Revista Outras Farpas [sexta edição]

10
O local de fomento à produção artística em SAJ é um asilo inviolável, nele ninguém pode entrar, hora nenhuma do dia, nem para prestar socorro! “Quando minha mãe veio morar em SAJ, naquele prédio abandonado ainda funcionavam a cadeia pública e o manicômio. Daí as grades reforçadas e o portão pesado. Depois que a cadeia mudou de endereço, tornou-se imperioso arrumar outra coisa para prender, afinal de contas, a vocação do lugar deveria ser mantida. Prenderam o acesso à arte, já que nem sempre se pode prender os artistas... Contudo, não serão as grades, nem o descaso, que irão impedir as nossas farpas...” (Durrel) Uma farpa cultural espetada bem no olho de SAJ! Mil novecentos e bolinha... Mil novecentos e antigamente... Dias atuais... ANO 2 Nº 06 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA 30 ABR/2010

description

Revista Outras Farpas sexta edição

Transcript of Revista Outras Farpas [sexta edição]

Page 1: Revista Outras Farpas [sexta edição]

O local de fomento à

produção artística em SAJ é

um asilo inviolável, nele

ninguém pode entrar, hora

nenhuma do dia, nem para

prestar socorro!

“Quando minha mãe veio morar em SAJ, naquele prédio

abandonado ainda funcionavam a cadeia pública e o

manicômio. Daí as grades reforçadas e o portão pesado.

Depois que a cadeia mudou de endereço, tornou-se

imperioso arrumar outra coisa para prender, afinal de

contas, a vocação do lugar deveria ser mantida.

Prenderam o acesso à arte, já que nem sempre se pode

prender os artistas... Contudo, não serão as grades, nem

o descaso, que irão impedir as nossas farpas...” (Durrel)

Uma farpa cultural espetada bem no olho de SAJ!

Mil novecentos e bolinha...

Mil novecentos e antigamente...

Dias atuais...

ANO 2Nº 06

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

30 ABR/2010

Page 2: Revista Outras Farpas [sexta edição]

IPPPPOOOONNNNTTTTEEEEIIIIRRRROOOOSSSS OOOOUUUU FFFFAAAARRRRPPPPAAAASSSS DDDDOOOO TTTTEEEEMMMMPPPPOOOO

Por Maitê Rangel

Que homem sobrevive na pólis moderna? Na cidade findou a sua liberdade

moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa

para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular,

vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo enreda em...

preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um

cárcere ou de um quartel [...] Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de

seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o

desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota?

Eis a cidade e seus sobreviventes definidos nas linhas literárias de Eça de Queiroz. Seria ela de outra forma? Na vida moderna o trabalho e o consumo condicionam o homem a perceber os dias como o passar de milésimos de segundo progressivamente finitos. O homem, frágil e vil, teme “não ter tempo” de desejar a tecnologia avançada do próximo segundo, produzida e pensada por outros tantos homens “sem tempo”. No mundo do consumo as inovações tecnológicas se sobrepõem; se colocam no mercado como sucessivas doses de entorpecentes aos viciados - não aqueles que usam a droga, mas os que se deixam usar por elas - e o indivíduo no ciclo vicioso do consumo, a cada nova dose acorrenta sua alma, cega a visão e troca sua humanidade por pedaços vis de matéria sem valor.

A modernidade caminha de mãos dadas com um tempo que não comporta o humano. Em nosso século, os ponteiros do relógio marcam o tempo em que “não há tempo”. Na história do capitalismo industrial revestiu-se o medidor que nos maquiniza, com metal precioso e preso na algibeira por corrente de igual valor metálico o relógio foi enfim transformado num símbolo de status.

Mas ao fitar a matéria e seus ponteiros sedutores, transformar pouco a pouco o tempo em moeda o homem não pode prever que cada segundo medido e pesado implicava em caminhar para a escravidão do espírito. Que livre expressão pode haver num tempo que se fecha em modelos preferenciais “civilizados”? As festas, as emoções, os laços de amizade e a vida têm um valor cifrado. A força que maquiniza o homem, é violenta em demasia: exibimos o capataz no pulso e sem açoite, sustentamos o espólio do nosso trabalho, abandonando pedaços da vida humana na linha de produção.

QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo; Martin Claret, 2004. p.85.

Equipe Outras Farpas:

Acton Lôbo,Jean Michel,

Leandro Bulhões (Leo Pó);Manoel “Durrel” das Neves.

Colaboraram com esta edição:

Leo Moura (com a fotografia atual do Centro Cultural Santoantoniense - as demais imagens foram retiradas do

Google);Maitê Rangel;

Flor de Lis;Isaías Menezes Pereira;

Ana Carolina Barbosa Ferreira;A CUCA;

Leo Groba;DanDan;

Ariela Mazé;Carlos Bohm;

Lígia Benevides;Rosângela Mercês.

Nossos sinceros agradecimentos a todos os leitores e colaboradores!

Continuem nos escrevendo:

[email protected]

O ÔNIBUSPor Flor de Lis

O ônibus passa, e atrás dele inúmeros carros transitam em pressa inconstante enquanto eu e meus conflitos adormecemos no assento confortável de um veículo.

Motos passam, pessoas aguardam o melhor momento, um cachorro parece triste, a criança no colo da mãe encontra um refúgio, um afago, e eu continuo sentada, rodeada e ao mesmo tempo isolada nos meus atritos

e angústias resultantes de sua ausência.

O cheiro torpe invade minhas narinas, através da janela vejo a nuvem que tenta cobrir o sol que ilumina e me aquece do frio. Depressa anda o carro, tremem minhas mãos e novamente lembro você.

Sinto o peso do meu olhar, as pálpebras não suportam apenas três horas fechadas, desejam mais, a minha pupila dilata igual ao rio que

vejo coberto de impurezas e abandono, mas cristalino em sua aparência. Eu cubro meus olhos com lentes escuras e também disfarço a teimosia de calar meus anseios.

....Continuo no carro e nesse

instante paro, não reflito, prendo meus lábios, engulo a saliva, entrego o dinheiro e uma palavra apenas expulso:

- Obrigada!

2

Page 3: Revista Outras Farpas [sexta edição]

O tiro da Pequena Rosa“O que importa não é nem a

partida, nem a chegada, mas sim, a travessia.” (ROSA, Guimarães/ Grandes Sertões Veredas)

Dentro de um tempo e um espaço tão agitado e ao mesmo tempo tão monótono como o que vivemos, viajar pode ser a solução para a “pesca” de novas idéias, visões, degustações, cheiros, novas sensações que, como diria Caetano, “entram pelos sete buracos da minha cabeça... pelos olhos, bocas, narinas e orelhas”.

Transitar nos Estados brasileiros, principalmente, se o meio de transporte for o ônibus, e, mais ainda, se for a custo zero, deve ser uma experiência quase que obrigatória na vida de um ser humano que necessite dar uma verdadeira renovada no espírito (pois existem várias propostas falsas por aí). Observar as mudanças climáticas, geográficas e culturais dessa miscigenação interminável, nos faz pensar quantas coisas temos para conquistar e durante tanto tempo ficamos parados.

Entre tantas destas sensações, dedicar-me-ei a apenas uma, provavelmente a melhor de todas, por estar ligada a um outro momento e a um fato que, com o passar do tempo, esqueci que tinha acontecido. Não esqueci a situação, mas de quem no meu livre arbítrio chamei de Rosa, a Pequena Rosa, que em poucos segundos me mostrou ser uma verdadeira e impiedosa terrorista poética. E é dela que partem as inspirações aqui despertadas para escrever este “diário de bordo” que se passou na minha segunda visita à capital de Alagoas, Maceió. Propósito da visita: rever uma pessoa muito querida a quem todos se referem carinhosamente como Fofa. Coincidência ou sorte (duas coisas em que não acredito), cheguei no dia do

aniversário de vinte e quatro anos de Fofa (divertimento). Abrindo um espaço para Nietzsche: “O verdadeiro homem quer duas coisas: O divertimento e o perigo. Assim, ele quer a mulher, que é o brinquedo mais perigoso”.

Na última noite, um sábado, mais uma vez saímos para apreciar as possibilidades que os espaços boêmios da cidade de Maceió dispõem em abundância. Fomos a um boteco no centro da cidade denominado “Baba”. Um bar para quem quer começar a noite ouvindo um Rock clássico ao vivo. Logo depois, a outro, chamado Casa Amarela, este carregando as emoções que a música popular e o pop rock brasileiro podem proporcionar de melhor aos ouvidos de um cidadão como eu.

A Rosa, sem que eu soubesse, estava ali por perto, planejando detalhadamente o momento de instalar uma bomba dentro de mim. Embriagando-me como Baudelaire exalta, misturava a alegria do estado à maravilhosa presença de Fofa e Paulo à mesa, quando Rosa se aproximou: uma criança de oito anos que me oferecia unidades de rosas vermelhas. Rosa aparentava o que as caricaturas estereotipadas de chapeuzinho vermelho tentam mostrar: Cabelos cacheados a baixo dos ombros, pele mulata (porque era um “chapeuzinho tropical”), rosto de maçã, dentes de leite, olhos negros e redondos.

À primeira vista e ostentando a minha hostilidade às crianças, ignorei-a e respondi o tradicional “não, obrigado”. Mas ela teve ódio de mim! Em seu olhar identificava-se claramente o conceito socrático de demônio: anjo inspirador. Ela retribuiu o meu “não” com um sorriso seguido de passos a outras mesas. Um sorriso tão sereno que automaticamente me fez lembrar que ela, a Pequena Rosa,

já havia me encantado há cinco meses na minha primeira visita à Fofa e à Maceió. Nesta, nossa companhia (minha e de Fofa) foi a de quem dedico esse conto: saudoso amigo Léo Pó, que tanto conversou com a Pequena Rosa, depois de ter comprado uma flor para dar a Fofa em forma de gratidão, reconhecimento, serenidade. Tudo isso num outro bar, num outro espaço, num outro tempo. Desta vez, aquele sorriso me fez escorrer o corpo pela cadeira, ao descansar do impacto visual ao ponto de me desligar do mundo por alguns instantes. Nesse momento, Fofa foi ao banheiro. Contei o que aconteceu comigo em poucas palavras a Paulo, que muito se impressionou e disse que percebeu que eu tinha mudado de estado após o tiro, o sorriso da Pequena Rosa.

Automaticamente o sentimento de covardia tomou conta de mim. Não me perdoaria se não corresse atrás daquela criança para comprar uma rosa e voltar antes de Fofa, para novamente presentear a dama da mesa. Encontrei-a logo à frente, parei-a, ela olhando pra mim sorriu novamente, parecia que se lembrava da conversa que tivemos há cinco meses, quando a mesma falou-me que não estudava porque tinha que vender as rosas para ajudar a mãe. Retribuí o sorriso, e ela me pagou o troco com mais um. Nunca fui tão espontâneo em gratificar uma criança com tais palavras, mas assim disse: “É a segunda vez que venho à Maceió, segunda vez também que vejo esse seu sorriso lindo”. Assim, ela deu uma gargalhada e se foi. Voltei à mesa e mais uma vez a simplicidade dos pequenos gestos, causando grandes explosões de alegria ao presentear minha dama com uma rosa tão simbólica, o tiro da Pequena Rosa.

Por Isaías Menezes Pereira

VI- Outras farpas

Outras farpas/ Que não sejam convencionais/ Que não sejam gratuitamente ferinas/ Farpas que incomodem/ Farpas pequeninas/ Farpas que nos perfure a pele/ Farpas que inflamem/ Para renovar os tecidos/ Farpas que desafiem os sentidos/ Farpas na palma das

mãos/ Farpas que sejam sempre “nãos”/ Farpas interinas, para as senhoras e as meninas/ Outras farpas/ De madeira ou de metal/ Farpas que promovam o mal de estar ali ou de estar lá/ Que nos mude de lugar/ Outras farpas para repensar.

Por Ana Carolina Barbosa Ferreira

3

Page 4: Revista Outras Farpas [sexta edição]

A Senda

Por Acton Lobo

Abri a porta do quarto lentamente, fazendo ecoar de sua estrutura um melancólico rangido que açoitou a silenciosa penumbra que dominava todo o ambiente. Encostei-a com calma, permitindo com a senda criada, fornecer à radiosa luz que iluminava a sala, a passagem ideal para penetrar pelo quarto, separando a escuridão por uma compacta linha dourada.

No ar um leve aroma explorava o meu olfato, fazendo ressurgir em minha memória reminiscências onde a luxúria e o prazer caminhavam de mãos dadas, sorrindo uma para a outra insaciavelmente. Fui ao encontro da escuridão, libertando a minha sombra da luz que a revelava através de uma projeção sobre o chão até a suntuosa cama, onde, acima da cabeceira encontrava-se uma reprodução do quadro “Noite Estrelada”.

Enquanto afastava-me, observava como aquela claridade encontrava através da senda, o espaço ideal para revelar aos meus olhos, o fascinante corpo nu que irradiava um resplendor fosforescente na escuridão, agraciando-me com a sua exuberância natural. Nua e bela: em cada curva, em cada respiração que se elevava ofegante a cada passo meu em direção ao seu encontro. Por alguns segundos contemplei aquele corpo iluminado pela diáfana luz, onde, um indefectível bronzeado por entre os seios, suscitava uma irreprimível vontade de sugá-lo.

- Vem... - chamou-me objetivamente, mas com refinada delicadeza, estendendo as mãos receptivas, leves e suaves. O meu sorriso, carregado de malícia, revelava todo o meu apetite ao gozo: insaciável, ávido, porém, jamais apressado. Parei, contemplando-a, enquanto o feixe de luz apresentava-me a voluptuosidade daquele corpo sequioso sobre a cama.

Levantou-se com suprema e absoluta vitalidade, revelando-me através do seu delicado cheiro, os prazeres inomináveis da existência, enquanto, lançava ao ar o sopro orgástico de seu desejo. Parou diante de mim. Beijou-me, mordendo os lábios com vontade e desejo. Ao redor, a escuridão do quarto. Entre nós, a senda, iluminando e, refletindo nos olhos dela, todo o meu anseio para com o seu corpo nu.

O lento desabotoar de minha camisa fizera nascer em sua face sutilmente iluminada um sorriso tão malicioso quanto o meu, apresentando mais um elemento para a transcendência de nossos corpos.

- Isso, continue... - falou-me suavemente, enquanto as suas mãos aliciavam

o botão de minha calça, revelando à sua língua e, aos seus indefectíveis lábios, o prazer vigoroso que pulsava rijo sob a última peça de roupa que me vestia. E, sem piscar os olhos, levou à boca o dedo polegar, glorificando-me com um prazer inominável; simbolizado por lentas e deliciosas sucções, em um ato de pura e deliciosa obscenidade. Um fascinante “suplício” ao meu desejo.

Recuou dois passos sentando-se à beira da imensa cama que nos aguardava. Avancei dois, e, de olhos fechados, senti o calor de sua língua doce e úmida afagar-me com plenitude, ímpeto e imperiosa necessidade. Afagava-me entre leves e prazerosas mordidas que fizeram tremer de prazer o meu corpo e a minha alma.

Com um leve sussurrar, imprimi um carinhoso pedido,

diligentemente aceito e obedecido com os seguintes dizeres:

- Faça comigo o que quiser... - respondeu, fornecendo à voz uma serena ênfase de maturidade - Cada átomo, cada partícula, cada gota de suor que desliza sobre meu corpo pertence a você.- completou, deitando-se, quase no mesmo instante que uma sutil corrente de ar movimentava a porta, aumentando um pouco mais a ação da claridade sobre a escuridão.

- Absorva do meu ser o néctar que lentamente escorre cintilante por entre as minhas pernas, desejando você, meu menino... - pediu, sorrindo com um prazer mundano, enquanto, graciosamente, por mim era iniciado um efusivo espetáculo para o seu deleite: pelos seus pés comecei o progressivo deslizar da minha língua sobre o seu corpo, acalentando logo em seguida, as suas coxas com leves mordidas, que se completavam com o solitário ecoar de seus gemidos. Deslizava sobre suas curvas, encontrando no ventre, a vitalidade fluida e saborosa que pulsava dentro em seu interior.

Os seus seios convidaram-me ao iniciar do êxtase. Suguei-os com volúpia, sentindo nas minhas costas, o arranhar das unhas rubras daquela mulher. Sugava-o, pressionando-o com maliciosa sutileza os meus lábios, a ponto de fornecer ao seu corpo, o prazer insondável que existe na dor de uma leve mordida. Um delicioso “ai” ecoou pelos meus ouvidos, enquanto, os seus lábios deslizavam pela minha nuca, e suas pernas macias se entrelaçavam com as minhas, entre sussurros, gemidos e a densidade ansiosa de nossos corpos.

Arranhava-me com força, enquanto o deslizar suave de minhas mãos por entre seus

cabelos, revelava-me o queixo proeminente, delicadamente desenhado por algum escultor celestial. Mordi-o, escorregando pelo seu pescoço, enquanto os seus cabelos longos, negros e encaracolados eram puxados pelas minhas mãos.

- Saudades, saudades... - dizia-me, meio que sussurrando; sentindo por entre suas pernas o penetrar suave e vigoroso irrompendo cada dobra de seu ser, tocando-a profundamente em seus mais recônditos espaços, arrepiando seu corpo de prazer e fazendo um amor físico impensável sem a violência do ato. Unindo a dor e o prazer, que ecoavam em gemidos por toda a penumbra.

Um vento frio entrou pela janela, movendo com força a cortina, e deslizando carinhosamente sobre nossos corpos, tocando com suavidade nossas peles, nossos pêlos, nossas almas. Aquela corrente de ar encostou a porta quase em sua totalidade, unindo por breves segundos, a escuridão que ansiava em nos envolver completamente, enquanto, fora dali, a cidade quedava-se em silêncio, sonolenta e tristonha; presa em uma névoa cinzenta que encobria todos os seus imponentes edifícios. Ao longe, um ecoar estridente e emergencial de uma sirene revelava que a vida ainda estava pulsando em suas ruas mal iluminadas, becos, vielas e avenidas. Mas, nada disso era importante.

Na cama cessávamos aquele frio absurdo que teimava em invadir todos os espaços vazios existentes na matéria. Movimentos intensos e carregados de prazer apresentavam-nos a felicidade suprema, compartilhada entre carícias profundas e sinceras, temperadas por palavras obscenas e deliciosas que em silêncio era testemunhada pela luz que tentava subverter a escuridão.

E assim, o tempo transcorreu pacientemente, segundo por segundo, até completar a sinfonia das horas que compôs com mestria o amanhecer. No horizonte, o Sol iniciava o seu natural reinado, dispersando a escuridão e ocultando sob os seus raios solares o brilho solitário das estrelas. Raios que se refletiam nas janelas, nas ruas, nos carros, e nas pessoas que já caminhavam em direção às suas funções cotidianas. Raios que penetraram no quarto, superando a cortina, e iluminando com graciosa imponência, a vitalidade de nosso descanso. Era uma nova senda surgindo, desta vez, sob o “sorriso” do Astro-Rei.

“Os seus seios

convidaram-me ao

iniciar do êxtase.

Suguei-os com

volúpia, sentindo

nas minhas costas,

o arranhar das

unhas rubras

daquela mulher”

4

Page 5: Revista Outras Farpas [sexta edição]

NÃO TENHAMOS FILHOS

Pela CUCA

Não tenhamos filhos! Conclamo pasmada com a alta taxa de natalidade apoiada pelos individualistas adeptos do recém-inventado carpe diem.

Não se castrem ao abandonar os tratados científicos a serem escritos, o embriagar de lucidez literária, o experimentar de drogas novas e velhas igualmente surpreendentes pela imponência do encanto jovial. Deleite que também transborda no roçar soturno em braços fugazes.

Como tornar passado as certezas lineares que te dão a sensação de ser livres? Seria refutar a história de homens e de algumas mulheres que hastearam a bandeira da liberdade, estandartes de si mesmos. Portanto, não se devem profanar tantas conquistas com o vulgar expelir de mais um mamífero contribuinte com a superlotação da Terra. Além do mais, enche-te de banhas, succiona suas tetas e teu tempo, o que não lhe possibilita mais amamentar teu intelecto, tua boemia, teus sonhos.

- Não tenham filhos se não quiserdes ver o absolutismo imutável das verdades se dissolver. Muitos tentaram persuadir-me citando pensadores invioláveis, retórica cristã que combatia o meu ateísmo. Uma empreitada de insucesso!

- “Mas ao olhar-te, meu filho, orei para acreditar na existência de algum Deus, solicitando para proteger-te, para prolongar-te. Esqueci da eutanásia, clamando todas as noites para viver um pouco mais. Agradecendo a vida pela dádiva de ser mãe, pelo experimentar táctil de dedinhos ansiosos de conhecimento. É querer-te em escandaloso silêncio e não envergonhar-se de se infantilizar (gu-gu-dá-dá). É um querer ser criança, heroína de conto de fadas, animadora de festa infantil, tudo para me deliciar com o seu gargalhar.

É um continuum, te amar hoje muito mais do que ontem e menos do que amanhã. O ingresso violento em nossas vidas é de tal modo que você sempre existiu, já que o substantivo mãe é um adjetivo que não se conjuga no passado. Ah meu filho, como fico boba quando diz que ama com a descoordenação de seus pés, no descompasso dos braços, no olhar saltitante vislumbrando minha atenção.

Acompanho-no crescendo em expectativas que se formulam a cada constituição do nosso eu, sinto saudade do flagrar do presente, é observá-lo agora e saber que ele já não existe mais. E, em cada passo, sou eu que engatinho ao nos descobrir...”

Altruísmo era só um conceito quando se passa a amar alguém mais do que a si mesmo, no momento no qual uma porcariazinha pode substituir todos os nossos parâmetros de existência. Centímetros de ser humano se tornam o universo multiplicado, regato de

fascínio, o encanto atribuído, um novo senso epistemológico.

Por isso, recomendo que não tenhamos filhos, pois é amar em demasia, é não ter sinonímia e insígnias para representá-lo. Amor que não cabe em poema ou prosa. É perder a razão e o estático, já que tudo é transeunte, emblemático, te dilui e absorve.

Não há choro que te irrite, fezes que te enoje, vômito ou escarro que te embrulhe, tudo lhe é tão valioso quanto o sorriso, o grito de alegria, o olhar, o ensaio dos beijos, o esboço das sílabas, do chamar mã, ou Edi. .... vê-lo é encarar os defeitos como que música, enxergando escatologicamente o grotesco como belo! Arrepiando os pêlos em zombaria na edificação de um monumento.

É sentir-se heroína por ser guardiã de dádiva vida, experimento táctil ao tocar-me mãos tão macias, pele de bebê. É o homérico livro que quero compor e, depois ler, reler, ler... Ele me fustiga quando me cativas no gargalhar por nobres coisas bobas, por tua saltitante vovó. Ficamos felizes quando o presenteiam ao invés de nós mesmos, já não há vaidade ou orgulho. Sim, é loucura extrema ter um filho.

Ser tão feliz por tão pouco, querer bem e explodir de tanto amor, de tanto medo de ser frágil, dos erros que ainda serão cometidos com o escopo de se acertar, de ver-se fraco e melindroso diante da vida. Por isso conclamo - não tenhamos filhos.

Pois se o tiverdes, sentirá tremer suas veias numa erupção de câimbras, haverá descontrole do seu corpo, os espasmos do interdito, do medo da queda, da cólera do riso...É o descontrole da mente, tornando-se mulher de pensamento vulgar, conversa trivial....

Agora entendo porque as mulheres desprovidas tanto parem, pois este é o único instante de felicidade para os que estão na miséria. Cada rebento é a esperança, a felicidade tão negada... Instantes de leveza e esquecimento. A droga mais fascinante de todas, agrega a calmaria, a euforia, a vontade ininterrupta, o projetar...

Amar, amar-amar, jamais desamar. A abstração por completo. No canto do pássaro matutino, ouvir-lo dar

sentido ao mundo. Mãos tão pequenas que te abraçam por completo. Impactando num desequilíbrio seduzir diário.

Não há fadiga nem desencanto, novidades narrativas do espectador cotidiano.

Neste constituir-se não há teoria, não há fama nem sucesso, pois somos fracos diante dessa Persona que se constrói com armas de manipulação tão convincentes... Sim, estamos sujeitos a morte, ao caos, a deus, ao medo, ao desespero, ao íntimo sentimento que mescla a loucura do inconsciente com a fúria animalesca da proteção materna... Ainda pior, estamos sujeitos a vida.

Sim, não tenhamos filhos! Para não padecermos nesta irracionalidade diária e num léxico pobre que reitera tanto a palavra amor, por ser-lhe tanto...

Retrato antigo ou A flor do poeta

Por: Maitê Rangel

Sorriso nas fibras do rosto,Corpo reduto do sonho infantil,A mão segura o gostoE ignora o amor febril.

Olhos pequenos tem postoNa flor, o olhar pastoril.Alma posta como néctar mostoEntoa em silêncio o céu anil.

O canto sem palavras -O encanto da vida - lavraUma poesia feita em botão,

Para levar os passos ao caminho,Fazer do coração, não mais sozinho,Devoto da flor que teve nas mãos.

RODEADO

Por Leo Groba

Rodeado de beleza Não consegui verA tristeza no teu olharNo balanço de negras velhasNo som do couroUm mundo novoQue de tão velhoValores novos DiluiuSentei no chão Comi de mãoGanhei mãe, pai e irmãoE essa beleza conseguiuPor um momento Me enganar, pra não verA tristeza no teu olharMas nada disso Fará mudar E hei de amar já A paz que esse povo me faz

5

Page 6: Revista Outras Farpas [sexta edição]

O observador

Por JANGO

Recôncavo baiano, algum dia de 2009...

I

Sentado à varanda da casa onde passei minha infância. Essa pequena gota barrenta de tempo lameado, que, quando filtrada pela reflexão e esforço de lembrança parece deslizar e se perder, escoando e misturando-se após desprender um pouco de limo ou lama na rede da memória: e o que é a memória se não uma pequena mancha no linho novo da existência? (Por mais discreta e disfarçada, ou escondida na ilusória, mas não menos concreta imensidão de nossas expectativas cotidianas de presente e futuro, insiste em martelar nossos sentidos como numa tentativa convulsiva de um organismo que outrora gozou de força, vitalidade e poder, e agora, desafortunadamente, vocifera seu angustiante, porém notoriamente decadente, desejo de continuar grudada na parede, já sebosa, da consciência). Ali, sentado numa cadeira de plástico - milimetricamente equivalente a outras três cadeiras, que, junto com a mesa, também de plástico, formam um conjunto tão comum a outras tantas varandas de outras tantas casas-de-família, homogeneizadas por essas pequenas coisas perecíveis criadas por nosso tempo, pois nenhum outro tempo aproximou-se tanto da natureza da perecividade assim como o nosso - dei-me a encarar o fragmento de eu contido em cada uma dessas coisas a minha volta e pude sentir, na insondável imensidão caótica de um segundo, a força corrosiva do descobrimento.

***

Eu, a antítese por excelência, sondando sistemática e ininterruptamente todas as angustias e suas gradações de perspectiva; perscrutando milímetro a milímetro (sendo o milímetro para mim um universo inteiro) as redes invisíveis do meu sistema fisiológico que são nada mais que o desenrolar silencioso do meu afeto... Mergulhei mais uma vez no túnel escuro e desabitado que leva a um pequeno buraco de fechadura da porta que separa os mundos e pude dançar mesmo sozinho e imóvel, a dança dos avessos. Uma melodia encheu-me os ouvidos: era o canto daquele augusto poeta dos anjos, que ao atravessar uma ponte no Recife dialogava com sua sombra e foi tomado pela filosofia contida num escarro: a de ligar dois abismos!

***

Olhava com atenção uma cadeira à minha frente e percebi as variações graduais

do tempo no plástico como um escurecimento gradativo das extremidades. Mas a penumbra que cresce embaçando, ressecando, friccionando e exalando, sem refletir (pois a reflexão é uma “doença humana”) seu desejo camuflado de partir o plástico e fazer explodir nele a utilidade que nós o emprestamos (uma cadeira com a perna quebrada continua a ser uma cadeira?)... A penumbra... Ela também delineia (ainda sem nenhum “querer”, mas nem por isso menos determinada) as costas do meu pai. As suas costas estão ali, na “brancura” resistente no plástico como em cada detalhe da arquitetura improvisada de nossa casa. Essa arquitetura que tanto irrita a mãe, mas que tem em sua gênese a psicologia de quem quer, mesmo desordenada e caoticamente, fazer e não pedir: esse traço psicológico do povo brasileiro que vem resistindo a pesar de toda asfixia, de todo desprezo, de todo esquecimento, de toda deturpação ideológica, enfim, de toda “higienização” que herdamos do século “civilizador”.

***

Duas paredes apenas me separam de minha mãe que dorme em sua cama de metal o sono dos justos, e justamente o “melhor sono” que é o sono do dia: a sesta! Observaria ela a mentalidade dominante de uma época assim como eu observo: como um organismo vivo, e talvez muito mais vivo que nos parece as representações corpóreas que os carrega; agindo de forma mais sistemática como jamais pôde entendê-la a consciência fragmentária de nossa racionalidade tardia; negociando com outras mentalidades mais decadentes a adesão incondicional ou a asfixia gradativa; exigindo de forma imoral a aceitação de uma moral estranha, tão decadente quanto autoritária... Vislumbraria ela a possibilidade de na varanda de sua casa algum dia vir sentar-se alguém com o qual não se poderia negociar nos termos que se colocaram até agora, ou naquela cama além do seu corpo, está a dormir também o seu espírito? Não poderia responder essa pergunta. E se há alguma coisa que ainda me inspira respeito nas pessoas é a potência que existe na individualidade. Mesmo observando alguém a vida toda, a possibilidade de surpresa é inegável e esse é o único ponto que me concilia com a humanidade e não me faz tomar os homens pelo molde homem.

***

Levantei e fui ter com a rua e com a pracinha na frente de casa. A mesma rua onde tantas vezes estourei a cabeça do dedão pegando o baba descalço e que agora, mesmo daquela topada na qual perdi a unha inteira do dedão do pé direito e que me revelou a falange no fundo do corte, apenas sobrou uma lembrança muito vaga da dor que senti, na verdade algo como uma agonia no dedo. O que resistiu mais claro na lembrança foi minha preocupação em esconder o ferimento de meus pais. Educação pelo medo! (A educação familiar parece exigir da criança uma responsabilidade um tanto destoante da constituição psicológica própria da criança, mas que parece ter como explicação óbvia a isenção paterna dessa responsabilidade. Então, quanto mais rápido o indivíduo for domesticado -entenda-se: capaz de consciência de culpa- mais notória e eficiente é a capacidade educativa dos pais e mais tranqüila a existência da casa, de forma particular, e da sociedade como seu desenvolvimento espontâneo). Em nossa terra essa deturpação educativa parece ter desenvolvido diversas existências problemáticas como são os tímidos, os solitários, os incapazes de interação social..., aparentemente apenas auto-destrutivas, mas também outras anomalias mais perigosas à sobrevivência mesma da sociedade como um organismo. Como é o caso do meu amigo Gabriel que encontrei sentado na pracinha com um semblante muito despreocupado a despeito das recomendações de minha mãe sobre ele. Ha muitos anos não o via... E ele agora, segundo havia se disseminado pela rede invisível da fofoca que constitui o canal informativo responsável pelo policiamento das vidas da vizinhança desde suas raízes mais antigas, mas principalmente das gerações mais jovens, era um fugitivo da polícia, pois já carregava “duas mortes nas costas”. Resolvi correr o risco e me sentei junto com o antigo amigo para saber como iam as coisas pela sua boca e não as das apologistas do medo. E foi esse o depoimento que colhi junto ao meu jovem amigo (agora autodenominado Cobrador) de infância, que, muito prestativo, respondeu pacientemente às minhas indagações, e, de forma bastante camarada, ajudou-me a compreender seu tipo psicológico. Se agora transcrevo em forma poética seu depoimento é com objetivo de torná-lo mais palatável aos mais sensíveis dentre meus leitores:

Continua...

“Mesmo observando alguém

a vida toda, a possibilidade

de surpresa é inegável e esse

é o único ponto que me

concilia com a

humanidade...”

6

Page 7: Revista Outras Farpas [sexta edição]

Ramón Sampedro (Javier Bardem) é um tetraplégico que luta pelo direito de por fim à própria vida.

Dedique uma atenção especial à cena em que a personagem se levanta da cama e voa por sobre tudo, em busca da vida, do mar, em busca de Júlia (Belén Rueda). A trilha é Nessum Dorma, na voz inigualável de Luciano Pavarotti, mas não basta somente ver e ouvir. É preciso ir junto com Ramón, tonar a vida, nem que seja só por um instante, uma fonte inesgotavel de possibilidades, descansar as costas do peso da existência e se tornar mais leve que o ar. O nome disso é voar, e a poesia, seja ela falada, escrita ou projetada, é o par de asas que você precisa. Bom filme!

Daquela vez seria diferente. Três longas horas de reflexão e ensaios haviam sido responsáveis pela elaboração de um discurso arrasador. Ela chegaria, entraria no quarto, e sem que lhe fosse permitida proferir uma única palavra, todas as frases seriam ditas, todas as possibilidades de escapatória seriam concretamente bloqueadas, e antes que a consciência sobre a situação pudesse trazê-la às bases da refutação, tudo estaria terminado, a caminhar a largos passos rumo ao arquivo morto.

Seria diferente daquela vez. Não mais se resignaria diante daquele beijo displicente, ritual de chegada e saída dos amantes. Aquilo tudo precisava ter um fim, e seria naquela tarde, para que quando a noite finalmente rompesse, trouxesse consigo toda uma gama de novas possibilidade e sensações já até mesmo esquecidas. Sequer lembrava como era estar sozinho. Aquela pessoa havia preenchido tanto o seu espaço, tomado para si uma quantidade tão grande de atenções, que ele já não lembrava de como era mesmo sua vida, seu quarto, seus gostos, seus momentos. Uma saudade de si mesmo o tomou de forma tão avassaladora que tornou indestrutível a convicção em relação à decisão a ser tomada.

Deitou-se na cama e deu continuidade aos pensamentos. A cada segundo a solidez de uma nova vida se lhe apresentava mais desafiante. Via diante de si estradas floridas, lotadas de banquinhos onde se podia sentar num fim de tarde e escrever novos poemas para novas leitoras. De olhos fechados, sorria para o novo gosto da felicidade.

A porta se abriu e ela entrou. Indiferente à sua presença, depositou sua bolsa sobre a escrivaninha. Parecia um pouco apressada. Tirou a blusa e a lançou no cesto de roupas sujas. Sem prestar atenção a algum detalhe, atravessou o quarto indo em direção à cama. Inclinou-se e num estalo o beijo de chegada já havia sido dado. Voltou à escrivaninha como que a procurar algum documento.

Ele a observou por todo esse tempo sem o mínimo esboço de movimento. Duvidou se era sentimento ou costume, mas independente de qualquer coisa, a certeza de por o fim continuava inabalada. Só não precisava ser ali, naquele agora, logo assim, tão perto do Natal. O ano seguinte lhe apresentaria, por baixo, umas trezentas novas possibilidades. Levantou e foi à cozinha beber um pouco de suco. Por hora, aquela conversa estava encerrada.

Por Manoel Durrel

MAR ADENTRO (2004 - Espanha)Direção: Alejandro AmenábarCom Javier Bárdem

7

O intruso

Por JANGOCorpos deslizam na água morna e cristalina,A vida parece fluir despreocupada entre muros,Pois nada amedronta os filhotes da moralina.E sob o torpor do luxo permanecem como surdos!

Há pranto e ranger de dentes lá fora, no mundo,Mas os ecos não transpassam as paredes fortificadas.Entre saltos e gritos mergulham cada vez mais fundoNa ilusão de uma existência de tensões apaziguadas.

Lá em cima as crianças dormem na “torre de espelhos”... Adentra calmo, o intruso, no quarto ocioso,E trabalha rápido sobre as “bonecas de cera”.

Membros desconjuntados bóiam em lençóis vermelhos...Lá embaixo continuam os risos sob o sol oleoso.Também o intruso ri, olhando a piscina pela seteira...

___________________________________

Escutando atrás da porta

Por Durrel

“Ele vale”“Vale muito.”

De pensar que falavamDo reflexivo metódico,Do tímido pessimista,Do previsível sem sabor...

Finalizado o gozo do momento eu me perguntei:“Confio nessa gente?”“Afinal, são meus amigos...”

Page 8: Revista Outras Farpas [sexta edição]

O SCRAPPor DanDan

Tinha aberto sua página no Orkut em uma manhã quente que mantinha seu corpo em brasas. Clicou no ícone recados que parecia ulular em seus olhos afásicos a qualquer imagem ou projeção que não fosse a representação do amor de sua mera vida, R. A conexão estava extremamente lenta, os tempos globalizados haviam provocado em sua personalidade bruscas mutações, inflando sua impaciência e sua filosofia barata tatuada em inúmeras peles: carpe diem, carpe diem...

A página finalmente abrira: um scrap lacônico girava agora em seu córtex, no simples exercício de decodificação e enten-dimento:

IREI EM SUA CASA AMANHÃ À TARDE. ABRAÇOS.

Era F., o combustível de seus desejos mais sujos e surreais, estandartizados nas procissões noturnas dos sonhos. Desde que o encontrara no vértice do quadrilátero em sua rotina amarela, sua alma cutucara os instintos com vara curta. Quem era aquele indivíduo que ousara invadir sua territorialidade cercada de arames?

Sua retina movimentava-se frene-ticamente inspecionando o corpo situado naquele vértice, e logo um impulso movia sua boca, que, automaticamente, cuspiu uma frase sinalizando sua presença, omitida pela leitura de um livro não-identificado:

- Boa noite. A mensagem mal proferida atra-

vessara o quadrilátero como um dardo. F. levantara seu crânio que carregava uma expressão sólida e árida e moveu o meca-nismo que o permitia possuir a habilidade da fala, em um tom ético e recíproco:

- Boa noite. A partir desse dia, diálogos foram

forjados e uma amizade fora fabricada. Mas ele era um homem, e F. também o era. Os dias arrastaram-se pelo asfalto que sufocava os paralelepípedos, até que um dia F. convocara-o para uma conversa.

- Eu vou embora. Cansei dessa vidinha medíocre. Não quero mais isso pra mim não, etc., etc.

Ficara em um estado inenarrável. Invadira sua vida, brincara com seus instintos e agora foge como nada tivesse causado? Como iria sobreviver sem seus risos luminosos e gargalhadas estrondosas, sem o cheiro forte de seus cigarros, suas histórias ludibriantes, olhares dúbios, mãos e braços fortes vertidos em abraços de fogo?

Defendia-se quase sussurrando em seus ouvidos, acostumados com sua voz de timbre inigualável. F. faria imensurável falta em seu cotidiano, que tinha seu ápice com sua presença perturbadora. Diante do exposto, mal conseguira coser algumas palavras para confeccionar uma resposta.

- Vá, F., pode ir. Agora, sofra as conseqüências de suas escolhas.

Silêncio, silêncio. Hoje, sentira algo muito atípico com a

decodificação daquela frágil e instantânea mensagem. O que F. queria depois de ter oferecido-lhe uma despedida camuflada? O tormento das suposições analógicas punha seus instintos em estado de sítio. Não iria fazer mais nada naquele dia até F. chegar. Fechara a janela, pagara os 15 minutos de acesso à internet e migrara da lan house para sua casa.

14h45min F. batera em sua porta e invocara seu nome. Pensou em não atendê-lo, enquanto seu músculo cardíaco batia violen-tamente em sua caixa torácica.

- Já vai, F.! Desceu as escadas trêmulo. Abriu o

portão. - Oi, F. - Oi, tudo bem? - Tudo, entra. - Com licença... Forjaram diálogos lisérgicos. Quando

se encontravam, personificavam-se em espelhos simétricos. Os olhos transitavam pelas pernas robustas de F., envoltas em vestes que acentuavam suas formas; o trajeto passava pelo tronco e braços fortes, mãos largas e terminava em sua face, composta por olhos castanhos, nariz grosso, orelhas tor-neadas, barba rústica, boca hidratada e cabelos raspados por máquina nº 1. As palavras de F. evaporavam na tarde quente, enquanto o delírio tomava conta do corpo dos espelhos pendurados no círculo obtuso privado.

Delírio. Tudo sintetizava-se em um dilatado delírio.

Corpos sobrepostos no sofá de três lugares.

Devorava o corpo de F. com uma voracidade inimaginável. Consumia cada centímetro de sua negra anatomia em ignição. F. sussurrava palavras de ordem em seus ouvidos que faziam-no subordinar-se aos seus desejos impetuosos. Cobrira o corpo de F. com sua saliva ácida, que corroia sua pele deixando marcas visíveis só por ele. Lambia e chupava o falo obsessivamente, extremamente rígido e macio: mastigava-o. Cansado de percorrer o caminho entre a boca e o falo de F., repousou em suas coxas peludas e suadas. Parecia que Exu tinha-o tocado com suas mãos sacras. F. punha-o em uma posição pertinente para cópula e penetrou-o, fodendo-o compul-sivamente como um possesso. Execrava a prática do sexo anal por não sentir prazer nas cinco vezes que oferecera seu ânus, mas o delírio o entorpecia, transfigurando a cena em um ritual de quase-estupro. F. gozava de forma múltipla e irreal na lâmina de seu espelho, como um narciso incestuoso e pornográfico. O esperma de F. lavava os prantos cravados em seus poros, vestígios platônicos do amor que sentia (e sente) por R.

Gozos e êxtases cíclicos e mútuos.

F. vestira suas roupas impregnadas de suor e se despedira com um olhar e um sorriso após acender um cigarro.

Silêncio, fumaça e vácuo subjetivo. Nunca mais o vira ou o esperara.

Excluíra seu perfil no Orkut. A partir desse dia, todas as tardes passaram a ter o gosto e o cheiro de F.

DanDan, manhã de 13 de janeiro de

2010.

8

Por Ana Carolina Barbosa Ferreira

Que soem os tambores que desçam tod@ @s sant@s... que todos os cânticos da terra que toda a América, todos os mitos,os arcaísmos todose todos os ritosdesestabilizem o instrumentalismoda razão do Ocidente pedante e tacanho,insuficiente e incompleto, surdo e cego à alteridade que o cerca. Que toda memória, toda a chacina,tudo o mais que a experiência ensina esclareçam o “Aufklärung”que tudo isso impeça que novos extermíniose antigos encobrimentos (travestidos de descobertas)anunciem a vitória e supremacia de um povo.Que o velho, com cara de novo, volte os olhos para si e se enxergue.Que nada mais tenha que ser dito, se o for feito com a indignidade de quem tolera.

Page 9: Revista Outras Farpas [sexta edição]

Impossível Por Leandro Bulhões

Como quem cumpre compromissos, chegou exatamente às 17h00m e fechou a porta. Observou o seu redor e poucas coisas pareciam familiares. Os olhos demoraram por acostumar-se ao quarto novo e pequeno, além disso, durante anos não havia estabilidade no lar onde morava, mas havia na rua, lugar onde a profundidade era atravessada por olhos, pernas e movimento, uma memória que impedia seu bem-estar no cubículo.

O quarto que acabara de se mudar era por demais perto às paredes, ficava tudo, por isso, colado às suas retinas e o perto perde sua coisa em meio às coisas e é assim que ele encarava o mundo: coisas dentro de coisas, pessoas dentro de pessoas. As horas pareciam maquinar um tempo fora de toda matéria, mas mesmo assim, este tempo perpassava matérias visíveis e invisíveis, alisando seus dedos frios carinhosamente nas superfícies, às vezes arrancando sorrisos ingênuos.

Nosso personagem espreita da janela simples o horizonte brasiliense possível; não sabe o tempo, que nem é dele. Continua estático. Ouve o ar, os carros, e começa a pensar que sabe. Nos seus passeios junto aos dias, nada de compromisso com a história que está vivendo e que naquele momento ocupa seus pensamentos. Ele acabou se permitindo mais uma vez e, mais uma vez, será melhor ficar entregue ao mal-resolvido, ao amarelar das coisas ou a deixar tudo tudo novamente pintado com suas cores emprestadas ao tempo.

E assim, nasce e morre mais um amor. Esboça um sorriso na segurança de um pensamento: “O que me tranqüiliza é que as flores que enfeitei o adro onde te encontravas foram todas retiradas do meu jardim”. Vê a cama com o lençol alvo bem estirado e se aproxima, senta, e, vagarosamente, deita o corpo cansado se estirando naquele retângulo branco, agora com os pensamentos horizontalizados. Sente um cheiro de tarde, e já batendo às portas do universo onírico ouve qualquer balbucio de transeuntes que passam distantes da quadra 408 enquanto uma cigarra corta como uma lâmina o vazio enorme de silêncio em Brasília em algum palco incerto de árvores maiores do que os prédios.

9

COMO EU ME VEJO E COMO ME SINTO POR

ISSO

Por Ariela Mazé

Gosto do modo como sempre acreditei muito que meus fins seriam trágicos e terríveis. Quantas noites perdi imaginando e criando rumos que eu iria tomar, pessoas que eu iria encontrar, mentiras que eu ia contar e ouvir, verdades que eu teria de engolir, homens que eu viria a amar, mulheres que eu viria desejar, sensações que eu iria procurar. Destas noites, a melhor parte sempre era a de sentir a dor e alegria que estes momentos futuros e incertos me proporcionariam, vibrar cada músculo do meu corpo com estes pensamentos e no fim, deitar e esperar o amanhã que traria tudo aquilo, ou simplesmente não traria nada. Com isso, já antecipei pelo menos 40 anos de acontecimentos da minha vida, e juro que

pude sentir em clara e boa nitidez as sensações que teria quando finalmente acontecessem. Sim, sim, eu também penso que sou louca. Não apenas por isso, óbvio, mas também porque diminuo o ritmo quando preciso que caibam quatro passos dentro de um quadrado na rua, porque não gosto de beijar pessoas que comecem com a letra E, porque adoro cair no chão de tanto rir de algo sem graça, porque minha mãe jura de pés junto que eu não amo minha família, porque gosto de saber que sou igualzinha a todo mundo, mas todo mundo acha que sou diferente. Engraçado como eu sempre acho que já vivi demais. Estou sempre cansada da vida e de pensar a seu respeito. Às vezes me dá uma vontade de ver tudo terminado por simples falta de desejo de viver um final que seja diferente do que eu já tenha imaginado. Um final que não seja trágico e terrível. Às vezes não quero mais nada da vida, porque sinto que o tudo que eu desejo vai sempre

além dela e com essa frustração como posso viver bem? Gosto de coisas trágicas e não consigo vivê-las porque não pertencem mais a esta vida, porque tudo que pertencia a esta vida já me pertence. E se hoje, meu único consolo e motivo de perdas de noite são imaginar os próximos quarenta anos que sinceramente não me interesso em viver, então eu renuncio a isto, por que sou filha da tragédia e assim é que tem que ser. A vida imita a arte, a arte imita a vida, já disse alguém há muito tempo atrás...

No dia 13 de março de 2010, perto das 15 horas da tarde, o coração de Ariela deixou de bater.

Até que ponto o ser humano se empenha em eliminar a dor e o sofrimento?

No romance A Rocha, Carlos Bohm começa narrando uma viagem de férias do casal de brasilienses, o executivo Valter e a advogada Regina, intercalando os fatos com as viagens de cada um dos seus dois filhos. O casal vai para um sítio distante e, ao descer um rio pedregoso com um caiaque, ficam presos em uma rocha à beira de uma alta cachoeira. O que farão para sair de lá se ninguém os socorrer?

Valter é ambicioso, estressado e com pouca paciência; Regina é ansiosa, insegura e atordoada por lembranças familiares. São feitos cortes para o passado dos dois e o leitor pode conferir as análises da terapeuta de Regina sobre toda a sua vida.

Todos querem evitar a dor, os sentimentos ruins, o sofrimento e as memórias. Na busca pela ausência total de tristeza e ansiedade, os personagens são levados a diversos caminhos: agressividade e vícios em drogas, sexo e trabalho. Nessas trilhas pelas buscas de ilusões e fantasias, todos querem ser escutados, mas ninguém quer ouvir.

O livro pode ser adquirido no site www.editoraschoba.com.br/loja

Page 10: Revista Outras Farpas [sexta edição]

Talvez ou até muito provavelmente o título não estará condizente com o texto, essa é a menor das minhas preocupações, pois a quem escrevo estará claro.

Gosto de pensar nas críticas e me envaideço delas, principalmente a de leitores que não me conhecem, pois sei que não serão impiedosos. Mais uma vez escrevo o cotidiano de minha vida, pois a mim, ela é como um filme de larga bilheteria, concorrendo a premiações. Aos outros não sei, pois pouco me interesso. Mas, queiram ou não, farei um breve resumo das novas desde a última edição das Farpas: Refugiei-me em um vale por três meses - lugar de maluco, gente como eu e diferente de todos - numa casinha com lareira e três cachorros - obviamente, com Camila, Sheila e Zana. A proposta inicial era de ficarmos lá para sempre (Percebam como me reporto ao leitor como a um amigo ao qual não vejo há muito). Pessoas fantásticas, lugares lindos, comida saudável e farta, nenhuma noticia das mazelas do mundo, nada de TV ou jornal. A morte de Michel Jackson nós soubemos dias depois e bebemos o morto por outros vários dias, enfim, um verdadeiro paraíso. Não me façam a pergunta clichê, saímos de lá porque somos inconclusivas, inconstantes e infinitamente insatisfeitas.

Aviso ao leitor que a falta de coesão e coerência do texto não é proposital, é legitima, por isso e pra tudo isso, é muito difícil chegar à linha central de discussão que seria um questionamento feito a Jean Michel em uma de nossas conversas no bar de Toinho, e ai vai: O que aproxima as pessoas são as semelhanças ou as diferenças? Elimine desde já as semelhanças etárias, étnicas, raciais, ideológicas, genéricas, opção sexual ou quaisquer outras óbvias. Naturalmente, fomos para além disso, pensamos em semelhanças e diferenças filosóficas. Consegue você responder? “qualquer coisa que se sinta, com tanto sentimento tem haver algum que sirva” (socorro de Arnaldo Antunes).

Leo Pó, Nancy, Cau, Jean, Cezinha, Zai, Giba, Aline, Acton,

Durrel, Joy, Franco, Luzânia, Cuca, Café, Camila, Zana, eu e, obviamente, todos os outros amigos do criador, comemos a Chatasca por vezes, agora é sua hora de apreciar e conhecer a verdadeira história desse prato. Conta a lenda que perguntaram a Raimundo Nonato o nome do prato e ele respondeu: Vem de uma remota tribo africana e passada de geração em geração por meus ancestrais. Somos todos infinitamente semelhantes a Ray com pequenas e ínfimas diferenças. Somos diferentes até de nós mesmos e até iguais aos outros. Os acima citados muito mais que isso são igualmente diferentes. A receita é uma representação simbólica da união dessa família, e assim, do nosso jeito, recordar e sentir a saudade boa e saudável que nos traz a memória quando se trata de Raimundo Nonato. E assim me despeço servindo a Chatasca aos amigos em minha casa e na próxima lavagem do beco a todos vocês.

Chatasca

Ingrediantes:1k de carne seca;1 k de calabresa;1 k de feijão fradinho;Temperos: cebola, alho, pimentão, pimenta de cheiro e

coentro, picadinhos e à gosto;Verduras: Banana da terra, abóbora e quiabo;

Preparo:Você deverá dessalgar a carne já cortada colocando-a

para ferver por duas vezes;Corte também a calabresa e reserve. Em uma Panela de

pressão cozinha as carnes, acrescente depois os temperos a calabresa e o feijão, quando tudo estiver cozido acrescente as verduras e apague o fogo com as verduras ao dente.

Sugestão: transfira tudo pra uma bela panela de barro e sirva acompanhado de arroz e molho lambão.

RôRosangela Mercês

Poeira de amor velho

uma poeira de amor velho reside ainda nos quatro cantos da minha solidão. eu fico pensando em outras coisas durante o dia, mas à noite sempre passo o dedo na ferida: fica na ponta do meu dedo o pó de ontem, acumulado, que vai morrer de tão velho. eu

converso com o meu amigo e ele me diz coisas tão lindas, mesmo eu estando cinza. a poeira se estende como um véu, cobrindo fotos, textos, livros, a minha sombra na parede, o meu passado e o meu presente. é isso, é pó de passado, é pó que traz alergia pra minha alegria, ela esvazia o pneu da minha bicicleta e mina minha paciência. essa poeira não me deixa amar de novo, não me deixa dar um

beijo livre, não me deixa. essa poeira entra no meu olho e então eu não lacrimejo - eu choro. a poeira entra no meu nariz, entope meu pulmão, obstrui a minha garganta: vem um nó e eu tusso. eu passo um pano úmido pra tirar a poeira, mas ela é amiga do tempo e do vento, e sempre vem; eu gosto do vento também. deixo as janelas abertas pra libertar o meu sufoco. mas abro dentro de mim um vão

por onde entra essa tristeza empoeirada, que eu combato com a poesia, o riso, o choro, o vinho, o gorfo, o mofo, o espirro, minhas rimas baratas, meu descontrole, meu não. basta. poeira de amor velho me dá vertigem. meu eixo deslocado perde o prumo, eu nasci

meio torta, sou uma gambiarra. minha poeira - eu a tenho cá comigo - ela é meu passado, cansado de ser lembrado, ansioso por libertar-se do pensamento, morrer, como um bom passado deve ser: morto e enterrado, levando consigo toda essa matéria-prima

que embasa minha poesia barata e minha prosa rarefeita de poesia cósmica. de poeira cósmica.

Por Ligia Benevides

10