Revista Outras farpas.quinta edição

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Foto: “Colhida” na internet- (acima de tudo, sinceros!) ANO II EDIÇÃO V EDIÇÃO ESPECIAL - CONTOS

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Foto: “Colhida” na internet- (acima de tudo, sinceros!)

ANO IIEDIÇÃO V

EDIÇÃO ESPECIAL - CONTOS

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“Como é estéril a certeza dos que vivem sem amor...” - pensou Angélica, diante do espelho. Este que por conta do longo e relaxante banho que acabara de tomar, apresenta-se levemente condensado pelo ar quente que dominava todo o banheiro.

Durante alguns minutos, após esta breve e profunda sentença, Angélica permaneceu paralisada, encarando-se como uma estranha e irreconhecível criatura: entre a inércia, o silêncio e oindescritível peso com que esta inesperada reflexão caia-lhe sobre os ombros doloridos. Pois, ali naquele exato momento, sozinha e diante de si,percebeu quão vil, miserável e insensata estava a sua vida após trinta e três anos de existência...

O dia foi de festa e intensamente comemorado, transcorrendo de forma perfeita e peculiar entre os seus variados grupos de amigos e conhecidos que comumente gravitavam ao seu redor. Adaptável como uma camaleoa, recebeu a todos com o seu magistral sorriso solar: este que, eficazmente, durante toda a vida escondeu e silenciou uma incômoda angústia e aflição, que ali, a sós no banheiro do seu apartamento, rompeu-se em um lento e gradual choro. Tal bramido triste censurava a sua necessidade de fazer ecoar pelo mundo a mais genuína dor e insatisfação que clamava soterrada há anos em sua alma, mas que vertiginosamente voltara a pulsar com uma intensidade inominável.

Este choro mudo justifica-se, unicamente, pelo temor de Angélica em chamar a atenção do seu mais novo e desconhecido parceiro sexual, que naquele instante, deliciava-se assistindo deitado na cama de sua anfitriã, um ordinário programa de TV na madrugada de quarta-feira.

Como único recurso, Angélica soluçou baixinho diante de si, dos seus desacertos e da sua absurda arrogância ao longo daqueles anos. Suas lágrimas assemelhavam-se as de uma criança abandonada, esquecida por dias em um quarto de aspectolúgubre e sombrio. E, foi nesse estado de agonizante reflexão, que se sentiu condenada a mais abjeta podridão.

Olhando para o seu corpo nu, viu-se marcada por pequenos nódulos avermelhados; estes, surgidos em decorrência de mais uma transa ordinária e sem qualquer

esperança. Diante daquele espelho, aos olhos marejados e desesperados de Angélica, tais marcas refletiam-se como incicatrizáveis chagas.

Invadida por um tormento aflitivo, sentiu as entranhas dobra-lhe às forças, fazendo lançar em seu reflexo um imenso e abrupto golfo, que, subitamente, impregnou todo o espaço com um indefectível amargor que refletia analogamente a sua vida, os seus projetos inconclusos e a sua natureza fingida. “Aquilo” refletia a aflição sincera daqueles minutos intermináveis onde chegara a indelével conclusão de que tornara-se somente um ser sem graça, desprovida de valor e significado. Angélica descobrira que era possuidora, unicamente, de uma pífia existência.

Aniquilada por relacionamentos infrutíferos, decisões penosas e uma influência religiosa que avidamente usurpava os seus recursos financeiros, Angélica

chegara até aquela data alegre e festiva, com a certeza solitária e triste de que a sua vida ganhara um aspecto sinistro e melancólico.

Ela sabia quando iniciara aquele lento definhar em sua vida, mas somente deu-se conta disso, com a nítida e absoluta clareza, ali, frente a frente com o espelho, quando após àquela inesperada reflexão tardia tal convicção agarrou-lhe pelos braços, rompendo definitivamente a carapaça que nutriu até aqueles minutos infindos; deixando-a plenamente desprotegida e à beira da total decrepitude.

Extasiada em seu pesadelo concreto, Angélica não conseguiu ouvir os insistentes chamados de seu mais novo mancebo; ao contrário, preferiu ficar ali no banheiro, este agora frio,

opressivo e contaminado pelo odor nauseabundo que exalava indomável por todo ambiente, como um sinal explícito que indicava quão enfermo estava o seu sôfrego ser.

Naufragada em um silêncio que jamais encontrara em momento algum de paz, Angélica sentiu a decepção, o arrependimento, o ressentimento e o ódio alfinetar-lhe todo o seu corpo. Diante da ignota realidade, viu-se envelhecer, decompondo-se vagarosamente perante o espelho impassível; em uma extinção lenta e piedosa.

A aniversariante* Por Acton Lobo de Almeida

“Lenta e visivelmente destituída de prazer, encaminhou-se à sua

imensa, solitária e sepulcral cama. Deitou-se como um cão e olhou para

o teto, observando catatônica, o minúsculo e

fluorescente universo particular que cintilava uniformemente sobre o

seu ser absolutamente fragmentado.”

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Toda essa insólita viagem durou exatamente quarenta e dois minutos. Angélica, após muito esforço,recobrou os sentidos dispersos e naufragados. Recobrou os sentidos, sim, mas, não as suas forças. Sofregamente levantou do chão imundo, abrindo a porta que àquela altura pesava uma tonelada e, ao final daquele desgostoso movimento, deparou-se com o seu parceiro, que impassível e sem esboçar qualquer atitude de auxílio para com ela, perguntou-lhe: - “ Está tudo bem neguinha?”

Naquele momento um silêncio fatídico transpassou a alma daquela mulher, explodindo violentamente todos os átomos que compunha o cenário daquele apartamento candidamente decorado. Novamente os seus sentidos foram arrebatados ao dar-se conta que durante toda a sua vida, foi só e, unicamente, uma caricatural “neguinha”.

Cambaleando lentamente até o quarto, sob o olhar entediado da sua mais recente aventura estéril, Angélica, de maneira áspera e agressiva, solicitou a saída deste de seu apartamento. Foi uma expulsão ríspida, desprovida de qualquer “formalismo litúrgico”. O pobre mancebo saiu, mas não sem ao menos, desferir na face humilhada daquela mulher, uma injuriosa ofensa verbal. Angélica nada disse para contra-atacar, nem sequer pensou. Apenas com toda a força que ainda restava em sua alma, aspirou o ar denso e gelado, sentindo-se tremer de frio e de horror. Visivelmentedestituída de prazer, Angélica lentamente encaminhou-se à sua imensa e solitária cama, deitou-se como um cão, olhou para o teto e observou catatônica, o minúsculo universo particular (feito de plástico fluorescente), que cintilava uniformemente sobre o seu ser

absolutamente fragmentado. Concentrada em tudo que

estava sentindo, não tinha mais dúvidas do irreparável prejuízo que causou a si e a vida de tantas outras pessoas que fatalmente cruzaram o seu caminho. A única certeza que acariciava o corpo de Angélica e ecoava uníssona em sua alma, era a da mudança, da revisão de vida, da chance de recuperar o vigor físico e espiritual.

Angélica fixou o olhar muito além do que estava aparente aos seus marejados olhos. Respirou fundo, ecoando por todo quarto o som do ar que era absorvido e, posteriormente, expelido juntamente com as desagradáveis reminiscências que tivera naquela noite. Lentamente aplacava os pensamentos, que, como uma tempestade silenciosa, movia-se violentamente na tentativa vã de dilacerar a sua vigorosa e astuta percepção.

E, revendo cada cena de tudo que acabara de lhe acontecer, identificou naquela inesperada experiência, a oportunidade retumbante que tanto almejava para corrigir erros tão grotescos, advindos, unicamente, da ominiosa fraqueza e sórdida decadência que teimava em não reconhecer em si mesma, mas sempre, nas outras pessoas.

Angélica delicadamente enxugou as lágrimas de seu rosto e, já restabelecida em consciência e plenitude, agradeceu com um vago sorriso de gratidão, àquele que minutos atrás, fora um dos momentos mais sofríveis de sua vida ao longo daquela trajetória, tornando-se uma experiência indescritível, inexplicável e incomunicável a qualquer pessoa que fosse, pois, justamente na noite do seu trigésimo aniversário, pôde, finalmente, livrar-se da virulenta, incômoda e imprestável máscara que tanto evidenciou orgulhosamente.

Com calma, serenidade e plenitude, gradativamente, desligava-se daquele passado insensato e injurioso, encontrando em sim mesma, a força e coragem que comumente depositava em suplicantes orações, cânticos religiosos e oferendas inúteis.

E assim, Angélica adormecia graciosamente, transmutada por completo, absolutamente consciente de si e de vigor. Acariciando-se delicadamente, demonstrava para cada partícula que estava ao seu redor, uma sincera e inabalável prova de amor-próprio. Este que há anos estava esquecido em seu interior, mas que agora, pulsava em suas veias com vitalidade e generosamente irradiava em cada carícia sua, arrepiando-a de excitação consigo mesma e expandindo por todo quarto como uma esplêndida e maravilhosa áurea.

“Este momento...” - pensou Angélica em êxtase. - “Foi o melhor e mais importante presente que recebi durante a minha vida. E com um sorriso enigmático expressava a consciência plena de si mesma..

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*Dedico este texto para todos

os seres errantes e desleais que

absorvem o que há de iluminado e

criativo em todos que passam por

suas repugnantes vidas, fazendo-os,

covardemente, cambalear sob o

olhar obsequioso e melancólico da

decepção. Para vocês, seres ignotos,

desejo superação e graciosa

plenitude.

_______________________Acton Lobo é licenciado em geografia pela Universidade do Estado da Bahia UNEB Campus V. Atualmente reside em Salvador.E-mail:[email protected]

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Não sei seu nome, não o perguntei... Naquele momento era a história de Lagartixa que se misturava com a minha. Só agora, dias depois, quando a viagem já passa a ser depurada nas maneirices da racionalidade é que me vem ela perturbar os sentidos, me pedindo atenção: uma

mulher jovem, magríssima, suja, descabelada... Estava sentada ao lado da pequena barraca de lanches que paramos para comer algo após uma noite de muito conhaque e reflexões sobre o caráter fálico do monumento erguido no meio da Praça do Campo Grande, e que “nós” logo transferimos (o caráter fálico) para o homem de modo geral e todas as suas construções e toda a sua ação, pois a natureza do homem é (ou pelo menos tem sido até hoje) fálica. Após embriagar-me no e com o Campo Grande e de encontrar, ou melhor, ser encontrado por Lagartixa, eu e meus “amigos descartáveis” procuramos uma larica, visto que era tarde e sem ter comido nada a noite toda o fino que fumamos aliado ao conhaque com Coca que bebíamos compulsivamente, atacavam de forma voraz o estômago, psicológica e fisicamente.

Então, depois de sermos expulsos da praça, que há muito tempo não é mais do povo, “decidimos” seguir a luz de volta ao conforto e segurança da familiaridade consumista. Não sabia quantas coisas aconteceriam ainda naquela noite; uma, e talvez a mais importante (já que agora insiste em martelar minha memória), foi observar aquela jovem sentada ao lado da barraquinha na qual um rapaz, também jovem, moreno, com uma tendência adiposa que deduzi em suas costas, preparava hambúrgueres: estes, muito vistosos por sinal...

E foi este meu alimento naquela noite: a visão saborosa daquelas bombas de coliformes fecais, que nós, jovens “terceiro-mundistas”, temos que engolir satisfeitos, junto com outras transplantações... Mas felizmente nesta noite meu estômago e espírito se satisfizeram de “luz”.

Encostado no capô de um carro, enquanto esperava ansioso o meu pedido, alimentava minha gula vendo as outras pessoas se deliciarem, mordendo suas “bombas” ainda quentes, e aquelas expressões híbridas de prazer e dor me fizeram intuir o fato das pequenas queimaduras na boca serem tão insignificantes ao faminto que talvez até sejam mesmo necessárias...

Passei então a perscrutar o meu campo de visão como só os verdadeiros observadores dentre os meus leitores poderão entender, mas que me valem os outros? - “o resto é apenas a humanidade”! Olhava atentamente e tentava adivinhar como a visão do calor que se desprendia daquela chapa e juntamente com a luz que a cercava formavam um ambiente de suposta segurança: e o que é a segurança senão uma pequena ilusão provocada pelo calor, pela luz e por tudo que é familiar e aconchegante no meio de um mundo com tantas outras coisas que não queremos ver, pois são tão inseguras e imprevisíveis? Desenhava então na minha imaginação o caminho da luz e do calor e pude observá-los se desprendendo daquela barraquinha e traçando lenta, vagarosamente sua trajetória a caminho dos outros bares e lanchonetes ainda abertos à direita (no caminho de volta ao Campo Grande): já que foi de lá que viemos e por certo era para lá que tendíamos regressar: - “Sempre de volta para casa!”. Mas nessa acalentadora visão me veio um calafrio: como uma alfinetada no espírito; uma pergunta trazida pelo vento; uma pergunta sobre o

vento: quem é que sopra esse calor e essa luz para lá, pro caminho de volta para casa? Voltei o olhar (entenda-se: um

novo olhar!) para a esquerda (ai do meu pescoço que carregava agora o peso de toda consciência deturpada de uma geração inteira, ou talvez duas.) e lá estava ela: a faminta.

Qual não foi minha surpresa ao ver que Lagartixa (uma psicóloga sem teoria, uma psicóloga da práxis, formada pela práxis.) estava também sentada junto a nossa protagonista... Cumprimentei-a e ofereci o restante de conhaque com coca que ainda trazia comigo, ela não respondeu... Pensei (e como é maravilhoso constatar que realmente o tempo refletido é um tempo dentro do tempo) que ela não me tivesse visto... Acenei de novo, mas

mais uma vez ela se manteve neutra ao meu cumprimento... Só então percebi que estava ocupada: estava cumprindo uma tarefa (que é algo muito maior que um trabalho) e a ética que ninguém, além da vida e sua dureza, a ensinou, não a permitia -naquele momento- realizar seu desejo de ir correndo pegar o que a oferecem (atitude que ela tomou depois com a naturalidade de quem conhece o tempo e suas dádivas, a naturalidade de quem sabe esperar).

“...e o que é a segurança senão uma

pequena ilusão provocada pelo calor, pela luz e por

tudo que é familiar e aconchegante no meio de

um mundo com tantas outras coisas que não

queremos ver, pois são tão inseguras e imprevisíveis?”.

A faminta Por Jean Michel Ferreira Santos

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Lagartixa consolava aquela jovem, tentava mostrar a ela caminhos, saídas onde na verdade só havia “dor, angústia e sofrimento”... Mas quem será que Lagartixa consolava naquele momento se não a si mesma, e onde ela procurava poder frente ao espelho: da miséria, do desprezo, da infinita solidão do frio, do vento, aquele mesmo vento que aos poucos trás a madrugada e o apagar das luzes, que nos expulsa das ruas de volta para casa, onde podemos de novo buscar luz e calor... Esse vento só encontrava resistência ali (em minhas duas amigas), muito além do consumo e suas mentiras atraentes.

Ainda esperando, serpenteou em minha consciência com a tranqüilidade dos grandes rios que cortam o país e deslizam se entregando na voluptuosidade de nossas terras, encharcando-as da tênue, mas também abundante e não programada ou “racionalizada” fertilidade (assim como me parecem tênues, mas paradoxalmente abundantes as teias que compõem as afinidades) a idéia que todos os atores sociais já sabem, mesmo inconscientemente em alguns casos, que “dentro da massa existe o homem, e o homem é difícil de dominar, mais difícil do que a massa”; a idéia de “nós” como uma nação - e isso não é novo!

Nós: “desterrados na própria terra”; caranguejos que ante a impossibilidade do mar fomos obrigados a adentrar o sertão, conhecê-lo e amá-lo, e formamos e fomos formados pelo manguezal de onde é difícil nos transplantar, endurecemos nossa carapaça, cavamos mais fundo, e alguns dos nossos “coringas” já traduziram, o que, a partir da experiência explode em avalanches de analogias: a mensagem da mais bela flor que nasce no meio da lama. No nosso caso um “lodaçal de macadame”, pois somos o filho não planejado que nasceu prematuro, fruto de uma

gestação adolescente, irresponsável e egoísta, mas, para surpresa da mãe

assassina, a criança/problema sobrevive e chora: deduz-se daí que não é muda, pelo contrário, é muito barulhenta. No entanto a “nova mãe” não quer chamar a atenção, então pede carinhosamente, com ares de boa mãe e a ingenuidade de todo adulto que pensa ter poder sobre a criança: -“Calma filhinho, você não quer prejudicar sua mãe, não é?”. E pela primeira vez ela percebe que o menino se calou, pois a ouviu, e como também estava de olhos abertos a pode ver: essa tranqüilidade, essa confiança, essa certeza, assustam!

Todo esse pensamento brotou como a lembrança de uma música que escutei silenciosa e solitariamente em meio a todas aquelas pessoas:

“Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará no coração do hemisfério sul...”

Estava então consumado, bem como consumado estava o preparo da “minha bomba” e o “índio” assim como

“Brás pastor inda donzelo,querendo descabaçar-se,viu Betica a recrear-sevinda ao prado de amarelo:e tendo duro o pinguelo,foi lho metendo já nu,fossando como Tatu:gritou Brites, inda bem,que tudo sofre, quem

temrachadura junto ao cu.”

E no pequeno intervalo de

tempo, que numa “perspectiva sistêmica” pode representar um universo inteiro de possibilidades, que me distraí para pagar a refeição, Lagartixa tinha me deixado sozinho novamente na noite soteropolitana...

Ainda consigo vê-la adentrando tranquilamente o “lado escuro da lua”

e da minha mente jamais se apagou o eco de sua voz espalhafatosa e renitente aconselhando nossa pequena gestante sem nome:

-Amiga, não chore, nós somos lindas, estamos vivas...

- ÊEEEEeeeei! (num grito que provocou uma revoada de pardais abrigados numa árvore próxima)

- É minha!... (Lagartixa falava da comida “colhida” de algum consumidor, freqüentador do território onde ela exercia poder na noite da cidade, e que provavelmente já a conhecia e costumava ajudá-la com a penitência dos restos de refeição que viram esmola ao invés de lixo...)

E eu o vi, esticando o braço para fora de seu belo carro e entregando um saco plástico para nossa psicóloga sem título...

Retornava então orgulhosa e irrefutável, em sua demonstração que prescindia qualquer teoria, para colher junto a paciente os louros da estratégia que se justificava tão arrebatadora e infalivelmente:

-Tome amiga, tá veno como num tem motivo pra chorar?

E depois disso, ela se foi...Nossa! (“essa tranqüilidade,

essa confiança, essa certeza” realmente “assustam!”)

Estava só e segurava, já sem fome, meu “super X alguma coisa” e o único ponto que ainda me chamava a atenção era a faminta... Ela havia devorado tudo que Lagartixa a tinha dado de uma só vez, e agora me olhava, e a sensação mesma que tive foi que o próximo prato tanto poderia ser o hambúrguer quanto meu “eu” mais estimado... Não seria a fome de quinhentos anos que me espreitava naquele momento?

Mas logo me despreocupei... Lembrei que não tenho

ambições de “mestre”, sempre preferi ser discípulo, pois sei dos perigos de me “profissionalizar”... Nas “experiências” que pude observar de perto, sempre, os indivíduos, de um modo geral, intelectuais, de forma

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particular, que pautam a vida numa perspectiva de mercado têm demonstrado sintomaticamente uma patologia que é degenerativa tanto do corpo como do espírito [“quem, de três mil anos não vê, está à mercê dos dias e do tempo”]: a aceitação incondicional e incontestável de tudo que lhes empurram goela a baixo através da moda. Com a singela desculpa que “o intelectual/indivíduo também precisa comer” eles a polícia do pensamento por excelência, ou seja, o homem moderno ou pós- correm atrás, além da comida, do luxo prometido, a esmola eterna - “sanctas simplicitas!”. Parece, porém, que “novos tempos” estão começando a despontar e talvez surja...

Ou melhor, nada surge, apenas passa a ser visto...

“aquilo que nesse momento se revelará aos povos/ surpreenderá a todos, não por ser exótico/ mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto/ quando terá sido o óbvio”

...uma classe de “baianos” ainda “mais preguiçosos”,

e preguiçosos ao ponto de não requerer mais nada a não ser a liberdade total do indivíduo. E “nossos irmãos”, os intelectuais-profissionais-terceiro-mundistas-modernos, talvez enfim percebam que a resposta está bem aqui, basta parar de esticar o pescoço para tentar ver o outro lado do oceano, sempre!

Podia então olhar sem medo, mais com ternura e admiração, a essa potência que é nossa fome. Esse traço interessante da identidade brasileira de modo geral e baiana de uma forma tão poeticamente peculiar. Foi assim, olhando fixamente para ela e em especial para sua barriga

prenhe de outro baiano/brasileiro (mais um faminto) que meu espírito se pôs novamente a cantar:

“Ói! ói o trem. Vai surgindo de trás das montanhas azuis, ói o trem...

Ói, já évem, não precisa bagagem nem mesmo passagem no trem...”

Essa música de poder me colocou de volta nos

trilhos...Repeti em silêncio o mantra fraternal: “cautela e

prudência!” Então pensei: “caminhe para ela e a dê de comer...”,

foi o que fiz:-Boa noite, meu nome é Pedro, “Lagartixa” pediu que

lhe entregasse isto: (dei a ela o hambúrguer que tinha comprado...)

E foram essas as palavras da faminta:-“Deus abençoe!”Incomodou-me um pouco a resposta, mas logo

esqueci... (era com Lagartixa que eu queria “falar”).

______________________Jean Michel F. Santos é licenciado em história pela Universidade do Estado da Bahia UNEB Campus V, Mestrando em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, também pela UNEB Campus V e Graduando do curso de Direito da UNEB Campus XV. Atualmente reside em Santo Antonio de Jesus.E-mail: [email protected]

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Que ela nunca foi uma pessoa das mais normais, isso todo mundo sempre soube, mas daí a vir a se acabar daquela maneira foi no mínimo enigmático, e para mim então, que pude tomar conhecimento das verdadeiras razões, a princípio foi um grande choque, logo eu que dizia já ter visto de tudo na vida.

Ana era uma pessoa legal, geógrafa, adorava lecionar, vivia viajando para dar aula nos mais diversos lugares. Menina do interior, sempre preferiu as cidades pequenas ao movimento das grandes capitais. Já havia passado por lugares que até hoje procuro no mapa dessa Bahia de meu Deus e nunca os acho. “Tenho medo do asfalto ela dizia um dia ele acaba me matando”, e eu entendia aquilo como uma espécie de receio que é típico de alguém que nasceu e passou quase toda a sua vida curtindo o bucolismo do interior.

Vivia solta no mundo, numa espécie de nomadismo sem fim, até que por uns anos atrás resolveu casar e ter um filho. Por esta época nos encontrávamos de vez em quando e, como a intimidade me permitia, não perdia a oportunidade de lhe perguntar como ia a sua vida de casada, já que desde os tempos mais remotos, quando a conheci na faculdade, aquela mulher sempre pendia para a promiscuidade e a vida descompromissada.

Em resposta às minhas perguntas, ela sempre dizia que ia levando, que depois que o menino nasceu não podia mais lecionar em tantos lugares e que sua vida agora se ancorava numa cidadezinha promissora, cujo nome eu nunca memorizei. Dizia que a felicidade, pelo menos aquele tipo de felicidade que ia implícita nas minhas perguntas, não dependia necessariamente da satisfação que se podia obter no relacionamento conjugal, e antes que eu pudesse esboçar qualquer reação ela me dizia pra não pensar besteiras.

Lembro-me de tê-la deixado linda quando fui para São Paulo a fim de cursar meu mestrado. Ela fez questão de vir a minha festa de despedida, trouxe a família toda e pareciam estar muito bem, foi o que todos comentaram. Pouco mais de dois anos depois, quando retornei, era notável na expressão facial de Ana que algo não ia bem.

Parecia muito mais velha, mais cansada, e ao ouvir de minha boca aquelas velhas perguntas, respondeu que o casamento ia muito bem, que o filho era maravilhoso e que sua família era sua grande válvula motivadora. Quando perguntei que expressão então era aquela em seu rosto, inventou umas histórias meio sem sentido e em dois monossílabos encerrou a conversa.

Nos víamos pouco, pois agora eu já não cabia no interior e me mudei para Salvador. Quando alguma coisa me fazia cortar aquelas estradas esburacadas novamente, sempre dava um jeito de lhe fazer uma visita e constatar que algo estava errado. Insistia então: “Ana, o que é que há? Agora até um cachorro você tem e nada te deixa feliz. O que passa contigo, meu amor?”. Mas a maldita não me contava, dizia apenas que iam da maneira certa, que tinham uma boa casa, uma boa família, dinheiro, sexo e tudo mais que alguém precisava ter. Só lamentava que depois de nascido o segundo filho, teve de parar de trabalhar para se dedicar exclusivamente à criação das

crianças, conforme a vontade do seu marido. Dizia que quase não saía mais de casa, que sentia, de certa forma, falta de suas viagens, do tempo em que não parava num lugar e eu brincava dizendo que ia arranjar pra ela um emprego numa empresa de viagens.

Foi a partir daí que comecei a perceber. A vida de Ana havia mudado, e com isso, algo que lhe era muito importante havia ficado para trás, e por mais que tentasse esconder, mesmo dela própria, ela estava sentindo falta e aquilo a angustiava cada vez mais, dia após dia. Naquele mesmo ano voltei a São Paulo para me doutorar e levei em

minha retina a imagem de uma mulher decadente. Pouco mais de cinco anos, volto eu a passeio para a Bahia. Sampa tinha finalmente me conquistado, me dado mulher, filhos, cabelos brancos, barriga, um apartamento de dois quartos, pressa, fadiga, mau humor, brigas de torcida, metrô, decepção, insônia, televisão e mais um monte de coisa chata, sem falar no sotaque.

Mas continuando, volto eu à Bahia a fim de apresentar minha nova família aos meus parentes e, sozinho, dei um jeito de interiorizar para ver o que tinha sucedido daquela mulher, já que há muito ninguém ouvia

ANA Por Manoel Souza das Neves

“Meu último prazer foi usurpado, meu último e

grande prazer foi tomado de mim, de uma maneira

cruel, rápida, à traição, sem chance de defesa, um crime qualificado, onde eu, sendo talvez a única vítima, sangro

agora até morrer. ”

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mais falar dela. Chego lá e descubro que a danada havia morrido a cerca de uns oito meses, de tristeza, inanição ou sei lá o que. O marido tinha se mudado para outra cidade e levado as crias. Na casa agora morava uma tia, que tomava conta das coisas que o peso diário de uma triste lembrança certamente havia impedido os herdeiros de levar.

Bati na porta, entrei, bebi água, café, suco, comi bolo, biscoito, conversei um bocado com a velha que queria me engordar de qualquer jeito e fiquei sabendo que a mulher que eu sempre tive a impressão de que amava tinha morrido mesmo de uma tristeza estranha, uma espécie de banzo, praticamente comendo terra no jardim. Dois anos antes da morte, havia contraído uma tuberculose que a debilitou física e espiritualmente, confinando a pobre coitada cada vez mais dentro de casa.

Havia objetos pessoais dela na casa, os quais a velha fez questão de me mostrar. Um monte de papel velho, livros velhos, roupas velhas, lembranças velhas, parecia que Ana tinha morrido com uns duzentos anos, e aí, no meio disso, não é que achei um pacotinho com meu nome escrito? Fiquei meio sem graça, mas mostrei à tia que aquele embrulho tinha meu nome e que eu gostaria de levá-lo comigo. A velhinha não fez objeção e depois de mais uns dois cafezinhos vim embora deixando para trás o fantasma decrépito de alguém que tinha sido tão cheia de vida.

Ainda no ônibus de volta, e pensando no que ia dizer pra minha mulher a respeito de ter passado um dia inteiro fora de casa, resolvi ascender aquela luzinha fraca que fica acima de nossas cabeças e investigar o conteúdo do pacote. Abri e vi mais coisa velha, papel velho, uns poemas que não sei até hoje se são dela e uma cartinha pra mim, cuja leitura me deixou muito intrigado. Eis o texto:

“Meu querido amigo, não é de agora que a vida da sinais de que vai

nos separar, e que as lembranças daquelas aventuras loucas que vivemos desde os tempos da faculdade irão parar no fundo de um baú de memórias, onde serão progressivamente comidas por um conjunto de traças insensíveis. Mas ainda me recordo muito bem da última vez que esteve aqui, você estava bonito, mais intelectual, mais um monte de tanta coisa, fiquei orgulhosa de você, meu amigo mestre e à uma hora dessas, sei lá, talvez já até doutor.

Me senti como se tivesse lhe traído quando me perguntou o motivo da minha cara estar parecendo uma ameixa seca, mas confesso que na hora eu não tive o mínimo de coragem necessária pra te dizer. E mesmo agora, ainda não tenho, mesmo sabendo que irei me deparar com o único destino irremediável. Mas sim, o fato é que vou morrer e sei exatamente do que é. Na verdade eu sempre soube... e agora vou te contar. Não vai rir de mim, ta bom? Pra você eu conto, você que sabe tanta coisa a meu respeito, que poderia até me por na fogueira da Santa Inquisição. Você a quem eu deveria ter dado, e dado somente a você, dado até morrer de cansaço, de prazer, de falta de líquidos, afogada nos fluidos corporais, morrer com um câncer nas cordas vocais de tanto gritar com você me deixando louca.

Desculpa por isso, mas eu também precisava dizer. Agora vamos lá: Não estou satisfeita, não estou realizada, sou um ser rejeitado por aqueles poucos momentos felizes que possuem o dom de fazer a gente esquecer a mazela que é a vida. Ninguém me obrigou a ser o que sou, fui eu quem quis, e fui me enfiando numa droga de caminho que me trouxe até esta mesa, com esta maldita caneta em punho.

Estou praticamente escrevendo meu epitáfio, mas que seja. Meu ultimo prazer foi usurpado, meu último e grande prazer foi tomado de mim, de uma maneira cruel, rápida, à

traição, sem chance de defesa, um crime qualificado, onde eu, sendo talvez a única vítima, sangro agora até morrer.

Meu último prazer, aquele que acho que somente eu no mundo sentia... Um prazer solitário, descoberto por acaso no espaço intenso existente entre duas poltronas vazias de um ônibus em movimento. Ai, como era bom, melhor que transar. Sempre foi melhor do que qualquer trepada. E eu podia desfrutar daquilo sozinha, conduzir do meu jeito, ali, quase todos os dias, sentadinha, indo dar minhas aulas, num veículo parcialmente cheio, o que dava ainda mais tesão.

Ia sempre de saias, vestidos, sentava na poltrona, onde discretamente retirava a calcinha, sentava com as penas abertas, já toda molhada, em posição no mínimo interessante, com minha xana quente a roçar na pequena elevação provocada pela junção dos assentos. E ficava esperando o asfalto se findar e entrarmos na prazerosa atmosfera que somente a pavimentação à paralelo, mais nada, nenhum homem, animal, fruta ou qualquer outra coisa que tenha testado pôde me inserir, gozando louca e disfarçadamente, entregando-me apenas com um leve suor nas mãos e na testa, o que não levantava desconfiança, pois se ninguém dali havia trepado comigo, logo não sabiam desse meu pequeno segredo.

Pois bem, meu grande e delicioso amigo, como você sabe, a família, os filhos, foram me impedindo cada vez mais de trabalhar, e quando nasceu o segundo menino eu já não podia mais sair de casa. Meus únicos consolos eram as visitas às tias que vez em quando dava pra fazer sem ter de levar criança e marido, e te digo: Valia muito a pena enfrentar tardes inteiras de conversa com aquelas mulheres chatas, enchendo a barriga de café e bolachas.

Porém, como não poderia deixar de ser, não só minha rotina ia

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mudando, mas as coisas ao meu redor também. E de repente, num dia cinzento, quando consegui finalmente me desvencilhar da tralha familiar, descubro que a última estrada que me ligava à minha última tia, meu último reduto de verdadeiro prazer intenso, estava sendo asfaltada, como também as outras já haviam sido anteriormente. Não demorou para que concluíssem as obras e a última via a paralelo desaparecesse para sempre levando consigo praticamente a minha razão de viver.

Tempos difíceis, de infelicidade extremada e decadência corporal e espiritual. Ainda por cima veio a droga da tuberculose. Gostaria que estivesse aqui agora, para que pudesse lhe dar o que sempre deveria ter lhe dado em demasia. Fiz muita besteira na vida e gostaria de morrer sem ter feito mais esta, que é justamente o não fazer, o não ter feito com você. Não vou escrever mais, isto é tudo que gostaria de ter lhe dito naquele dia, mas a frouxidão impediu. Naquele tempo eu ainda viajava... Hoje vivo trancada em mim, acorrentada a um mundo de casa, comida, filhos, e nem uma gozadinha de verdade sequer.

Adeus, tomara que você nunca leia esta carta, se isso ocorrer, esteja onde estiver, estarei com vergonha. Que sua sorte seja diferente da minha. Sua Ana.”

Após concluir a leitura, confesso que estava muito excitado. Sempre a desejei, mas as vicissitudes do destino não deixaram a coisa acontecer. Olhei para baixo e fiquei durante alguns minutos observando a divisão das poltronas e naquele momento então pensei, “meu Deus, o progresso acabou com a vida desta mulher!”.

Tempos depois percebi que, na verdade, se tratava de algo mais.

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