentar superar a dicotomia entre o currículo com foco nas humanidades e um currículo com foco na ciência e tecnologia, tendo assim duas formações: uma profissionalizante e outra propedêutica.

Dante Henrique Moura, docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), no artigo “A Integração

Apresentação

13Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 9-14, jan./jun. 2014

Curricular da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Jovens e Adultos (Proeja)” analisa que a política do Proeja emergiu como um dos projetos contra-hegemônicos para atender à classe que vive do trabalho. Para Moura, o POREJA é uma política que contribui para o acesso dos sujeitos da EJA à uma educação de qualidade socialmente referenciada. Para esta aproximação entre EJA, EPT e educação básica, Moura analisa os projetos societários que disputam a formação profissional, tendo como base o projeto de formação que se tem e o projeto de formação que se quer para a classe trabalhadora. Para o autor, muitos são os desafios a serem enfrentados para conseguirmos integrar a educação profissional com a Educação de Jovens e Adultos, e dentre esses desafios há as implicações do trabalho e da formação docente nos modos de fazer integração.

Suzana Lanna Burnier Coelho, com o texto “A formação pedagógica na educação profissional”, traz um importante debate sobre a formação continuada que, segundo a autora, é o espaço por excelência da formação profissional.Para Coelho, são nesses espaços que compreendemos e aprendemos não só como ensinar, mas também neles há a possibilidade da pesquisa e de termos a prática docente. A formação a ser realizada pelas instituições de ensino não é apenas para ocupar um posto de trabalho. Essa educação deve formar para o mundo do trabalho, para o exercício da cidadania e para as lutas do trabalhador, de modo que os egressos dos cursos possam se inserir no trabalho autônomo, associado e cooperado. E é no espaço de formação continuada que aprendemos e desenvolvemos essas perspectivas.

Maria Ciavatta, professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF), no texto “A historicidade das reformas da educação profissional”, afirma que a educação profissional é o lócus mais visível da educação pelo trabalho, seja no seu sentido técnico e tecnológico, seja no sentido político. Para Ciavatta, a historicidade das reformas da educação profissional informa que a descontinuidade que as caracteriza contribui para que a educação profissional seja utilizada como estratégia de hegemonia política. A autora destaca que, para compreender esse processo, a conceitualização histórica do trabalho e educação se faz necessária. Nesse sentido, para entender os projetos que hoje existem para a educação do trabalhador, é preciso entender as implicações de uma sociedade capitalista dependente, as reformas da educação profissional e seus percalços e as iniciativas contra-hegemônicas.

Apresentação

14 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 9-14, jan./jun. 2014

Junto a estes textos, acrescenta-se o trabalho de Marcelo Lima, Professor Adjunto da Ufes, e Jaqueline Ferreira de Almeida, Técnica Administrativa em Educação desta instituição, com o texto “Ensino Médio Integrado: tensões, desarticulações e articulações”, em que apresentam uma discussão sobre o desenvolvimento de práticas que promovam a formação integral do ser humano e contemple, de maneira indissociável, a formação para o trabalho e a formação cidadã. Para os autores, a integração entre o trabalho e a educação, a formação para o trabalho e para o mundo social exige que se pense no ser humano em todas as suas dimensões. Na perspectiva histórica da educação brasileira, podemos observar a separação entre a formação para o trabalho, que era a educação para os “desvalidos” da sorte, e a formação propedêutica, formação para a vida. A educação geral e a educação profissional estiveram, entre avanços e retrocessos, no contexto histórico brasileiro, interligadas e, ao mesmo tempo, desvinculadas. Nesse sentido, analisam-se os dispositivos da legislação brasileira que tratam sobre o Ensino Médio Integrado a fim de identificar, no âmbito das políticas educacionais, a concepção de articulação entre educação e trabalho.

Além dos textos apresentados no seminário sobre a integração curricular, figuram nesta publicação os textos “as artes de educar” de Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning e “o direito à educação infantil” de Kallyne Kafuri Alves correio e Valdete Côco que nos oferecem importantes reflexões sobre a inclusão escolar e sobre a política educativa na educação infantil. esses textos trazem como principais referenciais teórico-metodológicos Bakhtin e Foucault.

ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DA CONCEITUAÇÃO À OPERACIONALIZAÇÃO

Marise Nogueira RamosEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Fiocruz) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) [email protected]

RESUMOO artigo discute o tema da integração entre a educação básica e a educação profissional, destacando que o ensino médio é um campo importante de luta. O sujeito que se encontra nesta etapa da educação também é disputado, já que é nele que se manifestam as relações com a ciência, a tecnologia, a divisão social do trabalho. Nesse sentido a conceituação histórica sobre o trabalho e a educação no contexto das lutas da sociedade, desde os anos 1980, no campo das ideias, vem fazendo a defesa de uma educação politécnica na perspectiva de uma formação humana omnilateral. Assim é necessário refletir sobre os sentidos da integração e sobre as experiências integradoras que auxiliam na construção de uma formação que contemple o homem em todos os seus sentidos: filosófico, político e epistemológico. Importa aqui discutir as possibilidades e os limites do ensino médio, os desafios de se fazer integração de modo a tentar superar a dicotomia entre o currículo com foco nas humanidades e um currículo com foco na ciência e tecnologia, tendo assim duas formações: uma profissionalizante e outra propedêutica.Palavras-chave: Ensino Médio. Currículo Integrado. Educação Profissional.

ABSTRACTThe article discusses the issue of integration between basic education and vocational education, noting that high school is an important field of struggle. The guy who is in this stage of education is also disputed, since it is manifested relations with science, technology, social division of labor. In this sense the historical conceptions of work and education in the context of the struggles of society, since the 1980s, in the field of ideas, has been making the defense of a

15Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

Marise Nogueira Ramos

16 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

polytechnic education with a view to omnilateral human formation. So it is necessary to reflect on the meanings of integration and the integrated experiences that help in building a training covering the man in all his senses: philosophical, political and epistemological. Matters here discuss the possibilities and limits of high school, the challenges of making integration to try to overcome the dichotomy between the curriculum focusing on humanities and a curriculum focusing on science and technology, thus two formations: a vocational and another workup.Keywords: High School. Integrated Curriculum. Professional Education.

Conceitualização histórica

A década de 1980 foi um período importante para o pluralismo de ideias no Brasil talvez por ser um momento de novas perspectivas no país em virtude do momento histórico em que nos encontrávamos. A literatura remete à década de 1980 às vezes atribuindo a este período a qualidade de “década perdida”. Um outro olhar poderia dizer que não, que a década de 1980 não foi perdida, e sim foi uma década de conquistas, de vitórias. Mas na década de 80 estávamos no processo de redemocratização e de luta social, em que pelo menos dois grandes temas estavam pautados na sociedade em termos de políticas sociais e políticas públicas: o tema da saúde e o da educação.

Na área da saúde, o movimento da reforma sanitária foi “vitorioso”, chegando-se à consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), que figura hoje na Constituição Federal com todas as suas contradições e todos os seus retrocessos vivenciados contemporaneamente.Encontramos na história da saúde no Brasil, que o efetivo movimento social é que conseguiu universalizar esse direito, mas não apenas isso: instituiu também uma organização sistêmica nacional, que é exemplo e referência para diversos países, mesmo com todas as contradições que temos.

O outro grande movimento foi propriamente o da educação, em relação ao qual nós não podemos atribuir o sentimento de conquista. As vitórias ocorreram, mas talvez mais parciais se comparadas com a saúde, já que não conquistamos um sistema nacional de educação. Conseguimos a instituição dos sistemas de ensino federal, estadual e municipal com as suas

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

17Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

autonomias, mas de maneira que ainda hoje esbarra na própria concepção, forma e funcionamento da organização da educação nacional.

De todo modo, destaque-se o vigor intenso da luta social no âmbito da educação na década de 80, que vislumbrava a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e que atravessava a discussão do ensino médio, entre tantas outras questões. A discussão do ensino médio era central por várias razões, sobre as quais refletiremos.

Uma das questões é que, ao se tratar de um movimento em que o sujeito está fazendo a transição da sua vida infantil, adolescente, para a vida adulta, é um momento em que ele é disputado. As concepções em luta na sociedade, disputa o sujeito que está no ensino médio. Porque a formação que ocorre nesta etapa de ensino pela especificidade psicológica desse momento, e também pelo tipo de relação que esta formação tem com as ciências é fundamental para definir a própria sociedade e a configuração social na sua totalidade. É uma fase em que a concepção de educação é muito importante na vida dos jovens. Nessa fase, a relação entre ciência, conhecimento científico e produção, modo de produção da existência, processo econômico, de geração de riqueza, distribuição de riqueza e trabalho, divisão social do trabalho, se manifestam.

Nas etapas anteriores, no ensino fundamental e na educação infantil, a referência que o sujeito tem em relação ao trabalho é uma referência mediada por muitas experiências ou representações. A experiência de trabalho do pai, a representação dopai que sai todos os dias para trabalhar, ou a representação de trabalho da mãe são algumas. Às vezes é o próprio projeto “do que você vai ser quando crescer”, que é uma pergunta irônica. Porque impor e trazer para a fase da infância questões que sequer a vida adulta vai poder responder, de fato, é uma ironia. Mas a relação da criança, do adolescente com a produção, com o trabalho é mediada por suas representações sobre o trabalho. E há também a mediação da relação entre a ciência e o conhecimento formal.

No entanto, o que se tem na escola são possibilidades de discutir a vida produtiva e como um país, uma sociedade divide o trabalho, gera e distribui a riqueza. No ensino fundamental e na educação infantil, a mediação do conhecimento aprendido em relação a essas questões é bastante larga, tendo como referência uma configuração de um olhar médio para a sociedade. Porque se falarmos das crianças que estão desde cedo no trabalho infantil, das classes populares, muito pelo contrário, o trabalho

Marise Nogueira Ramos

18 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

se torna uma referência, e cruel, na maioria das vezes. Entretanto, o que se perde com relação à experiência de trabalho das classes populares: se perde a referência da ciência. Nas classes populares a presença do trabalho é intensa dentro desse contexto, pois a criança está inserida no mundo do trabalho mas perde a mediação do conhecimento, em decorrência de muitas delas não estarem na escola.

Quando o sujeito chega no ensino médio ou mesmo o adulto com uma trajetória regular, a relação entre conhecimento científico, no sentido amplo das diversas ciências, da produção, do trabalho e da divisão social do trabalho, adquire materialidade.

Quando a educação profissional faz parte da formação no ensino médio, essa materialidade ainda se exacerba, porque ela se mostra de forma concreta. Ou seja, manifesta-se objetivamente por meio de um projeto, que é o projeto da profissão. Mas, mesmo que não aja com a educação profissional presente no ensino médio, nessa etapa da educação básica há a associação da relação com o trabalho, com a produção, com a divisão social da riqueza, por meio da preparação para ingresso no ensino superior ou de perspectivas múltiplas para o futuro.

Dizemos isso para entender porque o ensino médio é intensamente disputado pelas classes sociais que estão em conflito na sociedade. E nessa disputa destaca-se um dos aspectos que se relaciona com o ensino médio: a sua finalidade, e o seu lugar na organização da trajetória educacional.

Porque até então nós temos uma organização da educação brasileira que Saviani denomina como de “caráter pendular”: ora ele é profissionalizante, ora propedêutico. Temos também uma característica estrutural, que é dual. Ou seja no Brasil os sistemas se organizam com tipos de formações diferenciadas para classes ou segmentos sociais diferenciados. No caso dos filhos da classe trabalhadora desde cedo todos têm que se preocupar com a produção material da existência, e por isso, não podem perder tempo na escola situação essa que precisa ser superada e não reproduzida.

Esse é o princípio fundamental que ordenou a organização da escola moderna, inclusive com a etimologia da palavra:escola é lugar do ócio. Esse princípio vai se reconfigurando ao longo da história pelo próprio desenvolvimento da ciência, de maneira então que não se podia ter só um ensino. Ou seja, que o ensino das elites não poderia ser só o ensino das artes, das linguagens, mas era preciso também ser um ensino científico.

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

19Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

Mas à medida que se democratizou e se universalizou o acesso de toda a população e de todos os segmentos à escola ela assumiu na história do Brasil duas vertentes diferentes configurando-se a dualidade escolar.

Mas aquilo que nós fomos conquistando de superação da dualidade na forma, na organização formal do sistema de ensino, não se faz automaticamente. Conseguimos superar em alguma medida a dualidade em termos da organização do ensino. No entanto a dualidade tende a se reproduzir por dentro da escola, no seu conteúdo, nas suas finalidades e no destino profissional de cada um onde se define quem é que vai ter um futuro brilhante e quem não vai ter. Quem vai ter possibilidade de alcançar no futuro altos patamares na sociedade a funções de direção e outros que não.

Esse é um aspecto que, por sua vez, é estrutural. E na discussão, no debate, na luta, nos referimos à década de 80 – é que é uma luta ainda atual –, pelo fato de ser um momento em que as possibilidades de conquistas quanto à organização formal do ensino eram fecundas dadas a discussão que estava instalada sobre o novo projeto da LDB. Mas esse debate que se fazia à parte é que nos mobilizava à época, e ainda nos mobiliza, com os dois conceitos que trazemos para reflexão: a “escola unitária”, uma perspectiva ou mesmo uma utopia de superar a escola dual, seja na estrutura, seja no seu conteúdo interno, e a “formação omnilateral”. A escola unitária, então, é a escola que não seja dividida para os segmentos sociais, mas que constrói na relação entre conhecimento e trabalho uma compreensão orgânica de mundo na formação dos seus sujeitos.

Usualmente, a concepção que se tem da escola unitária, de uma formação omnilateral, diz respeito a formulação das propostas de educação a partir da perspectiva dos trabalhadores. Mas na verdade, a concepção de escola unitária defende a formação do sujeito nas suas múltiplas dimensões. Porque a educação da classe trabalhadora se caracterizou por uma dimensão, apenas na dimensão do fazer, enquanto as elites, os dirigentes foram tendo a escola primeiro, no sentido de uma formação que desenvolva as capacidades, as capacidades sensíveis, estéticas e também comunicacionais e científicas.

Uma formação omnilateral tem como projeto e como pressuposto a possibilidade de que o ser humano nos seus momentos de formação que assuas experiências formativas possam ajudar tanto a desvelar e revelar potencialidades que cada um possui, quanto potencialidades que possam ser futuramente desenvolvidas. E que permitam ao sujeito compreender

Marise Nogueira Ramos

20 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

a multiplicidade de conhecimentos e de recursos que a humanidade produziu. Então não é somente a concepção de formação omnilateral, mas também é o desenvolvimento das potencialidades múltiplas. Por exemplo, se perguntarmos aos alunos que fazem parte de um coral na escola técnica, qual deles estuda canto, provavelmente nem todos estudam música fora do coral. Talvez não tenham tomado essa capacidade fantástica de cantar e de sensibilizar e a tenham transformado em profissão – quer dizer, o processo pelo qual ganha materialmente a sua existência, no mundo reconhecido pela sociedade. Mas descobriu essa potencialidade porque a escola permitiu essa materialidade, ou porque alguém já cantava antes de fazer parte do coral da escola.O que queremos ressaltar é a diversidade. Então descobrir e desenvolver a capacidade de cantar, de emocionar, de produzir emoções com requinte técnico, e ao mesmo tempo estar dentro de uma fábrica, e ao mesmo tempo amar e se relacionar socialmente. Ora, essa é a formação omnilateral na sua essência. É isso que nós pensamos da sociedade, e esse é o espírito e a ideia da formação omnilateral, da formação em todos os sentidos.

E esta formação, referindo-se à educação básica e ao ensino médio em particular, implicaria o fato de a educação contribuir para que nós percebamos as nossas potencialidades e possamos estruturar nossas escolhas. Desse ponto de vista, há inclusive uma contradição interna à concepção de ensino médio integrado à educação profissional, porque a escolha do curso técnico e consequentemente da profissão é feita previamente pelo estudante quando ele entra na escola. Há uma contradição, mas é uma contradição que é uma relação dialética. Nessa contradição está inclusive a possibilidade de rever sua escolha, de conhecer algo novo, é necessário para que se possa escolher ou não escolher, e é importante ter essa experiência. Um sujeito que é advogado e que conhece os processos químicos. Outro que é psicólogo e conhece o trabalho árduo, pois fez o curso técnico em mecânica. Este é um sujeito que vai se completando, não queremos dizer que estes sejam mais completos, mas que é um sujeito com múltiplas experiências.

E esse é o sentido filosófico desse conceito de formação omnilateral. E este tipo de formação parte de um princípio que ele próprio revela que é o do trabalho como princípio educativo. Esse é outro conceito desse contexto de lutas da década de 80, que retomamos fortemente nos dias atuais. Porque as nossas reflexões desenvolvidas anteriormente têm a ver

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

21Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

com o trabalho. O cantar, que é imediatamente uma expressão estética e artística, implica um esforço e uma disciplina de uma produção material. Ela é de imediato uma produção simbólica. Nós não podemos pegar a beleza da música nas mãos, podemos até gravar e ouvir em vários ambientes e momentos, mas é uma produção material porque tem o físico. Tem o coração, tem a voz, tem as cordas vocais e tem o produto real que é compartilhado; e esse produto é trabalho. Estar no laboratório, na oficina de mecânica, no trabalho manual, trata-se de trabalho. Pensar nas relações sociais, nos direitos e entrar com elementos jurídicos da vida em sociedade, dá trabalho. Então não tem jeito. Qualquer questão apresentada se vincula a formação humana, pois traz o trabalho internamente. É que normalmente nós nos prendemos na questão do trabalho quando se fala da profissão, do emprego. Mas falar da produção da existência, em todos os sentidos, é falar de como o ser humano, como cada um de nós produzimos a nossa existência ao longo da história e em um dado tempo-espaço histórico-social definido.

Refletimos sobre a escola unitária que busca a superação da dualidade, da utopia e sobre a formação omnilateral e sobre a formação do homem em todos os seus sentidos. Vimos discutindo também da educação que tem o trabalho como princípio educativo e que se pode realizar mediante o projeto de educação politécnica (formação que ensine múltiplas técnicas). A politecnia – como a palavra pode sugerir esse conceito – na abordagem conceptual que estamos trazendo do conceito de politecnia, diz sim do princípio das múltiplas técnicas, mas para expressar uma concepção de educação que visa proporcionar aos sujeitos a compreensão dos fundamentos científicos, tecnológicos, sociais, históricos, culturais, da produção da vida.

Então uma formação técnica pode proporcionar muito bem, por exemplo, uma formação mecânica, os fundamentos da física, e da física aplicada, da tecnologia mecânica e assim por diante; do processo de produção de bens de capital, de máquinas que produzem máquinas ou assim por diante. Então, sim, a mecânica é um processo de produção, e é uma base científico-tecnológica específica da produção moderna na qual podemos proporcionar a compreensão dos fundamentos científicos da mecânica ou da produção baseada na mecânica. Tem-se aí uma formação uma formação técnica de excelência.

Mas a formação politécnica não só visa proporcionar compreensão dos fundamentos dessa base produtiva e do processo de trabalho em mecânica,

Marise Nogueira Ramos

22 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

mas também dos fundamentos sociais, históricos, filosóficos e culturais desse tipo de produção. Se a base científico-tecnológica da mecânica é um produto da primeira Revolução Industrial, devemos considerar o quanto de história, de economia, de política e de cultura há nesse processo.

Há um trabalho do Thompson, um historiador inglês que estuda a formação da classe trabalhadora na Inglaterra, que aborda qual foi o processo cultural, de resistência dos trabalhadores quando o relógio foi introduzido na sociedade inglesa. Porque até então a vida dos trabalhadores era regulada pelo tempo biológico. Acordava-se na hora que precisava, dividia-se o tempo socialmente e comunitariamente, não havendo a separação entre os dias de trabalho e os dias de lazer. Eram organizações que a cultura e a vida em comunidade permitiam. A Revolução Industrial, a revolução da maquinaria introduziu o uso do relógio e mudou completamente a forma de uso e de organização do tempo. Mudou-se a cultura ou produziu-se nova cultura.

Então não existe fosso entre a mecânica e a cultura. Nós o fazemos, e temos necessidade de fazer até para organizar didaticamente nossa abordagem metodológica, mas em seus fundamentos não existem. O desafio é: como trabalhar tais fundamentos de maneira que haja ordem na compreensão? E o trabalho analítico é ter que dividir, mas dividir por necessidade analítica e se faz a síntese novamente. E aqui remetemos à ideia da abordagem integrada dos conhecimentos, mas para referir-se à concepção de educação politécnica, uma concepção que se desafia à formação de sujeitos ancorada por fundamentos de todas as ordens científicas, tecnológicas, culturais, históricas da produção moderna.

E se resgatamos isso a partir da partir da década de 80, o fazemos por um processo histórico de remeter-se a esse período, mas para dizer que essas são as nossas questões não só no tempo passado, mas, também, nos dias atuais.

Ensino Médio Integrado: sentidos

O sentido filosófico de integração converge com a concepção de formação omnilateral e implica na concepção de educação, na organização da proposta curricular, no desenvolvimento do currículo na prática pedagógica, na tentativa de fazer convergir e se integrarem três, que podem ser mais de três das dimensões essenciais da vida. À concepção

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

23Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

de integração nesse primeiro sentido, de formação omnilateral é a de conseguir integrar no currículo, na prática pedagógica, na prática escolar as dimensões fundamentais da vida. Na maior parte integramos a dimensão da ciência. A escola é o lugar da ciência, do conhecimento científico, portanto, a ciência faz parte da escola;ou integramos, às vezes, o trabalho. Em uma escola técnica não possibilidade de não integrar o trabalho em seu currículo. Mas essa integração ocorre de uma forma limitada da concepção do trabalho, que é aquele que se vincula diretamente à sua forma ide lógica e ao propósito econômico. Mas o trabalho também é formação humana. Em outros momentos, integramos a cultura com aulas de dança, arte, música, de química, de física, de biologia etc. E ainda temos a formação técnica para integrar no currículo. Compreende-se assim, que o currículo deve se compor em todas essas dimensões: ciência, trabalho, cultura e tecnologia.

O processo de integração é um desafio permanente, porque há mudanças constantes na configuração social na atualidade, interferindo na constituição do currículo, pois tendo no currículo a ciência e tendo o trabalho, como o compreendemos na formação da própria vida em sociedade? Temos a cultura, trabalhamos integradamente as dimensões, da ciência, do trabalho e da cultura como construir um currículo com a perspectiva de integração, de totalidade ou de organicidade? Porque a composição do currículo se divide de maneira que as disciplinas de química, física, biologia compõem a parte da ciência; as disciplinas da área de humanas até hoje necessitam provar-se como ciência. Com uma visão limitada sobre o que significa as ciências sociais. Sendo um desafio grande a ser enfrentado; a língua portuguesa coloca-se, no currículo, na dimensão das artes e cultura; e o laboratório de mecânica, de química, de informática, é a dimensão do trabalho. Será que fazemos essas dicotomias e essas divisões? Ou apresentamos possibilidades de integrações entre esses universos? Porque a dimensão do trabalho, tendo como base o trabalho como princípio educativo, compreende a profissionalização em seu sentido histórico e objetivo do que seja o trabalho e produzido no processo de organização da sociedade moderna.

Já o segundo sentido da integração é em seu sentido político, e é o que acabamos redundando às vezes numa compreensão formal. Mas nunca será só uma questão de forma, porque é uma questão política. A diretriz da concepção de integração no sentido político é um princípio antes de

Marise Nogueira Ramos

24 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

ser uma prática, pois a educação profissional é indissociável da educação básica. Porque a forma se confunde com a política? Porque é princípio que a educação profissional seja indissociável da educação básica. De modo que não há como a educação profissional substituir a educação básica. Não há como ela ser só uma alternativa, no caso da educação superior, por exemplo, porque ela pressupõe a educação básica. Na realidade brasileira é que a nossa própria sociedade é uma sociedade juvenil, adulta e por circunstâncias da história e também por princípio, da necessidade que o princípio da educação profissional indissociável da educação básica se realize também pela efetivação do duplo direito: o direito à educação básica e à educação profissional. A nossa sociedade exige esse pressuposto da educação profissional indissociável da educação básica, isto é, que ela não prescinde da educação básica.

O terceiro sentido da integração é no sentido epistemológico a tentativa da integração dos conhecimentos numa totalidade. Cultura e Mecânica podem parecer que não têm nada a ver, pois epistemologicamente se desenvolveram por campos diferentes, mas à medida que viram realidade podem se relacionar. A vida humana forma humanidades. O que apresentamos é um desafio e uma proposta para pensarmos que os processos de produção que se constituem por múltiplas mediações. Há múltiplas determinações em qualquer processo produtivo, de base Mecânica ou Microeletrônica. Neles há a dimensão ambiental, social, cultural. Tem-se uma ideia para que possamos pensar coletivamente, para que os docentes possam pensar o currículo partindo do processo de produção que organiza e define o currículo. Deve-se problematizando os currículos nas suas múltiplas dimensões de tal maneira que os conceitos, os conhecimentos, as teorias apareçam como necessários e para chegar-se, então, à organização dos componentes curriculares que podem ser os mesmos que nós temos tradicionalmente no currículo: as disciplinas científicas, as disciplinas das ciências, as artes e as linguagens. Mas, se construirmos o sentido desses componentes curriculares a partir de um debate, de uma análise problematizadora dos meios de produção, tem-se sentido à presença dos componentes curriculares e dos conteúdos de ensino no currículo e o sentido do que é integração. Assim, o professor de geografia, ao saber de história, e de matemática, química e da disciplina técnica estão interligadas os conhecimentos vão adquirindo razão de ser numa perspectiva integrada por dentro da organização do currículo.

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

25Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

Temos a experiência, na Escola Politécnica Joaquim Venâncio, em uma tentativa de fazer convergir os interesses dos estudantes com os interesses da escola, com uma atividade integradora em que os alunos problematizam os conteúdos aprendidos em sala produzindo um curta-metragem. Os alunos do curso técnico em análises clínicas, por exemplo, realizaram um curta-metragem sobre as condições de trabalho do técnico em laboratório. Nada melhor para um estudante do nível técnico do que conhecer, na realidade, como será a sua prática.

Almeja-se a construção coletiva do currículo a partir da problemati-zação dos processos de produção em que os componentes curriculares se entrelaçam por dentro do currículo com o sentido de se fazer essa inte-gração entre trabalho, ciência e cultura. Há a possibilidade de constituir componentes propriamente integradores, e demonstrados de formas cria-tivas, que a realidade pode instigar e proporcionar novos conhecimentos aos alunos.

Mas como atividade integradora que partiu do processo de produção para o qual esses alunos estavam sendo formados do trabalho no laboratório em análise clínica, se fez a discussão social, política e filosófica. Inclui-se também nesse processo um conjunto de questões vinculadas à realidade do trabalho, valendo-se do recurso e do conhecimento de uma formação cultural, de uma formação técnica, mas também de uma expressão cultural que é o cinema, que é o vídeo.

São possibilidades que as escolas têm em suas práticas que possuem experiências múltiplas de projetos integradores. Que se façam as experiências e que se manifestem as potencialidades que nós temos: aquilo que nós trazemos, da nossa visão de mundo, do nosso conhecimento e organizar as ideias, e ter como apoio a teoria, os conceitos já elaborados sobre o processo educativo, o processo social, e avançar nos limites da nossa sociedade, na construção de projetos educacionais, que, do nosso ponto de vista, têm o cerne emancipador bastante fecundo.

Considerações finais

Diante de tudo, nos perguntamos quais escolas conseguiram fazer funcionar plenamente o currículo integrado. Talvez nenhuma, e nunca haverá uma escola que consiga implantar o currículo integrado em sua

Marise Nogueira Ramos

26 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

totalidade. Porque menos do que uma forma, ou um formato, ou um modelo, a integração é um processo que se constrói no fazer cotidiano da escola. Até os dias atuais temos tentativas de integração e tentativas de instituições que se organizam visando avançar mais nesse projeto integrador. Exemplos de instituições que explicitamente compactuam e têm construído o currículo integrado em sua essência há poucas, mas podemos citar a experiência do campus Chapecó, do Instituto Federal de Santa Catarina, que chegou a fazer um desenho curricular bastante ousado, que resultou em um grande debate dentro da instituição. Inclusive, nessa experiência, não tem uma configuração disciplinar, o trabalho é realizado por meio de eixos norteadores, e tem uma inspiração no projeto integração da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Esse projeto foi desenvolvido dentro de um Instituto que possuía um campus novo. Por isso, então, começaram do zero e têm construído o currículo nessa perspectiva integradora.

Uma primeira abordagem para que possamos refletir é que um currículo integrado é um processo e uma construção histórica. A ideia que usamos de que já fazíamos o integrado ou uma volta ao integrado, isso é uma das expressões que vêm da força da nossa experiência, mas demanda certa precisão. Antes tínhamos um currículo que possuía um formato que colocava formação geral e formação técnica em um mesmo percurso, mas a integração é um processo que se construía na própria relação e no próprio debate. Não existia propriamente uma formulação ou uma concepção nesse sentido. Entretanto, o fato de os conhecimentos serem trabalhados de forma organizada, sistemática e aprofundada e tais escolas terem construído essa contra-hegemonia, de ter componentes curriculares que normalmente não existiam em outras escolas, foi uma experiência interessante de construção de projetos de integração.

Nos dias atuais queremos dar um passo a mais, que é o debate que se fazia na época da educação tecnológica, nas conferências ainda na década de 90, da concepção de educação tecnológica que foi abortada pela reforma do presidente Fernando Henrique. Essa é a perspectiva que colocamos hoje. Porque acreditamos que há possibilidades de avanços, primeiro porque nós temos trabalhado na construção de uma concepção que é sempre horizonte.

Ou seja, temos algum horizonte que nos orienta. Sabemos que é um horizonte, uma utopia, um pouco da ideia do Galeano, que é a utopia que nos ajuda a caminhar. Então acreditamos que estamos avançando

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

27Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

com relação a isso, historicamente. Porque a história é idas e vindas, o processo de retrocesso nunca é igual como antes. Estamos no passo a mais porque temos buscado superar tanto essa fragmentação quanto tentando colocar, diferentemente da experiência da Lei 5692/71, de não hierarquizar as disciplinas e com isso selecionar, discriminatoriamente, as ciências, dizendo que matemática é mais importante do que sociologia e ter mais aulas de matemática do que de sociologia. E fora o princípio que existia também na Lei 5692/71 de que a educação geral era instrumental para a formação técnica. Por isso, havia duas formas: o 2º grau profissionalizante e o 2º grau propedêutico. Porque a formação geral no profissionalizante era instrumental. Hoje nós vemos como as práticas humanas são tão interessantes que nós conseguimos reverter muito de uma concepção que era uma concepção que visava à formação mais estreita. Hoje, além das contradições, que são fecundas, ainda há a tentativa de uma criação sistematizada. Portanto, temos possibilidades de avançarmos em uma perspectiva educacional menos estreita.

A interdisciplinaridade é uma necessidade e até uma estratégia também, nesse sentido de integrar. Mas temos casos bastante interessantes em que vão se aumentando os níveis de interdisciplinaridade, conseguindo superar a dualidade. Há movimentos que vão se confrontando com o currículo tradicional de modo que se faz aquilo que talvez nós saibamos: a boa matemática, história, geografia, filosofia e demais disciplinas, e buscando superar o princípio da hierarquização e da discriminação, e esses princípios só se superam se nós entendermos o sentido de ser das disciplinas do currículo. Falamos isto no sentido epistemológico da integração, de construir processos integradores, que é o desafio do conjunto docente. Temos tentado construir concepções e práticas que às vezes são contraditórios, mas menos relevante é o modelo e mais relevantes são os movimentos.

A práxis como princípio educativo, pois o trabalho é práxis, a relação é trabalho e práxis. O trabalho, nessa concepção, de alguma maneira se confronta com a que é histórica na referência teórica da construção desse trabalho como princípio educativo. Entramos, então, no sentido político da Pedagogia em que a práxis é política e que a práxis é social e construindo outra compreensão da sociedade e do projeto da sociedade. E entraríamos em questões que para nós estão presentes no pensamento de Gramsci, que são os processos organizativos, políticos e pedagógicos da escola,

Marise Nogueira Ramos

28 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

e processos organizativos políticos que transcendem a escola, a organização política da categoria dos professores, a organização e a mobilização comunitária, e assim por diante. E nisso entra um aspecto institucionalizado que também pode se aprimorar, intensificar na relação extensionista ou da escola ou dessa relação escola-comunidade.

Temos que começar, com as possibilidades que temos, seja no tempo disciplinar, mas o importante é começar. Acreditamos que há o ardil de se pensar. Ela é disciplina em si e ela também tem potencial, assim como todas as outras disciplinas, de integração. Temos que ter cuidado em afirmar que as ciências sociais são mais potencialmente integradoras do que as demais. A integração não tem uma disciplina que é o carro-chefe. Ela é um processo de convergência da compreensão de fundamentos científicos, tecnológicos, históricos, sócio-culturais dos fenômenos. Então não tem uma disciplina que desencadeia a integração. Agora, sem dúvida, o que nós temos de potencial é o fato de nós termos profissionais da Sociologia, da Filosofia trabalhando nos IFs, como professores, e que nós temos o reconhecimento da necessidade da especificidade no plano da construção, quer dizer, na construção da integração e do diálogo. Há um papel-chave que esta disciplina cumpre, também junto com as demais. E aí nós temos que romper barreiras de preconceitos – nós sabemos que há muitas.

Referências

BRASIL. Lei Federal nº 5.692, de 11 de Agosto de 1971.Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 12 de agosto de 1971.

BRASIL. Lei Federal nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996.Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União: Brasília, 23 de dezembro de 1996.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Civi-lização Brasileira, 1978.

RAMOS, Marise Nogueira. Possibilidades e desafios na organização do currículo integrado. In: Ensino Médio integrado: Concepções e mudanças. FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise (orgs.). São Paulo: Cortez, 2005. p.106-127.

Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização

29Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15-29, jan./jun. 2014

RAMOS, Marise Nogueira. Currículo Integrado. In:PEREIRA, Isabel Brasil; LIMA, Júlio César França (orgs.). Dicionário da educação profissional em saúde.2.ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008.p.114-118.

SAVIANI, Dermeval. Trabalho e Educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 12, n. 34, 2007, p. 152-165.

THOMPSON, Edward P. La fomacion historica de la clase obrera. Inglaterra, 1780-1832. Barcelona: Editorial Laia, 1977.

30 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

Dante Henrique MouraInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) [email protected]

RESUMOO presente artigo analisa a política do PROEJA que emergiu como um dos projetos contra-hegemônicos para atender à classe que vive do trabalho e propõe uma contribuição à busca da educação de qualidade socialmente referenciada como direito igualitário a todos. Para esta aproximação entre Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional e Tecnológica e educação básica, analisam-se os projetos societários que disputam a formação profissional, tendo como base o projeto de formação que se quer para a classe trabalhadora. Muitos são os desafios a serem enfrentados nesta integração, dentre eles as implicações do trabalho e a formação docente nos modos de fazer integração.Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos. Ensino Médio. PROEJA.

ABSTRACTThis article analyzes the PROEJA policy that has emerged as a counter-hegemonic projects to meet the class that lives of work and proposes a contribution to the pursuit of socially relevant quality education as equal rights to all. For this approach between Young and Adult Education, Vocational and Technological Education and basic education, analyzes the social projects vying for vocational training, based on the training project that you want for the working class. There are many challenges to be faced in this integration, including the implications of the work and teacher training in ways of doing integration.Keywords: Adult and you theducation. Professional education. PROEJA.

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

31Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

Introdução

Vivenciamos um momento de ameaça, de um refluxo na perspectiva da integração entre a educação básica e a educação profissional, inclusive na modalidade de Jovens e Adultos (EJA) em face das opções políticas que o governo brasileiro tem adotado recentemente. Nesse sentido, uma discussão importante é sobre a importância política dessa perspectiva de integração para uma aproximação entre educação básica, educação de jovens e adultos e educação profissional. Cabe uma reflexão sobre a importância política da manutenção e da ampliação da oferta do ensino médio integrado à educação profissional, tanto para os adolescentes no ensino regular, quanto na modalidade da EJA. Diante do exposto, partimos para problematizar os projetos que estão em disputa.

Nossa reflexão será organizada nos seguintes aspectos: 1) Os projetos societários em disputa e o papel que cabe à educação nos referidos projetos; 2) Educação básica e educação profissional: tradições e culturas que os aproximam e os separam; 3) O desafio de integrar EJA e EP e as implicações para o trabalho e a formação docente na perspectiva da integração e aproximação da EJA e da EP.

Os projetos societários em disputa e o papel da educação

Não há, no campo da educação, a possibilidade de neutralidade. A ação educativa está intrinsecamente vinculada a um projeto político, a uma questão política, e, portanto, ela contrapõe-se a um projeto que está estabelecido ou irá fortalecer esse projeto. O discurso técnico, de que se pode fazer uma educação de qualidade fundamentada em um determinado conjunto de conhecimentos e técnicas para transmitir esses conhecimentos, é falacioso. Porque, no momento em que se assume a neutralidade e existe um projeto que é hegemônico, a neutralidade tende a fortalecer o projeto hegemônico e, portanto, a “neutralidade deixa de ser neutra”. Por isso não se pode pensar em uma posição neutra na educação. Existe, essencialmente, uma posição política quando fazemos essa discussão.

E, nessa perspectiva, há vários projetos educacionais. Para sintetizarmos, colocaremos fundamentalmente dois projetos para servir de pano de fundo às nossas discussões: o projeto hegemônico, que tem a centralidade na dimensão econômica, e, portanto, o que interessa é o capital e onde o

Dante Henrique Moura

32 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

mercado atua como elemento mantenedor dessa dimensão econômica como sendo a dimensão central em todas as formas de sociabilidade humana. Para esse projeto, o papel da educação é formar para o mercado de trabalho, formar para atender aos interesses do mercado de trabalho.

Atendendo a esses interesses, o mercado cumpre essa função de manter a centralidade da dimensão econômica em todas as formas de sociabilidade humana. Portanto, o papel da educação em geral, e em particular da educação profissional e da educação de jovens e adultos também, é formar pessoas com a maior competência técnica possível para fazer esse mercado de trabalho funcionar da maneira mais “aceitável” possível na perspectiva de manter a centralidade na dimensão econômica.

Nessa crítica, não defendemos a incompetência técnica, pois ela é necessária, mas não é suficiente para um projeto societário alternativo, que é a nossa próxima reflexão: um projeto societário no qual – ao invés de a centralidade estar na dimensão econômica tendo o mercado como elemento de garantia que a dimensão econômica continue sendo central, e submete, portanto, a concepção de sociedade, a concepção de ser humano, de trabalho, de ciência, tecnologia e de cultura aos interesses dessa dimensão econômica e, assim, aos interesses do capital –a centralidade não está nessa dimensão, mas na dimensão humana.

Quando colocamos a centralidade na dimensão do ser humano, não significa desprezar a dimensão econômica, não significa ter uma educação que não vá formar pessoas com a competência técnica. A questão é onde está a centralidade. Para esse projeto, que a nosso ver interessa à classe trabalhadora, interessa a quem vive do próprio trabalho, o papel da educação vai além da competência técnica, mas não a despreza e não a nega. A competência técnica é um elemento fundante, mas não é onde reside a centralidade.

A centralidade está nos sujeitos que podem ser competentes tecnica-mente, mas que também compreendem a sociedade onde estão inseridos e percebem em que relações de poder fazem parte. Também sabem qual o papel da ciência, e a quem interessa determinado tipo de produção do conhecimento, de ciência e de tecnologia, a quem interessam as relações de poder e que dominação existe na sociedade.

A perspectiva formativa do ser humano emancipado e autônomo é essa que não nega a dimensão técnica, mas que não se reduz a ela. É a partir desse contexto e a partir dessa visão, dessa possibilidade de luta

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

33Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

por avançar na direção desse projeto formativo autônomo, que orientamos nossas reflexões.

O pressuposto que adotamos é o que aproxima a educação básica, a educação profissional e a EJA como contribuição à busca da educação de qualidade socialmente referenciada como direito igualitário de todos.

No aspecto da legislação, as lutas por uma educação básica se formalizam na Constituição Federal de 1988, que traz o ensino fundamental como direito subjetivo. Interessante e contraditório é que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), aprovada após a Constituição, traz o conceito de educação básica. Essa inclui o ensino médio, última etapa da educação básica e coloca a educação básica como direito a todo cidadão e que visa preparar a todos para o exercício pleno da cidadania e para a inserção no mundo do trabalho.

Esse direito, incluindo o ensino médio, não figura na Constituição. Só garante como direito subjetivo o ensino fundamental. Então o ensino médio para a LDB, em 1996, é colocado como etapa fundamental da educação básica, ou seja, é o nível mínimo de ensino que todo cidadão deve ter direito, mas esse direito não está garantido na Constituição. Tal fundamento foi revertido com a Emenda Constitucional 59 e ainda com algumas questões que abordaremos adiante.

Ainda do ponto de vista legal, em 1996, o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) exclui a EJA da garantia dos recursos do Fundo. Mas em 2007 o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) inclui a EJA na garantia dos recursos públicos para a educação, mas de uma maneira subalternizada. Neste caso, as regras que definem que para a EJA os valores são menores do que para o ensino médio regular . Há muita pressão e muita discussão, para a equiparação nos fatores que definem os recursos para os níveis e modalidades da educação. Isso mostra, claramente, dentro desses projetos de disputa em que estamos inseridos, qual a posição que cabe à EJA.

A Emenda Constitucional 59 nos traz um avanço importante, que é o de recuperar a questão posta na LDB, que não contemplava o Ensino Médio como direito de todos. A emenda estabelece que a educação básica é obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos, esperando que 17 anos seja a idade que os adolescentes irão concluir o Ensino Médio, portanto, vão concluir a educação básica. No entanto, ao se realizar esse recorte por idade e não

Dante Henrique Moura

34 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

por etapa educacional, o que ocorre com os sujeitos da EJA e com todos os sujeitos que chegam à idade de 17 anos sem concluir o ensino médio: eles ficam de fora dessa obrigatoriedade e dessa garantia. Esse é um elemento sobre o qual devemos pensar:quando se estabelece o recorte por idade e não pela garantia de todos. E a síntese que fazemos, mesmo no plano legal, nós não temos a garantia de que esse direito efetivamente se materialize, porque há uma diferença entre o plano legal e a materialidade concreta.Ainda não temos, claramente delineado, o direito igualitário de todos à educação. Nem no plano legal e nem na materialidade concreta.

EJA e EPT: tradições e culturas

A Educação de Jovens e Adultos tem sua tradição na colônia, e no império estava sob a responsabilidade dos religiosos, para difusão do evangelho, e era uma educação vinculada à difusão ideológica:o sujeito devia o respeito e a obediência tanto ao colonizador português, como também aos ofícios rudimentares para o trabalho.

A Constituição de 1824 previa instrução primária obrigatória e gratuita para todos os cidadãos, mas essa garantia ficou apenas no plano legal. Assim na Primeira República, com a organização federativa do estado brasileiro, 72% da população acima de 5 anos, em 1920 era analfabeta. A partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, logo após a 2ª Guerra Mundial, há uma influência e uma profusão muito grande de programas destinados à educação de jovens e adultos.

Embora seja importante reconhecer a importância para uma população que não possuía nenhum direito à educação, nesse processo se estabelece uma lógica de ação via programas e campanhas, característica essa enraizada permanentemente na política educacional brasileira. Até hoje continuamos com a lógica dos programas e das campanhas, que são pontuais, com começo, meio e fim e que na maioria das vezes resulta apenas em relatos de experiências muito importantes, mas que não se materializaram enquanto política pública.

É preciso que tenhamos muito cuidado para que não sejamos sujeitos de um projeto semelhante a esse com o PROEJA. Experiência que apenas nos relatos foi uma política muito interessante e que apontava na perspectiva da formação humana da integral. Mas que, igualmente às outras experiências, se acabaram enquanto programas, enquanto campanhas e

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

35Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

não se materializaram e não se concretizaram enquanto política pública. Por fim temos a Conferência de Hamburgo, em 1997, que busca esse novo sentido da aprendizagem, da leitura e da escrita, no direito da educação continuada independentemente de educação formal.

Os desafios de integrar EJA e EPT e as implicações para o trabalho e para a formação docente nesta integração

As implicações dessa tradição de programas e projetos para a EJA é que as experiências ficam localizadas e não conseguem se enraizar enquanto política pública, o que resulta em uma educação compensatória. Temos um papel importante nesse processo para que a integração entre educação básica e educação profissional na modalidade de EJA não seja mais um desses programas, desses projetos, episódios periódicos com começo, meio e fim, e tenha como resultado, posteriormente, em relatos de grandes experiências experimentadas no campo da EJA, mas que não conseguiu se materializar enquanto política pública.

Nesse contexto, Maria Margarida Machado nos traz em seu texto publicado na revista Retratos da Escola, em 2010, uma série de dados que nos remete à conclusão sobre a população da EJA no país: há mais de 138 milhões de pessoas com mais de 18 anos de idade no país, e, dessas, 101 milhões não concluíram a educação básica. E se considerarmos as pessoas que não concluíram a educação básica e que estão acima de 60 anos, essas pessoas ao buscarem por uma oportunidade no campo educativo, obrigatoriamente não irão para a educação regular.

Ao realizarmos o recorte da população para a idade entre 18 a 59 anos, nós teremos 80 milhões de pessoas que não concluíram a educação básica no Brasil. Portanto, a EJA não pode ser tratada de forma residual, por meio de programas, projetos, campanhas eventuais, episódicas e periódicas. E isso não é algo que podemos deixar de discutir dentro da rede à qual os Institutos Federais pertencem, e que passa por um processo de expansão jamais experimentado.

A expansão não pode se restringir apenas à oferta direta da instituição, mas por meio da capacidade que os Institutos têm e pela qualidade que têm hoje de interagir, em cada um dos municípios onde se localiza, com as redes públicas do Estado e do município. A partir dessa interação, em um processo efetivamente de diálogo, de interação com as redes públicas dos

Dante Henrique Moura

36 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

estados e dos municípios, deve-se avançar na perspectiva do Ensino Médio Integrado à educação profissional, no caso do PROEJA o ensino médio, e do ensino fundamental integrado à formação inicial e continuada no caso do PROEJA – FIC (Programa de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Formação Inicial e Continuada).

Mas antes de termos essa capacidade de interagir com as redes estaduais e de efetivamente avançar na perspectiva do regime de colaboração que está previsto na Constituição e na LDB através de ação conjunta de universidades, Institutos Federais, redes estaduais e municipais, é preciso internamente, também, que os Institutos, de uma maneira geral, discutam para saber qual é o projeto educacional nos IFs.

Devemos discutir, no âmbito dos Institutos, em qual perspectiva formativa que iremos avançar na EJA: é na perspectiva do PROEJA ou é na perspectiva do PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego)? Qual é a concepção que irá assumir? É a concepção do mercado ou é a concepção que não despreza o mercado, mas que não se subordina ao mercado? Essa discussão ninguém pode fazer pelos sujeitos dos IFs, são os sujeitos dos IFs que terão que fazer essa discussão e assumir coletivamente qual é o projeto que irá perpassar os IFs, de maneira geral, e os seus campi. Essa discussão tem que existir, para saber qual a identidade do Instituto e qual são o caminho que irá seguir na construção do projeto de educação.

Diante desse quadro, a compreensão que temos é que o papel dos IFs é extremamente importante em uma determinada direção em prol da classe hegemônica. Mas ela pode ser assumida em outra direção – a que privilegia a classe trabalhadora. Apesar das políticas governamentais terem um papel importante, há um distanciamento entre o que sinaliza a política e o que se materializa dentro de cada instituição, de cada sala de aula. Porque a nós, da educação, ainda nos resta um espaço de autonomia que é o espaço da construção a qual é garantida por lei a autonomia didática, pedagógica e administrativa dos Institutos.

Neste sentido, apesar da implementação do PRONATEC, podemos caminhar em uma direção que não seja exatamente aquela que o programa prevê. Pode-se até utilizar do PRONATEC para fazer algo que não está previsto dentro daquela concepção que ele preconiza. Mas esse caminho só será delineado a partir de uma determinada compreensão de sociedade, de formação humana, que seja pactuada dentro da instituição.

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

37Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

De um modo geral, o docente que está na EJA é comprometido, ética e politicamente com o sujeito da EJA. O docente que atua na EJA atua em uma verdadeira militância. Entretanto, do ponto de vista da formação, não há uma formação em geral para atuar na EJA. Podemos dizer que grande parte dos cursos de licenciatura não possui o campo da EJA como campo importante de estudo nas licenciaturas. Os cursos de Pedagogia possuem mais estudos na e sobre a EJA, mas nas licenciaturas em geral esse campo de estudo é marginalizado. E os cursos para estudar a EJA ficam para depois da formação inicial, na pós-graduação Mas um licenciado quando se forma e vai atuar na rede estadual ou na rede municipal e assume uma turma da EJA sem ter passado por esse conhecimento. O mesmo ocorre com o campo da Educação Profissional, e, nesse aspecto, a EJA e a EP se assemelham, pois esses dois campos da educação brasileira são marginalizados.

Algo que é importante avançar no campo da EJA é a perspectiva da formação docente, de modo que as licenciaturas incorporem esse conhecimento como sendo um conhecimento central. Como iremos enfrentar essa situação de 80 milhões de pessoas que potencialmente podem estar procurando a educação escolar para concluir a educação básica, que é um direito adquirido, se os nossos professores em sua maioria, ao serem formados, não têm a EJA como campo importante de conhecimento?

A EP, até a 1ª metade do século XX, fundamentalmente era composta de conteúdos práticos, instrumentais, de caráter profissionalizante e era destinado às classes populares. Ou seja, os filhos daqueles que ocupam uma posição mais elevada na hierarquia sócio-econômica iriam para um determinado tipo de escola de ensino acadêmico, para depois fazer o ensino superior; e aos filhos das classes populares destinava-se uma formação instrumental para o mundo do trabalho.

A partir dos anos 1970 há uma mudança significativa nessa configuração com a profissionalização obrigatória do 2º grau, por meio da Lei 5.692/71, que traz mudanças importantes para a educação brasileira e para essa relação com a educação profissional. Embora o discurso da lei seja o discurso de que todos têm que ser tratados iguais e todos têm que conhecer a realidade do mundo do trabalho, as pesquisas posteriores mostram que essa não era a intencionalidade com a profissionalização obrigatória.

A intencionalidade era o que se efetivou na realidade a exacerbação dessa dualidade: as escolas privadas simplesmente não atenderam ao ato

Dante Henrique Moura

38 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

legal e continuaram fazendo o seu ensino médio propedêutico e, quando muito, os convênios de intercomplementariedade, para fazer de conta que estavam cumprindo a lei. As escolas estaduais, por força da lei, foram obrigadas a cumprir o dispositivo legal. Mas a implementação da lei 5692, não veio acompanhada das condições materiais para concretizar a educação profissional, ou seja, laboratórios, instalações físicas, infraestrutura de um modo geral, corpo docente.

Desse modo, a opção das redes estaduais foi majoritariamente por aqueles cursos que exigia pouco ou nenhum investimento material para viabilizar a educação profissional. Nesse contexto, nas escolas técnicas federais houve investimento, contratação de professores, montagem de laboratórios para atender àquele modelo de desenvolvimento sócio-econômico dos governos do regime da ditadura civil-militar, que produziu uma proliferação de cursos nas áreas chamadas duras: eletrotécnica, mecânica e estradas, com destinação de recursos e com construção de laboratórios, criando-se uma barreira e uma distância entre a realidade educacional das escolas técnicas federais e a realidade educacional das redes estaduais e municipais.

Quando chegamos aos anos 1990, depois da aprovação da LDB em1996, nas redes estaduais havia pouco da educação profissional. O que ocorreu foi que nesses 30, 40 anos, há um aumento muito significativo da oferta nas redes estaduais de ensino médio e esse crescimento do ensino médio no Brasil ocorre fundamentalmente nas redes estaduais pela via do ensino médio “propedêutico”, que não consegue ser propedêutico porque ele não prepara efetivamente para o prosseguimento de estudos.

Esse fenômeno Acácia Kuenzer denomina de “dualidade invertida”. Ao invés de termos a educação que tínhamos até a segunda metade do século XX, uma educação destinada para as classes populares com aquele ensino instrumental dissociado da elevação da escolaridade, o que nós temos agora é a grande maioria dos jovens das classes populares estão nas escolas para fazer o ensino médio propedêutico nas redes estaduais, e não estão fazendo formação profissional, estão fazendo o ensino médio propedêutico. Mas não aquele ensino médio efetivamente propedêutico.

Nesse contexto, nos anos 1990, ocorre a separação obrigatória entre educação básica e educação profissional, trazendo efeitos perversos para a educação brasileira. Nos anos 2000, a partir de 2004, nós temos uma nova possibilidade de aproximação entre educação básica e educação

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

39Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

profissional, com a revogação do Decreto 2.208/97, e a vigência do Decreto 5.154/04. Mas essa possibilidade de integração ocorre no marco legal que é diferente do que se materializa e se concretiza na prática.

As implicações da tradição no campo da educação profissional para a docência e para o campo

A implicação que temos é a concepção instrumental de educação, ou seja, formar para o mercado. Essa lógica se materializa muito bem dentro das instituições da rede federal, quando há uma separação muito clara entre os docentes que trabalham nas disciplinas de formação profissional e os docentes que trabalham nas disciplinas de formação geral. A separação se manifesta de maneira muito forte dentro das instituições em função dessa tradição de educação instrumental. A docência, para essa tradição, para essa racionalidade é transmitir conteúdos exigidos pelo mercado visando à empregabilidade.

Outra implicação é a concepção de formação restrita a essa instrumen-talidade. Importa-se pouco com os seus sujeitos e a relação entre eles e os conhecimentos. A ênfase está no que ele precisa saber para supostamente se inserir no mercado de trabalho. Supostamente se tem um determinado conjunto de conhecimentos ou de competências que possuem uma maior possibilidade de empregabilidade. Essa é a lógica que sustenta essa concep-ção de docência nesse campo da educação. Parte-se de um pressuposto de conhecimentos, assumindo-se quais os conhecimentos o sujeito deve possuir as competências que ele tem que ter e, independente do sujeito, ele deve possuir determinadas competências para se inserir no mercado. Isso gera uma tensão muito importante quando o sujeito da EJA entra nas escolas da rede federal, porque é outra relação que deve se estabelecer.

Essa é uma tensão importante que se vivencia atualmente nas instituições escolares, pois a formação de professores para o campo da educação profissional é relegada a um plano inferior, emergencial, supletiva, precarizada, e a programas especiais de formação pedagógica. Ainda hoje vivenciamos essa realidade na formação de professores para atuarem na educação profissional. Não existe, apesar de estar em discussão há vários anos no Conselho Nacional de Educação, Diretrizes Curriculares para formação de professores no campo da educação profissional acarretando prejuízo na formação de docentes para atuarem na educação profissional.

Dante Henrique Moura

40 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

A aproximação entre a Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional

Esses movimentos de idas e vindas contraditórios, dialéticos, nos trazem para um movimento aproximador. Nos trazem a possibilidade de aproximação entre a educação profissional e a educação de jovens e adultos, a partir do programa PROEJA implementado nos anos 2000. No entanto, não podemos confundir o PROEJA com a integração entre a educação profissional e a EJA. O programa PROEJA é um programa voltado para esse campo, mas não é a única possibilidade. O importante seria que nós avançássemos na materialização da integração e que esse nome fantasia “PROEJA” viesse a desaparecer. E os IFs, por exemplo, assumissem efetivamente como parte de sua ação educacional a integração entre o ensino médio e a educação profissional na modalidade de EJA não como programa, mas como algo que faz parte da ação educacional da instituição.

O que nós temos de aproximação e de potencialidades para o fortale-cimento mútuo da EP com a EJA são alguns elementos, que consideramos importantes.

Como o adulto é o ser humano no qual melhor se verifica sua condição de trabalhador, pois criança não é para trabalhar, e as pessoas na terceira idade também não, na fase adulta somos essencialmente sujeitos de trabalho. E o trabalho está relacionado, na nossa sociedade, com o exercício de alguma profissão. Isso potencializa essa relação entre a EJA e a EP. A questão é como essa profissionalização vai ser vista. Se vai ser vista para os limites estreitos para atender às exigências do mercado ou se na perspectiva da formação humana integrada.

A categoria trabalho está posta para o sujeito adulto. Mas a questão está em como ela vai aparecer e em como vamos planejar e desenvolver currículos que visem à integração entre educação básica e educação profissional na modalidade EJA. Qual perspectiva formativa e como a categoria trabalho se materializará nesse currículo.

Outro elemento é que a educação profissional está intrinsecamente vinculada ao mundo do trabalho. Ao adulto cabe a produção social, a direção da sociedade e a reprodução da espécie. E nesse sentido há certo preconceito de que, quando o sujeito chega na fase adulta e tem um nível de escolarização baixa, se confunde essa escolarização baixa com um sujeito frágil dentro da sociedade. Mas a produção material da sociedade em que nós vivemos é feita por esses sujeitos.

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

41Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

O sujeito adulto, que não tem uma elevada escolarização, não é um sujeito menor e nem menos importante na sociedade por causa disso. Ele é o sujeito que está produzindo. A produção material da sociedade é realizada por esse sujeito adulto, independentemente do nível de escolaridade que ele tenha. Olha-se mais para a escolaridade que ele não tem do que para o seu conhecimento material da sociedade deixando-se de ver o que ele possui e que potencialmente pode ser utilizado pela escola.

Outro elemento fundamental é a necessidade que a EJA deve ter para a vida adulta. A EJA tem que dialogar com o sujeito concreto, que é um sujeito adulto. Esse sujeito adulto não é uma criança, em que há certa homogeneidade. Queremos transferir essa homogeneidade que há nas crianças para os sujeitos adultos sem dialogar com a vida real dele, com a produção da vida concreta dele. Temos experiência de chegar em uma escola para fazer pesquisa, em nosso estado, em uma turma de alfabetização para jovens e adultos, e ao observarmos o ambiente onde estava acontecendo essa aula o ambiente ser o mesmo onde as crianças pela manhã eram alfabetizadas. É a questão de infantilizar o sujeito adulto, que tem uma baixa escolarização; e não se trata disso. Trata-se de dialogar com esses sujeitos, pois a EJA precisa ter sentido para a vida adulta. O adulto não aprende por imitação, mas por entender o sentido de determinado conhecimento para a sua vida concreta.

A educação profissional, por sua vez, pode contribuir para dar sentido à EJA, ao fazer essa discussão sobre a categoria trabalho, sobre o mundo do trabalho, sobre a produção material da vida. Por outro lado, a EJA exige que a educação profissional pense mais profundamente sobre seus sujeitos. Esse é um conflito que vivenciamos na rede federal, onde não havia EJA, e onde se pensa em um currículo instrumental, que é um rol de competências e habilidades que esse sujeito tem que possuir. Como isso dialoga com o sujeito adulto? Não é uma condição externa; temos que compreender o sujeito em sua historicidade. E, portanto, essa característica intrínseca à EJA pode contribuir para um processo de humanização no campo da educação profissional.

Pensar no ensino médio integrado como formação humana integrada, fundamentada na integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura como eixo estruturante, é pensar em uma concepção de formação humana. E, a partir desse entendimento, realizamos a reflexão: deve existir uma só concepção de ensino médio integrado, que pode se materializar com

Dante Henrique Moura

42 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

os sujeitos de uma trajetória “regular” e com os sujeitos da modalidade de EJA? Ou será que há dois “ensino médio”integrado, o ensino médio integrado dos adolescentes e o ensino médio integrado da EJA? Essa é uma questão crucial e que está no centro de muitos dos conflitos que existem hoje no âmbito da rede federal a qual precisamos enfrentar. Diante do exposto, chegamos a três possibilidades, modelos, de modo que o modelo nunca é a representação plena da realidade, mas uma tentativa de aproximação dessa realidade.

Um dos modelos que encontramos é o de assumir que a concepção de ensino médio integrado para os adolescentes e para os adultos é única. Há um ensino médio integrado, com uma determinada base, mas não se consideram as especificidades dos sujeitos da EJA. A implicação desse modelo: o estudante não alcança o padrão de qualidade esperado pelo professor e pela tradição da escola e é novamente expulso. O ensino médio integrado tem um padrão, e para quem não alcançar esse padrão o espaço é outro. E portanto o discurso da inclusão cai por terra.

A segunda possibilidade é a de assumir concepções diferenciadas de integração. Existe uma concepção mais dura, mais científica, para os sujeitos da trajetória esperada regular, e outra mais branda para os sujeitos da EJA, ou seja, educação pobre para o pobre, com uma educação compensatória. A implicação dessa concepção: embora o sujeito não apreenda os conhecimentos previstos, pensados para aquela etapa educacional, ele é promovido a outras séries e conclui o curso, mas recebe um diploma vazio de significado. Compreendemos que ela é igualmente excludente, porque é a negação do direito de aprender. E nesse aspecto temos uma grande atenção à tradição do campo da EJA, que é a de acolhimento de espaço de socialização, e, quando estamos discutindo alfabetização de jovens e adultos, isso tem um sentido maior. Mas, para pensarmos e pesquisarmos, ao tratarmos do ensino médio integrado a um determinado curso na área de educação profissional, que pressupõe o domínio de um conjunto de conhecimentos, como é que fica esse acolhimento, essa socialização característica da EJA? Precisamos pensar acerca dessa questão. Até onde a EJA, apenas como espaço de socialização, como espaço de acolhimento, consegue avançar nessa perspectiva de formação humana integral? Não queremos negar essa tradição, mas sim dialogar com essa tradição, dialogar com essa cultura.

A terceira possibilidade que temos é a que assume que as concepções

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

43Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

são únicas, considerando as especificidades dos dois públicos, implicando que a escola tem que se transformar. E, para tanto, o professor necessita de formação específica no campo da relação entre o ensino médio e a educação profissional na modalidade de EJA. E essa concepção não é fácil de ser assumida, mas compreende-se que há possibilidade verdadeira de concretizar a inclusão.

Temos, então, três categorizações, que possibilitam três aproximações, três modelos e, muitas variações. Nenhum desses modelos se materializa integralmente, mas em cada escola materializa-se um pouco de cada uma das concepções, predominando mais uma ou outra.

Concluímos que assumir essa concepção única, considerando as especificidades dos distintos grupos é a garantia da educação como direito igualitário, e temos que avançar nessa concepção. Nós não iremos conseguir de um momento para outro. Mas chegar à conclusão, coletivamente, que esse é o caminho, é uma decisão política importante para construir, então, um caminho que pode levar a essa perspectiva de educação.

Temos que pensar a formação de professores, para a educação profissional de maneira geral e para o ensino médio integrado em particular, como uma categoria mais ampla que engloba as especificidades da educação de jovens e adultos. Esse é um movimento político importante, porque hoje nós temos uma cisão dentro das instituições entre os professores que atuam com a educação de jovens e adultos e os professores que não atuam. E é perfeitamente possível que um professor trabalhe com o adolescente e com o público da EJA, mas para isso é preciso uma formação específica para esse professor trabalhar com dois públicos.

Acreditamos que o que está ocorrendo é grave porque o professor que não tem formação para trabalhar no campo da EJA é posto para trabalhar com os alunos da EJA. Ele já chega com uma série de pré-concepções acerca de quem é esse sujeito da EJA, e, ao não estudar o campo antes de ir trabalhar com ele, esse professor só segmenta e fortalece essas pré-concepções que ele já possui, o que consideramos grave.

O Ensino Médio Integrado “Regular” e na modalidade EJA: formação e trabalho docente

PROEJA é implementado num momento em que a concepção de ensino médio integrado ainda está em construção. Temos aí uma nova concepção

Dante Henrique Moura

44 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

dentro de uma situação que ainda não está bem definida que vem a ser um elemento agravante do problema que estamos discutindo, que precisa ser investigado e precisa ser considerado em nossas discussões. Ainda há uma disputa teórica e política pelo significado de ensino médio integrado. O que estamos chamando de ensino médio integrado, que vimos discutindo, produzindo, debatendo, não é o que o Sistema S (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial e Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial)tem chamado de ensino médio integrado. O que as redes privadas estão fazendo é um convênio de concomitância e denominando de ensino médio integrado. Quer dizer que há uma disputa teórica e política pelo significado de ensino médio integrado. E dentro dessa disputa nós temos tentado construir o ensino médio integrado para o público da EJA.

Nesse sentido, é importante pensar a formação do professor, inicial e continuada e definir como a formação e o trabalho docente se relaciona com que tipo de concepção de formação humana? O projeto de formação dos IFs no EMI precisa ter uma correspondência com o projeto de formação de professores para atuar nesse ensino médio integrado. Então, qual é o projeto? É o projeto para o mercado ou é o projeto que não despreza o mercado, mas que não se submete a ele?

Implicações na rede estadual

Nas redes estaduais, com o Programa Brasil Profissionalizado, há uma implicação de que o programa tem avançado pouco e uma das razões importantes é que não há quadro de professores efetivos para atuar neste programa. O Programa Brasil Profissionalizado é um programa implementado nas redes estaduais, em que para aderir ao programa todos os estados brasileiros apresentaram projetos para receber financiamento para a implementação.

O que cabe ao governo federal corresponde à construção, recuperação de prédios, laboratórios, bibliotecas, toda a parte de infraestrutura, e a contraproposta importante das redes estaduais era a constituição do quadro de professores da educação profissional. O que a maioria dos estados fez foi apresentar o projeto, receber recurso, e estão construindo prédio, mas não constituiu o quadro efetivo de professores da educação profissional. Mas os Estados ou não tem o quadro efetivo de professores ou o quadro docente é no modelo precário (professor temporário, professor contratado

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

45Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

por fundação ou em parceria com o Sistema S). Ou seja, não possuem um quadro efetivo. Se não há o quadro de professores, como formá-los? Esse é um problema que temos vivenciado no Brasil Profissionalizado em praticamente todos os estados.

Com relação ao PRONATEC, uma das nuances importantes é que esse programa contradiz a política que se estava tentando construir, que é o ensino médio integrado. Ao ser instituído o PRONATEC dá a opção para as redes estaduais continuar fazendo seu ensino médio propedêutico para no turno inverso o estudante fazer o curso técnico não integrado em instituições privadas (grande parte no Sistema S), o que se contradiz com a política do próprio Brasil Profissionalizado e com a implantação do ensino médio integrado.

Neste caso, os Estados não precisam mais se preocupar em ter quadro de professor da educação profissional já que o aluno no turno inverso estará na escola do Sistema S, que já tem os professores da educação profissional, portanto não precisa mais se preocupar com isso. Não precisa mais ter a preocupação com o Brasil Profissionalizado.

Além disso, temos construídos “elefantes brancos” em praticamente todos os estados do Brasil. Construindo prédios para abrigar o BP que não vão funcionar. Ou vão se tornar novas unidades dos IF, ou serão novas unidades do Sistema S.

Colocamos, também, com relação ao PRONATEC, que é uma questão bastante abrangente, pois o programa possui uma influência grande em todos os campos da educação profissional e no campo da educação básica no Brasil.

O PRONATEC sinaliza na direção contrária para o que vínhamos discutindo nos anos 2000 sobre a perspectiva de formação humana. Quando se coloca o ensino médio integrado a partir de uma base unitária, pensada a partir da omnilateralidade, da formação humana integral, da politecnia, que tem como princípio básico a integração, o PRONATEC induz em uma direção contrária. Induz não para a integração, mas é uma desconstrução efetiva do que se tentava construir de uma perspectiva de formação omnilateral e integral.

Outro elemento ainda mais grave é a transferência para a iniciativa privada de recursos e responsabilidades públicas. As instituições que fazem o Pronatec passam a definir qual é a concepção de formação, formando a classe trabalhadora da maneira que lhe interessa.

Dante Henrique Moura

46 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

Outra dimensão é a formação inicial, pois a maior parte dos cursos do PRONATEC não são cursos técnicos, são cursos de curta duração. Questionamos, com base em pesquisas que demonstram que esses cursos de curta duração não provocam o efeito propagado, de melhoria do acesso ao emprego de quem faz esses cursos. Então, porque ofertar, porque oferecer esses cursos? Porque não é apenas a dimensão da reprodução ampliada do capital que está em jogo, pois, mesmo que nem todos os que fizerem os cursos não se insiram no mercado de trabalho, aquela parcela que se inserir estará contribuindo para essa reprodução ampliada do capital.

Outra função importante do programa é a legitimação de quem detém o poder hegemônico, uma função de legitimação do governo. Porque para o senso comum, independentemente de que pouco daqueles que fizeram os cursos se inserirem no mercado de trabalho a partir do curso que fez, o que está no imaginário, e idealizado coletivamente, é que esta é uma boa ação.

E ainda temos outra dimensão que não podemos negligenciar que é a dinamização do mercado no campo da educação profissional, porque outra dimensão importante do PRONATEC é que ele mudou a lei do FIES, que era o Fundo de Financiamento da Educação Superior e passou a ser o Fundo de Financiamento do Ensino, para viabilizar que organizações privadas de ensino superior possam oferecer cursos técnicos recebendo dinheiro público. Ou seja, é mais uma vez uma ação de dinamização do mercado da educação. É uma indução de criar na esfera privada o modelo dos Institutos Federais de atuar de forma verticalizada na educação, para que atuem nos cursos técnicos e nos cursos superiores ao mesmo tempo.

Implicações na Rede Federal

Na rede federal, sobre a questão docente, existem dois grandes grupos de professores, os licenciados e os bacharéis. Em nosso entendimento ambos precisam de uma formação continuada para atuação no campo da educação profissional como um todo, tanto no ensino médio integrado para adolescentes quanto no ensino médio integrado na modalidade de educação de jovens e adultos.

Os licenciados não tem como questão central de discussão o campo da educação de jovens e adultos e nem o campo da educação profissional. A licenciatura proporciona uma formação básica de matemática, física, química, biologia, história, geografia ou qualquer outra disciplina, mas não

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

47Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

há um diálogo daquele campo científico com o mundo do trabalho, com a ciência e a tecnologia.

Quando o professor é formado para ser professor das disciplinas básicas para atuar no ensino médio propedêutico e vai atuar no ensino médio que é integrado com a educação profissional, falta-lhe o diálogo com a dimensão profissional; portanto, essa formação é essencial.

Essa situação para os professores bacharéis é ainda mais grave, já que esses profissionais não conhecem o campo da docência na educação profissional e na educação de jovens e adultos. Muitos não conhecem esse campo de atuação profissional como é o caso dos formados no campo da engenharia. O profissional faz um concurso, vai para a escola e no outro dia está dando aula em uma turma de PROEJA.

Essas implicações ocorrem por falta de processo sistemático de formação de profissionais, embora haja algumas iniciativas como o Edital CAPES/SETEC/PROEJA, e os cursos de especialização para formação de professores. Mas é algo que não é sistemático, é algo que é também residual. E esses cursos de especialização acabaram-se, porque não é uma ação enraizada, porque estão na lógica do tempo de duração da bolsa, e quando a bolsa acaba o curso acaba-se. Portanto é importante que avancemos na direção de formação de professores mais sistematizada.

Outro problema é a falta de compreensão de grande parte dos dirigentes acerca das especificidades da educação de jovens e adultos e a consequente necessidade de formação específica para esse campo. Não há uma compreensão da EJA como campo específico, portanto, grande parte dos dirigentes da rede federal e o próprio Ministério da Educação não veem essa especificidade como necessidade fundamental para que se possa avançar.

Outra implicação é a resistência significativa de parte dos professores em participar de processo formativo para o campo da educação profissional em geral e para o campo da EJA em particular, por não compreender as especificidades do campo ou por outras razões menos nobres, inclusive preconceito.

Não é um curso de formação que irá garantir que alguém que tenha uma determinada concepção sobre a EJA de modo a alterar sua concepção. De todo modo, um curso pode ao menos possibilitar a reflexão sobre a EJA e, a partir dessa reflexão, o profissional pode mudar ou não sua concepção de como atuar como docente.

Dante Henrique Moura

48 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

Não podemos carregar todo o peso desses processos formativos escolares sendo que a nossa formação, enquanto pessoa, não ocorre prioritariamente no ambiente escolar, ela ocorre primariamente nas relações sociais e de produção, na sociedade como um todo.

De maneira geral, somos diariamente bombardeados pela lógica que não é a lógica do direito igualitário e da solidariedade. É a lógica da competitividade, dos que chegam na frente do outro. O discurso corrente é que faça tal curso para ser melhor que o outro. Portanto, não é o processo escolar sistemático que irá garantir a mudança de concepção, mas é um espaço sistemático de reflexão sobre essa realidade que pode, em alguma medida, contribuir para essa modificação.

Conclusão

A concepção que está posta no plano legal no documento de criação dos Institutos Federais é o de formação para o mercado. Não temos dúvidas, pelas relações que estão estabelecidas na sociedade brasileira e na nova divisão internacional do trabalho, que esse é o modelo que cabe aos países periféricos, ou emergentes para uma inserção subalternizada na economia mundial.

Segundo esta visão, hegemônica assumida pelo governo brasileiro, a produção de ciência e tecnologia está restrita a um conjunto específico de países que pertencem ao núcleo orgânico do capital. Neste caso, para nós, país emergente, cabe apenas aplicar o conhecimento produzido pelos outros países. Essa não é, no entanto, nossa posição. Assumimos outra posição que se coloca numa perspectiva contra-hegemônica que nos possibilite uma formação humana integral e integradora e não se submeta aos interesses do capital internacional e local.

Diante do quadro ora delineado não podemos desanimar, mas, a partir dos apontamentos, refletirmos e problematizarmos. Apesar das dificuldades, a história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens em grupos e confrontantes como classe em conflito que abrem ou fecham o circuito da história. E nós somos esses sujeitos, homens e mulheres, que temos essa possibilidade.

A integração curricular da educação profissional com a educação básica na modalidade de jovens e adultos (Proeja)

49Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 30-49, jan./jun. 2014

Referências

BRASIL. Decreto nº 5.478, de 24 de Junho de 2005. Institui, no âmbito das instituições federais de educação tecnológica, o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA. Brasília, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5478.htmAcesso em:10 set. 2013.

BRASIL. Decreto nº 5.840, de 13 de Julho de 2006. Institui, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA, e dá outras providências. Brasília, 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5840.htm>. Acesso em:10 set. 2013.

FRIGOTTO, Gaudêncio;CIAVATTA, Maria (orgs.). Ensino Médio: ciência, cultura e trabalho. Brasília: Ministério da Educação, 2004. p. 37-52.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

KUENZER. Acacia. O ensino médio no plano nacional de educação 2011-2020: superando a década perdida? In: Educ. Soc., Campinas, SP, v. 31, n. 112, p. 851-873, jul./set. 2010. Disponível em: <http://periodicos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/reveducacao/article/view/43>. >. Acesso em: 30 jan. 2011.

MACHADO, Maria Margarida. Quando a obrigatoriedade afirma e nega o direito à educação.In:Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 4, n. 7, p. 231-243, jul./dez. 2010. Disponível em: <http://www.esforce.org.br>. Acesso em: 2 jan. 2011.

MOURA, Dante Henrique. Políticas públicas para a educação profissional técnica de nível médio nos anos 1990 e 2000: limites e possibilidades. In: OLIVEIRA, Ramon de (org.). Jovens, ensino médio e educação profissional: políticas públicas em debate. Campinas, SP: Papirus, 2012.

MOURA, Dante Henrique. Ensino médio integrado: subsunção aos interesses do capital ou travessia para a formação humana integral? In: Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 705-720, jul./set. 2013. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/62525/65322

50 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

A historicidade das reformas da educação profissional

Maria CiavattaUniversidade Federal Fluminense (UFF) [email protected]

RESUMOEste trabalho traz o debate acerca das reformas da educação profissional vistas em sua historicidade às quais em suas descontinuidades características contribuem, em muito, para que a educação profissional seja utilizada como estratégia de hegemonia política da educação. Para compreender esse processo, a conceitualização histórica do Trabalho e da Educação se faz necessário. Nesse sentido a fim de entender os projetos que hoje existem em prol da educação do trabalhador, é preciso entender as implicações de uma sociedade capitalista dependente, as reformas da educação profissional e seus percalços e as iniciativas contra-hegemônicas.Palavras-chave: História da educação. Educação profissional.Reformas educacionais.

ABSTRACTThis work brings the debate on the reform of education seen in its historicity which in its features discontinuities contribute greatly to the professional education is used as a political hegemony strategy of education. To understand this process, the historical conceptualization of labor and education is necessary. In this sense in order to understand the projects that exist today in favor of worker education, one must understand the implications of a dependent capitalist society, reforms of education and their mishaps and initiatives counter-hegemonic.Keywords: History of education. Professional education. Educational reforms.

A historicidade das reformas da educação profissional

51Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

Introdução

A formação integrada, produto de muitas controvérsias e marcada por dificuldades, é uma concepção nova que está sendo pautada em função da busca de uma educação de qualidade socialmente referenciada e que engloba diversos problemas. Essa política incorpora um conjunto de preocupações e tenta responder aos diversos tipos de questões que se apresentam no interior da escola média brasileira.

Qualidade da educação brasileira e formação integrada

A dialética da realidade social e da educação profissional, tanto pode ser compreendida como um direito dos trabalhadores e um dever do Estado, quanto como uma forma subordinada e reducionista de educação. Isso depende das relações que se estabelecem com os demais aspectos do sistema educacional e com as condições de vida dos trabalhadores.

Esta compreensão da educação profissional tem por base a historicidade das reformas que ciclicamente ocorrem nos demais âmbitos do sistema educacional, nas quais, há mais reformas que geram descontinuidade do que continuidade. Essas descontinuidades afetam principalmente a vida dos professores, porque em cada reforma eles necessitam mudar para se readequar e para recomeçar o trabalho de outras maneiras e de outras formas para atender a essas modificações.

A educação profissional é o lócus mais visível da educação pelo trabalho, seja no seu sentido técnico e tecnológico, seja no sentido político como movimento que oscila nessas duas direções. Quer a educação pelo trabalho na sua negatividade, enquanto submissão e expropriação do trabalho, baixos salários, baixas condições de trabalho, como também na sua positividade, enquanto um espaço de conhecimento, de luta e de transformação dessas mesmas condições estabelecidas ao sujeito.

O que se observa é que, à medida que a escola se prepara para atender às exigências da produção capitalista, ela assume também as exigências da ordem social desenvolvida nos processos de trabalho, tais como disciplina, exatidão, submissão física, técnica e moral, cumprimento estrito dos deveres, pontualidade, contenção corporal, afetiva e etc., tudo isso com o intuito de aumentar a produtividade da mão de obra, reduzir os custos da produção e obter maior lucratividade nos negócios.

Maria Ciavatta

52 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

A educação profissional tem sido utilizada como estratégia de hegemonia política da educação, convencendo-se os próprios trabalhadores de que a formação dos seus filhos para o trabalho é melhor do que eles estarem na rua. Não que não seja, mas defendemos que não se reduz a essa condição: para aqueles que não tiveram acesso à escola regular no tempo previsto, seria melhor uma educação profissional abreviada funcional do que uma atividade laboral para fins de lhes dar condições de inserção ou de reinserção no mercado de trabalho.

Esse discurso reforça o consenso sobre as vantagens de uma educação profissional que, comparada aos conhecimentos gerais seria do maior interesse dos trabalhadores, porque, em princípio, de nada adiantaria para os trabalhadores uma formação geral se eles não têm uma qualificação para o trabalho.

Estabelece-se, portanto, que dentro das condições materiais de vida não há outro sistema e que não há alternativa para os trabalhadores. Ou seja, o trabalhador tem que se conformar, pois se não tiver uma educação em tempo hábil ao menos pode se preparar profissionalmente. É essa formação que lhe é oferecida para preparar-se para o trabalho que seria mais vantajosa do que nenhuma educação.

Avançamos na compreensão da história e da historicidade que contemple uma visão dialética da sua relação com o mundo do trabalho para os trabalhadores e, nesse sentido, a história pode ser compreendida em dois sentidos principais inter-relacionados: o espaço-tempo, onde os fenômenos ganham forma e materialidade, e a própria compreensão do que seja história.

No sentido espaço-tempo, recorremos a Marc Bloch, em um de seus textos clássicos, ao chegar a uma cidade ele não procura coisas antigas ou de museus, mas sim, busca o que há de mais novo naquela cidade, para buscar na novidade, enquanto historiador, encontrar a gênese dessa transformação. Desse modo, passado, presente e futuro estão inter-relacionados.

A compreensão de proximidade não tem apenas falta de precisão. Quando dizemos, por exemplo, que este tempo é próximo um do outro, de quanto tempo estamos falando? De quantos anos, dias ou séculos? Depende do fenômeno de que estamos tratando. Mas essa ideia de proximidade nos coloca também a concepção da temporalidade, em que delimitamos datas, mas as datas não são marcos rígido. As datas são marcos de fenômenos,

A historicidade das reformas da educação profissional

53Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

e os fenômenos não ocorrem exatamente nas datas marcadas. Há uma história pregressa e posterior à data. Antoine Prost nos coloca também que a questão do historiador é formulada do presente com relação ao passado, incidindo sobre as origens, a evolução e os itinerários no tempo, identificados através das datas. Ele nos diz: a história faz-se a partir do tempo complexo construído e multifacetado.

Esse sentido de historicidade está relacionado à mudança de concepção do tempo linear, tão bem apropriado pelo positivismo no século XIX como a história dos fatos políticos do Estado-nação, dos homens ilustres e poderosos governantes, da sucessão de acontecimentos e da homogeneização no tratamento quantitativo dos fenômenos. O positivismo, como método de produção de conhecimento, rege a ciência moderna, e principalmente as ciências da natureza até os dias atuais. De modo que a estatística nos dá as dimensões dos problemas, mas ao mesmo tempo elas homogeneízam e limitam a compreensão social dos problemas, não se adequando a todo e qualquer fenômeno em sua totalidade social.

Esse tratamento quantifica a sucessão dos acontecimentos e fragmenta o tempo como se os fenômenos sociais pudessem ser compreendidos em partes ou em migalhas. Para François Dosse, apesar dos investimentos positivos, ele menciona que a École des Annales francesa trouxe uma contribuição enorme com a História Cultural, alargando o sentido da história não apenas para os acontecimentos, fatos políticos, os grandes homens, trazendo a história para todo tipo de objeto, todo tipo de documento, mas frequentemente recorrendo ao erro de ver esses objetos esses fenômenos de uma forma isolada, como se fosse possível isolá-los da sua produção, da forma como eles acontecem, dos sujeitos envolvidos, dos demais acontecimentos com que eles se relacionam.

A compreensão da historicidade da educação profissional em uma concepção dialética do espaço-tempo trata dos fenômenos sociais da vida humana na sua temporalidade complexa, a exemplo dos tempos múltiplos de Brodel, em que ele fala do tempo delonga duração e no de média duração, que consiste em um conjunto de anos que possuem certas características constituídas em uma conjuntura ou um tempo de média duração, e os tempos de curta duração, que são os acontecimentos breves.

A segunda questão é da própria compreensão do que seja história, em sua relação do passado, do presente e do futuro, e de concebermos a história como a produção social da existência, sendo Marx o maior

Maria Ciavatta

54 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

expoente dessa concepção revolucionária, porque para ele a história é a produção da vida, que é a produção social da existência, e é o que nós vivemos. A história somos nós, ou seja, nós fazemos história, não a história que irá ser encontrada nos livros didáticos, mas a história da nossa vida, da nossa cidade, a história de nossa própria luta do nosso próprio país, de um acontecimento. É uma forma nova de se conceber história.

Podemos encontrar outros sentidos da história em Benjamin, que nos traz a história a contrapelo, e depois em Dedecca, que traz a história dos de baixo, ou a história dos vencidos, ou a história das classes subalternas.

Essas concepções de história abrem a possibilidade da história dos trabalhadores ser tão digna quanto a história dos governantes, pois ela é história, a história de como eles produziram e produzem a própria vida.

Historicidade do trabalho e educação

Pelo trabalho o ser humano produz os seus meios de vida, reproduz a si mesmo e produz conhecimento. A história não é uma abstração, é a narrativa desses processos fundamentais da existência humana. O historiador Jurandir Malerba, resgatando o trabalho metódico de pesquisa e a reflexão teórica de historiadores ao longo dos séculos, referencia Marx e busca nas leis da revolução histórica das sociedades a observação das contradições internas e externas inerentes à vida material e das sociedades de classe. Para ele, a história nada mais é que a associação de diferentes gerações, e cada uma explora os materiais, os capitais, as forças de produção, as ideias a ela transmitidas pelas gerações anteriores.

A relação trabalho e educação se enraízam nas condições de vida, educação e trabalho da sociedade em que vivemos. No caso do Brasil, vivemos em uma sociedade de classes, baseada na divisão social do trabalho e na apropriação privada do produto do trabalho coletivo, expresso pela riqueza concentrada de bens e serviços, educação, cultura, tecnologia, arte e comunicação, distribuídos de forma diferenciada entre as diferentes classes sociais. O conceito das classes também é fundamental para a compreensão da relação entre trabalho e educação. Este é um conceito que, educação, é fundamental, pois sem a contradição capital e trabalho não podemos entender o fenômeno.

A compreensão histórica de como as políticas conduzem a esses resultados implica também o conhecimento de como são representados no

A historicidade das reformas da educação profissional

55Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

nível dos discursos produzidos pelos sujeitos envolvidos nos acontecimentos, relatos ou narrativas. A história escrita, oral, mapas, documentos nos mostram como se interpreta essa produção social da existência.

O pensamento histórico-crítico que se elabora em torno desse fato histórico fundamental no Brasil passa necessariamente pelo projeto de sociedade em disputa, e, relacionando à formação integrada, ao contexto da elaboração de uma proposta de educação de qualidade. E qual é essa disputa? É educar a todos, a toda a população, com as deficiências, os agravantes do trabalho escravo e abandono social, gerado por quatro séculos de colonização e um século de república edificados sob os valores vigentes modernizado sob o incipiente capitalismo, ou educar apenas uma parcela da população afeitas às humanidades, às letras, às artes, herdeira do patrimônio latifundiário, social e político do país. Que educação dará a uns e a outros? Sobre esse fato fundamental da educação brasileira, há uma disputa inerente a toda a história da educação no Brasil, e que adquire diferentes formas de acordo com aqueles que relatam a história que fazem as políticas e implementam as ações relativas a essas políticas.

Durmeval Trigueiro Mendes nos diz: “Se se pode promover uma sociedade com cem ou mil pessoas exercendo o papel diretorial, porque educar dez milhões ou cem milhões para exercer a democracia? Se o ‘desengrossamento’ do povo até a limpidez é tão dispendioso e incerto, porque não admitimos a meia-educação?”

Essa meia-educação pode ser percebida na educação profissional. Quantos jovens não tem acesso à educação profissional ou que tem acesso e saem por falta de base? Porque não têm uma história pregressa de conhecimentos suficientes para prosseguir. Desse modo, não podemos ver os fatos isolados de como eles se produzem no contexto maior da sociedade.

Se nos detivermos apenas à educação dos trabalhadores com vistas a dar-lhes o acesso à educação e compreensão da complexidade da gênese histórica do trabalho e de suas transformações na atualidade, vemos que tanto o trabalho quanto a educação ocorrem nessa dupla perspectiva: o trabalho tem uma concepção ontológica, fundante, criador fundamental da vida humana, mas também possui as formas históricas de exploração, de sofrimento, de doença no espaço das relações capitalistas, das relações de opressão. E a educação tem o seu sentido fundamental como formação humanizadora com base nos valores e práticas éticas e culturalmente elevadas. Particularmente a educação profissional tem sido implementada

Maria Ciavatta

56 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

em nosso país através de formas pragmáticas a serviço de interesses e valores do mercado, não convergentes com o seu sentido fundamental de formação humana potencializadora do desenvolvimento pleno do ser humano.

Percebemos, historicamente, como o trabalho complexo é importante. Para exercer uma profissão, para ter uma qualificação é importante ter o conhecimento do que se faz, porque ou faz mal feito, ou prejudica outrem, a si mesmo ou às empresas. Porém nós não apenas trabalhamos, nós vivemos, temos famílias e temos compromissos financeiros e não se pode reduzir a formação apenas à adequação ao mercado de trabalho. Há uma parte importante da formação que se faz necessária para compreender porque vivemos em uma sociedade de pessoas abandonadas pelas ruas, porque não há médicos nos postos de saúde, porque não há estrutura nos hospitais, porque os professores estão em situação de calamidade em alguns níveis e em alguns locais. Tudo isso faz parte de uma formação humana e de uma ampliação da capacidade de conhecimento.

Sociedade capitalista dependente

Compreender a “dependência econômica” e o “capitalismo depen-dente”, para Florestan Fernandes e Mauro Marini, é importante, pois é uma concepção que foi elaborada na América Latina e posteriormente foi criticada a partir de um pressuposto que não consegue compreender o problema em sua totalidade, porque de início trouxe a ideia de que os países da América Latina subdesenvolvidos poderiam se tornar desenvolvi-dos semelhantemente aos países centrais, perfazendo uma concepção de que os países sairiam da condição de subdesenvolvimento e se tornariam desenvolvidos.

Essa crítica nos trouxe o entendimento de que se temos a condição de não desenvolvidos é porque estamos imersos, relacionados a formas de produção capitalista que acumulam riquezas em termos de matéria-prima, de mão de obra barata, de recursos. Podemos citar o exemplo do Equador, que, ao realizar uma auditoria sobre a dívida externa, constatou que o saldo devedor da dívida era de apenas 30%, ou seja, os equatorianos não eram devedores de 70% da dívida.Estamos imersos em um sistema e não damos aos nossos estudantes a compreensão do que é o trabalho nas suas contradições e do que é ser um país de capitalismo dependente.

A historicidade das reformas da educação profissional

57Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

Florestan Fernandes e Rui Mauro Marini se detêm a explicar que o capitalismo dependente é a dependência econômica e cultural que torna o país refém das imposições de organismos internacionais nas políticas econômicas e sociais e também nas educacionais, a exemplo das múltiplas avaliações na educação que chegam ao ponto de o professor ser chantageado, em alguns locais, a aprovar 80% dos alunos, pois toda a escola será beneficiada posteriormente com recursos financeiros. Esse cenário é fruto de um movimento maior internacional de avaliação. A avaliação é importante, mas não podemos condicionar a autonomia dos professores aos resultados de aprovação.

Para Florestan, as sociedades latino-americanas estruturam-se no capitalismo, e isso implica dificuldades em desenvolver um projeto educacional autônomo. Por outro lado, a dominação externa também estimula o processo de modernização e de desenvolvimento das forças produtivas que alimentam a ilusão desenvolvimentista, mas que, na realidade, reforçam a dependência e consolidam o imperialismo ao invés de superá-lo. Segundo Florestan, essa situação organiza a dominação externa a partir de dentro, pois há uma subordinação dos interesses pela subordinação consentida, níveis de ordem social em que são controlados a natalidade, a comunicação de massa, o consumo de massa e até a educação, a transplantação maciça de tecnologia, modernização da infra e da supraestrutura, a financeirização da economia como eixo vital da política nacional.

Rui Mauro Marini chama a atenção para o incremento da indústria no começo do século XIX nos países centrais. Esse desenvolvimento se fez às custas do fornecimento de produtos de subsistência de origem agropecuária e da massa de matérias-primas proporcionados, em grande parte, pelos países latino-americanos.

Os historiadores que estudam o surgimento da indústria e da ciência moderna nos trazem o entendimento do quanto nós contribuímos para a riqueza da Inglaterra, particularmente nos primórdios da Revolução Industrial. Marini chama a atenção para a formação dos trabalhadores. Ele nos diz que, enquanto os países centrais investiram na formação da sua população para o desenvolvimento de tecnologias, nos países latino-americanos os trabalhadores sempre estiveram sujeitos a uma educação elementar, primária, com cursos breves, que barateiam a mão de obra e que é apropriada pelos “parceiros internacionais”.

Maria Ciavatta

58 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

Marini apresenta três elementos que caracterizam o capitalismo dependente para a classe trabalhadora, e então compreendemos o interesse do tema trabalho e educação visto a partir da historicidade: 1º ponto: o aumento da intensidade do trabalho aparece com o aumento da mais valia, através de maior exploração do trabalhador e não pelo aumento de sua capacidade produtiva, pela sua educação; 2º ponto: maior exploração da mais valia absoluta em sua forma clássica, que se manifesta pela prolongação da jornada de trabalho e no aumento do trabalho excedente; 3º ponto: redução do poder de consumo do trabalhador, ou seja, baixos salários, além do seu limite normal obrigando-o a um tempo maior de trabalho excedente que transforma-se em um fundo de acumulação do capital. Naturalmente, toda extração de um tempo de trabalho fica para os que detêm as forças produtivas, ou seja, o empregador.

Somos, portanto, uma sociedade que se configura no desenvolvimento de forças produtivas baseada na super exploração do trabalho.

As reformas da educação profissional e os seus percalços

O percalço nas reformas da educação profissional no sentido de problemas e entraves não está apenas em níveis de macroestrutura, como o capitalismo dependente, mas estão em níveis da prática, nas escolas e nas políticas. Temos algumas iniciativas contra-hegemônicas, que não possuem o mesmo discurso das reformas usuais que estão presentes no nosso cotidiano.

As reformas da educação profissional têm se realizado mais por via de programas do que por políticas, e distinguimos programas de políticas, pois os programas são ações pontuais, governamentais e estão sujeitos à descontinuidade, mudando de acordo com os governos ou com prazos determinados. As políticas públicas, ao contrário, possuem universalização garantida por lei, significando recursos no orçamento nacional e são aparatos legais que garantem continuidade democrática, assegurando a todos os mesmos direitos.

O sentido gramsciniano de hegemonia supõe lutas entre a sociedade política, o Estado e a sociedade civil, com certo equilíbrio instável de classes. Em um processo democrático há sempre disputa por posições, tanto em nível de instituições pequenas, como em âmbito regional, municipal, estadual e nacional, e principalmente com as grandes políticas que determinam e afetam a vida de milhões de pessoas. Os processos de dominação ou de

A historicidade das reformas da educação profissional

59Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

hegemonia envolvem articulação política, coerção e consenso. Coerção pela força física ou pela força da lei, como nos tempos da ditadura militar, e por meio do consenso, que envolve legitimação e ideologia, convencendo os trabalhadores de que não há alternativas para ele e o melhor é fazer vários cursos, um após o outro, porque em algum momento ele irá alcançar algo maior profissionalmente.

Nesse embate, ocorrem algumas ações contra-hegemônicas, como movimentos organizados para enfrentar a situação dominante, opondo-se às reformas ou articulando outras propostas, projetos e forças sociais que representam interesses mais amplos das demais classes sociais.

Ao realizarmos a análise dos programas e das políticas para a educação profissional no Brasil, desde Nilo Peçanha a Getúlio Vargas, vemos que sucessivas reformas foram implementadas por meio de decretos ou por leis para a transformação da educação, para uma adequação da educação, e da educação profissional e técnica principalmente, com a criação da rede de escolas técnicas. Uma educação profissional que atendesse às necessidades da população e às necessidades das empresas e das fábricas naquele tempo, na qual atendia muito mais às necessidades dos empresários, que direcionavam a educação profissional para atender a seus interesses de formação de mão de obra.

E são esses mesmos empresários que, nos dias de hoje, pautam a educação no Brasil por meio de convênios e pactos como o Educação para Todos, entre outros projetos e programas que perpetuam a fragmentação e a descontinuidade das políticas de educação. Assim, como há cem anos os imigrantes empregavam sua força de trabalho por serem qualificados, ainda, nos dias de hoje, no Brasil, a mesma história se repete: a utilização de mão de obra estrangeira para o trabalho complexo, pois é mais qualificada do que a brasileira. Ora, não foi possível qualificar bem a nossa mão de obra, mesmo depois de cem anos? Porque não formamos nossa mão de obra de maneira completa, para não dependermos do trabalho estrangeiro? Essa é a sociedade dependente em que vivemos.

Iniciativas contra-hegemônicas

Podemos citar como iniciativas contra-hegemônicas as leis de equivalência, que realizaram a equalização da formação profissional técnica à educação secundária, nos anos 1950 e 1960, e são produtos de

Maria Ciavatta

60 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

reivindicações da população que, por força das reformas estaduais, tiveram acesso à educação primária e, ao completarem a educação primária, almejavam a educação secundária, e depois o prosseguimento para o ensino colegial (atual Ensino Médio). As leis de equivalência vieram como um movimento contra-hegemônico, apesar de ser demanda de pais, das famílias, das pessoas que queriam dar continuidade aos estudos. Naquele momento, a LDB (4.024/61) dará plena equalização a cursos técnicos e a cursos de formação geral, os colegiais, clássico e científico, e posteriormente denominado somente de ensino técnico.

Na ditadura militar há a reforma pela Lei 5692/71 que é um retrocesso e uma ilusão a população de que todos serão iguais, pois todos irão cursar o ensino profissional, o que, de fato, não ocorreu, porque a profissionalização, posteriormente, tornou-se opcional pois não houve investimento em infraestrutura para de fato ocorrer a reforma, e porque as classes dominantes não queriam que seus filhos tivessem formação técnica, e sim, formação universitária. Por isso as escolas privadas “maquiavam” o ensino técnico utilizando, como a denominação das disciplinas profissionais de Instrumentais.

No fim da ditadura temos duas experiências, uma delas é o Ensino Público Vocacional, da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo, e foi um projeto existente nos anos 1970. Constituía-se por uma rede experimental de escolas que proporcionava a integração do aluno com a sua comunidade e com o ensino, aprendendo e ao mesmo tempo transmitindo esses conhecimentos para a sua comunidade e trazendo os problemas e experiências da comunidade para a escola. Essa experiência deu origem a outra experiência contra-hegemônica que chama-se Programa Integrar, da Federação Nacional dos Metalúrgicos, que consistia em levar os trabalhadores, através da educação nos sindicatos, a uma integração entre os conhecimentos gerais e os conhecimentos específicos, e aumentar a escolaridade dos trabalhadores.

Após o fim da ditadura militar nós temos a Constituição Federal de 1988 e a LDB, que inicia os seus debates em 1986 e perdura até 1996, a aprovação da lei 9394/96. Havia o movimento contra-hegemônico de instalar na educação brasileira a educação politécnica. Buscava-se a instituição da formação geral e a formação técnica, para que um trabalhador formado profissionalmente pudesse não só exercer seu trabalho, mas, também, conhecer o que é a sociedade, a política, e saber o porquê do salário baixo,

A historicidade das reformas da educação profissional

61Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

o porquê de os postos de saúde e a saúde pública serem precários. E nesse aspecto fomos derrotados.

De certo modo a LDB não foi totalmente desvantajosa para a luta de uma educação para os trabalhadores, porque permite, em seu artigo 1º, a formação para o trabalho e o prosseguimento dos estudos. Mas essa concepção politécnica era demais para um projeto neoliberal de governo, que instituiu o Decreto 2.208/97, e faz a separação entre formação específica e formação geral. E, posteriormente tivemos, a luta pela revogação do 2.208, a qual ocorre em 2004.

A gênese do Decreto 5.154/04, ao mesmo tempo em que revoga o 2.208, cria vários programas de educação profissional, como Escola de Fábrica, PROJOVEM, PROEJA. O PROEJA atual é uma contra-hegemonia, porque de início veio fazer parte daqueles programas que vieram distorcer a proposta de integração. E depois tivemos a luta pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio.

O Decreto 2.208 faz parte de um consenso implantado na sociedade brasileira, na qual a divisão de classes e a desigualdade de classes é um fato inevitável. Como a divisão é inevitável temos que formar separado, porque ganha-se tempo e aperfeiçoa-se mais rapidamente o trabalhador. Essa é uma ideologia e uma cultura e não podemos mudar de um momento para o outro. As pessoas não veem como superar essa cultura e muitos professores da área técnica não acreditam nessa possibilidade de integração, pois as ciências também têm uma história separada, e ela também está imbricada nesta dicotomia pois a ciência moderna nasceu há pelo menos três séculos antes das ciências sociais; e estão consolidadas em diversos níveis.

Concluímos com a reforma mais recente, que é o PRONATEC, se opõe a esse movimento contra-hegemônico de dar uma formação alargada para os trabalhadores, possuindo muitos recursos, e com a manutenção dos in-teresses da classe empresarial. Acreditamos que, quando um tema é muito importante, ele é objeto de disputa entre as classes sociais de presença, por isso é possível avançar em alguns conceitos, porém, não há como mudar. Mas podemos lutar para mudá-los, pode-se lutar para colocar nossas idéias e nossas perspectivas. Esse é o sentido da historicidade das reformas da educação profissional, que devem ser vistas nos seus aspectos legais, nos seus aspectos de implementação e devem ser vistas, também, em seus movimentos contra-hegemônicos, que é a maneira de um país como o nosso poder prosseguir na construção de políticas públicas para o trabalhador.

Maria Ciavatta

62 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

Vemos panoramas diferenciados na forma de assumir ou rejeitar o ensino integrado, há mais tendências para rejeitar do que para assumir a integração entre educação básica e educação profissional. Há mais pessoas que não concordam com o integrado, que querem permanecer o ensino médio isolado do ensino profissionalizante, e com a concepção de que não há como juntar os dois ensinos. Outro ponto fundamental para que ocorra a integração são os gestores. Se os gestores não fazem reuniões, não têm orientações e diretrizes quanto à integração, se não há integração de pessoas não é possível fazer qualquer integração no ensino. Não há nenhum tipo de balizamento, por parte da instituição, com relação ao integrado. Já não há balizamento por parte do Estado, pois o ensino integrado está posto na lei, e existem alguns recursos que vêm por diferentes caminhos, mas não há força política. Em nossa visão, a presença dos gestores liderando um processo de formação integrada significa uma vontade política que vem da base e não por meio da imposição.

Percebemos que não há vontade política governamental. Entretanto a integração está posta na sociedade. Antes a sociedade não falava sobre a integração. Durante a discussão da atual LDB ainda nos anos 1980, era um grupo pequeno que discutia o assunto; no Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, eram cerca de 40 a 50 pessoas que foram à Brasília com o objetivo de discutir integração e de conseguir na LDB que a politecnia pudesse permear as políticas públicas para a educação.

As pessoas, contra ou a favor, se preocupam com isso porque os alunos estão nas escolas e em alguns lugares as pessoas levam a sério e tentam fazer a integração. Qual será o futuro do integrado? Não o sabemos. Talvez esteja nas mãos dos professores, porque não é um governo que irá fazer os professores se reunirem para discutirem, pois, se os professores não estão integrados entre si, não há integração do ensino. Esse trabalho é muito pessoal, ou coletivo ou de pequenos grupos e depende da convicção de cada um. Porque a lei que permite a concomitância, o sequenciado, o integrado, está aprovada.

Entretanto se nós temos dúvidas da qualidade da nossa educação, nós temos um espaço de reflexão sobre isso e possibilidades de avançar coletivamente, individualmente não.

A historicidade das reformas da educação profissional

63Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

Conclusão

Concluímos dizendo que há certo oportunismo político com relação ao ensino médio concomitante à educação profissional, porque ele resolve o problema das escolas estaduais, que tem um nível de formação inferior à rede das escolas federais e aos colégios universitários e às grandes escolas privadas.

A concomitância é uma maneira de tentar aproximar, para tentar melhorar o nível da educação estadual. Fazer formação integrada assim é muito difícil, pois os professores estão em espaços separados, os currículos não se realizam da mesma maneira. Desse modo, as contrar reformas devem ser feitas dentro e fora do Estado, por meio da sociedade civil e da coletividade.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas; v. 1)

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BRASIL. Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e das outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 18 de abril de 1997.Seção 1, pág. 7760.

BRASIL. Decreto n. 5.154, de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e das outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 24 de julho de 2004.

CIAVATTA, Maria. Mediações históricas de trabalho e educação: gênese e dispu-tas na formação de trabalhadores (1930-60). Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

FERNANDES, Florestan.Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina.2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise Nogueira (orgs.). Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

Maria Ciavatta

64 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 50-64, jan./jun. 2014

DEDECCA, Claudio Salvadori. Racionalização e Trabalho no Capitalismo Avan-çado.Campinas, SP: IE/Unicamp, 2000.

DOSSE, François. Histoire du structuralisme. 2v. Paris: La Découverte, 1992.

LOPES, Marcos Antônio. Fernand Braudel: temo e história. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre (orgs.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru, SP: EDSC, 2007.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I. v. I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

MENDES, Durmeval Trigueiro. Filosofia da educação brasileira. 6. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

PROST, Antoine. Douze leçons sur l’histoire . Paris: Seu Il, 1996.

65Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

A formação pedagógica na educação profissional

Suzana Lanna Burnier CoelhoCentro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) [email protected]

RESUMOO presente artigo discute a formação docente para a educação profissional a partir da perspectiva que os espaços de ensino no campo da educação profissional se constituem também como espaços de pesquisa e de formação docente. A formação profissional vai além da formação para ocupação de um posto de trabalho pelos egressos. Essa formação profissional que visa formar para o mundo do trabalho, para o exercício da cidadania e para as lutas do trabalhador e que, além disso, enseja o trabalho autônomo, associado e cooperado, revela-se ainda mais complexa, do ponto de vista da atuação e do compromisso docente. Essa condição exige que o espaço de ensino também seja um espaço de pesquisa e de formação continuada.Palavras-chave: Formação continuada. Formação docente. Formação profissional.

ABSTRACTThis paper discusses teacher training for vocational education from the perspective that places of education in the field of education also constitute as research spaces and teacher training. The training goes beyond training for occupancy of a job by graduates. This professional training aims to train for the world of work, for the exercise of citizenship and the worker’s struggles and that, furthermore, it allows for self-employment, associate and cooperate even more complex is revealed, from the point of view of performance and teaching commitment. This condition requires that the education space is also a space for research and continuing education.Keywords: Continuing education. Teacher education. Professional education.

Suzana Lanna Burnier Coelho

66 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

Formação continuada de professores da educação profissional

A formação continuada é o espaço por excelência da formação de professores da educação profissional. Muitas são as teorias que contribuem para este debate.As teorias de identidade profissional, aqui em destaque, nos dizem que começamos a construir a identidade profissional quando ingressamos na profissão, quando estamos efetivamente inseridos no trabalho. A formação para a profissão é parte da constituição dessa identidade, mas saber como é ser médico, engenheiro, eletricista, encanador, enfermeiro, etc., depende do exercício da profissão.

Não podemos falar em formação para o exercício de uma profissão na educação, no caso a docência, sem pelo menos mencionar os desafios da educação brasileira. Na medida do possível, iremos sintetizar os desafios da educação para termos o contexto do debate acerca da formação de professores, pois estamos nos formando para enfrentar os problemas e os desafios que a educação nos coloca nessa segunda década do século XXI.

Os desafios

Os desafios não são poucos. O primeiro é a formação para o mundo do trabalho, e esta formação não é para o emprego nem para o posto de trabalho. Nos dias atuais quem se forma em engenharia não sabe se atuará como engenheiro e como isso foi no passado ou será no futuro, questão que se coloca para outras muitas outras profissões que em decorrência da evolução tecnológica e dos novos arranjos sociais e produtivos podem mudar.

Nesse sentido, preparar para o trabalho nos dias de hoje não é só preparar para o posto de trabalho possível em cada profissão, em cada eixo tecnológico ou em cada setor produtivo. A formação também deve contemplar a vivência das relações sociais e hierárquicas que estão envolvidas no ambiente de trabalho, bem como questões que envolvem a valorização que capital atribui a cada profissão.

Sobre a questão salarial do técnico, por exemplo, a remuneração média não é o salário mínimo necessário definido pela Constituição Brasileira. Ao compararmos o salário mínimo estabelecido na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com o salário mínimopago aos trabalhadores, tomando como base a referência salarial calculada pelo DIEESE (Departamento

A formação pedagógica na educação profissional

67Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)este salário mínimo necessário para a sobrevivência no país é de aproximadamente R$ 2.700,00.

Diante desse contexto, o movimento sindical necessita lutar para e impetrar todos os meses um mandato de segurança contra os empregadores, inclusive o governo, exigindo o pagamento do salário mínimo definido na legislação do país. Deveríamos ter em juízo processos com o intuito de se fazer valer o salário mínimo que consta na legislação e isto deve estar no currículo da formação do professor e do técnico que quer formar.

Outro desafio que temos, enquanto docentes, é educar para formar os alunos para alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico da profissão e para o trabalho autônomo associado à cooperativa. Essa é tarefa de cada professor: do professor de eletrotécnica, de química, de administração, dos pedagogos, de todos os docentes.

Devemos formar para as lutas do trabalhador no seu setor e para as lutas gerais por direitos ainda incipientes no país como é o caso da participação nos lucros e resultados da empresa. A legislação que ainda não conseguimos implementar e fazer com que se cumpra em todos os setores. A luta pela redução da jornada de trabalho exigem participação política e isso relaciona com o abandono em que se encontram nossos filhos. Quando nós, docentes, queixamos que os pais dos alunos abandonam seus filhos, esquecemos que os nossos filhos, os filhos de professores, também estão abandonados.

Porque não há mais tempo para os filhos. Estranham-se aquelas famílias que tinham esse tempo. Atualmente, além do tempo de produtivo no local de trabalho, gastamos muito tempo na mobilidade urbana, na atualização profissional e nas tarefas que nos foram terceirizadas por todos os setores de produção através dos computadores e outras mídias de informação. Essas atividades invadem nosso tempo livre, num tempo no tempo que deveríamos estar com os filhos, preparando-os para viver no século XXI. Esse tempo nos foi roubado, nós não o temos mais, porque ao chegarmos em casa vai-se direto para o computador para fazer tarefas não domiciliares.

Preparar os alunos para o usufruto do tempo livre como oportunidade de equilíbrio e satisfação do corpo, do espírito e das relações sociais, é um desafio docente. Há um preço que pagamos, pelo descuido que o trabalho nos obrigou a ter com o nosso corpo nos últimos anos. Porque temos danos na coluna, por causa das horas sentadas à frente do computador; nas cordas

Suzana Lanna Burnier Coelho

68 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

vocais, pelos tamanhos das salas de aula e a falta de tratamento acústico; pelos anos e anos de giz, e muitos outros danos de saúde.

Outro desafio é a precariedade do sistema educacional brasileiro. Realizamos um ciclo de pesquisas onde investigamos os projetos de futuro do jovem brasileiro em que possuíamos como lócus de pesquisa jovens de periferia que são atendidos pelo programa PROJOVEM (Programa Nacional de Inclusão de Jovens), e consequentemente são atendidos por programas sociais e passaram por todo um processo de atestamento de pobreza da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) a qual indica a população que vive em extrema pobreza. Depois obtivemos como lócus de pesquisa os jovens pobres, que são pobres pela localização da escola em que realizamos a pesquisa, uma escola de classe média baixa de Belo Horizonte, localizada ao lado de uma periferia. Nesta escola estadual, de classe média baixa de Belo Horizonte, predominam, no ensino médio, os alunos da comunidade.

A classe média não estuda na escola estadual vai para escola privada e, talvez, para o Instituto Federal, mas preferencialmente na escola privada. Essa realidade se dá porque a educação oferecida pelo Estado em Minas Gerais possui pouca qualidade.

Essa é a realidade que os alunos encontram na sala de aula hoje. Não é realidade do futuro, é a realidade do presente. Entretanto no futuro essa juventude serão os adultos que enfrentarão os problemas da sociedade. Depende dos professores dar o instrumento a eles de raciocínio para poderem saber se colocar como classe trabalhadora em defesa dos seus direitos. Porque são direitos registrados na Constituição Federal e acordados internacionalmente nas convenções de trabalhadores da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é um órgão capitalista. O Brasil não conseguiu atender minimamente às convenções estabelecidas pela OIT, que é um órgão capitalista. Não são acordos socialistas ou acordos comunistas, são acordos capitalistas os quais o país não consegue implementar. E isso ainda é parte da luta sindical de que o Brasil acompanhe e faça valer os acordos dessas convenções internacionais.

Temos também como desafio docente, formar para contribuir na construção de uma população cidadã, solidária, ética, política e ecologicamente responsável. Há os profissionais que acreditam que ao se deslocarem das empresas privadas para trabalhar na educação não terão certos tipos de problemas. Acham que não terão mais prazos a cumprir, problemas com maquinário, com o cumprimento de metas, etc, no entanto a educação também possui muitos problemas, e não há como escapar.

A formação pedagógica na educação profissional

69Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

Contudo temos uma compensação ao trabalharmos na educação. Quando percebemos o avanço dos alunos, nos regozijamos dessa conquista. Para um docente quando um jovem consegue relacionar o mundo com o que Le estuda, quando ele compreende a lógica matemática na realidade, é um contentamento sem fim.

O magistério possui essa magnitude de exultação. Mas não sem problema, sem conflito e sem estudo. Nós, professores, não estamos preparados para enfrentarmos esses desafios. Todos os problemas mencionados anteriormente sobre o salário mínimo, a CLT, não se aprende na faculdade. Não se aprende sobre os tipos de problemas enfrentados pelos alunos. Não sabemos como as lutas do movimento sindical, as demandas da juventude, os conflitos dos jovens da periferia, etc. se relacionam com o nosso fazer docente. Como pensa o aluno do ensino técnico, que demandas ele tem para formação, não apreendemos em nossa formação. Nossa formação inicial não nos possibilita essa discussão. Mas temos que nos informar, investigar e estudar para compreendermos a realidade do aluno.

Esse é o desafio do professor: formar trabalhadores capazes de gerir sua vida. Gerir a própria vida é poder decidir, por si próprio, o seu futuro. Os jovens brasileiros os quais nós pesquisamos, nunca conversaram sobre os seus anseios futuros com ninguém. Nem o jovem aluno da escola técnica, nem o jovem do ensino médio da rede estadual e nem os jovens do ensino médio das escolas de classe média alta de Belo Horizonte (BH).

Nós pesquisamos os alunos da escola Bernoulli, uma escola para a classe alta, os alunos do colégio Loyola, que é a escola dos jesuítas em BH. Pesquisamos os alunos da escola Santo Antônio, que é a escola da tendência franciscana de BH, que também é uma escola de classe alta. Também pesquisamos jovens de pobreza extrema, fazendo os mesmos questionamentos. O que você quer ser no futuro? Quem conversa com você sobre o futuro? Você tem alguma ideia do futuro? Já procurou alguma informação sozinho? Onde você procurou informação? A que materiais você teve acesso? O que você sabe sobre o mundo do trabalho, mercado de trabalho ou que outros planos, além de trabalho você tem? Realizamos esse questionamento porque a vida não é só trabalho.

O trabalho é princípio educativo, mas o trabalho não é 100% da vida. A vida é muito mais do que trabalho. Por isso não podemos perder também essa dimensão humana. A escola não forma máquinas de produção, estamos formando seres humanos.

Suzana Lanna Burnier Coelho

70 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

É um desafio formar trabalhadores capazes de gerir sua vida, seu trabalho, sua categoria profissional e a sociedade. Se não formarmos jovens que são capazes de pensar a sociedade, teremos jovens que são facilmente manipulados. Temos que analisar os tipos de questões que estão sendo vistas, por qual parcela da juventude e que tipos de questões estão sendo vistas pelos alunos do Instituto Federal. Essas questões são de responsabilidade dos professores também. Mais dos professores do que da família, pois os professores, provavelmente, passam mais tempo com esses jovens do que os seus pais.

A escola tem que formar para o usufruto do tempo livre por meio de conferência com os alunos sobre o tempo livre, ensinando-os a utilizar esse tempo, pois temos visto e temos experiência de trabalhadores que não sabem o que fazer com o tempo livre. Por isso na escola se faz necessário ter o horário de leitura para criar volume e hábito de leitura nos alunos. Também ter o horário para o aluno falar, discutir, debater, mesmo que ele tenha problemas para falar em público, mas faz-se necessário ter esses momentos na escola.

A discussão sobre formação de professores para a educação profissional passa por uma reflexão sobre a juventude de hoje: quem são os jovens de hoje, quais são os diferentes segmentos de jovens que estão na sociedade, quais as maneiras de ser jovem que estão dentro dos Institutos Federais e de cada campus. Quais projetos esses jovens possuem? Nossas propostas não estão em sintonia com os projetos que eles possuem. Nem os da classe alta nem os da classe média e nem os da classe baixa.

Os jovens da classe alta têm um único projeto: passar no vestibular de uma universidade pública, mas ao perguntamos a esses jovens o porquê da escolha dessa profissão alguns nos responderam que antes haviam escolhido outra, mas desistiram por imposição da família. Nesse sentido, é um desafio formar pessoas capazes de gerir sua vida.

Conhecimento científico sistematizado: o que o professor precisa

O professor precisa conhecer o campo científico-tecnológico de atuação para formar trabalhadores competentes e isso significa se atualizar no seu campo científico-tecnológico. Mas para ser professor da educação profissional, hoje, é necessário saber mais do que o que se ensina. É preciso

A formação pedagógica na educação profissional

71Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

saber lidar com as TICs. Também é necessário, por exemplo falar inglês, pois ao utilizarmos somente as páginas em português na internet, temos acesso a 0, 10% de informação disponível na web. Além disso, o professor precisa conhecer a sociedade brasileira.

Muitos docentes acreditam que por serem engenheiros, químicos, enfermeiros, administradores não precisam conhecer a sociedade.Entretanto, todo cidadão que está no ensino tem que ter o conhecimento da sociedade brasileira. Mas a formação dos docentes não atende às essas exigências, por isso a escola onde o professor atua é a responsável em prover essa formação, por meio de formação continuada periódica.

O professor também precisa conhecer a educação brasileira: temos que conhecer os impasses da educação brasileira, o problema que o ensino médio enfrenta, e as demais lutas em prol da educação.

Outro conhecimento importante para o docente é conhecer a instituição escolar. Conhecer o mecanismo de funcionamento da instituição escolar para compreender as relações estabelecidas na escola, os mecanismos de democracia dentro da escola, os obstáculos e as possibilidades da educação em sua relação com a família do aluno.

Compreender as virtudes e as contradições, os limites e as possibilidades do ser humano. Temos que conhecer de psicologia e de psicanálise para poder lidar com o conflito, para poder lidar com o aluno que teve um acesso de raiva dentro da sala de aula. Temos que aprender a lidar com essas situações, temos que saber lidar com essas dificuldades.

Conhecer os diferentes processos de construção de conhecimento e ensino e as diversas estratégias e recursos que os incrementam para conseguirmos planejar e avaliar os processos de aprendizagem dos alunos.

Uma profissão demanda conhecimentos específicos. Não há como exercer uma profissão sem construir conhecimentos relativos a ela. Ao conseguirmos agregar novos saberes ao nosso conhecimento profissional, teremos segurança, eficiência e conseguiremos readequar periodicamente as metas e as estratégias de acordo com a variação de uma turma para outra, de um público para outro, de um turno para outro.

Entretanto a formação pedagógica inicial e continuada na educação profissional brasileira sempre foi precária, provisória e emergencial. Não temos cursos de formação e não temos financiamento. Por isso temos que parar de esperar que os governantes façam algo em prol da formação de professores, temos que fazer por conta própria. Temos que deixar de aceitar tudo que nos é imposto.

Suzana Lanna Burnier Coelho

72 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

Também se faz necessário que ensinemos aos nossos alunos as lutas da classe trabalhadora para que eles possam defender os seus direitos por meio das lutas de cada categoria profissional e da classe trabalhadora como um todo.

À medida que enxergamos a complexidade de nosso trabalho que passamos a perceber que somos mais engenheiros que lecionam do que professor de engenharia. Temos que formar licenciandos como educadores incansáveis pela profissionalização da docência, porque é das profissões mais dignas. E isso repercute na relação do professor com o aluno, pois aprender tem que ser uma relação de prazer com o conhecimento que leve ao entusiasmo em aprender.

A formação contínua está na lei e cada instituição é obrigada por lei a oferecer a seus professores. Temos Institutos Federais em que o professor, ao chegar, tem que fazer uma especialização ou um programa especial de formação pedagógica durante o estágio probatório.

Muitos aspectos devem ser fortalecidos na formação do docente. A tarefa da formação está colocada para docentes e para discentes no dia a dia da escola. A relação com o aluno, com outros professores devem ser objeto de reflexão e de formação. Para isso precisamos de condições institucionais que os profissionais discutam o seu fazer docente e que possam verbalizar suas experiências e estabelecer trocas. Precisamos de uma coordenação capaz de pautar, coordenar, sistematizar, comunicar e acompanhar essas reflexões, registrar e socializar, interna e externamente, por meio de publicações acadêmicas as discussões sobre ensino. E, assim, teremos, como nos afirma Chön, um profissional reflexivo.

A articulação entre ensino, pesquisa e extensão

A pesquisa deve relacionar com a extensão e integrar os processos de ensino e todos os professores devem ser docentes-pesquisadores.Essas ações devem também se transformar em atividades de formação dos alunos mas também dos próprios professores. E os seus resultados devem ser publicados em revistas de ensino, em eventos, jornais com transbordamento para extensão comunitária, consultorias, etc.

Possuir espaços institucionais de reflexão e de formação é obrigatório para a escola e isso deve integrar o Projeto Pedagógico da escola, o Plano de curso que devem ser revistos a cada 3 ou 4 anos. Devemos vencer a

A formação pedagógica na educação profissional

73Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

rotina e a burocracia dentro da escola. É difícil fazer com que o Conselho de Classe Permanente ou colegiado de curso seja desburocratizado, pois não se obtêm resultados transforma-se em algo formal.O conselho de classe tem que ser um lugar para discussão pedagógica e não apenas burocrática. Há de se realizar a discussão de como está o andamento de cada turma, realizar o balanço das soluções apresentadas periodicamente e não esperar um ano para saber se uma ação está dando certo ou não.

Se a escola lota os horários do professor com aula, há de se reivindicar tempo para a discussão pedagógica por turma. Porque a única maneira de ter sucesso na educação é fazer acompanhamento: planejar, avaliar, realizar o processo permanente de pesquisa, formação e avaliação. Consi-derando-se que o foco é o aluno, o foco não é o diário, não é a nota, não é saber quantos foram aprovados, quantos reprovados. É preciso ir além.

É necessário valorizar os espaços de discussão e superar o burocratismo e dar apoio e incentivo para a participação e o diálogo. Novas tarefas, novas condições para executar. Temos que ter uma pauta didática em pelo menos uma reunião bimestral de cada coordenação. Relatos de experiências bem-sucedidas; planejamento coletivo; produção de material de ensino; oficinas de produção de material de ensino de cada coordenação; troca de soluções pedagógicas; estudos de técnicas didáticas e produções científicas sobre ensino das áreas; workshop de ensino da semana pedagógica, etc., tudo isso é necessário permanentemente.

Algumas sugestões de pautas para essas reuniões pedagógicas: a) Desenvolvimento do grupo de alunos; b) Estratégia de aprendizagem mais eficaz; c) Instrumento de avaliação de recuperação; d) Uso de mapas conceituais; uso do método de projeto; e) Uso do ensino contextualizado e aprendizagem significativa; f) Gestão de conflitos no desenvolvimento de vínculos positivos em sala de aula e g) Formação do aluno para o ofício de estudante.

Considerações finais

A complexidade do mundo atual não nos deixa ter um único aporte teórico que resolva todas as questões da educação de modo que se tornou uma obrigação nossa de sempre duvidar de todos os aportes teóricos para nos mantermos na condição de críticos e de cientistas. Temos que ler

Suzana Lanna Burnier Coelho

74 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

a teoria tendo a mediação a prática. Essa atitude nos ajuda na medida a enfrentar nossa infinita ignorância diante dos avanços das teorias. Do ponto de vista pedagógico, pensar num aporte teórico geral definitivo e inquestionável será não só temerário, mas sobretudo insuficiente. Necessitamos estabelecer um diálogo permanente com a sociologia, a filosofia e demais ciências humanas. Acredito que um aporte pedagógico que nos ajuda a pensar melhor a sala de aula hoje tem a ver com contribuição de Vygotsky que por meio do construtivismo sócio-interacionista nos permite ter uma concepção aberta que se relaciona com a circunstância histórica em que se encontram os alunos, professores e a escola.

Acreditamos com base no pressuposto de que o trabalho pedagógico é construído junto com todos os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem: professores, alunos, família e os que estão indiretamente presentes, como a mídia que está presente em todas as salas de aula. Nesse sentido, temos o discurso dos sujeitos não presentes à sala de aula, mas que estão presentes em nossas mentes, que a filosofia nos ajuda a pensar com a discussão sobre ideologia. O construtivismo sócio-interacionista está aberto e vê o processo de aprendizagem como construção da pessoa. Não se pode ter um curso baseado apenas em uma técnica, em uma especialidade, como um curso só na metodologia de projetos, só de aulas expositivas, porque não funciona. Tem que haver uma mudança de técnica, porque cada técnica favorece o desenvolvimento de determinadas habilidades.

O Brasil é um dos maiores consumidores de grifes de luxo e nós temos muitos milionários no país e metade das nossas crianças vivem sem esgoto. Não há como continuar aceitando essa situação. A educação desempenha papel político importante neste processo. Podemos fazer a diferença na vida de todos não, mas na vida de vários de nossos alunos. Uma escola sensacional, um ótimo projeto, uma compreensão da realidade: nós podemos fazer a diferença, sim.

Referências

COELHO, Suzana Lanna Burnier. Visões de mundo e projetos de técnicos de nível médio. 2003. 278f. Tese (Doutorado Educação Brasileira) – Departamento de Edu-cação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

A formação pedagógica na educação profissional

75Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 65-75, jan./jun. 2014

COELHO, Suzana Lanna Burnier. Repensando um projeto de educação tecnológica referenciado na formação do cidadão-técnico: algumas reflexões para a formu-lação de novas propostas educativas. In: Revista Educação & Tecnologia, Belo Horizonte, n. 2, p. 52-56, jul.-dez. 1997.

GATTI, Bernadete Angelina. Os professores e sua identidade: o desenvolvimento da heterogeneidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, no. 98, ago. 1996, p. 85-90.

SCHON, Donald. Educando o profissional reflexivo. Porto Alegre: Artmed, 2000.

76 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 76-85, jan./jun. 2014

Ensino médio integrado: prescrições e realidade

Marcelo LimaUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES) [email protected]

Jaqueline Ferreira de AlmeidaInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES) [email protected]

RESUMOO artigo discute o desenvolvimento de práticas que promovem a formação integral do ser humano e contemplam, de maneira indisso-ciável, a formação para o trabalho e a formação cidadã. A integração entre o Trabalho e a Educação, a formação para o trabalho e para o mundo social exige que se pense no ser humano em todas as suas dimensões. Na perspectiva histórica da educação brasileira, podemos observar a dualidade entre a formação para o trabalho e formação das elites dirigentes. A superação deste quadro encontra no contexto histórico brasileiro muitos avanços e retrocessos.Palavras-chave: Ensino Médio Integrado. Educação Profissional. Legislação Educacional Brasileira.

ABSTRACTThis article discusses the development of practices that promote the integral formation of the human being and contemplate, inseparably, training for work and citizenship training. Integration between Labor and Education, training for work and the social world, requires to think about the human be inginall its dimensions. In historical perspective of Brazilian education, we can see the separation of training for work, which was education for the “underdog” of luck, and the work up training, training for life. The general education and vocational education were between advances and setbacks in the Brazilian historical context, interconnected and while disconnected.Keywords: Integrated High School. Professional Education. Brazilian Educational Legislation.

Ensino médio integrado: prescrições e realidade

77Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 75-85, jan./jun. 2014

Introdução

No contexto das políticas educacionais no Brasil, há um percurso de articulações e desarticulações que tensionam a formação geral (ensino propedêutico) e a formação para o trabalho (ensino técnico). A legislação é um campo em que podemos identificar implícita e explicitamente uma série de avanços e recuos em que esta tensão se estabelece.

O preparo para o trabalho assume papel importante para o desenvolvimento e para a constituição da identidade humana. O trabalho assume, nesse aspecto, a dimensão de princípio educativo, quando o sujeito, ao modificar, pelo trabalho, o espaço em que está inserido para atender às suas necessidades, transforma a si mesmo.

Nesta direção Frigotto (2005) afirma que

O trabalho como princípio educativo, não é, primeiro e sobretudo, uma técnica didática ou metodológica no pro-cesso de aprendizagem, mas um princípio ético-político. (...) é, ao mesmo tempo, um dever e um direito. Um dever por ser justo que todos colaborem na produção dos bens materiais, culturais e simbólicos, fundamentais à produção da vida humana. Um direito pelo fato de o ser humano se constituir em um ser da natureza que necessi-ta estabelecer, por sua ação consciente, um metabolismo com o meio natural, transformando em bens, para sua produção e reprodução. ( p. 60-61)

Desse modo para esse o trabalho se constitui num direito do homem. Ou seja, todos devemos fazer parte de uma sociedade produtiva e que tem no trabalho o modo privilegiado de inserção social e política. Isto não se confunde com a busca da formação do ‘cidadão produtivo’, adaptado, adestrado, treinado e polivalente” (idem, p. 73). Para Frigotto (2006) o trabalho constitui “uma relação social que expressa a forma pela qual os homens produzem sua existência”. Trata-se de uma “unidade do técnico e do político, do teórico e do prático, no processo educativo” (p. 28) que não permite render-se ao ditames do mercado que se enquadra numa cidadania subalternizada.

Nessa perspectiva, a formação do trabalhador deve ter uma visão eman-cipatória, e deve ser construída a partir de sua história de vida, de ser social,

Marcelo Lima e Jaqueline Ferreira de Almeida

78 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 76-85, jan./jun. 2014

para que seja agente transformador do seu contexto social. A formação deve ser global, com o intuito de auxiliá-lo a compreender o mundo e nas relações sociais, políticas e econômicas nas quais está inserido.

A educação profissional e tecnológica no contexto da educação básica enseja essa possibilidade, mas o que temos em nosso percurso histórico educacional é predominantemente a separação e a dualidade entre educação propedêutica e educação profissional. Essa dualidade na educação profissional e a dicotomia entre a formação para o mercado, oferecida à população de baixa renda, socialmente excluída, e a formação intelectual, para a elite dirigente, geram importantes consequências para a formação do trabalhador, acarretando em um ensino que privilegia a formação técnica em detrimento da formação intelectual.

Nesse contexto histórico, há apenas dois caminhos a seguir academicamente: ou o aluno fazia os estudos profissionais e, ao terminá-lo, ia para o mercado de trabalho, ou ia para a formação geral e ingressava no ensino superior. Como afirma Ciavatta (2005), tal dualismo nos coloca diante de “uma luta política permanente entre duas alternativas: a implementação do assistencialismo e da aprendizagem operacional versus a proposta da introdução dos fundamentos da técnica e das tecnologias, o preparo intelectual (p. 88)”.

Ensino Médio Integrado: da prescrição à realidade

A política educacional, nos anos 1960 esteve sob a influência dos acordos Mec-Usaid que instituíram a reforma educacional que alterou a lei nº 4026/1961 e resultou na lei nº 5.692/1971 cuja direção foi tendo em vista a expansão industrial por que passava o país no referido período de atender a necessidade de mão-de-obra para o mercado, e conter a demanda pelo ensino superior, por meio da profissionalização obrigatória.

Assim, o Art. 5º do § 1º da Lei 5.692/71 afirmava que “observadas as normas de cada sistema de ensino, o currículo pleno terá uma parte de educação geral e outra de formação especial, sendo organizado de modo que (...) b) no ensino de segundo grau, predomine a parte de formação especial”. Esse dispositivo nos revela, de forma explícita, os interesses em jogo que deram a direção da política educacional.

Com a revogação da lei 5.692, em virtude do processo de redemocra-tização do país, a Constituição Federal de 1988 e a aprovação da atual Lei

Ensino médio integrado: prescrições e realidade

79Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 75-85, jan./jun. 2014

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96, temos ainda mal resolvida a questão das finalidades da educação básica.

No artigo 35, inciso II, afirma-se que uma das finalidades do ensino médio é a “preparação básica para o trabalho, para o exercício da cidadania do educando e para continuar aprendendo”. Ao fazer o ensino médio o educando deve “ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores”. E que o educando deve compreender “os fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos. O texto legal afirma ainda que os processos educativos nesta etapa devem relacionar a “teoria com a prática, no ensino de cada disciplina” (BRASIL, 1996).

Em contradição com a própria LDB que ensejava a integração do ensino médio e técnico, no governo FHC, surge o Decreto 2.208/1997, que estabeleceu no seu artigo 5º que “a educação profissional de nível técnico terá organização curricular própria e independente do ensino médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou sequencial a este” (BRASIL, 1997, grifo nosso). Neste caso a dualidade passa a ser assumida de modo claro na legislação, validando a dicotomia educação geral ensino específico.

São muitos os dispositivos legais que indicam, legitimam e mesmo obrigam a integração curricular dos docentes, discentes, conteúdos, espaços e tempos educativos nos diversos níveis, etapas e modalidades da educação escolar.

De modo mais direto, sobre esse tema, destacam-se os dispositivos legais que versam na constituição federal e na LDB sobre os objetivos da educação escolar. Para a CF de 1988 em sua versão mais atualizada a educa-ção visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Artigo 205º da CF 88). Evidencia-se o imbricamento entre a educação geral e educação técnica, na medida em que o próprio desenvolvimento da pessoa pressupõe sua for-mação e desenvolvimento físico, cognitivo, moral, social e produtivo, sendo este último relacionado às capacidades técnicas psicomotoras, relacionais e tecnológicas. Também podemos destacar que o exercício da cidadania não se faz sem a apropriação dos conhecimentos sociais e econômicos que envolvem o Trabalho como relação social e como processo produtivo.

Na LDB (lei nº 9394 de 1996) está consignado no seu artigo 1º (título I e parágrafo 2º) que a educação escolar deve se vincular e se desenvolver

Marcelo Lima e Jaqueline Ferreira de Almeida

80 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 76-85, jan./jun. 2014

no mundo do trabalho com vistas à fornecer ao educando “os meios de progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Neste caso, a Lei define que a educação básica assume o duplo papel de continuidade e terminalidade sem perder de vista a importância da contextualização e do vínculo da educação com a prática social e com a realidade tecnológica, científica e produtiva.

Neste sentido, para cumprir os objetivos educacionais assumidos pela legislação, a LDB nos seus artigos 35 (seção IV, inciso II e IV) e 36 (§ 1º e incisos I e II) regulamentou de modo ainda mais detalhado a oferta de educação profissional técnica de nível médio na sua forma integrada ao ensino médio cujas finalidades são de fazer a “a preparação básica para o trabalho” de modo que o educando seja “capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação”. Mas destaca que esse processo educativo deve propiciar ao educando “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina”. Nestes termos, no final do currículo do Ensino Médio os educandos devem demonstrar o “domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna” e ter o “conhecimento das formas contemporâneas de linguagem”. Isso nos remete a que este conteúdo deva ser de tal maneira priorizado sendo assim objeto de verificação e avaliação.

Por esta lógica “o Ensino Médio, atendida à formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas”. Ou seja, conforme a norma vigente: “a preparação geral para o trabalho, e, facultativamente, a habilitação profissional poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de Ensino Médio ou em cooperação com instituições especializadas” (artigo 36- seção IV-A – parágrafo único). Assim, a educação profissional técnica de nível médio pode ser ofertada na forma integrada (Incisos I e II do artigo 36-B) por meio de cursos técnicos integrados com Ensino Médio.

Também as finalidades da criação dos IFs (Lei Nº 11.892, de 29 de Dezembro de 2008)1 assumiu dentre suas principais finalidades na seção II do artigo 6º (III) de “promover a integração e a verticalização da educação

1 Lei que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências.

Ensino médio integrado: prescrições e realidade

81Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 75-85, jan./jun. 2014

básica à educação profissional [...]”. Ou seja cabe aos IFs “ministrar educação profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos” (Seção III – artigo 7º).

A legislação que criou os IFs bem como a relativa ao Proeja obrigam a garantia da oferta integrada de cursos técnicos em termos quantitativos das matrículas em cada ano. A lei nº 11.892 no seu artigo 8º que esta oferta os IFs “em cada exercício, deverá garantir o mínimo de 50% (cinquenta por cento) de suas vagas” [...] “para atender” a esses objetivos (inciso VI – alínea b).

Com a inclusão do disposto no decreto nº 5.840 de julho de 2006 na LDB, instituiu-se o Proeja. Neste programa, o governo federal assume a questão da integração como estratégia fundamental para fazer convergir a política de educação de jovens e adultos e a política de educação profissional no contexto do ensino médio. Segundo o artigo 2º desse decreto “as instituições federais de educação profissional deverão implantar cursos e programas regulares do Proeja até o ano de 2007”.

Para tanto, as instituições deverão disponibilizar para esta oferta, em 2006, no mínimo dez por cento do total das vagas de ingresso da instituição com ampliação “a partir do ano de 2007”. Procedimento esse que deve ser incluído “no plano de desenvolvimento institucional da instituição federal de ensino” (Decreto nº 5.840 – Brasília, 13 de julho de 2006).

Assim, a integração do Ensino Médio à educação profissional torna-se mais explicitamente compulsória para as IFs de educação profissional no que tange certa quantidade de vagas. Essa norma estabelece um intenso vínculo da instituição IF com a oferta de Ensino Médio integrado à educação profissional, dando lugar a um Ensino Médio público de qualidade que se articula vertical e horizontalmente com a educação profissional técnica e tecnológica.

As orientações nacionais constantes das normas federais acerca da integração do ensino médio à educação profissional estão reafirmadas nas normas locais. O conteúdo normativo desse conjunto jurídico demonstra reiteração e sintonia entre as determinações educacionais em seus diversos níveis.

Do ponto de vista normativo, mais recentemente em 2012, mais regras prescreveram ainda com mais detalhes a integração curricular. Foram baixadas pelo CNE (Conselho Nacional de Educação) novas diretrizes

Marcelo Lima e Jaqueline Ferreira de Almeida

82 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 76-85, jan./jun. 2014

curriculares para orientar a construção do currículo no âmbito da educação profissional técnica de nível médio. Tal formulação tem consequências diversas sobre o processo em curso nas unidades e sistemas de ensino de implantação do Ensino Médio Integrado.

A Resolução CNE/CEB 6/2012, no artigo 4º retoma os fins e objetivos da educação já explicitados na LDB e na CF, afirmando que:

A Educação Profissional Técnica de Nível Médio, no cum-primento dos objetivos da educação nacional, articula--se com o Ensino Médio e suas diferentes modalidades, incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA), e com as dimensões do trabalho, da tecnologia, da ciência e da cultura.

Aqui, reitera-se a dupla intencionalidade de se propiciar “simultanea-mente, a qualificação profissional e a elevação dos níveis de escolaridade dos trabalhadores”. Além da “finalidade” de “proporcionar ao estudante conhecimentos, saberes e competências profissionais necessários ao exercício profissional e da cidadania, com base nos fundamentos científico-tecnológicos, sócio-históricos e culturais”.

Nesta resolução, o capítulo II, delineia 16 princípios, dos quais destacam-se: a) “relação e articulação” do Ensino Médio com a profissionalização técnica com vistas à formação integral (inciso I); b) “desenvolvimento para a vida social e profissional” (inciso II); c) “trabalho como princípio educativo, integrado e integrando ciência, tecnologia e cultura” (inciso III); d) integração entre saberes para a produção do conhecimento e para a intervenção social (inciso IV); e) indissociabilidade da educação com a prática social e da teoria com a prática (inciso V e VI); f) interdisciplinaridade no currículo e na prática pedagógica (inciso VII); e g) contextualização e flexibilidade para a compreensão de significados e à integração entre a teoria e a vivência da prática profissional (inciso VIII);

Tais princípios explicitam a conceitos-chave como “relação”, “articu-lação”, “formação integral”, “indissociabilidade”, “interdisciplinaridade”, “contextualização”, “flexibilidade”, relação “teoria-prática social” e “vivência profissional”. Isso corre de modo a tentar dar sentido aos dois grandes desafios colocado para esse processo formativo que é o de estabe-lecer o “Trabalho como princípio educativo” e a “Pesquisa como princípio pedagógico” (incisos VIII a XVI).

Ensino médio integrado: prescrições e realidade

83Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 75-85, jan./jun. 2014

Apesar dos dispositivos legais, o formato pedagógico do ensino médio integrado à educação profissional não se tornou hegemonia. No trabalho de Moraes e Alavarse (2011), podemos observar que apesar de ser uma política curricular avançada os curso técnicos integrados representam ainda uma contratendência à fragmentação curricular predominante na oferta escolar do ensino médio. Segundo esses autores, em 2010 as matrículas no EM integrado atingiram apenas 215.533 alunos (2, 6% do total da oferta de ensino médio e profissional), portanto há uma oferta residual da forma integrada e hegemonia da oferta subsequente (p. 810-811).

Acreditamos que muitos são os fatores a determinarem a sua pouca implementação. Destaca-se a falta de uma vontade política que financie e estruture as condições objetivas para que as escolas possuam laboratórios, oficinas e pessoal especializado. Mas também é necessário que se hegemonize um projeto pedagógico coerente que coloque na ordem do dia nas escolas de ensino médio no Brasil uma concepção de ensino que supere tanto do ponto de vista epistemológico quanto político o dualismo que está entranhado em nossa sociedade e em nossa prática escolar.

Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) a materialização histórica da integração curricular não se esgota nos seus dispositivos legais nem tão pouco nos determinantes pedagógicos e escolares, mas se articulam em questões mais amplas da própria sociedade. Segundo Ciavatta e Ramos (2011),

A dualidade e fragmentação no ensino médio e na edu-cação profissional devem ser compreendidas não apenas na sua expressão atual, mas também nas suas raízes sociais – a estrutura secular da sociedade de classes e de implantação do capitalismo. Uma visão da totalidade social evidencia o sentido da disputa do consenso na sociedade e dos recursos públicos para a educação pro-fissional reduzida ao mercado ou a travessia acidentada para a educação unitária, omnilateral, politécnica, de formação integrada entre o ensino médio e a educação profissional como política pública (p.10).

Na visão de Menezes (2012),

[...] a integração proposta a nível prescritivo (nos docu-mentos que regulamentam o curso) encontra dificuldades

Marcelo Lima e Jaqueline Ferreira de Almeida

84 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 76-85, jan./jun. 2014

em sua efetivação na prática pedagógica, devido à falta de diálogo entre as disciplinas, à formação departamen-talizada dos docentes que, ao se perceberem envolvidos em um currículo que se pretende integral, apresentam sérias limitações na compreensão da inter-relação en-tre as áreas do conhecimento. Urge a necessidade de se investir em um processo de formação continuada capaz de dar subsídio para o diálogo interdisciplinar tão necessário ao melhor desenvolvimento dos cursos técni-cos Integrados (p. 06).

Para Menezes (2012), “se faz necessário o comprometimento docente em assumir os desafios inerentes à integração curricular” (p.07).

Conclusão

A educação para o trabalho, com vistas a formar mão-de-obra para atender ao mercado de trabalho, atravessa as políticas educacionais no Brasil. Apesar de termos na legislação a possibilidade de integração entre a educação geral e formação para o trabalho, as atuais políticas para o ensino médio demonstram muito mais desarticulação do que integração entre educação e trabalho.Como se pode perceber as virtudes pedagógicas e políticas da integração curricular do Ensino Médio e sua base legal são insuficientes para implementação tanto nas redes estaduais quanto na rede federal de ensino.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº 6, de 20 de Setembro de 2012. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Diário Oficial da União: Brasília, 21 de setembro de 2012, Seção 1, p. 22.

BRASIL.Lei Federal nº 11.892, de 29 de Dezembro de 2008. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11892.htm>

Ensino médio integrado: prescrições e realidade

85Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 75-85, jan./jun. 2014

BRASIL. Lei Federal nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996.Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União: Brasília, 23 de dezembro de 1996.

BRASIL. Lei Federal nº 5.692, de 11 de Agosto de 1971.Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, 12 de agosto de 1971.

CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino Médio e Educação Profissional no Brasil: Dualidade e Fragmentação. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 5, n. 8, p. 27-41, jan./jun. 2011.

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise (orgs.). Ensino Médio integrado: concepções e mudanças. São Paulo: Cortez, 2005. p. 83-105.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-social e capitalista. 8ed. São Paulo: Cortez, 2006.

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. A política de educação profissional no governo Lula: um percurso histórico controvertido. In: Revista Edu-cação e Sociedade, Campinas, vol. 26, nº 92, p. 1087-1113, Especial – Out. 2005.

MENEZES, Roseany Carla Dantas. A adoção do currículo do ensino médio in-tegrado e os desafios da prática pedagógica nessa perspectiva curricular: um estudo avaliativo IN: XVI ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino – UNICAMP – Campinas – 2012. Disponível em:<http://www.infoteca.inf.br/endipe/smarty/templates/arquivos_template/upload_arquivos/acervo/docs/3889p.pdf>

MORAES, Carmen Sylvia; Vidigal Moraes e ALAVARSE, Ocimar Munhoz. Ensino mé-dio: possibilidades de avaliação. Educação & Sociedade: Revista de Ciências da Educação. São Paulo, Centro de Estudos Educação e Sociedade, v.32, n. 116, 2011.

86 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

Gisele Ruiz SilvaUniversidade Federal do Rio Grande (FURG) [email protected]

Paula Corrêa HenningUniversidade Federal do Rio Grande (FURG) [email protected]

RESUMOO artigo tem como objetivo evidenciar ao leitor a atualização de discursos da escola moderna configurada a partir do século XVII na constituição da escola inclusiva do final do século XX. Tomam-se como corpus empírico do estudo as edições da Revista Nova Escola publicadas entre 2008 e 2013. Assim, problematiza-se o discurso da inclusão escolar na atualidade a partir da discussão sobre a máxima comeniana todos na escola, a formação da sociedade disciplinar e o processo de escolarização de massas, apontando a escola como uma importante peça para a manutenção da sociedade ainda em nossos dias. Neste estudo, assume-se como campo teórico a perspectiva dos Estudos Foucaultianos tomando como ferramentas analíticas os conceitos de sociedade disciplinar, norma e normalização para entender o contexto no qual a instituição escolar está inserida e quais algumas das condições de possibilidade para a emergência de outras roupagens para uma mesma instituição.Palavras-chave: Escola Moderna. Inclusão Escolar. Estudos Foucaultianos.

ABSTRACTThis paper is aimed to showing he reader the updating of modern school discourses designed since the seventeenth century in the constitution of the late twentieth century inclusive schools. As empirical corpus of our study the editions of the magazine Revista Nova Escola published between 2008 and 2013 were employed. Thus, we problematize the current discourse of school inclusion based on Comenius ideas of everyone in school, the formation of the disciplinary society and the

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

87Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

process of teaching the masses, evidencing schools as important in maintaining our society even nowadays. In this study, our theoretical perspective is based on Foucault’s studies, using as analytical tools the concepts of disciplinary society, norms and normalization, in order to understand the context in which educational institutions are included and which possibilities could bring about the emergence of other garments for the same institution.Keywords: Modern School. School Inclusion. Foucault studies.

Introdução

A atualidade está marcada por diversos atravessamentos. Um deles, fortemente discutido e veiculado nos mais variados meios de comunicação, diz respeito aos movimentos de inclusão: inclusão social, inclusão digital, inclusão escolar... Enfim, uma variedade de estratégias que visam prioritariamente inserir o maior número de sujeitos nas lógicas da vida social do século XXI. Um exemplo disso é a publicação, no ano de 2008, da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva pelo Ministério da Educação, a partir da qual “a educação especial passa a integrar a proposta pedagógica da escola regular, promovendo o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação” (BRASIL, 2008, p. 9).

Tal documento tem como objetivo assegurar a inclusão escolar destes estudantes, assim como orientar os sistemas de ensino quanto às suas atribuições para a efetivação da inclusão. Na correnteza de outros textos legais publicados no Brasil, especialmente a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96 –, a referida Política aponta os caminhos para a organização das instituições escolares no sentido de garantir o acesso de todos os sujeitos em idade escolar, assegurando o atendimento às especificidades de cada um.

O presente artigo é fruto de uma pesquisa mais ampla que tem como problema de investigação analisar o discurso da inclusão escolar na atualidade tendo como escopo as enunciações veiculadas na Revista Nova Escola a partir da implantação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva. Cercando esse objetivo maior, neste texto dedica-se a investigar alguns deslocamentos dos modos de pensar

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

88 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

as formas de educar através dos séculos, buscando na história alguns acontecimentos que nos permitem pensar as artes de educar a partir de um momento histórico em que a escola é local para todos. Nesse sentido, o que norteia a escrita deste artigo é evidenciar ao leitor atualizações de alguns pressupostos da escola moderna do século XVII na constituição da escola inclusiva vigente no final do século XX.

Vale destacar que, ao usar o termo escola moderna, estamos nos referindo a essa instituição que se coloca a serviço da construção de uma sociedade que passa a existir a partir do século XVII tendo como solo a episteme moderna (Foucault, 2009). A episteme moderna nasce no século XVII a partir de novas formações normativas que instituem uma ruptura com os pressupostos da Idade Média, tendo na Razão a forma de olhar para o mundo, para as coisas, para a vida, dada pelos saberes científicos que se expandem na época.

Entre outras aspirações da Modernidade, destacamos o forte desejo de ordenação das coisas e a busca por uma solidez nas formas de pensar e agir no e sobre o mundo. No entanto, em nossos dias, embora percebamos uma Modernidade não tão sólida e certezas não tão certas quanto as sonhadas pelos idealizadores da Modernidade, ainda nos encontramos sob o abrigo da episteme moderna. Nossas formas de pensar, ser e estar no mundo são marcadas, substancialmente, pelos contornos da Modernidade, instaurando verdades e saberes estabelecidos pelas caracterizações deste tempo que nos constitui ainda no século XXI.

Sendo nosso interesse pensar os diferentes elementos que compõem a instituição escolar na atualidade, estruturamos este artigo da seguinte forma: inicialmente trazemos à discussão o que intitulamos Rastros de uma educação moderna escolarizada, onde pontuamos alguns pressupostos comenianos (COMENIUS, 2001) que compunham traçados da proposta educacional do século XVII e que tomaram a escola como uma das principais instituições a serviço da construção de uma sociedade Moderna. A seguir, na subseção A sociedade disciplinar e as formas de produzir sujeitos na escola, passamos a discutir a formação da sociedade disciplinar e o quanto a escola é uma importante peça para a manutenção da sociedade ainda em nossos dias. Tendo como foco de análise os discursos sobre inclusão escolar que foram veiculados pela Revista Nova Escola publicadas no período de 2008 a 2013, trazemos, ao longo de todo o artigo, excertos das reportagens que evidenciam as estratégias de gerenciamento da escola inclusiva.

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

89Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Por discursarmos a partir de uma perspectiva dos Estudos Foucaultianos, fazemos uso de alguns conceitos elaborados pelo filósofo Michel Foucault a fim de entender as relações que se estabeleceram/estabelecem entre sociedade e escola, abordando principalmente os conceitos de sociedade disciplinar, norma e normalização para entender o contexto no qual a instituição escolar está inserida e quais algumas das condições de possibilidade para a emergência de outras roupagens para uma mesma instituição.

É importante destacar que, nesta tarefa, não temos a intenção de buscar a origem da escola inclusiva. Uma vez que, seguindo as pistas do filósofo Michel Foucault (2002), assumimos a ideia de que, se existe algum a priori, este é o a priori histórico; ou seja, é na história, nos acontecimentos históricos que poderão ser mapeadas as condições de possibilidade para a emergência de um fenômeno. É a reunião de alguns destes acontecimentos que pretendemos realizar na escrita deste artigo, no que se refere à emergência/constituição da escola inclusiva.

Rastros de uma educação moderna escolarizada

O século XVII é também o século de Comenius e sua Didactica Magna (1621-1657), um tratado sobre a educação considerada “a obra fundante da Modernidade em Pedagogia” (NARODOWSKI, 2006, p. 14). Para Narodowski, “a pedagogia comeniana implanta uma série de dispositivos discursivos sem os quais é praticamente impossível compreender a maior parte das posições pedagógicas atuais” (idem, p. 16). Por assumirmos a importância desta obra para pensarmos os propósitos da escola moderna, optamos por pontuar alguns elementos que nos possibilitam pensar o quanto a obra comeniana possa ser uma das condições de possibilidade para a emergência da escola inclusiva no final do século XX.

Segundo Comenius, “o homem tem necessidade de ser formado para que se torne homem” (2001, p. 101). Para ele, o homem não nasce apropriado dos saberes, mas com a capacidade de adquiri-los ao longo da vida. Nesse sentido, é imprescindível que todos passem pelo processo educacional, já que este é o único meio de dignificar o homem como homem, de tirá-lo da animalidade e aproximá-lo do Criador.

Ainda, seguindo a lógica apresentada pelo desenvolvimento da Ciência, na época em que uma de suas atribuições era a classificação e a ordenação

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

90 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

das coisas do mundo, Comenius define “todos” como “todas as idades”, atribuindo a cada idade uma etapa escolar correspondente. Além disso, defendia que a escolarização se efetivasse nas escolas comuns e que todas as classes sociais tivessem acesso a ela. Há também outros dois aspectos sobre a obra comeniana pontuados por Narodowski: 1 – “a atividade educativa precisa do poder ordenador da atividade humana” (2006, p. 28); e 2 – é por meio da educação que “o homem deve deixar esse ‘estado de brutalidade’, de imaturidade, para passar a fazer parte do Gênero Humano” (idem, p. 33) [grifos do autor].No livro Comenius & a Educação, Narodowski resume os pressupostos de Comenius da seguinte forma:

Nada fica sem solução para Comenius; a pansofia não exclui ninguém: antes, abrange cada um dos habitan-tes do mundo. Assim, plasmado tal ideal num projeto educativo, o fato de que ninguém fique fora do alcance da pansofia significa que não haverá homens, agora transformados em alunos, que fiquem fora do alcance da disciplina escolar (2006, p. 32).

Para problematizar o tema, destacamos a seguir alguns achados das reportagens da Revista Nova Escola1 que nos provocam a pensar o quanto certos pressupostos apresentados na Didactica Magna ainda mobilizam a educação de nossos dias:

Como ter certeza de que um aluno com deficiência está apto a frequentar a escola? Aos olhos da lei, essa ques-tão não existe – todos têm esse direito (LOPES, 2010) [grifo nosso].

Crianças com deficiência mental podem ter mais difi-culdade de se alfabetizar, mas adquirem a postura de estudante (LOPES, 2010a) [grifo nosso].

Em que turma o aluno com deficiência deve ser matricu-lado? Junto com as crianças da mesma idade (LOPES, 2010a) [grifo nosso].

1 A Revista Nova Escola é uma publicação da Editora Abril veiculada no país desde 1986. Tem como público alvo professores da educação básica e equipes diretivas das escolas, divulgando orientações de âmbito legal e aspectos pedagógicos.

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

91Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Nos excertos apresentados acima, podemos pontuar três pressupostos comenianos postos em operação para sustentar o discurso da inclusão escolar, a saber: “ensinar a todos”; “deixar o estado de brutalidade” e a “cada idade uma etapa escolar específica”(COMENIUS, 2001). As políticas públicas que regulamentam a educação no Brasil são bastante objetivas ao definir a necessidade de que todos os estudantes devem ter acesso à escola. A Constituição Federal, no seu artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” (BRASIL, 1988), estendendo a todos os sujeitos o direito à escolarização. Além disso, outras políticas especificam a organização da escolarização por níveis de ensino e faixa etária, o que fica claro, por exemplo, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96 – quando, no título V, capítulo I, é mencionado: “a educação escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior” (BRASIL, 1996). Esse discurso é reforçado pela Revista Nova Escola ao afirmar que “todos têm esse direito” e “junto com as crianças da mesma idade”, conforme apresentado nos excertos anteriores.

Ao se referir que os alunos “adquirem a postura de estudante”, mais uma vez a Revista Nova Escola põe em funcionamento um dos ensinamentos de Comenius sobre a dignificação do homem através da educação. Segundo Comenius, a “todos aqueles que nasceram homens é necessária a educação, porque é necessário que sejam homens, não animais ferozes, nem animais brutos, nem troncos inertes” (2001, p. 109). Tal fato aponta para a recorrência de ideias comenianas que, apesar de difundidas há mais de quatro séculos, ainda se ativam de múltiplas formas na sociedade atual.

Cabe salientar que, ao buscar em Comenius aspectos de sua pansofia, não pretendemos realizar uma transposição do discurso sobre educação produzido no século XVII para o que produzimos atualmente. Trata-se de entender que há uma atualização de alguns destes pressupostos, os quais entram com toda força na constituição da escola inclusiva. Se algumas máximas comenianas do século XVII se encontram ainda em voga na atualidade, talvez nos seja possível pensar que, apesar de uma nova roupagem e de diferentes maneiras, a escola inclusiva assume na contemporaneidade uma posição e função equivalente àquela assumida pela escola do início da Modernidade. Nesse sentido, vale pensar se, da mesma forma que a escola moderna foi uma das instituições fundamentais para a efetivação de muitos dos propósitos da Modernidade, a escola

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

92 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

inclusiva pode ser entendida como uma estratégia de garantir a manutenção da sociedade atual.

Como dissemos no início desta seção, nosso propósito é refletir sobre como alguns pressupostos comenianos podem ser entendidos como uma das muitas condições de possibilidade para emergência do discurso da inclusão escolar contemporânea. Embora as peculiaridades históricas, culturais, sociais e econômicas específicas de cada momento, notam-se rastros das artes de educar da Modernidade ainda presentes em nossos dias, o que fica evidenciado nos excertos do material empírico que continuamos a destacar neste texto.

Evidenciando que “a escola que ensina a todos” (HEIDRICK, 2009) [grifo nosso], “alguns não se alfabetizam, mas avançam em oralidade” (LOPES, 2010a) [grifo nosso], ou ainda que “para lidar com as fugas repentinas [...] a professora ensinou-o a pedir para sair” (VEROTTI; CALLEGARI, 2009) [grifo nosso], percebemos que há uma mobilização para que a educação escolarizada atinja a todos os indivíduos, de maneira a transformar suas posturas em algo diferente (e melhor) daquelas apresentadas inicialmente por eles.

Tal empenho por atingir a todos, incluir a todos, assim como um exercício constante por uma mudança na postura dos estudantes são marcas que há mais de quatro séculos caracterizam o papel da escola. Vemos aqui que cabe a essa instituição garantir os pressupostos de humanização dos homens, formando um tipo de sujeito específico pensado pela Modernidade e ainda fundamental para nossa época. Nesse contexto, a educação é uma importante ferramenta para que o disciplinamento dos corpos dos indivíduos ocorra, tornando-os sujeitos melhores, obedientes e civilizados.

Seguindo a lógica de pensamento que assumimos, buscamos outros elementos que podem também ser entendidos como condições de possibilidade para a estruturação da escola de nossos dias. Assim, mesmo tentando driblar uma linearidade no relato, trataremos a seguir dos processos de educação escolarizada e escolarização de massas, os quais acontecem posteriormente aos escritos de Comenius. Mesmo carregando alguns de seus intentos, não significa, necessariamente, que sejam o resultado um do outro.

A educação escolarizada surge no século XVIII como forte emblema da Modernidade. Ela assumiu e expandiu as ideias de progresso por meio da razão e da ciência. Tomando o homem como sujeito autônomo e livre,

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

93Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

situou-se no “centro dos ideais de justiça, igualdade e distributividade do projeto moderno de sociedade e de política” (SILVA, 1995, p. 245). Assim, vinculada à educação de massa, a educação moderna no Ocidente constituiu-se na instituição responsável por transmitir e generalizar os princípios modernos, permitindo que estes se difundissem no senso comum e fizessem parte da sensibilidade popular.

É importante destacar que a ideia de progresso por meio do desenvolvimento da razão e da ciência, tão caros à Modernidade, está atrelada aos ideais de liberdade, autonomia e consciência amplamente defendidos por um projeto de humanização dos homens, o que Maria Manuela Garcia identifica como “o esclarecimento das consciências, pela obtenção de um tipo específico de razão – a razão científica” (2002, p. 50). Segundo a autora, esta humanização está atrelada à moralização dos sujeitos com vistas à instauração posterior de uma sociedade moralizada, ou seja, uma sociedade em que as relações sociais se dessem de forma dialogada, justa, ordenada, civilizada.

Nesse contexto, o surgimento de uma nova concepção de infância provocou, entre outras coisas, uma separação entre o mundo adulto e o infantil, tanto no que se referia aos cuidados específicos, quanto a outras peculiaridades, entre estas, a educação. Tal movimento impulsionou uma estruturação diferente, em especial nos colégios jesuítas. Com a proposta de formar bons cristãos, tais instituições “exigiam para seu funcionamento a existência de novos agentes educativos” (VARELA, 2010, p. 88). Dessa forma, além de reforçar a emergência de uma nova categoria social – a infância –, os mestres jesuítas tiveram grande participação na definição do atendimento escolar das crianças: este se daria em espaços fechados, ou seja, nos colégios; além disso, seguiria uma determinada ordenação dos saberes, supostamente adequados às capacidades infantis, os quais eram selecionados e organizados em diferentes níveis e programas de dificuldade crescentes, sempre em função de seu caráter moral.

Enquanto nas universidades medievais a autoridade sobre o conhecer estava nas mãos dos estudantes, nos colégios jesuítas da era moderna esta autoridade passa às mãos dos mestres. Um deslocamento que pode ser apontado como uma das condições de possibilidade para a emergência do que Julia Varela (2010) chama de uma “ciência pedagógica”; o que ela explicita como sendo uma ciência que dita uma série de procedimentos e técnicas de ação, tanto sobre os escolares, quanto sobre os saberes.

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

94 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Ao debater esta questão, Varela (2010) aponta três efeitos do que ela chama de pedagogização do conhecimento: 1) a detenção de “todo” saber pelo mestre; 2) a determinação da cultura culta como cultura dominante, marcada pelo monopólio da verdade e suposta neutralidade; e 3) a instauração de práticas de disciplinamento e manutenção da ordem nas salas de aula. Como se vê, a participação dos mestres jesuítas ao pensar e atuar na efetivação da escola moderna contribuiu significativamente para o desenvolvimento de práticas e técnicas de humanização dos homens (pela moral e pelas boas letras), proposto pelo pensamento moderno.

É importante marcar que tal modificação na ordem social e educacional não se deu de forma isolada do campo político. Essas são ações mutuamente imbricadas, cujo cenário é composto por diversas instâncias – sociais, culturais, religiosas, políticas, econômicas. Dessa forma, viver a utopia de construir uma sociedade ordenada, civilizada, escolarizada não foi um projeto isolado em alguns grupos da sociedade – como os iluministas, revolucionários, idealistas etc. Este foi um propósito também da esfera política, em que o Estado, através da Economia Política, “empreendeu uma ampla reorganização dos saberes”, pondo em ação “toda uma série de dispositivos com a finalidade de se apropriar dos saberes, de discipliná-los e de pô-los a seu serviço” (VARELA, 2010, p. 90).

A ideia de disciplinamento só se fez possível a partir da formação da sociedade disciplinar, dada no solo positivo da episteme moderna. Michel Foucault (2009a), ao investigar o sistema penal do final do século XVIII e início do século XIX, pontua algumas condições de possibilidade para a emergência de uma sociedade cujo controle dos indivíduos dar-se-ia não mais, ou apenas, pela punição, mas prioritariamente por práticas de correção das virtualidades. Na próxima seção, dando continuidade a esta, ao dissertarmos sobre a sociedade disciplinar, suas ações e propósitos, será possível entender o quanto a escola foi (e ainda é) fundamental para a manutenção da Modernidade.

A sociedade disciplinar e as formas de produzir sujeitos na escola

De acordo com os estudos foucaultianos, a episteme moderna é o solo de produção de saberes que tem a Ciência como o grande regime de verdade e o homem como agente de transformação e dominação

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

95Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

da natureza (FOUCAULT, 2009). Para entender como os propósitos da modernidade puderam ser efetivados – ao menos em boa parte deles – é necessário compreendermos o contexto social e político que possibilitou tantas modificações. Para isso, nesta seção trataremos de alguns conceitos elaborados pelo filósofo francês Michel Foucault que nos permitem entender a formação de uma sociedade disciplinar, bem como as formas de relação entre poder e saber estabelecidas nesse contexto social, e ainda os campos de atuação deste poder-saber.

Ao propor uma discussão acerca da formação de uma sociedade disciplinar e ao apontar a escola com instituição produtora de tipos específicos de sujeito, nos colocamos a pensar que, embora em um contexto histórico diferente, a escola inclusiva também assume um caráter disciplinar na medida em que se coloca a produzir determinados tipos de sujeitos para atuarem em uma determinada sociedade. Nas reportagens analisadas, podemos mapear falas que reportam à ideia de formação de sujeitos capazes de interagir em sociedade. Ao enfatizar que, apesar de não se alfabetizarem, as crianças com deficiência incluídas na escola regular acabam “conhecendo e incorporando regras sociais e desenvolvendo habilidades como a oralidade” (LOPES, 2010a), a Revista Nova Escola anuncia preceitos que na escola inclusiva apresentam-se como tão – ou até mesmo mais – fundamentais que a própria aprendizagem dos aspectos cognitivos.

Em outras análises realizadas nos excertos das reportagens apresentadas ao longo do texto, será possível perceber o quanto de disciplinamento ainda há na escola dos nossos dias. Um disciplinamento mais sutil do que o relatado por Foucault em Vigiar e Punir (2003), mas ainda assim estratégias de captura do corpo e da alma na busca pela condução das condutas dos indivíduos.

De acordo com Foucault (2009a), a sociedade disciplinar aparece no período que compreende o final do século XVIII e início do século XIX, a partir da reorganização do sistema judiciário e penal de alguns países europeus. É uma sociedade que visa à produção de sujeitos dóceis e úteis, em que a atuação do poder se dá nos corpos dos indivíduos com o objetivo de moldá-los. Diferente da atuação do poder sobre os corpos em outros sistemas – como a escravidão, a domesticidade, a vassalidade, o ascetismo e nas disciplinas monásticas – o disciplinamento da sociedade moderna faz nascer uma forma diferente de atuação sobre os corpos.

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

96 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma nova arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamen-tos (FOUCAULT, 2003, p. 119).

A sociedade disciplinar, segundo Foucault, atua sobre o corpo humano colocando-o numa “maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (2003, p. 119). Essa maquinaria produz uma docilidade que não apenas faz com que o indivíduo simplesmente reproduza o que se quer, mas da forma como se quer, segundo as técnicas, a rapidez e a eficácia que tenha sido determinada. “A disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (idem) [grifos do autor].

No relato de uma professora apresentado pela Revista Nova Escola, vemos claro o exercício deste disciplinamento na escola inclusiva. Ao explicar como ensinou o aluno autista que cursava a 1ª série a controlar suas fugas ao bebedouro durante a aula, expõe que lhe mostrou que poderia bater com a caneca na cadeira para avisar que queria tomar água: “Um dia ele bateu a caneca e permaneceu sentado [...] percebi que tinha aprendido” (VEROTTI; CALLEGARI, 2009) [grifos nossos].

Através do disciplinamento, ao mesmo tempo em que as forças do corpo são aumentadas em termos econômicos de utilidade, elas são diminuídas em termos políticos de obediência; ou seja, quanto mais disciplinado for um corpo, mais garantias de pleno funcionamento se terá da sociedade. Em outro trecho da mesma reportagem, é relatado que, após a internalização das estratégias de disciplinamento, o menino autista já entende a rotina da escola e não se incomoda mais com a troca de professores, característica dos anos finais do Ensino Fundamental (VEROTTI; CALLEGARI, 2009). Esse exemplo mostra que a sociedade disciplinar vai produzir indivíduos que tenham sua aptidão aumentada, com maior eficiência do gesto e uma dominação acentuada, com maior docilidade para a ação.

A estruturação de uma sociedade em que o poder atua sobre os corpos dos indivíduos, tornando-os dóceis e úteis, se dá a partir de diferentes

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

97Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

instituições (escolas, quartéis, conventos, fábricas, hospitais etc.) que têm por função não apenas o produto do trabalho em termos materiais, mas também o desenvolvimento e a aplicação de “técnicas sempre minuciosas” que “definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo” (FOUCAULT, 2003, p. 120). Eis a forma de poder que caracteriza a sociedade disciplinar, ao que Foucault chamou de sociedade de vigilância ao trazer o modelo do Panopticon de Bentham como sendo a forma mais precisa de definir e de descrever “as formas de poder em que vivemos” (2009a, p. 86).

O panóptico refere-se a um edifício em forma de anel em cujo centro há uma torre. Nas extremidades do anel existem pequenas celas que dão tanto para o interior quanto para o exterior do anel, nas quais os sujeitos ficam alojados individualmente, de acordo com o objetivo da instituição – um operário executando sua função, uma criança aprendendo, um louco exercendo sua loucura, um prisioneiro corrigindo-se etc. Do alto da torre, um vigilante observa cada cela, bem como as ações dos indivíduos nelas localizados. Não havendo nenhum ponto de sombra que pudesse bloquear o olhar do vigia, todas as ações poderiam ser controladas. O vigia, por outro lado, dada a estrutura da torre, não poderia ser visto por ninguém. O propósito desta arquitetura era que cada sujeito colocado nas celas tivesse que realizar suas tarefas da maneira mais correta possível durante todo o tempo, já que jamais teria a certeza de estar sendo vigiado ou não. Essa arquitetura elaborada por Bentham é a representação de uma sociedade e de um tipo de poder que vai exercer sobre os indivíduos uma vigilância constante, “sem interrupção e totalmente” (FOUCAULT, 2009a, p. 88).

Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder – mestre-escola, chefe de cozinha, médico, psiquiatra, diretor de prisão – e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber. Um saber que tem agora por característica [...] determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se progride ou não, etc. [...] Ele se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, do que se deve ou não fazer. (Idem)

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

98 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Tem-se, assim, na sociedade disciplinar, o exercício de um poder de um indivíduo sobre o outro. Um poder que tem como função maior o “adestramento”, que amarra as forças não para reduzi-las, mas as liga e as multiplica, utilizando-as num todo.

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica espe-cífica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumento de seu exer-cício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente (FOUCAULT, 2003, p. 143) [grifo do autor].

Essa é uma forma de poder que age nas minúcias, atuando nos detalhes e que, aos poucos, vai se espalhando pelo todo, invadindo formas maiores, modificando mecanismos e impondo seus processos. É importante frisar que a disciplina é marca do nascimento da instituição escolar e que, embora a sociedade atual não apresente um caráter puramente disciplinar, práticas de disciplinamento ainda se fazem presentes na escola atual. Talvez de formas mais sutis, mas ainda assim um poder disciplinar, que classifica e hierarquiza os sujeitos e os saberes. Isso pode ser notado em vários excertos das reportagens analisadas como os que destacamos a seguir:

Uma das funções do orientador escolar é observar os detalhes do cotidiano escolar (COMO..., 2009) [grifos nossos].Devemos sondar o que cada um conhece para deter-minar o que pode contribuir com o coletivo (VEROTTI; CALLEGARI, 2009a) [grifos nossos].

Nota-se que, embora com uma roupagem contemporânea, a escola ainda é local de vigilância, onde cabe a um sujeito específico, com um saber específico, exercer um poder sobre uma coletividade, ao “observar os detalhes” ou “sondar o que cada um conhece”. Esse poder é disciplinar na medida em que esquadrinha cada um e, a partir de um saber que lhe é próprio, atua no exercício de um poder que determina o espaço de atuação do outro.

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

99Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Na escola inclusiva, este saber cabe ao profissional do Atendimento Educacional Especializado, o que não exime os demais professores do processo, mas define o campo da Educação Especial como suporte para professores e estudantes na efetivação da inclusão. Algumas falas das reportagens analisadas evidenciam isso:

Os professores que ainda têm dúvidas sobre as práticas pedagógicas que devem usar ganharam uma aliada: a professora da sala de recursos. (LOPES, 2010a).Essa integração [entre o trabalho do professor e do especialista] é fundamental para o processo de inclusão (LOPES, 2010b).Ele [o profissional da Educação Especial] informa a escola sobre os materiais a serem adquiridos e busca parcerias externas para realizar seu trabalho (VEROTTI; CALLEGARI, 2009).

Nesse movimento de definições de novos papéis e atribuições para os profissionais da educação inclusiva, não há como descartar a ideia de que as práticas de classificações e hierarquizações dos sujeitos e saberes são geralmente aceitas como parte do trabalho, como dadas, como naturais (VARELA, 2010). Esse reconhecimento intrínseco faz com que sua lógica de funcionamento seja aprofundada e assumida como saber pedagógico, torna possível o mito da neutralidade da ciência e ao mesmo tempo naturaliza e legitima as relações de força, as relações de dominação que exercem determinados grupos sociais sobre outros. São essas relações de força e de dominação, assim como um saber pedagógico específico, que irão ditar onde e quando um sujeito poderá aprender, que vão definir o campo de atuação de uma dada ciência pedagógica a ponto de dizer quem é responsável por tal ação na escola.

No entanto, essas ações não se dão de forma aleatória. Elas são produzidas, exercidas e controladas constantemente. Nos trechos: “a escola define um plano para cada aluno e todos os professores que trabalham com ele fazem anotações durante o ano”ou “nos reunimos semanalmente e avaliamos o plano de ensino dos alunos com deficiência”, das reportagens (LOPES, 2010b), nota-se todo um movimento de produção de saberes sobre os sujeitos incluídos na escola. A constituição desse saber só se faz possível a partir da combinação de três instrumentos aos quais

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

100 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Foucault (2003) denominou como olhar hierárquico, sanção normalizadora e exame. Instrumentos, ou práticas, presentes em diferentes instituições disciplinares, as quais, articuladas, produzirão tipos específicos de saberes e de sujeitos.

O olhar hierárquico ou vigilância hierárquica consiste na prática de vigiar constantemente o indivíduo de forma que os olhares devem ver sem serem vistos. Trata-se de uma disposição dos corpos em um determinado espaço de forma a “permitir um controle interior, articulado e detalhado” (FOUCAULT, idem, p. 144). Assim, tornam-se visíveis os aspectos que não possam ser vistos com o intuito de transformar os indivíduos: “agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até ele seus efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los” (Idem). É pela vigilância constante que se faz possível a construção de saberes sobre os sujeitos. É a partir do exercício deste poder, a partir da vigilância, que é possível a produção de um saber. Saber e poder estão, assim, imbricados. Ao mesmo tempo em que se exerce poder, produz-se saber. No campo da educação, a produção de ciências pedagógicas vai possibilitar a atuação e o governo sobre os sujeitos a partir do desenvolvimento de saberes sobre estes. São as ciências pedagógicas que vão ditar as formas de atuação dos professores junto aos estudantes, que vão enquadrar os saberes em séries ou ciclos, que vão orientar quais saberes devem ser esperados em cada etapa de ensino e assim por diante.

Pelas disciplinas, são monitorados os tempos, os discursos, as maneiras de ser, as atividades, as sexualidades, os corpos dos indivíduos; é ordenado todo e qualquer comportamento/ação que escape da regra; são reduzidos os desvios pela exercitação contínua e repetida dos gestos; são gratificados os gestos corretos e punidos os demais; são classificados e hierarquizados os “bons” e os “maus” desempenhos. A esse conjunto de ações Foucault chamou de sanção normalizadora, definindo-a como uma “penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares”. Essa sanção “compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (2003, p. 153) [grifo do autor]. Ao dizer que a sanção normaliza, Foucault pretende afirmar que ela se faz a partir do estabelecimento de uma norma, de uma medida que permite avaliar e julgar, impondo a regra a todos que delas se afastam.

De acordo com as reportagens analisadas, a função atribuída ao profissional da educação especial a partir da Política Nacional de Educação

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

101Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) pode ser entendida segundo a lógica da sanção normalizadora. Ao tratar de uma das funções deste profissional, a Revista Nova Escola diz que “ele pode atuar na sala comum de longe, observando se o material está sendo corretamente usado” e ainda afirma, a respeito dos professores da classe regular, que “quem souber se adaptar não correrá o risco de perder espaço” (VEROTTI; CALLEGARI, 2009). Tal postura pode ser identificada como uma prática de normalização, evidenciando uma sanção normalizadora.

Como terceiro elemento do bom adestramento, destacamos o exame, o qual foi pontuado por Foucault como um processo altamente ritualizado presente em todos os dispositivos disciplinares e que “combina as técnicas da hierarquia que vigia e as técnicas da sanção que normaliza. É um controle normalizante que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 2003, p. 154). O exame não apenas sanciona um aprendizado, ele o sustenta por um ritual de poder sempre renovado. “O exame é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre” (Idem, p. 155). A prática constante do exame nas escolas permitiu a emergência de uma pedagogia que funcionasse como ciência. Uma ciên-cia que está imersa na lógica do poder que disciplina não por mecanismos repressivos, mas um poder que “deixou de ser exterior aos sujeitos para fazer-se interior ao próprio processo de aprendizagem [...] a natureza que se conferia a cada aluno aparecia cada vez mais como o resultado de suas próprias capacidades e aptidões” (VARELA, 2010, p. 92). Assim, os proces-sos de aprendizagem, embora imersos em relações de poder e de saber, se estruturam de tal forma que pareçam naturais aos indivíduos e os resultados de suas aprendizagens são atribuídos aos seus próprios esforços. Na escola inclusiva, uma prática de exame comum se dá na relação entre os profissio-nais da educação especial e os professores da sala de aula regular. Ao dizer que cabe ao especialista “oferecer permanentemente à equipe pedagógica e a todos os funcionários [...] as informações necessárias para que possam exercer o papel de agentes da socialização” (COMO..., 2009), afirma-se que é este profissional que colocará em exame aquilo que os demais deverão fazer. Ao ser o especialista da educação especial, o sujeito autorizado a orientar e, de certa forma, conduzir a conduta dos demais professores, observando e avaliando se esta conduta é adequada ou não, temos aí uma forte aproximação com o que Foucault (2003) chamou de prática de exame.

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

102 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Como vemos, muitas das ações que temos nas escolas, e muitas das verdades que produzimos sobre os sujeitos, têm fortes marcas das estratégias de formação de uma sociedade pautada na disciplina, na ordem, na organização. Uma sociedade que põe sob a responsabilidade de um olhar específico, o olhar do especialista, o poder de vigiar o outro, de conduzir a conduta do outro, uma vez que a ele cabe o saber. Um saber que é produzido a partir de uma relação de poder, uma relação de poder-saber, que, quanto mais se estreita, mais refinada e eficaz se torna.

Considerações finais

Ao longo do artigo, buscamos evidenciar o quanto o aparato discursivo que sustenta a maquinaria da escola inclusiva na atualidade traz fortes marcas dos elementos que constituíram a escola moderna a partir do século XVII. Ao investigar o material empírico que tomamos para este estudo, notamos que muitos aspectos que configuram a escola atual têm aproximações com o que fora proposto por Comenius em sua Didactica Magna, enquanto ideal de educação para a solidificação da sociedade moderna. Identificamos também a presença de práticas e estratégias de organização e disciplinamento, tanto dos corpos, quanto dos saberes, que apontam marcas características de uma sociedade disciplinar.

Nesse sentido, arriscamo-nos a afirmar que esta instituição escolar que vemos formar sujeitos para atuarem em nossa sociedade está intimamente ligada àquela que se constituiu no século XVII. Notamos que o funcionamento da escola de nossos dias ainda é disciplinar, uma vez que ainda temos um grupo de alunos destinado aos cuidados de um especialista, cuja função é ver no detalhe cada um desses sujeitos e, assim, produzir saberes sobre ele. E os saberes produzidos nesta relação vão produzir outras formas de disciplinamento cada vez mais sutis e mais eficazes. Tais ações se dão sempre no intuito de adestrar, disciplinar e, em última instância, governar os sujeitos.

A estreita relação entre a escola moderna do século XVII e a escola moderna da atualidade se deve, em grande parte, ao solo positivo que abriga estes dois momentos históricos: a Modernidade. É ela, com seus pressupostos, determinando modos de vida, que nos direciona e auxilia, decisivamente, para nossa forma de ver, ler e narrar o mundo ocidental.

As artes de educar: rastros da escola moderna na constituição de uma escola inclusiva

103Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

Evidentemente, as roupagens, a visibilidade, a consistência é outra do que aquela do início de sua constituição; mas ainda é de Modernidade que estamos falando... Assim, quem sabe, pensar que a escola da atualidade seja uma escola moderna inclusiva?

Referências

BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. MEC/SEESP: Brasília, 2008.

BRASIL.Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Secretaria de Educação. MEC, 1996.

BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.

COMENIUS, Lohannis Amos. Didactica Magna (1621-1657). Versão para eBook: eBooksBrasil.com. Fonte digital, 2001. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/didaticamagna.html Acesso em: jul. 2013.

COMO evitar que alunos com necessidades especiais sejam rotulados. Revista Nova Escola: gestão escolar. São Paulo, n. 02, jun. de 2009. Disponível em: <http://gestaoescolar.abril.com.br/aprendizagem/como-evitar-alunos-rotulados-483497.shtml> Acesso em: abr. 2014.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009.

FOUCAULT, Michel.A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2009a.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

GARCIA, Maria Manuela Alves. Pedagogias críticas e subjetivação: uma perspectiva foucaultiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

HEIDRICK, Gustavo. A escola que ensina a todos. Revista Nova Escola. São Paulo, n. 03, ago./set. de 2009. Disponível em: http://gestaoescolar.abril.com.br/aprendizagem/escola-ensina-todos-inclusao-necessidades-especiais-deficientes-politicas-publicas-flexibilizacao-508098.shtml Acesso em: abr. 2014.

LOPES, Noêmia. 24 respostas para as principais dúvidas sobre inclusão. Revista Nova Escola: Gestão Escolar. São Paulo, n. 08, jun./jul. de 2010. Disponível em:<http://gestaoescolar.abril.com.br/formacao/24-respostas-principais-duvi-das-inclusao-759360.shtml?page=all> Aceso em: abr. 2014.

Gisele Ruiz Silva e Paula Corrêa Henning

104 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 86-104, jan./jun. 2014

LOPES, Noêmia. 24 respostas para as principais dúvidas sobre inclusão. Revista Nova Escola: Gestão Escolar. São Paulo, n. 08, jun./jul. de 2010a. Disponível em: http://gestaoescolar.abril.com.br/formacao/24-respostas-principais-duvidas-inclusao-759360.shtml?page=1 Acesso em: abr. 2014.

LOPES, Noêmia. 24 respostas para as principais dúvidas sobre inclusão. Revista Nova Escola: Gestão Escolar. São Paulo, n. 008, jun./jul. de 2010b. Disponível em: http://gestaoescolar.abril.com.br/formacao/24-respostas-principais-duvidas-inclusao-759360.shtml?page=2> Acesso em: abr. 2014.

NARODOWSKI, Mariano. Comenius & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da. O projeto educacional moderno: identidade terminal? In VEIGA-NETO, Alfredo José da.Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 245-260.

VARELA, Julia. O Estatuto do Saber Pedagógico. In SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p.87-96.

VEROTTI, Daniela Talamoni; CALLEGARI, Jeanne. A inclusão que ensina. Revista Nova Escola. São Paulo, edição especial, jul. de 2009. Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/formacao/inclusao-ensina-511186.shtml?comments=yes> Acesso em: abr. 2014.

VEROTTI, Daniela Talamoni; CALLEGARI, Jeanne. A inclusão que ensina. Revista Nova Escola. São Paulo, edição especial, jul. de 2009a. Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/formacao/inclusao-ensina-511186.shtml> Acesso em: abr. 2014.

105Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

Kallyne Kafuri Alves CorreioUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES) [email protected]

Valdete CôcoUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES) [email protected]

RESUMONo bojo da política educativa na educação infantil (EI), apresentamos a pesquisa “Sentidos da educação infantil para as famílias que buscam matrículas nessa etapa da educação básica: apontamentos à docência”. Com referenciais do campo (ROSEMBERG, 2001; CÔCO, 2013) e referenciais teórico-metodológicos bakhtinianos, focalizamos os sentidos da EI para as famílias que solicitam matrículas, no contexto do direito, oferta e demanda da EI no estado do Espírito Santo (ES). Apresentamos dados do cenário local, problematizando os desafios apontados pelos sentidos, em interface com as perspectivas legais vigentes (BRASIL, 1996; 2006; 2009a; 2009b). Os dados indicam a expansão da EI, que ressoa em avanços, demandas e desafios emergentes no reconhecimento do direito à educação e na observação de multifacetadas realidades que se apresentam na EI do ES.Palavras-chave: Políticas Educacionais. Educação Infantil. Espírito Santo. Famílias. Docência.

ABSTRACT:In the bulge of data that tell us about the educational policy in early childhood education (EI), we present in this work, the research “Meanings of early childhood education for families seeking enrolment in this stage of basic education: notes on teaching”. With references about the field (ROSEMBERG, 2001; COCO, 2013) and theoretical-methodological bakhtinianos, we focused on the meanings of EI for the families who are applying for registration, in the context of law, supply and demand of EI in the state of Espírito Santo (ES). We present data of local scenery, problematizing the challenges identified by

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

106 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

senses, interface with prospects for legal force (BRAZIL, 1996; 2006; 2009a; 2009b). The data indicate the expansion of EI, which resounds in advances, demands and challenges emerging in the recognition of the right to education and the observation of multifaceted realities that present in EI the ES.Keywords: Educational Policies. Early Childhood Education. Espírito Santo. Families. Teaching.

Introdução

Neste trabalho, buscamos apresentar uma síntese da pesquisa “Sentidos da educação infantil para as famílias que buscam matrículas nessa etapa da educação básica: apontamentos à docência”, com vistas a fomentar reflexões sobre os dados do contexto da EI no Espírito Santo (ES). Na complexidade em que se situa essa temática, nos inspiramos na perspectiva bakhtiniana, na reflexão sobre as diversas possibilidades de sentidos atribuídos a determinado objeto (BAKHTIN, 2011).

Tomamos como partida os estudos de Ball (1994; 2001), que entendem a política educacional como texto, numa rede negociativa inacabada de esforços coletivos, que compreende os documentos oficiais em sua processualidade e dinamicidade. Na pesquisa com os sentidos em função de nossas vivências, culturas, contextos e histórias, Ball (2001) adverte que a análise política necessita ser acompanhada por cuidadosa pesquisa regional, local e organizacional, se nos dispomos a entender os graus de “aplicação” e de “espaço de manobra” envolvidos na tradução das políticas nas práticas (BALL, 2001, p. 16).

Com isso, a partir da referida pesquisa, realizada no município de Serra, ES, focalizamos, neste trabalho, o direito à EI no bojo dos dados que informam sobre a oferta no estado do Espírito Santo (ES) e sobre os sentidos da EI para as famílias que buscam matrícula nessa etapa da educação básica. Junto a isso, buscamos um cotejamento com os documentos legais específicos do campo e problematizamos os desafios que se apresentam diante dos dados, em interface com as perspectivas legais vigentes (BRASIL, 1996; 2006; 2009a; 2009b). Nesse propósito, primeiramente apresentamos o contexto da pesquisa, que aborda dados da realidade da EI no ES, que

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

107Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

conta com a estimativa populacional no ES em 2013, com o panorama de matrículas na EI em 2011, com o quantitativo de instituições necessárias para atender à demanda e com o quantitativo de crianças em listas de espera, aguardando por vagas na EI do ES.

Posteriormente, trazemos síntese da pesquisa e seus pressupostos teóricos e metodológicos, que sustentam nossas reflexões sobre os sentidos que as famílias atribuem à EI, bem como os processos formativos que se desenvolvem na processualidade das ações, no bojo dos desafios existentes na política educacional. Por fim, trazemos as análises preliminares, derivadas dos dados da pesquisa, inspirados na perspectiva bakhtiniana de que “[...] o sentido da palavra é totalmente determinado pelo seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis” (BAKHTIN, 2006, p. 109).

O contexto da pesquisa

Consideramos a ideia de que as palavras e formas são povoadas de intenções (BAKHTIN, 2011, p. 100) e que, de distintos modos, vão compondo sentidos e nos formando com a vida. Nessa negociação, não ausente de tensões, cada palavra evoca contextos distintos. Compreendemos que a reunião de sentidos vai constituindo modos de se ver (e de se fazer) o trabalho pedagógico. Portanto, trazemos dados acerca da estimativa populacional no ES em 2013, do panorama de matrículas na EI em 2011, do quantitativo de instituições necessárias para atender à demanda e do quantitativo de crianças em listas de espera, aguardando por vagas nas instituições de EI no ES.

Articulados, esses dados informam dados sobre a realidade da EI no ES, que, em interface com os dados da pesquisa, vivificam nossas conquistas e destacam os desafios e as demandas emergentes no campo. Vejamos a tabela 1, que retrata os dados relativos à estimativa populacional em 2013. Para esta tabela, recortamos os municípios que se concentram na Grande Vitória, que representam significativa estimativa da população no conjunto do estado:

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

108 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Tabela 1 – Estimativa da população em 2013Estimativa População em 2013UF Município PessoasES Serra 467.318ES Vila Velha 458.489ES Cariacica 375.974ES Vitória 348.268ES Guarapari 116.278ES Viana 72.115ES Fundão 19.177

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Disponível em:<http://cidades.ibge.gov.br/comparamun/compara.php?lang=&coduf=32&idtema=119&codv=v01&search=espirito-santo|cariacica|estimativa-da-populacao-2013>. Acesso em: 9 out. 2013.

Com os dados apresentados na tabela 1, vemos que a microrregião da Grande Vitória está em considerável expansão. De acordo com os dados do IBGE, Serra é o município em que a estimativa de população para 2013 foi maior, seguido por Vila Velha, Cariacica e Vitória1. Além desse critério relativo à demanda em expansão dos municípios, recorremos aos dados que nos informam sobre as matrículas realizadas nessa etapa da educação básica e o déficit de instituições nos municípios mais populosos do ES. Na tabela, observamos a disparidade entre os quantitativos, haja vista que o ES é composto por 78 municípios e que a EI não prevê atendimento estadual.

Tabela 2 – Matrículas na EI no ES em 2011Matrículas na EI no ES, 2011Rede Creche Pré-Escola TotalFederal 76 43 119Municipal 53.979 79.922 133.901Privada 5.128 11.414 16.542Rural (municipal) 2.529 9.515 12.044Rural (privada) 115 76 191Total Geral (creche+pré-escola rural e urbana) 59.183 91.379 150.562

Fonte: Censo Escolar – 2011 – SEDU/GEIA/SEE Disponível em: <http://www.sedu.es.gov.br/download/TABELA_2_2.pdf>. Acesso em: 24 out. 2013.

1 Para esta análise, informamos que consideramos a dimensão territorial dos municípios, com vistas a calcular o tamanho de extensão territorial com relação à demanda de população esperada. Pesquisa realizada em out. 2013.

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

109Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Em interface com os dados de matrículas, temos o gráfico 1, que informa sobre o déficit de unidades para a EI nos municípios do ES:

Gráfico 1 – Déficit de Unidades de 0 a 5 anos no Espírito Santo

Fonte: Disponível em: <http://painel.mec.gov.br/painel/mapas/mapaProInfancia/creche/creche/2 012_2014>. Acesso em: 8 fev. 2014.

A partir do gráfico, é possível inferir que a demanda de instituições necessárias para o atendimento das crianças de 0 a 5 anos é de 262 instituições, distribuídas nos 78 municípios do estado, que, se perspectivadas na trajetória de matrículas realizadas (tabela 1) e ainda nos cadastros de espera (gráfico 2), indicam a urgência de providências para o atendimento, com o agravante da proximidade do ano de 2016, onde se espera, pelo menos, o atendimento das crianças na faixa etária de 4 a 5 anos, conforme prevê a Emenda Constitucional de n. 59 e a meta 1 da Lei 13.0005/14.

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

110 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Gráfico 2 – Quantitativo de crianças que aguardam pela matrícula em instituições de EI pública no ES

Fonte: Cape – MPES

Ainda no cruzamento desses dados (estimativa de população, instituições necessárias para atender à demanda, quantitativo de matrículas realizadas e crianças na lista de espera), vemos uma demanda em expansão, que, se dialogada com a primeira meta do projeto de lei do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014), nos indica os desafios que ainda almejamos para o atendimento: “Meta 1: Universalizar, até 2016, o atendimento escolar da população de 4 e 5 anos, e ampliar, até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população de até 3 anos” (CONAE, 2014). Verificamos que a demanda por matrículas vem crescendo, de modo a afetar distintas redes de atendimento, com foco especial na rede municipal e na faixa etária de 0 a 3 anos. Observamos, ainda, a corrida das redes para atender à demanda de crianças da pré-escola, vide as premissas legais em discussão que preveem, até 2016, que todas as famílias devem buscar matricular as crianças de 4 a 5 anos (CONAE, 2014).

Outro fator que incide sobre os dados dialoga com a meta 1 do PNE, que esbarra nas questões de infraestrutura, formação docente, obrigatoriedade e universalização da EI. Nossas preocupações giram em torno da qualidade desse atendimento, principalmente as escolhas alternativas que surgem com a discrepância entre o quantitativo de vagas

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

111Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

ofertadas, de matrículas realizadas e da lista que informa a demanda de crianças por vagas, principalmente na faixa etária da creche, como citado anteriormente. Portanto, com todas essas questões postas no cenário estadual (e nacional), centramos nossos sentidos para os sujeitos que estão vivendo essa conjuntura, numa ideia de que

Estas concepções estão associadas às mudanças de pa-radigma em relação à visão de criança, de infância e de educação infantil. Trata-se de mudanças que implicam a oferta de vagas suficientes para atender à demanda e à qualidade desta oferta, porque o sujeito de direitos – independentemente de qualquer circunstância como gênero, raça/etnia, religião, classe social, local de mo-radia ou de condição econômica – impõe uma educação de qualidade, capaz de promover o desenvolvimento integral, ampliando o seu universo cultural e sua par-ticipação no mundo social e natural, favorecendo a construção de sua subjetividade, promovendo trocas e interações, respeitando as diferenças, colaborando para o seu bem-estar físico, emocional e afetivo, entre outros (NUNES; CORSINO; DIDONET, 2011, p. 54).

Em um cenário onde a necessidade de ampliar os recursos é sempre recorrente, a busca pelo acesso com qualidade na EI dialoga com as questões de um campo em transição, repleto de transformações tanto no curso das políticas para a EI, quanto na dinâmica das instituições, em que

Essas mudanças vêm associadas à necessidade de expan-são do atendimento na EI, no interior dos sistemas de ensino, como um direito das crianças. Com isso, agregam novos elementos à discussão das ações pedagógicas que ecoam em demandas aos processos de formação e de provimento de profissionais, ampliando o repertório da profissão docente (CÔCO, 2013, p. 108).

Logo, se advogamos a favor de mais investimentos na EI, salientamos que os recursos destinados à educação precisam ser voltados aos diversos desafios educacionais. E que essa perspectiva de investimento não seja vista de maneira isolada, pois sugere políticas de formação para os docentes,

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

112 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

atendimento aos indicadores de qualidade, infraestrutura e desafios que se tornam pertinentes à medida que estudamos o contexto vivido. Vejamos a síntese da pesquisa e as análises derivadas.

Sentidos da EI para as famílias que buscam matrículas: a temporalidade das políticas públicas, que marca o contexto social

Neste tópico buscamos comunicar dados integrados à pesquisa sobre os sentidos da educação infantil para as famílias que buscam matrículas nessa etapa da educação básica: apontamento à docência. Primeiramente, explicamos brevemente a pesquisa, na ideia de contextualizar o leitor sobre as premissas teórico-metodológicas com o campo. Em seguida, exploramos um dos eixos que se acenam com os dados preliminares do trabalho, cotejando com as premissas legais vigentes no campo da política nacional para EI no Brasil.

A pesquisa consiste em captar as vozes que informam sobre a constituição dos sentidos da EI para as famílias das crianças, tendo como arena os diálogos que emergem nos momentos iniciais de inserção na instituição. Nessa perspectiva, indagamos quais sentidos de EI emergem nesses contextos, o que as famílias comunicam/dizem sobre os momentos iniciais de aproximação com a instituição de EI, quais são as expectativas sobre a EI que surgem no contexto das filas de matrículas, quem deseja a matrícula e por que e quais os diálogos que se constituem nesses momentos (parcerias, aprendizados e tensões estabelecidos nesses encontros). Com as indagações, objetivamos conhecer os sujeitos que manifestam interesse pela matrícula na EI, explorar os enunciados comunicados/manifestados pelas famílias no momento de matricular as crianças e analisar os sentidos que emergem das famílias sobre a EI nos contatos iniciais com o CMEI.

Na análise preliminar da primeira etapa da pesquisa, realizada com abordagem qualitativa do tipo exploratória, nas filas de matrícula de uma instituição de EI do município de Serra/ES, se mostram pertinentes 4 eixos de análises (a docência, o trabalho pedagógico, a instituição de EI e a EI). Nessa proposição, elaboramos um instrumento semiestruturado para guiar nossas entrevistas, com todos os integrantes que encontrássemos na fila à espera pela matrícula. Esse instrumento reúne questões de abordagens qualitativas e quantitativas, na busca de atender aos objetivos

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

113Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

e indagações propostas. Com os demais frutos dos equipamentos utilizados (fotos, gravação e diário de campo), compomos nosso corpus de dados, contribuindo para que possamos ouvir o outro, para além de indagá-lo, num processo em que buscamos “[...] incluir as emoções, os valores, as crenças e as suposições que constituem a experiência da vida dos indivíduos no contexto social” (MOREIRA; CALEFFE, 2008, p. 64).

Destacamos os avanços, desafios e demandas produzidos com os dados preliminares das 23 entrevistas2 nos dois dias de imersão em campo. Para o escopo deste evento, trazemos um dos quatro eixos da pesquisa, que aborda as demandas que insurgem na temporalidade na EI, em que, ao passar dos anos, o direito à EI toma corpo, vai ganhando importância social, repercutindo em conquistas legais de sua afirmação nos marcos do campo educativo (CÔCO, 2013, p. 110).

Conquistas, avanços e desafios: demandas que insurgem da temporalidade na EI

Após apresentar a proposição de trabalho, o contexto da EI no ES, a justificativa de trabalho com o município que mais acena demanda por instituições de EI no ES e a síntese da pesquisa, neste tópico buscamos explorar um dos eixos que organizam os dados captados. Esse eixo aborda os sentidos das famílias sobre a EI. Esses sentidos versam com o histórico de trabalho na EI, situado em contextos específicos de atuação. O eixo surge a partir de duas questões principais, em que indagamos aos familiares sobre o que é a EI para eles e o porquê (se) achava a EI importante.

Na pesquisa, ao serem indagados sobre o que entendiam por EI, foi possível perceber um “engasgamento” nas respostas apresentadas. Os familiares titubeavam um pouco para definir a EI. Isso nos leva a pensar sobre um sentido de EI, ainda em constituição, numa transição do vivido, principalmente relativo à ausência de instituições públicas de qualidade, para um reconhecimento de que “o mundo está mudado” (Olediana, mãe, 35 anos) e de que as instituições processualmente também refletem o tom dessas mudanças:

2 Sobre o perfil dos entrevistados, esclarecemos que, por abordar todos os integrantes da fila de matrícula, tivemos diversidade no perfil dos sujeitos, que oscilam na faixa etária de 16 a 58 anos, sendo 11 mães, 4 pais, 2 avós, 1 avô, 1 irmã, 1 primo, 1 tia e 1 sem parentesco oficial (amigo da família da criança).

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

114 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Eu acho que é assim... é um direito dela. E a gente estava até conversando, porque minha mãe não queria colocar ela agora no início do ano e ela falou: Ah, Thais, eu vou colocar ela lá pelo meio do ano, porque acaba que sobra vaga e não precisa entrar na fila; aí eu disse para ela que, quanto mais cedo começar, melhor para ela. Assim, ela vai se desenvolver melhor. Ela fica nessa outra espécie de creche [instituição particular não regularizada que recebe crianças], mas não tem a estrutura pedagógica, não tem tudo disso, e é importante. A gente vê que as crianças que passaram por isso [EI], se desenvolveram muito melhor. Eu comecei e fui para creche, com 1 ano e meio. E eu sempre fui muito boa na escola. Eu acho que foi desde o começo. Então eu acho que foi muito mais por isso, então eu acho que é muito importante para o desenvolvimento dela. (Thainá3, irmã, 21 anos)

Nessa processualidade, reconhecida historicamente pelos documentos e pelos movimentos sociais (BRASIL, 2009; CÔCO, 2013), observamos o reconhecimento desse direito, marcado pela temporalidade, aliado à questão do desenvolvimento da criança e ressaltamos:

Não é simplesmente que o que nós fazemos mudou; quem nós somos, as possibilidades para quem nós deveríamos nos tornar também mudaram [...]. O desenvolvimento epistemológico nas ciências humanas, como a educação, funciona politicamente e é intimamente imbricado no gerenciamento prático dos problemas sociais e políticos (BALL, 2001, p. 18)

Nesse gerenciamento prático dos problemas sociais e políticos, acenamos a importância do desenvolvimento da criança, da interação com outras crianças de mesma faixa etária e do espaço para brincar, que aparecem como sentidos sobre o trabalho realizado na EI e foram recorrentes nos sentidos que as famílias manifestam sobre essa etapa da educação básica. Destacamos ainda a questão das expectativas que rondam a iniciativa pela matrícula, que assinalam principalmente o cuidado para que a criança não se machuque e para que tenha uma alimentação de qualidade.

3 Utilizamos nomes fictícios, como forma de proteger a identidade dos sujeitos.

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

115Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Assim, observamos vestígios (GINZBURG, 2002a; 2002b) sobre um desejo que se manifesta no encontro com o outro (BAKHTIN, 2011) em crianças, famílias e docentes, que não são mais os mesmos. Nesse contexto, arraigado de mudanças e impactos na realidade educacional, apresentam-se os sentidos sobre a qualidade na EI, na indagação das motivações pelo interesse na matrícula:

Pelo que eu vejo dos meus netos, depois que eles en-traram na creche, eles aprenderam muito. Parece que as creches hoje em dia estão ensinando quase mais que a escola. Eu tenho uma neta aí [matriculada na institui-ção que deseja matricular outro neto] que está quase fazendo 11 anos, que o que está aqui na creche sabe mais que ela. (Edmilson, avô, 50 anos)

É... para manter o meu emprego. Eu preciso trabalhar. E por questão da qualidade também, né?! Porque eu po-dia muito bem, é... continuar deixando ela lá, onde ela está [instituição particular não regularizada que recebe crianças], porque minhas despesas só vão aumentar, porque agora vou ter que pagar topic agora [carro que leva e busca crianças para/na instituição]. Mas eu vim atrás de qualidade! Né?! De uma estrutura melhor para minha filha. (Eleandra, mãe 31 anos)

Ah, o que eu espero? Uma educação de qualidade. E ele tem tido essa educação de qualidade [filho dela, irmão da criança que deseja matricular]. Para mim está bom![...] Desde a alimentação, que é um cuidado maravilhoso! A alimentação, tudo balanceado! Tudo que eles têm aqui! A estrutura da escola que é maravilhosa! Os parquinhos! As festas que têm! Ah! É tudo maravilhoso! Adoro! (Ana Carla, mãe, 25 anos).

Problematizamos a questão do reconhecimento do direito, imbricada com a preocupação sobre o desenvolvimento da criança. As falas dos familiares chamam ao diálogo a discussão sobre o conceito de qualidade, que as perpassa, ainda que superficialmente, mostrando que os sentidos ligados à EI não escapam do desejo de matricular a criança em uma instituição reconhecida e qualificada, mas que não há outras escolhas possíveis, quando

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

116 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

o cenário indica uma urgência de um lugar para as crianças que seja em tempo integral:

Hoje em dia aqui no bairro, apesar de que eu goste muito dessa casa onde ela fica, que minha filha fica. Inclusive, ela vai continuar ficando lá, porque a creche da prefeitura não me dá estrutura [se refere ao período integral], que eu trabalho o dia todo, entendeu!? Ela vai ficar um período lá e um período aqui. Mas porque eu decidi, é....eu batalho por uma vaga aqui nessa creche. Porque eu sei da qualidade, faço ideia de toda estrutura que a creche tem. E além de tudo, vamos dizer assim, tem uma fama muito boa essa creche. Todo mundo fala muito bem dessa creche aqui do América. Tanto é que eu foquei para conseguir nessa daqui! Entendeu!? Claro que, se tiver outras vagas, eu até estava tentando em outros lugares, mas a minha preferência é aqui por conta de todo histórico que essa creche tem. Ela é muito elogiada, então eu queria muito aqui. (Eleandra, mãe, 31 anos).

Os sentidos das famílias sobre a EI vão tensionando a busca por esse direito à educação, um direito que contemple o anseio de qualidade pensado pela população, mas que, ao mesmo tempo, esteja atento à realidade local, no equilíbrio entre os interesses de cada par do trabalho educativo. Portanto, é preciso ressaltar que a qualidade na EI é um conceito dinâmico (CRUZ, 2013, p. 202) e que integra tanto a existência dos documentos legais para a infância quanto características muito particulares, de cada realidade, numa variedade dos contextos locais que, obviamente, ecoa na diversidade da EI (CÔCO, 2013, p. 191). Isso se faz presente principalmente quando nos deparamos com distintas referências sobre a EI, convivendo (não sem tensões) em um mesmo contexto municipal:

P4: Quem fica com a criança a maior parte do dia?Lorenza: Creche! Particular!P: Você paga, né!?Lorenza: Pago.

4 Pesquisador

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

117Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

P: É uma casinha ou uma creche mesmo?Lorenza: Hoje ela está numa casa. Ela já foi para uma creche. Hoje, por condições financeiras, ela está em uma casa.P: E quanto que você paga?Lorenza: Eu pago 220 reais.P: Meio turno?Lorenza: De 10h às 16h.P: E é como? É uma mulher e mais duas? Como é que é?Lorenza: É uma... [pensa]. Que eu saiba é assim, a pro-prietária.Que eu sei, de manhã, quando eu levo a minha filha, são duas [fala meio que gaguejando]. Aí eu não sei se à tarde, parece que à tarde tem outra também que reveza, mas aí eu não sei te dizer direito. Mas 3 com certeza. (Eleandra, mãe, 31 anos).

Eu fiquei sabendo que tem um lugar aqui, tipo uma crechezinha particular, né?! Mas nem procurei saber o valor que eles cobram, porque eu já sei que deve ser um absurdo, né?! E eu não tenho condições de pagar. Esses dias eu estava até desesperada, porque estava lá em Vitória, porque me cobraram para olhar os dois, meio período ela, integral ele, 900 reais. E eu ganho 1000 reais. Aí eu falei, se for para deixar e não tiver jeito, terei que sair do serviço, porque a mãe, né!? Ninguém olha como a mãe. Aí tive a necessidade de vir para cá e a pedir a avó bisa para olhá-lo e minha filha está lá com minha mãe. (Isabela, mãe, 24 anos)

P: Você conhece alguém que também esteja na procura de vagas na instituição de Educação Infantil?Nilza: Quantas pessoas você quer? [risos]P: [risos] Quantas você conhecer...Nilza: Ih, conheço umas 20.P: Sério?Nilza: Aham!P: E você sabe há quanto tempo essas pessoas estão procurando vaga?Nilza: A maioria é há 2 anos, 3 anos... esperando a vaga. Aí coloca nessas crechezinhas que são improvisadas...

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

118 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

[instituições particulares não regularizadas que recebem crianças]P: Você conhece quantas creches dessas que são impro-visadas?Nilza: Conheço 5! Só lá no Setor Ásia! [Cidade Conti-nental, possui 5 setores: África, América, Ásia, Europa e Oceania]P: Só no setor Ásia... e em outro setor?Nilza: Aí em outro setor eu não conheço muito não.P: Por que é manifestado o interesse em matricular os gêmeos?Nilza:Porque na creche que é coordenada pela prefei-tura você tem mais segurança de deixar seu filho, ela é regulada na alimentação. Tudo deles são corretos. E a creche improvisada não tem nada disso, vão trabalhar pessoas que não têm conhecimento nenhum de Educação Infantil... você deixa o menino lá porque você é obri-gada, não é porque você quer. Você precisa trabalhar! (Ailza, mãe, 52 anos).

Esse panorama acena urgência no provimento de vagas para as crianças na realidade da EI no ES. Na ausência de instituições públicas que atendam às crianças da comunidade, as famílias, sem muitas escolhas em vista, vão se deparando com caminhos que se mostram presentes, de distintos modos, em cada bairro. No ES é comum encontrarmos situações como essa, não apenas no município de Serra, onde realizamos a pesquisa. Num cenário em que o capital toma partido e se aproveita das necessidades do outro, estimulando o trabalho precarizado e cada vez mais para as crianças e menos com as crianças, distanciando da formação de qualidade e das lutas políticas para o exercício da profissão (BRASIL, 1996, art. 62).

Os dados apresentados no início do texto, em interface com os sentidos dos familiares sobre a EI, revelam um cenário complexo, com poucas opções de escolha para as famílias e, principalmente, para as crianças, que vivem em espaços planejados, muitas vezes em disparidade com o que lutamos para existir como premissa legal (BRASIL, 2009a, 2009b):

Essa situação acaba por deixar as famílias ainda mais excluídas, sem saída: sem emprego, sem vaga na creche, a mãe não pode trabalhar, criando um círculo vicioso

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

119Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

que afasta das unidades públicas de educação infantil principalmente as crianças que mais necessitam ou que se encontram em situações de risco, restando para elas poucas opções, soluções improvisadas de cuidado, que as deixam ao encargo de algum parente ou dos irmãos, muitas vezes também de pouca idade ou sem nenhuma atenção ou responsabilidade (ROCHA; KRAMER, 2011, p. 125)

No ES, além desses espaços alternativos, também temos a presença da família. Ainda que realce os laços de solidariedade existentes, também sugerem a presença de um adulto para cuidar de uma (ou mais) crianças. Esses adultos, em sua maioria mulheres, revogam sua dedicação a uma carreira de trabalho externo, para um atendimento familiar, muitas vezes remunerado:

P: E por que ela mora com sua mãe [em Vitória]?Letícia: Ela mora lá porque eu consegui uma creche quando eu morava lá. E consegui uma [outra] creche que paga só meio período, na tarde.P: Você paga onde?Letícia: Ham... Eu pago minha prima para olhar à tarde.P: Ah, tá.Letícia: Meio período. 380 reais.P: E ela fica com mais outras crianças?Letícia: Não. Só ela.P: Aí ela fica na casa de sua prima?Letícia: É. Estuda de manhã, lá no CMEI em Vitória. E, à tarde, ela fica com minha prima.P: Em Vitória ela conseguiu vaga, né!? Qual idade dela?Letícia: 4 anos fez. Mas ela estuda desde pequena já.P: Aí você paga sua prima desde...Letícia: Desde pequena que eu tenho essa necessidade, porque não consigo integral, aí até esse ano perguntei qual era a prioridade e eles me disseram que a prioridade não são mães que trabalham e sim crianças de risco...P: Isso em [fala nome de município]?Letícia: É, em [fala nome do município]. Crianças de risco... um monte de coisa lá que a mulher falou... [se refere aos critérios de matrícula adotados pela

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

120 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

secretaria de educação do município], tudo bem, né!?[lamenta]P: Quem fica com a criança a maior parte do dia?Letícia: Ele aqui [a criança que a mãe busca matricular está em seu colo], por enquanto estou pagando a bisavó.P: Ah, tá... e você paga quanto para ela?Letícia: A gente está pagando 350 por enquanto. Só assim...P: Aí é meio período, mensal?Letícia: Não, aí, na verdade, ele está ficando de 10h e pouca até eu chegar 20h, aí, se o pai chega mais cedo, pega...P: E ela fica só com ele ou com mais crianças?Letícia: Não. Só ele. Por enquanto ela está mais só ajudando. Porque eu preciso trabalhar e outras pessoas cobram um absurdo, né?! Porque integral eles estão cobrando aí 520 reais... (Isabella, mãe, 24 anos).

Nessa perspectiva, os sentidos dos familiares sobre a EI destacam a necessidade de investimento nas políticas para a infância, que considerem a complexidade dessa oferta, diante do contexto de demanda que se apresenta. Essa realidade interfere tanto na cultura do município quanto na formação das crianças, pois oportuniza que o trabalho docente na EI seja realizado por pessoas sem formação específica para o exercício da profissão. Esse caso se agrava por perpetuar uma lógica de exclusão, em que o direito da criança é violado, principalmente aquelas pertencentes à classe popular, que, sem escolhas, dependem de políticas públicas para fortalecer as suas trajetórias. Assim, refletimos que, junto às lutas por mais vagas na EI, faz-se necessária a análise de cada contexto de demanda, para que, se for insuficiente o acesso, emergencialmente se priorizem os excluídos (ROCHA; KRAMER, 2011, p. 125), numa política pública que acompanhe a processualidade dos avanços e desafios na EI:

Na negociação da medida de importância da EI, advogar o direito a esta com qualidade implica considerar, de modo inter-relacionado, a dinâmica complexa de con-ceituação da qualidade, a necessidade de financiamento das condições básicas de funcionamento das instituições e os indicadores de seu reconhecimento social (CÔCO, 2013, p. 189).

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

121Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Com os dados, observamos a importância da formação conjunta entre os pares de trabalho, que se consolida na comunicação cotidiana entre instituição e família (KRAMER, 2009). Isso contribui para uma gestão democrática, em que a participação da comunidade interfere na oferta de EI, numa perspectiva de atender à demanda da comunidade e, ainda, de negociar os distintos interesses que se encontram no cotidiano da instituição. Nesse mote, encaminhamos algumas reflexões parciais que nos acompanham na trajetória de pesquisadora na EI. Visibilizamos o não esgotamento da conversa, na perspectiva de que a palavra serve sempre como um indicador das mudanças (YAGUELLO apud BAKHTIN, 2006, p. 17) e que reconhecer a processualidade dos sentidos para a transformação de uma cultura e/ou uma realidade local são aspectos fundamentais para a luta por uma EI pública, gratuita e de qualidade, sem requisito de seleção (BRASIL, 2009a, p. 19). Assim, reconhecemos a palavra como fenômeno ideológico por excelência que está em evolução constante, refletindo fielmente todas as mudanças e alterações sociais. Inspiradas em Bakhtin (2006, p. 202), entendemos que o destino da palavra é o da sociedade que fala.

Considerações parciais

Seguimos com o pressuposto de que os direitos humanos, ainda que desejáveis, não foram ainda, todos eles – por toda parte e de igual medida –, reconhecidos (BOBBIO, 2004, p. 35-36). Portanto, não basta estabelecer os direitos das crianças em papel; se fazem necessárias, diante dos sentidos apresentados, a garantia e a comunicação desses direitos, por exemplo, nas chamadas públicas, campanha por matrículas, divulgação de editais de matrícula... com vistas a publicizar o direito de todos à educação. E ainda a oportunização aos conhecimentos sobre a demanda populacional, com vistas a compartilhar com a comunidade os fatores que contribuem para a escassez do atendimento.

A investida de apresentar, neste texto, dados relativos ao contexto da EI no ES é uma tentativa de destacar o complexo cenário de desafios que se apresentam no interior da realidade latino-americana. Estamos cientes de que esse assunto não se esgota por aqui, há muito o que ser dito, pensado, estudado e debatido (BAKHTIN, 2011) para provocar transformações no panorama local. Nesse campo, várias vozes se encontram, acordam,

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

122 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

tensionam e rivalizam (BAKHTIN, 2006; 2011). Nesse jogo, temos as famílias, como trouxemos anteriormente, os pesquisadores, que investem em estudos que possam mapear a situação local e problematizar a realidade junto a movimentos sociais, as secretarias de educação dos municípios e as mídias locais, que trabalham, especialmente, no intermédio e comunicação das lutas da comunidade, respectivamente. Todas essas energias advogam pelo incentivo a políticas públicas para a infância, na ansiedade por melhores condições de atendimento às crianças.

Desse modo, os efeitos das políticas são sentidos nos fatos sociais básicos da pobreza, da opressão e da desigualdade (BALL, 2001, p. 27), portanto, cada vez mais se justifica a urgência de rever o baixo investimento de recursos públicos na educação (ROSEMBERG, 2002), numa luta que não se encerra, pelo contrário, se intensifica a cada dia por mais visibilidade no cenário social (CONAE, 2014). Nessa perspectiva, vale lembrar as angústias daqueles que anseiam a garantia de atendimento às crianças5, num vigor de acreditar que é possível atender à EI como primeira etapa da educação básica, considerando o direito de todas as crianças a vivenciá-la, sem requisito de seleção. Afinal,

Todo bairro tinha que ter uma creche igual a essa aqui. Todo bairro tinha que ter... Todo mundo tinha que ter acesso a isso! Isso aqui não é um privilégio, gente! Isso aqui tinha que ter em todo lugar, né?! (Ana Carla, mãe, 25 anos).

5 Outros dados sobre a realidade da EI no ES podem ser vistos nas mídias locais. Selecionamos algumas matérias apresentadas no jornal A Tribuna e no jornal A Gazeta veiculadas em: <http://www.redetribuna.com.br/televisao>, acessado em: 9 dez. 2013; <http://g1.globo.com/videos/espirito-santo/estv-1edicao/t/edicoes/v/mais-de-8-mil-criancas-estao-fora-da-escola-na-serra-es-po-falta-de-vaga-em-creches/2877003/>, acessado pela última vez em: 10 dez. 2013; <http://g1.globo.com/videos/espirito-santo/estv-1edicao/t/edicoes/v/moradores-de-bairro-de-cariacica-no-es-cobram-conclusao-de-creche-inacabada/3021617/>, acessado em 16 dez. 2013; <http://g1.globo.com/videos/espirito-santo/estv-1edicao/t/edicoes/v/moradores-do-bairro-darly-santos-em-vila-velha-es-esperam-construcao-de-creche/3247013/>, acessado em 29 de mar. 2014.

O direito à educação infantil: a busca por matrículas no cenário do Espírito Santo

123Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

Referências

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996.

BRASIL. MEC/SEB. Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil.Brasília: MEC, SEB, 2006. Vol. 1 e Vol. 2.

BRASIL. CNE/MEC nº5, de 17 de dezembro de 2009. Estabelece Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 dez. 2009a, Seção 1, p. 18.

BRASIL.Indicadores da Qualidade na Educação Infantil. Ministério da Educação. Brasília, DF: 2009b.

BALL, Stephen Joseph. Education reform: a critical and post structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994.

BALL, Stephen Joseph. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. Currículo sem Fronteiras, n.2, p. 6-23, jul. 2001. Disponível em: <http://www.curriculosemfronteiras.org/vol1iss2articles/ball.pdf>. Acesso em: 23 jan.2014.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier: Campus, 2004.

CÔCO, Valdete. Conquistas, avanços e disputas na política de educação infantil: transformações na docência... Em nós. In: RANGEL, Iguatemi Santos; NUNES, Kézia Rodrigues; CÔCO, Valdete. Educação infantil: redes de conversações e produções de sentidos com crianças e adultos. Petrópolis, RJ: De Petrus, 2013, p. 180-199.

CÔCO, Valdete. Interfaces da formação inicial com a Educação Infantil: aprendizagens recíprocas. In: RANGEL, Iguatemi Santos; NUNES, Kézia Rodrigues; CÔCO, Valdete. Educação infantil: redes de conversações e produções de sentidos com crianças e adultos. Petrópolis, RJ: De Petrus, 2013, p. 107-124.

CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO, DOCUMENTO REFERÊNCIA 2014: OPNE na Articulação do Sistema Nacional de Educação: Participação Popular, Cooperação Federativa e Regime de Colaboração. Fórum Nacional de Educação. Disponível em: <http://conae2014.mec.gov.br/images/pdf/doc_referencia_conae2014.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2013.

Kallyne Kafuri Alves Correio e Valdete Côco

124 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 105-124, jan./jun. 2014

CRUZ, Silvia Helena Vieira. Interfaces Avaliação da/na educação infantil: algumas reflexões. In: RANGEL, Iguatemi Santos; NUNES, Kézia Rodrigues; CÔCO, Valdete. Educação infantil: redes de conversações e produções de sentidos com crianças e adultos. Petrópolis, RJ: De Petrus, 2013, p. 107-124.

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b.

KRAMER, Sonia (org.). Retratos de um desafio – crianças e adultos na Educação Infantil. São Paulo: Ática, 2009.

ROCHA, Eloisa AciresCandal; KRAMER, Sonia (orgs.). Educação infantil: enfoques em diálogo. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 2011.

MOREIRA, Herivelto; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

NASCIMENTO, Maria Leticia. CAMPOS, Maria Malta. COELHO, Rita de Cássia de Freitas. As políticas e a gestão da Educação Infantil. Retratos da Escola, Brasília, v. 5, n. 9, p. 201-214, jul. 2011. Disponível, em: <http://www.esforce.org.br/index.php/semestral/issue/view/3>. Acesso em: jan. 2014.

NUNES, Maria Fernanda Rezende. Educação infantil no Brasil: primeira etapa da educação básica / Maria Fernanda Rezende NUNES, Patrícia CORSINO e Vital DIDONET. Brasília: UNESCO, Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica, Fundação Orsa, 2011. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002144/214418por.pdfAcesso em: 16 out. 2013.

ROSEMBERG, Fúlvia. Avaliação de programas, indicadores e projetos em educação infantil. Rev. Bras. Educ. [online]. 2001, n.16, p. 19-26. Disponível em<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782001000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 jan.2013.

ROSEMBERG, Fúlvia. Organizações multilaterais, estado e políticas de educação infantil. Fundação Carlos Chagas. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cadernos de Pesquisa, n. 115, p. 25-63, março/ 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n115/a02n115.pdf>. Acesso em: 08 dez. 2013.

125Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 125-128, jan./jun. 2014

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES

A Revista Cadernos de Pesquisa em Educação, periódico semestral do Programa de Pós Graduação em Educação, publica artigos, resenhas de livros, dossiês e traduções inéditas de autores brasileiros e estrangeiros. Os trabalhos recebidos para ...

Os artigos devem apresentar resultados originais de trabalhos de investigação e/ou de reflexão teórico-metodológica, não sendo permitida a sua apresentação simultânea para avaliação em outro periódico.

Os dossiês deverão ter um caráter interinstitucional, abordando temáticas de relevância para a área. Devem ser compostos de uma apresentação e de três a cinco artigos, reunindo autores de no mínimo três instituições e contando, preferencialmente, com a participação de, pelo menos, um pesquisador filiado a instituição financeira.

As resenhas devem efetuar um estudo crítico de textos recentemente publicados ou de obras consideradas clássicas da área. Deve apresentar, obrigatoriamente, a referência bibliográfica completa, esperando-se que contenham comentários e julgamentos sobre as idéias contidas na obra, a metodologia empregada, a relevância do tema e da abordagem para a área, bem como a posição do(s) autor(es) no debate acadêmico.

As traduções deverão vir acompanhadas de uma autorização do autor da obra original ou da editora que publicou o texto. Quando se tratar de obra de domínio público, dispensa-se tal autorização ficando responsável por essas informações o autor da tradução.

Orientações para formatação dos textosAs contribuições deverão ser apresentadas no seguinte formato: 2,5 cm

de margem superior e inferior; 3 cm de margem direita e esquerda, espaço entre linhas 1,5 fonte “Arial”, tamanho 12.

Artigos, traduções e dossiês (cada artigo) – de 40.000 a 60.000 caracteres com espaços (aproximadamente de 20 a 28 páginas, incluindo gráficos, tabelas, figuras e imagens), acompanhados de títulos em inglês; resumos e abstracts de 700 a 800 caracteres com espaços (aproximadamente 10 linhas); cinco palavras-chaves e keywords;

Orientações aos colaboradores

126 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 125-128, jan./jun. 2014

Resenhas – de 8.000 a 15.000 caracteres com espaços (aproximadamente de 4 a 8 páginas);

Deverá ser encaminhada no padrão; editor “Word for Windows”.Na primeira lauda da contribuição deverá conter:Título digitado na mesma fonte do texto, em tamanho 12, com

alinhamento centralizado e em negrito. Deve ser breve, específico e descritivo, contendo palavras-chave que representem o conteúdo do texto acompanhado de sua tradução para o inglês;

Nome(s) completo(s) do(as) autor(e/as), tipo de vinculação institucional, endereço postal, telefone, fax e e-mail.

Na segunda lauda da contribuição deverá constar:Resumo, de caráter informativo, expondo o objetivo, metodologia,

resultados e conclusões da contribuição, contendo até 250 palavras, estruturado em um único parágrafo e acompanhado de sua tradução para o inglês (abstract);

Palavras-chave, que identifiquem o conteúdo do artigo, acompanhadas de sua tradução para o inglês (keywords).

O texto, iniciado a partir da terceira lauda, deverá estar estruturado conforme as características específicas da contribuição (artigo, resenha, relato de projeto ou de pesquisa), com paginação numerada no canto superior direito.

As citações devem seguir os seguintes critérios: citações textuais de até três linhas devem vir incorporadas ao parágrafo, transcritas entre aspas, seguidas da indicação bibliográfica, citações textuais com mais de três linhas devem aparecer em destaque em outro parágrafo, utilizando-se recuo (4 cm na margem esquerda), em corpo 11, sem aspas.

As notas de rodapé deverão ser explicativas, limitando-se ao mínimo possível.

As ilustrações (fotografias, gráficos, tabelas, etc.) poderão ser aceitas se estiverem em preto e branco (estritamente indispensáveis à clareza do texto), devendo-se assinalar, no texto, o número de ordem e os locais onde devem ser inseridas. Se as ilustrações já tiverem sido publicadas, mencionar a fonte de onde foram retiradas (autor, data) abaixo da ilustração e por completo nas referências.

As indicações bibliográficas, dentro do texto, devem vir no formato sobrenome do autor, data de publicação e número da página entre parênteses, como, por exemplo: (AZEVEDO, 1946, p. 11).

Orientações aos colaboradores

127Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 125-128, jan./jun. 2014

As referências devem ser redigidas de acordo com a NBR 6023/2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, ordenadas alfabeticamente por sobrenome do autor e constituir uma lista como última seção do artigo. A exatidão e adequação das referências a trabalhos que tenham sido consultados e mencionados no texto do artigo são de responsabilidade do(s) autor(es).

As referências deverão ter alinhamento apenas na margem esquerda, com as linhas posteriores à primeira também rentes à margem.

A comissão Editorial se reserva no direito de aceitar apenas artigos apresentados com as normas acima descritas.

Avaliação dos TrabalhosOs artigos, dossiês e traduções recebidos serão submetidos a uma

avaliação preliminar por parte da Comissão Editorial, que examinará se cumprem os requisitos temáticos e formais. Após essa análise, serão encaminhados anonimamente a dois pareceristas ad hoc. Os pareceristas poderão recomendar a sua aceitação, recusa ou sugerir reformulações. Neste caso, o artigo reformulado retornará à Comissão Editorial, para avaliação final.

Os critérios para a seleção de artigos levam em conta, além dos aspectos formais do texto, a originalidade; o alcance dos objetivos propostos; o aprofundamento no tratamento do tema; a análise das fontes com relação ao referencial teórico pertinente à abordagem histórica e/ou historiográfica; o diálogo com estudos da área de historia da educação e áreas conexas.

A revista adota o sistema duplo-cego (blind review), de modo a assegurar que os nomes dos pareceristas permaneçam em sigilo, omitindo-se também perante estes os nomes dos autores.

As resenhas, notas de leitura e traduções são avaliadas pela Comissão Editorial.

Após a aprovação do trabalho, os autores serão solicitados a enviar autorização de publicação.

A Comissão Editorial informa que o conteúdo expresso nos artigos publicados é de inteira responsabilidade dos seus autores.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores e/ou tradutores dois exemplares do número da revista em que seu texto foi publicado.

Orientações aos colaboradores

128 Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 125-128, jan./jun. 2014

Essas normas estão disponibilizadas no sítio eletrônico da Revista Cadernos de Pesquisa em Educação e podem ser acessadas em: www.periodicos.ufes.br/educacao

129Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE/UFES Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 129, jan./jun. 2014

129129

CADERNOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE-UFES

Assine hoje mesmo e receba o exemplar da revista Cadernos de Pesquisa em Educação - PPGE - UFES, por apenas R$ 40,00 (quarenta reais).*Serão 2 números por ano

Para obter sua assinatura, basta depositar R$ 40,00 na conta: 170500-8 – Banco do Brasil, Agência: 1607-1 – Governo BSP-DF – cód. Identificador 15304615225289086 - e enviar o recibo do depósito via e-mail para [email protected] A/C do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES. Preencha também o formulário para que possamos manter nosso cadastro atualizado.

Nome: __________________________________________________________________

Instituição: ______________________________________________________________

Endereço: ________________________________________________ n.: ___________

Bairro: __________________________ Cidade: ______________________ UF:_______

CEP: ______________ Tel.: _____________________ Cel.: ________________________

E-mail: _________________________________________________________________

Página: _________________________________________________________________

*Cadastre-se mesmo que não faça a assinatura.

Ficha para assinantes