Revista Per Music (Revista acadêmica de musica)

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volume 28 REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA julho/dezembro - 20 13 ISSN Per Musi impressa: 1517-7599 ISSN Per Musi online: 2317-6377

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A repercussão entre autores e leitores dos números anteriores 22 e 23 de Per Musi (revista qualificada com o QUALIS A1 na CAPES e indexada na base SciELO), dedicados aos estudos em música popular, motivou mais uma chamada sobre este tema, que parece ser o que mais tem atraído a atenção de pesquisadores na história recente da pesquisa em música no Brasil.

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volume 28

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

julho/dezembro - 2013

ISSN Per Musi impressa: 1517-7599ISSN Per Musi online: 2317-6377

Editorial

A repercussão entre autores e leitores dos números anteriores 22 e 23 de Per Musi (revista qualificada com o QUALIS A1 na CAPES e indexada na base SciELO), dedicados aos estudos em música popular, motivou mais uma chamada sobre este tema, que parece ser o que mais tem atraído a atenção de pesquisadores na história recente da pesquisa em música no Brasil. Devido ao grande número de submissões, os artigos aprovados foram divididos em três volumes – 28, 29 e 30 – que trazem um total de 46 artigos, 11 partituras e 6 resenhas. Este volume 28 de Per Musi traz 14 artigos, 4 partituras e 2 resenhas.

Faz-se necessária uma errata em relação às minhas traduções dos dois artigos de Phillip Tagg publicados em Per Musi 22 (2010, p.7-21) e 23 (2011, p.7-18), pois ignorei que três termos da metodologia analítica desse autor [(1) Interobjective comparison; (2) Interobjective Comparison Material (IOCM) e (3) Paramusical Field of Connotation (PMFC)] já haviam sido introduzidos anteriormente no Brasil por Martha Ulhôa no seu artigo A Análise da música brasileira popular (Cadernos do Colóquio, 1999, p.61-68) e na tradução do artigo Analisando a música popular: teoria método e prática de Tagg (Em Pauta, v.14, n.3, 2003, p.5-42). Assim, ao invés de Comparação interobjetiva, Material de Comparação Interobjetiva e Campo Paramusical de Conotação, devemos utilizar os termos Comparação entre Objetos, Material de Comparação entre Objetos (MCeO) e Campo de associações Paramusicais (CAPm).

A norte-americana Deborah Mawer, em tradução de Fausto Borém, aprofunda a discussão sobre o estilo improvisatório do jazzista norte-americano Bill Evans e suas conexões com a música francesa, especialmente Ravel, Messiaen e, mesmo, o francês de adoção Chopin, apresentando as transformações de gênero, cultura, identidade nacional e linha do tempo em duas obras emblemáticas: Kind of blue de Miles Davis e Peace Piece do próprio Evans. Em seguida a própria Peace Piece de Bill Evans é apresentada em partitura transcrita por Jim Aikin.

O norte-americano J. William (Bill) Murray, em tradução de Fausto Borém, apresenta um estudo sobre o estilo com-posicional de Bill Evans em 19 obras selecionadas, abordando elementos como andamento, métrica, tonalidade, forma, duração, ritmo harmônico, linguagem harmônica e outros detalhes relevantes.

Fabiano Araújo e Fausto Borém propõe uma aplicação da teoria tonal de Schoenberg como ferramenta de análise, realização e composição no contexto da música popular, ilustrando com exemplos retirados da música de Hermeto Pas-coal. Em um segundo artigo, Fabiano Araújo e Fausto Borém aplicam esta proposta na realização de duas lead sheets do monumental Calendário do som de Hermeto Pascoal. Finalmente, são apresentados os manuscritos e as lead sheets realizadas dessas duas músicas de Hermeto Pascoal - 23 de junho de 1996 e 9 de Junho de 1997 - , realizadas e editadas por Fabiano Araújo.

As práticas composicionais e improvisatórias de Egberto Gismonti ao piano são o foco de Marcelo G. M. Magalhães Pinto e Fausto Borém, que apontam, na música Frevo, o hibridismo de gêneros e estilos característico do compositor multi-instrumentista, com ecos de J. S. Bach, F. Chopin, H. Villa-Lobos, da Primeira e Segunda Escolas de Viena e do período pós-1950. Em seguida, a partitura de Frevo de Egberto Gismonti, em transcrição e edição de Marcelo G. M. Magalhães e Fausto Borém, é apresentada.

Rafael Tomazoni Gomes e Guilherme A. Sauerbronn de Barros revelam, na música Cristal, como Cesar Camargo Maria-no transpõe elementos afro-brasileiros do samba e a ambiência de sua formação instrumental para o piano.

Por meio de uma análise estilística da música Pé no chão, Guilherme Araújo Freire e Rafael dos Santos abordam o hi-bridismo de gêneros brasileiros e norte-americanos na linguagem instrumental de vanguarda do grupo paulista Medusa na década de 1980.

Alvaro Neder discute a utilização da canção Mesmo que seja eu como forma de contestação feminina a papeis de gênero estabelecidos. A música é compreendida como um discurso social, interferindo ativamente na produção de novas subje-tividades e na reestruturação da sociedade.

Rodrigo Cantos Savelli Gomes investiga o papel das mulheres negras no berço do samba carioca, conhecido como Pequena África, buscando restaurar suas histórias no Rio de Janeiro do início do século XX, hoje esquecidas, como com-positoras, instrumentistas, cantoras e formadoras de opinião.

Renata Schmidt de Arruda Gomes aborda a estigmatização da umbanda, religião afro-brasileira essencialmente musical e, a partir de um estudo de caso sobre o terreiro Reino de Luz, mostra os pontos de conflito e preconceitos entre suas práticas de performance e a aceitação social.

Adelcio Camilo Machado aborda o início da trajetória do sambista Martinho da Vila, focando sua análise no arranjo, letra, melodia, harmonia e contexto histórico das canções Boa noite, Carnaval de ilusões e Caramba, que integram a pri-meira faixa de seu LP de estreia de 1969 e marcam a sua passagem do cenário mais restrito das escolas de samba para o grande mercado da música popular brasileira.

Renan Paiva Chaves e Eduardo de Lima Visconti esmiúçam cada faixa do disco México 70, revelando o mosaico musical de Wilson Simonal em meio às relações entre futebol, imprensa, música popular e política, ao mesmo tempo em que apre-sentam os conflitos simbólicos da internacionalização da cultura e da consolidação da indústria fonográfica no Brasil.

Com base em práticas deliberadas e práticas informais de aprendizagem musical, Ana Carolina Nunes do Couto propõe uma abordagem no ensino de teclado em grupo para o repertório instrumental popular, exemplificando com arranjos de Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), O Trem Azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos), Viagem (João de Aquino e Paulo César Pinheiro) e Eleanor Rigby (John Lennon e Paul McCartney).

Procurando ampliar a percepção estereotipada e simplista da música popular na vida cotidiana recebida via mídia de massa, Heloísa de A. Duarte Valente discute a rede de signos da paisagem sonora da música popular entre os governos de FHC e Lula, com seus modelos e formas de comportamento.

Na Seção de Resenhas – Pega na Chaleira, dois livros Liliana Harb Bollos são apresentados: Bossa nova e crítica: polifonia de vozes na imprensa por Carlos Ernest Dias e Clara na Música Popular, por Kátia Milene Lima da Conceição.

Finalmente, Informamos que Per Musi está disponível gratuitamente nos sites www.scielo.com.br e www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fausto BorémFundador e Editor Científico de Per Musi

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 28, julho / dezembro, 2013 -Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2013 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.SemestralISSN Per Musi impressa: 1517-7599ISSN Per Musi online: 2317-6377

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599 para a versão impressa e ISSN 2317-6377 para a versão online) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As ideias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas bases SciELO, RILM Abstracts of Music Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

ABM

Fundador e Editor CientíficoFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)

Corpo Editorial InternacionalAaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA)Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal)Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá)João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal)Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra)Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)Melanie Plesch (University of Melbourne, Austrália)Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha)Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)

Corpo Editorial no BrasilAcácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis)Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro)Ângelo Dias (UFG, Goiânia)Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília)Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)Diana Santiago (UFBA, Salvador)Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)Fabiano Araújo (UFES, Vitória)Fernando Iazetta (USP, São Paulo)Flávio Apro (UNESP, São Paulo)Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte)Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro)Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande)Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte)Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte)Norton Dudeque (UFPR, Curitiba)Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)Sônia Ray (UFG, Goiânia)Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

Revisão GeralFausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte)

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Clélio Campolina DinizVice-Reitora Rocksane de Carvalho NortonPró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago GomezPró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de OliveiraPró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos

Escola de Música da UFMGProf. Dr. Maurício Freire Garcia, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGCoord. Prof. Dr. Sérgio FreireSub-Coord. Prof. Dr. Fernando RochaSec. Geralda Martins MoreiraSec. Alan Antunes Gomes

Planejamento e ProduçãoMelissa soares- Cedecom/UFMGIngred Souza (estagiária) – Cedecom/UFMG

Projeto GráficoCapa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMGDiagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG

Tiragem150 exemplares

Acesso gratuito na internetwww.musica.ufmg.br/permusi

Endereço para correspondênciaUFMG - Escola de Música - Revista Per MusiAv. Antônio Carlos 6627 - Campus PampulhaBelo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747Fax: (31) 3409-4720e-mail: [email protected]@ufmg.br

Sumário

ARTIGOS CIENTÍFICOSA música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans .................................................................7French Music Reconfigured in the Modal Jazz of Bill Evans

Deborah Mawer (Tradução de Fausto Borém)

Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans ...........................................................................15Score of Peace piece, for solo piano by Bill Evans

Bill Evans (Transcrição de Jim Aikin)

O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional ....................................... 21Bill Evans’s jazz: background, influences, works and compositional style

J. William (Bill) Murray (Tradução de Fausto Borém)

A teoria tonal de Schoenberg como recurso de análise, realização e composição no contexto da música popular .........................................................................................................................35Schoenberg’s tonal theory as a resource for analysis, realization and composition in the context of popular music

Fabiano Araújo Fausto Borém

Análise e realização de quatro lead sheets do Calendário do som de Hermeto Pascoal, a partir da teoria tonal de Schoenberg ................................................................. 70Analysis and realization of four lead sheets from Calendário do som by Hermeto Pascoal, departing from Schoenberg’s tonal theory

Fabiano AraújoFausto Borém

23 de junho de 1996 (Calendário do som) de Hermeto Pascoal: manuscrito e lead sheet de realização ..................................................................................................................................96The song June, 23, 1996 (from Calendário do som) by Hermeto Pascoal: manuscript and realized score

Hermeto Pascoal (Realização e edição de Fabiano Araújo)

9 de Junho de 1997 (Calendário do som) de Hermeto Pascoal: manuscrito e lead sheet de realização ............................................................................................................99The song June, 9, 1997 (from Calendário do som) by Hermeto Pascoal: manuscript and realized score

Hermeto Pascoal (Realização e edição de Fabiano Araújo)

O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo: improvisação e desenvolvimento temático .................................................................................................102The organized chaos of Egberto Gismonti in Frevo: improvisation and thematic development

Marcelo G. M. Magalhães PintoFausto Borém

Partitura de Frevo de Egberto Gismonti ......................................................................................................125Score of Frevo by Egberto Gismonti

Egberto Gismonti (Transc. e Ed. Marcelo G. M. Magalhães Pinto e Fausto Borém)

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Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba de Cesar Camargo Mariano ......................145Cristal: aspects of the pianistic treatment in Cesar Camargo Mariano’s samba

Rafael Tomazoni Gomes Guilherme A. Sauerbronn de Barros

Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa: associação de gêneros musicais distintos em Pé no chão .....................................................................162Hybridism in the instrumental music of the Medusa Group: association of different musical genres in Pé no chão

Guilherme Araújo Freire Rafael dos Santos

“Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero .................................170“A man to call yours”: musical discourse and gendering

Alvaro Neder

“Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá”: a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX .....................................................................176“They said over the phone to question this story where women are not present”: the role of women musicians in Rio de Janeiro’s samba in early twentieth century

Rodrigo Cantos Savelli Gomes

“A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá.”: campo sonoro da linha de Quimbanda do Terreiro de Umbanda Reino de Luz – som e preconceito .................................................................................................................192Sound field “linha de Quimbanda” of “Terreiro de Umbanda Reino de Luz”: sound and prejudice

Renata Schmidt de Arruda Gomes

Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970 ................................................208Martinho da Vila: a new lineage of Brazilian samba in the 1970s

Adelcio Camilo Machado

Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70 .......................................................222Wilson Simonal in field: reflections on the album México 70.

Renan Paiva Chaves

Eduardo de Lima Visconti

O ensino de teclado em grupo na universidade e o uso do repertório popular: aprendizagem através de práticas híbridas .................................................................................................231Keyboard group teaching at the university and the popular repertoire: learning through hybrid practices

Ana Carolina Nunes do Couto

Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil ..........................................................239Soundscapes, soundtracks: Brazilian sound portraits

Heloísa de A. Duarte Valente

SEÇÃO DE RESENHAS – “PEGA NA CHALEIRA”Resenha: Bossa Nova e Crítica de Liliana Harb Bollos ...........................................................................250Review: Bossa Nova e crítica [Bossa Nova and criticism] by Liliana Harb Bollos

Carlos Ernest Dias

Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular .............................................254Review: the intergeneration relationship in the book Clara na Música Popular

Kátia Milene Lima da Conceição

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MAWER, D. A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.7-14.

Recebido em: 10/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans

Deborah Mawer (Lancaster University, Inglaterra)[email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Embora seja senso comum que a música francesa, especialmente a do século XX, tenha exercido influência no estilo improvisatório do pianista de jazz norte-americano Bill Evans (1929-1980), a importância deste papel é raramente abordada em estudos bem fundamentados. Estes dois pontos – música francesa e Evans – oferecem uma oportunidade para investigar suas diversas relações musicais, desde paralelos e interseções a ecletismos específicos, os quais podem assimilar, adaptar e individualizar uma dada fonte. Implícitos aí estão os “cruzamentos” e transformações de gênero, cultura, identidade nacional e linha do tempo, assim como as questões de influência; discute-se aqui a natureza e mutabilidade dos materiais musicais. Busco mostrar a riqueza e significado destas interações em dois estudos de caso: aspectos de Kind of blue (DAVIS, 1959) e Peace Piece (EVANS, 1958), em conexão com Chopin (enquanto francês adotado), Ravel e Messiaen. Por meio dos textos de RAVEL (1928) e outros, argumento que, particularmente com o repertório francês, Evans descobriu uma afinidade e catalisador para suas prioridades de improvisação: lirismo, linhas polifônicas, uma rica paleta de 7as e 9as, texturas requintadas, voicings e timbres – um veículo para sua expressividade e imaginação. Da mesma forma, é intrigante observar como uma música francesa relativamente velha tenha sobrevivido e se reconfigurado - como um camaleão - dentro de um novo contexto do pós-guerra.

Palavras chave: ecletismo de Bill Evans; hibridismo em música; música francesa e jazz modal jazz; transformação e improvisação musical; influência entre música erudita e popular.

French Music Reconfigured in the Modal Jazz of Bill Evans

Abstract: Although French classical music, especially that of the twentieth-century, is commonly understood to have played a role in the improvisational thinking of the American modal jazz pianist Bill Evans (1929-1980), its relevance has rarely been probed in scholarly depth. These loci - French music and Evans - appear to offer an ideal opportunity for investigating relations between musical types: from parallels, potential intersections, through to specific eclecticisms, which could assimilate, adapt and individualize a given source. Implicit are ‘crossings’ and transformations of genre, culture, national identity and timeframe, as well as questions of influence; at issue are the nature and mutability of music materials. I aim to show the richness and significance of these interactions in two case studies: aspects of Kind of Blue (DAVIS, 1959) and Peace Piece (EVANS, 1958), in connection with Chopin (as an adoptive Frenchman), Ravel and Messiaen. Using critical ideas of RAVEL (1928) and others, I argue that in French repertory particularly, Evans discovered an affinity with, and catalyst for, his improvisational priorities: lyricism, polyphonic lines, a rich harmonic palette of sevenths and ninths, subtle textures, voicings and exquisite tone - a vehicle for expressivity and imagination. Conversely, it is intriguing that relatively old French music has lived on, reconfigured - chameleon-like - within a new postwar context.

Keywords: eclecticism of Bill Evans; hybridism in music; French music and modal jazz; music transformation and improvisation; influence between classical and popular music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

Agradecimento: Este artigo foi gentilmente cedido pelos editors de The Jazz Chameleon: The Refereed Proceedings of the 9th Nordic Jazz Conference August 19-20, 2010, Helsinki, Finland. Edited by Janne Mäkelä (The Finnish Jazz & Pop Archive). Helsinki: The Finnish Jazz & Pop Archive & Turku: International Institute for Popular Culture, 2011. (Disponível como e-Book em http://iipc.utu.fi/publications.html).

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MAWER, D. A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.7-14.

1 – IntroduçãoÉ senso comum que a música francesa erudita, especialmente aquela do século XX, influenciou o pensamento improvisatório de Bill Evans (1929-1980) no final da década de 1950, relação que faz parte de uma tradição mais ampla que remonta a Duke Ellington, Bix Beiderbecke e outros. Mas, ao mesmo tempo, a relevância deste repertório para Evans, músico de formação erudita, tem sido levianamente descartada e geralmente dada como “certa” e, por isso, raramente sondada em trabalhos acadêmicos de maior profundidade. Esta complacência levanta algumas questões. Por exemplo, houve influência da música russa? Que papeis a música francesa teria exercido sobre a arte de Evans? Mais particularmente, de que maneiras a música francesa poderia ser reconfigurada dentro do jazz modal?

Estes loci – música francesa e Bill Evans – oferecem uma oportunidade ideal para uma investigação detalhada sobre as relações entre tipologias musicais. Estas relações podem incluir desde paralelos e interseções em potencial até ecletismos específicos (nos quais uma causalidade pode, plausivelmente, ser estabelecida). Relações que poderiam assimilar, adaptar e individualizar fontes do tipo “camaleão”. E darei nome a esse terceiro tipo de conexão, cujo potencial será discutido neste artigo: a “relação fonte-produto”. Devo enfatizar que a identificação de qualquer dessas práticas ecléticas não tem uma conotação depreciativa: significa simplesmente o que um artista revela dentro de um contexto cultural, no qual estão implícitos os “cruzamentos” e transformações de gênero, cultura, identidade nacional e época. Também implícita está a questão inerente da influência musical. Uma breve alusão pode ser feita às ideias de intelectuais referenciais da literatura como Harold BLOOM (1973) e T. S. ELIOT (1951), que anteriormente sustentaram pontos de vista teóricos opostos sobre a questão da influência – basicamente “ansiedade” versus “generosidade” – e que foram trazidas subsequentemente para a musicologia por Joseph STRAUS (1990). Mas não cabe aqui, em um artigo de pequeno escopo, uma discussão sobre este assunto (no meu livro no prelo French Music in Conversation with Jazz há um capítulo sobre Bill Evans e a música francesa). Atenho-me à natureza e mutabilidade dos materiais musicais; ou, às vezes, à constância de materiais dentro de um contexto alterado. Por ser especialista na música francesa, me interesso em explorar o impacto da música francesa em ambientes posteriores, especialmente no jazz. Quero apresentar um pouco da relação musical Evans-música francesa que ainda não foi explorada. Primeiro, quero checar o senso comum da associação entre Evans e a música francesa (e em qual extensão isso acontece). Segundo, quero estudar aspectos específicos em dois estudos de caso: o disco Kind of Blue (DAVIS, 1959) e a peça Peace piece (EVANS, 1958). Quero investigar estas possíveis relações musicais, embora me contendo a um espaço reduzido. Desta forma, quero trazer à tona a arte de Bill Evans.

2 – Relacionando Bill Evans e a música francesaNa família de Evans, a presença musical de sua mãe ucraniana, e sua educação, que incluiu aulas de violino e piano, certamente significaram que ele foi exposto a uma música variada. Como observa o principal biógrafo de Evans, Peter PETTINGER (1998, p.16), isto permitiu seu acesso a “sonatas de Mozart e Beethoven e obras de Schumann, Rachmaninoff, Debussy, Ravel, Gershwin … Villa-Lobos, Khachaturian, Milhaud e outros.” Imediatamente, nossa atenção se volta para uma ampla paleta de compositores ocidentais, do Classicismo às figuras românticas austro-germânicas, chegando a uma equilibrada seleção de compositores russos e franceses do século XX. A dimensão russo-ucraniana é claramente relevante e, por isso, a conexão Evans-França não é, de forma alguma, exclusiva. Sem pretender consenso, penso que os domínios russo e francês podem ser considerados, grosso modo, como de significado semelhante. Esses “cruzamentos” se desenvolveram no estudo formal de música de Evans, que incluiu técnicas de harmonia e composição no Southeastern Louisiana College, onde se graduou em 1950.

No seu artigo The Poet: Bill Evans, Gene LEES (1997, p.421), respeitada autoridade em jazz, observou que Evans “praticava procedimentos colorísticos, voicings e nuanças de compositores pós-românticos como Debussy, Ravel, Poulenc, Scriabin e, talvez, Alban Berg”. Assim, Lee enfatiza os impressionistas franceses Debussy e Ravel, ao mesmo tempo em que expande a representação neoclássica, com Poulenc e Milhaud. Também expande o domínio russo com a inclusão de um compositor influenciado pela música francesa: Scriabin. Apesar da generalização, há um consenso entre a maioria dos autores referenciais sobre Evans de que os compositores franceses eruditos, de fato, constituem uma força importante. Podemos também fundamentar essa questão recorrendo às diversas entrevistas que o próprio Evans concedeu. Em uma delas (GINIBRE, 1965), ele declarou: “Adoro os impressionistas. Adoro Debussy. É um dos meus compositores preferidos”. Da mesma forma, no que diz respeito aos neoclássicos, como Les Six, Evans conta: “Lembro minha primeira audição da politonalidade de Milhaud e, na verdade, com uma peça que ele provavelmente não considerava grande coisa – era uma peça antiga chamada Suite provençale – que abriu minha percepção para algumas coisas” (ENSTICE e RUBIN, 1992, p.136). Então, o que lhe era atraente nesta música francesa? Argumento que, particularmente no repertório francês do início do século XX, Evans encontrou uma afinidade deste mundo sonoro com suas próprias prioridades de improvisação: lirismo, linhas polifônicas, uma rica paleta de 7as e 9as , texturas sutis e voicings; resumindo: um veículo para sua expressividade (cabe aqui comentar que, ao privilegiar lirismo e melodia, não estou defendendo uma exclusividade nesta relação: claramente, as melodias intricadas na mão direita de Evans também se desenvolveram, em parte e diretamente, das tradições do

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MAWER, D. A música francesa reconfigurada no jazz modal de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.7-14.

piano no jazz, especialmente de “Bud” Powell, Nat “King” Cole e Lennie Tristano). Embora melodicamente diverso e modalmente livre (traço em comum com parte da música russa), este repertório francês ainda estava baseado em tônicas. Da mesma forma pensava Evans: “Penso que toda a harmonia é como uma expansão e retorno à tônica” (LEES, 1997, p.434).

Além disso, esta contínua miscigenação aparentemente contribuiu para a sonoridade distinta de Evans ao piano. LEES (1997, p.441) reconhece que “Bill trouxe ao jazz o tipo de som familiar a Debussy e Ravel. . . som que é óbvio no mundo erudito de performers como Walter Gieseking e Emil Gilels”. Mais ainda, parece que isto estimulou sua imaginação. Afinal de contas, improvisadores precisam de uma marca estilística ou fórmulas próprias, uma vez eu qualquer noção de improvisação espontânea sem estruturas predeterminadas ou um conhecimento harmônico inerente é um mito (BERLINER, 1994, p.1). E sabemos que Evans foi “um dos improvisadores mais imaginativos, inventivos e aventureiros que esta arte já conheceu” (LEES, 1997, p.441-442).

Comparações entre Evans e Frédéric Chopin (este um antecessor do século XIX e francês por adoção) são costumeiras e úteis, como veremos abaixo, mas e entre Evans e Ravel? Em cada uma dessas comparações, o piano está no foco do ser artístico. Ravel compunha ao piano. Para Evans, “o piano, que ele podia atacar e sustentar com grande clareza, permaneceu como seu amor verdadeiro” (PETTINGER, 1998, p.11). Ambos privilegiavam a forma de miniaturas e preferiam nuanças sutis ao invés das grandes intensidades, das dinâmicas fortes. O foco na melodia era também ponto pacífico. Ambos eram experts nas heranças musicais que escolheram: Ravel em Couperin, Mozart e Mendelssohn; Evans em Chopin e Ravel. Ambos eram indivíduos sensíveis para quem a música oferecia uma saída emocional não verbal.

Reciprocamente, como ávidos leitores que eram, ambos valorizavam a palavra escrita: Ravel preferindo Marcel Proust, Stéphane Mallarmé e Edgar Allan Poe; Evans preferindo Thomas Hardy e William Blake. E a própria palestra Contemporary Music de Ravel, proferida por ocasião de sua turnê norte-americana na primavera de 1928, fornece um conjunto de princípios que relacionam música erudita e jazz e que pode funcionar na direção oposta (jazz e música erudita) para testar a prática de Evans, como pretendo mostrar nos estudos de caso. Cada obra de arte, atrás da qual há uma fonte confiável, inicialmente “adota” parte deste material e o submete a uma “estilização imediata” – ou mesmo “manipulação”, transformando-o em um novo ambiente que abarca “características nacionais” e “individualidades”(RAVEL, 1928, p.140) gerando, assim, originalidade. O próprio Ravel disse em outra ocasião: “Se você tem algo a dizer, esse algo nunca surgirá com mais distinção do que na infidelidade não intencional a um modelo” (MAWER, 2000, p.56). O que não significa, de forma alguma, uma criatividade de segunda categoria.

Para fundamentar os dois estudos de caso que apresento a seguir, aconselho o leitor a consultar as fontes relevantes de áudio e escritas (por razões de copyright, citações musicais não estão incluídas neste artigo). As fontes para o primeiro estudo de caso incluem uma gravação relançada em CD (DAVIS, 1959), sua transcrição (DAVIS, sem data) e diversas partituras de música francesa (MILHAUD, 1923; RAVEL, 1911; RAVEL, 1927; RAVEL, 1931; RAVEL, 1932). Em relação ao segundo estudo de caso, as fontes que o fundamentam incluem a gravação de áudio lançada em CD (EVANS, 1958), sua transcrição por Jim AIKIN (1980, p.46-49) [reproduzida após o presente artigo, às p.????? desse volume de Per Musi] e diversas partituras de música francesa (CHOPIN, sem data; JOLIVET, 2002; MESSIAEN, 1964). Quando me refiro às partituras e transcrições que utilizam letras ou números de ensaio, emprego as seguintes abreviaturas: tomemos três exemplos: Ex.1 -1 [exemplo um menos um] se refere ao compasso anterior à letra ou número de ensaio 1; Ex.1 [exemplo um] denota o compasso inteiro deste número ou letra de ensaio; e Ex.1 +1 [exemplo um mais um] se refere ao compasso posterior à letra ou número de ensaio 1.

3 - Estudo de caso N.1: Kind of BlueMeu primeiro estudo de caso enfatiza uma relação híbrida fonte-produto entre o Concerto para a mão esquerda de Ravel, composto em 1920-1930, que foi apresentado a Miles Davis por Evans (DAVIS & TROUPE, 1989, p.216) e fez parte de um álbum icônico, Kind of blue (DAVIS, 1959). No seu estilo direto, Miles Davis afirmou “porque estávamos com a cabeça em Ravel (especialmente seu Concerto para a mão esquerda. . .) e Rachmaninoff. . . tudo aquilo estava no ar, em algum lugar” e “Estávamos com aquela tendência – como Ravel, tocando uns sons somente com as teclas brancas” (DAVIS & TROUPE, 1989, p.224-225). De fato, no riff de abertura de All blues, a figura inicial no contrafagote do Concerto para a mão esquerda (RAVEL, 1931) é adotada e adaptada: temos aqui a natureza camaleônica do jazz em ação. Entretanto, esta obra de Ravel não é, estritamente, um produto do impressionismo, como percebia Evans, mas um produto neoclássico do entre guerras, estilo que foi influenciado pelo jazz mais antigo e pela música de George Gershwin.

No modo de Mi menor, RAVEL (1931, c.2-3) apresenta as notas Mi – Fá # – Mi – Sol em ritmo pontuado, iniciando com uma anacruse de semicolcheia. Então, expande a figura ascendentemente. Por seu lado, depois do Sol inicial, o riff de Evans e Davis explora as notas Ré – Mi – Ré - Fá, o que é uma transposição do fragmento de Ravel uma 2a menor abaixo, o que é equilibrado por uma linha descendente até o Sol grave (Ré – Mi – Ré –Sol). De fato, este último padrão também corresponde a um trecho da Sonata pra violino e piano (RAVEL, 1927) – c.8-9 – do movimento “blues”: Mib – Fá – Mib – Láb. Além disso, o material de Evans na introdução de quatro compassos compreende um tremolo oscilante entre as notas Sol e Lá, no qual outra conexão raveliana (desta vez, impressionista) está implícita: “Um bom número de

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suas canções começava com breves introduções etéreas, coloridas por ondulações delicadas e pontilhistas. Era uma marca de Evans, talvez pensando no pianíssimo de flautas, clarinetas e harpas do Daphnis and Chloe de Ravel” (PETTINGER, 1998, p.144).

É discutível se a similaridade do motivo do contrabaixo que inicia o sujeito da fuga em A Criação do mundo (MILHAUD, 1923) nessa relação seria ainda maior. Depois de um Ré inicial, Milhaud utiliza o mesmo fragmento melódico: Ré – Mi – Ré – Fá [Ré] e, expande a ideia por meio da 3a blues: Ré – Mi – Ré – Fá # / Fá natural – Ré (MILHAUD, 1923, Ex.11 -1). Por sua vez, cada uma destas figuras se relaciona com The Man I love de Gershwin. Todos compartilham este motivo de quatro notas – um tipo de paradigma - identificado pelo crítico veterano André HODEIR (1958, p.254) como “favorito dos compositores ‘inspirados’ pelo jazz”. E, assim, o ciclo continua. . . quando DAVIS (1989, p.225) comenta que o modalismo das teclas brancas é a resposta para muitas coisas, enquanto que os ritmos pontuados ou swingados são traços comuns.

A dívida de Evans com Ravel é também evidente no seu longo solo em All blues, novamente recorrendo ao modalismo das teclas brancas – por volta de 8’26’’ da gravação (DAVIS, 1959). Sua melodia melancólica no modo Dórico em Sol (DAVIS, s.d.; veja letra D, c.1-10) guarda semelhança com o solo no primeiro movimento do Concerto para piano e orquestra em Sol de RAVEL (1932, Ex.4 +2), no qual sua 3ª menor expressiva, mais a 7ª abaixada, que é um gesto reminiscente da bela cantilena do Concerto para a mão esquerda (RAVEL, 1931, Ex.9 -3). O andamento mais rápido e a sensação de urgência em All blues são sinais de como a resposta eclética de Evans se torna “individualizada”. Os blocos harmônicos de Evans na segunda inversão, com as notas Ré – Mi – Fá na linha do tenor, combinados com os ritmos longos-curtos swingados (DAVIS, s.d.; veja letra D +1), podem ser ouvidos como uma adaptação da entrada do piano no Concerto para a mão esquerda (RAVEL, 1931, Ex.4 +3), que apresenta tríades em segunda inversão combinadas com acordes de sétima em ritmos pontuados como uma variação da figura do contrafagote inicial (estes blocos de acorde de tríades em segunda inversão também ocorrem na segunda valsa das Valses nobles et sentimentales (RAVEL, 1911) a partir do c.25, no qual o andamento lento, as baixas dinâmicas e a expressividade são congruentes tanto com a própria prática de Evans quanto de sua atitude de privilegiar o impressionismo francês). Este padrão rítmico-harmônico de semelhança surpreende mais ainda, mais à frente, no solo de Evans (Davis, s.d.; veja letra D +16), no qual efetivamente “amplifica” Ravel em uma série de acordes de 9ª, repetidos em figuras pontuadas: Fá – Lá – Mi – Sol, depois Sol – Si –Fá – Lá e, depois, Lá – Dó – Sol – Si.

Provendo uma ligação com o segundo estudo de caso, é sabido que uma característica fundamental de Flamenco sketches foi iniciativa do próprio Evans, e remonta a Peace piece. Os acordes alternantes de Dó

com 7ª (Dó, Mi, Sol, Si) e Sol com 11ª (Sol, Si, [Ré], Fá, Lá, Dó) constituem um duplo empréstimo. Primeiro, Evans revisitando sua própria obra. Segundo, esta progressão em Peace piece foi, por sua vez, tomada por empréstimo de Some other time de Leonard Bernstein. Peri Cousins Harper, namorada de longa data de Evans, lembra como ele cruzava ou “derivava” de uma música para outra (PETTINGER, 1998, p.68), o que justifica esta fluidez e interpolação. A improvisação de Evans em Flamenco sketches, com seus arpejos sincopados ondulantes em Sol levando a trechos mais intricados, também faz referências a Peace piece, na qual este mesmo procedimento sinaliza arrefecimento.

4 - Estudo de caso N.2: Peace pieceNo segundo estudo de caso: Chopin, Messiaen e Peace piece de Evans, demonstro uma relação fonte-produto mais aguda em relação a CHOPIN (s.d.) e um paralelo com potencial de interseção em relação a MESSIAEN (1964). PETTINGER (1998, p.69) identifica a Berceuse Op. 57 em Ré b maior de Chopin, composta por volta de 1844, tanto como “a peça para piano que Evans conhecia bem” quanto uma “clara precursora” de Peace piece, faixa do disco Everybody digs Bill Evans (EVANS, 1958). Ele também questiona: “sabemos que [Evans] era um entusiasta de Scriabin, mas será que sabia que o Catálogo dos pássaros [1956-1958] de Olivier Messiaen acabava de aparecer?” (PETTINGER , 1998, p.69). Embora o biógrafo de Evans simplesmente responda que isso “não interessa”, quero considerar essa pergunta e examinar os materiais e suas relações para chegar a algumas conclusões.

A Berceuse de Chopin é baseada em “um ostinato de dois acordes na mão esquerda o qual, assim com em Peace piece, não varia até chegar a uma cadência final” (PETTINGER , 1998, p.69). Embora Pettinger esteja correto, há alterações sutis na segunda metade de cada compasso dignas de nota. E Evans também cria pequenas mudanças. O efeito da melodia sobre o baixo é criar novas inflexões harmônicas, como a superposição expressiva das notas Lá b – Lá natural sobre a nota Sol: Evans enfatiza a função dominante com 9ª (Sol – Si – Ré – Fá – Lá b /Lá natural). Outra similaridade: ambos Chopin e Evans introduzem suas melodias depois de várias ocorrências do ostinato (podemos até ir além e propor uma referência, uma triangulação: enquanto que a peça de Evans é definitivamente em 4/4, o efeito do padrão de mão esquerda seguido pela cantilena lenta e expressiva inevitavelmente nos leva a uma associação com o início do movimento ternário e lento do Concerto para piano em Sol de Ravel.

Para (PETTINGER , 1998, p.69), na Berceuse, “a linha da mão esquerda começa com simplicidade e, a cada dois ou quatro compassos, introduz uma ideia ornamental nova.” Mas ele não menciona que a peça de Chopin é um tema com variações. Evans também lança mão de variações com frequência, geralmente trabalhando com “respirações” de dois compassos, agrupadas como seções

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de oito compassos. De fato, o ostinato à parte, Evans alegava que sua peça tinha “uma forma completamente livre” (PETTINGER, 1998, p.69). Um gesto melódico realmente semelhante diz respeito aos vários Lás bemóis precedidos de ornamentos superiores de oitava nos c.15-18 da Berceuse de Chopin e os vários Sóis precedidos pelos ornamentos superiores de sétima maior (Fá # – Sol), a 11 compassos do final da Peace piece de Evans (AIKIN, 1980, p.49). A versão da sétima maior de Evans – Fá #, Sol – poderia ser percebida como um erro de leitura gritante ou, no sentido bloominiano (BLOOM, 1973), reescrevendo a história (podemos ouvir uma correspondência ainda com o Mov. II das Valses nobles, mencionada acima: a linha superior de Ravel a partir do c.25 apresenta notas Dó reiteradas, precedidas por apojaturas de mesma nota).

Apesar de pequenas diferenças, a dimensão da paridade se aplica aqui: (1) o andamento; (2) a sensação de calma; (3) o ostinato harmônico básico I – V; (4) o emprego de variações; (5) o registro agudo do piano; (6) as escalas; (7) os arpejos; (8) os trinados; (9) a aumentação rítmica na coda; e (10) o diminuendo no final. Tudo isso significa que, ao invés da canção de ninar de Chopin ser apenas um “precursor”, poderíamos considerá-la como um modelo conceitual e formal para Evans. Em outras palavras, há mais constância do que transformação, embora em um contexto inteiramente novo. Da mesma forma, a observação pertinente de que “em performance. . . [a Berceuse] deveria soar como uma improvisação escrita” (PETTINGER, 1998, p.69), nos autoriza a dar um outro passo: enquanto que Evans tem um ganho a partir de Chopin, podemos observar que, na direção oposta, além do seu status convencional de compositor, Chopin também era um improvisador. Suas variações virtuosísticas habitam o reino entre a composição e a performance quase espontânea.

Em uma segunda camada, relacionando Peace piece ao Catálogo dos pássaros de Messiaen, PETTINGER (1998, p.69), percebe “muitos cantos de pássaros incorporados ao ápice do arco de Evans, no qual a textura bitonal cintila à maneira do mestre francês”. Esta é uma avaliação honesta, mas seria muita ingenuidade forçar o argumento de uma influência direta. Estritamente falando, a improvisação de Evans é bimodal e, ocasionalmente, polimodal: enquanto o baixo está em Dó (obedecendo, assim, aos próprios princípios tonais de Evans, mencionados anteriormente), a melodia invoca um modalismo muito mais ampliado e fluido. Podemos identificar os modos Jônico, Lídio, de tons inteiros, cromático, além de um modalismo com inflexão do blues, a exemplo das inflexões Mi/Ré # e Lá # /Si que ocorrem nos c.14-17 antes do final (AIKIN, 1980, p.49, c.60-65). Do meio da peça para frente, a paleta de dissonâncias de Evans torna-se mais picante do que é normal ao seu estilo. Entretanto, as texturas cristalinas em meio aos sons de sinos em forma de cascata (que alguém poderia chamar informalmente de efeitos “impressionistas”), os trinados e as notas ornamentais em destaque à maneira de Chopin são muito relevantes.

Podemos encontrar, em Evans, traduções equivalentes das notas repetidas ornamentadas do Catálogo dos pássaros (MESSIAEN, 1964). Na primeira peça, chamada Le chocard des alpes [Gralha alpina], por exemplo, o c.1 na p.4 diz respeito às sextinas de fusas reiteradas ao redor de Lá b – Ré – Lá natural. Mais ainda, podemos traçar um paralelo entre o andamento relaxado da segunda peça de Messiaen – Le loriot [Papa-figos] – e Peace piece, e o mesmo com as alternâncias entre explosões melódicas e notas sustentadas, os contrastes de dinâmicas (a alternância de andamentos e as caracterizações [dos pássaros] que estão presentes também na oitava peça de Messiaen L’alouette calandrelle [Cotovia de dedos curtos]. Assim como Evans, Messiaen gostava do registro agudo extremo: na evocação ornamentada de Le Loriot ele utiliza trinados (c.1 na p.2). Por outro lado, o melro da canção canta, para o ouvinte, sétimas maiores e nonas menores, como Si b – Lá; e Mi b – Mi natural (p.3, c.4-10), ambos os intervalos comparáveis aos intervalos da improvisação de Evans, como Mi b – Mi natural; Ré # – Ré natural; e Fá # – Sol (AIKIN, 1980, p.49). Messiaen emprega 5as sem as terças no baixo do começo ao fim em Le loriot, ao passo que a peça de Evans termina exatamente desta maneira (veja descrição abaixo). Além disso, a terceira peça Le merle bleu [Melro azul], apresenta um Très lent com a seguinte designação “souvenir du merle bleu” (p. 24, c.11), que compartilha da mesma atmosfera de amplidão da coda e das harmonias quartais de Peace Piece.

Claro que há diferenças bastante salientes, em relação às quais não cabe um julgamento de valor. Ao contrário, cada criador tem sua individualidade. As próprias obras existem em escalas bastante diferentes: se uma é uma grande coleção de muitos volumes, a outra é um exemplar único de uma miniatura improvisada (ou talvez duas do tipo), que dura apenas 6’43”. As texturas de Messiaen são mais movimentadas e mais complexas do que as de Evans. Evans preserva um sentido mais forte de melodia acompanhada, uma prática que é, ironicamente, mais típica do Classicismo. Finalmente, há uma literalidade no Catálogo dos pássaros que é específico – quase científico – do pássaro que está sendo evocado. Por contraste, a concepção de Evans é muito mais livre e, nesse sentido, mais imaginativa.

De fato, na sua dimensão espiritual interna e mais ampla, há uma afinidade de Evans com a abordagem de um compatriota de Messiaen: André Jolivet, cuja modernidade de sua La princesse de Bali, (JOLIVET, 2002; uma das cinco peças para piano de Mana, de 1935), conclui com um gesto de ampliação harmônico-espacial (c.34-35) notavelmente similar àquele dos últimos quatro compassos de Peace piece (AIKIN, 1980, p.49). Os trechos de ambas as peças equilibram o gesto arpejado que desce do registro do soprano ao registro do baixo com um gesto ascendente que traz sonoridades de sinos, que reverberam até terminar em uma pausa. No compasso final da partitura, Jolivet marcou “comme un gong très grave”, cuja sequência de notas muito graves Si b, Sol,

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Dó #, Sol # e Ré # vão desaparecendo. Os dois últimos compassos de Evans cria um efeito semelhante, mas com ênfase em de intervalos de 4as: Sol – Dó – Fá; depois Lá – Dó – Mi; depois Lá – Ré – Sol, antes do fragmento final baseado em 5 as : Dó – Sol – [Ré].

5 - ConclusãoNão há dúvidas sobre a relevância da música francesa para Evans, cuja força é comparável também à música russa para ele. Isto fica evidente não apenas em dados da literatura biográfica, confirmados pelos pontos de vista do próprio Evans, mas que também se somam às observações de sua prática, as quais procurei mostrar na breve análise deste texto. Ao investigar o papel desta música francesa na arte do improviso de Bill Evans, procurei enfaticamente não me adentrar em nenhum tipo de competição; as palavras de Gene LEES (1997, p.441) são de uma advertência salutar: “Em jazz. . . você escuta a expressão do indivíduo”. Mas, embora respeitemos a individualidade, nenhum de nós existe em um vácuo cultural, pois o indivíduo é parcialmente definido como referência ao “outro”. Concluo que a investigação de cruzamentos culturais e de gênero entre a música francesa e a música de Evans nos revela uma rica rede de influências que, nesses estudos de caso, destaco Ravel, Chopin, Messiaen e Jolivet. É interessante notar, nesses pelo menos, que há menos evidências do impressionismo que o próprio Evans aludiu, embora efeitos de um impressionismo, no sentido mais informal, sejam evidentes. Alguns exemplos de paralelismo, com pontos de interseção hermenêuticos, foram apresentados. Não obstante a problemática de estabelecer causalidade, outros exemplos específicos nos quais há fundamentação documentária suficiente podem ser considerados como respostas ecléticas do tipo fonte-produto, envolvendo a transformação de materiais musicais.

Passível de discussão, a conexão entre o Concerto para a mão esquerda de Ravel e o All blues de Miles Davis/Bill Evans (Estudo de caso N.1) envolve um efeito fonte-produto duplo uma vez que, em primeiro lugar, a figura inicial do primeiro provavelmente emergiu dos primórdios do jazz. Peace piece (Estudo de caso N.2) avança esta ideia com uma engenhosa triangulação: Evans, Chopin e Bernstein – à qual acrescentamos Messiaen e Jolivet – com algumas relações bem claras, ou fechadas; outras mais ambíguas, ou abertas. Por

exemplo, embora a composição do Catálogo de pássaros seja absolutamente contemporânea à criação de Peace piece, o som do canto de pássaro já estava aparente em algumas das músicas anteriores de Messiaen, às quais Evans pode ter sido exposto (embora seja improvável que encontremos uma evidência concreta para fundamentar ou refutar esta possibilidade).

Metodologicamente, a abordagem flexível advogada por RAVEL (1928, p.140) em Contemporary Music se mostrou aplicável ao ecletismo de Evans. Os pontos que realmente tem uma fonte identificável fazem parte da “adoção” e “estilização”, refletindo graus diversos da transformação colorística de Ravel dentro de novos contextos artísticos. Mas, como lembra Chuck ISRAELS 1 (1985, p.110-111), o estilo de Evans nunca soa artificial ou construído: “as ideias eram filtradas por ele e emergiam com profunda convicção. . . tudo era sintetizado em um estilo integrado”. Enquanto que o raciocínio de BLOOM (1973), que está centrado na ideia de uma leitura errônea da história, tem sido considerado de pouca e limitada (hermeneuticamente falando) aplicabilidade, defendo que a abordagem geral de Evans é, notoriamente, como um “abraço de inclusão” da história cultural, mais generoso, como advogado por ELIOT (1951) em Tradition and the individual talent.

Assim, o repertório musical francês se revelou como um importante catalisador modal e textural, especialmente nos momentos mais introvertidos de Evans, como em Peace piece. Além do que mostram os estudos de caso de 1958-1959, pode-se dizer que o interesse duradouro de Evans pela música francesa é comprovado por suas últimas gravações embora, enquanto atividade comercial, seus arranjos da música de Fauré e Chopin para trio de jazz e orquestra (EVANS, 1965) caminhem em outra direção. Essa associação com os eruditos franceses melhorou o status de Evans na Europa – para não dizer também nos Estados Unidos, onde ele tinha de lutar tanto com o fato de ser branco e, não raro, de ser considerado afeminado – expandindo potencialmente sua penetração no velho continente. Nesse sentido, testemunham, por exemplo, as belas e curiosamente literais performances de suas improvisações, incluindo Peace piece, gravada pelo renomado pianista francês Jean-Yves THIBAUDET (1997). Finalmente, é intrigante que uma antiga música francesa tenha sobrevivido e se reconfigurado – à maneira do camaleão – dentro de um novo contexto do jazz modal do pós-guerra.

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Transcrições adicionaisMEHEGAN, J. Contemporary piano styles: Jazz Improvisation IV. New York: Watson- Guptill Publications/Simon and Schuster,

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Gravações adicionaisEVANS, B. New jazz conceptions (CD Riverside 223). Riverside, 1956.______. Peri’s Scope. In: Portrait in Jazz (CD Riverside 1162). Riverside, 1959. RUSSELL, G. The Jazz workshop (CD LPM 2534). RCA Victor, 1956.

WebsiteEVANS, B. www.billevanswebpages.com

Nota1 Charles H. “Chuck” Israels (nascido em 1936) foi o contrabaixista de Bill Evans no período de 1961 a 1966. Também compositor e arranjador, é

também conhecido por seu trabalho pioneiro como Diretor do National Jazz Ensemble de 1973 a 1981.

Deborah Mawer, Professora Senior da Universidade de Lancaster, Inglaterra, e há muito tempo interessada nas interações entre a música francesa e os primórdios do jazz e blues, publicou quatro livros sobre a música francesa do século XX. Seu livro Darius Milhaud: Modality and Structure in Music of the 1920s (1997) apresenta um estudo de caso sobre o balé inspirado no jazz, La Création du monde. Já o livro Ravel Studies (2010) inclui o capítulo Crossing Borders: Ravel’s Theory and Practice of Jazz. O artigo “Parisomania? Jack Hylton and the French Connection” foi publicado no Journal of the Royal Musical Association (2008), enquanto que “Jazzing a Classic: Hylton and Stravinsky’s Mavra at the Paris Opéra” foi publicado no periódico Twentieth-Century Music (2009). No seu projeto atual, French Music in Conversation with Jazz, discute duas interações entre a música erudita e o jazz: primeiro, a música francesa do entre-guerras e os primórdios do jazz; segundo, o impacto da música francesa no jazz modal da década de 1950. O presente artigo, publicado em Per Musi é um texto em processo sobre o segundo tema. Publicou também os livros The Cambridge Companion to Ravel (2000) e The Ballets of Maurice Ravel: Creation and Interpretation (2006). Entre os periódicos que publicaram seus artigos estão o Journal of the Royal Musical Association, Twentieth-Century Music, Music and Letters, Journal of Music Theory, Music Theory Online, Opera Quarterly, French History e o British Journal of Music Education.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. Pesquisador do CNPq desde 1994, publicou dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.

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EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

Recebido em: 10/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

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EVANS, B. Partitura de Peace piece, para piano solo de Bill Evans. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.15-20.

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Recebido em: 10/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional

J. William Murray (Towson University, Towson, EUA)[email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo estilístico sobre a música do compositor e pianista norte-americano Bill Evans. Inclui um contexto sobre os pianistas, compositores (eruditos e populares) e o teórico do jazz George Russell, que marcaram sua formação musical. A análise de 19 obras selecionadas de Bill Evans revela características estilísticas relacionadas ao estilo/andamento, métrica, tonalidade, forma, duração, ritmo harmônico, linguagem harmônica e outros detalhes relevantes.

Palavras chave: ecletismo de Bill Evans; hibridismo em música; música francesa e jazz modal jazz; transformação e improvisação musical; influência entre música erudita e popular.

Bill Evans’s jazz: background, influences, works and compositional style

Abstract: Style study on the music of American composer and pianist Billy Evans. It includes a historical context on pianists, composers (both popular and classical) and the jazz theorist George Russell who influenced his music. The analysis of 19 selected works of Bill Evans. reveals traits related to style/tempo, time signature, tonality, form, length, harmonic chord pace and harmonic language and some other relevant details.

Keywords: eclecticism of Bill Evans; hybridism in music; French music and modal jazz; music transformation and improvisation; influence between classical and popular music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 – IntroduçãoCompositores de diversos estilos musicais são influenciados pelo sons que ouvem. Entre esses que de fato ressoam dentro deles, alguns elementos musicais aparecerão em sua música. Além desta influência por meio do processo de escuta, elementos musicais de outros compositores são absorvidos ao se estudar uma obra, analisá-la ou transcrevê-la. Mais do que isso, a consciência sobre os procedimentos composicionais e fundamentos teóricos aí envolvidos pode se refletir na música que o compositor influenciado escreve ou arranja.

Devido à junção de todos esses fatores, e de outros que não são pertinentes no escopo desse estudo, não é muito fácil determinar com precisão a presença de um compositor na música de outro. Entretanto, quase sempre os compositores são capazes de nomear alguns nomes mais importantes dentre os que os influenciaram. No meu caso, há dois compositores: Bill Evans (1929-1980) e Billy Strayhorn (1915-1967), cujas composições particularmente ressoam em mim (veja estudo estilístico

sobre a música de Bill Strayhorn no número 29 de Per Musi). Mas porque sou atraído por esses compositores? Porque aprecio ouvi-los? Porque gosto de tocá-los ao piano? Essas têm sido questões que procuro responder (MURRAY, 2011).

Nesse estudo, proponho levantar as características composicionais de Bill Evans. Para isso, considero apenas as composições de que apareceram legalmente publicadas, especialmente no Bill Evans Fake Book de Pascal WETZEL (2003), que traz 55 obras. Parte integral do repertório do jazz, essas são músicas que os amantes e estudiosos do gênero, como eu, ouviram ao longo dos anos. Fake books são também as fontes primárias para se tocar essas composições ao piano que ressoam em milhões de pessoas.

Evans não foi prolífico e deixou cerca de 60 obras. Uma das lendas da história do jazz, ele se tornou mais conhecido por suas performances ao piano do que por

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MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

suas composições. Seu estilo pianístico influenciou muitos pianistas e certamente teve um impacto no modelo de som que valorizo e admiro. Entretanto, muito embora Evans tenha influenciado minha maneira de tocar, não incluirei suas práticas de performance na minha análise no presente artigo, me restringindo apenas aos seus aspectos composicionais, verificados em 19 obras selecionadas (veja Exs.1 e 2 abaixo).

2 – A formação de Bill EvansConsiderado um dos pianistas de jazz mais importantes de todos os tempos, Bill Evans mudou a maneira de tocar piano no jazz, influenciando pianistas como Herbie Hancok, Chick Corea, Keith Jarret, Hapton Hawes, Steve Khun, Alan Broadbent, Denny Zeitlin, Paul Bley, Michel Petrucciani e muitos outros. Gene Lees (FEATHER e GILTER, 1999, p.214) o considerou a maior influência pianística de sua geração, especialmente pela sua nova abordagem da sonoridade e da harmonia. Para James Lincoln COLLIER (1978, p.393), Evans representa a maior influência entre os pianistas desde a década de 1960: “[Evans mudou] a linguagem do piano no jazz moderno, incorporando procedimentos harmônios derivados dos impressionistas franceses, forjando um estilo coletivo conhecido pelo contraponto ao mesmo tempo rítmico e fluido” (TEACHOUT, 1998, p.46).

Quando o pianismo de Evans aparece em uma discussão sobre jazz, duas questões que geralmente vem à tona são seu estilo lírico e sua abordagem harmônica. Sua sonoridade única tornou-se diferente do que predominava em um período no qual o bebop reinava. Mesmo hoje, Evans é citado como um modelo pelos críticos de gravações de piano do jazz atual. É muito comum o comentário no qual o pianista que está sendo avaliado mostre influências de Bill Evans. Alguns dos trios de Bill Evans estão entre os melhores trios de jazz de todos os tempos. Ele e seus colegas de trio mudaram a natureza desta formação para algo de fato coletivo, ao contrário de uma formação em que se ouviam papéis bem delimitados para o piano, o contrabaixo e a bateria. O que hoje se tornou algo mais comum foi algo inteiramente novo na época em que Evans começou a fazê-lo.

Além de grande pianista, Evans também foi um grande compositor, embora muitos desconheçam esse fato, o que contribui para que não seja devidamente estudado ainda. Os livros, teses, dissertações e artigos sobre Evans tem tratado mais de seu estilo de performance e improvisação, mas não de seu estilo composicional.

O objetivo de uma composição de jazz é preparar o palco para a improvisação que se segue ao tema e, por isso, é sinônimo de improvisação e não de realização de notas escritas. Evans escreveu canções como precursoras de improvisações, mas ao mesmo tempo, acreditava firmemente que a improvisação era altamente dependente do que o tema original tinha a dizer (EVANS

e EVANS, 2004). O performer, compositor e educador de jazz Harold Danko diz que

“Em nenhum lugar podemos aprender mais sobre a linguagem musical de Bill Evans do que nas suas próprias composições. . . podemos aprender como ele chegou ao conteúdo musical por meio do processo de composição. . . ao longo dos anos, ele utilizou suas próprias composições como veículos para improvisação; e a presente geração pode seguir seus passos investigando sua importante produção como compositor” (WETZEL, 2003).

3 – Influências sobre Bill EvansO estilo composicional é influenciado diretamente pela formação da pessoa e a música com que tem contato, o que foi o caso de Bill Evans. Nascido em Plainfield, New Jersey em 1929, Bill Evans começou a estudar o piano aos seis anos. Mais tarde, estudou também o violino e a flauta, mas sempre foi mais interessado no piano (BIOGRAPHY RESOURCE CENTER, 2008). Por volta dos cinco anos, Evans costumava ouvir as aulas de piano de seu irmão Harry e podia repetir a música que ouvia. Com isso, conseguiu ter suas próprias aulas e passou a praticar o piano por até três horas por dia, como observa Peter PETTINGER, seu biógrafo em How a heart sings (1998, p.11).

Por volta dos sete anos, Evans começou a tocar o violino. Embora não fosse seu instrumento favorito, esta experiência pode tê-lo ajudado a desenvolver o estilo cantabile no piano pelo qual se tornou conhecido (PETTINGER, 1998, p.11). Nas notas da capa de seu disco Bill Evans: the complete Riverside Recordings, ele diz: “Acima de tudo, quero que minha música cante. . . deve passar aquela sensação maravilhosa do cantar” (WILLIAMS, 1984).

Dos 6 aos 13 anos, Bill Evans estudou o repertório do piano erudito, mas sem consciência de como a música era construída. Ganhou medalhas de ouro em competições tocando Mozart e Schubert. Desenvolveu o gosto por Delius, Debussy, Satie, Ravel, Grieg, Rachmaninoff e Chopin (SHADWICK, 2002, p.50). Nessa época, continuou a desenvolver sua habilidade de leitura à primeira vista tocando rigorosamente as notas escritas na partitura. Por volta dos 12 anos, começou a tocar, com seu irmão, numa banda para ensaios de aulas de dança na escola. Ali começou a descobrir o idioma do jazz, substituindo acordes para mudar a harmonia. Sua habilidade de leitura à primeira vista lhe abriu muitas portas na região de Plainfield. Nessa época também começou a se interessar pelas formas musicais e procedimentos composicionais. Sozinho, passou a reduzir harmonicamente as composições que lhe interessava (PETTINGER, 1998, p.12-13).

Ao terminar a high school, Evans recebeu uma bolsa para estudar música no Southeastern Lousiana College, localizado a 80 Km de New Orleans, passo que foi crucial na formação do seu estilo. No início da década de 1940, o estilo bebop estava surgindo em Nova Iorque, estilo

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ao qual Evans não se expôs, devido à sua idade. Ao se mudar para longe de casa para estudar música, Evans ficou reservado o suficiente para desenvolver um estilo único, sem se deixar influenciar em demasia pelo bebop, estilo que estava predominando nos grandes centros do país (PETTINGER, 1998, p.13).

Na faculdade Southeastern Lousiana College, Evans se concentrou no repertório erudito de piano, como mostra o programa de seu recital senior (Ex.1). Nessa época conviveu com incluiu sonatas de Mozart e Beethoven, bem como obras de Schumann, Rachmaninoff, Debussy, Ravel, Gershwin, Villa-Lobos, Khachaturian, Milhaud (PETTINGER, 1998, p.16), J. S. Bach, Chopin, Stravinsky e Scriabin (BIOGRAPHY RESOURCE CENTER, 2008).

Ex.1 – Programa do recital senior de Bill Evans no Southeastern Lousiana College (NETHERCUTT, 1989, p.5).

Seu estudo de música erudita foi amplo e diverso, o qual lhe permitiu desenvolver uma excelente técnica, o que ficou aparente em toda a sua carreira com jazzista. Mas sempre colocava essa bagagem a favor do conteúdo musical e nunca como mero virtuosismo. Tocar a música de Bach, ele afirmava, lhe permitia ter mais contato com o teclado e controle sobre a sonoridade que o tornaria famoso (LYONS, 1983, p.226). Evans sempre foi adepto à ideia de trazer as técnicas da música ocidental europeia para o jazz. Elementos de Bach, Chopin, Debussy e Ravel são perceptíveis na sua escrita (La VERNE, 1990, p.8). No jazz, tornou-se hábil na reutilização de sutilezas harmônicas de um leque variado de compositores: das ambiguidades tonais de Debussy e Ravel até a sutileza de Satie, das estranhezas de Scriabin até os acordes espacializados de Bartók, passando pela bitonalidade de Milhaud (SHADWICK, 1960, p.64).

As características e técnicas que aprendeu na música erudita se tornaram aparentes nas suas composições

e performances. Em 1966, Evans e seu irmão Harry prepararam um documentário sobre a natureza da música, jazz e improvisação (EVANS e EVANS, 2004). Para ele, o renascimento da música dos séculos XVIII e XIX seria o jazz, pois a improvisação havia sido um procedimento comum para mestres como Bach, Mozart e Chopin. Ele lamentava que a improvisação tivesse desaparecido à medida que mais importância foi dada à música escrita. Evans sentia que esses grandes compositores gostavam da liberdade da improvisação e a sensação de liberdade foi uma das razões pelas quais ele se inclinou para o lado do jazz, ao invés de se tornar um pianista de concertos eruditos. Entretanto, nunca abandonou suas raízes eruditas.

Na mesma época em que Evans estudava a música dos grandes compositores no Southeastern Lousiana College, também tocava regularmente em New Orleans e vizinhanças com seu trio chamado Casuals (SHADWICK, 2002, p.51). Tocava e escutava uma música bastante diferente da que aprendia na faculdade. Depois de servir ao exército por três anos e ficar um ano em casa estudando, decidiu, em 1955, entrar para a Mannes School of Music em Nova Iorque para estudar composição, pois sentia que não havia aprendido ainda o suficiente. Nessa época, procurava também tocar jazz em todas as gigs possíveis. Assim, todo o tempo, Evans se expôs e realizava música de um variado leque de tradições musicais que está intimamente ligado ao desenvolvimento de seu estilo pessoal.

Não foram apenas os compositores eruditos que influenciaram sua performance e estilo composicional. Como ouvinte inveterado, absorveu na sua música muito daquilo que estava exposto no próprio mundo do jazz. Em uma entrevista para a revista francesa Jazz Times, ele disse:

“De Nat ‘King’ Cole pego o ritmo e a economia; de Dave Brubeck, um voicing particular; de George Shearing também um voicing, mas de outro tipo; de Oscar Peterson, o swing poderoso; de Earl Hines, o sentido estrutural. Bud Powell é completo, mas mesmo dele eu não pegaria tudo” (DOERSCHUK, 2001, p.146).

A maior influência pianística de jazz sobre Evans foi Nat “King” Cole, por cujo pianismo, abordagem melódica, clareza, frescor de ideias e sonoridade se apaixonou (PETTINGER, 1998, p.15). Outro pianista que teve grande impacto sobre Evans foi Lennie Tristano. Embora fossem diferentes sob muitos aspectos, Evans se identificou com a abordagem lógica e construção sonora de Tristano. Como ele, Evans precisava de uma base organizada para estruturar sua música, pois queria compreender teoricamente a estrutura de sua música (Mc PARTLAND, 1978). Entre outros pianistas de jazz que influenciaram Evans estão Horace Silver e Sonny Clark. Todos esses pianistas representam a ampla fonte na qual bebeu Evans. Mas ele aprendeu também com jazzistas não-pianistas com os quase tocava ou escutava, como Miles Davis, Dizzy Gillespie, Charlie Perker e Stan Getz (PETTINGER, 1998, p.15). Evans gostava de dizer que uma pessoa é “influenciada por centenas de pessoas e

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coisas, que aparecem no seu trabalho. Se prender a um apenas é ridículo” (SHADWICK, 1960, p. 52). De fato, aprendeu com todos.

Outra grande influência sobre Evans foi George Russell. Após se graduar no Southeastern Lousiana College e se mudar para Nova Iorque, ele estudou e gravou com Russell, que havia desenvolvido um trabaho teórico chamado The Chromatic concept of tonal organization for improvisation (for all instruments). O conceito é baseado na convicção de Russell de que a escala Lídia com seu quarto grau aumentado, como meio de improvisação, é mais compatível com a tonalidade da escala maior do que a própria escala maior. O mundo melódico e harmônico de Russell foi rapidamente absorvido por Bill Evans (PETTINGER, 1998, p.32). Esses conceitos começam a aparecer regularmente nas composições e improvisações de Evans. Um exemplo é Time remembered, na qual todos os acordes maiores contem uma #11 (décima primeira aumentada), indicando a presença da escala Lídia. Outro exemplo é Twelve tone tune two, na qual todos os acordes são maiores, com instruções para o improvisador utilizar o modo Lídio em todos os acordes. Evans disse que Russell compunha peças que soavam como improvisações e que, para compreendê-las, era necessário compreender todos os elementos de sua teoria musical (PETTINGER, 1998, p.32). Um dos objetivos de Evans era fazer com que sua música soasse espontânea (EVANS e EVANS, 2004). Assim, o trabalho teórico de Russell foi um dos pontos de partida para que Evans desenvolvesse sua ideias sobre fraseado, redução harmônica e o papel do voice leading harmônico que se tornou uma das marcas registradas de sua performance e estilo composicional (SHADWICK, 2002, p.15).

4- A abordagem composicional de Bill EvansEmbora tenha composto muitas peças e estudado composição, Bill Evans não se considerava um compositor profissional, mas um instrumentista que compunha. Em uma entrevista ao locutor de jazz canadense Ted O’Reilley em agosto de 1980, disse que em certo momento de sua carreira de músico precisou resolver o conflito entre seguir a o caminho da composição ou da performance. Embora gostasse de se dedicar seriamente à composição, se sentia mais um instrumentista do que um compositor, porque não escrevia todos os dias (O’REILLY, 1991, p.11).

A maior parte de suas composições pertence ao universo do jazz, especialmente para a formação do típico trio de jazz (piano, contrabaixo e bateria). Assim, utilizava suas composições como ponto de partida para improvisações. Na entrevista mencionada acima, Evans diz que as peças em estilos diversos que escreveu enquanto aluno em Mannes não funcionariam no contexto de seu estilo de performance porque não guardavam elementos necessários à espontaneidade de improvisação.

Como Evans compunha? Em uma entrevista em setembro de 1975, quando Don BACON (1994) lhe perguntou se suas composições eram espontâneas ou se ele gastava

horas no piano trabalhando-as, ele disse que ambos os pressupostos estavam corretos. Por exemplo, Peri’s scope e My Bells surgiram de repente na sua cabeça e ele as esboçou diretamente em uma folha pautada. Outras vezes ele escrevia primeiro a harmonia e, depois, a melodia, como foi o caso de Time remembered. Às vezes, se assentava ao piano e trabalhava seguidamente, fazendo mudanças até ficar satisfeito, como ocorreu com Turn out the stars e Waltz for Debby.

Evans desenvolveu um estilo particular, próprio, e optou por não modificá-lo apenas pela obrigação de uma mudança estilística. Miles Davis reinventou a si mesmo várias vezes, mas Evans não era assim. Gostava de continuar viajando nos caminhos que abriu. Uma vez descoberta uma trilha, não buscava descobrir outros horizontes, mas compreender, refinar e explorar seu trabalho dentro daquele estilo (SHADWICK, 2002, p.79). Evans gostava de tocar e compor aquilo que lhe desse prazer de ouvir. Em uma entrevista para Marian Mc PARTLAND (1978) na Piano Jazz Series, ele disse que fazia música para se agradar e aperfeiçoar sua arte. Não se preocupava particularmente em se tornar popular. Se isso fosse acontecer, seria uma decorrência de suas convicções. Esta postura se refere tanto às suas composições quanto às suas performances. McPartland resume sua maneira de ser no mundo do jazz dizendo que ele “nadava contra a corrente”.

Vários fatores são centrais para compreender as composições de Evans. Em primeiro lugar, elas são muito lógicas (PETTINGER, 1998, p.129). Embora muitos eventos ocorram simultaneamente em suas obras e elas possam transitar por muitos ou todos os 12 centros tonais, sempre retornam ao ponto de partida. O ouvinte as percebe como obras tonais e certamente não avant-garde, embora as estruturas harmônicas dos acordes sejam quase sempre inesperadas. Isso ocorre principalmente devido à uma abordagem planejada das estruturas musicais. Evans buscava uma compreensão clara e completa do arcabouço teórico do processo harmônico de qualquer peça em que estivesse trabalhando (Mc PARTLAND, 1978). Tornou-se famoso por estudar horas e horas as estruturas harmônicas dos standards do jazz que queria incluir no seu repertório. Esta mesma atenção à harmonia ele também revela nas suas composições. Evans precisava ser analítico para construir suas próprias obras (EVANS e EVANS, 2004). Uma prática muito comum no jazz é criar uma nova melodia sobre uma progressão harmônica de outro compositor. Embora compreendesse bem este conceito primordial enquanto pianista, Evans nunca utilizou esse recurso como compositor (REILLY, 1993, p.v). Tudo em suas composições é original e único.

5 - O estilo composicional de Bill EvansA tabela no Ex.2 traz os títulos e os seguintes elementos das 19 obras instrumentais selecionadas de Bill Evans e analisadas no presente estudo: (1) título, (2) gravação mais antiga da peça ou copyright, (3) estilo/andamento, (4) métrica, (5) tonalidade, (6) forma, e (7) duração. Já

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MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

Peça Ritmo harmônico(acordes por c.) Linguagem harmônica Características principais

Bill’s hit tune 1 por c. ii - V - I Seção C repete 13 c. da Seção A

Epilogue 1 por c. Forma livre

Funkallero 1 por c. ii - V – IDó Menor (nas frases “a”) e Lá b Maior (nas frases “b”) Sub-seções a-a-b-a

Interplay 1 por c. Progressão de blues em Fá Menor Sem frases repetidas

Laurie (The Dream) Moderato Círculo das 5asii - V - I Forma livre

Orbit (Unless it’s you) 2 por c. Círculo das 5as Contorno melódico destacado

Peri’s cope 2 por c. ii - V – IDominantes secundárias Forma livre

Re: Person I knew Lento

Predomínio de acordes menores ou acordes menores com 7ª MSem padrão harmônico

Forma livre Interpretação melódica livre

Show-type tune 2 por c. ii – V e ii – vHarmonia complexa

Forma livre Mudanças de andamento

Since we met 1 ou 2 por c. Círculo das 5as Forma livre Seção C repete 11 c. da Seção A

Story line 1 por c. Centros tonais de Dó Maior, Sol Menor, Fá Menor e Dó Menor Forma livre

Song for Helen 1 por nota Círculo das 5asDominantes secundárias Forma livre

34 Skidoo 1 ou 2 por c. Harmonia complexa Notas pedal

Forma livre Improvisação solo

Time remembered 1 por c.Somente acordes maiores e menores Harmonia complexa Uso parcial do círculo das 5as

Forma livre

Turn out the stars 2 por c.Círculo das 5asii - V – IDominantes secundárias

Forma livre

The two lonely people 1 por c.V-Iii - VTrítonos

Forma livre

Very early 1 ou 2 por c. Harmonia complexa Uso parcial do círculo das 5as

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Wlakin’ up 2 por c. Acordes de A7 Maj e modo LídioAcordes de B m e modo Dórico Padrão rítmico repetitivo

Waltz for Debby 1 por c.Harmonia complexa Baixo cromático descendenteHarmonia relevante nas vozes internas

Forma livre Seção A’ repete 11 c. da Seção ASeção C repete 10 c. da Seção A

Ex.3 - Tabela com o ritmo harmônico, harmonia e resumo das principais características das 19 peças selecionadas de Bill Evans.

a tabela no Ex.3 traz (1) o ritmo harmônico de cada peça, (2) linguagem harmônica e (3) um resumo de suas características principais.

A coleção mais completa de partituras das composições de Bill Evans é o Bill Evans fake book (Ludlow Music), transcrito e editado por Pascal WETZEL (2003) a partir das gravações de Bill Evans. Este livro, que é utilizado aqui como fonte primária, contem 55 canções originais juntamente com versões com letra de 16 delas. Durante sua carreira, apenas 52 dessas 55 canções foram gravadas. Ao editar as lead sheets, Wetzel utilizou principalmente

as lead sheets originais ou publicadas, mas recorreu às gravações quando necessário, especialmente as gravações mais recentes para mostrar a evolução de Bill Evans no tempo. Devido ao grande interesse de Bill Evans pelos detalhes harmônicos, Wetzel foi bem mais preciso e detalhado do que normalmente se vê nas lead sheets, adicionando linhas de contraponto, codas e extensões de acordes, incluindo acordes de passagem e acordes alternativos. As tonalidades originais forma mantidas, embora o leitor deva saber que era prática de Evans tocar a mesma peça em outros tons, pois a transposição era uma de seus procedimentos musicais favoritos (WETZEL, 2003).

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Embora tivesse uma técnica exemplar, Bill Evans não a utilizava para impressionar o público ou dar vazão a mero virtuosismo. Seu foco estava no conteúdo musical e na expressão que pretendia comunicar (LEES, 1988, p.148). Boa parte da música que compunha era para suas próprias performances e não para os outros tocarem. Era considerado um mestre das valsas de jazz. As interpretações de suas baladas eram lendárias. Embora tocasse blues, não era conhecido como pianista de blues ou compositor influenciado por este gênero. Isto pode ser comprovado na análise de gênero de suas obras, como mostra a tabela no Ex.4.

Gênero Nº de obras (55)

Valsa de Jazz 10

Balada 16

Medium swing 8

Medium up swing 9

Fast swing 3

Blues 2

Outros gêneros 7

Ex.4 – Tabela com incidência de gêneros nas composições instrumentais de Bill Evans.

Seu foco entre os andamentos lentos e moderados abriu espaço para desenvolver características que prezava muito, como lirismo, sonoridade e variedade harmônica. Duas de suas peças mais conhecidas são valsas: Very early e Waltz for Debby. Duas outras das mais conhecidas são baladas: Time remembered e Turn out the stars, cuja popularidade atesta a preferência de seu público por esse gênero. Já as duas peças na forma do blues são do início de sua carreira (WETZEL, 2003, Discography, p.110.) e apenas uma foi gravada, o que revela seu distanciamento deste gênero. Apenas três peças – Displacement, One for Helen e Fun ride – tem a notação de fast swing, o que mostra um movimento contrário a uma tendência observada em muitos de seus contemporâneos.

Ao compor, Evans gostava de usar a métrica 3/4 “para articular o lado mais delicado e reflexivo de sua personalidade artística” (SHADWICK, 2002, p.174). É interessante notar que a maioria das valsas foi dedicada às mulheres que fizeram parte de sua vida. Evans também gostava de mudar a métrica no meio da música, como em Comrade Conrad, Five, Since we met e 34 Skidoo. A mudança na métrica o permitia mudar a atmosfera da música subitamente. Waltz for Debby é uma valsa de jazz, mas ele também a tocava e a gravou em 4/4.

A forma musical é um elemento crucial na improvisação do jazz, especialmente para manter o grupo tocando junto e coeso. Quando um grupo está improvisando sem precisar ler a partitura, a consciência da forma musical ajuda os músicos a se orientarem e interagirem. As formas mais comuns em jazz são o blues de 12 compassos e duas

outras formas comumente encontradas no Great American songbook of standards: AABA e ABAB, sendo que as seções A e B tem 8 compassos cada. Em muitos standards, a melodia e a harmonia das Seções A permanecem as mesmas ou são muito semelhantes entre si no esquema AABA. A mesma redundância ocorre com as Seções A e B na forma ABAB. No caso de Bill Evans, a maioria de suas canções não segue melodica ou harmonicamente essas formas tradicionais. Somente These things called changes, a qual toma emprestado como base os chord changes de What is this thing called love e, mesmo assim, não segue a forma AABA ao pé da letra.

A forma de 32 compassos é também pouco provável de ser encontrada entre as canções de Bill Evans. Apenas 4 delas tem exatamente 32 compassos, mas nenhuma delas se conforma com os modelos tradicionais quanto à duração de cada seção interna da forma. Não há uma duração comum em suas composições; elas variam de 12 a 80 compassos. Quanto às seções internas, muitas têm 16 compassos, mas esta extensão não deve ser tomada como padrão, pois apenas 18 das peças analisadas apresentam esta característica. De uma maneira geral, em relação à forma, não se observa um traço comum nas suas composições, como atesta, de maneira mais detalhada, a tabela do Ex.2 acima.

Do ponto de vista da melodia, 48 das 55 canções do fake book de Evans podem ser consideradas de forma livre, uma vez que as melodias não se repetem ao longo da composição. Naquelas em que parte da melodia é repetida, é muito improvável que a melodia seja repetida com exatidão na seção seguinte. Por exemplo, em Bill’s hit tune, a forma é A (16c.) B (16c.) C (20c.) na qual os 13 primeiros compassos de C são os 13 primeiros compassos de A. Se checarmos a existência de repetição melódica nas seções dentro das peças, se observa pouca ou nenhuma repetição de frases dentro das próprias seções. Melodicamente, cada nota está presa ou é dependente da harmonia, o que varia muito no caso de Bill Evans(PETTINGER , 1998, p.180).

Na maioria das lead sheets que os músicos de jazz utilizam, frases de 4 ou 8 compassos são as mais comuns e suas improvisações refletem estes padrões. Na sua performance, Evans pensa em frases maiores, de 32 compassos ou mais (LEES, 1998, p.151). A forma livre de suas composições reflete esta característica. Muitas vezes, é difícil identificar onde começam e onde terminam suas frases. Chuck ISRAELS (1985, p.112), um de seus contrabaixistas, diz que “suas frases começam e terminam cada hora em um lugar, geralmente cruzam os limites entre uma seção e outra”.

Em composições de jazz e, por conseguinte, improvisações de jazz, a armadura de clave é uma boa indicação do centro tonal ou modal de uma peça. A natureza melancólica observada em boa parte de sua música sugere, em princípio, uma grande utilização de tonalidades menores.

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Mas são apenas 14 em um total de mais de 50. Na sua entrevista a Marian Mc PARTLAND (1978), ele fala sobre duas de suas tonalidades preferidas: Lá Maior e Mi Maior, ressaltando a ressonância de seus harmônicos que lhes é característica. Mas ele parece se contradizer, uma vez que apenas uma peça, Remembering the Rain, é em Lá Maior e nenhuma é em Mi Maior! (Ex.5)

Observando o Ex.5 acima, poderíamos pensar que Dó Maior é sua tonalidade favorita, ou que a maioria de suas músicas é em Dó Maior ou, ainda, que Dó Maior é a tonalidade predominante em suas improvisações. Entretanto, ao examinarmos de perto suas composições, vemos que suas harmonias raramente permanecem em um centro tonal ou, mesmo, em tonalidades vizinhas. Utilizar o termo centro tonal aqui é mais apropriado porque é difícil perceber uma clara mudança de tonalidade na música de Evans. É mais fácil perceber uma mudança de centro tonal. A armadura indica apenas um ponto de partida e, às vezes, o ponto final, pois é comum para ele acabar em outra tonalidade. Por exemplo, o primeiro acorde e a tonalidade de Very early é Dó Maior, mas o último acorde da música é Si Maior. Já Time remembered também começa em Dó Maior, mas termina em Dó menor. Assim, os centros tonais primários nas composições de Bill Evans são difíceis de serem determinados. Assim, a armadura de clave pode ser um elemento enganoso.

Quando as pessoas se perguntam sobre a música de Evans, uma questão central é a existência de uma característica harmônica recorrente no seu estilo. Dois aspectos são importantes nessa busca: o ritmo harmônico dos acordes (ou o número de mudanças de acordes por compasso) e a existência de padrões harmônicos, como a progressão ii - V – I ou o círculo das quintas.

Bill Evans era conhecido por gastar horas trabalhando as progressões harmônicas para ter certeza de obter os voicings (condução de linhas melódicas dentro das vozes

dos acordes) desejados. As vozes internas e a condução de vozes eram fundamentais, caso quisesse imprimir um fluxo harmônico mais rápido. A complexidade harmônica de uma peça pode ser determinada observando-se a frequência de mudança de seus acordes. A tabela do Ex.6 mostra os padrões de mudança de acordes nas músicas selecionadas de Evans em que isso ocorre claramente. Isto revela padrões comuns à maioria do repertório de jazz no Great American standard songbook.

Acordes por compasso Número de composições

1 14

1 ou 2 14

2 20

3 ou 4 2

Ex.6 – Tabela com padrões de mudança de acordes nas músicas de Bill Evans

A principal diferença entre a música de Bill Evans e a de outros jazzistas reside na qualidade dos acordes e para onde ele se dirigem. Dois padrões bastante comuns na literatura do jazz são o ii - V - I (ou i) ou o I – vi – ii – V – I (que são progressões também chamadas de rhythm changes no meio jazzístico). Se o padrão ii - V – I aparece muito no repertório de jazz, não é um padrão que Bill Evans utiliza com frequência, se restringindo, no nosso caso, às músicas Bill’s hit tune, Turn out the stars e The Two lonely people, o que revela uma utilização menos frequente ainda na sua fase mais madura.

Dois procedimentos harmônicos são frequentes no seu estilo: a utilização do círculo das 5as e as dominantes secundárias, que aparecem extensivamente em 25 de suas composições. Um bom exemplo são os seis primeiros compassos de Turn out the stars, cuja progressão harmônica a seguir1 quase conclui um ciclo completo (Ex.7).

Centro tonal Tom menor Tom maior

Dó 6 19

Ré bemol - 3

Ré 1 -

Mi bemol 3 4

Mi - -

Fá 6 1

Sol bemol - -

Sol 1 4

Lá bemol - 2

Lá - 1

Si bemol 2 3

Si - 1

Ex.5 – Tabela com tonalidades das composições de Bill Evans.

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Seu emprego frequentemente difere do padrão de círculo das 5as do padrão ii – V – I. Não é sempre que a qualidade dos acordes segue o padrão tradicional (acorde menor / dominante / acorde maior), como acima. Outro exemplo aparece em Time remembered, no qual cada acorde dura um compasso:

/ Am9 / Dm9 / Gm7 / Cm7 / Fm9 /

Outro exemplo pode ser extraído dos c.13-20 de Waltz for Debby, que tem a seguinte progressão:

/ Am7 / Dm7 / Gm7 / C7 / Am7 / Dm7 / Gm7 / C7 /

Essas progressões, retiradas de suas peças mais conhecidas representam bem os padrões do círculo das quintas não tradicionais de Evans. A utilização de dominantes secundárias é outro procedimento composicional característico, essencial para que ele transite por diferentes centros tonais (Mc PARTLAND, 1978). Very early, sua primeira composição revela a importância deste conceito na sua música. Na sequencia de 16 acordes (um por compasso) da Seção A desta peça (na qual as dominantes secundárias estão grifadas), há cinco encadeamentos V→ I (ou i), procedimento que aparece também em muitas outras músicas de Evans:

/ Cmaj7 / Bb9 / Ebmaj7 / Ab7(#9) / Dbmaj7 / G7 / Cmaj7 / Bb9(b5) / Dmaj7 / Am7 / F#m7 / B7(b9) / Em7 / Ab7 / Dbmaj7 / G+7 /

Outro procedimento, a estruturação harmônica pelo círculo das 5as também lhe permite explorar rapidamente muitos centros tonais, não raro, passar pelos 12 centros tonais. Dois exemplos de composições em que Evans faz todo este percurso são Comrade Conrad e Fun ride. Mesmo que a função dos acordes possa ser modificada ou, ainda,

que ele acrescente diversas alterações ou extensões [ou “tensões”, como se diz no Brasil], a função Dominante → Tônica com acordes em estado fundamental faz com que a música soe claramente tonal e não o que um ambiente harmônico cheio de alterações poderia sugerir. A presença das fundamentais dos acordes nos baixos sempre traz, em algum ponto, a sensação de retorno ao centro tonal.

Time remembered é exemplar na maneira de Evans utilizar harmonias não tradicionais. A peça utiliza apenas acordes menores e maiores, sem alterações e sem exercer a função de dominante. Em jazz, a função dominante é uma função básica, uma vez que é o acorde que pode mais facilmente ser alterado e o mais fácil de ser substituído, comum em procedimentos típicos do estilo que permitem colorir, tensionar e relaxar. Time remembered é praticamente uma aula de como utilizar, na improvisação, o modo Dórico em acordes menores e o modo Lídio em acordes maiores. Mesmo recorrendo a somente estes dois modos, Evans ainda consegue a tensão e relaxamento desejados.

Chuck Israels afirma que as harmonias de Evans eram menos dependentes de acordes do que da “sobreposição de linhas contrapontísticas nas quais a fase de tensão e relaxamento entre a melodia e as vozes secundárias era sutilmente atenuada pelo seu controle do toque pianístico” (ISRAELS, 1985, p.110). Este comentário se relaciona diretamente com os procedimentos de Evans na condução de vozes, especialmente na distribuição das vozes internas. A progressão de acordes geralmente é bastante cromática, mas a tonalidade da música está sempre presente. O educador e pianista de jazz Tim MURPHY (2008), diz que a harmonia de Evans é sinônimo do baixo cifrado no mundo do jazz e que sempre traz surpresas.

Ex.7 – Círculo das 5as quase completo em Turn out the stars de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.80).

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MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

A construção rítmica era tão importante quanto a construção harmônica para Evans. O deslocamento rítmico e a sobreposição de ritmos binários ou ternários sobre a disposição dos acordes são particularmente relevantes na sua música (Mc PARTLAND, 1978). O educador e saxofonista de jazz Jeff ANTONIUK (2008) relata uma conversa que teve com o reconhecido saxofonista de jazz Joe Lovano. Em certa ocasião, Lovano teve a sensação de estar tocando atrasado em uma gig com Bill Evans, o que seria incomum para um músico tão experiente como ele. Só depois compreendeu que Evans estava, na verdade, antecipando as mudanças de acordes antes mesmo das antecipações típicas do “e” [como em: um, dois, três, quatro “e”...], ou seja, antes mesmo da colcheia antes dos tempos fortes. Lovana não estava de fato atrasado. Evans, na verdade, estava antecipando as mudanças de acordes para impactar os ritmos e a improvisação. Displacement, uma das composições de Evans, mostra claramente este conceito no qual a mudanças de acordes ocorrem no tempo 4 ao invés do tempo 1.

Outros tipos de deslocamentos rítmicos que ele utilizava ocorriam nas polirritmias e sugestão de métricas complexas. Esses procedimentos começam a aparecer em Peri’s scope (PETTINGER, 1998, p.93), cuja escrita é em 4 / 4 mas tem a sensação métrica de um ternário 3 /4 (Ex.8).

O conceito de alternar métricas pode ser observado em Five (que transita entre 4/4, 5/4 e 3/4) e que também traz polirritmias diversas como 5 contra 2 e 5 contra 3, mostradas no Ex.9.

Já em G waltz, ele utiliza 4 contra 3 e 3 contra 2. Em muitas outras peças ele emprega rítmicas de 3 contra 2 conjugadas com antecipações do tempo forte.

Evans foi um dos primeiros músicos de jazz a compor se baseando em séries dodecafôncias. Conhecedor da obra de Schoenberg, ele escreveu duas peças utilizando este conceito: Twelve tone tune, conhecida como T.T.T. e Twelve tone tune two, conhecida como T.T.T.T. Ele afirmou que o a inspiração para essas peças foi apenas o desafio da escrita, pois não utilizaria este conceito tendo o público em mente. Queria apenas ampliar suas habilidades de compositor (SHADWICK, 2002, p.151). T.T.T. tem apenas 12 compassos e 36 notas. Cada apresentação da série tem a duração de apenas 4 compassos (Ex.10).

Ao harmonizar a série, ele utilizou uma harmonia diatônica devido à dificuldade de improvisar sobre a série (La VERNE, 1990, p.8). Como diversos outros compositores pós-schoenberguianos, ele optou por flexibilizar a técnica serial, não seguindo a regra segundo a qual nenhuma nota poderia se repetida antes que

Ex.8 – Escrita ternária (3/4) dentro de métrica quaternária (4/4) em Peri’s scope de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.53).

Ex.9 – Mudança de métrica e utilização de polirritmias em Five de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.18).

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MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

todas as notas da série fossem apresentadas. Também não tentou evitar o conceito de tonalidade convencional para harmonizar a série. Ainda assim, improvisar sobre as séries nessas peças se mostrou uma tarefa bastante difícil (SHADWICK, 2002, p.151).

Em T.T.T.T. Evans expandiu o conceito de emprego da série dodecafônica para 60 notas, que ocorrem ao longo de 12 compassos e que, depois, se repete. Desta vez, a harmonização foi diferente de T.T.T. no sentido de se utilizar todos os acordes maiores, o que resultou em um encadeamento de 24 compassos para a improvisação:

/ G / F / Eb / Db / C / Bb / Ab / Gb / B / Bb / A / Ab /

/ G / A / B / C# / C / D / E / F# / B / C / C# / D /

o que também resultou em um desafio para os melhores improvisadores, mesmo em um andamento moderado (Ex.11).

Outra peça de Evans que revela a diversidade de seu estilo composicional é Fudgesicle built for four, escrita no início de sua carreira. O tema tem o procedimento inicial de uma fuga a quatro vozes, com entradas do sujeito para violão (Ex.12), piano (Ex.13), contrabaixo (Ex.14) e sax tenor (Ex.15). Embora o tema seja complexo, a improvisação é feita normalmente sobre o encadeamento harmônico.

Uma questão sobre o estilo composicional de Evans é perceber como se desenvolveu ao longo de sua carreira. Muitos aspectos das técnicas que aparecem em Very early, escrita enquanto ele ainda era aluno da Southeastern Louisiana College, aparecem em diversas composições de sua fase madura. Entretanto, dois aspectos se tornam cada

vez mais refinados e frequentes: as progressões observadas nas vozes internas e uma abordagem mais sofisticada da construção rítmica e seus deslocamentos.

Todas as composições de Evans mostram sua habilidade de percorrer bem o caminho planejado e, ao mesmo tempo, obter grande variedade de técnicas composicionais. Em geral, suas obras exibem grande unidade, pois são construídas a partir de elementos básicos, como um pedal, um acorde estrutural, um padrão rítmico, um motivo de 3 ou 4 notas, uma mudança de andamento, uma relação entre tonalidades aparentemente distantes, séries dodecafôncias, entre outros. E resultam sempre desafiadoras, interessantes e complexas. Ao longo de toda sua vida, seu conceito de harmonia foi sendo gradualmente construído. Cada desenvolvimento preparava o terreno para um novo passo, como afirma seu biógrafo Peter PETTINGER (1998, p.174):

Este mundo essencialmente harmônico foi enriquecido por partes que se movem interna e externamente, comentários e coloridos: uma nota que começa como uma nota de passagem cromática se transfere para dentro do acorde, o qual emerge como parte de um novo voicing. A evolução o acompanhou até a sua morte.

Ao dizer que: “. . . toda música é romântica. . . o romantismo com disciplina é o mais bonito tipo de beleza” (TEACHOUT, 1998, p.47), Evans sintetizou seu estilo composicional. Essa disciplina, que intimamente ligava suas composições à sua maneira de improvisar talvez tenha contribuído para o fato de que muito poucas delas se tornaram composições que são tocadas por outros artistas de jazz (BIOGRAPHY RESOURCE CENTER, 2008). Embora a grande maioria de suas obras tenha melodias interessantes, é sua harmonia o que realmente a distingue, e que se reverte em desafios para os que se propõe a tocá-la. Parece haver

Ex.10 – Tema serial harmonizado de T.T.T. (Twelve tone tune) de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.81).

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Ex.11 - T.T.T.T. (Twelve tone tune two) de Bill Evans, com 4 ocorrências da série em duas frases ascendentes (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.82).

Ex.12 – Entrada do violão com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.23).

outra razão ainda mais forte do que a complexidade para o fato de ouvirmos tão pouco a música de Evans: a maioria dos músicos de jazz não gosta de tocar as notas como estão escritas. E esta prática não combina com a natureza dos temas de suas composições, que têm um grande sentido de completude melódica, harmônica e rítmica, o que levou Sean PETRAHN (1991, p.11) a dizer:

Ninguém precisa mudar uma única nota ou acorde nas canções de Bill Evans; você destruiria suas composições. Você mudaria um acorde em uma sonata de Beethoven ou nas “improvisações” de Bartok? Duvido. É preciso uma grande humildade para tocar a música de Bill Evans porque você precisa deixá-la soar sozinha; você deve deixar seu ego longe do instrumento e tocá-la como está escrito.

Eddie Gomez, que foi contrabaixista de Bill Evans por onze anos, fala sobre seu colega: “Bill Evans era articulado, decidido, gentil, majestoso, engraçado e sempre nos apoiava. Seu objetivo era fazer uma música que equilibrasse paixão e intelecto, que falasse ao coração” (PETTINGER , 1998, p.246). Bill Evans é considerado um dos pianistas mais influentes na história do jazz, mas seu papel como compositor ainda não foi bem avaliado. Espera-se que outros estudos sobre sua obra contribuam para que ocupe seu verdadeiro lugar. O lugar de um pianista extraordinário que foi também um compositor extraordinário.

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Ex.13 - Entrada do piano com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.23).

Ex.14 - Entrada do contrabaixo com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.23).

Ex.15 - Entrada do sax tenor com o tema em fugato de Fudgesicle built for four de Bill Evans (exemplo musical elaborado a partir da lead sheet de WETZEL, 2003, p.24).

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MURRAY, J. W. (Bill). O Jazz de Bill Evans: formação, influências, obras e estilo composicional. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.21-34.

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CA: Riverside Records, 1984.

Nota1 O sinal / indica barras de compasso. Assim, dois acordes entre dois destes sinais indicam que os mesmos são tocados o 1º e 3º tempos do compasso.

O pianista, compositor e arranjador J. William (Bill) Murray graduou-se com o Bacharelado em Música e o Mestrado em Música (Composição e Jazz) pela Towson University in Towson, Maryland, EUA. Além disso, obteve o MBA em Economia com honra pela Kellogg Graduate School of Management e o Bacherelado em Economia com honra especial pela University of Colorado. Como performer, atua na região de Baltimore como solista e arranjador para grupos de jazz. Gravou suas obras em dois CDs Billy’s touch e Moving On Atualmente, é Presidente da Baltimore Chamber Jazz Society e membro diretor da Towson University Foundation, University System of Maryland Foundation e Center Stage Theater.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. Pesquisador do CNPq desde 1994, publicou dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. A teoria tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.35-69.

Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

A Harmonia tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise, realização e composição de lead sheets

Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: As metodologias tradicionais do ensino de harmonia no jazz e outras músicas populares geralmente visam fornecer recursos para uma prática de improvisação, cuja abordagem é apenas homofônica. Propomos uma revisão e adaptação da teoria de harmonia tonal de SCHOENBERG (1999, 2004) como ferramenta de análise, realização e composição, a partir da lead sheet. Neste artigo de amplo escopo, (1) Conceitos Tonais (Monotonalidade, Movimento das Fundamentais, Notas Substitutas/Substituição, Transformação dos Acordes, Regiões e suas relações), (2) Funções Tonais (Geral, Específica e de Acordes Vagantes1/de Função Múltipla) e (3) Contextos Tonais (Permutabilidade Maior-Menor, Enriquecimento da Cadência, Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante, Tonalidade Suspensa) da análise harmônica tonal schoenberguiana são adaptados e explorados utilizando simbologias, teorias e práticas da música popular, e ilustrados com exemplos de duas canções instrumentais do Calendário do Som de Hermeto Pascoal: 9 de agosto de 1996 (PASCOAL, 2000a) e 14 de novembro de 1996 (PASCOAL, 2000b).

Palavras-chave: teoria tonal de Arnold Schoenberg; harmonia de Hermeto Pascoal; música popular brasileira, realização de lead sheet.

Schoenberg’s tonal harmony: a proposal for analysis, realization and composition of lead sheets

Abstract: Traditional teaching methodologies of jazz and other popular music usually focus on homophonic improvisation. We propose a revision and adaptation of the tonal harmony theory by SCHOENBERG (1999, 2004) to create a basis for analysis, realization and composition of lead sheets. In this comprehensive paper, (1) Tonal Concepts (Monotonality, Root Progressions, Substitution, Transformation of Chords, Regions and their relations), (2) Tonal Functions (Tonal, General and Vagrant Chords/ Multiple Function) and (3) Tonal Contexts (Interchangeability of Major and Minor, Enriched Cadence, Expanded Tonality, Fluctuating Tonality, Suspended Tonality) from the analysis based on schoenberguian tonal harmony are adapted and used through symbols, theories and practices of popular music, illustrated with examples from two songs from Calendário do Som by Hermeto Pascoal: 9 de agosto de 1996 (PASCOAL, 2000a) and 14 de novembro de 1996 (PASCOAL, 2000b).

Keywords: tonal theory of Arnold Schoenberg; harmony of Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; lead sheet realization.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 – IntroduçãoEm todo o mundo, boa parte da teoria harmônica da música popular está calcada principalmente na sistematização das relações entre escalas e acordes, largamente difundida nos Estados Unidos na literatura voltada para o jazz, que tem em George RUSSEL (2001/[1953]), John MEHEGAN (1978/[1959]) e David BAKER (1969) importantes precursores, seguidos por expoentes como DOBBINS (1984), LEVINE (1995) e MILLER (1996,

1997), entre outros. Ao tratar da questão da história da teoria do jazz em seu livro Analyser le Jazz, Laurent CUGNY (2009, p.154-155) aponta as abordagens intuitivas dos primórdios deste discurso teórico que só gradualmente se revestiu de maior rigor metodológico, mas enfatiza que seria um equívoco considerar esta situação como uma fragilidade inicial, pois representa um “sintoma do ambiente necessário para a improvisação”. Ao mesmo

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tempo, o autor apresenta um panorama sobre as principais “teorias importadas” da música erudita que vêm sendo utilizadas desde a década de 1970 para a análise de solos de jazz: análise schenkeriana, análise semiológica e análise de conjuntos de notas (CUGNY, 2009, p.448-471). Entretanto, até onde nos foi possível rever a literatura, quase não há referências sobre utilização da teoria tonal de Schoenberg. Uma exceção deve ser mencionada, embora não configure, de fato, uma sistematização aplicável à música popular, que é o nosso propósito aqui: em The Harmony of Bill Evans, J. REILLY (1993) utiliza alguns conceitos da teoria tonal schoenberguiana para desenvolver análises sobre a música e improvisação do jazzista que revolucionou o piano no jazz da década de 1960. REILLY (1993, p.3) sugere que os livros de Arnold Schoenberg não eram totalmente desconhecidos no seu meio: “. . . se você ler o Harmonia de Arnold Schoenberg, verá onde Bill [Evans] aprendeu esses princípios e, então, poderá seguir minhas explicações com mais clareza”.

No Brasil, até o início da década de 1990, a literatura sobre música popular em português praticamente se limitava àquelas publicadas pela editora Lumiar (CHEDIAK,1986; FARIA, 1991), que refletiam o modelo norte-americano de David Baker. Da mesma forma, traduções de obras teóricas de Schoenberg no Brasil começaram apenas em 1999, com o Harmonia (traduzido por Marden Maluf, Editora Unesp) e, depois em 2004, com Funções Estruturais da Hamonia (traduzido por Eduardo Seincman, Via Lettera, que daqui em diante chamaremos simplificadamente de FEH). Destacamos as contribuições de Norton DUDEQUE (1997), cujo artigo em português trata da questão da função tonal na teoria de Schoenberg e, ainda, DUDEQUE (2005), cujo livro em inglês aprofunda uma sistematização da teoria tonal de Schoenberg, propondo uma revisão de seus escritos, especialmente o manuscrito Gedanke, publicado como “The Musical idea and the logic, technique, the art of its presentation” (SCHOENBERG, 2006).

A teoria de harmonia tonal de Schoenberg fazia parte, como aponta DUDEQUE (2005, p.1), de um projeto teórico (inacabado) que envolve o estudo da forma, da harmonia e do contraponto e foi sistematizada de modo que demonstrasse a evolução do tonalismo em direção às suas fronteiras. Sua teoria da forma (discutida em ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.70-95 desse número de Per Musi) teria suas principais influências a partir do tratado de A. B. Marx (DUDEQUE, 2005, p.15-20) e da teoria do contraponto de Heinrich Bellerman (DUDEQUE, 2005, p.30-31); enquanto que sua teoria da harmonia seria derivada das ideias de Simon Sechter (DUDEQUE, 2005, 20-28) e de Hugo Riemann (DUDEQUE, 2005, p.58-67). O arcabouço principal da teoria harmônica tonal schoenberguiana se encontra em seus livros Harmonia (do original Harmonielehre, publicado em 1911 em Viena) e FEH (cujo original Structural Functions of Harmony foi escrito em Los Angeles e publicado em Londres em 1954). Em Harmonia, no qual residem os principais ensinamentos, o sistema tonal é abordado através dos processos modulatórios entre as tonalidades do círculo

das quintas, processos que caracterizam os Contextos Tonais de 1) Tonalidade expandida; 2) Modulação; 3) Tonalidade Flutuante; 4) Tonalidade Suspensa. Mas em FEH, Schoenberg condensa o método de ensinar harmonia apresentado em Harmonia, destacando as progressões do baixo fundamental com harmonias diatônicas, depois com acordes construídos com notas substitutas, com transformações e, finalmente, em harmonias vagantes. FEH também apresenta os Conceitos de Regiões e de Permutabilidade Maior-Menor, absorvendo a Modulação dentro do conceito de Monotonalidade. Assim, ao invés de se medir as distâncias entre tonalidades, uma única tônica é aceita como centro de todo movimento harmônico através de suas várias Regiões. Essa perspectiva permite um dos pressupostos da análise harmônica de modo a perceber os movimentos harmônicos em um nível mais local (ou micro) – condução de vozes cromática e quase-diatônica – e em nível mais geral (ou macro), de progressões ou sucessões de Regiões. Tal perspectiva nos parece especialmente útil para uma interpretação de lead sheets complexas como as do Calendário do som de Hermeto Pascoal, abordado na parte final do presente artigo e no artigo seguinte a este (p.70-95 desse número de Per Musi).

As relações tonais na teoria schoenberguiana são determinadas por dois princípios básicos: 1) o movimento das fundamentais diatônicas e 2) o princípio das notas comuns. O primeiro estabelece que as relações são determinadas qualitativamente por passos de fundamentais diatônicas que promovam efeito discursivo. O princípio das notas comuns, por sua vez, identifica quantitativamente as afinidades tonais, isto é, de acordo com o número de notas comuns entre acordes e entre Regiões. Em Harmonia (1999), Schoenberg identifica as notas comuns a dois acordes, como “nexo harmônico”. Em FEH (2004), Schoenberg utiliza este mesmo princípio para classificar as relações entre as Regiões:

A Categoria 1 é denominada DIRETA E PRÓXIMA, porque todas estas Regiões possuem cinco (ou seis) notas em comum com a T. (...) A Categoria 2 é denominada INDIRETA, MAS PRÓXIMA, porque todas estas Regiões estão fortemente relacionadas às Regiões da Categoria 1 ou à Tônica menor, e possuem três ou quatro notas em comum com a T (SCHOENBERG, 2004, p.91).

Na análise schoenberguiana, as relações tonais são observadas em três níveis: 1) Relações entre acordes; 2) Relações entre notas diatônicas e não diatônicas; e 3) Relações entre Regiões. A compreensão dessas relações, nesses três níveis, obedece ao princípio da monotonalidade para o qual “qualquer desvio da tônica permanece na tonalidade, não importando se sua relação com ela é: direta, indireta, próxima ou remota” (SCHOENBERG, 2004, p.37).

Buscando uma conexão com o universo do jazz e da música popular, são relevantes os trabalhos de TINÉ (2002), ALMADA (2006) [veja também os artigos desses autores dedicados à música popular, publicados no número 29 de Per Musi] e FREITAS (1995, 2010) [veja também outro

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artigo desse autor dedicado à música popular, publicado no número 29 de Per Musi] que revêem, sob o prisma da música popular, as principais referências da teoria tonal desde os seus primórdios até hoje, incluindo Schoenberg. Buscando ampliar e sistematizar esta perspectiva, o presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla que propõe a adaptação dos elementos teóricos tonais de Schoenberg para uma melhor compreensão e realização da música harmonicamente complexa de Hermeto Pascoal e a simbologia única de suas lead sheets.

De uma maneira geral, as abordagens ou as sistematizações do estudo da harmonia nas correntes da música erudita (especialmente no séc. XIX) estão direcionadas sobretudo para a composição musical escrita. Ao contrário, as correntes de música popular (especialmente o jazz) se direcionam para a improvisação (que poderia ser compreendida como uma composição em tempo real na performance). TINÉ (2002, p.12) acredita que uma das razões desta diferença está na perspectiva de condução de vozes: “... Uma das diferenças reside no fato de o improvisador não ver um acorde como um passo momentâneo do entrecruzamento de vozes, mas como uma cristalização duradoura, que é concebida em função de um modo ou escala que gera tal disposição (TINÉ, 2002, p.12), acrescentando que, em música popular, a condução de vozes é mais priorizada nos estudos de arranjo. FREITAS (1995), reforça essa concepção, afirmando que as relações de combinações entre acordes não se dão pelas conexões resultantes da Condução de Vozes2. Assim, o estudo da harmonia voltada para o improvisador prioriza o conhecimento e habilidades com o maior número de escalas e clichês harmônicos para introduzir acordes (com suas funções e tensões específicas) e re-harmonização. Essa prática vem de encontro à afirmação de FREITAS (1995):

No corpus da música popular, a pergunta “Qual acorde pode ser colocado aqui?” é da rotina, é necessária e tem sentido claramente aplicativo. É uma questão que, pode ser respondida com esse caráter eminentemente prático da escolha (FREITAS, 1995, p.1).

Dentro da perspectiva erudita, SALZER (1962, p.51) chama atenção para as restrições de um estudo musical centrado mais na aprendizagem das relações harmônicas e menos na familiaridade com a condução de vozes e o contraponto:

O estudo do contraponto desenvolve sensibilidade para direcionamento do discurso musical, condução das vozes individuais e para criação de acordes através do movimento das vozes. Por outro lado, uma primeira concentração na harmonia, especialmente se baseada no método atual, com seu perpétuo exercício de cadências e sua indiscriminada categorização de todos acordes como individualizados, pode impedir o ouvido, com a cadência em mente, da capacidade instintiva de perceber movimento e direção (SALZER, 1962, p.51)..

DUDEQUE (2005, p.28-32) lembra que Schoenberg procurou, em suas elaborações teóricas, lançar mão do estudo do contraponto como ferramenta pedagógica de criação, de modo que o estudante utilizasse seu conhecimento quando estivesse compondo.

Nesta direção, propomos que a teoria harmônica schoenberguiana possa prover uma aproximação flexível do contraponto com a harmonia (melódico-harmônico-homofônica) na música popular, facilitando e ampliando a competência não só para a improvisação, mas também para a composição e arranjo.

O presente artigo constitui a segunda parte de um estudo dos presentes co-autores articulando a música de Hermeto Pascoal e a teoria musical tonal de Arnold Schoenberg. Primeiro, relacionamos a história de vida de Hermeto Pascoal com a formação de suas diversas e ecléticas linguagens harmônicas, tonais e não-tonais (BORÉM e ARAÚJO, 2010). No presente artigo, ainda com este seminal músico brasileiro em vista, buscamos adaptar e aplicar à musica popular os Conceitos Tonais (Monotonalidade, Movimento das Fundamentais, Notas Substitutas/Substituição, Transformação dos Acordes, Regiões e suas relações), as Funções Tonais (Geral, Específica e Acordes Vagantes/de Função Múltipla) e os Contextos Tonais (Permutabilidade Maior-Menor, Enriquecimento da Cadência, Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante, Tonalidade Suspensa) do pensamento tonal de Schoenberg (esses termos aparecem em maiúsculas esporadicamente para facilitar a leitura do artigo). No próximo artigo (ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.70-95 desse número de Per Musi), adaptamos e propomos a aplicação dos conceitos de Forma e Variação Progressiva de Schoenberg em duas canções instrumentais do livro de partituras Calendário do som de Hermeto PASCOAL (2000c, 2000d). Finalmente, ilustramos toda a pesquisa apresentando a realização de duas lead sheets de Hermeto PASCOAL (2013) às p.97-98 e às p.100-101 desse número de Per Musi). Ressaltamos que, ao contrário da relação de Bill Evans (músico letrado musicalmente; veja outros artigos e partitura relativos à música de Bill Evans às p.7-14, p.15-20 e p.21-34 nesse volume de Per Musi) com o pensamento de Schoenberg, Hermeto Pascoal (músico autodidata) nunca se orientou pelas ideias ou escritos de Schoenberg.

2 - Conceitos Tonais2.1– Os Conceitos de Monotonalidade e RegiõesA Monotonalidade se refere ao princípio segundo o qual uma obra tonal tradicional começa e termina na mesma tônica. Leibowitz (citado por DUDEQUE, 2005, p.116), apresenta a monotonalidade como a ideia sob a qual a compreensão das relações tonais implica na inclusão de todos os tons sob o comando de uma única tonalidade. Assim, o conceito de Modulação é substituído pelo Conceito de Regiões, como um movimento (desvio) em direção a outros modos (Regiões), subordinados ao poder central de uma tônica, o que permite uma compreensão de uma obra musical com maior senso de unidade. Uma real mudança de centro tonal será considerada apenas quando uma tonalidade tiver sido abandonada por um tempo considerável e outra tonalidade tenha se estabelecido harmônica e tematicamente de fato.

A possibilidade de inclusão de todos os tons ou notas do sistema no conceito de Monotonalidade deve-se à

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visão do acorde como um composto formado por uma fundamental situada em um grau diatônico, e pelas notas erguidas sobre esta fundamental. Quando são erguidas sobre as fundamentais apenas as notas diatônicas, temos o Campo Harmônico Diatônico. Nos Ex.1, Ex.2 e Ex.3a e 3b mostramos estas estruturas nos Modos Maior e Menor.

A escala menor apresenta-se de três formas: a) Menor Natural: com os graus III, VI e VII abaixados, (Ex.2); b) Menor Harmônica: com os graus III e VI abaixados e o VII elevado (Ex.3a); c) Menor Melódica ascendente: com o III grau abaixado e os graus VI e VII elevados (Ex.3b). Os graus abaixados (naturais) são identificados aqui com o símbolo “b”. Os graus elevados são identificados aqui com o símbolo de bequadro: “ ”.

A inclusão de notas não diatônicas no sistema é explicada primeiramente no âmbito das notas erguidas sobre as fundamentais, introduzidas através da Transformação dos acordes pelos procedimentos de Substituição, que serão tratados nos tópicos seguintes. Através destes conceitos básicos, Schoenberg relaciona a introdução das notas não diatônicas ascendentes (Ex.4a) com o contexto

de Dominantes Secundárias; e das não diatônicas descendentes (Ex.4b), enarmônicas das anteriores, dentro do contexto da Permutabilidade Maior-Menor. Posteriormente, elas são explicadas no contexto da Tonalidade Expandida e Acordes Vagantes.

2.2- Conceito de Movimento (e Passos) das Fundamentais O principio do Movimento das Fundamentais de Schoenberg, derivado do baixo fundamental de Rameau (via Kimberger e Sechter), determina qualitativamente as relações tonais entre os acordes, em função do efeito discursivo promovido pelos 6 passos diatônicos possíveis na tonalidade: 2ª asc/desc, 3ª asc/desc, 4ª asc e 5ª asc.

Essa classificação é feita a partir do equilíbrio entre o número de notas comuns entre as duas tríades que se sucedem e a comparação entre a posição hierárquica em relação à série harmônica (tônica, quinta e terça) que as notas comuns assumem após o passo. Por exemplo, após um passo de 4ª ascendente a partir da tríade do I grau de Dó maior, chega-se à tríade de Fá maior, sobre o IV grau. O nexo entre essas duas tríades, ou seja, as notas comuns

Ex.1 – Campo Harmônico Diatônico do modo de Dó Maior.

Ex.2– Campo Harmônico Diatônico do modo de Dó Menor Natural.

Ex.3a e b – Campo Harmônico Diatônico do modo de Dó Menor com o VI e VII graus elevados.

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entre essas duas tríades, é apenas a nota Dó. Embora exista apenas uma nota em comum, esta nota possui um peso, ou função (qualitativa) de tônica na formação triádica precedente, assumindo na nova tríade (Fá maior) a “melhor” posição possível de acordo com a série harmônica, ou seja, 5ª justa. Este equilíbrio entre quantidade de notas comuns e o peso relativo da função das notas classifica os possíveis passos diatônicos da seguinte forma (Ex.5):

Mais uma vez, o que está em jogo é o quanto o novo passo é capaz de fazer referência à tônica. Os passos crescentes são aqueles que produzem a melhor relação entre quantidade e qualidade, valorizando a função das notas e preservando as notas hierarquicamente mais capazes de referenciar a tônica. Os passos decrescentes, por sua vez, enfraquecem a função das notas. Por exemplo, a 5ª do acorde precedente passa a ser 3ª no novo acorde. Os

passos de 2ª asc/desc são considerados fortíssimos porque não produzem notas comuns entre tríades, mas porque podem ser vistos como a abreviação de dois passos fortes. Por exemplo, o passo de 2ª asc “C – Dm”, considerado como “C (4ªasc) [F] (3ªdesc) Dm“.

Schoenberg identifica duas funções produzidas pelos passos de fundamentais : 1) Progressão: que tem a função de estabelecer ou contradizer a tonalidade; e 2) Sucessão: que não tem uma função e não determina uma tonalidade específica (SCHOENBERG, 2004, p.17). A distinção entre uma Sucessão não funcional e uma Progressão funcional é determinada de acordo com os tipos normalizados de progressões das fundamentais. Os movimentos crescentes e fortíssimos caracterizam progressões que se apresentam como modelos cadenciais. Os modelos mais usuais são cadenciais (Ex.6) e de cadência deceptiva (Ex.7):

Ex.4a e b – Notas diatônicas e notas substitutas e seus direcionamentos em Dó maior.

Ex.5 - Classificação dos Passos de Fundamentais e seus efeitos no discurso harmônico.

Ex.6 – Modelos cadenciais

Ex.7 – Modelos de cadência deceptiva

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2.3 - Conceito de Notas Substitutas/SubstituiçãoEstabelecida a distinção entre a fundamental de um acorde e as notas erigidas sobre ela, temos que a fundamental de um acorde sempre será diatônica e sua função relacionada ao grau diatônico onde ela está estabelecida. No entanto, as notas erigidas sobre a fundamental podem ser diatônicas e não diatônicas.

As notas não diatônicas são acrescentadas ao sistema devido à “tendência” dos graus secundários do Campo Harmônico Diatônico de solicitarem da tonalidade um mínimo de movimento em torno de si, semelhante ao que ocorre com o I grau, isto é, suas Dominantes secundárias. Este movimento, portanto, permite que a tonalidade tenha uma sensível para cada grau, fazendo com que estes se comportem como os modos eclesiásticos. Para isso, os graus menores (II – dórico, III – frígio, e VI - eólio) devem imitar o modelo Menor que já havia conquistado o status de Tom (Tonart) por meio da escala menor melódica. Com isso, são adicionados ao sistema os 6º e 7º sons elevados no sentido ascendente, e naturais no sentido descendente da escala relativa a cada grau. Por outro lado, os graus maiores (I - jônico, IV - lídio e V – mixolídio) devem imitar o modelo da escala maior. Consequentemente, surgirão as notas não diatônicas preservando seus respectivos sentidos (ascendentes ou descendentes), como mostra o Ex.4a e 4b acima. Posteriormente, esta relação com os modos eclesiásticos é levada ao âmbito das Regiões. Devido a esta derivação, Schoenberg usa o termo Stellvertreter para designar as notas não diatônicas. Esse termo significa substituto, representante. Quando uma nota não diatônica surge na tonalidade, ela deve ser vista como uma Substituta, ou seja, representante de um modo eclesiástico/região.

A permissão de movimento em torno dos graus gera consequências sobre a centricidade da Tônica, o que depende do processo de introdução das notas substitutas (Substituição) e pode ocorrer de duas formas, que podem ser vistas como aprimoramentos melódicos da condução de vozes: Cromatismo e Diatonicismo.

Pode-se afirmar que, para Schoenberg, o acorde é um momento vertical de melodias simultâneas, percebidas com um composto de fundamental com outras notas, podendo a fundamental estar omitida. Neste momento, as notas possuem uma função vertical relativa ao acorde (função de 3ª maior, ou 7ª menor, ou 9ª aumentada etc.) e uma função horizontal relativa à Região em que sua fundamental está ancorada (2ˆgrau, ou 6ˆgrau abaixado, ou 7ˆgrau elevado, etc.). Em ambos os casos, a fundamental e as notas devem ser identificadas, caso a caso, como vozes, conduzidas diatônica ou cromaticamente no encadeamento dos acordes segundo os padrões melódicos do contraponto, que ALMADA (2006) denomina de inflexões e classifica como 1) nota de passagem; 2) bordadura; 3) apojatura; 4) escapada; 5) escapada por salto; 5) antecipação; 6) suspensão; 7) cromática; 8) múltiplo cromática e 9) resolução indireta ou cambiata.

Na Introdução Quase-Diatônica das notas substitutas, se produz o efeito de negação da Tônica central. Esse processo é utilizado quando se pretende provocar uma mudança de Região (Modulação), de forma que, em uma voz, não existam pontos cromáticos, mas sim sempre diatônicos à Região pretendida. Em passagens que envolvem Regiões Menores deve-se observar a aplicação das regras das Notas Pivô, ou Neutralização. O Processo de Neutralização é um tratamento melódico utilizado para o 6^ e 7^ graus da escala menor, denominados Pontos Decisivos. Segundo esta regra, existem quatro Pontos Decisivos de trajeto obrigatório, em uma mesma voz (Ex.8, em Lá menor).

No Procedimento Cromático, a função de uma nota substituta aparece como “substituta cromática”, atuando principalmente como um Enriquecimento da harmonia, sendo incapaz de produzir uma mudança de Região tonal. O procedimento cromático implica na identificação desta nota como cromática, devendo “declarar”, na condução de vozes, sua origem diatônica e seu destino, segundo os padrões de Inflexões.

Ex.8 – Regra das Notas Pivô para Neutralização (Exemplos em Lá menor).

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2.4- Conceito de Transformação dos AcordesA Transformação é originada através dos procedimentos de substituição. Quando um acorde é transformado, ele recebe uma ou mais notas representantes de uma ou mais Regiões. Nas Transformações, as notas substitutas podem tomar o lugar da 3ª e da 5ª do acorde, mas não podem tomar o lugar da fundamental.

A transformação não altera a função da fundamental expressa como um grau da escala. Um acorde transformado através da substituição pode mudar, por exemplo, de uma tríade maior para uma menor, diminuta ou aumentada, mas o acorde manterá sua fundamental, isto é, sua função como grau da escala, relacionado a uma Tônica (DUDEQUE,1997, p.6).

DUDEQUE (2005, nota de rodapé da p.72) atenta para a distinção, nos escritos de Schoenberg, dos termos “alteração” e “substituição”. “O primeiro [alteração], significa que o mesmo elemento foi modificado[...]”,ou seja, implica mudança de alguns aspectos sem a perda da própria identidade; “[...] enquanto o último [substituição] presume que um elemento é usado no lugar de outro”.

As Transformações mais simples dos acordes ocorrem no âmbito das notas erguidas sobre a fundamental. Os Exs. 9a, 9b e 9c demonstram transformações do acorde Dm (II grau de Dó maior) através da introdução das notas substitutas Fá# e Láb, gerando os acordes D, Dm(b5), D7, Dø e D7(b5). As notas substitutas representam, respectivamente, a Região da Dominante, e a Região da Subdominante menor (ou da Região da Tônica menor). A substituta Fá# foi introduzida através da alteração da terça (Fá). No Ex.9b, a substituta Láb foi introduzida através da alteração da quinta (Lá). O Ex.9c apresenta as duas substitutas combinadas produzindo um acorde com terça maior e quinta abaixada (b5).

Os casos mais complexos de transformações envolvem as noções de 1) Imutabilidade da Fundamental, em que não é possível alterar a fundamental; e 2) Omissão da Fundamental, que admite a possibilidade de se omitir a fundamental. Esta concepção reforça a consciência das funções estruturais das progressões das fundamentais e assume que a função estrutural de um acorde depende apenas do grau da escala sobre o qual a fundamental do acorde está ancorada. Qualquer nota que esteja sobre esta fundamental e que constitua uma terça, quinta, sétima,

nona etc., “serve somente para dar maior variedade à segunda melodia” (SCHOENBERG, 2004, p.23).

Os casos mais típicos de acordes com fundamental omitida são os acordes de sétima diminuta, e os acordes de sexta aumentada (veja sete casos no Ex. 9 abaixo). O Ex.9d mostra o acorde de sétima diminuta “F#º”, como um acorde de sétima e nona abaixada sobre o II grau de Dó maior, ou seja, D7(b9) com a fundamental omitida3 (Ex.9d). Já o Ex.9e e o Ex.9f mostram o acorde de sexta aumentada (cifrados entre colchetes como Ab7/F# e Ab7) como o II grau transformado em um acorde de sétima menor e quinta e nona abaixadas e fundamental omitidas. Por outro lado, ocorrerão casos excepcionais, onde a fundamental será relacionada ao grau cromático como é o caso do acorde Napolitano “(b)II”, mostrado no Ex.9g, e outras transformações, que são justificadas via empréstimo de outras Regiões, mostrado no Ex.9g. Schoenberg utiliza o caso do acorde Napolitano para reforçar o princípio da imutabilidade das fundamentais:

O acorde Napolitano representa uma exceção em relação a alteração das fundamentais. Sua fundamental seria alterada de Ré para Réb em Dó maior acarretando em uma contradição junto ao sistema de fundamentais não alteradas. Isso, entretanto, implicaria em duas fundamentais distintas no segundo grau. Para evitar esse problema, Schoenberg não deriva o acorde de Sexta Napolitana através da transformação, mas sim, como acorde emprestado in toto da Região da Subdominante menor (DUDEQUE, 2005, p.78).

Da mesma forma, vários acordes cujas fundamentais não são diatônicas, podem conviver com a tonalidade nos contextos da Mistura Modal e da Permutabilidade Maior/ Menor. Quando introduzidos nesses contextos, esses acordes não são analisados como transformação da fundamental, mas como inteiramente emprestados de Regiões próximas.

Sobre a notação dos Acordes Transformados, fizemos algumas modificações para promover convergências com as notações da música popular. Os Acordes Transformados através das substitutas são assinalados por Schoenberg com algarismos romanos riscados. Por exemplo, II, significa “Segundo grau transformado”. O algarismo romano refere-se à fundamental do acorde, seja ela omitida ou não, sendo que as notas substitutas introduzidas não são indicadas na cifragem. DUDEQUE (1997, p.7)

Exs. 9a, b, c, d, e, f, e g – Transformações do II grau – adaptação do Ex.50 de FEH (Schoenberg, 2004, p.55).

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afirma que a não indicação das notas substitutas é “... justificável uma vez que Schoenberg analisa a harmonia sempre relacionando as fundamentais ao centro tonal” e que as referências às notas substitutas encontram-se nos textos das análises. Além disso, Schoenberg se preocupa mais em analisar Regiões Tonais que acordes. A seguir, apresentamos nossa proposta de notação, que justificamos pelo fato de ela evidenciar dados relevantes das práticas da música popular na elaboração de arranjos, na improvisação e na interpretação de lead sheets. Mas essa notação se justifica principalmente em relação à performance, pois evidencia para o intérprete não só os acordes, mas também as Regiões Tonais.

Quando o grau não se apresentar em sua forma original do Campo Harmônico Diatônico, o algarismo romano

será riscado (IV) e em seguida será indicada sua estrutura resultante (IVø). Se esse grau for emprestado de uma Região vizinha – através de Mistura Modal ou Permutabilidade Maior/Menor – e surgir como se tivesse a fundamental alterada, o símbolo (#) ou (b) ou o bequadro (se for o caso) será colocado entre parênteses antes do grau. Por exemplo, se sobre o IV grau (Fá) de Dó Maior surgir o acorde “F#ø”, este será analisado como (#)IVø para demonstrar a nova configuração do IV grau, sendo que o símbolo “(#)” antes do grau indica sua situação em relação à Tônica da Região em que se encontra. Portanto, “(#)IVø” representa e analisa, ao mesmo tempo, a situação desse grau. O Ex.10 (em Dó maior) e o Ex.11 (em Dó menor) ilustram como acordes diatônicos, acordes emprestados e substitutas cromáticas podem ser distinguidos através desta simbologia.

Ex.10 – Interpretação da simbologia proposta no Campo Harmônico Diatônico Maior (exemplo em Dó-maior).

Ex.11– Interpretação da simbologia proposta no Campo Harmônico Diatônico Menor (exemplo em Dó-menor).

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2.5 - Conceito de Regiões Tonais e suas relações2.5.1 – Regiões Tonais As Regiões Tonais são segmentos da tonalidade tratados como se fossem tonalidades independentes. Como consequência lógica do princípio da monotonalidade, o conceito de Regiões fornece a compreensão da unidade harmônica de uma música através de suas relações com a Tônica. Em FEH, SCHOENBERG (2004, p.37) esclarece o conceito de Regiões: “(...) segmentos que antigamente seriam considerados como outra tonalidade, são apenas Regiões, um contraste harmônico interno à tonalidade original”.

As relações das Regiões com a Tônica diferem de acordo com o modo da Tônica da música, Maior ou Menor. Schoenberg criou o “Quadro de Regiões” (Ex.12a e 12b), onde estas são apresentadas por meio de símbolos que indicam suas respectivas relações com a Tônica. Os símbolos são abreviações que descrevem as funções das Regiões. No Ex.12a, o “Quadro de Regiões em Maior” é apresentado com as abreviações das relações das Regiões com a Tônica. Já o Ex.12b exemplifica as tônicas de um Quadro de Regiões em Dó maior.

DUDEQUE (2005, p.102) esclarece a estrutura e disposição lógica do Quadro de Regiões, indicando que as relações com a tônica, mostradas através das abreviações de suas funções, são estruturadas de duas maneiras: (1) Relações verticais, obtidas pelo círculo das quintas; (2) Relações horizontais, com as relações paralelas (homônimas) e as

relações relativas. Ele ainda explica que (3) a distância das relações entre as Regiões é determinada pela distância entre as Regiões e a cruz central; e que (4) as Regiões relacionadas e/ou derivadas da Região Subdominante ficam do lado direito, enquanto que as Regiões derivadas da Região da Dominante ficam do lado esquerdo.

As relações das Regiões com a tônica, no modo Menor, são estruturadas conforme o “Quadro de Regiões em Menor” (Ex.13). Deve-se notar que no modo menor, a região M está uma terça menor acima, assim como a SM está uma terça menor abaixo. As mediantes situadas uma terça maior acima ou abaixo são identificadas, respectivamente, por M#, e SM#. Em Menor, o número de Regiões diretamente relacionadas à Tônica é pequeno, pois esta não detém um controle tão direto sobre suas Regiões como no Maior. Isso se deve ao fato de que, devido à sua derivação do modo Eólio4, seu estabelecimento enquanto tonalidade se dá via utilização das sete notas da escala diatônica (Jônio). Assim, esses traços característicos do Jônio são gerados, na tonalidade Menor, por meio de alterações dos sexto e sétimo graus. Desta forma, a t (Lá menor) estaria mais suscetível a promover modulação ou mudar de Região, principalmente para sua relativa maior, a Mediante maior (Dó maior), através da Sub/T (Sol maior). Por outro lado, como observa DUDEQUE (2005, p.102-3), as relações da t com as Regiões cujas modulações são obtidas indiretamente, como a relativa maior M (Dó maior), são ofuscadas, pelo potencial de função de Dominante e polarizador dessas Regiões Intermediárias Maiores.

Ex.12a e b – “Quadro de Regiões em Maior” e exemplificação em Dó maior (Extraído de FEH, Schoenberg, 2004, p.38-39).

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2.5.2 – Regiões Tonais IntermediáriasRegiões Tonais Intermediárias podem ser entendidas como Regiões momentâneas, definição encontrada nos Exercícios Preliminares em Contraponto (SCHOENBERG, 2001). Também podem ser compreendidas como Regiões com função de conectar Regiões indiretamente relacionadas. Em FEH (2004), Schoenberg demonstra que a conexão entre a T (Dó maior) e a M (Mi maior), se dá através da Região Intermediária m (Mi menor). As Regiões Intermediárias são utilizadas para promover transições suaves e graduais entre Regiões indiretamente relacionadas ou remotas.

Em Harmonia (SCHOENBERG, 1999), ainda sem utilizar o conceito de Regiões, Schoenberg fala sobre modulação através da intervenção de tonalidades intermediárias. A identificação de uma Região como intermediária dependerá de dois fatores, identificados por DUDEQUE (2005, p.103)

como: 1) seu estabelecimento, ou não: 2) sua duração. A principal característica de uma Região Intermediária é seu caráter passageiro e conector. Assim, para uma Região Intermediária, mais vale a utilização funcional de suas características do que seu estabelecimento como Região contrastante dentro da peça.

A Região Intermediária desempenha o papel de criar uma área neutra capaz de proporcionar o giro em direção à Região que se queira alcançar. Por isso, de certa forma, devemos observar o movimento de Regiões sob o mesmo ponto de vista dos movimentos dos acordes. As Regiões Intermediárias fazem parte de um pensamento de prolongamento tonal que surge da ideia de Sucessão e Progressão Harmônica. A primeira não produz movimento tonal e, portanto, prolonga uma tônica ou harmonia qualquer. Já a segunda produz movimento e tem um objetivo tonal. É nesse sentido que

Ex.13 – “Quadro de Regiões em Menor”, (Extraído de FEH, Schoenberg, 2004, p.49).

Ex.14 – Progressões com Regiões Intermediárias apoiadas na Permutabilidade Maior/ Menor.

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as Regiões Intermediárias devem ser percebidas, podendo ser uma Região que produz uma Sucessão Harmônica, portanto, prolongando uma Região qualquer, ou podem promover movimento tonal, produzindo uma Progressão Harmônica, se dirigindo para outra Região tonal. A utilização de Regiões Intermediárias apoia-se no conceito de Permutabilidade Maior/Menor (Ex.14).

Conforme dito anteriormente, o movimento entre Regiões pode obedecer ao padrão das Sucessões Harmônicas, produzindo prolongamento de uma Região. O Ex.15 ilustra algumas possibilidades:

Em FEH, SCHOENBERG (2004) sugere como algumas Regiões indiretamente relacionadas em Menor podem ser alcançadas por meio de Regiões Intermediárias. Acrescentamos, no Ex.16, uma quarta coluna explicitando as relações aproveitadas para efetuar a conexão entre as Regiões.

DUDEQUE (2005, p.104) estabelece uma distinção entre dois tipos de Regiões: 1) aquelas que definem uma nova área tonal: 2) aquelas que não definem, em qeu as

Regiões Intermediárias não se estabelecem e, portanto, não definem uma nova área tonal, apenas utilizando suas características para promover uma conexão, como uma Progressão, ou uma prolongamento, como uma Sucessão.

2.5.3 – Classificação das Relações entre Regiões TonaisAs Regiões são classificadas de acordo com a maneira que se relacionam com a Tônica, analisadas separadamente no modo Maior e no Menor pois, em cada caso, obedecem a critérios diferentes. As classificações aparecem de maneiras diferentes em três fontes primárias (Models for Beginners in Composition, FEH e Exercícios Preliminares em Contraponto).

Em Models for Beguinners in Composition (SCHOENBERG, 1943), as Regiões no Modo Maior aparecem em quatro grupos (Ex.17): (1) Regiões derivadas dos seis modos; (2) Regiões baseadas na relação da Tônica com sua Subdominante menor; (3) Regiões derivadas da Tônica menor; (4) Regiões baseadas na Permutabilidade entre os modos Maior e o Menor.

Ex.15 – Prolongamento de Regiões por Sucessões Harmônicas.

Ex.16 – Regiões Intermediárias que podem funcionar para conectar Regiões Indiretamente Relacionadas, segundo indicação em FEH (SCHOENBERG, 2004, p.97).

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Ainda em Models for Beguinners in Composition (SCHOENBERG, 1943), as relações são classificadas através de três derivações no Modo Menor (Ex.18): (1) Relações derivadas da Relativa maior; (2) Relações derivadas da Tônica maior; e (3) Relações derivadas da Subdominante menor.

Em FEH (SCHOENBERG, 2004), aparece uma classificação segundo o Modo Maior (Ex.19) e o Modo Menor (Ex.20), caracterizando as relações pelas sua proximidade (Próxima, Remota, Distante) e necessidade de intermediação (Direta, Indireta). Schoenberg estabelece cinco categorias: 1) Direta e Próxima; 2) Indireta, mas Próxima; 3) Indireta; 4) Indireta e Remota; 5) Distante.

Norton Dudeque aponta aqui uma aparente inconsistência na classificação da Categoria 4 do modo Maior (Ex.20) em relação ao princípio das notas comuns, observando que, ao classificar a Região dor como remota, Schoenberg estaria desconsiderando o princípio das notas comuns, pois esta Região contém cinco notas em comum com a T em sua forma harmônica, e seis notas em sua forma melódica ascendente ou descendente: “A Região Dórica é classificada como indireta e remota, provavelmente porque esta é considerada em relação à SD, e este fato determina sua relação e distância da Região tônica” (DUDEQUE, 2005, p.112. nota de rodapé).

Finalmente, o Ex.21 mostra as Regiões classificadas como Próximas em Exercícios Preliminares em Contraponto (SCHOENBERG, 2001).

DUDEQUE (2005) busca compatibilizar as três perspectivas do próprio Schoenberg e propõe uma alternativa coerente com as três classificações apresentadas acima:

A classificação das áreas tonais parece atuar de modo que a categoria de relações próximas seja aplicada àquelas Regiões que atuem conforme a sintaxe da D, SD, sm e m; depois, às Regiões da Np, S/T e dor, que são compreendidas como áreas tonais de aplicação por uso comum. Através da Permutabilidade Maior/Menor, as Regiões da t, sd, v menor, SM, e M, também são consideradas proximamente relacionadas à Tônica. O próximo nível de relação (Indireta, mas Próxima), aplica-se às Regiões derivadas da Tônica menor, Quinto-menor, e Subdominante menor, e àquelas Regiões que apresentam alterações na fundamental da Região. Finalmente, todas outras Regiões resultam, em relações distantes. (DUDEQUE, 2005, p.112).

A inclusão das Regiões Np, S/T, e dor na categoria de relações próximas e de aplicação por uso comum, coincide com a classificação apresentada em Models for Beginners in Composition (SCHOENBERG, 1943; Ex.17 e 18 acima). DUDEQUE (2005, p.112) observa ainda que a situação especial da Região Np no Quadro de Regiões em Maior (Ex.12a) denotaria que esta relação ambígua seja derivada da prática comum. Assim, as relações da Dominante e Subdominante, as Relativas, as provenientes da Permutabilidade Maior/Menor e as da “Prática comum” seriam consideradas de grande afinidade com a Tônica, como mostra o Ex.22.5

Ex.17 – Classificação das Regiões do modo Maior, como aparece no Models for Beginners in Composition: Syllabus and Glossary (SCHOENBER G, 1943, p.14-15).

Ex.18 – Classificação das Regiões do modo Menor, como aparece no Models for Beginners in Composition: Syllabus and Glossary (SCHOENBERG, 1943, p.14-15). OBS: As Regiões assinaladas com (*) são mais remotas e utilizadas mais

frequentemente na música erudita.

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Ex.19 – Classificação das Regiões do modo Maior, como aparece em FEH (SCHOENBERG, 2004, p.91).

Ex.20 – Classificação das Regiões no modo Menor, como aparece em FEH (Schoenberg, 2004, p.98).

Ex.21 – Classificação das Regiões no modo Maior e Menor, como aparece em Exercício Preliminares em Contraponto (SCHOENBERG, 2001, p.99).

Ex.22 – Classificação das Regiões do modo Maior, como aparece em Music Theory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874-1951) (DUDEQUE, 2005, p.112).

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3 – Funções Tonais (Geral, Específica e de Acordes Vagantes/Função Múltipla)Aqui abordamos o aspecto funcional geral e específico das relações tonais das notas, acordes e Regiões, na produção de progressões ou sucessões. DUDEQUE (1997) identifica dois tipos de funções tonais no pensamento schoenberguiano: (1) a Função Tonal Específica e (2) a Função Tonal Geral. A primeira refere-se às notas e acordes, e a segunda refere-se à utilização das funções específicas das notas e acordes para afirmar ou contradizer uma tonalidade. A estas se junta a Função Tonal dos Acordes Vagantes (ou de Função Múltipla).

Antes de abordar as Funções Tonais, entretanto, sugerimos uma notação que traduza os Princípios da Transformação de Acordes e da Transferência de Função Tonal (discutidos mais abaixo). Como a Transferência de Função Tonal ocorre quase sempre a partir da imitação de modelos cadenciais, propomos aqui o sistema adotado por CHEDIAK (1986), mostrado no Ex.23, cuja notação explicita analiticamente os passos cadenciais.

Na utilização dessa notação, algumas considerações sobre o modelo cadencial são importantes:

1. cada tom contém uma sensível tonal – representada pelo sétimo grau da escala – que resolve ou se dirige para o tom;

2. cada tom contém uma sensível modal – representada pelo quarto grau da escala – que resolve ou se dirige para a terça definidora do modo maior ou menor;

3. a sensível tonal é uma representante em potencial da Região da Dominante;

4. a sensível modal é uma representante em potencial da Região da Subdominante;

Além dessas características, lembramos a visão de Schoenberg em que, num contexto onde a Tônica seja, por exemplo, Dó maior, uma das funções da nota Si (sensível tonal) é evitar a possibilidade da nota Sib (definidora da Região da Subdominante, Fá maior) ser percebida como pertencente ao tom, impedindo uma espécie de impulso da percepção rumo a Região da Subdominante.

O nosso empenho, portanto, deverá concentrar-se em primeiro lugar, em não permitir que se estabeleça o impulso rumo à Subdominante: a sensação de Fá-maior. Melodicamente

consegue-se isso com a nota Si natural. O Si pertence a três acordes: aqueles dispostos sobre o III, o V e o VII. Dispomos, portanto, desses acordes para expressão harmônica desta intenção (SCHOENBERG, 1999, p.199).

Da mesma forma Schoenberg justifica o uso da nota Fá natural para impedir a tendência rumo a Região da Dominante (Sol maior). Com isso, enfatiza-se a função de demarcação dessas notas. Mesmo considerando, pelo desdobramento do mesmo raciocínio citado, o movimento II-V-I como o mais adequado para estabelecer, inequivocamente, a tonalidade, Schoenberg acrescenta: “Não obstante, também outras cadências, mais débeis, podem ser atrativas sob determinadas condições, e por isso discutiremos aqui as aptidões dos outros graus” (SCHOENBERG, 1999, p.204). Ainda assim, Schoenberg caracteriza não só o efeito do III grau como inabitual (e por isso débil), como também exclui o VII pelo desuso. E recomenda, como disponível, apenas o VI grau no lugar do II.

O direcionamento da sensível também caracteriza sua função dentro do modelo cadencial. Quando fala sobre notas estranhas ao tom, no capítulo sobre as dominantes secundárias no Harmonia (SCHOENBERG, 1999), e no Capítulo 3 de FEH (SCHOENBERG, 2004), ele caracteriza quatro alterações ascendentes e uma descendente. Observamos que as alterações ascendentes produzem tendências rumo a Regiões do lado do círculo das quintas da Dominante, e a alteração descendente tende a Regiões do lado do círculo das quintas da Subdominante6.

Concluindo, propomos a seta contínua para indicar o passo cadencial produzido pela sensível tonal, preferencialmente onde o movimento de fundamentais seja o de quarta ascendente. Para indicar a cadência deceptiva usaremos a seta contínua cortada. Para indicar o passo cadencial que antecede o movimento da sensível tonal, e caracteriza a influência da Subdominante, usaremos o colchete. Assim, o conjunto formado pelo colchete e pela seta contínua indica o movimento cadencial geral, mesmo onde não exista a imitação exata do modelo cadencial II – V ou IV – V. Já a representação da função do acorde cifrado se dará por um conjunto de sinais e suas diferentes associações para representar as funções específicas implícitas nas cifras. O Ex.24 enumera esses sinais, seus símbolos e seus significados. Os símbolos assinalados com (*) indicam tonalidade expandida, e serão explicados em detalhe no tópico 4.3.

Ex.23 – Notação com sinais analíticos cadenciais em passos de 4ª ascendente (CHEDIAK, 1986).

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Em relação aos Princípios da Transformação de Acordes e da Transferência de Função Tonal , as relações tonais e funcionais, dentro do pensamento schoenberguiano, são influenciadas por dois fenômenos harmônicos: (a) Transformação de Acordes, que “... não admite substituição da fundamental e é baseada nas sete funções fixas dos sete graus da escala” (DUDEQUE, 1997, p.9); e (b) Transferência de Função, que “... sugere uma função móvel...” (DUDEQUE, 1997, p.9). Por exemplo, um acorde pode surgir sobre um determinado grau da escala de uma Região, ser transformado e seguir sua tendência rumo a outras Regiões. Mesmo que a configuração do acorde contenha notas transformadas, a função

específica da sua fundamental permanece inalterada, indicando sua relação com a tônica. Por outro lado, ao seguir suas tendências rumo a outra Região, sua fundamental adquire nova função e deve ser analisada na Região à qual está naquele momento.

A Transformação de Acordes, produzida pelo processo da Substituição, acarreta uma nova configuração de um dado acorde sobre um grau diatônico. Depois de assumir sua nova configuração, esse acorde tende a imitar os modelos convencionais de movimento de fundamentais. Essa tendência pressupõe a transferência da função de outro grau escalar ao grau transformado. No Ex.25, o acorde sobre o I grau foi transformado através da

Ex.24 – Adaptação e explicação da notação analítica de análise harmônica.

Ex.25 – Transformação de Acorde e Transferência de Função com o modelo V7 – I .

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introdução cromática da substituta Sib (segundo tempo do c.3). Essa nova configuração (acorde de sétima da Dominante) tende ao movimento típico da função do V7 grau diatônico, função Dominante, função que foi transferida para o I grau transformado.

No Ex.26, o V7 grau foi transformado através da introdução cromática da substituta Sib (segundo tempo do c.3), adquirindo a configuração Gm7. Essa nova configuração tende a imitar os modelos IIm7 – V7, ou IVm – V7. Nesse caso, o acorde Gm7 imitou a função de IIm grau cadencial, em direção ao I grau transformado em I7. Houve a transferência da Função do IIm e V7 graus para os graus Vm7 e I7 transformados.

Outras possibilidades poderiam surgir a partir desse mesmo acorde menor. O Ex.27 demonstra a imitação do modelo IVm – V – I, fazendo com que o Gm7 siga para o A7 (primeiro e segundo tempos do c.3), preparando o Dm. Segundo Schoenberg, “transformações que alteram a quinta justa em diminuta tendem a ser seguidas por uma tríade maior, de acordo com o padrão II V em menor” (SCHOENBERG, 2004, p.62). No c.6 do Ex.27 mostramos essa tendência, com o III grau transformado. O procedimento de imitação dos modelos

e, consequentemente, da transferência de função, é responsável por um grande enriquecimento das relações dentro do sistema tonal.

3.1 - Função Tonal GeralA conceituação de Função Tonal Geral está diretamente ligada à expressão da relação dos elementos específicos a uma determinada tonalidade. Assim, os elementos sempre estarão atuando no sentido de afirmar ou estabelecer uma tonalidade – função centrípeta –, ou, no sentido de contradizer uma tonalidade – função centrífuga. Uma tríade tem, em potencial, uma tendência centrífuga, e por isso, necessita da cadência (função centrípeta), para anular esse efeito, e proporcionar a centricidade. DUDEQUE (1997) ressalta a importância da função tonal na teoria schoenberguiana quando relacionada ao princípio da monotonalidade:

Este conceito é muito mais amplo e complexo do que normalmente os teóricos afirmam e parte do princípio de que uma obra tonal tem suas funções tonais específicas e gerais relacionadas a uma tonalidade única que domina a obra por inteiro, representada pelo princípio da monotonalidade (DUDEQUE, 1997, p.3).

Patricia Carpenter e Severine Neef (SCHOENBERG, 2006), citados por DUDEQUE (1997), sugerem que, da mesma

Ex.26 – Transformação de Acorde e Transferência de função com o modelo IIm7 – V7 – I .

Ex.27 – Transformação de Acorde e Transferência de função com o modelo IVm7 – V7 – I .

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forma como a conceito de monotonalidade engloba todas as tonalidades em um sistema inclusivo, este “envolve uma rede de funções definidas pelos graus da escala, em que todas as notas, acordes e Regiões tonais, cada qual com sua função específica, são relacionados a uma tônica central”.

Recordando que, para Schoenberg, o acorde deve ser compreendido a partir de dois elementos - sua fundamental e as notas erigidas sobre essa fundamental - estes elementos específicos assumem funções gerais independentemente um do outro. A fundamental, através da Transferência de Função assume função centrífuga, de negação à tônica central, pois faz referência a outras tônicas. Por outro lado, as notas erigidas sobre o grau, quando percebidas como transformadas, isto é, produto da substituição e com um novo direcionamento, possuem relação com a tônica central. É nesse sentido que DUDEQUE (1997, p.9) afirma que os princípios da Transformação de Acorde e da Transferência de Função devem ser interpretados como funções gerais complementares.

3.2 – Função Tonal EspecíficaA Função Tonal Específica das notas consiste em relacionar as notas aos graus de uma escala relacionada à tônica de uma tonalidade ou Região tonal. Por exemplo: A nota (Sol#), em Dó maior, poderia assumir a função específica de VII grau (sensível) da Região da sm (Lá menor). Outro exemplo: A nota (Fá#), em Dó maior, poderia assumir a função de VI grau da Região sm (Lá menor) ou, em outro contexto, a função de VII grau (sensível) da Região D (Sol maior). Já a Função Tonal Específica dos acordes é expressa pela relação de sua fundamental com um determinado centro tonal, ou Região. Da mesma forma, um determinado segmento de uma Região é relacionado a um centro tonal como se fosse um grau de uma escala, incluindo a função dos acordes e notas.

Uma nota individual possui a capacidade de expressar uma tonalidade se assumir a função de determinados graus característicos, que são responsáveis por estabelecer e diferenciar as tonalidades: o 4^ e o 7^ graus no Modo Maior; e o 6^ e o 7^ graus elevados no Modo Menor (Ex.28).

Essas notas possuem sua Função Específica independentemente do acorde ao qual estão ligadas, função que está diretamente relacionada aos processos de substituição cromática e quase-diatônica (especialmente quando executada pelo processo da Neutralização). A neutralização ou sua falta determina a função de uma nota como substituta cromática (centrípeta), ou substituta quase-diatônica (centrífuga).

Na teoria schoenberguiana, a Função Tonal Específica de um acorde é dada por sua fundamental, que define sua relação com um centro tonal. As fundamentais estão fixadas sobre os graus da escala de referência – Maior ou Menor – e são identificadas com os nomes tradicionais das funções tonais (Ex.29).

O lugar que a fundamental do acorde ocupa, dentro da escala, determina sua relação funcional com a tônica. Esta relação independe da configuração do acorde. Por outro lado, deve-se estar atento a outros fatores que determinam o estabelecimento de uma função em um acorde: (a) seu Contexto Tonal; e (b) a noção de Região. O Contexto Tonal está ligado à relação do acorde com os acordes que o antecedem ou que o sucedem. Esta relação pode promover uma Sucessão ou uma Progressão e, com isso, determinar o significado harmônico desse acorde. Já a Região implica no conhecimento do campo harmônico e das notas características das Regiões, que podem estar atuando em contexto, quer no sentido de se estabelecerem

Ex.28 – Graus característicos nos modos Maior e Menor.

Ex.29 – Funções Tonais das Fundamentais dos acordes nos modos maior e menor.

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(como contraste), quer no sentido de passagem (como Regiões Intermediárias), conectando ou prolongando Regiões. Finalmente, a determinação da Função Específica de um acorde deve observar os princípios da Transformação de Acordes e da Transferência de Função.

3.3 - Função de Acordes Vagantes (ou de Função Múltipla)Os Acordes Vagantes formam uma categoria especial de acordes que podem assumir a função de vagar ou transitar livremente sobre diferentes Regiões harmônicas, graças à flexibilidade de transformação dos graus. Segundo Schoenberg, tais acordes:

Não pertencem exclusivamente a nenhuma tonalidade, senão que, sem alterar sua configuração (nem sequer é necessária a inversão bastando uma relação imaginária com a fundamental), podem pertencer a muitas tonalidades, muitas vezes a quase todas” (SCHOENBERG,1999,p.286).

Estes acordes são derivados das Transformações e podem ter funções múltiplas devido às suas constituições específicas. Os casos mais evidentes são os acordes de sétima diminuta, a tríade aumentada e o acorde de sexta aumentada e suas inversões.

Na teoria da música popular, os acordes vagantes correspondem aos acordes de Substituição de Dominantes. Por exemplo, o II7 grau de Dó maior (D7) pode ser transformado com a alteração da quinta e da nona, assumindo uma configuração semelhante a Ab7. Na música popular, dizemos que esses acordes são substitutos, ou, Ab7 é o subV7 (Dominante substituta) de D7. Outra maneira de observar essa relação seria reconhecer a presença do mesmo trítono na estrutura desses acordes. Acordes Dominantes que possuem o mesmo trítono são substitutos entre si, ou seja, são Acordes Vagantes correspondentes. As correspondências entre os acordes vagantes são demonstradas no tópico seguinte, dos Contextos Tonais.

4 - Contextos TonaisFinalmente, na análise schoenberguiana, podemos reconhecer as relações tonais em Contextos Tonais por meio (1) Enriquecimento da Cadência, (2) Permutabilidade entre Maior e Menor e Mistura Modal, (3) Tonalidade Expandida, (4) Tonalidade Flutuante e (5) Tonalidade Suspensa. A identificação dos contextos tonais está diretamente ligada à percepção do direcionamento do movimento do discurso harmônico. Esse direcionamento é observado a partir da leitura dos elementos estruturais e de Prolongamento7 nos três níveis da análise: (1) Regiões, (2) fundamentais dos acordes, (3) notas dos acordes.

4.1- Contexto de Permutabilidade Maior-MenorNa tendência de enriquecimento da tonalidade, Schoenberg destaca a Permutabilidade entre Maior e Menor, procedimento também identificado como Mistura Modal (Mode Mixture). Em Harmonia (SCHOENBERG, 1999), este procedimento é apresentado no capítulo “Relações com a Subdominante menor”, com a introdução de acordes desta Região ao Campo Harmônico Diatônico. Em FEH (SCHOENBERG, 2004), o procedimento é apresentado de forma mais sistemática com a introdução de acordes de Regiões consideradas próximas à Tônica, como a t (Tônica menor), o v menor (Quinto menor), além da sd (Subdominante menor). Na maioria das vezes os acordes derivados dessas relações (Ex.30) são obtidos por transformação das notas sobre a fundamental, porém, em alguns casos, Schoenberg parece admitir a alteração da fundamental. A esse respeito DUDEQUE (2005) afirma:

No exemplo que ilustra os acordes substitutos, Schoenberg endereça todos os acordes em relação à tônica maior. Obviamente, ele considerou, nessa ilustração específica, a possibilidade de alteração da fundamental, e consequentemente a escala cromática como referencial. Entretanto, essa não é a prática adotada em FEH. Schoenberg analisa um vasto repertório de excertos da literatura musical de acordo com o sistema de fundamentais diatônicas. (DUDEQUE, 2005, p.79).

Ex.30 – Acordes emprestados por Permutabilidade entre Maior e Menor (Extraído de FEH, SCHOENBERG, 2004, p.73) 8.

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Assim, esses acordes são percebidos como emprestados das Regiões próximas, com as substitutas introduzidas cromaticamente, assumindo, desta forma a característica de notas guias. A substituição cromática desempenha importante papel nesse contexto de Mistura Modal.

A Permutabilidade entre Maior e Menor traz a possibilidade do acorde Napolitano, emprestado do sexto grau da Região da Subdominante menor, acorde que passou a ser utilizado como clichê harmônico. Em Dó maior temos Db7M. Na discussão sobre a compreensão desse acorde no contexto tonal, SCHOENBERG (1999, p.338) afirma que “Seu aparecimento típico é como imitação do II grau da cadência. Por isso têm-se admitido que ele seja uma nova transformação cromática do II grau”. Mas, logo em seguida, Schoenberg levanta a hipótese de que seja possível a existência de duas fundamentais sobre o segundo grau da escala, assim como acontece com o sexto e sétimo graus da escala menor, projetando “uma espécie de princípio fundamental à consideração dos eventos harmônicos: a escala cromática” (SCHOENBERG, 1999, p.338).

Assim, Schoenberg considera o acorde de Sexta Napolitana como representante do segundo grau na cadência, de onde vem seu uso típico. Embora possa ser alcançado por transformação, não é considerado como derivado do processo de transformação, mas sim como acorde totalmemte emprestado da Região da Subdominante menor. Ao uso típíco do acorde napolitano denominamos Cadência Napolitana, que segue dois modelos: (b)II7M – V7 – I e (b)II7M – I. É possível, portanto, a imitação dos modelos da cadência Napolitana, descendo por semitom em direção aos graus diatônicos.

Se a tonalidade de referência estiver no modo Menor, a Permutabilidade dá-se da seguinte forma:

Partindo do modo menor, recomendo a princípio, aproveitar meramente a relação obtida através da tonalidade maior homônima. Assim por exemplo em Dó-menor, seriam os acordes relacionados à Subdominante menor de Dó-maior. Mais tarde, o aluno poderá também aproveitar o alargamento dessa relação (através da tonalidade maior paralela, isto é: em Dó-menor, a de Mib-maior) (SCHOENBERG, 1999, p.335).

Em um exemplo em Dó menor (Ex.31), mostramos como seria este alargamento de relações para as 3 regiões

próximas (t, sd, v-menor) tanto da maior homônima (Dó maior) e da maior relativa.

4.2- Contexto de Enriquecimento da CadênciaA expressão da tonalidade ocorre em dois níveis: (1) Nível das Fundamentais: que é representado pela função dos graus, e por isso, mantém-se essencialmente diatônico; (2) Nível da Substituição: que ocorre sobre as notas erigidas sobre a fundamental (mesmo que esta esteja omitida). Reforçando a importância das fundamentais diatônicas, Schoenberg afirma: “A alteração das notas naturais em notas estranhas, geralmente, não mudará a qualidade funcional do grau sobre o qual o acorde está erigido” (SCHOENBERG, 1942, glossário p.13).

Desta forma, percebemos que, na expressão da tonalidade, ocorre o convívio de um elemento definidor das relações tonais (as fundamentais diatônicas), e de um elemento que funciona como ampliador e enriquecedor dessas relações (a substituição).

Leonard Stein, citado por DUDEQUE (2005, p.78-79), identifica três formas de extensão das relações, através da substituição:

1. Enriquecimento das progressões através de sensíveis ascendentes ou descendentes;

2. Enriquecimento dos recursos da cadência com o prolongamento da função da fundamental, e com as possibilidades da Permutabilidade Maior/Menor;

3. Produção de Regiões conduzidas como uma tonalidade.

As duas primeiras possibilidades podem ser identificadas como Cadência Enriquecida, pois implicam na ocorrência da substituição cromática, enquanto a última depende da substituição quase-diatônica, através do processo de Neutralização. Portanto, a identificação da Cadência Enriquecida depende da produção de progressões no movimento das fundamentais; e dos procedimentos cromáticos no nível da substituição. Porém, há ainda a possibilidade de, no nível das fundamentais, identificar “elaborações da função das fundamentais principalmente sob a forma de prolongamento da fundamental” (DUDEQUE, 2005, p.93)9.

Ex.31 – Regiões para Permutabilidade entre Maior e Menor à partir do alargamento das relações para a Maior Homônima e a Maior Paralela (exemplo em Dó menor).

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No Ex.32 ilustramos um prolongamento da função da fundamental sobre o II grau. Primeiramente, consideramos as fundamentais omitidas: o segundo acorde do c.5 normalmente seria cifrado como Ab7, supondo um movimento cadencial para o Db7M. Porém, esse acorde pode ser visto como Transformação do segundo grau com baixo na quinta diminuta e fundamental omitida e, assim, o Db7M pode ser visto como um acorde de Sexta Napolitana. Essa análise se fundamenta na percepção do trecho produzindo a Progressão II - V - I, de forma que a fundamental Réb atue como emprestada por Permutabilidade Maior/Menor. Entende-se que todos os acordes transformados do trecho em questão possuem a função de II grau. Assim, esse exemplo é analisado como Cadência Enriquecida, pois o objetivo tonal da cadência é alcançado após a prolongamento da função do II grau dirigindo-se ao V7. Observamos que esse caso de prolongamento da fundamental contou com a utilização de: (1) cromatismos no nível da substituição; (2) consideração das fundamentais omitidas e; (3) consideração de cromatismo no nível das fundamentais com acordes emprestados por Permutabilidade Maior/Menor, como o acorde de Sexta Napolitana.

O contexto da Cadência Enriquecida consiste, basicamente, na utilização de recursos de expansão, tais como: Prolongamento de uma fundamental e Transformações remotas adicionadas às possibilidades da Permutabilidade entre Maior e Menor, dentro da cadência. Arno Roberto Von Buettner apresenta uma série de procedimentos de ampliação harmônica, no contexto da música popular, dentre eles, a Interpolação Harmônica,

que “... acontece quando, numa cadência, o V7 torna-se IIm7, onde acorde interpolado está situado entre duas Dominantes” (BUETTNER, 2004, p.31), como no Ex. 33a.

Em outro exemplo, o autor demonstra o que chama de Interpolação da Interpolação Harmônica: “Existem casos em que o IIm7 ou V7 sub, podem estar entre o IIm7 e V7 originais, não afetando a realização da cadência, porque o último acorde antes da resolução sempre será o V7 original” (BUETTNER. 2004, p.36), mostrado no Ex. 33b.

4.3- Contexto de Tonalidade ExpandidaA Tonalidade Expandida é, em certo sentido, o início do abandono da Monotonalidade, mas um contexto no qual transformações remotas e sucessões harmônicas ainda são compreendidas dentro de uma tonalidade. Segundo SCHOENBERG (2004, p.99), nesse contexto “tais progressões podem, ou não, produzir modulações ou estabelecer as diversas Regiões”, funcionando como enriquecimento da harmonia. DUDEQUE (2005, p.123) afirma que a monotonalidade, vista já como Tonalidade Expandida, “encontrou um limite em seu desenvolvimento, resultando em seu abandono como princípio geral organizador das relações tonais”. Desta forma, os dois conceitos Tonalidade Flutuante e Tonalidade Suspensa, dentro da Tonalidade Expandida, “reforçam a desestabilização do centro tonal, e consequentemente, o abandono da monotonalidade”. Concluindo, poderíamos admitir que a Tonalidade Expandida é uma prática que tem seu início a partir da Monotonalidade, e encontra seu fim na Tonalidade Flutuante ou na Tonalidade Suspensa.

Ex.32 – Trecho com Prolongamento da função da fundamental sobre o II grau.

Ex.33a, b – Interpolação harmônica

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Nos vários exemplos utilizados em FEH, Schoenberg caracteriza a Tonalidade Expandida com a ocorrência de transformações que levam a desvios de Regiões muito remotas. Ele encontra exemplos na música de compositores desde o Barroco, como Bach (SCHOENBERG, 2004, p.102) ou na música clássica descritiva, como a de Schubert (SCHOENBERG, 2004, p.103), que contem modulações “extravagantes”, como da tônica menor [t] (Dó menor), para a mediante menor da Dominante [mD] (Si menor). Schoenberg cita exemplos de Tonalidade Expandida, como a inclusão da Sexta Napolitana e uso de Regiões no interior dos temas estruturais de uma obra. Na sua análise das Variações Diabelli de Beethoven (SCHOENBERG, 2004, p.114-121), ele demonstra algumas dificuldades na interpretação de alguns trechos para se estabelecer Regiões. Em passagens da música de Dvorák, Grieg e Bruckner (SCHOENBERG, 2004, p.122), ele demonstra a ocorrência de acordes de passagem, suspensões e notas de passagem (inclusive sem resolução), explicando como trechos de análise problemática pode ser compreendidos sempre na Região da Tônica. Em um trecho de Reger (SCHOENBERG,2004, p.125), ele demonstra a ocorrência de acordes incompletos. No exemplo 113 que criou (SCHOENBERG, 2004, p.126), ele mostra como classificar as Regiões distantes. Já no seu exemplo 114 (SCHOENBERG, 2004, p.127), analisa trechos nas tonalidades homônimas simultaneamente [t/T].

Acordes Vagantes e Escalas Alteradas e Simétricas (ou Sistema de Correspondências entre Acordes Vagantes):Finalmente, dentro do contexto da Tonalidade Expandida, buscamos uma adaptação do conceito de Acordes Vagantes com o conceito de Escala de Acorde (GUEST, 1996, p.49), utilizado por improvisadores e arranjadores na Música Popular10. Através das Escalas de Acorde Simétricas Octatônica e Hexafônica; e dos Modos da Escala Menor Melódica, procuramos “gerenciar” as correspondências entre acordes vagantes. Aventamos a possibilidade de ampliação desta rede a partir dos “Modos de Transposição Limitada” de Messiaen (dos quais a octatônica e a hexafônica fazem parte), e de modos e acordes de escalas “Diatônicas Alteradas” (MILLER, 1996, p.115-124) como a Maior Harmônica e Menor Melódica #5.

Devido ao caráter múltiplo das estruturas vagantes, ou seja, a possibilidade de serem representados por vários acordes, a identificação da verdadeira função (isto é, da fundamental) de tais acordes nem sempre é explicitada pela cifra. Analisaremos primeiramente os acordes diminutos e, depois, os acordes de sexta aumentada, com o objetivo de estabelecer suas correspondências, buscando quais outros acordes seriam também representados pela estrutura analisada. Demonstraremos como essas correspondências podem ser organizadas por uma espécie de sistema derivado das Escalas de Acordes11. Com a associação de um acorde à uma Escalas de Acorde obtêm-se a possibilidade de uma gama maior de alterações. A escala correspondente a um determinado

acorde deve conter suas notas estruturais, chamadas de Notas do Acorde (fundamental, terça, quinta e sétima), e a extensão (nona, décima primeira e décima terceira) do acorde que serão as Notas de Tensão. Algumas escalas oferecem alterações específicas de notas de tensão e notas estruturais, ao que chamamos aqui de Gama de Alterações. A cifra é um elemento determinante na visualização dessa relação entre escala e acorde. Normalmente, a indicação das Gamas de Alterações encontra-se entre parênteses ao lado da cifra, como por exemplo: Ab7(b9, #11,13). TINÉ (2002) propõe a associação do acorde de Sexta Germânica à Escala Octatônica.

A possibilidade de outras dissonâncias pode derivar de duas escalas simétricas usadas pelos improvisadores para estes acordes: pode utilizar-se a escala octatônica para o acorde de 6a Ger.: Ré, Mib,Fá, Fá#, Sol#, Lá, Si, Dó, tendo como possibilidade a 9a aumentada, e a escala hexafônica para o acorde de 6a Fr: Ré, Mi, Fá#, Sol#, Sib, Dó, tendo como possibilidade a 9a maior (TINÉ, 2002, p.10).

Esse sistema de correspondência de acordes que propomos indica as múltiplas tendências possíveis a estes acordes em formar progressões ou sucessões. Indica também padrões de transformações para o acorde de Sétima da Dominante e para o acorde Meio Diminuto.

O Acorde de Sétima Diminuta e os Acordes de Sexta Aumentada e Dominantes Alteradas:O acorde de Sétima Diminuta é o primeiro tipo de Acorde Vagante demonstrado em Harmonia. É apresentado como possibilidade de imitação do modelo cadencial VIIº - I da Escala Menor Harmônica.

A introdução sistemática, de acordes estranhos à escala pode continuar, (...), tentando-se transplantar também para o acorde de sétima diminuta para onde ele não ocorre naturalmente. Para isso interessa, em primeiro lugar, apresentá-lo sobre os mesmos graus que façam lembrar um VII grau do modo menor, pelo fato de apresentar um passo de segunda menor ascendente em direção ao próximo grau fundamental próprio da escala (SCHOENBERG, 1999, p.282).

Assim, para cada grau diatônico, existirá um acorde de sétima diminuta situado uma segunda menor abaixo.

| VIIº I7M | #Iº IIm7 | #IIº IIIm7 | IIIº IV7M | #IVº V7 | #Vº VIm7 |

É aqui que Schoenberg afasta a possibilidade de transformação dos sons fundamentais, em favor da possibilidade de uma fundamental omitida. Por isso analisa os acordes diminutos como acordes com sétima menor e nona abaixada, e fundamental omitida. A verdadeira fundamental desse acorde encontra-se sobre o grau diatônico situado uma quarta abaixo do grau de resolução. No Ex.34, o acorde de sétima diminuta “C#º”, estranho à tonalidade de Dó maior, situado uma segunda menor abaixo do IIm7 (Dm7), corresponde ao acorde de Dominante secundária com nona abaixada situado uma quarta abaixo do IIm, ou seja VI7(b9) (A7(b9)). Portanto, o acorde diminuto,

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corresponde a um acorde de sétima da Dominante com nona abaixada, com fundamental omitida.

Ex.34 – Acorde diminuto visto como dominante com fundamental omitida.

A estrutura do acorde de sétima diminuta é simétrica, ou seja, compõe-se de intervalos idênticos. Por isso, suas inversões também geram estruturas idênticas, de modo que um acorde de sétima diminuta corresponda a um total de quatro acordes distantes entre si por uma terça menor. Assim, compreende-se que o sistema possui apenas três acordes diminutos e, consequentemente, suas correspondências (incluindo-se as enarmonias12). Por exemplo:

a) C#º, Eº, Gº, Bbº e seus correspondentes A7(b9), C7(b9), Eb7(b9), Gb7(b9).

b) Dº, Fº, Abº, Bº e seus correspondentes Bb(b9), Db7(b9), E7(b9), G7(b9).

c) Ebº, Gbº, Aº, Cº e seus correspondentes B(b9), D7(b9), F7(b9), Ab7(b9).

Os acordes de sexta aumentada são casos típicos de acordes vagantes. São obtidos como resultado da transformação dos graus diatônicos em Dominantes Secundárias com a quinta e nona abaixadas. Podem assumir três configurações: Acorde aumentado de quinta e sexta, chamado de Acorde de Sexta Germânica (ou Sexta Alemã); Acorde aumentado de terça e quarta (acorde de Sexta Francesa), e Acorde aumentado de sexta (acorde de Sexta Italiana). Na teoria da harmonia na música popular, esses acordes são analisados como substitutos da Dominante. Abaixo fazemos uma discussão mais detalhada sobre essas configurações no contexto da música popular, e seu potencial de tratamento como Tonalidade Expandida.

O Acorde de Sexta Germânica e a Escala Octatônica:É a primeira derivação do acorde de sexta aumentada apresentada por Schoenberg em Harmonia, demonstrado através da transformação do “acorde de quinta e sexta sobre o II grau do modo maior, elevando-se a terça e a fundamental, e rebaixando-se a quinta” (SCHOENBERG,1999, p.352). Em outras palavras, o acorde Dm7/F é transformado e assume a configuração de D7(b9, b5)/F# com a fundamental Ré omitida. Essa configuração enarmonizada corresponde ao Ab7/Gb. Numa primeira

análise, o acorde Ab7/Gb permite a adição da nota Ré (omitida), e uma vez que já contém a quinta justa, o Ré surge como nota de tensão “#11”. Assim, esse acorde seria potencialmente um Ab7 (#11)/Gb. Seguindo o raciocínio apresentado mais acima sobre a relação escala/acorde, relacionamos esta estrutura à Escala Octatônica, que oferece a seguinte Gama de Alterações.

a) X7 (b9, #9, #11, ou b5,13)

A Escala Octatônica é uma escala simétrica que promove a correspondência de vários acordes em intervalos de um tom e meio (terça menor ou segunda aumentada). Na música erudita normalmente diz-se que há apenas dois tipos de escala octatônica: Tipo A: que começa com tom-semiton (Dó-Ré-Mib......) e Tipo B que começa com semiton-tom (Dó- Réb – Mib.....) e suas diversas transposições (12 + 12 = 24 sem contar os enarmônicos).Essas escalas Tipo a e Tipo B poderiam têm equivalência na música popular com as escalas dom-dim (dominante-diminuta; cuja segunda nota é a nona maior [por exemplo Ré se estivermos em Dó Maior]) e dim-dom (diminuta-dominante, cuja segunda nota é a nona menor [por exemplo Ré b se estivermos em Dó Maior]). No entanto, se levarmos em consideração correspondência entre os acordes diminutos e os acordes dominantes demonstrada mais acima, teremos três escalas (Ex.35) para cobrir todas as possibilidades do cromático de 12 sons. O Ex.36 mostra os Acordes Diminutos correspondentes aos Acordes de Sétima da Dominante com a nona abaixada e fundamental omitida.

Assim, o acorde vagante diminuto e o acorde de Sexta Germânica são correspondentes se relacionados à escala octatônica. Tomemos como exemplo um acorde vagante cifrado como um Dº. Relacionando-o à 3ª coleção octatônica, ele torna-se equivalente aos acordes dominantes C#7, ou E7, ou qualquer outro desta coleção, podendo assumir suas propriedades funcionais. Além disso, com tal associação, o Dº passa a ter como notas de tensão disponíveis, todas as notas da gama, podendo ser utilizado como Dº 7M (9, 11, b13). Da mesma forma, um acorde dominante associado a esta coleção terá como configuração disponível, por exemplo, E7 (b9, #9, #11, 13).

O Acorde de Sexta Francesa e Escala Tons Inteiros (ou Escala Hexafônica):O Acorde de Sexta Francesa pode ser demonstrado através da transformação do acorde de terça e quarta sobre o II grau do modo maior ou menor, elevando-se a terça e rebaixando-se a quinta (SCHOENBERG, 1999, p.365). Em Dó maior, o acorde Dm7/A é transformado e assume a configuração de D7(b5)/Ab. Continuando com a associação de escalas às configurações dos acordes de Sexta Aumentada, notamos que, no caso do acorde de Sexta Francesa, não existe uma determinação quanto à nona. TINÉ (2002) sugere a associação desse acorde à Escala Hexafônica, também conhecida como Escala de Tons Inteiros. A escala simétrica Hexafônica é formada

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por sucessão de intervalos de um tom, e por isso se reduz a duas formas e suas transposições (Ex.37). A Escala Hexafônica promove a seguinte gama de alterações a um acorde vagante:

• X7 (9,#11 ou b5, #5 ou b13)

O Acorde de Sexta Italiana, a Escala Lídia (b7) e a Escala Alterada:

Exemplificado por Schoenberg através do II grau do modo maior com a quinta abaixada e fundamental omitida. Em outras palavras: Dm7/A transformado em D7(b5)/Ab com a fundamental omitida. Essa configuração confunde-se com Ab7 sem a quinta. Pelo fato de não apresentar nenhuma exigência sobre a alteração da nona e da quinta, ele permite ser associado a dois modos da escala menor melódica: (1) aquele sobre o IV grau, conhecido como modo Lídio b7, ou Mixolídio #11; e (2) aquele sobre o VII grau, conhecido como modo Superlócrio. No modo Lídio b7, ou Mixolídio #11 (Ex.38),

o Acorde Vagante pode assumir a seguinte gama de alterações: X7 (9, #11, 13).

O modo sobre o VII grau da Escala Menor Melódica é o modo Superlócrio e corresponde a um acorde meio diminuto. Porém, na prática da música popular esse modo é denominado Escala Alterada e é associado a um acorde de Sétima Dominante conhecido na teoria da música popular como Acorde Alterado. TINÉ (2002) explica que, para a consideração dessa escala,:

(...) não se considera uma sobreposição de 3as, mas de 4as (Sol#, Dó, Fá#, Si, Mi, Lá, Ré), gerando um acorde Dominante (enarmonizando do em Si#) com 9a aumentada (enarmonizando Si em Lá##), 13a menor, 9a menor e 11a aumentada, com função de V (Dominante), não de Lá (neste exemplo), mas de Dó# (maior ou menor) (TINÉ, 2002, p.5).

O Ex.39a mostra: (1) o modo Superlócrio e seu Acorde Meio Diminuto correspondente dentro do sistema de referência tercial; (2) a Escala Alterada e seu Acorde de Sétima da Dominante Alterado, no sistema de referência quartal.

Ex.35 – Coleções Octatônicas e notas disponíveis em um acorde dominante C7.

Ex.36 – Acordes Diminutos correspondentes aos Acordes de Sétima da Dominante com a nona abaixada e fundamental omitida.

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Com a inclusão do VII grau pelo sistema quartal, obtemos uma correspondência importante para o acorde de Sexta Italiana. O acorde de Sexta Italiana pode ser prolongado com nona, décima primeira aumentada e décima terceira, e assim assumir correspondência direta com um acorde cuja fundamental esteja à distância de um trítono. Este novo acorde pode ser prolongado com as notas da escala alterada, isto é, a nona abaixada e aumentada, a décima primeira aumentada e a décima terceira abaixada: (a) IV7 (9,#11,13) ou IV7 (9,b5,13); (b) VII7 (alt) ou VII7 (b9,#9,#11 ou b5, b13 ou #5). O Ex.40 ilustra a correspondência entre o modo Lídio b7 e a Escala Alterada advindos de uma mesma escala Menor Melódica.

O Ex.41 mostra as correspondências dos Acordes Dominantes relacionados ao modo Lídio b7 e à Escala Alterada. Com essas observações podemos propor que os Acordes Vagantes possam ser regidos por um sistema de relações que atua paralela e simultaneamente à tonalidade. Esse sistema, que aqui chamamos de Sistema de Correspondências dos Acordes Vagantes, faz com que os acordes de Sexta Aumentada assumam determinados padrões de configuração (Gama

de Alterações) que serão automaticamente relacionadas à coleção Octatônica; ou à coleção Hexafônica; ou aos modos da Escala Menor Melódica.

4.3.1 – Procedimentos de Expansão HarmônicaDentre os Procedimentos de Expansão Harmônica mais comuns estão a Imitação dos Modelos Cadenciais e a Omissão do Caminho. A primeira possibilidade sugere que qualquer um desses acordes possa ser precedido pelo IIm7 ou IIø e (b)II7M dos seus correspondentes, segundo os modelos cadenciais II – V.13

O Acorde de Sexta Germânica e as Coleções Octatônicas:O Ex.42 mostra os acordes correspondentes de F7 na primeira coluna, e os respectivos segundos graus cadenciais na segunda coluna.

No Ex.43 (a, b e c), mostramos como a progressão | F7 | Bbm | pode sofrer duas Expansões Harmônicas: primeiro para | Cm7 F7 | Bbm | e, depois, para | Cø F7 | Bbm |.

Ex.37 – Acordes vagantes correspondentes, segundo as duas Coleções Hexafônicas (Tons inteiros).

Ex.38 – Modo Lídio b7 ou Mixolídio #11.

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Ex.39 a e b – Modo Superlócrio e a Escala Alterada, com respectivos acordes Meio Diminuto G#m7(b5) e Sétima da Dominante Alterado G#7(alt).

Ex.40 – Correspondência entre o modo Lídio b7 e Escala Alterada advindos de uma mesma escala Menor Melódica, com respectivos Acorde Lídio b7 F7(9, #11, 13) e Acorde Alterado B7(alt).

Ex.41 – Acordes Vagantes correspondentes segundo os graus IV7 e ()VII7 da escala Menor Melódica.

Ex.42 – Possibilidades de expansão de um Acorde Dominante de Sétima (F7)relacionado à uma Coleção Octatônica.

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O Ex.44 (a, b e c) mostra seis possibilidades de Expansão Harmônica, nas quais o Acorde Vagante F7 com configuração relacionada à Coleção Octatônica pode ser precedido pelo II grau dos seus correspondentes. Esta expansão caracteriza-se por acrescentar o passo cadencial que representa a força da Subdominante. Por isso, a relação (dentro da cadência) do acorde expandido com o Dominante Vagante, pode ser bem representada pelo colchete tracejado. O acorde pode ser analisado como grau transformado com auxílio do algarismo cortado (por exemplo: VIIm7) e da alteração em parênteses, se for o caso (por exemplo: (#)VIø), seguido pelo colchete tracejado. Observamos que o colchete tracejado é utilizado na sinalização analítica de CHEDIAK (1986, p.101), apenas para indicar II cadencial do subV7. Observamos ainda que o acorde vagante F7 assumiu diferentes “roupagens”, ou padrões dentro das possibilidades oferecidas pela Coleção Octatônica, que seriam as combinações das notas nona abaixada, nona aumentada, décima primeira aumentada ou quinta diminuta e décima terceira maior (b9, #9, #11 ou b5, 13), além da fundamental, terça maior e sétima menor (1,3,7). No Ex.44a, o padrão é F7(b9,#11,13) e F7(#9,#11). Já no Ex.44b, o padrão é F7(#9, #11) e F7(b9, 13)

O Acorde de Sexta Francesa e a Coleção Hexafônica (ou Escala de Tons Inteiros):Seguindo o mesmo procedimento, temos que todos os acordes aumentados de Sexta Francesa relacionados a uma coleção hexafônica podem ser precedidos pelos segundos graus cadenciais m7 ou ø de seus correspondentes. O Ex.45 mostra o acorde F7(#5) e seus correspondentes associados à Coleção Hexafônica ( G7, A7, B7, C#7 ou D#7).

O Acorde de Sexta Italiana e os Modos da Escala Menor Melódica:Existem duas possibilidades de expansão nesse caso. Primeiro, o acorde pode ser precedido pelo seu II grau, seguindo o modelo cadencial IIm7 -V7 ou IIø - V7. Como, por exemplo | F7 | Bbm | com expansão para | Cm7 F7 | Bbm | ou para | Cø F7 | Bbm | . Segundo, o acorde pode ser precedido pelo II grau do seu correspondente (neste caso, B7). Como, por exemplo, | F7 | Bbm | com expansão para | F#m7 F7 | Bbm | ou para | F#ø F7 | Bbm | .

Diferente das escalas octatônica e hexafônica, que produzem um mesmo tipo de acorde em seus graus, a escala menor melódica produz diferentes tipos de acordes (Ver Ex.3b). Uma expansão possível e mais radical é considerar todos esses acordes como correspondentes para a expansão. LEVINE (1989, p.73-75) explica que as notas da escala menor melódica são intercambiáveis para todos os acordes de seu campo harmônico por que ela não possui “notas evitadas”, como é o caso da escala maior. Com isso, temos que os acordes da menor mélodica, a saber: Xm7M; Xm7(b9); X7M(#5); X7(#11); X7(b13); Xø(9); X7(alt); são correspondentes pois podem ser associados a uma mesma escala menor melódica. Por exemplo, Eb7M(#5) é bIII grau de Dó menor melódica, assim com F7(#11) é o IV grau e B7(alt) é o VII grau. Estas relações permitem a expansão do exemplo do parágrafo anterior,

| F7 | Bbm |, em: a) | Eb7M(#5) | Bbm |; b)| Cm7 Eb7M(#5) | Bm |; c) |Cø Eb7M(#5)| Bbm |; d) | F#m7 Eb7M(#5) | Bbm |; e) | F#ø Eb7M(#5) | Bbm |.

A Omissão do caminhoA Omissão do Caminho é um procedimento de expansão que deriva do princípio da Abreviação dos Passos das Fundamentais.14 Schoenberg apresenta essa concepção

Ex.43 (a, b e c) – Duas possibilidade de Expansão Harmônica por adição do II grau cadencial.

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Ex.44 (a,b e c) – Seis possibilidades de Expansão Harmônica de F7 - Bbm por adição do II grau cadencial dos Acordes Vagantes correspondentes.

Ex.45 – Possibilidades de expansão de um Acorde Dominante relacionado a uma Coleção Hexafônica.Nota: Para todos os acordes acima valem suas enarmonias.

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em Harmonia, no tópico “Abreviação de viragens através da omissão do caminho” (SCHOENBERG, 1999, p.500). Ao longo de seu raciocínio, Schoenberg conclui que, dentro da cadência, o passo cadencial desempenhado pela Dominante pode ser abreviado, ficando a intenção cadencial subentendida apenas com o acorde com tendência à função de Subdominante.

(..) é uma semelhante abreviação aquele tratamento da Sexta Napolitana que traz diretamente o V grau. (..) As conclusões plagais talvez sejam também algo semelhante. Talvez por isso soem imperfeitas, porque alguma coisa foi eliminada. A saber: em vez de IV-V-I ou II-V-I coloca-se IV-I e II-I. (...) No geral, abreviações desse gênero somente podem ser efetuadas em encadeamentos que possuam uma função determinada; logo, sobretudo nas cadências (SCHOENBERG, 1999, p.500-501).

Usemos com exemplo, a progressão | F7 | Bbm |. O acorde dominante F7, se associado à Coleção Octatônica, terá como configuração possível F7(b9, #9,#11,13) e como acordes correspondentes. (neste caso: Ab7; B7; D7). Aplicando-se o procedimento de Omissão do Caminho, a progressão pode ser expandida com o II grau cadencial de B7: | F#m7 | Bbm | ou | F#ø | Bbm | ; expandida com o II grau cadencial de Ab7: | Ebm7 | Bbm | ou | Ebø l de B7: | Bbm | ; expandida com o II grau cadencial de D7: | Am7 | Bbm | ou | Aø | Bbm | . Os Acordes Meio Diminutos podem ser mais apropriados para desempenhar essa função, se associados ao modo Lócrio 9, isto é, ao VI grau da escala menor melódica, com a configuração Xø(9,11,b13). Essa expansão leva a uma relação bastante remota, pois faz com que o Acorde Meio Diminuto seja considerado um Acorde Vagante, organizado por uma coleção diferente da Octatônica (no caso a menor melódica). Porém, sua relação com os acordes dentro da cadência provém das correspondências da Octatônica.

4.4 - Contexto de Tonalidade FlutuanteSegundo DUDEQUE (2005, p.124), a Tonalidade Flutuante ocorre quando se considera a existência de duas tônicas em um contexto tonal ambíguo. Assim, sua principal característica seria a incerteza, ou seja, a existência de trechos que podem ser analisados em duas Regiões. Schoenberg demonstra o papel dos acordes vagantes dentro da Tonalidade Flutuante:

Se a tonalidade deve flutuar, terá, em algum ponto, de estar firme. Porém, não tão firme que não possa movimentar-se com soltura. Para isso são adequadas duas tonalidades que possuam alguns acordes em comum, por exemplo, a Sexta Napolitana ou o aumentado de quinta e sexta (SCHOENBERG, 1999, p.528).

Em seguida, Schoenberg fornece dois exemplos de relações entre Regiões que seriam adequadas para caracterizar a Tonalidade Flutuante: (a) T (Dó maior) e Np (Réb maior); sm (Lá menor) e DMb (Sib maior); (b) Deixando-se a T oscilar contra a relativa sm, e consequentemente, a Np contra sua relativa, o que gera novas relações: sm (Lá menor) e Np (Réb maior); e T (Dó maior) e vmb (Sib menor). Nesta última, o V7 da vmb – “F7” –, corresponde ao II7(b5) –

B7(b5) – , acorde de Sexta Italiana da Intermediária [sm]. Como comentado anteriormente, a Tonalidade Flutuante seria um caso particular de Tonalidade Expandida. Esse contexto pode fazer parte da estrutura da peça, ou ser encontrado apenas em trechos da música.

4.5- Contexto de Tonalidade SuspensaEm Harmonia (1999), Schoenberg destaca duas características da Tonalidade Suspensa. Primeiro, seu aspecto melódico:

Pelo que diz respeito à Tonalidade Suspensa, depende totalmente do tema. Este deve, através de suas viragens, fornecer o motivo para semelhante liberdade harmônica (SCHOENBERG, 1999, p.529).

Depois, a predominância de Acordes Vagantes:

Sob o aspecto harmônico tratar-se-á aqui, quase que de forma exclusiva, de acordes nitidamente errantes. Qualquer tríade maior ou menor poderia, ainda que de passagem, ser interpretadas, como se fosse em si uma tonalidade (SCHOENBERG, 1999, p.529).

Portanto, suspender a sensação de centro tonal através de Acordes Vagantes em relação ao aspecto melódico e temático é um procedimento que coloca o centro tonal dentro da possibilidade teórica das fundamentais omitidas. Além disso, esta aparente suspensão seria suavizada, ou unificada, com uma condução de vozes elaborada através de Variação Progressiva (conceito que será abordado no próximo artigo, às p.70-95 desse número de Per Musi). Essas considerações apontam sempre no sentido de que os conceitos harmônicos de Schoenberg permitiriam extrapolar os efeitos clichês de re-harmonização. As relações estabelecidas sempre apontam para um centro que, com a engenhosidade das possibilidades de Expansão e consequentemente, Flutuação e Suspensão, permitem que a tônica não apareça na peça (!) e, ainda assim, apresentar uma influência incontestável sobre suas relações harmônicas.

A prática da improvisação na música popular poderia se beneficiar da comparação que Schoenberg estabelece entre a utilização da Tonalidade Suspensa e as seções formais dos desenvolvimentos [Durchfuhrung] clássicos:

Uma semelhança, não demasiado distante, já se tem nos desenvolvimentos clássicos, onde por certo o momento isolado exprime necessariamente uma tonalidade, mas tão desprendida que pode perder-se a qualquer instante (SCHOENBERG, 1999, p.529).

Os conceitos de Tonalidade Suspensa e Tonalidade Flutuante poderiam facilmente levar a generalizações ou interpretações enganosas, como por exemplo, na análise de uma peça que sugira modulações em sequência. Mas devemos ter em mente que esses conceitos são casos especiais de Tonalidade Expandida. Por outro lado, estes conceitos poderiam desempenhar um papel importante na elaboração de arranjos, como ferramentas práticas para o desenvolvimento de variações do tema e estrutura harmônica expostos nas lead sheets.

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5 – Exemplos de articulação dos conceitos em lead sheets.Nos exemplos abaixo, ilustramos a articulação dos conceitos revisados ao longo desse artigo a partir de situações encontradas na lead sheet de 9 de Agosto de 1996 de Hermeto PASCOAL (2000a) e 14 de Novembro de 1996 de Hermeto PASCOAL (2000b) para uma possível realização dessas músicas. Uma das vantagens desta abordagem é facilitar a criação de linhas contrapontísticas na sua realização. Essas linhas dão uma alternativa à realização tradicional estritamente homofônica dos acordes, e mostram o direcionamento do discurso musical e o trânsito entre as Regiões. Assim, pode-se criar mais facilmente movimentos quase-diatônicos ou cromáticos com vistas a uma realização com função centrípeta ou centrífuga do trecho.

5.1 – Criação de linhas contrapontísticas para a realização da música 9 de Agosto de 1996 de Hermeto PascoalEsta canção instrumental começa na t (Ré menor) com um prolongamento e uma cadência deceptiva até o c.7 (Ex.46). No c.9 o acorde cifrado como Bb458/G5+7 (cifra especial de voicings criada por Hermeto) é analisado como Eb(add2)/G, acorde de Sexta Napolitana sobre o II grau (Ex.47). Desta forma, os c.7-9 parecem caracterizar uma Sucessão gerada pelo prolongamento do II grau da Região da t. Porém, embora todo esse trecho possa ser analisado como prolongamento do II grau através de transformações, a continuidade do discurso nos mostra que, no lugar de um possível prolongamento, pode estar ocorrendo, na verdade, uma Progressão cujo destino parece ser a Região da Np. O primeiro fator que sugere isso é a sequência Bb7/Ab – Eb e C7/Bb – F/A nos c.8-10 (Ex.48). Este trecho parece delinear duas Regiões Intermediárias que se dirigem para a Região da Np, no c.12 (Ex.48). Essas Regiões estão sempre representadas pelo seu IV grau, e preparadas pelo I grau transformado com quinta abaixada, com baixo na sétima [I7(b5)/7ª], respectivamente, a SM (Sib maior) e a SubT (Dó

maior). Este acorde é utilizado como Acorde Vagante para conectar as Regiões da Np e da sm. Nos c.15 e 16 (Ex.49), a Região D (Lá maior) antecede o retorno da Região da t (Ré menor). No c.17, ocorre o acorde de Sexta Napolitana sobre o II grau transformado. A música se conclui sugerindo uma Região mais distante, a da S/T (Mi maior), e este distanciamento continua até a mS/T (Dó# menor).

Nos c.5-6 do Ex.46, ocorre a utilização do 6^ grau elevado seguido pelo 6^ natural. Para Schoenberg, o sexto grau elevado é utilizado para fins cadenciais. Segundo o procedimento da Neutralização, o 6^ grau elevado deve seguir ao sétimo grau elevado e este à tônica. Isso pode ser aproveitado no c.5 para criar uma linha contrapontística quase-diatônica (Qd) ascendente, ligando a nota Lá à nota Ré. Enquanto isso, outra linha, cromática (Cr) e descendente, é criada no baixo com as notas fundamentais Si, Sib e Lá.

O Ex.47 mostra como aproveitar a concepção de Transformação para obter direcionamentos das vozes transformadas. O acorde do c.7 é interpretado como sus (b9), o que permite sua leitura como IIø e V7. Com isso, a nota do baixo Lá desce para Sol de modo a configurar o acorde Eø/G. O acorde do c.8 foi analisado como transformação do II grau anterior da t através da elevação da terça Sol para Sol#, isto é um E7(b5). Uma vez configurado como Acorde Vagante e que, com isso, passa a ser utilizado como Bb7(#11). Assim, a nota Sol# é enarmonizada como Láb e naturalmente segue sua nova tendência de resolução descendente para o Sol.

Observar que o movimento dessa linha foi obtido apenas com dados extraídos da análise. Assim, podemos tratar a primeira sequência de notas Lá – Sol –Sol# como uma resolução indireta. No c.9, o acorde foi analisado como II grau transformado, por alteração da terça. Assim, a nota Mib é transformada em Mi natural. Mais uma vez, a configuração do acorde resultante é Vagante, que passa a funcionar como Dominante secundário do IV grau da Região subT, por transferência de função. Esse exemplo mostra

Ex.46 – criação de duas linhas contrapontísticas em 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal.

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como os conceitos harmônicos schoenberguianos podem esclarecer as direções inerentes ou implícitas em determinadas vozes.

Para se obter um direcionamento da(s) voz(es) transformada(s) por meio da própria cifra, observamos dois passos. Primeiro, a direção ascendente ou descendente é determinada pela transformação indicada na cifra da Região de origem. Segundo, com base na configuração resultante dessa transformação, deve-se identificar e verificar, através de sua continuação, se houve transferência de função e assim identificar as possíveis direções das vozes. Os Acordes Vagantes costumam alterar o direcionamento da voz.

No Ex.48, o acorde G7/B é utilizado como Acorde Vagante para conectar as Regiões da Np e sm como Db7(b5). A nota Ré foi trocada de oitava e assume a posição do baixo já transformada em Réb. Esse movimento, Ré – Réb, suaviza a passagem entre essas Regiões remotas, pois anuncia a Região da sm. No c.15, a Permutabilidade Maior/Menor é aproveitada para desenhar uma linha melódica em forma de resolução indireta ou cambiata. O acorde Bm7 sofre transformação da quinta, mas mantém sua fundamental baseada no II grau. Desta forma é criada uma linha cromática descendente com o Fá#, que é transformado em Fá natural e dirige-se para a nota Mi, quinta do acorde A7M. A continuação da linha é feita na direção contrária através da sensível (Sol#) da região analisada D. A sensível conduz à sétima maior do acorde Napolitano, seguida pelo Sib, terça menor do acorde cifrado Gm7, que é analisado como prolongamento do acorde Napolitano.

5.2 - Substituição cromática e quase-diatônica em 14 de Novembro de 1996No Ex.49, o acorde cifrado como B7(#9,b13) foi analisado como acorde vagante e considerado como Prolongamento do IV grau, correspondendo ao acorde F7(9,#11,13). Porém, pelo fato de ele surgir com a cifragem de seu correspondente B7, através do modelo cadencial IIø – V7, isto sugere que a nota substituta Ré# (terça maior de B7) tenha surgido quase-diatônicamente (função centrífuga), produzindo a função específica de sensível ascendente com potencial de resolução na nota Mi. Com a caracterização do Acorde Vagante, a nota Ré# é enarmonizada como Mib (sétima menor de F7), sugerindo que a mesma tenha surgido como substituta cromática (função centrípeta), com movimento em direção à nota Ré do próximo acorde.

No Ex.50, os acordes de sétima da Dominante, na sequência dos c. 5-6 podem ser realizados como estruturas de acordes vagantes. Neste caso, procurou-se criar duas linhas de contraponto à melodia de modo que, no encontro dessas linhas fosse gerado uma estrutura Vagante. Sobre os dois primeiros acordes, Dm7 e G7, interpretamos o G7 como uma estrutura Vagante semelhante àquela do modo Lídio b7. Desta forma, a voz melódica deveria delinear o modo Sol Lídio b7. Por outro lado, esse mesmo modo é encontrado sobre o IV grau de Ré menor melódica, e essa compreensão possibilita utilizar o procedimento de Neutralização para promover o surgimento da décima primeira aumentada (#11) no acorde G7. Após essa nota ser introduzida de maneira quase-diatônica, sua continuação para o próximo acorde Cm7 se dá por via cromática, de modo que a nota Dó# ,

Ex.47 – Utilização dos direcionamentos das vozes transformadas em 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Ex.48 – Transformação preparando nova Região e Cromatismo gerado por Permutabilidade Maior/Menor em 9 de Agosto de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.49 – Substituição cromática e quase-diatônica em um excerto de 14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.50 – Acordes vagantes na sequência dos c. 5-6 em 14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Ex.51 – Tonalidade Expandida com uso de cadências napolitanas nos c.8-11 em 14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.52 – Tonalidade Expandida com uso de cadência Napolitana nos c.12-17 em14 de Novembro de 1996 de Hermeto Pascoal.

décima primeira aumentada, muda seu direcionamento, movendo-se em direção a nota Dó. Esse motivo melódico é utilizado em sequência sobre os próximos modelos II-V7. Entretanto, na terceira e quarta sequências, este é executado pela terceira voz.

O Ex.51 ilustra um trecho da música que sofre uma sequência de modulações muito breves, no espaço de apenas um compasso, sempre realizadas por uma cadência Napolitana (modelo bII7M – I). No c.8, o acorde Fm7 funciona como Ab7M, dando início à sequência de cadências Napolitanas. Assim, este acorde é analisado como (b)II7M na Região da D (Sol maior). Logo depois da cadência, o I grau da D (Sol maior), é reinterpretado como IV da S/T (Ré maior). Essa Transferência de Função (ver tópico 3 acima)de I para IV, logo depois que a cadência Napolitana sofre repetições até o c.11, promove as modulações para T (Dó maior) – D (Sol maior) – S/T (Ré maior) – SM (Lá maior) – DM (Si maior).

No trecho compreendido nos c.8-11 foi analisado como progredindo da T para SM, através das Regiões Intermediárias [D], [S/T]. A Região da DM (Si maior) determina o clímax desse percurso, como uma espécie

de movimento de bordadura, pois logo depois retorna para a SM (Lá maior). A partir deste ponto, a Região da SM (Lá maior) flutua para a M (Mi maior), e retorna para a T (Dó maior), através da Np (Réb maior). Mais uma vez, todas as modulações são feitas através da cadência Napolitana (Ex.51 e 52).

6 - Considerações finaisAo rever a literatura sobre o ensino da harmonia tonal na música popular, observamos que, até a década de 1990, quase não havia materiais didáticos no Brasil (CHEDIAK, 1986, FARIA, 1991), situação que começou a mudar somente no século XXI com a publicação de trabalhos mais bem fundamentados (TINÉ, 2002; ALMADA, 2006; FREITAS, 2010). Da mesma forma, somente a partir da década de 1990 é que os trabalhos teóricos de Arnold SCHOENBERG (1993, 1999, 2001, 2004) ou sobre sua obra didática (DUDEQUE, 1997, 2004a, 2004b, 2005) começam a ser publicados no Brasil. Mas ainda são escassas as iniciativas no ensino da harmonia tonal, com seus procedimentos de afastamento da tonalidade em uma linguagem que busque a integração entre as linguagens das músicas popular e erudita. No presente artigo, buscamos rever, adaptar, propor sua utilização e aplicar na

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música popular (aqui em duas canções instrumentais de Hermeto Pascoal), os diversos Conceitos Tonais, Funções Tonais e Contextos Tonais (e seus princípios) contidos no pensamento harmônico tonal de Schoenberg.

Consideramos que as contradições extremas entre o cromatismo e o diatonicismo expostas por Schoenberg, que eventualmente levam a questões como a omissão da tônica ou a existência de duas tônicas simultâneas, representam um ponto fundamental de conexão com a música popular. Trata-se de uma perspectiva que nos permite compreender e facilitar procedimentos de performance, composição e arranjo na música popular - especialmente no seu aspectos instrumental e improvisatório – que se consolidaram no meio não letrado, mas sim a partir da experiência prática – não teórica -, vivida nos palcos e construída com base na tradição aural e oral. Como Schoenberg no seu conceito

de Monotonalidade, o músico popular consegue conviver bem e explicar grandes divagações harmônicas sem recorrer à modulação.

Finalmente, esperamos que o presente artigo (assim como o seguinte, publicado às p.70-95 desse número de Per Musi) possa contribuir para que os músicos – popular e erudito - possam melhorar suas ferramentas para compreender, arranjar, compor e improvisar musicalmente. Se o músico erudito, recorrendo à visão schoenberguiana de harmonia tonal, pode explicar melhor os trechos tonais harmonicamente mais obnubilados e perceber estruturas formais mais amplas sem recorrer à modulação, o músico popular pode, por outro lado, ampliar seu vocabulário de acordes e suas progressões e – o que ainda é raro - incluir, com mais liberdade e consciência – tanto ao nível da improvisação, do arranjo ou da composição – o pensamento contrapontístico.

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Notas1 A tradução deste conceito, do alemão para o português, feita por Marden Maluf para na edição brasileira de Harmonia, é Acorde Errante. Optamos

pela tradução de Eduardo Seincman, (do inglês para o português) de Funções Estruturais da Harmonia, Acordes Vagantes (em inglês Vagrant Chords).

2 A respeito desta concepção de Condução de Vozes, FREITAS (1995, nota de rodapé, p.4) a define como: “O domínio da harmonia que trata das técnicas de encadeamento dos acordes no que tange os movimentos melódicos (lineares) que as notas constitutivas desses acordes executam quando se combinam”

3 De outra forma poderíamos entender o acorde F#º como o IV grau de Dó maior com a fundamental alterada, possibilidade que é rejeitada por Schoenberg.

4 Derivação sugerida pelo teórico vienense Simon Sechter. 5 Essa conclusão de DUDEQUE (2005, p.112) corrobora a afirmação de SALZER (1982, p.26) sobre os movimentos estruturais. Progressões baseadas na

Progressão de Fundamentais I – V – I não são as únicas estruturas sobre as quais os movimentos encontram expressão. Isso se aplica especialmente à música de hoje que tende a evitar a obviedade inerente à relação harmônica tônica – dominante.

6 Essa observação corrobora o pensamento schoenberguiano de que a Tônica está o tempo todo sobre a influência de seus satélites, a D e a SD. As condições de equilíbrio tonal dependem da tensão entre essas duas forças sobre a Tônica. Com a interpretação de DUDEQUE (2005, p.102) sobre a

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disposição do Quadro de Regiões, onde afirma: “No lado direito estão as Regiões relacionadas e/ou derivadas da Região Subdominante, enquanto no lado esquerdo, estão as Regiões derivadas da Região da Dominante”, podemos acrescentar que as condições de equilíbrio tonal dependem da tensão entre as forças da SD – e suas Regiões derivadas ou relacionadas – e da D – e suas Regiões derivadas ou relacionadas – conforme disposição do Quadro de Regiões.

7 Esse pensamento de prolongamento tonal surge da ideia de Sucessão e Progressão Harmônica. Apesar de ser obviamente schenkeriano, o conceito de prolongamento em SALZER (1962), aproxima-se de algumas ideias de Schoenberg. Para SALZER (1982, p.16), o termo Prolongamento, pode ser aplicado à expansão de uma Progressão de um acorde para outro, ou à expansão de um único acorde.

8 Nesse exemplo extraído de Funções Estruturais da Harmonia, SCHOENBERG (2004) não utiliza a alteração da fundamental em parênteses (b), ou (#), conforme adotamos nesse trabalho.

9 DUDEQUE (2005, p.93, nota de rodapé) alerta que a compreensão do termo “prolongamento da fundamental” deve ser compreendido como “extensão da função específica da fundamental de um acorde”, e que não deveria ser associado ao significado schenkeriano do termo “prolongamento”.

10 Escala de Acorde é a escala formada pelo conjunto das notas que caracterizam o acorde, chamadas Notas de Acorde, e as notas que o enriquecem, chamadas Notas de Tensão.

11 CHEDIAK (1986, p.337), define Escala de Acorde como “o conjunto das notas disponíveis que uma cifra apresenta para formar harmonia ou linha de improviso”.

12 Sons enarmônicos são sons iguais que recebem nomes diferentes.13 A imitação do modelo cadencial IVm – V levaria à produção dos mesmos acordes, devido à característica simétrica dessas relações.14 Os passos superfortes de 2ª ascendente e descendente são considerados abreviações de dois passos crescentes (SCHOENBERG, 1999, p.181-185).

Fabiano Araújo, pianista e compositor, desenvolve tese de doutorado sobre o jazz contemporâneo, desde 2012, na Universidade Paris-Sorbonne (Paris-IV), com bolsa CAPES, junto ao grupo JCMP-OMF (Jazz, chanson et musiques populaires – Observatoire Musical Français). É Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. É Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde contribuiu para a criação o curso de Bacharelado em Música, habilitação em Composição com ênfase em Trilha Musical. Possui 4 CD’s lançados: O Aleph (2007); Calendário do Som - 9 dias (2009) de Hermeto Pascoal, gravado e publicado em Portugal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal); Rheomusi (2011) em trio com Arild Andersen e Naná Vasconcelos, e Baobab trio (2012), com peças de Radamés Gnattali, Baden Powell além de música improvisada em trio.

Fausto Borém é Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. Pesquisador do CNPq desde 1994, publicou dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen, Luis Otávio Santos e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

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Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização de duas lead sheets do Calendário do som

Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Terceira parte de estudo relacionando Arnold Schoenberg e Hermeto Pascoal em relação à harmonia tonal. Aqui adaptamos e aplicamos os conceitos de Forma e Variação Progressiva de SCHOENBERG (1994, 2006), juntamente com outros conceitos (SCHOENBERG,1984, 1993, 1999, 2001, 2004) abordados em artigo anterior (ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.35-69 desse número de Per Musi) na realização de duas canções instrumentais do livro de partituras Calendário do som de Hermeto Pascoal: 23 de junho de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.23), e 9 de Junho de 1997 (PASCOAL, 2000a, p.374), cujas partituras (PASCOAL, 2013a e 2013b) são apresentadas às p.96-98 e p.99-101 desse desse número de Per Musi.

Palavras-chave: Calendário do som de Hermeto Pascoal; teoria tonal de Arnold Schoenberg; análise da música popular brasileira e realização de cifras; variação progressiva na música popular.

Schoenberg’s Developing Variation on Hermeto Pascoal: analysis and realization of two lead sheets from Calendário do som

Abstract: Third part of a study relating Arnold Schoenberg and Hermeto Pascoal with tonal harmony, this paper adapts and applies the concepts of Form and Progressive Variation by SCHOENBERG (1994, 2006), together with some other concepts (SCHOENBERG,1984, 1993, 1999, 2001, 2004) approached in a previous article (ARAÚJO e BORÉM, 2013, pp.35-69 of Per Musi this issue) in the realization of two instrumental songs from the scorebook Calendário do som by Brazilian multiinstrumentalist Hermeto Pascoal: 23 de junho de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.23), and 9 de Junho de 1997 (PASCOAL, 2000a, p.374), which realized scores (PASCOAL, 2013a e 2013b) are also presented on pp.96-98 and p.99-101 of this Per Musi issue.

Keywords: Calendário do som by Hermeto Pascoal; tonal theory of Arnold Schoenberg; analysis of Brazilian popular music; lead sheet realization; developing variation in popular music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 – IntroduçãoEsse artigo é a terceira parte de um amplo estudo dos presentes co-autores, que articula a música de Hermeto Pascoal e a teoria musical tonal de Arnold Schoenberg. No primeiro trabalho, demonstramos como a história de vida de Hermeto Pascoal influiu diretamente na formação de suas diversas e ecléticas linguagens harmônicas (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43; BORÉM e FREIRE, 2010, p.63-79). Em seguida, revisamos e propomos uma adaptação dos Conceitos Tonais, Funções Tonais e Contextos Tonais de SCHOENBERG (1993, 1999, 2001, 2004, 2006) à música popular (ARAÚJO e BORÉM, 2013, às p.35-69 do presente volume de Per Musi), especialmente em

linguagens harmonicamente sofisticadas, como a de Hermeto Pascoal nas partituras do seu Calendário do Som (PASCOAL, 2000), duas das quais estão realizadas e editadas às p.96-98 e p.99-101 desse desse número de Per Musi (PASCOAL, 2013a e 2013b).

No presente artigo fazemos uma adaptação dos conceitos de Forma e Variação Progressiva de Schoenberg e propomos a aplicação deste referencial teórico na compreensão dos procedimentos composicionais de Hermeto Pascoal e sua performance, especialmente em relação à obtenção de linhas contrapontísticas seja na

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improvisação ou no arranjo. Para isso, selecionamos duas canções instrumentais do livro de partituras Calendário do som de Hermeto Pascoal para ilustrar essa abordagem: 23 de junho de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.23) e 9 de Junho de 1997 (PASCOAL, 2000a, p.374).

O conjunto de 366 peças do Calendário do som, bem como a maioria da vasta produção de Hermeto Pascoal, se associa à música tonal. Entretanto, seus procedimentos de afastamento e aproximação dos centros tonais, muito peculiares em relação à maioria dos músicos populares, assim como sua grafia única de cifras, revelam um pensamento estruturado que, se nasceram de sua intuição e autodidatismo enquanto músico brasileiro não letrado, encontram eco e explicação nos princípios sistematizados por outro importante compositor do século XX, o europeu Arnold Schoenberg, músico de formação acadêmica, racional.

A notação de Hermeto no Calendário do som é mais completa e criativa que a maioria dos outros compositores em suas lead sheets. Inclui, além das cifras, outros símbolos de interpretação como sinais de articulação, arpejos, efeitos como portamenti ou, ainda, anotações ao pé da página como “...tocar até cair no chão” (PASCOAL, 2000, p.66) cuja realização ele, com seu senso de humor, adverte: “. . . não escrevo andamento nem o estilo para não atrapalhar o digníssimo intérprete. Se vire” (PASCOAL, 2000, p.121). O intérprete da música de Hermeto Pascoal poderá também se fazer algumas perguntas ao buscar uma realização mais fundamentada no próprio estilo do compositor (o que inclui a realização de contrapontos e desenvolvimento motívico). Quando Hermeto não sugere arpejos nas cifras, deveríamos tocá-la em bloco? A análise da melodia poderia sugerir a utilização de notas, Motivos e Frases já existentes para gerar mais unidade na realização? As articulações originais da canção deveriam servir de material temático recorrente na realização?

Propomos aqui, que a realização da música de Hermeto Pascoal seja precedida por uma análise minuciosa e exaustiva. Entretanto, o leitor deve considerar análises mais simples, focada nos elementos mais relevantes e, por isso, talvez mais palatáveis e adequadas à rotina dos performers. Primeiro, recorremos a conceitos analíticos da teoria tonal de Schoenberg como Regiões, Acordes Vagantes, Permutabilidade Maior-Menor, Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante e Tonalidade Suspensa. Esses conceitos, amplamente discutidos em nosso artigo anterior (ARAÚJO e BORÉM, às p.35-69 desse número de Per Musi), permitem uma visão mais aprofundada e prática sobre os afastamentos e aproximações tonais a serem aventados. Depois, visando ir além de uma realização dentro do senso comum da música popular, baseada nos clichês de improvisação (como os arpejos ou “sequência[s] de acordes do mesmo tipo” citados por ZAGO, 2007), recorremos também à noção de “rapsódia” de Schoenberg, o que nos permite aproximar a improvisação de um processo composicional mais estruturado. Finalmente, nos permitimos anotar os resultados que nos

parecem mais satisfatórios, do ponto de vista musical, em forma de uma lead sheet realizada.

A realização que apresentamos consiste em reescrever a lead sheet a partir de dados da análise, como em um arranjo, mas ainda apresentado na forma de lead sheet. O objetivo é buscar elementos unificadores dentro da própria obra escrita para propor elementos de performance, criando introduções, grooves, pontes, linhas contrapontísticas, modificações na fórmula de certos compassos e até alargamento ou diminuição de certos trechos. Apresentaremos aqui os passos para elaboração da lead sheet de realização que foi usada para a gravação das canções instrumentais 23 de junho de 1996 e 9 de junho de 1997 no álbum Calendário do som – 9 dias (PASCOAL, 2009). Do processo de realização da lead sheet destacamos a produção de linhas cromáticas ou quase-diatônicas e as intervenções na forma. Se a teoria de harmonia tonal de Schoenberg é apresentada como meio pedagógico, partindo do contraponto para entender suas partes, os instrumentistas fizeram o caminho inverso, partindo da cifra para se chegar ao contraponto. Na realização das linhas contrapontísticas, os músicos recorreram a notas de passagem, bordaduras, apojaturas, escapadas, antecipações, suspensões, cromatismos e cambiatas. Essas linhas servem como esboço para a performance (e, no caso de gravação, para cada take), observando-se os contornos melódicos e figuras rítmicas, as variações de expressão e técnica: dinâmicas, articulações, intenções.

Antes de prosseguir, discutimos mais alguns problemas em torno da partitura em formato lead sheet, característica marcante da escrita da musica popular, onde apenas informações básicas como linha melódica, cifras e ritmo harmônico e, esporadicamente algumas convenções, estão contidas. Vejamos a definição de LEVINE:

“Lead sheet é um pedaço de papel que contém uma linha melódica, acordes representados em símbolos e as vezes letra da música. Usualmente, a lead sheet traz o mínimo de informação, a maior parte em código, e essa informação, principalmente quanto aos acordes; não deve ser encarada do mesmo modo que as tábuas que Moisés trouxe da montanha.” (LEVINE, 1995)

Vemos que, na prática de musica popular, estes elementos são como instruções para a performance, diferentemente da tradição de musica erudita, na qual o papel do intérprete é mais limitado e, geralmente, não se integra aos processos de compor, arranjar e, raramente, improvisar. Em sua revisão sobre a história da teoria do jazz, o musicólogo francês Laurent CUGNY (2009, p.155) relaciona este aspecto informal, sem rigor intelectual do discurso teórico que se formou ao redor da música popular, principalmente nos primeiros tempos deste discurso, como um “sintoma de um clima necessário para a improvisação” (CUGNY, 2009, p.154-155). É neste sentido que ele diz que, em relação à interpretação de lead sheets, “cada improvisador, no fundo, utiliza seu próprio sistema, sua maneira de apreender os sons – especialmente a harmonia – o que mantém abertas suas chances de encontrar uma expressão própria”.

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Em algumas anotações de pé de página das lead sheets do Calendário do som, podemos antever o processo amplamente integrado de composição-improvisação-notação-arranjo-realização de Hermeto Pascoal. Ele comenta: “Componho todas essas músicas na hora. De repente, cada dia é uma história. Viva o som!” (PASCOAL, 2000, p.88), ou “Como sempre, as minhas músicas começam com um estilo e terminam com vários. É conforme o dia e a cuca” (PASCOAL, 2000, p.84). Isso revela sua maleabilidade ao utilizar ferramentas comuns da improvisação como arpejos e sequência de acordes do mesmo tipo (ZAGO, 2007, p.3). Algumas vezes, Hermeto sugere uma instrumentação, como na música 19 de setembro de 1996: “Escrevi esta música brejeira com um instrumento bem diferente, que foi o flugelhorn. É parecido com o trompete, só que o som é mais aveludado” (PASCOAL, 2000, p.111). Para o cavaquinho, ele dedica pelo menos quatro músicas: (1) para a música 15 de setembro de 1996 ele diz “...compus esta música com o cavaquinho, estava com muita vontade de tocar com ele” (PASCOAL, 2000, p.107), (2) para a música 4 de outubro de 1996 diz “...ficou bem no estilo dele” (PASCOAL, 2000, p.126), (3) para a música 12 de dezembro de 1996 também se inspirou nesse instrumento (PASCOAL, 2000, p.195); (4) e em 29 de dezembro de 1996 junta o cavaquinho com o piano: “Esta deu um trabalho danado, porque eu compus com o cavaquinho pensando em uma harmonia. Quando cheguei ao piano me veio uma harmonia completamente estranha, claro no bom sentido!” (PASCOAL, 2000, p.212).

Esse caráter intuitivo, improvisatório e livre destas composições (escritas em formato lead sheet) de Hermeto Pascoal nos remete às mesmas características da forma musical rapsódica, apontadas por SCHOENBERG (2004, p.198) no seu Funções Estruturais da Harmonia:

O nome “rapsódia” sugere uma improvisação. [...] A excelência de uma improvisação assenta-se mais em seu inspirado imediatismo e vivacidade do que em sua elaboração. É claro, a diferença entre uma composição escrita e uma improvisada é a velocidade de produção, assunto este, relativo. Assim, sob condições apropriadas, uma improvisação pode ter a profundidade de elaboração de uma composição cuidadosamente trabalhada. Geralmente, uma improvisação irá apegar-se ao seu tema mais pelo exercício da imaginação e emoção do que, propriamente, das faculdades estritamente intelectuais. Haverá uma abundancia de temas e ideias contrastantes cujo efeito total se adquire por meio de rica modulação a regiões remotas. A conexão entre temas de naturezas tão diferenciadas e o controle da tendência centrífuga da harmonia são, em geral, obtidos de maneira apenas casual, por meio de “pontes”, e inclusive, justaposições abruptas.

Estas considerações nos conduzem à três noções de improvisação na música popular. Primero, a “improvisação escrita”, categoria na qual consideramos a escrita de Hermeto no Calendário do som. Segundo, o ato de “improvisar uma composição em performance”, que é a tendência contemporânea (a chamada música improvisada) e da qual nasce a polêmica sobre seu pertencimento ou não ao nome jazz. Terceiro, a noção tradicional de improvisação: um instrumentista solista improvisando sobre a harmonia de um standard em um ou mais chorus.

Na nossa visão, Hermeto, ao escrever suas composições improvisadas no formato lead sheet, cria uma obra que, num primeiro momento é ao mesmo tempo “fechada”, “definitiva” e “independente” (por ser escrita), mas “aberta” em seu processo de criação (por conter traços de técnicas de improvisação). Em um segundo momento, nas mãos do intérprete que a realiza, este pode escolher de não seguir o processo de leitura/interpretação voltado para a imitação dos padrões estilísticos presentes nas obras gravadas de Hermeto, ou dos padrões tradicionais do jazz (tema-solos-tema; solista/seção rítmica; etc...). Pode, ao contrário, partir para um mergulho no “texto musical” deixado na lead sheet como fonte única para a interpretação do que chamamos de “ideia musical”, no sentido shoenberguiano. Com os conceitos desenvolvidos por Schoenberg, propomos um modelo de compreensão do texto musical deixado por Hermeto para estruturar “improvisações-composições” na sua realização de modo a incluir procedimentos mais utilizados na música erudita (como a Variação Progressiva) mas cumprindo formalmente o percurso da forma (intro, seções, pontes, solos, coda), se aproximando muito das características do Arranjo.

Com a publicação dessas duas lead sheets realizadas (PASCOAL, 2013a e 2013b, às p.96-98 e p.99-101 desse número de Per Musi), propomos ao músico popular experimentar um nível mais estruturado e sofisticado nas suas improvisações (nos três sentidos evocados acima). Por outro lado, convidamos também o músico erudito a se aproximar destas práticas que na maioria das vezes, lhe parece fascinante e tão distante, como explicitado pelo pianista Nelson Freire: “Olha, eu tenho inveja de quem saber tocar jazz, incrível. . . sabe uma coisa que eu adoraria? Chega assim e, de repente. . . improvisar...eu tenho fascinação por Errol Garner. . . nunca vi ninguém com tanto prazer. . .” (FREIRE e SALLES, 2003, em [01:06:46]).

2 – Schoenberg e a apresentação da ideia musicalOs conceitos de Schoenberg sobre elementos da Forma podem ser melhor compreendidos a partir de seus manuscritos inacabados, editados após sua morte em obras como Coherence, counterpoint, instrumentation, instruction in form (SCHOENBERG, 1994) e The Musical idea, the logic and the art of its presentation (SCHOENBERG, 2006). Neles, Schoenberg quiz evidenciar a unidade e compreensibilidade musical de uma peça a partir da articulação de repetições e variações de uma ideia musical enquanto organismo vivo, em outras palavras, a Darstellung ou “...a apresentação de um objeto a um espectador de modo que ele perceba as partes compostas como se fosse um movimento funcional” (SCHOENBERG, 2006, p.2).

O conceito de Grundgestalt (Motivo Básico ou Configuração básica) evoluiu ao longo da obra de Schoenberg, sendo fundamental no seu sistema de composição dodecafônico. DUDEQUE (2005, p.135, 141) fala da preocupação de Schoenberg em formular um

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princípio de unificação e articulação musical mesmo após o abandono da tonalidade:

A retórica de Schoenberg sobre a ideia musical, forma básica, e variação progressiva depende da interpretação. O formato que uma ideia musical concreta, uma Grundgestalt, pode tomar depende consequentemente da sua aplicabilidade. Ela pode tomar o formato de uma estrutura de intervalo, um tema, uma linha melódica, ou um contorno rítmico-harmônico. De fato, a identificação analítica de uma Grundgestalt repousa no estilo e na forma, e possivelmente na aplicação analítica.

Já o conceito de Variação Progressiva, por sua vez, é usado por Schoenberg como técnica composicional desde suas primeiras composições tonais e consiste basicamente do desenvolvimento progressivo de uma ideia ou forma básica que produz relações de unificação, em vários níveis, entre os demais elementos de uma peça musical.

Para compreender a forma segundo o pensamento de Schoenberg, são importantes – além de Grundgestalt e Variação Progressiva - outros conceitos descritos por ele como Motivo, Frase, Tema, Sentença, Período, Formações Estáveis e instáveis, Ideias Principais e Subordinadas.

3 – A canção instrumental 23 de Junho de 1996A valsa-canção 23 de Junho de 1996 é a primeira das 366 composições do Calendário do Som. No alto da página o autor indica o local (Rio de Janeiro, bairro Jabour) e o título da música como em um calendário “Música escrita no dia 23 de Junho de 1996 – Hermeto Pascoal. Domingo”. Na parte de baixo da partitura, ele escreve: “Terminei à 0 hora 47 m. Viva o som, tudo de bom. sempre. Hermeto Pascoal. A vida é linda porque estamos todos sempre juntos.” Não há indicação de andamento, mas vemos alguns sinais de articulação, como portamenti nos c.8, 9, 15 e 17; e acentos e ligaduras de expressão, no c.13. Quanto à forma, temos um ritornelo curiosamente desenhado em forma de ave, e

a indicação das casas I e II. Nos c.9, 11,15-19, Hermeto indica o ritmo harmônico dos acordes, cujas cifras serão comentadas mais abaixo. Seu esquema analítico completo é apresentado no Ex.53 ao final do artigo.

3.1 - Variação Progressiva em 23 de Junho de 1996Frase Inicial:A Frase 1 é estruturada na região da t, em sete compassos, como modelo-sequência e cadência (Ex.1). Os dois primeiros compassos da peça nos dão uma pista da Ideia Básica do tema com os Motivos a e b. Estruturado sobre o I grau da t (Lá-menor), o Motivo a é formado por uma figura de 3 semínimas (Figura K), e apresenta um intervalo de 3ªM desc. (Mi-Dó) retornando para Mi por graus conjuntos. (Mi-Dó-Ré-[Mi]). O Motivo b também em semínimas, se inicia com um intervalo de 6ªm asc., retornado no sentido oposto por grau conjunto até a nota Lá. Estes dois motivos formam uma estrutura coerente, cujas características são repetidas e variadas ao longo da peça e, por isso, os dois formam a Gestalt A. Além de manterem a mesma figura rítmica de 3 semínimas (Figura K), os intervalos a1 e b1 podem ter sua origem no espelhamento das notas Dó-Ré no c.1 no Dó-Si do c.2.

Percebe-se na estrutura da Frase 1, conexões e organizações que geram uma continuidade do discurso, desde as menores estruturas (Motivos) até as maiores (Gestaltes). O Intervalo a1 (3ªM desc.) do Motivo a é variado progressivamente e alternadamente (3ªM desc; 6ªm asc; 5ªJ desc.; 7ªM asc). Do ponto de vista das características motivicas rítmicas, encontramos as figuras X, Y e Z progressivamente variadas a partir de K (Ex.2), sendo X, variada por condensação de K, enquanto Y e Z são variadas por substituição: na primeira, as três primeiras colcheias de X por uma semínima pontuada; e na segunda, 4 colcheias por uma mínima.

Ex.1– Estrutura, Motivos e Gestaltes da Frase 1, c.1-7 em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Percebe-se nesta frase um procedimento de extensão da Gestalt A, usada como modelo para a elaboração da sequência (c.3-4) e um procedimento de conclusão com a cadencia (c.5-7), nitidamente elaborada como produto da condensação da Gestalt A.

A sequência identificada como Gestalt A1, resulta inicialmente da repetição da Gestalt A uma 4ª justa acima. O Intervalo a2 (5ª justa) seria uma ampliação de a1 (3ª maior) e o Intervalo b2 (7º maior) uma ampliação de b1 (6ª maior). Esta variação da Gestalt A é importante porque duas de suas características, os intervalos a2 e b2, serão aproveitadas na estruturação de novas formas-motivo (Gestalts) nas próximas frases.

Na cadência (c.5-6) tem início o processo de dissolução das características da Gestalt A. Incialmente ela é condensada, dissolvendo a Figura K, e trazendo à luz a Figura X (semicolcheias) e o Motivo c1 (2ª menor) na

Gestalt B resultante. No c.6 percebe-se a Figura Y como derivada de X com a modificação da duração da primeira nota para uma semínima pontuada. A força desta nova forma-motivo (Gestalt C) é comprovada pela repetição de sua característica rítmica, representada pela Figura Y no c.7. Este compasso é um ponto chave da continuidade do discurso devido ao uso da harmonia Am7 como ponto de chegada da t e como IV grau da sd. A sensação de ponto de chegada é dada claramente pela cadência, e a continuidade se dá pelo aproveitamento da função subdominante menor do IV grau com repetição da Figura Y e a variação do contorno melódico da Gestalt B através dos Motivos a1 e b1 da Gestalt A.

Repetição e variação da Frase Inicial:No Ex.3 mostramos a Frase 2 como uma repetição e variação (REP/VAR) da Frase Inicial. O inicio da Frase 2 é tomado como modelo/sequência que reapresenta eventos motívicos da Frase 1, como a Figura K, e os intervalos c1 e

Ex.2 – Variação Progressiva das figuras rítmicas em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.3– Estrutura, motivos e Gestalts da Frase 2, c.8-13 em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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b2. Ressalta-se aqui a repetição e combinação de elementos variados progressivamente a partir da forma básica Gestalt A, que vai se consolidando assim como a Ideia Básica (Grundgestalt) . Nos c.10-11, define-se a Gestalt D, que pode ser vista como a soma da Figura Z e da Figura X (a primeira entendida como Variação Progressiva da Figura K através de Y). A primeira parte (c.10) da Gestalt D apresenta como elementos recorrentes da Frase 1, os intervalos b1 e b2, além do fato da passagem (Lá-Fá#-Sol) delinear uma escapada por salto. A segunda parte (c.11) tem como base um arpejo da tríade de Sol maior, cujas notas são conectadas por escapadas (Sol-Fá#-Si), (Si-Lá-Ré) e finalmente uma escapada por salto para alcançar a nota Fá do c.12 (Ré-Fá#-Fá). A sequência da Gestalt D (c.13) possui mais afinidade rítmica do que melódica.

A estrutura do tema (Ex.4) pode ser compreendida, portanto, segundo o modelo de Forma-Sentença (forma aberta) (Ex.5), com uma Frase Inicial, Frase 1 (c.1-7); uma repetição variada da Frase inicial, Frase 2 (c.8-13); uma terceira parte, Frase 3, constituída de uma repetição e variação de excertos das duas primeiras frases (c.14-16); e uma cadência, Frase 4 (c.14 em diante).

3.2 – Harmonia em 23 de Junho de 1996Essa valsa-canção em Lá menor tem apenas cinco tipos de acordes: a) Xm7(4

9); b) X7M; c) X7M (#11); d) Xm7(b5); e) X7(#9

b13); e 2 tipos de estruturas de vozes: a) X458/Y6; e b) X257+/Y. O tema é construído (e repetido) ao longo de 19 compassos, partindo da Região da t (Lá menor), e finalizado com Coda de dois compassos em uma Região remota que pode ser interpretada como a Np (Sib maior) ou, talvez, a SDNp (Mib maior).

Na organização das partes desta Forma-Sentença, a Frase 1 é estruturada na Região da t; a Frase 2, na Região da D passando pela intermediária [v] até a sd/SD. No fim da Frase 2, a tonalidade se mostra flutuante entre a sd/SD e Np e no início da Frase 3, entre a T e a sd/SD e entre a t e a M. A Frase 4 faz o retorno à t através de acordes transformados com influência da M e sd/SD e Np (no c.18), ou de expansão de Acordes Vagantes por Omissão do Caminho. A Coda reforça a possível influência da Np quando analisada com SDNp, onde o último acorde do c.18 (Abm7) é analisado não por Omissão do Caminho, mas como IVm resolvendo plagalmente em Eb7M após ser prolongado pelo acorde napolitano E7M.

Ex.4 – Estrutura, Motivos e Gestalts da Frase 3 e Frase 4, c.14-19 em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.5 – Estrutura do Tema em em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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A passagem entre a Região do v e da sd/SD nos c.11-12, é produzida pelo acorde G257M/Eb, interpretado com B7(alt)/D# no v e como F7(b5)/Eb na sd. Nesta região, o acorde Gm7 seria um Prolongamento de Bb7M, mas na Np é possível compreender F7 – Gm7 como uma cadência deceptiva. Buettner prevê essa relação como clichê de resolução, onde um acorde Dominante resolve um tom acima. O autor baseia essa resolução sob o prisma da

(...) possibilidade de respostas cadenciais em relação às tônicas relativa e anti-relativa, que possuem notas em comum com a tônica, o que possibilita a Dominante original resolver nesses outros dois acordes, além da própria tônica (BUETTNER, 2005, p,18)

Com isso, o acorde Gm7 pode ser preparado pela Dominante do seu relativo Bb7M, que seria exatamente o acorde F7.

No c.13, a relação entre os acordes Bbm7 e A7 apresenta outro caso típico de Tonalidade Expandida. O V7 (A7) apresenta-se como Acorde Vagante de sexta italiana. Esse acorde possui função múltipla, pois pode assumir a configuração de Eb7(9,13). O acorde Bbm7 provém dos procedimentos de expansão 1, onde um Acorde Vagante é precedido pelo II grau cadencial de seus correspondentes.

A relação entre os acordes do c.18 provém do procedimento de expansão chamado Omissão do Caminho 2. Aqui, a progressão Fm7 Abm7→Am7 G#7 | deve ser interpretada como derivação da progressão →Fm7 G7(alt)→Am7 G#7|. Nessa cadência deceptiva, o acorde G7(alt) é um Acorde Vagante (Acorde de sexta italiana), de função múltipla, correspondente de Db7. Conforme os procedimentos de expansão, o Acorde Vagante é precedido pelo II grau cadencial de seu correspondente, e depois ocorre a Omissão do Caminho expandida (Ex.6).

3.3 – Realização de 23 de Junho de 1996Criação de linhas cromáticas ou quase-diatônicas:A conceituação estabelecida por SALZER (1982) sobre Estrutura e Prolongamento, se aplicada sobre os elementos levantados pela análise schoenberguiana, poderá nos auxiliar na utilização prática dos elementos retirados da análise. Para ele, o conceito de estrutura e

Prolongamento é o principal fator sobre o qual a coerência tonal é baseada. Essa ideia sugere que um organismo musical fundamenta-se sobre uma estrutura que delineia um movimento com direcionamento específico para um centro. Essa base estrutural representa a opção de caminho mais direto percorrido pela ideia musical. Porém, o interesse e tensão de uma peça musical, consistem na expansão, modificação, distorção e elaboração dessa direção básica. Esses efeitos são obtidos através dos diferentes tipos de Prolongamentos.

Por exemplo, no c.8 (Ex.7), pode-se prolongar o acorde F#m7 (IIm grau), envolvendo-o com Acordes Vagantes. Através dessa análise, o músico poderá enxergar possíveis direções para as vozes de acordo com a transformação analisada, e assim, recorrer simultaneamente a uma suavização e sofisticação harmônicas nas mudanças de Região. Além disso, o Prolongamento com Acordes Vagantes produz o efeito de suspensão da tonalidade, “realçando”, ou “turvando” as passagens, como se estivéssemos trabalhando com atmosferas, num jogo de luzes e sombras em uma cena.3 No Ex.7, a conexão entre o IVm7 (Am7) e o IIm (F#m7) foi prolongada com a transformação do IVm7 em Acorde Vagante. Esse Prolongamento pode ser obtido rapidamente através dos clichês de resolução propostos por BUETTNER (2005, p.17-30) 4. Os acordes Dominantes da tônica relativa (D7M) e da anti-relativa (A7M) de F#m podem lhe oferecer respostas cadenciais. Assim, obtemos os acordes A7 e seu correspondente Eb7, que resolveriam na relativa, e os acordes E7 e B7, que resolveriam na anti-relativa. A partir desses acordes, escolhemos aquele que, com a nota da melodia na voz principal, assegure um Acorde Vagante correspondente às coleções do Sistema de Correspondência dos Acordes Vagantes 5. Com essa rápida “estratégia”, obtém-se o acorde Eb7(9, #11), que na análise schoenberguiana é uma transformação do IV grau Am7 no acorde A7(b5)/Eb. Com isso, tiramos proveito de suas possibilidades de múltiplo direcionamento das vozes6. Depois do F#m, introduzimos o I grau transformado E7(b9,#11,13) para chegar ao A7M (c.9), que havia sido prolongado pelo A#ø. Aqui, propomos uma linha que faz a antecipação do baixo A#, e que acaba por diferir da convenção rítmica da partitura original.

Ex.6 – Detalhamento do procedimento de expansão por Omissão do Caminho no c.18 de 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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O Ex.8 mostra como uma mudança de função leva à mudança de direcionamento de uma voz. No terceiro tempo do c.11, a terça do acorde B7 foi alcançada quase-diatônicamente caracterizando-se como sensível (Ré#) da Região v (Mi menor) admitindo, assim, seu direcionamento ascendente. Com a constituição vagante deste acorde e, consequentemente, com a utilização

de suas funções múltiplas, o direcionamento da nota Ré# passa a ser descendente, uma vez que esta é enarmonizada com Mib, e funcionando como sétima menor de F7, bVII7, grau expandido do acorde Gm7. Na elaboração das linhas contrapontísticas, o baixo define as fundamentais dos Acordes Vagantes B7 e F7. O Mib enarmônico de Ré# foi usado no tenor, sendo alcançado

Ex.7 – Inserção das Harmonias Vagantes A7(b5, b13) e E7 (b5, b9)/D em 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.8– Linhas contrapontísticas nos c.10-12 de 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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por uma escapada (Ré-Dó-Mi) que desenha também uma cambiata (Ré- [Dó]-Mi-Mib). Na linha cromática de passagem (Sol-Sol#-Lá), na voz contralto, o Sol# é a nona de um F#ø/A que cadencia (Prolongamento) o B7.

Nos c.13-17 (Ex.9), a Região Intermediária SD direciona-se para o I grau da M. A harmonia desse trecho é um Prolongamento do IV grau de Lá-menor. Além disso, esses acordes foram individualmente prolongados. Com isso, gerou-se uma linha contrapontística cromática, que alcança a terça maior do acorde de Dó-maior, no c.16. A linha cromática foi alcançada através do direcionamento das sensíveis dos acordes. O acorde Bbm7 do c.13 pode ser visto como um Prolongamento do Acorde Vagante A7. Esse Prolongamento foi obtido através do procedimento de expansão que implica na colocação de um acorde de Subdominante de um dos correspondentes do A7. Em seu contexto original, a sétima do Bbm7 direciona-se descendentemente para a terça do Eb7. Com isso, obtemos o movimento descendente da nota Láb para Sol (sétima do A7), que naturalmente descende para a terça do D7M. O direcionamento descendente da terça do I grau da SD

(D7M) é justificável uma vez que essa Região não quer se estabelecer, mas funciona como Região Intermediária. A linha continua seu curso descendente alcançando a sétima do Acorde Vagante C#7(alt), analisado como IV7 na SD e V7 na M, repousando na terça do C7M. Assim, a textura homofônica com os blocos de acordes é substituída por uma voz que se direciona no sentido do discurso e promove, juntamente com a melodia, um contraponto a duas vozes. No c.17, a transformação do II grau foi aproveitada para criar uma linha cromática com as notas do baixo.

Intervenções na forma de 23 de Junho de 1996:Para a Introdução (Ex.10), elaboramos um groove com os três primeiros acordes da peça: Am9, Am7/G e F7M.

A principal intervenção na forma para a lead sheet de realização se deu em função do recurso mostrado no Ex.7, a inserção de Acordes Vagantes em torno do F#m no início da Frase 2. Na primeira exposição da Tema, vamos apenas insinuar a mudança da t para a D com a progressão de acordes Eb7(#11) – F#m7(9) e as duas primeiras notas na Frase 2 (Lá – Sol#) em semínimas pontuadas (Ex.11).

Ex.9 – Linhas contrapontísticas nos c.13-17 de 23 de junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.10 – Introdução com groove elaborado a partir dos primeiros acordes da música 23 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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Com isto, quebra-se a Forma-Sentença, mas por outro lado, coloca-se em evidência a Frase 1 e cria-se uma referência da Região D. O retorno à t é feito com o mesmo acorde usado na lead sheet original, o Ab7.

Com o estabelecimento da Região da D, retorna-se à t com a Intro. Na segunda exposição do Tema, a Frase 2 é realizada com a harmonia elaborada no Ex.7 (veja acima). Porém, uma vez que a Região da D foi anunciada como referência na exposição anterior, o movimento quase-diatônico ilustrado no segundo compasso do Ex.8 (veja acima) e sua continuação cromática a partir da intepretação de G257M/Eb como Acorde Vagante, permite que a chegada ao acorde Gm7 ganhe novo relevo.

Por isso, na lead sheet de realização, propomos alongar este acorde por mais um compasso (Ex.12), criando uma sensação de estabelecimento da Região sd/SD ou Np.

Com essas intervenções, a lead sheet foi dividida em duas partes. A ponte é um groove baseado na Intro, acrescentada de uma linha interna com a nota Fá# sobre o acorde F7M. Sobre esse groove é realizado o solo de sax, que adquire assim um caráter modal. Após o solo de sax, segue o solo de piano estruturado sobre a harmonia do tema que transita principalmente entre as Regiões da t e da D. O ritmo usado é 6/4. Após o solo de piano, retorna-se à harmonia pedal da ponte, para o solo de contrabaixo, para então chegarmos à exposição final do tema.

Ex.11 – Intervenção na forma da primeira exposição da Parte A de 23 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

Ex.12 – Intervenção na forma com a chegada do acorde Gm7 em 23 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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4 – A canção instrumental 9 de Junho de 1997Esta peça apresenta uma estrutura mais complexa, em que predominam quatro acordes por compasso e uma melodia pouco convencional. O próprio Hermeto diz : “Essa música é bem linda e sofisticada, mas porém, muito cheia de energia. Viva ele [o som]” (PASCOAL, 2000a, p.374), o que já nos fornece uma pista sobre o caráter da música, embora não haja uma indicação de andamento. Vemos alguns sinais de articulação, como portamenti nos c.8, 9, 15 e 17; e acentos e ligaduras de expressão, no c.13, indicações de arpejo e ritmo harmônico dos acordes, cujas cifras apresentam normalmente a sétima e a inclusão de duas tensões. Seu esquema analítico completo é apresentado no Ex.54 ao final do artigo.

4.1 – Variação Progressiva em 9 de Junho de 1997Motivos e Gestaltes:Um Motivo pode ser um Intervalo, uma célula rítmica, um perfil melódico. O encadeamento destes motivos pode formar novas estruturas motívicas denominadas Gestaltes. No Ex.13a, b identificamos intervalos e células ritmicas como motivos.

No Ex.14a, b, c, d, e, f, identificamos os perfis melódicos. Os motivos A, B, E e F são movimentos de ligação melódica, como notas de passagem, escapadas, escapada por salto e resoluções indiretas (cambiatas). Os motivos C e D são compostos de dois saltos de intervalos diferentes em direções opostas.

O Ex.15a, b, c, d, e, mostra as Gestaltes, que são estruturas motívicas mais complexas formadas pelo encadeamento dos motivos menores. As Gestaltes A, A1 e A2 são caracterizadas principalmente pela combinação de perfis melódicos. A Gestalt B é fortemente marcada pela Figura rítmica X, sendo seu perfil melódico predominantemente uma variação do Motivo D. A Gestalt C, por sua vez, se caracteriza apenas pela Figura rítmica Y.

Exposição:O material temático principal da peça é exposto na Parte A, Frase 1 (c.1-4, Ex.16), e se constitui de duas partes contrastantes: a Frase 1A e Frase 1B. No c.1 encontram-se dois importantes motivos de intervalos: o Motivo a1 (6ªM asc) e o Motivo b1 (2ªm asc). Três perfis melódicos são definidos neste compasso: Motivo A (célula de 3 notas em grau conjunto com uma nota de passagem),

Ex.13 a, b – Motivos (intervalos e ritmos) em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.14a,b,c,d,e,f – Perfis melódicos dos Motivos em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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o Motivo B (célula de 3 notas com uma escapada) e o Motivo E (célula de 3 notas formando uma resolução indireta). O encadeamento destes motivos gera a forma-Motivo Gestalt A, e logo após sua apresentação, vemos o início de seu processo de liquidação que se estende até o c.2, delimitando assim a Frase 1A. A segunda parte, Frase 1B, consiste do alargamento do Motivo b1, e da inserção do Motivo A, formando com este encadeamento a forma-motivo Gestalt B. Nesta nova formação consolida-se a Figura rítmica X, que diminui o ritmo da evolução do discurso, tornando ambígua sua possível

função consequente na Frase 1. A Gestalt B é usada com modelo e repetida em sequência no c.4. Do ponto de vista da harmonia, a Frase 1 é estruturada na T (Lá maior) passando pela região intermediária D/v, em direção a DMb/vmb (Sol maior/menor). A liquidação da Gestalt A é estruturada sobre três transformações do III grau da T ou, como mostra a análise, sobre o VI da D/v, produzindo uma Harmonia Vagante.

Os c.5-7 parecem uma variação da Frase 1. O inicio do c.5 apresenta uma variação da Gestalt B seguida de uma nova

Ex.15a,b,c,d,e – Gestaltes com perfis melódicos dos Motivos em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.16 – Parte A, c.1-4 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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cadeia (Gestalt A1) formada por variações dos motivos A e B, presentes na Gestalt A (Ex.17). O novo Motivo D (3ªM asc. + 5ªJ desc.) é produto da conexão A-B-A. O c.6 é ritmicamente idêntico ao compasso precedente, mas produz uma nova combinação do Motivo A com Motivo D’ (uma variação do Motivo D) que se estabelece como a Gestalt A2. Finalmente, a frase se conclui com uma variação da Gestalt B com um retorno a região da t através de cadencia napolitana. Nesta variação mantém-se o componente rítmico da Figura X (elemento mais marcantes desta Gestalt), enquanto o perfil melódico se forma com um “degrau” intercalado entre a primeira e a segunda parte do Motivo D’, formando o Motivo E, que funciona como uma escapada por salto.

É notável a forma ambígua desta exposição do material temático. Por um lado, a estrutura sugere um período, sendo a Frase 1 o antecedente e a variação da Frase 1, o consequente. Por outro lado, a variação da Frase 1 poderia ser mais um produto da variação de excertos, neste caso as Gestalts, da Frase 1 (forma aberta) do que uma repetição do antecedente do período (forma fechada). Esta estrutura aberta, que Schoenberg reconhece na Forma Sentença (Ex.18), é mantida progressivamente nas próximas partes de

9 de junho de 1997. Por isso demarcamos a Parte B como um desenvolvimento e a Parte C como uma conclusão e Coda.

Desenvolvimento das Gestaltes:No início da Parte B (c.8-10) desenvolve-se a Gestalt A2, apresentada anteriormente, no c.6, como o encadeamento em semicolcheias dos motivos D’ e A. Aqui ela é variada com o alargamento do Intervalo de 7ª para 8ª Justa e com o aumento da duração das notas (de semicolcheias para colcheias). O Ex.19 mostra o mecanismo de variação do perfil melódico da Gestalt A2, do Motivo D ( 3ª + 5J) para o Motivo C (8ª + 5ª/4ªJ). Este trecho (c.8-10) forma um padrão “modelo-sequência-liquidação”. A harmonia ocorre na remota região (categoria 5) da SMvmb/smvmb (Mib maior/menor). A liquidação ocorre gradativamente a partir da sequência da Gestalt A2 passando pela região intermediária D/v, com diminuição das notas, e intensificando-se no c.10 em uma Harmonia Vagante com acordes expandidos da coleção de Lá octatônica, mas que conduzem de volta claramente à região da T.

Na cadência que se estende nos c.11-12 surge um material secundário que mescla as Gestaltes B, A2 e A1.

Ex.17 – Parte A, c.5-7 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.18 – Estrutura das partes na Forma Sentença em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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O Acorde Vagante A7 relacionado à escala octatônica passa a corresponder aos acordes C7 – Eb7 e F#7. O acorde Gø no primeiro tempo do compasso é o II grau cadencial do correspondente C7, enquanto Eø, no terceiro tempo, é o II grau cadencial do A7. O Ex.20 associa as notas da melodia (pentagrama superior) com as notas da coleção octatônica (pentagrama inferior) numeradas de 1 a 8.

Essa harmonia coopera com o retorno à região da T na Parte B (Ex.21) iniciando uma longa cadência que passa pelo IV7M, que depois prolonga do II grau através de uma transformação da função napolitana seguida de

uma derivação da menor melódica; e finalmente com o Prolongamento do V7, também por duas transformações.

Conclusão da canção e Coda:A estrutura da Parte C (Ex.23) segue o mesmo padrão “modelo-sequência-liquidação”, desenvolvendo desta vez a Gestalt B nos c.13-15. O modelo é estruturado na região da T , mas é possível também compreender a harmonia da sequência tanto (1) como um desvio à Mb (Dó maior) quanto (2) uma influência da última remota região (Eb maior/menor) em estruturas enarmonizadas, invertidas e disfarçadas por permutabilidade maior/

Ex.19 – Parte B, c.8-10 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.20 – Identificação da coleção octatônica no c.10 em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.21 – Parte B, c.11-12 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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menor. No primeiro caso, o acorde A#m7(9), c.13, é enarmonizado como Bbm7(9), e considerado um Prolongamento do Db7M, acorde napolitano na Mb (Dó maior). O próximo acorde, um B7M Lídio, pode funcionar como G7(#9,#5)/B (Ex.22), isto é, V7/3ª, como analisado no Ex.23, caracterizando uma cadencia napolitana, em direção ao C7M com o acorde Ab7M interpolado. Finalmente, no c.14 (Ex.23) através da Região Mb, inicia-se uma cadência retornando à Região da T.

Por outro lado, pode-se notar uma influência da remota SMvmb/smvmb (Eb maior/menor) que surgiria pela segunda vez no tema, mas desta vez vestida de SMSM/smsm (Ré# maior/menor). O terceiro acorde do c.13 C#m7(9) introduz a região da D (Mi maior), e por uma permutabilidade maior menor é possível visualizar a SM/sm (Fa# maior/menor) na sucessão C#m7 – A#m7. Com a reinterpretação das cifras dos acordes do c.14 (Db7M em D#7/C# e B7M em G#m/B) chega-se finalmente à SMSM/smsm (Ré# maior/menor). Este seria o caminho lógico, mas Hermeto escreve todo o c.14 em bemóis cifrado os acordes Db7M e Ab7M intercalados pelo B7M, que neste contexto seria enarmonizado por Cb7M sugerindo a enarmonização

de SMSM/smsm (Ré# maior/menor) para SMvmb/smvmb (Eb maior/menor). O Ex.23 sumariza a análise da Parte C.

A Coda (c.16-18,) apresenta uma sucessão de acordes que representa as quatro regiões harmônicas da estrutura da peça (Ex.24).

O acorde F#7M (#11) enarmonizado para Gb7M (#11) , representa o bIII grau da smvmb (Mib menor). A mesma consideração deve ser feita para o acorde G7M (#11) . Este caráter formal de resumo do conteúdo apresentado na peça (Ex.25) e reforçado com linha melódica que apresenta em ordem inversa os motivos B, b1 e a1 da Gestalt A.

4.2 – Harmonia em 9 de Junho de 1997: Regiões e Regiões IntermediáriasO primeiro movimento de regiões na Parte A (Ex.26), é o deslocamento de ida e volta da T (Lá) para a DMb/vmb (Sol) passando pela região intermediária D/v. Trata-se de um movimento para região de categoria 2a, Indireta mas próxima. A relação entre essas regiões é derivada do v (Mi). A Região D/v (Mi) foi utilizada como intermediária

Ex.22 – Reinterpretação da cifra B7M em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.23 – Parte C, c.13-15 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Ex.24– Regiões representadas pelos acordes na Coda de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.25 – Coda, c.16-18 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.26 – Percurso de Regiões na Parte A de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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com a utilização da relação direta da D com a T ,e da Permutabilidade Maior/Menor, que permite a conversão da D em v , relativa da DMb (Sol).

T(Lá) – [D/v] (Mi) – DMb/vmb (Sol) – [D/v] (Mi) – T (Lá)

Na Parte B (Ex.27) os tempos fortes da linha melódica sugerem um arpejo de Ebm. A presença do acorde Gm7 pode acusar uma possível Região Maior/Menor sobre Mib: SMvmb/smvmb. Seria uma referência à importante Região da DMb/vmb (Sol) da Parte A, isto é, Mib maior como relativa de Sol menor. O salto da T à SMvmb/smvmb é justificado pela continuação que mostra a

função cromática desta região em relação D/v que segue e auxilia, novamente, o retorno à T.

T (Lá) – [SMvmb] (Mib) – [D/v] (Mi) – T (Lá)

A Parte C (Ex.28) esclarece as relações das duas outras partes, se os c.14-15 forem analisados na Região da Mb. Essa relação direta e próxima justificaria teoricamente a ocorrência das suas derivadas DMb/vmb, na Parte A, e SMDMb, na Parte B.

T (Lá) – [D/v] (Mi) – [SMSM](Ré#)//[SMvmb](Mib) – Mb (Dó) – T (Lá)

Ex.27 – Percurso de Regiões na Parte B de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.28 – Percurso de Regiões na Parte C e Coda de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Na Coda, o movimento resume as regiões de destino e intermediárias percorridas:

T (Lá) – [DMb/vmb] (Sol) – [SMvmb] (Mib) – [D/v] (Mi) – T (Lá)

4.3 – Realização de 9 de Junho de 1997Criação de linhas cromáticas ou quase-diatônicas:A análise do c.1 nos permite criar uma linha cromática caracterizada pela transformação da sétima maior do acorde A7M em sétima menor, no segundo tempo, onde a cifragem G7M de Hermeto é analisada como I7sus/7ª, isto é A7sus/G (Ex.29). A continuação da linha leva ao Fá#.

No c.2, a nota Ré#, sensível da região D/v, é introduzida quase-diatônicamente através do Motivo E (resolução indireta quasi-diatônica) para seguir para a nota tônica (Mi), formando o Motivo b1 (2ªm asc.). As transformações dos acordes deste compasso permitem um movimento de notas vizinhas em torno da terça maior (Sol#) da região D/v. A linha criada faz o movimento de resolução indireta (Motivo E) cromática para o Sol#. Em seguida, esta nota é aproveitada para funcionar como sensível da T, ao seguir para a nota Lá, sétima do acorde Bm7, acorde neutro às duas regiões. A linha cromática reforça

o caráter transitório da D/v em direção à próxima região, DMb (Sol maior). Por isso, no c.3, assim que chegamos à nota Lá, pode-se iniciar uma nova imitação do Motivo b1 e assim produzir uma linha contrapontística partindo do Fá# para alcançar o Sib (c.4), sétima do acorde Cm7, IVm7 da DMb/vmb (Sol maior/menor).

Ao executar esta linha interna com Motivo cromático b1, anuncia-se o movimento da voz principal Dó# - Ré, ilustrado na linha A do Ex.30. O movimento completo se dirige para o Sib, conforme o traçado da linha B. O movimento de notas vizinhas sobre o Sib, ilustrado na linha C confirma o Sib como alvo e demonstra como as alterações do Acorde Vagante F7(b5), IV grau da DMb - que foi cifrado por Hermeto como B7(#9,b13) - podem ser aproveitadas para gerar esse tipo de contorno melódico e executar a função harmônica.

Intervenções na forma:Criadas as linhas para contraponto, vamos utilizar os dados da análise para interferir na forma do tema. O primeiro passo será determinar um groove para introduzir a música. Para isso vamos buscar elementos unificadores e sintéticos da peça. Destacamos a relação T – Mb, sobretudo pela presença de duas regiões indiretamente

Ex.29 – Realização dos c.1-4 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.30 - Ilustração de linhas cromáticas A, B e C no c.3 de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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relacionadas com a Mb: a [DMb/vmb] (Sol) – [SMDMb] (Mib). Como se a tonalidade flutuasse em torno destas duas regiões ao longo da peça (Ex.31).

De fato, as regiões analisadas possuem relação com a Mb (Ex.32), mas esta região ocorre claramente em apenas nos c.14-15. Os acordes que sintetizam as regiões “satélites” desta peça são, portanto, A7M e C7M. Vamos usar esses dois acordes em uma Figura rítmica derivada do Motivo Y. Na montagem do groove daremos preferência a semínima pontuada. Isso nos levou a adotar o fell de duas semínimas pontuadas sobre um compasso de ¾, alternando os acordes com um voicing A(add2) e um C(add2) a cada compasso. No fim do ciclo de quatro compassos introduzimos uma díade de sétima maior, na região média-aguda com as notas Mi e Ré#. Esse Intervalo anuncia com sonoridade distante a nota Ré# do c.2 da lead sheet original, cuja função é de 6^ da Região da D/v.

Ao final das peças do Calendário do Som, Hermeto sempre escreve uma pequena mensagem, como uma anotação de um diário. Nesta peça ele diz: “Essa música é bem linda e sofisticada, mas porem, muito meiga e cheia de energia. viva ele (sic)” (PASCOAL, 2000, p.374). Conseguimos esse contraste entre uma sonoridade leve e uma enérgica

mantendo o resultado que alcançamos na introdução com a fórmula de compasso em ¾. Por isso, esta será a primeira intervenção na apresentação da lead sheet de realização. Todos os exemplos daqui em diante serão apresentados nesta perspectiva e devem ser equiparados aos exemplos na versão original.

No. c.6, a melodia é executada em uma quartina sobre o ¾. O primeiro Intervalo de 6ªM asc. fica em segundo plano porque a nota Mi foi antecipada no último acorde A(addb2) da introdução, ficando a ênfase do tema inicial sobre o Motivo A (Dó-Ré-Mi). O segundo acorde é definitivamente cifrado como uma transformação do I grau da T, A7sus/G. Sobrepomos, portanto a linha de substituição cromática (Lá-Láb-Sol), e na nota Sol montamos o “acorde de apoio” (Sol-Si-Ré-Fá#). A linha da clave de Fá do c.2 do Ex.29 (veja acima), mais acima, será incorporada aos voicings especiais invertidos, como demonstra o c.8-9 do Ex.33. A linha Sol#-Lá (Motivo b1) fica no baixo dos primeiros dois acordes, e a continuação Lá-Sol-Sol# (Motivo E), vai para a voz superior dos dois últimos acordes. Com esta interpretação valoriza-se o Motivo b1 alargando progressivamente o valor da segunda Figura do par de semínimas pontuadas da introdução (veja Ex.35 a,b abaixo).

Ex.31 – Esquema de Flutuação da tonalidade em torno de Regiões polarizadas pela T e pela Mb em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.32 – Introdução com acordes representantes da T (Lá maior ) e Mb (Dó maior) em 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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Nos c.12-14 (Ex.34), a linha cromática B desenvolvida no Ex.30 (veja acima), é executada em uma voz interna sob um baixo pedal em Si até o acorde Cm7. Esta linha cromática enfraquece a sensação centrípeta sobre a T mesmo que seja possível analisar uma cadência II-V-I. Por outro lado, ela sugere a Permutabilidade maior/menor da região intermediária D/v (Mi) que permitirá a transição para a DMb (Sol) no c.14. O resultado é uma textura com a voz superior (Dó#-Ré) - identificada na letra A do Ex.30 (veja acima), movendo-se junto com o baixo pedal enquanto a linha ascendente B se contrapõe em movimento contrário com a melodia. Todo o trecho é um desenvolvimento do Motivo b1. No c.15 tem início a Permutabilidade maior/menor da região DMb para vmb e o Motivo E (linha C do Ex.30 acima) para realizar o Acorde Vagante F7/Cb cifrado originalmente como B7(#9,b13).

Chamamos atenção para os elementos de unidade e contraste desta primeira parte da realização. A variação da Figura rítmica da introdução (Ex.35a) nos c.8-11 faz com que a segunda semínima pontuada de cada bloco seja alargada progressivamente (Ex.35b) enquanto a textura do trecho é homofônica com acordes de sonoridade densa até se dissolver em um cluster (Sol# em oitava com e Fá#) com duração de uma mínima duplamente pontuada para antes da pausa de semínima no último tempo do c.11 pra fechar o compasso de ¾. O Ex.35a, b, c mostra que a Figura rítmica dos c.8-11 funciona como modelo em sequência variada nos c.12-15. Embora o Motivo b1 unifique toda a parte A, neste trecho (c.12-15) a textura é polifônica e Motivo rítmico é intensificado até retornar ao padrão da introdução.

Ex.33 – Parte A, c.6-11 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.34 – Parte A, c.12-17 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.35 a,b,c – Variações do Motivo rítmico da introdução da lead sheet de realização de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

A Parte B (Ex.36), que irá desenvolver a Gestalt A2, será escrita em 4/8 nos c.18-22. Esta mudança reforça o aspecto contrastante citado no comentário de Hermeto. Neste trecho, a mera contraposição da melodia com um arpejo dos acordes cifrados proporciona uma sucessão de intervalos dissonantes, sobretudo, de 7as resultando num um jogo de timbres nos pontos de encontro entre as duas vozes: 7ªm; 7ªM; 6ªaum; 7ªm; 5ªJ ; 7ªM; 7ªm; 6ªM; 5ªJ; 7ªM; 7ªm; 4ªJ; 7ªM. Na cadência napolitana para a T (c.23-24), o compasso em ¾ pontua o fim da variação da Gestalt A1 e funciona como ligação para a próxima variação.

Nos c.25-27 (Ex.37), em 4/8, utilizamos “acordes de apoio” para uma textura homofônica, e nos c. 28-39 retomamos o

arpejo nota contra nota com a melodia. Logo na entrada do trecho de Acordes Vagantes da diminuta (c.30), a fórmula de compasso retorna para ¾ por apenas um compasso para voltar a 4/8 do c.31 ao 37 (Ex.38).

Na realização da Parte C (Ex.39) a condução das vozes indica que a harmonia transitou sobre as funções indicadas com a linha tracejada.

A seção de solos é aberta para o contrabaixo improvisar sobre os acordes do primeiro compasso da parte A (Ex.40), porém com pedal em Lá. Poucas harmonia em uma seção para improvisação é típico do que se conhece como improvisação modal no jargão jazzístico. O improvisador não

Ex.36 – Parte B, c.18-24 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.37 – Parte B, c.25-30 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.38 – Parte B, c.31-37 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

improvisa sobre os encadeamentos mas sobre a escala ou modo predominante nos poucos acordes envolvidos. Neste caso, A(add9) e G(add9)/A, usa-se escalas pentatônicas de Lá e Sol, ou o modo Mi Dórico (Mi-Fá#-Sol-Lá-Si-Dó#-Ré). Porém, essas escolhas são muito particulares de cada improvisador, que pode fazer um solo mais ou menos outside. No segundo ciclo, sugere-se o acorde A(add#4) para anunciar a nota Ré# (presente no tema sobre o

primeiro acorde C#m7(9)). Esta parte, que pode ser bem livre na improvisação, sugere um pico de tensão no segundo bloco, inclusive em diálogo com a bateria.

Na parte de solo de piano (Ex.41), a harmonia retoma o frescor da sucessão A(add9) e G(add9)/A, mas após 4 ciclos ela percorre o trajeto do tema: T - D/v - DMb/vmb - D/v - T. A primeira parte na T se dá com a

Ex.39 – Parte C e Coda, c.38-48 da lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.40 – Harmonia para o solo de contrabaixo na lead sheet de realização 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Ex.41 – Harmonia para o solo de piano na lead sheet de realização de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

transformação do I grau sus com baixo na sétima. A segunda parte mostra o trecho na D/v com as transformações por Permutabilidade maior-menor. Já na terceira parte, na DMb/vmb, prevalecem os acordes na vmb mas a conclusão é o I7M da DMb, que possibilita a transição de volta para a D/v que, por sua vez, limita-se a apresentar suas duas configurações de tônica, Em e E7M. O último trecho, na T, apresenta o IV7M em um par de acordes do mesmo tipo com o da última região e segue com o contraste provido por uma cadência napolitana se dirigindo para a t. O retorno ao tema ocorre depois de um groove na T com a mesma harmonia utilizada no solo de contrabaixo. A seguir apresentamos os esquemas analíticos completos das duas canções instrumentais de Hermeto Pascoal analisadas sesse artigo: 26 de Junho de 1996 (Ex.42) e 9 de Junho de 1997 (Ex.43).

6 – Considerações finaisAdmirada no Brasil e no exterior pela sua criatividade libertária e ecletismo, a música de Hermeto Pascoal ainda causa receio ou distanciamento em muitos que gostariam de entender a lógica de suas harmonias e estruturas formais, ou simplesmente, tocá-la. Para outros, não poucos, as conhecidas “loucuras” de sua figura mística, ideias e natureza indomável de sua personalidade se reflete no “caos” de sua música. Mas trata-se de um caos aparente. Mostramos aqui que, apesar de ser um autodidata (genial!) em todos os níveis (composição, arranjo, performance), Hermeto cria sua música organizadamente, pelo menos no seu monumental Calendário do som.

Recorrendo ao legado de Schoenberg sobre música tonal, vimos que a aparente aleatoriedade harmônica e formal da música de Hermeto pode ser explicada dentro dos diversos conceitos que gravitam em torno dos conceitos de Monotonalidade, Tonalidade Expandida e Variação Progressiva, os quais tratam, respectivamente, do afastamento e aproximação da tonalidade; suspensão e flutuação de regiões tonais; e da composição rapsódica a partir de unidades formais hierárquicas.

Nas formas livres de Hermeto Pascoal observamos uma abundância de Temas e Ideias contrastantes ou conectados, a utilização de Regiões remotas em curtos espaços de tempo, a utilização de “pontes” e justaposições abruptas” para gerar e controlar as tendências centrífugas da harmonia. Observamos também a recorrência de Gestaltes organizadas segundo o padrão da Forma Sentença (forma aberta), o que sugere um estilo composicional que é fruto de um processo gradual de variação de ideias básicas.

Após a análise formal e harmônica minuciosa das duas canções instrumentais de Hermeto, seguiu-se o processo de realização, no qual foram criadas linhas cromáticas e quase-diatônica para a realização dos afastamentos tonais para Regiões remotas ou manutenção da suspensão ou flutuação tonal. Depois, foram feitas intervenções na forma a partir da interpretação e manipulação dos elementos analisados e criados elementos de arranjo como choruses com convenções para os solos de piano e contrabaixo e, finalmente, se chegar às lead sheets de realização.

Ex.42 – Esquema analítico completo de 26 de Junho de 1996 de Hermeto Pascoal.

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Ex.43 – Esquema analítico completo de 9 de Junho de 1997 de Hermeto Pascoal.

Esperamos que o presente artigo, juntamente com os anteriores, sirva de material didático no ensino da composição, arranjo e performance da música popular, não apenas de Hermeto Pascoal, mas de muito outros cuja música inspire empreitadas semelhantes. Registramos aqui a condução de um projeto de pesquisa desenvolvido pelo primeiro co-autor no Programa de Iniciação Científica da Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), que levantou, até o momento, dados analíticos das 36 primeiras peças do Calendário do Som de Hermeto Pascoal a partir dos conceitos da Teoria Tonal de Schoenberg.

Talvez esteja na simplicidade da sabedoria do músico brasileiro a chave para compreender como a racionalidade alemã de Schoenberg se encaixa como uma luva para explicar o turbilhão tropical da música de Hermeto Pascoal, que ele apregoa no primeiro dos seus dezessete Princípios da Música Universal: “A Harmonia é a mãe da música, o ritmo é o pai e a melodia ou o tema é o filho” (PASCOAL, Princípios da Música Universal, 2012).

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Referências:ARAÚJO, Fabiano; BORÉM, Fausto. A Harmonia tonal de Schoenberg: uma proposta para a análise, realização e composição de lead sheets. Per Musi. n.28. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p.35-69.BORÉM, Fausto; ARAÚJO, Fabiano. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica. Per

Musi, n.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.22-43.BORÉM, Fausto; FREIRE, Maurício. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para

flauta. Per Musi, n.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.63-79.BUETTNER, Arno Roberto von. Expansão Harmônica: uma questão de timbre. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004.CUGNY, Laurent, Analyser le jazz. Paris: Outre Mesure, 2009.DUDEQUE, Norton, E. Music Theory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874-1951). England: Ashgate,

2005._______. Schoenberg e a Função Tonal. Revista Eletrônica de Musicologia. Dep. Artes da UFPR. v.2, n.1.1997._______.

Variação progressiva como um processo gradual no primeiro movimento do Quarteto A Dissonância, K 465, de Mozart. Per Musi. v.8, jul-dez. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p.41-56.

FREIRE, Nelson; SALLES, João Moreira. Uma frustração. In: Nelson Freire: um filme sobre um homem e sua música (2003). Filme de João Moreira Salles, 2003. Vídeo de 01 hora, 36 minutos e 51 segundos, postado no Youtube por “Docspt Arte” em 16 de outubro de 2012. (2003. Acesso em 25 de janeiro 2013).

LEVINE, Marc, The jazz piano book. Berkeley: Sher Music,CO., 1989.PASCOAL, Hermeto. 9 de Junho de 1997. In: Calendário do som. São Paulo: Editora Senac, 2000a. p.374. (Partitura

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Araújo. Per Musi. n.28. Belo Horizonte: UFMG, 2013b. p.99-101. _____. 23 de junho de 1996. In: Calendário do som. São Paulo: Editora Senac, 2000b. p.23. (Partitura musical em forma

de lead sheet)._____. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Realização e edição de Fabiano

Araújo. Per Musi. n.28. Belo Horizonte: UFMG, 2013a. p.96-99. _____. Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal. Ed. de Aline Morena. Partituras. Curitiba: 30 de

setembro de 2008. In: www.hermetopascoal.com.br (Manuscrito escaneado, acesso em 24 de dezembro, 2012).SALZER, Felix. Structural Hearing, Tonal Coherence in Music. New York: Dover Publications. 1982 [1952].SCHOENBERG, Arnold. Style and Idea. Trans. Leo Black. Ed. Leonard Stein. University of California Press, 1984 [1975]._____. Fundamentos da Composição Musical. Trad. Eduardo Seincman, 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São

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Referências de gravações PASCOAL, Hermeto. Calendário do som: 9 dias . Fabiano Araújo, piano; Arild Andersen, contrabaixo;

Alexandre Frazão, bateria; Guto Lucena, saxofone. Numérica: NUM 1185, 2009. Disponível em: <http://www.myspace.com/fabianoaraujo>.

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ARAÚJO, F.; BORÉM, F. Variação Progressiva de Schoenberg em Hermeto Pascoal: análise e realização ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.70-95.

Notas1 Veja item 4.3.1 – Procedimentos de Expansão Harmônica em ARAUJO e BORÉM (2013) às p.58-62. desse número de Per Musi).2 Idem (Veja item 4.3.1).3 Essa analogia é usada por Schoenberg ao explicar o uso de acordes provenientes das relações com a subdominante menor, quando a narrativa

requer enlaces mais fluidos entre as partes: “Luzes mais penetrantes, sombras mais obscuras: a isso também servem esses acordes mais distantes (SCHOENBERG 1999, p.325).”

4 Veja também item 2.5.2 – Regiões Tonais Intermediárias em ARAUJO e BORÉM (2013) às p.44-45. desse número de Per Musi).5 Veja item 3.3 - Função de Acordes Vagantes (ou de Função Múltipla) em ARAUJO e BORÉM (2013) à p.52. desse número de Per Musi).6 Veja item 2.3 - Conceito de Notas Substitutas/Substituição em ARAUJO e BORÉM (2013) à p.40. desse número de Per Musi).

Fabiano Araújo, pianista e compositor, desenvolve tese de doutorado sobre o jazz contemporâneo, desde 2012, na Universidade Paris-Sorbonne (Paris-IV), com bolsa CAPES, junto ao grupo JCMP-OMF (Jazz, chanson et musiques populaires – Observatoire Musical Français). É Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. É Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde contribuiu para a criação o curso de Bacharelado em Música, habilitação em Composição com ênfase em Trilha Musical. Possui 4 CD’s lançados: O Aleph (2007); Calendário do Som - 9 dias (2009) de Hermeto Pascoal, gravado e publicado em Portugal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal); Rheomusi (2011) em trio com Arild Andersen e Naná Vasconcelos, e Baobab trio (2012), com peças de Radamés Gnattali, Baden Powell além de música improvisada em trio.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

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PASCOAL, H. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.96-98.

Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

Manuscrito da lead sheet da música 23 de Junho de 1996,do Calendário do Som (Hermeto PASCOAL, 2000, p.23).

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PASCOAL, H. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.96-98.

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PASCOAL, H. 23 de junho de 1996 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.96-98.

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PASCOAL, H. 9 de junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.99-101.

Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

Manuscrito da lead sheet da música 9 de Junho de 1997,do Calendário do Som (Hermeto PASCOAL, 2000, p.374).

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PASCOAL, H. 9 de junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.99-101.

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PASCOAL, H. 9 de junho de 1997 (Calendário do som): manuscrito e lead sheet de realização. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.99-101.

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MAGALHÃES PINTO, M. G. M.; BORÉM, F. O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.102-124.

Recebido em: 02/02/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo: improvisação e desenvolvimento temático

Marcelo G. M. Magalhães Pinto (UFMG, BH, MG; Eastman School of Music, Rochester, EUA)[email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

Resumo: Estudo analítico sobre as práticas composicionais e improvisatórias de Egberto Gismonti na sua música Frevo para piano, especialmente na interseção entre os procedimentos de desenvolvimento temático e improvisação. A partir da versão gravada no disco Alma (GISMONTI,1987a), cuja transcrição foi realizada pelos autores do presente artigo e publicada no presente volume de Per Musi (GISMONTI, 2013, p.125-144), observa-se como Gismonti obtém grande unidade na realização de Frevo a partir da recorrência e diversas transformações de apenas cinco motivos ao longo da obra. A análise também revela uma hibridação de elementos da música popular (frevo, jazz, improvisação) e erudita (com reflexos de métodos da técnica para piano, J. S. Bach, F. Chopin, H. Villa-Lobos, da Primeira e Segunda Escolas de Viena e do período pós-1950).

Palavras-chave: música para piano de Egberto Gismonti; práticas composicionais e improvisatórias; hibridismo entre música popular em música erudita; frevo na música brasileira.

The organized chaos of Egberto Gismonti in Frevo: improvisation and thematic development

Abstract: Analytical study about the compositional and improvisational practices of Egberto Gismonti in his music Frevo for piano, especially in the intersection between the procedures of thematic development and improvisation. Departing from the audio track included in the Alma album (GISMONTI, 1987a), which transcription was realized by the authors of the present article and published in the present volume of Per Musi (GISMONTI, 2013, pp.125-144), it reveals how Gismonti achieves great coherence in the realization of Frevo by resorting to the recurrence and varied transformation of only five motives throughout the work. The analysis also reveals a hybridization of elements from popular music (the Brazilian frevo, jazz, improvisation) and classical music (reflecting piano technique methods, J. S. Bach, F. Chopin, H. Villa-Lobos, the First and Second Vienna Schools and the post-1950 period).

Keywords: piano music by Egberto Gismonti; compositional and improvisational practices; hybridism between popular and classical music; frevo in Brazilian music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

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MAGALHÃES PINTO, M. G. M.; BORÉM, F. O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.102-124.

1 – O gênero frevo e a canção instrumental FrevoDo ponto de vista etimológico, o frevo tem origem no verbo ferver, que era pronunciado erroneamente “frever” pelas camadas sociais com menos instrução escolar (LIMA, 2005). Do ponto de vista musical, a origem da palavra sugere a agitação, efervescência e euforia características da dança frevo, remetendo, nas palavras de SALDANHA (2008, p.2) a “um êxtase do movimento corpóreo em coreografia que leva à insanidade ou delírio de animação”. Do ponto de vista social, o frevo reflete os polos opostos e ainda conflitantes da colonização escravagista do nordeste brasileiro no final do século XIX. De um lado, o frenesi dos passos acelerados (os tradicionais “chutando de frente”, “pernada”, “abre-alas”, “rojão” e “tramela”, ou os mais modernos, como “malandro”, “martelo rodado” e “meia-lua”), derivados da capoeira, ainda hoje sugerem a atmosfera de agressividade e defesa dos negros libertos no ambiente de agitação em que se encontrava o Recife do início do século XX (LÉLIS, 2007, p.27, 76). Do outro, a repressão militar, que se reflete como influência direta do dobrado das bandas militares no seu estilo e instrumentação. O próprio GISMONTI (2009) admite que o seu Frevo é muito próximo do gênero dobrado. No programa Ensaio da TV cultura, em 1992, ele narra:

[01:01] Ah...essa história de frevo... aliás, o pessoal de Olinda e Recife que me perdoe... eu acabei fazendo um frevo porque eu ouvi muito dobrado... [01:16] Tio Edgar tocava o dobrado dele [cantando uma linha do baixo, imitando um bombardino... ‘pó, pó, pó, pó-ró-ró-pó-pó”]... [01:26] e eu vim pensando nisso e fiz um dobrado que se chama Frevo [começa a tocar Frevo, cantarolado junto]... que parece que não é dobrado mas é [enquanto fala, toca acelerando o andamento]... é um frevo mas é dobrado... [05:20, após terminar de tocar] É um frevo, mas é um dobrado...aliás o [percussionista] Naná [Vasconcelos], sempre me dizia... esse teu Frevo mais parece um dobrado... mas que é um frevo! ... Naná de Olinda!...

Um grande impulso foi dado ao gênero com a criação da Fábrica de Discos Rozenblit no Recife em 1954, que dava preferência aos ritmos regionais e que, na década de 1960, respondeu por 22% da produção de discos no Brasil (VALADARES 2007, p.85-86). Embora as primeiras referências ao gênero estejam se encontrem em letras de canções (como em Sá Zeferina tá de vorta, de 1930, de Valdemar de Oliveira, na voz de Mário Pessoa) ou em títulos de canções (como Frevo Pernambucano, de Luperce Miranda e Oswaldo Santiago, de 1930, na voz Francisco Alves) (VILA NOVA, 2012, p.99-100), há uma

gravação de 1905 do frevo instrumental A Província, de Juvenal Brasil (SALDANHA, 2008, p.89). Isto reforça a ideia do frevo instrumental ter surgido antes do frevo cantado. O frevo, cujo apogeu como música radiofônica se deu entre a segunda metade da década de 1950 e o final da década de 1960, está indelevelmente associado à cultura musical de Pernambuco e foi reconhecido como Patrimônio Imaterial Nacional pelo IPHAN (Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 28 de fevereiro de 2007 (SANT’ANNA, 2007).

Diversos autores (VILA NOVA, 2012, p.36; LIMA, 2005; SALDANHA, 2008; RIBEIRO, 2008) identificam, já na década de 1930 e a partir do registro em discos e partituras, uma tipologia tripartite do gênero: (1) o frevo-de-rua, tocando ao ar livre com grupos instrumentais, especialmente com sopros e percussão em andamento rápido; (2) o frevo-de-bloco (ou marcha-de-bloco) baseado nos grupos tradicionais com instrumentos de corda das antigas marchas carnavalescas; e (3) o frevo-canção que surgiu inicialmente com a aposição de letra ao frevo-de-rua, rápido e acompanhado por instrumentos de sopro e que foi objeto de polêmica sobre sua legitimidade dentro do gênero.1 A partir de 1980, o frevo-de-rua e o frevo-canção passaram a contar com as freviocas, carros ambulantes que permitem seu acompanhamento pelas multidões nas ruas. 2 O frevo-de-rua apresenta pelo menos três variações: (a) o frevo-do-abafo (ou frevo-do-encontro, como Fogão de Alfredo Lisboa), no qual fanfarras rivais tentam abafar o som uma das outra por meio de melodias com notas agudas e de longa duração em fortissimo; (b) o frevo coqueiro (como Duda no frevo de Senival “Senô” Bezerra do Nascimento), no qual predominam trechos virtuosísticos agudos e contraponto, e, alusão ao nome, com muitas semicolcheias escritas acima do pentagrama; (c) o frevo ventania (como Tempestade de Joaquim Wanderley), no qual também predomina o virtuosismo, especialmente nos instrumentos de palheta, com predomínio da melodia acompanhada no registro médio e menos contraponto, tipicamente o saxofone com linhas “em ventania”, (LIMA, 2005; SALDANHA, 2008; RIBEIRO, 2008; C. S. ANDRADE, 2008; LÉLIS, 2007, p.69). Edson Rodrigues, citado por SILVA e SOUTO MAIOR (1991, p.66), ainda menciona, entre os novos compositores de frevo, o frevo-de-salão, que apresenta influências do jazz na harmonia e melodia. Em um relato da década de 1920, outra alusão ao jazz é

“...se o samba diverte, o frevo fere; e isto está expresso nos símbolos, na expressão visual, na música e na dança do frevo.” (Depoimento de

Paula Valadares a MÜLLER, 2006)

“...surgiu das camadas menos favorecidas, que ‘resistiam’ ao poder das elites, e que hoje resiste aos poderes do mercado, que não o

privilegiam...” (MÜLLER, 2006)

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feita em relação à sensação de “caos” contrapontístico que pode causar no ouvinte:

“O ensaio geral do Clube Vassourinhas veio varrer os últimos resquícios de tristeza da alma romântica da cidade... Ontem, quem esteve na Rua Nova, na Praça da Independência e na Rua Imperador, ali por volta das 24 horas, viu claramente o que quer dizer: frevo pernambucano...Um delírio, um frenesi, um arranca rabo de todos os diabos... A música, numa apoteose jazz bandesca, desequilibrando todas as acústicas num verdadeiro pandemônio de tons”. (trecho do Diário de Pernambuco de 29 de fevereiro de 1924, citado por RABELLO, 2004, p.127).

Outras características estilísticas importantes do frevo são: predomínio da forma canção [A :║ B :║ A] (muitas vezes com pontes ligando as Seções A e B), andamentos rápidos, com pulsação binária em 2/4 (às vezes escrita em 4/4), introdução melódica com anacruse, longos fraseados em movimento ascendente ou descendente, trechos em cromatismo, escrita virtuosística e finais apoteóticos (SALDANHA, 2008; RIBEIRO, 2008). Já em relação ao andamento, o dossiê do frevo no IPHAN (LÉLIS, 2007, p.66) faz referências aos andamentos típicos de frevo: semínima entre 100-120 para o frevo-de-bloco; 130-150 para o frevo-de-rua, e até 140-160 para o frevo-canção.

Estilisticamente, Frevo de Egberto Gismonti faz alusão ao frevo coqueiro, com suas passagens no registro agudo, virtuosismo e instrumentação contrapontística. Já sua utilização de harmonia modal, acordes alterados e improvisação na forma remete ao frevo de salão. Na performance de Frevo no disco Alma, Egberto Gismonti, refletindo sua formação erudita no piano, utiliza um andamento ainda mais virtuosístico, com semínima variando entre 224 e 232, o que torna esta versão, com toda a complexidade de suas polirritmias, difícil mesmo para pianistas experientes.

Como muitas outras expressões musicais populares, o frevo foi se adaptando ao longo de sua história a demandas como inclusão de letras, forma de apresentação, participação do público e acústica dos ambientes, o que gerou mudanças e variações na instrumentação de suas bandas:

“A instrumentação do frevo-de-rua é, pois, a instrumentação emblemática do gênero. É a orquestra de instrumentos de sopro e percussão, com predomínio de instrumentos de bocal (trompetes, trombones, tuba) e participação de instrumentos do naipe dito “das madeiras” (embora alguns destes instrumentos sejam hoje feitos de metal): saxofones, clarinetes, requinta, flauta e flautim; a percussão composta de surdo, caixa e pandeiro. Esta seria a formação mais clássica, diretamente inspirada das bandas marciais. Na prática mais recente, porém, os instrumentos de sopro têm-se resumido a saxofones, trompetes e trombones, e se têm adicionado alguns instrumentos eletrônicos, como teclados, guitarra e baixo elétrico (este último bastante comum como substituto da tuba)”. (LÉLIS, Org., 2007, p.63).

Na sua visão do frevo, Egberto Gismonti buscou refletir a instrumentação típica do gênero, explorando registros e timbres no piano, de modo a sugerir a interferência marcante dos metais, as linhas melódicas rápidas e sincopadas das madeiras, a articulação explosiva da

percussão, combinadas em complexas polirritmias resultantes dessa interação.

Embora existam duas partituras do Frevo publicadas pelo próprio Egberto Gismonti - uma incluída no encarte do disco Alma (GISMONTI, 1987b) e outra publicada pela Éditions Gismonti Suisse (GISMONTI, s.d.) -, preferimos outra fonte primária para esse trabalho: a gravação em áudio incluída no disco Alma (GISMONTI, 1987a), que, além das seções da forma canção AABA, contem ainda uma Ponte, uma Coda e uma importante seção de improvisação com seis choruses de recapitulação da Seção A. Nessa gravação, Gismonti também inclui discretas intervenções dele e de Nando Carneiro no teclado eletrônico como ambiências e reforço tímbrico-harmônico em [01:10 da gravação] (ou c.73 da partitura transcrita), [01:32] (ou c.94), [01:59] (ou c.122), [03:40] (ou c.226), [03:54] (ou c.242) e [05:53] (ou c.347) . A partir dessa gravação, os autores do presente artigo realizaram a transcrição da partitura de Frevo (processo no qual foram utilizados os softwares Finale e Amazing Slow Downer), sem a parte de teclado eletrônico da gravação. Em relação às dinâmicas nessa transcrição foram anotadas apenas algumas sugestões a partir da gravação, mesmo porque o próprio Gismonti questiona a colocação desses sinais nas partituras de suas músicas:

...não posso jamais escrever e entregar porque se acabaram os dias em que as salas de concerto eram o local de se tocar música. Hoje se toca em botequim, em clube...Todas as salas de concerto tinham condições acústicas de se tocar aquilo que estava escrito. Hoje não existe... Não adianta estar escrito...depende da qualidade do instrumento. Você não vai conseguir [realizar em] piano e você vai tocar mal a música... (Depoimento de Gismonti a SILVA, 2005, p.29).

A partitura da transcrição de Frevo utilizada na análise está publicada integralmente no presente volume de Per Musi (GISMONTI, 2013, p.125-144).

2 - Egberto Gismonti no Frevo: compositor-instrumentista, erudito-popular Egberto Gismonti nasceu em uma família musical na cidade do Carmo, Rio de Janeiro, em 1947. Começou a estudar o piano erudito por influência do pai libanês e o violão popular por influência da mãe italiana. Com naturalidade, aplicava a técnica de instrumento erudito ao popular. Sua formação erudita ao piano o inspirou a transcrever trechos do Cravo bem temperado de J. S. Bach para o violão (BERNOTAS, 2008). Egberto comenta sobre sua naturalidade nesse trânsito na linguagem dos dois instrumentos:

... se você pega uma criança de 6, 7 anos de idade e começa a falar 3 línguas como ela, quando tiver 10, fala as 3 línguas e não sabe que tem diferença de uma para a outra. Música para mim foi assim. Comecei a estudar e a tocar dois instrumentos ao mesmo tempo. [Somente] Hoje em dia eu tenho consciência de que violão não tem nada a ver com piano e vice-versa (Depoimento de Gismonti a WANDER, 2007).

De fato, a grande extensão do piano acabou levando Egberto a encomendar violões personalizados com 8, 10, 12 e 14 cordas, os quais ele utiliza com diversos

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Ex.1a,b, c – Trechos virtuosísticos com escalas (2a), arpejos (2b) e trinados (2c) em transformações do Motivo b e Motivo e de Frevo (para lista e descrição dos motivos, veja Exs. 7 e 8, à frente): herança dos estudos de técnica

pianística de Gismonti em conservatório.

tipos de afinação, reforçando a ideia de ampliação da escrita idiomática e das práticas de performance com base no piano:

Basicamente, eu sou um pianista que toca violão. Devido à extensão do piano eu afinei meus ouvidos para intervalos maiores que os intervalos do violão. Esta é a principal razão de usar mais cordas. As afinações são diferentes para cada violão, mas todos eles têm cordas mais altas nas 7ª e nas 9ª (Depoimento de Gismonti a GILMAN, 2009, tradução nossa).

Com relação às influências dos nove anos de estudo em conservatório (SILVA, 2005, p.10), é evidente a herança do repertório tradicional do piano sobre seu estilo crossover. No Frevo, ouvem-se diversos ecos de exercícios de métodos

da técnica básica do piano realizados em andamentos rápidos, como trechos de escalas (em que as mudanças de posição com forma de mão direita completa foi utilizada idiomaticamente) iniciados com um ornamento (c.231; Ex.1a), arpejos (c.92, 94; Ex.1b) e trinados (c.81; Ex.1c). Mas não se trata de uma utilização gratuita da técnica, mas de transformações de motivos básicos da peça com o objetivo de desenvolvimento temático (veja lista de motivos básicos no Ex.8 e Ex.9 abaixo).

Podem-se observar também reminiscências de dedilhados próprios do repertório romântico, como a alternância entre 1-4 e 2-5 na mão direita para realizar longas sequências de intervalos de sextas e quintas paralelas. Típicos do pianismo do século XIX, essa técnica aparece, por exemplo, no Étude Op. 25 Nº 8 de Frédéric Chopin (c.1;

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Ex.2a) e recorre em toda a Subseção D (para saber das características de cada subseção, veja Exs.8 e 9, à frente) de Frevo (c.148; Ex.2b), que podemos considerar “a seção romântica” dessa peça.

Reflexos do pensamento contrapontístico e da complexidade rítmica da tradição musical alemã, epitomados nos modelos deixados por J. S. Bach, podem ser ouvidos na música crossover de Gismonti. A condução de vozes no estilo de melodia polifônica (ou falsa polifonia, em que uma voz permanece estática e a outra se move, como ocorre no Prelúdio BWV 848 de BACH (c.2; Ex.3a), pode ser percebida também no trecho do Frevo (c.226; Ex.3b).

A mesma complementaridade entre vozes simultâneas que se observa no Prelúdio BWV 867 do Cravo bem temperado de J. S. Bach (c.13; Ex.4a) é também sugerida por Gismonti no tratamento improvisatório da Subseção A11 que leva à Coda do Frevo (c.333; Ex.4b). Essa utilização de uma mão esquerda autônoma dialogando com a mão direita na apresentação de materiais temáticos é incomum no piano popular. Ainda no Ex.4b, o Motivo c é tratado com um pontilhismo espacializado pós-weberiano, outra abordagem arrojada entre os pianistas populares, que a encaixariam dentro da linguagem que chamam de outside.

Mas o nível de complexidade rítmica que Gismonti propõe trazer para a seara da música popular instrumental vai além da polifonia de Bach ou o pontilhismo de Webern. Gismonti afirma que Ravel o atraiu por suas orquestrações inovadoras e o contraponto presente nos seus chord voicings (BERNOTAS, 2008). Depois de tocar Frevo no Teatro Colón, em Buenos Aires, no dia 21 de abril de 2003, em um concerto que considera uma de suas performances mais inspiradas e tecnicamente perfeitas (SILVA, 2005, p.17), ele mencionou a complexidade desta obra:

Esse concerto do Colón é um bom parâmetro. Eu não me lembro nesses 30 anos, tocando profissionalmente, de eu ter tocado 90 e tal minutos com uma concentração e uma precisão

muito raras... O “Frevo” do Colón é uma das coisas mais complexas que eu já ouvi como resultado do piano que eu toco. É complexo no sentido da polifonia. Quando eu ouço esse troço, eu digo ‘mas caçamba, eu nunca tinha tocado esse troço assim!’

De fato, no trecho da Subseção B mostrado no Ex.5, da esperada pulsação binária (ainda que sua escrita original tenha sido em 4/4), ele se lança a uma intrincada polirritmia cuja inspiração lembra a rítmica dos bateristas outside, em que a mão direita faz um desenho ascendente firmemente ancorado na métrica 3/8, enquanto que a mão esquerda, realizando padrões de síncopes inusitadas na métrica 2/4, não fornece um apoio sólido.

Ex.2a, b – Dedilhado com sequência de sextas e quintas na mão direita do piano: Étude Op. 25 Nº 8 de Frédéric Chopin (2a) e Subseção D de Frevo de Egberto Gismonti (2b).

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Ex.3a, b – Melodia polifônica no Prelúdio BWV 848 do Cravo bem temperado de J. S. Bach e no Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.4a, b – Complementaridade de vozes no Prelúdio BWV 867 do Cravo bem temperado de J. S. Bach e no Frevo de Egberto Gismonti, que também mostra pontilhismo no tratamento do Motivo c.

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Além da forte influência da música francesa e da música da 2ª Escola de Viena, os estudos de Gismonti com Nadia Boulanger e Jean Barraqué em Paris (BERNOTAS, 2008) podem ter colocado Gismonti com elementos típicos da música pós-1950, como a utilização do colorismo não-funcional dos clusters (c.84, 105; Ex.6a, b),

Mas essa forte influência europeia não impediu que a música de Gismonti soasse irremediavelmente brasileira, com sugere uma comparação de trecho descendente entrecortado após síncope do Frevo (c.10; Ex.7b) com trecho semelhante do Martelo, que constitui o segundo movimento das Bachianas Brasileiras N.5 de H. Villa-Lobos (c.30; Ex.7a).

Ex.5 – Complexidade rítmica na Subseção B do Frevo de Egberto Gismonti, comuns em polirritmias jazzísticas.

Ex.6a, b – Ocorrência de clusters no Frevo de Egberto Gismonti: traços da música erudita pós-1950.

Ex.7a,b – Linha melódica descendente entrecortada após síncope no Martelo das Bachianas Brasilerias N.5 de H. Villa-Lobos e no Motivo c do Frevo de Gismonti.

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Gismonti fala não só sobre a importância de Villa-Lobos no seu desenvolvimento como músico, mas também de outro ícone do nacionalismo brasileiro:

O Villa-Lobos foi o sujeito que teve a parabólica mais bem instalada no Brasil. E o mentor da parabólica do Villa-Lobos – parabólica é coisa positiva; quer dizer “antenado” com o Brasil – foi o Mário de Andrade (Depoimento de Gismonti a AMARAL, 2007).

Essa admiração pela cultura brasileira e sua excelência instrumental tanto no piano (de tradição erudita) quanto violão (de tradição popular) reflete bem a síntese que Gismonti sempre buscou e que passou a ser também um modelo para as gerações seguintes. OLIVEIRA (2009, p.17) comenta esta trajetória de Gismonti, na qual foi um dos responsáveis pela inclusão do repertório crossover no meio erudito, facilitando

... a adoção de várias obras que anteriormente eram somente aceitas no ambiente da música popular em recitais de violão erudito. Vários concertistas ativos [como Sérgio Assad] naquele período se aventuraram em projetos de gravações e concertos com obras de caráter popular...,

e também por influenciar estilisticamente compositores reconhecidos internacionalmente como Sérgio Assad (OLIVEIRA, 2009, p.145-147, 193, 213). MELO (2007) comenta sobre a presença e a transfiguração dos traços folclóricos na obra de Gismonti, o que observaremos na análise de Frevo:

Egberto é um artista brasileiro cujos rótulos dizem muito pouco sobre sua música. É difícil negar seus traços “populares”, ainda que bem mais complexos que as manifestações folclóricas ou da música popular de massa que tomou a forma das canções. O estatuto do “popular” em sua obra é sempre refletido e mediatizado nos procedimentos composicionais. O regional nunca vai sem uma pitada de novidade ou sem um sentimento de traição com o passado e com a herança cultural.

Mas no círculo de músicas que o influencia, Gismonti não excluiu a dita música de massa. Em entrevista publicada no site Clube do Jazz (PIRES, 2004), Gismonti vê com bons olhos a oportunidade de receber influências as mais diversas e, por isso, parece não se impor preconceitos com relação a quaisquer formas de expressão musical:

Passados uns tempos, a Bianca, minha filha que toca piano, me disse: “Eu só queria um disco da Madonna.” “Mas da Madonna?”; “É. Da Madonna”. Eu não gostava nada da Madonna; comprei o disco. Ela pediu mais um, e depois outro. Até que um belo dia está minha filha sentada, feliz como o diabo. E eu feliz como o diabo pela felicidade dela. E o disco da Madonna tocando. Aí entendi que não tem música nem músicos que eu possa julgar. Tem música, ou músicos de que eu preciso para viver. A partir desse dia, qualquer discriminação que eu tinha acabou (Depoimento de Gismonti a AMARAL, 2007).

A improvisação entrou na carreira de um dos nossos maiores multi-instrumentistas de maneira inusitada quando, durante uma excursão no EUA, o percussionista Airto Moreira, repentinamente, deixou Gismonti sozinho no palco, que diz: “...sem partitura, sem ensaios, sem saber o que fazer. Era tocar de improviso ou sair correndo. Toquei e deu [um] estalo, numa emoção pura que nunca tinha sentido.”

(CRYSÓSTOMO, 1976, p.119). Mas foi após sua experiência de várias semanas, em 1977, entre os Yawalapiti da Amazônia, a tribo do índio Sapain, que a música de Gismonti se tornou “... mais espontânea e ele passou a se preocupar com a busca de uma integração entre o músico, a música e o instrumento.” (McGOWAN e PESSANHA, 1991, p.158).

Embora se refira ao sentido mais geral da trajetória de Gismonti, a reflexão de GODOY (2000, p.60-61) sobre a postura do músico experiente se organizando frente ao inusitado ou novo pode também ser estendida ao universo mais localizado de suas performances. Quando Gismonti relata, a partir de sua experiência de ser convidado a entrar na oca sagrada dos índios do Xingu, que “... ‘Embora não existissem portas, paredes ou grades... o primeiro passo era ver o limite... cujo espaço interior muito reduzido... vivências intensas... componentes direcionais, dimensionais, componentes de passagem ou de fugas... se faziam simultâneos ou se misturavam...” (Depoimento de Gismonti a Carlos FREGTMAN, 1989, p.32). Recorrendo à sua fala, fazemos uma analogia para preparar nossa análise da realização de Frevo, em que Gismonti parece “ver o limite” de sua expressão musical a partir do “espaço interior muito reduzido” do material temático sucinto que escolhe, mas que lhe permite “vivências intensas” pela forma com que organiza, em tempo real, seus “componentes”, que “se fazem simultâneos ou se misturam”.

Egberto Gismonti é um músico com vasta produção. Nos 17 anos que separam seu primeiro disco - Egberto Gismonti de 1969 e o disco Alma de 1987 (GISMONTI, 1987a), ele lançou uma media de mais de dois discos por ano. Em relação ao disco Alma, seu conteúdo enfatiza o piano (mas com intervenções de instrumentos de teclado eletrônicos em diversas faixas) em uma atmosfera bastante intimista, dentro da linguagem tonal. Entretanto, pode-se observar que o recurso da fragmentação melódica - uma clara herança do pontilhismo erudito do século XX (de Webern ou Varèse) – é recorrente no disco, e fundamental no discurso de Frevo. Oito anos depois de lançar Frevo, Egberto revisita o gênero pernambucano e compõe Sonhos do Recife em 1995, obra analisada por SILVA (2005).

3 - Análise formal, motívica e harmônica de Frevo Embora frevos geralmente sejam escritos no típico compasso binário 2/4 das marchas militares, podem ocasionalmente aparecem em compasso 4/4, como é o caso de Frevo. Entretanto, embora Egberto Gismonti tenha anotado Frevo em compasso quaternário (talvez para facilitar a escrita), percebe-se, pelas suas acentuações, que sua realização é binária.

Devido à sua natureza improvisatória, a versão de Frevo tocada por Gismonti no disco Alma (cuja partitura é apresentada às p.125-144, desse número de Per Musi) parece se encaixar no conceito da forma rapsódica de SCHOENBERG (2004, p.198), pois

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... sugere uma improvisação... [com seu ] seu inspirado imediatismo e vivacidade [mais do que ]... elaboração...mais pelo exercício da imaginação e emoção do que, propriamente, das faculdades estritamente intelectuais... abundância de temas e ideias contrastantes ... “pontes”...justaposições abruptas...

Em que pese apropriações mais recentes do jazz no choro, SÁ (2000, p.66-70) fala de características que diferenciam o improviso na linguagem tradicional desse gênero popular brasileiro do improviso no gênero norte-americano:

Pegando seu Bandolim Joel [Nascimento] tocou cerca de cinco vezes o ‘Ingênuo’ praticamente sem alterar uma nota sequer, mas modificando todas as divisões rítmicas... [ao contrário do jazzista] O chorão, por sua vez, manifesta sua capacidade improvisadora fundamentada muito mais na melodia do choro que está interpretando, sendo a harmonia mais um decurso do que propriamente a ideia central ao redor da qual seria realizado um improviso... dar a ele próprio o direito de contribuir simplesmente com alguns ornamentos... [há também] O ‘molho’... através de uma mudança de métrica melódica... antecipa ou adianta uma nota ou um grupo de notas... não existe um improviso nascido de divagações... mordentes, glissandos, apojaturas, grupetos, entre outros, se dá de forma imprevisível... numa espécie de interstício entre improviso e variação melódica... Trata-se, por conseguinte, de uma variação melódica.

Podemos observar que se Gismonti recorreu à prática do jazz de realizar diversos choruses nessa versão de Frevo, por outro lado preferiu valorizar as características improvisatórias mais afins como aquelas descritas acima para o choro tradicional: alterações rítmicas (por antecipação, retardo, diminuição, aumentação, fragmentação), variações melódicas, espacialização de alturas, o “molho” pela adição e exclusão de notas, ornamentos, sem “divagações” que o levassem para

fora do universo temático de poucos motivos com que constrói a obra.

Gismonti constrói essa versão de Frevo (inclusive os trechos improvisados, o que a deixa com um total de 352 compassos) com base em apenas cinco motivos temáticos (Motivos a, b, c, d, e; veja Ex.8) e nas recorrências de suas transformações (Ex.8). Quatro desses cinco motivos ocorrem já nos primeiros 14 compassos, cinco deles são apresentados na Seção I e o último aparece no início da Ponte (c.66). O Motivo a (c.1), em arco, é caracterizado por um arpejo descendente em semínimas finalizado com síncope de colcheia em grau conjunto ascendente. O Motivo b (c.9), também em arco, sobem com um arpejo e depois desce em graus conjuntos. O Motivo c (c.11) tem um contorno melódico entrecortado de colcheias, cuja direção final é descendente. O Motivo d (c.14) é o ritmo de quiálteras de três notas, representa a sugestão de métrica ternária no ambiente binário do frevo. O Motivo e, o único que não aparece no início da peça, é um ostinato de colcheias seguidas (c.66 da Ponte).

Recorrendo ao desenvolvimento desses materiais temáticos, Gismonti faz com que a forma final de Frevo corresponda a uma forma expandida da canção tradicional (Ex.8 e Ex.9), própria do gênero frevo, com uma Ponte entre a Seção I e a Seção II e uma Coda. A Seção I, por si só, é estruturada como uma pequena forma canção dentro da forma canção maior, sendo composta da Subseção A (repetida com variações como Subseção A1), Subseção B seguida da Subseção A2. A Ponte não apresenta subseções. A Seção II é formada pela Subseção C, Subseção D e Subseção B1

Ex.8- Esquema formal de Frevo (composição e performance de Egberto GISMONTI, 1987a no disco Alma) com seções, subseções e motivos temáticos geradores da obra (Motivos a, b, c, d, e) com a indicação de suas primeiras ocorrências

na obra (veja o Ex.9 para ocorrência dos Motivos temáticos em toda a obra).

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Subseção Motivo temático

Nº de compassos

(total de 352c.)

Localização da subseção na partitura

(compasso)

Localização da subseção na gravação

(minutos e segundos)

SEÇÃO I

A a, b, c, d 16 c.1 [00:00]

A1 a, b, c, d 16 c.17 [00:16]

B d, c 16 c.33 [00:31]

A2 a, b, c, d 16 c.49 [00:46]

PONTE Ponte a, e 8 c.65 [01:02]

SEÇÃO II

║C:║ a, e, b, c 43 (23+20) c.73 [01:10]

D a, c, e 46 c.116 [01:52]

B1 d, c 16 c.162 [02:38]

SEÇÃO I’

A3 a, b, c, d 16 c.178 [02:53]

A4 a, c, d+e 16 c.194 [03:08]

B2 d+(a, b, c, e) 16 c.210 [03:24]

A5 a+e, b, c, d 16 c.226 [03:40]

A6 a, b, d, c, e 16 c.242 [03:54]

A7 a, b, c, d 16 c.258 [04:10]

A8 a, b, c, d 16 c.274 [04:26]

A9 d, a, b, c 16 c.290 [04:42]

A10 d+e, b+c, a 16 c.306 [04:59]

A11 a, d+b, d+c, b+a 16 c.322 [05:18]

CODA Coda a+c, b+e 15 c.338 [05:41]

Ex.9 – Quadro com ocorrências dos motivos temáticos (Motivos a, b, c, d, e) e suas combinações nas seções e subseções de Frevo de Egberto Gismonti, com sua localização de compassos na partitura transcrita (veja às p.125-144) e de

timing na gravação no disco Alma (GISMONTI, 1987a).

(que é uma variação da Subseção B, trazendo de volta materiais da Seção I). A Seção I´, que fecha a grande forma ternária, é uma grande expansão da Seção I, cujas subseções são variações de subseções anteriores, em um processo improvisatório que gerou as seguintes subseções formais: as Subseções A3 e A4 seguidas pela Subseção B2 que é seguida por uma longa justaposição de variações formada pelas Subseções A5, A6, A7, A8, A9, A10 e A11. A obra é finalizada com uma Coda, na qual Gismonti volta a reutilizar motivos temáticos apresentados anteriormente nas várias seções de Frevo. Assim, ao mesmo tempo em que ainda se atém a um padrão formal estruturado e planejado, Gismonti também reserva ao Frevo uma atmosfera de liberdade, ao estender as seções formais por justaposição de seções improvisadas, ao combinar e recombinar sem uma ordem lógica os motivos temáticos, o que acrescenta ao frenesi frevístico, a sensação de caos.

Das 19 subseções de Frevo (veja Ex.9 acima), o Motivo c participa de 17 subseções, o Motivo a de 16 subseções, o Motivo d de 15 subseções, o Motivo b de 14 subseções, e o Motivo e de 9 subseções. Esse grande número de recorrências de cada motivo mostra um alto grau de unificação temática da obra. A predominância do Motivo c com seu contorno melódico entrecortado (também sugerido na gradual espacialização dos motivos para os registros extremos), permeando toda a peça, confere o caráter de agitação típica do gênero. Contribui para essa atmosfera de aparente caos o fato da recorrência e combinação dos motivos dentro das subseções ser aleatória: nem sempre recorrem e nem sempre aparecem na mesma ordem. Entretanto, o fato de todas as subseções serem iniciadas pelo Motivo a (A, A1, A2, Ponte, C, D, A3, A4, A5, A6, A7, A8, A11, Coda) ou Motivo d (B, B1, B2, A9, A10) traz ao ouvinte a familiaridade de retornar formalmente a algo ouvido antes, redundância é muito comum – talvez essencial – à

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compreensão musical, especialmente na música popular. Assim, o contraste principal entre as subseções ocorre quando a textura eminentemente contrapontística a duas vozes da obra dá lugar à homofonia dos blocos de acordes pesados da Ponte, ou aos pedais repetitivos da Subseção C, ou à melodia de bicordes acompanhada por acordes cantabile da Subseção D.

Harmonicamente, em relação às macro estruturas, Egberto organiza Frevo em torno de um único centro tonal, Ré menor (com algumas implicações modais), que permeia todas as Seções, respectivas Subseções, Ponte e Coda. Para gerar algum contraste harmônico, ele utiliza

apenas dois recursos: (1) as diferenças entre tonalidade e modalidade, ou seja, Ré Menor (com a presença do Dó # como sensível), Ré Dórico (com a presença dos graus Si natural-Dó natural) e Ré Eólio (com a presença dos graus Si bemol-Dó natural); (2) as substituições harmônicas observadas nos c.131-133 e c.151-153 da Subseção D da Seção II. Gismonti estrutura o Frevo principalmente com a perspectiva polifônica, o que gera certa ambiguidade em relação às progressões harmônicas. O Ex.10 mostra uma explicação da possível harmonia da Subseção A (c.1-16) que abre a obra. Polifonicamente, uma redução das mãos direita e esquerda do piano nesse trecho inicial mostra a simplicidade de fundamentais no baixo descendente.

Ex.10 - Progressão harmônica da Subseção A (c.1-16), com simplificação da mão esquerda e possíveis acordes (completos, mas com análise simplificada das funções).

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A redução harmônica da Subseção B (c.33-48) mostra como Gismonti utiliza o recurso de notas comuns para estabelecer uma progressão sem grandes contrastes dentro do mesmo centro de Ré menor criando tensão gradualmente e retardando sua resolução (Ex.11). A presença das notas Fá e Fá # não acena para a mistura modal maior-menor, mas sim para a utilização de dominantes secundárias. Ao mesmo tempo, essas notas parecem sugerir uma característica da escala do blues.

Na Ponte, Gismonti sugere a alternância entre as escalas de Ré Frígio e Ré Dórico nos blocos de acordes paralelos dos c.65-72. Se na Subseção A Gismonti havia empregado o centro modal de Ré Eólio, ele utiliza Ré Dórico em toda a extensão da Subseção C (c.73-115). Ali, a harmonia de base é definida pela linha melódica de caráter improvisatório da mão direita, preparada por um riff na mão direita e por um pedal com a síncope do Motivo a na mão esquerda, que enfatiza a tônica Ré e percorre toda essa subseção. Assim, fica evidente que o compositor escolheu o modo D dórico como forma de unificar o início da obra com as seções seguintes.

A Subseção D (c.116-163) segue um esquema muito parecido com o da Subseção A, com uma linha de baixo descendente, mas centrada em Ré Dórico e com as harmonias apresentadas com antecipações de colcheias.

Ainda nesta subseção ocorrem dois raros trechos de substituição harmônica de Egberto em todo o Frevo. Nos c.132-133 (e depois repetido nos c. 152-153), ele substitui os esperados acordes de Dm7- G7 de C7sus4 (ou seja, ii7 – V7 da subtônica Dó) pelo equivalente um trítono acima, gerando a seguinte progressão: G#m7(b5) - Db7(b9) - C7sus4, como mostra o Ex.12.

Outro procedimento que permite a Gismonti se afastar um pouco do idioma predominantemente diatônico de Frevo é uma utilização criativa e mais livre de notas não harmônicas (antecipações, notas de passagem, bordaduras etc.) que soam como aproximações harmônicas utilizadas na improvisação jazzística. O Ex.13 mostra como os materiais da Subseção B (c.33; Ex.13a) gradualmente se tornam mais dissonantes nas Subseções B1 (c.162; Ex.13b) e B2 (c.210; Ex.13c) sem que ele recorra a um afastamento do centro harmônico.

4 – O Desenvolvimento temático de Egberto Gismonti em Frevo Do ponto de vista do fraseado, Gismonti tende a seguir a quadratura que se estabeleceu no período clássico, e que se tornou típica na maioria dos gêneros populares: quase todas as subseções de Frevo (15 do total de 19) são construídas com frases 16 compassos cada uma

Ex.11 - Redução harmônica (com análise simplificada das funções) da Subseção B de Frevo, na qual Gismonti utiliza notas comuns entre os acordes para gerar, gradualmente, tensão e relaxamento.

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Ex.12 - Um dos raros trechos de Frevo (parte da Subseção D) em que Gismonti recorre a uma substituição de acordes mais jazzística (com análise simplificada das funções).

(veja Ex.9 acima). Entretanto, a previsibilidade que esta fraseologia supõe é evitada – e daí a sugestão proposital do caos festivo-agressivo e contrapontístico do gênero frevo em ambas as música e dança - pela maneira como Gismonti varia as recorrências dos motivos, frases, seções e subseções. A repetição, transformação e reorganização dos motivos, também uma herança da Primeira Escola de Viena (que teve em J. Haydn e Beethoven expoentes desse procedimento) é feita com a liberdade improvisatória com que SCHOENBERG (1994, 2006) caracteriza seu conceito de variação progressiva (developing variation). Assim, podem ser observadas manipulações envolvendo reharmonização, apresentação a capella, fragmentação, diminuição, aumentação, inversão, espacialização, superposição, justaposição, combinação e recombinação dos materiais temáticos.

O Motivo a, por exemplo, o mais memorável porque marca o início de 14 das 19 subseções de Frevo, sofre manipulações sutis entre sua primeira aparição, na Subseção A (c.1; Ex.14a), e sua recapitulação. Primeiro na Subseção A1 (c.17; Ex.14b), com modificações rítmicas, omissão de notas, mudança de registros. Depois, o Motivo a é novamente recapitulado na Subseção A2 (c.49; Ex.14c), que volta a ficar mais densa com a adição de notas e de novos ritmos (como a semicolcheia e a quiáltera de 3 colcheias). Como se pode perceber, o estilo improvisatório de Gismonti no Frevo é muito mais próximo do padrão de improvisação brasileiro do choro – mais focado nas variações rítmicas e ornamentais (SÁ, 2000) - do que das práticas de performance do jazz, que é mais orientada pela harmonia, com uma invenção melódica mais distante dos materiais temáticos.

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Os motivos de Frevo também podem sofrer fragmentação seguida de transformações desses fragmentos. A parte descendente do Motivo a, por exemplo, é manipulada de diversas formas: por alteração rítmica (c.65; Ex.15a), por diminuição por colcheias repetidas (c.119; Ex.15b), por sincopação (c.168; Ex.15c), por deslocamento das semínimas (c.338; veja Ex.23, mais abaixo).

Já a parte ascendente e final do Motivo a – sua síncope – é manipulada com deslocamento (c.15; Ex.16a), espacialização de registro (c.117; Ex.16b), uso de pedal que usa a estaticidade do Motivo e (c.73-115; Ex.16c) sequenciamento (c.200; Ex.16d), diminuição e sequenciamento (c.278; Ex.16e).

Ex.13a, b, c – Utilização crescente de dissonâncias não funcionais por Egberto Gismonti nas Subseções B, B1 e B2 de Frevo.

Essas partes do Motivo a podem ainda estar diminuídas e comprimidas (c.283; Ex.17a) ou imbricadas entre si (c.298; Ex.17b) ou com parte do Motivo b (inversão do trecho escalar) em processo de expansão (c.344-350; veja Ex.23, mais abaixo).

Como o Motivo a, o Motivo b é também fragmentado por Gismonti para ser desenvolvido tematicamente. Sua primeira parte, o arpejo ascendente, reaparece com diminuição por semicolcheias no sentido original (c.87; Ex.18a) ou invertido (c.94; Ex.18b), imbricado com a quiáltera do Motivo d (c.221; veja Ex.20d, mais abaixo), e com acordes quebrados (c.264; Ex.18c).

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Ex.14a, b, c – pequenas variações do Motivo a de Frevo de Egberto Gismonti (Subseções A, A1 e A2) por acréscimo e diminuição de notas e ritmos, rarefação da textura e inclusão de registro contrastante.

Ex.15a, b, c – Manipulações da primeira parte do Motivo a de Frevo de Egberto Gismonti.

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Ex.16a, b, c, d, e – Manipulações da segunda parte do Motivo a de Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.17a, b– Compressão e imbricação das partes do Motivo a do Frevo de Egberto Gismonti entre si.

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Já a segunda parte do Motivo b - o trecho escalar descendente -, é desenvolvido tematicamente com diminuição em semicolcheias (c.93; Ex.19a), na aumentação em semínimas e semibreves antes da Coda (c.335; Ex.19b), imbricado nas síncopes do Motivo a (c.302; Ex.19c; veja também o c.298 no Ex.17b, acima), imbricado com a redundância do Motivo e em notas repetidas (c.224; veja Ex.21c, mais abaixo), na diminuição de semicolcheias em longa sequência que lembra métodos de piano (c.231; veja Ex.1a, acima), e combinado aos Motivo a e Motivo e para finalizar o Frevo (c.344; veja Ex.23, mais abaixo).

Uma das sofisticações de Gismonti no Frevo é o desenvolvimento temático do ritmo, especialmente na sugestão de uma métrica complexa em que superpõe sugestões de ternário com binário (c.34; veja Ex.5, mais acima). A sugestão de métrica ternária, originada na quiáltera do Motivo d é desenvolvida de outras maneiras: tratada homofonicamente nas mãos direita e esquerda do piano (c.30; Ex.20a), com diminuição rítmica (c.193; Ex.20b), imbricada na estaticidade do Motivo e (c.205; Ex.20c), imbricada no arpejo ascendente do Motivo b e na linha entrecortada descendente do Motivo c (c.221; Ex.20d), espacializada do grave ao agudo do piano (c.329; Ex.20e).

Ex.18a, b, c – Desenvolvimento temático do arpejo do Motivo b em Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.19a, b, c – Desenvolvimento temático do trecho escalar do Motivo b em Frevo de Egberto Gismonti.

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A estaticidade do ostinato do Motivo e é explorada tematicamente de diversas maneiras: na oscilação contínua (c.120; Ex.21a) ou fragmentada (c.117; Ex.21b) de bicordes na m.d. do piano, como pedal junto com a síncope do Motivo a que percorre toda a Subseção C (c.73; veja Ex.16c, mais acima), transformado em trinado (c.81; veja Ex.1c, mais acima), na repetição do Motivo d (c.205; veja Ex.20c, logo acima), nos dobramentos de notas da escala descendente do Motivo b acompanhados

por acordes repetidos (c.224; Ex.21c), na voz estacionária de melodias polifônicas (c.226; veja Ex.3b, mais acima), na imbricação com os Motivos a e b que termina a peça (c.344 em diante; veja Ex.23, mais abaixo).

Na Ponte que liga as Seções I e II, blocos de acordes em notas longas do Motivo a simplificado e tratado homofonicamente (c.65, 67, 69, 71; Ex.22) se alternam com recorrências do Motivo e (c.66, 68, 70; Ex.22). Já

Ex.20a, b, c, d, e – Desenvolvimento temático das quiálteras do Motivo d em Frevo de Egberto Gismonti.

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o Motivo e, apesar de manter sua característica básica – a estaticidade e redundância -, entra em um processo de rarefação rítmica (de 6 colcheias para 4, para 2 e para nenhuma), como um pedal que vai se esvaindo. Como veremos adiante, Gismonti lança mão desse procedimento na Coda, para finalizar o Frevo, e evitar os finais apoteóticos típicos do gênero.

Uma das surpresas que Egberto apresenta no Frevo é não finalizá-lo com o esperado clímax dos frevos. A agitação do contraponto sincopado e um longo diminuendo gradualmente dão lugar à fragmentação e dispersão dos materiais temáticos que marcam o início em ppp da Coda (c.338; Ex.23). Como se fizesse alusão a um bloco de frevo que desaparece na distância (c.338-343), nas ruas de Olinda (terra de seu grande parceiro musical Naná

Vasconcelos), Gismonti alterna a estaticidade do Motivo e com a aumentação de mínimas e semínimas, com fragmentos do Motivo a (as semínimas descendentes e a síncope com aumentação de mínima (síncope aqui sugerida pelo tenuto no Ré do c.343). Depois, como um último aceno de foliões atrasados, remanescentes atrás do bloco, mas sem perder a verve (c.344 ao fim), Gismonti cria uma última inflexão musical antes do final, construída com um cresc. seguido de decres., sobre o qual fragmentos do Motivo a (a síncope - de fato ou novamente sugerida pelas ênfases nas notas-alvo, anotadas na partitura transcrita como tenuto), do Motivo b (inversão dos trechos escalares descendentes, cada vez mais longos) e do Motivo e (a repetição do Dó3 como um pedal ou ponto de partida) interagem antes do arpejo final que desce para o grave (c.351-352).

Ex.21a, b, c – Desenvolvimento temático da estaticidade do Motivo e em Frevo de Egberto Gismonti.

Ex.22 – Ponte de Frevo, na qual Gismonti utiliza os Motivo a e Motivo e com diminuição rítmica para preparar o início da Seção II.

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5 – ConclusãoA canção instrumental Frevo pode ser tomada como um mostruário das influências estilísticas europeias que formaram o compositor e multi-instrumentista Egberto Gismonti: os exercício técnicos dos métodos de piano, o contraponto de J. S. Bach, o pianismo romântico de F. Chopin, o desenvolvimento temático da Primeira e Segunda Escolas de Viena, a utilização colorística e espacializada do som – inclusive o som sintetizado -, muita evidenciada na música pós-1950. Por outro lado, Frevo também ilustra seu apego ao nacionalismo brasileiro, que valoriza seus gêneros musicais a partir do modelo deixado por H. Villa-Lobos. No seu hibridismo, Gismonti sugere a simplicidade da música pernambucana ao lado de sofisticados procedimentos composicionais (evidentes na forma, harmonia e desenvolvimento temático) e de performance (evidentes nos seus procedimentos de improvisação e técnica instrumental).

Gismonti se atém à simplicidade harmônica geralmente encontrada no gênero frevo, evitando modulações e mantendo o centro tonal em torno de Ré Menor durante toda a peça. Entretanto, cria um espaço mínimo de divagação ao flutuar para modos de tônicas correlatas, como Ré Eólio, Ré Dórico e Ré Frígio. Ele obtém grande unidade composicional em Frevo ao derivar todas as relações formais e estilísticas de cinco motivos temáticos apenas, quatro dos quais são apresentados logo no

início da peça. Ele utilizou diversos procedimentos para ampliar e inovar a forma canção simples (Seção I – Seção II – Seção I) típica do frevo: (1) a repetição de Subseções com pequenas ou grandes variações melódicas, rítmicas e harmônicas; (2) a inclusão de uma Ponte autônoma, em que um novo motivo é apresentado; (3) uma grande ampliação da recapitulação da Seção I por meio de improvisação sobre os choruses das Subseção A (principalmente de A3 a A11) e Subseção B (4) a inclusão de uma Coda construída com materiais temáticos que vão se dispersando, contrariando os finais apoteóticos e carnavalescos típicos dos frevos.

Uma das características mais marcantes de Frevo é o grau de virtuosismo empregado na complementaridade entre as mãos direita e esquerda no piano, cujo contraponto, ao mesmo tempo em que eleva o discurso musical a um alto grau de complexidade, mas que não quer se afastar da música popular, também permite manipulações envolvendo reharmonização, apresentação a capella, fragmentação, diminuição, aumentação, inversão, espacialização, justaposição e combinação dos materiais temáticos. Por outro lado, o contraste – e alívio – à agitação gerada pelo contraponto da maioria das Subseções A e B e suas variações é provida por esporádicas texturas de natureza homofônica que ocorrem na Ponte e nas Subseções C e D.

Ex.23 - Coda de Frevo, na qual Gismonti obtém um anticlímax por meio de fragmentação e expansão temática dos Motivos a, b, c, e, rarefação rítmica e baixas dinâmicas.

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Para finalizar, recorremos às duas epígrafes que escolhemos para iniciar esse artigo. Como o próprio gênero frevo – que resistiu ao “poder das elites” e ainda “resiste aos poderes do mercado” (MÜLLER, 2006) - a música de Gismonti resistiu e ainda resiste aos estereótipos que o mercado da música de consumo busca impor aos gêneros

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MAGALHÃES PINTO, M. G. M.; BORÉM, F. O caos organizado de Egberto Gismonti em Frevo ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.102-124.

Marcelo G. M. Magalhães Pinto é Doutorando em Jazz Performance na Eastman School of Music em Rochester, NY e Mestre em Música pela UFMG. Participou de diversos festivais nacionais e internacionais como o Savassi Jazz Festival e Xerox International Rochester Jazz Festival. Participou da Orquestra Sinfônica da Unesco sob a regência de Francis Hime por ocasião do encerramento do Ano Brasil-França. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como performer e arranjador. Lançou o Cd Paisagens de Minas em 2009 pelo selo Karmim.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem dois livros, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

Notas1 A polêmica sobre a aceitação do frevo cantado teve em Ariano Suassuna importante defensor na década de 1950 e em Ruy Duarte seu principal

detrator no final da década de 1960 (VILA NOVA, 2012, p.35-42).2 A utilização da frevioca, o trio elétrico pernambucano, cuja origem parece estar ligada à imagem de uma carroça com uma orquestra, é creditada

ao jornalista e escritor pernambucano Leonardo Dantas. Em 1979, enquanto era Diretor da Fundação de Cultura da Cidade do Recife e devido a restrições orçamentárias da prefeitura, ele experimentou colocar bandas de frevo e solistas (notadamente o cantor Claudionor Germano e a Orquestra popular do Maestro Ademir Araújo) em caminhões ambulantes para as multidões no centro de Recife. A partir de 1983, a frevioca passou a ser utilizada pelo Galo da Madrugada, considerado o maior bloco de carnaval do mundo (M. C. ANDRADE, 2013; DANTAS, 2013; C. S. ANDRADE, 2008, p.95-96).

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GISMONTI, E. Partitura de Frevo de Egberto Gismonti. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.125-144.

Recebido em: 09/03/2012 - Aprovado em: 20/02/2013PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

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Recebido em: 18/02/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba de Cesar Camargo Mariano

Rafael Tomazoni Gomes (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Guilherme A. Sauerbronn de Barros (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resumo: Estudo sobre aspectos do tratamento pianístico do pianista e compositor Cesar Camargo Mariano em Cristal, registrada no álbum Solo Brasileiro, de 1994. Uma análise da conjunção entre “estruturas musicais afro-brasileiras” (OLIVEIRA PINTO, 2001) e a abordagem textural da escrita pianística revela uma síntese ou estilização da formação instrumental dos grupos populares. A prática do samba para piano remete à tradição dos chamados pianeiros, na qual Cesar Camargo Mariano se insere.

Palavras-chave: Cesar Camargo Mariano; o piano no samba; pianeiros da música popular brasileira.

Cristal: aspects of the pianistic treatment in Cesar Camargo Mariano’s samba

Abstract: Study about the pianistic treatment by Brazilian composer and pianist Cesar Camargo Mariano in Cristal, recorded on the album Solo Brasileiro (1994). Pairing “Afro-Brazilian musical structures” (OLIVEIRA PINTO, 2001) with a textural approach of pianistic writing, we observe a synthesis and stylization in the musical formation of popular groups. The practice of the piano samba refers to the tradition of the so-called pianeiros, a tradition Cesar Camargo Mariano belongs to.

Keywords: Cesar Camargo Mariano; the piano in samba; pianeiros in Brazilian popular music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 - O piano e o sambaO samba para piano é uma prática musical que remete ao final do século XIX e início do século XX através da atuação dos chamados pianeiros1, cujo repertório contemplava gêneros musicais característicos do “estilo antigo do samba” (SANDRONI, 2001, p.131), como o maxixe, a polca-lundu, o tango brasileiro e outros. Dentre o diversificado contexto de atuação profissional dos pianeiros, que incluía as salas de espera de cinema, lojas de partituras, teatro de revista, recitais e outros locais, sendo que o presente estudo destaca o contexto de baile, de música para dançar.

José Ramos Tinhorão nos relata um exemplo da atuação dos pianeiros no ambiente de baile, através de uma citação da pesquisadora Marisa Lira: “A animação dos bailecos [...] dependia da música. Se havia [...] dinheiro contratava-se um choro e, se o dono da casa estava [...] sem dinheiro, um pianeiro de ouvido” (Marisa Lira, citado por TINHORÃO 2005, p.198). Contratar um pianeiro era uma alternativa financeira em relação ao grupo instrumental de choro (geralmente violão, flauta e cavaquinho).

Um outro exemplo também é dado pela autora:

O ´pianeiro` ou tocava por camaradagem ou por contrato até onze, uma hora, ou mesmo até de manhã. Ernesto Nazaré foi o maior ´pianeiro` antes de se tornar famoso. E Aurélio Cavalcanti ficou célebre na história da cidade [do Rio de Janeiro]. Memória estupenda, ninguém como ele para compor ou tocar para dançar. Tinha um ritmo invejável (Marisa Lira, citado por TINHORÃO, 2005, p.199).

De acordo com a citação acima, a atividade de “compor ou tocar para dançar” exigia certas qualidades rítmicas da música do pianeiro: “um ritmo invejável”, além de resistência física para conduzir um baile “até de manhã”. Aurélio Cavalcante e Ernesto Nazareth (1863-1934) são citados como pianeiros que tinham tais habilidades em alto grau2.

Segundo Cacá Machado, “Nazareth escrevia sob o signo dos gêneros sincopados, o que satisfazia o gosto popular dos dançarinos de sua época” (MACHADO, 2007, p.61). Sendo uma música que se presta à dança, considera-se o aspecto rítmico um elemento de central importância.

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Ao consultar um conjunto de polcas e tangos de Ernesto Nazareth, a ênfase no ritmo é facilmente percebida pela ocorrência de padrões rítmicos no acompanhamento relativamente constantes, mantidos do início ao final das peças. A polca-maxixe Atrevidinha do mesmo compositor, do ano de 1889, é um exemplo típico (Ex.1):

O padrão rítmico da “síncope característica”, termo cunhado por Mário de Andrade (SANDRONI, 2001, p.29), é mantido de maneira estável ao longo peça3 e pode ser observado na figuração rítmica da mão esquerda (Ex.1). Trata-se de um padrão típico do “paradigma do tresillo” (SANDRONI, 2001, p.28), que corresponde a uma série de variações rítmicas predominantes no estilo antigo do samba (maxixe, polca, tango brasileiro e outros).

Como observa José Ramos Tinhorão, Ernesto Nazareth “estilizou o ritmo do maxixe, sintetizado pelos conjuntos de choro a partir da polca e do lundu [...], [transportando] para o piano o novo estilo de interpretação que os chorões populares lhe entregavam pronto” (TINHORÃO, 1974, p.65). Nesta perspectiva de redução ou estilização pianística da formação instrumental popular, a linha melódica de Atrevidinha (Ex.1) pode ser considerada análoga à linha melódica realizada pela flauta, e as estruturas realizadas na mão esquerda são análogas ao acompanhamento rítmico-harmônico realizado pelo violão ou cavaquinho. Cacá Machado reforça este argumento:

A solução formal que Nazareth encontrou para a estilização desses instrumentos tornou-se um paradigma para a escrita pianística, porque traz a sonoridade dos instrumentos estilizados (tanto na montagem dos acordes como em sua função rítmica e intenção fraseológica) sem perder a especificidade da sonoridade do piano (MACHADO, 2007L, p.162).

A redução orquestral do grupo instrumental popular pelo piano também foi notada por Almeida: “como instrumento intérprete de choros4, o piano atuou como uma redução

do grupo chorão, podendo realizar – à sua maneira – a melodiosidade da flauta, as harmonias, os baixos dos violões e a rítmica do cavaquinho” (ALMEIDA, 1999, p.105) e também por Rafael dos Santos: “a parte de piano solo de um choro funciona como uma redução orquestral, apresentando vários desafios para o compositor que deseja preservar tais elementos, resultando em obras de dificuldade técnica considerável [...]” (SANTOS, 2002, p.6). Para o pianista Leandro Braga, “nenhum ritmo, seja qual for, nasceu do piano. Estamos sempre imitando os instrumentos de percussão, tomando emprestado seus toques para criarmos os nossos” (BRAGA, 2003, p.8).

Como será visto em Cristal, este procedimento de redução, síntese ou estilização dos instrumentos característicos dos grupos populares ao piano, bem como a manutenção de padrões rítmicos característicos do samba ao longo do discurso musical são fatores em comum entre a música dos chamados pianeiros e o tratamento pianístico praticado por Cesar Camargo Mariano.

2 - Cesar Camargo MarianoNascido no dia 19 de setembro de 1943, Cesar Camargo Mariano teve em sua infância um intenso contexto musical familiar promovido por seus pais. Como relata o próprio artista em seu livro de memórias (MARIANO, 2011), Wlademiro Camargo, o pai, tinha formação pianística tradicional e costumava ouvir a música de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Sua mãe, Maria Elisabeth de Camargo Rangel, costumava escutar emissoras de rádio locais e tinha preferência pela música norte-americana como, por exemplo, os cantores Tony Bennett, Bing Crosby e Frank Sinatra.

Wlademiro e Maria Elizabeth foram responsáveis por transformar sua casa num ambiente propício para o encontro de músicos que vinham se apresentar na cidade de São Paulo a partir do início de 1950. A postura Cesar Camargo Mariano, como espectador atento desses encontros, foi de central importância para sua formação

Ex.1 – Atrevidinha, Ernesto Nazareth

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musical ainda quando criança:

[...] eu, com seis anos na época, comecei assim a ser iniciado na melhor tradição da música brasileira. Cada dia, o regional [do músico Maurício Moura] aparecia com algum artista que estava se apresentando na cidade: num dia, foi a Inezita Baroso [n.1925]; no outro, Jacob do Bandolim [1918-1969], aquela enciclopédia da música popular brasileira que retornaria sempre a nossa casa, toda vez que vinha a São Paulo fazer shows. Como os demais, vinha sem avisar. A casa do careca estava 24 horas aberta para a música (MARIANO, 2011, p.39).

No dia 19 de setembro de 1956, Cesar Camargo Mariano ganhou um piano de seus pais como presente pelo seu aniversário de 13 anos de idade. A partir de então, em seu contato diário com o instrumento, seguiu seus estudos como autodidata, compondo, criando exercícios para desenvolver o dedilhado, interpretando o repertório jazzístico e tendo a audição de discos como principal referência. Segundo o próprio pianista, “[uma das referências musicais eram os] trios na época do Oscar Peterson, Bill Evans, George Shearing, os trios todos, desde moleque que eu ouço. Então isso era a base [referência], e é até hoje [...]”5.

O início da vida profissional foi como pianista de jazz na noite paulistana, atuando principalmente na formação em trio de piano, baixo e bateria, em estabelecimentos como as boates Lancaster, Baiúca e Juão Sebastião Bar.

2.1 - Do jazz ao sambaCesar Camargo Mariano relata um episódio ocorrido na boate Baiúca, um momento representativo do processo de inclusão do samba no seu repertório, até então estritamente jazzístico:

De uma das mesas, me pediram que tocasse um ‘sambinha’. Eu nunca havia tocado samba como os que tocavam nas rádios. Tocava choros e chorinhos, mas não era isso que aquela pessoa estava querendo ouvir. Alguns dos poucos temas brasileiros que eu tocava tinham acentuações em 4x4, quer dizer, uma ‘pronúncia’ jazzística. Na quarta vez que me pediram a mesma coisa, já com o Heraldo [proprietário da Baiúca] me olhando feio, começamos a tocar o tal do samba, que não lembro qual era, comigo marcando o ritmo, com a mão esquerda, no tempo forte – pam, pam, pam, pam - como fazia Errol Garner (sic), um dos meus grandes ídolos do jazz” (MARIANO, 2001, p.97).

Neste período Cesar Camargo Mariano estava com aproximadamente dezessete ou dezoito anos de idade, em plena fase de “jazzista radical”, e gostava de tocar “imitando” o pianista norte americano Erroll Garner (1923-1977). Em relação a este pianista, Mark C. GRIDLEY (2005, p.112) e pianista Dick Hyman6, descrevem aspectos gerais de seu estilo pianístico. O exemplo abaixo traz um trecho de Teach me tonight, interpretada por Erroll Garner na formação de trio, no ano de 1954, representativo do estilo que influenciou Cesar Camargo Mariano:

O tratamento melódico ocorre através de blocos de acordes, onde as notas da linha melódica são dobradas pelo intervalo de oitava e “preenchidas” por outras notas, comparadas por Dick Hyman ao naipe de metais da formação de big band; e a mão esquerda, associada ao acompanhamento guitarrístico, é caracterizada por acordes em semínimas na região médio grave, e correspondem às acentuações jazzísticas no compasso quaternário, ao qual se refere Cesar Camargo Mariano na citação anterior.

Ao ser intimado a tocar um “sambinha”, Cesar Camargo Mariano lançou mão do que lhe era familiar, o estilo Erroll Garner, um procedimento que fazia parte do seu cotidiano de músico jazzista. Portanto, o resultado foi um “sambinha” ao estilo Erroll Garner:

Ficou jazz demais. Eu não estava gostando, ninguém estava gostando – para eles, aquilo não era samba, nem bossa nova, nem jazz. Sabá [contrabaixista] olhava torto pra mim. Resolvi então mudar a acentuação da mão esquerda, passando a acentuar o tempo fraco – 1-pam, 2-pam, 3-pam, 4-pam, e saiu um jeito meio up-beat que me agradou. Sabá piscou para mim, sorrindo; Heraldo, encostado no bar, fez um sinal de positivo com o polegar; e o moço que pediu ‘um sambinha’, lá da mesa, discretamente me agradeceu. Passei a tocar samba assim (MARIANO, 2011, p.97).

A solução encontrada pelo pianista, no “calor do momento”, foi passar as semínimas da mão esquerda para o contratempo, o que corresponde à segunda e a quarta semicolcheias de cada tempo, uma técnica que se tornou recorrente na obra de Cesar Camargo Mariano, principalmente na década de 1960 com os trios. Um exemplo desta aplicação (Ex.3) é a faixa Berimbau

Ex.2 - Teach me Tonight, de Erroll Garner, cujo estilo influenciou Cesar Camargo Mariano7.

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(Baden Powel & Vinícius de Moraes) gravada em 1964 no disco Sambalanço Trio Vol I, cujo grupo era formado pelo pianista Cesar Camargo Mariano, pelo contrabaixista Humberto Clayber e pelo baterista Airto Moreira.

Como pode ser observado no Ex.3, o padrão rítmico adotado pelo acompanhamento na mão esquerda - diferentemente do exemplo de Erroll Garner (Ex.2) - é totalmente contramétrico, pois os acordes são localizados no contratempo, “um jeito meio up-beat”, como Mariano se refere na citação anterior. Tal padrão relaciona-se de forma complementar com as semínimas no baixo, que marcam o primeiro e segundo tempo. Somando-se esses dois padrões, tem-se a figuração semicolcheia - colcheia - semicolcheia, presente na música de Ernesto Nazareth, representante do estilo do samba antigo.

No exemplo Berimbau pelo Sambalanço Trio (Ex.3), o acompanhamento realizado por Cesar Camargo Mariano na mão esquerda segue um padrão rítmico relativamente estável, mantido ao longo desta seção formal da peça. A repetição de um determinado padrão rítmico no acompanhamento é um fator em comum entre Cesar Camargo Mariano e Erroll Garner. A estabilidade do padrão rítmico, repetido ao longo de frases ou seções estruturais de uma determinada peça, é fator que identificamos anteriormente como característica da música dos chamados pianeiros, associada neste estudo à dança, mais especificamente ao contexto de baile. Como será visto em Cristal, esse também é um traço estilístico do tratamento pianístico praticado por Cesar Camargo Mariano em seu repertório de sambas para piano solo.

A produção artística de Cesar Camargo Mariano na década de 1960, principalmente com o Sambalanço

Trio, enfatiza o gênero samba influenciado por sua formação jazzística. O episódio vivido na Baiúca marca o início do desenvolvimento do estilo pianístico do músico nesta nova forma de apresentação do samba, também referida como “bossa-nova tocada como instrumental” (FAOUR, 2006) ou “Samba-Jazz” (GOMES, 2010; SARAIVA, 2007).

Marcelo Silva Gomes sintetiza algumas características deste estilo de samba:

[...] a utilização de acordes acrescidos de tensões, substituições harmônicas, uso e sistematização da improvisação, instrumentação, técnicas de performance, manutenção de um dado ciclo harmônico e métrico (chorus) como sustentáculo à realização de frases melódicas e ainda [...] a possibilidade de rompimento com padrões celulares constantes (GOMES, 2010, p.45).

A partir de uma audição atenta dos discos gravados por Cesar Camargo Mariano junto ao Sambalanço Trio, podemos verificar a ocorrência dos aspectos listados por Marcelo Silva Gomes, com exceção do último aspecto, pois o pianista realiza padrões rítmicos constantes no acompanhamento da mão esquerda. Podemos atribuir tal traço estilístico (além da influência de Erroll Garner) à sua formação musical no contexto familiar, junto aos músicos de choro e ao contato com a música dos pianeiros. Segundo Cesar Camargo Mariano,

[...] por minha própria formação básica, desenvolvida entre chorões, até hoje sou alucinado pelo gênero. Sabá, Toninho e eu, em todos os ensaios, quando tinha uma brecha, tocávamos choros, chorinhos, antigos ou novos, e eu brincava de modificar as harmonias originais, os andamentos... Vivia pesquisando e tocando choros de Ernesto Nazareth, Pixinguinha (que minha mãe adorava!), ouvindo direto Chiquinha Gonzaga (predileta do meu pai), de quem recebi grande influência como pianista, tocando samba (MARIANO, 2011, p.191).

Ex.3 - Berimbau – acompanhamento na mão esquerda que valoriza a segunda e a quarta semicolcheia de cada tempo.

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2.2 - Música popular instrumental brasileiraParte da produção artística de Cesar Camargo Mariano publicada a partir da segunda metade da década de 1960, incluindo o disco Solo Brasileiro, também pode ser entendida como uma manifestação do gênero “música popular instrumental brasileira” (MPIB), termo adotado por PIEDADE (2005) e corroborado por CIRINO (2009). Dentre as características da prática da MPIB descritas por esses autores, o presente estudo destaca a manipulação de uma variedade de gêneros, ritmos ou estilos, que são dispostos lado a lado no discurso musical.

A partir do final da década de 1960, a música de Cesar Camargo Mariano assume uma pluralidade de tendências e gêneros musicais, que atravessam a década de 1970 (quando atuou basicamente como arranjador e pianista da cantora Elis Regina), e que na década de 1980 manifesta-se através de uma produção expressiva de MPIB. Intensificada pela pesquisa com teclados eletrônicos, esta produção foi registrada em álbuns como Samambaia (1981), Todas as Teclas (Ariola, 1984), Prisma (Pointer, 1985), Mitos (Sony, 1988), Ponte das estrelas (1988), Cesar Camargo Mariano (Chorus-Som Livre, 1989) e outros.

As músicas reunidas no disco Solo Brasileiro (Polygram, 1994), que contém a faixa Cristal, foram compostas por Cesar Camargo Mariano em um período posterior à sua produção de MPIB citada e também podem ser caracterizadas como tal. Seu samba para piano solo apresenta uma variedade de linhas, musicalidades e gêneros que emergem no seu discurso musical, e dialogam com o samba. Tal aspecto será observado mais adiante no presente estudo na seção de introdução de Cristal.

3 - Ritmo e TexturaA noção de síncope é considerada um elemento rítmico “emblemático” da música brasileira. Carlos Sandroni chama atenção para o “caráter culturalmente condicionado do conceito de síncope” (SANDRONI, 2001, p.21), tido pela musicologia tradicional como um desvio em relação à métrica “padrão”. Tal ruptura em relação à regularidade da acentuação ocorre pela valorização dos contratempos (ALMEIDA, 1999), o que no samba é uma característica de central importância.

Como observa o autor, muitos pesquisadores atribuem a origem da síncope ao continente africano, fato observado por Mário de Andrade como um “lugar-comum que não se funda sobre evidência documental sólida” (SANDRONI, 2001, p.23). Independentemente de sua origem (músicas primitivas de portugueses, espanhóis, africanos ou ameríndios, como observa Mário de Andrade8), a ocorrência da síncope – que sob a ótica da música de tradição escrita ocidental caracteriza a contrametricidade – possibilita o estabelecimento de paralelos entre formas rítmicas do samba e da música africana, o que leva Sandroni a constatar que, neste

ponto, “o Brasil está muito mais perto da África do que da Europa” (SANDRONI, 2001, p.25).

Um exemplo desta aproximação é a pesquisa de Kazadi-wa Mukuna9 sobre elementos bantu na música popular brasileira, onde o autor identifica no samba padrões rítmicos encontrados na música de algumas regiões do Zaire. Ao constatar no campo da musicologia africana uma série de aspectos musicais em comum com o samba, Carlos Sandroni conclui que “parece pois legítimo supor que elas fazem parte de uma herança musical trazida do Continente Negro, mesmo se o contexto e o sentido de tal herança se transfiguraram enormemente” (SANDRONI, 2001, p.25).

Considerando o ambiente de formação musical e atuação profissional de Cesar Camargo Mariano, é evidente que o sentido e o contexto de tal herança são outros. Porém, sendo o samba considerado uma manifestação musical afro-brasileira, podemos nos valer de alguns conceitos desenvolvidos por autores cujos trabalhos remetem à rítmica da música africana. O etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto, em seu artigo “As cores do som: estruturas sonoras e concepção estética na música afro-brasileira”, propõe uma sistematização de estruturas musicais afro-brasileiras com base em estudos feitos no campo da musicologia africana e brasileira (OLIVERIA PINTO, 2001).

Procurando entender a música como configuração sonora no tempo (aspecto rítmico), Oliveira Pinto desprende-se do pensamento ocidental que prevê a organização rítmica pela lógica da métrica do compasso, com seus tempos fortes e fracos (OLIVEIRA PINTO, 2001). Segundo Carlos Sandroni, essa perspectiva de ruptura também é adotada por outros estudiosos da música africana, como Simha Arom e Gehrard Kubik, que aboliram a palavra síncope de seu vocabulário, pois consideram o conceito de síncope uma abstração decorrente da escrita musical ocidental (SANDRONI, 2001, p.27). A noção de síncope seria, portanto, estranha ao fazer musical afro-brasileiro. No sistema de notação rítmica adotado por Oliveira Pinto, uma vez abolida a métrica e as barras de compasso, os conceitos de contratempo, contrametricidade e síncope são desconsiderados.

Apresentaremos a seguir alguns conceitos introduzidos por OLIVEIRA PINTO (2001), elaborados pelo autor a partir dos instrumentos de percussão utilizados pelas escolas de samba, bem como considerações sobre a adaptação destes conceitos ao tratamento pianístico.

3.1 - Pulsação elementarSegundo Oliveira Pinto, a pulsação elementar corresponde à menor unidade de tempo que preenche a sequência musical (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.92). De acordo com o autor, 16 pulsos elementares apoiam a linha rítmica do samba, cujas articulações sonoras caem necessariamente sobre esses pulsos (Ex.4).

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3.2 - MarcaçãoOutro elemento musical trazido à tona por Oliveira Pinto é a marcação, a “batida fundamental e regular, que caracteriza o sobe e desce rítmico do samba” (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.93). Com função de referência para o tempo, é executada por dois surdos de tamanhos diferentes, o surdo (surdo 1) e o contra-surdo (surdo 2), sendo que o segundo tem sonoridade mais grave. Em relação à pulsação elementar, o autor representa a marcação da seguinte forma (Ex.4):

Ex.4 - Pulsação elementar e marcação de dois surdos no samba.

Uma característica importante na marcação do ritmo do samba realizada pelo surdo é o apoio no segundo tempo e uma nota com curta duração no primeiro tempo que, numa combinação da escrita rítmica convencional com a notação rítmica utilizada pelos africanistas, pode ser representado da seguinte maneira (Ex.5):

Ex.5 - Marcação básica do surdo.

De acordo com BOLÃO (2003, p.28), nos bailes de carnaval é comum a utilização de dois surdos por um único músico percussionista, sendo que o mais agudo marca o primeiro tempo e o mais grave o segundo tempo. O autor apresenta diversos exemplos de variações de frases rítmicas realizadas por esses instrumentos, sendo que dois exemplos são expostos abaixo (Ex.6):

Ex.6 - Variações de frases rítmicas realizadas por dois surdos.

3.3 - Linha rítmica ou linha-guia (time-line)Introduzido por Joseph K. Nketia em 1970, o termo time-line refere-se a padrões rítmicos que servem como “linha guia” (SANDRONI, 2001, p.25). Oliveira Pinto observa

que geralmente a linha-guia é sonorizada com tom alto ou agudo e penetrante, de modo que seja ouvida pelo grupo como uma espécie de metrônomo, uma orientação sonora que possibilita a coordenação geral em meio a uma variedade de eventos rítmicos concorrentes. Na escola de samba, é sobretudo o tamborim o instrumento de percussão responsável por realizar esta fórmula. O exemplo seguinte traz o padrão do tamborim, também apresentado por Oliveira Pinto, e pode ser observado numa combinação de ambos sistemas de escrita (Ex.7):

Ex.7 - Padrão do tamborim em ambos sistemas de escrita rítmica.

Trata-se de uma fórmula cujas articulações sonoras (x) e complementares (.) são organizadas de forma assimétrica, uma vez que as 16 pulsações organizam-se em 7 + 9 (como indicam os colchetes no Ex.7) e ainda podem ser subdividas em [2+2+ (1+2)] + [2+2+2+(1+2)]. Simha Arom chama esse fenômeno de “imparidade rítmica” (citado por SANDRONI, ibid. p.25), pois as 16 pulsações elementares não são organizadas em pares de 8+8, ou 4+4+4+4 (equivalente às semínimas do compasso binário). Sob a lógica das divisões pares da escrita ocidental (semibreves em mínimas, mínimas em semínimas e assim por diante), a imparidade rítmica caracteriza uma escrita contramétrica. Variações rítmicas nesses moldes são denominadas “paradigma do Estácio” (SANDRONI, 2001, p.32), e são característicos do estilo novo do samba, posteriores à década de 1920.

3.4 - Relação de complementaridade ou interlockingA relação de complementaridade ou interlocking sonoro (Kubik, citado por OLIVEIRA PINTO, 2001, p.101) é outro aspecto do fazer musical das escolas de samba descrito por Oliveira Pinto. Segundo o autor,

[...] quando dois ou três músicos intercalam os pulsos de seus padrões rítmicos de forma regular, levando assim a uma complementaridade das diferentes partes tocadas. Este intercalar dos impulsos é aspecto tão constitutivo da música africana e afro-brasileira, que acontece inclusive na forma como a mão direita e a esquerda se complementam ao percutirem um tambor, ao tocarem uma marimba (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.101).

O exemplo da forma como mão direita e mão esquerda se complementam ao percutirem um tambor, é ilustrativo da relação de complementaridade entre as mãos do pianista, aspecto notado por Cacá Machado em relação a uma determinada passagem musical da obra de Ernesto Nazareth, onde o autor afirma que o “suingue do maxixe realiza-se nessa complementaridade das mãos”

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(MACHADO, 2007, p.126). Nestes casos, os impactos de uma linha sonora se encaixam nos momentos vagos deixados pela outra e vice versa. O Ex.8 é uma representação de Kubik para o interlocking sonoro (citado por OLIVEIRA PINTO, 2001, p.101):

A relação de complementaridade ou interlocking entre as diferentes partes tocadas por dois ou três músicos é análoga à relação entre as diversas camadas texturais na escrita pianística. Tal aspecto será verificado no presente estudo, na seção B de Cristal (Ex.15 e 16).

A descrição do fenômeno musical realizada pelos estudiosos que tratam da música africana e afro-brasileira, cujas referências encontramos nos textos de Carlos SANDRONI (2001) e OLIVEIRA PINTO (2001), oferecem, portanto, um corpo de terminologias e processos musicais relevantes para se pensar o tratamento pianístico no samba, como as noções de pulsação elementar, marcação, imparidade rítmica, linha guia (time-line), e relação de complementaridade ou interlocking.

3.5 - Resultante rítmicaO padrão rítmico que resulta da soma dos padrões individuais de cada instrumento – no caso do piano, de cada camada textural – será denominado resultante rítmica. Trata-se de um sistema de notação em que os padrões rítmicos de cada camada textural, que na textura pianística ocorrem em planos diferentes, são dispostos simultaneamente num único plano horizontal. Através da resultante rítmica, é realizada a redução de uma determinada trama de eventos rítmicos a uma única linha, que tem como objetivo a representação de uma síntese rítmica de um determinado trecho musical, a fim de observar um ou mais padrões rítmicos que sustentam o samba ao longo de uma frase ou seção da composição.

Na resultante rítmica, as acentuações das pulsações elementares são dispostas em três níveis hierárquicos: linha-guia, marcação e padrão complementar. Um exemplo da caracterização e reconhecimento da

resultante rítmica é dado a partir da representação rítmica do c.17 de Cristal (Ex.9):

Ex.9 - Cristal, resultante rítmica do c.17.

O preenchimento das 8 pulsações elementares é representado no compasso 2/4 por um continuum de semicolcheias cujas acentuações podem ser pensadas hierarquicamente em três níveis: 1) As notas grafadas com o sinal de acento representam a linha-guia (time-line), no grau mais elevado da hierarquia. 2) A primeira nota de cada tempo, grafada em tamanho natural sem o sinal de acento, representa a marcação do baixo, análoga ao tambor-surdo. Não raro, a linha-guia ocupa a mesma posição específica da marcação (mesma pulsação elementar), como no Ex.9 acima, onde a segunda marcação do baixo (quinta semicolcheia do compasso) é localizada na mesma posição de uma nota da linha-guia. Neste caso, a notação desta posição corresponde à linha-guia. 3) As notas menores correspondem às pulsações complementares, pensadas como “notas fantasmas” ou “ghost notes”10 que, apesar de apresentarem o menor grau de relevância nesses níveis hierárquicos, são importantes para o preenchimento sonoro das pulsações elementares.

A notação da resultante rítmica leva em conta apenas o ataque dos sons segundo sua posição nas 8 ou 16 pulsações elementares, desconsiderando as durações das notas, uma vez que o objetivo deste sistema não é

Ex.8 - Diferentes padrões de interlocking sonoro.

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compreender aspectos da sonoridade pianística de Cesar Camargo Mariano, como detalhes de sua articulação, mas prover uma representação rítmica da textura pianística.

Sendo a partitura uma representação limitada do fenômeno musical, faz-se necessário o suporte do exemplo em áudio, trazendo o elemento sonoro como um parâmetro a ser considerado na análise. Sendo assim, o reconhecimento das acentuações que caracterizam a resultante rítmica são fundamentados em dados sensíveis, oriundos da escuta musical.

4 - CristalComo objetivo principal da análise de Cristal, destaca-se a verificação de como Cesar Camargo Mariano se insere na tradição dos pianeiros através da síntese ou estilização pianística dos instrumentos característicos de grupos populares. Ao mesmo tempo, serão apontados aspectos de seu tratamento pianístico no samba para piano solo. O disco Solo Brasileiro (1994) se apresenta como um dos mais representativos desta produção no conjunto de sua obra. O álbum, gravado em março de 1993 em Los Angeles, Estados Unidos, traz a seguinte declaração de Cesar Camargo Mariano: “Com este projeto, considero comemorados os meus 35 anos de carreira. Aliás, foi assim que tudo começou: - Tocando piano” (MARIANO, 1994).

O critério de escolha da faixa Cristal é a hipótese de que nesta obra Cesar Camargo Mariano sintetiza os pilares de sua formação musical: o repertório clássico-romântico para piano (influência dos discos ouvidos em casa por seu pai), a música dos chamados pianeiros, o jazz e sua produção de MPIB.

Cristal apresenta forma ternária: Introdução; A; B; introdução; A; B; introdução. Cada seção formal apresenta características distintas em sua estrutura. O texto segue com a análise descritiva da obra, organizada de acordo com as seções formais, tendo a partitura transcrita por esta pesquisa como suporte para a análise.

4.1 - Seção de introduçãoA linha-guia indicada pela resultante rítmica (Ex.10) é recorrente ao longo da seção de introdução e reforça o apoio na nota Dó 1, formando o padrão do tresillo - 3+3+2- (SANDRONI, 2001, p.28), através do ciclo que se apresenta deslocado um quarto de tempo em relação às barras de compasso, pois as primeiras semicolcheias dos compassos não são preenchidas (representadas por pausas na resultante rítmica). No ciclo de 8 pulsações elementares, a representação da linha-guia é dada por “(8) . x . . x . . x”.

Ex.10 – Seção de introdução e representação da resultante rítmica.

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Apesar da indicação do gênero samba-choro na edição publicada por Samambaia Music11, esta linha de baixo está longe de ser associada à marcação do tambor-surdo característico do samba de acordo com a descrição dos aspectos musicais do samba realizada anteriormente. Portanto, percebe-se ainda nos quatro primeiros compassos que não é a intenção do compositor restringir-se aos traços considerados mais tradicionais do gênero. Essa hipótese é confirmada com a presença das tríades na região média a partir do quarto compasso.

Formadas por empréstimo modal, as tríades de Mi bemol, Ré menor e Lá bemol são conduzidas em forma de chord loop12 sobre o baixo pedal Dó, resultando em duas camadas texturais distintas que apresentam relativo grau de interdependência, por estarem no contexto da mesma linha-guia, valorizando a última semicolcheia dos compassos.

Esse ambiente de pouca movimentação harmônica, cujas características rítmicas não remetem diretamente ao samba, pode ser associado aqui à musicalidade fusion, ou seja, uma fusão ou diálogo com outros gêneros musicais como o funk e o pop, traço característico da chamada Música Popular Instrumental Brasileira (MPIB), que podemos associar à produção artística de Cesar Camargo Mariano posterior à década de 1970, marcada pelas experiências com teclados eletrônicos.

4.2 - Seção ANa passagem para a seção A, ocorre uma ruptura textural acentuada, onde a densidade de eventos é reduzida a uma única linha melódica no c.14, ampliada para três camadas texturais a partir do c.15 (Ex.11). No entanto, tais mudanças texturais abruptas não interferem na linha-guia, que assume a função de “fio condutor” entre

Ex.11 - Cristal, c.14-17: estabilidade da linha-guia.

Ex.12 - Cristal, c.34-41: semelhança rítmica e textural com o repertório clássico-romântico.

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múltiplos tecidos musicais. A linha-guia é, portanto, um fator de estabilidade rítmica em meio a uma intensa instabilidade textural. Neste ponto, estabelecemos uma relação entre ritmo e textura.

Em sua interpretação musical, Cesar Camargo Mariano imprime a articulação non legato, onde as acentuações rítmicas aplicadas à linha melódica sugerem ou reforçam a própria linha-guia, caracterizando uma abordagem “rítmica” à interpretação melódica nesta seção, em oposição à primeira frase da seção B.

4.3 - Seção B A seção B abrange os c.34-58, organizados em três frases de oito compassos, divididas por arpejos que ocorrem nos dois últimos compassos de cada frase.

Primeira frase – c.34-41Trata-se de uma passagem contrastante na peça como um todo, onde as características rítmicas associadas à música afro-brasileira – como a lógica da imparidade rítmica na divisão das acentuações das pulsações elementares - são temporariamente abandonadas.

Ao contrário do restante da peça, nestes oito compassos não é possível verificar o aspecto rítmico característico do samba (Ex.12). Na notação da resultante rítmica, observa-se que as notas consideradas de maior grau de relevância na hierarquia das acentuações são as notas da melodia, cujo ritmo se encaixa perfeitamente na lógica da divisão par prevista pelo pensamento da escrita ocidental convencional, representada pelo compasso

2/4. Portanto, esta passagem apresenta uma escrita ritmicamente cométrica, onde predomina a acentuação dos “tempos fortes” do compasso, elemento que torna o trecho mais “europeu”, do ponto de vista da semelhança com o repertório do classicismo, do romantismo e de toda uma tradição anterior da música europeia.

Tanto o continuum de semicolcheias quanto a relação de complementaridade entre as camadas texturais e a marcação do baixo estão presentes aqui, porém em outro contexto. Considerando a semelhança rítmica e textural com o repertório clássico-romântico, as semicolcheias da região intermediária podem ser pensadas como um artifício pianístico para simular o acompanhamento orquestral, onde as vozes são prolongadas ao longo do compasso. Esta hipótese é reforçada pela utilização do pedal direito do piano, toque legato e pela interpretação cantabile da linha melódica, fatores que encobrem o aspecto percussivo.

Outro aspecto contrastante desta passagem é o tratamento harmônico, que na primeira frase da seção B inicia um processo progressivo de afastamento da tonalidade principal (Dó maior) que, como veremos nas próximas páginas, alcança o máximo de afastamento na terceira frase, região de Dó bemol maior. Nos c.34-39 (Ex.12) predomina a região de Sol menor, e a partir do segundo tempo do c.39 com a nota Si natural, é sugerida a mudança para o modo maior, que é atingido no c.40-41 com os acordes Bm7 e Em7, respectivamente terceiro e sexto graus da tonalidade de Sol maior, região da dominante. Esta relação intervalar de quarta justa entre as fundamentais dos acordes será mantida nos compassos seguintes. A transição para a segunda frase ocorre com arpejos na mão direita, nos c.40-41.

Ex.13 - Cristal, c.42-49 e representação da resultante rítmica.

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Segunda frase – c.42-49A segunda frase da seção B, que abrange os c.42-49, marca o retorno dos elementos rítmicos do samba, como a linha-guia formada por acentuações das 16 pulsações elementares segundo o princípio da imparidade rítmica. A audição do trecho nos revela quatro planos sonoros distintos. Por esta razão, no exemplo abaixo optou-se por uma escrita que destaca a distribuição em quatro camadas texturais, conforme é apresentado a seguir (Ex.13):

A relação de complementaridade entre as quatro camadas texturais, no exemplo acima, ocupa as 16 pulsações elementares, cujas acentuações formam na linha-guia um padrão rítmico característico do paradigma do Estácio: “(16) x . x . . x . . x . . x . x . . ”. Este pode ser pensado como um desenvolvimento da linha-guia anterior “ (8) . x . . x . . x ” (3+3+2), pela adição de dois grupos ternários e um binário (2+3+3+3+2+3).

O tratamento pianístico manipula quatro camadas texturais distintas onde cada uma assume conteúdos rítmicos e harmônicos específicos. Os baixos (Ex.13), que pontuam a primeira nota de cada tempo com as fundamentais dos acordes, ao se fundirem à voz superior, formam uma variação do padrão rítmico característico do maxixe, predominante no acompanhamento da mão esquerda dos pianeiros das primeiras décadas do século XX, como Ernesto Nazareth. Almeida se refere a essas estruturas como “baixo condutor harmônico”, que acumulam em si a realização da linha do baixo, da harmonia e do ritmo (ALMEIDA, 1999, p.115).

Sendo assim, podemos verificar a sobreposição dos dois estilos de samba. Na mão direita, o samba novo é observado nas acentuações ímpares das 16 pulsações elementares que caracterizam o paradigma do Estácio ou ciclo do tamborim que, sob o ponto de vista da escrita ocidental, resulta em algum grau de contrametricidade. Na mão esquerda observa-se a manifestação do samba antigo através de estruturas características do maxixe, cujas variações rítmicas remetem ao paradigma do tresillo, que prevê acentuações ímpares no ciclo de 8 pulsações

elementares. Sob o ponto de vista da escrita ocidental, este último é menos contramétrico que o anterior; um exemplo disso é o baixo (as notas mais graves), cujo padrão “(8) x . . . x . . .” equivale a uma escrita totalmente cométrica segundo a lógica do compasso 2/4, como pode ser observado do c.42-47 (Ex.13).

A audição do exemplo nos revela que Cesar Camargo Mariano imprime diferentes durações às notas do baixo ao longo do trecho. Isso se deve ao fato de que as duas camadas texturais escritas na clave de fá mantêm o padrão intervalar de sétima (c.42), décima primeira e décima (c.43) a cada ciclo de dois compassos (Ex.13, 14 e 16). A mão esquerda, por alcançar a abertura de sétima com facilidade, permite que a nota do baixo tenha maior duração. O mesmo não ocorre com as aberturas dos intervalos de décima ou décima primeira que, para serem alcançadas pela mão esquerda, exigem que o pianista realize um movimento de “salto”, o que por sua vez impede que a nota do baixo continue pressionada, resultando na curta duração destas notas. Este é um caso em que a escolha da disposição das notas dos acordes tem implicações diretas no ritmo, ou seja, a especificidade do conteúdo rítmico está relacionado com o conteúdo harmônico (montagem dos acordes) e, em torno desta relação, estão os limites impostos pela escrita pianística, isto é, do que é possível realizar pianisticamente.

Ainda em relação ao conteúdo rítmico das camadas texturais, é importante pensarmos em sua organização ao longo das 16 pulsações elementares. A noção de interlocking ou relação de complementaridade, é pertinente para tal avaliação. Considerando que na segunda frase da seção B ocorre uma repetição de um ciclo de dois compassos através de uma “transposição”, a abordagem de um dos ciclos é suficiente. Tomemos como exemplo os c.42-43 (ex.14).

Na notação da resultante rítmica observa-se o nível de hierarquia das acentuações nas 16 pulsações elementares, cujas notas são indicadas pela linha pontilhada no Ex.14. Esta linha percorre o “caminho” das pulsações elementares

Ex.14 - Cristal, relação de complementaridade nos c.42-43.

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através da mão direita (clave de sol) e esquerda (clave de fá) do pianista; como são quatro planos sonoros, cada mão realiza duas camadas texturais.

Como mostra o Ex.14, as camadas texturais “cruzam” seus ritmos, e intercalam seus pulsos elementares, fenômeno este citado anteriormente por Oliveira Pinto, que se referia à “forma como a mão direita e a esquerda se complementam ao percutirem um tambor”, onde os impactos de uma linha sonora se encaixam nos momentos vagos deixados pela outra. Fazendo uma apropriação do modelo gráfico proposto por Kubik para visualizar o interlocking ou relação de complementaridade entre diversos músicos, representados na escrita pianística por quatro camadas texturais, poderíamos representar o trecho da seguinte forma (Ex.15):

Diferentemente do exemplo de Kubik (Ex.8), a organização interna desse interlocking apresenta relativa irregularidade. Contudo, as três repetições deste ciclo durante a segunda frase da seção B caracterizam uma regularidade de ocorrência deste padrão.

Os arpejos dos c.48-49 (Ex.13) são uma manifestação do “motivo contramétrico”, cujas notas são agrupadas por repetição, como mostram as ligaduras pontilhadas no Ex.14. Ao longo de toda a peça, Cesar Camargo Mariano utiliza arpejos para demarcar as seções.

Portanto, cada camada textural apresenta configurações rítmicas e harmônicas que, atuando em conjunto, podem ser comparadas a um mecanismo cujas peças

e engrenagens obedecem aos princípios e limitações impostos pela condução de vozes, ritmo do samba e escrita pianística.

Nestes oito compassos da segunda frase da seção B, observa-se o aumento da densidade harmônica através um trecho modulante típico de uma harmonia de “ponte”, onde a relação cromática entre os acordes afasta o vínculo com a tonalidade principal de Dó maior e segue em direção a uma nova região. Como pode ser observado no Ex.16, a relação cromática ocorre a cada ciclo de dois compassos, através de progressões [Sub IIm7–Sub V7]13 que alcançam o primeiro grau (mesmo que na forma de dominante) no acorde C7 no c.48.

A segunda frase da seção B é, portanto, caracterizada pelo aumento da densidade harmônica e textural, acompanhados de uma variedade de padrões rítmicos que manipulam na mesma textura, de forma complementar os paradigmas rítmicos do tresillo e do Estácio.

Terceira frase - seção rítmica, c.50-57O arpejo ascendente dos c.48-49 (Ex.13) marca a passagem para terceira frase da seção, que envolve os c.50-57 (Ex.17). Nesta frase, a organização textural é semelhante à verificada na seção de introdução, com tríades na região média, baixo pedal na região super-grave que enfatiza a nota Dó bemol e “ataques” de tríades na região aguda. Porém, diferentemente da seção de introdução, temos aqui a afirmação do ritmo do samba através do tratamento pianístico que enfatiza o aspecto

Ex.16 - Cristal, redução harmônica do c.42-49.

Ex.15 - Cristal, representação de interlocking na segunda frase da seção B.

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percussivo, cuja sonoridade (organização textural e toque stacatto) é análoga à sobreposição do tamborim na mão direita e ao tambor surdo na mão esquerda (Ex.17):

Assim como a segunda frase da seção B, a terceira frase é constituída por três repetições do ciclo do tamborim seguido de arpejos nos dois últimos compassos que preparam a chegada da nova seção. As acentuações das 16 pulsações elementares formam a linha-guia “(16) . x . . x . x . x . . x . x . x” (3+2+2+3+2+2+2), que é sobreposta à marcação do tambor-surdo, cujo padrão rítmico é “(16) . . . . x . x . x . . . x . x x” (5+2+2+4+2+1). O ciclo do tambor-surdo, que nos exemplos anteriores apresentava divisões pares, nesta passagem apresenta o princípio da imparidade rítmica, representada pela última semicolcheia do ciclo de dois compassos (Ex.17). Sendo assim, a marcação “antecipa” a articulação sonora do primeiro tempo para a semicolcheia anterior à barra de compasso.

A frase termina com arpejos que culminam em acordes nos c.56-57 (Ex.17). A linha-guia “(8) . x . . x . . x” surge das acentuações que consideram a repetição das notas e a ênfase dada aos arpejos, como mostram as linhas pontilhadas no Ex.18. Sendo o mesmo padrão rítmico que predomina na seção de introdução e na seção A, esta linha-guia já sugere o retorno a estas seções.

Nesta seção é possível estabelecer relações que abrangem os níveis textural, harmônico e rítmico. Dentre os aspectos em que a dimensão harmônica relaciona-se com a dimensão rítmica, destacam-se dois. Primeiro, devido à ausência de uma linha melódica e por apresentar baixa movimentação harmônica, o aspecto rítmico sobressai em relação a esses parâmetros. Trata-se de um trecho essencialmente

rítmico, onde o que está em jogo é o aspecto “corporal” da “batucada”, dada pelo tamborim e pelo tambor-surdo, em detrimento do aspecto “racional” da construção melódica e da condução de vozes através das progressões harmônicas.

O segundo aspecto diz respeito à região tonal onde ocorre a seção: Dó bemol. Enquanto a mão direita se alterna entre as tríades de Ré bemol maior e Dó bemol, os baixos realizam a fundamental e a quinta do acorde, numa relação intervalar de quarta justa que enfatiza o acorde de Dó bemol. O Ex.18 abaixo representa a redução harmônica da passagem:

A coleção de notas reunidas pelas tríades da mão direita sugerem o modo de Dó bemol lídio, - Dób, Réb, Mib, Fá, Solb, Láb - que caracteriza-se pela presença da quarta aumentada - nota fá natural (c.50-56, Ex.18). Portanto, esse trecho “essencialmente rítmico” ocorre em uma região harmônica muito específica, se comparado às outras seções.

Como vimos anteriormente, na seção de introdução é explorado o modo de Dó menor; a seção A é apresentada em Dó maior (tonalidade principal); na seção B, é alcançada a região de Sol maior (dominante), onde inicia-se uma progressão cromática que, passando pelo acorde de Dó com sétima – entendido como um substituto da dominante do sétimo grau (SubV/VII,) –, realiza seu último passo cromático em direção ao modo de Dó bemol lídio (Ex.18).

Esta “seção rítmica” é apresentada, portanto, meio tom abaixo da tonalidade principal, região mediante da dominante (terceiro grau a partir da dominante Sol maior), num âmbito tonal de seis bemóis (considerando a nota si bemol como implícita), apresentando uma distância considerável em relação à tonalidade principal Dó maior, o que afasta o trecho

Ex.17 - Cristal, c.50-57, seção rítmica.

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das relações harmônicas mais próximas de Dó maior. Este isolamento numa região tonal distinta, somado à condição estática da harmonia modal – contrastante com as seções A e B – , são aspectos harmônicos que ajudam a enfatizar o aspecto essencialmente rítmico do trecho, colocando a “pura batucada” num lugar de destaque na forma musical.

Os arpejos dos c.56-57 (Ex.18) marcam o final da seção B e a repetição da seção de introdução, através do acorde de Ré bemol com sétima no baixo (Sub V), que apresenta notas em comum com o acorde anterior, Dó bemol lídio, cujo intervalo de trítono que caracteriza o acorde dominante está presente nas notas Dó bemol e Fá. No c.57 temos o arpejo do acorde dominante da tonalidade principal, Sol com sétima, que se encontra incompleto (apenas com a fundamental, terça e décima terceira bemol) e prepara a volta para o modo de Dó menor.

Em suma, e metaforicamente, a seção B pode ser pensada como uma movimentação que parte de contexto musical clássico-romântico da primeira frase (c.34-42, Ex.12), em direção ao contexto musical atribuído à escola de samba através da “pura batucada” produzida pela sobreposição do tamborim ao tambor-surdo (c.50-57, Ex.17). A segunda frase representa a transição, o caminho a ser percorrido, onde já se pode ouvir o padrão do tamborim na mão direita, enquanto a mão esquerda trabalha com elementos próximos do maxixe, portanto ainda não realiza a marcação explícita do tambor-surdo (c.42-49, Ex.13).

As progressões harmônicas são fatores de movimentação, que conduzem a narrativa por diferentes “caminhos”,

representados pelas diversas regiões tonais. Saindo da escrita “europeia” em Sol maior, percorre o trecho “tortuoso” da segunda frase, um caminho harmônico acidentado e irregular, onde atenuam-se as referências de tonalidade, até chegar à terceira frase e fixar-se em um novo e inesperado local: o modo lídio de Dó bemol. Neste ponto, interrompe-se a movimentação das progressões harmônicas para se contemplar uma redução da bateria de escola de samba durante oito compassos.

4.4 - Variação da seção ANesta reexposição da seção A, ocorre uma variação que consiste na substituição da linha melódica principal por uma levada característica dos gêneros precursores do samba como polca-lundu, maxixe, tango brasileiro e outros, característicos do estilo antigo do samba.

Sendo Ernesto Nazareth uma influência declarada de Cesar Camargo Mariano, procurou-se em uma série de peças do músico carioca um trecho cuja escrita pianística apresentasse a mesma construção rítmica e textural verificada em Cristal (Ex.20). Foram encontrados diversos exemplos, dentre os quais foi selecionado o trecho que abrange os c.68-72 do Tango Nenê (1895). Nos exemplos abaixo, pode-se observar o material referido:

A mão esquerda do c.68-72 de Nenê (Ex.19) e c.73-74 de Cristal (Ex.20), apresentam um padrão rítmico (8) x . . x x . x .” (com pequena variação no c.72),semelhante à síncope característica que predomina na escrita para piano dos maxixes: “(8) x x . x x . x .”. Este padrão é complementar à linha-guia observada na mão direita: “(8) . x . x . x . x”,

Ex.18 - Cristal, redução harmônica dos c.47-58.

Ex.19 - Nenê, Ernesto Nazareth, c.68-71.

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padrão binário, que na escrita do compasso 2/4 representa um alto grau de contrametricidade. As figurações rítmicas nos trechos abordados apresentam ciclos de 8 pulsações elementares e são variações do paradigma do tresillo.

Em relação ao aspecto harmônico, podemos verificar diferenças tanto na montagem dos acordes quanto no tratamento das tensões harmônicas. Como pode ser observado no Ex.16, Cesar Camargo Mariano distribui as notas dos acordes de forma complementar entre as camadas texturais, de modo que para obter o acorde completo (tétrade básica mais tensões), é necessário considerar todas as camadas verticalmente, pois os conteúdos harmônicos não são sobrepostos através de dobramentos14. Já na escrita de Ernesto Nazareth (Ex.19) o mesmo procedimento não é observado. Tendo o c.68 como exemplo, o baixo realiza a fundamental, terça e sétima do acorde D7 (respectivamente Ré, Fá# e Dó).

Sendo assim, numa relação de complementaridade, sobrariam para as outras camadas texturais a quinta (nota lá) e as possíveis tensões do acorde. No entanto, fundamental e terça (notas Ré e Fá#) são dobradas ou sobrepostas nos blocos de acordes da mão direita.

Outro aspecto relevante são as diferenças no tratamento das tensões. Em Ernesto Nazareth, as apojaturas produzem tensões nos acordes e são imediatamente resolvidas. A duração dessas tensões equivale a duas semicolcheias (como indicam os círculos no Ex.19). Cesar Camargo Mariano, por sua vez, conduz os acordes de modo a valorizar as tensões, que como indicam os círculos no Ex.20, tem duração de até um compasso. Esta valorização das tensões também está relacionada com a montagem dos acordes em posição fundamental, e como observa Santos, “diferentemente do choro tradicional, os acordes utilizados no jazz aparecem em sua maioria na posição fundamental, para que as tensões existentes soem como tal.” (SANTOS, 2002, p.11)

5 – ConclusãoA partir do presente estudo, é possível considerar que Cristal sintetiza alguns pilares da formação musical de Cesar Camargo Mariano: sua infância, cujo ambiente musical familiar lhe proporcionou o contato com

a música de Ernesto Nazareth e o convívio como espectador atento nas rodas de choro, influências que podem ser observadas na seção A. Sua fase de “jazzista radical”, que segundo o próprio artista, foi influenciada pelos trios de pianistas de jazz, verificada no tratamento harmônico, que avança sobre regiões tonais distantes da tonalidade principal e enfatiza as tensões dos acordes. Influência da música erudita, que pode ser observada na primeira frase da seção B, com a escrita “clássico-romântica”. Seu contato com o samba, na terceira frase da seção B e, por último, a influência da música pop, funk ou fusion em sua “fase eletrônica” dos sintetizadores, na seção de introdução.

Considerando a alta ocorrência de progressões de substitutos da dominante verificados no Ex.17, pode-se considerar a “linguagem harmônica” ou “contexto harmônico” praticado por Cesar Camargo Mariano como, segundo Sérgio Freitas, pertencente aos

[...] setores da música popular que, ora mais, ora menos, são reconhecidos como ́ modernos` e ́ dissonantes` (ou seja, setores do jazz, da bossa nova, da MPB, do samba‐jazz, etc.) que, abraçando sonoridades mais tortuosas, elegeram o “SubV7” como uma constante estilística favorita” (FREITAS, 2010, p.196).

Pode-se incluir nesse contexto a chamada Música Popular Brasileira Instrumental (MPBI) que dialoga com uma série de influências e musicalidades através da manipulação de uma variedade de gêneros, ritmos e estilos que são dispostos lado a lado ou mesmo sobrepostos no discurso musical. Tal fenômeno se verifica em Cristal.

A semelhança com a música dos chamados pianeiros pode ser observada no tratamento rítmico e textural da obra, que mantém o fluxo sonoro das pulsações elementares, cujas acentuações constituem as linhas-guia. Esta se mantém relativamente estável ao longo de toda a peça e manifesta-se em diversas camadas texturais, mesmo apesar de mudanças na textura. A manutenção da estabilidade da linha-guia, com seus padrões rítmicos cíclicos e constantes, é fator que vincula o samba para piano de Cesar Camargo Mariano ao samba para piano dos chamados pianeiros.

Ex.20 - Cristal, c.71-74.

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GOMES, R. T.; BARROS, G. A. S. de. Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.145-161.

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Notas1 Para maiores esclarecimentos sobre a utilização do termo pianeiro pela presente pesquisa, ver GOMES (2012, p.13-26).

2 Para mais exemplos da presença do piano no contexto de baile, bem como um estudo de aspectos que relacionam o piano e o samba, ver GOMES (2012).

3 A partitura integral está disponível em http://www.ernestonazareth.com.br/pdfs/atrevidinha.pdf, acessado em 28/06/2012.

4 No presente estudo, considera-se que as noções de choro e samba são imbricadas. Por uma questão metodológica, o emprego da palavra samba ganha um significado abrangente. Entende-se samba como uma variedade de gêneros, que vão desde os gêneros precursores do samba como a polca-lundu, o maxixe, o tango brasileiro, o choro, até as manifestações “modernas” do gênero, como a bossa-nova e o samba-jazz.

5 Entrevista concedida à rádio UOL, disponível em http://www.radio.uol.com.br/#/programa/uol-that-jazz/edicao/9055862, acessado em 10/02/2012.

6 O pianista Dick Hyman descreve aspectos do estilo pianístico de Erroll Garner no vídeo intitulado “Errol Garner Lesson 1 – Dick Hyman” , disponível em http://www.youtube.com/watch?v=lM-77RvpJf0 (acessado em 10/02/2012), parte integrante do CD-Rom “Century Of Jazz Piano Encyclopedy” (1999).

7 Transcrição disponível em http://www.youtube.com/watch?v=i1RokAJ0qAc, acessado em 10/05/2012.

8 ANDRADE, Mario de. As melodias do boi e outras peças, São Paulo, Martins, 1987, p.397, 409, 416 (citado por SANDRONI, 2001, p.23).

9 MUKUNA, Kazadi Wa. Contribuição bantu na música popular brasileira, São Paulo, Global, s/d. (citado por SANDRONI, 2001, p.25)

10 Segundo Dourado (2004, p.147), a nota fantasma (ghost note) refere-se a um som abafado e pouco distinto, de caráter percussivo.

11 Disponível em http://www.cesarcamargomariano.com/pgcatalogport.html, acessado em 10/05/2012.

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GOMES, R. T.; BARROS, G. A. S. de. Cristal: aspectos do tratamento pianístico no samba... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.145-161.

12 “Pequena sequência repetida de (quase sempre), três ou quatro acordes” (TAGG, 2009, p.280).

13 Para mais detalhes sobre a análise harmônica do trecho referido, ver GOMES (2012, p.91).

14 Cada camada textural assume um conteúdo harmônico específico. Por exemplo, se o baixo realiza fundamental e terça do acorde, o acompanhamento não incluirá estas notas, evitando assim o dobramento.

Rafael Tomazoni Gomes é bacharel em piano pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e mestre em musicologia/etnomusicologia pela mesma universidade, onde defendeu a dissertação “O samba para piano solo de Cesar Camargo Mariano”. Tem ministrado workshops em cursos de graduação em música no estado de Santa Catarina com intuito de divulgar seu trabalho teórico. Como instrumentista, atua como solista, interpretando peças que foram objeto de seu estudo teórico e outras, e em grupos de música popular na cidade de Florianópolis.

Guilherme Antonio Sauerbronn de Barros é bacharel em piano pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em música - piano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em musicologia pela UNIRIO. Foi premiado em concursos nacionais de piano e participou como executante de inúmeros master-classes. Tem artigos publicados em revistas especializadas e anais de eventos da área de musicologia. Desenvolve pesquisa nas áreas de estética, análise e educação musical e tem priorizado em seus estudos a relação da música com a filosofia e a literatura, em particular no idealismo e no romantismo alemão dos séculos XVIII e XIX. Atualmente, dedica-se ao estudo dos fundamentos teóricos de técnicas avançadas de análise musical. Como instrumentista, tem atuado como solista e, principalmente, como camerista. Sua atividade docente inclui, além de piano, análise musical e musicalização infantil.

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Recebido em: 13/11/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa: Associação de gêneros musicais distintos em Pé no chãoGuilherme Araújo Freire (UNICAMP, Campinas, SP)[email protected]

Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas, SP)[email protected]

Resumo: Na década de 1980, o jazz fusion tinha grande repercussão internacional. Baseando-se na mistura das linguagens musicais do jazz com outros gêneros, o estilo incorporava construções harmônicas modais associadas ao uso da tecnologia a favor de uma busca a novos timbres. No Brasil, era visto como símbolo de modernidade e considerado como vanguarda musical pela crítica especializada, influenciando sensivelmente grupos de música instrumental. Este estudo tem como foco a produção musical do Grupo Medusa, formado na cidade São Paulo por músicos instrumentistas renomados do cenário da música popular brasileira. Através da análise dos aspectos rítmicos, melódicos, harmônicos e estruturais da música Pé no Chão, pretende-se compreender o modo pelo qual o Grupo Medusa articula elementos da linguagem musical de gêneros populares brasileiros e norte-americanos, obtendo uma sonoridade híbrida e, buscando também identificar apropriações de procedimentos musicais do fusion realizadas.

Palavras-chave: hibridismo; música popular; música instrumental; Grupo Medusa.

Hybridism in the Instrumental Music of the Medusa Group: Association of Different Musical Genres in Pé no chão

Abstract: In the 1980s, jazz fusion had great international repercussion. Based on the mix of musical languages of jazz with other genres, this style incorporated modal harmonic constructions associated with the use of technology in order to search for new timbres. In Brazil, it was seen as a symbol of modernity and considered by critics as being a musical forefront, influencing significantly instrumental music groups. This study focuses on the musical production of the Medusa Group, formed in São Paulo by renowned Brazilian popular musicians. The purpose of this article is to understand, through a rhythmic, melodic, harmonic and structural analysis of the song Pé no Chão (Feet on the Ground), the way in which the Group Medusa blends musical elements of Brazilian and American popular styles, obtaining an hybrid sound. It also tries to identify appropriations of musical procedures from fusion, performed in the song.

Keywords: hybridism; popular music; instrumental music; Brazilian Medusa Group.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 – IntroduçãoAna Maria Bahiana escreveu em 1979, um dos poucos artigos da época analisando a trajetória do segmento de música instrumental no período. Ela afirma que para compreender em perspectiva a produção da música instrumental, é preciso considerar que o termo genérico ‘música instrumental’ não se referia à toda forma musical executada apenas por instrumentos, mas sim “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, instrumentistas dispersos no mercado após a fase da bossa nova com o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica” (BAHIANA, 1979, p.61).

Assim, notamos que para a jornalista, nas práticas do que era conhecido como música instrumental nos anos 70, já se subtendia certo conhecimento do jazz pelos músicos. Em seguida, a autora define a bossa nova como

uma fase musical de “depuração da síntese jazz/samba”, caracterizando-a como uma “fase de refinamento harmônico e improviso” que consagrou uma grande quantidade de instrumentistas e que, com o advento da canção de protesto – em que supostamente havia “absoluta predominância da fala e do texto” –, passaram a acompanhar cantores ou buscar espaço no exterior.

Após o período dos festivais, Bahiana afirma que se iniciou uma gradual modificação do mercado, especificamente partir de 1976/77, vitalizado em geral, com o crescimento do interesse do público pelo segmento de música instrumental. Contando com uma maior receptividade, uma nova produção e legitimação de alguns artistas, a música instrumental toma uma retomada expressiva com uma nova forma, distinta do período de jazz/bossa.

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Segundo a autora, essa revitalização da música instrumental aconteceu com a formação de um público constituída de jovens que tinham seu gosto em grande parte formado pela liberdade de improviso do rock progressivo, mais aproximado do jazz, ou seja, um público com certa sensibilidade para apreciar seções instrumentais e solos de longa duração. Ana Maria Bahiana ainda sustenta: “não seria exagero afirmar que grande parte do público que tornou possível a existência de uma atividade constante da música improvisada, no Brasil, seja constituída por roqueiros desiludidos com os sucedâneos nacionais de sua música” (BAHIANA, 1979, p.63). Corroborando a afirmação de Ana Maria Bahiana, o jornalista Souza escreve, em 1976, que “[o rock] pode levar um tipo de público jovem condicionado – e careta, no sentido inverso – a interessar-se por música instrumental, valorizar os músicos, procurar ouvir com maior atenção o que dizem os sons, independentes da mensagem direta das letras” (SOUZA, 1979, p.205).

Uma pontuação do interesse do público nesse segmento no período foi a realização do 1º Festival de Jazz de São Paulo - Montreaux em 1978, que reuniu mais de setenta mil pessoas e tiveram várias apresentações de artistas brasileiros como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Nivaldo Ornellas, Djalma Corrêa, Luiz Eça, Hélio Delmiro, Márcio Montarroyos, Wagner Tiso, Vitor Assis Brasil, Zimbo Trio, e de músicos jazzistas consagrados como John McLaughlin, Chick Corea, Larry Coryell e George Duke. Sobre o festival, Muller (2005) aponta uma matéria na qual a mídia comenta sobre a repercussão do evento: “foi um grande sucesso sob qualquer ângulo de análise e acabou se transformando num evento musical sem paralelo na história não apenas da cidade de São Paulo, mas de todo o país” (NEVES, 1978).

Para Ana Maria Bahiana, um índice claro da força que a música instrumental adquire naquele momento é o surgimento e consolidação de alguns nomes de grande importância no segmento: Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal, os mais destacados. A razão do destaque argumentada pela autora está na qualidade e persistência de sua produção junto ao público. Para a autora, o diferencial nos trabalhos desses músicos estava no “rompimento com a cadeia jazz/bossa” - de onde tiveram grande parte de sua formação musical e aperfeiçoamento técnico -, passando a incorporar elementos da música considerada “de raiz”.

Havia na época também outra forma de romper com a ‘cadeia jazz/bossa’, identificada por Bahiana nos trabalhos de Wagner Tiso. Segundo a autora, o artista vivenciou uma transformação de sua música, passando de uma estética ligada fortemente ao jazz e à bossa-nova (ainda na década de 60), em direção a “uma língua musical híbrida de clássico, música regional e uma pitada de rock” (BAHIANA, 1979, p.65). Não apenas Wagner Tiso, mas a partir de certo momento de sua carreira, Egberto Gismonti também passa a incorporar à música brasileira, procedimentos da música erudita e da fusão jazzística com o rock, estilo conhecido como fusion.

Fusion é um termo usado para referir-se à modalidade híbrida de jazz surgido na virada da década de 60 para 70. Foi desenvolvido a partir da associação da rítmica do funk e rythm and blues, com a amplificação e processadores de efeitos (distorção, reverb, etc) do rock e métricas de compasso oriundas de músicas não ocidentais. O repertório apresenta músicas predominantemente instrumentais e exigem geralmente um alto nível de proficiência no instrumento para execução. A autoria da invenção do novo estilo é indeterminada, pois surgiram paralelamente vários albuns com características híbridas de jazz e rock, como o do grupo Free Spirits de Larry Coryell ou o Charles Lloyd Quartet. Entretanto, o álbum que foi consagrado pela ‘inauguração’ do estilo é Bitches Brew de Miles Davis. Neste disco, participaram John McLaughlin, Chick Corea, Joe Zawinul e Wayne Shorter, artistas que, posteriormente, em carreira solo ou em atividade com seus grupos, estariam entre os protagonistas principais do estilo.

O novo estilo manteve grande popularidade em seu país de origem durante a década de 70 e início da década de 80. No Brasil, teve um impacto bastante significativo: os festivais de jazz de 1978 e 1980 trouxeram grandes nomes para apresentações no país. Segundo Muller (2005, p.88), muitos grupos instrumentais brasileiros que emergem neste período incorporam elementos do estilo fusion, tanto o uso dos instrumentos e efeitos eletrônicos, como na abordagem e composição harmônica de suas músicas. Além do Grupo Medusa, podemos citar também artistas como o próprio Egberto Gismonti, Airto Moreira, a Banda Metalurgia e o grupo Cama de Gato, que também incorporaram elementos do fusion.

2 – Grupo MedusaO grupo de música instrumental Medusa foi formado em São Paulo, reunindo alguns dos músicos mais requisitados do cenário de música popular brasileira. O grupo durou aproximadamente três anos e teve dois álbuns lançados em sua trajetória.

O primeiro álbum, intitulado Grupo Medusa, foi lançado em 1981 como o primeiro lançamento do selo Som da Gente, pequena gravadora independente que direcionou a maior parte de sua produção ao segmento da música instrumental. A formação do grupo nesse álbum era: Amilson Godoy (piano, clavinet), Cláudio Bertrami (baixo elétrico, contrabaixo acústico), Heraldo do Monte (guitarra, violão e bandolim) e Chico Medori (bateria e percussão), com participações de Theo da Cuíca e Jorginho Cebion na percussão. Grupo Medusa é composto por músicas autorais, com bastante espaço para improvisos, harmonias sofisticadas, presença marcante de ritmos brasileiros e percussão.

Após o lançamento do álbum, realizaram uma turnê pelo Brasil e se apresentaram no 3º Festival de Jazz em Paris, em 1982. No ano de 1983, lançaram seu segundo disco Ferrovias, também pelo selo Som da Gente e com algumas mudanças na formação: o guitarrista Olmir Stocker, também conhecido como “Alemão”, entrou no lugar de Heraldo do

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Monte e o percussionista Theo da Cuíca foi integrado à formação. O disco segue a mesma linha estética do primeiro álbum, apresentando uma composição de Olmir Stocker, uma releitura do choro Lamento de Pixinguinha, maior volume de instrumentos de percussão e maior destaque para a cuíca, que além de ter função rítmica exerce também singela função melódica nos arranjos do disco.

Apesar da trajetória do grupo apontar para um relativo sucesso e conquista do seu espaço no mercado, inclusive com apresentações internacionais, sua trajetória teve curta duração. O grupo se desfez após um aneurisma sofrido por Bertrami em meados da década de 80 que paralisou seu lado esquerdo integralmente.

3 – Entre a fusão musical e a preservação das “raízes”Partindo da suposição de que o artista, ainda que tenha absoluta autonomia nas escolhas estéticas e na concepção do trabalho, direciona sua produção para se consolidar e legitimar dentro do mercado; compreender as escolhas e o sentido da ação pelo qual os músicos podem ter seguido ainda que inconscientemente, constitui uma maneira de compreender como o grupo chegou à sonoridade presente nos discos. Diante da grande repercussão do fusion na década de 70 no mercado internacional, apropriar-se de seus procedimentos musicais constituía uma maneira de distinguir-se no mercado, pois o novo estilo era considerado pela crítica musical como “vanguarda do jazz”.

No Grupo Medusa essas apropriações eram realizadas, mas aparentemente de maneira limitada. Foi publicado um texto no encarte do primeiro disco do Grupo Medusa, que tem autoria de Amilson Godoy e que traz questões importantes para compreender as escolhas estéticas realizadas. Segue sua transcrição:

“Existe um conflito básico em quem nasce em um país colonizado culturalmente; a gente não se ouve mais, a memória se apaga, as coisas de fora nos são impostas e acabam sendo consumidas como autênticas. O Grupo Medusa é resultado desse conflito. O colonizado pode até aprender com o colonizador, mas não pode jamais deixar de pensar com a própria cabeça. Nosso trabalho tem uma proposta musical sem preconceitos ou barreiras, cujo objetivo maior é conseguir uma fusão musical sem perder o vínculo com nossas raízes. As diferentes origens, o universo de informações, a vivência, as experiências anteriores, os espaços conquistados por cada um dos componentes do grupo, fez com que acontecesse uma integração tamanha, que nós quatro viramos um. Um grupo de música instrumental brasileira”.

Logo no início do discurso, já se faz referência à oposição colônia/colonizador levantando a questão do imperialismo cultural (“as coisas de fora nos são impostas”) e a questão de se evitar a suposta dependência (“O colonizado pode até aprender com o colonizador, mas não pode jamais deixar de pensar com a própria cabeça”) relativa aos países imperialistas. Nota-se que existe um envolvimento nacionalista claro na música do grupo, questão constante não apenas no universo musical, como também, amplamente, nos debates culturais nos mais

diversos períodos. Em seguida, quando o grupo define sua proposta como “sem preconceitos ou barreiras”, fica evidente a questão: até que ponto é legítimo para o grupo, o diálogo da cultura brasileira com as formas culturais estrangeiras?

A solução seria então, promover uma fusão musical mantendo o vínculo com as raízes brasileiras, ou seja, incorporar elementos da música estrangeira e, ao mesmo tempo, preservar características da música brasileira considerada de ‘raiz’. Ao utilizar o termo “fusão”, faz-se referência ao estilo jazz fusion, que para o grupo parece ser fonte de inspiração de ideias propriamente musicais.

Como tentaremos demonstrar nas análises da música Pé no chão a seguir, o grupo incorpora sonoridades fusion, assumindo a mistura de gêneros distintos na construção de uma nova sonoridade. A referência às “raízes brasileiras” e à oposição colonizado/colonizador no discurso podem ser resquícios, em plena década de 80, do ideário político nacional-popular, iniciado em parte através do projeto nacionalista do governo de Getúlio Vargas e amplamente difundido na sociedade brasileira da década de 60.

4 – Aspectos Estruturais de Pé no chãoA música Pé no chão, presente no álbum Grupo Medusa, tem quatro minutos e quarenta e um segundos de duração, foi composta pelo baterista do grupo Chico Medori e apresenta a mesma instrumentação que é predominante no LP e se constitui de piano Fender, baixo Fender fretless, bateria, guitarra e percussão. Os instrumentos de percussão utilizados na faixa são: tamborins e cuíca.

A música apresenta uma apropriação feita pelo grupo do uso do Fender Rhodes1, um instrumento norte-americano, utilizado no disco refencial Bitches Brew de Miles Davis e adotado também em outros discos do estilo. A escolha desse instrumento pelo pianista Amilson Godoy no disco já denota uma certa influência da estética do estilo jazz fusion.

O uso de um instrumento com origem cultural estrangeira, quando associado à execução da rítmica sincopada do samba, tradicional da música brasileira se mostra como uma mistura de tradições culturais realizada pelo grupo. Ela não se aproxima nem das tradições brasileiras, nem das tradições norte-americanas.

A mistura estética dos diferentes estilos ganha maior evidência ainda com o uso dos instrumentos de percussão nos temas A e improviso de guitarra, que além de terem seus timbres consagrados na estética do samba, ressaltam a acentuação rítmica característica da sonoridade do gênero (a questão da acentuação rítmica será mais detalhada em análise posterior).

Provavelmente o exemplo mais convincente da mistura feita pelo grupo nesta música estaria no Tema A, quando

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Amilson Godoy executa a melodia da seção no Fender Rhodes. Ao mesmo tempo em que obtém destaque no primeiro plano na música (de certa maneira, com timbre associado ao fusion), é acompanhado pelo ritmo sincopado e acentuado dos tamborins e cuíca, tradicionais da cultura brasileira.

No arranjo da música, as seções se organizam como mostra o Ex.1. A forma de Pé no chão baseia-se em uma estrutura quaternária simples A-B-A-B com 36 compassos, que é precedida de uma introdução com oito compassos. Entre os dois grupos de exposições temáticas, ocorre o solo de guitarra com 32 compassos seguido de uma ponte com quatro compassos e por fim chegando ao desfecho da música no Tema B’, que é uma versão modificada do Tema B, adaptada para conduzir ao fim da música.

Constata-se em sua forma um planejamento no uso das percussões dentre as seções, de modo que fossem alternadas as partes da música com percussão e as partes da música apenas com o quarteto tocando. Observando os quadros acima, percebe-se que mesmo quando duas seções têm percussão em sequência, uma delas possui breve duração.

Essa alternância causa efeito de contraste para o ouvinte quando há mudança temática, pois além da presença dos tamborins e da cuíca, existe a intenção por parte dos

músicos de acentuar os contratempos das sincopas nas seções com percussão para caracterizar bem a rítmica do samba. Além disso, nas seções sem percussão tanto o acompanhamento rítmico como a melodia têm notas mais longas e menor subdivisão rítmica, o que confere assim um caráter mais estático à seção e acentua o contraste nas mudanças temáticas.

Desta maneira, ao realizar uma escuta do disco Grupo Medusa observamos que esse traço da alternância de seção com ênfase na rítmica de um gênero tradicional brasileiro seguida de uma seção com incorporação de procedimentos da música estrangeira não acontece apenas na música Pé no chão, mas também na maioria de suas faixas. Constitui assim, uma característica da sonoridade do grupo mesclar elementos da estética de linguagens musicais com origens culturais distintas utilizando a forma da música como meio de organizar os elementos e criar contrastes nas músicas.

Ainda atentando ao uso da percussão na música, observamos que após a segunda exposição do Tema B, Amilson Godoy executa uma frase blues no piano Fender (Ex.2), que combinada ao acompanhamento dos instrumentos de percussão característicos da tradição musical brasileira, efetua uma mistura cultural ao sobrepor um elemento melódico-harmônico tradicionalmente utilizado no jazz e no blues com a percussão da seção rítmica brasileira.

Introdução 8 compassos

Tema A 8 compassos

(com percussão)

Tema B 8 compassos

Tema A 8 compassos

(com percussão)

Tema B (casa II) 12 compassos

Chamada ‘bluesy’2 do piano

4 compassos (com percussão)

Improviso de guitarra 32 compassos (com percussão)

Ponte 4 compassos

Tema A 8 compassos

(com percussão)

Tema B 8 compassos

Tema A 8 compassos

(com percussão)

Tema B’ final 4 compassos

Ex.1 – Tabela ilustrando disposição das seções na forma de Pé no chão (ler em sentido horizontal, da esquerda para a direita).

Ex.2 – Frase blues executada por Amilson Godoy

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Apesar de não haver uma alternância que distinga o caráter cultural dentre as seções e que aborde todos os planos da música, existe uma aparente predominância do plano rítmico no contraste gerado na alternância das seções, que torna-se evidente pela percussão e se constitui numa característica da sonoridade do grupo.

5 – Aspectos RítmicosA música inicia com o chimbau da bateria e o piano Fender executando uma frase baseada em semicolcheias apresentando já em sua execução, a acentuação característica do gênero, que ganha maior expressividade quando a cuíca começa sua execução no quinto compasso da seção. Encerrada a introdução, a entrada dos tamborins reforça o caráter suingado das linhas da percussão no Tema A e remete à sonoridade de escola de samba.

A segunda seção temática (Tema B) inicia com uma alteração contrastante na execução do acompanhamento. Uma vez que no Tema A, a condução rítmica aparece bem delineada com linhas do gênero samba, os acordes do Tema B são executados e sustentados com notas longas, modificando o caráter de subdivisão rítmica (suingado), para uma textura rítmica menos dinâmica. Além dessa mudança de caráter, o Tema B tem, em sua estrutura, mudanças frequentes e rápidas de fórmula de compasso, alterando de compasso simples para compasso composto.

Assim, podemos afirmar que a seção rítmica do grupo constrói dois tipos de acompanhamento dentre as seções com caracteres distintos. Um deles mais pautado na linguagem do gênero samba, com maior dinamicidade, baseado em linhas-guia características e presença marcante da sincopa, ressaltada pela execução da percussão. O outro, mais pautado na estética do jazz, baseando-se em acentuações rítmicas da melodia, com maior uso de notas longas e ataques de pouca intensidade sonora. Uma característica marcante no plano rítmico entre as seções é a presença marcante da execução de convenções. O uso das convenções não se limita aos Temas B e B’, pois também são executadas nas exposições do Tema A. Mesmo em seções caracterizadas por notas longas, a bateria preenche os espaços entre as notas da melodia com frases próprias da linguagem do instrumento, o que confere um caráter percussivo à sonoridade do grupo.

6 – Aspectos Harmônicos e MelódicosA apropriação de procedimentos musicais oriundos do jazz fica mais evidente quando atentamos aos planos harmônico e melódico de Pé no chão. Na primeira seção temática da música, apenas se utiliza um acorde - Gm7, o que constitui uma característica modal da harmonia da seção, pois a ausência da polaridade tensão/resolução esvazia a necessidade do retorno ou estabelecimento de um centro tonal (Ex.3).

Segundo Gridley (1988, p.71), no estilo de jazz conhecido como bebop, a harmonia era objetivamente determinada, com acordes e durações bem delimitadas antes da improvisação, quase sempre cercando um centro tonal, com tempo constante e fórmula de compasso predominantemente quaternária. Para escapar dessas convenções tradicionais referidas, Miles adotou quatro possibilidades como alternativas de escape que foram: 1) inventar uma progressão harmônica, que não precisaria ser simétrica ou tonal; 2) Seguir uma sequência pré-determinada de modos, com duração livre; 3) Seguir uma sequência pré-determinada de modos, com duração pré-determinada; 4) Basear-se uma improvisação inteira em um único modo.

Foram utilizadas todas as quatro possibilidades na gravação do álbum Kind Of Blue, que fez bastante sucesso, situando-o entre os mais importantes da história do jazz. Esse fato acabou transformando essa inovação estética em tendência nas gravações dos discos de jazz pós-1959, consolidando o caráter modal na harmonia, nos improvisos e composições do jazz em sua linguagem.

Em um trabalho que trata dos diferentes tipos de modalismos na história da música, o pesquisador Sérgio Freitas destaca que após o surgimento do modalismo jazzístico, este também passa a se mesclar com outras tendências das músicas populares do mundo e aponta o fenômeno de hibridação entre os modos e suas respectivas culturas: “relacionadas ou não com o jazz, outras práticas modais (...) com maior ou menor acento étnico, são perceptíveis agora quando os músicos populares se acham no direito de desterritorializar e reterritorializar todo tipo de escalas (chinesas, vietnamitas, húngaras, árabes, libanesas, eslavas, romenas, turcas, ciganas, hispânicas, ameríndias, nordestinas, modos orientais, etc.), que junto das incontáveis escalas sintéticas se mesclam aos modos diatônicos da catequese cristã ocidental” (FREITAS, 2008, p.271).

Tema A

Ex.3 – Melodia e harmonia cifrada do Tema A de Pé no chão

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O fato de que todo o tema se constrói em apenas um acorde e esse mesmo acorde é utilizado durante todo o improviso de guitarra, nos permite comparar com a música So What do disco acima citado. Ambas as músicas têm no Tema A e improvisos, harmonia baseada em um acorde só, evidência que denota uma apropriação feita pelo grupo da estética do jazz modal no processo composicional da música.

Além desse aspecto, notamos outra apropriação da mesma música presente na condução executada pela guitarra quando utiliza o mesmo voicing tocado pelo piano no disco de Miles Davis, só que transposto e adaptado à linguagem do samba (Ex.4).

Ex.4 – Estrutura de acorde similar à de So What, contudo adaptado ritmicamente para o contexto de samba.

As apropriações da linguagem musical jazzística, ao mesmo tempo em que aproximam e criam diálogo com a cultura estrangeira, buscam se afastar da musicalidade norte-americana através da articulação de uma musicalidade brasileira. O exemplo 4 é um caso exemplar de uma apropriação que é idêntica em termos estrutura harmônica, mas articulada com a rítmica brasileira.

Na segunda seção temática da música encontramos também outras características modais em sua concepção harmônica. Segue abaixo sua transcrição:

Nessa seção (Ex.5), observamos que são utilizadas predominante mente notas da extensão de acordes suspensos na melodia, o que ressalta a sonoridade modal da seção, ao mesmo tempo em que são executadas com a figura rítmica da sincopa, característica das tradições musicais brasileiras. Deste modo, ao mesmo tempo em que o grupo se apropria da estética jazzística, ainda mantém-se o caráter rítmico marcante das ‘tradições’ de sua origem.

O primeiro acorde da seção (Am7) é o único com terça menor que é utilizado e o fato de sua presença vir logo após o acorde de Gm7 acentua mais a sonoridade modal da harmonia por utilizar um acorde do mesmo tipo uma 2ªM acima, procedimento comum em músicas de jazz modal.

Todos os outros acordes são dominantes suspensos, ou seja, com nona, sétima menor e quarta justa no lugar da terça, sendo utilizados de maneira predominantemente cromática. Nota-se outro tipo de padrão harmônico nos compassos 6 e 11, onde é utilizada uma mesma frase rítmica para uma similar sequência de acordes, onde o caminho das fundamentais decai um tom e depois um semitom. A ausência de intervalos de quarta e quinta justa nos baixos dos acordes também é um fator que contribui para a construção de uma sonoridade modal na seção.

Tema B

Ex.5 - Melodia e harmonia da seção B de Pé no chão

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7 – ConclusãoPudemos demonstrar através das análises algumas maneiras pelas quais o grupo se apropria de elementos musicais de gêneros norte-americanos (como o jazz e rock), ao mesmo tempo preservando características oriundas de gêneros da música brasileira (como a rítmica do samba) na música Pé no chão. Assimilando elementos musicais da estética de um estilo de grande repercussão no mercado, o grupo passa a se alinhar dentro dos padrões de venda internacionais, contando com maior competitividade e distinguindo sua produção dentro do âmbito nacional, através dos elementos “modernos” e considerados de vanguarda incorporados às “raízes brasileiras”.

Canclini define em contexto sociológico, o conceito de hibridismo como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de formas separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 1997, p.XIX). A maneira pela qual as práticas se combinam, “ocorre de modo não planejado, ou é resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional”. Deste modo, a partir dos influxos da globalização, com a chegada de produtos da indústria cultural norte-americana no Brasil, duas práticas culturais que determinavam estruturas distintas, existiam em formas separadas e em territórios distintos, se combinam na produção do Grupo Medusa e passam a formar novas estruturas, um novo objeto e prática, que caracteriza a sonoridade híbrida do grupo.

Contudo, foi demonstrado no tópico três deste artigo, que existem contradições entre as apropriações de procedimentos musicais estrangeiros realizadas pelo grupo frente ao discurso embasado no ideário nacional-

popular presente no primeiro disco. Ainda que o grupo tenha permitido a hibridação, pode-se dizer que seus ideais simbólicos limitaram esses processos, fazendo com que se mantivessem características musicais do território de origem. Assim, o vínculo com a tradição seria então, um elo para sustentar a construção da noção de identidade brasileira e um filtro pelo qual fosse selecionado o que não deveria ser hibridado.

Essa contradição poderia ser fruto do direcionamento da produção do grupo para ambos os segmentos nacionais e internacionais. Segundo Canclini (1997, p.159), “não apenas pelo interesse em expandir o mercado, mas também para legitimar sua hegemonia, os modernizadores precisam persuadir seus destinatários de que – ao mesmo tempo em que renovam a sociedade – prolongam tradições compartilhadas. Posto que pretendem abarcar todos os setores, os projetos modernos se apropriam dos bens históricos e das tradições populares”.

A ideia de prolongamento das tradições presente no discurso do grupo se tornaria uma vantagem, pois “o patrimônio cultural se apresenta alheio aos debates sobre a modernidade ele constitui em um recurso menos suspeito para garantir a cumplicidade social” (CANCLINI, 1997, p. 160). Deste modo, a presença de vários elementos da tradição da música brasileira junto do discurso nacional-popular do grupo permite que sejam incorporadas formas culturais estrangeiras símbolos de modernidade, de modo que não fossem contestados por isso. Em vez de reafirmar objetivamente as tradições, caracterizando o território de origem, o Grupo Medusa estabelece um diálogo com formas culturais estrangeiras, enriquece o conhecimento envolvido e ativa uma forma de mediação social entre práticas culturais distintas.

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FREIRE, G. A.; SANTOS, R. dos. Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.162-169.

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Discografia RecomendadaMEDUSA, Grupo. Grupo Medusa. São Paulo: Som da Gente: 1981.MEDUSA, Grupo. Ferrovias. São Paulo: Som da Gente: 1983.

Notas1 Instrumento inventado pelo americano Harold Rhodes com primeiro protótipo produzido em 1945 após os avanços tecnológicos dos anos 30, que

foram significativos para a indústria musical, inovando pelo emprego de válvulas e pela produção em série. No ano de 1959, Harold faz parceria com Leo Fender para produzir a série Fender Rhodes, com sistema parecido com o de uma guitarra elétrica (LATORRE, 2004). O instrumento fez bastante sucesso nas décadas de 60 e 70, sendo amplamente utilizado por pianistas de jazz fusion por conta de sua sonoridade distorcida. Atualmente ainda é bastante utilizado em discos recentes de artistas de jazz.

2 Bluesy é um termo usado para designar uma sonoridade que carrega a utilização da blue note em interpretação de uma frase musical. Segundo o dicionário de jazz GROVE, blue note seria uma terça, sétima ou quinta (menos comum) que tem afinação abaixada em microtons e é utilizada comumente em blues, jazz e músicas relacionadas. Existe muita discussão acerca da origem da blue note, mas acredita-se que ela pode ter sido “descoberta” a partir da dificuldade dos escravos norte-americanos em adaptar a escala pentatônica africana ao diatonismo europeu.

Guilherme Araújo Freire é graduado no curso de Bacharelado em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas e mestrando em Música na mesma instituição desde 2013. Participa do grupo de pesquisa “Música Popular: História, Produção e Linguagem” (CNPq) desde 2010. Atua como músico instrumentista, se apresentando em rodas de choro mensais pelo projeto MusiSAE da Unicamp e em eventos universitários como o “Unicamp de Portas Abertas” (UPA) e o “Festival do Instituto de Artes” (FEIA).

Rafael dos Santos é Doutor em Música/Piano pela Universidade de Iowa - EUA, sob a orientação do Prof. Daniel Shapiro. É Professor do Departamento de Música, Instituto de Artes da UNICAMP, onde participou da criação do curso de Música Popular. Coordena o Grupo de Pesquisa “Musica Popular: História, Produção e Linguagem” (CNPq). Atua regularmente como solista, arranjador, maestro, compositor e professor. Foi Coordenador do projeto de criação e implantação do Conservatório de Música Popular Cidade de Itajaí, através de Convênio firmado com a Unicamp. É editor da Música Popular em Revista, publicação eletrônica semestral vinculada aos Programas de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNICAMP e do Centro de Letras e artes da UNIRIO

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NEDER, A. “Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.170-175.

Recebido em: 12/08/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

“Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero

Alvaro Neder (IFRJ, Rio de Janeiro, RJ)[email protected]

Resumo: Este artigo examina o gênero musical como discurso do coletivo anônimo. Por esta via, a música participa poderosamente das construções de gênero e também das contestações a estas construções, por parte de grupos sociais anti-hegemônicos. Considerando-se as conotações socialmente atribuídas a certos subgêneros do rock, são analisadas as estratégias de contestação feminina às posições atribuídas às mulheres por meio da apropriação de papeis de dominação exercidos tradicionalmente por homens. Tais estratégias são iluminadas pelo confronto entre as interpretações de Marina Lima e Erasmo Carlos para Mesmo que seja eu, canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Relativizando a noção de autonomia autoral, o artigo subscreve a perspectiva pós-estruturalista de que os artistas são, eles próprios, discursos de um coletivo, e conclui considerando o papel da música, enquanto discurso social, na produção de novas subjetividades e na reestruturação da ordem social.

Palavras-chave: discurso musical e gênero; subjetividade e crítica cultural; pós-estruturalismo na música.

“A man to call yours”: musical discourse and gendering

Abstract: This article examines musical genre as an anonymous collectivity’s discourse. According to this understanding, music powerfully participates in gendering and its contestations by non-hegemonic social groups. Considering socially attached connotations to certain rock subgenres, feminine challenge strategies to the positions assigned to women are implemented through women’s appropriation of roles traditionally performed by men. Such procedures are illuminated by the confrontation of Brazilian singers Marina Lima and Erasmo Carlos’ renderings for Mesmo que seja eu [Even if it’s me], a song by Roberto Carlos and Erasmo Carlos. Relativizing the notion of authorial autonomy, the article subscribes to the poststructuralist perspective that the artists themselves are discourses of a collectivity, and concludes with a consideration of the role of music as a social discourse in the production of new subjectivities, and in the restructuring of social order.

Keywords: musical discourse and gendering; subjectivity and cultural criticism; poststructuralism in music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 - IntroduçãoO campo midiático, entendido como o conjunto de diferentes mediações estabelecidas entre as produções culturais e seus fruidores pelos meios de comunicação de massa, vem sendo objeto de um diferente olhar, nas últimas décadas. Sob o impacto dos chamados estudos culturais, começou-se a perceber que os sujeitos expostos à ação destes meios – tanto na ponta da produção como da recepção – produzem estratégias de oposição e resistência que complexificam e problematizam os significados das produções veiculadas pelos mass media. Vistos por este ângulo, os meios de comunicação de massa passam a representar um outro espaço que se oferece para a atividade de contestação, e para a produção de sujeitos críticos.

No terreno específico da canção popular brasileira, o estruturalismo subsidiou análises específicas das letras das canções desde os anos 1970 (ver, por exemplo, SILVA, 1974). No entanto, este tipo de abordagem cedo encontrou suas limitações. As letras não são textos verbais, mas sequências sonoras vocais linguisticamente marcadas, e que são mediadas por convenções musicais, como diz o musicólogo Richard MIDDLETON (2000, p.7). Isto é, diferentes gêneros musicais e estilos de performance musical modificam os sentidos veiculados pelo mesmo texto linguístico, como veremos no decorrer deste artigo. Portanto, a análise dos sentidos veiculados pela canção coloca o problema metodológico de esses sentidos constituírem-se em um composto indissociável de letra, música, performance e contexto cultural mais amplo.

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Se estamos falando da participação da canção na construção identitária de sujeitos críticos, é inevitável voltarmos nossa atenção para a desafiadora questão do sentido dos sons musicais. Se, como foi dito, as convenções musicais modificam até mesmo o sentido dos textos verbais, de que maneira isto se dá? Há muitas possibilidades de responder a esta pergunta. Aqui, vamos nos ater à ideia de discurso musical.

2 - Gênero musical e discursoO nível codal (nível de um código em uma estrutura de códigos) pertinente aos nossos propósitos, neste artigo, será o do gênero musical. Segundo concepções musicológicas contemporâneas, o gênero deixou de ser definido exclusivamente por suas características formais, e seu entendimento passou a orientar-se

em direção a uma concepção mais fluida e flexível, preocupada, acima de tudo, com a função, com a retórica ou “discurso” do gênero no interior da comunicação e recepção da arte. As unidades de repetição que definem um gênero musical [...] podem estender-se para o domínio social, de tal forma que a definição de um gênero dependerá do contexto, função e validação pela comunidade, e não, simplesmente, em regulação formal e técnica. Assim, as repetições estariam localizadas em domínios sociais, comportamentais e mesmo ideológicos, bem como em materiais musicais. (SAMSON, 2005)

Ainda, conforme lembra Samson, o gênero possui uma função de estabilização de significados – uma função socialmente conservadora, que deve ser mantida em mente.

Por sua vez, o etnomusicólogo Robert Walser desenvolveu estudos sobre o gênero musical baseando-se nos trabalhos em teoria literária de Tzvetan Todorov. Para WALSER (1993, p.xiv), o gênero musical deixa de ser compreendido como um conjunto autônomo de características estilístico-formais, e passa a constituir-se em um sistema social de produção e comunicação de sentidos. Os detalhes musicais dos gêneros tornam-se um discurso – “unidades gestuais e sintáticas significantes, organizadas por narrativas e outras convenções formais, [que] constituem um sistema para a produção social de sentido” (WALSER, 1993, p.xiv).

Se os gêneros musicais são sistemas de significação social – discursos, como afirma Walser – então os indivíduos podem identificar-se com tais discursos, e isto é de fácil verificação. Muito frequentemente, a profunda apreciação por um gênero – o rap, o punk rock, o samba, o pagode – é acompanhada pela adoção, pelo sujeito, de códigos sartoriais, comportamentais e linguísticos associados a estes gêneros. Isto quer dizer que, sendo um discurso, o gênero musical conecta a subjetividade aos processos sócio-históricos. Desta maneira, gêneros musicais conferem identidades. Detalhes musicais passam a associar-se a atitudes e crenças – ideologias – que tanto congregam comunidades de sujeitos identificados com os valores do grupo, como também mantêm afastados aqueles que adotam uma atitude de rejeição em relação a estes valores.

No entanto, uma vez estabelecidos significados para os elementos estilísticos, surge também a possibilidade de apropriação diferencial, “anômala” ou crítica, destes mesmos detalhes musicais, por parte de outros grupos, levando à sua ressignificação, notadamente, através do jogo e da ironia. Evidentemente, estes novos significados adicionados aos gêneros participam, por sua vez, do complexo processo de produção de subjetividades por meio da música, ao tornarem-se objeto de identificações por parte dos fruidores.

A este ponto, coloca-se a necessidade de problematizar a habitual tendência de negligenciar a participação do coletivo anônimo na criação das produções culturais. Ou seja, o fato de que certos elementos estilístico-musicais adquirem conotações que os fazem ser incorporados a gêneros musicais com fortes associações existenciais parece dever-se a escolhas, negociações, conflitos e disputas coletivos, mais do que a decisões autônomas emanadas de cantores, compositores e instrumentistas profissionais. Pelo contrário, parece legítimo acreditar que estes artistas devem seu sucesso eventual à felicidade com que captam, com sua intuição privilegiada, tais conflitos e opções coletivas.

Esta abordagem se insere na linhagem pós-estruturalista que interpreta a cultura como um texto, inaugurada pelo crítico literário Silviano Santiago no Brasil em 1972, no artigo “Caetano Veloso enquanto Superastro” (SANTIAGO, 2000, p.148). Neste artigo, inicialmente, Santiago chama a atenção para a cobertura jornalística dos astros de cinema pela imprensa estadunidense da década de 50 para discutir o fato de que essas revistas buscavam construir uma imagem dos artistas que fosse condizente com o “critério estabelecido pela verdade da comunidade, isto é, [com o] código de comportamento e de valores ditado pela middle class americana e que as revistas reafirmavam, ou pelo elogio ou pela crítica, ao homem ou ao ator” (SANTIAGO, 2000, p.147). Em outras palavras, a ideologia social, da qual as revistas eram representantes, construía os artistas. Através das revistas, a ideologia estabelecia que era necessário “[t]irar a maquiagem do rosto do homem para poder lhe entregar a responsabilidade do cidadão atuante dentro da comunidade” (SANTIAGO, 2000, p.147). Confundir a ambas poderia ser perigoso, sugere Silviano. O astro é, então, não um valor positivo, mas um significado construído relacionalmente a partir de categorias simbólicas sociais: um discurso. Portanto, da mesma forma que o discurso musical do gênero, o artista é um discurso: a sociedade fala por intermédio de seus artistas.

Sendo assim, metodologicamente, este artigo acompanhará o pensamento de autores que advogam que uma canção (música, letra, performance) é uma representação da comunidade e do nativo. Tão confiável quanto qualquer outra, não invalida, mas não é substituível pelo caderno de campo e outras formas de registro etnográfico mais estabelecidas. O etnomusicólogo Steven Feld (FELD, 1990), por exemplo, busca entender através dos textos

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(ou seja, músicas) como os nativos reais escutam e pensam sobre suas atividades, e musicólogos como Susan McClary (MCCLARY, 1991) e Christopher Small (cf. seu conceito de musicar, SMALL, 1987 e 1999) compreendem estruturas musicais como textos fabricados socialmente cujo cerne são construções históricas e políticas. Mais ainda, de maneira geral, este foco na música “em si” como elemento iluminador da integralidade de uma cultura é a própria razão de ser de campos de estudo como um todo, como a etnomusicologia (que possui um foco decididamente antropológico) e os popular music studies. Já há algumas décadas, parte da musicologia também se rege pelos mesmos princípios. E, finalmente, para retornar à perspectiva pós-estruturalista, o “texto” em si não se distingue do “contexto”, pois é formado de fragmentos da ideologia (que perpassa a realidade cotidiana, e não se distingue da cultura, em seu sentido antropológico). A experiência se constrói nesse texto mais amplo escrito pela cultura (ou ideologia), sendo impossível “sair” do texto (isto é, das estruturas simbólicas que perpassam/constroem a cultura, as instituições, os modos de produção e os textos musicais discretos). Por esta razão, a ilusão de que os textos musicais (supostamente fantasiosos e irreais) são separados de uma “realidade” palpável e concreta constitui-se em uma oposição metafísica. Pelo mesmo movimento, compreende-se que o papel da música na construção de subjetividades não deriva de uma consciência supostamente transcendental (o Autor), mas de uma atividade produtiva – embora, desde sempre, contraditória – do coletivo anônimo.

3 - Discursos musicais conservadores e transgressões femininasO objetivo deste ensaio é, então, estudar de que maneira a cantora e compositora Marina Lima – enquanto discurso de um coletivo – se apropriou das convenções (socialmente criadas) de gênero do rock, com o fim de problematizar e ironizar construções de gênero na canção Mesmo que seja eu (Roberto Carlos/Erasmo Carlos). Este processo é consequente da atividade produtiva do coletivo anônimo, como descrito anteriormente, e retroage sobre os processos de subjetivação de seus ouvintes, realimentando o processo.

O estilo de Marina – longe de ser uma criação inteiramente individual – já evidencia, por si, este mecanismo coletivo de subjetivação descrito acima, uma vez que a cantora insere-se em uma linhagem de mulheres que desafiaram a hegemonia masculina ao apropriarem-se de atributos simbólicos reservados aos homens. No caso em questão, estilos de emissão vocal, escolha de repertório, códigos sartoriais e gestuais, e outras decisões socialmente marcadas em relação aos gêneros feminino e masculino. Esta linhagem de mulheres transgressoras inclui, de forma mais radical, Bessie Smith e Janis Joplin, entre outras.

A música popular anglo-saxônica é especialmente pertinente aqui, pelo fato de constituir-se no depositório musical e cultural privilegiado por Marina Lima para

a montagem de seu estilo. O timbre característico da voz cantada de Janis Joplin, por exemplo, foi tomado do gênero conhecido nos países anglo-saxões como “cock” rock. Conforme os críticos Simon Frith e Angela McRobbie, o “cock” rock é “uma expressão explícita, crua e frequentemente agressiva da sexualidade masculina” (FRITH e McROBBIE, 1990, p.374). A voz neste estilo consiste em um som áspero, que é frequentemente utilizado por cantores como Bruce Springsteen, Rod Stewart e Mick Jagger. O som é produzido essencialmente pela garganta e pela boca, com uma utilização mínima das câmaras de ressonância do peito e da cabeça, e através de uma forte tensão das cordas vocais (SHEPHERD, 1991, p.167).

Para Frith e McRobbie, “cock” rockers têm a propensão de serem “agressivos, dominadores, fanfarrões, e buscam, constantemente, lembrar suas plateias de seus poderes e seu controle” (FRITH e McROBBIE, 1990, p.374). Ao apropriar-se destas convenções músico-culturais, Janis assumiu a posição simbólica de um homem sendo uma mulher, estabelecendo um olhar irônico em relação aos papéis definidos estereotipicamente para os gêneros. Ao mesmo tempo em que desconstruía definições essencialistas de homem e mulher, Janis reclamava também para o gênero feminino prerrogativas reservadas ao gênero masculino, abrindo a possibilidade de avanços sociais e políticos concretos e significativos. Possibilidade retomada, entre outras cantoras famosas e mulheres comuns (cantarolando em suas tarefas cotidianas), por Marina Lima, explicitando o caráter social e coletivo deste poderoso mecanismo de subjetivação proporcionado pela música em sua especificidade.

O soft rock é um gênero complementar ao “cock” rock. Trata-se de um gênero baseado na sentimentalidade da forma balada, tradicional no repertório anglo-saxão, e que se coloca – estereotipicamente – no plano do “feminino”. A complementaridade entre “cock” rock e soft rock na fabricação dos gêneros masculino e feminino se dá entre dois momentos de um mesmo homem (agressivo/vulnerável) e de uma mesma mulher (objeto da agressividade masculina, e entidade maternal provedora de afeto e compreensão). Mas não se deve esquecer a complementaridade entre homens e mulheres a ocupar posições simbióticas concretas ao longo deste eixo simbólico imposto pela ordem social e reproduzido pela música. Isto é, a uma masculinidade agressiva corresponde uma feminilidade submissa, e assim por diante.

Como veremos, Mesmo que seja eu, na interpretação de Marina, desestabiliza e torna ambíguas as convenções dos gêneros musicais empregados. Para TODOROV (1990, p.10), os gêneros literários encarnam as ideologias de uma sociedade, e o mesmo pode ser dito dos gêneros musicais, como vimos. Portanto, a sobrevivência das ideologias apóia-se em sua presença definida e entendida sem ambiguidades no interior das produções simbólicas desta sociedade. Logo, pode-se supor o que poderia acontecer caso estas definições tornassem-se consistentemente

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confusas e indefinidas – em outras palavras, caso o que acontece, no plano particular, com Mesmo que seja eu, se tornasse generalizado.

Segundo FRITH E McROBBIE (1990, p.375-381), o soft rock oferece três posições discursivas definidas para identificação por parte de ouvintes e performers: 1) a jovem solteira ou esposa que usa seus encantos e empatia para atrair e apoiar emocionalmente o homem vulnerável; 2) o jovem rapaz vulnerável, envolvido em seus problemas de afirmação na adolescência; e 3) a mulher como objeto sexual. A estes eixos temáticos correspondem timbres definidos, que estabelecem a identidade musical do soft rock, assim como vimos no caso do “cock” rock. Para Shepherd, o som típico de uma cantora identificada com a primeira posição (“woman as nurturer”, ou figura maternal) é suave e cálido, produzido com as pregas vocais mais relaxadas; utilizando em particular a câmara peitoral, produz um som rico e ressonante. No segundo caso, do qual um bom exemplo é “Yesterday”, cantada por Paul McCartney, a voz do cantor é também quente e suave, em comparação com o som áspero e rígido do “cock” rock, mas aquelas qualidades são atingidas menos com a ressonância peitoral do que com as câmaras da cabeça. O som é, portanto, leve e fino, comparado com aquele obtido pela mulher enquanto figura maternal. Analogamente, os sons da mulher-objeto são sensivelmente mais tensos e brilhantes, e tendem a ressoar na cabeça (SHEPHERD, 1991, p.167-168).

4 - Mesmo que seja eu: intertextualidade e contradição em duas interpretações conflitantesCom base nestas considerações sobre detalhes musicais e suas significações convencionais em nossa cultura, passemos à análise de Mesmo que seja eu, inicialmente na interpretação de Marina Lima e, em seguida, comparando-a à versão de Erasmo Carlos. A intertextualidade resultante deste procedimento, inclusive, parece ter sido proposta deliberadamente pela cantora, uma vez que suas intenções críticas e irônicas se tornam mais evidentes a partir do exame comparativo das duas versões. Sendo largamente conhecida, a gravação de Erasmo Carlos para esta canção não coloca problemas para seu reconhecimento e confronto para os ouvintes que entraram em contato com a interpretação de Marina.

Musicalmente, uma textura extremamente leve é produzida na introdução por um acompanhamento monofônico em pizzicato utilizando a fundamental e a quinta, com uma figura em ostinato que comunica um pulso energético sutil. A esta linha melódica vem juntar-se uma outra linha contrapontística, que utiliza um timbre de piano elétrico. O todo transmite a ideia de indefinição e expectativa, e se adapta bem à ideia de uma atmosfera sexualizada que se confirmará com as primeiras palavras emitidas pela cantora, ocupando a posição de mulher-objeto.

Na versão de Marina Lima, percebemos uma deliberada ambiguidade entre os variados campos semânticos atualizados pelas retóricas dos gêneros “cock” rock e soft rock, que é potencializada pelos significados veiculados pelo texto linguístico. Neste momento da introdução, a cantora faz sua primeira intervenção adotando o papel da mulher que se oferece ao olhar de desejo masculino, ao sussurrar com voz rouca palavras que sugerem o encontro erótico (0:08-0:15min). No entanto, a frase dita, “é... cada um de nós precisa... precisa de um homem... pra chamar de seu...” já provoca um certo estranhamento no ouvinte, por perturbar a lógica convencional que rege a flexão de gênero do artigo indefinido em relação ao sujeito da enunciação. Será que a cantora está a dizer (ao ouvinte, identificado com a posição de parceiro/parceira) que todos precisamos de um homem, inclusive os homens? Mas que definição de homem seria válida neste caso, já que o sujeito da enunciação é uma mulher que se anunciará como um homem no refrão da canção, ainda que através de locução conjuntiva concessiva (“mesmo que seja eu...”)?

Nos momentos iniciais de sua intervenção cantada (0:22-0:54) Marina continua adotando a posição de objeto do desejo do observador, ainda que a emissão vocal, em certos pontos, seja colorida pelo sarcasmo (“desilusão, meu bem...”; “xi...”). Em um dado momento, a cantora adota momentaneamente as convenções vocais do “cock” rock, fazendo a transposição mulher-objeto/ macho desejante (“xi, sem ninguém!”, 0:56), retornando em seguida à posição inicial. Seguirá nesta postura sexualmente provocante até bem próximo do final da canção (3:38), quando, então, adota definitivamente o timbre tomado ao “cock” rock, utilizando o qual repetirá várias vezes “um homem pra chamar de seu/ mesmo que seja eu”. A ironia é evidente ao nível linguístico, por tratar-se ela de um sujeito do gênero feminino; mas é ainda potencializada pelo timbre marcado pela agressividade sexual masculina. Esta ambiguidade definida pela voz feminina em contraste com a posição simbólica masculina é ainda complexificada pela decisão de manter o acompanhamento instrumental no gênero soft rock. Desestabilizando as convenções de gênero através de um jogo irônico levado a efeito por meio do discurso musical, Marina define seu intuito crítico. Propósito que se torna ainda mais visível se compararmos sua interpretação para esta canção com a de Erasmo Carlos, o letrista de Mesmo que seja eu. Aqui temos oportunidade de perceber como a performance e a execução musical – enunciação – são suficientes para transformar os sentidos do texto verbal (enunciado).

Ouvindo agora esta outra versão, que na verdade antecedeu cronologicamente a de Marina, podemos perceber ainda mais claramente a intenção irônica da cantora, visto que ela interpela explicitamente a versão de Erasmo. Nesta, o cantor epitomiza o gênero soft rock. Sua voz, tímida e insegura, situa-se no extremo oposto à autoconfiança arrogante do “cock” rock, e explicita sua vulnerabilidade

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ao dirigir-se à mulher desejada. Não ouvimos aqui ironia ou sarcasmo, mas uma busca de “autenticidade”. O cantor tem consciência de sua inadequação ao papel masculino socialmente validado, e sua narrativa assume o tom desencantado de quem faz uma oferta sexual que se sabe insatisfatória, mas que ao menos é real (uma concepção de real amparada no plano biológico, na falta de uma efetiva capacidade de empatizar com o outro, partilhar problemas e proporcionar apoio emocional e afetivo).

Esta confissão de fracasso é salientada pela cadência interrompida, que coincide exatamente com o eu no refrão (“mesmo que seja eu...”, 2:43). Com suas conotações de incompletude, carência, desapontamento enfim, a cadência interrompida, coincidindo com o eu, equivale a uma confissão de impotência, neste contexto. É importante ressaltar também que a cadência interrompida ocorre em três outras situações que se referem à situação de desamparo da mulher a quem o cantor se dirige: “sozinha (no silêncio do seu quarto”), “(jamais vai poder livrar você da fera da) solidão” e “(aumen)ta o rádio”. Através deste recurso semiótico musical, estabelece-se uma relação de identidade entre o homem e a mulher, que é fundada na fraqueza, na penúria (de amor e de recursos para superar as adversidades). Este instante musical é coerente com a ideia geral que o cantor comunica a respeito da mulher decantada. Quando se refere às fantasias fracassadas da interlocutora, a seus castelos, dragões e desilusões, percebemos um tom claramente condoído. O sujeito da enunciação se identifica com a mulher, colocada também em posição de fragilidade pela frustração do próprio desejo dela. Assim, a figura feminina deixa de ter interesse como objeto sexual. Seu sofrimento – na imaginação do rapaz que canta – a tira da posição de objeto de desejo, e ela passa a ocupar na psique dele o lugar de uma entidade maternal, capaz de proporcionar compreensão e aceitação de suas fraquezas, de sua inadequação. Deve-se notar que, em ambas as posições, a mulher não é sentida ou experienciada como parceira.

Entendemos, agora, com mais sutileza a interpretação de Marina. Com sua ironia e sarcasmo, a cantora coloca o “real” em questão. Enquanto a persona construída por Erasmo se apresenta como um candidato ao amor que, mesmo usufruindo de uma condição biológica masculina,

se desculpa antecipadamente por sua insuficiência como homem, a criação de Marina impõe-se, com humor, de forma inteiramente afirmativa. Em sua versão, Marina praticamente exclui a cadência interrompida, que surge apenas duas vezes, e mesmo assim apenas no início da canção. Na primeira ocorrência (0:44), é resignificada por meio do sarcasmo (“xi...”). Na segunda (1:23), pelo uso de um forte tensionamento rítmico, que dominará o restante da música. A partir daí, a cadência interrompida é substituída pela cadência perfeita. Na versão de Marina, a voz que ouvimos não é condescendente, não se condói de sua interlocutora e nem de si mesma, e portanto pode prescindir dos recursos da cadência interrompida. Seu sarcasmo é como um puxão de orelhas afetuoso, que subentende a convicção de que a interpelada tem plenas reservas para reagir à desilusão e retornar à vida por si mesma.

Na boca de Marina, “mesmo que seja eu” não é confissão de inadequação, mas constatação brincalhona de um desmoronamento das categorias de “homem” e “mulher” tal como estão instituídas. Na intertextualidade construída pelas duas versões, o homem “real” significado por Erasmo é fraco e impotente, enquanto o homem construído ironicamente por Marina é seguro e autoconfiante, e vê em sua parceira estas mesmas características.

E que homem seria este? Retornando ao início, que definição de homem seria válida neste caso? Frente ao fracasso e impotência do homem “real”, e à autoconfiança do homem incorporado pelo sujeito da enunciação interpretado por Marina, as definições convencionais perdem a consistência – o que parece real deixa de sê-lo, e o resultado é a instabilidade (das identidades e categorias “masculino” e “feminino”). A partir de então, é impossível para nós deixarmos de associar estas ideias transgressoras ao discurso musical instituído, o que introduz uma fissura na rigidez semiótica do gênero musical. Participando da produção de novas subjetividades, este discurso encontra sua expressão mais ampla na reestruturação da ordem social. Contribuindo para desestabilizar o discurso identitário desde sua fundação – a ordem simbólica – através da subversão do discurso musical, o discurso social de muitas mulheres que antecederam Marina Lima e é retomado por ela faz a crônica de tempos diferentes e inscreve sua fala no diálogo com o Mesmo.

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Álvaro Simões Corrêa Neder é etno/musicólogo e professor da graduação e pós-graduação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Possui Doutorado em Música, pela UNIRIO (2012), e Doutorado Multidisciplinar em Letras (Literatura Brasileira, Linguagem e Teoria da Literatura) pela PUC-Rio (2007). Foi Teacher Assistant na Universidade Brown durante parte de seu estágio de doutoramento nesta universidade, ministrando o curso Introduction to Ethnomusicology. Publicou o livro Creativity in Education: Can Schools Learn with the Jazz Experience? (WCP, EUA, 2002). Sua tese de doutorado sobre a MPB dos anos 60 foi selecionada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio para representar o programa no Grande Prêmio Nacional Capes de Teses de Doutorado 2008. Como crítico musical, publicou textos para vários livros de referência lançados nos EUA e acima de 2.300 artigos na imprensa norte-americana. Desde 1980 atua como professor de música, músico e produtor musical, tendo sido membro da Old Time String Band, coordenada pelo etnomusicólogo Jeff Titon.

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Recebido em: 19/08/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

“Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá”: a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX

Rodrigo Cantos Savelli Gomes (UDESC, Florianópolis-SC)[email protected]

Resumo: Esta investigação lança-se sobre o samba da Pequena África do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX de modo a analisar a atuação das mulheres na região que ficou conhecida como o berço do samba. A partir disso, identifiquei que as Tias Baianas da Pequena África foram mulheres atuantes e influentes no meio musical de sua época, compositoras, instrumentistas, cantoras, agentes transformadoras em um território tido como essencialmente masculino, como é o caso de Ciata, Perciliana, Carmem do Ximbuca, Maria Adamastor, Amélia Aragão, Mariquita, entre outras. Trata-se de um mundo musical feminino desvalorizado, obscurecido por uma construção histórica criada pelas classes superiores, focada nos grandes personagens, nos grandes eventos supostamente mais importantes, no domínio da vida pública, na tradição escrita, com escassos ou mesmo nenhum interesse na face doméstica, na tradição oral, no conhecimento das mulheres.

Palavras-chave: mulheres negras no samba; história do samba; Tias Baianas; relações de gênero na música.

“They said over the phone to question this story where women are not present”: the role of women musicians in Rio de Janeiro’s samba in early twentieth century

Abstract: This research investigates the samba in Pequena África do Rio de Janeiro during the first decades of the 20th century in order to analyze the role of women in the process its formation. From this, I identified that the Tias Baianas from Pequena África were active and influential women in the music of their time, composers, instrument players, singers, people who shaped a territory considered essentially masculine, such as Ciata, Perciliana, Carmem do Ximbuca, Maria Adamastor, Amélia Aragão, Mariquita, etc. This is a musical world where women were devalued, obscured by a historical construct created by the upper classes, focused on the big men, on the major events in the supposedly more important field of public life and the written tradition, with no interest in the domestic face, in the oral tradition, and in the knowledge of women.

Keywords: black women in samba; history of samba; Tias Baianas; gender relations in Brazilian music..

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

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1 – IntroduçãoA partir da perspectiva dos Estudos de Gênero e da Musicologia, este estudo1 tem como objetivo investigar como se estabeleceram as relações de gênero no samba da cidade do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX, período inicial de sua consolidação como símbolo nacional. Com o propósito de questionar a visão ocidental sobre a natureza das construções de gênero que identificam a sexualidade masculina como lócus de poder, apresento uma revisão sobre a importância da atuação das mulheres, bem como a produção de símbolos e marcas da face feminina que constituíram o complexo mundo do samba carioca deste período. Sustento que, apesar do imenso interesse no samba enquanto expressão cultural brasileira, grande parte dos estudos subestimou a importância da produção musical das mulheres e dos elementos femininos constituintes desta manifestação.

Assim como os cânones da música europeia foram consolidados a partir do ponto de vista da masculinidade, privilegiando a figura do homem e do universo masculino em detrimento da mulher e do feminino (MCCLARY, 1991; MELLO, 2007; WILLIAMS, 2007), o imaginário que vem sendo construído a respeito da história do samba e, consequentente, de grande parte da música popular brasileira, vem seguindo um processo semelhante. Trata-se de uma narrativa cujo protagonismo está hierarquizado na figura dos compositores – em sua imensa maioria homens – e suas obras musicais registradas em partituras ou gravações, cuja estrutura seletiva está edificada pelos padrões estéticos estabelecidos pela alta cultura através da categorização ‘arte’2. Nesta narrativa, assume segundo plano a produção dos cantores-intérpretes, e terceiro ou nenhum plano a produção dos arranjadores, regentes, instrumentistas, a audiência, a música de tradição oral, a música fora dos padrões consagrados, fora dos grandes centros urbanos e, conforme apresento aqui, a produção musical feminina. Na narrativa dos compositores e suas obras primas, as mulheres só começam a ganhar algum destaque no samba a partir da década de 70, quando são apresentadas Clementina de Jesus e Ivone Lara, mais de 50 anos após a gravação e ampla divulgação da música Pelo Telefone3, considerada o marco inicial desta resignificação simbólica ao exigir a incorporação da função-autor no universo do samba.

No tocante aos estudos musicológicos, durante muito tempo a musicologia trabalhou no sentido de reforçar o paradigma da masculinidade, edificando-se, para isso, em determinados personagens mitológicos masculinos (Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Stravinsky, Chopin, etc.) e um determinado conceito de obra arte, de obra musical, de estética, de beleza, cuja ênfase está na dimensão racional, na objetividade, na seriedade, propriedades frequentemente associadas ao gênero masculino. Neste contexto da música clássica e da musicologia, alguns estudos no campo das relações de gênero e da musicologia feminista (MCCLARY, 1991; MELLO, 2007; WILLIAMS, 2007) têm demonstrado, por exemplo, elementos da teoria musical tradicional onde o masculino está adjetivado em

termos como forte, normal e objetivo, enquanto que o fraco, anormal, subjetivo, irregular, fora do comum, o desvio da regra, o instável, aparece frequentemente associado ao feminino. Essas propriedades aparecem em estruturas como cadências, temas, terminações, seções musicais, conforme revela MCCLARY(1991) em seu livro Feminine Endings.

A partir dos pressupostos teórico-metodológicos levantados por McClary para o estudo das mulheres na música4, apresentarei a seguir uma revisão da bibliografia especializada do samba, buscando notas de rodapé, anexos e temas paralelos a história marginal das mulheres e as representações do feminino no samba carioca das primeiras décadas século XX. O fato de haver um limitado conjunto de informações na bibliografia a respeito das mulheres e sua participação no samba, implicou que eu buscasse complementá-lo com a realização pequenas imersões na cidade do Rio de Janeiro entre 2009 e 2010, onde pude buscar informações em instituições como Museu da Imagem e do Som, Biblioteca Nacional, Centro Cultural Cartola, Cidade do Samba, Centro Cultural da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Além disso, neste período tive a oportunidade de realizar entrevistas não-estruturadas com algumas mulheres influentes do mundo do samba carioca como Vó Maria5, Tia Surica6, Áurea7, Dona Neném8, Maria Moura9 além de conversas informais com Lygia Santos10, Jurema Werneck11, Nilcemar Nogueira12. Tal imersão se aplicou no sentido de buscar uma complementação e não de realizar uma etnografia, de modo que o trabalho mantém a característica de se apresentar como um estudo de revisão histórico-bibliográfica.

Apresento a seguir um exame das relações de gênero no samba carioca tendo como recorte a região que ficou conhecida como “Pequena África do Rio de Janeiro”14. Com este recorte, mostrarei que as relações de gênero neste contexto – assim como em outros territórios hegemonicamente afro-brasileiros – se configuravam de uma forma diferente daquela estabelecida pela tradição centro-europeia (incorporada pela alta sociedade brasileira) e que tal especificidade pode ter exercido uma influência significativa na produção musical deste contexto. Para isso, tomarei como referência alguns estudos que se aprofundaram nos fundamentos religiosos e culturais das tradições afro-brasileiras como THEODORO (1996 e 2008), LANDES (2002), SANTOS (2006), AMARAL (2007), MATOS (2007) que apontam para a possibilidade de tais territórios serem regidos por uma espécie de matriarcado. Neste sentido, argumentarei que tal produção musical era constituída por uma expressiva participação feminina, e que este samba era menos fragmentado em relação aos papéis de gênero. A ideia do samba como um território masculino e de produção de masculinidades, como a literatura a cerca da música popular brasileira sugere, seria, portanto, uma construção posterior que tem mais haver com a invenção do samba como produto de uma identidade nacional/brasileiro do que com o samba enquanto expressão cultural afro-brasileira.

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2 – Uma Pequena África que dá sambaA maioria dos estudos culturais sobre o Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX aponta a região que ficou conhecida como “Pequena África” como a principal matriz na formação de uma cultura popular urbana no Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e início XX. Trata-se de um território que, no período em questão, foi ocupado majoritariamente por afro-brasileiros, entre eles, migrantes de diversas partes do Brasil. Habitaram principalmente as regiões da Pedra do Sal e Saúde, localidade situada perto do cais do porto. Em seguida, este território se estendeu para as ruas da Cidade Nova e Campo de Santana, como as ruas Visconde de Itaúna e Senador Eusébio, Santana e Marquês do Pombal, convergindo na Praça Onze de Junho e, mais tarde um pouco, indo para os morros em torno do Centro. Neste contexto, um determinado grupo de migrantes baianos se tornou um dos principais protagonistas desta narrativa.

A concentração em torno destes baianos tomou uma dimensão ainda maior a partir da publicação, em 1983, do livro de Roberto Moura, Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. O trabalho de MOURA foi um dos primeiros a situar a trajetória do grupo baiano em seu processo histórico e social, tornando-se um clássico e referência obrigatória nos estudos sobre cultura popular brasileira. Seguindo esta tendência, a maioria dos pesquisadores que contribuíram para a construção histórica do samba (SODRÉ, 1998; SANDRONI, 2001; PEREIRA, 2003; M. MOURA, 2004; CUNHA, 2004; DINIZ, 2006; CALDEIRA, 2007; VIANNA, 2007) passou também a atribuir a este

contexto o meio principal onde o samba teria encontrado um terreno propício para seu desenvolvimento enquanto gênero musical e prática sócio-cultural, culminando na sua posterior projeção como gênero musical característico da cultura brasileira, símbolo da identidade nacional, conforme aponto nos trechos abaixo:

O samba desenvolveu-se no Rio de Janeiro a partir de redutos negros (os baianos do bairro da Saúde e da Praça Onze), como já foi acentuado. Nas festas familiares, tocava-se e dançava-se o samba em seus diversos estilos, para o divertimento dos presentes (SODRÉ, 1998, p. 35).

Foi nessa região “reterritorializada” do Rio de Janeiro, área periférica habitada por excluídos, ex-escravos, judeus de várias partes do mundo, enfim toda sorte de pessoas que não participava da vida social da nossa capital, que o samba emergiu. [...] Nesta periferia se reuniam os futuros bambas: Ciata, Hilário Jovino [...], João da Baiana, Sinhô, Heitor dos Prazeres e Donga, nomes que ecoam até hoje nos redutos do samba. Foram eles que fizeram de uma atividade quase marginal uma expressão de arte (M. MOURA, 2004, p. 58).

O cenário dessa epopeia foi a cidade do Rio de Janeiro, e os atores principais deixaram seus nomes gravados: Donga, Sinhô, Pixinguinha, Ismael Silva [baianos ou filhos das Tias Baianas]. Foram eles os responsáveis pela construção do samba (CALDEIRA, 2007).

[...] fase pioneira da criação do gênero no Rio de Janeiro, no início do século XX, com o grupo de imigrados baianos cuja representante mais ilustre foi a famosa Tia Ciata. Essa fase pioneira se consolida no ano de 1917, que foi o ano do lançamento de Pelo telefone, considerado por todos como o marco inicial do gênero. É a partir de então que a palavra “samba” entra no vocabulário da música popular (SANDRONI, 2001, p. 15).

Os compositores pioneiros do samba [...] vivenciaram e construíram todo um legado cultural que a Cidade Nova

Ex.1 – Fotos de algumas das mulheres contatadas para esta pesquisa. Da esquerda para a direita, linha de cima: Dona Neném, Áurea, Maria Moura, Jurema Werneck. Linha de baixo: Nilcemar Nogueira, Vó Maria, Tia Surica.

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simbolizou no universo carioca. Frequentaram, sem exceções, as casas das famosas baianas festeiras, espaço de acolhida material, espiritual e cultural importantíssimos para a história cultural negra e do samba (DINIZ, 2006, p. 27).

Atualmente, essa centralidade em torno dos baianos vem sendo revista por alguns estudiosos que passaram a sugerir outras visões e experiências na formação deste repertório cultural tão importante para a constituição da identidade nacional. Para citar alguns: MUKUNA (2006) que apresenta um estudo sobre a influência dos escravos de etnia banto para música popular brasileira; CUNHA (2001), que destaca as diferentes práticas carnavalescas das populações pobres e das camadas altas do Rio de Janeiro, revelando suas contribuições na formação do carnaval brasileiro; GOMES (2003), que revela a importância de outros territórios culturais no processo de formação do samba, como as regiões situadas em torno da Portela, Mangueira e Império Serrano.

Ciente desta lacuna, o presente estudo manterá o foco no núcleo baiano da Pequena África do Rio de Janeiro, procurando, quando possível, contrapor com dados de outros contextos culturais e geográficos. Se a contribuição feminina nas práticas musicais desta região é pouco valorizada, apesar da literatura ter sido amplamente direcionada para esta realidade, que dirá em contextos ainda pouco explorados. Este estudo não pretende dar conta desta problemática, por isso, a partir de agora vou me concentrar em alguns aspectos das relações de gênero no contexto da Pequena África do Rio de Janeiro, em especial, as conexões entre o sagrado e o profano em torno das práticas musicais ali estabelecidas.

3 – Tias Baianas que lavam, cozinham, batucam, dançam, cantam, tocam e compõemEstudos sobre religiosidade têm demonstrado que em diversos territórios majoritariamente por afro-brasileiros a mulher negra costuma possuir um elevado status social, (THEODORO, 1996; LANDES, 2002; SANTOS, 2006; MATOS, 2007). Nestes contextos – como é o caso também da Pequena África do Rio de Janeiro – não se sustenta o modelo burguês de família que delega à mulher o espaço do lar, a criação dos filhos e a submissão, e ao homem o trabalho, a subsistência da família e o controle sob a terra e os bens. Inúmeras razões costumam ser apontadas no processo de consolidação deste diferencial da mulher negra.

Alguns autores, especialmente não acadêmicos, referem-se a uma herança cultural que teria sido trazida das terras africanas e preservada em solo brasileiro pelos escravos e seus descendentes. Embora na maioria das etnias da África Negra a posição da mulher seja inferior à dos homens,

Por toda a África à mulher se deram tradicionalmente grandes oportunidades (como propriedade e controle de hortas e pomares, mercados, negócios domésticos, sociedades secretas) e reconhecimento oficial (de sacerdotisa e médium, os paços de rainha e outras entidades que tratam de interesses femininos); por vezes

a mulher as partilhava com os homens. Era assim nas complexas sociedades da África Ocidental de onde veio, ou descendia, grande parte da população escrava (LANDES, 2002, p. 349).

Entretanto, tem prevalecido na academia (VELOSO, 1990; AMARAL, 2007; LANDES, 2002; HITA, 2004, WOORTMANN, 1987) a ideia que, sob a escravidão, o homem negro experimentou a segregação familiar, a violência, o excesso de trabalho e humilhações mais profundamente do que as mulheres negras. A desvalorização da posição e oportunidades para o homem negro teria sido compensada pela intimidade que a mulher tinha com a casa grande, principalmente em função do trabalho doméstico desempenhado por elas, sempre essencial para subsistência da família dos senhores.

Mesmo décadas após a abolição, essa relação desigual permaneceu no mundo afro-brasileiro. A mulher negra rapidamente conseguiu se armar “em torno da infra-estrutura das casas ‘de família’, senhoriais e burguesas, como cozinheiras, lavadeiras, copeiras ou em qualquer outro serviço eventual requisitado” (MOURA, 1995, p. 72-73), tornando-se a principal provedora de sustento financeiro e referência familiar conforme argumentam VELOSO (1990), AMARAL (2007) e LANDES (2002).De fato,

[...] a mulher negra exercia, inclusive, uma importante influência modernizadora na cultura brasileira, já que por tradição herdada dos costumes africanos e por contingências da escravidão e do período pós Abolição, eram economicamente ativas e independentes. Eram mulheres que tomavam suas próprias decisões, o que lhes era possível porque para viverem contavam com seu próprio trabalho, geralmente como cozinheiras, lavadeiras, costureiras, amas-de-leite, amas-secas, vendedoras de acarajé, quindins, canjica e outros quitutes, criadas, padeiras, quitandeiras etc. Esta liberdade e independência ecoavam em sua autoridade no candomblé (e vice-versa), oferecendo o contraponto matriarcal ao desabrido domínio dos homens em toda a vida nacional e latina da época (AMARAL, 2007).

Desse modo, revela-se em muitas camadas populares afro-brasileiras uma espécie de matriarcado que não reproduz nem o modelo africano nem, muito menos, o modelo patriarcal de família importado dos colonizadores europeus.

A ideia de matriarcalidade15 que aplico ao contexto da “Pequena África do Rio de Janeiro” refere-se a um conjunto de relações, amizade, parentesco sanguíneo, parentesco religioso (pai, mãe e irmãos de santo) que está centralizado na figura de uma matriarca Tia-mãe-avó, que é o centro das interações de uma rede a partir da qual se multiplicam as relações entre todos os outros membros. Nesta configuração, o papel das Tias Baianas foi imprescindível para a sobrevivência do grupo, tendo se tornado a figura central para a permanência das tradições afro-brasileiras. Sua condição lhe concedeu situação econômica privilegiada, a posição central na casa, na comunidade e nas práticas religiosas, de modo que nos terreiros ou eram mães-de-santo (principal chefe espiritual) ou ocupavam os principais cargos subsequentes.

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Estudos sobre o samba do início do século XX costumam fazer inúmeras referências às Tias Baianas, especialmente mulheres como Tia Ciata, Tia Carmem, Tia Amélia, Tia Perciliana. Essas baianas estão entre personalidades consideradas mais importantes das camadas populares na virada do século XX na cidade do Rio de Janeiro, frequentemente proclamadas como ‘matriarcas do samba’, tidas como influentes e poderosas. No entanto, apesar da influência destas mulheres no campo político e religioso, raras indicações são encontradas referentes à presença delas no cenário musical. Apesar do explicito reconhecimento da importância das Tias Baianas na literatura e do alto status que a mulher negra exercia no meio afro-brasileiro, quando o assunto é a prática musical as mulheres deixam a cena. Há certo consenso, um imaginário construído do samba carioca no início do século XX que coloca as Tias Baianas como as responsáveis por gerar a estrutura propícia para o rito, protegendo, abrigando, mantendo a comida e a bebida, enquanto que o fazer musical é assumido pelos homens. Quando a roda se forma, as mulheres são mencionadas na dança e, quando muito, constituindo o coro e as palmas. Revelam-se, então, inúmeras personalidades masculinas, como Donga, Sinhô, João da Baiana, Pixinguinha, Hilário Jovino, Heitor dos Prazeres, Germano, Caninha, Almirante, Baiano. Alguns destes inclusive proclamados ‘Rei do Samba’ como Sinhô, ‘Imperador do Samba’ como Caninha ou ‘criador do samba’ no caso do Donga.

Apesar de muitos pesquisadores do samba e do carnaval brasileiro citarem a influência das Tias Baianas, essa menção é feita de um modo genérico. Não há um aprofundamento sobre quem eram essas mulheres. Geralmente seus nomes aparecem nas páginas introdutórias ou em associação aos grandes homens sambistas (mães ou esposas). Apenas uma delas, a Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida), foi posta realmente em destaque, fato que a tornou o modelo central ou a figura mais representativa das baianas desta época (GOMES, 2003). Por essas razões e, por falta de acurada investigação sobre as demais baianas, há uma significativa quantidade de informações a respeito das práticas afro-brasileiras na casa de Tia Ciata, sobre sua vida social e política, sobre sua família, suas origens e seus costumes. Portanto, é sobre ela que primeiro investirei a fim de trazer algumas evidências a respeito de sua imersão no cenário musical.

4 – Pelo telefone uma mulher mandou avisarA famosa polêmica gerada por causa da gravação da música Pelo Telefone – proclamada como primeiro samba a ser gravado no país, registrado com a autoria de Donga e Mauro de Almeida – sugere que Tia Ciata teria sido uma baiana que se dedicava também à composição, apesar de nunca ter sido assim nomeada em suas biografias e escritos sobre a história do samba. Assim que lançada, no ano de 1917, Ciata, João da Mata, Germano e Hilário, reclamaram a autoria deste samba, fato divulgado discretamente num canto de página do Jornal do Brasil em 4 de fevereiro de 1917, por meio da seguinte nota:

Do Grêmio Fala Gente recebemos a seguinte nota: Será cantado domingo, na Avenida Rio Branco, o verdadeiro tango Pelo Telefone, dos inspirados carnavalescos, o imortal João da Mata, o maestro Germano, a nossa velha amiguinha Ciata e o inesquecível e bom Hilário; arranjado exclusivamente pelo bom e querido pianista J. Silva (Sinhô), dedicado ao bom e lembrado amigo Mauro, repórter de Rua, (falecido) em 6 de agosto de 1916, dando ele o nome de Roceiro (JORNAL DO BRASIL citado por MOURA, 1995, p.124).

Além da nota de jornal, a própria letra desta versão parodiada da música Pelo Telefone sugere a participação efetiva de Ciata nesta composição.

Pelo telefone / A minha boa gente / Mandou avisar /Que o meu bom arranjo / Era oferecido / Pra se cantar.Ai, ai, ai, / Leve a mão na consciência, / Meu bem, /Ai, ai, ai, / Mas porque tanta presença, / Meu bem?Ó que caradura / De dizer nas rodas / Que esse arranjo é teu! /É do bom Hilário / E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu.Tomara que tu apanhes / Para não tornar afazer isso,/ Escrever o que é dos outros / Sem olhar o compromisso.

A polêmica em relação à autoria deste samba e se é mesmo o primeiro samba ou não a ter sido gravado, são temas que despertaram grande interesse nos estudos que tratam da música popular brasileira deste período. No entanto, a presença de uma Tia Baiana reclamando a autoria da música junto a sambistas consagrados foi pouco valorizada.

Notas de Mário de Andrade – que, segundo relatos, frequentou a Casa de Tia Ciata – podem reforçar essa aproximação de Ciata com a música. Embora o foco de seu relato fosse descrever os rituais de Macumba no Rio de Janeiro, Andrade refere-se casualmente à Tia Ciata

Ex.2 – Imagem das Tias Baianas do início do século XX16

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GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione. . .” Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.176-191.

como uma exímia compositora. Inclusive, introduz outra façanha da velha baiana: a intimidade com violão.

Uma das mais recentes mães-de-santo (pois que podem também ser mulheres) famosas foi tia Ciatha, mulher também turuna na música dizem. Passava os dias de violão no colo inventando melodias maxixadas e falam mesmo as más línguas que muito maxixe que correu Brasil com nome de outros compositores negros era dela apropriações mais ou menos descaradas (ANDRADE, 2006, p. 150).

No seu principal romance, Macunaíma, o herói sem caráter, Mario de Andrade retrata uma visita que sua personagem-título faz a casa de Tia Ciata para participar de uma cerimônia de macumba. Na descrição, reforça a façanha de Ciata ao violão e, novamente, acrescenta outro feito: sua cantoria.

Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue do zungu da Tia Ciata, feiticeira como não havia outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou [...] foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, já vovó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita (ANDRADE, 2004, p. 07).

Carmem do Ximbuca, contemporânea e irmã-de-santo de Ciata, em depoimento a Roberto Moura reafirma o imponente canto da baiana, versando e improvisando nas rodas de samba de sua casa. Segundo ela, Tia Ciata

[...] levava meia hora fazendo miudinho na roda. Partideira, cantava com autoridade, respondendo os refrões nas festas que se desdobravam por dias, alguns participantes saindo para o trabalho e voltando, Ciata cuidando para que as panelas fossem sempre requentadas, para que o samba nunca morresse (CARMEM citado por MOURA,1995, p. 100).

As evidências apontam que Tia Ciata além de cozinheira, dançarina e uma boa festeira, foi uma mulher atuante e influente no meio musical de sua época. Mais adiante, vou mostrar indícios que sugerem que Ciata não era um caso isolado entre as mulheres. Contudo, é preciso ressaltar que, se sobre Ciata – a baiana mais famosa – as informações foram encontradas com certa dificuldade, sobre as demais Tias Baianas, vão ficando cada vez mais escassas.

5 – Pastoras que sustentam o sambaAntes de continuar apresentando as mulheres musicistas da ‘Pequena África’, quero abrir um parêntese para comentar a respeito de um dos papéis desempenhados pelas mulheres no samba do final do século XIX e início do XX, uma ocupação fundamentalmente feminina. Trata-se de um coro feminino, chamado no contexto do samba por ‘pastoras’, responsável por cantar a melodia em diversas práticas musicais afro-brasileiras. As pastoras ganharam destaque principalmente no samba de quadra e nos desfiles dos ranchos carnavalescos. A partir da década de 1960, este coro passou a integrar as Escolas de Samba, onde manteve a designação ‘pastoras’, porém com uma mudança significativa em relação à função e hierarquia, conforme argumento logo a seguir.

Assim com muitos elementos do samba se originaram das práticas religiosas afro-brasileiras – sobre isso aprofundarei mais adiante ao comentar o sobre o papel da mulher na percussão – é possível que seja a partir do terreiro que o coro feminino se propagou para o samba. Embora nas práticas religiosas do terreiro o canto não seja privilégio de nenhum dos sexos (AMARAL e SILVA, 2008), a voz feminina, por ser em maior número e entoada em um registro mais agudo, se sobrepõe facilmente à dos homens, de modo que o que se ouve durante todo o ritual é praticamente um coral de mulheres.

Eram as Tias Baianas, mães e filhas-de-santo, que constituíam a base vocal nos ranchos cariocas das primeiras décadas do século XX. Entre as mais conhecidas, Maria Adamastor17, rainha dos diretores de rancho, assumiu a responsabilidade de pastora do Reinado de Siva e, além de pastora, neste mesmo rancho se destacou como mestre-sala. Amélia do Aragão18, conhecida como uma das mais importantes figuras do mundo do samba que atuavam na Cidade Nova, cantadeira de modinhas. Tia Carmem19,mulher que viveu toda sua vida engajada no carnaval carioca, segundo contam, “não cantou no rádio porque não quis,convites não faltaram” (COSTA citado por SILVA, 2009, p. 18).

Nos desfiles dos ranchos carnavalescos e até o período inicial de formação das primeiras escolas de samba, as pastoras cantavam a primeira parte e a segunda ficava a cargo dos chamados versadores ou mestre do canto que, na maioria das vezes, lançavam mão de versos improvisados, uma prática comum no samba deste período. Duas partes, portanto, eram perfeitamente distinguíveis “a primeira de caráter coral, destinadas às pastoras, e a segunda de caráter solista, destinada a um cantor de sexo masculino” (DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 40). Não se tinha por costume cantar uma única música como hoje fazem as escolas de samba, várias melodias podiam ser puxadas, por vezes, uma verdadeira miscelânea de sambas. Na medida em que os ranchos foram crescendo, as vozes das pastoras e dos versadores não podiam mais ser ouvidas por todos os integrantes durante todo o percurso do desfile, o que fazia com que, por vezes, parte do grupo mais próxima ao palanque estivesse cantando uma parte, enquanto que a turma da frente ou de trás estivesse cantando outro verso. Com isso, a possibilidade de cruzamentos (ou sobreposições) rítmicos, melódicos e de outras espécies era constante nestes desfiles. Assim que a tecnologia permitiu, as escolas passaram a trazer um carro de som para amplificar as vozes. Porém, neste processo, as pastoras perderam o destaque como condutoras principais. Desde 1946

a presença de versos improvisados foi oficialmente proibida nos desfiles. Mas é provável que o processo tenha sido paulatino, e que algumas escolas já tivessem, antes desta data, introduzido o hábito de desfilar com as segundas partes previamente compostas (DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 37).

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A responsabilidade de manter, sustentar o samba na avenida passou a se concentrar na figura de um homem, o solista, chamado de intérprete oficial, ou popularmente por “puxador”, embora sempre acompanhado de um grupo de apoio com mais quatro a seis homens. As pastoras passaram então para um plano secundário. Um grupo bem mais reduzido de mulheres, de três a seis (não mais 30 ou 40 como antes) passou a fazer um contracanto ou dobrar a voz do solista em alguns trechos selecionados, com a finalidade de dar um apoio ao cantor principal ou abrilhantar algumas passagens do samba-enredo. O termo “pastoras” se manteve, mas a função e o status da mulher cantora nas Escolas de Samba sofreram notável transformação. De fundamentais passaram a figuras dispensáveis e opcionais. A partir de então foram raros os casos de mulheres como “puxadoras” de samba, fazendo com que esta posição se tornasse essencialmente masculina.Algumas razões costumam ser levantadas para justificar essa inversão dos papéis de gênero.

Em primeiro lugar, as mulheres teriam menor resistência vocal para aguentar os quase 90 minutos de desfile, enquanto que a voz masculina teria maior peso e força. Pude verificar a atribuição de força e potência à voz masculina – portanto, ideal para conduzir o canto nos desfiles da avenida – em um estudo anterior sobre o samba na cidade de Florianópolis (ver: GOMES e PIDEDADE, 2010). As pastoras da escola de samba entrevistadas para aquele trabalho afirmaram que os homens subestimavam as vozes femininas para, com isso, garantir sua posição de destaque. Segundo elas:

eles acham que a gente não é capaz de cantar um samba inteiro na avenida pra ajudar. Eles dizem que nossa voz não tem peso igual à de um homem (GOMES E PIEDADE, 2010, p. 09); Falam que a mulher tem voz aguda, não pode puxar samba-enredo, que é homem que tem que puxar. A gente não canta todas as partes do samba-enredo. Eles acham que a gente não tem voz pra isso (GOMES E PIEDADE, 2010, p. 09).

Na mesma direção, Tia Surica, pastora da Escola de Samba Portela do Rio de Janeiro, em depoimento para esta pesquisa, apontou o processo de aceleração do samba-enredo como fator principal para a hegemonia masculina na posição de puxadores. Ela conta que puxou o único samba-enredo feito por Paulinho da Viola para a Portela, intitulado Memórias de um sargento de milícias,ano que a escola foi campeã do carnaval. Ao comentar sobre mulheres cantoras de samba-enredo, ela declarou que

naquela época havia mais porque o samba era cadenciado, não era essa correria que é agora. Então você tinha aquele potencial para cantar um samba-enredo na avenida. Hoje em dia não. E não tinha cronometragem. Agora não, são 80 minutos, e mulher não tem mais fôlego pra puxar um samba na avenida. O samba agora é corrido. Eu sou uma que não tenho mais condições, já deu o que eu tinha que dar (TIA SURICA).20

Em seguida, Surica menciona algumas mulheres que cantaram samba-enredo pelas escolas de samba mais ou menos no mesmo período que ela, como Tacira pela Portela, Silvana pela Império Serrano, Elza Soares pela

Mocidade Independente. Também merece lembrar que Ivone Lara cantou pela Escola Império Serrano em 1961, conforme ela mesma relata em seu depoimento ao MIS em 1978.21Entretanto, estas participações foram esporádicas e o que se percebe é que mesmo as participações casuais de mulheres têm sido menos frequentes deste então nesta posição. Se há alguma razão biológica para esta inversão de papéis, ela precisa de uma fundamentação mais consistente, pois parece contraditório o fato das mulheres terem sido designadas a conduzir o canto principal antes dos avanços tecnológicos, justamente quando a potência e resistência da voz eram fundamentais. A amplificação elétrica promoveu justamente o contrário, ou seja, que vozes antes consideradas inadequadas por serem potencialmente fracas para a prática musical tornassem viáveis, como foi o caso da bossa-nova, onde os artistas podem cantar sussurrando. É possível que a voz feminina fosse considerada a ideal antes da amplificação elétrica devido a esta soar uma oitava acima. Por ser mais aguda é mais facilmente perceptível ao ouvido humano, que tem mais facilidade em reconhecer as frequências agudas do que as graves quando próximo à fonte sonora, embora o som grave se propague a distâncias maiores.

É mais provável que decisões estético-ideológicas tenham pesado mais nesta configuração. Conforme dito anteriormente, o samba do início do século XX estava muito próximo às práticas do terreiro, uma aproximação indesejável na construção de um samba que se pretendia símbolo nacional para os ideais da época. Nos terreiros, as vozes femininas tomavam (e tomam) maior destaque que as masculinas de modo que ao entrar num destes centros praticamente o que se ouve é um coro feminino. Tal característica se manteve no samba por um bom período. Monarco da Portela, conta que em sua época de auge

As pastoras é que mandavam. Se elas não cantassem não acontecia nada, não adianta. A gente cantava um samba lá, se elas não quisessem cantar, não adiantava porque a voz feminina é que é o grupo, né?! Ficava uma porção de homem cantando, não tinha graça. [...] Se elas gostassem, elas se animavam e cantavam, e aquilo ia, depois tornava-se um sucesso no terreiro por causa delas (MONARCO DA PORTELA citado por VELHA GUARDA DA PORTELA EM “O MISTÉRIO DO SAMBA”, 2008).22

Áurea, pastora da velha-guarda da Portela, em entrevista para esta pesquisa, confirma essa versão:

Antigamente, quando os ensaios eram mais voltados para ensaiar o samba de quadra, então tinha que ter as pastoras. Até a formação era diferente, era um círculo. As mulheres ficavam no círculo ali rodando, cantando o samba, evoluindo, mas sempre no círculo. Quando lançavam o samba na quadra, tinha que ter as mulheres pra fortalecer o samba, até pra influenciar na escolha, porque samba que elas não gostavam, elas não cantavam. O samba não ia pra frente, elas boicotavam mesmo. [...] Papai tinha um fã clube [...] aí elas passavam: ‘só canto samba de Manacéa’. [...] Agora não tem mais, é impossível uma escola que recebe 2.000 pessoas fazer isso. [...] Hoje acabou isso, nos ensaios não tem mais pastoras, porque o ensaio agora é voltado para a multidão (ÁUREA).23

O que se percebe nestes depoimentos é que, à medida que o samba vai se afastando do terreiro e se encaminha para o

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palco ou avenidas, o coro feminino vai perdendo seu lugar enquanto elemento fundamental para o samba acontecer.

Em segundo lugar, uma crença – que iniciou com a era mecânica de gravação e que se estendeu por parte da fase elétrica – que a voz feminina, por ser mais aguda, não era bem captada pelos microfones e equipamentos de som, o que a tornava estridente e desagradável aos ouvintes. Segundo CARDOSO FILHO (2007), muitos trabalhos sobre a produção de músicas populares em estúdio “afirmam que a ausência feminina ocorria, entre fatores de cunho sociocultural, devido às condições técnicas das gravações mecânicas”. Entretanto, o autor afirma que “as frequências agudas não eram um problema para a gravação e a reprodução mecânica. Muito pelo contrário, o problema consistia na captação dos sons graves”. Após realizar diversas as análises espectrográficas do repertório brasileiro do início do século XX o autor não encontra razões explícitas que permitam

[...] reduzir a participação feminina exclusivamente a questões tecnológicas, uma vez que estas não eram um problema generalizado. Muitas das gravações femininas no período mecânico são tão qualitativamente boas quanto às masculinas. [...] Os resultados das comparações com gravações de cantores não foram suficientes para colocá-los esteticamente em superioridade em relação às mulheres (CARDOSO FILHO, 2007).

Com isso, CARDOSO FILHO (2007) argumenta que questões de cunho sócio-cultural devem ter sido mais relevantes para a reduzida participação feminina nas gravações deste período do que as tecnológicas. É

possível notar que a justificativa da incompatibilidade da voz feminina com a tecnologia disponível da época vem ganhando seu lugar nos estudos sobre a música popular brasileira, em especial aqueles que tratam das mulheres na música como, por exemplo, em WERNECK (2007) e SOUZA (2006), conforme os trechos abaixo:

O número reduzido de mulheres que produziram gravações a esta época poderia estar vinculado às limitações da tecnologia aplicada para o caso da gravação de vozes. Enquanto esteve limitada ao registro de músicas instrumentais, foi possível para Chiquinha Gonzaga ter acesso a esta tecnologia e manter sua participação destacada. Já quando se passou ao registro de canções, as limitações dos equipamentos, que requisitavam uma forte projeção de vozes, um modo grave e operístico de cantar, gritado, por tenores e barítonos, para que o equipamento pudesse ser alcançado e o registro feito, as mulheres não tiveram participação correspondente (WERNECK, 2007, p. 154).

O destaque para os cantores de grande potência vocal e de voz grave foi evidenciado por questões tecnológicas. Neste sentido, além da questão social que ditava um padrão representativo da mulher dita “honesta” como aquela que estivesse circunscrita ao espaço doméstico, havia ainda uma questão tecnológica que limitaria o acesso da mulher à possibilidade de realizar gravações mecânicas (SOUZA, 2006).

Estes conflitos afirmam a música como um campo das disputas políticas, onde o campo político se consolida como aquele que permeia e penetra todos os outros campos, do artístico ao ritualístico. Como campo de disputa, a música pode ser usada como uma forma particular de poder, usada para limitar ou ampliar o acesso

Ex.3 – Foto das Pastoras da Velha-Guarda da Portela em 06 de Setembro de 2008, Madureira, Rio de Janeiro. Da esquerda para direita: Tia Surica, Áurea Maria, Tia Doca, Neide.

Fotografia: Priscilla Guerra. Copyright © Todos os direitos reservados.24

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e o conhecimento social, ritual e político de mulheres e homens (ROBERTSON, 1989). No caso do samba, pode-se dizer que houve um empoderamento dos homens a uma função que antes era designada às mulheres. Curiosamente, em uma pesquisa que realizei recentemente numa escola de samba de Florianópolis (GOMES e PIEDADE, 2010), o naipe das vozes (puxadores e pastoras) se revelou como um dos campos mais conflituosos no que se refere às disputas de poder entre os gêneros. As pastoras desta escola de samba demonstraram imensa insatisfação em relação a sua posição e a pouca valorização de seu papel dentro da escola. Já na bateria, ou seja, nos instrumentos de percussão, houve maior consenso entre as partes. As ritmistas – quase todas concentradas em torno do naipe dos chocalhos –, estavam de acordo que o chocalho é o lugar feminino, enquanto que os tambores em geral (caixa, repenique, surdo), eram mais adequados aos homens.

Enquanto que o papel de conduzir o canto nas escolas de samba foi apoderado num momento de reordenação interna – pela competitividade estimulada pelas premiações (concursos); pelos ideais nacionalistas que o samba precisou integrar; pelas inovações tecnológicas –, vou mostrar mais adiante que a hegemonia masculina na percussão pode encontrar sua razão, ao menos em parte, na mitologia africana e nas convenções instituídas nos terreiros.

6 – As donas dos tambores, os donos dos toquesIntrigado pelas poucas referências às mulheres sambistas no contexto da casa das Tias Baianas, Nei Lopes em uma entrevista publicada nos anexos de seu livro questiona Marinho da Costa Jumbeba (neto de Ciata) sobre a presença de mulheres nas rodas de samba da época de sua avó, fazendo-lhe a seguinte pergunta: “E as mulheres faziam partido-alto?”. Ele responde:

Fazia! Ah! Era a Mariquita, Sinhá Velha... Maria Adamastor era uma grande sambista, que fazia grandes sambas, compreendeu? A minha tia, por exemplo, a Mariquita, tocava muito pandeiro, compreendeu? Ela às vezes em casa, só brincando, fazia um grande partido-alto. Só com um pandeiro e os cantos. Mas tinha muita senhora que naquele tempo..., por exemplo, a minha tia Pequena, por exemplo, era grande. Sinhá Velha, que era minha tia também. E tinha as moças, em casa, inclusive a minha irmã Lili. Tinha a afilhada da minha tia, a Cicinha; tinha a Ziza, que era filha da... era minha prima; e era essa gente toda, minha família era muito grande (JUMBEBA citado por LOPES, 1992, p. 105).

Marinho Jumbeba não hesita em citar inúmeras mulheres interagindo nas rodas de samba e se destacando como partideiras. Além de ressaltar a destreza de algumas mulheres como cantoras, entre em cena um lugar até agora não explorado, a percussão, onde Jumbeba cita Mariquita como pandeirista25.

Outra mulher do pandeiro parece ter sido Tia Perciliana do Santo Amaro26. Segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (2010), Perciliana teve 12 filhos, todos ativos no meio musical como, por exemplo, uma de suas filhas que tocava violino; Mané, palhaço de circo e violonista; e João da Baiana, famoso por ter sido

um exímio pandeirista e compositor de sambas. Algumas biografias de João da Baiana mencionam que teria sido com sua mãe que João aprendeu a batida característica do pandeiro. Em depoimento ao MIS, ele declara ter sido o responsável pela introdução do pandeiro no samba, informação que foi reproduzida em muitos documentos sobre a história do samba.

Na época, o pandeiro era só usado em orquestras. No samba quem introduziu fui eu mesmo. Isto mais ou menos em 1897, quando eu tinha 8 anos de idade e era Porta-Machado no ‘Dois de Ouro’ e no ‘Pedra de Sal’. Até então as agremiações só tinham tamborim e ainda assim era um tamborim grande e de cabo. O pandeiro não era igual ao atual. O dessa época era bem maior (JOÃO DA BAIANA citado por VOZES DESASSOMBRADAS DO MUSEU, 1970, p, 59-60).

As informações trazidas por João da Baiana não encontram paralelo na pesquisa de SANDRONI. Segundo o autor,

o acompanhamento rítmico mais comum do samba folclórico até o início do século XX parece ter sido pandeiro, prato-e-faca e palmas. [...] em todas as referências a instrumentos no samba, anteriores a fins da década de 1920, não apenas a cuíca como também o surdo (ou barrica) e o tamborim brilham pela sua ausência (SANDRONI, 2001, p. 179).

Ao parecer, o pandeiro era instrumento de um samba doméstico, aquele praticado no fundo de quintal e na sala de jantar da casa das Tias. O que João da Baiana fez foi introduzi-lo nas rodas públicas, na sala de estar da casa das Tias Baianas (frequentada pelos intelectuais e elite), na festa da Penha, nos desfiles dos Ranchos carnavalescos e nas gravadoras. João da Baiana fez com o pandeiro o que Donga fez com o samba Pelo Telefone, ou seja, teve a coragem de expô-los publicamente, ampliando seu domínio.

De todos os modos, o que interessa aqui não é discutir se Perciliana e João da Baiana tiveram o mérito ou não de introduzir estes instrumentos no samba, mas sim, por meio desta relação mãe-filho, apontar uma dimensão mitológica da cultura afro-brasileira que pode, junto com outros elementos (como a ressignificação do lugar das pastoras nos desfiles e a acomodação do samba aos padrões sociais da cultura dominante), ajudar compreender a configuração atual dos papéis masculinos e femininos no complexo mundo do samba. Além da construção histórica ocidental que contribuiu para invisibilizar as mulheres, alguns mitos e crenças das tradições africanas presentes na cultura afro-brasileira podem contribuir para elucidar algumas questões.

De acordo com THEODORO (2008), nas tradições afro-brasileiras a relação das mulheres com a música e com os instrumentos de percussão está vinculada à concepção de ‘ritmo vital’ do princípio feminino. A autora aponta que na maioria das etnias da África Negra o papel da mulher se delineia a partir da ideia de criação da vida, que se revela desde suas próprias rotinas diárias, que envolvem o nutrir, o organizar a comunidade, até o administrar a vida. A mulher negra é, segundo os mitos, o elemento básico do ritmo, da dança e da criatividade. No

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Brasil, este princípio está muito presente principalmente no domínio religioso das tradições afro-brasileiras. Diversos mitos das tradições africanas, bem como gregas e indígenas, contam que determinadas funções relegadas aos homens se originaram das mulheres. Elas teriam sido as criadoras e passaram aos homens o conhecimento e a responsabilidade de mantê-lo. Em alguns mitos, este conhecimento não foi passado, mas roubado ou tomado, por vezes, de forma violenta. Esta luta pela supremacia entre os sexos aparece com constância nos mitos de diversas culturas, e podemos encontrá-los em abundância nas mitologias africanas e ameríndias27. Segundo ROBERTSON (1989), em muitas culturas onde a performance musical é usada como um modo de controle social, acredita-se que o conhecimento e o poder ritual tenham pertencido em um passado remoto às mulheres.

Nas religiões afro-brasileiras, o Mito Iorubá do Tambor Batá é referência importante na determinação dos papéis de gênero desempenhados por homens e mulheres nas práticas musicais dos terreiros. Transcrevo abaixo o mito extraído integralmente do livro Corpo e Ancestralidade de Inaicyra F. dos SANTOS (2006, p. 64), segundo a autora, contado por Ayánkunle Ayánlade e Duroladipo Solaboni, em junho de 1988, na cidade de Oyo, Nigéria.

Nos primórdios da civilização, não existia em Oyo-Oro, cidade desaparecida, nada conhecido com tambor; ali morava uma mulher chamada Ayántoke, mas as pessoas a chamavam de Ayán28. Esta senhora era estéril, andava sozinha pelo mato, sempre com um pedaço de madeira oco. Um dia ela viu uma pele de bode e resolveu cobrir as extremidades do pedaço de madeira, mas a pele ora não se adaptava muito bem, ora rasgava quando ela batia com um pedaço de pau. Ela insistiu várias vezes no seu intento; usou também um pedaço de couro em forma de tira para bater nas extremidades do tronco, mas nada dava certo. Finalmente, um dia, Exu apareceu e lhe deu tiras de couro de veado a fim de que amarrasse com firmeza o couro no tronco. E foi nesse momento que o tambor deu um som melodioso. Ayán começou a tocar o tambor por toda cidade, as pessoas corriam para escutá-la (todos surpresos!), porque nunca tinham ouvido alguma coisa semelhante antes... Ela ganhava, ao mesmo tempo, muitos presentes. Xangô – orixá do trovão – na qualidade de rei da cidade, quando a ouviu convidou-a para morar no palácio. Ela tornou-se a tocadora oficial do palácio de Xangô. Todos sabiam que ela era estéril; no entanto, mais cedo ou mais tarde ela teria um filho, uma vez que qualquer mulher estéril que entrasse no palácio de Xangô tornava-se fértil. E foi o que aconteceu: Ayán casou-se com Xangô e logo teve um filho que foi chamado de Aseorogi29. Ela passou toda a arte de tocar e construir o tambor para o seu filho. Ayántambém é, até hoje, o nome dado a todos os membros de uma família cultuadora do tambor, entre os povos Yorubá. Ayán, portanto, é o símbolo do tambor, orixá dos tocadores e que é cultuado somente por eles.

Segundo o Mito do Tambor Batá, as mulheres delegaram a seus filhos homens a arte de tocar e construir o tambor, ficando elas proibidas de exercer esta função. Este tipo de mito, onde a posse original de determinados instrumentos musicais pertencia às mulheres, sendo posteriormente apoderados pelos homens é bastante comum também na região da Amazônia, como é o caso da tribo Wauja pesquisada por MELLO (2005)30.

Diversos mitos indígenas, africanos, gregos, cristãos, etc., exercem influência sobre o inconsciente coletivo que gera a música popular brasileira onde, o samba, discutido aqui, é um dos elementos mais representativos. De fato, a música popular brasileira é constituída por tamanho sincretismo que torna difícil qualquer mapeamento relacionado à procedência e influência destes mitos. Não pretendo dar conta desta questão, por isso, agora vou me concentrar apenas em alguns pontos deste mito africano a fim de sugerir possíveis traspassações entre o sagrado e o profano nas manifestações musicais afro-brasileiras, tendo o samba como recorte principal.

7 – O domínio da percussão: do terreiro ao sambaEspecialmente por conta do Mito do Tambor Batá, na maioria dos terreiros afro-brasileiros o cargo de ogã, tocador dos atabaques durante os cultos, é exclusivamente masculino. Ainda hoje poucas mulheres ocupam esta função, embora em proporções cada vez maiores, uma vez que esta tradição está passando por constantes resignificações.31 Quando há outros instrumentos, a maior parte deles também é tocada por homens, cabendo às mulheres o adjá32 – que não é usado como instrumento musical – e, eventualmente, o agogô (AMARAL e SILVA, 2008).

Os ogãs não são simplesmente tocadores de atabaques, mas também homens que detêm segredos, rituais e conhecimento só a eles revelados. Têm voz ativa dentro da casa podendo, em certas situações, designar obrigações e ordenar funções. Eles são os detentores dos toques e cantigas específicas para cada situação característica, de modo que sem os ogãs as cerimônias públicas de incorporação e devoção aos orixás raramente acontecem. Por conta disso, possuem um status extremamente prestigiado nas comunidades-terreiros. Segundo SANTOS (2006, p. 69), entre os iorubás na Nigéria o cargo de ogã é transmitido aos homens hereditariamente, enquanto que nos terreiros brasileiros são escolhidos pela Iyalorixá ou pelo Babolorixá33, sempre levando em conta sua habilidade prévia com o instrumento.

O terreiro representa uma via de acesso privilegiada à cosmologia e à sociabilidade afro-brasileira visto que é através dele que os mitos se transformam em rito e o tempo cosmológico é recriado e projetado no presente. Os mitos transmitem os valores, princípios, crenças que, através dos ritos, reforçam e moldam o pensamento, a natureza, a forma e a vida da comunidade. O mito é compreendido na atividade ritual como uma forma de reconstruir a vida no terreiro, sendo o terreiro entendido não apenas como o espaço religioso, mas como um núcleo e pólo de irradiação para todo o sistema cultural onde seus elementos básicos são incorporados (SANTOS, 2006). Assim, a possibilidade de identificação do sagrado no cotidiano e do cotidiano no sagrado constitui a pedra fundamental das manifestações afro-brasileiras, em

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outras palavras, os limites entre sagrado e profano são frequentemente transponíveis e, por vezes, indistinguíveis.

Em muitos contextos afro-brasileiros o terreiro é o elemento centralizador dos vários eventos e atividades. Em função dele que se articulam as festas, encontros e reuniões de confraternização. O samba da virada do século XIX para o XX adquiriu sua forma em constante intercambio com as religiões que se praticavam nos terreiros. Uma festa de samba neste período estava muito próxima a uma festa de umbanda ou candomblé. Uma coisa estava intimamente relacionada à outra de tal modo que havia praticamente uma relação de interdependência. Isto está amplamente indicado na literatura base da música popular brasileira, como em MOURA (1995), M. MOURA (2004), LOPES (1992), PEREIRA (2003), FENERICK, (2005), DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO (2006), para citar alguns. Lúdico e o litúrgico aconteciam em situações muito próximas, não só física e temporalmente, como também ritual e espiritualmente. Nas casas das Tias Baianas, por exemplo, era lugar onde praticamente tudo acontecia. Os vários depoimentos sobre a disposição geográfica da casa das Tias e organização dos ritos nos diversos espaços da casa são reveladores desta questão. Para citar alguns:

As nossas festas duravam dias, com comida e bebida, samba e batucada. A festa era feita em dias especiais, para comemorar algum acontecimento, mas também para reunir os moços e o povo “de origem”. Tia Ciata, por exemplo, fazia festa para os sobrinhos dela se divertirem. A festa era assim: baile na sala de visitas, samba de partido alto nos fundos da casa e batucada no terreiro (JOÃO DA BAIANA citado por MOURA, 1995, p. 83).Uma época em que não havia clubes dançantes. Os bailes eram feitos em casa de família. Em casa de preto, a festa era na base do choro e do samba. Numa festa de preto havia o baile mais civilizado na sala de visitas, o samba nas salas do fundo e a batucada no terreiro. Era lá que se formavam e se ensaiavam os ranchos (PIXINGUINHA citado por MOURA, 1995, p. 83).

Roberto Moura descreve com riqueza de detalhes o ambiente da casa da Tia Ciata – casa que entrou para a história por meio de seu livro – e, ao mesmo tempo, revela o samba transitando pelos vários ambientes.

[...] uma sala de visitas ampla, onde nos dias de festa ficava o baile, a casa se encompridava para o fundo, num corredor escuro onde se enfileiravam três quartos grandes intervalados por uma pequena área por onde entrava luz, através de uma claraboia. No final, uma sala de refeições, a cozinha grande, e a despensa. Atrás da casa, um quintal com um centro de terra batida para se dançar e depois um barracão de madeira onde ficavam ritualmente dispostas as coisas do culto. Na sala, o baile onde se tocavam os sambas de partido entre os mais velhos, e mesmo música instrumental quando apareciam os músicos profissionais, muitos da primeira geração dos filhos dos baianos, que frequentavam a casa. No terreiro, o samba raiado e, às vezes, as rodas de batuque entre os mais moços. No samba se batia pandeiro, tamborim, agogô, surdo, instrumentos tradicionais que vão se renovando a partir da nova música, confeccionados pelos músicos, ou com o que estivesse disponível, pratos de louça, panelas, raladores, latas, caixas, valorizados pelas mãos rítmicas do negro. As grandes figuras do mundo musical carioca, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, surgem ainda crianças naquelas rodas onde aprendem as tradições musicais baianas a que depois dariam uma forma nova, carioca (MOURA, 1995, p. 102-3).

O que pretendo destacar com isso é que boa parte das relações, costumes e convenções que caracterizavam os ritos nos terreiros exerceram influência significativa sobre o samba, e vice-versa. Há um intercâmbio, por vezes pouco explorado, entre os ritos dos terreiros e as convenções instituídas no samba e na música popular brasileira. A seguir, vou sugerir possíveis conexões e suas implicâncias no tocante às relações de gênero.

Conforme dito anteriormente, nos terreiros a execução instrumental dos tambores (atabaques) era designada exclusivamente aos homens, por conta do Mito do Tambor Batá. Na casa das Tias Baianas, onde samba e religião se fundia em praticamente um único ritual, os mesmos homens que estavam tocando tambores no terreiro, puxavam os ritmos das rodas de samba na sala de jantar e na sala de visitas. A concepção mitológica de que a execução dos tambores era algo reservada aos homens se transpunha para a realidade do samba praticado naquele contexto, fazendo com que as mulheres integrassem o coro (formando o conjunto feminino que ficou conhecido como pastoras), às palmas, aos improvisos versados, ou aos instrumentos mais leves de percussão, como agogô, prato-e-faca, reco-reco e, mais raramente, ao pandeiro. Essas convenções estabelecidas na casa das Tias se projetaram também no samba praticado nas ruas, nos ranchos e, posteriormente, escolas de samba.

Em entrevista concedida em dezembro de 2005, o jornalista e pesquisador José Carlos Rego, autor de um clássico, A dança do samba, explicou que, nos anos 20, nos primórdios do samba no Rio, os moradores do gueto das favelas ou das vilas operárias, sem recursos para o patrocínio de mínimos conjuntos regionais – violão, cavaquinho, pandeiro, flauta – para animar seus encontros musicais, lançavam mão de instrumental próprio ao culto da umbanda, do candomblé ou do jongo, para sua recreação. Isso se dava, em geral, ao final das sessões religiosas que avançavam pela madrugada. No encerramento deles, para relaxar, servia-se comida e sobrevinha a cantoria e o batuque – daí ter sido tão comum a presença de pais-de-santo na liderança dos primeiros grupamentos de samba. [...] Foi dessas primeiras batucadas, rodas e festas que saíram instrumentos que alegrariam partidos-altos, sambas de terreiro e desfiles das escolas (DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 73).

Segundo THEODORO,

No Rio e Janeiro, as baterias das escolas de samba foram inicialmente formadas pelos alabês [ogãs] das comunidades-terreiros dos bairros a que pertenciam. Assim, cada escola de samba tinha o seu toque característico, por conta de seus ritmistas tocarem para Ogum, Xangô ou Oxossi, já que sendo o tambor a fala dos orixás, cada um tem as suas cantigas e toques próprios. Com a gravação dos sambas em disco e o aperfeiçoamento dos desfiles, as baterias já não se distinguem como antes, sendo que a maneira de tocar e o som de cada escola ficou muito parecido (THEODORO, 2008, p. 166).

De acordo com o documento DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, a identidade de cada bateria de escola de samba está relacionada à sua origem – e, portanto, aos terreiros de santo.

Nesses terreiros o culto aos símbolos da africanidade estabeleceu diferenciados toques de atabaques, votivos às nações jêje, angola ou keto, de acordo com os orixás que neles baixavam. Como se sabe,

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as vestes, alimentos, cantos de invocação, estilos de dança, guias (colares) e saudações de cada orixá têm identidades próprias. E, da mesma forma, suas batidas de tambores, denominados toques, têm sua propriedade individual. Isto é, há toques de Oxum, de Oxalá, de Ogum, etc. Por extensão, os ogãs – responsáveis pelo setor de ritmo nos terreiros de santo – foram impregnando as baterias do samba da sua habitual frequência, com as características de suas casas de santo. Dessa forma surgiram as famílias de ritmo das diversas comunidades de sambistas e de suas escolas de samba, o que acabou resultando, também, no pensamento dominante de que cada bateria bate para determinado orixá. Isso igualmente se confirma na existência de fundamentos (essências, pedras, guias, imagens) religiosos implantados ou exibidos em cada terreiro de samba. Dessa forma é que diferenciações ancestrais permaneceram na bateria das escolas ou blocos carnavalescos, retidas na memória coletiva dos grupos responsáveis pelo ritmo (DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 73).

Sobre isso, Marília Barboza da SILVA e Arthur de OLIVEIRA FILHO afirmam:

No fim dos anos 20, novamente a palavra samba teve a sua significação alterada, outra vez em virtude de ser empregada por uma classe social diferente. Agora eram os descendentes de escravos, reunidos nas chamadas escolas de samba, para os quais a palavra ainda continuava designando a dança de roda de umbigada, de ritmo muito semelhante ao das cerimônias religiosas das macumbas. Samba para eles constituía um ritmo, uma coreografia, um gênero, enfim, muito próximo ao dos pontos de invocação dos orixás afro-brasileiros. Os sambistas primeiros, na esmagadora maioria, eram também pais ou mães-de-santo famosos e temidos: Elói Antero Dias, José Espinguela, Alfredo Costa, Tia Fé, seu Júlio, Juvenal Lopes, dona Ester de Osvaldo Cruz. Os terreiros de samba eram também terreiros de macumba. Cartola, que foi cambono de rua do terreiro de seu Júlio, dizia: “Naquela época samba e macumba era tudo a mesma coisa” (SILVA e OLIVEIRA FILHO citados no DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, 2006, p. 65).

De acordo com THEODORO (2008), o Mito do Tambor Batá se faz presente de tal modo no contexto das escolas de samba que a Estação Primeira da Mangueira até bem pouco tempo proibia em seu estatuto que as mulheres tocassem na bateria. Hoje, apesar da maioria das escolas contarem com mulheres ritmistas, elas constituem uma parcela bastante pequena, e menor ainda quando se trata de tambores (surdos, caixa, repique). Segundo THEODORO (2008), as escolas do grupo A do Rio de Janeiro, contam com aproximadamente 2% de mulheres apenas. Em uma pesquisa que realizei recentemente em uma escola de samba de Florianópolis (GOMES e PIEDADE, 2010), pude verificar que a presença de mulheres ritmistas foi bem pequena. A maioria das mulheres se concentrava no naipe dos chocalhos, que se tornou praticamente o naipe feminino desta escola, situação que tem se reproduzido em diversas outras escolas de samba, conforme também observaram PRASS(2004) e OLIVEIRA NETO (2004). Tais fatos revelam que a característica de incluir as mulheres na percussão, e, ao mesmo tempo, concentrar em determinados setores (via dupla de inclusão e exclusão), está se tornando uma tendência nas práticas musicais das escolas de samba de diversas partes o país.34

As convenções do samba, ao se inserirem no carnaval do Rio de Janeiro e em diversos outros contextos da sociedade brasileira, levaram consigo grande parte dos

fundamentos presentes nos terreiros, conferindo alguns de seus mistérios, fundamentados, em grande parte, na relação com o sagrado. Aqui foram destacados apenas alguns elementos relativos ao campo de poder que envolve as relações de gênero, mas muitos outros aspectos podem ser aprofundados a partir desta perspectiva. A compreensão do que seja “samba” não pode estar limitada à sua classificação como gênero musical; ao contrário, é preciso abranger o conjunto de ações que o definem, considerando que se trata de um movimento nascido no interior das formas religiosas, numa dinâmica própria dos rituais de fé exercitados pelos negros africanos e seus descendentes no Brasil (MATOS, 2007, p. 166).

8 – Considerações FinaisOs cânones literários que consagraram o samba da “Pequena África do Rio de Janeiro” como uma manifestação musical essencialmente masculina e produzida por homens revelaram uma versão limitada dos acontecimentos. Trata-se de uma narrativa construída sob uma perspectiva patriarcal cujas referências são as histórias dos grandes homens, das grandes obras, dos acontecimentos públicos, das grandes batalhas e disputas políticas, com pouco ou nenhum interesse pelo conhecimento místico, mítico, religioso e espiritual, pela vida privada, e pela história das mulheres. Tais cânones ignoraram a produção de diversas mulheres e minimizaram a importância dos aspectos femininos presentes nos ritos, nos mitos, na religião, no matriarcado que permeia a cultura afro-brasileira.

Examinar o contexto político-social e a relação entre sagrado e profano foram fundamentais para compreender a construção dos papéis de gênero no samba do início do século XX na Pequena África do Rio de Janeiro. Pude verificar que o elevado status social da mulher negra no campo religioso e político exerceu influência significativa na configuração do samba da época. Nas entrelinhas entre o dito e o não dito na construção histórica do samba enquanto manifestação cultural afro-brasileira e como gênero musical brasileiro por excelência, emergiu a centralidade e liderança das Tias Baianas, mulheres negras, mantenedoras das festas realizadas em homenagem aos santos, em encontros com muita comida, música, conversa e trocas culturais. Estas mulheres, ao mesmo tempo em que participaram da história da mulher brasileira, possuem aspectos exclusivamente seus, construindo sua história de mulher negra (THEODORO, 1996, p. 57), com características próprias marcadas por sua ancestralidade africana e outras que adquiriu em função das condições que a realidade local lhe impôs. Verifiquei, portanto, que a centralidade destas mulheres traspassou o limite da cozinha, da guarda e da orientação espiritual/religiosa – atribuições muito bem documentada na literatura – e adentrou no terreno musical, não apenas como observadoras, apreciadoras, anfitriãs – lugar comumente atribuído a elas –, mas também como cantoras, instrumentistas, compositoras, agentes transformadoras e atuantes num território tido como essencialmente masculino.

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O coro feminino, elemento sobressalente na condução dos cantos no campo religioso, encontrou sua relação no samba por meio da figura das pastoras, seja nos desfiles dos ranchos e escolas, no samba de terreiro, samba-de-roda, e em muitas outras variantes. No plano instrumental, apontei que a hegemonia masculina nos instrumentos de percussão encontrou conexão, ao menos em parte, com a mitologia africana e convenções dos terreiros. Mas, assim como aconteceu com as pastoras, esta delimitação vem sendo ressignificada de tal modo que a presença de mulheres tem sido cada vez mais frequente entre os ritmistas, tanto no samba como nos terreiros, embora neste último, a resistência seja maior. No campo da composição – por muito tempo mistificado como o lugar masculino por excelência, especialmente na tradição europeia – procurei valorizar fatos que indicam uma possível relação de Tia Ciata com este exercício. Fi-lo como forma de suspeitar de uma suposta hegemonia masculina neste campo que, a meu ver, reflete mais uma visão condicionada da história – uma história construída à imagem e semelhança da história da música europeia,

cuja narrativa se fundamenta na canonização de grandes homens compositores. Mulheres negras compositoras começam a ser apresentadas no samba a partir da década de 70, com as pioneiras Clementina de Jesus, Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. Ao surgirem, foram expostas com naturalidade, como se 50 anos de inexistência pouco representasse. Entretanto, tal ausência de compositoras pode ser traduzida pela palavra invisibilidade, ou seja, a construção histórica e cultural desta ausência.

Ao trazer o complexo mundo do samba carioca para o campo das relações de gênero, as indagações não passaram apenas pela questão das mulheres em cena. Ao analisar este universo, os questionamentos se consolidaram a partir da constatação de que muitos autores veem em tudo que diz respeito ao universo do samba tão somente formas de expressão do masculino. Por isso, ao longo do trabalho emergiu a necessidade de aprofundar a dicotomia homens/mulheres para além de seus corpos e examinar esta complexa relação nos mitos, ritos, crenças, valores, espaços de circulação e meios de produção.

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Notas1 Uma versão parcial deste artigo foi publicada nos anais do I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música, em 2010, quando a pesquisa ainda

estava em andamento (ver: GOMES, 2010).2 A categoria ‘arte’ está sendo empregada de acordo a teoria do gosto e julgamento proposta por BOURDIEU (2007). O autor parte de uma hierarquia

socialmente reconhecida das artes, a qual determina a hierarquia social de seus consumidores que, portanto, funciona como um marcador de classes, um dos principais legitimadores das diferenças sociais.

3 Pelo Telefone: Música gravada e registrada na Biblioteca Nacional em 1916, mas alcançou sucesso durante o carnaval de 1917, quando passou a integrar o repertório de diversos blocos carnavalesco da cidade do Rio de Janeiro. Foi registrada em nome de Donga (Ernesto Joaquim Maria) e Mauro de Almeida. A atitude de tentar definir os autores da música gerou grande discordância no mundo do samba. Retornarei a este tema ao comentar sobre a reivindicação de Tia Ciata na autoria desta música.

4 Segundo MCCLARY (1991), há uma vasta produção sobre crítica feminina em diversas áreas do conhecimento, muitas das quais anteriores à musicologia feminista. Contudo, não é possível transferir as questões metodológicas dessas áreas diretamente para a música, pois a música tem especificidades que precisam ser consideradas e respeitadas. Por isso, a autora desenvolveu uma série de pautas, reflexões, métodos e experimentos que podem ser adequados à musicologia, as quais serviram de referência para o presente estudo.

5 Maria das Dores Santos nasceu interior do Rio de Janeiro em 1911. Na década de 1960 tornou-se a segunda esposa de Donga, autor da música Pelo Telefone. Em janeiro e fevereiro de 2003, aos 92 anos, gravou o seu primeiro CD, lançado no dia 22 de setembro de 2003, na Sala Cecília Meireles.

6 Iranette Ferreira Barcellos, conhecida como Tia Surica, nasceu em 1940. Começou a frequentar a Portela aos 4 anos de idade e hoje é uma das referências da escola. Desde 1980 passou a integrar a Velha-Guarda desta agremiação, onde gravou diversos CDs. No quintal de sua casa – conhecida como o ‘Cafofo da Surica’ – ela costuma reunir centenas de pessoas para rodas de samba, lembrando as Tias Baianas do início do século XX.

7 Áurea Maria de Almeida Andrade é filha de Manacéa e Dona Neném. Fez sua estreia Portela em 1970 e atualmente é pastora da Velha-Guarda da escola, ao lado de Tia Surica e Neide. É também compositora e, agora que está aposentada, pretende dedicar-se mais a carreira musical.

8 Yolanda de Almeida Andrade, chamada por Dona Neném, nasceu em 1925 e mora em Madureira desde os seis anos de idade. Viúva de Manacéa, com quem esteve casada por 44 anos. Faz parte da história viva da Portela, atuando desde as festas dos fundos de quintais até nas Escolas de Samba, é uma das referências obrigatórias quando se trata relembrar o passado.

9 Maria Moura foi casada por 30 anos com o saxofonista Paulo Moura. É pesquisadora e no terreiro ocupa o posto de Equede (equivante feminino de ogã). Desde 1994 tem feito palestras e conferências sobre a cultura afro-religiosa em diversas regiões do país.

10 Lygia Santos é advogada, pesquisadora, museóloga e professora. Filha de dois ícones da música popular brasileira o compositor Donga e a cantora Zaíra de Oliveira. Publicou em 1980 com Marília T. Barbosa da Silva, o livro Paulo da Portela - Traço de União entre duas Culturas, pela Editora MEC/FUNART e foi autora da tese Villa-Lobos e os Choros.

11 Jurema Werneck é formada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense. Promoveu a criação da ‘Criola’, organização voltada para o fortalecimento – ou empoderamento de mulheres, adolescentes e meninas negras. Escreveu a dissertação Samba Segundo as Ialodês: mulheres negras e a cultura midiática.

12 Nilcemar Nogueira é neta de Cartola e Dona Zica. Foi uma das responsáveis pela reedição de A Voz do Morro, primeiro jornal comunitário do Rio. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo de diretora de harmonia desta escola. É atualmente presidente do Centro Cultural Cartola e foi autora do livro Dona Zica, Tempero, Amor e Arte.

13 Imagens selecionadas em sites diversos da internet.14 Pequena África foi o nome dado por Heitor dos Prazeres à região do Rio de Janeiro compreendida pela zona portuária, Gamboa, Saúde, Pedra do Sal,

locais habitados majoritariamente por negros cariocas e migrantes. O termo ficou consagrado na literatura após a publicação do livro de Roberto MOURA (1995), Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro.

15 Há uma grande liberdade no emprego dos termos matriarcal e patriarcal, por este motivo, muitos estudiosos recusam-se a empregá-los. Limitarei sua utilização a partir da definição de RADCLIFFE-BROWN. Segundo o autor, “Uma sociedade pode ser chamada patriarcal, quando a descendência é patrilineal (isto é, os filhos pertencem ao grupo do pai) o casamento é patrilocal (isto é, a mulher muda-se para o grupo local do marido); a herança (ou propriedade) e a sucessão (hierárquica) são em linha masculina, e a família é patripotestal (isto é, a autoridade sobre os membros da família está nas mãos do pai ou seus parentes). Por outro lado, uma sociedade pode ser chamada matriarcal, quando a descendência, herança e sucessão estão na linha feminina, quando o casamento é matrilocal (o marido muda-se para a casa de sua mulher), e quando a autoridade sobre os filhos é exercida pelos parentes da mãe” (RADCLIFFE-BROWN citado por HITA, 2004, p. 13).

16 Ao parecer, não há nenhuma imagem documentada de Tia Ciata, embora diversos sítios da internet especulem que uma das baianas retratadas acima seja ela. De acordo com JACOB (2006) “A maioria dos estudiosos acredita que nenhuma imagem de Hilária tenha sido registrada. Na Bahia, muitos pesquisadores condenam a falta de reverência à mulher que conseguiu assumir, em meio aos senhores do samba, o posto de rainha. O nome de Hilária Batista de Almeida não figura na Enciclopédia da Música Brasileira Popular, Erudita e Folclórica, que agrupa mais de 3.500 verbetes”.

17 Tia Maria do Adamastor, ou Maria da Conceição César. Carioca de nascimento, recebeu o apelido de ‘baiana’ devido à sua profunda convivência com os negros vindos do estado nordestino. Participou da fundação de vários ranchos, como o Sempre-Vivas, Flor da Romã e Rei de Ouros, onde frequentemente fazia o papel de mestre-sala (A FORÇA FEMININA DO SAMBA, 2007, p. 19; EFEGÊ, 2007, p. 15-16).

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GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione. . .” Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.176-191.

18 Tia Amélia do Aragão morou na Rua Teodoro da Silva, 44 – onde nasceu seu filho Donga em 1889 – depois na Rua do Aragão, que lhe deu o apelido de Amélia do Aragão. Foi uma das famosas Tias Baianas da virada do século XX (SILVA, 2009, p. 64; DONGA citado por SODRÉ, 1998, p. 70; A FORÇA FEMININA DO SAMBA, 2007, p. 18).

19 Tia Carmem, conhecida como Carmem do Ximbuca, ou Tia Carmem da Praça Onze. Nasceu em 29 de julho de 1878, foi para o Rio de Janeiro em 1893, onde faleceu em maio 1988, aos 109 anos. Casou-se com Manoel Teixeira, com quem teve 22 filhos, e ficou conhecida como Carmem do Ximbuca, que era o apelido dele. Foi uma das famosas Tias Baianas da virada do século XX (EFEGÊ, 2007, p. 174-6; COSTA citado por SILVA, 2009, p. 18; MOURA, 1995, p. 158).

20 IRANETTE FERREIRA BARCELLOS (Tia Surica). Entrevista concedida ao autor na residência da entrevistada, Rua Júlio Fragoso, Bairro Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – RJ, dia 26 de setembro de 2010 às 10h30min. Duração: 30 minutos.

21 IVONE LARA. Série Depoimento para Posteridade. Museu da Imagem do Som. 30 de junho de 1978.22 Trecho transcrito por mim do DVD intitulado VELHA GUARDA DA PORTELA EM “O MISTÉRIO DO SAMBA” (2008).23 ÁUREA MARIA DE ALMEIDA ANDRADE. Entrevista concedida ao autor na residência da entrevistada, Rua Compositor Manacéa, Bairro Oswaldo Cruz,

Rio de Janeiro – RJ, dia 23 de setembro de 2010 às 10h30min. Duração: 58 minutos.24 Imagem disponível em: <http://www.flickr.com/photos/cariocavoyeur/2851494985/>, acessado em: 07/01/2011.25 A informação sobre Mariquita como pandeirista também é revelada em no livro de Roberto MOURA (1995, p. 97) e no documento A FORÇA

FEMININA DO SAMBA (2007, p. 16).26 Também encontrei como Perciliana Maria Costança. O primeiro nome aparece às vezes como Prisciliana ou Preseiliana.27 A título de ilustração: na mitologia iorubá encontramos, por exemplo, o mito do guerreiro que toma o poder das mulheres. Segundo o mito, no

começo quem mandava no mundo eram as mulheres e os homens eram a elas totalmente submissos. Mas os homens aprenderam a fabricar ferramentas e descobriram que com elas, além de plantar, caçar, etc., podiam matar pessoas. Assim, teriam inventado a guerra, tornaram-se guerreiros, e decidiram tomar para si o domínio que as mulheres controlavam (PRANDI, 2001, p. 55-62). ROBERTSON (1989), por exemplo, descreve a disputa pela supremacia entre os selk’nam, antiga tribo indígena que habitava a ilha da Terra do Fogo. Esta etnia possuía uma intensa espiritualidade, manifestada através de cerimônias mitológicas, como, por exemplo, o hain– ritual de iniciação sexual – onde se revelava, apenas aos adolescentes homens, certos segredos com o objetivo de se preservar a ordem social, ou seja, o poder masculino. Segundo o mito, antigamente, os homens estavam subordinados ao poder que exerciam as mulheres. Elas tomavam as decisões importantes para o melhor desenvolvimento de seu grupo.

28 A ortografia da palavra Ayán, no idioma Iorubá, segundo o dicionário R.C Abraham (Inglaterra, London Press, 1958) é Ayòn, que significa tipo de árvore e Deus dos tambores (SANTOS, 2006, p. 155).

29 Aseorogi – o axé (a força, a essência) da árvore e que faz cerimônia e que cuida do tambor (SANTOS, 2006, p. 156).30 Segundo MELLO (1999 e 2005), entre os índios Wauja do Alto Xingu as mulheres seriam as primeiras “donas” e conhecedoras do repertório das

flautas sagradas, só que, neste caso, o privilégio de tocar o instrumento não foi simplesmente transmitido, mas roubado pelos homens, ficando as mulheres proibidas de tocar ou ver estes instrumentos sob pena de sofrer severas sanções.

31 A informação a respeito da hegemonia masculina no cargo de ogã e a tendência atual em estender também para as mulheres, obtive em pesquisa anterior, quando em trabalho de conclusão de curso investiguei sobre as relações de gênero nos terreiros do Morro da Caixa d’Água de Florianópolis, ver: GOMES (2008). Para tal, tomei como referência as entrevistas com os frequentadores dos terreiros, observações em campo e os estudos de AMARAL (2007) e TRAMONTE (2008).

32 Adja é um sino constituído de uma a sete campânulas cuja principal atribuição é provocar o transe quando agitado sobre a cabeça do iniciado, de uso reservado aos pais ou mães-de-santo e as ekedes, não sendo necessário o domínio de qualquer técnica específica.

33 Yalorixá e Babolorixásão os responsáveis pelo ritual, são os “zeladores” dos orixás (SANTOS, 2006, p. 156).34 À parte dos chocalhos, a presença de mulheres em outras funções nas baterias das escolas é rara. Por vezes, é possível encontrá-las no tamborim,

cuíca, agogô, enquanto que no repique, caixa e, principalmente, no surdo, é ainda mais raro. O próprio DOSSIÊ DAS MATRIZES DO SAMBA NO RIO DE JANEIRO, ao descrever cada um dos instrumentos de uma escola de samba, faz uma descrição graciosa, relacionando o chocalho às mulheres. Segue a seguir: “Pratinelas: Placas de metal, redondas e furadas, interligadas por arame ou madeira pontiagudos. Construídas na vertical ou horizontal, quando sacudidas produzem agradáveis sons metálicos. Deve-se a elas o aparecimento da mulher na bateria do samba. Emite sons agudos” (op.cit., p. 75). O Dossiê chama este instrumento de pratinelas como forma de diferenciar do chocalho usado nas rodas de samba, feito de madeira e sementes dentro.

Rodrigo Cantos Savelli Gomes é Mestre em Música (Musicologia-Etnomusicologia) pela Universidade do Estado de Santa Catarina e graduado pelo Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição. Trabalha como Professor Efetivo da Prefeitura Municipal de Florianópolis, onde leciona a disciplina Artes/Música para o Ensino Fundamental; e como Tutor do Curso de Graduação em Educação Musical da Universidade Federal de São Carlos. Atua como pianista e diretor musical de grupos religiosos, corais e bandas. As últimas pesquisas enfocaram as relações de gênero na música popular brasileira, em especial no samba. Em 2008 recebeu o 3º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e foi condecorado com Menção Honrosa no ano consecutivo pelo mesmo concurso.

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Recebido em: 05/04/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

“A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: campo sonoro da linha de Quimbanda do Terreiro de Umbanda Reino de Luz – som e preconceito

Renata Schmidt de Arruda Gomes (Pelota-RS)[email protected]

Resumo:A Umbanda é uma religião afro-brasileira e, tal como é praticada no Reino de Luz, é essencialmente sonora. A religião umbandista é muito estigmatizada por ser relacionada, por alguns não adeptos a Umbanda, às práticas do “mal”, magia negra e culto ao diabo. Muitas são as diferenças entre as concepções religiosas e de mundo entre adeptos da Umbanda e de outras religiões, estas diferenças provocam choques de crenças e, muitas vezes, geram preconceitos. Neste trabalho, proponho analisar a cosmo visão umbandista através dos Pontos cantados e práticas sonoras em geral, dos discursos dos participantes do Terreiro de Umbanda Reino de Luz e seus principais pontos de atrito com visões do senso comum. Acredito que através da análise dos sons presentes nesse ambiente, aliados aos discursos dos membros da terreira, possamos melhor entender os preconceitos existentes em relação a esta religião e suas tentativas de adaptação para melhor aceitação social.

Palavras-chave: Música, Umbanda, Etnomusicologia.

Sound field “linha de Quimbanda” of “Terreiro de Umbanda Reino de Luz”: sound and prejudice

Abstract: The Umbanda is an afro-Brazilian religion and, as it is practiced in the Reino de Luz, is essentially sonorous. This religion suffers much prejudice for being related, for some not adepts, to the practical of the “evil”, cultured black magic and to the devil. Many are the differences between the religious and world conceptions between adepts of the Umbanda and of other religions; these differences provoke shocks of beliefs and, many times, generate preconceptions. In this work, I consider to analyze the umbandistaCosmo vision through the practical of “Pontos Cantados” (typical religious songs), through sonorous practices, through the speeches of the participants of aspecific religious group, called “Terreiro de UmbandaReino de Luz”, working with its main points of attrition in opposite of the visions of the common sense. I believe that through the analysis of the sounds of this environment, allied to the speeches of the members of the “terreira” (the religious group”, let us better understand the existing preconceptions in relation to this religion and its attempts of adaptation for better social acceptance.

Keywords: Music, Umbanda, Ethnomusicology.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

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1- Abrindo os trabalhos - introduçãoEste trabalho tem origem em uma pesquisa de mestrado realizada na linha de etnografia das práticas musicais do Programa de Pós-Graduação da UFRJ. Esta se propunha a estudar o campo sonoro – no decorrer do texto explico o porquê da utilização deste termo para designar as práticas sonoras do ambiente em questão – do Terreiro de Umbanda Reino de Luz.Importante ressaltar que sou uma pesquisadora nativa, já que faço parte da terreira1 estudada.

Essa religião, tal como é feita na terreira acima citada, é essencialmente sonora. Cada parte do ritual religioso possui Pontos (cânticos) – tocados por atabaque, canto e palmas – específicos e, é através destes que as entidades (espíritos da Umbanda) descem à terra.Esses Pontos cantados poderiam ser chamados de “a música da terreira”.

De acordo com o adiantar da pesquisa, pude notar que para um melhor entendimento do ambiente estudado seria necessário considerar outros aspectos além destes que normalmente são chamados de “música”. Para tal utilizei o termo campo sonoro. Essa escolha se deu, também, a fim de tentar seguir as novas tendências da etnomusicologia atual. Hoje, dentro dos estudos etnomusicológicos, busca-se compreender não só a música – como uma categoria a parte –, suas funções e importância em algum ambiente específico, mas, além disso, todos os sons que formam esse ambiente. Deste modo, além dos sons das palmas, atabaques e canto que fazem parte das práticas do Reino de Luz, outras características foram importantes para a formação do campo sonoro deste ambiente, como: o som dos sinos, falas e emissões das entidades durante os rituais,alémdos discursos dos membros da corrente2– expostos durante conversas e entrevistas – e o presente nas letras dos pontos cantados, enfim, todos os sons que formam a terreira.

Desde o início das pesquisas, o fato de grande parte dos integrantes da casa3terem sofrido algum de tipo de preconceito chamou minha atenção e despertou em mim a vontade de saber o motivo pelo qual isso ocorria. Assim, após alguns membros do Reino de Luz terem sinalizado a vontade de mudar as letras dos Pontos cantados da linha de Quimbanda4devido ao conteúdo dessas não os agradarem e, segundo eles, não corresponderem às práticas da casa, decidi estudar a relação som-preconceito.

O estudo de uma prática sonora dentro de seu contexto já é um ponto pacífico dentro da etnomusicologia,mas neste contexto específico do Reino de Luz, vi que para melhor entender essas práticas seria importante compreender também o ambiente ao redor da terreira. Neste trabalho, proponho analisar a cosmo visão umbandista através dos Pontos cantados e práticas sonoras em geral, dos discursos dos participantes do Terreiro de Umbanda Reino de Luz e seus principais pontos de atrito com visões do senso comum. Acredito que através desta análise possamos melhor entender os preconceitos relativos a esta religião e aos seus adeptos.

2 – Sobre as crenças e práticas do Reino de LuzA prática religiosa umbandista se dá através de linhas, – grupos de espíritos como: preto-velho, caboclo, Exu – dentro das linhas de Umbanda a mais estigmatizada é a de Quimbanda – linha de Exu, Pomba-Gira e Zé Pelintra – exatamente pela ligação que se faz da figura do Exu à do diabo e, por consequência, a tudo que está relacionado ao diabo (já que este é visto como o grande mal).

Esta linha é festejada dentro da casa uma vez por mês, em rituais que se chamam Festa de Quimbanda, o uso do termo festa não se dá por acaso, já que o Povo de Quimbanda é quem cuida de seus cavalos diariamente, por ser o Povo mais próximo de nós seres humano. São eles que fazem o trabalho sujo, isto é, limpam as energias negativas, afastam estas dos umbandistas e os protegem de qualquer tipo de “mal”. Por este motivo, uma vez por mês se faz uma Festa para essas entidades, a fim de homenageá-las e fortificá-las, através do ritual, que inclui, além do toque5do tambor, canto e palmas, bebidas, comidas e presentes. Existe um ponto cantado desta linha que acredito ilustrar a relação que os umbandistas têm com essas entidades (Ex.1).

As Quimbandas – como são também chamados esses rituais – são fechadas, só podem participar dos trabalhos os membros da corrente e convidados previamente autorizados pelo Cacique. Isto ocorre, poisse acredita que, sendo os Exus, Pomba-Giras e Zé Pelintras, os protetores da terreira, não é aconselhável que muitas pessoas de fora estejam presentes.

Chegarmos numa Festa de Quimbanda é diferente de chegar a um trabalho de Umbanda, primeiramente, pois as primeiras acontecem da meia-noite às quatro horas da manhã. Outra grande diferença diz respeito às roupas dos médiuns, na Umbanda todos se vestem de branco, os homens de calça e camiseta e as mulheres de saia rodada e camiseta; na Quimbanda todos estão vestidos de preto, preto e vermelho, preto e branco, roxo e combinações destas cores.

Antes dos trabalhos iniciarem-se as lâmpadas são trocadas por lâmpadas vermelhas e a penumbra se instala no ambiente, bebidas, comidas, charutos, cigarros, cigarrilhas, capas, cartolas, chapéus e presentes são preparados para que assim que as entidades cheguem à terra estes sejam entregues a elas. Sente-se uma pequena euforia no ar, os trabalhos acontecem somente uma vez por mês e muitos médiuns aguardam ansiosamente o momento de homenagear aqueles que tantos os ajudam.

A corrente se forma, homens à esquerda e mulheres a direita do Congá. Neste momento podemos ver sorrisos e olhos apreensivos, tanto entre os médiuns quanto entre as poucas pessoas que compõem a assistência. Assim que todos estão prontos e dentro da corrente, começa o ponto de cruzar a linha – este é o único ponto de abertura da Quimbanda (Ex.2).

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Juntamente com o início deste ponto, além do toque dotambor, podemos ouvir as palmas e os sinos, confirmando assim o início dos trabalhos. Após este ponto canta-se, geralmente, um ponto de Lúcifer, Dono da Quimbanda, que é quando esta entidade chega à terreira, caso seu cavalo (médium) esteja presente, e, após este, o ponto do Exu Caveira, chefe da casa, que é quando este chega à Quimbanda.

Logo após iniciam outros pontos, à medida que os médiuns vão recebendo suas entidades; os cambonos6os vestem com suas capas, cartolas e demais objetos rituais. Podemos ouvir além dos tambores e cantos, risadas roucas, sons guturais que nos avisam que os Exus estão chegando. As primeiras duas horas da Festa são dedicadas aos Exus, homens e mulheres recebem estas entidades que dançam, bebem e conversam com os membros da corrente que não estão incorporados e com as pessoas

da assistência. Neste momento podemos ver um bailar de longas capas negras ou vermelhas (em sua maioria), rostos sérios, pois os Exus são assim, além de abundante marafa – cachaça – bebida de quase todos os Exus.

Passadas as duas primeiras horas da Quimbanda, as mulheres vão se trocar, colocar seus vestidos, maquiagens, brincos, pulseiras e perfumes para receberem suas Pomba-Giras. Os homens que têm Zé Pelintra deixam de trabalhar com seus Exus e passam a trabalhar com os Zé’s. Alguns homens também recebem Pomba-Gira assim como algumas mulheres recebem Zé Pelintra. A partir de então podemos ouvir grandes gargalhadas, sabe-se então que as mulheres – Pomba-Giras – estão chegando. Vemos vestidos, cigarrilhas, champanhe ou cidra – que são as bebidas mais comuns para as Pomba-Giras. Algumas dançando, outras encostadas nas paredes conversando com algum Zé Pelintra. Estas são ameaçadoras, um olhar

Ex.1 - Ponto de Exu recolhido no Terreiro de Umbanda Reino de Luz.

Ex.2 - Ponto de Cruzamento da Casa, ponto utilizado para a abertura dos trabalhos de Quimbanda.

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atravessado de uma delas estremece qualquer um, não que elas vão fazer alguma coisa, mas simplesmente o fato de nos olharem significa que sabem nossos maiores segredos e, a qualquer momento, podem vir nos falar, em meio a risadas, coisas que não queremos ouvir.

Os Zé’s, como são carinhosamente chamados, são uma “festa”, chegam gingando, com toda a sua malandragem, ternos brancos, bengala, chapéu de palha, fumando, tomando cerveja ou batidas de coco. Eles exaltam o mundo do ócio, mas estão sempre prontos para trabalhar em prol dos seus filhos.

A música não para, o tambor nunca pode parar de tocar, pois é este o responsável por manter a energia elevada. As Quimbandas são trabalhos mais pesados dos que os de Umbanda, pois lidam com energias mais pesadas, transformando energias negativas em positivas, por este motivo o toque do tambor e canto torna-se tão importante e indispensável. Estas energias (do cavalo e ambiente) são consideradas mais pesadas, pois são aquelas mais humanizadas, já que as entidades de Quimbanda são consideradas as mais próximas dos seres humanos, estas são capaz de transformar as energias mais pesadas em energia positiva.

O toque de Quimbanda é bastante diferente do toque de Umbanda e pode ser facilmente reconhecido ao escutá-lo. Deste modo, a audição deste toque passa a ser um modo de caracterizar, por parte de outros umbandistas e até de não adeptos, as terreiras Quimbandeiras.

3 – Abrindo um parêntese – discutindo o preconceitoAcredito que parte do preconceito existente em relação à Umbanda, aconteça pela ligação que se faz da figura do Exu ao diabo. Por outro lado, com o passar do trabalho de campo, fui “descobrindo” outras características presentes na linha de Quimbanda que se diferenciam bastante da visão de mundo, como senso-comum, dos não adeptos à Umbanda7, o que me levou a refletir sobre as diferenças existentes na nossa sociedade8e a constante disputa por espaço dentro desta.

Ataques feitos por pessoas provenientes de religiões Neopentecostais contra a Umbanda, preconceitos e discriminações sofridos pelos umbandistas, preconceitos e discriminações realizados por nós umbandistas, diferentes visões de mundo, diversidade de crenças e fé, tudo isso configura o grupo de pessoas que formam um grupo social e as disputas por espaço e legitimações são frequentes neste contexto. Deste modo, acredito não poder tratar de preconceito e discriminação, sem levar em conta que uma das maneiras de legitimar práticas e crenças é atacando e destituindo de crédito as outras práticas e crenças.

Coloco a questão em discussão não para diminuir as experiências sofridas pelos membros do Reino de Luz, mas no sentido de não supervalorizá-las, pois como

acredita Lom – Cacique9do Reino de Luz –,o preconceito está em tudo:

Lom – “Sem dúvida nenhuma. O preconceito está enraizado em tudo, no homossexualismo, no... na mulher que se veste um pouco mais ousado, na mulher que se veste mal, no homem que é gordo, na mulher que é gorda, na mulher que é anoréxica, preconceito tem Em tudo.” (Em entrevista a autora, 27/04/2008)

Apesar de concordar com isso, acredito ser importante discuti-lo e contextualizá-lo, a fim de tentar ver as possíveis causas de este ocorrer, no sentido de melhor entendermos os contextos nos quais ocorrem. No caso da Umbanda, uma religião que desde seu surgimento é muito estigmatizada, talvez seja possível entender as mudanças ocorridas nas práticas religiosas levando em conta este estigma.

Durante minhas idas a campo, conversas e entrevistas busquei saber como os participantes da casa veem a questão acima exposta.

Acredito que diversas práticas umbandistas levam esta religião a ser estigmatizada, inclusive por esta estar constantemente relacionada às práticas do “mal” – ligadas as práticas de matança – e suas oferendas e entregas serem constantemente chamadas de macumbas, de modo pejorativo. Em dois momentos de sua entrevista Lauren conta como via a Umbanda antes de entrar para esta religião

Lauren – “Ah, eu tinha nove anos. A maior parte foi Kardecista, só que. daí a gente começou a conhecer pessoas, tipo vizinhas, entende? Que eram médiuns, mas eram médiuns de Umbanda. E aí a gente começou a... a.. a ir, pra vê como é que era, né. Pra.. a gente não tinha noção assim da.. da diferença, começô a ir. Acho que a minha mãe, assim como eu gosta da.. da vibração e tal, sei lá, da sensação de ta lá.. e aí a gente começô a ir. E.. Mas só que eu tinha muito medo de.. de Umbanda porque, Como Todo mundo, eu ligava, eu achava que Umbanda só tinha coisas ruins, que as pessoas trabalhavam é.. faziam coisas erradas e que aquilo tudo tinha um significado diferente do que tem. Não sei se tu entendeu o que eu quis dizê?” Eu – “Entendi.. negativo, tu tinha uma..” Lauren – “É, eu tinha uma ideia.. aquilo m’interessava, me chamada atenção, mas ao mesmo tempo era tipo assim, interessante e tal, mas não é legal de fazê.”

Eu – “E tu acha que esse tipo de ligação, da.. do Exu com o diabo, essa imagem causa algum tipo de efeito pras pessoas que cultuam a Quimbanda, pra gente que cultua a Quimbanda?”

Lauren – “Ai.... Tipo.. pra mim no início, quando eu entrei, causava porque pra mim... eu achei que.. que fossem.. como é que eu vou dizê? Eu achei que só trabalhava com essas linhas quem quisesse fazê alguma coisa pro.. pro mal entende? Eu não sabia que tinha Exu e Pomba-Gira que.. que faziam.. que trabalhavam pro bem e que tem muitos que só.. que trabalham só pro bem, não tem? É que eu não sei muito bem da religião então.. eu tenho a minha “visão romântica”, como diz o Diego, então..” (Em entrevista a autora, 28/04/08)

Assim como Lauren, muitas pessoas possuem visões parecidas sobre a Umbanda e Exu, o próprio Cacique do Reino de Luz, Lom, possuía visão semelhante antes de conhecer a religião. Segundo Ricardo Mariano

Na segunda metade do século XIX, a escravidão e o racismo – incluindo o racismo científico – resultaram em franca perseguição

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religiosa ao candomblé e punição a seus seguidores. Em seguida, com o fim da escravidão e a queda em descrédito do racismo científico e seu corolário, o “baixo espiritismo”, designação por meio da qual candomblé e umbanda foram sistematicamente desqualificados e rebaixados nos planos moral e religioso, foi mantido sob forte repressão institucional até a década de 1940.MARIANO (2007,p. 126-7)

O autor salienta que

Ao lado disso, uma série de racionalizações religiosas de cunho cristão, de interesse institucional da Igreja Católica e há muito sedimentadas no imaginário social e na cultura brasileira, fundamentava concepções e juízos de valor para alicerçar e justificar as acusações de curandeirismo e de magia negra contra um sem-número de adeptos e líderes desses cultos.MARIANO (2007,p. 127)

Hoje, como o próprio Mariano chama atenção, a situação mudou, as religiões afro-brasileiras não são mais perseguidas pela polícia e nem são proibidas pelo estado10, mas mesmo assim “umbanda e candomblé prosseguiram sendo alvo de discriminação e, com menor frequência, até de atos de intolerância” MARIANO (2007,P. 128).

Rita Segato em “Racismo, discriminación y acciones afirmativas: herramientas conceptuales”, trata do racismo, em suas diversas formas, expondo as diferentes esferas deste ato, diferenciando a discriminação do preconceito. A autora fala de “[...] três tipos de destinatários do preconceito e da discriminação racista”: os que possuem etnicidade e raça, “[...] aqueles que conjugam uma diferença racial, um signo fenótipo, com um patrimônio cultural idiossincrático”; os que possuem raça sem etnicidade, “[...] aquelas pessoas que exibem traços raciais como cor de pele, tipo de cabelo, formato dos lábios e do nariz, etc., mas sem necessariamente serem portadoras de um patrimônio cultural diferenciado” e os que possuem etnicidade sem raça,

[...] pessoas pertencentes a povos marcados pelo cultivo e transmissão de um patrimônio cultural idiossincrático e condutores de uma trama histórica que reconhecem como própria, mas que, devido a um antigo processo de mestiçagem, não necessariamente exibem traços raciais que as distinguem da população de sua região ou nação.SEGATTO (2007, P. 66-7)11

Acredito que o caso da Umbanda, e mais intensamente da Quimbanda, seja o que Segato chama de etnicidade sem raça, pois, como já dito anteriormente, creio que as práticas umbandistas, mesmo possuindo elementos Kardecistas, Católicos, entre outros, são principalmente negras (me remeto às raízes africanas). Prandi possui visão semelhante:

Fragmentada em pequenos grupos, fragilizada pela ausência de algum tipo de organização ampla, tendo que carregar o peso do preconceito racial que se transfere do negro para a cultura negra, a religião dos orixás [Candomblé, Umbanda, etc.] tem poucas chances de se sair melhor na competição – desigual – com outras religiões.PRANDI (2004,p. 231)

Ao mesmo tempo é interessante ressaltar que em certo período dos estudos sobre religiões afro-brasileiras, a Umbanda não era considerada digna de estudos por não

ser “pura”, isto é, por ‘não ser negra o suficiente’ e, hoje, sofre preconceito e discriminações por ser ‘negra demais’.

A linha de Quimbanda atenua esta “negritude” e, talvez também por isso seja a linha mais estigmatizada, além de ser um dos temas mais controversos da Umbanda, inclusive entre os próprios umbandistas de casas diferentes. As terreiras que se dizem Brancas12, são aquelas que não cultuam a linha de Exu, por acreditarem que estes são espíritos “atrasados e de pouca luz” 13. Podemos ver então que as diversas visões em relação a esta linha estão presentes não somente entre umbandistas e não umbandistas, mas entre os umbandistas de diferentes casas e doutrinas14.

Esta também é a linha que, geralmente, é representada negativamente e vinculada ao conceito de “mal”: Exus, Pomba-Giras, são as entidades que mais comumente são ligadas à figura do diabo, logo esta é a linha mais “atacada” por não adeptos ou pessoas de outras religiões quando querem depreciar a Umbanda e suas práticas.

Creio que as visões negativas relacionadas à linha de Quimbanda sejam um dos (dentre os tantos) motivos pelos quais existem preconceitos em relação aos adeptos desta. Quando questionei aos membros da corrente da terreira se haviam sofrido algum tipo de preconceito ou discriminação, a maioria dos entrevistados respondeu-me que sim. Taize respondeu assim:

Taize – “Já, já..tranquilo assim, tinha uma.. eu trabalhava com uma.. uma menina, e aí ela... a gente conversava muito, assim, ela era minha colega de trabalho e ela.. enfim a gente vivia conversando sobre várias coisas e um dia entrou a religião. E ela era evangélica e ela... e ela foi e disse assim, ah, porque chegou um cara lá que ela conheceu e o cara era tri gente boa, mas ela ficou.. surpreendida porque ele era.. ele era de terrera, ela disse assim. E eu disse, “ué, mas não por isso, eu também sou”. E ela ficou impressionada, porque ela disse assim: “ai, que estranho né? Tu é uma guria tão inteligente, uma guria que trabalha, estuda e é de terrera”. E eu, “tá, mas o que tem a vê?” E ela, “ai, não, porque é estranho, né?”. Tipo assim, coitada né? Deu pra vê que.. no mundo dela quem é de terrera é Burro e não pode fazê mais nada porque é de terrera. (risos) Mas foi, mas várias vezes, assim.. nos lugares, tu diz que é de terrera e as pessoas ficam te olhando atravessado... mas é isso aí!”

Eu – “É assim mesmo, né?”

Taize – “É, pior é que é.” (Em entrevista a autora, 29/04/08)

Além de Taize, vários outros entrevistados já sofreram algum tipo de discriminação ou preconceito por serem umbandistas. Este tipo de situaçãoé relativamente comum. Podemos ver que, para algumas pessoas o fato de ser umbandista e “trabalhador” são coisas contraditórias. Lom perdeu parte de seus clientes por ser adepto a religião e Débora não pode se declarar pertencente à terreira para não perder parte de seus alunos de canto.

Segundo Lenny Alvarenga, “Ao contrário do que comumente se pensa a identificação exu-diabo não nasceu no Brasil, mas sim em terras africanas com

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os primeiros contatos dos missionários católicos e protestantes com as tradições religiosas locais”. Segue o autor (citando Bouwen),

Grosso modo, o culto a qualquer divindade apresentado pelos africanos, independentemente de quais fossem as suas características para os fiéis locais, foram tomados como o culto a divindades do mal (demônios, diabos, satã, etc.) pelos europeus de modo geral.ALVARENGA (2006, p.64)

Pode-se notar então que esta associação é mais antiga do que pensamos. Ao mesmo tempo, perguntei aos participantes da terreira o que eles pensavam sobre essa associação, porque motivo eles acreditavam que isto acontecia. As respostas foram reveladoras e levavam em conta muitos aspectos relativos às próprias práticas da Quimbanda. Taize me explicou a relação da figura do Exu ao diabo desta maneira,

Taize – “... eu vou falá por mim, assim.. quando eu entrei, eu me lembro que nessa primeira casa que eu te falei que eu ia, a.. eu achava esquisito quando eles chegavam, né, as luzes já... se apagavam e eles vestiam umas capas, aí tinha uns tridentes desenhados. E eu acho que, na verdade, a igreja Católica sempre pintô o demônio, o diabo, bem com esses trajes, capa, tridente, chapéu, colinha [rabinho] e tudo mais. E, acaba que até as imagens hoje que nós vamos comprá, dos nossos Exus, tem colinha [rabinho] e tem garfo, eu acho que um pouco é uma ligação, é um sincretismo que há com isso. De repente é por isso mesmo que as pessoas se confundem e eu não acho que seja uma..... uma confusão tão errada assim, porque, na verdade, infelizmente a.. a própria religião prega isso, tanto que as nossas imagens são moldadas dessa forma. Embora eu saiba que não é, até porque eu não acredito em diabo, demônio. Acho que existe energia ruim, mas.. não acredito que exista um.. uma figura que represente tudo isso. E... mas infelizmente a própria religião pinta os Exus dessa forma, então, na verdade, essa confusão que há.. principalmente pros negros, infelizmente não é tão errada assim, mas não que eu acredite que exista, até porque eu realmente não acredito.” (Em entrevista a autora, 29/04/08)

Taize aponta para o fato de as representações simbólicas do Exu na Umbanda serem próximas às representações ao diabo15feitas pela igreja católica e lamenta isso. Importante ressaltar que este modo de representar esta entidade não está presente somente nas imagens, roupas e adereços utilizados pelos médiuns quando os recebem, mas também nos pontos cantados desta linha de entidades.Estes pontos, em suas letras, descrevem Exu como quem “traz o seu garfo na mão”16, quem usa capa, vive na Calunga (cemitério), falam de catatumbas17, sangue, galo preto. Exu de duas cabeças, “uma é satanás no inferno e a outra Jesus de Nazaré”18. As Pomba-Giras aparecem como belas mulheres, Pomba-Gira Maria Quitéria “não mata porque não qué”, Maria Padilha “é o que? Ela é o diabo!”, elas “trabalha[m] com magia”. Podemos ver então como essas descrições presentes nos pontos cantados acabam corroborando com as críticas sofridas pela Umbanda/Quimbanda, deste modo os pontos acabam reforçando essas imagens de ligação ao diabo, magia e morte. Este relacionamento com a morte, o cantar a morte, também é um ponto muito importante da cosmovisão umbandista, adiante me aterei a este.

Tornou-se interessante que, ao questionar aos participantes da terreira sobre a ligação destas duas

figuras (Exu e diabo), os umbandistas se colocam no lugar do outro, destas pessoas que fazem tal ligação e, com isso, acabaram apontando diversos signos que, para o senso comum, isto é, para as “racionalizações religiosas de cunho cristão [...] há muito sedimentadas no imaginário social e na cultura brasileira” MARIANO (2007, p. 127), dizem respeito ao demônio e na Quimbanda faz parte da representação de Exu. Ao mesmo tempo, podemos notar que, algumas vezes, os signos religiosos que fornecem tal conexão, fazem sentido até para os próprios umbandistas, como, por exemplo, no depoimento de Zinho

Eu – “E aquilo que eu tava falando, das pessoas ligarem os Exus ao diabo, porque tu acha que isso acontece? Porque as pessoas fazem essa ligação?”

Zinho – “Eu acho que é porque.. pelas pessoas terem uma visão.. até porque se tu olha.. porque as pessoas tem uma visão do diabo que é vermelha e.. vamô supor, que o diabo é vermelho, olha um monte de gente de Exu, todo mundo de vermelho e preto, que que tu vai pensá? Numa encruzilhada, tomando sangue, que que tu vai pensá? É coisa do diabo! Não tem outra... até eu já pensei isso. Vi um monte de gente ali, na encruzilhada, o que eu vô fazê? É troço do inferno, né? Não tem mais o que pensá, acho que é por causa disso.” (Em entrevista a autora, 01/05/08)

Vemos então que, muitas vezes, estas citadas representações, são tão fortes e presentes no meio em que vivemos que marcam os próprios umbandistas dentro de suas interpretações, formando um discurso dicotômico.

Além deste tipo de dicotomia presente no depoimento de Zinho, onde o próprio umbandista identifica elementos que remetem às noções de inferno e diabo presentes nas representações inicialmente Católicas destes e hoje já do senso comum, ainda existem visões relativas ao modo de ser das entidades de Quimbanda, como Guias que precisam de cuidado e ensinamentos. Podemos ver tal opinião no depoimento de Lucas, quando lhes perguntei:

Eu – “Tu.. eu queria sabê como que tu vê, o povo, assim, de Quimbanda, de Exu, porque é o povo que eu vejo que, Pomba-Gira, Exus, são os.. o povo mais controverso da religião. Eu queria saber como que tu vê esse povo?”

Lucas – “Ah, eu vejo assim, que é um povo assim óh, que além de sê difícil de lidá, também é um dos povos assim, mais, mais.. como é que eu posso dizê? Mais.. que a gente acaba se entregando também mais, um pouco mais e se apegando um pouco mais a eles, por eles serem mais próximos da gente. E a gente acaba se.. acaba se unindo mais a eles, entendeu? Eu vejo como um povo bem legal de trabalhá, só que é aquele detalhe, tu tens que sabê lidá com ele, tu tem... tu tem que tê tipo uma balança, tu tem que impor regras, se não fica bem difícil.” Eu – “Porque?” Lucas – “Por causa que é um povo que.. é tipo.. é que nem uma criança, tu em que impor regras porque se não acaba tomando conta, sabe? Tu tem que falá o que é certo e o que é errado porque se não acaba te trazendo problemas.. é o meu modo de pensá.” (Em entrevista a autora, 01/05/08)

É interessante este tipo de colocação como as de Lucas (além de Lucas, outros participantes da casa esboçaram visão semelhante), onde os Exus são vistos como crianças que devem aprender e, diferentemente das outras linhas, onde os médiuns aprendem com os Guias, nesta linha, entidade e cavalo trocam ensinamentos. Destaco ainda

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estas visões acima citadas, já que dentro do Reino de Luz acredita-se que todas as entidades estão debaixo da capa19do Seu Caveira – Exu chefe da casa – e que este não permite que se faça nada que prejudique alguém. Sendo assim, porque os Exus necessitam de tantos cuidados? Porque eles precisam ser tratados de forma diferente?20

Essas dicotomias estão presentes nos depoimentos de diversos participantes do Reino de Luz e elas demonstram como, mesmo nós umbandistas, que lutamos para nossa religião não ser alvo de preconceitos, estamos imbuídos das mesmas ideias que servem para fundamentar as criticas relativas à Umbanda. Isto se mostra presente também quando vemos, em algumas entrevistas, alguns membros da corrente dizerem que gostariam de mudar os pontos de Quimbanda, ou que não cantam certos pontos de Quimbanda devido às letras destes.

Outra importante colocação de Lucas diz respeito ao Povo de Quimbanda “por eles serem mais próximos da gente. E a gente acaba se.. acaba se unindo mais a eles, entendeu? Eu vejo como um povo bem legal de trabalhá”, essa é uma visão corrente dentro da terreira e faz com que as festas de Quimbanda sempre sejam aguardadas com ansiedade, alguns médiuns adoram estas festas enquanto outros sentem-se desconfortáveis. Carmen pensa desta forma

Carmen – “[...]. O povo de Exu, que é um povo que eu tenho muita [...] e uma confiança hoje [...] mas não foi sempre assim, porque? Porque todo esse ritual que se faz pro povo de Quimbanda, eu.. me agride! Me agride. [...] alguns irmão da corrente ainda dizem que foi esse o... um fator assim ó, principal de nós termos caído, do nosso grupo ta desintegrado, de nós não termos mais casa, que.. que foi essa mudança no ritual21de Exu. [...] [mas] Não foi isso...”

Eu – “Porque assim, tem muitas pessoas que até.. de fora da religião, que ligam a figura do Exu com a figura do diabo, Exu e diabo..”

Carmen – “Eu não ligo... eu não ligaria ao diabo, eu ligo a figura do Exu as nossas coisas terrenas, as nossas fragilidades, a todos os, entre aspas, pecados, as coisas da carne. [...] e também ao ritual do... da homenagem aos Exus. Por exemplo aquela coisa assim ó, dos vestidos decotados, das.. atitudes sensuais, da bebida, daquela... daquela festa assim.. eu não quero sê exagerada, mas daquelas orgias22.Eu acho que não tem nada a vê com religião aquilo ali. Aí vão dizê assim: “Ah, mas tu não gosta de te enfeitá e de ir num baile?” Gostava, na época que ia com meu marido adorava e sinto fala até hoje. Gosto de me vestir, Gosto duma roupa decotada, Gosto dum copo cheio de cerveja, mas na festa, não na hora que eu to me propondo a fazê um ritual religioso pra evolução espiritual.”

Eu – “E tu acha que são esses rituais, por exemplo, que levam as pessoas de fora da Umbanda a fazêesse tipo de ligação?”

Carmen – “Com certeza.” (Em entrevista a autora, 01/05/08)

Outros membros da corrente do Reino de Luz também possuem este tipo de posicionamento, como o de Carmen. O ritual da Quimbanda os incomoda, pois “não tem nada a ver com religião”, em contraposição com o ritual de Umbanda, que seria visto como religião. Acredito que estas visões estão ligadas as histórias de cada participante. Carmen, como se pode ver nas entrevistas em anexo, teve uma criação católica e, devido a experiências as quais esta

religião não explicava, passou a frequentar o Kardecismo e depois a Umbanda. Quando mudamos de religião, não nos descolamos de nossa bagagem anterior e, de certa forma, de nossas crenças. Deste modo, nosso modo de ver esta nova religião está impregnado pelas experiências vividas na religião anterior.

4 – Voltando ao campo sonoroPoucos são os umbandistas do Reino de Luz que “nasceram” na Umbanda, deste modo essas dicotomias entre as práticas umbandistas e as vivências em outras religiões se cruzam e fazem com que as interpretações acerca das práticas do Reino de Luz sejam vistas de formas diferentes entre os participantes. Neste contexto, alguns participantes não gostam dos pontos de Quimbanda, porque eles remetem a coisas que não estariam dentro do que estas pessoas acham que seriam práticas religiosas – como as festas, por exemplo, (ver depoimento da Carmen, acima citado, onde esta explica a situação). Podemos ver, na foto abaixo, uma cena comum nestas Festas (Ex.3).

Ex.3 – Foto de dois Zé Pelintra em uma festa de Quimbanda.

Roberto da Matta em “Carnavais, malandros e heróis” se utiliza de duas categorias em sua análise, a rua e a casa. O autor argumenta, “[...] realmente, a oposição entre rua e casa é básica, podendo servir como instrumento poderoso na análise do mundo social brasileiro, sobretudo quando se deseja estudar sua ritualização” DA MATTA (1981,p. 70). A casa seria vista como um lugar de harmonia, calma, remetendo “[...] a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares” DA MATTA (1981, p. 70). A rua, ao contrário, seria “[...] basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões...”,

[...] na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não-sabidas ou não-percebidas. E ainda para escapar do cerco daqueles que nos querem iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a malandragem, essa arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de vida...DA MATTA (1981, p. 70)

A coincidência é que as entidades de Quimbanda são chamadas também de Povo da Rua e uma das linhas desse

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povo é a de Zé Pelintra, os malandros23descritos por Da Matta. Inclusive esta descrição do autor de que é preciso estar atento para não ser enganado na rua, corresponde à colocação, já citada, que alguns participantes da casa fazem do relacionamento entre médiuns e as entidades da Quimbanda, a respeito do cuidado que é necessário ter com tais espíritos. Exatamente por essa ligação com a rua, segundo a categoria de Da Matta e também a categoria prevista dentro do universo do Reino de Luz, é que o Povo deQuimbanda é visto como próximo de nós. Segundo Vânia Zikán Cardoso, “o próprio nome dos espíritos [Povo da Rua] nos remete para fora dos espaços delimitados da performance do ritual em direção ao espaço mundano das ruas e do dia-a-dia” CARDOSO (2007, p. 322), como podemos observar nos exemplos abaixo (Ex.4 e Ex.5).

Ex.4 – Zé’s Pelintra e Pomba-Gira Sete “Catatumba”, foto retirada em uma festa de Quimbanda da casa.

Ex.5 – Foto de uma cena da mesma festa de Quimbanda, Exu Tiriri e Exu Caveira.

Além de o universo visual dos rituais de Quimbanda nos remeterem à rua – como vimos nas fotos acima – o campo sonoro desta linha remete a este mesmo universo, alguns Exus e Pomba-Giras dão gargalhadas quando chegam à terra, o toque do atabaque é mais acelerado e cheio de variações, as luzes são apagadas e acesas luzes vermelhas, as festas ocorrem da meia-noite às quatro da manhã (como já dito). Os sons da Quimbanda são sons da rua. As Festas de Quimbanda – como o próprio nome já diz – lembram festas “comuns”, isto é, não religiosas, com bebidas, risadas, música e conversas. Utilizando a metáfora “pontos de escuta”24 TRAVASSOS(2005, p. 94), quando muitas pessoas ouvem as Festas de Quimbanda, seus “pontos de escuta” as remetem para a rua e não para uma festa religiosa. A Quimbanda homenageia o Povo da Rua, o senso comum o reprova, alguns umbandistas reprovam as Festas de Quimbanda por “isso não ser religião”, neste sentido, o que remete a rua é visto como não próprio para religião.

Gostaria de ressaltar que posicionamentos semelhantes aos de Carmen – citada acima – não se restringem somente às práticas rituais, mas se estendem também às práticas sonoras da linha de Quimbanda.

Eu – “Tem alguns pontos de Quimbanda que são proibidos no Reino de Luz, tu.. que explicação tu dá para isso? Por que que isso acontece? Como tu vê essa proibição?”

Lauren – “Porque ali tu ta fazendo religião, entende? Tem pontos que são assim.. tem muitos pontos mesmo aquele que fala que Pomba-Gira é... que Pomba-Gira é mulher..” Eu – “Do diabo?” Lauren – “É... é uma coisa assim, tipo, vamos supor, esse é um deles, entende? Eu... eu, por exemplo, não canto. Se eu ouvir esse ponto, eu, por exemplo, não canto porque, tipo, eu não acredito. Então.. e se tu.. por exemplo, vamos supor, aquela hora mesmo que tu me perguntou da questão de porque que as pessoas ligavam a imagem do Exu ao diabo. A pessoa.. aí, tu vai lá e faz toda uma explicação de como é que funciona e tal, aí a pessoa chega na terrera, “não, então vamo lá vê como é que é esse negócio”, aí a pessoa chega numa Quimbanda e escuta um ponto desses: “ué mas eles tão cantando...”. Porque na igreja tu canta o que é, tu canta o que tu exalta. Aí tu chega lá na Quimbanda e escuta um ponto desses, tu ta exaltando isso, então realmente, é uma religião do diabo! (risos)” (Em entrevista a autora, 28/04/08)

Lauren chama atenção para o fato de que quando cantamos uma canção ritual, estamos exaltando as entidades às quais os pontos se referem e que, quando cantamos um ponto como este disposta abaixo, estaríamos exaltando isto (Ex.6).

Para esta entrevistada, além dos pontos proibidos25, outros não deveriam ser cantados. Além disto, podemos notar no relato de Lauren uma preocupação comum a outros umbandistas: se a religião não cultua o diabo e nem faz o “mal”, e os adeptos a esta tentam sempre demonstrar isto, como cantaremos pontos que falam de diabo, sangue, etc.? Estaremos então demonstrando às pessoas que chegarem à casa, e não forem adeptas a esta, que cultuamos tais figuras e práticas, como exemplificou Lauren em seu depoimento citado acima.

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Carmen pensa de forma semelhante, diz que acha que “a música é fundamental, ela eleva o espírito da pessoa pra aquilo que ela ta vivendo naquele momento. E aí é que entra a questão, os pontos na... na linha de Exu, não gosto dos pontos de Exu”(Em entrevista a autora, 01/05/08). Carmen ainda ressalta o porquê de não gostar de tais pontos “Não gosto. Não gosto, acho eles assim ó... aquelas coisas de.. cavera, de.. sete-palmos, de.. no lixo, do “te mato”, do “é terrível”, eu acho que isso aí não em nada a vê com religião, não gosto”. Além de Lauren e Carmen, Lom – Cacique da casa – possui visão parecida em relação aos pontos de Exu executados na terreira

Lom – “Eu sinto... a música.. de.. várias formas. Vejo como.. um poema, como.. uma homenagem, como uma oração. Todas as composições e todas as vibrações que são feitas pras mães, pros pais, pros Orixás maiores, assim como dos Pretos-Velhos, são... bálsamo pros meus ouvidos, embora eu tenha restrições aos pontos que são feito e cantados para os Exus.. porque eles ainda vem carregados da história do Exu comparado a figuras demoníacas, figuras da noite, figuras permissivas. Mas não é a batida, não é o som que m’incomoda, o que m’incomoda são as letras.”

Eu – “Então, tu tás falando dos pontos que não podem ser tocados na Quimbanda do Reino de Luz?”

Lom – “Não. Inclusive os pontos que são tocados no Reino de Luz, se fosse.. se eu tivesse poder pra tanto, eu mudaria todos eles.”

Eu – “Como... como, por exemplo?”Lom – “Portão de ferro / Cadeado de madeira / É lá no cemitério

/ Onde mora Exu Cavera”. Exu Cavera é algo transcendental, ele é do universo, como é que ele mora no cemitério? Dai aos mortos seus mortos..o que é morto é morto. Cemitério é um campo santo para as pessoas que morreram não pra nós vivos. É um dos campos de atuação do Exu Cavera? Sim, mas não é só lá. O... outro ponto de Exu Cavera que diz... é... “Não brinque com Cavera / Ele não é brincadera / Quem... mexe com.. com ele / Vira defunto... Eu – “vira pó” Lom – “ou vira cavera”. É, são coisas que... que conhecendo a grandeza desse espírito, sabe que não é assim, mas faz parte da história da nossa religião, que não é nem sincretismo, é uma maquiagem que foi feita, uma associação que foi feita, só que, tudo que é criado, embora seja criado em cima de uma mentira, com o passar do tempo se torna uma mentira verdadeira. Então essa associação, ela é natural hoje.” (Em entrevista a autora, 27/04/08)

Mesmo que Lom não goste de alguns pontos, estes ainda fazem parte do repertório cantado na casa, mas é importante ressaltar que ele, como Cacique da terreira, possui o poder de proibir a execução de alguns pontos, caso assim o desejasse. Devido ao fato de, assim como Lom, alguns participantes não gostarem das letras dos pontos de Quimbanda é que estou dando tanta atenção a estas, já que são o principal motivo de restrições por parte de alguns umbandistas.

Estes participantes citados acima não gostam dos pontos de Quimbanda devido às suas letras, por acreditarem que estas não correspondem à realidade dos cultos da casa. Como a letra do ponto abaixo (Ex.7).

Ex.6 – Ponto de Pomba-gira Maria Padilha, recolhido no Terreiro de Umbanda Reino de Luz.

Ex.7 – Ponto de Exu da Encruzilhada cantado no Reino de Luz.

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O ponto acima citado fala de colocar feitiço na encruza para derrubar alguém e este tipo de prática não é permitida no Reino de Luz. Por este motivo alguns participantes da casa não gostam das letras dos pontos de Quimbanda, pois se alguém ouvir este ponto poderá achar que esta (fazer feitiço) é uma prática da terreira em questão e isto não corresponde à realidade.

5 – Sobre a visão de morte na Umbanda, mudanças rituais e suas relações com o campo sonoroGostaria de destacar também duas coisas, a primeira é que apesar de Lom, em seu relato acima citado, dizer que o cemitério é um lugar santo para os mortos não para os vivos, alguns umbandistas do Reino de Luz consideram este local santo. A segunda é a visão que os seguidores desta religião têm da morte. Débora explica estas duas questões por mim destacadas.

Eu – “Tu achas que esse tipo de ligação é.. a imagem, que.. as pessoas de fora da religião fazem do Exu ao diabo e até dessas pessoas da religião que fazem questão de fazê essa ligação, causam algum tipo de efeito na gente que cultua a Quimbanda? Na gente como médium?”

Débora – “É, na realidade dá conta disso não é uma coisa muito fácil. [...] Nós somos ligados a pessoas que fazem matanças de animais e nós não fazemos isso. Nós somos ligados as pessoas que vagam pelos cemitérios, “fazendo o que dentro dos cemitério?” “O que essa gente faz dentro dos cemitérios?” Só que... as pessoas não entendem que o umbandista, ele lida com a morte da mesma forma como ele lida com a vida. Como nós somos re-encarnacionistas, como nós somos espiritualistas, nós acreditamos no espírito, falá da morte e entrá em ambientes em que a morte circunda é muito natural pra nós. [...] “Ah, as pessoas cantam pontos de cemitério, fazem rezas de cemitério”. Tem pessoas que vivem na... pessoas que viviam no campo compunham canções de pastoreio, tem pessoas que vivem em meios urbanos e fazem músicas que refletem o meio urbano. Nós fazemos religião, nós repetimos a nossa espiritualidade, a nossa espiritualidade, ela é embasada na vida de na morte. Nós cultuamos.. espíritos que lidam com a saúde, com a vida e com a morte[...] Então pra nós, ir fazê um trabalho uma vez por ano, duas vezes por ano de gira [...] nós pisamos em cemitério sim porque é um lugar sagrado. Importantíssimo pra nós. Como é o nosso Congá. Nós temos um Congá dentro do terreiro, nós homenageamos Iemanjá na água, nós homenageamos Oxóssi na mata, nós homenageamos Omulú dentro do cemitério. [...]E isso não quédizê que isso esteja fazendo mal pra alguém. [...] tu vê como nós, mesmo escondidos interferimos na vida das pessoas, mesmo resguardando nossos mistérios, nós estamos SIM influindo na vida das pessoas, porque as pessoas às vezes vêem as.. os médiuns entrarem de vermelho e preto, cemitério a dentro, elas se sentem apavoradas, agredidas. Uma vez nós fomos fazê (riso) uma entrega na frente do, do portão, nós não entramos, no portão do cemitério (riso meu), tu estava junto? Te lembra? Eu – “Tava”. Débora – “Uma igreja evangélica na frente, veio a igreja inteira, inteira.. e a gente viu o desespero no rosto daquela gente, porque Pra Eles nós estávamos fazendo mal pra alguém. Eu – “E os cartazes colados na porta do cemitério, convidando para í pra igreja?” Débora – “E os cartazes! Convidando pra ir pra Igreja! E na realidade, nós estávamos fazendo um ritual de agradecimento! Então vê que NUNCA, eu posso dizê Com Certeza, não é uma vez, nem outra, NUNCA, quando um leigo vê um umbandista, um batuqueiro, ou... um crente da Nação, ou.. quando vêem uma entrega, um presente ou uma oferenda, eles já acham que é um despacho, NUNCA a primeira ideia é de que pode ser um presente pro “bem” pra alguém, a ideia é sempre que “aquela gente que veste preto e vermelho, preto e branco, aquela gente tá indo fazê mal pra alguém”, “ora, eles tão na porta do cemitério!” E

nós trabalhamos na porta dos hospitais também, não só na frente da porta do cemitério. Quantas oferendas um, quantas coisas um filho de Nação, que ele tem que percorrer vários lugares, ele passa no cemitério, ele passa no hospital, ele passa no banco, ele passa na praça, são todos ambientes de culto, mas nenhum desses ambientes são tão ameaçadores quanto o cemitério. [pausa] Porque o cemitério, como é ligado à morte, e as pessoas vêem a morte como uma coisa má, que separa elas dos seus bens, “tás fazendo mal pra alguém”, pois se tu vais fazer uma coisa boa, não vais fazê na porta do cemitério, né? A ideia é essa! (risos)” (Em entrevista a autora, 25/07/08)

Em seu relato, a entrevistada fala de questões muito importantes para a religião. Débora chama atenção para o modo como a morte faz parte da cosmovisão umbandista e, exatamente por este motivo, o cemitério é um lugar santo, além de relatar um conflito entre crenças através de uma das tentativas utilizadas por fiéis de outra religião de converter os umbandistas, “salvando-os do demônio”, como dizia nos cartazes.

Por serem, como explica à entrevistada, os adeptos da Umbanda reencarnacionistas, estes enxergam a morte como mais uma etapa do passar do espírito na terra, isto é, o espírito encarna, nasce, vive e passa pelas experiências necessárias para seu aprendizado e morre/desencarna. É um processo cíclico. E, sendo assim, faz parte das crenças e práticas desta religião. A linha de Quimbanda, e principalmente a linha de Exu, é a mais ligada à morte.

Na Umbanda, assim como a morte é vista como parte da vida e da religião, os locais comumente relacionados à morte são considerados locais de culto e sagrados, como destaca Débora. Deste modo, fazer rituais nesses locais é parte dos ofícios religiosos e não estão relacionados ao “mal”. Diego explica

Diego M. – “Eu acho que esse... tipo [de modernização da religião], tu não vê um.. jovens querendo trabalhá com Caboclo, com Preto-Velho, que são a alma da Umbanda, entende? Tu vê, hoje, jovem que quéentrá e quétrabalhá com Tranca-Rua, porque ele [o jovem] qué... porque ele julga, na cabeça dele, que ele qué sê no dono da rua. Tu vê jovem querendo trabalhá com o Cavera porque é o Exu da morte. Quando eu digo Exu da morte, que pra quem conhece sabe que é ele que faz o desligamento da pessoa e encaminha essa pessoa pra Luz, então... ou querem trabalhá com Omulú por sê dono do cemitério, entende? [...]” (Em entrevista a autora, 01/05/08 – grifos meus)

Exu Caveira, como apontado por Diego, é o Exu responsável por fazer o desligamento do espírito de seu corpo material, sendo considerado o “Exu da morte”. O que considero difícil de entender para quem não é umbandista é que o fato de Exu Caveira ser o “Exu da morte” não quer dizer que ele “mate” as pessoas e sim que conduz elas na morte. “Portão de ferro, cadeado de madeira (2x) / Lá no cemitério, onde mora Exu Caveira (2x)26” O cemitério, neste ponto, é a representação da morte, logo, os Exus são do cemitério e os umbandistas cantam isso. Cantam a morte. Mas não porque venerem a morte e sim porque acreditam que esta faz parte da vida.

Débora, em seu depoimento acima citado, também destaca como a maioria das pessoas que não faz parte da Umbanda, ligam ao “mal” tudo que está relacionado ao cemitério

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e a morte. Deste modo, para estas pessoas, a Linha de Quimbanda é vista como o “mal” em si. Segundo Bosi

A civilização burguesa expulsou de si a morte; não se visitam moribundos, a pessoa que vai morrer é apartada, os defuntos já não são contemplados. O leito de morte se transformava em um trono de onde o moribundo ditava seus últimos desejos ante os familiares e vizinhos que entravam pelas portas escancaradas para assistir ao ato solene... A morte vem sendo progressivamente expulsa da percepção dos vivos. BOSI (1983, p. 46-7)

Enquanto a “civilização burguesa” expulsa a morte de suas práticas, os umbandistas a celebram através de seus cantos e práticas rituais da linha de Quimbanda. Como neste ponto de Exu Tranca Ruas das Almas (Ex.8).

Outra questão importante a se destacar, é que para muitas pessoas a morte é vista como algo ruim, sempre relacionada à tristeza, como a separação imposta entre as pessoas que estas têm afeto (como fala Débora em seu depoimento acima citado)27. Acredito que por isso muitas pessoas neguem tudo o que diz respeito a morte, tirando-a de suas vidas. Para os umbandistas não é que a morte não seja triste, eles também sofrem a falta de seus entes queridos, mas esta é vista como mais um passar (o que temos que passar enquanto estamos encarnados), como algo inerente da condição de estarmos vivos.

Carlo Ginzburg em seu artigo intitulado “Matar um Mandarim Chinês – as implicações morais da distância”,

Ex. 8 – Ponto de Exu Tranca Ruas das Almas.

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GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

presente em sua obra “Olhos de Madeira – nove reflexões sobre a distância”, reflete sobre distância e proximidade, lembrando-nos que tudo que se encontra mais perto de nós, nos atinge mais. Sendo assim, a proximidade com a morte nos traz o incômodo de refletirmos sobre ela e, talvez por isto a sociedade burguesa, da qual fala Bosi, exclua-a de suas práticas.

Além disso, a morte não é só cantada, ela está presente nas representações visuais e, até mesmo, nos nomes das entidades dessa linha. Muitas estátuas de Exu são esqueletos ou levam na mão uma caveira, ou estão ao lado de um túmulo e geralmente remetem ao cemitério e representam a morte. Podemos ver isto nas fotos Congás montados especialmente para as festas (Ex.9, Ex. 10 e Ex.11).

Alguns nomes de Exu e Pomba-Gira: Exu Caveira, Exu “Sete-Catatumbas”28, Exu do Cemitério, Exu Porteira, Pomba-Gira Rainha das Sete Encruzilhadas, Pomba-Gira “Sete Catatumbas”, Pomba-Gira Maria Padilha das Almas, Pomba-Gira Rosa Caveira, etc.

A morte também estava presente, inicialmente, nas práticas de assentamento da casa. Uma das práticas rituais da Quimbanda é o assentamento de Exus, esta serve para fortificar estas entidades para que tenham mais força na hora de trabalhar e defender a casa e seus cavalos, além de outros preceitos religiosos. Acredita-se que é através dos assentamentos que os Exus aumentam suas forças, por este motivo eles são realizados de tempos em tempos.

No ano de 2005 foi realizado o último assentamento do Reino de Luz antes da casa fechar, mas desta vez houve uma mudança no ritual, o sangue dos animais foi substituído por sumo de frutas. A explicação dada pelo Cacique era de que o Exu chefe da casa não achava que fosse necessário continuar com a matança de animais, que os Exus da casa deveriam se desenvolver e que a força advinda do sangue poderia vir do sumo das frutas, isto é, se substituiria o sangue dos animais pelo “sangue das frutas”.

Esta medida provocou muitos conflitos dentro da casa e há quem pense que esta mudança é um dos motivos pela casa estar fechada hoje já que os Exus são responsáveis pela parte material e – segundo os adeptos desta teoria – havendo mudança em seus rituais, estas entidades não estariam satisfeitas e por isso não estariam cumprindo com suas responsabilidades.

Para os adeptos da Umbanda, a vida espiritual influencia na vida material, deste modo as mudanças rituais acabam refletindo nas vidas dos médiuns da casa. Alguns destes que possuem Exus assentos pela feitura (ritual) antiga, dizem que o modo de incorporação da entidade em questão mudou depois que eles realizaram o assentamento com matança, sendo a incorporação mais densa. Quando perguntei a Diego P. sobre o toque

Ex.9 – Congá da Festa em homenagem ao Exu Caveira, Pomba-gira Maria Padilha das Almas e

Zé Pelintra do morro.

Ex.10 – Congá da Festa em homenagem ao Exu Destranca Ruas.

Ex.11 – Congá da Festa em homenagem ao Exu Maioral.

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de Umbanda e o de Quimbanda ele acabou falando de como estes mudaram com o passar do tempo e conduziu a entrevista para a questão das mudanças rituais.

Eu – “E em relação ao toque da Umbanda e ao toque de Quimbanda, como.. tu acha que eles são iguais, diferentes, como tu sente essa..”

Diego Peres – “É.. na verdade, quando eu entrei eles eram bem diferentes um do outro, mas hoje, por certas mudanças que ocorreram na casa, já.. eles já são muito parecidos.”

Eu – “E porque que tu acha que essa mudança aconteceu?”

Diego Peres – “Eu acho que essa mudança aconteceu, [...] e acho que isso aí não é tanto pelo lado da música, eu acho que é mais é por parte de rituais que a Umbanda tem e que não deveriam sê tirados. Ou, que se fossem tirados, fossem tirados desde o primeiro dia, porque aí médium não se acostumariam com certas coisas, porque mal ou bem certos rituais influenciam naquela energia que sai...”

Eu – “E quais.. alguns rituais foram tirados?”

Diego Peres – “Foram.”

Eu – “Quais, assim...”

Diego Peres – “[...] vô te dá o exemplo [...] o que eu mais sinto falta é... é o sangue, mesmo eu não tendo [...] tu nota que na volta daquelas pessoas que já tinham aquele ritual.. [...] porque.. mal ou bem a Umbanda tem tudo que a Quimbanda tem, porém a Quimbanda tinha algo a mais, ela tinha uma força mais densa, mais pesada, por causa de certos rituais, que hoje não existe mais..” (Em entrevista a autora, 28/04/08)

Outro ponto importante de ser ressaltado é que, sendo a Umbanda – do modo como é praticada no Reino de Luz – uma religião muito ritualística, as mudanças rituais acabam abalando a fé dos médiuns, ainda mais em se tratando desta mudança. Sobre as mudanças, Vanessa coloca o seguinte:

“Eu não sei por que assim, pra mim não. Eu sou a favor de quem faça, eu acho que é uma lei da religião, eu acho que deve ser cumprida, não tem porque purificar nem nada, porque eu acho que a gente vai acabá se perdendo nisso [...] eu acho que assim, a minha fé nunca foi depositada em coisas que eu dei a entidades, em oferendas, em bebidas e coisas e tal. Mas tem fé de pessoas, por exemplo “x”, depositou a fé dela numa... oferenda, ou naquele gesto ali de dá bebida, de servir todo dia o seu Exu, ou de dá o sangue pra ele. Então eu acho que isso acaba abalando e afetando um pouco cada um.” (Em entrevista a autora, 01/05/08)

Pessoalmente eu penso como a Vanessa, e, confesso que, na época, me senti muito aliviada pela mudança ritual. Eu realmente não era capaz de entender o que de “tão importante” meus irmãos de corrente estavam perdendo com aquilo. Para mim era um alívio fazer parte de uma terreira que não mais praticava estes ritos tão ultrapassados e desnecessários29. Hoje, provavelmente, eu não veria as coisas deste modo.

Alguns dos médiuns mais antigos da casa, quando foi feito o primeiro assentamento, não queriam participar da matança, mas como esta era parte dos ritos religiosos, estes médiuns aceitaram e acabaram incorporando este como seu modo de fazer religião, eles aprenderam assim, confiaram no Cacique e em suas entidades que disseram

que isto era necessário. Estas passaram a ser as suas verdades. Um dia isto não era mais necessário, o sangue foi substituído por sumo de frutas e, alguns membros da casa, questionaram muito esta substituição. Este processo desencadeou muitos desentendimentos e, há quem diga que algumas pessoas se “perderam no caminho”, o que resultou na saída de alguns membros da casa.

O Povo de Quimbanda foi utilizado, no início da religião, como modo de proteção desta – como cita Lom em seu depoimento e Renato Ortiz em “A morte branca do feiticeiro negro”. Assim a associação do Exu ao diabo foi utilizada como um modo de defesa através do medo que as pessoas tinham do demônio. Débora destaca – em trecho de entrevista já citado – que

“Nós somos ligados a pessoas que fazem matanças de animais e nós não fazemos isso... Então pra nós, ir fazê um trabalho uma vez por ano, duas vezes por ano de gira, não é de matá bicho, de fazê Baladê. Nós não fazemos isso. Existem casas que fazem? Existem, cultura deles. Eu respeito a cultura de cada um e o nível intelectual dos médiuns que ainda precisam disso.” (Em entrevista a autora, 25/07/08)

O trecho de entrevista citado acima ressalta um dos argumentos utilizados para a mudança do ritual de matança, que os médiuns do Reino de Luz não precisavam mais deste tipo de ritual. Interessante ressaltar que Débora foi uma das pessoas que brigou para que o ritual não fosse modificado, pois havia aprendido a religião desta forma, mas acabou aceitando a mudança e hoje, assim como outros participantes da casa, utilizam isto como modo de diferenciação de outros umbandistas. O interessante desta religião, é que, por não ter nenhuma codificação de práticas rituais, cada casa possui práticas independentes, mas, aos olhos dos não adeptos, todas possivelmente parecem iguais.

6 – Fechando os trabalhos - conclusõesCreio que, muitas vezes, a linha de Quimbanda é, e foi, utilizada para causar medo nas pessoas. Assim, por mais que os participantes do Reino de Luz afirmem que não praticam estes tipos de rituais, para quem “vê de fora” isto não é assim, ainda mais quando estes chegarem à terreira e escutarem um ponto como os abaixo. (Ex.12, Ex.13 e Ex.14)

Como disse Lauren (em trecho já citado)

“... aí, tu vai lá e faz toda uma explicação de como é que funciona e tal, aí a pessoa chega na terrera, “não, então vamo lá vê como é que é esse negócio”, aí a pessoa chega numa Quimbanda e escuta um ponto desses: “ué mas eles tão cantando...”. Porque na igreja tu canta o que é, tu canta o que tu exalta. Aí tu chega lá na Quimbanda e escuta um ponto desses, tu ta exaltando isso, então realmente, é uma religião do diabo!” (Em entrevista a autora, 28/04/08)

Olhando a questão por todos esses prismas, acredito que as mudanças rituais e as citadas recusas de cantar certos pontos de Quimbanda ou de não gostar deles, podem ser interpretadas como uma tentativa de adaptação das práticas da terreira para uma melhor aceitação por parte dos não-adeptos à religião e também pelos

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próprios adeptos que não concordam que este tipo de imagem esteja ligada à religião que praticam. Está tudo interligado, a música feita na casa acaba por refletir uma imagem desta e uma das principais preocupações dos membros da terreira é tentar quebrar o estigma que sofrem por serem umbandistas. Ao cantarem os pontos de Quimbanda, de certa forma estão ajudando a perpetuar este estigma, pois estão passando a imagem de que praticam o “mal”, ou “não mata[m] porque não qué [querem]” ou cultuam ao diabo, já que cantam “É Maria Padilha mulher do diabo”.

Desta forma os umbandistas do Reino de Luz ficam numa encruzilhada entre as práticas e pontos cantados da tradição religiosa e suas tentativas de legitimação destas. Como se as duas coisas fossem contraditórias, pois estariam tentando uma legitimação através de diferenciação entre as práticas dos outros umbandistas e ao mesmo tempo cantando pontos que são contrários a esta diferenciação. Eles não fazem matanças, mas

cantam estas. Eles não fazem trabalhos para o “mal”, mas cantam estes, e assim por diante.

Diante dessa pesquisa e pensando em todos os fatores que se apresentaram neste trabalho, surgem muitos questionamentos: que preço os umbandistas estão dispostos a pagarem para mais bem aceitos? É isto mesmo que querem? Adaptar os rituais e a música, para serem mais bem aceitos? Desta forma não estariam negociando as suas identidades e crenças? Esta é, realmente, uma situação difícil. Como umbandista também gostaria que houvesse menos preconceitos sobre a nossa religião. E infelizmente, após analisar todos os fatores acima, entendo todos os posicionamentos e não me sinto capaz de julgá-los e dizer quais estão certos e quais são errados. Obviamente as pessoas querem viver em paz e seguir suas crenças religiosas sem ter que sofrer preconceitos ou ter que ficar explicando, toda vez que alguém descobre que são umbandistas, que não creem no diabo, que não fazem trabalhos para o mal e todas as situações que podemos ver descritas nas entrevistas.

Ex.12 – Ponto de Pomba-gira Maria Quitéria recolhido no Terreiro de Umbanda Reino de Luz.

Ex.13 – Ponto de Exu Caveira cantando na casa em questão.

Ex.14 – Ponto de Pomba-Gira Maria Padilha.

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GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

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Notas1 Utilizo a palavra terreira no feminino e não terreiro, pois é assim que os membros do Reino de Luz se referem ao local onde são efetuados os cultos.

Optei pela utilização dos termos nativos.2 O termo corrente é utilizado para designar a totalidade dos membros da terreira, é uma metáfora onde cada participante é um elo desta corrente,

de igual importância, e a união de todos estes elos forma a corrente da casa.3 O termo casa é utilizado pelos umbandistas como sinônimo de terreira.4 A seguir explico o uso do termo linha.5 A palavra toque é utilizada para designar diferentes coisas, além dos ritmos tocados ao tambor (exemplo, toque de Umbanda e toque de Quimbanda),

utiliza-se também para designar o ritual (exemplo, “hoje tem toque”, isto é, “hoje tem trabalho na terreira”) e usa-se também esta palavra para designar algum trabalho feito com más intenções para outra pessoa, fala-se “fulano me tocou”.

6 Membros da corrente que não incorporam e são responsáveis por servir os Guias.7 Neste momento, estou fazendo uma generalização deliberada, pois tenho consciência que as pessoas têm diferentes visões, crenças e práticas

sociais e religiosas. 8 Utilizo este termo assim como Guy Massart explica a “sociedade a qual se vive”, explicando utilizar o termo ““sociedade” no sentido lato de realidade

social existente para o agente, e não a uma unidade circunscrita do tipo Estado-Nação” (Massart, 2002: 306).9 Chefe do Terreiro, mais conhecido como Pai de Santo, dentro das tradições de Candomblé e Batuque.10 Apesar de, ultimamente, existirem ações de processos judiciais (como o sofrido pela mãe-de-santo Gisele Maria Monteiro da Silva, de Rio Grande/

RS – com base no Código Estadual de Proteção aos Animais) e o Projeto de Lei, articulado por políticos evangélicos e apoiado pelas sociedades de proteção aos animais, que buscava coibir a matança de animais nos cultos afro-brasileiros (Silva, 2007: 17). Para maiores informações sobre o tema ver: “Intolerância Religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro”, organizado por Vagner Gonçalves da Silva.

11 As traduções do trabalho de Rita Segato são de minha responsabilidade.12 Podemos aqui chamar atenção também para o fato de o que é branco ser considerado bom, enquanto o que é negro ser considerado ruim.13 Agradeço a Mário Maia por me chamar atenção às diferentes visões deste tema dentro dos próprios praticantes da Umbanda.14 Assim são chamados os valores e ensinamentos religiosos próprios de cada terreira de Umbanda.15 Sobre este assunto, o depoimento do Lom, já citado, explica tais aproximações devido às constantes perseguições, por parte da polícia, aos cultos

afro-brasileiros. Renato Ortiz utiliza esta mesma explicação em seu trabalho “A morte branca do feiticeiro negro”.16 Letra completa do ponto: “Seu Belzebú é um Exu tão formoso / Ele traz o seu garfo na mão / Se ele é filho de Quimbanda / Eu quero ver a

incorporação”.

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GOMES, R. S. de A. “A língua desse povo não tem osso, deix’esse povo falá”: ... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.192-207.

17 Palavra utilizada, no universo umbandista, para se referir aos túmulos. Letra completa do ponto: “Exu, Exu é de duas cabeças / Uma é satanás no inferno a outra é Jesus de Nazaré”.

18 Este ponto de Quimbanda também é citado por Vagner Gonçalves da Silva em seu artigo: Entre a Gira de Fé e Jesus de Nazaré: Relações Socioestruturais entre Neopentecostalismo e Religiões Afro-Brasileiras. In: Intolerância Religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. Edusp. São Paulo: 2007.

19 Termo utilizado para dizer que estão protegidas e recebem ordens de alguma entidade.20 Esses questionamentos que trago aqui, já foram realizados muitas vezes por mim ao Cacique e alguns membros da corrente, mesmo antes do início

desta pesquisa.21 Carmen se refere ao fato de não se fazer mais assentamentos com matança de animais.22 Com este termo Carmen quer se referir às grandes Festas feitas para o Povo de Quimbanda, onde todos comem, fumam, bebem, dançam, cantam e

se divertem. Além do uso de roupas decotadas e da grande energia sexual presente neste tipo de trabalho ritual devido ao fato de estas entidades serem próximas da gente e se utilizarem de todos os tipos de energias.

23 Este ponto de Zé Pelintra descreve bem como estas entidades são vistas pelos umbandistas, os “donos da malandragem”: “De manhãzinha quando eu vô descendo o morro / a nêga pensa / qu’eu vô é trabalhá (repete o trecho) / mas é qu’eu levo meu baralho no bolso / meu cachecol no pescoço / e vô prá Barão de Mauá / trabalhá, trabalhá, trabalhá pra que? / malandro se eu trabalhá, eu vô morrê.”

24 O “ponto de escuta” é a metáfora do “ponto de vista”, isto é, “a metaforização do conhecimento pelo olho e pela visão –, quero indicar que a posição do ouvinte (num campo profissional, no eixo geracional etc.) condiciona sua audição” (Travassos, 2005: 94).

25 Existem pontos da linha de Quimbanda que são proibidos de ser cantados no Reino de Luz, estes são vetados por fazerem referências a Zé Pelintra como traficante ou assassino.

26 Ponto cantado de Exu Caveira.27 Dei-me conta disso quando fui visitar um cemitério com um amigo e este me disse que se sentia incomodado de estar lá dentro por lembrar que

pode perder seus pais, pois estes possuem idade avançada.28 Mesmo sendo Catacumbas, no Reino de Luz estas entidades são chamadas desta forma: Sete Catatumbas.29 Hoje vejo como a minha criação em escola católica, apesar de minha família não praticar nenhuma religião, influenciou minhas ideias religiosas.

Renata Gomes, cantora e pesquisadora, é Bacharel em canto pela Universidade Federal de Pelotas e Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisa religiões afro-brasileiras, possui diversos trabalhos apresentados e publicados em congressos nacionais e internacionais e atualmente é funcionária do CAPS-Encruzilhada do Sul (Centro de atenção psicossocial), onde ministra oficina de música.

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MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.

Recebido em: 03/07/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 19701

Adelcio Camilo Machado (UNICAMP, Campinas, SP)[email protected]

Resumo: Após uma trajetória inicial como compositor ligado às escolas de samba, Martinho da Vila fez sua estreia na indústria fonográfica com o lançamento de seu primeiro LP Martinho da Vila , no ano de 1969. O presente texto trata da primeira faixa desse disco, que reúne três sambas de sua autoria: Boa noite, Carnaval de ilusões (em parceria com Gemeu) e Caramba. Através de apontamentos analíticos sobre seu arranjo, sua letra, sua melodia e sua harmonia, articulado a um panorama do contexto histórico em que foi produzido, busca-se desvendar alguns significados presentes nesse fonograma, percebendo-o como uma expressão de ideias e valores que se apresentavam para os artistas da música popular na passagem da década de 1960 para a de 1970.

Palavras-chave: música popular; samba; partido-alto; tradição.

Martinho da Vila: a new lineage of Brazilian samba in the 1970s

Abstract: After an initial career as a composer on samba schools, Martinho da Vila made his debut in music industry with the release of his first LP in 1969. This article discusses the first track of Martinho’s album, which combines three sambas of his own: Boa noite [Good evening], Carnaval de ilusões [Illusions carnival] (in partnership with Gemeu) and Caramba [Wow]. Through analytical notes on their arrangement, their lyrics, its melody and its harmony along with the observation of the historical context in which it was produced, we seek to reveal some meanings of that phonogram, perceiving it as an expression of ideas and values presented for popular music artists in the transition of the 1960’s to the 1970’s.

Keywords: popular music; samba; partido-alto; tradition.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 – “Tradição” e “modernização” no sambaO reconhecimento do samba como um gênero musical data das primeiras décadas do século XX. Inicialmente identificado como prática circunscrita a redutos onde se concentrava a população de ex-escravos no Rio de Janeiro e associado ao mundo da malandragem, ele foi promovido, especialmente durante o período getulista, à condição de símbolo da brasilidade. A expansão do mercado de música popular, impulsionada pelo desenvolvimento da indústria fonográfica e pela consolidação da radiofonia comercial, se constituiu na base a partir da qual atuaram inúmeros agentes individuais e coletivos na conversão do samba no segmento musical representativo da nacionalidade. Como observa VIANNA (1995), não foram apenas os afro-descendentes que protagonizaram esse processo, mas outros segmentos sociais como ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores eruditos, milionários etc., cada um ao seu modo e movidos por objetivos diversos, promoveram a um só tempo sua fixação e nacionalização. Mas a promoção do samba à condição de símbolo da identidade

cultural brasileira se deu em meio a um campo de forças balizado por construções ideológicas diversas que podem ser agrupadas em duas grandes perspectivas: a da valorização da “tradição” e a da sua “modernização”. Em determinados momentos, tais perspectivas oscilaram entre movimentos de confluência e oposição.

Ainda nos anos de 1930, a construção da ideia de “tradição” do samba implicou na identificação dos morros cariocas, espaços ocupados por segmentos sociais populares, como berço2 desse repertório, uma espécie de lugar mítico de onde emanavam os mais “autênticos” elementos da nossa cultura popular. Conforme explicitado por Natpolitano, nesse momento verificava-se o movimento de subida ao morro como maneira de entrar em contato direto com essa “tradição”:

A partir de 1935, incrementou-se a prática das visitas organizadas aos morros e às escolas de samba, por parte de personalidades nacionais e estrangeiras, ciceroneadas pelos mediadores de plantão: artistas cultos, intelectuais boêmios e sambistas das

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comunidades envolvidas. Esse movimento simbólico buscava reafirmar a nacionalidade ancorada nas tradições populares, para reinventar as bases da brasilidade e redirecionar os caminhos da arte brasileira, culta e popular (NAPOLITANO, 2007, p.33)

Ao mesmo tempo em que a “autenticidade” aparecia como um sinal de legitimidade do samba, ganhava força o movimento orientado por uma perspectiva mais conservadora que postulava a necessidade de “higienizá-lo” e “discipliná-lo” (NAPOLITANO, 2007, p.44). Tal empreitada mobilizava ações diversas como a “melhoria da qualidade poética” das letras, o abandono das temáticas ligadas à malandragem como a apologia à vadiagem e o refinamento musical das composições. Ary Barroso parece ter traduzido plenamente essas metas em Aquarela do Brasil, música que se converteu no exemplo emblemático da safra de composições identificada como “samba-exaltação”. Para Marcos Napolitano, esse cancionista se mostrava partidário

da fusão dos temas urbanos do samba com as letras de motes folclóricos e passadistas, ao mesmo tempo em que apoiava a modernização musical do samba, por meio de novas harmonias mais sincronizados com a música popular internacional, cujo paradigma era a música norte-americana. Portanto, o samba deveria “abrir a cortina do passado” nacional e realizar a fusão com a tradição, sem negligenciar a modernidade (NAPOLITANO, 2007, p.44-5).

Se Aquarela do Brasil representou, nos anos de 1940, uma maneira de conciliar “tradição” e “modernização”, na década seguinte, a polarização entre essas duas perspectivas se acentuou. O debate entre os que valorizavam a adoção de procedimentos jazzísticos como estratégia de refinamento da música popular e os adeptos da preservação da “pureza” das nossas tradições culturais aparece nas páginas da Revista da Música Brasileira, editada por Lúcio Rangel, que circulou durante os anos de 1954 e 1955. Conforme nos mostra a pesquisadora Joana SARAIVA (2007), essa revista foi porta-voz de um amplo debate sobre o jazz, que era visto por alguns como fonte de procedimentos que descaracterizavam a música brasileira, mas por outros, como um símbolo de “modernização”.

Em 1955, dois lançamentos fonográficos traduziram esse confronto. O primeiro foi a composição Rapaz de bem de Johnny ALF (1955, 78 rpm), lançada pela gravadora Copacabana. Trata-se de um samba que contém elementos característicos do jazz norte-americano, que aparecem em determinados aspectos da composição como a progressão harmônica e a organização da seção rítmica. A letra faz referência à boa vida dos jovens da zona sul do Rio de Janeiro, região da cidade habitada pela classe média carioca. Essa música, sintonizada com a perspectiva da “modernização” do samba, foi considerada como uma das precursoras da bossa nova3. A segunda foi a composição de Zé Kéti, intitulada A voz do morro, interpretada por Jorge Goulart e lançada pela Continental (GOULART, 1955, 78 rpm). Trata-se de um samba “tradicional” cuja letra enfatiza os espaços míticos da “tradição” como o morro, o terreiro e a cidade do Rio de Janeiro: “Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho

valor / Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro”.

Ao longo da década de 1960 o embate entre a “tradição” e a “modernização” ganhou novos contornos. Orientados pelo ideário nacional-popular redefinido por organizações e intelectuais de esquerda, juntamente com o Centro Popular de Cultura (CPC da UNE), artistas da música popular buscaram conhecer melhor a música do “povo” com o objetivo de se integrar a ele, promovendo a sua autoconsciência enquanto sujeito revolucionário. Nesse sentido, houve tanto uma nova ênfase nos morros e nas escolas de samba como detentores da “autenticidade” do samba quanto uma ampla politização da canção popular. Assim, a “tradição” aparecia intimamente vinculada ao engajamento político. Sambas como Zelão de Sérgio Ricardo, interpretado pelo autor em gravação de 1960 (RICARDO, 1960, LP), e Influência do jazz, de Carlos Lyra, lançado pela Philips em 1963 (LYRA, 1963, LP), são bons exemplos dessa nova tendência. O primeiro empregava um estilo vocal semelhante ao de Dorival Caymmi, mas com arranjo bossanovista, e se referia ao sofrimento da população pobre dos morros cariocas: “Todo morro entendeu quando Zelão chorou / ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval”. O segundo é um samba-jazz cuja letra aborda o problema da descaracterização do samba em decorrência da incorporação de traços estilísticos do jazz. Para se livrar das influências estrangeiras e renascer em toda sua “autenticidade”, o compositor propõe ao “pobre samba”: “Volta lá pro morro / E pede socorro / Onde nasceu”.

No entanto, essas composições mostram que alguns dos artistas mais comprometidos com o projeto da canção engajada e nacionalista, ao mesmo tempo em que buscavam assimilar modos de expressão característicos da cultura popular, não deixavam de lado elementos musicais considerados inovadores. Eles buscavam conciliar o vínculo com a “tradição” e com “modernidade” estética. “Sou a favor das influências estrangeiras, desde que não destruam as raízes culturais nacionais”, dizia Carlos Lyra, fundador e diretor do Departamento de Música do CPC (ABRIL CULTURAL, 1971). Essa tendência se consolidou principalmente após o golpe militar de 1964, quando a música popular politizada passou a ocupar maiores espaços nos meios de comunicação de massa, especialmente na televisão. Exemplos disso foram o programa O Fino da Bossa da TV Record e os Festivais de Música Popular Brasileira e da Canção, promovidos pelas emissoras TV Excelsior, TV Record e TV Globo. Nesse período, no qual se verifica a configuração de um novo contexto de produção, divulgação e consumo de bens culturais apoiado no desenvolvimento da indústria cultural, emerge um amplo segmento fonográfico identificado pela sigla MMPB (Moderna Música Popular Brasileira), posteriormente simplificada para MPB. Buscando articular “tradição” e “modernização”, essa sigla expressava o que Ridenti nomeou de “romantismo revolucionário”, ou seja, uma construção ideológica que buscava “no passado (as raízes populares nacionais) as

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bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, no limite, poderia romper as fronteiras do capitalismo” (RIDENTI, 2000, p.51). Esse segmento se consolidou na segunda metade da década de 1960, abrigando um leque de tendências da canção nacionalista como o samba “autêntico”, as composições concebidas a partir da estilização de material “folclórico” ou de “gêneros convencionais de raiz”, e as canções parodísticas da Tropicália (NAPOLITANO, 2007, p.110).

Durante os anos 1970, a tensão entre o “tradicional” e o “moderno” parece ganhar novos sentidos. A reconfiguração desses parâmetros se deu num contexto complexo que se delineou principalmente a partir de final do decênio anterior. A repressão política, acompanhada pelo recrudescimento da prática da censura, que se impôs à sociedade após a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, o desenvolvimento indústria cultural, impulsionando a consolidação do mercado de bens simbólicos no país, e o crescimento econômico acelerado, resultante da política de modernização conservadora, produziram fortes impactos sobre a arte e a cultura. O General Médici, que personificou o período mais sombrio do regime ditatorial militar, tentou fomentar um clima de euforia, especialmente entre setores de classe média que se beneficiaram da expansão econômica, denominado “milagre brasileiro”, com discursos pautados por um nacionalismo ufanista. A conquista do tri-campeonato de futebol pela seleção brasileira em 1970, por exemplo, foi claramente instrumentalizada pelo governo. Ao mesmo tempo, a indústria cultural incorporou aspectos da brasilidade nacional-popular que se traduziram especialmente nos conteúdos de programas televisivos nos anos 70. De certo modo, esse ideário aos poucos foi perdendo o sentido utópico e se integrando à ordem autoritária. Como afirma Ridenti,

após as derrotas de 1964 e 1968, a busca romântica da identidade nacional do homem brasileiro permaneceria, porém mudavam as características desse romantismo, que foi deixando de ser revolucionário para encontrar um lugar na nova ordem (RIDENTI, 2010, p.106).

No âmbito da música popular, se a censura muitas vezes cerceou a produção de muitos compositores, em outros momentos exigiu desses artistas habilidades para adotar, como diz Tatit, “manobras criativas” visando enganar os censores e fazer com que seus recados chegassem até os ouvintes. Ao mesmo tempo, os processos criativos deixaram de ser norteados por parâmetros subjetivos, como acontecia nos anos anteriores, e se tornaram cada vez mais pautados pelas “leis frias do mercado” (TATIT, 2004, p.228). Nesse cenário, os marcos que orientavam a tomada de posição no campo da produção musical começaram a se confundir. A intervenção tropicalista produziu abalos profundos nas polarizações tradicional/moderno, nacional/internacional, bom gosto/mau gosto, as quais se manifestavam, por exemplo, nos confrontos entre música engajada e música alienada, MPB e Jovem Guarda (TATIT, 2004, p.209). Mais do que isso, a vanguarda tropicalista pôs em xeque os critérios

político-ideológicos de exclusão de parte significativa da produção musical da época, possibilitando que a canção brasileira passasse a incorporar novas dicções. De certo modo, o rompimento dessas comportas representou um primeiro sinal do enfraquecimento da legitimidade da ideia de identidade nacional. Aos poucos, verificou-se em determinadas frentes a desarticulação entre popular e nacional. A configuração brasileira da contracultura, as atenções voltadas para questões ligadas à sexualidade, às drogas, à marginalidade do artista, à negritude, juntamente à tendência da idilização do passado comunitário, resultaram na valorização de um popular que, ao invés de se identificar com a nação, expressava a busca por outras identidades de recortes regionais ou locais. Tais representações se refletiram de alguma forma em vários campos artísticos dos anos 70, em especial na música popular. Foi nesse ambiente que Martinho da Vila iniciou sua carreira como compositor e intérprete profissional.

2 – Martinho da Vila, partido-alto e a MPBMartinho José Ferreira nasceu no ano de 1938 em uma fazenda na cidade de Duas Barras – RJ. Ainda menino, sua família se mudou para o Rio de Janeiro, passando a residir na Serra dos Pretos Forros, morro situado no Bairro de Lins de Vasconcelos. Após a morte do pai, a família, muito pobre, se dispersou e Martinho foi viver na casa de duas professoras solteironas onde se dedicou a atividades domésticas e teve a oportunidade de estudar. Ele mesmo dizia que tivera dois tipos de formação: no morro, convivendo com crianças da sua classe, jogando “peladas” e vivenciando práticas e rituais da religiosidade afro-brasileira, e na casa da cidade, onde além de estudar, recebeu formação católica. Preocupado com a sobrevivência, ao concluir o curso primário, procurou pelo SENAI onde acabou se especializando em química industrial e farmácia. Após ingressar no serviço militar, seguiu carreira e chegou ao posto de sargento.

Martinho se inseriu no meio musical através das escolas de samba. Na época em que morou na Serra dos Pretos Forros, participou da Acadêmicos da Boca do Mato, primeiramente tocando frigideira e tarol, depois como compositor (CABRAL, 1996, p.358). Mais tarde, transferiu-se para a Unidos de Vila Isabel, onde se tornou Martinho da Vila. Em 1967, compôs o enredo Carnaval de ilusões, obtendo boa repercussão no desfile. Isso lhe motivou a inscrever a canção Menina moça no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, composição que ficou entre as 30 selecionadas para as etapas finais do certame. No ano seguinte, concorreu no IV Festival da mesma emissora com Casa de bamba, composição que lhe abriu espaços no mundo do disco. Essa canção foi incluída no LP Philips IV Festival da Música Popular Brasileira – TV Record (Vol.1), de 1968, e no ano seguinte foi gravada por Jair Rodrigues no LP Jair de Todos os Sambas (Vol. 1), lançado pela mesma gravadora, onde ainda consta outra canção de sua autoria, intitulada Pra que dinheiro.

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Em 1969, Martinho foi convidado pela RCA Victor para gravar seu primeiro LP contendo 12 canções de sua autoria. A partir desse ano sua carreira deslanchou e Martinho da Vila se projetou como um cancionista de grande popularidade, lançando um LP por ano, todos pela RCA Victor, acompanhados por compactos simples e duplos, os quais apresentaram um considerável sucesso no mercado musical. Apenas para se ter uma amostra, de acordo com dados sobre vendagem de discos publicados mensalmente pelo IBOPE do Rio de Janeiro, durante os anos de 1974 e 1976, o nome de Martinho apareceu entre os mais vendidos em todos os meses, alcançando ainda, nesse mesmo período, a primeira colocação por quatorze vezes4.

Olhando para o conjunto da discografia de Martinho nota-se a presença de elementos visuais, performáticos, discursivos e musicais que revelam a preocupação de se criar uma aura de “tradição” e “autenticidade” sobre essa produção. Operando com aspectos da própria biografia do compositor, agentes da indústria e críticos construíram a imagem de um sambista genuíno, que fala a partir de dentro da cultura popular. Vale destacar que Martinho não foi passivo nessa empreitada; de certo modo, soube se posicionar como protagonista de todo o processo.

Uma característica marcante do estilo de Martinho, enfatizada por ele e por alguns de seus críticos, é o emprego de aspectos do partido-alto. De acordo com o compositor e antropólogo Nei LOPES (1992), o termo partido-alto comporta uma série de significados, tanto entre os “partideiros” quanto entre os estudiosos. O autor informa que, para Zinho, sobrinho da Tia Ciata5, o “verdadeiro” partido-alto não era cantado, mas instrumental. Já para João da Baiana, o partido-alto era cantado em dupla, trio ou quarteto, com os solistas improvisando versos para que os demais presentes sambassem, e exemplifica com a canção Patrão, prenda seu gado (LOPES, 1992, p.47-48). Escutando-se esse partido-alto na gravação de ALMIRANTE (1968, LP), nota-se uma considerável simplicidade harmônica, uma vez que na estrofe são ouvidos somente os acordes de Tônica e Dominante e no refrão estes são acrescidos pelo acorde de Subdominante. Percebe-se também o uso de versos curtos e, sempre que possível, rimados: “Ô, patrão, prenda seu gado / Na lavra tem um ditado / Quem mata gado é jurado / Missa de padre é latim / Rapaz solteiro é letrado / Em vim preso da Bahia / Porque era namorado”.

Alguns dos primeiros registros fonográficos rotulados como samba apresentam características que permitem associá-los ao partido-alto. Esse é o caso do famoso Pelo telefone, de 1917, considerado durante muito tempo como o primeiro samba gravado6, mas que se trata, de fato, de uma criação coletiva, improvisada, dos frequentadores da casa da Tia Ciata, que foi fixada por Donga e Mauro de Almeida, sendo posteriormente registrada em disco pelo cantor Baiano. Nessa composição se observa uma simplicidade harmônica e melódica, juntamente com versos curtos, especialmente em trechos como “Ai, se a rolinha / Sinhô, sinhô / Se embaraçou / Sinhô, sinhô / É que a avezinha / Sinhô, sinhô / Nunca sambou / Sinhô, sinhô”.

Segundo o professor, baterista e percussionista Oscar BOLÃO (2010), o partido-alto apresenta ainda um padrão rítmico característico, geralmente executado pelo pandeiro, que o diferencia do samba urbano. Enquanto o acompanhamento do pandeiro no samba se caracteriza apenas pela subdivisão da pulsação, no partido-alto esse instrumento costuma executar uma figuração rítmica peculiar, como se vê no Ex.1:

Em boa parte dos fonogramas de Martinho, ouve-se uma levada rítmica bastante próxima a esta apresentada por Bolão e considerada típica do partido-alto. Por sua vez, o próprio Martinho entende que é esse tipo de acompanhamento que caracteriza a “cadência” do partido-alto7. Sobre essa base rítmica, versos curtos8 são entoados a partir de melodias e harmonias simples, geralmente contendo sequências de três ou quatro acordes que se repetem ao longo de toda a canção9 e com melodias consistindo basicamente em arpejos desses mesmos acordes, lembrando cantigas folclóricas. O canto falado de Martinho, com ênfase nos cortes nas consoantes, reforça a pulsação rítmica, bem como o caráter despojado e bem humorado do partido-alto10.

Ao longo da trajetória de Martinho nota-se ainda a preocupação do compositor e dos produtores em (re)criar o clima de simplicidade e a espontaneidade das rodas de samba. Ao descrever o processo de gravação de seu primeiro LP, por exemplo, Martinho destaca seu caráter espontâneo, veiculando a ideia de que eles teriam feito uma roda de samba dentro do estúdio e que todas as intervenções teriam acontecido posteriormente.

Ex.1 – Padrões rítmicos do pandeiro no samba e no partido-alto segundo BOLÃO, 2010, p.24 e 93.

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Aí fui para o estúdio, levei um cara do cavaquinho, outro com pandeiro, eu mesmo toquei o tantã e fui gravando. Eu e o técnico só lá, nunca tinha entrado em um estúdio. Aí, logo depois me chamaram lá. Quando eu cheguei, estava todo mundo numa euforia danada [...]. “Olha, nós já temos o disco!” [...] Eu falei: “Mas vocês já escolheram as músicas?” “Já escolhemos! Olha, aquele monte de música que tem lá dá pra fazer dois discos! Já vamos fazer um disco com aquelas tuas músicas lá. Aquele é o disco, já temos, vamos só melhorar um pouquinho umas coisas, fazer uma mixagem, botar mais um trombonezinho, botar um coro, um vocal...” (VILA, 2008, DVD, 16min49s a 17min57s).

De fato, ao se escutar o primeiro disco de Martinho, não se percebe nele a existência de grandes introduções instrumentais ou de arranjos complexos. Ao contrário, existe uma considerável simplicidade no que se refere à parte musical. Das doze faixas que compõem o LP, em duas delas (Quem é do mar não enjoa e Pra que dinheiro) não há introduções instrumentais, mas é o próprio Martinho que entra cantando sozinho, sem acompanhamento; somente após a entrada do vocal é que os instrumentos da seção rítmica tocam. Em outros quatro fonogramas (Quatro séculos de modas e costumes, Casa de bamba, Brasil mulato e Parei na sua / Nhêm, nhêm, nhêm), somente o acorde de tônica é tocado pelos instrumentos harmônicos, juntamente com a percussão, fornecendo ao cantor a tonalidade e o andamento da canção. Os três fonogramas com introduções mais extensas e com maior grau de elaboração (O pequeno burguês, Tom maior e Grande amor) não vão além da execução de trechos das melodias pelo trombone com o acompanhamento da seção rítmica.

Por sua vez, no segundo LP do sambista, Meu laiaraiá (VILA, 1970, LP), percebe-se um cuidado maior na elaboração dos arranjos, com a criação de introduções mais extensas e a incorporação de outros instrumentos como cordas, madeiras, contrabaixo, bateria e piano. Contudo, ao mesmo tempo, verifica-se uma preocupação em não deturpar a “pureza” de Martinho da Vila. Isso se encontra expresso de modo bastante claro em um pequeno texto na contracapa do LP, escrito pelo produtor Romeo Nunes:

Tivemos o cuidado de cercar a voz selvagem de MARTINHO de arranjos leves, simples e funcionais (de Severino Filho e Ivan Paulo) mantendo intacta a base de autenticidade de suas composições (NUNES, 1970).

Ao longo da discografia produzida por Martinho durante os anos 1970 podem ser encontrados novos exemplos dessa preocupação com a “autenticidade”. Isso se manifesta, por exemplo, na gravação de faixas que reúnem vários sambas numa espécie de pout pourri, conectados por intermédio de comentários falados do próprio intérprete, simulando o ambiente de uma roda de samba. Tal procedimento foi empregado já na primeira faixa de seu LP de estreia (VILA, 1969, lado A, faixa 1) e depois em Seleção de partido-alto (VILA, 1971, lado B, faixa 1), em Sambas de roda e partido alto (VILA, 1972, lado B, faixa 1) em Tributo a Monsueto (VILA, 1973, lado A, faixa 1) e em duas faixas de seu LP Tendinha (VILA, 1978, lado A, faixa 2 / lado B, faixa 2).

Outra forma de estreitar seu vínculo com a “tradição” se deu através das regravações que Martinho fez de composições dos “pioneiros” do samba. Em seu LP de 1972, ele gravou o partido-alto Batuque na cozinha, de João da Baiana (VILA, 1972, lado B, faixa 1), canção que ainda deu o título ao disco. No ano seguinte, o sambista registrou Pelo telefone, de Donga e Mauro de Almeida (VILA, 1973, lado B, faixa 1) e, por fim, em 1974, lançou sua versão do partido-alto Patrão, prenda seu gado, composto por Donga, Pixinguinha e João da Baiana (VILA, 1974, lado B, faixa 1). Ao regravar esses sambistas, já plenamente legitimados àquela época, Martinho da Vila acabava firmando em bases mais sólidas a sua proximidade com a “tradição” do samba, como expressou o crítico musical Tárik de Souza: “Martinho construiu uma obra de sólidos alicerces edificados sobre as formas dos pioneiros (Donga, João da Bahiana, Monsueto) a quem gravou meticulosamente” (SOUZA, 1983, p.168).

A despeito de todo esse vínculo que Martinho buscava estabelecer com a “tradição”, cabe lembrar que até então o samba se encontrava circunscrito aos limites da MPB, o que significa dizer que os mesmos ideais de “modernização” que norteavam a produção deste segmento também deveriam balizar a produção dos sambistas. Isso fez com que parte do repertório de Martinho da Vila enfrentasse resistência de alguns de seus pares, uma vez que o cancionista retomava um tipo de samba mais primitivo, que não tinha vínculos com o processo de “modernização” e refinamento que essa produção havia experimentado ao longo dos anos. Nesse sentido, as declarações de Pixinguinha sobre Martinho são emblemáticas, pois, para o maestro, o samba de Martinho era “a coisa mais medíocre que existe” (citado em SOUZA e ANDREATO, 1979, p.235). Isso porque, por mais que Pixinguinha também tivesse apresentado vínculos com o partido-alto mais “tradicional”, o compositor foi formando seu habitus em meio ao processo de “modernização” do samba. Isso se percebe ainda pelo fato de que no mesmo festival em que Jamelão defendeu o primitivo partido-alto Menina moça de Martinho, Elza Soares apresentava o moderno samba Isso não se faz, composto por Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho, com progressões harmônicas mais ousadas e melodias menos diatônicas.

Nota-se, assim, que a música de Martinho era produzida em meio a uma tensão entre, de um lado, a busca pela “tradição” e “autenticidade” e, de outro, o refinamento do samba no contexto da MPB. A seguir, procuraremos apontar de que modo esses ideais já apareceram no primeiro fonograma de seu LP de estreia, ou seja, na faixa que simbolicamente o introduziu no mercado de discos. Nela se encontram reunidos três sambas de Martinho, Boa noite, Carnaval de ilusões e Caramba, todos precedidos por um comentário do próprio autor. A descrição e a análise desses sambas revelam tanto as ações estratégicas implementadas por Martinho para se integrar ao mercado musical como os novos sentidos que o samba irá adquirir ao longo da década de 1970.

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3 – Boa noite: o pregão de um sambista “autêntico”A primeira canção desse fonograma, Boa noite, consiste em um samba de quadra composto por Martinho para saudar os integrantes da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. Contudo, antes de interpretá-lo, Martinho inicia um diálogo com seu ouvinte, num tom coloquial e com uma entonação alegre, bem-humorada:

Todo mundo pensa que eu sou baianoMas eu nasci no carnaval de 38, em Duas Barras, Estado do RioFui criado na Serra dos Pretos Forros,Um morro [...] que a Eliana de Lima cantou num lindo samba do João Laurindo,Não é, Romeu?A Serra fica lá na Boca do Mato, meu primeiro reduto de sambaNum bairro que ficou famoso por causa do velho casarão da Tia ZulmiraMuito falado pelo Ponte PretaPra ser o Martinho da Vila, eu tive que fazer um samba(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 4s a 33s)

Um início como esse confere certo caráter de espontaneidade ao fonograma. De certo modo, ele simula o ambiente informal de uma roda de samba no qual Martinho se apresenta ao público, numa espécie de pregão no qual o sambista fala das suas origens e da sua trajetória. O conteúdo do texto revela a tentativa de atribuir a marca de sambista “autêntico”, não se limitando a contar que nascera no ano de 1938, mas sim no carnaval de 1938. E, ao que parece, essa não é uma menção gratuita: ao destacar o fato de que havia nascido no carnaval, é como se Martinho insinuasse que nascera predestinado a ser sambista. Tal relação se encontra implicitamente desenvolvida em sua composição Linha do Ão, gravada no LP Meu laiaraiá, de 1970, quando Martinho sugere que sua ligação com a música popular teria um caráter hereditário, uma vez que seu pai era um bom improvisador ao som do calango: “O meu pai era colono / E meeiro muito bom / Calangueava a noite inteira / Não perdia verso, não” (VILA, 1970, lado B, faixa 4). Cabe lembrar que, segundo LOPES (1992, p.29-30), o calango foi objeto de interesse por parte de pesquisadores do folclore brasileiro. Trata-se de uma manifestação afro-brasileira inicialmente ligada ao universo rural, sobretudo ao estado de Minas Gerais, e depois também a São Paulo, ao Rio de Janeiro e ao Espírito Santo, que, dentre outros elementos, caracteriza-se pelo desafio11, em geral entre dois cantores, de se criar versos improvisados no momento da performance. Portanto, essa alusão ao pai de Martinho como hábil na improvisação de versos servia para indicar uma espécie de virtude hereditária que o sambista supostamente teria.

O texto desse comentário também faz referência à primeira escola de samba frequentada por Martinho, a Acadêmicos da Boca do Mato, e contextualiza o samba Boa noite (Ex.2), que é apresentado em sequência: trata-se de uma composição que marca a saída do sambista da Boca do Mato e seu ingresso na Vila Isabel. Como uma espécie de cartão de visita para a sua nova escola, o sambista compôs uma canção em que saudava os integrantes da Vila Isabel – diretor de bateria, sambistas,

compositores, presidentes, diretores, diretor de harmonia e pastoras – e mostrava seu entusiasmo para trabalhar pela escola (“Pra Vila eu trago / Toda a minha inspiração”).

Atentando-se para a construção harmônica e melódica desse samba, pode-se constatar a mesma simplicidade comentada anteriormente. Harmonicamente, percebe-se o uso de apenas quatro acordes diatônicos, os quais, por sinal, são os únicos acordes ouvidos durante os quase seis minutos do fonograma em questão. Do ponto de vista melódico, destaca-se a pouca ocorrência de graus conjuntos, em virtude da melodia apresentar muitas notas de acordes. As frases “Boa noite, Vila Isabel” e “Quero brincar o carnaval” (c.1-7), por exemplo, apresentam somente as notas do acorde de Bb; do mesmo modo, a frase “Boa noite, diretor de bateria” também contém exclusivamente notas do acorde de Cm. Com isso, tem-se uma melodia majoritariamente construída com consonâncias. Tal aspecto pode ser compreendido pelo fato de que não há nenhuma menção de que Martinho domine um instrumento harmônico; isso significa que, para que os instrumentistas que o acompanhavam conseguissem deduzir a harmonia, era preciso que esta já estivesse desenhada na própria melodia. Contudo, conforme já exposto, isso entrava em conflito com os ideais da MPB, segmento hegemônico que também se pautava pela busca de refinamento estético12.

Além de enfatizar sua ligação com a escola de samba, polo de “autenticidade”, Martinho também lembra, já no segundo verso de Boa noite, que a Vila Isabel é a terra de Noel Rosa, personagem reconhecido não só como um dos mais importantes compositores da nossa música popular, mas como representante legítimo da “tradição” do samba13. Curioso seria perceber, porém, que Noel Rosa se relaciona justamente a um tipo de samba diverso daquele que estava sendo produzido por Martinho: enquanto este se apropriava de um samba mais primitivo, no caso, o partido-alto, Noel é um dos personagens centrais na “modernização” do samba, sobretudo no sentido de seu refinamento poético, de seu afastamento do universo afro-religioso e de sua nacionalização.Enquanto que em Feitiço da Vila, de Noel Rosa, ouve-se que “A Vila tem / Um feitiço sem farofa / sem vela e sem vintém / Que nos faz bem”, num movimento de afastar o samba dos rituais religiosos da comunidade negra em sua época, o partido-alto Casa de bamba de Martinho da Vila canta: “Macumba lá na minha casa / tem galinha preta, azeite de dendê”. Divergências à parte, ao ingressar na Vila Isabel, Martinho não perde a oportunidade de se apoiar nos ombros desse “gigante” do samba.

4 – Carnaval de ilusões: renovação do samba-enredo através do partido-altoApós cantar Boa noite, Martinho da Vila aparece novamente conversando com seus ouvintes. Em um comentário muito rápido, o sambista anuncia o próximo samba a ser interpretado: “Em 67, a Vila chegou na (sic)

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cidade com um enredo genial! Gabriel e Dario bolaram um carnaval de ilusões, sonhado por uma criança” (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min24s a 1min34s). Imediatamente começa a cantar o refrão de Carnaval de ilusões, samba-enredo composto para o desfile da Vila Isabel em 1967. Sua letra, escrita por Gemeu, fazia referências ao universo infantil, criando um clima de sonho e de imaginação. A canção (Ex.3) se inicia citando a cantiga de roda Ciranda, cirandinha:

Enquanto o coro feminino repete esse refrão, Martinho declama o texto original de Gemeu, onde se percebem

várias figuras do mundo infantil – os folguedos infantis, a bola, a bonequinha e o carrossel – embalados por um clima de sonho e imaginação (“Fantasia, deusa dos sonhos esteja presente”, “seres do teu reino encantado”).

Fantasia, deusa dos sonhos esteja presenteNos devaneios de um inocenteÓ soberana das fascinaçõesPõe os seres do teu reino encantadoDesfilando para o povo deslumbradoNum carnaval de ilusõesNa doce pausa dos folguedos infantisRepousam a bola e a bonequinha queridaNo turbilhão do carrossel da alegre vida

Ex.2 – Boa noite (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 34s a 1min9s)

Ex.3 – início de Carnaval de ilusões (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min35s a 1min43s)

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Morfeu embala a criança tão felizComo num sonho encantadorViaja ao mundo da fabulação(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min46s a 2min21s)

Depois disso, Martinho volta a cantar (Ex.4):

Enfim, à semelhança do que havia acontecido anteriormente, o coro feminino repete esse trecho da canção, enquanto Martinho declama outra parte do texto original de Gemeu, trazendo novos elementos ligados à infância (fada, figuras lendárias, personagens de leituras):

Guiadas pela fada IlusãoSe juntam lendárias figurasPersonagens de leiturasRevividos na memóriaQue ajusta ao imperfeitoA perfeição dos conceitosDe deleitosas histórias(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 2min38s a 2min55s)

O fato de Martinho declamar trechos dessa canção ao invés de cantá-la por inteiro sugere que ele pretende destacar o texto de Gemeu. Isso se deve ao fato de que a temática desenvolvida por Gemeu e transformada por Martinho em samba-enredo era algo diferenciado em relação ao que usualmente acontecia nesse segmento do samba. Isso porque até então os sambas-enredo costumavam abordar “grandes” personagens ou “grandes” eventos da história brasileira, repertório que ficou conhecido como “samba-lençol”14. Para se ter um exemplo disso, no mesmo ano em que a Vila desfilou com Carnaval de ilusões, a Mangueira sagrou-se a campeã do carnaval com o samba-enredo O mundo encantado de Monteiro Lobato. Essa referência ao “mundo encantado”, presente no título desse samba-enredo, sugere que a canção vá homenagear o escritor em questão por sua produção infanto-juvenil. Contudo, ao longo de seu texto, são muito breves as alusões a esse universo da fantasia, que ficam restritas ao trecho “Relembro / Aquele mundo encantado / Fantasiado de dourado / Oh, doce ilusão / Sublime relicário de criança”. De resto, a composição consiste em uma série de elogios ao “escritor genial”, “grande sonhador”, possuidor de “uma luz divinal”, de uma “escritura emocionante” e criador de “obras

imortais”, “contos triunfais” e “personagens fascinantes”. Mesmo abordando algo que se liga ao universo infantil, a canção não priorizou a descrição desse universo, tal qual acontece no samba-enredo de Martinho, mas se preocupou em exaltar (monumentalizar) a figura de Monteiro Lobato. Do ponto de vista harmônico, não se observa um diatonismo estrito, mas aparecem algumas Dominantes individuais e o acorde de Subdominante menor, que ampliam um pouco a tonalidade15.

Por sua vez, no Carnaval de ilusões de Martinho da Vila observa-se um tratamento muito mais simples, tanto poética quanto musicalmente. Em termos narrativos, o sambista se afasta de um tratamento monumental ao abordar um tema ligado ao universo infantil, ao cotidiano. Musicalmente, como anteriormente exposto, Martinho se mantém naquele loop de acordes estritamente diatônico. Tais características, cabe lembrar, foram repetidas pelo cancionista em outros sambas-enredo que compôs para a Vila Isabel.

Esse pode ser um indício da aproximação que Martinho promoveu entre o samba-enredo e o partido-alto. Ou, na verdade, de uma reaproximação. Isso porque o partido-alto, conforme Nei Lopes, é composto por um refrão, cantado em coro, e uma parte solada, com versos improvisados (LOPES, 1992, p.51) e que o samba composto para o carnaval até o início dos anos 1930 também apresentava uma segunda parte aberta à improvisação de versos (FENERICK, 2005, p.119). Contudo, a partir das intervenções da política varguista no repertório carnavalesco, que objetivavam tirar a imprevisibilidade do samba e fazer com que ele passasse a veicular temas nacionais, o samba-enredo trilhou um caminho independente do partido-alto. É nesse sentido que se pode pensar que Martinho tenha reaproximado esses dois segmentos e, com isso, substituiu o caráter monumental que o samba-enredo havia assumido pela simplicidade do partido-alto.

Em decorrência disso, Martinho foi saudado por alguns críticos musicais e jornalistas do período como um importante renovador do samba-enredo. É o que se percebe, por exemplo, com Tárik de Souza, que afirma que “as modificações que [Martinho] introduziu com a trilogia Carnaval de Ilusões (67), Quatro Séculos de

Ex.4 – segunda parte cantada de Carnaval de ilusões (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 2min21s a 2min37s)

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Modas (68) e Iaiá do Cais Dourado (69) foram cruciais” (SOUZA, 1983, p.166)16. O autor destaca ainda que não eram apenas nas letras que Martinho teria realizado transformações:

O samba enredo iniciava, desde Martinho, um processo de confluências e modificações que acelerariam seu ritmo, aproximando-o da velocidade da marchinha e dos chamados sambas-de-embalo ou empolgação, que transformariam esse gênero no dominante do carnaval. (SOUZA, 1983, p.166-7)

Contudo, Tárik observa que Martinho não foi renovador somente no samba-enredo, mas que introduziu inovações no próprio partido-alto:

Numa posição paralela com Jorge Ben que fundiu o samba ao cadenciado maracatu, com uma pitada de América Central e rhythm & blues americano, Martinho apanhou o aleatório partido alto, sempre complementado no ato por versos improvisados (o que é obviamente impossível numa reprodução gravada) e cristalizou-o, dando-lhe estrutura definida e formato identificável, tal como Luiz Gonzaga fez com o difuso baião nordestino. Martinho, portanto, na célebre classificação de Ezra Pound é um inventor, que deu origem a forma conceitualmente nova, que já não guarda senão semelhança com o original. (SOUZA, 1983, p.167-8)

De volta ao fonograma analisado, verificamos que ele apresenta certa unidade entre suas duas partes, uma vez que, antes de apresentar o lado renovador de Martinho presente em Carnaval de ilusões, foi enfatizado o caráter “autêntico” de sua produção musical, mostrando sua ligação com o carnaval e as escolas de samba. Percebe-se, assim, que, para ser visto como alguém capaz de renovar, foi preciso que Martinho se integrasse ao circuito “tradição” para se legitimar. Nesse sentido, ganha destaque o conjunto de ações que acompanhou a trajetória do sambista ao longo da década de 1970 no sentido de aproximá-lo cada vez mais do pólo da “autenticidade” do samba.

5 – Caramba: uma nova e incompreendida “modernização” para o sambaApós destacar o seu pertencimento à “tradição” do samba com Boa noite e apresentar seu caráter renovador com Carnaval de ilusões, Martinho faz seu terceiro e último comentário no fonograma antes de iniciar a também última canção. Tal comentário ainda se remetia ao samba-enredo Carnaval de ilusões, aludindo à recepção que o mesmo obteve no desfile em que foi apresentado:

Botar música nessa poesia do Gemeu não foi mole, nãoE os críticos meteram o pau no samba-enredoE a Vila perdeu o carnavalO meu amigo Chico Buarque de Hollanda dormiuO resto da comissão não entendeu nadaNo dia do resultado, eu fiz o meu primeiro samba de protesto(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 3min57s a 4min17s)

Se o fato de ter anteriormente declamado trechos de Carnaval de ilusões dava destaque à poesia de Gemeu, agora, com o início desse comentário, Martinho chama a atenção de seu ouvinte para sua própria habilidade enquanto compositor ao destacar a dificuldade de transformar aquele texto em um samba-enredo. Por

isso, o sambista reclama do pouco reconhecimento que recebeu por parte da comissão julgadora – da qual também participava Chico Buarque – ao realizar essa empreitada. Esse aspecto se encontra desenvolvido no texto de sua canção Caramba, que se segue ao comentário já apresentado. Vejamos sua primeira parte (Ex.5):

Nas duas primeiras frases desse samba (“Fala, fala, falador / Não lhe dou bola porque eu sou bamba”), Martinho diz não estar incomodado diante das más avaliações que recebeu, uma vez que ele é um detentor da “tradição” do samba, visto que se afirma como um bamba. Por sua vez, as frases seguintes (“Malha, malha, malhador / Que não aceita a evolução do samba”) completam o discurso do cancionista: como um “autêntico” sambista, ele pode dar um passo à frente no samba, algo que acaba não sendo compreendido ou aceito pelos ouvintes. Isso se encontra reforçado no juízo que Martinho faz sobre a comissão julgadora do desfile, tal como se apresenta na segunda parte de Caramba (Ex.6):

Nesse posicionamento de Martinho, pode-se perceber alguma ressonância daquela figura romântica do gênio: criador, inovador, à frente de seu tempo, e que acaba sendo incompreendido por seus contemporâneos17. Em uma matéria de jornal, localizamos uma citação de Martinho na qual o sambista toma para si essa figura de maneira ainda mais clara. Na verdade, o texto dessa matéria trazia críticas ao show do disco Rosa do povo, de Martinho (VILA, 1977, LP). Ainda assim, o jornalista apresentou a fala do próprio sambista, que se defendeu das críticas apoiando-se nessa figura do artista incompreendido:

O espectador paga 60 cruzeiros, senta-se em poltronas desconfortáveis e tem início o show: durante três minutos um gravador reproduz a fita em que Martinho declama o poema Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Mais tarde, a dose seria repetida: do gravador, no ambiente todo escuro, ouvem-se, por cinco minutos, as vozes de Martinho e João Nogueira cantando um samba da dupla, João e José. Por que não a apresentação do poema e da música ao vivo? Afinal, ninguém ali entrou para ouvir discos. “O artista é assim mesmo”, responde Martinho da Vila, “tem umas ideias diferentes e não pode ficar preocupado se as pessoas vão entender ou não” (SANTOS, 1977, p.92).

Interessante perceber que, se o jornalista em questão não assumia o partido de Martinho, Tárik de Souza, por outro lado, reproduz uma visão muito próxima à do próprio sambista. Após falar sobre as inovações de Martinho no samba-enredo e no partido-alto, o crítico comenta:

Todas essas mudanças mal percebidas ou pouco analisadas dão medida do grau de marginalização cultural a que o samba ainda continua relegado. Apesar de ter sido projetado através da via comum dos festivais, [...] o partido alto de Martinho não pegou carona, sequer como pingente, na chamada linha evolutiva da música popular brasileira. [...] As modificações introduzidas de dentro pelos próprios sambistas com a incorporação de outras influências brasileiras – como são os casos de Paulinho da Viola e Martinho da Vila – permanecem à parte dessa evolução, na verdade paralela e integrada (SOUZA, 1983, p.167, grifo no original)

Como um “autêntico” artista do universo do samba, que consegue inovar em virtude de seu conhecimento

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Ex.5 – primeira parte de Caramba (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 4min20s a 4min50s)

Ex.6 – início da segunda parte de Caramba (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 5min8s a 5min24s)

e domínio da “tradição”, mas que não é compreendido por seus pares, Martinho finaliza essa canção com um pequeno refrão que retoma a crítica, presente já no comentário que a antecede, a um “monstro sagrado”18 da MPB, Chico Buarque.

Os versos “Nem o Chico entendeu / o enredo do meu samba” trazem uma mensagem bastante forte: nem mesmo um cancionista tão reconhecido como Chico Buarque teria sido capaz de perceber as inovações que Martinho estava fazendo. Nesse sentido, Martinho

Ex.7 – final de Caramba (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 5min24s a 5min32s)

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estaria se colocando à frente de Chico, visto que ele representaria a renovação desse repertório, enquanto que este último estaria ainda preso a algum cânone.

Mais do que isso, cabe perceber o novo significado que Martinho atribui ao protesto. É sabido que, para a MPB, a expressão “canção de protesto” era empregada para rotular um repertório engajado, que denunciava injustiças sociais e políticas, convidando para a revolução. Por sua vez, Martinho da Vila, ao caracterizar sua canção “Caramba” como um “samba de protesto”, o faz com um novo sentido, uma vez que ele não está reclamando sobre os problemas do “povo”, mas está, de certo modo, contestando a legitimidade e a avaliação do júri, inclusive de Chico Buarque. De modo mais amplo, pode-se dizer que o “inimigo” de Martinho nessa canção não é o latifúndio, o imperialismo ou o governo militar, tal qual acontecia na canção de protesto, mas é a própria MPB, que, conforme Napolitano, funcionava como um “totem-tabu” da música popular:

Como “totem”, sugere cânones, modelos, percepções estéticas e informa valores ideológicos. Como “tabu”, delimita, veta e discrimina hierarquias culturais, prescrevendo possibilidades e interdições de escuta (NAPOLITANO, 2005, p.129).

6 – Considerações finaisFeitos esses apontamentos sobre o primeiro fonograma do LP de estreia de Martinho, espera-se que seja possível visualizar de modo mais claro alguns valores e ideias que estão implícitos nele19. Percebemos como essa faixa do disco apontava para seu próprio compositor e intérprete, apresentando-o como um sambista “tradicional” e “autêntico”, que conseguia manter a espontaneidade e a simplicidade de sua produção, mesmo atuando no interior da indústria do disco. Além disso, justamente por se apoiar nesse solo firme da “tradição”, Martinho ainda se apresentava como um renovador – por vezes, incompreendido – do samba.

Tais características, por sua vez, remetem ao conflituoso cenário da música popular brasileira no período em que Martinho tentava sua inserção. Num contexto em que a MPB definia os cânones e discriminava produções destoantes, o sambista foi buscar na “tradição” uma maneira de obter legitimidade nesse campo, e parece ter conseguido certa eficácia nesse processo. Ainda que o sambista não seja reconhecido como um dos grandes cancionistas da música popular do Brasil, sua produção recebeu a admiração de importantes agentes ligados à produção musical e cultural daquela época. Esse foi o caso do já citado jornalista e crítico musical Tárik de Souza, que escreveu matérias elogiosas sobre o repertório de Martinho da Vila (SOUZA, 1978 e 1983). Outro jornalista que apreciava sua produção era Sérgio Cabral, que chegou a dedicar um de seus livros sobre as escolas de samba a “Martinho da Vila e Paulinho da Viola, legítimos herdeiros dos sambistas do Estácio de Sá” (CABRAL, 1974, p.9). Também o poeta Ferreira Gullar não deixou de sinalizar, em 1970, que “Martinho da Vila, com o velho partido alto, repelido pelo festival, continua

dando o seu recado” (citado em ZAN, 2010, p.62). Por fim, segundo o depoimento do produtor de Martinho, Rildo Hora, os shows do sambista eram frequentados por artistas e intelectuais da esquerda, dentre os quais destacou o já citado Ferreira Gullar e o dramaturgo Dias Gomes (ver MACHADO, 2011, p.247).

Assim, o caso de Martinho aponta para a emergência de novos sentidos para o samba naquele período. Até os anos 1960, o samba considerado legítimo era aquele que conscientizava politicamente o “povo” brasileiro, e a “tradição” era valorizada na medida em que favorecia o contato entre o artista-intelectual e o público para quem este deveria se dirigir. Com Martinho, percebe-se que seu processo de legitimação através do vínculo com a “tradição” aconteceu sem que o sambista precisasse fazer a opção pelo engajamento político em suas composições.

Isso não significa que tenha ocorrido uma ruptura radical nos parâmetros de legitimidade na música popular brasileira e tampouco que o engajamento político tivesse deixado de ser um critério de consagração no campo da produção musical do período. Pelo contrário, ao menos até o final da década de 1970, o posicionamento político e a habilidade em driblar a censura e veicular críticas ao regime ditatorial eram vistos como elementos de prestígio para os artistas da MPB, como se percebe no livro do sociólogo Gilberto VASCONCELLOS (1977), que exaltava os cancionistas que se utilizavam dessa “linguagem da fresta”. O caso de Martinho aponta, na verdade, para o surgimento de uma nova linhagem do samba que, de certo modo, se desvincula da MPB20. Se até os anos 1960 o samba era um segmento musical valorizado dentro das perspectivas ideológicas da MPB, há indícios de que, a partir dos anos 1970, uma parte desse segmento encontrava os seus próprios critérios de legitimidade, que consistiam, no caso, em disputas pelo reconhecimento da “autenticidade” das produções.

E, nesse aspecto, Martinho da Vila não está sozinho. Na verdade, ele aparece como um primeiro caso (ou um caso de maior destaque) de um grupo maior de sambistas que despontaram no cenário da música popular na década de 1970 e que possuem uma trajetória semelhante à sua. Respeitadas as particularidades estilísticas e biográficas de cada um, podem ser lembrados os nomes de Candeia, Mano Décio da Viola, Aniceto, Silas de Oliveira, Monsueto, Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro, Cartola, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento21. Tais sambistas se assemelham pelo fato de terem se projetado na década de 1970 com um tipo de samba que não se pautava pelo engajamento político, mas se assentava na “tradição”, sobretudo, por seu vínculo com as escolas de samba.

Essa linhagem provavelmente está nas bases do rótulo “samba de raiz”, que foi abordado por TROTTA (2011) em sua pesquisa sobre o “pagode romântico” dos anos 1990. O autor salienta que não é possível determinar a partir de quando o termo passou a rotular a produção de sambas, mas se nota que ele foi ganhando força ao

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longo da década de 1990 (TROTTA, 2011, p.209). Segundo o pesquisador, a expressão “samba de raiz”

procura estabelecer um vínculo com o passado, que seria formador de uma base musical, ideológica, estética e afetiva para o desenvolvimento do samba. O “samba de raiz” seria um samba que procura se referir a esse passado, estabelecendo sua legitimidade por esta “tradição” (TROTTA, 2011, p.210).

Mesmo no caso do pagode dos anos 1980, parece haver uma orientação em torno da ideia de “tradição”. Isso porque toda aquela geração de pagodeiros surgidos no período –Beth Carvalho, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, o grupo Fundo de Quintal e outros – se reuniram em torno do bloco carnavalesco do Cacique de Ramos (ver PEREIRA, 2003). Certamente, não se pode desconsiderar o fato de que o Cacique não era propriamente uma escola de samba, e também que o próprio rótulo “pagodeiro” expressa algo até pejorativo, indicando uma espécie de sambista “menor” (TROTTA, 2011, p.213). Contudo, esse mesmo status de bloco carnavalesco, ligado a certa “ancestralidade” do carnaval (lembrando que, historicamente, os blocos antecedem as escolas de samba), associado ao caráter de samba de “fundo de quintal” (uma referência ao local onde o samba era praticado em casarões como os da Tia Ciata), tudo isso conferia certa chancela de “autenticidade” aos seus membros. É justamente a partir do caráter mais “autêntico” dessa produção que a década de 1990 vai criar uma distinção entre o pagode do decênio anterior (que acabou sendo lido como uma espécie de “pagode de raiz”) e aquele “pagode romântico” que começava a ser produzido.

Assim, a trajetória de Martinho traz indícios de que ele tenha inaugurado ou, ao menos, protagonizado o início de uma nova linhagem no samba, que se desvinculava da MPB, rompendo com seus parâmetros estéticos e ideológicos, passando a se pautar pelo vínculo com a

“tradição” e a “autenticidade”. O curioso é perceber que tais critérios aparentemente não conflitavam com a inserção no interior da indústria do disco, onde a questão da “autenticidade” fica sensivelmente abalada. Desde as reflexões de Walter Benjamin sobre a obra de arte no contexto da reprodução técnica, sabe-se que “a esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 1994, p.167, grifos no original). Isso porque a “autenticidade” de algo está ligada a “tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico” (BENJAMIN, 1994, p.168). Esse percurso histórico de uma obra de arte já não pode mais acontecer no contexto da reprodução técnica, quando um objeto (como o filme e o disco) já é criado para ser reproduzido, fazendo com que se perca a ideia da existência de um “original”22. Portanto, na época das técnicas de reprodução, toda a ideia de “autenticidade” ou de “pureza” é resultado de procedimentos técnicos:

No estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que o que aparece como realidade “pura”, sem o corpo estranho da máquina, é de fato o resultado de um procedimento puramente técnico (...). A realidade, aparentemente depurada de qualquer intervenção humana, acaba se revelando artificial. (BENJAMIN, 1994, p.186, grifos no original).

Nesse sentido, aquela busca por estreitar os laços com a “tradição”, empreendida por Martinho e outros sambistas dessa linhagem no contexto da indústria fonográfica, aparece também como uma procura por diferencial de mercado. E nisso o sambista de Vila Isabel é exemplar, pois soube desempenhar um papel no qual aparecia como um grande vendedor de discos, sem que isso supostamente abalasse a “pureza” e “autenticidade” de seus sambas.

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MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.

______________. O pequeno burguês. MZA Music / Canal Brasil, 2008. DVD.Notas1 Agradeço a leitura atenta e as preciosas sugestões de meu orientador, Prof. Dr. José Roberto Zan.2 A questão da “origem” do samba consiste em um amplo debate travado ao longo da história da música popular brasileira. O samba é carioca ou

baiano? “Nasceu” nos morros ou nas casas das tias baianas? Tais são alguns dos questionamentos em que esse debate se pauta. Para um melhor mapeamento e discussão desse assunto, ver NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000.

3 Sobre essa canção, vale conferir a análise de SANTOS (2006, p.44-53), que atenta para os elementos jazzísticos nela presentes.4 Durante minha pesquisa de mestrado, tive acesso às listagens do IBOPE, disponíveis no Arquivo Edgar Leuenroth, na UNICAMP. Ao final da

dissertação, encontra-se uma tabela ilustrando as aparições de Martinho da Vila nessas listas (ver MACHADO, 2011, p.278-281).5 A baiana Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, era uma das lideranças espirituais da comunidade negra do Rio de Janeiro. Casada com o

funcionário público João Batista, sua casa oferecia a proteção necessária para que se realizassem práticas culturais e religiosas dos negros, duramente reprimidas naquele início do século XX (cf. MOURA, 1983, p.64-66).

6 SANDRONI (p.118) nos lembra que, antes de Pelo telefone, outras canções com a indicação de samba já haviam sido gravadas. Contudo, elas acabaram passando despercebidas, o que não aconteceu com a canção de Donga e Mauro de Almeida, que obteve grande sucesso no carnaval de 1917 e se tornou um “marco” na historiografia do samba.

7 Em seu show O pequeno burguês, gravado em DVD em 2008, Martinho dá um depoimento no qual afirma ter colocado a “cadência” do partido-alto no samba-enredo. Para demonstrá-lo, Martinho executa no pandeiro um padrão rítmico que pode ser entendido como uma variação daquele apresentado por Bolão: (VILA, 2008, DVD, 23min20s a 24min15s).

8 Vide, por exemplo, a letra de seu partido-alto Quem é do mar não enjoa: “Quem é do mar não enjoa / Não enjoa / Chuva fininha é garoa / É garoa / Homem que é homem não chora / Não, não chora / Quando a mulher vai embora / Vai embora” (VILA, 1969, lado B, faixa 01).

9 A essa característica harmônica, Philip TAGG (2009, p.199 e seguintes) chamou de loops de acordes.10 Interessante comparar as definições de partido-alto apresentadas em duas publicações de Nei Lopes. Na introdução de seu livro mais recente

(LOPES, 2008, p.26-7), o autor repete, palavra por palavra, a definição de partido-alto que havia apresentado anteriormente (LOPES, 1992, p.51). Contudo, no livro de 2008, o autor conclui a definição com um parágrafo que destaca o humor e a espontaneidade do partido-alto, e ainda o coloca como vinculado à elite dos sambistas: “Transcendendo qualquer aspecto formal, partido-alto é, sobretudo, o samba da elite dos sambistas, bem-humorado, encantador e espontâneo” (LOPES, 2008, p.27).

11 Em sua investigação sobre o repertório do calango, Lopes destaca a existência de desafios “na linha do á, do é, do i, do ó, do u, do ão, e por aí afora” (LOPES, 1992, p.30). Interessante destacar isso, pois nos faz recordar do próprio samba Linha do Ão, de Martinho da Vila.

12 A questão da dissonância foi cuidadosamente tratada em um artigo de Freitas, que mostrou como a competência para lidar com ela foi sendo historicamente constituída como um sinal de “habilidade, beleza, esmero, maestria, [...] agudeza e engenho” (FREITAS, 2010, p.138).

13 Nesse sentido, Napolitano lembra a atuação de Almirante como radialista, sobretudo a partir de seu programa No tempo de Noel Rosa, de 1951, no sentido de consolidar a memória de Noel como um dos “grandes mestres” do samba: “Suas palestras sobre Noel consagravam os elementos criativos e biográficos que apontavam para a heroicização do poeta da Vila, digno inventor do samba moderno, ao lado de Ismael Silva, Pixinguinha, Cartola e outros” (NAPOLITANO, 2007, p.62).

14 A pesquisadora Carla Vizeu nos mostra que, na segunda metade dos anos 1930, houve um decreto que obrigava as escolas de samba a empregarem temas nacionais em seus enredos (VIZEU, 2004, p.47-50). Nos anos 1950, isso acabou se consolidando nos chamados sambas-lençol, que discorrem “sobre um tema histórico com riqueza de detalhes”, prática que teve em Silas de Oliveira um de seus expoentes (VIZEU, 2004, p.50).

15 Tais observações se baseiam na gravação desse samba-enredo presente no primeiro volume da coletânea de LPs História das Escolas de Samba (HISTÓRIA, 1975, LP).

16 Cabe lembrar que esses outros dois sambas-enredo, Quatro séculos de modas e costumes e Iaiá do Cais Dourado, também foram gravados no LP de estreia de Martinho.

17 Uma abordagem sobre a figura do gênio romântico na música pode ser encontrada em MEYER (2000). O autor entende que é provável que toda a cultura ocidental tenha sido marcada por uma tensão entre o classicismo apolíneo (valorização das convenções, coerência das formas) e o romantismo dionisíaco (valorização das particularidades e da inovação individual). Mas Meyer entende que o último romantismo, que se iniciou no final do século XVIII, consistiu numa transformação profunda na perspectiva social, política e ideológica (e, poderíamos acrescentar, estética) cujos efeitos ainda são perceptíveis contemporaneamente.

18 A expressão é de NAPOLITANO (2002).19 Mesmo que o pensamento de Theodor Adorno seja especialmente crítico em relação à produção em música popular, o que se busca nesse trabalho

é, conforme proposto por este autor, estar atento ao modo “como momentos da estrutura social, posições, ideologias e seja lá o que for conseguem se impor nas próprias obras de arte” (ADORNO, 1986, p.114).

20 Acredito que não seria correto dizer que tenha ocorrido uma separação entre o samba e a MPB. Ao contrário, um caso como o de João Bosco mostra que o samba continuava a fazer parte do repertório desse segmento hegemônico da música popular brasileira. É nesse sentido que parece preferível pensar em uma nova linhagem do samba, que não substitui a anterior, mas se apresenta como uma nova possibilidade.

21 Caberia lembrar que Silas de Oliveira e Monsueto faleceram respectivamente em 1972 e 1973, mas que tiveram regravações de sambas de sua autoria durante a década de 1970, inclusive pelo próprio Martinho. Também há sambistas que haviam aparecido já no contexto da canção engajada, mas que não assumem essa postura, buscando se pautar pelo vínculo com a “tradição” e as escolas de samba, como são os casos de Paulinho da Viola (da Portela), de Anescarzinho do Salgueiro, e de Cartola, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento (da Mangueira).

22 BENJAMIN (1994, p.167-8) esclarece que, no contexto anterior à reprodutibilidade técnica, o objeto original “conserva toda a sua autoridade com relação à reprodução manual, em geral considerada uma falsificação”. É essa autoridade de um objeto original que desaparece com a reprodução técnica, pois já não se pode identificar qual é o original de um jornal, de um filme, de uma fotografia ou de um disco.

Adelcio Camilo Machado é aluno do Doutorado em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde desenvolve pesquisa sobre a música popular brasileira das décadas de 1940 e 1950 sob a orientação do Prof. Dr. José Roberto Zan e com financiamento da FAPESP. Desde 2009 é integrante do Grupo de Pesquisa Música popular: história, produção e linguagem, que é coordenado por seu orientador e pelo Prof. Dr. Antonio Rafael Carvalho dos Santos.

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Recebido em: 22/03/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70

Renan Paiva Chaves (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Eduardo de Lima Visconti (UNICAMP, Campinas, SP) [email protected]

Resumo: Análise do álbum México 70 de Wilson Simonal, lançado pela gravadora Odeon mexicana em 1970. Buscamos compreender como as dimensões internas do disco, especialmente no que tange às orientações estético-musicais, condensaram alguns conflitos simbólicos presentes no processo de internacionalização da cultura e da consolidação da indústria fonográfica no Brasil. Após articular as relações entre futebol, imprensa, música popular e Estado com uma apreciação musical de cada faixa do álbum, confrontamos nossas conclusões com alguns conceitos recorrentes na literatura que trata da cultura e da música popular brasileira na década de 1970, a fim de sugerir um possível enfoque analítico para pensar a relação entre música popular brasileira e o contexto político-cultural desse período.

Palavras-chave: Wilson Simonal; México 70; Música Popular Brasileira.

Wilson Simonal in field: reflections on the album México 70

Abstract: Analysis of Wilson Simonal’s Mexico 70 album released in 1970 by the Mexican record label Odeon. We aim at understanding how the internal dimensions of the album, especially regarding the musical-aesthetic guidelines, condensed some symbolic conflicts present in the internationalization culture process and the phonographic industry consolidation in Brazil. After articulating the relations between soccer, media, popular music and the Brazilian State with a musical appreciation of each track on the album, we confronted our partial conclusions with some recurring concepts in the literature that deals with Brazilian culture and Brazilian popular music in the 1970s, in order to suggest a possible analytical approach to think the relation between Brazilian popular music and the political and cultural context of this period.

Keywords: Wilson Simonal; Mexico 70; Brazilian popular music.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1 – IntroduçãoRecentemente, a trajetória artística de Wilson Simonal tem sido objeto de alguns estudos. Dentre as pesquisas científicas de pós-graduação sobre o assunto podemos citar: “Quem não tem swing morre com a boa cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites da memória tropical” (FERREIRA, 2007) e “A pérola negra regressa ao ventre da ostra: Wilson Simonal em suas relações com a indústria cultural (1963 a 1971) (HARTWIG, 2008)”. Junto a estes trabalhos, o que se encontra são livros e textos jornalísticos que citam Simonal como um coadjuvante da história, além de relatos de pessoas que conviveram com ele, como ilustra o documentário Simonal – ninguém sabe o duro que dei, dirigido por Calvito LEAL, Cláudio MANOEL e Micael LANGER (2009). De um modo geral, se verifica que o foco analítico dessas pesquisas se pauta por uma

descrição biográfica relacionada ao contexto político em que o músico desenvolveu sua carreira. Além disso, o que se nota nas representações historiográficas construídas sobre a MPB das décadas de 1960 e 1970 realizadas no calor do momento e também posteriores a ela, é a ausência de Wilson Simonal como participante dessas narrativas históricas.

Essa situação tem se modificado progressivamente nos últimos anos devido às produções supracitadas e à reedição de discos de Simonal que ocorreram nos anos posteriores a sua morte, em 2000. Um conjunto relevante de sua produção discográfica, referente ao período de 1961 a 1971, foi relançado em um Box com nove CDs pela gravadora Odeon/EMI no ano de 2004.

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Todavia, muitas lacunas e equívocos sobre sua carreira artística ainda estão em aberto. A partir dessa perspectiva, observamos a ausência de um estudo ou mesmo uma descrição mais aprofundada sobre o álbum México 70, lançado após a Copa do Mundo de 1970 no México1. Devido a este fato e tendo em vista as poucas pesquisas sobre Wilson Simonal, este artigo tenciona desenvolver um enfoque mais musicológico de sua produção artística, procurando perceber de que modo a forma e o conteúdo do repertório de seus álbuns – no caso, do disco México 70 – condensaram alguns conflitos simbólicos presentes na conjuntura sócio-política da época.

O que vislumbramos nesse artigo está ligado à importância desse álbum, que remonta diretamente a um período no qual Wilson Simonal estava no topo de sua carreira em termos de vendagem de discos, com grande quantidade de shows, fama e dinheiro, e a um momento que ainda é pouco explorado em pesquisas sobre música popular. Como analisa Marcos Napolitano, a MPB foi o centro de mais um paradoxo presente na década de 1970, formado pela relação entre a afirmação de valores ideológicos através da canção e o consumo musical orientado por sofisticados mecanismos de mercado. Na argumentação do historiador, esse período sugere inúmeros problemas que ainda precisam ser decifrados pela investigação acadêmica (NAPOLITANO, 2002, p.11).

Pretendemos, portanto, analisar o repertório do álbum México 70 de Wilson Simonal relançado pela gravadora EMI no ano de 2010. Considerando-se a relação entre futebol, imprensa, música popular e Estado no Brasil, principalmente entre os anos das conquistas das Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, articulada a uma análise das músicas que compõem o disco, procuramos refletir como esse disco condensou possíveis conflitos simbólicos presentes no universo sociocultural do final dos anos de 1960 e início da década de 1970 dentro de um processo de internacionalização da cultura e consolidação da indústria fonográfica no país.

2 - Simonal e Pelé: música, futebol, imprensa e EstadoNo pós Segunda Grande Guerra, o futebol brasileiro já era um esporte fortemente regulado pelo governo, que articulava e garantia sua popularidade pelos jornais e rádios. Frente ao forte abalo que recebeu o futebol europeu devido às destruições físicas e organizacionais decorrentes da guerra, o futebol brasileiro ganhou força no plano nacional e reconhecimento internacional e começou a se tornar orgulho nacional (BRANCO, 2006). Em concordância com um contexto histórico de conturbação política e de mudança da percepção da questão social, no qual a identidade nacional é reformulada pela emergência de novos heróis e mitos (anos 1960) – ou seja, novos símbolos e ídolos nacionais, divulgadores e representantes legítimos de uma identidade reconstruída –, surge Pelé, consagrado, depois da conquista da Copa do Mundo de 1958 realizada na Suécia e dos títulos nacionais

e internacionais pelo Santos Futebol Clube. Até 1960, mais de vinte canções o tiveram como tema e inúmeras biografias foram publicadas, além de ser alvo constante da grande imprensa: Pelé virou produto de consumo e símbolo nacional. Seu sucesso foi crescente até princípios dos anos 1970, quando se sagrou tricampeão pela seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo do México.

Paralelamente, no campo musical, aparece Wilson Simonal, que iniciou sua carreira como cantor de bailes e como apresentador do programa “Os Brotos Comandam” em 1961. Em 1963, lançou seu primeiro disco autoral intitulado Wilson Simonal Tem Algo Mais, recheado de arranjos ao estilo bossanovista. Com uma sonoridade parecida com este trabalho, seguiu seu segundo álbum – A Nova Dimensão do Samba (1964). Em 1965, lançou seu terceiro disco, transitando entre diversos estilos de samba: interpretando Ary Barroso, Dorival Caymmi, Zé Ketti e Tom Jobim. Após outros trabalhos nessa mesma tendência, Simonal lançou, em 1967, uma canção, em estilo samba soul2, denominada Tributo a Martin Luther King (1967)3, trazendo à tona a temática da luta do negro frente às barreiras do preconceito: de certa forma Simonal representou essa luta no contexto brasileiro (HARTWIG, 2008).

Essa influência da soul music na obra de Simonal foi, possivelmente, orientada pelas carreiras de James Brown e Ray Charles nos Estados Unidos, pois esse gênero serviu de fundo musical para o engajamento desses artistas pela luta dos direitos civis dos negros na sociedade norte-americana (GONÇALVES, 2011)4.

A partir de então, Simonal entra na fase denominada pilantragem, que, segundo Carlos Imperial5, arranjador de muitas das gravações do cantor, era uma maneira mais “solta”, dançante e swingada de se fazer arranjos e músicas. Algumas canções de sucesso nessa época foram: Meu Limão, Meu Limoeiro (1966), Nem Vem Que Não Tem (1967) e Sá Marina (1968).

Em 1968, Simonal já era uma das pessoas mais famosas do Brasil, disputando espaço com Roberto Carlos e Pelé, além de ter reconhecimento internacional (BOSCO, 2009). Nesse momento, podemos dizer que o artista se torna um dos símbolos nacionais: cantor sofisticado, afinado, cativante e eclético; assim como Pelé jogava, Simonal cantava. Com tremenda facilidade e autêntica habilidade, providos de “dom” e envoltos à noção de mito6, os dois representavam aquilo que de “melhor” havia no Brasil: o futebol e a música.

A partir da imposição do AI-5 em 1968, o ditador Médici, que assumiu a presidência do Brasil em 1969, frente à queda de popularidade do regime ditatorial, passou a utilizar o futebol para reconquistar algum prestígio com a população: começou a frequentar as tribunas do Flamengo, a participar da escalação e dos treinos da seleção brasileira, assim como a caracterizar e enfatizar o futebol como orgulho nacional, símbolo da identidade nacional brasileira, uma das belezas “naturais” do Brasil (BRANCO, 2006).

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Nesse período, anterior à Copa de 1970 do México, permeava na sociedade um clima ufanista. Wilson Simonal emplacou nesta fase um de seus maiores sucessos: País Tropical (1969), composta por Jorge Ben em homenagem ao Flamengo, após a conquista do campeonato nacional brasileiro (mesclando, na letra, o futebol a outros elementos de uma “brasilidade” que emergia, como o fusca e o carnaval). Simonal, com sua carreira ascendente, virou garoto-propaganda da poderosa Shell, que com perspicácia, o associou ao carro e ao futebol, lançando-o em revistas, jornais, televisão e rádio. Não demorou muito para o poder público e a imprensa associarem a imagem de Pelé e a de Simonal. Segundo Adriane Hartwig:

A Shell estava buscando em Simonal uma imagem para vincular à sua empresa, que agora, de capital nacional, quer reforçar sua presença no território nacional. Simonal, como um cantor popular, que transitava por diversos públicos, seria o que eles denominaram de “representante da classe trabalhadora”, legitimando suas ações no país, vinculando a imagem da empresa a um símbolo de brasilidade. A escolha por Simonal se dá muito em função de sua popularidade e de seu fácil trânsito pelos mais variados grupos, o que interessa à empresa que necessita de uma imagem, de um símbolo que a identifique positivamente no país. De 1969 até 1971, Simonal será o símbolo de uma empresa estrangeira, recém nacionalizada, buscando sua permanência no mercado nacional de combustíveis. Para tanto, a mesma patrocinou shows e apresentações de Simonal, que a partir de então, divulgou o nome da empresa em eventos por ela criados. Uma das primeiras tarefas de Simonal seria a de ajudar a buscar fundos para financiar a seleção brasileira de futebol, que participou da Copa do Mundo de Futebol, no México (HARTWIG, 2008, p.112).

Não se pode perder de vista que o futebol não é apenas um esporte, consiste também em um jogo a serviço de um complexo de valores e relações sociais, no qual a população exercita o que é ser brasileiro. Nesse sentido, a construção sociocultural brasileira é permeada e coadjuvada pelo futebol: pensar suas relações com as outras manifestações consiste numa reflexão de essencial importância (DAMATTA, 1982).

3- Dimensões internas e externas da produção do álbum México 70Em 1970, após uma turnê pela Europa, Simonal acompanhou a delegação da seleção brasileira na Copa do México, sendo lá quase um representante oficial. Com a vitória da seleção brasileira e com o sucesso das apresentações do cantor, a Odeon mexicana lançou o disco México 70 (1970), encabeçado pela música que então se tornaria sucesso: o samba “eletrificado” Aqui é o País do Futebol, composto por Fernando Brant e Milton Nascimento para o documentário Tostão – A fera de Ouro de 1970, que, na voz de Simonal, exalta o país e o futebol como paixões nacionais e os associam ao samba (emblemática frase da canção: “Olha o sambão, aqui é o país do futebol”).

A segunda faixa é um arranjo em ritmo de shuffle de Raindrops Keep Falling On My Head, canção feita para o filme Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), e que, em 1970, ficou durante quatro semanas no primeiro lugar da lista “Hot 100”, da revista Billboard7. A terceira

é Kiki, composta por Simonal e que possui influência da pilantragem. A quarta e a quinta faixas, Ave Maria no Morro e I’ll Never Fall In Love Again (produzida para o musical Promises, Promises de 1968 e que ganhou o Grammy de melhor música de 1969) são versões no estilo samba soul. A sexta faixa, Crioula, é estruturada sobre ritmos afro-brasileiros, que se misturam com outras referências nacionais. A sétima, Que Pena, consiste em mais uma versão de um samba “eletrificado”. A faixa oito é o medley The Age of Aquarius, feita para o musical rock Hair (1968): a primeira parte, Aquarius, é um arranjo “abrasileirado” com uma tradução da letra original para o espanhol; a segunda, The Flesh Failures, é cantada em português e mescla marcha, elementos da música pop, gospel e da salsa. A música nove é uma versão sambajazz de Garota de Ipanema.

A faixa dez é a canção italiana Ecco Il Tipo (Che Io Cercavo), num arranjo que se aproxima da pilantragem. As Menininhas do Leblon (uma sátira à Garota de Ipanema) é a faixa onze, num arranjo funk/soul próximo ao estilo consolidado por James Brown. A última música do disco consiste em uma versão em jazz-waltz de uma composição de Lamartine Babo e Francisco Mattoso denominada Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda.

As canções Que Pena e The Age of Aquarius, segundo Max de Castro8, foram gravadas no segundo semestre de 1969, em meio às gravações do quarto volume do álbum Alegria! Alegria! (1969). Não se sabe ao certo qual era o destino concebido para essas faixas, se foram excluídas do disco ou se havia a intenção de incluí-las em lançamento de compactos. A canção intitulada Ecco Il Tipo (Che Io Cercavo) foi lançada no primeiro semestre de 1970, na Itália, durante uma turnê de Simonal pela Europa, num compacto que foi dividido com uma versão em italiano de País Tropical. As outras faixas teriam sido gravadas nos estúdios da Odeon no Rio de Janeiro, conforme indicam os registros, no primeiro semestre de 1970, após a chegada de Simonal da Europa. De acordo com depoimento de Wilson Simoninha9 e os comentários da contracapa original do LP, os arranjos que entraram para o álbum México 70 compunham, provavelmente, os shows de enorme sucesso que o cantor emplacou ao longo de três meses, os quais antecederam e se firmaram durante a Copa do México.

No Brasil, durante o entusiasmo da imprensa com a Copa, um compacto duplo contendo quatro das músicas do álbum México 70 (Kiki, As menininhas de Leblon, Aqui é o País do Futebol e Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda) foi produzido, segundo Max de Castro, com a intenção de:

“[segurar], talvez, o lançamento de um álbum para a volta do artista ao Brasil. Com o êxito da seleção e de Simonal, a Odeon mexicana se adiantou e editou por lá um álbum inédito chamado México 70, logo após a Copa”10.

Simonal, nesses anos que compreendem 1968 a 1970, manteve uma média de trinta apresentações mensais.

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Seu sucesso comercial no Brasil ultrapassava os limites do mercado musical, associando-se também ao consumo de outros bens materiais e simbólicos. E em contato com Herb Alpert, sócio da A&M Records, empresa responsável pela projeção internacional de Sérgio Mendes, a carreira internacional de Simonal se mostrava num caminho promissor (ALEXANDRE, 2009).

Podemos afirmar que o repertório e os arranjos desse álbum refletem com bastante sintonia os argumentos de Eduardo VICENTE (2008) sobre produção, consumo e segmentação do mercado fonográfico no Brasil. O repertório internacional que, entre 1965 e 1967 centrava-se nas produções em espanhol, italiano e francês, e que, a partir 1970, tendeu ao inglês, está presente numa representativa configuração em México 70: uma música em espanhol, uma em italiano e três em inglês. Dentro dessa segmentação, nota-se ainda a crescente importância de músicas de trilhas sonoras de filmes e musicais no mercado, que no álbum de Simonal são quatro. A bossa nova, segmento especialmente forte até 1965, começa a dividir espaço no mercado fonográfico com arranjos que remetem a outros estilos de samba, apesar da presença marcante no disco de um arranjo sambajazz de Garota de Ipanema.

Os gêneros norte-americanos de sucesso como o soul e o funk, que se tornariam um importante segmento a partir de 1971, já estão incorporados em várias faixas (o que na expressão de Simonal seria o “samba soul”). Concomitantemente às tendências que emergiam através da segmentação do mercado fonográfico, podemos notar um ecletismo presente nos arranjos de cada faixa do disco. Diante disso, pretendemos investigar detalhadamente, mais adiante, como fatores externos da produção do disco se articulam ao conteúdo estético-musical do álbum.

4 - Conflitos simbólicos presentes na música popular brasileira dos anos de 1970Quatro línguas cantadas num mesmo disco, misturas de gêneros, arranjos de temas internacionais e a incorporação de elementos estrangeiros podem estar relacionados àquilo que Renato ORTIZ (2001) apontou, mesmo não se referindo especificamente à música (mas à cultura, de maneira ampla), como substituição do caráter nacional-popular pelo internacional-popular no campo cultural na década de 1970. Mas não deixamos de notar, como Rita MORELLI (2008) o fez, que a aplicabilidade dos conceitos de Ortiz à música popular brasileira referente a essa substituição não se concretiza na década de 1970, já que se percebe ainda, majoritariamente, pelo menos até a década de 1990, uma expressiva produção musical orientada e estruturada por referências nacionais.

Sobre o contexto que marca a passagem dos anos de 1960 para os anos de 1970, Luiz Tatit afirma, além da polarização entre nacional e internacional, que:

Configurou-se a ideia de que a canção brasileira se alimenta de todas as dicções musicais circulantes no país, sejam elas provenientes de outras culturas, de outros tempos, do mercado de consumo, das correntes de vanguarda, do mundo “brega”, dos mais diferentes gêneros rítmicos, e de que, em princípio, nada deveria ser excluído (TATIT, 2005, p.121).

Dentro dessa noção ainda “vingou na música popular dos anos 70 a música sem fronteiras rítmicas, históricas, geográficas e ideológicas”11 (TATIT, 2005, p.121).

Restringindo-se ao que considera MPB e trabalhando sob conceitos dicotômicos, Marcos NAPOLITANO (2005, p.126) afirma que dentro das várias conotações que abarcam o que é MPB, há uma noção de que seu conceito é “inseparável de uma cultura política marcada pelo chamado ‘nacional-popular’ de esquerda”, que esteve dentro de um campo de tensão ao longo da década de 1960, e que tentou equilibrar uma MPB moderna dentro daquilo que fosse ao mesmo tempo nacional e cosmopolita, lidando com dilemas da modernização capitalista dos anos de 1960 e 1970, tais como: tradição e ruptura, engajamento e vanguarda, populismo e revolução, folclore e erudição, cultura popular e indústria cultural. O historiador afirma também que, especificamente no que tange à MPB dos anos de 1960 e 1970, esses dilemas se faziam “presentes no próprio material estético das canções e não apenas no contexto sociológico que elas, como se diz corriqueiramente, ‘refletiriam’”. E conclui: “Na minha opinião, mais do que ‘espelho’ que reflete algo, a música (e a cultura como um todo) é o caleidoscópio pelo qual o objeto visado (a ‘realidade social’) se dinamiza e se reconfigura” (NAPOLITANO, 2005, p.127).

Com interesse nesse chamado “material estético das canções” a que se refere Napolitano quando discorre sobre MPB, que não apenas reflete, mas que revela e interage com aspectos das configurações sociais e culturais, analisamos alguns elementos dos arranjos das canções que compõem o álbum México 70 que, como afirmado, estão em grande sintonia com a segmentação da indústria fonográfica nos entornos de 1970, a fim de compreendermos como esses conflitos simbólicos sinalizados pelos autores acima citados podem se mostrar num âmbito mais estrutural das músicas.

5 – Apontamentos analíticos do repertório Abaixo sistematizamos uma análise musical sintética tendo em vista a problemática exposta acima, para mais adiante retomarmos a discussão. As faixas seguem a ordem do disco.

1) Aqui é o País do Futebol – composta por Milton Nascimento e Fernando Brant como parte da trilha sonora de um documentário lançado em 1970, antes da Copa, sobre o jogador da seleção brasileira Tostão. No arranjo do álbum, a música é um samba de “segunda geração”, de acordo com critérios de classificação de Eduardo VICENTE (2008). Esse estilo de samba se pauta

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por uma vocação mais pop e urbana, à qual os nomes de Wilson Simonal e Jorge Ben se atrelam fortemente. Tais produções se mantiveram associadas à nomenclatura “samba-rock”, que, dentro da segmentação da indústria fonográfica, ganhou importância a partir de meados da década de 1960, principalmente a partir de 1967. Segundo Vicente, Wilson Simonal e a Turma da Pilantragem foram importantes artistas desse segmento, no que diz respeito ao consumo fonográfico entre 1965 e 1970.

Apesar de ser encarada como um “sambão”, como certos trechos da letra da própria canção enfatizam (“Olha o sambão, aqui é o país do futebol”), pode-se notar no arranjo a presença de elementos de gêneros internacionais, como a levada funky da guitarra elétrica e a condução das convenções ritmo-melódicas dos sopros num modelo próximo aos arranjos de canções soul e funk da década de 1960 e 1970. Ou seja, em linhas gerais o samba, tomado como autêntica manifestação da cultura brasileira estava, nesse caso, permeado de elementos recorrentes da música internacional. Contudo, o imperativo samba é o que se mostra mais vigorante e estruturante, e pode ser identificado no desenho rítmico do contrabaixo, realizado em padrões regulares de colcheia pontuada e semicolcheia e apoiado pela condução rítmica da bateria, como também, nas intervenções do coro vocal e naipe de sopros.

2) Raindrops Keep Falling On My Head – canção produzida para a trilha sonora do filme Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969). Estourou nas paradas de sucesso de vários países entre 1969 e 1970, como nos indicam alguns rankings deste período, entre eles: Canadian RPM adult contemporany, French Singles Chart, Italian Singles Chart, UK singles chart, U.S. Billboard hot 100 e U.S. Billboard adult contemporany. Para VICENTE (2008), o repertório internacional teve, nos anos 1970, um dos melhores períodos de vendagem no mercado brasileiro. Dentro desse segmento estão incluídos, além das coletâneas de artistas nacionais e internacionais que cantavam inglês, as trilhas sonoras de filmes e de musicais importados.

O arranjo presente na gravação é o que se convenciona chamar de estilo shuffle, que remete diretamente ao jazz e ao blues cantado e a uma condução rítmica que enfatiza os segundo e o quarto tempo, considerando-se um compasso quaternário. Em contraste com a primeira faixa do disco, na qual o samba, apesar de se mostrar vigoroso, aparece permeado de detalhamentos estilísticos advindos de outros gêneros, Raindrops Keep Falling On My Head, mesmo mantendo firme sua estética shuffle, sofre uma inserção abrupta de um interlúdio instrumental em samba-rock12. Há aí uma certa inversão entre os guias estruturais da primeira e da segunda música do álbum. Se na primeira o samba (nacional) cedia espaço ao internacional, na segunda, o internacional cede espaço ao samba.

3) Kiki – canção composta por Nunato Buzar e Wilson Simonal. O arranjo dessa música se assemelha a muitos outros da época da pilantragem, que possuíam uma

sonoridade pop influenciada por gêneros internacionais. Como afirma Carlos Imperial, os arranjos da pilantragem são mais “soltos”, dançantes e swingados. Na análise de Gonçalves, uma das características principais desse estilo “estava na maneira de tocar o samba – em compasso quaternário em vez de binário – inspirado no rock e no soul norte-americanos” (GONÇALVES, 2011, p.37). O soul13 teve enorme projeção internacional na década de 1960 e penetrou com maior intensidade no mercado musical brasileiro na década de 1970 (incluindo-se aqui também o funk), mais especificamente a partir de 1971, influenciando carreiras brasileiras de sucesso como a do cantor Tim Maia.

Interessante notar como Vicente observa a assimilação desses gêneros importados no Brasil:

Tentei reunir nessa categoria [soul/ funk/ rap] aqueles cujas obras se ligam à música negra norte-americana. Trata-se de um grupo de artistas que, tal qual os do rock, encontram no que é mundializado seu primeiro referencial e, se chegam a dialogar com a tradição musical nacional, fazem-no a partir dessa base, e não o contrário. (VICENTE, 2008, p.119)

Tanto Gonçalves como Vicente, apesar de tomarem como ponto de partida referenciais distintos em relação à incorporação desses gêneros estrangeiros no Brasil, mostram como se fazia presente a articulação entre o nacional e o internacional nas estruturas internas de expressiva produção musical da época, independentemente de qual desses elementos se mostrava mais imperativo.

Percebe-se também na gravação dessa faixa um ritmo “abolerado” e a presença de sopros com intervenções em frases melódicas comuns ao jazz. Há instrumentos de percussão da música popular afro-cubana num primeiro plano que, acrescidos de levadas ao piano, acentuam um balanço latino-americano. No arranjo dessa música transparece um caldeirão de elementos nacionais e internacionais que resulta numa mistura de ritmos e sonoridades de difícil classificação.

4) Ave Maria no Morro – uma regravação no estilo samba soul da composição de Herivelto Martins de 1942. Apesar dos arranjos da pilantragem, como mencionamos anteriormente, já lidarem com o soul, em Ave Maria no Morro notamos uma maior presença e maior similaridade da música com esse gênero norte-americano que começaria a ganhar importância no Brasil na década de 1970: os elementos que se ligam ao soul e funk no arranjo estão mais evidentes, principalmente na levada de bateria e baixo.

Outros recursos podem ser observados como a utilização dos sopros em staccato, a forma de acompanhamento dos coros e os riffs de piano, que remetem ao gospel norte-americano e revitalizam o significado religioso da letra – “E o morro inteiro/ no fim do dia/ reza uma prece/ Ave Maria”; “E quando o morro escurece/ elevo a Deus uma prece”.

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5) I’ll Never Fall In Love Again – canção que faz parte da trilha sonora produzida para o musical Promises, Promises (1968), e que ganhou o Grammy de melhor música de 1969. Na versão de Simonal se torna um samba soul. Distintamente da faixa anterior, na qual o viés soul se encontra no horizonte do gospel, em I’ll Never Fall In Love Again se nota um toque mais voltado para o funk e o blues, especialmente na interação entre os sopros com a levada da bateria e do contrabaixo nos interlúdios instrumentais. Entretanto, é interessante observar as diferentes conduções e mudanças de instrumentação nas partes cantadas, que não seguem uma levada funk necessariamente, mas de certa forma se localizam dentro de gêneros internacionais originários da black music. A base harmônica também segue cadências de acordes dominantes comum ao blues, e o canto por vezes enfatiza, através de uma inflexão bluesy, a palavra “again”, acentuando o significado principal da letra, baseado na desilusão amorosa.

É importante apontar como existe uma distinção clara no arranjo entre as seções que antecedem e sucedem a parte cantada, no que diz respeito à mudança de estilos baseados em ritmos do blues, do rock e do funk.

6) Crioula – canção de autoria de Jorge Ben. Na versão do álbum, logo na introdução, são misturados ritmos de origem afro-brasileira, como o toque de candomblé, com riffs, aparentemente improvisados, de piano e flauta, e que remetem à soul music. Outro procedimento de procedência africana é a polirritmia criada entre o ritmo da melodia, que sustenta uma das frases principais da música (“Uma linda dama negra”) com a base.

A condução rítmica que apóia a melodia principal persiste com elementos afro-brasileiros e se misturam, em determinado trecho da gravação, com uma levada de baião executada pelo contrabaixo. O desfecho da música incorpora uma expressão blues tanto nas inflexões da voz, como no toque do piano.

7) Que Pena – música de autoria de Jorge Ben, datada de 1969. Na versão de Simonal compartilha muitas semelhanças com o arranjo de Aqui é o País do Futebol. Todavia sua estrutura é mais voltada para o samba, ou seja, os acentos no segundo tempo (considerando um compasso de dois tempos) são mais nítidos na elaboração do arranjo, principalmente se observarmos a levada da bateria e do contrabaixo. A sustentação harmônica é reforçada pelo naipe de sopros sincopados que acrescentam balanço ao ritmo do samba e participam das diversas convenções rítmicas.

8) O medley Aquarius / The Flesh Failures, tal como I’ll Never Fall In Love Again, foi composto para um musical (no caso o musical rock Hair de 1968). A primeira parte da música foi “abrasileirada”14 e a concepção do arranjo é muito parecida com a da faixa anterior, mas com a distinção de uma levada, nas introduções, em ritmo

de samba-rock. Na primeira parte, a letra, original em inglês, é cantada em espanhol. De certa forma, aí, se juntam dois elementos de universos distintos: o samba, brasileiro, e a língua espanhola, que remete ao universo latino-americano. A segunda parte The Flesh Failures é, por outro lado, cantada em português. Entretanto, o que se nota agora é presença de uma grande mescla de diferentes elementos musicais, que circundam entre o ritmo da marcha, vocalização gospel, piano “salseado” e bateria com levada de rock.

9) Garota de Ipanema – canção emblemática da bossa nova de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, gravada em 1962. Nesta releitura, o arranjo se aproxima de uma estética mais estridente oriunda do sambajazz, revelada na introdução formada por naipes de metais e madeiras em bloco tocados com grande intensidade. Apesar de a bossa nova se constituir como símbolos de “bom gosto” e refinamento musical, Vicente aponta que sua presença diminuiu no mercado de consumo a partir de meados da década de 1960, cedendo lugar ao samba e a gêneros internacionalizados. Diante desse panorama, nota-se como as configurações e escolhas dos arranjos do álbum estavam sintonizadas com tendências musicais decorrentes da segmentação do mercado e consumo fonográfico.

Observa-se no arranjo, a forte presença do samba e do jazz. Ao longo da música, a separação auditiva desses dois gêneros se faz perceptível, apesar de, em certos trechos, o samba incorporar traços estilísticos do jazz como a improvisação de novas melodias instrumentais sobre o pano de fundo harmônico realizado pelo naipe de sopros. Em outras palavras, é como se os dois domínios se relacionassem na música paralelamente, o que permite o reconhecimento de musicalidades presentes em cada estética.

10) Ecco Il Tipo (Che Io Cercavo) – música italiana composta por Tristano, Simoni e Pontiack em 1970. Esse fonograma é outro exemplo no qual ocorre intercâmbios de estilos e estéticas. Possui uma sonoridade próxima à da pilantragem, recheada com intervenções do naipe de sopros e uma base rítmica abrasileirada na primeira parte, que se reconfigura numa levada pop com influência do shuffle em alguns trechos.

11) As menininhas do Leblon – música de autoria de Silvio Cesar, feita em 1970, uma possível sátira com Garota de Ipanema, que ilustra, através da letra, como gêneros internacionais estão mais em voga que a bossa nova (“Ipanema não dá mais pé/ o Leblon agora é que é/ que me desculpe o amigo Tom/ Garota de Ipanema já era hein/ agora é Menininhas do Leblon”; “sua discoteca é demais/ lá não entra disco pra trás/ muito swing muito som/ olha aí bonequinha/ no gogó/ Menininhas do Leblon”).

A sonoridade da base e do arranjo se baseia no funk e no soul norte-americano, possuindo grande similaridade com algumas gravações de James Brown. Entre esses recursos, temos a modulação brusca da parte cantada

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para interlúdios instrumentais estruturados por naipes de sopros estridentes e a levada da seção rítmica bem característica do gênero do funk.

12) Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda – canção composta por Lamartine Babo e Francisco Mattoso em 1941. Na versão de Simonal a canção é adaptada para um arranjo em jazz-waltz, com destaque para o acompanhamento de naipes de sopros e um contraponto de violino.

6 - Algumas consideraçõesApós uma análise abrangente sobre as estruturas musicais dos arranjos de cada faixa do disco, confrontamos nossas conclusões parciais com os estudos de Ortiz, Morelli, Napolitano e Tatit sobre a década de 1970.

Como detalhado, a grande mistura de estilos e sonoridades de gêneros nacionais e internacionais presentes no álbum México 70 aponta para a presença de elementos que podem ser associados a uma cultura nacional-popular imbricados com outros internacionalizados, o que permite inferir a impossibilidade de uma substituição abrupta dessas referências nas estruturas constitutivas de nosso objeto de estudo. Por outro lado, é notável a compatibilidade de concepções musicais do álbum com tendências que se constituíam dentro da segmentação do mercado fonográfico. Entre elas, alguns elementos vinculados a uma noção de exterioridade ou internacionalidade, ou seja, identificados como pertencentes à cultura de outros países ou a uma música de padrão internacional (estandardizada). O que está completamente vinculado ao momento de consolidação do mercado de consumo no Brasil e ao processo de internacionalização do capital, que foi guiado por diretrizes político-econômicas do governo brasileiro – num dos períodos mais severos da ditadura –, e que abriram e aumentaram as relações com outros países, pelo menos no que diz respeito à circulação de mercadorias.

Entretanto, vale clarificar alguns pontos que nos parecem essenciais, no que diz respeito ao âmbito da estrutura musical, à diferença de uma música de padrão internacional daquela permeada por elementos internacionais. Nesse sentido, recorremos à noção de fricção de musicalidades desenvolvida por Acácio PIEDADE (2011). Para o pesquisador, musicalidade é aquilo que se conforma como um conjunto de elementos musicais e simbólicos compartilhados por uma comunidade de pessoas. Sobre as origens do conceito de fricção, Piedade se baseia em estudos de antropologia que utilizam o termo:

Cardoso de Oliveira desenvolveu este conceito a partir dos anos 60, para dar conta da relação entre sociedades indígena e a sociedade brasileira, que ele via como conflituosa. O conflito, inerente à situação de fricção interétnica, se explica pelos interesses diversos das sociedades em contato, sua vinculação irreversível e interdependência, e pela situação de domínio e submissão ali engendrada. Neste conceito, Cardoso de Oliveira se afasta da ideia de transmissão, aculturação ou assimilação,

ligadas ao paradigma culturalista anterior, desenvolvido principalmente por Darcy Ribeiro (1970). O enfoque passa, da mudança cultural, para a interação continuada entre duas sociedades, que formam um sistema intersocietário que exibe, em seu cerne, uma desigualdade (PIEDADE, 2011, p.199).

Piedade cria, então, a expressão fricção de musicalidades a partir da observação de que há situações nas quais as musicalidades dialogam, mas não se misturam, permanecendo fronteiras musical-simbólicas que insistem em afirmar as diferenças em vez de uma síntese entre as musicalidades.

O discurso dos músicos, críticos e apreciadores fala de fusão, sincretismo, mistura, influência. Estas noções somente fazem sentido através da distinção que lhes é implícita: o “novo” gênero “absorve” uma musicalidade outra que, no entanto, mantêm-se distinta justamente porque é percebida (PIEDADE, 2011, p.201).

Apesar de tais noções haverem sido empregadas por Piedade em relação a uma música instrumental brasileira, parece-nos, mesmo tratando-se dos arranjos da canção, que elas se mostram mais interessantes para esclarecer e ampliar o horizonte das configurações musicais que as concepções dicotômicas, como nacional-popular e internacional-popular ou nacional e cosmopolita. Esses modelos são comumente utilizados para entender, de maneira ampla, a música popular brasileira dos anos 1960 e 1970, mas que de certa forma acabam ficando aquém da estrutura musical propriamente dita.

Com as análises musicais que fizemos, tais dicotomias, apesar de serem importantes parâmetros num horizonte amplo, não parecem dar conta das especificidades das elaborações dos arranjos musicais, nos quais não se nega a presença do internacional, mas que tampouco se configuram como um padrão internacional. Revelam assim, um campo de disputas no qual o nacional e o internacional, entre outros embates, se relacionam para além dos conceitos de fusão e mistura, e o material estético de cada canção, em vez de “refletir” mecanicamente o contexto sócio-político, traduz ambiguamente esses dilemas através do diálogo conflituoso entre as diversas musicalidades.

Para além do nosso objeto de estudo, cabe-nos lançar, como hipótese, que tais ideias, principalmente a que aponta uma diferença marcante entre música de padrão internacional e música permeada por elementos internacionais, podem oferecer uma contribuição para se pensar a música popular brasileira no período de fins da década de 1960 e princípios da década de 1970, que se constituiu dentro do processo de internacionalização da cultura. Contudo, nossa investigação ainda carece de aprofundamento e extensão para tentar compreender até que ponto os arranjos e a sonoridade dos discos da década de 1970 condensaram em suas dimensões internas questões pertinentes ao andamento histórico no qual estavam inseridos.

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Discografia Wilson Simonal – México 70. Odeon, 1970.

FilmografiaSIMONAL - ninguém sabe o duro que dei. Direção de Calvito LEAL, Cláudio MANOEL e Micael LANGER. Rio de Janeiro:

Biscoito Fino Brasil, 2009. DVD

Notas1 Tal falta pode se justificar pelo fato do álbum ter sido somente relançado no ano de 2010. À época do lançamento do Box da Odeon, os produtores

do projeto, Max de Castro e Wilson Simoninha podem não ter se dado conta da existência do disco México 702 Discutiremos posteriormente essa vertente do samba.3 Essa música, além de integrar o repertório dos shows de Simonal no ano de 1967, fez parte, no mesmo ano, de um compacto simples, um duplo e

do álbum Show em Simonal, todos produzidos pela Odeon.4 Essa consideração de Eloá Gonçalves é baseada em: SHUKER, Roy. Vocabulário de música pop. São Paulo: Ed. Hedra, 1999. p.35.5 Conferir o texto “Nascimento, Mudanças e Apogeu da Pilantragem de Carlos Imperial”, contido no encarte do LP Pilantrália – Carlos Imperial e a

Turma da Pilantragem, de 1968.6 A relação entre Simonal, Pelé, dom e mito foi trabalhada noartigo: CHAVES, R. P. País Tropical e seu mimetismo: o discurso ufanista associado a

Wilson Simonal e a desinvenção tropicalista. In: Revista de Ciências Humanas, v. 44, n. 2, Florianópolis: UFSC, 2010.7 Conferir em: <http://www.billboard.com/bbcom/specials/hot100/charts/top100-titles-90.shtml>. Acesso em fev. 20128 Conferir em: <http://emi.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=192:wilson-simonal-mexico-70&catid=11:produtos&Item

id=48>. Acesso em fev. 2012.9 Idem.10 Idem.11 Embora as fronteiras entre gêneros, estilos e ideologias não sejam rígidas no disco México 70, vale frisar que essa afirmação de Tatit parece

desconsiderar uma parcela da produção musical dos anos 1970 que se voltou para regionalismos (como o samba “das comunidades” de Martinho da Vila e Candeia), e outra que persistiu com uma posição ideológica crítica (como Chico Buarque).

12 Interessante notar que na versão original, veiculada no formato audiovisual no filme Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), há também uma quebra abrupta da canção, com fins narrativos na sequência de “amor” de Butch (Paul Newman) e Etta Place (Katharine Ross). Fora do contexto

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CHAVES, R. P.; VISCONTI, E. de L. Wilson Simonal em campo: reflexões sobre o álbum México 70. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.222-230.

narrativo do filme, é evidente que essa quebra foi tomada como parte constituinte da canção, sendo transformada num interlúdio.13 Cabe aqui delimitar alguns sentidos do termo soul: acreditamos que o uso do termo soul remonta a uma música que compartilha estruturas

provindas do gospel, do blues e do jazz, e que começou a se consolidar como gênero musical a partir da década de 1950 e 1960. Também influenciou os gêneros do funk e da disco music dos anos de 1970 e 1980. Sua origem é norte-americana e teve uma vinculação com movimentos de afirmação de minorias, em especial, da emancipação do negro e sua luta por direitos civis.

14 Originalmente o arranjo se caracteriza como rock.

Renan Paiva Chaves é Graduando em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas. Em 2010, participou como bolsista do convênio entre a UNICAMP e a Universidad Nacional del Litoral, onde desenvolveu pesquisas sobre a música popular e folclórica argentina. Foi bolsista de iniciação científica pela FAPESP na área de trilhas sonoras para cinema e possui artigo publicado na Revista de Ciências Humanas da UFSC e na Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia da UERJ.

Eduardo de Lima Visconti é Bacharel em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mestre e Doutor em Música (UNICAMP). Desenvolve pesquisas nos seguintes temas: etnomusicologia, música popular, musicologia, ideologia, identidade cultural, análise musical, arranjo, improvisação, harmonia, guitarra e violão. Foi professor temporário durante 5 anos (2007-2012) de Guitarra elétrica (I-VIII) e Prática de Conjunto (I-VIII) na graduação em música popular da UNICAMP. Participou, em julho de 2012, como professor de guitarra/violão e improvisação na música popular no IX Festival de Música em Ibiapaba no Ceará. Atualmente, iniciou pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB -USP) sobre arranjo e sonoridade no samba da década de 1970, com supervisão do prof. Dr. Walter Garcia e bolsa de pós-doutorado júnior do CNPq.Tem se apresentado regularmente com seu trio e quarteto no Brasil e no exterior.

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COUTO, A. C. N. do. O ensino de teclado em grupo na universidade... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.231-238.

Recebido em: 24/08/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

O ensino de teclado em grupo na universidade e o uso do repertório popular: aprendizagem através de práticas híbridas

Ana Carolina Nunes do Couto (UFPE, Recife, PE)[email protected]

Resumo: Este artigo apresenta algumas atividades realizadas em aulas de teclado em grupo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) de acordo com uma abordagem que integra práticas deliberadas (SANTIAGO, 2006) e práticas informais de aprendizagem musical (GREEN, 2001; 2008). As práticas informais de aprendizagem musical são típicas do processo de aquisição de habilidades e conhecimentos por músicos populares, enquanto que a prática deliberada originalmente advém do contexto da aprendizagem do repertório da chamada música de concerto. Nesse estudo, a prática deliberada é utilizada como parte integral da aprendizagem do repertório instrumental popular. São apresentadas quatro músicas de níveis específicos dentro da disciplina ministrada, seguido da descrição de como o trabalho se desenvolve.

Palavras-chave: ensino de teclado na música popular; aprendizagem em grupo; abordagem híbrida no ensino da música.

Keyboard group teaching at the university and the popular repertoire: learning through hybrid practices

Abstract: This article presents examples of activities conducted in keyboard group classes in Brazil at Federal University of Pernambuco (UFPE), according to a hybrid approach that integrates deliberated practice (SANTIAGO, 2006) and informal learning practices (GREEN, 2001; 2008). The informal learning practice is a typical process of acquiring skills and knowledge by popular musicians, while deliberate practice generally comes from learning music in the classical context. In this study deliberate practice is used as an integral part of popular instrumental music learning. Four songs of specific teaching levels are presented, followed by a description of its working process.

Keywords: keyboard teaching in popular music; group learning; hybrid approach in music teaching.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1. IntroduçãoA disciplina “Instrumento Auxiliar – Teclado” faz parte da grade curricular do curso de licenciatura em Música da UFPE, local onde atuo como docente, e possui duração de quatro semestres. Tendo como ementa “o desenvolvimento de habilidades funcionais pela prática ao teclado de estudos e peças adequadas”, esta disciplina objetiva capacitar o futuro professor de Música a desenvolver suas habilidades técnicas nesse instrumento, visando sua utilização pedagógica de forma expressiva e criativa em sala de aula, principalmente no contexto da escola regular. Nesse sentido se insere o conceito de “instrumento auxiliar”, expresso em seu título.

No entanto, o conteúdo e a forma de trabalhá-lo podem variar de acordo com as linhas pedagógicas adotadas por cada docente. Este artigo pretende

apresentar algumas dessas linhas escolhidas para o desenvolvimento do atual trabalho desta disciplina junto aos alunos, bem como os critérios para tal escolha. Em seguida, apresentaremos exemplos da aplicação de tais conceitos através de práticas pedagógicas realizadas com o repertório que integra as aulas. Apesar de este repertório incluir peças oriundas de variados gêneros e estilos musicais, recortamos o trabalho desenvolvido a partir da utilização do repertório que faz parte da música popular. Esta opção de recorte se faz pela necessidade de focalizar determinados princípios pedagógicos presentes na fundamentação teórica que orienta tais procedimentos, no intuito de apresentar uma possibilidade de abordagem que integre práticas originárias de contextos distintos, mas que no presente trabalho são utilizadas como complementares.

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COUTO, A. C. N. do. O ensino de teclado em grupo na universidade... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.231-238.

2. Embasamento teóricoExistem duas práticas distintas que integram a pedagogia utilizada nas aulas de “Instrumento Auxiliar – Teclado”: as chamadas prática deliberada e prática informal. Distintas, a princípio, por advirem de contextos também distintos – a primeira oriunda da prática com o repertório erudito, e a segunda do repertório dito popular – elas aparecem no atual contexto como práticas que se complementam. Além disso, cada uma destas práticas proporciona o desenvolvimento de habilidades musicais e técnicas específicas, mas que são de fundamental importância para o instrumentista que necessita adquirir um perfil mais versátil para a atuação em diferentes contextos. Um último, contudo igualmente importante elemento integrante do embasamento teórico deste trabalho, se refere aos aspectos do ensino coletivo de instrumentos. Serão apresentados alguns conceitos de educadores sobre as características da aprendizagem nesse tipo de aula, bem como as habilidades que ela pode desenvolver.

2.1 A prática deliberada Segundo SANTIAGO (2006, p.53), “a prática deliberada constitui-se de um conjunto de atividades e estratégias de estudo, cuidadosamente planejadas, que têm como objetivo ajudar o indivíduo a superar suas fragilidades e melhorar sua performance”. Esta prática vem sendo estudada por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, que buscam verificar sua eficácia para a aquisição de alto nível de performance em áreas como a musical, o xadrez, diferentes tipos de esportes, etc. (SANTIAGO, 2006, p.53).

Na música, mais especificamente na aprendizagem instrumental, podemos listar as seguintes estratégias que caracterizam a prática deliberada, a partir do que encontramos em SANTIAGO (2006, p.54):

a) o uso do metrônomo b) o estudo rítmico da peça (tanto o estudo para a

compreensão dos elementos rítmicos e da maneira em que foram combinados na peça, quanto da aplicação de diferentes variações rítmicas de determinados trechos visando melhorar acentuações, adquirir velocidade, precisão, etc.)

c) a análise prévia da obra a ser estudadad) o estudo repetido de pequenos trechos da peçae) o estudo silencioso e o estudo mental da peçaf) o estudo lento, com aumento gradual do andamentog) a identificação e correção de errosh) a verbalização de ordens durante o estudo i) a marcação do dedilhado na partitura.

A aplicação de tais estratégias permite um estudo mais consciente das peças musicais. Isto pode favorecer a aquisição de habilidades como a agilidade, a precisão rítmica, melhora no controle de dinâmicas e fraseados, e da memória. No caso desta última, especificamente, alguns autores chamam a atenção para o cuidado de se trabalhar por igual as diferentes memórias: a visual, que é baseada naquilo que se vê, tal como a partitura,

as posições das mãos, braços, etc.; a auditiva, que se baseia naquilo que se ouve; a memória cinestésica, que é a memória dos movimentos, adquirida através de repetições de movimentos, e estreitamente ligada à sensações motoras; e a memória lógica ou racional, que ajuda a firmar o significado e a estrutura da composição (KAPLAN, 1987, p.69-70; LILLIESTAM, 1995, p.201-202; PRIEST, 1993, p.109-110).

2.2 A prática informalO termo “práticas informais de aprendizagem musical”1 foi trazido por GREEN (2001, p.5), que investigou a maneira como os músicos populares aprendem em contextos considerados informais. Segundo essa autora, essas práticas englobam aspectos como: a forma de escolha do repertório, que é diretamente ligada a músicas que sejam muito conhecidas e em relação às quais se tenha grande afetividade, e as práticas aurais, como o tirar de ouvido músicas de gravações. Também há o fato de a aprendizagem acontecer em grupos, de maneira consciente ou inconsciente, através da interação com parentes, colegas e outros músicos que atuam sem a função formal de um professor. Também, como aspecto diretamente ligado ao aprendizado de músicos populares, existe a integração entre as ações de compor, tocar e ouvir, com grande ênfase na criatividade.

As habilidades adquiridas através do uso destas práticas se mostram distintas daquelas adquiridas pela prática deliberada, descrita anteriormente, mas que são de igual importância para o músico instrumentista. As mais evidentes parecem ser as habilidades para tocar de ouvido, para improvisar e para a execução em grupo. Segundo GREEN (2008, p.4), tais habilidades foram negligenciadas dentro do ensino musical formal durante muito tempo. A autora compreende que o uso das práticas informais dentro da aprendizagem musical em sala de aula pode ser uma atitude inclusiva, por possibilitar que as habilidades daqueles alunos que possuem vivência com a música popular estejam presentes no desenvolvimento dos conteúdos abordados, permitindo desta maneira que eles também se expressem musicalmente.

Mais específicamente para o estudo instrumental, SANTIAGO (2006) afirma que o uso das práticas informais

... pode ser relevante para o pleno desenvolvimento de outros processos essenciais ao aprendizado musical, tais como a familiarização com diferentes linguagens e estilos musicais e o desenvolvimento da memória. Ela também pode servir como elemento catalisador do processo de compreensão e maturação musical. A composição e improvisação são ainda consideradas como relevantes para a aquisição de conhecimento musical e de habilidades especificamente instrumentais, tais como o desenvolvimento de habilidades técnicas (SANTIAGO, 2006, p.57).

2.3 A aprendizagem instrumental em grupoO ensino coletivo de instrumentos é uma atividade que transcende o treino para a aquisição de elementos e habilidades musicais. Diversas habilidades extra musicais emergem a partir das aulas coletivas e, quando bem

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orientadas, podem favorecer um ambiente satisfatório não só à aprendizagem instrumental, mas também ao desenvolvimento de outras habilidades adquiridas unicamente através da interação em grupo.

Para GREEN (2008, p.120), na aprendizagem informal costumam ocorrer dois aspectos da aprendizagem em grupo. Primeiro, existe o que esta autora denomina de “aprendizagem no grupo”. Essa aprendizagem acontece de maneira mais inconsciente ou mesmo acidentalmente, “sem querer”, pelo simples fato de se estar fazendo parte de um grupo. Isso se dá não só durante o próprio fazer musical, mas também pela observação do que os colegas estão fazendo, ouvindo e imitando. Também se aprende antes e depois do fazer musical, quando se discute e se decide o que irá ser feito, ou se avalia o que já foi feito. Esse tipo de experiência tende a conduzir a uma gradual melhora do produto musical.

Segundo, existe o aspecto da aprendizagem em grupo conhecido como “aprendizagem dirigida por um colega”. Isso ocorre quando um colega ensina diretamente, falando ou demonstrando. A autora diz que costuma surgir naturalmente um líder nessas situações. Também costuma ocorrer o desenvolvimento de um espírito de cooperação entre os participantes (GREEN, 2008, p.127), assim como também o desenvolvimento da capacidade de integrar os interesses individuais aos do coletivo (FONSECA; SANTIAGO, 1993). A linguagem que os colegas costumam usar é mais comum entre eles, e assim eles encontram diferentes formas de ensinar.

SWANWICK (1994, p.9-10) também lista uma série de benefícios proporcionados pela aprendizagem em aulas coletivas: julgamento crítico da execução dos outros; sensação de se apresentar em público; aprendizagem através da imitação e comparação; a escuta cuidadosa; observação perceptiva; estímulo pelos triunfos dos colegas e o reconhecimento de suas dificuldades; aprendizagem por observação indireta.

As aulas em grupo também são vistas como vantajosas por serem mais econômicas, dinâmicas, estimulantes e divertidas (GONÇALVES; MERHY, 1986, p.242; MONTANDON, 1995, p.75).

Vale ressaltar que todos os aspectos acima mencionados poderão ser contemplados numa aula coletiva de instrumentos, desde que ocorram em atividades devidamente orientadas. De acordo com CRUVINEL (2005, p.75), nesse tipo de aula a melhor técnica de trabalho é o estudo dirigido2, em oposição ao ensino explanatório e dissertativo. No formato dirigido, o professor assume uma postura semelhante a de um regente, dando ênfase à prática, distribuindo atividades entre todos os alunos simultaneamente, de maneira que todos estejam envolvidos nas atividades propostas. Além disso, a autora afirma que o professor de aulas coletivas de instrumento necessita possuir qualidades tais como carisma, habilidade

verbal, habilidade para perceber o momento ideal de permanecer ou não no mesmo exercício, organização do tempo da aula, etc. (CRUVINEL, 2005, p.74-77).

3. Exemplos de atividades desenvolvidas nas aulas de “Instrumento Auxiliar – Teclado” da UFPE, através da utilização do repertório composto por músicas popularesComo mencionado no início deste artigo, o repertório utilizado nas aulas integra peças oriundas tanto da literatura tradicional de piano, quanto de peças do folclore brasileiro, e também de músicas pertencentes ao cancioneiro popular estrangeiro e brasileiro. Neste último caso específico, pesquisas realizadas no próprio Departamento de Música da UFPE fornecem material pedagógico que possibilita a constante atualização do repertório utilizado (LIMA; COUTO, 2010). Vale ainda ressaltar que, embora o repertório utilizado transite entre o popular e o erudito, as abordagens utilizadas em sala de aula não se limitam a direcionar a prática deliberada para o estudo do repertório erudito, e a prática informal para o repertório popular. Mais do que isso, elas se integram e se complementam de maneira híbrida em ambos os repertórios, buscando uma aprendizagem mais integral do instrumento. A seguir serão apresentadas algumas atividades desenvolvidas em sala de aula, através de exemplos em que se utiliza o repertório composto por músicas populares, que buscam integrar as práticas descritas acima.

3.1 Atividades desenvolvidas em Teclado 1A música Asa Branca (Ex.1), pertencente ao cancioneiro popular brasileiro, é geralmente muito conhecida, o que proporciona a possibilidade de ser trabalhada também de ouvido, tanto a melodia quanto a harmonia. Sua extensão é de um Pentacorde Maior, delimitando o posicionamento da mão direita numa região fixa, eliminando assim a necessidade de deslocamento ou saltos, ação que no caso do instrumentista iniciante pode se tornar um obstáculo. Pelo fato de cada dedo da mão direita se posicionar sobre uma nota correspondente ao Pentacorde Maior, essa peça favorece a prática de exercícios de transposição, bastando, para isso, mudar de tonalidade, porém conservando o mesmo dedilhado.

Em sala de aula, costumam-se realizar as seguintes práticas:

1) Complete a melodia na pauta. Caso você não conheça esta música, pesquise e aprenda de ouvido a melodia e a harmonia.

2) Escolha uma harmonia, que pode ser a que você conhece, ou uma original, e escreva as cifras.

3) Crie um padrão rítmico de acompanhamento3. 4) Toque a quatro mãos: um aluno toca melodia em uníssono

usando as duas mãos, e outro aluno toca o padrão rítmico de acompanhamento.

5) Improvise sobre a estrutura harmônica. (COUTO, 2011a, p.16).

Nesta última atividade há a oportunidade de se trabalhar musicalmente a partir das condições técnico-motoras de cada um. De acordo com FRANÇA (2000), geralmente

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os alunos tendem a se expressar melhor musicalmente através de suas próprias criações, pois:

Ao executar suas próprias composições, eles estão tocando algo tecnicamente apropriado para seus dedos e expressando seu próprio pensamento musical, com suas formas, expressividade e significado: eles têm a oportunidade de ‘falar’ por eles mesmos’ (FRANÇA, 2000, p.58).

Os conteúdos trabalhados com esta peça são: Pentacorde Maior, tríades na posição fundamental, padrões rítmicos de acompanhamento, leitura e escrita musicais, prática de tocar de ouvido, improvisação e criação musical, harmonização livre, automatismo do dedilhado.

3.2 Atividades desenvolvidas em Teclado 2A música O Trem Azul (Ex.2) pertence ao movimento musical Mineiro que ocorreu na década de 1970, conhecido como Clube da Esquina. A melodia desta canção é, em sua maioria, constituída pelas Sétimas de cada acorde. A exceção para essa construção é apenas o refrão. Por isso, ela é utilizada como ferramenta para memorização dos dois tipos de Sétimas abordados nesta fase da disciplina, as Sétimas menores e maiores, e suas formas de cifragem.

Esse tipo de partitura trazido para a aula contém poucas informações sobre melodia, andamento, divisões rítmicas, acentuações, dinâmicas, fraseados, a forma de realizar os encadeamentos dos acordes, dedilhado, etc. Segundo DUNBAR-HALL ; WEMYSS (2000, p.25), este tipo de partitura demanda diferentes formas de pensar sobre música. De acordo com esses autores, os estudantes necessitam conhecer as possibilidades técnicas de seus instrumentos e compreender as diferentes funções que cada instrumento desempenha num grupo musical, para serem capazes de tomar as decisões musicais mais adequadas ao tipo de performance desejada.

As seguintes atividades costumam ser realizadas em sala:

1. Ouça a gravação original desta peça2. Toque de ouvido a melodia3. A partir das cifras da partitura, estude e pesquise o

melhor encadeamento dos acordes. Após definido qual encadeamento será utilizado, estude sempre

do mesmo modo, para adquirir automatismo nos movimentos motores.

4. Crie um padrão rítmico de acompanhamento, e toque em dupla com um colega, alternando as funções entre quem faz a melodia e quem faz o acompanhamento

5. Procure realizar as intervenções rítmicas sugeridas pela gravação ouvida

6. Escreva a melodia na clave de Sol.

Os conteúdos trabalhados com esta peça são: apreciação musical, história da música popular brasileira, Sétimas maiores e menores, cifragem, prática de tocar de ouvido, prática de tocar em conjunto, escrita musical.

3.3 Atividades desenvolvidas em Teclado 3A peça escolhida para ilustrar algumas atividades desenvolvidas nesta etapa da disciplina é utilizada como aplicação prática de estudos de inversão de acordes que são praticados durante as aulas, e como sintetizadora de elementos técnicos e teóricos praticados em sala (Ex.3). Ela possibilita a visualização dos arpejos dos acordes correspondentes às cifras, em diferentes inversões, permitindo, a partir de sua análise prévia, uma performance mais consciente. Acredita-se também que tais aspectos favoreçam a memorização, permitindo que se transponha para diferentes tonalidades, aliando o raciocínio lógico adquirido pelo entendimento da construção da peça à habilidade de tocar de ouvido.

Atividades sugeridas:

1. Estude as inversões de cada acorde pertencente a harmonia desta peça.

2. Leia a partitura, analise a construção melódica, e anote as inversões utilizadas para sua construção.

3. Estude cada frase separadamente. Observe quais são as dificuldades de cada frase, sempre atento às ações motoras necessárias para vencer cada uma delas. Repita seus gestos musicais sempre de forma consciente, buscando memorizar cada movimento. Estude primeiramente com um andamento lento.

4. Depois de tocar a peça até que ela se torne familiar, procure transpor para outros tons, de ouvido.

Os conteúdos abordados nesta peça são: arpejos e inversões, encadeamento de acordes, baixo pedal, transposição.

Ex.1: Trechos da peça Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (c.1-17). Transcrição da autora (in: COUTO, 2011a, p.16)

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Ex.2: Peça O Trem Azul, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, em versão cifrada transcrita pela autora (in: COUTO 2011b, p.7)

Ex.3: Viagem, de João de Aquino e Paulo César Pinheiro (c.1-16). (in: CHEDIAK, 2004, p.166)

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Ex.4: Eleanor Rigby, de John Lennon e Paul McCartney (c.1-12) Transcrição e arranjo da autora. (in: COUTO, 2011c, p.19).

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3.4 Atividades desenvolvidas em Teclado 4A música ilustrada acima (Ex.4) foi arranjada para ser executada por quatro alunos. Contudo, é possível trabalhá-la com mais do que esta quantidade, e para isto basta dobrar as partes. Sugere-se a audição prévia da gravação original, orientando a percepção para as partes que foram transcritas na partitura utilizada em sala. Nesta etapa da disciplina vários elementos musicais, técnicos e teóricos já puderam ser estudados de uma maneira aplicada, visando proporcionar o pensamento autônomo dos estudantes em relação às atitudes necessárias para o desenvolvimento de suas performances. Por isso, o trabalho com peças arranjadas desta maneira também oportuniza a prática da regência, permitindo que os alunos se revezem na função de regente, demonstrando durante a organização dos “ensaios”, como eles compreendem a peça, qual estratégica de estudo é a melhor, quais partes do arranjo devem ser ressaltadas e de que maneira, etc.

Conteúdos: leitura musical das claves de Sol e de Fá, apreciação musical, análise, prática de conjunto, prática de regência.

4. ConclusãoAlunos dos cursos de licenciatura em Música, futuros professores de Música, necessitam dominar ao menos um instrumento de maneira criativa e expressiva para que dêem conta de atuar em sala de aula. O uso integrado das práticas deliberada e informal permite desenvolver, no contexto universitário, uma prática pedagógica híbrida, acolhendo de forma mais democrática as diferentes habilidades que os alunos trazem consigo para a sala de aula a partir de suas vivências musicais prévias, que são, quase sempre, diversificadas. O avanço em pesquisas nas áreas que envolvem a pedagogia do instrumento permite verificar que é possível utilizar distintas abordagens de maneira integrada e complementar, inclusive com o uso do repertório composto por músicas populares. A literatura específica sobre este tema já é bem vasta e de relativa facilidade de acesso. O professor que está à frente de uma turma de aula coletiva de instrumento precisa estar atento a isso. Assim, espera-se, através do que foi exposto neste artigo, ter demonstrado que o uso de abordagens híbridas na aprendizagem do Teclado durante a graduação pode favorecer a aquisição de habilidades e competências técnico-musicais capazes de auxiliar o futuro professor de Música neste sentido.

ReferênciasCOUTO, Ana C. N. Apostila de piano em grupo I. Recife: Departamento de Música da UFPE, 2011a. 27 f. Não publicado.______. Apostila de Piano em grupo II. Recife: Departamento de Música da UFPE, 2011b. 21 f. Não publicado.______. Apostila de Piano em Grupo IV. Recife: Departamento de Música da UFPE, 2011c. 25 f. Não publicado.CHEDIAK, Almir. Songbook as 101 Melhores Canções do Século XX, vol. 2. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 2004.CRUVINEL, Flavia Maria. Educação musical e transformação social – uma experiência com ensino coletivo de cordas.

Goiânia: Instituto Centro-Brasileiro de Cultura, 2005. DUNBAR-HALL, P.; WEMYSS, Kathryn. The effects of the study of popular music on music education. International Journal

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1993.FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri. Performance instrumental e educação musical: a relação entre a compreensão musical

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Funcionais no uso do teclado como alternativa didática. In: II Encontro Nacional de Pesquisa em Música, Minas Gerais, 1985. Anais… Minas Gerais: Imprensa da UFMG, p.223–245, 1986.

GREEN, Lucy. How popular musicians learn. London: Ashgate, 2001. ______. Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy. London: Ashgate, 2008. KAPLAN, José Alberto. Teoria da aprendizagem pianística. Porto Alegre: Movimento, 1987. LILLIESTAM, Lars. On playing by ear. Popular Music. Cambridge University Press, v.15, n.2, May 1995. p.195-216.LIMA, Sergio R. de G.; COUTO, Ana C. N. A música brasileira popular e a pedagogia instrumental: pesquisa de repertório e

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MONTANDON, Maria Isabel. Aula de piano ou aula de música? O que podemos entender por “ensino de música através do piano”. Revista EM PAUTA da UFRGS, ano VII, n.11, p.67–79, nov. 1995.

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SWANWICK, Keith. Ensino instrumental enquanto ensino de música. Trad. Fausto Borém. Cadernos de Estudos – Educação musical. Escola de Música da UFMG, n.4/5, p.7–14, nov, 1994.

Notas1 Tradução livre da autora2 De acordo com esta autora, esse conceito é utilizado por Alberto Jaffé, educador musical especializado no ensino coletivo de cordas, para denominar

a estrutura didática das aulas coletivas.3 Padrão rítmico de acompanhamento (P.R.) é um padrão utilizado para a realização de acompanhamentos ao teclado, sendo que a mão direita

executa os acordes, e a esquerda geralmente o baixo – quase sempre a fundamental, a não ser nos casos de baixos invertidos. A escrita do P.R. é feita na forma de ação rítmica a duas vozes, e sintetiza o perfil rítmico de algum estilo musical. Por exemplo, no caso do Baião, o P.R. será:

Vale ressaltar que o P.R. é apenas um modelo esquemático. De acordo com a prática, a criatividade e a desenvoltura de cada um, o P.R. pode ser variado de diversas maneiras, tornando a execução do acompanhamento mais interessante.

Ana Carolina Nunes do Couto é Doutoranda em Sociologia pela UFPE, Mestre em Música (2008) e especialista em Educação Musical (2004) pela UFMG, graduada em Licenciatura em Música pela UEL (2002). Atuou como professora na Escola de Música da UEMG de 2005 a 2009. Atualmente é professora assistente no Departamento de Música UFPE, lecionando na cadeira “Instrumento auxiliar – Teclado”. Neste local também desenvolve o projeto de extensão “Eu faço Música!”, que busca conhecer os processos de criação musical de grupos de música popular do Departamento de Música da UFPE, e é integrante do Grupo de Pesquisa em Formação e Atuação Profissional de Professores de Música. Tem artigos publicados em anais de congressos da ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical), da Saccom (Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de La Música), e em revistas especializadas.

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VALENTE, H. de A. D. Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.239-249.

Recebido em: 16/06/2012 - Aprovado em: 04/01/2013

Paisagens sonoras, trilhas musicais: retratos sonoros do Brasil

Heloísa de A. Duarte Valente (UMC; PPGMUS-ECA-USP, São Paulo)[email protected]; [email protected]

Resumo: O presente texto parte dos pressupostos de que: 1) a música é componente de relevo da paisagem sonora (SCHAFER, 2001); da mesma maneira, a paisagem sonora interfere nos processos perceptivos e na formação do gosto estético; 2) a música veiculada pela mídia é construto da vida cotidiana, pois a própria música engendra modelos e formas de comportamento. Tendo como referência essas premissas, este texto analisa peças de repertório musical que, de certa maneira, representam o Brasil, ao longo de seus governos e governantes. Tomo, para este ensaio, a paisagem sonora do período relativo ao final do século XX, em que governaram os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Acredito que traços particulares presentes na canção midiática formam uma rede de signos (às vezes discretos) que acabam por imprimir, indelevelmente, à cultura de origem, uma feição muito particular. Ocorre que, até o momento presente, estes signos não demonstram terem sido objeto de análises mais detalhadas. Um estudo desses elementos poderá contribuir para compreender melhor a dinâmica social das culturas, pela figura de seus governantes e governos, para além do que nos vem sendo oferecido, de forma estereotipada e simplista.

Palavras-chave: paisagem sonora no Brasil; música popular e memória musical; canção e semiótica musical.

Soundscapes, soundtracks: Brazilian sound portraits

Abstract: This paper departs from the following assumptions 1) music is a prominent part of the soundscape (SCHAFER, 2001) and likewise, the soundscape interferes with compositional processes and the development of the aesthetical taste, 2) pieces of music broadcasted in the media are constituents of everyday life, since music itself produces habits and models of behavior. Referring to these suppositions, this text intends to analyze some pieces of musical repertoire which in a certain extent represents Brazil as a country, through their governments and presidents. For this purpose, I will analyze the soundscape of the period concerning the late twentieth century, when Fernando Henrique Cardoso and Luiz Inácio Lula da Silva were presidents. I believe that particular features in media songs might engender a network of signs (sometimes discreet ones) which could stamp its marks in culture in a very special way. It should be stressed that such approach seems not to have been subject of careful study. An analysis of these discrete elements could contribute to understand how social dynamics of cultures occurs, beyond the stereotyped and naive approaches.

Keywords: soundscape in Brazil; popular songs and musical memory; song and musical semiotics.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

1. Um Brasil que se conhece pelos ouvidosAntes de iniciar esta exposição, cabe mencionar a origem de tal preocupação investigativa. Este texto é parte de um ensaio longo cujo tema envolve as paisagens sonoras no Brasil, tendo como base as “trilhas sonoras” implantadas pelos governos e respectivos governantes. A motivação que me levou a escrevê-lo deu-se de modo quase acidental há vários anos, quando assisti a uma entrevista ao crítico musical Nelson Motta, pela televisão. Ao comentar sobre o panorama das músicas no Brasil, Motta aventou uma hipótese muito instigante: governos e governantes têm uma trilha musical que os identifica e caracteriza; mais que isso, os gêneros musicais imprimem uma marca indelével, inconfundível. Sugeria que modas e modismos musicais surgiam ao sabor do ambiente

sociopolítico. Seguindo tal raciocínio, Fernando Collor, presidente de então, coadunava-se com os sertanejos; do mesmo modo que José Sarney corresponderia à lambada e, Juscelino Kubitschek, à Bossa Nova. Seguiram-se outros exemplos. Memorizei as considerações do crítico e passei a refletir sobre o assunto. (infelizmente, as referências à entrevista se perderam...) A curiosidade me atiçou, levando-me a estabelecer uma série de paralelos e a tomar notas esparsas. Devo, pois, a Nelson Motta, “mote” inicial para este exercício de “clariaudiência”1 que aqui segue. Acredito que o tema mereça especial atenção e, de pronto, ressalto a sua importância: as mídias pontuam praticamente todas as atividades da vida cotidiana, em quantidade e extensão cada vez mais

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abrangente. Dentre todas elas, a música - sobretudo sob a modalidade “canção”- parece onipresente nas linguagens audiovisuais, quer como trilha sonora, quer como música de fundo (jingles publicitários, tema de abertura de peças de teledramaturgia,noticiários, leitmotiven de personagens nas telenovelas etc.); na vida comezinha,a música “infiltra-se” no território da vida íntima e pessoal (ou, mesmo o “invade”) através dos toques de telefone, games, além da já conhecida e polêmica música-ambiente (Muzak). Essa existência se verifica tanto no ambiente doméstico, quanto nos espaços públicos e institucionais. Posto isso, não parece exagerado afirmar que os signos musicais representam e testemunham o seu tempo e o tempo ao qual fazem referência.

Raciocinando dessa maneira, a analogia proposta por Nelson Motta está longe de constituir uma prática retórica, de exibicionismo do seu conhecimento sobre repertórios musicais; ao contrário, trata-se, antes de tudo, de um convite (e uma provocação) ao leitor curioso para deixar-se enveredar por um campo ainda pouco explorado nos estudos acadêmicos – o mundo que se faz conhecer pelos ouvidos (VALENTE, 2002). O conjunto de obras (e as variações da paisagem sonora, em suas várias circunstâncias) não apenas constroem a imagem do governante, desde a sua candidatura, até a tomada de poder, mas também, em certa medida, identificam programas de governo, ao longo do seu mandato. A composição da imagem (sonora), por intermédio de peças musicais, estabelece formas ativas de comunicação entre sistemas, orientação ideológica de governo, governantes e governados. Tal como a “trilha sonora” de uma extensa peça de dramaturgia, a trilha sonora dos governos põe em cena as tramas da vida em sociedade, em momentos de júbilo e conflito; aceitação e recusa; concordância e repúdio; guerra e paz, amor e ódio... Ocorre que esta comunicação se faz, em larga medida, de maneira intuitiva: os códigos existem, sendo geralmente decifrados de maneira espontânea. Em outras palavras, parece existir uma forma correspondente nas diversas configurações das paisagens sonoras à máxima popular “o hábito faz o monge”. O que não se verifica é a formulação sistemática a ser aplicada convencionalmente. Este ensaio tem a pretensão de dar início a essa empreitada. Para tanto, levará em conta, alguns pressupostos: 1) a música é componente de incontestável importância na paisagem sonora2 (SCHAFER, 2001); esta, por sua vez, interfere nos processos comunicacionais, na recepção (uma vez que modifica a sensibilidade da escuta); 2) a paisagem sonora é capaz de engendrar modelos e formas de ouvir, pensar e compor música; 3) em decorrência do item 2), infere-se que a música veiculada pelas mídias é construto não apenas do mercado fonográfico e seus mandatários, mas também resulta de uma incorporação de hábitos de escuta desenvolvidos e cristalizados na vida cotidiana, pela própria repetição contínua na escuta de determinado repertório (voluntariamente, ou não). Tendo apresentado estas premissas iniciais, passo a alguns conceitos de base.

2. Retratos sonoros: à procura de uma conceituação própriaAntes de proceder a uma análise das obras que identificam, rotulam, salientam,maculam, exaltam - ou até mesmo depõem- governantes e respectivos governos, cabe fazer duas observações iniciais. A primeira delas refere-se ao conceito de “paisagem sonora” (adaptação do neologismo soundscape), criado pelo compositor e R. Murray SCHAFER (2001). Para o compositor canadense, os estudos da paisagem sonora envolvem um campo interdisciplinar de pesquisas referentes ao ambiente acústico, não importando sua natureza. São paisagens sonoras as situações e circunstâncias em que os eventos sonoros se desenrolam no tempo e no espaço, incluindo-se próprias transfigurações de um mesmo ambiente: a paisagem sonora de um mesmo espaço físico se transfigura ao longo das horas do dia, das estações do ano; o transcorrer dos séculos também imprime variações. A rigor, a paisagem sonora tende a ser mais barulhenta nas grandes cidades, devido a uma maior ocorrência de eventos sonoros simultâneos, sejam eles motivados por pessoas ou outras fontes. Acrescente-se que a evolução tecnológica vem trazendo um aumento progressivo na quantidade de objetos produtores de ruídos, congestionando a paisagem sonora. Os sons naturais -sobretudo animais- tornaram-se raros ou menos frequentes.

Outro marco conceitual a destacar é a música que aqui será analisada. Posto que a grande maioria das obras musicais que fazem referência mais ou menos direta a governantes, governos e população se dão por variantes da forma canção, é necessário, antes de prosseguir, estabelecer uma distinção entre as denominações “canção popular” e “canção das mídias”. Parto do pressuposto de que o conceito de canção popular é impreciso, podendo-se estender a uma gama diversa de obras (NEDER, 2010)3. Muito embora pareça um conceito autorreferente, talvez até pelo seu uso trivial pelo senso comum, não há um consenso, uma definição clara sobre o que se denomina canção popular (GONZÁLEZ, 2001). De maneira precária, conceitua-se como uma peça musical, composta sobre texto verbal, difundida pelos diversos meios de comunicação. Tal definição, levada ao extremo pode encampar desde a canção tradicional, de origem antiga, até a ária de ópera, adequada à transmissão por alto-falantes. Dada essa fragilidade conceitual, opto pela denominação canção das mídias (VALENTE, 2003): a canção concebida para ser veiculada pelas mídias (inicialmente, sonoras, sucedida pelas audiovisuais), acolhendo as normas e possibilidades tecnológicas disponíveis; ou, ainda, a canção que, mesmo oriunda de outro contexto (árias de ópera romântica, cantigas folclóricas, tradicionais e outras compostas para se executar ao vivo e sem aparatos) tenha-se adaptado aos padrões da canção concebida para o disco, tendo seus parâmetros (duração, variação de intensidade e andamento, instrumentação etc.) controláveis segundo outros referenciais alheios ao projeto do compositor e, não raro, o próprio intérprete.

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Ainda que a maioria das canções midiáticas não resulte da leitura de uma partitura pré-existente (convencional, em pentagrama ou mesmo por cifras), não se excluem dessa categoria aquelas que tiverem, em sua base, o suporte escrito. A canção midiática deve ser composta, executada, difundida e desfrutada tendo em conta os recursos oferecidos pelo conjunto de técnicas e estéticas do som (e/ou do audiovisual) vigente. Este compósito técnica-estética estará, por sua vez, submetido a outros condicionantes, como a esfera político-econômica (das gravadoras e, por extensão, de todas as empresas da comunicação), orientações ideológicas diversas, de maneira mais ou menos significativa (instituições de poder como estado, religião). Na maioria das vezes, a canção midiática é, em sua essência, pensada como mercadoria ou, pelo menos, tende a converter-se numa4. Essa orientação não impede que a composição resulte numa obra de razoável complexidade formal. Ocorre, ainda que algumas canções se consagrem no gosto popular, a ponto de se transformarem em “monumentos sonoros históricos”, quer um sob o aspecto musical ou de outra natureza. Aqui se agrupam as obras que ganharam destaque em razão de suas qualidades formais (vide os clássicos Aquarela do Brasil, Carinhoso, Desafinado... quanto aquelas que se tornaram memória em virtude justamente da imagem negativa que fincaram (Florentina de Jesus, Uma vida só). A canção das mídias terá na performance5 (ZUMTHOR, 1997) o seu modelo principal, que englobará um amplo leque de elementos característicos e diferenciais.

Uma terceira observação toca ao termo performance. Para além das acepções mais conhecidas (“execução”, “interpretação”, “desempenho” etc.) o vocábulo deve aqui ser compreendido como um conceito estabelecido pelo erudito Paul ZUMTHOR (1997), que o define como uma ação complexa, que envolve múltiplos fatores: emissor, receptor, circunstâncias que envolvem o processo comunicativo. No caso da música, a performance não se restringe à ação do (execução) do instrumentista, à interpretação (do ator, poeta, cantor). Por fim, cabe frisar que o vocábulo “mídia” não se limita ao sentido conferido pelo senso comum (grande imprensa, publicidade etc.), mas o próprio aparato capaz de, ele próprio, engendrar processos comunicativos (SANTAELLA, 1996).

3. Referências teórico-metodológicasAntes de descrever os procedimentos teórico-metodológicos que orientaram esta pesquisa, algumas observações iniciais precisam ser feitas. De início, é fato que tratar da produção musical da última década do segundo milênio é incumbência espinhosa, por várias razões: dentre elas, a própria proximidade temporal impede o distanciamento adequado do observador, impossibilitando-o de efetuar uma análise precisa dos signos que de fato hajam-se fixado como memória musical, ou cultural. De outra parte, há uma notável escassez de fontes de cunho crítico, sobre a produção

musical do período relativo aos últimos vinte anos, quando a abordagem se faz a partir da linguagem musical6. Enumerar gêneros e tendências musicais pela sua importância é, igualmente, problemático face à multiplicidade de critérios possíveis7.

Sobretudo, o que se aponta aqui como mais frágil consiste na comparação quase direta de elementos aparentemente incomparáveis e distantes entre si: repertórios musicais, presidentes e as respectivas paisagens sonoras de governo. As vinculações parecem muito abruptas e a empreitada corre o risco de não passar de uma sequência de metáforas... Ocorre que as metáforas são abstrações de elementos sensíveis capturados da realidade. (Todavia, não costumam ser adotadas para embasar teses acadêmicas....). Esse terreno pantanoso não me intimidou de levar adiante esse exercício de clariaudiência: a abordagem semiótica permite estabelecer interfaces entre linguagens diversas, de maneira pertinente. Para tanto, existem as teorias que orientam a análise. Se elas não dão conta do objeto em estudo, conforme o esperado, criam-se outros instrumentos subsidiários, que venham a atender às necessidades da pesquisa. Meu histórico como semioticista me levou a dar muita importância ao detalhe, ao “pequeno”, ao “desimportante”, nos diversos temas que estudo. Acredito que discernir o código musical, em seus elementos mais sutis, é habilidade essencial para decifrar informações sonoras não perceptíveis em uma primeira escuta. O estudo, a partir de elementos discretos (pequenas variações de andamento, de pronúncia ou sotaque, modos de ataque etc.), verificáveis na obra musical, poderá contribuir, ainda que modestamente, para compreender melhor a dinâmica social das culturas, para além do que é fornecido, de forma estereotipada e simplória por alguns manuais e obras de divulgação. No caso deste ensaio, proponho uma tentativa de estudar a vida sociopolítica através dos governantes e orientações ideológicas, através da sua música.

Tendo dito isso, proponho-me esboçar uma rápida analogia entre governantes e as respectivas “trilhas sonoras”, no Brasil, na passagem dos séculos XX para o XXI. Mais precisamente, tomarei como referência o período dos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Os critérios que embasam esta seleção encontram-se nas seguintes particularidades:

1)Trata-se de um período que oferece material empírico que pode ser captado através das histórias de vida e experiências pessoais, de faixas etárias diversas);

2) em termos sociopolíticos, trata-se de um período em que os presidentes eleitos, granjeiam uma expressiva representatividade, graças ao expressivo montante de votos diretos obtidos – o que, de algum modo, leva a crer que as manifestações populares possam ser entendidas como espontâneas8;

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3) tanto Fernando Henrique Cardoso, como Luís Inácio Lula da Silva têm poder carismático, sendo admirados por uma ampla parcela da população do país. Sendo dessa maneira, os atributos que inevitavelmente se agregam à sua imagem acarretam, inevitavelmente, em repercussões junto à opinião pública. Nesse ponto, é importante recordar que, as diferenças ideológicas e de programa de governo não isola um do outro: num passado de luta pela democracia, ambos compartilhavam ideias e ações conjuntas;

4) o período de governo de ambos os presidentes, em dois mandatos, coincide com o vertiginoso desenvolvimento das mídias digitais que, muito rapidamente desdobraram-se em outras tecnologias, pleiteando novas formas de uso e, em consequência disso, criando de novos hábitos perceptivos;

5) os tempos do pós-modernismo acentuaram as fissuras dos pilares que antes sustentavam categorias definidas, tais como “local”, “global”, “identidade”, “nacional” (etc.); em contrapartida, passaram a mesclar-se elementos pertencentes a repertórios diferentes, oriundos de tempos e espaços, a princípio díspares: o passado é revisitado, agregando-lhe qualificativos como vintage, retrô, dentre outros qualificativos (na verdade, uma fetichização da história).

Posto este quadro de referência, esclareço que, além das fontes bibliográficas, apoio-me em outros documentos, tais como anotações diversas sobre eventos, notícias na imprensa, folhetos de divulgação publicitária, filmes e jingles das campanhas políticas etc.. Para a análise dos materiais, adoto a metodologia proposta por Christian MARCADET, estudioso das canções (2007). Importantes são, ainda, os depoimentos e memórias sobre fatos presenciados por testemunhas auditivas, de várias faixas etárias. Neste ponto, a prática de exercícios de “clariaudiência” (SCHAFER, 2001) estimula o depoente a recuperar importantes memórias de acontecimentos ocorridos em caráter individual ou coletivamente, em que a música figure como elemento-chave. A maioria desse repertório musical é composta por canções das mídias (VALENTE, 2003).

Por fim, enfatizo: Ainda que as considerações finais permaneçam carregadas de elementos de subjetividade, não deixam de ser resultado de reflexões próprias, fruto de debates de que tenho participado, ao longo dos últimos anos9; outras ideias foram compartilhadas, debatidas, com meus alunos de pós-graduação, no curso que ministro, desde 2006, Música e Cultura das Mídias10. Em assim sendo, aquilo que ora que apresento é, inevitavelmente, uma reelaboração dessas formulações. E um ensaio – no sentido literal: impossibilitada de decantar todos os dados subjetivos, adoto uma metodologia pouco convencional, no âmbito dos usuais protocolos acadêmicos – o que não significa num descuido na verificação da autenticidade e confiabilidade das fontes consultadas.

4. Canção, mídia e memória: A “trilha sonora” do final dos 1900, de FHC a LulaO gigantesco espaço territorial brasileiro - também sonoro - é coberto por um amplo repertório de canções que, em grande monta, habitam a paisagem sonora como memória social, seja ela implantada pela própria comunidade, seja através de iniciativas pessoais. Mas também as gravadoras, através de seus mecanismos de repetição à exaustão acabam por fixar um gosto estético. A despeito de sua existência efêmera, o hit parade engendrado pode vir a desempenhar papel importante, à medida que, de algum modo, a canção de sucesso estabelece paradigmas que permitem identificar (sonoramente) o tempo-espaço de referência de seus consumidores: Isso se explica à medida que os traços particulares presentes na canção midiática formam uma rede de signos (às vezes discretos) que, ao fim e ao cabo, imprimem indelevelmente, à cultura de origem, uma feição muito particular do espírito do seu tempo11.

O hábito de estabelecer paralelos entre modas, modismos e acontecimentos memoráveis é bastante comum, especialmente quando as relações se dão por intermédio de um vínculo afetivo, em alguma instância. Assim, são facilmente recordadas as canções que marcam experiências individuais marcantes, bem como aquelas que se relacionam a acontecimentos coletivos: são os hinos compostos para os diversos certames esportivos (olimpíadas, copas do mundo de futebol), vitórias eleitorais e políticas, rituais e festejos religiosos, cerimônias diversas (coroações, funerais etc.) A associação entre governos de estado e gêneros musicais ocorre de maneira pontual. Neste território a correspondência mostra-se ainda pouco frequente, muito embora o senso comum a faça, de maneira empírica e lúdica. Nas considerações que seguem, procurarei esboçar as linhas iniciais para um estudo de tais relações, através da análise de elementos da paisagem sonora e musical. Limitar-me-ei a apresentar uma lista inicial de obras, autores e intérpretes que marcaram presença na paisagem sonora, fixando as “trilhas sonoras” (quase sempre, representadas por canções) que se tornaram ícones dos governos Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010).

Examinando a paisagem sonora –e, particularmente, musical- do Brasil do período que sucedeu as “diretas-já”, verificamos a continuidade de algumas modas e tendências musicais já iniciadas durante o governo José Sarney e que mantiveram sua presença no período Fernando Collor e Itamar Franco: é o caso da lambada, da axé music, da música sertaneja. O repertório musical da última década dos 1900 seria alimentado de outras músicas, tais como o pagode, o forró universitário, o rap, o funk carioca, além do denominado “sertanejo romântico”. O solo sobre o qual este repertório se assentaria: o governo Fernando Henrique Cardoso, logo alcunhado imediatamente FHC, pela mídia impressa. Se, a princípio possa parecer estranha a associação entre uma produção inicialmente voltada às camadas menos favorecidas economicamente e um intelectual

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oriundo da elite intelectual burguesa – é importante ressaltar, logo de início, o panorama que pautou o seu governo. Antes mesmo da tomada de posse, o prestigiado presidente já gozava de prestígio internacional, devido a sua carreira acadêmica bem-sucedida. Por essa época, já se estabeleciam, pouco a pouco, redes de televisão por assinatura, como a MTV, destinada à música jovem (pop, entenda-se). Também se ampliava a comunicação cibernética, o que propiciou a oferta crescente de serviços e produtos culturais à la carte12, no geral, peças de entretenimento: longas-metragens “enlatados”, séries, variedades e noticiários. Nesse cenário o Brasil passa a consumir o pop internacional pela televisão (grunge, britpop... Nirvana e seu líder Kurt Cobain, Pixies, Red Hot Chili Peppers, REM, Metallica, Guns ‘n Roses) ao mesmo tempo em que exporta o heavy metal supranacional que canta em inglês – do grupo Sepultura.

No terreno da produção local, algumas tendências foram surgindo e ganharam força, pelo menos até o final do século XX. Dentre eles, destacam-se o pagode (especialmente, o “pagode romântico”), o forró universitário, o rap, o funk – para citar alguns. Trata-se, nos dois primeiros casos, de mutações de gêneros originários de décadas passadas, que foram devidamente desbastados de elementos característicos formais e acrescidos de outros, típicos da estética midiática em vigor. Tais procedimentos visavam atender ao protocolo mercadológico, acrescidos do inevitável e imprescindível idioleto pop-eletrônico. Isto quer dizer que, via de regra, modalidades regionais, de grande popularidade, como o forró, deixaram de ser ouvidos na sua versão original (sanfona, zabumba e triângulo) e no seu espaço singular: ao ar livre, sem o apoio de tecnologias de amplificação ou de reprodução. Para ser aceito como “moderno” – consumível, entenda-se...- teve de se adaptar aos moldes da música pop e sua estética: “eletrificado”, com a adoção do “teclado”, bateria (eletrônica) tornou-se a receita básica para o sucesso da versão “forró universitário”. Muito distante do Trio Nordestino, ou o antológico Luiz Gonzaga, esta versão equivocadamente afiliada à música de raiz (autêntica), para ser tocada em espaços abertos, não escapa do padrão estético ditado pelas majors: são sequências de um mesmo repertório feito para animar festinhas de pessoas cujos ouvidos ficam satisfeitos com altos decibéis de excitação, para se “curtir” num salão fechado e climatizado. A semelhança entre as canções e os vários grupos que o executam é tal que se faz necessário, no transcorrer da música, seja anunciado o nome do intérprete13: Falamansa, Mastruz com Leite, Limão com Mel e outros nomes atrelados a combinações culinárias geralmente sinalizam os protagonistas desse tipo de repertório. Tal versão “movente” (VALENTE, 2003)14 do forró atesta como a alteração de poucos elementos da performance implicam em diferentes formas de recepção e fruição15.

O pagode de raiz, na sua origem, deriva-se do samba, na década de 1940. Tem sua continuidade com nomes como Almir Guinéto, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal,

Jovelina Pérola Negra e Nei Lopes. Em 1990, conheceria a versão criada pelas gravadoras, que vendeu milhares de discos16. A lista de “pagodeiros” é grande: Da Melhor Qualidade, Dudu Nobre, Exaltassamba, Grupo Molejo, Os Travessos, Só pra Contrariar, Negritude Júnior. Aqui se introduzem os instrumentos eletrônicos não pelos timbres novos, pelos ruídos de linguagem, mas tão simplesmente como versão de baixo orçamento que substitui o naipe de cordas. Desenvolve-se uma sonoridade sem respiração, tônus e articulação precisa dos modos de ataque do instrumentista, que se esvaem nas notas do som infinito do sintetizador- que somente se extingue com a interrupção da energia elétrica...

5. Uma playlist da virada do segundo milênioO panorama musical dos últimos anos do século XX é amplo e conta com nomes de destaque nos mais diferentes gêneros e formas de expressão, alguns deles de carreira longeva. Encabeçam essa lista inicial os nomes já consagrados na canção brasileira (comumente denominada MPB), oriundos desde a Bossa Nova (tal é o caso do epígono João Gilberto) e aqueles que, ingressados na mídia, quando da participação em festivais de música acabaram acariciados pela intelligentsia . Aqui se encontram Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, em grande medida compondo canções críticas ( de protesto), os militantes de movimentos culturais (sobretudo a Tropicália): Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa. Mais voltados ao gosto popular, o rock deu audibilidade a artistas que teriam carreira longa e prolífica, como a sempre enfant terrible Rita Lee e ao comedido Roberto Carlos (em sua fase inicial de carreira).

Os sertanejos teriam longos dias de estrada e alto-falantes – sobretudo porque insistentemente rememorados em novela de grande audiência17 e representam uma volumosa parcela da população. Não será por acaso que vários dos jingles políticos elegerão as baladas sertanejas para veicular suas mensagens. Chitãozinho e Xororó, Zezé de Camargo e Luciano, Rio Negro e Solimões, Leonardo, Daniel (estes mais voltados a um sertanejo romântico, sobretudo após a morte dos seus pares de dupla Leandro e João Paulo, respectivamente), Roberta Miranda, Sula Miranda são alguns dos nomes que permanecerão, ininterruptamente, durante o período. Outras gerações surgiriam e algumas preexistentes passariam por mudanças contundentes. É o caso dos ex-mirins Sandy e Júnior, que dariam adeus à infância, mudando radicalmente o seu repertório. Sandy se casa e tentará passar a imagem de cantora madura, voltada a um repertório mais refinado e escolarizado18.

A despeito de um congestionamento, na paisagem sonora, da entoação “choramingosa”, dos monótonos violinos “de plástico”, dos apelos pouco sutis à anatomia do corpo humano (particularmente às partes pudendas femininas), os gêneros de origem regional ainda conseguiriam seguir seu caminho. Para além

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dos já consagrados Dominguinhos, Renato Borghetti (Borghettinho) e outros músicos que há décadas se dedicam à preservação e renovação da música regional, outros nomes, tais como o gaúcho Vitor Ramil, Mestre Ambrósio, Cascabulho, Chico Science e Nação Zumbi constam entre os músicos que desenvolvem trabalho a partir de elementos extraídos da cultura popular e do folclore. Antônio Nóbrega vai mais longe: inicialmente, violinista erudito, integrante do movimento Armorial de Ariano Suassuna, parte em busca de sua linguagem própria. Além de criador, desenvolve importante trabalho educativo no Brincante, na capital paulista.

A paisagem sonora do período abrigaria, também o universo kitsch e o humor; o escárnio e a paródia. Aqui se reúnem casos particulares, tal como o veterano da Jovem-Guarda Reginaldo Rossi19, migrado para o “cafona”, faz companhia ao cearense Falcão. Ocorre que Falcão que faz do “brega” sua bandeira estética, pelo viés paródico, com bastante competência: a persona que criou pratica um contraste justapondo palavras de baixo calão, a desafinação proposital a um arranjo instrumental muito bem elaborado, com recursos de estúdio de alto padrão. Tangos e tragédias, do extremo sul do país, já crê na existência de um país fictício, a SbØrnia – com algumas semelhanças “casuais” com o Brasil... Os Kraunus e Pletskaia – na verdade, personagens criados pelos gaúchos Hique Gómez e Nico Nicolaiewsky - se valem de uma atmosfera “kitsch-trágica”, desenvolvida a partir de repertórios como os de Vicente Celestino, Alvarenga e Ranchinho, passando por Jimmy Hendrix e outros mais.

No campo da música voltada ao experimentalismo, Maurício Pereira e André Abujamra desenvolvem trabalhos individuais, após a dissolução do grupo Os Mulheres Negras a “menor big band do mundo”, no dizer de seus fundadores. Tom Zé, Jorge Mautner estão entre os nomes que vêm contribuindo num campo mais experimental da música. Zeca Baleiro, Chico César, Otto são outros músicos fora do sudeste que têm oferecido um repertório diferenciado, com um grau de originalidade a se considerar. Também cabe ressaltar que, da vertente por onde a linguagem musical busca novas direções, sobressaem nomes como os “cantautores” Zélia Duncan, Adriana Calcanhoto, Leila Pinheiro, Zizi Possi, Vânia Bastos, Na Ozzetti, Luiz Melodia, José Miguel Wisnik, Luiz Tatit.

Igualmente as religiões descobririam que a música tem o poder de angariar fiéis... e mais fundos que os dízimos dos cultos. Muitos sacerdotes e sacerdotisas converteram-se em pop stars, comparáveis aos ídolos de rock, tanto na sua performance, quanto nas suas estratégias de ação. Detentores de concessões de estação de rádio e televisão gravam seus discos, logo transmitidos pelos satélites, retroalimentando, assim, a indústria da fé com fartura de anunciantes e altos índices de audiência. Em termos musicais, contudo, não importam as diferenças de credo; tampouco as formas de persuasão dos fieis: evangélicos,

católicos, gospel, na verdade, não se deixam furtar ao inevitável modelo pop convencional, servindo-se de todos os gêneros em voga no momento. Somente o conteúdo das letras se mantém, com menções religiosas, especialmente passagens ou ensinamentos da Bíblia. Padre Marcelo Rossi, da Renovação Carismática (católica) vendeu milhões de discos no final do século XX e serviu de protótipo a outros padres-cantores-dançarinos, ensinando o caminho das pedras para locupletar os cofres da Igreja. Mantém-se como nome importante no casting das gravadoras, não obstante a derrocada da indústria fonográfica20.

Por fim, mantêm seus postos os consagrados nichos de consumo: os românticos de há vários anos (Daniel, Leonardo, Roberto Carlos, Fábio Jr.) e décadas (Angela Maria, Cauby Peixoto); os roqueiros: Jota Quest, Skank, Charlie Brown Jr., Ana Carolina, Pitty, além dos veteranos Nando Reis e Rita Lee21 .E teremos também os rappers DJ Dolores (Hélder Aragão), que já acompanhou os internacionais Bjork, Mobby, Cold Play, Pavilhão 9, Gabriel o Pensador, Marcelo D2, Rappin Hood, Facção Central, DJ Patife. Em número crescente surgirá o funk, em diversas ramificações (“batidão”, “proibidão”).

6. Só para contrariar... Deixa a vida me levar...Exposto esse sintético panorama de tendências estéticas musicais, passo para uma aproximação entre os governos e governantes. Comecemos pela mais singela e, geralmente, de curta duração: o jingle publicitário. Esta é uma das maneiras segundo as quais se cria e desenvolve a imagem de um político, através da música. Escolhem-se canções estróficas, tonais,em gêneros populares, tais como marcha, samba, sem serem desprezados os derivados do pop e do rock. Nas últimas campanhas, especialmente os ritmos nordestinos, como o xote e o forró, além das toadas sertanejas foram os preferidos pelos idealizadores das campanhas. Na maioria dos casos, os cantores lançam mão de uma impostação vocal tensa, estridente e/ou nasalada – sobretudo quando se opta pelos gêneros de tradição nordestina. A locução, em contrapartida, convida speakers de alta nomeada, como Ferreira Martins (no caso do PSDB) ou Reinaldo Gonzaga (PT) para as narrações em off, adotando o protocolo de projeção vocal, pronúncia e entonação. Ultimamente, entretanto, os marqueteiros vêm se dando conta da importância de incluir vozes de pessoas mais comuns, ou sotaques regionais.

O jingle da primeira campanha de Fernando Henrique Cardoso, Levanta a Mão, foi composto por Sérgio Mineiro, Sérgio Campanelli, César Brunetti e Maurício Novaes. Baseado no slogan, que anunciava cinco itens como propostas fundamentais do seu governo, conseguiu alta popularidade, sobretudo com a adesão do cantor e acordeonista Dominguinhos, com a peça “Levanta a mão”. Posteriormente, o jingle foi reaproveitado em outras campanhas do PSDB nas eleições seguintes (José Serra, 2002 e Geraldo Alckmin, 2006), com algumas variações no arranjo e na letra22.

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No caso de Lula, escolheu-se o hit acidental, composto para a eleição de 1989. O músico Hilton Acioli relata, em entrevista concedida ao repórter Haroldo Sereza, com imagens e edição de Derek Sismotto como surgiu a peça publicitária; como a sua composição se tornou um grande hit e como foi reapropriada, em 1994 e 2003. Em outra versão, o jingle acabou acoplando trechos do Gilberto Gil, do Chico Buarque e Djavan, com acompanhamento de Wagner Tiso (1989) “Sem medo de ser/ sem medo de ser feliz”; “olê, olê-olê-olá / Lula, Lula”; ”Lula lá/ brilha uma estrela”. Dentre outras qualidades, destaca a importância do andamento, compatível com a passeata23.

Isto posto, insisto que o vínculo entre o candidato e sua imagem criada através da publicidade, não marca definitivamente o mandante, assim como caracterizou o candidato: após as eleições, muitas situações mudam e, não raro, todos os signos engendrados, no sentido de conduzir o candidato ao cargo acabam esquecidos. É bem verdade que a canção composta por Acioli tem características especiais e agrega outros liames simbólicos que lhe garantem uma permanência por longa data, na memória coletiva – sobretudo se tomarmos as lembranças de pessoas que viveram momentos como as “diretas-já” e a primeira candidatura de Lula, para presidente.

Ainda persistindo nesse exercício de risco, ousaria sugerir que, no caso do governo Fernando Henrique Cardoso talvez seja pagode o gênero musical que mais esteja mais afinado com o governo– em que pese o estereótipo criado em torno da figura do presidente, tido como representante da burguesia, de hábitos aristocratas e de gosto refinado. Se observarmos o conjunto da equipe do governo e seus aliados, parece ter havido um desafino conflituoso entre a tentativa de implantar o high tech e as ações efetivamente viabilizadas por uma equipe extremamente conservadora (vide o partido do vice, o presidente da Câmara...): os mesmos violinos “de plástico” (VALENTE, 1999), em alta-fidelidade acústica, parecem apontar para o contraste entre requinte e “jequice”24, manifestada pelo alto comando do governo de então. Latifundiários – coronéis – com muitos fundos (financeiros) e pouca profundidade intelectual (escolaridade insuficiente), novos-ricos, “emergentes” na sociedade graças à habilidade com operações bancárias de alta monta acabariam por compor a audiência que lota as salas de espetáculo dos novos ídolos e celebridades midiáticos. Elevados às cumeadas da visibilidade graças a estratégias promocionais das gravadoras, tais intérpretes não demonstrariam ter, contudo, o lastro que assegure sua sobrevida por longo tempo – tal qual a volatilidade do capital que o criou.

De outra parte, existe, igualmente, uma parcela de público cuja formação intelectual é precária e que procura se conferir um status quo de requinte estético, bom gosto e sabedoria. Para tanto, adquire assinaturas de concertos de orquestras sinfônicas de renome, frequentadas pela alta burguesia e noticiadas pelas colunas sociais da mídia impressa e audiovisual.

O governo capitaneado pelo ex-torneiro mecânico e líder sindical Luís Inácio Lula da Silva foi a grande novidade do fim do segundo milênio, não apenas pela sua origem – um homem do povo-, como também pelas expectativas diversas que suscitou: pela primeira vez, na história recente do país, segmentos marginalizados e minorias acreditavam que poderiam ter voz, e que seus brados seriam imediatamente atendidos. Esta parcela, a princípio, entusiasmada - o mundo acadêmico de corrente filosófica de esquerda, os ambientalistas, a igreja católica progressista, os cidadãos sem-terra (MST), os homossexuais, transexuais e afins (GLBT) – todos aguardavam ansiosamente o momento das grandes mudanças na lei e no status social; na colocação em prática dos seus direitos de cidadania. Enquanto todos esses grupos se manifestavam, parece ter falado mais alto o nicho do capital financeiro internacional, em seu discreto silêncio inquietante...

Qual terá sido a trilha sonora que tenha caracterizado o governo Lula? Ou, melhor dizendo: Houve, de fato, uma trilha sonora dominante do governo Lula? Se os dois mandatos não foram suficientes para iconizar um protótipo, uma coisa parece certa: tomando como referência a representatividade25 pelo mundo artístico, o “arranjador” deva ter sido o cantautor-ministro Gilberto Gil – não apenas por ter sido membro do primeiro escalão do governo, mas, sobretudo, porque demonstrou ter acolhido todos os naipes possíveis dentro daquilo que se convencionou chamar “música popular brasileira”, ou, simplesmente, MPB. Pelo menos no que diz respeito à imagem do país no exterior, algo que parece ter ficado evidente no dia em que se pôs a tocar com Koffi Anan em cerimônia no salão nobre da ONU, quando da homenagem póstuma às vítimas do atentado no Iraque e, em especial, ao embaixador Sérgio Vieira de Melo26. Esta seria apenas uma, dentre as várias aparições de Gilberto Gil no cenário internacional, enquanto ministro de estado da cultura.

O governo Lula foi entremeado de algumas efemérides internacionais que, por razões simbólicas, veio a chamar ao palco muitos músicos: No ano de 2005, comemorou-se o Ano do Brasil na França – Brasil, Brasis27. Dentre as atrações, a “funkeira” Tati Quebra Barraco, ao lado de veteranos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Daniela Mercury e Carlinhos Brown, Marcelo D2, Dudu Nobre, Maria Rita, trios elétricos da Bahia e de Pernambuco, mangue beat e forró. A festa nacional do dia 14 de julho foi comemorada com shows de músicos brasileiros e acompanhada pelo presidente Lula e o prefeito de Paris, Bertrand Delanöe, na Bastilha28, tendo como participantes nomes como Gal Costa, Lenine, Jorge Mautner, Seu Jorge, Dig Bill (Ilê Aiyê). A torre Eiffel vibrou ao som de clássicos como A garota de Ipanema e às luzes verde-amarelas.

O segundo mandato não apresentou mudanças muito substantivas, incluindo novos protagonistas que tenham se tornado paradigmas na política. Em contrapartida, debates sobre direitos intelectuais, programas de incentivo e promoção de eventos teve grande efervescência. Gilberto Gil alegando ter de retomar a vida artística e

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empresarial cedeu seu posto ao sociólogo Juca Ferreira (João Luiz Silva Ferreira), então secretário executivo da pasta, em 31 de julho de 2008. Ferreira permaneceu no cargo até o final do governo Lula (2011). Exposto isto, talvez seja possível arriscar dizer, a respeito da trilha sonora do governo Lula, que ela mais se assemelhe a um grande potpourrit musical, composto de vários fragmentos assimétricos e multifacetados, costurados de acordo com as possibilidades, tal como a dessemelhança entre os supostos aliados políticos (que entraram e saíram de circulação)29, seus detratores e “companheiros”.

Enfim, nesse caldeirão de diversidades, em várias instâncias, as pessoas parecem ter aprendido a dançar todas as modas: acertam o passo e a fórmula de compasso, mudando a coreografia ao sabor das novidades e dos noticiosos (escândalos, trocas de executivos, tragédias naturais, matanças...). Modas entram e saem, retornando, às vezes transfiguradas, mas preservando elementos formais. Ao garantirem sua vaga na paisagem sonora, pelo menos por algum tempo, fixam-se como memória cultural. De certo modo, essa situação se percebe nas matinês dançantes frequentadas pelos idosos, não mais interessados nas mudanças de governo. Tendo vivido “muitos carnavais”, querem, antes de tudo, deliciar-se com os hits de todos os tempos e lugares: do samba ao bolero, passando pelas baladas românticas, nacionais e internacionais, os covers do rock, da música latina e quantas mais forem as peças de repertório que venham a animar os salões, criando momentos de descontração em solo firme ou “emoções em alto mar”30. Deixa a vida me levar!

7. Ai, se eu te pego...Muitos são os elementos e funções que estabelecem vínculos entre paisagens sonoras e as trilhas musicais. Tentar tomá-los todos, a uma só vez, é tarefa fadada à frustração. Nesse sentido, o papel das mídias, analisadas em sua especificidade, poderia trazer novos insumos para este estudo empírico como, por exemplo, todas as razões que determinam o longo sucesso da canção “Ai, se eu te pego”, do paranaense Michel Teló, em escala planetária.

Dirigindo a atenção para o tempo presente, percebe-se que o atual governo, de Dilma Rousseff, já testemunha algumas mortes tecnológicas e transformações que

exacerbam o que já havia sucedido nos mais de 15 anos que antecederam o seu mandato: O fim do walkman, em outubro de 2010; a “velhice” precoce do I-Pod, aos dez anos de existência, em 2011, ao mesmo em que o antigo LP volta triunfante (e com custo alto).

Em contrapartida às extinções, o desenvolvimento tecnológico possibilitou a criação das redes sociais, com consequências importantes na formação de novas sensibilidades, hábitos de escuta e fruição dos repertórios musicais: a televisão em live streaming, a música para telefone celular, a “nuvem” para armazenar música e outros arquivos digitais... Sem deixar de mencionar o crescimento do repertório armazenado no sítio Youtube.com, que vem possibilitando ressuscitar do passado maciçamente um vasto arsenal sígnico para o momento presente, ao mesmo tempo em que viabiliza o lançamento de novos astros, a partir de uma “fabricação” com equipamentos domésticos, em produções caseiras. São acontecimentos impactantes e de repercussão que, muito possivelmente, farão do universo midiático ainda mais visual do que auditivo... e também mais imiscuído de novas misturas. (Mas isto já é assunto para outro ensaio...)

Tratar de temas no âmbito das linguagens da música é, de fato, tarefa difícil, dada a sua natureza autorreferente. Mas ao mesmo tempo, o obstáculo se converte em tarefa altamente convidativa, pois não será a ambiguidade, a multiplicidade semântica uma das riquezas maiores da comunicação, pelas linguagens da música? Pretendi, ao longo destas páginas, apresentar algumas preocupações que percutem e repercutem a minha área de atuação acadêmica: a música e sua interface com as mídias. Se algumas afirmações possam carecer de uma abordagem científica tradicional, não será por isso que terei falhado na sustentação das afirmativas: houve rigor na obtenção de fontes. Longe de haver concluído esta quase-viagem a um universo edificado por paisagens sonoras, espero haver instigado o leitor a colocar em prática a sua “audição clara” e exercitar, por sua própria conta e risco, novas formulações teóricas. Se a pesquisa mostrou-se insuficiente e superficial, ao menos foi possível evidenciar que, por intermédio desses estudos, é possível obter informações valiosas, que poderão contribuir para um conhecimento mais aprofundado a respeito do Brasil. “Um país de todos”, que também necessita se conhecer pelos ouvidos...

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Notas:1 O conceito, criado por Murray SCHAFER (2001) traça um paralelo à experiência da clarividência e aponta para a necessidade de dirigir a atenção

para os fenômenos sonoros que, por certo, podem ser portadores de informações relevantes.2 Entenda-se o conceito de paisagem sonora (adaptação do neologismo soundscape), como o meio ambiente acústico, de qualquer natureza,

assimilado no eixo espaço-tempo. SCHAFER adverte que a paisagem sonora tende a ser progressivamente mais barulhenta, com o passar do tempo (SCHAFER, 2001).

3 Não podendo me alongar em considerações a respeito, remeto o leitor à leitura do texto de Álvaro Neder: O estudo cultural da música popular brasileira: dois problemas e uma contribuição (NEDER, 2010).

4 É, por exemplo, o caso de árias de ópera que se transformam em trilha sonora de peças publicitárias.5 Uma análise detalhada, acerca das implicações tocantes à canção, pode ser consultada em VALENTE (2003).6 Some-se que além do número reduzido, uma grande massa dos escritos é fruto da lavra de autores não isentos – os fãs – ou visando a outros interesses

e preocupações longe do campo artístico. Parte expressiva dos trabalhos universitários é de cunho histórico, antropológico e linguístico-literário, sociológico. Nestes casos, a preocupação com a qualidade artística da obra musical não é a prioridade. Desse modo, gêneros como o funk, hip hop e outros, normalmente relacionados prioritariamente como a música das camadas desfavorecidas economicamente são recebidos com entusiasmo, pelos autores, à medida que garantem a “sociabilidade” grupal, promovendo “consciência identitária”, ou a redução da violência na comunidade; no caso da relação letra e música, valoriza-se a “eficácia” comunicativa entre ambas. Mais recentemente, os programas de pós-graduação vêm manifestando interesse nos estudos dirigidos à canção, sobretudo àquela denominada “canção popular urbana”, com resultados interessantes. Na maioria dos casos, trata-se de análises de composicionais, relacionando a evolução da linguagem de compositores através de suas obras.

7 Um exemplo típico é o funk: acolhido, por uma comunidade de pesquisadores de prestígio como de extrema relevância, a mesma manifestação musical é, para outros estudiosos, com o mesmo prestígio intelectual, algo sem maior interesse – quando não desprezível...

8 Não se trata, absolutamente, de minimizar instâncias como o poder de persuasão da mídia sobre a opinião pública, mas de considerar que, especialmente a liberdade de expressão permite avaliar as manifestações populares como sinceras.

9 Dentre eles, destaco o texto Opala preto e outras pérolas performance de um veículo numa paisagem sonora globalizada, originado de um debate de uma lista de discussão e apresentado no XI Encontro Nacional da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música), realizado no Instituto de Artes da Unicamp (24 a 28 de agosto de 1998). O texto encontra-se publicado na íntegra em um periódico (VALENTE, 1999).

10 Em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP e, desde 2008, no Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da ECA-USP. Parte dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos foi publicado em hipertexto (VALENTE (org).(2010; 2011)

11 Um exemplo interessante se encontra na canção Menina veneno. O hit do então desconhecido Ritchie tomou conta de todas as estações de rádio em período integral, no ano de 1983. Tendo-se em conta que a época não comportava a reprodução digital em série, bem como outras mídias (Youtube, redes sociais) a força da canção (e do jabá) tiveram peso significativo na caracterização da paisagem sonora daquele ano.

12 No caso da música verificar-se-á, mais tarde, essa mesma possibilidade de escolha. Aliada à possibilidade de efetuar cópias a baixo custo financeiro, gratuitas ou pirateadas - propiciaria a escuta, e reprodução em série de músicas, sob a forma de arquivos sonoros.

13 Em certa medida, corresponde a uma recuperação do procedimento das primeiras gravações, quando os dados da gravação eram anunciados, antes do início da faixa gravada.

14 Desenvolvi várias reflexões sobre o conceito de “movência”, cunhado por Paul Zumthor (1997). A movência é um processo tradutório do próprio signo (no caso, musical), que faz com que a obra se reconfigure. Não se limita a mudanças de letra ou arranjo instrumental, mas também a aspectos mais sutis, como andamento, enunciação vocal, projeção da voz, espacialização do som etc..

15 Existe, ainda, um dado importante que é a temática expressa nas letras das canções e sua função junto aos receptores. Não sendo interesse deste texto estabelecer juízos de valor ou mesmo analisar em detalhes as transformações sofridas por este gênero, bem como os outros que comentarei, a seguir, permito-me encerrar as descrições aqui, já quem sobre o forró, existem trabalhos consistentes desenvolvidos. O diferencial inegável entre a versão tradicional é o forró universitário é que este último não existe sem a alimentação elétrica.

16 No verbete pagode, do Dicionário da MPB Cravo Albim, encontra-se a curiosa observação: “Sua repercussão chegou até a Copa Mundial de 2002, no eixo Japão-Coreia, quando muitos dos jogadores que arrebataram o pentacampeonato para o Brasil, foram filmados e fotografados cantando esse tipo de música.” (ALBIM 2005).

17 Cite-se, por exemplo, a telenovela América (Rede Globo, 2005), cujo argumento centra-se na vida dos peões de boiadeiro e seu entorno.18 A imagem cult se ratifica, a ponto de convidar para acompanhá-la o pianista Marcelo Bratke, em 2011.19 Após sucesso na Jovem Guarda, sua carreira arrefeceu-se, até se tornar epígono daquilo que se convencionou designar como “cafona”. Ao que

parece, a “conversão” se deu após ter sido convidado para animar o aniversário de 50 anos de Fernando Collor. O vasto repertório de canções bregas parece ter realimentado a sua carreira. Consulte-se: Euforia alagoana: O ex-presidente Fernando Collor fez de seu 50º aniversário o ensaio geral para o regresso à política a partir do ano 2000. In: Época (on-line). epoca.globo.com/edic/19990816/brasil2.htm. Acesso: 30/jun.2012.

20 Conforme estatística divulgada no jornal Folha de São Paulo foi o disco Canções para louvar ao Senhor foi o campeão de vendas pela Polygram em 1998 e o segundo mais vendido em todo o Brasil, sendo superado apenas por Leandro e Leonardo (BMG, 3 000 000). Em 2011, o Ágape Musical, produto conjuminado ao livro Ágape (igualmente best seller, com mais de cinco milhões de exemplares vendidos) (1º de janeiro de 1999, caderno 4, p.1)

21 Na época, anunciou a saída dos palcos em 2012, o que parece verificar-se, atualmente. 22 Para se criar uma imagem “nordestinizada” do candidato, os “marqueteiros” apelaram para o produto nacional e popular, fazendo-o substituir

jantares em restaurantes finos, por buchada de bode, em feira popular, montar em jegue etc. Informações colhidas em: http://pecasraras.blogspot.com.br/2010/10/musica-para-eleger-fhc-x-lula-em-1994.html. Acesso: 30. Jun. 2012

23 O depoimento pode ser visto no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=rqRRLod-s3I. Acesso: 30. Jun.2012.24 Aqui reproduzo o termo utilizado por Nelson Motta na entrevista. Referia-se, mais especificamente, ao então presidente José Sarney e a sua relação

com a lambada.25 Aqui cito o compositor Gilberto Mendes, para quem o lema um país de todos não se estende à música de concerto... (cf. palestra proferida para o

Centro de Estudos em Música e Mídia -MusiMid, em 24 jun. 2005). http://www.musimid.mus.br/videos.htm. Acesso: 30 jun. 2012.26 Reproduzo a notícia, conforme assinalado no Terra Notícias, em 19/ 09/2003:“O músico e ministro de Cultura do Brasil, Gilberto Gil, fez hoje um

show no Hall da Assembleia Geral da ONU em memória das 22 pessoas que morreram no atentado à sede dessa organização em Bagdá. O concerto também foi realizado pela celebração do Dia da Paz Internacional e foi apresentado pelo próprio secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que lembrou o compromisso dessa organização com “a paz e a dignidade humana”. No final do show, Gil levou Annan para cima do palco, onde o secretário-geral tocou atabaque.Gil e Kofi Annan tocam juntos na ONU pela paz”. In: Terra notícias: http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,OI146449-EI865,00-Gil+e+Kofi+Annan+tocam+juntos+na+ONU+pela+paz.html. Acesso: 30 jun. 2012.

27 Sobre o evento, consulte-se a descrição do projeto na página do Ministério da Cultura (Minc) em: http://www.cultura.gov.br/site/2005/03/17/brasil-na-franca-2/.

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28 Lula aclamado em show de música brasileira na Bastilha. In Uol: Últimas Notícias. Disponível em : http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2005/07/13/ult34u130304.jhtm (13/07/2005). Acesso: 30 jun 2012.

29 Aliás, esta ideia aparece no próprio logotipo do governo, onde a palavra Brasil aparece em letras de cores e estampas diferentes, tal como um bordado feito de retalhos. Como aposto, segue a frase “um país de todos”.

30 Referência aos cruzeiros temáticos, no qual Roberto Carlos é o convidado de honra. Devido ao sucesso, o evento vem se repetindo anualmente, no verão, com saída do porto de Santos, com duração de três dias.

Heloísa de A. Duarte Valente é Pesquisadora do CNPq, Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), com estágio junto à Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, Paris), e pós-doutoramento junto ao Dept. de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CTR- ECA-USP). É autora de Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio (São Paulo: Annablume, 1999) e As vozes da canção na mídia (Via Lettera/FAPESP, 2003); e organizadora de diversas obras na área interdisciplinar de música e comunicação. É fundadora Centro de Estudos em Música e Mídia - MusiMid e idealizadora e responsável pelos Encontros de Música e Mídia (desde 2005). Atua como pesquisadora e docente junto ao Programa de Pós-Graduação em Música ECA-USP e no Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi das Cruzes.

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Recebido em: 12/04/2012- Aprovado em: 04/01/2013

Carlos Ernest Dias (UFMG, Belo Horizonte, MG)[email protected]

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

PEGA NA CHALEIRA - RESENHAS

Resenha: Bossa Nova e Crítica de Liliana Harb Bollos

Review: Bossa Nova e crítica [Bossa Nova and criticism] by Liliana Harb Bollos

BOLLOS, Liliana Harb. Bossa Nova e crítica: polifonia de vozes na imprensa. São Paulo: Annablume, 2010; Rio de Janeiro: Funarte, 2010. 263 páginas. R$ 31,50

O livro Bossa Nova e Crítica – polifonia de vozes na imprensa, de Liliana Bollos, traz uma importante contribuição aos estudos sobre a Música Popular Brasileira. O trabalho analisa as publicações críticas sobre a Bossa Nova, colhidas em arquivos do IEB - Instituto de Estudos Brasileiros, do Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, da revista Clima e sobretudo do Arquivo Tinhorão no Instituto Moreira Sales. O volume, originado na tese de doutorado da pesquisadora, estabelece relações entre a História e a Arte, colocando a hipótese de que a crítica musical no Brasil evoluiu a partir dos moldes da crítica literária. Para demonstrar isso, o primeiro capítulo discorre sobre a formação da literatura brasileira e também de sua crítica, explorando obras de Silvio Romero, Machado de Assis e Sérgio Buarque de Holanda. Essa análise permite ao leitor acompanhar a evolução do pensamento crítico no campo da literatura, mas que incidirão, segundo a autora, diretamente sobre a crítica musical erudita e posteriormente sobre a música

popular. Liliana justifica a permanência de Mário de Andrade como figura central na gênese de uma crítica musical baseada na linguagem artística e não em elementos extrínsecos a ela, contrapondo-se à crítica historiográfica de cunho social estimulada por Silvio Romero, que ganhou hegemonia na passagem do século XIX para o século XX.

Percorrendo trilhas abertas por José Miguel Wisnik em “O Coro dos Contrários” (1983) e por Bruno Kiefer em “Villa Lobos e o Modernismo na Música Brasileira” (1986), o primeiro capítulo analisa as movimentações ocorridas na Semana de Arte Moderna e as polêmicas por ela provocadas na imprensa, incluindo o famoso confronto entre o conservador Oscar Guanabarino e o modernista Menotti Del Picchia. O texto pontua a importância das revistas Klaxon (1922-23) e Ariel, (1922-24) que, após a Semana, passaram a publicar artigos e produções de caráter educativo, com a participação de vários colaboradores.

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A autora menciona a importância das pesquisas sobre músicas brasileiras publicadas por Mário de Andrade em diversos livros, mas mantém o foco do trabalho na análise de sua produção crítica em jornais e revistas. Acompanhando a evolução e a conformação de uma crítica musical que oscila entre a crítica ideológica e a crítica estética, Liliana explora a ampla influência do escritor e musicólogo sobre a intelectualidade musical da primeira metade do século XX. Conceitos amplamente discutidos no meio acadêmico musical brasileiro, a identidade nacional e o caráter interessado da arte brasileira desenvolvidos por Andrade permeiam a discussão na segunda metade do primeiro capítulo. Mas o foco principal da pesquisa é mesmo o campo da crítica e do jornalismo musical, ou seja, na análise intrínseca do objeto musical, sem o cunho social e historiográfico que marcaram o projeto nacionalista. Analisando as dicções e contradições do intelectual no período, o texto investiga as forças presentes em seu trabalho como crítico de música e no seu compromisso de promover uma instrução e um “amelhoramento” 1 do brasileiro.

O livro Bossa Nova e Crítica historiciza o lugar da crítica e o diálogo entre a universidade e a imprensa na interpretação crítica do contexto cultural brasileiro. Valendo-se do livro Papéis Colados, de Flora Sussekind, Liliana descreve os dois modelos de crítica que se contrapõem a partir dos anos 1940: a crítica de rodapé, escrita por bacharéis e jornalistas, e a crítica universitária, desenvolvida por membros da Academia. Antônio Cândido em São Paulo e Afrânio Coutinho no Rio de Janeiro são os dois nomes mais significativos no segundo modelo, e que viriam a promover um estreitamento de laços entre a crítica universitária e os suplementos literários dos jornais, entre a literatura de invenção e a grande imprensa. Os trabalhos de Cândido e Coutinho localizam-se no período de afirmação do modernismo, quando se avalia a produção surgida entre os anos 20 e 40. Os dois intelectuais pavimentam o caminho para a chegada do movimento concretista em São Paulo nos anos 50, em cujo âmbito se revela a produção dos “poetas-críticos”, entre eles Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos.

A Revista Clima, publicada entre 1941 e 1944, e que teve Mário de Andrade como patrono, foi, segundo a autora, o ponto de partida de uma bem sucedida trajetória de intelectuais ligados à Faculdade de Filosofia da USP, que estabeleceriam uma estreita relação com a sociedade através da publicação de artigos e críticas nos principais jornais do país. O texto aponta ainda as turbulências provocadas pela ditadura militar no ambiente universitário a partir de 1964, quando muitos suplementos literários foram fechados, ocasionando um afastamento e uma reclusão da universidade com relação ao contexto cultural.

O segundo capítulo do livro inicia abordando as origens da crítica musical e a sua evolução enquanto ramo jornalístico e propagador da cultura. A seção permite

ao leitor conhecer as etapas vividas pela música popular brasileira no século XX, através da análise de minuciosos dados sobre gravações e críticas publicadas no período. O capítulo percorre uma vasta bibliografia, que inclui os principais especialistas em música brasileira, como Lúcio Rangel, Jairo Severiano, José Ramos Tinhorão, José Miguel Wisnik, Hermano Vianna, Carlos Sandroni, Santuza Cambraia Naves, Arthur Nestrovski e Tárik de Souza.

Liliana Bollos destaca a publicação de revistas sobre música popular como elemento fundamental no processo de reconhecimento da produção existente nas rádios brasileiras. A autora analisa publicações como Phono-Arte (1928 a 1931), PRA Nove (1938), Radiolândia, ( 1953 a 1963), e principalmente a Revista da Música Popular, dirigida por Lúcio Rangel e publicada entre 1954 e 1958. Segundo a autora, é na Revista da Música Popular, considerada por Tárik de Souza como a “bossa nova” da imprensa musical no Brasil, que a informação e a discussão sobre música popular ganha corpo e um acalorado espaço para discussão. A professora promove em seu trabalho uma interessante comparação entre os perfis da Revista Clima e da Revista da Música Popular. Enquanto na primeira todos os colaboradores são provenientes da universidade e buscavam a construção de um pensamento crítico unilateral, na segunda encontram-se os mais diferentes tipos de colaboradores, gerando uma polifonia de vozes, que apesar de algumas dissonâncias, dialogam entre si.

O texto chama a atenção para novos fatos sócio-culturais que se dão no país nos anos 50, como a polarização entre o estímulo ao desenvolvimentismo urbano dos anos JK e as novas leituras sobre a cultura popular de origem rural, surgidas com as obras de João Cabral de Mello Neto e Guimarães Rosa. Por outro lado, as transformações ocorridas no cenário econômico do Estado Novo iriam influenciar os comportamentos das elites brasileiras nesse período, provocando mudanças nos hábitos de consumo, incluindo a TV, o rádio e os gêneros “modernos” por eles propagados. Entre os pontos abordados, está a influência que a bossa nova, um gênero essencialmente moderno, teria sofrido do jazz, sobretudo do cool jazz, tido como um gênero moderno e sutilmente revolucionário. O livro apresenta minuciosos dados sobre alguns dos principais discos lançados no período e que influenciaram o aparecimento da bossa nova. Entre eles, estão The Birth of the Cool de Miles Davis (1949), Julie is her name, da cantora Julie London com o guitarrista Barney Kessel, Canção do Amor Demais, de Jobim e Vinicius (1958), e Chega de Saudade de João Gilberto (1959).

Colocada a ideia de que a música popular brasileira atinge a sua maioridade com a Bossa Nova, o texto esboça uma visão de que as proposições do nacionalismo andradiano irão se concretizar no campo da música popular, e não mais na música erudita. Essa “fratura” do nacionalismo na música erudita, por volta de 1950, vem sendo apontada por diversos pesquisadores da música brasileira, entre eles

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o compositor e pianista Celso Mojola, cujo depoimento oral é citado pela autora (pág. 130). Este considera o caso de Cláudio Santoro, compositor que explorou em sua obra os conceitos nacionalistas, mas que ao compor as Canções de Amor com Vinícius de Moraes em 1955, estaria “passando o bastão” do nacionalismo para Jobim, sem que este soubesse propriamente disso. Alternando entre opiniões próprias e descrições técnicas dos discos e a maneira como estes foram concebidos, gravados e recebidos pelo mercado, a autora contribui com a discussão sobre a influência do jazz e sobre a retomada do samba pela bossa nova, ainda que estes temas já estejam bastante explorados na bibliografia sobre o gênero.

O terceiro e último capítulo, no qual a autora analisa a recepção da bossa nova pela imprensa, define três momentos pontuais da crítica sobre o novo gênero: a recepção do disco Canção do Amor Demais, lançado em 1958, as críticas imediatamente subsequentes ao Concerto do Carnegie Hall em novembro de 1962, e um último momento no qual, já consolidada a bossa nova, há uma crítica mais cuidadosa e menos tendenciosa sobre o assunto, e que permite uma compreensão maior da música em si. Como exemplo disso a autora cita a crítica “Canções de Modinhas Nossas”, de José da Veiga Oliveira, sobre a qual desenvolve extensa análise. Publicada no Suplemento Literário do Estado de São Paulo em 28/02/1959, é a única crítica sobre música popular publicada naquele periódico. Liliana concentra sua análise na dificuldade exposta pelo crítico em definir se aquela música seria popular ou erudita. Essa discussão encontra lugar na obra de Antônio Carlos Jobim, tido por muitos como herdeiro de Villa-Lobos em vários aspectos de sua escrita musical.

Realizando um extenso e exaustivo levantamento de críticas sobre música em geral, mas concentrando-se naquelas sobre a bossa nova, o texto de Liliana Bollos apresenta um caráter quase investigativo sobre o assunto, e percorre os principais debates e polêmicas sobre o impacto que a bossa nova causou tanto no meio musical quanto no meio jornalístico. A autora mostra como as críticas sobre música se polarizaram entre as críticas acadêmicas publicadas no Suplemento Literário ou na Revista Clima e entre as críticas sobre música popular escritas nas revistas comerciais. A questão das influências jazz/bossa nova/jazz é novamente objeto de análise, demonstrando o quanto o assunto esteve em discussão, provocando tensões e incompreensões.

Uma das relevantes contribuições deste trabalho é o minucioso levantamento de críticas publicadas na imprensa sobre um evento até então coberto de obscuridades. Trata-se do Concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall em Nova Yorque, em novembro de 1962. Tendo coletado e analisado vinte e duas críticas sobre o assunto, Bollos elucida de forma definitiva para o leitor como se deram os fatos daquele show, demonstrando também a tendência negativa da crítica brasileira com relação ao evento. Envolvendo as principais figuras da música popular no Brasil e nos Estados Unidos,

como o letrista Ray Gilbert, o compositor e arranjador Clare Fischer, além dos músicos Stan Getz, João Gilberto, Gerry Mulligan e Tom Jobim, o livro apresenta em detalhes todas as tensões e movimentações comerciais geradas por aquele momento de “exportação” da bossa nova. A importância do show para a música brasileira no exterior é revelada de forma isenta, através do confronto entre diversas críticas e opiniões, evitando-se os preconceitos existentes no Brasil, explicitados por alguns pesquisadores brasileiros.

O trabalho de Liliana Bollos contribui também para o conhecimento dos principais livros sobre música popular publicados nos anos 60, durante o calor da discussão sobre nacionalismos e estrangeirismos. Entre esses livros, estão Panorama da Música Popular Brasileira, de Ary Vasconcelos, de 1964, Música Popular: um tema em debate, de José Ramos Tinhorão, lançado em 1966 e o clássico Balanço da Bossa, de Augusto de Campos, lançado em 1968. Outras tendências são também contextualizadas, como a tendência nacionalista e participante desenvolvida pelos Centros Populares de Cultura da UNE e a retomada do samba tradicional por interpretes como João Gilberto. Embora se concentre na questão da crítica musical e na recepção da bossa nova pela imprensa e pela crítica, o livro possibilita o contato com um amplo painel histórico sobre a música popular brasileira do século XX, com riqueza de detalhes sobre os seus protagonistas e sobre as principais gravações e publicações, críticas ou não, sobre esta música.

Reafirmando a hipótese que as leituras críticas sobre música popular tiveram origem no campo da literatura, o livro propicia o conhecimento das diversas interpretações que o fenômeno da música popular gerou ao longo do período, seja na crítica promovida pelas revistas comerciais, quanto na crítica mais especializada e mais acadêmica. Nessa última, a autora destaca o trabalho de Augusto de Campos, que agregou em torno de si um grupo de escritores, músicos e maestros que desenvolveram a ideia de uma crítica “de invenção” e de cunho estético. Não apenas intelectuais, mas conhecedores da linguagem musical, e que por isso mesmo puderam desenvolver um amplo debate, como se vê no livro Balanço da Bossa, referência obrigatória para qualquer estudioso da música brasileira no período em questão. Por sua vez, o livro de Tinhorão explicita uma visão conservadora e não progressista, presa a padrões nacionalistas e avessos a influências estrangeiras nos ritmos nacionais.

O estudo de Liliana Harb Bollos sobre a crítica musical em torno da Bossa Nova vai bem além das proposições iniciais. Se for verdade que os estudos sobre o Modernismo Musical no Brasil vêm se tornando cada vez maiores, ainda são poucos os autores que tratam o assunto de forma metódica e isenta de preconceitos como neste trabalho. A autora presta toda a sua reverência a Mario de Andrade, mas consegue relativizar o alcance de suas projeções sobre a cultura musical brasileira, seja por avançar no período cronológico, indo até a Bossa Nova, seja por tratar esse

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gênero como algo realizador das propostas do modernismo musical brasileiro, só que no campo da música popular e não mais no campo da música de concerto. Nesse sentido, são extremamente elucidadoras as abordagens de aspectos presentes no gênero, como a relação entre a poesia e a música, entre a cultura e o mercado, entre o local e o estrangeiro e entre a música erudita e a popular.

A autora enxerga pontos em comum nos trabalhos de Mário de Andrade e de Augusto de Campos. Para a professora, ambos procuram legar à música seus elementos inerentes, Mário pela construção, Augusto pela invenção (pág. 240). Bollos considera ainda que entre Mário de Andrade e a Bossa Nova, houve a formação de uma crítica moderna brasileira, que passa por Antonio Candido e Afrânio Coutinho, pela Revista Clima, pelo Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo e pela “invenção” do grupo Noigandres, formado pelos concretistas sob a inspiração de Oswald de Andrade.

A autora termina o seu trabalho manifestando sua preocupação quanto a não existência de uma crítica que reconheça a música popular como fenômeno artístico em primeiro lugar, para depois inseri-la num ambiente ideológico ou sociológico, e que acabam quase sempre caindo nas recorrentes análises sobre os nacionalismos musicais.

Tendo a concordar com Liliana que necessitamos urgente de estudar, conhecer e superar as dicotomias do século

XX, uma vez que já estamos na segunda década do século XXI e outros impasses se anunciam, que certamente envolverão tanto a produção musical quanto a produção textual e crítica sobre música.

Carlos Ernest Dias é Professor de Oboé, História da Música Popular e Música e Modernismo na Escola de Música da UFMG, tendo se graduado com o Mestrado em Ciência da Arte pela UFF (com a dissertação Antônio Carlos Jobim: imagens e relações em Matita-Perê e Águas de Março, 2004) e o Bacharelado em Oboé pela UFMG. Estudou oboé com Vaclav Vineck, Luís Carlos Justi, Ricardo Rodrigues e Afrânio Lacerda e foi oboísta da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, do Teatro Nacional de Brasília e da Orquestra Sinfônica Brasileira no Rio de Janeiro. Coordenou o Festival de Inverno da UFMG (1993-1998), a Banda Sinfônica da UFMG (2004-2008), o I Encontro de Estudos da Música popular Brasileira (2006), e diversos projetos de extensão. Com o CD Imagem (Karmim, 1999) recebeu o Troféu Pró-Música de Minas Gerais na categoria Melhor Arranjador. Foi curador da série Cartografia Musical Brasileira em MG (Rumos Itaú Cultural Música 2000/2001). Participou de shows e gravações com Juarez Moreira, Marcus Viana e Marco Antônio Guimarães. Foi o arranjador e instrumentista (oboé, corne inglês e flauta) do CD Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé de Zeca Baleiro e Hilda Hilst (2005). Atualmente, é Chefe do Depto. de Instrumentos e Canto da Escola de Música da UFMG.

Nota1 Expressão de Mário de Andrade, citada pela autora.

Carlos Ernest Dias é Professor Assistente da Escola de Música da UFMG, onde ministra as disciplinas Oboé, História da Música Popular e Modernismo e Música Brasileira. Integrou a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, a Orquestra do Teatro Nacional de Brasília e a Orquestra Sinfônica Brasileira. Possui Mestrado em Ciência da Arte pela UFF, Graduação em Oboé pela UFMG e, atualmente, cursa o Doutorado em Música na UFMG. Na música popular, atua como instrumentista (oboé e saxofone), compositor e arranjador, tendo gravado o CDs Imagem (1999) que recebeu o Troféu Pró-Música de Minas Gerais na categoria melhor arranjador. Foi curador da série Cartografia Musical Brasileira (Rumos Itaú Cultural Música 2000 e 2001). Coordenou o Festival de Inverno da UFMG (de 1993 a 1998), a Banda Sinfônica da UFMG (de 2004 a 2008) e o I Encontro de Estudos da Música Popular Brasileira (2006). Atualmente é Chefe do Departamento de Instrumentos e Canto (2011 a 2013).

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CONCEIÇÃO, K. M. L. da. Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.254-256.

Recebido em: 26/11/2012- Aprovado em: 04/01/2013

Kátia Milene Lima da Conceição (UNESP, São Paulo, SP)[email protected]

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.28, 256 p., jul. - dez., 2013

A Relação intergeracional no livro Clara na Música Popular

Esta publicação de Liliana Bollos é dedicada ao público juvenil. A protagonista é uma jovem envolta com o vestibular e questões peculiares dessa fase da vida, interessando-se pela música através da descoberta apaixonante de contextos musicais que a seduzem e a estimulam a aprofundar seus conhecimentos, inclusive, através de meios e relações afetivas.

O livro Clara na música popular tem oitenta páginas distribuídas em vinte capítulos sucintos, onde aspectos da história da música popular são discorridos informalmente, mas inspirador à pedagogia musical nesse tema emergente para o público adolescente. A proposta é apresentar um texto envolvente e adequado a esta faixa etária, já que os adolescentes possuem motivações pertinentes a essa fase da vida. A linguagem é de fácil assimilação, o conteúdo estimula o leitor a se aprofundar no material exposto com algumas sugestões de bancos de dados de universidades e sites correlacionados no final do

livro. Atualizada com a mídia emergente e consciente do valor da internet, a educadora traz atraentes indicações nesse meio, pois não se pode excluir as novas tecnologias e demais recursos considerados agentes transformadores contemporâneos. Estas dicas sugerem analogia com a extensa conectividade, não só com a internet, mas com outros aspectos como as questões afetivas e relacionais da educação musical.

A publicação tem uma divisão interessante de temas. Começa com o sonho da Clara passando pelas férias no interior de São Paulo, a relação com a família, vizinhos, sua melhor amiga, as paixões, o vestibular até a entrada na faculdade. Os assuntos são encadeados de forma didática, mas informal, e aspectos da música brasileira (choro, samba, marcha, bossa nova) e do jazz (ragtime, new orleans, dixieland, swing, bebop) são traçados e relacionados historicamente; longe de ser tedioso para um público adolescente.

Resenha do livro BOLLOS, Liliana Harb. Clara na música popular. São Paulo: Som, 2011; 80p. R$20.

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CONCEIÇÃO, K. M. L. da. Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.254-256.

No primeiro contato com o livro, a multiplicidade de informações apresenta um conteúdo didático e simbólico, desencadeando um atraente processo de escolhas, dependendo do interesse e do momento do leitor. Destaco no livro o aspecto intergeracional simbolizado nas relações de Clara. Mesmo que não tenha sido a intenção consciente da escritora, já que o significado estabelecido primariamente pode ser transformado a cada leitura, a intergeracionalidade está presente no texto de forma envolvente. Se a ideia inicial não foi relatar estas relações ou abordar este aspecto diretamente, com certeza proporcionou a reflexão e o desejo de cultivar e reforçar estas relações.

Alguns capítulos merecem destaque por mostrar justamente esta relação intergeracional. Em Minha família e o Samba, Clara demonstra todo o aprendizado que pode desfrutar dessa convivência familiar, configurado na educação informal gerada pelos vínculos entre pais, filhos, irmãos e amigos, através da reciprocidade relacional. O capítulo As férias de Clara ilustra como uma convivência prazerosa entre vizinhos, tios e primos pode trazer saberes para a vida, que é possível aprender muito em uma conversa e no convívio com a diversidade. As músicas preferidas de meus avós relata o aprendizado entre gerações, ilustrada por Clara e seus parentes, enfocando o poder da linguagem emotiva, da transmissão oral repleta de afabilidade, estabelecida também pela relação entre gerações diferentes, que se mostra benéfica e mobilizadora de ação mútua. Quando as pessoas que Clara se relaciona discorrem sobre suas lembranças musicais, observa-se como a música foi marcando a trilha sonora da vida delas, como o fator cultural e arrebatador da escuta, da memória emocional sonora se presentifica e se mostra impactante no corpo e no aspecto afetivo cada vez que é rememorada. O capítulo Conversa com Alberto sobre as fases do Jazz, mostra o crescente interesse pelo Jazz estimulado pela paixão platônica, típica da adolescência, por Alberto, marcada também pelo conhecimento obtido através de curiosas fontes de informações e emoções.

O último capítulo, com o título sugestivo O fim será o começo narra as perspectivas que esta experiência trouxe para a Clara estimulando-a a buscar novos horizontes de conhecimentos. As “entrelinhas” mostraram o aspecto projetivo da música, onde a adolescente pode ter consciência de suas descobertas que refletem o momento vivido, seu processo de aprendizado e sua relação no contexto.

É notório observar como existem constructos que estão presentes em várias áreas psicopedagógicas e nas artes, ratificando como a música pode ser projetiva de um momento presente com questões vivenciadas, nesse caso por Clara, mas que também podem ser estendidas e identificadas com outros, inclusive de idades diferentes, o que ocorre, por exemplo, com os avós de Clara. Ou seja, em qualquer fase pode existir uma representatividade

musical simbólica e afetiva. Certas situações de descobertas podem ser motivadas por contingências diversas em várias fases e momentos da vida. Assim como a personagem desenvolve a consciência do que está vivendo e do processo em que está inserida, através de sua relação com questões musicais nesse mesmo núcleo afetivo, outras pessoas também se deparam com situação similar, ilustrando o poder mobilizador da música.

A escolha por enfatizar a questão intergeracional se sobrepõe a exposição do conteúdo musical que obviamente já promove no leitor a curiosidade para buscar maiores informações sobre o que foi narrado. A convivência entre as gerações descrita de forma leve e cativante em um ambiente harmonioso resulta no aprendizado não só para a Clara, mas para os demais envolvidos. A troca de experiências e saberes, o intercâmbio entre diferentes gerações exposto neste livro demonstra os ganhos da relação intergeracional para os envolvidos no processo, fortalecendo os laços afetivos. Algumas experiências já demonstraram que a convivência intergeracional pode ser uma das responsáveis pela mudança da imagem da velhice em uma concepção positiva, quebrando com mitos e tabus inerentes ao processo natural e sociocultural do envelhecimento no Brasil, rompendo inclusive com o isolamento dos idosos na sociedade, principalmente com relação às gerações mais novas.

A obra mostra, por exemplo, como Clara sente-se motivada a interagir com os mais velhos, demonstrando que a relação intergeracional é uma ferramenta que realmente promove a aproximação, renovação, respeito, trocas de experiências, habilidades e saberes. Um recurso capaz de modificar até uma realidade preconceituosa anteriormente predominante, um benefício mútuo.

Continuando com o conteúdo simbólico das entrelinhas do livro, em certos trechos há reprodução de representações socioculturais de alguns estilos abordados, absorvidos pelos brasileiros e repetidos em diversos meios. A escritora situa-os historicamente e tenta ser imparcial, mas não deixa de colocar a representatividade dos estilos ainda predominante na contemporaneidade. Porém há certas representações que precisam de questionamentos e visão crítica para que não se busque reproduzir sem reflexão sobre o contexto. No terceiro capítulo a autora coloca que é preciso “estudar música clássica para melhorar a técnica no instrumento e deixar os dedos bem leves” (p.18), reforçando uma concepção que já é questionável, pois logicamente que é necessário um domínio técnico do instrumento, mas a música clássica não é o único caminho para chegar a este patamar. No entanto, esta concepção, não tira a significância do material, pois ainda existe uma lacuna que o conhecimento acadêmico tenta preencher satisfatoriamente com materiais que consigam realmente atingir o público juvenil, que tem motivações e aspirações particulares, nem sempre fáceis de serem atingidas por alguns professores da área, que ainda utilizam como referência, métodos de

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CONCEIÇÃO, K. M. L. da. Resenha: a relação intergeracional no livro Clara na Música Popular. Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.254-256.

musicalização infantil com adolescentes. Este exemplo serve para ilustrar a necessidade de reexaminar o que está consagrado como certo, refletindo sobre conhecimentos, representações, posturas, procedimentos e teorias. O saber deve ser reavaliado e reconstruído de acordo com a demanda histórica e educativa. Não existem métodos universais infalíveis, mas sugestões fundamentadas na ciência, em dados históricos, em livros adequados ao público que se está trabalhando, norteando, assim, a ação do educador musical.

A escritora Liliana Bollos possui diversas publicações em circuitos interdisciplinares de atuação. Circula entre a área popular e erudita com muita intimidade devido a sua ampla vivência e concepção diversificada nestes

Kátia Milene Lima da Conceição é psicóloga e musicista. Formada em piano e vibrafone. Mestre em Música pelo Instituto de Artes da UNESP. Exerce trabalhos camerísticos e como solista na área erudita e popular, além de ministrar aulas de instrumento e teoria musical.

campos. É doutora em Comunicação e Semiótica, mestre e bacharel em performance em piano jazz, bacharel e licenciada em letras, formada em piano clássico, dentre outras qualidades marcantes que a fazem discorrer com muita propriedade sobre a diversidade e a multiplicidade do contexto musical em que atua.

Esta obra é recomendada para profissionais da música que trabalham ou pretendem trabalhar com adolescentes, assim como demais interessados no tema, incluindo o público para qual foi direcionado o texto: os jovens. É interessante por apresentar aspectos desta área, que de certa forma, ainda está em construção ou reconstrução abrangendo a história da música e outras questões pertinentes ao contexto juvenil.