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37 REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2005 PERFIS De todos os capitais que a Fiocruz conquistou nos seus 105 anos, o capital humano certamente é um dos principais legados que a instituição tem oferecido, geração a geração, ao Brasil. De Oswaldo Cruz a Sergio Arouca, é certo que Manguinhos gestou gente decidida, atuante, transformadora, brilhante em diferentes campos de atuação. O correto seria dizer que os ares de Manguinhos fazem bem ao intelecto, ativam o metabolismo das pessoas para fazer pesquisa com compromisso social. Os perfis desses personagens marcantes - apenas alguns entre os vários que ajudaram a escrever capítulos importantes da história da Fiocruz - estão nas páginas a seguir. Jogando luz sobre suas trajetórias, quer se homenagear o capital humano da Fundação.

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PERFIS

De todos os capitais que a Fiocruz

conquistou nos seus 105 anos, o capital

humano certamente é um dos principais

legados que a instituição tem oferecido,

geração a geração, ao Brasil. De Oswaldo Cruz

a Sergio Arouca, é certo que Manguinhos

gestou gente decidida, atuante,

transformadora, brilhante em diferentes

campos de atuação. O correto seria dizer que

os ares de Manguinhos fazem bem ao

intelecto, ativam o metabolismo das pessoas

para fazer pesquisa com compromisso social.

Os perfis desses personagens marcantes -

apenas alguns entre os vários que ajudaram a

escrever capítulos importantes da história da

Fiocruz - estão nas páginas a seguir. Jogando

luz sobre suas trajetórias, quer se

homenagear o capital humano da Fundação.

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 538Um homem à frente de seu tempo

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raque, gravata à príncipe deGales e cartola. A pasta, se-melhante à usada por lambe-lambes, rendeu-lhe o apelidode ‘doutor fotógrafo’. O bi-

gode, que costumava acariciar enquantomeditava, tinha as pontas erguidas àscustas de muita pomada Hongroise. Gos-tava de fumar ópio na sala de estudo emsua casa, iluminada por duas lâmpadasde bronze – uma em forma de coruja,outra de morcego. Nos carnavais, deixavade lado a sisudez e desfilava de carro pe-las ruas, acenando aos pedestres. Comvocês, Oswaldo Cruz, o sanitarista quecolocou de pernas para o ar o Rio de Ja-neiro, trazendo as luzes da ciência para oenfrentamento e a prevenção das doen-ças e criando as bases de uma instituiçãosingular no campo da saúde pública.

Oswaldo Cruz foi criado na Gávea,bairro da zona sul do Rio de Janeiro, naépoca uma região afastada do burburi-nho do centro da cidade. Teve uma edu-cação rígida. Conta-se que certa vez seupai mandou chamá-lo na escola, no meioda aula, porque ele não tinha feito a camaantes de sair. Decidiu cedo que profissãoseguir. Na faculdade de medicina, em queingressou aos 15 anos, não foi um alunobrilhante. Mas, desde que viu microorga-nismos pela primeira vez ao microscópio,apaixonou-se por eles. Era a época degrandes descobertas nesse campo: a re-volução pasteuriana havia criado um novocaminho para a compreensão e preven-ção de doenças infecciosas.

Aos 20 anos, casou-se com Emília daFonseca, sua namorada de adolescência,com quem teve seis filhos. Chamava afamília de sua “tribo” e Emília de “mi-nha querida Miloquinha”. Em 1896, via-jou a Paris para estagiar no prestigiadoInstituto Pasteur. Para sustentar a famíliana capital francesa, Oswaldo empregou-se em uma clínica de urologia, campo damedicina lucrativo na época devido àsdoenças venéreas comuns na Paris da BelleÉpoque. Esse ramo não agradava Oswal-do, que arranjou, então, um estágio nolaboratório de toxicologia da cidade: in-vestigação criminal, ao melhor estiloSherlock Holmes, era seu novo trabalho.

Entretanto, essas atividades não afas-taram Oswaldo de seu objeto de interes-se, a “tão ingrata quanto adorada bacte-riologia”. No Instituto Pasteur, foi muitobem recebido e até dispensado de pagarpelo material usado nas pesquisas. Era o

primeiro conterrâneo de Dom Pedro II aestudar lá e o Instituto queria demons-trar gratidão pela ajuda dada pelo ex-im-perador. Também fez estágio em uma fá-brica de vidraria para laboratório – seria oprimeiro a fabricar ampolas no Brasil.Além de estudar, Oswaldo ainda tinhatempo de ir ao teatro – era fã da atrizSarah Bernhardt.

De volta ao Brasil, tudo indicava quefaria carreira como clínico, até que foi de-signado pela Diretoria Geral de Saúde Pú-blica para investigar casos suspeitos depeste bubônica em Santos. O diagnósticofoi confirmado. O único tratamento paraa doença, o soro antipestoso, não era pro-duzido no país. Foram então criados dois

institutos soroterápicos, um em São Pauloe o outro no Rio de Janeiro – este, localiza-do na fazenda de Manguinhos, seria diri-gido pelo Barão de Pedro Afonso.

O barão precisava de um diretor téc-nico e foi ao Instituto Pasteur pedir a in-dicação de um nome para o cargo. Foiinformado de que não precisava de umcientista estrangeiro – o brasileiro Oswal-do Cruz preenchia todos os requisitospara a função. Era o início de uma relaçãotumultuada entre o autocrata e o cientis-ta. A rixa entre os dois acabaria sendoresolvida a favor de Oswaldo, que em1902 assumiu a direção geral do Institu-to, de onde só sairia 14 anos depois.

O Rio de Janeiro era assolado pordoenças como varíola e febre amarela. Oscortiços eram muitos e as primeiras fave-las já surgiam. Nesse cenário, OswaldoCruz foi nomeado diretor geral de Saúde

Pública. Para debelar as doenças, tomouprovidências polêmicas. Convicto da efi-cácia de suas ações – combate a ratos emosquitos e vacinação obrigatória dapopulação –, talvez tenha lhe faltado umpouco de tato.

A imunização obrigatória aliada à re-forma urbana que derrubou cortiços efavelas revoltou a cidade. As manifesta-ções contra a vacina evoluíram para umarebelião. Mesmo achando que seria mor-to pela turba amotinada, Oswaldo nãodeixou de ir trabalhar. Um bilhete de des-pedida com a sua caligrafia foi encontra-do escondido na cartola, caída no chãono meio do tumulto: “Morreu pelo bemdo povo, a 10 de novembro de 1904”.

Maciçamente criticado pela impren-sa, tornou-se o alvo preferido de cronis-tas e cartunistas. Guardou as caricaturase notícias publicadas a seu respeito. Que-ria se lembrar das injustiças que sofrera,apesar de ter certeza de que o valor dasmedidas que tomara seria reconhecido.Tinha razão: em 1908, outro surto de va-ríola levou a população a formar filas nospostos de vacinação.

Em 1916, Oswaldo deixou o Institutodevido a problemas de saúde que haviaprevisto. Nove anos antes, já com os pri-meiros sintomas da nefrite, examinara aprópria urina e achara albumina, o quenão era um bom sinal. Fizera então o tes-tamento e um projeto de seu própriotúmulo. Como não poderia deixar de ser,deu ênfase ao isolamento do cadáver: ocaixão deveria ser hermeticamente fecha-do, revestido de bronze e asfalto. O proje-to acabou não sendo usado – seu túmulo,no cemitério São João Batista, no Rio deJaneiro, seria desenhado por Luiz MoraesJúnior, o arquiteto de Manguinhos.

Por sugestão do filho, Oswaldo mu-dou-se para Petrópolis. Foi o primeiroprefeito da cidade, mas sua gestão foimuito curta: a piora de sua saúde o levoua pedir demissão do cargo. Em 11 de fe-vereiro de 1917, em uma manifestaçãoem frente à casa do sanitarista, os adver-sários políticos comemoravam a derrotado opositor que mal chegaram a enfren-tar. Enquanto isso, cercado de amigos,morria Oswaldo Cruz. Não sem antes dei-xar a última recomendação aos seus:“Não usem roupas negras, que além detudo são anti-higiênicas em nosso clima”.Falecia o sanitarista, mas a semente dei-xada por ele já estava germinando: o Ins-tituto de Manguinhos.

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 540O autor de um feito ímpar na história da ciência

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Nascia em 9 de julho de 1878,em uma fazenda perto deOliveira (MG), aquele queprotagonizaria um feito úni-co na história da ciência e

da medicina: descrever todo o ciclo deuma doença. Carlos Chagas identificouo vetor, o agente causal, o reservatóriodoméstico do parasita e as manifestaçõesde uma moléstia que ele batizou de tri-panossomíase americana. Esta, porém, fi-cou conhecida como doença de Chagas.

Por trás de uma carreira tão brilhan-te, está um homem distraído, quase queexclusivamente voltado para a atividadecientífica. Durante um jantar oferecido aChagas em Bruxelas, ele chegou a esque-cer sobre a mesa a medalha que recebeudas mãos do rei Alberto, da Bélgica. E sóse deu conta da gafe ao receber em suacasa, no Rio de Janeiro, a medalha que orei lhe enviara pelo correio. O fato de serdistraído não ofuscou nem de longe obrilhantismo do cientista, que até tentoufazer engenharia para satisfazer um de-sejo da mãe. Foi por incentivo de um tiomédico que o jovem ingressou na Facul-dade de Medicina do Rio de Janeiro.

Chagas fez sua tese de doutoramen-to em medicina no Instituto So-roterápico Federal. Estudou ociclo evolutivo do parasito damalária no sangue sob orien-tação de Oswaldo Cruz,

bro titular da Academia Nacional de Me-dicina. Dois anos depois, ganhou o Prê-mio Schaudinn, do Instituto de Molésti-as Tropicais de Hamburgo. Tornou-setambém o primeiro brasileiro a recebero título de doutor honoris causa da Uni-versidade de Harvard, em 1921. Nessemesmo ano, foi indicado ao PrêmioNobel de Medicina. Merecia ter sido lau-reado, mas não foi.

Chagas não era alvo apenas de elo-gios. Entre 1922 e 1923, questionamen-tos sobre a importância da tripanossomí-ase americana ecoavam na AcademiaNacional de Medicina. A comissão encar-regada de rever o trabalho de Chagasapresentou um parecer favorável ao cien-tista. De qualquer forma, a polêmica de-sacelerou os estudos sobre a moléstia,que só foram retomados nos anos 1930.

Após as pesquisas pioneiras de Cha-gas em Lassance, um número significati-vo de casos da tripanossomíase america-na só foi descrito em 1940, em Bambuí(MG). Lá, foi instalado um núcleo de es-tudo e profilaxia da doença de Chagas –mantido até hoje pelo CPqRR, unidademineira da Fiocruz. Mas Chagas não vi-veu para acompanhar esses desdobra-mentos de seu trabalho. Teve um ataquecardíaco e faleceu em 8 de novembro de1934. Há quem culpe o cigarro. Mas hátambém quem diga que ele foi vítima dadoença que descobriu.

diretor técnico do Instituto. Concluído otrabalho, preferiu a clínica à pesquisa.Em 1904, ingressou no Hospital deJurujuba (onde cuidava de vítimas dapeste), abriu um consultório particular ecasou-se com Íris. Tiveram dois filhos:Evandro Chagas e Carlos Chagas Filho.

Contudo, não tardou para que Cha-gas se rendesse à sua curiosidade cientí-fica, herdada por ambos os filhos. Em1905, foi chamado por Oswaldo Cruzpara a missão de combater a malária emItatinga (SP). Lá, realizou a primeira cam-panha brasileira bem-sucedida contra adoença e, em 1906, ele já era pesquisa-dor de Manguinhos. Foi em outra expe-dição científica para o controle da malá-ria, desta vez em Lassance (MG), queacabou descobrindo a tripanossomíaseamericana, em 1909.

Sua contribuição à saúde pública nãoparou por aí. Como diretor de Mangui-nhos, de 1917 a 1934, privilegiou a in-vestigação das endemias rurais. Ainda nofinal dos anos 1910, ajudou a controlar aterrível epidemia de gripe espanhola noRio. Assumiu, então, o Departamento Na-cional de Saúde Pública e participou tam-bém de uma reforma do ensino médico,introduzindo o curso de medicina tropi-cal e o de higiene e saúde pública.

Tanto trabalho foi reconhecido.Em 1910, Chagas virou mem-

Vários Trypanosoma cruzino momento em que se

aderem a uma fibramuscular cardíaca

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 542Vida curta, obra de longo alcance

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aspar de Oliveira Viannaexerceu a medicina por ape-nas seis anos. Nesse perío-do, ele identificou umanova espécie do parasito

causador da leishmaniose, propôs umaforma inédita de tratamento para a do-ença (que até hoje é utilizada) e publicoumais de 20 artigos científicos de grandeimpacto. Nascido em Belém do Pará em11 de maio de 1885, Vianna ficou órfãode pai muito cedo. Foi criado na compa-nhia da mãe e de duas irmãs sob a tutelado irmão mais velho, o jornalista e histo-riador Arthur Vianna. Alfabetizou-se emcasa e concluiu os estudos aos 15 anos.Pela facilidade com os números, tendia aseguir a engenharia. Mas foi convencidopelo irmão a fazer medicina.

Mudou-se para o Rio de Janeiro em1903, já bacharel em ciências e letras ecom o título de agrimensor (medidor deterras). No segundo ano de medicina,passou a se dedicar intensamente às au-las de histologia (estudo microscópicode tecidos e órgãos) dadas pelo profes-sor Eduardo Chapot-Prevost (1864 -1907), grande especialista da época. Empouco tempo, Vianna se tornou um pe-rito no tema e fazia trabalhos tão belosque o professor pedia para incorporá-los à sua coleção.

Atendendo a pedidos dos colegas,Vianna passou a dar aulas particularesde histologia em um laboratório monta-do no Largo da Carioca, no centro doRio de Janeiro. Entre os alunos notáveis,destacam-se Lauro Travassos (1890 -1970) e Magarinos Torres (1891-1984).Torres costumava dizer que o amigo im-pressionava por sua “afabilidade, com-preensão e sobretudo pela vivíssima inte-ligência que emanava de seus brilhantesolhos verdes”.

Vianna se mantinha sempre atualiza-do em relação às descobertas científicas.Passou em primeiro lugar no concursopara assistente de laboratório de anato-mia patológica do Hospital Central de Ali-enados antes mesmo de concluir o cursode medicina. Nessa época, fazia autópsi-as diárias na Santa Casa de Misericórdia elevava o material para ser examinado nohospital. O fato chamou a atenção de seuchefe, o professor Bruno Lobo, com quempublicou seu primeiro artigo em 1908.

Formou-se em medicina no ano se-

guinte, época em que Oswaldo Cruz ochamou para ocupar uma vaga em Man-guinhos. Foi no Instituto Oswaldo Cruzque se deu a maior parte de sua produ-ção científica. A paixão pelo trabalho ofazia ficar até tarde da noite na institui-ção. Segundo o já falecido pesquisadorLeônidas Deane, ele freqüentemente re-gressava da instituição pelo trem da Leo-poldina das 22h14min ou das 23h24mine “muitas vezes pernoitava em Mangui-nhos por dias seguidos”.

Em 1911, a leishmaniose tegumen-tar acometia milhares de trabalhadoresda Estrada de Ferro Noroeste do Brasil eera conhecida como úlcera de Bauru. Aoestudar a doença, ele constatou que eracausada por uma nova espécie de Leish-mania, batizada por ele como Leishma-nia braziliensis. Embora mais tarde te-nha sido descoberto que a justificativadada por ele na época estava equivoca-da, o fato é que realmente se tratava deuma espécie diferente daquela identifi-cada no Velho Mundo.

No ano seguinte se deu o feito maisnotável de Vianna: a descoberta da curada leishmaniose tegumentar. Ele propôso uso de sais de antimônio na terapêuti-ca da enfermidade. Hoje, depois de pas-sar por aperfeiçoamentos, o tratamentoantimonial ainda é utilizado. Essa con-quista científica é considerada históricaporque abriu caminho para o tratamentode várias doenças ao redor do mundo. Ohistoriador Edgard de Cerqueira Falcãodiz que somente a descoberta da penicili-na teve um raio de ação comparável ao dacura da leishmaniose.

É ele mesmo quem revela uma outrafaceta de Gaspar Vianna. Ele era um gran-de conversador, tinha a aparência agra-dável e boa cultura. Sabia apreciar múlti-plos aspectos da vida, como políticas,passeios e carnaval. Falcão diz que ele“não era infenso aos eflúvios do belosexo” e que teve várias noivas, apesar denão ter se casado.

Em 1914, ao abrir a caixa torácica deuma mulher tuberculosa, um líquido jor-rou em sua face penetrando em sua bocae narinas. Não existia cura para a doença.Vianna continuou dando seus plantõesnoturnos em Manguinhos até perto desua morte e só parava de trabalhar quan-do a febre alta o abatia. Morreu no dia 15de junho do mesmo ano.

G

A Leishmania braziliensis

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 544Precisamente, um dos grandes cientistas brasileiros

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cossados por guerras, fomee miséria, os países euro-peus foram pródigos emexportar seus cidadãospara as Américas durante

o século 19. Fugindo desses problemas,milhões de italianos, espanhóis, portu-gueses, alemães, irlandeses, poloneses,holandeses, gregos e outros povos atra-vessaram o Atlântico em busca de umavida melhor, em uma transferência popu-lacional sem precedentes na História.Aqui, ajudaram a erguer repúblicas – ouuma monarquia, no caso brasileiro – re-cém-fundadas com seu trabalho e conhe-cimento e refizeram suas vidas. No meiodesse contingente, um casal suíço, per-tencente a uma das famílias mais tradici-onais de Berna, desembarcou no Rio deJaneiro, provavelmente em fins de 1849,onde fundou uma casa de importação eexportação. Eram Gustav e Mathilde Lutz,que em 1855 tornariam-se pais daqueleque é considerado o mais versátil e com-pleto cientista brasileiro, Adolpho Lutz.

Dois anos depois do nascimento deAdolpho, seus pais retornaram à Suíça,talvez motivados pelas doenças que gras-savam no Rio, como a febre amarela e acólera – a primeira pode ter matado até15 mil pessoas na epidemia de 1850. Noentanto, devido a problemas com o sóciona casa comercial, os Lutz voltaram ao paísem 1864. Dos dez filhos do casal, apenasos três mais velhos (Adolpho entre eles)permaneceram na Europa, estudando. Efoi na Suíça que Adolpho Lutz formou-semédico, em 1879, e obteve o doutoradoem medicina, em 1880. Antes disso, o jo-vem Lutz fez cursos em Leipzig e emEstrasburgo e estagiou em Paris, na área deginecologia e obstetrícia. Formado, Adol-pho abraçava a carreira em que seu avô, omédico Friedrich Bernard Jacob Lutz, haviase notabilizado décadas antes. Friedrichchefiou o serviço de vacinação antivariólicae em 1815 tornou-se médico-chefe do exér-cito da Confederação Suíça.

De acordo com os historiadores, atrajetória de Adolpho Lutz como cientis-ta e médico pode ser dividida em três fa-ses: de 1881 a 1892, período em quepublicou diversos trabalhos baseados noscasos que tratava e no qual viajou porgrande parte do mundo (além de percor-rer o Brasil, naqueles anos Lutz esteve naEuropa, nos Estados Unidos e na Ocea-nia); de 1893 a 1908, quando trabalhouno Instituto Bacteriológico de São Paulo

(atual Instituto Adolfo Lutz), onde desen-volveu estudos com Vital Brazil e EmilioRibas; e a partir de 1908, quando se trans-feriu para o Instituto Oswaldo Cruz (IOC)e passou a se dedicar integralmente à pes-quisa. Assim, Lutz ficou até perto de mor-rer, em 1940, aos 84 anos.

Considerado o cientista brasi-leiro mais versátil e completo, Lutzobteve destaque em todas as áre-as em que atuou – clínica médica,helmintologia, bacteriologia, tera-pêutica, veterinária, dermatologia,protozoologia, malacologia e en-tomologia, entre outras. Ele desen-volveu estudos em parasitoses deanimais silvestres e domésticos, le-pra, ancilostomíase, febre amare-la, tuberculose, doenças da pele,do intestino... Em resumo,um versátil e pioneiro cien-tista que viveu em umaépoca – a virada do século19 para o 20 – em que amedicina e os debates pú-blicos que ela proporciona-va mobilizavam, além da-queles que atuavam noramo, as autoridades e aopinião pública.

Famoso entre seus pa-res, Lutz recebeu o físico ale-mão Albert Einstein quan-do o cientista esteve no IOC,em 1925. E teve como com-panheiro de cavalgada o reiAlberto, da Bélgica, que veioao Brasil para as comemo-rações do centenário da In-dependência, em 1922.Apesar de todo esse currí-culo, Lutz era um homemrecluso, avesso à publicida-de e que chegou a morar no Castelo deManguinhos, atual sede da Fiocruz, du-rante a 1ª Guerra Mundial, quando a suafamília estava na Europa. Casado com aenfermeira inglesa Amy Marie GertrudeFlower, que era irmã leiga da Ordem Ter-ceira de São Domingos e que ele conhe-ceu quando trabalhou em um leprosáriono Havaí (1889-1892), Lutz teve dois fi-lhos: a bióloga Bertha Lutz – uma das pri-meiras feministas do Brasil – e o médicoGualter Adolpho. Um de seus costumesera o de dizer a palavra “precisamente”com grande freqüência. Por tudo que feze estudou, foi, precisamente, um dosgrandes cientistas brasileiros.

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 546 Saúde pública nos tempos de cangaço

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rnani Paiva Ferreira Bragaquase entrou para a Marinha.Uma das figuras centrais noprocesso de consolidação dasaúde pública no Brasil, ele

não pertencia a uma família compostatradicionalmente por médicos. Seu tata-ravô foi o primeiro cirurgião-mor da San-ta Casa de Porto Alegre e, depois dele,quase ninguém da família se interessoupela medicina. Nascido no Mato Grossoem 1913, Braga cresceu na cidade portu-ária de Rio Grande, a mais antiga do RioGrande do Sul. Quando estudante, so-nhou com muitas profissões e foi colegade ginásio do futuro general Golbery doCouto e Silva, a quem substituiu comochefe dos escoteiros.

Resolveu entrar para a Marinha porinfluência da família, que tinha muitos al-mirantes, marechais e generais. Foi para oRio de Janeiro em 1929. Nessa ocasião,teve de falsificar sua certidão de nascimen-to porque ainda não havia completado 16anos, idade mínima para ingresso na Es-cola Naval. Mas logo se desencantou pelavida militar: sentiu enjôos na viagem pelomar e não gostou das normas disciplina-res às quais era submetido. Como moravacom um tio que era médico e com doisprimos que cursavam medicina, ele resol-veu seguir esse caminho.

No ano seguinte, já estava na Facul-

dade de Medicina do Rio de Janeiro. Foialuno de homens considerados fascinan-tes, como Carlos Chagas, Miguel Couto ePinheiro Guimarães. Depois de formado,permaneceu mais um ano no Rio de Janei-ro para participar de um curso no CentroNacional de Leprologia. Em seguida, vol-tou para Rio Grande e se empregou noServiço Antivenéreo das Fronteiras. Suaintenção era continuar na cidade, ondetambém tinha uma pequena clínica.

Mas um telegrama de Souza Araújo,chefe do serviço de hanseníase de Mangui-nhos, mudou seu destino. Ele convidavaBraga para assumir o censo de hanseníaseem Pernambuco. Solteiro, independente ejovem, Braga resolveu aceitar. Seu únicoreceio eram os cangaceiros, que na épocacirculavam por Pernambuco. Braga chegouao Recife em 1937, fez trabalhos na capitale também no interior. Nessas ocasiões, to-mava o cuidado de não dizer para onde ia,por causa dos cangaceiros. Foi nessa épo-ca também que passou a se interessar pelasaúde pública.

Em 1941, terminou o curso de saúdepública oferecido em Manguinhos. Naépoca, Getúlio Vargas queria expandir suaatuação em saúde e criou a figura dossanitaristas federais, que eram alocadospara diversos estados. Braga foi para oPará. Depois, foi convidado para ir para aRegião do Vale do Rio Doce.

EEle revelou em uma entrevista que,

na madrugada do dia 24 de agosto de1954, quando Getúlio se suicidou, todosos ministros haviam sumido (inclusive oda Saúde, Mário Pinott). Como seu depar-tamento era o maior de todos, ele pediuque os funcionários do Ministério da Saú-de ficassem em contato com ele. Com isso,chegou a ser chamado de ministro, até queAramis de Ataíde assumiu o ministério.

Nessa época, ele voltou sua experiên-cia para a área de recursos humanos. Tra-balhou na Coordenação do Aperfeiçoa-mento de Pessoal de Nível Superior (Capes),que recebia recursos da Fundação Rocke-feller. Foi chamado para ser o primeirodiretor executivo da Federação Pan-ameri-cana de Associações de Faculdades de Me-dicina em 1962. Permaneceu por quatroanos e, em seguida, passou para a direçãoda divisão de educação e treinamento daOrganização Mundial da Saúde (OMS), fi-cando por sete anos em Genebra.

De volta ao país, Braga dirigiu a Es-cola Nacional de Saúde Pública da Fio-cruz, fez críticas à gestão da saúde duran-te o governo militar (quando acreditavaque o setor social havia sido deixado delado) e recusou o convite de CarlosLacerda, então governador do Estado daGuanabara, para assumir a Secretaria es-tadual de Saúde. Morreu em julho de1984, vítima da leucemia.

Fachada do prédio da Ensp

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 548Ciência com M de Maria

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onsiderada uma das maisimportantes protozoologi-tas brasileiras, Maria Josévon Paumgartten Deane eraobjetiva, franca e modesta.

Foi uma das únicas mulheres a ingressarna Faculdade de Medicina e Cirurgia doPará em 1936, mas não se consideravaespecial por isso. Filha de pai austríaco emãe francesa, ela nasceu em 24 de julhode 1916 em Belém e foi educada dentrodos princípios rígidos da disciplina. Sen-tiu o empobrecimento da família duran-te a Primeira Guerra Mundial e presen-ciou a morte da irmã por difteria quandoainda era pequena. Nada disso a impe-diu de seguir em frente: era uma mulherde muitos sonhos, mas também de fibrapara lutar por eles.

“Quando lá no Pará, em 34, comeceia trabalhar no campo, vestia calças com-pridas, andava de aviãozinho do CorreioAéreo Nacional. Aquilo causava um certoimpacto, mas nunca liguei. Era muito in-dependente”, confidenciou em uma en-trevista concedida à Folha de Mangui-nhos em 1988. Aos 21 anos, antes determinar o curso de medicina, foi convi-dada por Evandro Chagas para integrar aequipe encarregada das pesquisas sobreleishmaniose visceral do Serviço de Estu-dos de Grandes Endemias (Sege) do Ins-tituto Oswaldo Cruz (IOC).

Em 1942, ela assumiu o cargo de as-sistente do Departamento de Parasitolo-gia do Serviço Especial de Saúde Pública(Sesp) em Belém, onde realizou pesqui-sas sobre malária e filariose. Também foichefe do laboratório de entomologia daCampanha de Erradicação da Malária, doMinistério da Saúde, realizando pesqui-sas extensas sobre os transmissores dadoença no Norte e Nordeste do Brasil. Foinesse período que se casou com LeônidasDeane, antigo colega de faculdade, quese tornou, ao seu lado, um dos grandesnomes da Fiocruz. Leônidas Deane eraconsiderado um dos maiores malariolo-gistas do mundo. Confirmou, em 1967,a reintrodução no Brasil do vetor da fe-bre amarela e do dengue, o Aedesaegypti. Percorreu o Brasil em campanhasde controle da malária e realizou a pri-meira experiência de campo sobre o con-trole dessa moléstia pela administraçãoexclusiva de uma droga.

Maria e Leônidas trabalharam juntospor mais de quatro décadas. Logo nosprimeiro anos de casamento, eles foram

cursar um mestrado na Escola de SaúdePública da Universidade Johns Hopkins,nos Estados Unidos. A passagem peloSesp e pelo Serviço de Malária do Nor-deste, além do mestrado no exterior an-tes de completar 30 anos de idade, cre-denciou Maria José para integrar o grupodo professor Samuel Pessoa na Faculda-de de Medicina de São Paulo em 1953.

Com o nascimento da filha, Luiza,ela passou a acompanhar a equipe in-formalmente, até ocorrer uma epidemiade leishmaniose visceral no Nordeste.“Fomos para lá trabalhar a convite doMinistério da Saúde. Quer dizer, nossavida tem sido isso”, relatou em 1988.Nos anos seguintes, a paraense teve pas-sagens por diversas instituições. Orga-nizou o Departamento de Microbiologiae Parasitologia da Faculdade de Medici-na de Taubaté (SP). Desempenhou tarefasemelhante no Departamento de Zoolo-gia da Universidade Federal de MinasGerais. Fez o mesmo no Departamentode Parasitologia da Faculdade de Ciênci-

C

as da Saúde, da Universidade de Cara-bobo, a convite do governo venezuela-no em 1976.

Transferiu-se definitivamente paraManguinhos em 1980, no início comopesquisadora titular do Departamento deProtozoologia do IOC, e em seguidacomo chefe do departamento. Realizoupesquisas sobre o protozoário causadorda doença de Chagas, o Trypanosomacruzi. Um de seus maiores feitos foi des-cobrir que nas glândulas de cheiro dogambá o parasito desenvolve um ciclosemelhante ao que ocorre no barbeiro, oque dá ao animal um papel de reservató-rio e transmissor da enfermidade.

Em 1986, a pesquisadora assumiu ocargo de vice-diretora do IOC e reestru-turou o curso de pós-graduação da uni-dade. Foi premiada, junto com o marido,pela Academia de Ciências do TerceiroMundo por “sua contribuição funda-mental ao estudo das doenças parasitári-as” em 1992. Maria Deane morreu em13 de agosto de 1995.

Maria Deane e o marido, Leônidas, em seu laboratório

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 550Pulso firme e coração mole

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ara um leigo, ter seu nomecolocado em uma mosca é,no mínimo, um insulto. Mas,para um cientista especializa-do em entomologia, isso é

uma honra. Então, se existem 22 espéci-es de insetos que levam o nome lenti emsua homenagem, é porque Herman Lentfoi um dos mais importantes pesquisa-dores brasileiros. Sua genialidade chamoua atenção do próprio Carlos Chagas. Aos20 anos, quando ainda era aluno de me-dicina da Universidade do Brasil (atualUFRJ), conseguiu convencer Chagas a lhedar uma vaga no Curso de Aplicação deManguinhos, onde só ingressava quemjá tinha concluído a graduação.

O jovem prodígio soube aproveitar aoportunidade. No Instituto Oswaldo Cruz(IOC), foi estagiário de Lauro Travassosno Laboratório de Helmintologia e depois,por influência de Arthur Neiva, passou ase dedicar à entomologia. A dedicaçãofoi tanta que Lent se tornou um dos mai-ores especialistas do mundo em barbei-ros, insetos transmissores da doença deChagas. Em seu currículo, constam maisde 230 trabalhos científicos publicados.Consta também o Prêmio Costa Lima, omais significativo na área de entomologia.

Lent era um típico workaholic. Atépouco tempo antes de falecer, aos 93anos, em 7 de junho de 2004, ia diaria-mente à Universidade Santa Úrsula (USU),onde lecionava, e ainda reservava uma ouduas manhãs por semana para o traba-lho no IOC. Dias antes de sua morte, pe-diu que zelassem pela coleção de barbei-ros do instituto, que ele montou e quetem hoje mais de 24 mil exemplares.

Ainda em vida Lent doou mais de 18mil artigos científicos para a Bibliotecade Manguinhos. Era comum encontrá-lodebruçado sobre um livro. Afinal, seuúnico hobby era a leitura. Antes de sercassado, em um episódio conhecidocomo Massacre de Manguinhos, Lenttambém podia ser encontrado no labo-ratório do IOC aos sábados, reunido comos colegas pesquisadores, comendo umafeijoada ou um churrasco.

Ainda no quesito gastronomia, apre-ciava pratos de origem judia que o amigoe discípulo José Jurberg levava para omestre. Talvez esses pratos fizessem Lentlembrar dos pais, imigrantes poloneses.Nascido em 3 de fevereiro de 1911, eleera o caçula de quatro irmãos.

Casado com a paraguaia Maria Gre-

gória, Lent teve dois filhos. Carioca, eletinha aversão ao famoso ‘jeitinho brasi-leiro’. “Era um homem duro, mas sempretinha razão. Se não tinha, reconhecia evoltava atrás. Apesar de rigoroso, sabiaser amável. Fora do trabalho, era muitobrincalhão”, conta Jurberg.

Durante a ditadura militar, Lent foium dos dez cientistas de Manguinhoscassados pelo Ato Institucional n° 5. Em1970, foi aposentado sumariamente eimpedido de exercer qualquer atividadeem instituições com financiamento dogoverno brasileiro. Lent não era comu-nista, mas também não simpatizava como sistema vigente.

Lent conseguiu emprego na Univer-sidade de Los Andes (Venezuela). Depois,trabalhou no Museu de História Naturalde Nova York (Estados Unidos). Lá, reali-zaria sua obra máxima – uma publicação

Pde referência que nomeava e classificavatodas as espécies de barbeiros do mun-do. “Foi a realização de um grande so-nho. Mas acho que ele amargou algumadecepção, por não ter tido condições defazer essa obra em português, no Brasil”,confidencia Jurberg.

De volta ao Brasil em 1976, mesmosem anistia, Lent foi aceito como docentena USU. Ele foi o único dos cassados deManguinhos que não aceitou a reintegra-ção à Fiocruz, em 1985. Mas não foi pormágoa. Foi por gratidão à madre que orecebera na USU. De qualquer forma, elecontinuou como colaborador do IOC.“Herman Lent foi, e é, tudo o que um ci-entista, pesquisador e professor poderiater sido”, escreveu José Rodrigues Coura,editor da revista Memórias do IOC, porocasião do aniversário de 90 anos de Lent.

Imagensde barbeiros

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 552Ele transformava veneno em remédio

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53R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 5

cena aconteceu num labo-ratório da Fiocruz em mea-dos da década de 1990. Ocientista, um senhor de ca-belos grisalhos e andar ar-

rastado amparado por uma bengala, che-ga para dar uma entrevista para uma revistaespecializada em divulgação científica. Per-guntado sobre as linhas de pesquisa quedesenvolvia ali naquele laboratório reple-to de jovens estudantes, alguns dos quaisainda concluindo a graduação, o cientistacomeça a desfiar um sem número de tra-balhos, deixando a repórter surpreendidapela vitalidade daquele senhor de quase90 anos. “Os olhos do cientista que trans-forma venenos em remédios brilhavamenquanto ele falava sobre as pesquisas querealizava”, relatou com lirismo a repórter.

Os tais venenos citados são fraçõesde venenos de serpentes cujas atividadesfarmacológicas eram uma das muitas pes-quisas de Haity Moussatché, o senhor debengala e de faíscas de brilho no olhar.Haity é uma adaptação de um nome he-braico e quer dizer vida. Quem desfrutouda convivência desse fisiologista e farma-cologista pôde comprovar que ele fez jusao nome. Mesmo no final da vida, lutan-do contra uma doença incurável, estavadiariamente na Fundação realizando ex-periências ou orientando seus alunos.

Mais que isso: um dos dez cientistascassados no chamado “Massacre deManguinhos”, durante a ditadura de 64,foi até o final da vida um ativo participan-te dos processos de discussão na gestãodemocrática da Fiocruz, onde, comexceção do período de cassação, perma-neceu por 40 anos.

A conjugação de excelência na pes-quisa com participação política foi de fatoum dos traços marcantes da trajetória deMoussatché. Ele foi um dos inspiradoresda Sociedade Brasileira para o Progressoda Ciência (SBPC) e fez parte do grupoque planejou a criação da Universidadede Brasília (UnB). Paralelamente, teve umaintensa produtividade acadêmica, publi-cando mais de 200 trabalhos científicos.

Estudou venenos de cobra e a ativi-dade deles sobre músculos lisos e estria-dos, isolou uma fração protéica do sorode gambá com atividade contra o venenoda jararaca e realizou ensaios sobre areação anafilática em animais de labora-tório. Também foi um dos pioneiros napesquisa sobre epilepsia experimentalaudiogênica, que estuda os mecanismos

fisiológicos que fazem com que ruídos pro-voquem a doença, e de investigações comprodutos naturais isolados de plantas.

A razão para as atividades em diferen-tes linhas de pesquisa pode ser encontra-da em uma entrevista publicada no livroCientistas do Brasil, da SBPC, no ano doseu falecimento – 1998. Na obra, Mous-satché afirmava que, “no Brasil, como nosdemais países subdesenvolvidos, o pesqui-sador deve ter mais de uma área de traba-lho, porque não é raro que você encontredificuldades insuperáveis em uma área e,nesse caso, tem a opção de mover-se aoutro campo no qual já iniciou algo. En-quanto espera um aparelho importado,que leva anos para chegar, continua tra-balhando em outro campo”.

Reinventando-se a cada dia, a cadadificuldade científica, Moussatché incor-porou essa característica na sua atuaçãoem Manguinhos, onde ingressou no iní-cio da década de 1930 para trabalharcom Miguel Ozório de Almeida, um dospioneiros da pesquisa em fisiologia noBrasil. Haity parece ter herdado de Almei-da, que participou de vários movimentosem favor do desenvolvimento da ciênciano Brasil, o sentimento de uma pesquisavoltada para a realidade do país. Um tra-ço da biografia de Moussatché que por sisó já o colocaria no rol dos notáveis deManguinhos.

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Cobra jararaca, um dosalvos de estudo de Moussatché(foto: divulgação/Butantan)

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R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 0 554Saúde pública: dever do Estado, direito do cidadão

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data de 30 de abril de 1985foi marcante para os traba-lhadores e pesquisadoresda Fundação Oswaldo Cruz(Fiocruz). No ano em que o

Brasil se via livre de 21 anos de retrocessosocial, político e econômico levado adi-ante pelo despotismo militar, era publi-cada em Diário Oficial pelo então Presi-dente da República, José Sarney, aconfirmação de Sergio Arouca como pre-sidente da instituição. Dia de júbilo. Apartir de então, o futuro representariaprofundas mudanças na estrutura da Fun-dação. A instituição ganharia um estatu-to, passaria a eleger democraticamenteseus dirigentes, várias unidades seriamampliadas e outras criadas, além de er-ros, cometidos pela ditadura, que seriamreparados. Para muitos, há uma Fiocruzantes e depois de Arouca.

Antônio Sergio da Silva Arouca nas-ceu a 20 de agosto de 1941, em RibeirãoPreto, interior do Estado de São Paulo.Filho de uma dona de casa e de um fun-cionário público, o menino se apaixona-ria rapidamente pela política. O ambien-te efervescente estimulava: era época daGuerra Fria e das políticas nacional-desenvolvimentistas de Getúlio Vargas.Influenciado por imigrantes italianos,conhecedores do anarquismo e comunis-mo, por leituras e discussões travadas emsua escola, o jovem Arouca opta pelo co-munismo e já aos 15 anos filia-se ao Par-tido Comunista Brasileiro (PCB).

Entra para a Universidade de São Pau-lo (USP) e descobre na medicina o campoperfeito para aplicação de seus ideais deigualdade e justiça social. Como médico,passa a ser até a morte um defensor obs-tinado do sanitarismo, afirmando que aprevenção é a melhor maneira de cuidarda saúde da população. De Ribeirão, par-te para Campinas, onde conclui o douto-rado com a tese O dilema preventivista:contribuição para a compreensão e críti-ca da medicina preventiva (que em virtu-de de perseguições políticas só seria de-fendida em 1976) e depois se tornaprofessor da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp). No início dos anos70, com o recrudescimento da ditaduramilitar e amigos e colegas sendo presos ebarbaramente torturados, se vê obriga-do a se refugiar em Paraty/RJ. No entan-to, graças a um grupo da esquerda cató-lica que assume o Ministério da Saúdedurante o governo Ernesto Geisel, Arouca

é contratado em 1972 como consultorna Organização Pan-Americana de Saúde(Opas). Vai para Brasília e desempenhafunções importantes pela Opas no Méxi-co, EUA, Colômbia, Honduras, Peru eCosta Rica.

Em meados dos anos 70, entra paraa Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp)da Fiocruz, que mais tarde seria rebatizadacom o seu nome. Em1980, vai para a Nica-rágua para ajudar areestruturar o sistemade saúde do então go-verno sandinista. Voltapara a Ensp em 82.Com o fim da ditaduramilitar e apoiado am-plamente pelos traba-lhadores da instituição,é indicado presidenteda Fiocruz em 1985. Re-voluciona a instituição.Reintegra importantescientistas cassados peloregime militar. Cria aEscola Politécnica Joa-quim Venâncio, especi-alizada no ensino mé-dio em saúde, a crecheda Fiocruz, a Casa deOswaldo Cruz, a Farma-codinâmica do Institu-to Oswaldo Cruz, o Centro de Saúde doTrabalhador e Ecologia Humana, além dereorientar a Associação de Servidores daFundação. Tem papel fundamental naconvocação da 8a Conferência Nacionalde Saúde em 1986. Se antes tais confe-rências ocorriam no Congresso Nacionalcom participação apenas de médicos edeputados, com Arouca tornam-se popu-lares, com participação da sociedade ci-vil. As conferências passam então a ocor-rer de três em três anos. Também nesseano, é nomeado por Moreira Franco aocargo de secretário de Saúde do Estadodo Rio. Para não abandonar a presidên-cia da Fiocruz, Arouca abre mão de seusalário como secretário. Mesmo assim, oentão ministro da Saúde, Borges daSilveira, o coloca contra a parede exigin-do uma escolha. Para impedir a renunciade Arouca, funcionários e pesquisadoresda Fiocruz abraçam simbolicamente o Cas-telo de Manguinhos. Arouca então acu-mula as duas funções.

Torna-se popular. Deixa a direção daFiocruz para candidatar-se à vice-presidên-

A cia da República em 1989 pela chapa doPCB. Derrotado, elege-se deputado fede-ral no ano seguinte e, dentre numerososprojetos, luta vigorosamente contra acomercialização do sangue e pelo estabe-lecimento do Sistema Único de Saúde(SUS). É reeleito em 1994. Em 1996, tor-na-se secretário municipal de Saúde. Nãose passam nem três meses, quando seus

interesses chocam-se com o do então pre-feito Cesar Maia. É demitido desrespei-tosamente por e-mail.

Após a eleição de Luiz Inácio Lula daSilva, é nomeado em 2001 ao cargo desecretário de Gestão Participativa do Mi-nistério da Saúde. Começa a organizar a12a Conferência. Seriam suas últimas con-tribuições. Em 2 de agosto de 2003, mor-re aos 61 anos, precocemente devido aum câncer intestinal. Dias após sua cre-mação, os trabalhadores da Fiocruz repe-tem o gesto feito em 86 e comovidamen-te abraçam o Castelo.

A importância de Arouca para a Fun-dação poderá ser em breve fisicamenteentendida. Qualquer um que aqui che-ga, no caminho da Avenida Brasil para oCastelo Mourisco, depara-se com o bus-to de Carlos Chagas e Oswaldo Cruz. Embreve, essas duas personalidades estarãoacompanhadas por uma estátua deArouca - sanitarista que entra para a his-tória da Fiocruz como um personagem cri-ador de idéias e atos progressistas,libertários e democráticos.

Sergio Arouca em um de seus memoráveis discursos, no diade sua posse na presidência da Fiocruz, em 3 de maio de 1985