Revista GOTAZ#03

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Revista Trimestral de Artes Visuais

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gotazkaenestúdio - galeria - loja

grafite - fotografiamúsica - ilustraçãodiálogos - editorial

fitas - filmes - workshopteatro - vinil

exposições e revelações

gotazkaen.comfacebook.com/gotazkaen

[email protected]+55 91 3347-6632

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editorial

Quando, em 2012, conseguimos transformar o sonho da Revista Gotaz em realidade, um misto de entusiasmo e

apreensão tomou conta do estúdio. Felizes por finalmente pôr no papel – literalmente - o projeto, sabíamos da

responsabilidade que teríamos pela frente ao propor, em 100 páginas, um corte, um ponto de vista entre vários

sobre as artes visuais da região.

Um ano, três edições depois, estamos ainda mais cientes da impossibilidade de embalar em um pacote único,

fechado, um suposto significado geral da produção artística da Amazônia. Viabilizar a Gotaz tem sido, antes

de tudo, um aprendizado. Temos tido a oportunidade de entender mais, a cada dia e com o auxílio imprescindível

de nossos colaboradores e parceiros, qual é a nossa como difusores de informação e conteúdo dentro do

momento vivido pela cultura paraense.

E sabemos que, sim, ainda engatinhamos.

Ao pensarmos esta terceira edição, novos questionamentos nos serviram como pontos de partida. O que

dizer do fotojornalismo lírico, prenhe de acasos, da mineira-cabocla Paula Sampaio? Como interpretar os

mestiços excluídos nas tintas do daltônico timboteuense Éder Oliveira? As crews espalhadas pela periferia

de Belém revitalizariam mais muros do que o poder público? O que dizem os retalhos do castanhalense Júnior

Lopes sobre a boa, velha e ainda atual questão arte x consumo?

existem mais perguntas aí dentro. Quem sabe algumas respostas. Fica à vontade.

diretores executivos e criação: daniel silva ([email protected]) e diana figueroa ([email protected])editor-chefe: elvis rocha ([email protected]) | produção: Brunno Apolonio & Neto Guimarães

produção de conteúdo online: renata negrão moreira | revisão: Carol Magno

editora: gotazkaen estúdio ([email protected])

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Capa revista gotaz#03arte e design: Daniel silva

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1 - Jack Nilson - (músico Agronopolos)

“Não curto muito telenovelas. Acho desinteressante quase tudo, mas gos-tava da extravagância bizarra de um personagem bizarro dentro de uma telenovela bizarra (duma época em que essas paródias ainda pareciam dizer alguma coisa), que é o Agrono-polos (Guilherme Karan), um persona-gem mau e de aparência exagerada-mente grotesca e caricata, como que zombando dos vilões, aqueles tipos "maus" e apenas muito maus, sempre presentes no universo de uma teledra-maturgia mais ordinária.”

3- Leonardo Fernandes -

(jornalista Barbosa)

“O gato miando de dor com a brasa do cigarro da abertura era a deixa para uma enxurrada de relacionamentos compli-cados, personagens caricatos e humor nonsense que era “Fogo no Rabo”. A novela apresentada dentro do “TV Pi-rata”, em 1988, tinha como protagonista Barbosa (Ney Latorraca), velhote pançu-do e de cabelo branco à la Ziraldo, que repetia tudo o que os outros falavam. Anárquico e irritante, o personagem acabou sendo assassinado pelo próprio ator que o interpretava, numa reviravol-ta pra botar qualquer Odete Roitman no chinelo. Barbooooosa!”

4- Fabio Vermelho - (ilustrador Nilo)

“Nunca conheci um personagem tão en-joado em nenhuma novela que eu já vi. Acho que me identifico com ele."

2- Arthur Porto - (ilustrador Jayminho)

"É que eu quero evitar a fadiga."

5- Alan Bordallo -

(jornalista Foguinho)

"É um cara bacana e humilde, que ven-ceu na vida por sorte e aprendeu na marra – e na base de escolhas ruins – que aquele era um caminho enganoso. Mas mesmo assim se divertiu, pegou a Leona (Carolina Dieckmann) e pintou o bigode de loiro (não necessariamente nessa ordem), mostrando que mesmo nas piores fases é possível conseguir grandes feitos."

colabo

doresra

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9- Gil vieira -

(mestre em artes visuais Cadeirudo)

“Um salve para o personagem que apavorou minhas noites de infância, direto das cenas de suspense mais bi-zarras da década de 1990: pseudo-es-tuprador-lobisomem-beata-moralista. E no horário nobre!"

8 - Caco Ishak -

(escritor Pirilampo e Saracura)

"Ninguém aqui é noveleiro. Ponto. Em seguida. Mas acredita-se no axioma de que panela velha é que faz comida boa. Dois pontos. Ninguém aqui é hips-ter, tampouco. Vintage, retrô, essa porra toda. Nóis é do interior. E, se nem tão tios assim, vale o lapso entre um e outro de frente pra tevê batendo umazinha pra Ingra Liberato. Novela errada? Ninguém aqui é noveleiro. Mas todos punheteiros. Cuidado ao virar a página. Tinta fresca."

10 - Fabrício Mattos -

(mestre em comunicação João Pedro)

"João Pedro é pessoa difícil, filho de José Inocêncio. A relação entre os dois sempre foi conturbada, pois eram parecidos mas ao mesmo tempo di-ferentes. Se amavam. Mesmo depois da morte de Inocêncio, sua herança a João Pedro foi caráter, honestidade, dignidade e o ensinamento de nunca perder força para existir. A história deste personagem em algum momen-to imaginário se toca com a minha."

6- Emidio Contente -

(artista visual Solange Duprat)

"Solange Duprat (Vale Tudo) é editora de moda e fotografia da Revista To-morrow, a publicação mais legal da dramaturgia brasileira. Solange está sempre ligada a tudo que é novo e sabe bem como transformar suas referências em novas informações. Além de conviver entre amores e atri-tos com pessoas maravilhosas como Heleninha Roitman, Solange deu um histórico tapa na cara da cínica Maria de Fátima logo após o seu casamento. Solange é inspiração total, cherrie."

7 - Carolina Coroa -

(ilustradora Paola Bracho)

"Não me levem a mal, mas certeza que eu gostaria de ter uma sósia pra poder só fazer o que gosto."

11 - dedéh farias -

(grafiteiro maria do bairro)

"Eu nunca tive o hábito de assistir novela, porém me lembro dessa com um pouco de nostalgia, por ser uma que se repetiu várias vezes e minha mãe não deixar de assistir nem uma vez. Às vezes, por não ter nada para fazer, de tardinha sentava e assistia com ela. Hoje em dia o único personagem que eu consigo lembrar dessa novela é a própria Maria.".

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- ra

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- mr.

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- eu cowboy meets weird works -

- ela é americana... da américa do sul -

- belas-artes, mundo cão -10

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índice

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- tudo cabe -

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-- passagem -

- corpos assombrados -

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Belasartes,

Mundocão

por elvis rocha

fotos: diana figueroa e divulgação

Nas tintas do timboteuense Éder Oliveira, a realidade monocromática da exclusão

No centro do Rio de Janeiro, a imagem de quatro cabo-clos amazônidas ocupa a fachada do Centro Cultural Ban-co do Brasil, um dos mais conceituados espaços destinados às artes do país. Nada mal para quem há não muito tempo estampava, com adjetivos nada lisonjeiros, as páginas ainda menos nobres dos cadernos policiais de Belém. Os olhares – desafiadores, constrangidos, assustados, indiferentes – con-tinuam os mesmos, mas é improvável que as personagens mestiças, esturricadas pelo sol e pelo estigma, tenham a chance de reconhecer, no trabalho do conterrâneo Éder Oli-veira, a própria imagem da exclusão, agora refletida em tons verdes, vermelhos, amarelos e azuis.

A obra, que integrou a mostra “Amazônia, Ciclos de Mo-dernidade”, promovida pelo CCBB na capital carioca e em Brasília no primeiro semestre de 2012, é uma espécie de sín-tese do pensamento artístico de Éder, ele próprio um mestiço nascido e criado na região bragantina do estado, que em um par de anos construiu uma trajetória calcada na mescla entre pintura, fotografia, sensibilidade social, intervenção urbana e daltonismo. De figuras anônimas, relegadas habitualmente às áreas pouco visíveis do tapete social, nasce um processo de ressignificação que realoca e joga na cara de transeuntes a incômoda questão: existe um papel para este homem de ralas nuances cromáticas que não os de criminoso ou vítima?

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Para entender o caminho percorrido pelo artista, no entanto, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais preci-samente à Nova Timboteua da segunda metade dos anos 1980: um vilarejo do nordeste paraense com menos de 10 mil habitantes e forte ligação com o consumo, estilo de vida e maneirismos cultivados na periferia de Belém. Descen-dente de índios e negros, filho de professor primário e dona de casa, Éder cresceu cercado pela realidade que, tempos depois, o ajudaria a refletir sobre o espaço reservado pela arte ao homem comum da Amazônia, assim como à identi-dade cultural deste. No quadrado Casa-Escola-Igarapé-Te-levisão foi gestado o embrião da veia artística que, ainda sem muita consciência, era latente desde a infância.

“Em Timboteua eu era o 'cara que desenhava'. Fazia os desenhos dos trabalhos escolares, reproduzia as imagens para os trabalhadores nos muros, tinha referências dos heróis da televisão. Era uma vida calcada na relação homem-nature-za e baseada culturalmente no que a televisão me oferecia. Nem banca de revista nós tínhamos naquela época”, lembra

Éder, que levou em conta o talento para o traço e os elogios de amigos e parentes quando, aos 17 anos, deixou a cidade para completar os estudos na capital. A escolha era óbvia, e no curso de Educação Artística da Universidade Federal do Pará o timboteuense experimentou pela primeira vez o estranhamento, inicialmente causado pela diferença cultural em relação aos colegas de graduação.

“Quando entrei na faculdade precisei correr atrás de muitas informações que simplesmente não tinha. Levei um tempo para me situar na História da Arte, por exemplo. O próprio hábito da leitura eu adquiri já na faculdade, para suprir estas lacunas.” E quando algum tempo depois o es-tudante finalmente desenvolveu a confiança necessária para perceber – pela admiração instantânea por mestres como Caravaggio, Michelangelo e Leonardo Da Vinci – que a inclinação para o desenho poderia ser convertida para a pintura, veio o segundo e mais forte baque: a descoberta do daltonismo. “Passei a vida toda errando cores e quando adotei a pintura errava mais ainda.

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As pessoas perguntavam 'Por que essa mancha verme-lha aqui?' E eu simplesmente não enxergava. Foi um choque pensar que não poderia me dedicar ao que queria por conta de uma deficiência”, diz Éder, que desde a faculdade passou à margem das tendências dominantes na arte conceitual con-temporânea, buscando nas tintas e na representação fiel da realidade seu caminho.

O leque de cores limitado, encarado inicialmente como um óbvio problema para quem enxergava a pintura como meio de expressão, obrigou Éder a redefinir os objetivos e adaptar os conceitos que já vinha maturando – com o aconselhamento de figuras importantes na sua carreira, como o artista plástico, professor e conselheiro Alexandre Sequeira. “Foi a partir do daltonismo que caminhei para o monocromático, que combi-nou com a predileção por retratar mestiços – já que minha pa-leta de cores são vários tons de marrom. Comecei a misturar o estudo de pinturas de figuras históricas com a necessidade de retratar as pessoas comuns. Queria pegar um cara da pe-riferia, ampliá-lo e colocar na moldura. Desenvolvi a partir de então um trabalho mais consciente de pesquisa pela identida-de cultural dessas pessoas e depois fui acrescentando novas cores ao meu trabalho: o verde, o azul, o vermelho.”

"foi a partir do daltonismo que caminhei para o monocromático."

Daltônico, Éder busca nas personagens esquecidas da realidade matéria-prima para suas reflexões artísticas

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O processo de busca pelas referências adequadas às suas pretensões encaminhou Éder ao trabalho do paulista Alex Flem-ming. Um dos artistas visuais mais respeitados do país, Flemming parte, em muitas de suas obras, da imagem do corpo humano para criticar os vícios da sociedade contemporânea – como na série “Sumaré”, de 1998, que causou impacto particular sobre as ideias de Éder. Era esse o caminho. Já com uma visão mais bem estru-turada do que serviria de base para sua produção – e somando outras referências tanto das Artes Visuais quanto da Sociologia –, o paraense não demorou muito a perceber que as personagens que combinavam com seus objetivos (negros, mestiços, caboclos, excluídos em geral) estavam curiosamente escondidas, de forma quase anônima, nas páginas dos jornais de grande circulação de Belém. Para ser mais exato, nos cadernos policiais.

"redimensiono as imagens para dar

importância à figura que está ali como mera

nota de jornal."

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“Comecei a passar aquelas pessoas para a tela e redimensionar as imagens, torná-las maiores, com a intenção de dar importância àquela figura que está ali como uma mera nota de jornal, mas que é um indivíduo, com uma história, e que representa toda uma classe. Queria pegar aquela imagem pequena e transformá-la em outra coisa, chamar a atenção para estas ques-tões.” Foi preciso algumas poucas exposições coleti-vas e uma única individual (“Ser do que é anônimo”, no

Instituto de Artes do Pará) para que Éder chegasse à conclusão que a rua, espaço por natureza consagrado a todos, era o mais adequado à mensagem que pre-tendia transmitir com suas reproduções. Deste então, a intervenção urbana em muros e espaços públicos espalhados pela cidade foi a maneira encontrada pelo timboteuense para devolver à comunidade as imagens, agora recontextualizadas, de cidadãos em situações-li-mite, na dupla condição de algozes e vítimas.

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"meu trabalho não tem grandes pretensões a não ser fazer pensar: por que ele e não eu?"

“Meu trabalho não tem grandes pretensões a não ser fazer pensar: por que ele e não eu? Por que aquelas pági-nas só têm esse e não aquele tipo de pessoa? Se folheares jornais diariamente, vais pensar que são as mesmas figu-ras sempre, porque elas são muito parecidas e pertencem todas a um grupo étnico e social bem específico. Compre-ender isso é compreender o todo”, enfatiza. Enfiado mais recentemente na leitura de Milton Santos, Susan Sontag e Paulo Freire, Éder, que segue em busca de respostas para suas inquietações sobre as possibilidades da arte como agente de transformação, acredita que ainda levará um tempo – a vida inteira – para chegar ao ponto de exce-lência que almeja para si. Enquanto isso, ele tenta. Há não muito estava no Facebook pedindo muros a quem quisesse ajudá-lo na autoimposta missão de emprestar um ponto de vista novo, menos preconceituoso, sobre aquele homem comum, logo ali, ao lado. “A minha realidade é essa. So-cialmente estou no mesmo nível que as pessoas que re-trato. Participei desse êxodo do interior para a cidade como muitos deles, cresci e moro na periferia. Minha posição como artista não é superior, mas sim de solidariedade.”

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exposições e prêmios

- “Entre Lugares” – Museu Casa das Onze Janelas (2012) -

- “Amazônia, lugar de Experiências” – Museu da UFPA (2012) -

- “Círio nosso de cada dia” – Galeria Theodoro Braga (2012) -

- “Amazônia, Ciclos de modernidade” – CCBB/RJ e CCBB/ Brasília (2012) -

- “O Triunfo do Contemporâneo” – MAC/RS (2012) -

- “Amazônia, a Arte” – Palácio das Artes – Belo Horizonte – MG (2010) e Museu Vale - Vitória - ES (2010) -

- “Salão Arte Pará” – Fundação ORM/ MHEP – 2007 e 2011, prêmio aquisição em 2006 e 2º Grande Prêmio em 2007 -

- “Prêmio SIM” – Exposição coletiva Corporaturas (2008) -

- Mostra “Contiguidades: dos anos 1970 aos anos 2000” – MHEP (2008) -

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aface

política

felicidadeda

por fabrício mattos

ilustração: daniel silva

Do que estamos falando quando falamos em cultura? Falamos daqueles shows que assistimos, daquele filme que vimos, daquele concerto que “levou cultura” às comunidades carentes, de ações educativas e culturais “muito importan-tes” ou de promoção da “paz social” por meio da arte.

Pode ser. Mas estes exemplos falam sobre os produtos da cultura e (talvez) de algumas funções da cultura. Em ou-tras palavras, de quando a cultura é utilizada como um recur-so para outros fins, para justificar um investimento ou mesmo respaldar uma política de governo.

Não é a cultura que é acionada e apontada quando se quer dizer que determinado povo é assim ou assado, que “somos” porque nossa identidade é formada de determinada maneira, mesmo que essa forma de ser seja melhor para uns e não para outros?

A cultura, portanto, não é apenas significação, ela tem dimensões "umbilicalmente" ligadas ao poder, à política, à economia, à comunicação. Não é uma totalidade, mas é uma dimensão constitutiva do humano, fazendo parte desta tota-lidade que é a vida.

Recolocando a pergunta, então: o que vem antes dos eventos culturais? O que antecede essas funções ou justifi-

cativas dos usos da cultura? Conseguimos visualizar a cultu-ra em toda a sua complexidade quando o que passa por nós é muitas vezes apenas um dos momentos da cultura, que é o momento da circulação ou consumo?

A política vem antes da circulação. O sistema de poder em que está inserida e o planejamento seguido da ação. São duas políticas, para utilizar melhor este termo que não é bem esclarecido nas nossas línguas latinas, por nossa formação histórica e pela confusão entre o público e o privado. As duas políticas dizem respeito ao que os anglo-saxões chamam de politics e policy.

A primeira refere-se à luta por posições de poder (domi-nador e dominado), que mudam dependendo do momento histórico em que se vive, posições que são disputadas, já que o poder é transitório: é uma relação. Aquele que domina tem o pressuposto da ação: o poder fazer.

A segunda tema ver com as ações de governos, de mo-vimentos, de empresas, que visam um objetivo claro, geral-mente algum nível de desenvolvimento de um circuito cultu-ral e a formação de uma política para a área da cultura.

A união entre a política e a cultura gera a política cultural, mecanismo complexo, mas a base de todas as ações cultu-

a cultura e suas dimensões ligadas ao poder, à política, à economia e à comunicação

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rais que muitas vezes não conseguimos visualizar na dimen-são comum da vida cotidiana. É a estrutura que organiza a cultura, que mobiliza e estimula os circuitos culturais.

Como aponta Albino Rubim, um circuito cultural é forma-do por pelo menos sete fases: 1. Criação, invenção, inovação; 2. Difusão, divulgação, transmissão; 3. Circulação, intercâm-bios, trocas, cooperação. 4. Fruição, consumo e públicos; 5. Análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; 6. Conservação e preserva-ção; 7. Organização, legislação, gestão da cultura.

Ao pensar política cul-tural, então, estamos questionando o âm-bito da estratégia, de um projeto de provir para todos nós, e não das pe-quenas táti-cas conver-tidas em g r a n d e s eventos de empresas ou gover-nos. Pensar dessa ma-neira quer di-zer recolocar as questões. É mudar a crítica do gosto para a visão de processo. Recolocar as questões num nível não de conteúdo, mas de estrutura.

Não é perguntar o porquê de o tecnobrega ser destaque na cena cultural paraense e sim qual a sustentabilidade dessa cena? Em que parte da cidade se situam os equipa-mentos culturais? Qual dinheiro financia a cultura no mu-nicípio, no estado e na federação? Como é feito o gasto deste dinheiro? Pra quais projetos? Para quais partes do estado? Para quais públicos?

Questionar o que é política de governo (transitória) e de

Estado (a política de desenvolvimento, independente de go-vernos). Questionar a sustentabilidade dos processos. Pedir transparência no uso dos recursos e avaliar políticas imple-mentadas, pois a cultura pertence a todos.

Atualmente é muito difícil haver eventos culturais em que não exista dinheiro público no seu financiamento, de ma-neira direta ou indireta. Estamos habituados a visualizar e

criticar os conteúdos da cultura, dizendo o que é bom e o que é ruim, numa autofagia

incrível, num exercício de auto-análise constante, mas um

tanto quanto superficial. O questionamento pro-

fundo, no entanto, é o questionamento

que modifica a cultura e toma pelas mãos os destinos do fazer cultural, em toda a sua complexi-dade.

D i z i a Daniel Lins que o ho-

mem é um sujeito dese-

jante levado para algo que o

torna alegre. Essa alegria é uma for-

ça revolucionária, na medida em que ela se

torna uma força afirmativa, de amor à vida. A felicidade e

a potência são o terreno da cultu-ra, porque é na cultura que existe o mo-

mento de representar, de estar junto, de vivenciar, de potencializar as energias criativas.

Porém, a política é o momento de planejar, de analisar, de construir. Um velho ditado político diz que a política não traz felicidade. Mas, ao costurar estas duas dimensões do humano, criando as condições de uso da cultura para todos, não seria possível imprimir uma face política à felicidade?

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Đĕo seurecaÐo

Crews investem em mutirões para levar arte aos muros da periferia da capital paraense

por alan bordallo

fotos: traumas videos

Demorou até que os grafiteiros de Belém percebessem que, por mais que o centro fosse uma grande e sedutora vitrine, sua arte não encontrava a plenitude ali. E mesmo que a arte urbana seja uma válvula de escape para o cidadão co-mum, ver seu traço disputar espaço com cartazes era pouco para o que os artistas queriam. Na periferia da cidade, porém, a história era diferente. E hoje as cores e inspiração de crews como o Cosp Tinta são dedicadas preferencialmente às áre-as periféricas, em forma de mutirões de grafite.

A escolha pela periferia é fácil de entender, a começar pela familiaridade com o local. Salvo exceções, os grafiteiros

nasceram, cresceram, se criaram e tiveram o primeiro conta-to com a latinha nos lugares onde o poder público normal-mente não chega. E esse contato quase que invariavelmente, começa na "infração da pichação", como o artista Fábio Graf se refere ao hábito que lhe abriu as portas para a expressão artística. Aliás, foi da confusão entre grafite e pichação que ele ganhou o apelido. "Uma câmera me pegou pichando uma igreja. Meus amigos viram a filmagem e falaram disso. Mas na brincadeira eles falavam 'mas não era pichação, era gra-fite, né?'. Daí passaram a me chamar de Grafite, depois só de Graf. E ficou Graf", lembra.

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Mas não é só com a pichação que o grafite se confunde. Técnicas como aerografia, nos primórdios da prática do grafi-te em Belém, eram jogadas no mesmo saco. Foi na aerografia que começaram a se manifestar os dotes artísticos de George Luiz e Marcelo Silva, o Bocão. "Trampava e assinava minhas obras como grafite. Até que soube o que era", lembra George, que após diferenciar um do outro, começou a participar de oficinas de grafite. A iniciação coincidiu com a transição de outros artistas para o grafite. Dali nasceu a Urbe (Artistas Ur-banos de Belém), a primeira crew do grafite paraense.

À medida que as informações começaram a chegar aos grafiteiros, eles sentiram a necessidade de propagá-las. E após uma visita de Fábio e Edpaulo Cardoso, o Ed, a Recife, eles encontraram o modelo ideal. "Fomos a um encontro com

grafiteiras em Recife. Antes a imagem que tínhamos era a de que o lugar do grafite, esteticamente, era no centro. Em Recife a gente viu o grafite nas favelas, nos morros, nas co-munidades. Para mim, isso foi mágico", diz Ed sobre o primeiro mutirão que participou.

Na época – entre 2009 e 2010 – os mutirões estavam sendo ensaiados em Belém, mas ainda de forma incipiente, voltados apenas para a relação "Artista x Muro". A experiência no Nordeste deu a Ed e Fábio outra visão do grafite, impreg-nada do papel social que a arte continha – e eles acabavam de perceber. "Lá os organizadores eram da Rede Resistência Solidária, que praticamente idealizou o formato do mutirão", lembra Graf, que valorizou a experiência de aprender com os mestres naquele assunto.

"em recife a gente viu grafite nas favelas, nos

morros, nas comunidades. isso foi mágico."

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Logo que voltaram a Belém, Graf e Ed idealizaram e realizaram, em 2010, o primeiro mutirão na capital para-ense, realizado no Dia Nacional do Grafite (27 de mar-ço) e intitulado “Pintando Cidadania”. Outros mutirões, organizados por outros grupos, foram acontecendo. Mas em 2012 a frequência subiu exponencialmente. "Elaboramos um projeto e conseguimos até uma par-ceria, que depois furou. Mas mesmo assim conse-guimos fazer 11 edições em 2012. Foi um circuito de arte urbana inédito em Belém. Foi uma conquista", diz Graf, sem esconder o orgulho.

Ed, Graf, George e Bocão participaram da maioria dos mutirões. Entre eles é unanimidade a preferência pela periferia. "No centro antes a gente buscava o re-conhecimento. Mas na periferia é possível unir isso com a cultura do hip hop, o diálogo com a comunidade, a in-teração com as crianças. A periferia traz a necessidade de dialogar com o dono da casa, pedir permissão para pintar aquele espaço, explicar para a criança o que é aquilo, como se faz", explica Ed.

"fizemos onze mutirões durante 2012, um circuito de arte urbana inédito em belém."

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E diferente das formas de arte tradicionais, em que a estética e técnica são valorizadas sobre os outros aspec-tos da manifestação artística, o que o mutirão prioriza é a intervenção. "A gente não vai só pintar, vai fazer amizade. E faz amizade abrindo o espaço para quem quiser dar seu recado. O que importa é a atitude", explica Bocão, exem-plificando a ideia de participação. "Já fui aluno e me senti pressionado na hora de mostrar. Ninguém quer saber se

escorreu a tinta do desenho", garante.Hoje, a crew não hesita em dizer que guarda as melho-

res tintas para os trabalhos nos mutirões, que já foram a bairros como Tapanã – onde fica a Casa do Grafite Paraen-se –, Guamá, Guanabara, Terra Firme e outros locais de paisagem urbana deteriorada, levando arte e cidadania. "Já revitalizamos muito mais muros que a Prefeitura", ga-rante George, aos risos.

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corposassombrados

por Gil Vieira

ILUSTRAÇÃO: carolina coroa

Nas ruínas do finado Museu do Índio (Centro de Pre-servação da Arte, Cultura e Ciência Indígena), na cidade de Santarém, oeste do Pará, algumas assombrações pairam imóveis no ar, intrigando quem passa nos arredores do local. São nove estruturas de tecido em cores diferentes, com aproximadamente dois metros de altura cada, instala-das pelo artista Egon Pacheco, obra denominada "Florões-píritos". Essas esculturas esvoaçantes gemem alto, mesmo mudas, e seus lamentos ecoam, ainda que há muito já te-nham sumido de nossa vista.

Que essa imagem fique bem clara para que iniciemos uma discussão a respeito de escultura contemporânea no Pará.

Ao lado da pintura, a escultura está entre as artes que nos acostumamos a chamar de belas. Da estatueta da Vê-nus de Willendorf às celebradas obras de Auguste Rodin, nomes relacionados a esta linguagem não faltam. Quando o assunto é escultura contemporânea no Pará, entretanto, a facilidade de citar artistas e obras relevantes é questioná-vel. De onde vem nossa dificuldade em pensar nomes além

de João Pinto, Rui Meira e... Quem mais?Uma causa óbvia da escassez de produção e refle-

xão deste tipo advém das próprias características da arte contemporânea. Os artistas já não são aqueles que, por meio de um longo aprendizado, dominam uma linguagem ou técnica: pintores, escultores, gravuristas... Outra lógica se impõe: atualmente aquilo que é produzido entremeia di-versas técnicas e linguagens, sem se fixar a nenhuma em particular, havendo mesmo artistas que apenas concebam a ideia e terceirizem sua materialização.

Outra razão bastante evidente é o fato de o concei-to de escultura ter se modificado de forma muito intensa no século 20 – tema discutido por críticos como Rosalind Krauss, ainda na década de 1970. As técnicas de entalhe, modelagem e fundição já não respondem sozinhas pelas categorias escultóricas, e outros procedimentos na mani-pulação de materiais expressivos são realizados: agregar, escavar, destruir, demarcar. Já se disse que tais esculturas se aproximam muito mais das pinturas e instalações con-temporâneas do que das esculturas de outras épocas.

egon pacheco, mestres do sairé e a escultura contemporânea no pará

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Estabelecido um pano de fundo, quero chamar a atenção para al-guns processos escultóricos desen-volvidos em 2012 pelo artista Egon Pacheco, na vila balneária de Alter do Chão, em Santarém, onde nasceu e reside. Foram produzidas quatro obras efêmeras, como parte do re-sultado de uma pesquisa do artista subvencionada pelo Instituto de Ar-tes do Pará. Egon Pacheco buscou dialogar com a simbologia do Sairé, festa popular de origem católica e indígena que ocorre anualmente em Alter do Chão. Proibido pela igreja na década de 1940, o Sairé foi re-tomado pela comunidade local em

1973, adquirindo outras significa-ções que não somente a religiosa.

As esculturas de Egon Pacheco foram realizadas sempre em diálogo com os mestres do Sairé, morado-res da comunidade que fazem parte daquela cultura. Ao tomar materiais, cores, objetos da festa tradicional e usá-los em suas obras, o artista es-tabelece um primeiro ponto de dis-cussão a respeito da escultura con-temporânea no Pará: o diálogo com as culturas locais, cuja origem é, em geral, indígena e cabocla. E que re-força uma visão que se repete em outros centros – a insuficiência da perspectiva universal (própria do mo-

dernismo) para responder as ques-tões da arte, e a necessidade de vol-tar o foco a particularidades locais.

Instaladas a céu aberto, as obras do artista também nos levam a outras discussões. Exemplo: além das almas penadas que emergem das ruínas do museu, ele também instala lanças or-namentadas bem em frente à igreja local, aludindo à história do Sairé e a histórias mais antigas e também mais violentas. Sentidos políticos e sociais se evidenciam, tornando tais imagens deflagradoras de debates sociais amplos, por meio de uma produção artística que não se exime das ques-tões de seu tempo e lugar.

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"as esculturas de egon pacheco

foram realizadas em diálogo com mestres do sairé."

A prática de uma escultura que é conceitual aproxima Egon Pacheco de manifestações artísticas contemporâ-neas – em diálogo com termos como earthworks, land art, site specific etc. Sabendo dialogar com diferentes te-orias estéticas, do modernismo e da arte contemporânea, a escultura local busca sua inscrição na história da arte brasileira, se apresentando como uma produção amadurecida, com peculia-ridades e discussões próprias. Em a Árvore da vida, por exemplo, o artista faz de folhagens e galhos entrelaça-dos um mastro obscuro, com apro-ximadamente sete metros de altura, fincado no centro de um círculo ne-gro feito de pedras de carvão. Essa estranha árvore destaca-se no terre-no descampado, e ganha ainda maior proporção por emitir incansavelmente diversos sons: cantos de pássaros, crepitar de fogueiras, zumbidos de motosserras, ladainhas e orações do Sairé... Tal paisagem sonora e visual traz em si o senso agudo de denúncia, e se impõe como uma aparição não anunciada, presságio de fatalidades e tempos ruins.

Outra obra é Kuarup in memorian, composta de cerca de quinhentos cilindros pintados por Egon Pacheco, fazendo refe-rência a uma série do importante e falecido artista santareno

Mário Pinto Guimarães, montada em um cemitério, como se a mes-ma fosse simultaneamente expe-rimento estético multicolorido e visagem macabra que clama por valorização da cultura e história da região.

Mas a escultura contemporâ-nea no Pará não é um corpo as-sombrado somente por sua pro-pensão a lamentos ou tormentos. Esses corpos são eles próprios também atormentados, por mui-tas vezes estarem à sombra, aco-bertados por múltiplos véus de esquecimento. Invisíveis, quando situados nas grandes cidades e contrapostos à proliferação de ar-ranha-céus e outdoors. Também sob a sombra do descaso e da insignificância social, após perder qualquer relevância que um dia tenham possuído, quando se deixa que esculturas sejam removidas e perdidas ao sabor dos interesses políticos e administrativos, e nada

pode ser feito. Ou ainda sob a sombra de um esquecimento em nossa história da arte, que não dá conta dessa produção escultórica – talvez devido à sua tridimensionalidade, em uma época que a tudo achata para a página bidimensional do livro ou do website.

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A produção escultórica de Egon Pacheco, ainda que (ou justamente por que) tenha sido efêmera e ocupado es-paços não institucionais, conseguiu despertar o interesse da comunidade de uma maneira inesperada. A curiosidade e o estranhamento foram tamanhos que o artista foi convi-dado a esclarecer suas atividades em uma rádio comunitá-ria, incitando um debate público interessantíssimo. Os cor-pos assombrados que Egon Pacheco invoca e presentifica querem mais do que a visibilidade, e fazem ecoar os seus gemidos, de forma que o diálogo entre arte e comunidade urge. E será sempre muito prolífico para sombrear ou es-clarecer aquilo que for necessário.

Um exemplo pode ser encontrado na escultura Velames de Osmar Pinheiro, instalada na década de 1980 no Com-plexo do Ver-o-Peso, em Belém, trazendo peças de ferro que faziam referência a velas e mastros de embarcações, sobre um pequeno lago circular. Retirada do local em 2002, hoje seu cadáver desaparecido ainda assombra a cena lo-cal, que continua produzindo casos semelhantes: há pouco tempo Olho d’água, de Acácio Sobral, também um exemplo de escultura projetada para um lugar específico (no caso, o campus da Universidade Federal do Pará), foi desmontada e removida, sob o pretexto de ser remontada em local próximo.

Ambos os exemplos, somados à produção de Egon Pa-

checo, nos fornecem material para continuar pensando a es-cultura contemporânea no Pará. Quero afirmar a existência de um processo escultórico local, ainda que pouco visível. Grande parte dessa produção, quando relevante, tem se construído na interseção e expansão de elementos simbó-licos, sem hierarquizá-los por conta de suas origens, e sem se fixar a regionalismos, não se atendo a uma preocupação unicamente plástica e nem a um conceitualismo desinteres-sado pelas formas. Reflete e refrata tanto o imaginário re-gional quanto as teorias artísticas e estéticas atuais, além de estar muitas vezes consciente das discussões relevantes de outros campos que não só o da arte.

"a produção de egon pacheco conseguiu despertar o interesse da comunidade de uma maneira inesperada."

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rainħados

acasospor EMÍDIO CONTENTE

Acompanho o trabalho da fotógrafa Paula Sampaio (www.paulasampaio.com.br/en) desde quando comecei a pesquisar sobre fotografia. Há pouco tempo pude co-nhecê-la melhor como pessoa. Quase sempre inquieta e em constante produção, divide seu tempo entre o fotojor-nalismo, a assessoria do SESC Boulevard, em Belém, e projetos artísticos.

Um destes projetos da fotógrafa será apresentado ain-da este ano, em um livro sobre a floresta inundada nas proximidades da Hidrelétrica de Tucuruí, mais um dos muitos “acasos” da vida de Paula que resultam em um trabalho altamente reflexivo.

Sempre muito cuidadosa com relação ao uso da ima-gem, começamos nosso bate-papo com o pedido dela

para não ser fotografada. Seu papel “não é ser retratada, mas sim retratar”. É Paula tentando se negar como perso-nagem, mas se afirmando ainda mais como tal.

Uma mineira que faz parte da tão festejada produção fotográfica paraense, Paula trata-se na real de uma minei-ra-paraense. Com um olhar de quem parece sempre ter muita intimidade com os assuntos registrados, grava em áudio, anota e troca correspondências com seus persona-gens, que por muitas vezes tornam-se amigos.

A “caríssima” – como é conhecida por todos – nos recebeu em uma ensolarada tarde em um dos salões do SESC Boulevard durante a correria para finalização de seu novo livro. O papo, algumas imagens do atual trabalho e da carreira de Paula podem ser conferidos a seguir:

Em mais de 20 anos de carreira, Paula Sampaio fez da intuição sua maior companheira. O artista emídio contente foi ouvir suas histórias.

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"O que dá certo é o que foge, é o que vem no atalho, porque o plano certo é sempre pequeno."

Emídio - Paula, tens muito cuida-

do quando fazes vídeos, postas fo-

tos das pessoas no teu site, por medo

de como poderiam usar essas imagens.

Como falas: não são tuas, no sentido

de que são imagens do outro ali, mas

ao mesmo tempo isso vai de embate com

o trabalho do fotojornalismo no

sentido do jornal mesmo, né?

Não. É diferente. O fotojornalismo é uma outra questão. Eu estou na rua, fazendo um trabalho, documentando uma coisa normalmente pública. Quan-do você entra na casa de alguém, você entra porque te permitem, é invasão de domicílio (entrar) sem autorização. E a pessoa sabe, está consciente da-quilo que está sendo feito, pra onde vai. É por isso que tem identificação,

que o carro do jornal tem nome. En-tão, as leis que regem o direito autoral são diferentes pro tipo de mídia que a imagem for aplicada. O que é público está aí pra ser documentado; já é muito diferente entrar na casa de uma pes-soa, ela me contar toda a história dela, eu ter essa imagem, sair e vender pra ganhar um dinheiro pra mim. É por isso que o trabalho que eu faço não ven-do. Elas sabem que eu estou ali docu-mentando pra projetos que são meus, que esses trabalhos vão para exposi-ções, coleções, museus, livros, porque o meu propósito é que as histórias/imagens dessas pessoas seja conheci-da e o dinheiro que entra dos prêmios, bolsas de pesquisa é pra financiar as viagens e outras etapas dos projetos e normalmente nem dá pra manter. É um

investimento da minha vida, no que eu acredito e é pra isso que eu tenho dois empregos pra me manter, pra poder fi-car livre fazendo aquilo que eu escolhi como expressão, como forma de viver. Por isso eu não me sinto à vontade pra estar expondo essas pessoas de qual-quer jeito. Uma parte dos envolvidos nesses projetos são pessoas que eu conheço, sei onde moram, sei da his-tória, são pessoas que escrevem pra mim, com quem eu tenho uma cor-respondência e alguns que eu nunca mais vou ver. Com esses então, o meu cuidado é muito maior, já que eu me apresentei para as pessoas para recolher histórias e imagens pra um trabalho específico, não é justo da minha parte que isso vá pra outro lugar. Foi uma escolha.

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Emídio - Teus projetos, em geral, já

nascem pensados como projetos ou

eles vão acontecendo?

Eles vão acontecendo. Dificilmente eu tenho um plano pra começar alguma coisa. É como uma intuição: o sentido de que alguma coisa ou determinado lugar te chama. Por exemplo, no caso (do projeto) das estradas eu não ia fazer nada disso. Eu nunca pensei em fazer documentação de imigração, de coloni-zação. Só que houve uma mudança de planos no início desse projeto, na ver-dade foi um acidente. Eu tinha pensado em documentar a agricultura familiar rural na Amazônia e não tinha nada a ver com estrada, ocupação amazônica; pelo contrário, tinha a ver com o modo de viver e de produzir na Amazônia. E

eu passei um tempo montando esse projeto a partir de uma experiência que eu tive na Seduc de documentação do ensino público, na gestão da professora Terezinha Gueiros, que foi muito bacana. Comecei isso lá, e foi com esse proje-to de documentação que eu tive a ideia de fazer a agricultura familiar. E quando eu fui pro encontro que esses agricul-tores teriam – depois de muito tempo pensando nisso – foi quando aquele avião da TABA caiu em Altamira 1990, não sei se vocês lembram disso. Aliás, eu ia (viajar) nesse avião, mas não fui porque não aceitaram o meu cartão de crédito! Fui de ônibus. Naquele tempo não tinha celular e o máximo que você tinha era o rádio. Quando eu cheguei lá estava tudo cancelado, a cidade de luto, metade das pessoas tinha morrido e o

encontro foi cancelado. Acabei sendo convidada para acompanhar uma equi-pe de mobilização para uma reunião do Movimento Pela Sobrevivência na Transamazônica, que estava sendo criado naquela época. Foi uma viagem incrível. Pegamos a Transamazônica de Altamira até quase Uruará. De ônibus, a pé, de carona. Fomos entrando nas vicinais, conhecendo gente, ouvindo his-tórias. Essa experiência mudou o meu destino. Sempre acontece isso comigo, sempre. O que dá certo é o que foge, é o que vem no atalho, porque o plano certo é sempre pequeno. Eu acho que a vida é isso: se você aprender a lidar com essas possibilidades que vêm e que estão fora do seu comando, segue num ritmo que é o ritmo do tempo. Eu aprendi a respeitar isso.

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Emídio - Tu descobriste a fotografia aqui?

Sim, aqui. Nunca passou pela minha cabeça ser fotógrafa. A fotografia foi resultado de uma crise. Porque eu entrei na faculdade de jornalismo, queria fazer jornalismo, sempre escrevi, desde criança... Nunca me passou pela cabeça a imagem. Eu fui descobrir as relações que eu tinha com a imagem muito tem-po depois. Por exemplo, descobri agora: meu irmão que é surfista me lembrou que a primeira foto dele em pé em cima da prancha fui eu que fiz. Eu não lem-brava disso. Eu tinha 15 anos, ele 14. Ele acabou virando surfista profissional e eu acabei virando fotógrafa profissional. Então, as coisas comigo aconteceram, com relação à fotografia, quase todas, como uma espécie de acidente. E eu in-corporei isso não mais como acidente, mas como uma conjunção de ações que são da vida. E que ou você se entrega pra ela ou vira as costas. E aí a escolha é sempre muito pessoal.

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"sou fotógrafa por causa do texto, não da

imagem. gosto de es-crever e há tempos não

faço mais trabalhos somente fotográficos."

Emídio - E desde o início já foi no

fotojornalismo assim, de cara?

Foi, mas foi por um motivo muito específico. Eu estava no curso de co-municação, então, obviamente eu já tinha essa relação com a informação. Escolhi o curso de comunicação por-que era a área mais próxima com aqui-lo que eu tinha vontade de fazer: que é contar histórias. Um bom jornalista é um bom contador de histórias, essa é a verdade. Eu escolhi o jornalismo

muito em função disso. Na verdade eu não tinha ideia de fazer fotografia, mas o esquema da universidade, aque-le monte de regras pra que você se transforme num jornalista começou a me incomodar profundamente. E che-gou uma hora que pensei: "Isso eu não quero, esse jornalismo, eu não quero fazer esses textos, que coisa chata”. Não tem nenhuma criação, e eu sem-pre acreditei que a escrita é a gran-de criação humana, não é a imagem. Apesar de eu ser fotógrafa, te digo: a

escrita é um exercício fantástico que, inclusive, redescobre as imagens. E eu não sou fotógrafa por causa da ima-gem: sou fotógrafa por causa do texto. Sempre achei isso. Tanto que eu gosto de texto, gosto de escrever e há muito tempo eu não faço mais trabalho so-mente fotográfico, eles estão sempre acompanhados de entrevistas, de re-colhimento de memórias orais que pra mim dão conta de uma realidade muito mais interessante do que só a imagem poderia me dar.

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Emídio - Na série "Nós", retratas ho-

mens e mulheres sem o rosto aparente.

Como é que tu pensas a identidade do

homem da Amazônia com o papel dele,

com o que ele é? Essa série tem um pou-

co disso também, não?

Exatamente. Essa série surgiu jus-tamente de uma discussão sobre isso. Como é o homem amazônico e como ele está situado nesse espaço físico e nessa paisagem? Que paisagem é essa? A gente tem uns mitos sobre a Amazônia, de que essa floresta é vir-gem, intocada, que ninguém nunca passou por aqui. Gente, essa floresta é toda replantada! Esse homem sempre se misturou. Eu ando muito, ando por lugares diferentes e tive a oportunida-de de fazer coisas bem distintas no que diz respeito à identidade: quilombolas, índios, árabes e um monte de situações bem diversas. E eu comecei a perce-ber, depois de muito tempo, que algu-mas imagens não cabiam em nenhum

desses projetos que eu fazia. E elas foram ficando, ficando, num lapso, e eu nunca dei muita atenção para elas. Em 2005/2006, o Paulo Herkenhoff me cha-mou pra fazer parte de uma curadoria especial do Arte Pará que tinha umas questões muito específicas. E eu estava fazendo um trabalho sobre quilombos no Pará, que era do Instituto de Artes do Pará. Eu trabalhava lá e fazia as fotos para o documentário. E foi uma experi-ência muito rica pra mim porque depois eu consegui juntar todos os projetos. No final é uma grande árvore, né? Por-que é tudo muito misturado. Encontrei quilombola que trabalhou na constru-ção da Belém-Brasília; depois encontrei quilombola que teve de mudar de lugar por conta da construção da Hidrelétrica de Tucuruí; então, quer dizer, as coi-sas estão todas interligadas. E a par-tir dessa curadoria a gente editou um material de quilombos e nesse material encontrei um monte de fotos que an-tes achava que não tinham importância

porque não tinha o rosto das pessoas. As pessoas estavam misturadas entre as árvores, os bichos, estavam híbridas pela luz e eu nunca considerava essas imagens. Daí, a gente começou a olhar... "Mas Paula, tem um circuito aqui que é bem claro. Você tira, você muda a iden-tidade dessas pessoas e lida com outro tipo de identidade, com outro corpo, que é a relação com a natureza”. Aí fui olhar os outros trabalhos e todos tinham isso. Todos. E eram fotos que eu desprezava porque não tinham aquela identidade principal que é a nossa face, a nossa apresentação. Eu até hoje venho des-cobrindo vários sem cabeça, como diz meu amigo Dirceu Maués (fotógrafo pa-raense) que me encarna: "Cadê aquele 'seu sem cabeça?'". É mais uma relação com o espaço físico, dos seres que se misturam nessa natureza, nessa paisa-gem que pra mim – por mais que eu more aqui há 30 anos – continua sendo surpreendente. Não vejo isso em parte alguma do mundo.

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Emídio – Estás produzindo um livro

agora, né? Já tem nome?

Tem. O livro é resultado da pri-meira parte do projeto “O Lago do Es-quecimento”, sobre a floresta alagada, naufragada, da Hidrelétrica de Tucuruí – que também foi outro acidente (o projeto do livro). Faz muitos anos que vou pra Tucuruí porque na verdade está dentro do meu projeto das estra-das (outro trabalho em andamento da fotógrafa). A construção da hidrelétrica alagou uma parte da Transamazônica por causa do represamento das águas

do Rio Tocantins. Então eu buscava nas ilhas de Tucuruí migrantes rema-nescentes da estrada, só que eu nunca os encontrei. Desde 1994 eu vou pra lá atrás desses migrantes e nunca acha-va. É muito estranho aquele lugar, tem uma energia muito particular. Eu sabia que alguma coisa existia ali pra mim, mas eu não sabia o que era. Eu não encontrei os migrantes que eu procu-rava, e depois descobri que tinha um ín-dice de loucura, de problemas mentais grande entre a população, porque mui-tas pessoas que vão pra lá são des-territorializadas. Eles perdem as suas

terras, perdem referências, foram mi-grando para os topos das ilhas ou vin-do de grandes projetos que não deram certo. Então, eles perderam o passado, perderam a memória. Eu fiquei muito impressionada porque durante três anos seguidos eu ia pra lá e encontrava essas pessoas doentes. Eu cheguei a acom-panhar um encontro no CRAS de lá, no início dos anos 2000, e numa única reu-nião tinha quase 80 pessoas, todas com problemas mentais. E esses problemas acontecem 90% em função disso, das pessoas perderem o seu passado, delas não terem referência no presente.

Emídio - Pessoas com a memória roubada...

Eu comecei a pensar que isso poderia ser o mote. Só que na última vez que eu fui lá, pra finalizar ainda o projeto das estradas, numa outra etapa em que eu buscava histó-rias orais, imagens de acervos familiares, tudo aquilo que as pessoas podiam contar sobre si mesmas, foi uma viagem de um ano muito linda e que mudou muito aquilo que eu pen-sava sobre qual é o meu lugar dentro desse trabalho. Isso foi muito importante pra mim. Nesse processo uma história me fez começar a me interessar pelos escritos que essas pessoas que eu entrevisto poderiam fazer. Esse interesse aconteceu porque fiquei alguns anos acompanhando um menino, o Estácio, que tinha um sonho: aprender a ler. Ele é uma das pessoas que consegui revisitar ao longo do tempo

e faz parte do projeto “Antônios e Cândidas têm sonhos de sorte” (sobre a colonização nas rodovias Transamazônica e Belém-Brasília). Ele levou alguns anos sendo aprovado na escola sem saber ler. Em 2004, quando encontrei com ele , finalmente tinha aprendido a ler e escrever. E ele escreveu pra mim o primeiro sonho escrito. Nessa mesma viagem fui a Tucuruí, e também reencontrei o Sr. Chicória, morador de uma das ilhas que eu já conhecia, e pedi a ele pra me con-tar, escrevendo, a história dele. Ele fez uma carta fantástica, que inclusive vai abrir o livro que estou fazendo agora e foi o principal motivo pra que eu desse início a esse trabalho no lago de Tucuruí com essa nova perspectiva: agora, as árvores são os sujeitos retratados e as pessoas entram com suas falas e não com suas imagens. Esse escrito do Sr. Chicória mudou a minha maneira de lidar com a fotografia.

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Emídio - Como tu convives com esse lado do esquecimento...

Que é esse projeto, que vai se transformar, eu espero, no livro – pe-queno, não vai ser nada incrível. É um primeiro momento e a minha ideia é que seja uma série de pelo menos três (livros), porque eu não tinha como dar conta desse trabalho agora, mas tinha que tentar mecanismos e re-cursos. Sempre que começo um projeto é por minha conta. Eu tiro férias, eu pego a grana, faço o meu investimento inicial e só depois começo a tentar outras coisas. E são projetos caros por causa das viagens.

Emídio - Esse novo projeto tem o

apoio de quem?

Essa etapa, da Funarte. O que acon-tece? A primeira etapa eu fiz por minha conta. A segunda, quando eu mostrei pra Roberta Maiorana, ela viu algumas imagens que eu estava editando e dis-se: "Paula, o que é isso? Vamos dar um jeito de mostrar isso, é importante". E me convidou para uma participação no Arte Pará, e na ocasião a Funda-

ção Romulo Maiorana também bancou uma viagem para o lago, que resultou nessa primeira forma de apresentação do trabalho: o vídeo. Com os resulta-dos que consegui nessas primeiras etapas inscrevi o projeto no Prêmio Marc Ferrez/Funarte, e deu certo. Eu já tinha material para tentar alguma coi-sa. Eu trabalho assim... Vou primeiro e invisto o meu dinheiro e tempo, porque não gosto de ter compromisso com nada e com ninguém. O meu compro-

misso é com o meu coração. Quando eu mudo de ideia é porque as pessoas me fazem mudar. Eu não posso co-meçar as coisas comprometida, tenho que começar livre.... Vou lá e vejo se é possível. Aquilo rende? Então, eu faço o meu investimento inicial. Quando eu tenho o mínimo que possa convencer a mim mesma, aí eu sigo adiante, tentan-do convencer outras pessoas, buscan-do bolsas de pesquisas e prêmios que possam me ajudar a tocar o trabalho.

"neste trabalho retrato as árvores como sujeitos.

as pessoas entram com suas falas, não imagens."

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ela é

daaMeriĊana...

aMéricado sul

Sobre um território aquoso, úmido, vozes femininas ecoam de maneira forte, vibrando na floresta

Danielle Fonseca, densidade poé-tica aquática, discursando sob a ótica do surf. Numa de suas últimas obras, a instalação Extracorpo (2012), veio a público mostrar sua mão escultórica: artista-surfista que revela a expansão do próprio corpo através de pranchas de surf de madeira. Uma televisão dos anos 70 exibindo uma única tomada em looping de um surfista descendo um tubo. Será ela mostrando a sensibilida-de da vida, a liberdade? No média-me-tragem A VAGA (2010), Danielle entre-cruza olhares como os de Deleuze e os da Monja Budista Isshin; e inicia a obra com a melodia de “Mora na filoso-fia, pra que rimar amor e dor?”. Encan-to feito canto de sereia, nos dá a mão

para um verdadeiro curso de apneia. Conseguimos entrar, suspirar, prender a respiração, respirar novamente, en-tender essa relação com o exercício de si.

“Tá pensando que Belém é igual aqui é?”, diz o personagem interpretado por Adriano Barroso à Rosa, vivida por Dira Paes no filme “Ribeirinhos do As-falto”, completando em seguida: “Essa menina só vai arrumar confusão pra lá”. Jorane Castro, menina da Amazônia, ao invés de confusão, arrumou Can-nes, Gramado, Grécia e Nova Iorque, desbravando o Norte do Brasil, lutando incansavelmente para nos apresentar através de seu cinema a identidade Amazônica, nos fazendo refletir, quase

numa imersão a nossa realidade cabo-cla. Percebe-se em seus filmes as co-res; quase se sente o cheiro das orquí-deas que atravessam a Ilha do Combu até Belém de barco. Jorane apresenta a imensidão da floresta, a disparidade social e novos caminhos ao resto do país. Em “Ribeirinhos”, trata com deli-cadeza questões sociais, a descoberta do novo mundo (muitas vezes até para nós). Tudo tão longe e tão perto.

Que espécie de ser quer trazer na pele folhagens, esculpe na luz seus movimentos e mergulha em sua própria raiz, em busca de respostas? Roberta Carvalho, em seu Symbiosis, faz uma grande busca pessoal quando se des-pe de outros meios e se transforma em

por keyla sobral

ILUSTRAÇÃO: arthur porto

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luz, desenhando rostos-signos do meio que interage. A metamorfose. Além-natu-reza. Nas árvores surgem rostos que nos fitam em demasiado, alcançam e arreba-tam. Seguem-nos com os olhos. Vigilan-tes noturnos. Um mergulho no outro, uma espécie de felicidade expandida.

“Ela fotografava como quem guarda-va segredos”, diz-nos Orlando Maneschy no texto “Pelas ausências que são todas nossas”, sobre a fotógrafa e pesquisa-dora Cláudia Leão. Talvez guarde seus segredos e rolos de filmes na famosa caixa da mulher de argila criada por

Zeus: Pandora. Cláudia, além de segre-dos, guarda memórias que são de todos nós, presentes em todas nós. Fotografias reveladas sem fixador, abrigadas em ja-nelas, um exercício puro de observação e reflexão sobre a fotografia-arte.

Cláudia não nasceu na Grécia, tam-pouco Danielle, Jorane ou Roberta, mas trazem em si a vitalidade e coragem das guerreiras Amazonas para defenderem a ferro e fogo o que acreditam, nesse mergulho e nessa entrega do artista. Todas: desbravadoras. Da grande flo-resta interior que habitam.

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cabetudo

Arte-mídia alarga horizontes para unir gerações de artistas na Amazônia

por leonardo fernandes

fotos: divulgação

Em meio à copa de uma mangueira no centro histórico de Belém, imensos olhos espreitam. Enquanto observam a movimentação das pessoas que pas-sam abaixo dos frondosos galhos, as pálpebras se arregalam em uma ex-pressão de espanto, como se a planta tivesse ganhado consciência naquele instante. A face de 30 metros que emer-ge do verde cintilante das folhas é a da artista plástica paraense Roberta Car-valho.

Em seu projeto Symbiosis, figuras humanas são projetadas em árvores, formando gigantescos painéis. Ideali-zada em 2008, a obra utiliza a técnica do vídeo “mapping” (projeção mapeada)

moldando a imagem à superfície. União entre tecnologia, natureza e arte, a in-tervenção faz jus ao seu nome. Na eco-logia, simbiose define uma relação mu-tuamente vantajosa entre duas ou mais espécies diferentes.

“Eu busco uma poética com o meu trabalho. E a tecnologia me permite des-lumbrar com ferramentas bem simples. Com um projetor e uma árvore, eu con-sigo mudar radicalmente a paisagem ao meu redor, mesmo que seja por um bre-ve momento”, define a artista paraense, de 31 anos.

Roberta faz parte de uma geração de artistas que está redefinindo con-ceitos sobre a região. Questões que

sempre foram inerentes à produção lo-cal como a relação do homem com a natureza, a preservação do patrimônio histórico e a identidade regional agora ganham uma projeção nunca antes ex-perimentada com o advento da chama-da arte digital. “É como se a arte para-ense ganhasse uma nova embalagem, diga-se de passagem, bem mais atra-ente. Hoje em dia todos são familiares com computadores, ela acaba tendo um apelo universal”, avalia o pesquisador Ramiro Quaresma, idealizador e curador do Salão Xumucuís de Arte Digital, mos-tra responsável, em duas edições (2011 e 2013) por um dos mais completos re-gistros da prática no estado.

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"Cidades Vulneráveis", de Carla Evanovitch, e "Symbiosis"(abaixo e na página anterior), de Roberta Carvalho: homem-natureza-tecnologia

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- Tela preta –

Não que seja algo tão novo assim. No Pará, Bené Fonteles já explorava na década de 1970 o conceito de arte mesclada à eletrônica, se utilizando de elementos como a fotocópia, cópia re-prográfica e colagens com pedaços de outdoor. Nos anos 1990, Pepê Condurú, Ruma e Jorge Eiró passaram a experi-mentar com o computador. Artistas com formação em belas- artes, eles migra-ram para a plataforma atraídos por suas facilidades.

“A questão era socializar o trabalho. Se eu fosse fazer uma imagem digital poderia reproduzi-la várias vezes. Tam-bém tinha a curiosidade de saber como

manipular aquela máquina, como apli-car aquilo às artes visuais”, relembra Rui Mario Cruz de Albuquerque, o Ruma, 56 anos.

As gravuras digitais produzidas pelo artista no período são um produto híbri-do, ainda carregado da estrutura clás-sica da pintura e desenho que o acom-panhava desde o início de sua carreira na década de 1980. Em “Barulho” (2000), a exposição reunia caixas de som das aparelhagens, o grito das torcidas or-ganizadas e o som ensurdecedor do “popopô” (canoas rústicas de madeira motorizadas) em imagens manipuladas pelo computador e apresentadas como se fossem ilustrações abstratas.

“A maneira de me expressar com

arte digital tem muito a ver com o que eu faço com a pintura tradicional. Não muda muita coisa não. Pelo menos em questões pictóricas, cromáticas. Uma das obras da exposição "Barulho", foi baseada em uma foto de jornal dos jogadores do Paysandu comemorando um gol. Saturei suas cores no compu-tador, transformei em linhas e sombras, como se fosse uma pintura. Essas no-vas técnicas enchiam de curiosidade o público, mas ainda se questionava muito o lugar dessa produção, se era arte de fato. Não esqueça que até o final dos anos 90 o computador era essa coisa intimidadora, com aquela tela preta e to-dos aqueles comandos que você tinha que decorar.”

no pará, bené fonteles já explorava, na década de 1970, o conceito de

arte mesclada à eletrônica

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Mesmo em meio a dúvidas, a che-gada do novo milênio também marca o início do boom das artes digitais em Belém. Ramiro aponta como fatores o barateamento de equipamentos, o desenvolvimento de softwares de edi-ção com linguagem mais acessível e o advento da internet. A entrada da academia nessa equação também foi determinante, com a inauguração do primeiro curso voltado para as Artes Visuais e Tecnologia da Imagem, na Universidade da Amazônia (Unama).

A produção ficou mais constante, com o lançamento de trabalhos como “Correspondência”, de Acácio Sobral, “Minuto de Silêncio”, parceria entre Keyla Sobral e Roberta Carvalho, e “Ahora”, de Melissa Barbieri. “Passa a surgir uma geração familiar com es-sas tecnologias, já imersa nesse uni-verso. Para esses artistas a tecnolo-gia é acima de tudo encarada como uma ferramenta mais acessível do que seria uma pintura, uma escultura, por exemplo. Por isso, a arte digital feita no Pará não é uma questão de ponta tecnológica, de técnica. É uma coi-sa mais ‘lo-fi’. Isso gera uma relação mais íntima de uso dessas técnicas”, avalia o pesquisador.

Em “Água, mídia locativa”, Val Sampaio utiliza-se da intervenção ar-tística como mote para uma longa via-gem de autoconhecimento. Durante duas semanas, ela e mais um grupo de convidados percorreram por duas semanas a mesorregião do rio Ama-zonas, nos municípios paraenses de Santarém, Óbidos e Oriximiná.

Idealizado em 2010, como proje-to do festival Vivo arte.mov, a obra consistiu no registro da travessia por meio de vídeos e fotos feitas pelos viajantes. A rota ainda é monitorada por GPS pela artista, mapeando o movimento de cheia e seca do rio.

“Passamos a viver no barco, em um clima de residência. Apesar de ser natural da região amazônica, a expe-riência me mostrou o quão distante estamos da nossa realidade. Minha re-lação era como as pessoas da França,

Ruma Albuquerque parte da pintura para então

brincar com intervenções em suas obras

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da Espanha que vieram para o experi-mento: de deslumbramento e desco-berta. Me senti muito como Mário de Andrade naquela expedição”, conta, fazendo alusão à viagem à Amazônia idealizada pelo modernista em 1938, que deu origem ao primeiro registro etnográfico nacional. Depois de con-cluído o projeto de Val, entra o tal conceito de mídia locativa do título da obra. A viagem física foi coletada

no mundo virtual, através da pági-na do Google Maps (http://goo.gl/DKDY7) fundido ao longo da rota registrada pelo GPS os vídeos e fo-tos produzidos.

Em “Mangueiras de Belém”, ela se utiliza do mesmo conceito para mapear por GPS cerca de mil árvo-res na capital paraense. Na rota, cada planta ganhava um QR Code (código de barra) que dava acesso via celular

a vídeos de performances da artista. Definida como um projeto ativista, a performance de Val foi criada com intuito de chamar a atenção para a conservação das mangueiras, espé-cie símbolo da cidade. “Minhas obras têm uma relação com a cidade, e um quê de político por trás delas. Essa vontade de entender o espaço que convivo e mudá-lo é o que me moti-va a criar”, diz.

"Eufêmero", de Lucas Gouvêa,

premiado na edição 2013 do

Salão Xumucuís de Arte Digital

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Carla Evanovitch é outra artista que se utiliza das novas tecnologias para fazer uma arte mais combativa. Em “Perfor-mances Urbanas”, um ator circula pelos ônibus da capital pa-raense esmolando para financiar a exposição da “irmã artista”, papel desempenhado por Carla durante a intervenção. Base-ada nos lamentos e histórias dos indigentes da cidade, a vídeo instalação conta com dezenas de depoimentos e papéis cole-tados durante a pesquisa, iniciada em 2009 e retomada no ano passado, após ser aprovada no edital do Rumos Itaú Cultural.

“Sou uma transeunte, passageira de ônibus e moradora de uma cidade de respira a desordem e o movimento pulsan-te. ‘Performações Urbanas’ foi um trabalho que nasceu da mi-nha rotina de circular pela cidade olhando pela janela desses ônibus, que se tornaram meu atelier móvel. Penso que alguns

dos meus trabalhos nascem para serem vistos em vídeo, por-que a força está na imagem captada do real, por essa razão optei por fazer registros mais crus, com pouca edição e algu-mas vezes com baixa qualidade de imagem. Mas essa escolha se dá pela necessidade do trabalho e a qualquer momento posso mudar de direção, agora estou desenvolvendo um tra-balho com fotografia, mas que poderia também ser pintura”, explica Carla. “Hoje em dia, essa distinção é cada vez menos perceptível. A arte digital é arte contemporânea. Até artistas que se utilizam de técnicas ‘tradicionais’ passam ter que lidar com a tecnologia em algum ponto de seu trabalho, como com-putadores, scanners, impressoras. A verdadeira revolução da tecnologia foi fazer a própria noção de arte digital obsoleta”, conclui Ramiro Quaresma.

"a verdadeira revolução da tecnologia foi fazer a própria noção de arte digital obsoleta."

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Na rede

www.carlaevanovitch.blogspot.com.br

www.robertacarvalho.carbonmade.com

www.xumucuis.wordpress.com

preste atencão

Lucas Gouvêa

Um artista multifacetado que brinca com o corpo esguio em suas obras. Membro do qUALQUER qUOLETIVO, seu último trabalho,

“Eufêmero”, foi premiado no II Salão Xumucuís de Arte Digital, realizado este ano.

www.vimeo.com/search?q=qualquer+quoletivo

Victor de La Rocque

Desde 2007 expõe em salões e festivais nacionais e internacionais. O espaço virtual é palco comum

para suas obras, como é o caso da intervenção NOT FOUND, em que, a partir do Google Earth, saiu à cata

de lugares como o famoso "Onde Judas perdeu as botas".

www.victordelarocque.com/

Claudia Leão

Tem trabalhos publicados em livros e revistas científicas e participações em importantes salões de arte, como

a 25ª Bienal de São Paulo. Em sua obra a fotografia caminha entre disparos analógicos e intervenções digitais.

Luciana Magno

Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará, entre seus trabalhos se destaca a performance Vit(r)a, de 2009.

Nesta obra, Luciana negocia sua permanência em uma loja de utensílios domésticos e vivencia uma falsa realidade.

O resultado foi registrado pelas câmeras de segurança do estabelecimento.

Danielle Fonseca

Danielle é uma artista que tem uma poética peculiar, composta a partir de elementos da literatura, da música e da paisagem.

Participou de exposições no Rio de Janeiro e em São Paulo. Destaca-se sua produção em vídeo,

na qual se apropria dos recursos audiovisuais para comunicar seus anseios.

www.culturapara.art.br/artesplasticas/daniellefonseca/index.htm

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Mr.jeans

Quadrinhos, música, literatura e restos de roupas:eis o universo de Júnior Lopes

O castanhalense Júnior Lopes, radicado há 14 anos em São Paulo, não tem dúvidas: prefere a produção à teoria. Difusor de uma técnica que faz uso de retalhos abandonados para retratar ícones consagrados da Indústria Cultural, o artista tem viajado o país e o mundo angariando prêmios com seu trabalho, que traz à baila, a despeito de seu estilo fincado no autodidatismo e na intuição, questões como a sempre controversa relação entre arte e consumo. Confira um pouco da obra e do pensamento do paraense.

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“Comecei a carreira como cartunis-ta. Curtia Biratan Porto, Félix, J.Bos-co, Luiz Pinto... A galera de Belém. Nes-sa época morava em Castanhal e um grande amigo, Luiz Fernando Carva-lho, colecionador e crítico, me apre-sentou à nata do desenho. Foi então que conheci os mestres: Steinberg, Lo-redano, Scarfe, Ralph Steadman etc. Foi depois da experiência com o car-tum que passei para as artes plásticas, mas tudo na minha carreira foi feito de forma bastante intuitiva.”

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“Nos anos 90 morei em Amsterdam, na Holanda, e foi uma grande experiência. Fui pra jogar futebol (!) num time de Nijmegen, perto de Amsterdam, mas meu destino era mesmo as artes gráficas. Passava maior parte do tempo no Museu Van Gogh e em exposições underground. Foi um grande encontro com meus desejos e aspirações. Depois de um ano voltei para Belém e aí comecei a trabalhar como ilustrador. Em 98 decidi me mudar para São Paulo e lá comecei a trabalhar como freelancer para revistas e jornais como a Folha de São Paulo, Gazeta Mer-cantil, Superinteressante, sexy, Showbizz, Rolling Stone, Vip etc.”

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“Sou autodidata e fui aprendendo a produ-zir sozinho. Com o tempo acabei inventando uma técnica original, que é o q mais gosto de fazer: os retratos confeccionados com retalhos de tecidos. Cheguei nesse conceito por acaso. Minha sogra é costureira. Acor-dei um dia de ressaca e ela estava trabalhan-do. No chão ficaram uns retalhos. Quando olhei, vi algo muito parecido com um retrato do Jimi Hendrix (risos). Aí colei com alfinetes essa imagem, peguei uma capa de um compac-to dele e fui lapidando, deixando mais pare-cido. Na hora pensei: tem alguma coisa inte-ressante aqui.”

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“Um desses trabalhos foi bem es-pecial. Um James Dean feito só com jeans: o James Jeans (risos). Todo mês eu levava pessoalmen-te uma caricatura na revista Sexy, na Vila Olímpia, e no cami-nho havia uma agência de publi-cidade chamada Neogama. Bati lá na cara dura pedindo pra fa-lar com um diretor de arte, que viu o ‘James Jeans’ e gostou. Um mês depois fui convidado para fazer quatro retratos para uma campanha da Levis. Resultado: a campanha foi premiada em Cannes com um Leão de Ouro e foi capa da Archive, uma puta revista inglesa. Aí resolvi levar a sério esse lance de retratos com retalhos.”

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“Trabalhar diariamente na imprensa foi uma ex-periência especial. Já havia trabalhado em Belém na Província do Pará. Quando cheguei a São Pau-lo comecei a fazer charges diárias pro Jornal Lance!, no qual fiquei um ano. O grande apren-dizado do jornal tem a ver com correria, horá-rios e trabalhar bem em equipe. É uma experiência profissional bastante enriquecedora.”

“Sou um viciado em imagens. Adorava, quando menino, ler a Revista Manchete por causa disso (risos). Quando comecei a fazer retratos com reta-lhos, só produzia imagens de personagens que eu gostava. Então, fiz Jim Morrison, Mick Jagger, Oscar Wilde etc. Nem pensava em fazer exposições, encomendas: fazia pra mim mesmo. O que une essas figuras no meu trabalho, acho, é meu gosto pessoal, minha identi-ficação com cada um deles. E leio de Paul Auster, passando por Garcia Marquez até che-gar a revistas de fofocas de supermercado.”

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“Moro em São Paulo há 14 anos, sem emprego fixo, então, tenho que tra-balhar bastante, concorda? Faço muitas encomendas e sempre penso em novas exposições. Ministro workshops, dou palestras, frilo como ilustrador etc. As coisas sempre aconteceram por felizes acasos em minha vida, então tenho admiração por quem não se faz de vítima das circunstâncias, que aposta em trabalho. É isso que eu procuro fazer.”

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passa

geMpor Jack Nilson

ILUSTRAÇÃO: Dedéh farias

Um passeio pela cidade, uma pas-sagem. Uma viagem de ônibus de apro-ximadamente quarenta e sete minutos. Em mãos, nada além das Convergên-cias de Octavio Paz e uma lapiseira. Nos bolsos, pouca coisa além do pouco dinheiro, carteirinha e um cartão de crédito sem muito crédito. Na cabeça, canções, frag-mentos de letras de música e alguns pedaços de imagens e textos diversos espalhados. Parece difícil organizar. De fato, é. A tão propalada diversidade & fragmentação & afins do mundo con-temporâneo pode não parecer muito

conveniente numa hora dessas [há de ter havido fragmentação, diversidade e afins na pré-história. O que lá não havia, com certeza, era a história, esta uma in-venção bem mais recente].

Uma parte não contabilizada do tempo parece que será gasta esperan-do o ônibus passar: “All Things Must Pass”, menos o Domingos Marreiros. O passeio é tão prosaico como os de outros dias, no entanto desprovido de

uma função mais prática [trabalhar, pa-gar contas, assistir aula, encontrar na-morada, pessoas etc, etc, etc.]. A ideia é mesmo fazer um passeio vazio. Vazio de função, talvez, porém cheio de algum

sentido outro, mesmo que vago. Os sentidos são vagos por nature-za, embora os discur-sos queiram sempre enchê-los e apertar

uma corda em torno deles, espremê-los até que eles já não mais se movam. O sentido é um cinto de inseguranças bem apertado. Há quem o aperte bem forte, pois teme o deslizamento que uma falta de sentido pode ocasionar.

“All Things Must Pass”, menos o Domingos Marreiros

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NOVE MINUTOSAlguém que vi de passagem, numa

cidade estrangeira. Passagem, palavra diversa, múltipla, atravessada. Parece às vezes se deslocar em relação a si mes-ma e chegando perto, volta a se afastar. Uma das formas de se fazer a travessia da cidade é pela travessia de palavra e da visualidade: Baudelaire, Max Martins, passando por Noel e Guimarães, duas rosas da palavra (com flores e espinhos), e mais Antunes e Sampaio ou Sganzerla e Oiticica. Pelo caminho, a distinção das coisas logo se mostra difícil e desneces-sária, tornando difícil e desnecessária a tarefa de narrar. Melhor é a distensão da palavra e do olhar. O olhar toma as imagens e estas são aqui traduzidas pelas palavras: transcriação. Mix de tex-tos, imagens, intertextos, palavras soltas num grande passeio. Bares, janelas de casas, crianças em roupa de sol, galos, noites, quintais, nada de férias. O pensa-mento atravessado por canções de uma rádio-pensamento. Os sons soam me-lhores quando soam em silêncio. Juntos, o barulho de fora e o barulho de dentro, de que falava Villa-Lobos pela voz de Antonio Jobim. Deixo as fraldas ao ven-to. De pés de bota e sapato pela cidade adentro. A rua em torno é um frenético alarido. Passear é traduzir a cidade:

[...] a fala se compõe toda de silên-cios. Um ser que não fosse capaz de renunciar a dizer muitas coisas, seria incapaz de falar. E cada língua é uma equação diferente entre manifestações e silêncios. Cada povo cala algumas coisas para poder dizer outras. Porque tudo seria indizível. Daí a enorme difi-culdade da tradução: nela se trata de dizer em um idioma precisamente o que este idioma tende a silenciar.

Silêncio, por favor. Um instante, maestro.

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Passa, tempo, tic-tac, tic-tac, passa a hora. Subitamente descubro o que desconfiava já de saída. Octavio Paz pouco vai participar desta travessia, a não ser, talvez, em algum eco dos sig-nos em rotação. Mas estou feliz porque sou da sua companhia, ainda assim. A matéria se dobra, desdobra. Passadas as primeiras coisas, passo a ver outras paisagens, dicções mais internas, for-mas diferentes. Fecho os olhos por uns segundos, tento traçar mentalmente o caminho tantas vezes percorrido pra ver se a duração mental é a mesma da

tida como real. Me perco nos pensa-mentos, nas contas e no interesse em tentar comparar. Abro os olhos com uma estranha sensação de conforto: não é muito agradável estar de olhos fechados em um ônibus, a não ser em um incontrolável estado de sono.

Fora do tempo, no coração. No co-ração da cidade, defendendo a liberda-de como uma flor no asfalto. Fausto de miséria urbana, o olhar se perde, como o pensamento. Apenas o cine-pen-samento e fragmentos de canções e outros textos e outros filmes-textos.

Cinema. A cidade é um filme disnarra-tivo e desgarrado. Suas imagens cor-rem soltas, atravessam as ruas, mijam em sacos plásticos, roubam flores, pa-ram, cumprimentam alguns viandantes e seguem caminho sem linha reta. O mundo, um cenário. Os indivíduos, per-sonagens mal desenhados. Aqui tem salgado frito na hora. Assim me saúda a gritante placa amarela, eu olho e re-cuso com educação. Eu, que tantas ve-zes não tenho tido paciência para uma alimentação decente. Passear é seguir em frente, mesmo parado.

[...] Imagem que me acompanhas / na cidade obscura / onde caminho e vivo, / és um fragmento / fora do tempo, no coração. / A mão que me estendes / de repente em meu sono, / a voz com que me falas / no silêncio puro / é como um carinho / que não conheci.

VINTE E UM MINUTOS

TRINTA E DOIS MINUTOS

Curso de contabilidade para não contadores. Escrituração contábil, lan-çamentos contábeis, controle de im-posto e elaboração de balancetes: o mundo é cheio de histórias e coisas pra contar. Está na faixa colorida pinta-da à mão. Até o fechamento do último balanço, a história da arte ainda não contabilizou estas placas. A história da arte está fechada pra nós. Lembro que estudei remotamente administração e

desde então me desinteressei pela or-ganização das coisas. Pra que chatear as coisas? As coisas não têm paz.

Um isopor multicolorido de emba-lagens velhas de picolés é por alguns segundos a minha mais nova fixação visual. O vendedor é carismático e al-guma coisa naquelas cores reverbera lembranças psicodélicas. Apesar do forte calor, não compro picolé nenhum. Nego duas vezes.

Este calor não me representa. De-senho alguma coisa numa página em branco do livro e a lapiseira encontra seu lugar definitivo, durante a viagem, em meu bolso. O pensamento segue vendo coisas que os olhos gostariam de calar, impávido como um moto-táxi na contramão. Penso que poderia ter tomado uma van e de repente paro os olhos num animado boteco. Animado demais para um dia qualquer. Sorrio.

TRINTA E nove MINUTOS

Finjo interesse em uma conver-sa quase ao meu lado, mas meu in-teresse na verdade é pelas pessoas. Eu quero a mulher que passa. Beijo na boca as prostitutas e retribuo a pisca-dela do garoto de frete. Passo a pen-sar absurdos. Pensando bem, sempre

penso isso. Penso bem, passo mal. Dois passos adiante minha vida pas-sa por mim, quase desmaio. Passo em frente a um prédio que pegou fogo al-gum tempo atrás. Sobrou muita coisa, até. Da vida e do prédio: ainda dá pra usar. As pessoas se acotovelam em

frente a um acontecimento esdrúxulo qualquer: arte de rua. Passa, passa, gavião, todo mundo. O bonde passou, mas não parou. Espere por mim, mo-rena. Esta cidade, um verdadeiro Códi-go de Imposturas, é um trem riscando trilhos, abrindo novos espaços:

Se a reforma e o embelezamento do urbano tinha como proposta a transformação da cidade obedecendo ao modelo das civilizações européias, Antonio Lemos entendeu que reformar era construir boulevards, quiosques, arborizar a cidade, instalar bosque, embelezar praças e erigir monumentos, calçar ruas, dotá-las de iluminação elétrica e bondes, concentrar a venda de alimentos em mercados e recolher mendigos da cidade em asilos.

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Curioso pensar que passei boa parte do passeio in-ventando coisinhas e histórias e agora tenho muito pouco pra ver. Logo desço onde estabeleci como meu ponto de chegada [ponto de partida para o texto]. Percebo que além do Octavio Paz, também a viagem me serviu de pouco, do ponto de vista prático. Pouco importa, praticamente invento na hora tudo o que falo. Desdigo, refalo, quando falo. Monto, desmonto e remonto a tela quando escrevo. Talvez todas as viagens sejam assim. Penso que sim e assim me sinto

melhor. Não muito, que também nem é muito necessário, além do que seria pura mentira e pureza nem em mentira vale. E de nada valeria descrever minuto a minuto qualquer viagem. Melhor mesmo é um dia pra vadiar.

As imagens se misturam à música da minha rádio mental → rádio cabeça. As vozes da rua se misturam às imagens de outros textos, compro uma água pouco antes de descer: deve ser o calor. Pane no ventilador interno. Já tô quase bom, quase lá. Passo ao largo, porém passo, pois o passeio:

[...] remete a uma série de desdobramentos do verbo “passar”: [...] refere-se à passagem do tempo, à passagem por um lugar, aos ritos de passagem, mas também aos passantes da grande cidade e às passagens e galerias por onde estes passantes caminham. E alude ainda às passagens de obras, trechos de textos que lemos e que nos marcaram e [...] alude à passagem/tradução entre as diferentes línguas.

Paulo Plínio Abreu. Poesia. // Susana Kampff Lages. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. Octavio Paz. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. // Nelson Brissac Peixoto. O olhar estrangeiro.

Maria de Nazaré Sarges. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912)Márcio Seligmann-Silva. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução.

trilhas

QUARENTA E SETE MINUTOS

Eles passarão, eu Passarim.

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cora

Vândalosções

Entre 2008 e 2009, o paraense Rafael Fernandes morou em São Paulo, onde buscou inspiração para compor a série que enfoca a alma invisível da grande cidade

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