revista plethos

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Plêthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 134 Relações de poder e a formação da Tetrarquia sob a perspectiva dos panegiristas latinos no século III d. C. Ana Paula Franchi (UFG) Resumo: Durante o século III d.C. a manutenção do poder imperial era uma das principais preocupações dos governantes. Com o objetivo de garantir a estabilidade política, Diocleciano promoveu uma série de reformas institucionais, com destaque para partição do poder imperial entre dois ou mais titulares. O objetivo deste texto é analisar como a formação da Tetrarquia foi abordada nos discursos oficiais conhecidos como panegíricos. Palavras-chave: tetrarquia, relações de poder, panegíricos. Power relations and the formation of Tetrarchy in the perspective of Latin panegyrists in III century AD Abstract: During the AD III the maintenance of imperial power was a major concern of the rulers. In order to ensure political stability, Diocletian promoted a series of institutional reforms, especially partition of imperial power between two or more owners. The intent of this paper is to analyze how the formation of the Tetrarchy has been treated in official speeches known as panegyrics. Keywords: tetrarchy, power relations, panegyrics. *** Decadência, crise, transformação. Independente da corrente historiográfica e conceito adotado, os últimos séculos do Império Romano foram peculiares no que concerne sua organização política, nos quais as estruturas clássicas da República e Principado foram paulatinamente transformadas, culminando no estabelecimento uma nova forma de organização que alicerçou as estruturas típicas da Idade Medieval. Um momento de transição, e tal como qualquer transição, configurou-se em uma nova realidade política, econômica e social, decorrente de uma adaptação da estrutura imperial clássica frente à necessidade de contornar os conflitos

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5ª Edição Completa_134

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Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 134 Relaes de poder e a formao da Tetrarquia sob a perspectiva dos panegiristas latinos no sculo III d. C. Ana Paula Franchi (UFG) Resumo:DuranteosculoIIId.C.amanutenodopoderimperialeraumadasprincipais preocupaesdosgovernantes.Comoobjetivodegarantiraestabilidadepoltica,Diocleciano promoveuumasriedereformasinstitucionais,comdestaqueparapartiodopoderimperial entre dois ou mais titulares. O objetivo deste texto analisar como a formao da Tetrarquia foi abordada nos discursos oficiais conhecidos como panegricos. Palavras-chave: tetrarquia, relaes de poder, panegricos. Power relations and the formation ofTetrarchy in the perspective ofLatin panegyrists in III century AD Abstract:DuringtheADIIIthemaintenanceofimperialpowerwasamajorconcernofthe rulers. In order to ensure political stability, Diocletian promoted a series of institutional reforms, especially partition of imperial power between two or more owners. The intent of this paper is to analyzehowtheformationoftheTetrarchyhasbeentreatedinofficialspeechesknownas panegyrics. Keywords: tetrarchy, power relations, panegyrics. *** Decadncia,crise,transformao.Independentedacorrentehistoriogrficaeconceito adotado,osltimossculosdoImprioRomanoforampeculiaresnoqueconcernesua organizaopoltica,nosquaisasestruturasclssicasdaRepblicaePrincipadoforam paulatinamente transformadas, culminando no estabelecimento uma nova forma de organizao quealicerouasestruturastpicasdaIdadeMedieval.Ummomentodetransio,etalcomo qualquer transio, configurou-se em uma nova realidade poltica, econmica e social, decorrente deumaadaptaodaestruturaimperialclssicafrentenecessidadedecontornarosconflitos Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 135 internoseexternos.Estaadaptao,resultadodamanutenodealgunsvalores,prticasou hbitos relacionados tradio, a caracterstica legitimadora do Dominato. Entendidoenquantoumamodalidadeespecficadosistemapoltico-ideolgicoque vigorou entre os sculos III e IV d.C., um dos marcos adotado pelos historiadores para datar a sua emergncia foi o perodo de governo do imperador Diocleciano, iniciado em 284 d.C., aps umconturbadociclodeguerrascivis.Istoporqueesteimperadorempreendeureformasde princpiosautocrticos,quenoserestringiramsomenteaincorporaodenovossmbolosde poder-atravsdaregulamentaodasimbologiadoscerimoniaiserituais-mastambmem aspectos efetivos do Estado, concernentes a administrao, fiscalizao e questo militar, o que acabou propiciando um maior controle do Estado sobre a vida pblica. nesteperodoqueficoumaisevidenteoprocessodedesintegraodoextenso territriodoImprioRomano,ocasionandoinmerosproblemasreferentesmanutenoda unidade e, consequentemente, manuteno do prprio imprio. Em buscada restaurao dos mecanismosqueatentohaviamgarantidoaampladominaoeintegraodasdistintase distantesregiesdoimprio,vemosqueasestruturasdepoderforamreformuladascom caractersticacadavezmaismarcanteemrelaoaconcentraodepodernoImperador.Seria estranho,noentanto,afirmarqueestaadaptaodaestruturaimperialtivesseocorridosem conflitos, e com a ecloso das inmeras guerras civis, ficou evidente que a dinmica poltica deste perodointroduziuumnovoelementonosesquemasdegovernoimperial,opoderiomilitar (Bravo,1997:190).Logo,osanosentre235d.C.e284d.C.ficaramconhecidospela historiografiacomoAnarquiaMilitar22,momentoemqueseexternaramasforasdaslegies na aclamao dos imperadores. Mas se a fora militar poderia assegurar a ascenso ao poder, ela no poderia garantir sua manuteno, todos os governantes precisavam formar ao seu redor um grupo social de apoio, e para isso se valiam de diversos artifcios, entre eles, a propaganda (Gonalves, 2002: 12-21). Esta motivaofezcomquedetentoresdopoderimperialvissemacomunicaooficialcomoum importante instrumento de legitimao do poder, que auxiliaria na promoo dos imperadores e poltica imperial, e consequentemente, na manuteno da unidade.Acomunicaooficialerafundamentada entreoutrospontosnaproduodediscursos proclamadosemocasiessolenesdoImprio.Aprprianaturezadosdiscursospanegirsticos,

22 Inmerosdebatesexistememtornodanomenclaturadesteperodo,sobreeles,encontramosumaprimorosa discusso em Gonalves (2002: 28-120). Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 136 fonteparaestapesquisa,possibilitousuautilizaoenquantoinstrumentodepropagandae legitimao,dosimperadoresedopoderimperial.Sodiscursoselogiosos,delouvoraum personagemouumacidade,oudeformamaisampla,paraglorificaraptria,areligio,a divindade, que por meio da retrica e oratria testemunham fatos e aes polticas relevantes ao contexto que so produzidos. NoImprioRomanoospanegricosforamamplamenteutilizadosapso engrandecimento da Repblica e a formao do extenso territrio dominado pelos romanos, pois alm da necessidade de destacar personagens de prestgio, era costume que, na primeira vez em que o Cnsul falasse diante da Assembleia Centuriata, aproveitasse a ocasio e fizesse elogio aos seuspares.Masfoisomenteapartirdoperodoimperialquetaltipodediscursoalcanoua significao poltica que abordamos neste artigo, ao ter o elogio ao Prncipe como eixo principal. Entreoslouroseglriasproclamadasaoimperadorpelosoradorespercebemosabusca incessante de um governo e um governante em consolidar a unidade. Unidade de aceitao desse ltimo como legtimo representante do imperium, e unidade interna do prprio Imprio Romano, saturadopelasconstantesguerrascivisepelosconflitosexternos,principalmentenoque concerne a integrao entre os territrios anexados e a manuteno das fronteiras. AcoleodediscursosquechegouatosdiasatuaiscomonomedePanegricos Latinoscompostapordozediscursos23.Deummodogeralpossvelafirmarqueseguema perspectivaacimacitada,masclaro,seadaptandoaocontextoquesoproduzidos, homenageando os imperadores e narrando os conflitos e conquistas temporalmente prximos data de sua produo. Em especial, trs discursos desta coletnea permitem analisar a formao e consolidao docolgioimperialtetrrquicodefinaisdosculoIIId.C.,osquaisserofocodaanliseaqui delineada.Soeles:PanegricodeMamertinoemhonraaMaximianoAugusto,Discursodeaniversriode Mamertino em honra a Maximiano Augusto e Panegrico de Constncio Csar, de um orador annimo. A primeira dessas trs obras foi proclamada no ano de 289 d.C. de autoria de Mamertino, provavelmenteporocasiodascomemoraesdoaniversriodeRoma.Inicialmente,oque

23Estasobrasforamcompiladasemumacoleopelaprimeiravezemtemposmaismodernosem1433por GiovanniAurispa.Noestavamorganizadossegundoaordemcronolgicaepassaramaserconhecidoscomo panegricoslatinos(RodriguesGuervs,1991:11).ComexceodopanegricoatribudoaPlnio,oJovem, realizado em homenagemaoImperador Marco lpio Trajano e proclamadono ano 100d.C.,os demais discursos abarcamumperododeumsculo,doanode289d.C.at389d.C.,ehomenageiamosImperadoresMaximiano, ConstncioCloro,Constantino,JulianoeTeodsio.Anumeraodosdiscursos,segundoaordemcronolgica, passou a ser adotada aps a compilao feita por E. Galletier em 1949, e se segue desde ento. Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 137 sobressainestediscursoadatadesuaproclamao,anterioraassociaodeGalrioe ConstncioCloroaopoderimperial,ouseja,umdiscursoqueabordaagnesedaformao tetrrquica,quandocompletouaproximadamentetrsanosqueDioclecianosealioua Maximiano, chamando-o para ser seu co-imperador. Interessanteressaltarqueesteumdospoucosdocumentosrestantessobreoincio dessaalianaentreosdoisimperadoreseneleooradorinsisteemapresentarumaslida concrdiaentreosgovernanteseumacomplementariedadedopoderdeambos,construindo assimumajustificativapolticaparaestadivisodopoder.FranciscodeP.Samaranchacredita que toda esta construo do discurso utilizada por Mamertino ao mesmo tempo uma forma de tranquilizar a opinio pblica que estava inquieta por la unidad del imperio (1969: 1139), j que este era o momento imediatamente aps as intensas guerras civis que haviam caracterizado o sculo III d.C. e no estavam por completo findadas se considerarmos asrecorrentes tentativas de usurpaes, bem ou m sucedidas.Prncipesinvencveis,umefeitodevossaconcrdiaqueafortunavos concedagrandeigualdadedexitos.Comumamesmaalmaadministramo imprio, se grande a distncia que os separa, ela no os impede de governar porassimdizer,comvossasmosunidas.Assim,aindaqueamajestade imperialseampliassecomvossadupladivindade,vossaconcrdiamantma vantagem de uma autoridade nica.24 Vuestrahocconcordiafacit,inuictissimiprncipes,utuobistantaaequalitatesuccessuum etiamfortunarespondeat.Rempublicamenimunamenteregitis,nequetantalocorum diuersitasobestquominusetiamuelutiiunctisdexterisgubernetis.Ita,quamuismaiestatem regiamgeminatonumineaugeatis,utilitatemimperiisingularisconsentiendoretinetis. (Mamertino, 289: XI, 1-2) EsteposicionamentodeMamertinoirperpassartodoodiscurso,sempreprocurando demonstrar que a aliana selada pelos dois soberanos proporciona o engrandecimento de ambos, easvirtudeseprticascomunsqueestabeleciamprasiasseguravamdiaapsdiaaconcrdia, virtudeporeleconsideradacomovnculomaisfortequeosprprioslaosdesangue (Mamertino, 289: IX, 2-3).

24 Traduesrealizadaspelaautora,auxiliadaspelaediodospanegricoslatinostraduzidaparaoespanhol (Samaranch, Francisco de P.,1969) e pela edio bilingue latim e francs (Galletier, E., 1949). Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 138 Talvez seja esta a razo de Mamertino estabelecer um paralelo contnuo entre os feitos de MaximianoeDiocleciano,oqueolevaemmuitasocasiesautilizarexpressesnopluralao referenciarosoberanohomenageado,atitudequepossibilitoualgunspesquisadores interpretaremqueDioclecianopudesseestarpresentenaproclamaodestediscurso,fato improvvel, uma vez que a diviso de poder entre os imperadores ocasionava que os soberanos fossemresponsveispolticaeadministrativamenteporregiesdistintasdoimprio,cadaqual comsedeprpria(Silva;Mendes,2006:199),oquedificultavaencontroscontnuos.Cabe tambm ressaltar que, embora este discurso tenhasido feito por ocasio das comemoraes do aniversrio de Roma, foi proclamado na cidade de Trveris, sede do governo de Maximiano25. Noentanto,estapartiodopodernocomportavaumaigualdadeplenaentreos imperadores.possvelperceberqueexistiaumahierarquiaentreossoberanos,sendoque Diocleciano,fundadordocolgioimperial,teriaasupremacia,ficandoreconhecidocomo augustosnior.EstaformadeorganizaodopoderfezcomqueMamertinotivessea preocupaoemreafirmararelaoamistosaaomesmotempoemqueassinalavaadiferena entreambos:DioclecianoeraretratadocomoacabeadiretoraeMaximianocomobrao executor(Samaranch,1969:1139;Mamertino,289:XI,6).Ambosforamapresentados, portanto, como fundadores e restauradores do imprio. Pois,emverdade,imperadorsacratssimo,comtodarazo qualquerpessoapodiadeclar-los,atieaseuirmo,os fundadores do Imprio Romano: so, em efeito, coisas que vem aseromesmo,osseusrestauradores,e,aindaqueestediaseja para esta cidade um dia comemorativo de nascimento no que diz respeitoaorigemdopovoromano,osprimeirosdiasdevosso governocontinuamsendoadatamaisimportantenoquediz respeito a sua salvao. Reueraenim,sacratissimeimperator,mritoquiuistetuumquefratem Romaniimperiidixeritconditores:estisenim,quodestproximum, restitutoreset,sitlicethicilliurbinatalisdies,quodpertinetadorigem

25 Todo o primeiro captulo deste discurso pode ser considerado como uma justificativa do orador em homenagear Maximiano nas celebraes do aniversario de Roma, uma vez que ele enfatiza as origens da cidade associando-a as divindades,principalmenteHrcules,etambmpelofatoRomadeseraprimeirasededogovernoimperial,e Trveris, por sua vez, ser a sede do governo de Maximiano, conforme reafirma no ltimo captulo deste panegrico.Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 139 populiRomani,uestriimperiiprimidiessuntprincipesadsalutem (Mamertino, 289: I, 5). SignificativaaconsideraodeMamertinoaoafirmarDioclecianoeMaximiano enquantorestauradoresdoImprio.Abipartiodopoderdemonstravaqueestaimportante transformao poltica do governo de Diocleciano era uma resposta s intensas guerras civis que o precederam, uma tentativa de conter as constantes aes usurpatrias que se espalhavam pelo mundoromano(Frighetto,2012:94).Noplanodareformulaoideolgicadopodersobos parmetros do Dominato, a associao do detentor do poder imperial com o sagrado permitiu aos panegiristasestabelecerumparaleloentreosimperadoreseosdeuses(Frighetto,2012:94), sendoentoDioclecianoequiparadocomJpiter(querestaurouaordemdosdeusesaolutar contraosTits)aocessarasintensasguerrascivis,eMaximianocomHrcules,queauxiliou Diocleciano nesta tarefa (tal qual Hrcules fez em relao a Jpiter) (Samaranch, 1969: 1139): Vocnoprecisou,defato,colocaramonolemenomomentoemqueo navio do estado tinha o vento favorvel em suas velas, mas no momento onde, pararegularizarasituaodostempospassados,sfoisuficienteoauxlio divino e ainda a assistncia de um deus nico no era mais suficiente, voc, ao ladodoprncipe,apoiouopoderromanoquesedesintegrava,comtanta oportunidadecomonaquelaemqueseuantepassadoHrculesauxiliouseu soberano Jpiter em meio s dificuldades da guerra dos Tits, tomando grande partenavitria,comoquedemonstrouquedevolviaaosdeusesdocumais do que havia recebido deles. Nequeenimcumreipublicaenauemsecundusapuppiflatusimpelleret,salutaremmanum gubernaculis addidisti, sed cum ad restituendam eam post priorum temporum labem diuinum modoacneidquidemunicumsufficeretauxilium,praecipitantiRomanonominiiuxta principemsubistieademscilicetauxilliopportunitatequatuusHerculesIouemuestrum quodam terrigenarum bello laborantem magna uictiriae parte iuuit probauitque se non magis a dis accepisse caelum quam eisdem reddidisse. (Mamertino, 289: IV, 2) Alm disso, quando fala em desintegrao do poder romano, a citao acima nos permite perceber um contexto ainda fragilizado neste incio da formao tetrrquica. Os panegiristas no podiamignorartalsituao,etantoasbatalhasdemanutenoterritorialecontenesdas fronteiras,bemcomoascampanhasrelativasrepressodasusurpaessobressaemneste discurso de Mamertino. Dentre os inmeros feitos de Maximiano que no poderiam ser descritos neste panegrico sob o risco de sua proclamao demorar em demasia (Mamertino, 289: II, 5-7), Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 140 o orador destaca trs campanhas que considera como as mais relevantes para aquela ocasio: O apaziguamento do levante Baugada, a defesa da Glia contra a invaso germnica e a dissidncia de Carusio. Dessastrscampanhasmilitares,Mamertinoreservaamaiorpartedopanegricoparaa dissidnciadeCarusio.Narealidade,focanadescriodospreparativosdeumabatalhaque anunciapreviamentecomovitoriosa,umavezqueelaaindaestavaporacontecer.Carusioera originrio da regio da Menpia (provncia da Glia Blgica) e havia adquirido destaque durante ascampanhasdeMaximianocontraosBaugadas,oquepossibilitouquefossenomeado comandantedastropasnavaisparacombaterospiratasfrancosesaxes.Assucessivasvitrias queobteverevelaramsuaaspiraoemserhomenageadoomesmottulodeMaximiano. Convm salientar que um dos intentos da associao de mais de uma pessoa ao poder imperial poderiaseracontenodasusurpaesdopoder,umavezquepodemosevidenciarduranteo sculoIIId.C.queossoberanosforamimportantesgeneraisvitoriosos,ealmdoprestgio adquirido, contavam com o apoio das tropas, as quais poderiam garantir a posio mediante uso dafora.Porestemotivo,almdajustificativaideolgicadopoderimperial,osistema tetrrquicoimplementadoporDioclecianoprocurouestabelecerregrassucessrias,como veremos adiante. Como a nomeao de Carusio enquanto augusto no estava nos planos de Diocleciano e Maximiano, foi ordenada a sua priso e execuo. Contudo, existe um cuidado dos governantes emnodesvelaresteobjetivo,receandoarepercussoesurgimentodenovosmovimentos dissidentes, logo, a acusao imputada foi a de que Carusio retinha para si os esplios de guerra. Diante desta situao, o prprio Carusio se declara imperador da Bretanha e do Norte da Glia com apoio de suas tropas. Samaranch discorre que a pretenso do dissidente em ser reconhecido como augusto poderia no implicar em uma usurpao de fato (1969: 1065), uma vez que ele no intencionava extrapolar os limites que j estava sob a jurisdio que lhe tinha sido atribuda por Maximiano,sendoquerequeriaapenasumreconhecimentolegaldeseustatus.Comoos encaminhamentos da situao no foi o que esperava, Carusio reuniu ao seu redor considerveis forasnavaisemilitares,conseguiuapoiodetropasmercenriasfrancas,estabelecendoporfim umapotnciaindependentenaBretanha,chegandoatacunharmoedasprprias.(Samaranch, 1969: 1141). Rodriguez Guervs (1991: 31-32) destaca que Carusio conseguiu obter um rpido controle desta regio, sobretudo por contar com o apoio de elementos citadinos, principalmente dos comerciantes gauleses. Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 141 AocontrriodopreldiofeitoporMamertinoem289d.C.,ascampanhasdosanosde 289d.C.e290d.C.contraCarusionoforambemsucedidas,oqueprovavelmenteimpeliu o panegiristaasilenciarestasquestesnopanegricoseguinte,Discursodeaniversrioemhonrade Maximiano Augusto,tambmdesuaautoria,proclamadonoanode291d.C.difcilprecisaro aniversrio que esta obra visa celebrar, mas aceito pelos historiadores e fillogos que debatem o assunto que o aniversrio em questo o nascimento da imortalidade divina, ou seja, a ascenso de Maximiano e sua aliana com Diocleciano ao poder, uma vez que o discurso faz coincidir o nascimentodeambossoberanos(Samaranch,1969:1152),exemplodissoquandofazusoda expresso gemini natalis (Mamertino, 291: I-1). O curto espao de dois anos que separam os discursos no possibilitou queMamertino introduzissemuitosfatosnovosemsuaobra,poressarazo,fazumresumodasbatalhas descritas no panegrico anterior, enfatizando, entretanto, a justificativa ideolgica da legitimao do poder de Maximiano. E essa a caracterstica principal deste discurso, sendo o captulo II um exemplodisso,poisalmdeintroduzirosprincipaisargumentosqueserotrabalhadosno decorrerdopanegrico,Mamertinoressaltanesseitemanecessidadedacelebraoanualda subida ao poder do soberano, reforando a origem divina da famlia de Maximiano, e exaltando as virtudes que considera, para alm de uma herana familiar e devoo divina, frutos tambm de sua experincia, idade e educao. possvelperceber,portanto,queainstabilidadedoperodo-mesmoqueMamertino procure convencer o pblico presente do contrrio, enfatizando que viviam um perodo de paz e prosperidade(Mamertino,291:XIII-XVIII)-exigequeosresponsveispelapolticaimperial promovamosfundamentosdoDominatoenquantofontelegitimadoradosoberanoedanova formadeestruturapolticavigente.Porissonessepanegricoficammaisacentuadasas demonstraes retricas da origem divina dos imperadores26. Umdospontosdestepanegricoquepermitesustentarafragilidadedestesanosiniciais do governo de Diocleciano e Maximiano a descrio, durante toda a primeira parte do discurso, da conferncia de Milo, realizada em princpios do ano de 291 d.C.. Essa conferncia seria uma espciedesegundaediodareuniorealizadapelosdoisimperadoresnoanode288d.C..No

26 Diversassoaspassagensquepoderiamservirde exemplo,noentanto,sodemasiadamenteextensasparauma reproduointegral.Contudo,consideramosocaptuloIIIcomoumaamostra,umavezqueneleMamertino consideraJpitereHrculescomofundadoresdivinosdoImprioeprecursoresdascasasdeDioclecianoe Maximiano, que, consequentemente, receberam este imprio como herana. Alm do fato de que nessa passagem estabelecidoumparaleloconstanteentreoimpriodosdeuses,eoimpriosobreresponsabilidadedossoberanos homenageados no discurso. Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 142 entanto,aoinvsdeumencontrobreve,emumacampamentoparatrocadeimpresses,esta reunio entre os imperadores teve como sede uma importante cidade do imprio, com durao de vrios dias, o que acarretou que ela fosse organizada com todos os rigores de uma celebrao pblica (Galletier, 1949:42). Ademais, um dos provveis assuntos debatidos entre os imperadores foi a questo da dissidncia de Carusio que ainda estava por resolver e se tornava cada vez mais ameaadora da unidade imperial. PossivelmentefoitambmnesteencontroemMilo,edecorrentedasquestes destacadasacima,queosimperadoresdiscutiramsobreumanovareestruturaodapoltica imperial.Reorganizaoessaconsolidadanoanode293d.C.comanomeaodeConstncio CloroeGalrio aocesarato.Logo,estavaformada aTetrarquia,quemantinhaasupremaciade Dioclecianocomoaugustosnior,Maximianoigualmenteocupandoopostodeaugusto,e Galrio e Constncio Cloro como auxiliares imediatos. Tal qual a aliana inicial entre Maximiano eDiocleciano,aorganizaotetrrquicacontavacomaindependnciaadministrativa,poltica, militarelegislativaentreseusmembros,masanovidaderelacionava-seapolticasucessria. Mantendo os vnculos de fidelidade, selada pela adoo dos csares pelos augustos e tambm por matrimnio entre familiares, o fim das usurpaes e da instabilidade dos momentos de transio de um governante ao outro era almejado pela tetrarquia ao estabelecer a ascenso dos csares aos encargos de augustos em duas ocasies: morte, ou decorridos vinte anos de governo. Estas relaes so percebidas logo no incio do ltimo discurso analisado, oPanegrico de ConstncioCesardeumoradorannimo,pronunciadonoanode297d.C.,noqualpodemos vislumbrararelaoestabelecidaentreostetrarcaslogoqueoorador(annimo)sereferea Diocleciano e Maximiano como tio e pai de Constncio Cloro: (...) por mais que ento, para dizer a verdade, os primeiros servios que seu pai e seu tio prestaram para a repblica renascente foram tais que, se minha palavra poderianoestarsuasalturas,eupoderiaaomenosdestacarseusvalores enumerando-os. (...) quamuis enim prima tunc in renascentem rem publicam patris ae patrui tui merita, licet dicendo aequare non possem, possem tamen eul cencere numerando. (An. Paneg, 297: I, 3) ComoumaoraoencomisticaaConstncioCloro,estediscursoacabatambmpor legitimar a prpria reestruturao tetrrquica e, ao mesmo, celebra uma importante vitria para a manutenodapolticaimperialdeunidadedomundoromano:aretomadadecontroleda Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 143 Bretanha. Isso faz com que o panegirista se declare solidrio a todos os romanos e comemore a reorganizao administrativa. Comoexemplo,destacamosduasrefernciassobreapartiodopoderecampanhas bem sucedidas logo no incio do discurso panegirsticos. A primeira, Prncipes sempre invictos, quantos sculos de durao asseguram a vs mesmos e ao imprio ao partilhar a tutela do mundo submetidovossasleis?27(An.Paneg,297:III,2)abordaapartiodopoderemsi.Ea segunda,almdemencionaraadoodoscsarespelosaugustos,destacaosnovoslimitesdo Imprio: UmavezospartosreduzidosparaalmdoTigre,aDciarestituda,as fronteiras da Germnia e da Rtiaestendidas para as fontes do Danbio, uma vezasseguradaapuniodaBatviaedaBretanha,oimprioaumentadoe destinado a crescer ainda mais, tinha a necessidade de uma direo mais forte e os homens que, por seu valor, haviam estendido os limites da potncia romana deviam associar paternalmente um filho ao poder. ParthoquippeultraTigrimrecdato,Daciarestituta,porrectisusqueadDanuuiicaput GermaniaeRaetiaequelimitibus,destinataBatauiaeBritanniarqueuindicta,gubernacula maiora quaerebat aucta atque auenda res publica, et qui Romanae potentiae trminos uirtute protulerant imperium filio pietate debebant. (An. Paneg, 297: III, 3) DurantetodoocaptuloIVooradordcontinuidadeaestajustificativadapartiodo poderimperial,utilizandoparaissoamplamentedosfundamentosdoDominato,relacionandoo parentesco de Diocleciano e Maximiano com Jpiter e Hrcules e estabelecendo uma semelhana deformadegovernarcomoomundoceleste(assegurandoacontinuidadedafundamentao ideolgicadopoderpresentenospanegricosdeMamertino),almdeestabelecertodauma simbologia ao nmero quatro:Em efeito este nmero quatro, smbolo de vosso poder a fora e a alegria de tudo que h de grandioso: so quatro os elementos, quatro as estaes, quatro soaspartesdomundoseparadasporumduplooceano,oslustresque retornamdepoisdeumarevoluoqudrupladoscus,quatrosooscavalos do sol, e alm de Vesper e Lucifer, que so duas tochas do cu.

27 Quanta enim, inuictissimi prncipes, et oubis et rei publicae saecula propagatis orbis uestri participando tutelam? Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 144 Quippe isto numeris uestri numero summa omnia nituntur et gaudent: elementa quattuor et totidem anni uices et orbis quadrifariam duplici discretus oceano et emenso quater caelo lustra redeuntiaetquadrigaesolisetduobuscaeliluminibusadiunctiVesperetLucifer.(An. Paneg, 297: IV, 2) Peladataodaproclamaodopanegricosero anode297d.C., compreendemosque elaaconteceulogoapsoretornodeConstncioClorodacampanhaempreendidanorteda Glia e na Bretanha. Igualmente aos discursos anteriores, o orador utiliza expresses no plural ao referenciar o soberano, no entanto, esta estrutura retrica continua relacionada a necessidade de evidenciaraconcrdiaentreosintegrantesdaTetrarquia,nosignificandoquetodosos soberanos estavam presentes na ocasio da proclamao. O homenageado Constncio Cloro foi oresponsvelpororganizarumaexpedioeconterosavanosdeCarusio,eopanegirista descreveemdetalhesessacampanha,utilizando-acomoeixodoelogioaosoberanoduranteas comemoraes de aniversrio da designao ao cesarato, o que acaba por tornar este panegrico, de certo modo, um relato completo dos dez anos em que a Bretanha esteve fora do controle do poder central (Samaranch, 1969: 1168). ConvmdestacarqueConstncioClororapidamenteconseguiureconquistaraGlia (aindaem293d.C),fazendocomissoqueaBretanhapermanecesseisolada,semconseguir estabelecerqualquertipodecomunicaocomocontinente.Carusio,porsuavez,sucumbiu nestemesmoano,todavia,nopelastropasdeConstncio,massimporumsubordinadoseu, Allectus.Esse,controlouaBretanhaatoanode296d.C.,quandodefatoascampanhas organizadaspelopodercentraldoImprioRomanoforamefetivas,conseguiramderrot-loe reintegrar a regio aos seus comandos.Estaoperaomilitarfoiretratadapelopanegiristacomovitoriosadesdeosseus preparativos(An.Paneg,297:XIII-XX),eportodoodiscursoeleprocuraexaltarConstncio Cloroapartirdarestauraoquesuascampanhasempreendiamportodooimprio,ondeas vitriasconseguidasporesteimperadoreramretratadascomoumalibertaodasregiese provnciasqueestavamtomadaspelocaos:Assim,estaregioquetuascampanhasdivinas, Csar, liberaram e limparam dos brbaros (...)28(An. Paneg, 297: VIII, 1).Talvezsejaestaumadasmotivaesdooradoraoestabelecernestepanegricouma contraposio da imagem do imperador homenageado em relao aos insurrectus: Em oposio s expresses virtuosas e elogiosas, os usurpadores e seus aliados so frequentemente referenciados

28 Quamquam illa rgio diuiis expeditionibus tuis, Caesar, uindicata atque purgata (...) Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 145 com expresses como faces de piratas rebeldes, pirata e este ladro. E esta oposio complementadapelofatodosoradoresdosdiversospanegricosdacoletneanunca referenciaremnominalmenteosinsurrectosouopositoresdogovernonacircunstnciaemque soproduzidos.Talveznopossamosfalaremdamnatio memoriae(atmesmopelofatodeque estespersonagensnoforamreconhecidoscomogovernanteslegtimos),masofatoqueao no nomear o opositor do governo e do governante, o panegirista estaria apagando da memria coletiva o personagem que tanto fez de negativo para a poltica vigente. E por qual razo ento elesnodeixavamdeabordarasbatalhasqueosmesmosempreenderamcontraoImprio? NestepontotornaimprescindvelevocaroexemplodoDiscursodeaniversrioemhonrade Maximiano Augusto, que no aborda a campanha de Maximiano contra Carusio pelo fato de ela no ter sido bem sucedida. Ora, por mais que existam opositores ao governo, a vitria em uma campanhamilitareraumdosmritosdogovernante,eessasimprecisavaserdescrita detalhadamente, a fim de possibilitar a exaltao e louvao do imperador. Por fim, o que podemos perceber que quase a totalidade das abordagens feitas nos trs panegricos estudados acabam evidenciando uma importante preocupao dos seus autores, que consistiaemumadefiniodoquadroimperialromanoaomesmotempoemqueprocuraria fundamentar a nova estrutura governamental e o(s) soberano(s) sua frente. Isto porque, por ser parte integrante de uma cerimnia pblica, e proclamado na presena do prprio imperador, os panegricos eram encomendados aos melhores oradores que, se no faziam parte diretamente do crculoimperial,aomenoseramadeptosdapolticavigente.Porestemotivo,seaobrano continhadeclaraespolticasorientadasdiretamentepelosoberano,otextofinalcertamente passavapeloseuaval.Porconseguinte,ospanegiristasbuscavamafundamentaoda legitimaodapolticaimperialtetrrquicaporintermdiodolouvoreexaltaodaimagemdo homenageadoemquesto,muitasvezesconstruindoumaimagempejorativadeseusinimigos, estabelecendo ento uma oposio clara em relao aos usurpadores. Referncias Bibliogrficas Bareo, Luis Escolar et al, (1969), Biografos y Panegiristas Latinos, Madrid, Aguilar. Bravo,G.(1997),Elritualdelaysusignificadopolticoyreligiosoenla Romaimperial(conespecialreferenciaalaTetrarquia), Gerin: Revista del Departamento de Historia Antigua/Facultad de Geografia e Historia, Universidad Complutense, Madrid, 15, 1997, p. 177-191.Plthos, 3, 2, 2013 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 146 Frighetto,Renan,(2012),AntiguidadeTardia.RomaeasmonarquiasRomano-Brbarasnumapocade transformaes. Sculos II-IV, Curitiba, Juru Editora. Galletier,E.,(1949),Introduction,InGalletier,E.,TexttablietTraduit,PangyriquesLatins, Paris, Les Belles Lettres, T. I, p. VII-LXXII. Galletier, E., (1949),Pangyriques Latins. Paris: Les Belles Lettres, T. I. Gonalves,AnaTeresaMarques,(2002),Aconstruodaimagemimperial:formasdepropagandanos governosdeSeptmioSeveroeCaracala,SoPaulo,ProgramadePs-GraduaoemHistria Econmica da Universidade de So Paulo. RodriguesGervs,ManuelJ.,(1991),Propaganda Politica y Opinin Pblica en los panegiricos latinos del bajo imperio, Salamanca, Universidade de Salamanca. Samaranch,FranciscodeP.,(1969),IIPanegiristas(prembulos,traduccindellatnynotas), Bareo, Luis Escolar et al, Biografos y Panegiristas Latinos. Madrid, Aguilar, p. 1137-1357. Silva,GilvanVenturada;Mendes,NormaMusco,(2006),RepensandooImprioRomano: perspectivassocioeconmicas,polticaecultural,RiodeJaneiroeVitria,MaudEditorae EDUFES.