Revista Expressão

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Revista Expressão - UERN/PROPEG

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Reitor Prof. Milton Marques de Medeiros

Vice-Reitor Prof. Aécio Cândido de Souza

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto

Comissão Editorial do Programa Edições UERN: Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto Profª. Marcília Luzia Gomes da Costa (Editora Chefe) Prof. João de Deus Lima Prof. Eduardo José Guerra Seabra Prof. Humberto Jefferson de Medeiros Prof. Messias Holanda Died Prof. Sérgio Alexandre de Morais Braga Júnior Prof. José Roberto Alves Barbosa

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

Bibliotecária: Valéria Maria Lima da Silva CRB15/451

Expressão [publicação da] / Universidade do Estado do Rio Grande

do Norte. Mossoró, UERN, v. 41 n. 1, jan./jun., 2010. 134 p. Semestral. ISSN 1517 – 9338 (Impresso) ISSN 1980 – 6078 (Online) Descrição baseada em: ano. 35, v. 35, n. 1–2, jan./dez., 2004.

(Suspensa de 1972 – 1989).

1. Produção científica - UERN. 2. Produção científica – periódico – UERN. I. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. II. Pró- Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. III. Dieb, Messias H. IV. Mascarenhas Filho, Anibal de S.

UERN/BC CDD 001.43

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EXPEDIENTE DA REVISTA EXPRESSÃO Editor-Chefe/Chief Editor Messias Dieb (FE/PROPEG/UERN) Editores Assistentes/Assistant Editors Pedro Fernandes Ribeiro Neto Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes Equipe Técnica/Technically Team Diagramador/Designer: Fábio Bentes Tavares de Melo Secretária/Secretary: Silvana Maria da Silva Martins Conselho Consultivo/Advisory Board Ana Lúcia Espíndola (UFMS) Aurea Zavam (UFC) Carla Viana Coscarelli (UFMG) Dilma Maria de Mello (UFU) Ivonaldo Leite (UFPE) Jacques Therrien (UFC) Júlio César Araújo (UFC) Ludmila Thomé de Andrade (UFRJ) Marcelo E. K. Buzato (Unicamp) Maria Arisnete Câmara de Morais (UFRN) Maria Socorro Lucena Lima (UECE) Mariângela Momo (UFRN) Marly Amarilha (UFRN) Maximina Maria Freire (PUC-SP) Orlando Vian Junior (UFRN) Rosa Maria Hessel Silveira (ULBRA/RS) Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro (UERN) Vera Lúcia Lopes Cristovão (UEL) Vera Menezes Paiva (UFMG) Telma Nunes Gimenez (UEL)

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Walter Pinheiro Barbosa Junior (UFRN) Bernard Charlot (Professor Emérito - Université de Paris 8 - France) Francisco Antonio Loiola (Université de Montréal - Canada) Ilana Snyder (Monash University - Australia) Mario Martín Bris (Universidad de Alcalá de Henares - España) Óscar Loureda Lamas (Universität Heidelberg - Deustchland) Steve Bialostok (Wyoming University - USA)

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CARTA AO LEITOR Caro leitor,

No ano de 2009, a Revista Expressão completou quarenta (40)

anos de existência. Sua emblemática trajetória na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) começou com a publicação impressa de seu primeiro número, em 1969, e passou por um período de silêncio quando sua impressão foi suspensa durante os anos de 1972 a 1989. Quando reiniciou suas atividades, em 1990, este periódico se firmou responsável pela divulgação de produções científicas, tanto da UERN como de outras IES, publicando trabalhos relativos ao ensino, à pesquisa e à extensão, em todas as áreas do saber. Por este motivo, foram muitos os desafios pelos quais teve de passar, sendo o maior deles o de montar um Conselho Editorial que pudesse atender a todas as áreas. Além dessa enorme dificuldade, os poucos recursos disponibilizados pela UERN, para a versão impressa da revista, impulsionaram, em 2002, sua veiculação apenas em versão eletrônica/on-line, a partir do volume 33, ainda que o ISSN, para esta versão, só tenha sido obtido em 2007, quando foi publicado o seu volume 38.

A partir do primeiro semestre deste ano de 2010, em que estamos lançando seu volume 41 (n.° 01), a denominação da revista passa a ser: Revista Expressão - Trabalhos em Educação e Linguagem, a qual está aberta a colaboradores de todo o Brasil, e também do exterior, cujos textos tratem de fenômenos relacionados às ciências da educação e da linguagem, bem como discutam as teorias pertinentes a tais fenômenos, na perspectiva de cada uma dessas duas áreas, separadamente, ou na intersecção entre elas. De acordo com sua atual Política Editorial, a Revista Expressão passa a se constituir como um periódico que aceita essencialmente textos concernentes aos dois campos temáticos citados acima, restando aos artigos provenientes de outras áreas serem avaliados somente quando estiverem dialogando, de algum modo, com as áreas propostas pela revista. Esta receberá, preferencialmente, textos de autores que tenham o título de doutor, mas estenderá também chamadas para a publicação de textos a autores com o título de mestre e aos alunos da pós-graduação strictu sensu: mestrando e doutorando.

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As exigências e determinações dessa nova Política Editorial têm, pois, como propósitos fundamentais construir e fortalecer uma nova identidade de pesquisa e de divulgação científica para esta Revista. Em acréscimo, tais propósitos se coadunam com a finalidade de pleitearmos sua classificação junto a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, através do aferimento à qualidade dos artigos, ensaios e resenhas que publicará. Em outros termos, com essas ações estamos empreendendo esforços na expectativa de obtermos um conceito Qualis/CAPES, a partir da análise da sua qualidade como veículo de divulgação, ou seja, como um periódico científico. Portanto, é nosso compromisso, a partir do corrente ano, em que a Revista entra em sua quarta década de existência, mantermo-nos sempre atualizados e buscarmos o mais alto padrão de qualidade que nos for possível.

Além desses compromissos e modificações, queremos informar outra novidade dentro da atual Política Editorial da revista: a ampliação de seu alcance nacional e a sua internacionalização, por meio da participação de pesquisadores renomados tanto nacional como internacionalmente. Deste modo, seja através da participação no Conselho Editorial, seja por meio da publicação de artigos em língua estrangeira, notadamente o inglês e o espanhol, com acréscimo posterior para o francês, esses processos não apenas expandem o alcance de circulação da Revista Expressão como também põem a UERN em franco diálogo com importantes centros de produção científica, no Brasil e no mundo.

Para finalizar, caro leitor, faz-se necessário registrar que a publicação da Revista Expressão tem sido viabilizada, todos esses anos, pelo apoio constante e irrestrito da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – PROPEG – desta Universidade. Assim sendo, não poderíamos concluir esta carta sem antes agradecer em público o apoio financeiro e institucional da PROPEG, assim como sem estender este agradecimento aos nossos pareceristas e colaboradores (secretário, diagramador, editores assistentes, etc.), uma vez que sem eles a busca pela qualificação da revista seria praticamente impossível.

Prof. Dr. Messias Dieb

Editor-chefe da Revista Expressão

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SUMÁRIO

CARTA AO LEITOR 5 APRESENTAÇÃO 9 ARTIGOS 13 A Comunidade no Centro das Decisões Escolares: políticas educacionais para participação nos conselhos gestores e no conselho escolar no Brasil/ The School Community at the center of decisions: National Educational Policies to encourage participation on Management and School Councils in Brazil.

Pauleany Simões de Morais Vivianne Souza de Oliveira

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As Relações Sintagmáticas no Contexto Publicitário: do signo linguístico à semiologia das imagens/ Sintagmatics Relations In Publicity Context: from linguistic sign to the semiology of images.

Mario Abel Bressan Junior

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A Inclusão dos Surdos na Educação Superior numa Perspectiva Multicultural/ The Inclusion Of Deafs In Higher Education Under A Multicultural Perspective.

Keile Correa Picolomini Marcos Roberto dos Santos

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Tessituras Psicossociais: desafios em formar licenciandos em duas culturas/ Psychosocial Web Of Meanings: the challenge of educating physics students in two cultures.

Márcia Cristina Dantas Leite Braz Erika dos Reis Gusmão Andrade

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A Gramaticalização dos Gêneros na Escola: um olhar sobre o 79

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scrap do Orkut/ The Grammaticalization Of Genres At School: a Look At The Scrap of Orkut

Vicente de Lima Neto

Minas & Geraes: um lugar de memória na biografia musical de Milton Nascimento/ “Minas” And “Geraes”: a place of memory in musical biography of Milton Nascimento

Alberto Carlos de Souza Maurício Barreto Alvarez Parada Mary Del Priore Túlio Alberto Martins de Figueiredo

97

A Retextualização em Aulas de Língua Portuguesa do Ensino Superior/ The Retextualization In Classes Of Portuguese Language Of Higher Teaching

Maria Coeli Saraiva Rodrigues Bernardete Biasi-Rodrigues

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RESENHA 131 Relações e Saberes na Escola: uma leitura em positivo/ Relationships and knowledges at school: a reading in positive

Bernard Charlot

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APRESENTAÇÃO

Este número 01 do volume 41 da Revista Expressão discute temas

bastante variados, dentro dos campos da Educação e da Linguagem. São temas relevantes que vão desde a participação da sociedade civil em organismos colegiados no interior da escola, passando por questões multiculturais relacionadas à inclusão social no ensino superior, pela representação social de estudantes de Física, sobre a atividade de ensinar, até um estudo sobre a obra fonográfica do cantor Milton Nascimento. Além desses temas, encontram-se ainda, no presente número, uma análise semiológica de anúncios publicitários, bem como uma discussão acerca da mistura de gêneros na composição do scrap do Orkut e um estudo sobre a relação entre textos orais e escritos na aula de língua portuguesa. Apesar da variedade de seus temas, os trabalhos aqui publicados têm em comum a discussão sobre a ética da responsabilidade e sobre a grande capacidade criadora e criativa do ser humano, por meio da qual ele cria redes de relações sociais, se comunica com seu outro, se educa e se constrói como sujeito sócio-histórico-cultural.

O primeiro trabalho, de autoria de Pauleany Simões de Morais e Vivianne Souza de Oliveira, discute a importância da participação de segmentos representativos da comunidade escolar no acompanhamento de decisões educativas, tendo como referência os Conselhos Gestores e o Conselho Escolar. Ao tratarem deste tema, as autoras analisam como a participação nas decisões da escola pode contribuir para um melhor desenvolvimento do estudante como um cidadão ativo e, paralelamente, para o êxito das ações pedagógicas e a melhoria da estrutura organizacional escolar. Desse modo, a discussão amplia-se por tratar, como pano de fundo, da relação entre a descentralização e o compromisso do Estado com a educação, bem como das responsabilidades da sociedade civil nesse processo.

O artigo seguinte, de Mario Abel Bressan Junior, expõe as concepções de Roland Barthes e Ferdinand de Saussure acerca dos signos linguísticos, da linguagem e das imagens, a fim de analisar como essas ideias podem ser relacionadas e aplicadas em uma análise semiológica de dois anúncios publicitários. Os anúncios analisados pertencem às marcas "O Boticário" e "Volkswagen", ambos de autoria da agência de propaganda ALMAP/BBDO, e trazem como personagens

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Apresentação

centrais algumas figuras conhecidas das histórias infantis, mais precisamente dos contos de fadas. Após a análise, o autor conclui que a imagem e o texto são fortes significantes para uma mensagem denotada e conotada, a depender do objetivo proposto, mas destaca que o texto é o elemento fundamental na produção da conotação, um recurso bastante utilizado pelo discurso publicitário.

Na sequencia, o artigo de Keile Correa Picolomini e Marcos Roberto dos Santos nos proporciona uma reflexão sobre as questões multiculturais que estão subjacentes às políticas de ações afirmativas sobre a inclusão na Educação Superior. Ao observar o importante papel da academia na alteridade da construção da identidade dos indivíduos surdos, para que se sintam integrantes do processo educacional, os autores chegam à compreensão de que as universidades necessitam repensar ainda mais suas estratégias e metodologias, a fim de que não prossigam com o processo de exclusão na sua formalidade, através da inclusão e na comercialização dos saberes. Assim sendo, mais do que respostas ao problema da inclusão na Universidade, o texto nos aponta questões muito interessantes, como, por exemplo, quando indaga: qual o objetivo da educação superior com relação à inclusão de surdos?

Após essa discussão, o texto de Márcia Cristina Dantas Leite Braz e Erika dos Reis Gusmão Andrade analisa, a partir da Teoria das Representações Sociais, de que maneira licenciandos em Física vão se tornando professores, mediante as articulações entre suas representações sobre a Física, enquanto conteúdo de ensino, e sobre o ato de ensinar. Pela exposição das autoras, a Física é vista pelos alunos como uma ciência cujos conteúdos são de difícil compreensão e é trabalhada didaticamente a partir de um modelo de ensino pautado na transmissão de conhecimentos. Nesse sentido, Braz e Andrade concluem seu artigo sugerindo a necessidade de que seja aberto, nas universidades, um espaço para reflexões sobre a práxis do currículo escolar, e que possa contar com a participação de professores da rede escolar, de licenciandos da área de Física e dos professores universitários.

Adentrando a área da linguística aplicada, Vicente de Lima-Neto analisa o scrap do Orkut como um gênero digital que pode se constituir a partir da misturas de gêneros. Nessa discussão, o autor busca ainda relacioná-lo ao ensino dos gêneros nas escolas, que, na maioria das vezes, os veem apenas como formas linguísticas limitadas a uma determinada

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estrutura composicional. Após um mapeamento dos padrões genéricos que aparecem no espaço destinado à escrita de recados no Orkut, Lima-Neto conclui que o scrap pode se constituir de forma híbrida e que a realidade empírica dos gêneros difere do que é exposto aos alunos pela escola, especialmente através dos livros didáticos. Desse modo, o autor afirma que o ensino envolvendo a temática dos gêneros, nesses padrões, tem deixando os estudantes alheios à riqueza cultural propiciada pelo conhecimento do seu real funcionamento nas práticas de interação verbal.

Num trabalho escrito a oito mãos, Alberto Carlos de Souza, Maurício Barreto Alvarez Parada, Mary Del Priore e Túlio Alberto Martins de Figueiredo discutem os lugares de memória nas obras fonográficas “Minas” e “Geraes”, do cantor mineiro Milton Nascimento. Essas obras, segundo os próprios autores, foram lançadas, respectivamente, em 1975 e 1976, e produzidas num contexto em que o Brasil vivia momentos de forte repressão política. De acordo, ainda, com os quatro autores, o texto se configura como uma narrativa desenvolvida em dois tempos: o do Chronos, que envolve a história de vida do cantor, e o do Aion, no qual está descrito o processo de sua criação musical. Em arremate ao estudo deste quarteto, podemos compreender que seja na pele de Wilton, quando viveu em Três Corações, ou na de Milton, quando já morava em Belo Horizonte, o cantor é celebrado, nacional e internacionalmente, como o caminhante de uma estrada chamada mundo.

Finalizando a seção dos artigos, Maria Coeli Saraiva Rodrigues e Bernardete Biasi-Rodrigues analisam as transformações que podem ocorrer quando um texto oral é transformado em um texto escrito, e como podemos desenvolver essa atividade em salas de aula de língua portuguesa. Através de uma pesquisa realizada pelas autoras, pode-se compreender que os recursos utilizados por um falante não são os mesmos quando um texto oral passa para o texto escrito. Do mesmo modo, segundo Rodrigues e Biasi-Rodrigues, é possível que ocorra uma mudança de gênero, entre um texto e outro, sem que, com isso, ocorram alterações no assunto abordado no texto utilizado como base para o exercício realizado com os alunos em sala de aula.

Este número se encerra com uma resenha do Prof. Dr. Bernard Charlot acerca do livro “Relações e saberes na escola: os sentidos do

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Apresentação

aprender o do ensinar”. Segundo Charlot, o livro é perpassado pela questão da relação entre aprender dentro e fora da escola e se interessa tanto por sua atividade mais básica, isto é, pela leitura, como por seus setores marginalizados, e até mesmo por um de seus atuais concorrentes, que é o Orkut. Para o autor da resenha, os textos que compõem o livro praticam uma “leitura em positivo” dos objetos de que tratam, cumprindo, segundo ele, uma exigência primordial e sine qua non da teoria da relação com o saber, que é o tema central da obra.

Desejamos a todos uma boa leitura, e esperamos contar com sua colaboração, enviando-nos críticas e sugestões para os próximos números.

Prof. Dr. Messias Dieb

Editor-chefe

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ARTIGOS

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A COMUNIDADE NO CENTRO DAS DECISÕES ESCOLARES: POLÍTICAS EDUCACIONAIS PARA PARTICIPAÇÃO NOS CONSELHOS GESTORES E

NO CONSELHO ESCOLAR NO BRASIL

Pauleany Simões de Morais* Vivianne Souza de Oliveira**

RESUMO: O texto discute a importância da participação dos segmentos representativos da comunidade escolar no acompanhamento das decisões educativas, desencadeadas nas reformas educativas da década de 1990, tendo como referência os Conselhos Gestores e o Conselho Escolar. Os pressupostos da participação que permeiam as práticas do Conselho gestor e Conselhos Escolares nos mostram que considerar os aspectos normativos e legislativos que impõem seu funcionamento e sua organização configura uma nova forma de envolver a sociedade civil nos rumos da vida social (coletividade). Entendemos que, por meio do Conselho como espaço de coletividade, fica explícito como os representantes da comunidade escolar têm construído e reconstruído suas concepções, atitudes, valores e saberes referentes à sua ação no cotidiano escolar, assim como nos permite perceber, a partir desse coletivo, as relações que explicitam os significados que os segmentos da comunidade escolar atribuem ao que seja sua própria forma de participar. Ao procurarmos perceber a importância da participação dos representantes da comunidade escolar no Conselho Escolar, tentamos compreender, com maior veemência, como essa participação pode contribuir para um melhor desenvolvimento enquanto cidadão ativo, e, consequentemente, para o êxito das ações pedagógicas e melhoria da estrutura organizacional da escola. Finalmente, compreendemos que os incentivos à participação colegiada no cotidiano escolar estendem-se nas questões político-educativas do Brasil, pois envolve temas como descentralização do Estado e reivindicações por participação popular no espaço público. Palavras chaves: Participação, Conselhos Escolares, Conselhos Gestores.

* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora Assistente do Instituto Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected] ** Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora Assistente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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Propomo-nos, neste texto, discutir questões referentes à participação de segmentos representativos da comunidade escolar no acompanhamento das decisões educativas. Em face da política de descentralização, desencadeada na década de 1990, analisamos a formação dos conselhos gestores no Brasil, particularmente no que concerne à criação de órgãos colegiados na área educacional, especialmente os conselhos gestores e os conselhos escolares.

Evidenciamos as prováveis contribuições do Conselho de Controle Social do FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) 1 e do Conselho escolar no que se refere aos seus papeis enquanto órgãos mobilizadores, fiscalizadores, acompanhadores e deliberativos das decisões educativas. Por isso, entendemos que a participação dos membros da comunidade escolar nesses colegiados torna-se um mecanismo que conduz à forma mais elevada de intervir nas decisões que dizem respeito ao coletivo. Os Conselhos Gestores

A implantação dos conselhos gestores , na década de 1990, aparece incorporada às estruturas dos governos, tendo apenas o objetivo de possibilitar a descentralização político-administrativa e a participação na elaboração e no controle das políticas sociais setoriais. Assim, podemos ressaltar a estreita relação entre a descentralização e a participação, compreendendo-a como um mecanismo que deveria

1O FUNDEF foi criado por meio da Emenda Constitucional nº 14 (ADCT, art. 60 parágrafos 1º e 2º), de 26 de setembro de 1996 (BRASIL, 1996a), sendo regulamentado pela Lei 9.424/96 (BRASIL, 1996b) e implantado nacionalmente, em 01 de janeiro de 1998. É um fundo de natureza contábil em que os recursos são provenientes das seguintes fontes: Fundo de Participação dos Municípios (FPM); Fundo de Participação dos Estados (FPE); Impostos sobre Circulação de Mercadorias Serviços (ICMS); Impostos sobre Produtos Industrializados, proporcionais às Exportações (IPIexp) e Desoneração de Exportações, de que trata a lei complementar nº 87/96 (Lei Kandir). Os recursos do FUNDEF, ao financiarem exclusivamente o Ensino Fundamental, são destinados à remuneração do Magistério, mínimo de 60%, e a outras despesas de manutenção e desenvolvimento do Ensino Fundamental, máximo de 40% (BRASIL, 2003). São automaticamente transferidos aos Governos Estaduais e Municipais, tendo como base o número de alunos matriculados no Ensino Fundamental nas respectivas redes de ensino.

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promover o envolvimento da sociedade civil na formulação de políticas públicas direcionadas à área educacional, contemplando as necessidades locais. Mas, para isso, é indispensável a elaboração de estratégias que promovam, efetivamente, a participação popular. Dentro dessa perspectiva, Jacobi (1990, p. 141) analisa que:

Descentralizar significa ceder poder a uma unidade inferior, o que representa basicamente dotar de competência e meios os organismos intermediários para que possam desenvolver sua gestão de maneira mais eficaz e próxima aos cidadãos. Isto implica definir objetivamente o método de gestão a ser implementado e as condições nas quais se dará a participação dos cidadãos.

A descentralização é um mecanismo que tem seus limites; no

entanto, pode tornar-se um excelente mecanismo para que se avancem determinados objetivos. Isso significa que a descentralização pode servir para aproximar a sociedade civil do Estado, diminuindo, assim, a histórica distância que os afasta. Ao transferir a prestação de serviços para um nível de governo mais próximo da população, ou impulsionar a articulação com essa população, é provável que a prestação de serviços gere cada vez mais a equidade. Acerca dessa questão, Lobo (1990, p. 8) ressalta que:

[...] descentralização deve visar ao aprimoramento das relações intergovernamentais, capacitar melhor os governos subnacionais para a função de agentes interventores em suas realidades e possibilitar o controle social da população organizada sobre a ação do poder público.

Por conseqüência, Lobo (1990) defende o controle social como

sendo uma prerrogativa essencial para promover o exercício da democracia no país. Por meio dela, a população organizada pode participar ativamente da ação do poder público, interferir no destino das políticas públicas, responsabilizando o Estado quando este não proporciona um atendimento adequado às suas necessidades, e redirecionando as ações para os interesses, dependendo da correlação de forças e das condições históricas.

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Na atual conjuntura, o discurso que apóia a aproximação entre sociedade civil e Estado não tem o objetivo de promover uma verdadeira participação social dos indivíduos, mas busca apenas jogar responsabilidades para a sociedade civil por força da lei, ao se estabelecer modelos que devem ser seguidos, buscando essencialmente cortes de gastos na área social.

No campo educacional, os princípios neoliberais também impõem a articulação entre a sociedade civil e o Estado. Contudo, os conselhos, nessa área, têm uma institucionalidade diferenciada, sendo reestruturados por legislação específica, como exemplo a criação do Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio da Lei 9.131/95. Por sua vez os Conselhos Estaduais de Educação (CEE) e os Conselhos Municipais de Educação (CME) reorganizam-se e estabelecem as diretrizes pedagógicas e normativas da educação na sua jurisdição, não tendo, portanto, um papel de estabelecer diretrizes de gestão de recursos.

Os conselhos foram instituídos para democratizar as relações, envolvendo diversos setores da sociedade no processo de decisão no interior da esfera pública. Tais órgãos colegiados integram a estrutura organizativa da educação – pais de alunos, professores, diretores, integrantes de sindicatos e de outras entidades representativas – por meio do Conselho Municipal de Educação, Conselho de Escola, Conselho do FUNDEF, dentre outros. De acordo com Gohn (2001, p. 100) é preciso ressaltar a importância dos conselhos na área da educação, pois:

Na educação, o princípio da democracia participativa tem orientado, [...] a criação de uma série de estruturas participativas, em que se destacam diferentes tipos de conselhos (nacionais, estaduais e municipais). Esses órgãos têm ganho, crescentemente, grande importância, porque a transferência e o recebimento dos recursos financeiros pelos municípios, estão vinculados, por lei federal, à existência desses conselhos.

Nessa perspectiva, tem-se a pretensão de construir uma gestão

escolar participativa no intuito de formar espaços eminentemente coletivos em que os sujeitos envolvidos participem, efetivamente, nas

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decisões. Ao considerar tal concepção, Machado et al. (2004, p. 327) nos dizem que:

O paradigma da gestão escolar participativa preconiza como indicadores fundamentais à autonomia escolar, a descentralização de poder, a representatividade social nos conselhos e colegiados, o controle social da gestão educacional, a escolha dos dirigentes escolares por processo de eleição e a inclusão de todos os segmentos da comunidade escolar no processo decisório mais amplo.

Ao reverenciarmos a participação como categoria primordial para

a análise do papel e funcionamento dos conselhos, torna-se necessário investigar qual é a participação popular nessas instituições, tendo como perspectiva a participação política. Assim, considerando essa perspectiva, devemos reconhecer o poder dos conselhos, principalmente na área de educação. Sobre tal questão, Cury (2002, p. 177) afirma que:

Eles são instrumentos de cidadania, de democracia e de controle do Estado. Implicam o cidadão com os destinos da escola, ampliam os espaços públicos de decisão, têm a função de democratizar a informação para todos e podem controlar desmandos do poder. São uma promessa de participação que se vê realizada em experiências exitosas em vários municípios do país.

Nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB) – Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996c) também procurou imprimir à escola o princípio da participação, ao prescrever a constituição de conselhos escolares que envolvam a comunidade escolar e local, para viabilizar as ações administrativas, financeira e pedagógica no interior das instituições educativas. Em conseqüência, o conselho caracteriza-se por ser um órgão máximo de decisão. De acordo com essa lei:

Art. 14. Os Sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

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II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares equivalentes (BRASIL, 1996c).

No referido artigo, podemos perceber que o princípio

participativo deve ser seguido por meio da gestão democrática, mas esse tipo de gestão é de inteira responsabilidade das próprias instituições. As escolas devem elaborar seus próprios mecanismos, para conduzir o princípio participativo na realização de suas ações. Cabe às organizações colegiadas, que têm poder de decisão, determinar como se dará o processo de democratização da gestão, procurando envolver todos os componentes da escola em um ambiente participativo. Conforme Lück (2000, p. 27):

A criação de ambientes participativos é, pois, uma condição básica da gestão democrática. Deles fazem parte a criação de uma visão de conjunto da escola e de sua responsabilidade social; o estabelecimento de associações internas e externas; a valorização e maximização de aptidões e competências múltiplas e diversificadas dos participantes; o desenvolvimento de processo de comunicação aberta, ética e transparente.

Isso significa dizer que a participação e o processo de decisão

passam a ser elementos essenciais que conduzem o envolvimento também político dos componentes da comunidade escolar no acompanhamento da gestão. É necessário entender a participação política como um instrumento essencial para se conceber uma sociedade mais justa e humana. Seguindo essa crença, Dallari (1983, p. 91) afirma que: “[...] A participação política de que todo ser humano tem necessidade, e que por isso é direito e dever de todos, é aquela voltada para a consecução do bem comum”. Os Conselhos Escolares

O Conselho Escolar surge como um meio capaz de promover a participação de toda a comunidade escolar nas discussões, assim como pode caracterizar-se como um espaço de decisões coletivas, e de relações de trocas de experiências, capaz de contribuir para a superação da prática do individualismo e do grupismo, na medida em que agrega, de cada um

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dos setores (escola e comunidade), os seus interesses específicos, que devem ser unificados em prol do projeto da escola (ABRANCHES, 2003).

No que corresponde às suas funções, podemos destacar a de caráter deliberativo referente à tomada de decisões no que diz respeito às diretrizes e linhas de ação que devem ser desenvolvidas na escola. As funções de caráter consultivo são referentes à emissão de pareceres sobre situações diversas, sejam elas relacionadas aos aspectos pedagógicos, administrativos e financeiros, ou a levantamentos de propostas para solucionar problemas e desenvolver projetos na instituição (ABRANCHES, 2003).

Sendo assim, a participação no Conselho Escolar significa a busca pelo interesse do bem comum, em função de objetivos que conduzam à resolução dos conflitos decorrentes do cotidiano da escola. A dinâmica desse órgão colegiado adquire forma a partir das relações e das ações de seus atores em um processo de construção coletiva de saberes, de luta e conquista de um grupo.

A colegialidade, nesse sentido, pode ser percebida como uma experiência de aprendizagem mútua, onde os professores, pais, funcionários, direção e alunos, coletivamente, estão em continua relação com o saber e aprender, pois, como afirma Charlot (2003, p. 33) “Não existe saber (de aprender) senão quando está em jogo a relação com o mundo, com os outros e consigo”. Para esse mesmo autor, a educação supõe a relação com o Outro, pois ela não existe sem algo de externo, o “a quem educar”. Esse outro “é um conjunto de valores, de objetos intelectuais, de práticas, etc.; é também um outro ser humano (ou vários)” (CHARLOT, 2005, p. 77).

A importância da participação colegiada no cotidiano escolar estende-se, ainda, nas questões político-educativas, pois envolve temas como descentralização do Estado, lutas por participação popular no espaço público, e amplas reformas educacionais ocorridas no Brasil, principalmente na década de 1990. Por isso, não podemos deixar de destacar alguns pontos relevantes para que possamos compreender os discursos político-educativos sobre a necessidade de implementar esse tipo de espaço coletivo no cotidiano escolar.

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Em primeiro lugar, podemos destacar o que a Constituição Federal Brasileira de 1988 determina no Artigo 206, Inciso VI2: a participação social de forma representativa no âmbito público, ocasionando uma intensificação no debate em torno da participação da sociedade na elaboração das políticas públicas educacionais.

Em consequência das diretrizes constitucionais, a participação por meio de colegiados é assegurada ainda através da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional nº 9.394/96, que define, como princípio, a participação dos profissionais da educação na elaboração do Projeto político pedagógico e de toda a comunidade escolar em conselhos escolares. Assim, acompanhando a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96, as constituições de vários estados, assim como a lei orgânica de muitos municípios, adotaram o princípio da gestão democrática / participativa, no que diz respeito à escola pública. A partir de então, intensificaram-se as ações visando à ampliação da participação coletiva no cotidiano escolar.

Dentre as ações, destacamos a criação do Programa de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, cujo objetivo principal é oferecer subsídios para a implementação desses conselhos nas escolas, a fim de facilitar a compreensão da comunidade escolar acerca do significado dos mesmos na gestão da educação (BRASIL, 2004, p.13). A ênfase nessa forma de participação social nas instituições escolares tem sido colocada como um “dever do cidadão” que, responsável pela educação, pode contribuir para a melhoria da qualidade das escolas públicas brasileiras.

Dessa forma, a participação do “cidadão” nas decisões escolares garantiria o exercício da democracia no contexto escolar, de acordo com o Programa de Fortalecimento dos Conselhos Escolares. A forma de colegiado significa o “exercício do poder por um coletivo, por meio de deliberação plural, em reunião de pessoas com o mesmo grau de poder” (BRASIL, 2004, p.13). Considerando o sentido atribuído pelo programa,

2 A Constituição Federal assegura “A participação efetiva dos diferentes agentes econômicos envolvidos em cada setor da produção” (art. 198, III e art. 194, VII). E ainda, nos casos da assistência social e das políticas referentes à criança e ao adolescente, quando a participação da população se dá “por meio de organizações representativas” (art. 204, 22).

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podemos, então, entender que os profissionais da educação, assim como os pais, alunos e funcionários, independente da função que exerçam na escola, são agentes capazes de transformar a instituição escolar, aqueles que, com a força da coletividade, têm poder para lutar por melhores escolas, melhores trabalhos, enfim, por uma melhor educação.

Para Thuler (2002), as ações coletivas, denominadas por ela como cooperativas, geralmente aparecem como grandes responsáveis pela eficácia das escolas, e ainda como eixo principal de muitas reformas educativas. Por isso que, em escolas nas quais os professores, coletivamente, têm se preparado para enfrentar as incertezas e os conflitos que acompanham, inevitavelmente, toda mudança de prática, esses profissionais não apenas apresentam melhor desempenho, mas também conseguem desenvolver, progressivamente, competências coletivas, que complementam e reforçam as competências individuais das pessoas.

Ressaltamos, finalmente, que, por meio do Conselho como espaço de coletividade, podemos perceber de como os representantes da comunidade escolar têm construído e reconstruído suas concepções, atitudes, valores e saberes referentes à sua ação no cotidiano escolar, assim como nos permite perceber, a partir desse coletivo, as relações que explicitam os significados que os professores atribuem ao que seja seu próprio trabalho. Ao procurarmos perceber a importância da participação dos representantes da comunidade escolar no Conselho Escolar, tentamos compreender, com maior veemência, como essa participação pode contribuir para um melhor desenvolvimento enquanto cidadão ativo, e, consequentemente, para o êxito das ações pedagógicas e melhoria da estrutura organizacional da escola. Considerações Finais

Os pressupostos da participação que permeiam as práticas do Conselho Gestor e Conselhos Escolares nos mostram que considerar os aspectos normativos e legislativos que impõem seu funcionamento e sua organização configura uma nova forma de envolver a sociedade civil nos rumos da vida social (coletividade).

Nesse contexto, os membros dos conselhos precisam compreender que a escola pode ser um espaço de transformação social,

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uma vez que eles devem ser agentes desse processo, tendo poder de constituir um ambiente participativo com essa finalidade. Portanto, a sociedade civil carece e reivindica a participação, principalmente no processo de decisão dos órgãos nas estruturas administrativas do Estado e da escola, visto que essas estruturas definem e produzem os rumos da vida em coletividade. Mas, muitas vezes, não são oferecidas condições favoráveis à promoção da participação social, pois, aos representantes do órgão colegiado impõem-se aparatos legislativos, ou restringem-se as atuações nos processos decisórios, privando seus representantes da liberdade de opinar, no caso do Conselho Gestor, assim como nos Conselhos escolares. Em tal patamar os conselhos gestores, de um modo geral, devem retomar suas bases de sustentação nos movimentos sociais da década de 1980 e 1990 e retornar a ser instituições que realmente primem pelo interesse coletivo de um determinado grupo que luta por justiça social e direitos que lhes foram negados, como a participação no processo de decisão da gestão pública ou mesmo educacional. Referências ABRANCHES, Mônica. Colegiado escolar: espaço de participação da comunidade. São Paulo: Editora Cortez, 2003.

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THULER, Mônica Gather. O desenvolvimento Profissional dos professores: novos paradigmas, novas práticas. In: PREENOUD, Philippe; THULER, Mônica Gather (et.al) As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Tradução Cláudia Schililin; Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.

Recebido em 02/08/09. Aprovado em 01/04/10.

ABSTRACT: THE SCHOOL COMMUNITY AT THE CENTER OF DECISIONS: NATIONAL EDUCATIONAL POLICIES TO ENCOURAGE PARTICIPATION ON MANAGEMENT AND SCHOOL COUNCILS IN BRAZIL. The text discusses the importance of participation of representative segments of the school community in accompanying educational decisions, elaborated in the educational reforms of the 1990's, having as a reference Management and School Councils. The pressupositions of participation that permeate the practice of Management and School Councils show us that to consider normative and legislative aspects that impose their functioning and organization, mold a new form of involving the civil society collectively with regard to social life. We are able to percieve, through the Council as a collective site, the manner in which the representatives of the school community have constructed and reconstructed their conceptions, atitudes, values, knowledge base with relation to their daily school activities, just as it permits us to perceive, from this collective body, the relationships that make explicit the meanings that the segments of the school community attribute to what its own form of participation signifies. In the search for understanding the importance of the participation of the representatives of the school community on School Councils, we try to understand more deeply, just how this participation can contribute to the better development of active citizenship, and consequently, the success of pedagogical actions and the improvement of the organizational structure of schools. Finally, we understand that the incentives to participate on school boards, in the daily life of the school, are extended into the realm of politico-educational questions in Brazil, involving themes such as decentralizaiton of the State and the call for popular participation in the public sphere. Keywords: Participation, School Councils, Management Councils.

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RESUMEN: LA COMUNIDAD ESCOLAR EN EL CENTRO DE LAS DECISIONES: POLÍTICAS EDUCACIONALES NACIONALES DE INCENTIVO LA PARTICIPACIÓN DE CONSEJOS GESTORES Y EN EL CONSEJO ESCOLAR EN BRASIL. El texto discute la importancia de la participación de los segmentos representativos de la comunidad escolar en el acompañamiento de las decisiones educativas de la década de los 90, teniendo como referencia los Consejos Gestores y el Consejo Escolar. Los presupuestos de la participación que permean las prácticas del Consejo Gestor y Consejos Escolares nos muestran que considerar los aspectos normativos y legislativos que imponen su funcionamiento y su organización, configura una nueva forma de envolver la sociedad civil en los rumbos de la vida social (colectividad) Entendemos que por medio del Consejo, como espacio de colectividad, queda explícito como los representantes de la comunidad escolar ha construido y reconstruido, hasta nuestros días, sus concepciones, actitudes, valores y saberes referentes a su acción en el cotidiano escolar, tal como nos permite percibir, a partir de este colectivo, las relaciones que explicitan los significados que los segmentos de la comunidad escolar atribuyen a lo que sea su forma mismo de participar. Al buscar entender la importancia de la participación de los representantes de la comunidad escolar en el Consejo Escolar, intentamos comprender con más vehemencia como esta participación puede contribuir para un mejor desarrollo como ciudadano activo, y consecuentemente, para el éxito de las acciones pedagógicas y mejoría de la estructura organizacional de la escuela. Finalmente comprendimos que los incentivos a la participación colegiada en el cotidiano escolar extendiéronse en los temas político-educativos de Brasil, pues envuelve temas como descentralización del Estado y reivindicación por participación popular en el espacio público. Palabras-llave: Participación, Consejos Escolares, Consejos Gestores.

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AS RELAÇÕES SINTAGMÁTICAS NO CONTEXTO PUBLICITÁRIO: DO SIGNO LINGUÍSTICO À

SEMIOLOGIA DAS IMAGENS

. Mario Abel Bressan Junior*

RESUMO: O presente artigo expõe uma análise das concepções de Roland Barthes e Ferdinand de Saussure acerca dos signos linguísticos, linguagem e imagens. A investigação é focada nas obras "Elementos de Semiologia" e "O Óbvio e o Obtuso", de Barthes; e "Curso de Linguística Geral", de Saussure. Apresenta como objetivo averiguar as ideias destes autores e como estas podem ser relacionadas e aplicadas em uma análise semiológica de dois anúncios publicitários. Seus objetos de estudo são um anúncio da marca "O Boticário", veiculado em 2005, e outro da marca "Volkswagen", veiculado em 2008. Ambos são de autoria da agência de propaganda ALMAP/BBDO e possuem como figura central personagens de histórias infantis, mais precisamente de contos de fadas. Através desta análise, será possível verificar a aplicação dos conceitos atribuídos aos autores anteriormente mencionados. Palavras-chave: Signo linguístico. Semiologia. Roland Barthes. Ferdinand de Saussure.

Introdução

As personagens de histórias infantis, principalmente as de contos de fadas, sempre permaneceram no imaginário popular, estabelecendo um contato fantasioso com princesas, príncipes, bruxas, lobos etc. São enredos conhecidos desde muito cedo. As primeiras histórias são ouvidas ainda quando crianças. Os livros são produções em série que possibilitam a inclusão do inverossímil no imaginário infantil.

Da mesma forma, a propaganda utiliza como recurso persuasivo vários elementos para se “contar” uma ideia. Os anúncios publicitários são rodeados de textos e imagens para que a leitura possa acontecer e convencer o leitor. A ideia criativa tende a ser embasada em algo já

* Publicitário e professor da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL.

Mestrando em Ciências da Linguagem. E-mail: [email protected]

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conhecido, mas talvez não explorado. Assim, o contexto linguístico e imagético faz parte da publicidade, para transmitir uma mensagem.

Neste artigo, serão estudados os signos linguístico e imagético nos anúncios publicitários que utilizam como signo icônico duas personagens de contos de fadas, avaliando a força do texto para o entendimento conotativo da peça. Tem-se como objetos observados um anúncio da marca O Boticário e outro da Volkswagen (Carro Fox). As principais contextualizações são embasadas nas obras Elementos de Semiologia e O Óbvio e o Obtuso, de Barthes; e Curso de Linguística Geral de Saussure. A obra A relevância social da língua de Maria do Rosário Gregolin, também contribui com a discussão, apresentando alguns aspectos sociais da língua, da linguagem e do discurso. O signo saussuriano e a semiologia de Barthes

Primeiramente, é importante pensar e recordar a importância de Saussure (2004) e de Barthes (1988) para a análise semiológica. Mesmo antes de Saussure, o signo já era avaliado e percebido por alguns teóricos e filósofos. Podemos, até mesmo, recorrer a Platão, para quem o signo apresentava-se como uma relação social, mesmo num contexto no qual ainda não havia a denominação que conhecemos hoje de semiótica ou semiologia.

A partir da obra póstuma de Saussure, Curso de Linguística Geral, vários pesquisadores, posteriormente, identificaram a força da linguística no contexto social. O signo linguístico, para Saussure, se tornara extremamente necessário ao conhecimento e aquisição da mensagem e da linguagem. Para ele “a matéria da linguística é constituída inicialmente por todas as manifestações da linguagem humana”. (SAUSSURE, 2004, p. 13)1. É após o estudo das concepções de Saussure, que Barthes (1988) estuda a semiologia. Para o último autor, a semiologia

manteve um diálogo constante e transformador com: o estruturalismo etnológico (Lévi-Strauss), a análise das formas literárias (os formalistas russos, Propp), a psicanálise (Lacan), a filosofia (Derrida), o marxismo

1 A primeira edição da obra Curso de Lingüística Geral de Saussure é de 1916. Para este artigo, serviu como base de consulta a 26ª edição, do ano de 2004.

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(Altusser), a teoria do Texto (Sollers, Julia Kristeva) (BARTHES, 1988, p. 8).

A semiologia tem por objeto qualquer sistema de signos. Saussure

(2004) postulava, em sua obra, uma ciência geral dos signos, mais especificamente o signo linguístico: “o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”. (SAUSSURE, 2004, p. 80). É a apresentação psíquica de duas faces, dois lados. Barthes (1988) destacava que, mesmo tendo as compreensões de Saussure avançado muito, o estudo da semiologia progredia lentamente.

A razão disto talvez seja porque Saussure retomado pelos principais semiólogos, pensava a linguística como uma parte da ciência geral dos signos. Limitando-se a outros sistemas de signos. [...] é preciso em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um dia a proposição de Saussure: a linguística não é uma parte, menos privilegiada, da ciência geral dos signos: a semiologia é que é uma parte da linguística; mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso (BARTHES, 1988, p. 13).

Na linguística de Saussure há a abordagem de pares dicotômicos:

língua e fala; sintagma e paradigma; denotação e conotação. Os conceitos de língua e fala são o centro das observações do autor, quando ele apresenta Língua como instituição social e um sistema de valores e Fala como um ato individual. Barthes (1988, p. 22) levanta alguns questionamentos sobre tais conceitos: “Será que se pode identificar a língua como código e a fala como mensagem?” Para o autor, “esta identificação é impossível segundo a teoria hjelmsleviana2; Pierre

2 Hjelmslev (1973) expõe, a partir de Saussure, que o signo lingüístico possa ser agrupado através do Plano da Expressão e do Plano do Conteúdo, sendo estes ordenados em dois níveis: uma forma e uma substância. A forma compreende ao que Saussure denomina de valor, isto é, o conjunto das diferenças. As diferenças fônicas e regras de combinação fazem parte da forma da expressão, enquanto as diferenças semânticas e suas regras combinatórias competem a forma do conteúdo. Todas geram substância. Os sons, por exemplo, são substância da expressão, a substância do conteúdo são os conceitos.

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Guiraud a recusa, porque, segundo ele, as convenções do código são explícitas e as da língua são implícitas [...]”. (BARTHES, 1988, p. 22).

Dessa forma, pode-se prever, de acordo com Barthes (1988), que algumas classes, de fato, caberão à categoria língua, e outras à categoria fala, destacando que, nesse caminho semiológico, a observação de Saussure apresenta modificações, que deverão ser observadas. Em outro contexto, Barthes (1988, p. 26) destaca a relação dos conceitos de língua e fala no âmbito sociológico definido por alguns teóricos.

O alcance sociológico do conceito língua/fala é evidente. Cedo se sublinhou a afinidade manifesta entre a língua saussuriana e a concepção durkheimiana da consciência coletiva, independente de suas manifestações individuais; postulou-se até uma influência direta de Durkheim sobre Saussure. Saussure teria seguido de perto o debate entre Durkheim e Tarde. Sua concepção da língua viria de Durkheim e sua concepção de fala seria uma forma de concessão às ideias de Tarde acerca do individual.

A seguir, utilizando-se outras concepções acerca do signo, será

desenvolvida uma análise, observando-se a relação e aplicação dos significantes e significados para Barthes e Saussure. Leitura Semiológica dos Anúncios publicitários: contribuições de Barthes e Saussure

Após a exposição das percepções de Saussure e de Barthes sobre a função do signo, parte-se, agora, para um estudo aplicativo dos conceitos e teorias propostas por ambos os autores. É possível perceber que Barthes utiliza alguns dados saussurianos para explicar alguns pontos da semiologia estudada por ele. Apresenta, também, outros desdobramentos para se entender o sentido da imagem, especialmente no contexto publicitário. Um ponto importante destacado por Barthes (1988, p. 22) é que a fala “pode ser definida, além das suas amplitudes da fonação, como uma combinação variada de signos”. E que na língua presenciam-se alguns “sintagmas cristalizados”. Saussure (2004) define sintagma como uma composição de duas ou mais unidades consecutivas, ou seja, termos que estabelecem relação entre si, um encadeamento linear. Portanto, não

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é possível pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. É a “cadeia” da fala. Cada grupo forma uma série de “memória virtual”, um tesouro de memória.

No conjunto de mensagens transmitidas pela publicidade, o que se percebe é a relação sintagmática do texto para que, então, se possa alcançar a mensagem desejada. Nos anúncios publicitários, as palavras tendem a expressar um sentido que, muitas vezes, é complementado pelas imagens. Outras vezes, é o texto que dá sentido à imagem. Surge, então, o que Saussure (2004), e depois Barthes (1988), descrevem sobre significante e significado. Em uma redação publicitária há vários significantes para produzir um significado, ou até mais de um, dependendo dos signos utilizados. Barthes (1988, p. 39) destaca que “o significado e o significante são, na terminologia saussuriana, os componentes do signo”. Nesse sentido, Barthes destaca:

Pode-se dizer que a substância do significante é material (sons, objetos, imagens). Em semiologia, em que vamos tratar de sistemas mistos que envolvem diferentes matérias (som e imagem, objeto e escrita etc.), seria bom reunir todos os signos. [...] o signo é uma fatia (bifacial) de sonoridade e visualidade. A significação pode ser concebida como um processo; é o ato que une significante e significado, ato cujo produto é o signo (BARTHES, 1988, p. 50).

Assim, Barthes (1988), baseado nas concepções saussurianas,

considera descreve que, na lingüística, significado não é uma “coisa”, mas sim uma representação psíquica da “coisa”. Desta forma, “Saussure notou bem a natureza psíquica do significado ao denominá-lo conceito: o significado da palavra boi não é o animal boi, mas sua imagem psíquica” (BARTHES, 1988, p. 46). O autor observa, ainda, que, “para Saussure, as relações que unem os termos linguísticos podem desenvolver-se em dois planos, cada um dos quais engendra seus próprios valores” (1988, p. 63).

Nos anúncios analisados a seguir, tende-se a avaliar a relação dos significantes e significados, observando se a imagem psíquica é construída através do entendimento da mensagem persuasiva.

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Anúncio 1 – O Boticário, veiculado em 2005. Agência ALMAP. Fonte: www.almapbbdo.com.br, acesso em 2005. Anúncio 2 – Volkswagen, veiculado em 2008. Agência ALMAP. Fonte: www.almapbbdo.com.br, acesso em 2008.

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Em ambas as peças, nota-se uma pequena sequência de palavras para dar o contexto e sentido da ideia criativa. As imagens apresentam duas personagens míticas das histórias infantis, mais precisamente dos contos de fadas. O que é observado é um sentido conotativo destas figuras, mas que é entendido com a presença dos signos linguísticos adequados, em uma posição esteticamente respeitada pelos padrões da direção de arte. Se retomarmos os sentidos de Saussure ao afirmar que o signo linguístico é a imagem acústica do significado, logo há a percepção de que, na peça, a relação sintagmática determinada pelo autor se faz presente e essencial.

Nas fotografias expostas há uma relação icônica com objetos e personagens. Barthes (1988) contextualiza dizendo que pode ser encontrada, em uma imagem fotográfica, uma forma de mensagem em que há um emissor, um canal e um receptor. Um ponto importante em sua observação sobre a transmissão da mensagem, por uma imagem também, é ela estar acompanhada por signos linguísticos. Em seu livro “Elementos de Semiologia”, o autor observa a relação entre imagem e texto nas mensagens jornalísticas e publicitárias: “a estrutura da fotografia não é uma estrutura isolada; comunica, pelo menos, com uma outra estrutura, que é o texto”. (1988, p. 14). Diante disto, pode-se perceber que os anúncios acima dependem de ambas as estruturas, tanto verbais quanto não-verbais.

Sobre a fala observada nos textos e imagens acima organizados para a produção da mensagem, Gregolin (2007) destaca que a linguagem é constituída por sujeitos em interações sociocomunicativas. Com isso, toda a produção do discurso tende a delinear as condições da fala, do dizer. Para Bakhtin, mencionado por Gregolin (2007, p. 72), “os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados que se caracterizam por um conteúdo temático, uma certa configuração formal, um certo estilo verbal”. O que pode ser percebido com estas reflexões é que a publicidade pode apresentar sentidos denotativos e conotativos, dependendo, também, da leitura do significante e da reprodução da mensagem.

Para Barthes (1984, p. 14), a imagem fotográfica apresenta um regulamento particular: é uma mensagem sem código. “A mensagem fotográfica é uma mensagem contínua”. Ele aponta, ainda, outras mensagens sem código, que são precisamente todas as reproduções

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analógicas da realidade: desenhos, pintura, cinema e teatro. Cada uma destas mensagens apresenta, além do conteúdo analógico (cena, objeto, paisagem), uma mensagem complementar, por Barthes denominada “o estilo da reprodução”. Sintetizando, todas as “artes” imitativas compreendem duas mensagens: uma denotada e outra conotada. Sobre isso, o autor esclarece:

Trata-se, então, de um sentido cujo significante é um certo “tratamento” da imagem sob a ação do criador, e cujo significado, quer estético, quer ideológico, remete para uma certa cultura da sociedade que recebe a mensagem. Em suma, todas estas “artes” imitativas comportam duas mensagens: uma denotada, que é o próprio analogon, e uma mensagem conotada que é o modo como a sociedade dá a ler, em certa medida, o que pensa dela. Esta dualidade das mensagens é evidente em todas as reproduções que não são fotográficas (BARTHES, 1984, p. 15)

Há um entendimento, talvez denotado, de cada signo apresentado.

Um carro é um carro no sentido denotado. Uma moça é uma moça em seu sentido real. A partir do momento em que um signo linguístico interfere para conotar um sentido, têm-se outros significados. Neste sentido, segundo Gregolin (2007, p. 73), a propaganda, para atingir seu objetivo, “agencia valores ideológicos de uma sociedade”, e isso pode estar materialmente marcado na linguagem utilizada. Em relação à produção e efeitos de sentido, Gregolin discute que “todo discurso é polissêmico e, atravessado pela polifonia, liga-se a um certo lugar ideológico. Ao enunciar, o sujeito se coloca em uma posição ideologicamente marcada”. (2007, p. 73).

Barthes (2004), ao observar a evolução das comunicações de massa, evidencia a força da mensagem linguística presente em todas as imagens. Títulos, legendas e códigos estão por toda parte estabelecendo vínculo interpretativo. Para o autor, hoje, “não é muito justo falar de uma civilização da imagem: somos ainda e mais do que nunca uma civilização da escrita, porque a escrita e a fala são sempre termos plenos da estrutura informativa”. (2004, p. 31). É o signo linguístico e o icônico imagético criando efeitos de interpretação. O texto e a imagem são os

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principais componentes para um processo de conotação, segundo Barthes.

No anúncio número 1 (um), cujo anunciante é “O Boticário”, percebe-se claramente a função do texto para a compreensão da mensagem. A imagem denotada de uma mulher com um capuz vermelho é atribuída a um significado real, não polissemia. A conotação ocorre quando os significantes, neste caso, linguísticos, oferecem um novo significado. Apresentando, assim, a figura da personagem Chapeuzinho Vermelho, com o texto verbal: “a história sempre se repete, todo chapeuzinho vermelho que se preze, um belo dia, coloca o lobo mau na coleira”, tem-se uma nova relação sintagmática que oferece suporte à imagem. Quem é o lobo mau nesta história? Em nenhum momento há evidência deste personagem. Em um sentido conotativo, há a percepção de este lobo ser o próprio homem, evidenciando, assim, a submissão masculina diante da mulher que utiliza os produtos da marca “O Boticário”.

Assim, nas concepções de Barthes (1984), naturalmente, a significação só é possível na medida em que há reserva de signos, esboço de códigos. Registram-se, aqui, alguns significantes, como a mulher vestindo vermelho, olhar sensual, batom vermelho, céu como paisagem e os códigos verbais complementando o contexto. Outro ponto da mensagem linguística que merece destaque é a sequência “um belo dia”. Em todos os contos de fadas (ou praticamente todos), sempre há esta expressão identificando a fantasia da narrativa, um lugar onde não há receios. É uma identificação temporal da história. Há também, nesta fala, uma constatação polissêmica, abrindo-se para novos significados. O anúncio não teria o mesmo sentido somente com a imagem. O texto supre a necessidade conotativa.

Barthes (2004, p. 16) conclui:

Estruturalmente, o paradoxo não é evidentemente o concluído de uma mensagem denotada e de uma mensagem conotada: é este o estatuto provavelmente fatal de todas as comunicações de massa; pois a mensagem conotada (ou codificada) desenvolve-se aqui a partir de uma mensagem sem código.

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Observando o anúncio número 2 (dois), no qual o produto anunciado trata-se do carro Fox (marca Volkswagen), tem-se também uma leitura estrutural de texto e imagem. Diferentemente da peça anterior, este apresenta o produto em exposição fotográfica. É um retrato de um automóvel com uma modelo, neste caso, representando a personagem Rapunzel. Um signo evidente para a codificação da personagem são as suas tranças. Ela, ao contrário da análise anterior, não apresenta uma sensualidade explícita, mas sim de forma delicada. As princesas, em sua iconicidade, projetam-se sob este significado. Percebe-se, na imagem analisada, pela sua expressão, o toque no automóvel, o sorriso um pouco escondido. Até aí, tem-se todas estas identificações. Mas o que ela está fazendo em um automóvel? Que narrativa é esta? A resposta é obtida com a leitura da frase que acompanha a imagem: “Você se sente no alto em um Fox”. Com a mensagem verbal é estabelecido um novo significado. São novamente novos significantes produzindo outros significados. O texto acrescenta sentido à Rapunzel dentro do automóvel. O estudo de Barthes (1984, p. 19) esclarece que os objetos podem ser elementos de associações de ideias, para ele, “o objeto talvez já não possua uma força, mas possui, seguramente, um sentido”.

O carro vem, aqui, em uma relação paradigmática, substituir o significante “torre” (altura). É como se a personagem estivesse vivendo novamente nas alturas, signo este pertencente à sua história. Há a conotação do automóvel e suas qualidades, mas em nenhum momento no anúncio isso é descrito de maneira denotada. Nesse sentido, Barthes (1984, p. 17) destaca que a conotação nasce, então, dos objetos fotográficos, e analisa: “a conotação, isto é, a imposição de um segundo sentido à mensagem fotográfica propriamente dita, elabora-se nos diferentes níveis de produção da fotografia”. Aplicações de Barthes Acerca da Imagem

Barthes, em seu livro O Óbvio e o Obtuso (1984), estabelece uma sequência que pode ser aplicada na análise de uma imagem. Primeiramente, ele contextualiza a grande relação da imagem denotada como instrumento da imprensa. Para ele,

em suma, de todas as estruturas de informação, a fotografia seria a única a ser exclusivamente constituída e

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ocupada por uma mensagem denotada, que absorveria completamente o seu ser; perante uma fotografia, o sentimento de denotação, ou se preferirmos, de plenitude analógica, é tão intenso que a descrição de uma fotografia é literalmente impossível; porque descrever consiste precisamente em acrescentar à mensagem denotada um suporte ou uma mensagem segunda, extraída de um código que é a língua, e que constitui fatalmente, faça-se o que se fizer para se ser exato, uma conotação em relação ao análogo fotográfico: descrever não é, pois, somente ser exato ou incompleto, é mudar de estrutura, é significar outra coisa, diferente do que se mostrou. (BARTHES, 2004, p. 15)

Aos poucos o autor vai visualizando a conotação na mensagem

fotográfica e aplicando algumas técnicas de análise que serão relacionadas aos anúncios abordados neste artigo.

Trucagem: A primeira delas diz respeito à trucagem da imagem fotográfica.

Barthes (1984, p. 17) diz: a trucagem interfere no plano de denotação, utilizando a credibilidade da fotografia. “O interesse metódico da trucagem reside no fato de intervir mesmo no seio do plano de denotação, sem prevenir”. A fotografia expõe seu poder denotativo, mas que é fortemente conotada pelas reservas de signos que a compõem.

Pose: A pose é o segundo elemento utilizado pelo autor para a

observação de uma imagem. Esta técnica consiste na leitura dos significados de denotação adquiridos com a pose do indivíduo fotografado. São as reservas de atitudes estereotipadas que possibilitam a interpretação. Nos dois anúncios há a percepção de poses diferentes. No primeiro (O Boticário), a modelo está com o rosto levemente voltado para cima, representando a submissão masculina, conforme já observado. Está com um dos olhos tapados pelos cabelos, representando o “escondido”, o mistério. O olhar é provocante, situa-se em um simbolismo mais sensual.

No segundo anúncio (Fox), a modelo já apresenta o rosto voltado delicadamente para baixo. É perceptível a sua beleza, mas há maior suavidade no olhar e na expressão facial. Faz também um “convite” à

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sedução, mas não de submissão. Neste caso, são os estereótipos descritos por Barthes, elementos que constituem uma significação.

Fotogenia: Pode-se dizer que é na fotogenia, segundo Barthes, que a

conotação da imagem está presente na própria imagem “embelezada” por recursos de iluminação e impressão. Esses recursos ou técnicas devem ser investigados, pois cada um pode corresponder a um significado de conotação “suficientemente constante para ser incorporada num léxico cultural” (1984, p. 19).

Em ambos os anúncios estudados, há uma série de recursos propostos por Barthes que podem estabelecer laços de conotação. A iluminação se faz presente na fotografia, realçando o brilho existente nos objetos, neste caso, o capuz da Chapeuzinho e o automóvel Fox. Um ponto interessante é que no anúncio do Fox há uma luz direcionada de cima para baixo, formando sombras na parte inferior do carro, remetendo à idéia de que o automóvel está no chão, possui uma base. Visto que se trata de um fundo totalmente branco, destacando apenas a cor preta do carro e os tons suaves da modelo (cor de pele, cabelo, roupa e laço de fita), a sombra vem fornecer uma base para o objeto retratado. São recursos utilizados para a produção de significados. Tem-se uma apresentação estética da peça, tornando-se fácil e agradável a contemplação. A Relação de Texto e Imagem

Após a observação e análise do signo linguístico e sua importância para contexto publicitário, como ligação de sentidos, Barthes elenca alguns pontos sobre a relação de texto e imagem: “o texto constitui uma mensagem parasita, destinada a conotar a imagem, isto é, a „insuflar-lhe‟ um ou vários significados segundos”. (1984, p. 21). Complementa afirmando que a palavra já não é mais ilustrada pela imagem, mas sim “é a palavra que, estruturalmente, é parasita da imagem”. (1984, p. 21). O signo linguístico vem “patetizar”, exaltar, racionalizar a imagem. Estas concepções são percebidas nos anúncios analisados. Se não houvesse a palavra, as imagens teriam outros sentidos, podendo não ser os desejados.

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Antigamente, a imagem ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o texto sobrecarrega a imagem, confere-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação [...] antigamente, havia redução do texto à imagem, hoje há ampliação da imagem ao texto: a conotação já não é vivida senão como ressonância natural da denotação fundamental constituída pela analogia fotográfica. (BARTHES, 1984, p. 21)

Na propaganda, observam-se alguns elementos discursivos, como

a linguagem verbal-visual, os quais são primordiais para a mensagem persuasiva. Os textos são elementos linguísticos associados à imagem, para formar um sentido (conteúdo temático). Gregolin (2007) destaca que alguns textos são transparentes; outros possibilitam uma significação plural. Os jornais, para a autora, em suas manchetes, devem ser neutros e transparentes, diferentemente do discurso literário, que é polissêmico. Para a autora (2007, p. 74), tudo isso “são jogos discursivos que criam esses efeitos, pois nunca há evidência absoluta nos sentidos: é essa ambiguidade que cria o humor no final do texto da propaganda”. É o que pode ser evidenciado nos enunciados das peças publicitárias destacadas acima. Há um jogo de palavras, uma relação sintagmática que possibilita essa estrutura da linguagem. A esse respeito, Gregolin se manifesta:

Os sentidos nascem de relações entre textos e discursos; há uma regularidade própria dessa circulação, no interior da qual a memória retoma textos e discursos e cria aquilo que se pode e se deve dizer em um certo momento histórico. [...] todos os textos que circulam em uma sociedade dialogam entre si por meio da intertextualidade. Por isso, a produção e a interpretação textual exigem o recurso à memória discursiva, à retomada de outros textos que já foram enunciados antes, em outros lugares (GREGOLIN, 2007, p. 75).

Muitas particularidades podem ser percebidas com as imagens

destacadas em ambos os anúncios. Há um recurso, neste caso a interpretação textual, que vem ativar a memória discursiva do leitor. Ou seja, a maioria, em algum momento de sua existência, já leu ou visualizou, em histórias infantis, as personagens Rapunzel e Chapeuzinho Vermelho, vistas por outro prisma. A publicidade utiliza muito esta

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ferramenta, buscando elementos que possam atingir a memória discursiva do público-alvo. Há, nesta percepção, o que Gregolin (2007) destaca como produção do discurso, relacionado entre língua e história, história e social na produção de sentidos.

Sendo o signo linguístico uma entidade psíquica de duas faces, na qual o significante e o significado não se separam, faz-se, aqui, uma observação quanto ao signo linguístico na propaganda: nesta, de certa forma, o signo linguístico apresenta um significante e um significado que é arbitrário, mas há uma formação psíquica elaborada com a ajuda das imagens. Em relação a isso, Saussure explica:

O laço que une significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário. (SAUSSURE, 2004, p. 81)

Barthes (1984) destaca que a imagem oferece um valor linguístico

para o leitor. Vem oferecer uma mensagem, cujo valor é linguístico. Há alguns suportes, também, como as próprias marcas dos anunciantes. Após toda identificação da ideia criativa, tem-se o entendimento do anunciante e seu propósito conceitual, seu posicionamento. É uma significação intencional. Os elementos que compõem a imagem não estão postos, naturalmente, em uma cena; estão em pose.

Em publicidade, a significação da imagem é seguramente intencional: são certos atributos do produto que formam a priori os significados da mensagem publicitária e estes significados devem ser transmitidos tão claramente quanto possível. [...] a imagem publicitária é franca, ou pelo menos enfática. (BARTHES, 1984, p. 27)

A intenção de uma peça publicitária ao utilizar elementos como

texto, chamada, ilustração e assinatura é persuadir um público alvo desejado. São itens necessários para a construção do processo persuasivo da mensagem. As imagens são intencionais, são construídas para proporcionar efeitos, atribuindo significados ao leitor do anúncio.

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Após a exibição do recorte teórico oferecido neste artigo, e analisado os materiais propostos, têm-se a seguir as considerações finas e apontamentos importantes a respeito deste.

Considerações Finais

Após a discussão da relação entre texto e imagem, observa-se que, no discurso publicitário, há encadeamento estrutural de signos verbais e não-verbais. Não se pode dizer que, somente com a imagem, a mensagem é decodificada, pois, conforme a análise realizada, constatou-se que o signo linguístico apresenta uma função essencial para o anúncio.

É interessante, hoje, para muitos estudiosos semiológicos e semióticos, o conceito de signo e seus desdobramentos. Este artigo possibilitou a realização de uma análise embasada nas considerações saussurianas e, também, nas observações de Barthes acerca das imagens. Em geral, um anúncio publicitário tende a utilizar vários elementos interpretativos. A imagem e texto são fortes significantes para uma mensagem denotada e conotada, dependendo do objetivo proposto. Mas o que é extremamente utilitário e evidenciado é a relação do texto para a produção da conotação, recurso bastante utilizado pelo discurso publicitário. Barthes (1984, p. 22), conclui: “o texto não faz senão ampliar um conjunto de conotações já incluídas na fotografia; mas, por vezes, também o texto produz (inventa) um significado inteiramente novo”.

Assim, cabe, a estudantes e profissionais da área, a busca constante para a aplicação e observação de recursos textuais e imagéticos. Afinal, Rapunzel e Chapeuzinho Vermelho podem vir a ser protagonistas de novas relações sintagmáticas, mas certamente estarão presentes na memória discursiva, que será ativada por novos signos linguísticos e visuais. Referências BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1988.

______________. O óbvio e o obtuso. Porto: Edições 70, 1984.

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GREGOLIN, Maria do Rosário. A relevância social da língua. 2007

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 26. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

Recebido em 09/11/09. Aprovado em 28/03/10.

ABSTRACT: SINTAGMATICS RELATIONS IN PUBLICITY CONTEXT: FROM LINGUISTIC SIGN TO THE SEMIOLOGY OF IMAGES The current essay shows an analysis of the conception by Roland Barthes and Ferdinand de Saussure about linguistic signs, language and images. The investigation is focused on the books "Elements of Semiology" and "The Obvious and the Obtuse", by Barthes; and "Course of General Linguistics", by Saussure. It has a goal to verify the ideas oh these authors and how they can related and applied in a semiological analysis of two commercial ads. Its study objects are an adversiting commercial by the brand "O Boticário", which was run in the year 2005, and the other brand one "Volkswagen", aired in 2008. Both are from the adversiting agency ALMAP/BBDO and have as a main theme children stories characters, more precisely of fairy tales. Trough this analysis, it will be possible to verify the use of concepts created by the authors who have abready been mentioned. Keywords: Linguistic sign. Semiology. Roland Barthes. Ferdinand de Saussure. RESUMEN: RELACIONES SINTAGMÁTICAS EN EL CONTEXTO DE LA PUBLICIDAD: DESDE LOS SIGNOS LINGUÍSTICOS A LA SEMIOLOGIA DE LAS IMÁGENES El actual artículo exhibe un análisis de los conceptos de Roland Barthes e Ferdinand de Saussure acerca de los signos linguisticos, lenguaje y imágenes. La investigación es focada en las obras Elementos de Semiologia y El obvio y el obtuso, de Barthes; y Curso de linguistica geral, de Saussure. Presenta como objetivo, averiguar las ideas de estos autores y como estos pudem ser relacionados y aplicados en un análisis semiológica de dos anuncios publicitarios. Tiene como objeto de estudio un anuncio de la marca O Boticário, vehículado en 2005, y otro de la marca Volkswagen, vehículado en 2008. Ambos son de autoria de la agencia de propaganda ALMAP/BBDO y poseen como figura central personajes de

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historias infantiles, más precisamente de cuentos de hadas. Con este análisis, será posible verificar la aplicacion de los conceptos atribuidos por los autores citados anteriomente. Palabras clave: Signo linguistico, Semiologia, Roland Barthes, Ferdinand de Saussure.

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A INCLUSÃO DOS SURDOS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR NUMA PERSPECTIVA

MULTICULTURAL

Keile Correa Picolomini* Marcos Roberto dos Santos**

RESUMO: O artigo nos remete a uma reflexão sobre as questões multiculturais que abordam as políticas de ações afirmativas sobre a inclusão na Educação Superior para atender a demanda da diversidade dentro das universidades. O multiculturalismo, implica em proporcionar aprendizagem significativa através de abordagens metodológicas diferenciadas, dando ênfase ao reconhecimento identitário e cultural, a fim de que o discente tenha consciência de si mesmo dentro do espaço universitário. Para este trabalho destacam-se os estudos de Antônio Sidekum(2003), Paulo Freire(1996), Ronice de Quadros(2006), Gladis Perlim(1998), e Paulo Ricardo Ross(2006), podemos observar o importante papel da academia na alteridade da construção da identidade dos indivíduos surdos para que se sintam integrantes do processo educacional. Palavras-Chaves: Educação Superior. Multiculturalismo. Identidade Surda.

Introdução

A presente pesquisa propõe uma análise no cenário da Educação Superior, partindo de um prisma de educação multicultural voltada para atender à demanda da diversidade, dentro do espaço acadêmico, a fim de que possa construir bases teóricas que permitirão o pleno reconhecimento, a proteção e a asseguridade dos direitos humanos fundamentais, principalmente no que se refere à inclusão dos surdos.

* Professora Pedagoga da rede privada de ensino, pós-graduada em Psicopedagogia

Clinica e Institucional e Pós-graduando em Docência do Ensino Superior (Faculdade Afirmativo / Cuiabá-MT) [email protected] **

Secretário Executivo e Profissional Tradutor/intérprete de Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS reconhecido com o Exame Nacional de Proficiência em Tradução e interpretação da Língua Brasileira de Sinais realizado pelo MEC e a Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduado em Docência do Ensino Superior (Faculdade Afirmativo / Cuiabá-MT) [email protected]

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Na Educação Superior, existe todo um aparato de políticas afirmativas no âmbito da inclusão social. Porém, o que pretendemos suscitar, nesse artigo, é a falta da práxis do envolvimento da comunidade acadêmica com a cultura surda, para que, assim, os surdos possam construir sua identidade sentindo-se parte integrante do meio.

Acreditamos que esse artigo venha contribuir para o processo de ensino e aprendizagem dos surdos, dentro das universidades, processo esse que, histórica e culturalmente, esteve comprometido pelo fato da unificação do ensino, que não legitimava e não tratava com relevância a diversidade cultural dentro das salas de aula.

Um olhar sobre a Educação Superior no Brasil

Para iniciarmos nossa discussão sobre a proposta de inclusão do novo milênio, não poderemos deixar de falar sobre a proposta da Educação Superior no Brasil, qual o currículo que as universidades vem imprimindo em seus acadêmicos ao longo da história? As IES1 tem dado relevância as questões do multiculturalismo dentro do ambiente universitário?

Diante desses questionamentos, observamos que a historicidade da educação superior é construída num cenário de educação vertical, em que o professor assume um papel de detentor do saber que transmitirá conhecimentos instituídos aos acadêmicos. Estes receberão a mesma educação, ao desconsiderar suas diferenças histórico-sociais e culturais conduzindo-os num abismo intelectual desconectando da realidade social, ou seja, unifica o saber posto pela academia.

A partir da década de 1990, algumas reformas começaram a abalar a estrutura universitária no Brasil, desde a organização administrativa à autonomia política das Instituições Federais de Educação Superior. Apontamos que dentre as reformas realizadas na Educação Superior, ocorreu paralelamente a universalização e ampliação do ensino médio, que aumentou de forma significativa o procura pelos cursos universitários. A consequência do aumento pela procura dos cursos superiores ocasionou o crescimento da oferta da Educação Superior no

1 Sigla referente às Instituições de Educação Superior.

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setor privado, visto que a demanda não foi ampliada nas instituições públicas.

O cenário tecido aponta que desde o ano de 2000, eclodiram no ambiente universitário ações que atendessem aos jovens e adultos, por meio das políticas afirmativas para a Educação Superior. É válido ressaltar que, a partir das políticas afirmativas, surge um movimento de inclusão dos grupos segregados (sejam eles negros, índios, homoafetivos e deficientes), que, historicamente, viveram à margem do sistema educacional. Desde então, a universidade vem vivenciando um choque de diferenças no espaço acadêmico, originando, assim, a multiculturalidade nas salas de aula.

Neste sentido, faz-se necessário abordarmos as contribuições da multiculturalidade na educação de surdos. A opção didático-pedagógica adotada na feitura do presente artigo dar-se-á à formação histórica das tramas que tecem os sujeitos da educação de surdos no espaço acadêmico. Na sequência, vamos observar a educação de surdos e a multiculturalidade. A educação de surdos e o multiculturalismo

Na esteira do debate da inclusão de surdos na Educação Superior, observamos que o tema está intrinsecamente relacionado ao conceito de Multiculturalismo. Ao longo da história da humanidade, a sociedade vem sofrendo muitas modificações. Com o avanço da globalização e, consequentemente, a crise de valores, onde não existem mais limites para determinadas violações, fica evidente, então, que a educação toma uma outra face, a do multiculturalismo, que defende uma educação para todos, respeitando a diversidade dentro do ambiente das salas de aula, eliminando os estereótipos dos grupos minoritários. Segundo SIDEKUM, o multiculturalismo caracteriza-se como:

[...] lutas dos direitos humanos que deve ser aportada como o movimento social contemporâneo de maior força e maior radicalidade, que enfatiza o direito à diferença e abarca em seu delicado e difícil trabalho filosófico o resgate da memória e da história das vítimas que haviam sido condenadas ao silêncio. (2006 p. 5)

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A universidade é historicamente marcada pelo silêncio do saber único e absoluto. O saber popular, ou os saberes do povo, é abortado na academia da supremacia do saber. Sabemos que os grupos segregados, marcam a ruptura do silêncio ao gritarem sua cidadania. Cidadania conquistada no estado democrático com a Carta Magna do País, a Constituição da República Federativa do Brasil.

A partir daí, os surdos tiveram várias mudanças a seu favor, seja na consciência da sociedade a respeito do sujeito surdo, e até mesmo perante a lei, como por exemplo, as diretrizes e bases do Conselho Nacional de Educação para a educação inclusiva, a lei da Acessibilidade, o reconhecimento oficial da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e a inserção obrigatória dela como disciplina curricular nos cursos de Licenciatura e Fonoaudiologia.

Esses grupos minoritários já estavam inclusos, mesmo antes das políticas afirmativas sobre a Inclusão, porém não havia legitimidade dessa “aceitação” do diferente dentro das IES, pelo que era muito natural negros, homossexuais, surdos, pobres entre outros, desistirem de suas formações acadêmicas, por causa dos preconceitos sofridos. Com a reforma universitária passamos a discutir agora a função do multiculturalismo na educação.

Para tratarmos especificamente da educação de surdos, o multiculturalismo assume um papel de consolidar direitos fundamentais dos surdos brasileiros que historicamente sofreram grande marginalização do ensino, direitos que trazem a concepção de dignidade humana em nossa sociedade.

O Multiculturalismo defende a valorização da cultura nos diversos grupos sociais e entende o que há de mais valioso na sociedade que é a sua diversidade. Nesses movimentos multiculturais, estão presentes surdos e ouvintes que vivem realidades diferentes, mas são enquadrados numa educação igualitária, ou seja, igual para todos, porém as perspectivas para a inclusão do surdo mobilizam e promovem transformações significativas nos sujeitos de aprendizagem, esperando assim contribuir com as reflexões sobre as práticas pedagógicas oferecidas nas academias. Segundo SIDEKUM.

[...] O tema multiculturalismo já alcançou um avançado nível na discussão acadêmica. Esse alcance é a marca principal das últimas décadas do século XX. Esse avanço

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consolidou-se, sistematicamente, pelos estudos comparados da cultura, desenvolvidos pela antropologia cultural e pela psicologia aplicada, também conhecida por psicologia social intercultural.(2003 p.9)

Para tratarmos sobre a educação e os aspectos culturais dos

sujeitos surdos, será abordado, primeiramente, o processo histórico cultural e social, o qual eles sofreram.

Baseados nos estudos de PERLIM (1998 p. 56) sobre comunidade surda, constatamos que, na Antiguidade, os surdos eram vistos como aberração da natureza, não exerciam a sua cidadania, eram desprovidos de qualquer direito.

Com o fim da Idade Média e início da Idade Moderna, onde há a transição do teocentrismo2 para o antropocentrismo3, os deficientes passam a ser alvo de interesse dos médicos e da ciência, chegando, assim, uma nova fase para os surdos.

No século XIX, ocorreu um Congresso em Milão, na Itália, denominado Congresso de Milão, marco na cultura surda. Pessoas de todo o mundo se reuniram, a fim de decidirem sobre a vida dos surdos; porém a bancada era constituída somente por ouvintes. Nesse congresso decidiu-se, então, a preferência da língua oral à língua gestual, o oralismo se expandiu por toda a Europa, começou, então, a não aceitação dos ouvintes em dividir o seu papel com os surdos dentro da sociedade, e um bom exemplo disso foi a demissão de todos os professores surdos, a fim de que evitassem o contato com os alunos surdos, para que não adquirissem a língua de sinais.

A partir do século XX, começaram a surgir relatos da insuficiência educacional, pois grande parcela deles não conseguiam obter êxito na oralidade, muitos grupos de estudos surgiram, principalmente do americano Willian Stokoe, na década de 1960, que descobriu uma estrutura gramatical semelhante à das línguas orais, provando, assim, o seu valor e sua capacidade de expressão em qualquer nível de abstração.

2 TEOCENTRISMO – do grego THEOS = Deus + KENTRON = Centro. É uma teoria que impõe Deus como o centro do Universo, tudo foi criado por Ele, e por Ele tudo é dirigido. 3 ANTROPOCENTRISMO – do grego ANTHROPOS = Humano + KENTRON = Centro. É uma teoria que surge com o Renascentismo e exalta que a humanidade deve permanecer no centro do entendimento dos humanos.

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Concluíram, então, que a língua de sinais não atrapalhava o surdo em seu desenvolvimento cognitivo, mas ajudava-o a adquirir a fala, por isso Bimodalismo ou Comunicação Total, pois falava e sinalizava simultaneamente.

Esse processo ocasionou um desencontro com a cultura surda. Quando é pedido a um surdo que se comporte linguisticamente de forma semelhante ao ouvinte, sem considerar suas particularidades de comunicação, ele não é supostamente diferente do ouvinte, mas é obrigado a que se comporte e construa, através da alteridade, sua identidade baseada na identidade ouvinte, a qual não aceita essas diferenças, consequentemente isso não irá formar uma auto-identificação positiva, intersubjetivamente reconhecida. Segundo a doutora surda PERLIM: “Ser surdo é participar de um mundo de experiências visuais-espaciais e não de experiências orais-auditivas” (1998 p. 56).

Então, alguns trabalhos desenvolvidos na Europa a partir da década de 1980, principalmente da Dinamarca e Suécia, introduziram o enfoque bilíngue na história dos surdos.

Bilinguismo é uma proposta que atua como possibilidade de integração do indivíduo ao meio sócio-cultural, pois respeita o surdo em todas as suas particularidades e diferenças. Para QUADROS4(2006 p. 18), a língua de sinais é tida como L1, e a língua portuguesa como L2; assim, o surdo pode se desenvolver com um sentimento positivo em relação à sua identidade, enquanto pessoa surda. Não é focado somente na educação científica, mas também em seu desenvolvimento como indivíduo em si mesmo e sua participação na sociedade. Uma reflexão sobre a inclusão dos surdos na Educação Superior

Atualmente, muito se tem falado em Inclusão Social, um termo que até tem se transformado em modismo, todos fazem e praticam a tão propalada temática, partindo de um prisma apenas material ou físico que se caracteriza em fatores econômicos, qualidade de vida, raça, entre

4 Pesquisadora da Língua de Sinais, em seu livro Idéias para ensinar português para alunos surdos, aborda sobre a temática do Bilínguismo que classifica como L1 a língua de sinais como língua materna dos surdos, ou seja, a primeira língua, e L2 sendo a língua oral e segunda língua, que deverá ser ensinada na modalidade escrita.

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outras ausências, porém há todo um aparato de metodologias específicas a cada caso, (DEMO, Apud SIDEKUM 2003 p. 99) afirma: “Essa é apenas a crosta externa do fenômeno da exclusão/inclusão”.

Quando falamos na inclusão dos surdos na educação, torna-se um assunto com um maior grau de complexidade, pois vai envolver culturas e línguas diferenciadas; não basta apenas inserir o surdo em determinado espaço, é necessário propiciar formas com que ele possa afetar e ser afetado pelo meio.

De acordo com o Código de Ética dos Profissionais Tradutores/intérpretes de Língua Brasileira de Sinais, o intérprete é apenas um dos instrumentos de acessibilidade; é necessário muitos mais, incluir um surdo implica a alteridade da sua identidade e valorização de sua cultura dentro do espaço acadêmico. Para FREIRE:

A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. (1996, p. 41)

O termo inclusão é tão velho quanto a humanidade; todos

precisam ser incluídos. Desde que nascemos, somos incluídos na família, na escola, no mercado de trabalho etc. Com relação aos surdos, estão incluídos numa sociedade preconceituosa onde, para se desenvolverem e exercerem sua cidadania, dependerão de outras pessoas para intermediar suas relações com o mundo. Ao deparar com um surdo dentro do cenário de uma sala de aula, qual o papel da universidade para que esse indivíduo não perca suas características dentro do grupo?

Conforme já foi citado, são necessárias, para o processo de ensino e aprendizagem do discente com surdez, a construção da identidade surda e o fortalecimento da sua cultura dentro do ambiente, o que ocorrerá através dos contatos com o meio, pois esse processo pedagógico vai além das paredes da sala de aula, o que possibilitará a formação de cidadãos mais participativos nos processos decisórios sociais. Mas, quando essa relação de alteridade na construção da identidade é negada dentro do espaço acadêmico, surgem, então, grandes dificuldades na interação do surdo com o meio, pois ele não se

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reconhece como sujeito dotado de ações, conhecimentos e saberes numa perspectiva instituinte. Partícipes de ambientes com jogos de poder impostos pelas instituições, de uma forma colonizadora, há, então, uma desconstrução da sua identidade, pois na grande maioria há uma resistência das universidades em contratar intérpretes e muito mais em assegurar a valorização da cultura surda. O CNE/MEC Apud FONSECA da SILVA faz a seguinte consideração a respeito da inclusão:

Entende-se por inclusão a garantia, a todos, do acesso contínuo ao espaço comum da vida em sociedade, sociedade essa que deve estar orientada por relações de acolhimento à diversidade humana, de aceitação das diferenças individuais, de esforço coletivo na equiparação de oportunidades de desenvolvimento, com qualidade, em todas as dimensões da vida. (2008 p. 3)

Já que a inclusão assume esse caráter citado acima, a universidade

deve propiciar formas para que o acadêmico sinta-se confortável em conviver nesse espaço cada vez mais diversificado, que ele tenha a garantia de uma interação harmoniosa e que todos possam conviver com grupos, culturas multifacetadas.

É necessário que o acadêmico e o docente, na alteridade da construção identitária, se assumam como ser pensante, e a prática didático-pedagógica seja rebuscada de forma clara e precisa para dentro do espaço universitário, segundo FREIRE:

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que o educando em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. (1996 p. 41)

Refletindo sobre o pensamento freiriano, qual o efeito pérfido na

identidade do surdo na atual proposta da inclusão? É papel da universidade e do docente mergulhar na cultura surda, saber quem é esse indivíduo dentro da academia para que possa fazer um paralelo entre o conhecimento científico e as experiências sociais e culturais pela qual passam os acadêmicos, porém para isso exige pesquisa. ROSS em seu

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artigo sobre as práticas inclusivas faz a seguinte crítica à inclusão social, tratando-se da formação do professor docente:

É preferível, então, ser aquele que ignora, porque ignorar significa não conhecer. Aquele que o seu papel passa a ser exercido voluntária e espontaneamente pelos alunos em situações esporádicas e indeterminadas. O aluno com deficiência deixa de receber o trabalho sistemático do professor, dirigente da aula, assumindo a função de mendigar ajudas, instaurando-se um processo de dependência nocivo à conquista de sua autonomia. Segue-se aí o abandono do aluno à própria sorte, seu isolamento, ocasionando a não aquisição e aprendizagem de conceitos e conteúdos fundamentais. Trata-se, neste caso, da distorção dos conceitos de necessidades educativas especiais, integração e inclusão. (2006 p. 284)

Quando a universidade e o docente negam essa alteridade para a

formação da identidade do surdo dentro da sala de aula, nega-se, também, a aquisição de saberes e conhecimentos em sua totalidade, e a competência do discente no decorrer do curso poderá estar comprometida, pois, pela falta das abordagens metodológicas diferenciadas e da sua identidade linguística, ele não conseguirá abstrair todos os conceitos fundamentais necessários para sua formação.

O docente, por sua vez, se encontra num grande paradoxo, entre efetivar a inclusão dos surdos e cumprir a temporalidade da Educação Superior para se adequar a essas metodologias.

No entanto, compete à Universidade discutir a aplicabilidade das políticas de inclusão dos surdos em seu ambiente, para que as “lindas” campanhas de responsabilidade social saia do papel e seja vivenciada na práxis do processo de ensino e aprendizagem. Considerações Finais

O termo inclusão/exclusão tem sido alvo de debates nas diversas esferas sociais, e não podemos deixar de levá-lo para dentro das nossas universidades. O multiculturalismo, movimento iniciado a partir das políticas afirmativas da Inclusão, tem por base os fundamentos teóricos e práticos para a mudança no cenário das injustiças e desigualdades pelas quais sofrem os grupos minoritários, submissos às culturas dominantes.

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PICOLOMINI; SANTOS - A Inclusão dos Surdos na Educação Superior...

O que colocamos em evidência, é que mais do que incluir, as universidades necessitam repensar as estratégias e metodologias para que não prossigam com o processo de exclusão na sua formalidade através da inclusão e a comercialização dos saberes, o que nos permite indagar qual o objetivo da educação superior com relação a inclusão?

Quando falamos na inclusão de surdos, ressaltamos a importância na presença de outros elementos que irá cercear esse processo. Além do profissional tradutor/intérprete de língua de sinais também todo o envolvimento da comunidade acadêmica com a causa. Para isso, a universidade e o corpo docente necessitam estar abertos para a proposta causando uma desconstrução e a quebra de velhos paradigmas construídos históricamente. Para finalizarmos, gostaríamos de deixar uma reflexão sistemática de como está ocorrendo a inclusão dos surdos nas universidades numa perspectiva bilíngue e multicultural, que nos leva a questionar: seria a cultura surda impossibilitada de ascensão social ou a cultura ouvinte inflexível? Referências FONSECA da SILVA, Maria Cristina da Rosa. VI Congresso Português de Sociologia: Políticas da Inclusão no Ensino Superior: Panorama na Legislação Brasileira. UDESC. Santa Catarina 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e Terra. São Paulo 1996.

PERLIM, Gladis T. T. Histórias de vida surda: Identidades em questão. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre – RS 1998.

QUADROS, Ronice. SCHMIEDT, Magali L. P. Idéias para ensinar português para alunos surdos. MEC/SEESP – Brasília-DF 2006.

ROSS, Paulo Ricardo. Aprendizagem e conhecimento: fundamentos para as práticas inclusivas. Revista Perspectiva UFSC. Florianópolis – SC 2006.

SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e Multiculturalismo. Ed. Unijuí – Ijuí-RS 2003.

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Recebido em 15/11/09. Aprovado em 03/04/10.

ABSTRACT: THE INCLUSION OF DEAFS IN HIGHER EDUCATION UNDER A MULTICULTURAL PERSPECTIVE The article makes us to reflect about the multicultural aspects that are around affirmatives actions politics about the inclusion in higher education to attend the demand of diversity in the universities. The multiculturalism implies to provide meaningful learning through different methodological approaches, emphasizing the identity and cultural recognition, so that the students are aware of themselves within the university area. For this article, we highlight searchs of Antônio Sidekum(2003), Paulo Freire(1996), Ronice de Quadros(2006), Gladis Perlim(1998) e Paulo Ricardo Ross(2006) we can observe the important part of the university in otherness of the identity construction of deaf people with the objective they feel members of the educational process. Keywords: Higher Education. Multiculturalism. Deafs Identity. RESUMEN:

LA INCLUSIÓN DE LOS SORDOS EN LA UNIVERSIDAD BAJO UNA

PERSPECTIVA MULTICULTURAL El artículo lleva nos a una reflexión sobre las cuestiones multiculturales que se ocupan de las políticas de acciónes afirmativas sobre la inclusión en la educación superior para satisfacer la demanda de la diversidad en las universidades. El multiculturalismo implica en proporcionar aprendizaje significativa a través de diferentes enfoques metodológicos, haciendo hincapié en el reconocimiento de la identidad y cultura, para que el estudiante ha conocimiento de sí mismo en el espacio universitário. Para este trabajo destacan los estudios de Antonio Sidekum (2003), Paulo Freire (1996), Ronice de Quadros (2006), Gladis Perlim (1998) y Paulo Ricardo Ross (2006), se puede observar el importante papel de la universidad en la alteridad de la construcción de la identidad de las personas sordas para qué ellas se sienten miembros del proceso educativo. Palabras-Clave: Educación Superior. Multiculturalismo. Identidad Sorda.

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TESSITURAS PSICOSSOCIAIS: DESAFIOS EM FORMAR LICENCIANDOS EM DUAS CULTURAS

Márcia Cristina Dantas Leite Braz* Erika dos Reis Gusmão Andrade**

RESUMO: Este estudo objetiva analisar a partir da Teoria das Representações Sociais, como licenciandos em Física vão se tornando professores mediante articulações entre suas representações sociais (RS) de Física e suas RS sobre o Ensinar. Os sujeitos foram 50 licenciandos em formação inicial e o acesso aos dados realizado através da Técnica da Associação Livre e do Procedimento de Classificação Múltipla. O tratamento dos dados se deu pela análise de conteúdo e pelo procedimento de análise multidimensional SSA (Smallest Space Analysis). Os resultados revelaram as RS de Física concebida como ciência racionalista, ancorada no misto das físicas de Galileu e Newton, e objetivada na visão popular de conhecimento científico. A RS sobre Ensinar, ancorada na pedagogia tradicional, e objetivada na imagem figural do professor artesão, tais RS, quando articuladas entre si, apresentam a Física como ciência de difícil compreensão, transposta didaticamente a partir de um modelo de transmissão de conhecimento. Sua aprendizagem, resultante da competência matemática do aluno, mediante exercícios repetitivos. Conclui-se a imprescindibilidade da criação de um grupo interdepartamental e multidisciplinar promovido pela Universidade em que espaços sistemáticos de formação continuada, que empreendam reflexões sobre a práxis do currículo escolar com a participação de professores da rede escolar, dos licenciandos e professores universitários. Palavras-chave: Ensino de Física. Formação de Professores. Representações Sociais.

* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:

[email protected] **

Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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O percurso formativo é um percurso relacional com aprendizagens: o desafio de formação no trânsito entre duas culturas

É notório o desafio de formar seres humanos independentemente de qual seja a natureza da formação. O termo formar em sua acepção significa dar ou tomar forma, conceber ou ser concebido, estruturar-se, desenvolver paulatinamente. O sentido subjacente a ação transitiva verbal das expressões formar, conceber, desenvolver, denota a imprescindibilidade de um ou mais complementos para dar sentido completo a uma frase. Similarmente, quando falamos sobre formação de professores, seria insuficiente não convocarmos outras figuras a estabelecer relações de sentido nesse processo, uma dessas seria a aprendizagem. Impreterivelmente, acreditamos que formar alguém abre espaços de relações entre o sujeito em formação, e a necessidade de aprender.

Quando falamos aprendizagem, admitimos ser este um processo que se dá não só pela aquisição de um saber, mas por convocar o sujeito em formação, os licenciandos em Física, especificamente, a estabelecer inter-relações de produção com os saberes específicos dos seus campos disciplinares e com os saberes do campo pedagógico. As inter-relações acabam por determinar composições dialéticas com eles mesmos e com os outros implicados no processo, sejam os professores, os colegas, e até a cultura acadêmica, e a cultura escolar. Como também, inter-relações com o objeto de conhecimento específico do campo disciplinar da licenciatura correspondente, Física, e os do campo pedagógico, envolvendo suas disposições, o modo como são abordados, se numa perspectiva fragmentada ou numa relação inter ou transdisciplinar, aliadas as suas inserções no mundo.

Pautando-nos nessa perspectiva acerca da formação, é importante sinalizarmos de antemão o caráter de estruturação em que estão assentados os modelos curriculares dos cursos de Licenciatura. Desde já, afirmamos que ainda impossibilitam os licenciandos se posicionarem diante dos saberes-objeto numa relação de produção de saber. Pois, se esta simboliza, segundo Charlot (2000), uma relação de primazia da objetividade e da subjetividade, o distanciamento entre os campos de saber específico e o do campo pedagógico, corrobora para ausência de

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diálogo entre eles, impedindo tais relações. A disposição dos saberes-objeto indica uma estrutura curricular positivista, fragmentária e linear, predominando, segundo Andrade (2004), o dogmatismo e o anacronismo, entre estes e a realidade escolar (grifo nosso).

Formar o licenciando em Física, ou em outras licenciaturas, requer análises minuciosas, porque, além de abranger as complexidades inerentes a um percurso formativo, de interrelações com seus saberes-objeto, mediante as figuras do aprender (CHARLOT, 2000), significa, também, formá-los no trânsito profícuo entre duas culturas: a das ciências humanas e a das ciências naturais.

Tomamos o termo: “Duas Culturas” do Snow (1995), pois ao relatar sua história pessoal, identifica-se como cientista do campo natural, mas que também se dedicou às letras. O autor, afirma ter convivido, em sua trajetória acadêmica, com cientistas do campo das ciências naturais e com escritores, sendo constantemente confrontado pelo fosso existente entre elas. Snow (1995, p. 18) afirma que, Foi através da convivência com esses dois grupos, e muito mais, creio, através da movimentação regular entre um grupo e outro, que me vi às voltas com o problema que, muito antes de lançá-lo por escrito, havia batizado para mim mesmo de “duas culturas”.

A nosso ver, o trânsito entre as duas culturas no percurso formativo dos cursos de licenciatura, é empreendido prioritariamente, quando espaços-tempos são oportunizados aos futuros professores, para que produzam o conhecimento do conteúdo pedagógico. Este, dentre outros, faz parte de uma semântica de conhecimentos a serem produzidos pelos professores em formação, segundo Garcia (1997). Este conhecimento não é transmitido, nem adquirido, nem é um conhecimento linear, mas produzido em sua trajetória de formação, quando confrontado com o processo de transformar em ensino seu objeto de estudo.

Assim sendo, embora constatemos nos cursos, algumas aproximações entre as duas culturas, como nos estágios supervisionados, nas atividades de práticas de ensino, nas disciplinas de instrumentação, ainda são de caráter pontual, aligeirado e superficial. Compreendemos, portanto, que tal fosso torna-se mais acirrado pelo próprio modelo hegemônico de formação, segundo Ramalho, Nuñez e Gauthier (2003). Neste, se misturam tendências próprias do racionalismo técnico e da

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formação academicista e tradicional. O futuro professor é concebido como um mero executor, reprodutor, consumidor de saberes produzidos pelos outros, pelos especialistas das áreas científicas, minimizando seu potencial de sujeito autor de conhecimento. Buscar uma resposta provisória para essa questão, nos fez examiná-la a partir da teoria das representações sociais (TRS), por favorecer-nos um enfoque psicossociológico. Partindo da dimensão simbólica evidenciada pelos licenciandos, dos discursos referentes às práticas que produzem em seus cotidianos acadêmico-escolares, as análises resultantes nos possibilitaram sugestões que incidirão de forma efetiva para os processos de reestruturação curricular dos cursos de licenciatura da UFRN.

A formação inicial de professores a partir de um enfoque psicossocial

Examinar a construção de representação acerca de objetos simbólicos, sob um enfoque psicossocial, requer algumas explicitações de cunho teórico-epistemológico referentes à própria Teoria das Representações Sociais (TRS). Moscovici (1978), (2003), ao propor a TRS, deduz que há formas de racionalidade na vida cotidiana, como uma forma de conhecimento particular situada entre o social e o psicológico, com o objetivo de intervir na realidade. Portanto, a nosso ver, uma compreensão psicossociológica acerca de qualquer fenômeno social requer primordialmente explicações acerca do seguinte princípio: Redimensionamento sobre os espaços de relação entre sujeito-objeto de conhecimento.

Considerar fenômenos à luz de uma nova epistemologia, a das RS, seria nas palavras de Carvalho (2003) romper com a lógica dicotômica entre homem-meio, sujeito-objeto, instituída nas visões racionalista e empirista. Pela ruptura da relação direta entre estas categorias, a dialética marxista explicitou essa historicidade através da idéia de mediação das relações, pressuposto mais realçado por Vygotsky e colaboradores nos anos 20.

Na perspectiva de constituição dos processos psíquicos superiores tipicamente humanos, os mediadores sociais interpostos na relação do homem com o meio, do sujeito com o objeto de conhecimento, indicados pelos instrumentos, pelos signos e pelos “outros”, trazem

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como função primordial a orientação externa, no caso específico dos instrumentos, refinando as maneiras de agir sobre o meio, e os mediadores internos, os signos, considerados como instrumentos psicológicos, à orientação interna, modificando o funcionamento psicológico do homem, pela ampliação das possibilidades de raciocínio, memória, planejamento e imaginação. “Aos outros” é designado por Vygotsky, o papel de mediador, no sentido de que a apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre sempre nas relações interpessoais, de tal forma que o sujeito, a partir dessas, reconstrói internamente as formas culturais de ação e pensamento, as significações, os usos da palavra com ele culturalmente compartilhados mediante o processo de internalização.

Numa breve articulação entre Vygotsky e Moscovici, poderíamos dizer que este amplia a relação entre sujeito-objeto de conhecimento, através da epistemologia das RS, pois as considera como mediadores psicossociais. Por constituírem-se nas elaborações cognitivas dos sujeitos (licenciandos), agora em coletividade, que relacionam seus processos simbólicos e de condutas na reconstrução dos seus objetos de formação (“Física” e “Ensinar”), seria considerar a não separação entre o universo externo de o universo interno do indivíduo ou do grupo, pelo fato de o sujeito coletivo e o objeto não serem forçosamente distintos. Em outras palavras, a explicação psicossocial para o fenômeno que o estudo se propôs, sedimenta-se na compreensão de que, no espaço de relação entre os licenciandos e seus objetos simbólicos, estão interpostos mediadores psicossociais, sistemas interpretativos do qual os novos objetos, “Física”, “Ensinar” são transformados em saberes úteis que têm uma função na tradução e compreensão da realidade pedagógica.

O que os leva a construírem representações sociais a respeito dos objetos simbólicos, aqui em analisados, segundo Moscovici (1978), (2003), é o fato dos licenciandos mesmo diante de práticas pedagógicas envolvendo situações diversificadas (pressão a inferência), possuindo interesses desiguais em relação ao objeto (focalização), e tendo defasagem e dispersão de informação sobre este, necessitam construir códigos comuns para classificar e nomear, de maneira unívoca, as partes de seu mundo, de sua história individual e coletiva. Desta forma, os licenciandos garantirão o consenso de opinião sobre os objetos

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representados “Física”, “Ensinar” como também, a comunicação entre seus pares e guia para suas condutas.

As RS são construídas e elaboradas a partir de dois mecanismos denominados por Moscovici (2003) de ancoragem e objetivação. A ancoragem é designada pelo processo de inserção do objeto ou das novas informações, das novidades que irrompem a realidade social, aos conceitos e imagens já formados anteriormente, na tentativa de torná-los familiares. Quando os sujeitos ancoram algo estranho e perturbador, sempre o fazem arraigando-o a um sistema particular de categorias preexistentes, comparando-o com um paradigma de uma categoria que pensam ser apropriada. “Ancorar é classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não existentes e, ao mesmo tempo, ameaçadoras”. (MOSCOVICI, 2003, p.61).

O segundo mecanismo de construção da RS é a objetivação. Entendida como o processo de materialização das abstrações, da corporificação dos pensamentos, tornando-o físico e visível o impalpável, pela transformação em objeto do que é representado. É reproduzir um conceito em uma imagem.

Moscovici (1978) as considera como sociais, por serem adquiridas e geradas na sociedade, e partilhadas socialmente mediante critérios de determinações ligadas à estrutura e às relações sociais. Caracterizadas por um processo criativo, de elaboração cognitiva e simbólica, tem como função orientar os comportamentos, interpretar a realidade, e uma função identitária que permite guardar especificidades dos grupos. Apreendê-las, nos serve de mote indutor de sugestões para repensarmos novas proposições curriculares para os cursos de licenciatura, no sentido de aproximar as duas culturas.

Os licenciandos, participantes deste estudo, estavam em espaços-tempos de apropriação de novas concepções do meio científico, e quando tais concepções chegam ao universo consensual, “através dos divulgadores, soam com estranheza” (AGUIAR; CARVALHO, 2003, p. 131). Torna-se necessário para compreensão das novas teorias, que os licenciandos troquem idéias, criem teorias, e representações decorrentes das transformações dos conceitos originais do universo reificado, tornando-os familiares. A partir de articulações entre as RS de “Física” e as RS do “Ensinar”, as tessituras psicossociais empreendidas pelos

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licenciandos, sinalizaram conteúdos simbólicos sobre como pensavam possíveis aproximações entre as duas culturas. Aquilatar as dimensões simbólicas dos licenciandos, na perspectiva psicossocial, possibilitou compreendermos como pensavam os conhecimentos científicos no enfrentamento com suas práticas pedagógicas, e como configuravam seus elementos identitários, mediante relações entre o campo disciplinar específico e o campo pedagógico.

Os caminhos da pesquisa

Como a RS trata de uma estrutura simbólica do pensamento coletivo, elaborada na fronteira entre o psicológico e o social, um estudo cuja abordagem é psicossociológica pressupõe, nas palavras de Roazzi, Fredericc, Carvalho (1999), considerar não apenas as estruturas e organizações cognitivas nas suas formas de interação e combinação, mas, primordialmente, o conteúdo e as origens sociais das mesmas. Sendo assim, tentaremos analisar, sob essa perspectiva, o pensamento dos licenciandos primeiramente sobre seu campo disciplinar específico “Física” e posteriormente sobre o “Ensinar”.

Usamos a Técnica da Associação Livre (TALP)1, que consiste numa técnica projetiva, permitindo o acesso às primeiras aproximações dos conteúdos latentes das RS, constitutivos do universo semântico sobre os objetos pesquisados: “Física” e “Ensinar”. Dos 50 licenciandos participantes da pesquisa, 20 participaram da TALP que geraram em suas evocações 120 palavras, das quais 60 referentes à palavra indutora “Física” e 60 referentes à palavra indutora “Ensinar”.

De acordo com a semelhança semântica dessas palavras produzidas na etapa da TALP, aplicamos o Procedimento de

1 A técnica de Associação Livre (AL) permite acender, pelas vozes dos participantes da

pesquisa, os elementos constitutivos do universo semântico sobre os objetos das representações sociais, bem como seu conteúdo e sua organização. A análise dos dados obtidos pela Associação Livre correspondeu a proposição de Grize, Vergés et Silem (1987 apud ABRIC, 1994, p. 66) que consideram e analisam o sistema categorial elaborados pelas pessoas da pesquisa. Foi permitido nos aproximar do conteúdo das representações, mediante três indicadores: a freqüência, a ordem do item na aparição das associações e a importância do mesmo para a pessoa quando solicitada a destacar qual dos três era o mais importante.

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Classificações Múltiplas (PCM)2 “Física” e o PCM “Ensinar”, demarcando a segunda etapa da pesquisa, duplicadamente aplicado a cada um dos outros 30 licenciandos.

Segundo Roazzi (1995), os estudos que propõem o PCM têm como interesse conhecer a maneira como os sujeitos pensam, sentem e se comportam em relação a importantes fatos e experiências da vida. Com relação ao PCM “Física”, foram oferecidas aos licenciandos 21 fichas e 24 para o PCM “Ensinar”. Estas, contendo as palavras advindas das TALP, deveriam ser organizadas em 02 até 06 grupos da maneira que parecesse mais conveniente ao licenciando. Tomávamos nota, em protocolo, da configuração construída pelo licenciando, além de registrar em gravador as justificativas que orientaram tal procedimento. Como veículo de representações sociais, a linguagem passou a ser objeto da investigação numa perspectiva de análise de conteúdo proposta por Bardin (1977).

A análise dos dados proveniente da aplicação dos PCM baseou-se na análise multidimensional, SSA3. Esta, a partir de julgamentos de similaridades, possibilita a conversão das distâncias e similaridades de natureza psicológica em distâncias euclidianas, de tal forma, que as configurações categóricas do pensamento dos licenciandos acerca dos objetos simbólicos, aqui em estudo, foram descobertas. Torna-se importante para a apreensão de como o fenômeno em estudo se apresentou, exatamente pela divisão do espaço em projeção em regiões, viabilizando a elaboração de hipóteses para o estudo das regionalizações

2 O PCM, diferentemente das metodologias tradicionais de apreensão do objeto a ser pesquisado, destacou o caráter qualitativo, não apenas das categorias, mas da construção do sistema de classificação que os licenciandos usavam nas interações que estabeleciam com o objeto. A utilização desse procedimento possibilitou condições para compreendermos seus sistemas conceituais enquanto sujeito individual, como dos próprios grupos aos quais pertencem. 3 A técnica de análise SSA (Smallest Space Analysis), traduzindo para o português: Análise dos menores Espaços é utilizada para analisar os conteúdos dos dados das Classificações Dirigidas do PCM. Consiste num escalonamento multidimensional não métrico, no qual o princípio é o de proximidade. Torna-se importante para a apreensão de como o fenômeno em estudo se apresentou, exatamente pela divisão do espaço em projeção em regiões, viabilizando a elaboração de hipóteses para o estudo das regionalizações criadas mediante a Teoria das Facetas, explicada por Bilsky (2003).

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criadas mediante a Teoria das Facetas, explicada por Bilsky (2003)4. Os resultados observados na análise SSA correspondente ao PCM “Física” é explicitado na figura 1 abaixo indicada:

Figura 1 – Análise da técnica SSA do PCM Física

A RS de “Física” é esquematizada a partir de conceitos,

enunciados e explicações sobre o que os licenciandos pensam sobre ciência racionalista e o trânsito simbólico por eles estruturado entre as categorias da “Física Ciência” e da “Física Conteúdo Escolar”, pelo viés da “Imaginação”. Tal segmentação simbólica permite aos licenciandos definir e classificar a transposição didática da Física, afirmando a necessidade de seus alunos imaginarem os conteúdos, como também instituírem práticas pedagógicas no sentido de relacionarem a Física ao cotidiano do aluno, minimizando a sua complexidade. Por isso, apelam

4 A Teoria das Facetas é um marco de referência como aplicativo a análises da estrutura de similaridades, esquematizando os diversos papéis que as facetas desempenham na análise multidimensional. Segundo o autor, essa teoria apresenta uma variedade de métodos para analisar dados, métodos esses que se destacam por um número mínimo de restrições estatísticas. Sua contribuição para esse estudo se destaca por facilitar expressões de suposições teóricas, isto é, hipóteses, podendo ser examinadas empiricamente suas validades. De tal forma que os dados empíricos refletirão às estruturas supostas previamente, desenvolvidos pela análise SSA.

Vida

Nasa

Movimento

Imaginação

Einstein

Aprendizagem

Transmissão de Conteúdo

Prática

Newton

Realidade

Lógica

Estudo

Cotidiano Conhecimento

Natureza Cálculo

Vontade

Entendimento Fenômenos

Dificuldade

Ciência

Física Conteúdo escolar

Física ciência

Atributos do aluno de Física

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para a “Vontade” de empreender exercícios práticos repetitivos. Como vemos em alguns trechos das justificativas do PCM:

Física como uma ciência que busca é o entendimento da realidade, que realidade como sinônimo de natureza [...] É ... usa muito a imaginação e a parte prática, a questão de testar e comprovar os fenômenos através da pratica. A natureza ela nunca diz nada pra gente, ela nunca é diz ah! É assim, assim que eu funciono. É... ela não tem nenhuma linguagem pra se comunicar com a gente. Sempre a gente tem que usar a imaginação, tentar interpretar o que talvez ele queira passar pra gente através da prática, fazer experiências e ela vai responder sim ou não (01/17). Aí ciência eu comparei com a imaginação e tem que ter a realidade em cima dessa imaginação pra você fazer ciência [...] Seria uma ciência que tenta é... nos mostrar o que ocorre, os fenômenos que ocorrem na natureza. Tenta nos provar através de algumas formulações matemáticas, o cálculo e através de algumas teorias que foram postas por determinados é..cientistas... (0124).

No caso da RS sobre o Ensinar, as categorias de pensamento

demonstraram quais os empréstimos que tais RS tomaram dos diversos domínios das relações estabelecidas dos licenciandos com o professor formador e suas experiências enquanto professores, ao enfrentarem a prática cotidiana da escola. Perpetuando experiências pedagógicas de cunho tradicional ao longo da vida escolar e também na universidade, os licenciandos ancoram o objeto simbólico “Ensinar” na Pedagogia Tradicional quando aproximam suas esquematizações no ponto “Transmitir Conhecimento”. É o que visualizamos na figura 2:

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Figura 2 – Análise da técnica SSA do PCM “Ensinar”

A RS dos licenciandos sobre o Ensinar se esquematiza em suas

operações lógico-discursivas, mediante a relação dicotômica entre eles e seus professores formadores, para quem atribuem características de cunho profissional, enquanto que, para eles mesmos, elegem, com maior proeminência, os atributos afetivos para o exercício da profissão. Essa configuração sugere uma queixa proveniente do amálgama entre à demanda da escola, que exige os atributos do “Ter para Ser” professores, e, ao mesmo tempo, quando estabelecem com o professor formador uma relação de referência identitária, percebendo, nestes, a ausência de tais atributos.

Transmitir conhecimento é difícil, muito difícil. É muito complicado. Tem que ter uma paciência de Jó pra fazer isso. Tem que ter muita paciência pra transmitir conhecimento. Há muita dificuldade nisso [...] ensinar dado o contexto do Brasil eu acho que é isso aqui: amor. Que senão.... coragem.... coragem de ensinar. Tem que ter amor do que está fazendo. A coragem de enfrentar as dificuldades (01/08). O estudo que a gente vê aqui é mais o tradicional sabe... professor é o que sabe e você que se vire...se a gente não aprender se vire aí... vá pesquisar ..não ta nem aí...em querer e dizer: qual é a sua dificuldade? Não tem uma

Paciência

Orgulho

Medo

Interagir

Não é Fácil

Coragem

Carisma

Amigo

Qualidade

Professor

Perseverança Conhecimento

Amor

Metodologia Contextualização

Aluno

FunçãoSocial

Escola

Dificuldade

Transmitir Conhecimento

Felicidade

Educação

Aprendizagem

Atributos do Ter para o Ser

Aluno - Licenciando

Enfrentamento com a Prática

Ação Educativa

Professor Formador

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interação professor-aluno, sabe... e quando eu cheguei aqui não tive comunhão com o professor... pô o cara é muito sábio...já vai chegando dizendo que é PHd em tal... fez doutorado não sei aonde...fora do País...e assusta né...ele chegar lá.... já chega como onipotente né...todo poderoso. Então os alunos quando eles chegam no primeiro semestre sentem esse impacto muito grande né...eu senti. Então aqui na faculdade, na área tecnológica não há interação aluno-professor. Então o aluno tem que ir atrás... buscar o conhecimento,

dificulta o processo de ensino aprendizagem (01/23).

Decorrente da fragilidade do modelo curricular do curso de

formação, e por não visualizarem os conteúdos simbólicos da dimensão afetiva nos próprios modelos identitários, reclamam a dimensão afetiva do “Ensinar” em caráter mandatório “é preciso ter” para “ser”. É o que lemos nos trechos de suas justificativas abaixo:

Transmitir conhecimento é difícil, muito difícil. É muito complicado. Tem que ter uma paciência de Jó pra fazer isso. Tem que ter muita paciência pra transmitir conhecimento. Há muita dificuldade nisso [...] ensinar dado o contexto do Brasil eu acho que é isso aqui: medo e amor. Que senão.... coragem.... coragem de ensinar. Tem que ter amor do que está fazendo. A coragem de enfrentar as dificuldades (01/08) amor... o cara tem que ter amor [...] tem que ter orgulho... do que faz. Eu gosto de ser professor. O professor tem que ter amor pela profissão, tem que gostar, tem que ter muito carisma, ele tem que ter orgulho do que faz (01/07). [...] bem pra ensinar a gente precisa de tudo isso ai. Amor, acima de tudo, amor pelo que faz, amigo você acaba formando no meio dos seus alunos. Precisa ter carisma e assim... tem que lutar por uma qualidade de ensino embora isso vá levar tempo. Ter bastante paciência e perseverança [...] aqui as qualidades do professor: coragem, e tem que gostar, trabalhar na educação ta comprometido, tem que é... olhar como é que ela ta hoje e saber que ela pode mudar (01/12).

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Algumas considerações: para não conclui, mas inquietar...

Apreendidas as RS acerca dos “objetos” simbólicos “Física” e “Ensinar” do grupo de licenciandos pesquisados, possibilitou nossa compreensão sob a perspectiva psicossocial, a respeito de conteúdos do percurso formativo para tal grupo, a partir do processo relacional com as figuras do aprender enunciadas por Charlot (2000). Por isso, a questão de “como vão se tornando professores” é respondida na medida em que articulamos as RS sobre os saberes-objeto do campo disciplinar específico com as do campo pedagógico expressado pelo termo “Ensinar” na relação com as figuras do aprender.

Constatamos sob o enfoque psicossocial que as relações com as figuras do aprender demarcaram pontos significativos. Referindo-se à primeira figura do aprender, a apropriação de saberes-objeto5, as articulações entre as RS de “Física” e as RS do “Ensinar” disseram respeito à transposição didática da Física Ciência concebida como ciência racionalista. Conteúdo emergido principalmente no item “Imaginação”, que se apresenta no sentido de idealização dos fenômenos a serem explicados pela Física Ciência ou, quando transformada em objeto de ensino.

A partir das discussões de Mellado e Carracedo (1993) sobre as influências e implicações das concepções dos professores sobre a natureza da ciência e suas atuações em aula, os autores estabelecem analogias entre a Filosofia da Ciência e a Aprendizagem das Ciências6. Os professores que concebem a ciência a partir do molde racionalista, por exemplo, tendem a ensinar aos estudantes a utilizar à lógica e o raciocínio abstrato. Os erros cometidos pelos estudantes, segundo essa concepção, apontariam como causa, a incorreta aplicação da lógica e do raciocínio abstrato formal.

5Neste estudo especificamente diz respeito ao Saber-objeto do campo disciplinar “Física” e ao Saber-objeto do campo pedagógico expressado pelo termo “Ensinar”. Esta figura refere-se aos exercícios que os licenciandos realizam em situações de atividades situadas em seus múltiplos espaços-tempos.Ou seja, referem-se às atividades práticas do Ensinar. 6 Os autores afirmam que essas analogias suscitam possibilidades de refletirmos essas questões. Contudo, demonstram o cuidado de não cairmos no reducionismo, pois a Educação é um fenômeno complexo e não devemos simplificá-lo.

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A segunda figura do aprender, imbricada à primeira, compreende três instâncias, como mostra Charlot (2000). A objetivação-denominação foi manifestada nas articulações entre as RS de “Física” e as RS do “Ensinar”, em seu caráter de fragilidade. Reconhecida pela conscientização da apropriação dos saberes-objeto, essa instância indicaria um domínio seguro, profundo e especializado. Característica essa negada, levando o grupo pesquisado a construírem RS. A não-familiaridade com os conteúdos científicos inerentes ao ser e fazer docente Andrade (2003) foram apontados primeiramente, pela complexidade de compreensão da Física Ciência, como também, a fragilidade da formação no campo pedagógico, quando, na sua transposição didática, indicavam a extrema dificuldade em enfrentar a prática, expressada pelo sentimento de “Medo”.

A segunda instância, a imbricação do eu consiste como possibilidade de ação, com seus efeitos e atos, a relacionamos com os mecanismos de objetivação e ancoragem das RS. Constatamos que a articulação entre tais mecanismos, no tangente a “Física” e a “Ensinar”, e a imbricação do eu, foram identificadas sob o enfoque psicossocial, quando o grupo de licenciandos ancorou o “Ensinar” na Pedagogia Tradicional, transmitir conhecimento, e a “Física” nas Físicas de Galileu e Newton. Com relação ao mecanismo da objetivação, as RS de “Física” referiram-se à visão popular de conhecimento científico e a RS de “Ensinar” na imagem do professor artesão. A articulação entre tais RS, “Física” e de “Ensinar”, na imbricação do eu, foi destacada quando mediatizadas pelos seus discursos, citando exemplos corriqueiros, que serviam de descrições quanto à Física newtoniana e em demonstração de situações de realidade de vida dos alunos. Designam, assim, os cálculos matemáticos como atividades pragmáticas de ensino. Porém, quando elegeram o professor formador como referencial de modelo identitário, e objetivaram suas RS sobre o Ensinar, no modelo de professor artesão, a imagem que construíram de si é sintomática. Queixas-reclamo foram produzidas ao apontarem a ausência dos atributos afetivos, elegidos indispensáveis na relação com o fazer pedagógico, mas, ao mesmo tempo, ausentes no referencial identitário.

A distanciação-regulação, terceira instância da figura do aprender foi referida ao domínio da atividade de dar aula, de Ensinar. Primordialmente, quando seus conteúdos representacionais apelaram

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para um fazer pedagógico baseado na didática tradicional de ensino-transmissão de conhecimento e aos exercícios repetitivos. A regulação, por consistir no dispositivo relacional empreendido na relação de construção dos saberes-objeto, indica a construção da imagem de si, que foi enunciada a partir da relação entre o grupo de licenciandos e seu professor formador e da relação especular entre eles mesmos e seus alunos de ensino fundamental e médio. Constatamos que esses mesmos conteúdos representacionais referendados nessa terceira instância, da relação epistêmica com os saberes-objeto, estenderam-se à figura do aprender denominada por Charlot de relação de identidade. Por ser um desdobramento da terceira instância Distanciação-regulação, a relação de Identidade, põe em jogo a construção de si mesmo, à medida que percorrem trajetórias de aproximação com os saberes-objeto em estudo.

As RS, aqui apreendidas serviram de indícios do perfil de identidade de cada um dos grupos. Pois, “a representação que um sujeito faz de um objeto é um bom indício do perfil de sua identidade”, (ANDRADE, 1998, p.144). Segundo a autora, o nosso EU imaginário é povoado por facetas identitárias, acionadas a partir de um “lugar” construído socialmente de forma dinâmica, dialética, pois supõe uma inter-estruturação entre a identidade individual e a identidade social dos atores sociais. Constatamos que, para o grupo de licenciandos em Física, participantes deste estudo, os elementos identitários assinalados nas articulações entre as RS de “Física” e de “Ensinar” advêm da relação antagônica entre eles e o professor formador, da relação especular entre eles mesmos e seus alunos de ensino fundamental e médio, e, sobretudo, quando enfrentam o fazer docente, devido às dificuldades impostas pelo próprio sistema educacional e pelas fragilidades do curso de formação inicial. A quarta figura do aprender, a relação social com os saberes-objeto, demonstra o posicionamento social dos licenciandos na relação com seus objetos, isto é, permaneciam na posição de alunos, embora estivessem no exercício docente, e cursando licenciatura.

Isto posto, urge oportunizar espaços profícuos entre as duas culturas. A princípio seria, em nossa concepção, tomar como referencial da reestruturação curricular dos cursos de licenciatura, o paradigma emergente, segundo Ramalho, Nuñez e Gauthier (2003). As relações dos licenciandos com seus saberes-objeto seriam ressignificadas, promovendo aprendizagens na acepção de Charlot (2000). Como

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desdobramentos, dentre outros aspectos, estaria o da formalização do saber no percurso da profissionalidade, a delimitação de um conjunto de saberes que definiria o perfil do profissional da educação. Estaria a proposição de espaços reflexivos que viabilizassem ação-reflexão-ação e pesquisa, no intuito de ressignificarem os conteúdos psicossociais aqui tratados, fazendo-os aproximar-se dos conteúdos científicos referentes aos objetos de estudo.

Sugerimos, para isso, a criação de um grupo de pesquisa e extensão promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN- Natal/ Brasil), grupo este interdepartamental, multidisciplinar, integrando professores formadores das áreas de educação que trabalhem com as disciplinas de fundamentos da psicologia educacional e da didática e os das áreas específicas das licenciaturas, com o objetivo de propor mudanças na formação inicial e continuada de professores da área de ciências, a partir da interação entre alunos de graduação, professores formadores e professores da educação básica da rede pública de ensino.

Os encontros seriam sistemáticos e abordariam temáticas básicas da práxis do currículo escolar, consubstanciadas por questões de ordem didático-epistemológica do aprender e do ensinar ciências, recriando o mundo da prática de uma forma reflexiva Schön (1997). Estes, com certeza, abriam diálogos profícuos entre as duas culturas, contrariando o modelo dominante vigente, caracterizado pela descontextualização, fragmentação dos saberes, distanciamento da teoria-prática. Referências ABRIC, J. C. A Abordagem estrutural das representações sociais. In: PAREDES MOREIRA, A. e D. C de Oliveira. Estudos Interdisciplinares de Representações Sociais. Goiânia: AB Editora, 1998. p, 27-38.

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Recebido em 14/11/09. Aprovado em 13/04/10. ABSTRACT: PSYCHOSOCIAL WEB OF MEANINGS: THE CHALLENGE OF EDUCATING PHYSICS STUDENTS IN TWO CULTURES The purpose of this study is to analyze, in view of the Theory of the Social Representations, how future majors in Physics become teachers by means of the relations between their social representations (SR) about Physics and the act of teaching. The sample was constituted by 50 futures majors in initial formation, and data collection was carried out through free-association technique an multiple classification procedure. The treatment of data was done through content analysis and multidimensional analysis procedures named MSA (Multidimensional Structuple Analysis), and SSA (Smallest Space Analysis). The results showed that SR about Physics was thought as rationalist science, based on the combination of Galileo and Newton‟s Physics, and materialized as scientific knowledge by the popular conception. Otherwise, SR about teaching, anchored to the traditional Pedagogy, is materialized through the idea of the teacher as an artisan. These SRs show Physics as a very difficult scientific understanding which is didactically presented as knowledge transmission. Thus, learning of Physics depends on the mathematical competence of the student, and repetitive exercises. One concludes that it is vital to create a multidisciplinary and interdepartmental group provided by the University in order to organize systematic spaces to continual formation, and so other reflections about the

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practice of the school curriculum with the participation of the teachers of the school system, future majors, and university teachers. Keywords: Physics Teaching. Social Representations. Teacher Education. RESUMEN: REDES PSICOSOCIALES DE SIGNIFICADOS: EL DESAFÍO DE EDUCAR A ESTUDIANTES DE LA FÍSICA EN DOS CULTURAS El propósito de este estudio es analizar, debido a la teoría de las representaciones sociales, como estudiantes de física se están convirtiendo en maestros a través de las relaciones entre sus representaciones sociales (RS) sobre la física y sus representaciones sociales (RS) sobre la enseñanza. Los sujetos fueron 50 estudiantes en la formación inicial, y la colección de datos fue realizada con Técnica de la Libre-asociación y Procedimiento de la Clasificación Múltiple. El tratamiento de los datos fue hecho con análisis del contenido y los procedimientos multidimensionales del análisis de la SSA (el análisis más pequeño del espacio). Los resultados demostraron la RS de la Física concebida como la ciencia racionalista, anclado en la mezcla física de Galileo y Newton, y objetivado en la opinión popular de los conocimientos científicos. RS en la enseñanza, anclada en la pedagogía tradicional, y objetivado en la imagen de figuras del profesor como artesano, tales representaciones sociales, cuando interconectado cada, muestra la física como una ciencia difícil de entender y didáctico adaptado de un modelo de transmisión de conocimiento. Su aprendizaje, como resultado de la competencia matemática de los estudiantes, a través de ejercicios repetitivos. Es indispensable la creación de un grupo interdepartamental, multidisciplinario patrocinado por la Universidad en las áreas de educación permanente, para llevar a cabo debates sobre la práctica de los planes de estudios con la participación de los profesores de la escuela, los maestros de los estudiantes y profesores universitarios. Palabras claves: Enseñanza de la física. Representaciones sociales. Formación del profesor.

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A GRAMATICALIZAÇÃO DOS GÊNEROS NA ESCOLA: UM OLHAR SOBRE O SCRAP DO

ORKUT*

Vicente de Lima Neto **

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de analisar o scrap como gênero digital que pode se constituir de misturas de gêneros, e relacioná-lo ao ensino dos gêneros nas escolas, que os veem apenas como formas linguísticas limitadas a uma determinada estrutura composicional. Para tanto, utilizamo-nos dos conceitos de gênero de Bakhtin (1997), Swales (1990) e Marcuschi (2000), os quais focalizam o caráter maleável e dinâmico dos gêneros. Com base em um mapeamento que fizemos dos padrões genéricos que aparecem no espaço destinado à escrita de recados no Orkut, verificamos que o scrap pode se constituir de forma híbrida, o que possibilita mostrar quão maleável ele o é. Além disso, baseamo-nos em dois livros didáticos que trabalham com a disciplina de Redação, os quais serviram como modelo para explanar o que é ensinado na escola sobre gêneros. Os resultados encontrados nos mostram que a realidade empírica dos gêneros difere do que é exposto aos alunos nas escolas, deixando-lhes alheios à riqueza cultural propiciada pelo conhecimento do real funcionamento dos gêneros. Palavras-chave: Scrap. Gênero digital. Ensino de gêneros.

Considerações iniciais

O ano de 1995 viu a chegada da Internet no Brasil. Desde então, muitos tipos de texto e muitos gêneros passaram a ter novos contornos, já que tiveram de acompanhar as novas tecnologias e se adaptar a elas. O que aconteceu, no nosso entender, é que, a partir daquele ano, uma nova perspectiva da história da análise dos gêneros começou a ser construída.

A Web trouxe consigo gêneros diversos, surgidos a partir das necessidades dos internautas de se comunicarem pela rede mundial de

* Agradeço a leitura crítica dos colegas doutorandos Kennedy Nobre e Elaine Forte Ferreira, os quais trouxeram muitas contribuições para este trabalho. Assumo toda a responsabilidade por problemas remanescentes. ** Doutorando em Linguística pela UFC. Bolsista CNPq e Membro do grupo de pesquisa Hiperged da UFC. E-mail: [email protected]

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computadores. Crystal (2005) atribuiu à chegada da internet uma grande revolução na linguagem, pois, ao que parece, ainda não se sabe até onde essas novidades trazidas pela tecnologia poderão mudar a forma de enxergar a língua em uso.

Enquanto 1995 foi um marco pela chegada de novas formas de comunicação no Brasil, 2004 foi outro marco na história da Internet, pois foi quando surgiu o site de relacionamentos Orkut. Desde então, sites dessa natureza se popularizaram rapidamente, convocando internautas de todas as partes do mundo com uma rapidez inimaginável. Naturalmente, a comunicação interna, nesses sites, também se dá por gêneros diversos, os quais foram adaptados de outras realidades externas ao meio virtual e foram se moldando ao novo ambiente. Com o tempo, de mudanças tão profundas que sofreram ao migrar para a Web, gêneros digitais foram considerados novos.

Essa realidade parece não ser compartilhada pela escola. Ainda se ensina como produzir cartas e telegramas de forma que a estrutura desses gêneros é repassada como se eles fossem engessados, levando ao que Bonini (2007) chama de gramaticalização dos gêneros, quando, na verdade, deveríamos também ensinar aos alunos como se produzir um fórum de discussão e um blog pessoal, por exemplo, e mostrar o quão volátil eles são, assim como praticamente o são todos os gêneros discursivos.

No Orkut, sobressai o scrap, que tem um percurso histórico de seis anos e estima-se que este seja o gênero mais utilizado pelos orkuteiros diariamente, para atender aos mais variados propósitos, desde um simples cumprimento até as complexas práticas de noticiar um fato ou divulgar um produto por meio de semioses diversas.

Neste trabalho, temos o objetivo de tratar o scrap como um gênero digital que resguarda em sua constituição a possibilidade de mesclar gêneros diversos, mostrando quão plásticos e maleáveis são os gêneros, fato que, como veremos, parece ir de encontro ao que é ensinado na escola, quando, muitas vezes, eles são enrijecidos, como se fosse impossível, por exemplo, eles se misturarem.

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Dos gêneros Com os estudos do pensador russo Bakhtin (1997), o conceito de

língua passou a girar em torno da prática interacional1. Para ele, a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, que emanam de uma ou doutra esfera da atividade humana. A partir daí, as reflexões acerca das construções genéricas avançam na medida em que os gêneros passaram a ser conhecidos como formações inerentes ao cotidiano de uma dada sociedade, e não um mecanismo de ornamentação da língua, pertencente somente às áreas da literatura e da retórica, como se acreditava desde a Grécia Antiga. Gênero passa a ser visto como um tipo relativamente estável de enunciado inserido em uma determinada esfera da comunicação humana.

Marcuschi (2008, p. 15) argumenta que parece que para Bakhtin era mais importante frisar o relativamente do que o estável. [...] do ponto de vista enunciativo e do enquadre histórico-social da língua, a noção de relatividade parece sobrepor-se aos aspectos estritamente formais e captar melhor os aspectos históricos e as fronteiras fluidas dos gêneros. (grifos do autor)

Nessa perspectiva, argumentamos que essa relatividade é ainda mais latente na Web. Neste ambiente, para nós, onde as mesclas das mais variadas naturezas são extremamente comuns, ajustamos a lupa para o scrap. Com ele, cai por terra qualquer teoria de gênero que dê mais atenção à forma, pois acreditamos que ele se efetive muito mais em “formas culturais e cognitivas de ação social” (MARCUSCHI, 2008, p. 16), tendo em vista que os padrões estruturais do scrap são ainda difíceis de serem estabelecidos.

Mesmo analisar o scrap sob a ótica do conceito bakhtiniano de gênero constitui um certo risco, pois não parece que o pensador russo dê vazão a gêneros multimodais (até por razões óbvias, Bakhtin jamais viu, nem previu, a Internet e suas potencialidades enunciativas).

1 É verdade que a obra de Bakhtin ficou alheia à Linguística por muito tempo – tomou-se conhecimento de suas obras apenas na década de 1970 – entretanto, suas ideias questionando a língua como prática interacional remetem a escritos da década de 1920.

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Para aliar essas novas potencialidades enunciativas ao conceito de gênero, chamamos para a discussão a contribuição trazida por Swales (1990, p. 58)2, para quem os gêneros são

Uma classe de eventos comunicativos, cujos exemplares compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos membros mais experientes da comunidade discursiva original e constituem a razão do gênero. [...] Além do propósito, os exemplares do gênero demonstram padrões semelhantes, mas com variações em termos de estrutura, estilo, conteúdo e público-alvo.

Entendemos que essa “classe” diz respeito ao conjunto de todas

as realizações de um enunciado já produzidas e que serão produzidas sob o rótulo de um mesmo gênero. Como pondera o autor, é impossível que esse conjunto seja totalmente homogêneo. É natural que variações aconteçam, tanto na estrutura, quanto no estilo e/ou no conteúdo.

No caso do scrap, tem-se um propósito comunicativo geral, que é transmitir uma mensagem rápida a um interlocutor que não está no mesmo plano físico que o enunciador, mas variados propósitos comunicativos específicos, como convidar, agradecer, flertar, repassar informação, anunciar etc. Para nós, ao contrário de Bhatia (1993), que defende que a mínima mudança no propósito já permita afirmar que se trata de um outro gênero, entendemos que esses diferentes propósitos específicos não têm força suficiente para mudar o gênero, já que, embora os coenunciadores das mensagens reconheçam propósitos comunicativos distintos de um scrap para outro, a enunciação do Orkut também acionará, cognitivamente, os esquemas dos usuários informando que ali se vê um recado digital ou algo que se aproxime dele, embora haja, com as novas tecnologias permitidas pela hipertextualidade, muitas formas de se passar um recado.

2Tradução nossa de “A genre comprises a class of communicative events, the members of which share some set of communicative purposes. These purposes are recognized by the expert members of the parent discourse community, and thereby constitute the rationale for the genre. […] In addition to purpose, exemplars of a genre exhibit various patterns of similarity in terms of structure, style, content and intended audience”. (SWALES, 1990, p. 58).

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Essa característica de reconhecimento cognitivo é defendida por Marcuschi (2000), quando defende o gênero como um constructo sociocognitivo. Eles são entendidos como “modelos cognitivos gerais”, ou seja, há uma representação conceitual que é identificada intuitivamente pelos membros de uma dada comunidade. Diante dessa representação, há o reconhecimento de um dado gênero materializado em um contexto específico. Talvez este ponto de vista sobre o gênero seja o mais interessante para se estudar os gêneros digitais. Dos gêneros digitais

Defendemos que a Internet é um espaço de práticas humanas e

que sua natureza técnica permite ser o lócus das misturas de diferentes linguagens por excelência. A Internet admite, por exemplo, o encontro de vários domínios discursivos, como o jornalístico, o publicitário, o pedagógico, para citarmos apenas estes; a co-ocorrência de diferentes semioses que se mesclam entre escrita, som e imagem nos diversos gêneros internetianos; e a mistura de muitos padrões genéricos, característica esta que nos interessa, por ser um dos traços inerentes ao scrap, ou seja, não que todos os scraps sejam híbridos, mas está em sua natureza a possibilidade de mesclar gêneros.

Há muito se questiona se os gêneros surgidos no ambiente eletrônico trazem, de fato, novidade ou são apenas modificações e adaptações dos já existentes. Para Huckin (2007, p.77), embora os gêneros digitais se pareçam, em certos aspectos, com os de fora da Web, a maneira de interagir com eles é radicalmente distinta devido, entre outros fatores, à velocidade, sendo que

é mais do que apenas a velocidade – embora essa seja a diferença mais fundamental […] – é também a criatividade que seus usuários trazem para produzi-los. Soma-se a isso a natureza mais pública desses gêneros, e a circulação da informação […] Tudo isso, e mais, clama para eles serem considerados novos gêneros, e não apenas novas tecnologias3.

3 Nossa tradução de: It´s more than just speed – although that´s the most fundamental difference […] - it´s also the creativity that users bring to bear. Plus the more public

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Em suma, embora haja uma contraparte dos gêneros digitais fora

da Web – resultado de uma transmutação de gêneros, segundo Marcuschi (2005) –, os enunciados que se constituem na interação virtual podem ser considerados novos, já que as mudanças por que passam são de natureza tamanha – incluindo estrutura, conteúdo, propósitos e relações do usuário com o gênero – que não podem receber a mesma nomenclatura que o seu enunciado de origem.

Crowston e Williams (1997), que estão entre os pioneiros nos estudos sobre gêneros digitais, apontam três tipologias para caracterizá-los: gêneros reproduzidos, aqueles já existentes reproduzidos em uma nova situação, como, por exemplo, o artigo científico, que pode ser simplesmente movido para a Internet intacto, ou seja, sem alterações de sua versão impressa; gêneros adaptados, aqueles que foram moldados para se adaptar a um novo meio, como, o mesmo artigo científico, mas com adaptações com links para outras informações, por exemplo; e gêneros emergentes, os pensados e desenvolvidos especificamente para o novo meio, satisfazendo as especificidades da Web, como, a homepage4.

Como o texto data de 1997, até então os gêneros utilizados à época não levavam em conta todos os novos elementos já trazidos pela Web 2.05. Logo, se antes já era difícil apontar os limites entre esses três tipos de gênero, hoje fica ainda mais inviável, pelo fato de as características da hipertextualidade estarem ainda mais latentes em cada enunciado na Internet. O scrap, por exemplo, quando surgiu, era nada mais do que um gênero adaptado (no caso, do bilhete), já que permitia somente textos curtos, sem a possibilidade de nenhum recurso multimodal ou hipertextual. Hoje ele pode se enquadrar perfeitamente

nature of these genres, and the currency of the information […]. All of this, and more, calls for them to be considered new *genres*, not just new technologies. (p. 77) 4 Há autores, como Marcuschi (2005), que não concordam com a genericidade das homepages. Para o autor, elas funcionam muito mais como um serviço do que como um gênero. 5 Entendemos Web 2.0 como uma evolução da plataforma da Internet. Ela chegou em 2004 e propiciou o aumento da largura da banda, ocasionando uma maior velocidade na conexão à Internet e permitindo, dentre outras coisas, recursos antes impossíveis na Web 1.0, como os vídeos do Youtube, o Google Talk, no Orkut, as figuras animadas em muitos sites, inclusive no Orkut etc.

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nos emergentes, ao passo que permite construções enunciativas das mais variadas naturezas.

O interessante é que, ao que parece, a tipologia sugerida pelos linguistas constitui-se, na verdade, de um contínuo, a partir do momento em que os gêneros digitais, quando chegaram à Internet, eram nada mais do que reproduzidos. Com o tempo, passaram a se adaptar ao meio, até chegar à emergência, diante de mudanças profundas, sejam na estrutura, sejam no conteúdo ou no estilo, permitindo o surgimento de um novo gênero. Levantamos a hipótese de que o scrap se enquadra nisso.

Da genericidade do scrap

Todorov (1980, p. 10), teórico da literatura, já se questionava sobre a gênese dos gêneros: “De onde vêm os gêneros? Pois bem, simplesmente de outros gêneros”. Sob essa afirmação, entendemos que o scrap também não surgiu por geração espontânea. Ele tem uma contraparte fora do ambiente digital, que é o gênero bilhete. Há muito poucos trabalhos sobre este último gênero na literatura especializada; então, nossas considerações, aqui, sobre ele partirão de observações pessoais, com a consciência de serem afirmações bastante incipientes.

Entendamos, então, que o bilhete é um gênero que tem como propósito comunicativo geral estabelecer uma comunicação simples e rápida com alguém que não se encontra no mesmo plano físico (ou que, pelo menos, dois interlocutores não tenham a possibilidade de se manifestar oralmente num mesmo ambiente, como dois alunos numa sala de aula, por exemplo). Mas é importante salientar que ele pode ter variados propósitos comunicativos específicos, como convidar, agradecer, felicitar, lembrar, cumprimentar, pedir, anunciar, dar uma má notícia etc. Para nós, mesmo diante de múltiplos propósitos, o fato de as condições de enunciação, e até mesmo as fórmulas linguisticamente padronizadas, serem relativamente às mesmas garante ao bilhete, ao recado e ao scrap o status de gênero. Isso se relaciona à proposta de Swales (1990), que entende o gênero como uma “classe de eventos comunicativos”. Obviamente todas essas realizações não constituirão um padrão, afinal, os gêneros são plásticos e maleáveis e, em função disso, apresentam certas variações em sua estrutura, em seu estilo e, no caso de

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notícias, de cartas pessoais, dos bilhetes e dos scraps, no conteúdo e nos propósitos específicos.

O enunciado presente na figura 2, abaixo, se enquadraria perfeitamente em um papelzinho trocado entre alunos numa sala de aula, por exemplo. Então, no exemplo citado, parece ter havido uma transferência do gênero bilhete para o ambiente digital. Diríamos que se encontra num limiar entre um gênero reproduzido e um adaptado, na terminologia de Crowston e Williams (1997).

Figura 2 – O scrap clássico Eis um exemplo do clássico scrap. Como pode ser observado, este

exemplo, coletado em 2007, ainda mantinha as mesmas características de quando ele surgiu, em 2004. É fato que se trata um gênero, como já demonstrado por Martins (2007), por ser um texto de cunho epistolar, no qual se encontra uma mensagem curta, com um traço informativo.

Rotinas comunicativas (SILVA, 2002), como vocativo, saudação e despedida, típicas dos gêneros epistolares, podem aparecer no scrap, entretanto, podem sofrer certa variação em decorrência do meio. A estrutura (mensagem curta, de cunho informal), o conteúdo (que remete a um tema íntimo, dependente da relação de proximidade dos interlocutores) e o propósito comunicativo (convidar) estão entre marcas do gênero bilhete, ou seja, é possível falar em uma transmutação do gênero para o ambiente virtual.

Essa transmutação aponta para uma certa tradição discursiva de epistolaridade do scrap. Nessa direção, um dos argumentos que nos faz levantar a hipótese de tratar o scrap como gênero é sua historicidade. Agora, vejamos um outro exemplo:

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Figura 3 – Felicitação?

O questionamento na legenda da figura é intencional. Um coenunciador qualquer faria a leitura do que há de mais saliente (KRESS e VAN LEUWEEN, 1996) no enunciado, que é a felicitação pela Páscoa. Trata-se de um link de um site especializado em envio de mensagens, que, ao ser transposto para o scrapbook, forma uma figura (no caso, o cartão). Agora, analisando a seta não pontilhada, vemos o enunciado “Netooooooo, comendo muito chocolate????”, que é uma mensagem enviada pelo enunciador. Naturalmente, por ser um exemplo coletado na época da Páscoa, o enunciador faz referências a chocolates, produto tradicional nesta época do ano. Por si, esses dois enunciados (o cartão de felicitação + o recado) já permitiriam uma mescla de gêneros. O enunciado é, naturalmente, relacionado à figura, mas poderia existir sem ela. Além disso, aparecem em planos distintos, pois a figura, na verdade, trata-se de um link, e o enunciado está no scrapbook. Vale também ressaltar o que mostra a seta pontilhada (a marca do site que potencializa o cartão digital) e o que está em destaque no retângulo: “RecadosOnline – As melhores animações para a Páscoa”. Trata-se de um link para o site em questão, com um propósito puramente mercantilista, buscando que o

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coenunciador, ao receber a mensagem, de imediato visite o site que está sendo promovido. É uma característica dos gêneros publicitários.

A questão é que temos, então, resquícios de pelo menos três gêneros: do cartão digital (a felicitação em si), do recado (a mensagem do enunciador para o coenunciador) e do anúncio (por meio dessa promoção que mostramos), o que caracteriza uma mistura de gêneros. Ao que parece, essa mistura é praticamente imperceptível para o usuário do scrap, por já serem extremamente comuns misturas dessa natureza. Entendemos que o usuário deste evento comunicativo enxergará somente uma realização linguística, o scrap, embora ele possa se constituir de forma híbrida. Então, entender o gênero como um constructo sociocognitivo nos permite afirmar que o reconhecimento desse objeto se dá não apenas pelo que aparece visualmente, mas, sobretudo, por representação da prática de linguagem que se vai exercer.

O scrap, no nosso entender, reflete as práticas culturais, que transbordam misturas e flexibilidades nos mais variados âmbitos. Ele é só um exemplo do quão maleável são os gêneros discursivos, característica esta que parece fugir ao controle dos professores de Redação. Como ocorre a transposição de gêneros para o ambiente escolar? E os gêneros na escola?

Enquanto teóricos analistas de gêneros mostram pesquisas enfatizando o caráter plástico desses artefatos sociais, a escola parece ir pelo caminho contrário. Estudiosos como Bonini (2007) e Barros e Nascimento (2007) já realizaram estudos convocando para o problema da transposição didática dos gêneros. O que se questiona é o fato de geralmente não se levar em conta eventos comunicativos como o scrap, que ignora, muitas vezes, limites estruturais e se constitui de mesclas, mostrando que os gêneros discursivos são extremamente dinâmicos e maleáveis e assumem variações a depender de elementos como o propósito comunicativo, os interlocutores envolvidos na interação, o contexto, o suporte etc.

Na opinião de Schneuwly e Dolz (2004, p. 81), o que acontece é que “o gênero trabalhado em sala de aula é sempre uma variação do gênero de referência”, ou seja, embora haja um esforço por parte da

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escola para a criação de um contexto que se aproxime da realidade de uso de um determinado gênero, do que os alunos terão, no máximo, uma realidade paralela, fictícia, o que não permitirá que se produza essa ferramenta de comunicação para circular socialmente. A partir daí corre-se o risco de haver a gramaticalização do gênero, pois, na sala de aula, “ao não contemplar as práticas sociais, principalmente a prática inovadora e significativa do aluno, o gênero tende a se tornar uma repetição automatizada e desancorada da subjetividade de quem o utiliza” (BONINI, 2007, p. 70). Logo, pelo fato de se privilegiar a produção textual nas escolas, parece que o propósito do ensino de gêneros é voltado para o reconhecimento de suas características. Nestes termos, embora os alunos utilizem muitos gêneros digitais, como o scrap, é pouco provável que os gêneros sejam ensinados na escola com outros propósitos, além dos voltados para o ensino/aprendizagem dos discentes.

Para ilustrar nosso posicionamento, trazemos a análise de um excerto da obra de Cereja e Magalhães (2004a, p. 47)6, que traz o seguinte texto para explicar gênero:

Quando interagimos com outras pessoas por meio da linguagem, seja a linguagem oral, seja a linguagem escrita, produzimos certos tipos de textos que, com poucas variações, se repetem no conteúdo, no tipo de linguagem e na estrutura. Esses tipos de texto constituem os chamados gêneros textuais e foram historicamente criados pelo ser humano a fim de atender a determinadas necessidades de interação verbal [...]

O conceito trazido pelos autores tem bases epistemológicas

bakhtinianas, as quais entendem o gênero como um artefato social, produzidos historicamente com a finalidade de atender às necessidades enunciativas dos sujeitos. Entretanto, ao aplicar este conceito na explicação de um dado gênero, os autores tendem a se trair, a partir do

6 A opção desta obra para análise parte de sua escolha como uma das opções do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (BRASIL, 2004), programa que prevê a distribuição de livros didáticos para alunos do ensino médio brasileiro. Informação disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EnsMed/port_1818.pdf. Acesso em: 23 mar. 2010.

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momento em que amarram o gênero a uma determinada estrutura composicional e a um determinado propósito. Vejamos:

[A crônica] é um texto que narra de forma artística e pessoal fatos colhidos no noticiário jornalístico ou no cotidiano; geralmente é curto e leve, escrito com o objetivo de divertir o leitor e/ou levá-lo a refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos [...] emprega-se geralmente a variedade padrão informal e apresenta linguagem simples e direta, próxima do leitor. (CEREJA E MAGALHÃES, 2004b, p. 81)

No que diz respeito à forma, a definição acima, para o gênero

crônica, é limitada aos padrões da sequência narrativa. No que diz respeito ao conteúdo, o assunto tem de ser de cunho jornalístico ou cotidiano; já quanto ao estilo, a linguagem deve ser simples, mais próxima do leitor, característica que deve ser atribuída ao seu meio de veiculação, geralmente jornais. Ao que parece, o advérbio geralmente, empregado por duas ocasiões, surge como uma espécie de estratégia por parte dos autores de se eximirem da responsabilidade de serem radicais ao engaiolar o gênero somente a uma determinada forma, o que permite a aceitação de uma crônica que não siga os padrões elencados por eles, pelo menos teoricamente. O problema é que, por ser um discurso pedagógico, e por este conteúdo estar numa gramática, é natural que os alunos só produzam crônicas amarrando o seu texto a essas características, como se fugas a essa formatação fossem uma quebra das expectativas do leitor que se depara com este gênero. É provável que, na escola, textos que fujam aos traços apresentados pelo livro didático sejam punidos.

Trazemos para a análise também duas propostas de produção textual para alunos do ensino médio brasileiro:

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Figura 4: Proposta de redação do Enem 2008 Fonte: www.mundodovestibular.com.br/articles/4846/1/Prova-ENEM-2008/Paacutegina1.html

Figura 5: Proposta de redação do Enem 2009 Fonte: http://educaterra.terra.com.br/vestibular/correcao/enem2009/redacao/lista_noticias.htm

Os dois textos acima são as propostas de redação do Exame

Nacional do Ensino Médio (ENEM)7 de 2008 e de 2009, respectivamente. O fato de ser uma prova aplicada como requisito para ingresso em muitas universidades brasileiras nos autoriza a analisar as propostas de produção textual, as quais exigem do candidato a competência de desenvolver um “texto dissertativo”, em 2008, e um

7 O Enem é um exame criado pelo Ministério da Educação com o fim de avaliar a qualidade do ensino médio no Brasil. Aplicado desde 1998, a partir de 2009 pôde ser utilizado como a forma exclusiva de ingressar em mais de vinte universidades federais do país. Informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ENEM. Acesso em: 28 mar. 2010.

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“texto dissertativo-argumentativo” em 2009 acerca de um determinado tema8.

Embora seja uma prova elaborada pelo Ministério da Educação, a formatação das propostas de produção textual do Enem, ao que parece, vai de encontro aos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999), que, no que diz respeito ao ensino de língua, sugere que o gênero textual (ou discursivo) seja colocado como questão central. Exigir que um aluno produza um “texto dissertativo” não leva em conta toda a base que deveria ter sido construída, nos ensinos fundamental e médio, acerca da noção de gênero, mas, sim, o conhecimento, na verdade, de uma sequência textual, a saber, a argumentativa, que, nas escolas, muitas vezes é substituída por “dissertativa”, ainda resquício de práticas escolares de mais de duas décadas, que consideravam como gêneros apenas a “dissertação, a descrição e a narração”. Esses conhecimentos não dizem respeito a um gênero, mas, sim, a uma habilidade de organizar o seu texto, podendo ser o narrar, o descrever, o instruir, o expor ou o argumentar, como é o caso em específico.

Ao que tudo indica, o Enem serve como uma espécie de termômetro para avaliar como se dá a transposição da teoria dos gêneros para a escola. Como ele é um exame elaborado pelo Governo Federal, isso nos autoriza a construir a hipótese de que o Enem é um espelho do que acontece no ensino de língua no país, um exemplo mais próximo do que se chama a atenção há certo tempo: a gramaticalização dos gêneros na escola, que decorre “da adoção de uma postura prescritivista” (BONINI, 2007, p. 58).

Como o Enem, agora, será utilizado, por mais de vinte universidades federais, como nova forma de seleção9, substituindo o vestibular, é provável que as escolas moldem o seu material didático para atender às propostas do exame. Corre-se o risco, então, de o ensino de gêneros ficar ainda mais gramaticalizado, a partir do momento em que só se exige a produção de uma dissertação, deixando à margem outros gêneros que já vinham sendo ensinados no âmbito escolar.

8 As propostas do Enem geralmente trazem textos-suporte sobre o tema em questão, para auxiliar os candidatos em sua produção. Não os colocamos nesta análise por ocuparem um espaço desnecessário, já que não serão levados em consideração. 9 Este artigo foi desenvolvido nos meses de fevereiro e março de 2010, quando estava em voga a proposta de as universidades aderirem ao Enem como processo seletivo.

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Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi descrever o scrap como um gênero

que pode se constituir de forma híbrida, relacionando este fato à transposição dos gêneros para a escola, que os gramaticaliza, muitas vezes. Embora encontremos obras, como a de Cereja e Magalhães (2004), que seguem a proposta dos PCN no que diz respeito ao ensino de língua materna a partir de gêneros, vê-se que ainda se encontram problemas na metodologia apresentada para isso, a partir do momento em que se criam camisas de força para eles.

Além disso, exames como o Enem, voltados para o público que deseja ingressar numa universidade, parecem ir de encontro à proposta do conhecimento de gêneros, a partir do momento em que mostra práticas que exigem do aluno apenas o domínio de uma determinada sequência textual. Este fato apenas espelha o ensino de língua materna nas escolas, uma prova do quão gramaticalizados os gêneros se encontram naquele ambiente.

Em suma, é necessário que os muros que são impostos aos alunos no ensino/aprendizagem de gêneros sejam derrubados, permitindo que a escola seja uma expansão das práticas de linguagem que ocorrem fora dela. É fulcral que os alunos tenham conhecimento da realidade empírica dos gêneros e compreendam como eles funcionam e quão maleáveis são, de forma que gêneros como o scrap, por exemplo, que praticamente ignora fronteiras estruturais, sejam-lhes apresentados na escola.

As mesclas de gêneros são, na verdade, reflexos de práticas culturais. Negá-las é privar o aluno de uma riqueza cultural grandiosa e de uma reflexão bastante crítica no que diz respeito ao real funcionamento dos gêneros numa dada sociedade. Referências BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1953] 1997.

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Recebido em 13/12/09. Aprovado em 14/04/10.

ABSTRACT: THE GRAMMATICALIZATION OF GENRES AT SCHOOL: A LOOK AT THE SCRAP OF ORKUT This paper aims to analyze the scrap as digital genre can be a mixture of genres, and relate it to the teaching of genres in schools, that they see just how linguistic forms limited to a particular compositional structure. Therefore, was used the concepts of genre from Bakhtin (1997), Swales (1990) and Marcuschi (2000), which focus on flexible and dynamic character of genres. Based on a mapping that we have the generic standards that appear in the space reserved for writing messages on Orkut, we find that the scrap can be a hybrid form, which enables show how malleable he is. In addition, we rely on two books teaching working with the discipline of Writing, which served as a model to explain what is taught in school about genres. The results show that the empirical reality of gender differs from what is exposed to students in schools, leaving them outside the cultural wealth brought about by the knowledge of the actual operation of genres.. Keywords: Scrap. Digital genre. Learning genres.

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RESUMEN: LA GRAMATICALIZACIÓN DE OS GÉNEROS DISCURSIVOS EN LA ESCUELA: UNA MIRADA EN LO SCRAP DEL ORKUT Este trabajo tiene como objetivo analizar el scrap en el digital de gênero puede ser una mezcla de géneros, y e refieren a la enseñanza de la de género en las escuelas, que ven cómo las formas linguísticas limitada a una estructura de composición particular. Por tanto, se utilizó, en los conceptos de género Bakhtin (1997), Swales (1990) y Marcuschi (2000), que se centran en el carácter flexible y dinámico de géneros. Sobre la base de uma recopilación de datos que enemos los estándares genéricos que aparecen en el espacio reservado para la escritura de mensajes de Orkut, nos encontramos con que la chatarra puede ser una forma híbrida, que permite a mostrar cómo maleable que es. Además, contamos con dos libros de trabajo con la enseñanza de la asignatura de la escritura, que sirvió de como un modelo para explicar lo que se enseña en la escuela acerca de los géneros. Los resultados muestran que la realidad empírica de gênero difiere de lo que se expone a los estudiantes en las escuelas, dejándolas fuera de la riqueza cultural provocada por el conocimiento del funcionamiento real de los géneros. Palabras-clave: Scrap. Géneros digitales. Enseñanza de géneros.

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MINAS & GERAES: UM LUGAR DE MEMÓRIA NA BIOGRAFIA MUSICAL DE MILTON NASCIMENTO

Alberto Carlos de Souza*

Maurício Barreto Alvarez Parada** Mary Del Priore***

Túlio Alberto Martins de Figueiredo****

RESUMO: Estudo que busca discutir os lugares de memória nas obras fonográficas “Minas” e “Geraes”, de Milton Nascimento, lançadas em 1975 e 1976, respectivamente; vistas pela crítica da época como as mais representativas do “movimento” Clube da Esquina. Tais obras foram engendradas num contexto em que o Brasil vivia um momento de forte repressão política, circunstância na qual Milton e seus parceiros percebem a oportunidade de, em “Minas” cantar para dentro, em suas raízes interioranas e, em “Geraes”, cantar para fora, ao incorporar à sua musicalidade elementos latino-americanos. “Minas” e “Geraes” têm o significado de serem “lugares sem frestas” - onde não há “desbunde”, muito pelo contrário, há exposição de resistência nos corpos, na paixão, nos sentimentos, na fé e na memória -, incapazes de serem tocados por um sistema cuja premissa era a total falta de sensibilidade para o humano e o universal. A narrativa foi desenvolvida em dois tempos, a saber, um tempo linear, marcado pelo Chronos, aonde a vida de Milton – desde criança até o presente -, vai se desenrolando e, outro tempo, o de eterna presença, marcado pelo Aion, no qual, acontecimentos supostamente disparam o processo de criação musical. Palavras-Chave: Milton Nascimento; Música Popular Brasileira; Lugares de Memória.

* Professor de Arte na Rede Municipal de Vitória/ES e Serra/ES. Mestrando do

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO. E-mail: [email protected] ** Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO. E-mail: [email protected] *** Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO. Membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – IHGB. E-mail: [email protected] **** Professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected]

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Introdução

Este estudo – um diálogo entre História e Cultura – buscou apresentar um momento da música brasileira no cenário histórico que se apresenta na década de 1970, confrontando, ao mesmo tempo, a biografia (musical e individual) de Milton Nascimento, tendo como ponto de partida os discos “Minas” e “Geraes”. Dentre toda a vasta discografia de Milton Nascimento, a nossa escolha se deu por “Minas” (1975) e “Geraes” (1976) obras consideradas pela crítica como a produção musical mais representativa do movimento Clube da Esquina. Além disso, estas obras permitem uma interpretação em que se destaca o tema da identidade. A leitura das letras anuncia um movimento de ir e vir, uma „interiorização” e uma “exteriorização” e que nos permite fazer uma leitura das musicas compostas por Milton Nascimento em que o artista se abriu para o novo sem perder sua identidade local(HALL,2006). Caminhada Metodológica

Nossas fontes de estudo foram os discos “Minas” e “Geraes” lançados, respectivamente, em 1975 e 1976, entrevistas e livros tendo como tema a vida e obra de Milton Nascimento. Onde só foram usadas as músicas compostas por Milton e seus parceiros que estão nos LP‟s “Minas”(1975) e “Geraes”(1976), gravados pelos Estúdios EMI/ODEON, as músicas selecionadas foram as seguintes: Fé cega, faca amolada, Saudade dos aviões da Panair, Gran Circo, Ponta de Areia , Trastevere, Idolatrada, aula e Bebeto, Menino, Promessas do Sol, Lua Girou, Circo Marimbondo, Primeiro de Maio, O Cio da Terra.

O conceito de lugares de memória, conforme concepção de Nora (1992) foi a baliza norteadora do relatório. A teoria dos Lugares de Memória foi formulada a partir dos seminários orientados por Pierre Nora entre 1978 a 1981, na École Pratique des Hautes Études – em Paris. A partir de 1984, sob sua direção, iniciou-se a edição de “Les lieux de mémoire”, uma obra que partindo da constatação do rápido desaparecimento da memória nacional francesa, propôs o inventariamento dos lugares onde a mesma ainda se mantinha de fato encarnada, graças à vontade dos homens, e apesar da passagem do

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tempo. Para Nora (1992) símbolos, festas, emblemas, monumentos, comemorações, elogios, dicionários e museus são lugares de memória.

Tal memória foi apresentada numa narrativa que obedeceu à noção de dois tempos distintos. Um tempo linear – o tempo mediado pelo Chronos -, obedecendo, portanto, à noção cronológica e no qual os fatos da vida de Milton foram apresentados a partir de seu nascimento. E um outro tempo – o tempo mediado pelo Aion -, não-cronológico e de múltiplas linearidades, onde acontecimentos da vida de Milton Nascimento foram apresentados independentes da noção de passado-presente-futuro.

Aion é o termo grego para Tempo, com um significado diverso da noção de Chronos. Enquanto este último deve ser entendido como sucessão de fatos, Aion é concebido como eterna presença. A inspiração para relatar este estudo no tempo cronológico e no tempo aiônico, fomos buscar em Schulz (1994). Trata-se de uma referência à obra Sanatório (SCHULZ, 1994:157-183), especificamente ao capítulo intitulado “Sanatório sob o Signo de Clepsidra”, no qual o protagonista vive uma relação de eterna presença com o seu pai, na qual os acontecimentos se sucedem independentemente da linearidade do tempo. Segundo Lima :

[...] Os fatos são ordenados no tempo, dispostos em seqüência como uma fila; agrupam-se apertados, pisam nos calcanhares uns dos outros(...)Privado desta assistência controladora, o tempo fica propenso totalmente a transgressões, travessuras irresponsáveis, palhaçadas amorfas. Ao não exercermos vigilância no trem, ele descarrila, vira turbulência, cria suas travessuras. Os acontecimentos são múltiplos fragmentos que chegaram atrasados à estação da vida e perderam o trem da história. (...) Os acontecimentos também não são contrabandos que encontram lugares clandestinos nos vagões (...) O tempo regular, cronológico é estreito demais para abrigá-los(LIMA,SI).

Minas & Geraes: um lugar de memória na musicalidade de Milton Nascimento

Milton Nascimento (ou Bituca, se o leitor preferir) é reconhecido nacionalmente como um ícone da mineiridade. Mas, engana-se quem

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pensa que ele nasceu e foi criado no bucólico Bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte. Milton nasceu no Bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, em 26 de agosto de 1942. Mas quem era essa criança? Poderia ser, como nos diz Del Priore (2007), uma criança como muitas outras crianças brasileiras, como aquelas que estão em toda parte, com destinos variados e variados rostos: rostinhos mulatos, brancos, negros e mestiços. Algumas amadas ou outras simplesmente usadas.

Milton era filho de Maria do Carmo, uma empregada doméstica que veio do interior de Minas e que trabalhava na residência do casal Carvalho Silva, mas que acabou morrendo vitimada pela tuberculose, quando a criança tinha apenas um ano. Uma das filhas deste casal, chamada Lília, conforme detalharemos adiante, acabou assumindo a criação do menino.

Em relação à inserção das mulheres de classes menos favorecidas no trabalho, como foi o caso de Maria do Carmo, moça negra e interiorana, temos de considerar que historicamente as mesmas sempre foram pressionadas a obter remuneração “[...] As empregadas domesticas (...) existem desde o fim da escravatura. No campo, as mulheres sempre estiveram presentes na lavoura, basta ver qualquer ilustração de colheitas de café ou cana de açúcar para constatá-lo...” (SOUZA, 1997, p. 182). Buscando analisar a condição feminina, no século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, especificamente no que diz respeito às atividades laborais, Leite (1984) registrou, a partir de uma seleção da documentação naquele século, extraída de livros escritos ou traduzidos para o português, que as escravas, além dos serviços domésticos ou trabalho na roça, também eram utilizadas como aguadeiras, amas-de-leite, lavadeiras, rendeiras ou vendedoras. Esta autora constatou, também, a partir de registros de Gendrin, datados de 1817, que as mulheres (brancas) do Brasil, além de preguiçosas, eram muito mais cruéis que os homens, na tarefa de “educar” os seus negros e negras.

Pois bem, com a morte de Maria do Carmo, o pequeno Bituca foi mandado para a casa de sua avó, em Juiz de Fora. Nesse ínterim, Lilia se casa e vai morar na cidade de Três Pontas no interior de Minas Gerais. Muito ligada ao pequeno Bituca, só sossegou quando obteve a guarda do menino. Esse laço de afeto que nasceu entre Bituca e Lilia, uma vez fortalecido, seria estendido a todas as mulheres. Tempos depois, com a ajuda de Fernando Brant, Milton fez um hino de valorização à mulher.

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Em “Idolatrada” (NASCIMENTO; BRANT, 1975), a mulher tem muitas qualidades que Bituca aprendeu a reconhecer em Lília: ela é corajosa, cuidadora da casa e da família, amiga e verdadeira. Os fragmento da letra desta música, que apresentamos a seguir, dá conta disto: “Grande é grande a tua coragem, o teu amor (...) Tu és mulher, cuidas da casa e da família...”.

Pela primeira vez, um trem comparece na vida do pequeno Milton. Tendo ido até Juiz de Fora buscar o menino, Lília e seu marido Josino – o Zino -, pernoitaram no Rio de Janeiro. Do Rio de Janeiro para Três Pontas a viagem foi de trem. Zino, perdido na leitura de um romance. Lilia contagiada com a alegria de Bituca; para ela, era como se o menino estivesse brincando de viajar num Trenzinho Caipira. Em, com saudades, Lília se lembrou do tempo em que estudava na escola pública e que foi aluna de Villa-Lobos. “Lá vai o trem com o menino (...) Vai pela serra, vai pelo mar” (SADIE,2002). O encanto que tinha pelos bondes do Rio de Janeiro automaticamente foi transferido para os trens. Muitos anos depois, juntamente com o Fernando Brant, Milton Nascimento estaria resgatando de sua memória recordações dessa viagem, numa de suas músicas, ao falar de outra estrada de ferro; citada por eles como uma estrada “natural” que ligava Minas ao mar: estamos falando da Estrada de Ferro Bahia-Minas, construída no final do séuclo XIX e desativada na década de 60, que ligava o oeste de Minas Gerais ao sul da Bahia ((HISTÓRIA DA ESTRADA DE FERRO BAHIA-MINAS, 2008). Tratava-se da música “Ponta de Areia” (NASCIMENTO; BRANT, 1975).

Naquela viagem de trem, na qual foi pela primeira vez para Três Pontas, Bituca também se encantou pelas montanhas e cafezais. Somou-se a isso, no decorrer dos anos em que viveu naquela cidade, o encanto pelas lendas contadas pelos seus avós paternos, o amor de sua mãe, as invenções de seu pai, a religiosidade mineira, a comida trivial, as sessões dominicais de cinema, as brincadeiras com as outras crianças e com o seu maior brinquedo – a música. Tudo isso foi parte da travessia de Milton em direção à mineiridade – sentimento ou noção da particularidade do jeito mineiro de ser. Jeito de ser mineiro, uma coisa que brota da terra, o “O Cio da Terra” (NASCIMENTO; HOLLANDA, 1976), na qual nasce o trigo que forja o milagre do pão, onde se decepa a cana e, roubada a sua doçura, se lambuza de mel.

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Das casas em que morou em Três Pontas, Milton guarda boas lembranças dos quintais que tinham de tudo - gravetos, pedrinhas, latinhas -, virava trilhos e na entrada um placa cheia de luzes, anuncia: Circo Maribondo. Carro de som na rua e a meninada em alvoroço. O palhaço em bom tom pergunta à garotada: Hoje tem marmelada?

Perdidos nessas lembranças de um tempo que não volta mais, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos sonham enquanto rabiscam a letra da música “Circo Marimbondo”: eu cheguei de longe, não me atrapaia (NASCIMENTO; BASTOS, 1976). Noutro espaço desse tempo que não volta mais, Milton – agora com o Márcio Borges -, continua falando de circo. Um outro circo, o circo humano, no qual o palhaço, corre um risco que pode ser simbólico ou real. Conforme adverte Goudard (2009, p. 25), no circo, “A vida é colocada em jogo na cena, e a morte – para ser julgada? – é verdadeira e frequentemente convocada”. Em “Gran Circo” (NASCIMENTO; BORGES, 1975), Milton e Márcio Borges parecem reduzir o mundo a um picadeiro, no qual todos nós podemos ser palhaços famintos ou bailarinas loucas.

Milton tinha cinco anos quando ganhou o seu primeiro instrumento, que foi uma gaita de uma escala só. Dessa forma, começou a explorar naquela gaita sons simples e que nada tinham para chamar a atenção. Foi com o seu segundo instrumento musical, uma gaita dotada de sustenidos e bemóis, que a família percebeu que “o menino tinha jeito para a coisa”. No entanto, foi com a sanfona que Bituca ganhou fama quando criança, antes mesmo dos sete anos de idade, “[...] Primeiro uma sanfona de dois baixos e depois a sanfoninha Hering de quatro baixos (...). Não tinha bemóis nem sustenidos. O mecanismo musical consistia em produzir uma nota quando a sanfona se abria e outra ao fechá-la” (DUARTE, 2006, p. 41).

O pequeno Milton fez todos os seus estudos iniciais em uma escola pública e que, curiosamente, levava o nome de um padre negro: tratava-se do Grupo Escolar Cônego Victor.

Bituca morou na casa da avó materna, no Rio de Janeiro, para fazer o ginasial (correspondia da 5ª à 8ª série do ensino fundamental) no Colégio Tijuca Uruguay. A avó, Dona Augusta, havia convencido os pais do menino de que estudar no Rio de Janeiro seria mais vantajoso para o seu futuro. Mais uma vez, o preconceito se fez presente na vida do menino, mas a discriminação se deu, principalmente, pelos meninos

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negros. Destas crianças negras, Bituca, por morar no seio de uma família branca, ouvia com frequência desaforos do tipo, “Ô macaco!” (DUARTE, 2006). um de seus melhores amigos, até hoje. Noutra casa, na mesma rua em que a família de Bituca morava, outro menino vivia encantado pela música. Seu nome – Wagner -, e que, por ser filho de uma professora de piano e acordeão, estava acostumado a conviver com música o tempo todo. A genialidade musical de Bituca começa na sua mais tenra infância; desde pequeno já inventava e musicava suas próprias histórias.

A participação de crianças na obra de Milton e o seu afeto pelas mesmas é algo muito presente em sua vida e obra. Milton tem um filho biológico, o Pablo, nascido em 1972 e fruto de seu relacionamento com Káritas. Ao que parece, Káritas teve uma grande importância na vida de Milton. Foi através de Manoel Carlos (o novelista) e Elis Regina, enquanto assistiam a um show de Ray Charles, numa casa noturna de São Paulo, que Milton conheceu Káritas. A letra da música “Primeiro de Maio” (NASCIMENTO; HOLLANDA, 1972), ao falar de uma mulher cujo corpo é comparado a uma oficina onde ela – tecelã -, fia nas malhas do seu ventre um novo ser do amanhã, até parece ter sido feita sob a inspiração de Káritas grávida. Entretanto, Milton Nascimento afirma não ter apenas um, mais muitos filhos: "As pessoas falam: „Ah, seu filho...‟. Em vez de um filho, tenho milhares que vou semeando por aí. Sempre que alguma coisa me toca, quero trazer para perto. É assim na música, na vida, no palco" (VIANNA, 2006).

Supomos que esse gosto pelo repente Bituca adquiriu do seu pai - Senhor Josino. Uma dessas histórias cantadas por Bituca, “Porcolitro”, acabou ficando muito conhecida pela meninada trespontana. Era a história de um litro de leite que virou porco e que saiu pelo mundo protagonizando muitas aventuras. Durante oito anos, Porcolitro encantou o imaginário de Bituca e de toda a criançada trespontana. Dos sete aos quinze anos de idade, Porcolitro ganhou vida, constituiu uma família e aprontou muitas peripécias. Entretanto, estava chegando a hora de Porcolitro sair de cena; Milton, aos poucos, vai deixando pra trás a sua infância, e com ela o Porcolitro, e, como adolescente, começa a trilhar a estrada que o levará pelos bailes da vida.

Trilhar uma estrada, com fé cega, faca amolada. Uma estrada que começa em Três Pontas e vai dar, de início, em Belo Horizonte e, depois,

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em todo o mundo. Brilhar e acontecer. Uma caminhada com muitos irmãos e irmãs de fé. Um encontro, no ano de 1975, com um desses muitos irmãos de fé - o Ronaldo Bastos. Aonde vai dar essa estrada? Numa música: “Fé cega, faca amolada” (NASCIMENTO; BASTOS, 1975).

Bituca formou o seu primeiro grupo musical quando ainda era adolescente: ele tinha apenas catorze anos de idade e ainda morava em Três Pontas. Participaram deste grupo outros quatro amigos: Dida, Paulo, Carlinhos e Vera. O grupo se chamou “Luar de Prata” e se inspirou no grupo musical norte-americano The Platters. Com a entrada de Wagner Tiso no grupo, nasce entre ele e Bituca “[...] uma parceria que iria durar por toda a vida. Milton Nascimento e Wagner Tiso foram parceiros em composições, em espetáculos, discos, conjuntos de bailes, em bancos de praças e botequins” (DUARTE, 2006, p. 57).

As apresentações do grupo “Luar de Prata”, com Bituca no vocal, eram cada vez mais frequentes e, logo, o grupo seria conhecido não apenas em Três Pontas, mas em toda a região. O grupo chegou a gravar duas músicas do “The Platters”, num disco de 78 rotações. Os meninos sempre eram levados pelos pais ou tios para eventos onde se apresentavam. Bituca, além de tocar sanfona e gaita, ou no vocal, ganhou de sua avó materna o instrumento que viria a ser a sua marca registrada: um violão. Bituca em pouco tempo dominou a arte de tocar o violão e, dessa forma, o instrumento foi inserido no grupo musical. Aos poucos o grupo “Luar de Prata” foi deixando de existir, pois seus integrantes, excetuando Bituca, tinham, por diversas razões, mudado de cidade. Bituca formou um novo grupo, intitulado “Milton Nascimento e seu conjunto” e a estréia do mesmo aconteceu no Automóvel Clube de Três Pontas. Milton estava estudando o segundo ano do curso técnico de Comércio, em três Pontas, quando foi convocado para servir na Escola dos Sargentos das Armas (ESA), em Três Corações, o serviço militar.

Morando em Alfenas, Wagner Tiso fundou um conjunto apropriadamente chamado W’s Boys: todos os integrantes – Wagner, Waine, Wanderley e Wesley -, tinham o nome iniciado pela letra W. Convidado por Tiso a participar nos finais de semana como um dos crooners do grupo, Bituca não teve escolha a não ser trocar seu nome: de Milton passou a ser o Wilton Nascimento. O “Tamba Trio”, formado por Luis Eça, Bebeto Castilho e Hélcio Milito foi a grande referência

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musical para este grupo. Terminado o serviço militar, Bituca voltou para Três Pontas onde retomou e concluiu o curso de Comércio. Aqui Milton Nascimento encerra o seu ciclo de vida interiorano. E começa a aventura de Milton por muitas estradas. Um primeiro caminho que vai dar em Belo Horizonte, a cidade moderna. Outros caminhos... Um caminho foi dar em Roma.

Na milenar Roma, um rio - o Tibre. Trans Tiberim, o rione Trastevere1. Em Trastevere, uma igreja privilegiada – a Basílica de Santa Cecília, a padroeira da música. Na mesma Roma, na Igreja de Santa Maria della Vitória, uma obra prima absoluta, observada por Janson (1992) O Êxtase de Santa Teresa. Em Belo Horizonte, a cidade moderna, no bairro de Santa Teresa, em êxtase, o menino Bituca, que havia se metamorfoseado em Wilton, volta a ser Milton: calado, ouvindo e sorrindo como sempre. Sempre na companhia de muitos amigos. Junto com um destes, o Ronaldo Bastos, constrói em versos a “Trastevere” (NASCIMENTO; BASTOS, 1975) moderna – a cidade de Belo Horizonte.

Na capital mineira, estando com vinte anos, os primeiros tempos para Bituca foram muito difíceis, pois o rapaz nunca quis depender financeiramente de seus pais. Milton precisava arrumar um emprego, pois, ainda naquele tempo, não dava para viver só de sua música. Para sobreviver, conseguiu uma vaga de escriturário numa estatal brasileira.

Naquele tempo, Milton e os irmãos Tiso – Wagner e Gileno -, formavam um trio musical de nome Holiday. A entrada de Milton e dos irmãos Tiso no “Célio Balona” se deu pelas mãos de Pacifico Mascarenhas, considerado a maior referência bossa-novista mineira em todos os tempos. De imediato, Milton foi contratado como crooner fixo daquele famoso conjunto, no qual permaneceu por dois anos.

Corria o ano de 1963. Milton continuava participando do Conjunto Célio Balona, e no tempo que restava ainda tocava no Holiday ou fazia apresentações solo em bares. Mesmo com tantas ocupações ainda arranjou tempo para formar o grupo Evolussamba, que tocava samba em uma boate japonesa de Belo Horizonte. Pouco antes das festas de fim de ano, Milton recebeu a notícia do adoecimento de sua

1 A cidade de Roma está dividida em catorze riones (regiões). Trastevere é o rione XIII de Roma,situado na margem ocidental do Rio Tibre, ao sul do Vaticano. Seu nome vem do latim Trans Tiberim, que significa literalmente “além do Tibre” (SOUZA, 2009).

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mãe. Entrou em pânico, até lembrar que, lá em Três Pontas, uma mulher ficar doente correspondia a engravidar. Entre o natal e o dia dos Reis Magos, comemorado em seis de janeiro, nas duas semanas que passou em Três Pontas, Milton Nascimento aproveitou toda a calmaria interiorana para refletir sobre os rumos que queria dar à sua vida: ia conseguir sobreviver de música ou ainda teria que se submeter à monotonia de um escritório? Retornando a Belo Horizonte Milton Nascimento continuou a sua rotina de datilógrafo – com salário certo ao final do mês -, e de músico – uma coisa boa em sua vida, mas de retorno financeiro incerto.

E surge o “Evolussamba” como algo inusitado, um grupo de samba pra tocar numa boate japonesa. Tudo nesse conjunto musical parecia ser muito doméstico e improvisado: os ensaios aconteciam num quarto de um apartamento do Edifício Levy – na residência dos pais de Marilton Borges, um dos integrantes do conjunto. Seus pais, Seu Salim e Dona Maricota, moravam no Bairro Santa Teresa, mas acabaram se mudando, com toda a numerosa família, para o centro da cidade. Apesar dos ensaios serem no “quarto dos homens”, lá na casa dos Borges, Milton ainda não conhecia todos daquela família. O grupo “Evolussamba” seguia seu rumo tocando samba na boate japonesa. Numa dessas apresentações, o Danilo Vargas – diretor e apresentador de um programa dominical na televisão mineira -, que os convidou para uma apresentação no programa “A tarde é nossa”, na extinta TV Itacolomi. O sucesso foi tão grande, mas, se dependesse da timidez de Bituca, nada disso teria acontecido, pois foi a contragosto que ele topou a empreitada de tocar na televisão.

No ano de 1964, início do mês de março, pairaram várias nuvens sobre os Estados de São Paulo e Minas Gerais, instalava-se, como uma brisa quente, um boato da queda do então presidente da república, Jango, pelos militares. Transcorrido aquele mês, o boato tornou-se fato real, e foi o general Castello Branco quem deu um telefonema a um deputado amigo informando que “a fatura estava liquidada”. Era o começo da Ditadura no Brasil, instalada no dia 31 daquele mês, mas que teve como prenúncio muitos fatos relevantes e que serviram para aumentar a instabilidade política, dentre outras, a Conservadora Marcha com Deus pela Liberdade, e os movimentos com milhares de pessoas, na capital paulista e mineira, protestando contra medidas políticas adotadas

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pelo presidente Jango (GASPARI, 2003). Passeatas estudantis, revoltas e o golpe sendo instalado pelos

militares ... Um turbilhão de acontecimentos todos ao mesmo tempo. Uma nuvem cinzenta paira sobre o céu da Pátria, Mãe gentil. Dúvidas, muitas dúvidas. Então, o menino Bituca, tímido e calado, desaparece, dando vez ao jovem Milton, crítico, consciente. Ao compor, com o seu amigo Ronaldo Bastos, “Menino” (Nascimento, Bastos, 1976), talha a ferro e fogo, a bala que rasga seu peito.

O dia 31 de março de 1964 marcou o início de um dos períodos mais críticos de nossa história. No mesmo dia, uma boate estava sendo inaugurada na sobreloja do Edifício Maleta. Mesmo assim, os jovens frequentadores do edifício Maleta foram à inauguração da Boate Berimbau, afinal a vida continuava com ou sem ditadura. Tocar ou cantar, nessa boate, era o sonho de consumo de qualquer músico da cidade, pois, nesta casa só tocava “fera”. Então, Wagner juntamente com Milton e Paulo Braga formou o “Berimbau Trio”. Com esta formação foram convidados a tocar nessa que era a casa de shows mais conceituada de Belo Horizonte.

Belo Horizonte, como todas as demais capitais brasileiras, tentava se adaptar ao novo regime – a ditadura-, e cercada por militares que garantiam a ordem e os bons costumes da Nação. Enquanto isso, em Três Pontas, e todas as demais cidades do interior do Brasil, a população festejava o golpe militar na crença ingênua de que o mesmo nos livrava da ameaça do comunismo. A cidade moderna, idealizada pelo engenheiro paraense Aarão Reis em 1897, com o nome de “Cidade de Minas”, vai sendo ofuscada pelas sombras dos militares. Sufocados, os jovens Milton e Brant sonham com o horizonte perdido e, na esperança de reavê-lo, fazem promessas. Promessa de luz, promessa pro sol, também pedem coisas pra lua de prata ou pros deuses gregos. Vagando como zumbis numa tragédia que oprime, em sinal de resistência à opressão, Milton e Fernando Brant rascunham “Promessas do Sol” (NASCIMENTO; BRANT, 1976).

As apresentações na Boate Berimbau estavam agendadas para o “Berimbau Trio” por todos os finais de semanas. Num dos intervalos da apresentação do grupo, Márcio Borges, que estava na platéia, se aproximou de Milton. O refinamento intelectual do rapaz a nosso ver, Márcio – de maneira muito sensível -, havia percebido algo que limitava a

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tensão psíquica do cantor, referida por Ostrower (1987, p. 27) como “uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer”. Bem diretivo, quis logo saber: O que está havendo? A partir daquela conversa, ao que parece, um bloqueio – referido por Milton, como dor no peito -, começou a se dissipar. Isto também marcou o início de uma relação muito intensa e produtiva entre os mesmos.

Tal despertar se deu de forma inusitada: certa ocasião os dois saíram para assistir, às duas da tarde, um filme: “Uma mulher para dois”, de François Truffaut. Um sábado perdido no ano de 1964. Uma tarde quente. Como gastar o tempo numa hora dessas? Curtindo um cinema. A sensação de prazer sempre renovada ao entrar no Tupi, o cinema mais luxuoso de Belo Horizonte. Na tela, Jeanne Moreau no papel de Catherine, era uma mulher que hesitava entre dois homens, protagonizado por Oskar Werner e Henri Serre. Como insistia Truffaut “[...] Uma mulher para dois é, antes de tudo um filme de personagens” (TRUFFAUT, 1990, p.128 – 129). Milton e Márcio Borges saíram do cinema, às dez da noite, após três sessões consecutivas e encantados com tudo. Nesse momento, nascia o grande compositor. Para a alegria de Márcio Borges, Bituca propôs ao amigo: “[...] Vamos lá pra tua casa agora. Pega um violão pra mim, um papel e um lápis, que nós vamos começar a compor.” (DUARTE, 2006, p. 94). E então, num arrebatamento, escreveram de uma única vez, três músicas, das muitas que ainda iriam compor, a partir daí: “Paz do amor que vem” (Novena), “Gira, girou” e “Crença”. Outro amigo, de grande influência em sua vida – Fernando Brant -. Com Brant, Milton assinaria muitas de suas canções. Com estes dois amigos e muitos outros, todos tendo em comum o gosto pela música, é que nasceu o movimento denominado “Clube da Esquina”. Mas de que esquina estamos falando? Estamos nos referindo à confluência das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no Bairro de Santa Teresa, na cidade de Belo Horizonte. Naquela esquina havia o “Bar do Tuchão”, onde Milton e seus amigos costumavam se encontrar. Daí a expressão “Clube da Esquina”. Entre os principais membros deste movimento, podemos citar Milton Nascimento, Fernando Brant, Márcio e Lô Borges, Beto Guedes, Nelson Ângelo, Wagner Tiso, Toninho Horta, Robertinho Silva, Novelli, Nivaldo Ornelas, Ronaldo Bastos, Tavinho Moura e Murilo Antunes. Trata-se, no entanto, de uma lista incompleta.

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Na cidade moderna, ainda sufocada pela ditadura, um grupo de jovens sentados à mesa de um bar. Cansados de tanta cerveja, decidem, pelo menos naquela noite – entre uma conversa e outra -, só tomar Coca-cola. Conversas sobre o quê? Montanhas, trens, trilhos, igrejinhas. E, também, sob obviedades que começam a passar pelas cabeças de Milton e Brant: coisas do tipo, onde tomamos a nossa primeira Coca-cola? Saudades do tempo das vacas magras em que só se dava para viajar de ônibus? Decididamente, não. Viajar, agora, só se for em aviões. Saudade de que, então? Saudade dos Aviões da Panair (NASCIMENTO; BRANT, 1975).

Mas, observa Garcia (2000) que, a rigor, o Clube da Esquina não “começa” numa esquina, mas nas escadarias e apartamentos do Edifício Levy. Como já foi referido anteriormente, por volta de 1963, Milton Nascimento morava numa pensão/apartamento do quarto andar deste edifício e, no décimo sétimo andar, morava a numerosa família Borges, com muitos filhos, dentre eles, Lô e Márcio. Tendo esses rapazes um mesmo interesse em comum – a música -, a aproximação entre eles foi inevitável. A inserção de Milton no panorama musical popular brasileiro – como era muito comum em sua época - se deu através dos festivais. A sua primeira aparição como cantor foi no Festival Nacional da Música Popular da TV Excelsior, em São Paulo, no ano de 1966, quando defendeu a música “Cidade Vazia”, de autoria de Baden Powell. Nesse festival, a grande vencedora foi “Porta Estandarte”, de Geraldo Vandré e Fernando Lona, sob a interpretação de Tuca e Airton Moreira. “Cidade vazia” foi classificada em quarto lugar e Milton, por sua interpretação, ganhou o primeiro troféu de sua carreira: o “Berimbau de Bronze”.

Neste mesmo ano, Elis Regina inclui no seu álbum “Elis”, lançado pela CBD-Philips, uma de suas músicas – a “Canção do sal”; considerada pelos críticos como a sua primeira aparição expressiva enquanto compositor. Com esta canção – e com a ajuda de Elis -, Milton nascimento começa a ganhar prestígio: “[...] não era só mais uma bela voz, era um compositor de vanguarda, dizia-se.” (DUARTE, 2006, p. 113). A ajuda de Elis foi decisiva e se deu através de um convite para participar do programa televisivo (ao vivo) “O fino da bossa”, do qual era, juntamente com Jair Rodrigues, apresentadora. Nesta ocasião, fizeram um dueto com a “Canção do sal”, arrancando muitos aplausos da platéia. Milton estava conseguindo viver razoavelmente bem – dividia

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um quarto de pensão com o seu primo Jacaré -, na Vila Mariana. Quando faltava dinheiro, tinha o suporte daquele primo que estava morando em São Paulo para estudar o “científico”. Por essa ocasião, compôs “Irmão de fé”, música que inscreveu no Festival Berimbau de Ouro.

No entanto, logo Milton não pode mais contar com o apoio do primo que havia terminado seus estudos. Ao voltar para o Rio, Milton foi à casa de Caetano Veloso, a quem costumava visitar. Naquele dia, sentia-se particularmente triste. O que se passa, perguntou Caetano. Milton referiu estar triste, pois soubera que um casal de amigos havia se separado. Milton começou a tocar uma melodia. Tempos depois, agora em sua casa, Bituca recebendo Caetano, começou a dedilhar novamente aquela música. Caetano lhe presenteou, ali na hora, com a letra. Assim nasceu “Paula e Bebeto” (NASCIMENTO, VELOSO, 1975), a história de um casal que se amava de qualquer maneira, pois “qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar”.

Sentindo-me melhor, Milton retornou para São Paulo, mesmo a contragosto dos amigos. Entendeu que “[...] não podia voltar a viver em Beagá, não queria. Por mais que gostasse de lá, achava que seria dar o braço a torcer, andar para trás” (DUARTE, 2006, p. 115). Em seu retorno a São Paulo as coisas não ficaram melhores e, por falta de dinheiro Milton chegou a ficar uma semana inteira quase sem comer. Pela primeira vez em sua vida, desde que havia saído de Três Pontas, não restou a Milton outra alternativa senão pedir dinheiro emprestado aos amigos e voltar para casa. Chegou a Três Pontas visivelmente debilitado, o que assustou aos seus pais – Lília e Zino.

Retornando a São Paulo, dessa vez as coisas se tornaram melhores: apareceram novos trabalhos e novos amigos. Um desses, o cantor Agostinho dos Santos, decidiu apadrinhá-lo. E foi pelas de Agostinho dos Santos que Milton chegou ao Rio de Janeiro. Agostinho tomou conhecimento que, desde a desclassificação de “Irmão de fé” Milton andava meio decepcionado com os festivais de música, de tal modo que ninguém seria capaz de fazê-lo mudar de opinião. E as inscrições para o II Festival Internacional de Canção (FIC) estavam abertas. Como garantir da participação de Milton Nascimento? A saída foi usar um artifício, pedir para o amigo gravar três das suas composições numa fita, de posse daquela fita, Agostinho dos Santos inscreveu Milton e as três músicas no II FIC. Foi por intermédio de Elis Regina que

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Milton soube estar inscrito no II FIC e, o que é melhor, classificado. No Rio de Janeiro, na noite da festa, o Maracanãzinho estava

lotado. Desta vez, um público diferente, mais colorido. Num lugar especial, nas cadeiras de pista, bem próximo do palco, lá estavam eles: Lília, Zino, a família Brant e muita gente que veio de Três Pontas. Dentre eles, seu amigo de infância, o Dida. No desfecho deste festival, o saldo foi muito positivo para Milton Nascimento: Travessia foi premiada com o segundo lugar, Milton ganhou o prêmio de Melhor Intérprete e foi o artista mais aplaudido do festival. Os dias de “vacas magras” do cantor haviam chegado ao fim. Milton abriu caminho para a consagração. “Minas” foi criado numa época de grande crise financeira na vida de Milton Nascimento, de tal forma que nem ele mesmo pode entender como criou algo tão claro.

De fato, o disco “Minas” resiste ao passar do tempo e nunca envelhece com o passar dos anos, pois seu repertório é constantemente revisitado e reinterpretado por seus autores e novos intérpretes, com seus arranjos, energia e vigor em seu repertório (BAHIANA, 2006). Enquanto “Geraes” foi uma espécie de continuação de “Minas”. No entanto, enquanto “Minas” esteve fiel à mineiridade – lembranças, paisagens, igrejinhas e trens -, “Geraes” incorporou elementos da latinidade às toadas mineiras. O resultado, aclamado pela crítica, foi uma fusão de ritmos interioranos e latino-americanos. Muitos foram os amigos convocados para a gravação de “Geraes”. Isso só serviu para atestar o prestígio de Milton Nascimento, visto que alguns deles – já bastante famosos - estavam ali apenas para participar do coro. Uma mistura de vozes famosas e anônimas. Havia amigos de todos os lugares: gente do tempo do Clube da Esquina, todos os participantes do “Som Imaginário” (já extinto), Miúcha, Toninho Horta, Bebel, Chico Buarque, Tavinho, Noguchi, Pii e outros. Também participaram de “Geraes” Mercedes Sosa, que fez um dueto com Milton em “Volver a los deciesiete” (de autoria de Violeta Parra), o “Grupo Água”, que participou das músicas “Caldeira”, “Promessas do Sol” e “Minas Gerais” e Clementina de Jesus, fazendo dueto em “Circo Marimbondo”. O LP “Geraes”, juntamente com “Meus caros amigos”, de Chico Buarque, foram os discos mais vendidos no ano de 1976.

Um das músicas que mescla o tradicional jeito mineiro de ser com a latinidade é “Lua girou” (NASCIMENTO, 1976). O fragmento da letra

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desta música dá conta disso: “A lua girou, girou, Traçou no céu um compasso”. Considerações Finais

Como na canção acima, a vida de Milton Nascimento também girou; o menino experimentou fases como se fosse a lua. O pequeno Bituca foi minguante quando perdeu a sua mãe e foi mandado para Juiz de Fora. Não fosse todo o desvelo de Lília, a sua nova mãe, a história que contamos acima teria sido outra, como a história de muitos meninos largados à sua própria sorte.

Quando, juntamente com Lília e Zino, Bituca toma o trem em direção a Três Pontas, o menino experimenta a sua fase crescente. E crescente, o menino torna-se cheio. Pleno do afeto de seus pais e também pleno de criatividade, ao descobrir Porcolitro e a música.Por fim, Bituca abre-se para o novo. Quando vai morar em Três Corações, lugar onde serviu o exército, torna-se Wilton. Depois, já em Belo Horizonte, vira (novamente) Milton. E, nesse processo, torna Milton Nascimento caminhante por uma estrada chamada mundo. Referências BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB anos 70 – 30 anos depois. Rio de Janeiro: Ed. SENAC, 2006.

BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

DEL PRIORE, Mary. História da criança no Brasil. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2007.

D‟INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.). História das mulheres no Brasil. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 223 – 240.

DUARTE, Maria Dolores Pires do Rio. Travessia: a vida de Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Record, 2006.

GARCIA, Luis Henrique Assis. Coisas que ficaram muito tempo por dizer: o Clube da Esquina como formação cultural. 2000. Dissertação

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(Mestrado em História)- Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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SOUZA; PARADA; DEL PRIORE; FIGUEIREDO – Minas & Geraes...

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NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Idolatrada. In: NASCIMENTO, Milton. Minas. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, 1975. 1 CD: digital, estéreo. 61.247.740

NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Ponta de areia. In: NASCIMENTO, Milton. Minas. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, 1975. 1 CD: digital, estéreo. 61.247.731

NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Promessas do sol. In: NASCIMENTO, Milton. Geraes. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, 1975. 1 CD: digital, estéreo 61.192.422

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Revista Expressão, Mossoró-RN, v. 41, n. 1, p. 97-116, jan./jun. 2010

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Recebido em 06/04/10. Aprovado em 18/05/10.

ABSTRACT:

“MINAS” AND “GERAES”: A PLACE OF MEMORY IN MUSICAL BIOGRAPHY OF MILTON NASCIMENTO

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SOUZA; PARADA; DEL PRIORE; FIGUEIREDO – Minas & Geraes...

A study that discusses the places of memory in the works phonograph "Minas" and "Geraes", Milton Nascimento, launched in 1975 and 1976, respectively, seen by critics of the season as the most representative of the "movement" Clube da Esquina. Such works have engendered an environment in which Brazil was experiencing a time of severe political repression, a situation in which Milton and his partners realize the opportunity in "Minas" sing in, in their roots in the countryside, and "Geraes”, sing out, by incorporating elements of its musicality of Latin America. "Minas" and "Geraes" has the meaning of being "places without gaps" - where there is no "desbunde”, on the contrary, an exposition of resistance within the body, passion, feelings, faith and memory - are unable be touched by a system whose premise was the total lack of sensitivity to the human and universal. The narrative was developed in two stages, namely a linear time marked by Chronos, where Milton's life - from childhood to the present - it will unfold, and another time, the eternal presence, marked by Aion in which events supposedly shoot the process of musical creation.

Keywords: Milton Nascimento, Brazilian Popular Music, Places of Memory.

RESUMEN:

“MINAS” Y “GERAES”: UN LUGAR DE MEMORIA EN LA BIOGRAFÍA MUSICAL DE MILTON NASCIMENTO

Un estudio que tiene como objetivo discutir los puestos en las obras de memoria fonográfica "Minas" y "Geraes", Milton Nascimento, lanzada en 1975 y 1976, respectivamente, visto por los críticos de la época como la más representativa del "movimiento" Clube da Esquina. Estas obras fueron concebidas en un contexto en el que Brasil vivía un momento de la represión política intensa, una circunstancia en la que Milton y sus socios cuenta de la oportunidad en la "minas" a cantar, sus raíces en el campo, y "Geraes", cantan a cabo, al tiempo que incorpora elementos de su musicalidad de América Latina. "Minas" y "Geraes" tiene el significado de ser "lugares sin lagunas" - donde no hay "desbundados" Muy por el contrario, es la exposición de la resistencia dentro del cuerpo, la pasión, los sentimientos, la fe y la memoria - no ser tocado por un sistema cuya premisa era la total falta de sensibilidad hacia lo humano y lo universal. La narración se desarrolla en dos etapas, a saber, un tiempo lineal, marcado por Cronos, donde la vida de Milton - desde la infancia hasta el presente - que se desarrollará, y otra vez, la presencia eterna, marcada por Aion en que, supuestamente eventos en marcha el proceso de creación musical.

Palabras claves: Milton Nascimento, la Música Popular Brasileña, Sitios de Memoria.

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A RETEXTUALIZAÇÃO EM AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO SUPERIOR

Maria Coeli Saraiva Rodrigues*

Bernardete Biasi-Rodrigues**

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de analisar as transformações que podem ocorrer quando um texto oral é transformado em um texto escrito, e como podemos desenvolver essa atividade em salas de aula de língua portuguesa. Através dessa pesquisa, procuramos demonstrar, principalmente aos alunos, que não há certo ou errado quando se trata de um texto falado ou um texto escrito, o que na verdade existe são diferenças quando transformamos um texto em outro. A importância da escrita, em comparação com a fala, sempre foi vista como sendo mais complexa e mais elaborada, tendo assim, um status mais importante na sociedade, até mesmo por estar ligada tanto à ascensão profissional, como à econômica, como afirma Marcuschi. Estudos realizados sobre o assunto, como os dos professores Fávero e Marcuschi, nos mostram que a fala é tão complexa, ou até mais complicada, que a escrita. Com base nessa afirmação, no que se refere à coleta de dados, extraímos um corpus, através de uma atividade de retextualização aplicada a uma turma do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, na qual os alunos produziram textos a partir da música Poema, do compositor Cazuza. Diante da análise nota-se que os recursos utilizados por um falante não é o mesmo quando um texto oral passa para o texto escrito, assim como pode, também, ocorrer uma mudança de gênero entre um texto e outro, sem que assim ocorram alterações no assunto abordado no texto utilizado como base para o exercício realizado com os alunos em sala de aula. Palavras-chave: Gênero textual, Ensino de Língua, Retextualização.

* Mestranda em Linguística pela Universidade Federal do Ceará e Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] ** Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora Associada II da Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected]

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RODRIGUES; BIASI-RODRIGUES - A Retextualização em Aulas de Língua...

Introdução

Tratando-se do ensino de Língua Portuguesa (doravante LP), nota-se que tem sido dada uma especial atenção, pelos professores, ao uso de gêneros textuais como ferramentas de ensino, nas aulas de língua materna. Essa preocupação vem crescendo, de acordo com Rojo (2005), desde quando surgiram os primeiros estudos, em 1995, a respeito de gêneros como eventos sóciocomunicativos, como também se manifesta nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN - 1998), que evidenciam a importância de se utilizar o gênero como objeto de ensino, considerando as suas características no que tange à leitura e à produção de textos. Apesar disso, constata-se que muitos alunos ainda chegam ao ensino superior sem saber diferenciar tipos textuais de gêneros. Essas questões têm provocado muitas discussões, dentre elas, segundo Biasi-Rodrigues (2002), a seguinte: de que forma o profissional que atua no ensino de línguas pode elaborar atividades relacionadas ao tratamento de gêneros em sala de aula?

Este artigo tem como objetivo tratar da produção de textos no ensino superior, por meio de uma atividade de retextualização proposta na disciplina Comunicação em Língua Portuguesa I1. Nesta atividade, buscou-se explicar para os alunos, através da música Poema, do compositor Cazuza, as mudanças que poderiam ocorrer quando um texto produzido para ser cantado (musicado) é transformado em um texto escrito de outra natureza, bem como os diversos gêneros que podem se realizar a partir desta transformação. Explicaram-se, também, as variáveis linguísticas que podem ser utilizadas nessa atividade de produção textual, de acordo com o gênero textual escolhido e a situação comunicativa em que se insere. Os alunos, além de terem a oportunidade de reconhecer os gêneros que poderiam resultar no processo de retextualização, passaram por um exercício de compreensão do texto do poema, antes de reescrevê-lo.

A concepção de retextualização que dá suporte teórico à tarefa toma por base Marcuschi (2001) e Dell‟Isola (2007), e a análise do fenômeno da variação linguística apoia-se em Bortoni-Ricardo (2004).

1 Disciplina ofertada para o Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará no primeiro semestre de 2008.

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Este artigo está dividido em quatro seções. Na primeira, tratamos do embasamento teórico, apresentando explanações feitas por alguns autores sobre retextualização, oralidade e escrita e variação linguística. Na segunda, descrevemos como foi planejada a aula para a coleta do corpus. Logo após, apresentamos os dados e mostramos como os alunos fizeram a retextualização do texto proposto pelo professor. Finalmente, trazemos considerações com as quais acreditamos oferecer contribuições para o trabalho docente.

Sobre retextualização e entornos

O termo retextualização foi empregado pela primeira vez por

Travaglia (1993) para fazer referência à tradução de uma língua para a outra. Abaurre (1995) acrescenta a ideia de refacção ou reescrita de um texto, e Marcuschi (2001) trata da transformação de textos orais em textos escritos, especialmente.

Segundo Marcuschi (2001, p.46 e 47), a atividade de retextualização é um fato comum na vida diária de um falante e não uma questão artificial que parece ocorrer apenas em exercícios acadêmicos ou escolares. O autor afirma, ainda, que esse processo acontece naturalmente e não mecanicamente, e que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido. No que diz respeito à prática desta atividade em aulas de LP, a autora Dell‟Isola (2007, p. 11) constata que se trata de um “excelente recurso para o trabalho com o gênero”, e elabora um esquema para exemplificar possíveis atividades de retextualização. Para melhor delinearmos nosso estudo, apresentamos abaixo o esquema utilizado pela autora. N o esquema, cada R representa uma retextualização possível: R1 é o processo da fala para a escrita; R2, da escrita para a escrita; R3, da escrita para a fala; R4 E R5, da fala para a fala.

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Fonte: Retextualizações, Regina L. Péret Dell‟Isola(2007, p.37)

Na atividade de retextualização, como assevera Marcuschi (2001),

deve-se considerar um aspecto muito importante, a saber: a compreensão. Primeiramente, antes de qualquer atividade de transformação textual, faz-se necessário que se compreenda o que foi dito no texto base para que não aconteçam problemas relativos à coerência. Este também é o ponto de vista de Dell‟Isola (2007, p.36) que considera, ao se reescrever um texto, a necessidade de um planejamento que abrange duas importantes etapas, que são (i) a leitura, compreensão e identificação dos gêneros, e (ii) a reescrita de textos.

Além disso, para Marcuschi (2001, p.48), existem quatro possibilidades no que diz respeito à reescrita de um texto:

1. Da fala para a escrita

Por exemplo: de uma entrevista oral para uma entrevista impressa.

2. Da fala para a fala Por exemplo: de uma conferência para a tradução simultânea.

3. Da escrita para a escrita Por exemplo: de um livro para uma resenha escrita.

4. Da escrita para a oralidade

Debate oral em reunião de condomínio

R1 Produção de texto escrito: Regulamento

R2 Produção de texto escrito: Adendo de convenção de condomínio

Debate oral em reunião de condomínio

R5

Produção de texto oral: conversa sobre a

conversa

R4

Produção de texto oral: Conversa sobre o adendo

R3

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Por exemplo: de um esquema escrito para uma exposição oral.

Como se pode observar neste quadro, o processo de

retextualização não ocorre somente na passagem da fala para a escrita, o que corrobora a idéia de que se pode trabalhar com diversas possibilidades de retextualizar, como por exemplo, os atos de resumir, parafrasear, parodiar, transformar textos de um sistema semiótico em outro (de verbal a não verbal ou vice-versa), de livros a filmes ou novelas, de verso em prosa (ou vice-versa.

Ainda é importante ressaltar, segundo Dell‟Isola, que as “formas verbais orais ou escritas que resultam de enunciados produzidos em sociedade e, no âmbito do ensino e aprendizagem de português, são vias de acesso ao letramento” (Dell‟Isola, 2007 p.19). Isto equivale a dizer que o aluno deve saber adequar seu texto, seja ele oral ou escrito, ao contexto em que está inserido. A escrita e a oralidade são eventos de letramento, embora, para a sociedade, a escrita tenha um maior prestígio que a fala.

Para Marcuschi (2007), a escrita não é representação da oralidade, porque aquela não consegue reproduzir muitos dos fenômenos desta, como o movimento dos olhos e a gestualidade, por exemplo. Além disso, o autor afirma que a escrita possui caracterizações próprias que não podem ser representadas na oralidade, como cores e formato de letras. Embora diferentes, não são “suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos, nem uma dicotomia” (Marcuschi, 2007, p.17), a escrita é uma modalidade de uso da língua complementar à oralidade.

No que se refere ao ensino de LP, Bortoni-Ricardo (2005, p.15) nos diz que os professores têm que estar conscientes de que existem várias maneiras de se dizer a mesma coisa, e os alunos precisam saber disso. Os docentes devem estar de acordo que essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos distintos e são concebidas de forma diferenciada pela sociedade. Nesta perspectiva, merece destaque, também, a opinião de Marcuschi (2007) de que os textos escritos não são mais complexos que os textos orais, por isso não cabe à sociedade privilegiar uma modalidade de linguagem em detrimento da outra. Sobre o assunto, a autora Dell‟Isola (2007) afirma que

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os profissionais da linguagem precisam levar os alunos a compreender e procurar explicar como se manifestam os diferentes gêneros textuais. A identidade, os relacionamentos e o conhecimento dos seres humanos são determinados pelos gêneros textuais a que estão expostos, que produzem e consomem. (DELL‟ISOLA, 2007, P. 24)

Ainda no que diz respeito às diferenças entre textos orais e

escritos, Bronckart afirma que facilmente podemos distinguir um texto falado de um texto escrito, sendo esta distinção feita exclusivamente no plano do contexto. Apesar disso, o autor ressalta que “todo texto produzido em modalidade oral pode, em seguida, ser transcrito e que todo texto produzido em modalidade escrita pode, a seguir, ser reproduzido oralmente” (Bronckart, 1999, p.185).

Cabe acrescentar, baseando-se em Marcuschi (2001), que há diferença entre transcrição e retextualização, pois, na primeira, há operações que causam mudanças, mas estas não devem interferir na natureza do discurso do ponto de vista da linguagem. Já no caso da retextualização, ocorre uma maior e mais sensível interferência, em especial na linguagem. Sobre a atividade de retextualização

A atividade de retextualização foi realizada em uma aula de uma

hora e quarenta e cinco minutos, na disciplina de Comunicação em Língua Portuguesa I, em maio de 2008, com uma turma do primeiro semestre do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará.

Inicialmente, explicou-se o que é retextualização demonstrando que ela pode acontecer, por exemplo, quando se resume um texto, podendo ser um texto escrito, como um artigo, ou um texto oral, como o de um filme. Em seguida, pediu-se aos alunos que lessem os resumos que haviam produzido sobre o conteúdo da aula anterior. Através dessa atividade, mostrou-se que a retextualização de um texto oral em um texto escrito pode provocar algumas mudanças como, por exemplo, a ausência de repetições ou hesitações do texto oral, como também a modificação de tempos verbais.

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Após esta introdução, solicitou-se aos alunos que, individualmente, fizessem a retextualização da música Poema, do compositor Cazuza. Para complementar, eles ouviram a canção na voz de Ney Matogrosso e depois receberam a letra da canção para ler como segue:

Poema - Cazuza Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo Eu acordei com medo e procurei no escuro Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo Porque o passado me traz uma lembrança Do tempo que eu era criança E o medo era motivo de choro Desculpa pra um abraço ou um consolo Hoje eu acordei com medo mas não chorei Nem reclamei abrigo Do escuro eu via um infinito sem presente, passado ou futuro Senti um abraço forte, já não era medo Era uma coisa sua que ficou em mim, que não tem fim De repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa Morna e ingênua que vai ficando no caminho Que é escuro e frio mas também bonito porque é iluminado Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás

Percebeu-se que os alunos demonstraram, inicialmente, alguma

dificuldade em entender o processo de retextualização, apesar de realizarem esse exercício com muita frequência em outras aulas, mesmo que não intencionalmente. Alguns discentes tinham dúvidas em relação ao gênero que podiam utilizar para retextualizar, pois achavam que tinham, obrigatoriamente, que reescrever o texto em forma de poesia. Por sua vez, outros sentiram dificuldade quanto à compreensão do texto.

Diante desses problemas, buscou-se, através da leitura da canção, trabalhar algumas questões para facilitar a compreensão e, em seguida, deixou-se claro que o importante não era o gênero escolhido, mas sim que o tema do texto original fosse mantido.

Dentre os trinta e oito textos produzidos pelos alunos, foram selecionados seis (numerados de 1 a 6) para representar a variedade de

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gêneros produzidos, e alguns excertos ilustram a análise apresentada a seguir. Sobre o desempenho da tarefa

Os textos produzidos pelos alunos revelaram o uso de diversos

gêneros escolhidos para retextualizar a letra da música Poema, de Cazuza. Para uma melhor visualização, elaboramos uma tabela com os gêneros produzidos pelos alunos e indicadas suas respectivas porcentagens.

Gênero Porcentagem

1. Bilhete 2,63%

2. Carta 31,57%

3. Poema 15,78%

4. Crônica 15,78%

5. Conto 28,94%

6. Mensagem SMS 2,63%

7. Charge 2,63%

TOTAL = 38 TOTAL = 100% Gêneros produzidos por retextualização e suas porcentagens

Pode-se constatar, através dos dados acima, que, apesar de o

texto-base ser um poema, a maioria dos alunos optou por escrever uma carta, provavelmente porque, no texto original, é evidente o distanciamento entre os interlocutores representados. Essa mesma hipótese estende-se aos gêneros bilhete e mensagem SMS.

Outro fator que merece destaque refere-se à maneira pela qual os alunos optaram por iniciar os seus textos, como se pode verificar nos exemplos de crônica (aluno 1), conto (aluno 2) e carta (aluno 3) que se seguem:

Aluno 1: “Lembrar da infância me traz muito nostalgia. Eu nunca fui uma dessas pessoas que esquece as coisas facilmente. A razão pela qual escrevo esta crônica, é que ontem tive um pesadelo de cinema.” Aluno 2: “Subitamente, num quarto escuro, pouco iluminado por uma lua ainda cheia, um homem acorda

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de um pesadelo sob uma nostalgia que não tinha razão no momento. Uma saudade da infância, um medo que o choro de criança não resolvia mais.” Aluno 3: “Querida mamãe, hoje, em especial, senti uma enorme saudade de você, talvez porque tive um pesadelo, acordei assustada, com medo, e lembrei do seu carinho, do tempo que eu era criança, quando qualquer medo era motivo de choro, só para receber de você um abraço ou um consolo.”

Os exemplos citados mostram que os alunos basearam-se

diretamente no trecho inicial da música para começarem os seus textos, independente do gênero que escolheram para a retextualização. Isso foi observado em 97,37% dos escritos dos estudantes que participaram da atividade, certamente na intenção de se manterem fiéis à temática do texto original.

Em relação à adequação da linguagem poética-musical à modalidade escrita (prosa, em geral), pode-se observar que, em sua maioria, os textos apresentaram uma adaptação da primeira para a segunda, em termos de estrutura sintática (aluno 4), perdendo, desta forma, os traços que poético-musicais. O mesmo não pode ser constatado nos exemplos em que os alunos fizeram uso do gênero poesia (aluno 5).

Aluno 4: Querido irmão, hoje tive um pesadelo e levantei atenta, procurando no escuro do quarto algum consolo, como quando eu dormia na casa da vovó.

Aluno 5: “Sonhei/Eu não quis acreditar/Mas, quando, de repente, acordei/Apenas a sua lembrança estava aqui/a me encarar”.

Como se pode observar, a depender do gênero, os alunos

produziram um texto adequado às necessidades do evento comunicativo. Por isso levaram em consideração não apenas a mensagem que desejavam transmitir em seu texto, como também as características de cada gênero. Sendo assim, fizeram uso de um léxico adequado à situação sóciocomunicativa, como se pode verificar no exemplo a seguir:

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Aluno 6: Lembrei d vc, daqueles velhos tempos. To com saudads. bjs. (mensagem SMS)

Ainda hoje, muitos professores de LP não trabalham as diversas

variantes existentes no português do Brasil, em atividades de ensino-aprendizagem. Nas palavras de Bortoni-Ricardo (2004, p.38),

uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles representam e a da escola, e mostra ao professor como encontrar formas efetivas de conscientizar os educandos sobre essas diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento é ainda problemático para os professores, que ficam inseguros, sem saber se devem corrigir ou não, que erros devem corrigir ou até mesmo se podem falar em erros.

Para a autora, os professores ainda não sabem como proceder em

relação à variantes não padrão utilizadas no ambiente de sala de aula e, por isso, chamam de “erro de português” o que na verdade se trata de uma variante da língua portuguesa. Esse comportamento inibe a possibilidade de realizar exercícios, como os de retextualização, por parte dos docentes, pois as noções de certo e errado na língua seriam colocadas acima da liberdade dos alunos no momento da produção de textos.

O comportamento dos professores, diante de algumas produções realizadas pelos alunos, não está de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, pois o mesmo preconiza, entre outros pontos, que o aluno deve ter noção de que os textos distribuem-se num contínuo de gêneros estáveis, com características próprias, e são socialmente organizados tanto na fala como na escrita. Outro fator abordado pelo mesmo documento é que os professores devem dar maior atenção para a língua em uso, sem se fixar no estudo da gramática como um conjunto de regras, mas frisando a relevância da reflexão sobre a língua. De acordo com Del‟Isola (2007),

no ensino, devem ser desenvolvidos recursos para uma melhor compreensão dos aspectos cognitivos e esquemáticos que contribuem para que um determinado discurso aconteça. Os professores devem promover

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oportunidades para um aprendizado igualitário com vistas a vários letramentos que levam os aprendizes a compreensões de como funcionam os textos nas sociedades. (DELL‟ISOLA, 2007, P. 25)

Porém, o que se observa de fato nas aulas de Língua Materna é o

uso da Gramática Normativa, o que se distancia dos pressupostos do PCN Língua Portuguesa e não prepara o aluno para o cotidiano. Considerações finais

Nesta pesquisa, com base nos resultados obtidos, buscamos

compreender as relações existentes entre a importância da atividade de retextualização, o trabalho com gêneros textuais em salas de aula de LP do ensino superior, bem como a adequação do uso de variantes linguísticas na produção dos textos pelos alunos.

As observações nos levaram a concluir que os alunos, independente do tema do texto base, conseguirão adequá-lo a qualquer que seja o gênero, no processo de retextualização. Na passagem do texto em versos para o texto em prosa, também se observou que os discentes conseguiram adequar o texto que produziram às normas da modalidade escrita, sem que assim ocorresse uma alteração no assunto abordado pelo texto-base.

Nesse sentido, acreditamos que a atividade de retextualização seja uma importante ferramenta que o professor de língua materna poderá utilizar no trabalho com gêneros em sala de aula, explorando, além da produção dos textos com todos os seus recursos de textualização, questões linguísticas de natureza gramatical.

No que refere às variantes linguísticas, o trabalho com a retextualização favorece, por parte dos professores, a aceitação das diferenças reveladas nos textos produzidos em sala de aula. Com o surgimento de novas tecnologias, que permitem a comunicação via computadores e celulares, por exemplo, os alunos têm levado para dentro de sala de aula exemplos da linguagem utilizada nesses ambientes virtuais.

Naturalmente, os dados que analisamos apontam, também, para outros aspectos que não foram considerados neste estudo, como as estratégias utilizadas pelos alunos nas escolhas dos gêneros para a

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atividade proposta. Isso nos levará, possivelmente, a outras experiências com retextualização, bem como a outras possíveis estratégias que se pode utilizar em sala de aula, no tratamento da língua por meio de gêneros textuais. Referências

BIASI-RODRIGUES, Bernardete. A diversidade de gêneros textuais na escola: um novo modismo? Revista Perspectiva, Florianópolis: Ed. da UFSC, v.20, n.1, p. 49-64, jan./jun./2002.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolingüística & educação. São Paulo: Parábola, 2005.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística em sala de aula. 4. ed. São Paulo: Parábola, 2004.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. 2. ed. São Paulo: EDUC, 1999.

DELL‟ISOLA, Regina Lúcia Péret. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

FÁVERO, L.L.; KOCH, I.G.V. Lingüística Textual: uma introdução. São Paulo: Cortez, 1988

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

ROJO, Roxane. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In: MEURER, J.L., BONINI, Adair & MOTTA-ROTH, Désirée (orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005.

Recebido em 20/02/10. Aprovado em 06/04/10

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Revista Expressão, Mossoró-RN, v. 41, n. 1, p. 117-130, jan./jun. 2010

ABSTRACT: THE RETEXTUALIZATION IN CLASSES OF PORTUGUESE LANGUAGE OF HIGHER TEACHING This paper aims at analyzing changes that may occur when an oral text is transformed into a written text, and how we can develop this activity in classes about Portuguese language. Through this research, we inted to demonstrate, especially to students, that there is no right or wrong when it comes to a spoken text or written text, but actually there are differences when we convert one modality of the language into another. Writing, compared with oral speech, has always been considered more complex and more sophisticated and, as a consequence, it presents a more important status in society. That is why it is related both to professional and economical advancement, as Marcuschi (2001) assures. Studies on the subject, such as Fávero (1988) and Marcuschi (2001), show us that oral speech is as complex, or even more complicated than writing. Based on this statement, regarding to data construction, we selected a corpus, from an activity of retextualization applied to students of Journalism degree from the Federal University of Ceará, in which students produced texts from the music “Poem”, whose composer is Cazuza. Due to the analysis, we note that the resources used by a speaker are not the same when an oral text is passed into written text. This speaker may also experience a gender change between a text and another, but it does not presume the change of the topic approached in the txt as the basis for the exercise developed by the students in the classroom. Keywords: Textual Gender, Language Education, Retextualization. RESUMEN: LA ACTIVIDAD DE RETEXTUALIZACIÓN EN CLASES DE LENGUA PORTUGUESA DE LA EDUCACIÓN SUPERIOR Este trabajo pretende analizar los cambios que pueden producirse cuando um texto oral se tranforma em um texto escrito, y cómo podemos desarrollar esta actividad em aula portuguesas. A través de esta investigación, se demuestra, sobre todo a los estudiantes,que no hay bien o mal cuando se trata de um texto hablado o um texto escrito, lo que realmente existe son las diferencias cuando transformamos un texto a otro. La escritura, en comparación con el habla, ha sido siempre visto como algo más complejo y más elaborado, y por lo tanto un estatus más importante en la sociedad, incluso por estar vinculado tanto a su carrera profesional como la economía, tal como se indica Marcuschi (2001). Los estudios sobre el tema, como los de Fávero (1988) y Marcuschi (2001), nos muestran que el discurso es tan complejo, o incluso más complicado que escribir. Sobre la base de esta declaración en lo que respecta a la recopilación de datos, extraemos um corpus, a través de una actividad de retextualization aplicado a una clase de grado de Periodismo de la Universidad Federal de Ceará, en el que los

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RODRIGUES; BIASI-RODRIGUES - A Retextualização em Aulas de Língua...

estudiantes producen textos de la música “Poema”, del compositor Cazuza. A partir del análisis se observa que los recursos utilizados por un hablante no es lo mismo al pasar un texto oral al texto escrito, y también pueden experimentar un cambio de género entre un texto y otro, de manero que no se producen câmbios em el tema discutido em el texto utilizado como base para el ejercicio realizados por los alumnos em el aula. Palabras-Claves: Género Textual, Educación del Lenguaje, Retextualization.

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RESENHA

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Revista Expressão, Mossoró-RN, v. 41, n. 1, p. 133-134, jan./jun. 2010

RELAÇÕES E SABERES NA ESCOLA: UMA LEITURA EM POSITIVO

Bernard Charlot*

O livro “Relações e saberes na escola: os sentidos do

aprender o do ensinar”, organizado pelo professor Dr. Messias Dieb (UERN), pratica uma leitura em positivo, o que é, em primeiro lugar, uma exigência primordial e sine qua non da teoria da relação com o saber. Seus textos, distribuídos em três partes, não dizem o que falta aos alunos da escola rural ou da EJA, ou aos que não conseguem ler, ou aos que escrevem em internês, mas qual é o seu mundo, qual é a sua atividade.

Em segundo lugar, o livro se interessa tanto pela atividade mais básica da escola, isto é, pela leitura, como por seus setores marginalizados, e até por esse concorrente que é o Orkut. Poder-se-ia dar mais um passo à frente e dizer que os autores do livro poderiam ter investigado também como se aprende a dirigir um carro, a dançar, a ser pai ou mãe, a relacionar-se com os clientes da loja ou a assaltar um ônibus, aprendizagem essa que é terrivelmente séria, já que o fracasso se paga caro. Mas, cada coisa a seu tempo; talvez seja cedo demais para os pesquisadores ousarem investigar tais formas do aprender.

Em terceiro lugar, a questão da relação entre aprender dentro e fora da escola permeia muitos capítulos do livro. Isso me parece importante de afirmar, uma vez que permanece em mim a mesma convicção que eu tinha quando fundei a equipe Educação, Socialização e Coletividades Locais (ESCOL): é naquela relação entre o dentro e o fora que reside a resposta pedagógica à questão social da “reprodução”. Isto se justifica na medida em que se ensinam coisas na escola que não podem ser ensinadas em outros lugares, sejam essas coisas conteúdos, modos de raciocínio, formas de se relacionar com os outros ou consigo

* Doutor e Livre-Docente (Doctorat d’Etat) em Educação pela Universidade Paris X (França). Professor emérito de Ciências da Educação da Universidade Paris 8, onde criou, em 1987, a Equipe de pesquisa ESCOL junto ao Departamento de Ciências da Educação. Atualmente, é Professor-Visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: [email protected].

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CHARLOT - Relações e Saberes na Escola: uma leitura em positivo

mesmo. Portanto, a preocupação de ligar escola e comunidade não deve levar a confundir tudo e a esquecer as especificidades de cada uma, especialmente as da escola. Se esta ensina o que se pode aprender fora dela, passa a ser, então, uma instituição inútil.

Por fim, posso afirmar que os autores dos sete capítulos que compõem o livro apropriaram-se do conceito de relação com o saber, para levantarem novas questões, sem nunca considerá-lo como uma resposta. E isso me parece essencial: relação com o saber é uma nova abordagem das questões relacionadas à educação, à escolarização, à aprendizagem, não é, por si, uma resposta. Referência: DIEB, Messias. (Org.) Relações e saberes na escola: os sentidos do aprender e do ensinar. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Recebido em 04/04/10. Aprovado em 03/05/10