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Edição 17 | Ano 9 | No.1 | 2011 REVISTA

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FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIALUERJ

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Revista Contemporânea - Vol. 1, N° 1 (2003)- . - Rio de Janeiro: UERJ, Faculdade de Comunicação Social, 2003 -

SemestralE-ISSN 1806-04981. Comunicação - Periódicos. 2. Teoria da informação -Periódicos. 3. Comunicação e cultura - Periódicos. 4. Sociologia - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Comunicação Social.

CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/FCS/PPGCom

Brasil

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADESFACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

REITORRicardo Vieiralves de Castro

VICE-REITORMaria Christina Paixão Maioli

SUB-REITOR DE GRADUAÇÃOLená Medeiros de Menezes

SUB-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAMonica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

SUB-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURARegina Lúcia Monteiro Henriques

DIRETOR DO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADESGlauber Almeida de Lemos

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

DIRETORJoão Luís de Araujo Maia

VICE-DIRETORRicardo Ferreira Freitas

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE JORNALISMOFabio Mario Iorio

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICASNicolau José Carvalho Maranini

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TEORIA DA COMUNICAÇÃORonaldo George Helal

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Edição 16 | Ano 8 | No.3 | 2010

REVISTA

Revista Contemporânea (E-ISSN 1806-0498) é uma publicação acadêmica semestral e interdisciplinar do Grupo de Pesquisa “Comunicação, Arte e Cidade” do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ. É dirigida a pesquisadores, professores, profissionais e estudantes (doutorandos, mestrandos, especialistas, graduados e graduandos) do campo da comunicação e áreas afins. Seu principal objetivo é publicar textos originais e inéditos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, mas também estudos teóricos, revisões de literatura que contribuam para o estudo da Comunicação em suas interfaces com disciplinas afins. Sua proposta editorial vem justamente ao encontro das tendências atuais de integração e complementaridade entre o campo da Comunicação e as diversas áreas de conhecimento. Além dos textos acadêmicos e resultantes de pesquisa, propõe-se a publicar trabalhos que reflitam sobre a produção cultural contemporânea, como ensaios fotográficos, vídeos, documentários e trabalhos artísticos.

CONSELHOS EDITORIAL E CIENTÍFICOCarlos Alexandre Moreno (UERJ), Christiane Luce Gomes (UFMG), Denise Oliveira Siqueira (UERJ), Euler David de Siqueira (UFJF), Fátima Régis de Oliveira (UERJ), Fernando do Nascimento Gonçalves (UERJ), João Luís Araújo Maia (UERJ), Kleber Mendonça (UFF), Mônica Fort (PUC/PR), Nízia Villaça (UFRJ), Ricardo Ferreira Freitas (UERJ), Ronaldo George Helal (UERJ) e Stéphane Hugon (Paris V).

EDITOR GERALProf. Dr. Fernando do Nascimento Gonçalves (UERJ)

REVISÃO E EDIÇÃO EXECUTIVA Daniela Muzi, Helena Klang, Ramon Bezerra e Thalita Bastos (PPGCom/FCS/UERJ)

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIAUniversidade do Estado do Rio de JaneiroFaculdade de Comunicação Social - PPGC - Mestrado em ComunicaçãoRevista ContemporâneaA/C Prof. Dr. Fernando do Nascimento GonçalvesRua São Francisco Xavier, 524/10º andar, sala 10129, Bloco FMaracanã - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. CEP: 20550-013Tel.fax: (21) 2334-0757. E-mail: [email protected]

CAPAWillian Gomes (LCI/FCS/UERJ)

DIAGRAMAÇÃOWillian Gomes (LCI/FCS/UERJ)

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAWillian Gomes (LCI/FCS/UERJ)

PROJETO GRÁFICOMarcos Maurity e Priscila Pires(LCI/FCS/UERJ)

CONTEMPORÂNEA - EDIÇÃO 17 - VOL.9 Nº1 - 2011

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A Contemporânea é uma revis-

ta online do programa de pós-

-graduação em comunicação da

Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, produzida por alunos

e professores com o suporte do

Laboratório de Comunicação Inte-

grada da Faculdade de Comunica-

ção Social.

Expediente

Conselho Editorial

Carlos Alexandre Moreno - UERJ

Christiane Luce Gomes - UFMG

Denise Oliveira Siqueira - UERJ

Euler David de Siqueira - UFJF

Fátima Régis de Oliveira - UERJ

Fernando N. Gonçalves - UERJ

João Maia - UERJ

Kléber Medonça - UFF

Mônica Fort - PUC/PR

Nízia Villaça - UFRJ

Ricardo Ferreira Freitas - UERJ

Ronaldo Helal - UERJ

Stéphane Hugon - Paris V

Editor Geral

Prof.Dr.Fernando Gonçalves - UERJ

Revisão e Edição Executiva

Daniela Muzi

Helena Klang

Ramon Bezerra

Thalita Bastos

(PPGCom/UERJ)

Diagramação

Willian Gomes - LCI/FCS/UERJ

Capa e Editoração Eletrônica

Willian Gomes - LCI/FCS/UERJ

Projeto Gráfico

Priscila Pires

Marcos Maurity

LCI/FCS/UERJ

Copyright 2011 UERJ | FCS | LCI

Dossiê Políticas Públicas(apresentação)

Contato:[email protected]

Site:www.contemporanea.uerj.br

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Edição nº17Ano IX N.1Outubro 2011

SUMÁRIO

Visões Periféricas:políticas culturais, participação

e reconhecimento

Michely Peres de Andrade

Políticas públicas e o patrimônio histórico:

das primeiras ações a economia da cultura

Mariana Nascimento Bispo

A Televisão Digital Interativa no Brasil:

possibilidades de consolidação e contradições no

encontro das políticas públicas com o mercado e

o olhar do espectador

Márcio Carneiro dos Santos

O Renascimento do 3d

Eduardo Pires Christofoli

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Regulador ou protagonista:princípios e

práticas da atuação do Estado nas políticas de

comunicação no Brasil

Luiz Felipe Ferreira Stevanim

Políticas e indústrias culturais na América Latina

Alexandre Barbalho

Políticas culturais e inteligência coletiva

Hortência Nepomuceno Santos

Comunicação e as novas tecnologias no

contexto de atuação política dos movimentos

sociais contemporâneos: um estudo do portal

ILGA.ORG

Antonio Carlos Sardinha

Direitos Humanos Fundamentais e Direito

à Comunicação: entre a redistribuição e o

reconhecimento

Rodrigo Garcia Vieira Braz

Análise da Teoria Ator-Rede (TAR) e sua relação

com os paradigmas de Relações Públicas

Alessandra Maia & Sabrina Serafim

Artigos

Temas Livres

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Apresentação

Ed.17 | Vol.9 | N1 | 2011

ApresentaçãoA edição 2011-1 da Revista Contemporânea apresenta o dossiê temático

Políticas Públicas. Com o olhar da Comunicação, o dossiê busca contribuir para a discussão sobre o processo de redefinição do papel do Estado no desen-volvimento socioeconômico e cultural do país, que experimenta um momento de amadurecimento político e democrático.

O dossiê reúne oito artigos que abordam temas diversos mas que têm em comum o papel do Estado na Sociedade da Informação. Luiz Felipe Ferreira Stevanim aborda os princípios e práticas da atuação do Estado nas políticas de comunicação no Brasil; ampliando o giro, Alexandre Barbalho discute as polí-ticas e indústrias culturais na América Latina; Hortência Nepopuceno Santos analisa as questões da participação e da deliberação no contexto das políticas de cultura; Antônio Carlos Sardinha apresenta um estudo do portal LGBT ILGA.ORG e trata da atuação política dos movimentos sociais no contexto das novas tecnologias; Rodrigo Garcia Vieira Braz propõe pensar o direito à comunicação não apenas do ponto de vista da distribuição dos meios, mas principalmente do de seu reconhecimento como direito fundamental; Michely Peres Andrade analisa o Festival Audiovisual Visões Periféricas como ponto de partida para uma discussão sobre a participação dos movimentos populares no contexto dos pro-gramas de “inclusão audiovisual” do Ministério da Cultura e da Secretaria do Audiovisual; Mariana Nascimento Bispo discute as ações governamentais no to-cante ao patrimônio histórico nacional através de uma analise da história recente das políticas adotadas pelo Estado brasileiro nesse campo;

Fechando o dossiê, Márcio Carneiro dos Santos analisa as possibilidades de consolidação e as contradições das políticas públicas sobre Televisão Digital Interativa no Brasil. Na seção Temas Livres, Eduardo Christofoli problematiza o cinema 3D como futuro do cinema e Alessandra Maia e Sabrina Serafim apresentam as contribuições da Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour, para repen-sar os paradigmas de Relações Públicas.

A equipe da Contemporânea deseja a todos boa leitura!

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ResumoEste artigo busca analisar o papel do Estado como regulador das comunicações e mantenedor de instituições radiodifusoras. A figura de mediador neutro dos conflitos sociais cede espaço à ideia de que o Estado é um ator na negociação das políticas. A motivação de fundo é entender o caráter público do Estado, sem restringir a ele a extensão do chamado sistema público de mídia.Palavras-chave: Estado; regulação; sistemas públicos de mídia.

AbstractThe aim of this article is analyze the role played by the State as regulator and broadcaster’s provider. The configuration as neutral mediator of social conflicts is displaced by the conception that the State is an actor in the negociation about the policies. The motivation is to understand the public character of the State, without restricting the extension of the public broadcasting to state apparatus.Keywords: State; regulation; public broadcasting.

Políticas públicas e o patrimônio histórico:das primeiras ações a economia da cultura

Ed.17 | Vol.9 | N1 | 2011

Regulador ou protagonista: princípios e práticas da atuação do Estado

nas políticas de comunicação no BrasilRegulator or protagonist:

principles and practices of governmental actions in communication policies in Brazil

Luiz Felipe Ferreira Stevanim | [email protected] em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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Políticas públicas e o patrimônio histórico:das primeiras ações a economia da cultura

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1. O sentidO das pOlíticas públicas de cOmunicaçãO

O papel do Estado nas políticas de comunicação está associado a seu caráter público. No entanto, não há uma única concepção sobre essa nature-za: as experiências ao redor do mundo, de acordo com as épocas, os aportes ideológicos e os interesses envolvidos, mostraram a existência de diferentes sentidos para a “coisa pública”.

Um ponto de partida para entender a função do Estado é aquela dis-tinção que termina por separá-lo dos interesses sustentados pelos governos de turno. Nas democracias modernas, os grupos políticos assumem a gerência do Estado por períodos legais, ao disporem de mandatos legítimos. Contudo, es-ses ocupantes temporais não são o aparelho administrativo propriamente dito, pois este se define por sua natureza institucionalizada, relativamente estável, apesar de também estar sujeito a alterações no tempo.

Ainda que o Estado possua função pública, não se pode excluir da definição de “público” aquele grupo de ações, entes e instituições que remontam a essa orien-tação universalista, mas não são estatais. Existe, portanto, um segundo sentido possível para o termo: aquilo que compartilhamos, o coletivo, o que pertence a todos e, em consequência, a nenhum ator particular exclusivamente. Essa é uma definição que deriva, segundo Norberto Bobbio (2009, p.15), da noção de res pu-blica do direito romano, como “uma ‘coisa do povo’ desde que por povo se entenda não uma agregação qualquer de homens, mas uma sociedade mantida junta, mais que por um vínculo jurídico, pela utilitatis comunione [De re publica, I, 41, 48]”.

No setor das comunicações, o caráter público do Estado assume duas dimensões: de um lado, a regulação e, de outro, a manutenção dos sistemas de mídia público-estatais. Mas o que legitima a atuação estatal nesse terreno em que o princípio da “liberdade” ocupa um lugar de centro? O que caracteriza a ação estatal: é ele um mediador dos conflitos de interesse ou também um ator na negociação das políticas?

O propósito deste texto é apontar os princípios que orientam as políticas de comunicação democráticas e a atuação estatal no setor. Para esse intento, analisa a atividade de regulação e questiona o papel do Estado como mediador nas políticas de comunicação. Por fim, a partir de levantamento junto às bases públicas de da-dos do Ministério das Comunicações e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), além de outras fontes, reúne o conjunto de rádios e televisões ligadas ao aparelho estatal. A motivação de fundo é entender o caráter público do Estado, sem restringir a ele a extensão do chamado sistema público de mídia.

2. RegulaR é pRecisO: gaRantias paRa a libeRdade e a igualdade

De um ponto de vista clássico, a regulação é “um processo que consiste na restrição intencional da escolha de atividades de um sujeito e provém de uma en-tidade que não é parte direta nem está envolvida na dita atividade” (MITNICK,

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1989, p.29)1. Apreende-se, portanto, que a regulação envolve necessariamente um ato de intervenção nas esferas econômicas, culturais ou políticas – por exemplo, o nível de poluentes que uma fábrica despeja em um rio é matéria que merece atenção. Ainda quando considera a prática de regular como processo dinâmico, essa definição se limita a um aspecto “negativo” do termo, já que implica em enquadrar a ação de determinados sujeitos dentro de um escopo desejável.

Faz-se necessária, portanto, uma definição “positiva” da regulação, como condição essencial para a democracia e mecanismo garantidor de justiça social. De fato, esse parece ser o caminho de uma visão do Estado como fiscalizador e, ao mesmo tempo, promotor de políticas – e, para os sistemas de comunicação que contam com financiamento e gestão estatal, é possível enxergá-lo ainda como produtor e proprietário. A visão economicista da atuação tolerável do Estado so-bre os agentes privados, somente quando necessária, cede lugar a uma concepção segundo a qual a democracia não existe sem instituições garantidoras – em ou-tras palavras, o Estado não é um “mal necessário”, mas um bem indispensável.

Em termos de regulação da comunicação, um ponto inicial de refe-rência é a Primeira Emenda da Constituição norte-americana, segundo a qual nenhuma lei deve ser feita para diminuir a liberdade de expressão. O argumento, entretanto, passou a ser utilizado para fortalecer um cenário em que o abuso da liberdade favorece a concentração econômica e o uso político dos meios. Como se verifica no Brasil, em contexto agravado pelo trauma da ditadura militar, qualquer iniciativa de fiscalização e responsabilização dos meios de comunicação é entendida como censura.

O número restrito de atores econômicos converte-se em prejuízo para a pluralidade da informação. Ao contrário do que apregoa o discurso empresa-rial, é a concentração da propriedade que constitui a principal barreira à liber-dade de expressão. Desse modo, sem garantias institucionais, a comunicação não se torna acessível em todas as suas dimensões ao conjunto dos cidadãos, como nos lembra James Michael (1990, p. 46, livre tradução)2:

(...) se a diversidade de informações transmitidas é desejável como um fim, o mercado não é necessariamente a melhor forma de alcançá-la. Até mesmo em termos mensuráveis do provimento de acesso universal ao serviço de radiodifusão, a concorrência no mercado não será neces-sariamente um incentivo para chegar a áreas remotas.

A regulação das comunicações encontra seu sentido no caráter social do direito de se comunicar, um exercício essencialmente coletivo. Por essa razão, a simples garantia das liberdades individuais não implica em um cenário mais amplo de justiça social.

A questão central nas comunicações não é o que pode ser regulado – que abre espaço para a defesa de que nada é passível de regulação –, mas sim com base em que princípios o controle público deve acontecer. Serviços e meios técnicos guardam especificidades quanto ao objeto regulado: na radiodifusão,

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por exemplo, há um espectro limitado a ser distribuído entre as operadoras. Entretanto, a regulação não conta com atributos essencialmente técnicos; ao contrário, sua função é garantir a observância de questões de interesse público, como igualdade de acesso e liberdade de fala – trata-se, portanto, de matéria de natureza política por excelência.

Há distintas visões sobre aquilo que se entende como interesse público. Uma primeira acepção diz respeito a ações que possam beneficiar o maior nú-mero possível de pessoas sem prejudicar direitos individuais ou coletivos. Essa perspectiva é notada, por exemplo, nas políticas de universalização do acesso à banda larga ou ao telefone, que compreendem o aumento númerico da pene-tração tecnológica como um fator de interesse para a sociedade.

Tal abordagem está associada a uma perspectiva majoritarista da demo-cracia, segundo Arend Lijphart (1999), que se caracteriza pela resposta aos an-seios da maioria da sociedade. No entanto, nem todos os cidadãos concordam com a opinião do maior número ou têm seus anseios atendidos pelo consenso hegemônico. É desse desequilíbrio que nascem as minorias representativas.

Uma segunda concepção possível para o interesse público alia a preocu-pação da quantidade com a qualidade na distribuição dos benefícios e liga-se a uma visão consensualista da democracia (LIJPHART, 1999). Advém daí a ideia de que o bem coletivo não corresponde à soma dos interesses individuais, mas sim envolve um quadro de valores humanistas, dentre eles o respeito à de-mocracia, à vida, à ética pública e ao meio ambiente, dentre outros. No mesmo exemplo da universalização da banda larga, a expansão do número de pessoas conectadas não garante a qualidade do acesso às tecnologias de informação e comunicação, assim como a diversidade dos usos e apropriações.

Essa é a concepção que, segundo William H. Melody (1990), deve orien-tar as políticas públicas de comunicação, motivadas a conciliar duas perspec-tivas: a) aquela dos grupos afetados pelas ações, ainda que não disponham de recursos de organização e reivindicação sistemática de suas demandas; e b) as aspirações da sociedade como um todo, no conjunto dos benefícios.

As opções na condução das políticas públicas em geral se estruturam entre essas duas vertentes. Não se tratam, porém, de alternativas estanques, mas pólos de uma infinidade de combinações encontradas na realidade, que podem envolver opções mais ou menos atentas às questões da diversidade e da participação social.

3. mediadOR de inteResses Ou mediadOR “inteRessadO”: a atuaçãO dO estadO na RegulaçãO das cOmunicações

Responder aos anseios da maioria, em ações de alcance generalizado, ou atender às demandas dos grupos minoritários, observando cada especificidade? Definir estratégias a partir de técnicos do Estado ou permitir a participação da sociedade nas decisões? Utilizar o aparelho estatal somente para fiscalizar o

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andamento de atores privados ou tornar o Estado parte do processo produtivo, compartilhando responsabilidades com o setor privado?

Embora não haja oposição necessária entre cada uma dessas alternativas, são essas decisões estratégicas a serem tomadas no âmbito das políticas públicas – e na comunicação não é diferente, com o agravante de que esse campo possui um potencial tanto econômico quanto político-cultural, uma vez que envolve as esferas de produção e circulação de dados, informações e opiniões na sociedade.

A análise do papel assumido pelo Estado permite destacar duas tendências normativas em políticas de comunicação, segundo Suzy dos Santos e Érico da Silveira (2007). Em um dos pólos, preserva-se o valor de livre mercado ao reduzir a intervenção estatal à distribuição de concessões, ainda assim por uma exigência téc-nica do meio, que se serve de um espaço de transmissão limitado. No outro polo, sob influência da ideologia do Bem-Estar Social, o Estado atua como principal promotor da comunicação e a presença do mercado é permitida, porém fortemente regulada.

O primeiro modelo foi a experiência por que passaram os Estados Unidos, onde a mínima regulação sobre a radiodifusão guia-se por um vago pressuposto de interesse público; já o segundo paradigma teve manifestações diferentes na Europa, a partir do Reino Unido, em países nos quais a comunicação foi consi-derada um serviço público, como a distribuição de água e o sistema de correios.

Para entender a relação do Estado com a comunicação é útil a teoria propos-ta por Vincent Mosco (1988), que considera as formas de governança presentes nas sociedades capitalistas desenvolvidas – com a observação essencial de que o Estado se faz presente em todas as variações, mesmo naquelas que parecem prescindir do poder público em favor de decisões estratégicas de mercado. Ao receber demandas oriundas das esferas sociais, o Estado atua como mediador dos jogos de interesse – o que, como já observamos, não implica em impessoalidade nas decisões.

A teoria de classe, na leitura de Mosco, enxerga “o controle das agendas e decisões como expressões de processos dinâmicos e relações de poder no conjunto do sistema social” (MOSCO, 1988, p. 117)3. Segundo o autor, quatro vetores defi-nem o processamento das demandas sociais por parte do Estado: o mercado e sua lógica restritiva, baseada no aumento dos benefícios particulares; a representação democrática, com a ressalva de que o excesso de demanda pode atuar como um componente de entrave; o controle social, que mais do que a forma anterior implica em participação direta de segmentos sociais representativos; e por último, a espe-cialização ou o poder baseado no conhecimento técnico, que apresenta o risco de decisões desumanizadas, carentes de atenção para as reivindicações correntes na realidade. Da combinação entre essas quatro tendências de interesses no jogo social é que se elaboram as formas de governança, como evidencia a Figura 3.1.

De acordo com Mosco, a regulação (1) corresponde à mediação dos confli-tos de interesse, em um cenário de predomínio da iniciativa privada, para que se respeite minimamente o interesse público. É o que se verifica na experiência da radiodifusão brasileira, assim como na norte-americana, em que o Estado tem o

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papel predominante de autoridade concessora de outorgas, além de estabelecer princípios gerais para a execução dos serviços por parte de agentes privados.

Já a vertente da competição (2) baseia-se no mito de que o mercado é autossus-tentado. Menos frequente na realidade do que o tipo ideal anterior, remete às ini-ciativas de autorregulação empreendidas pelo mercado publicitário no Brasil, como também aspiram fazer as empresas jornalísticas, ao menos segundo os discursos das entidades representativas, como a ANJ (Associação Nacional dos Jornais).

Já o corporatismo (3) é o esforço por parte do poder público de incorpo-rar, na formulação de decisões, os distintos segmentos sociais (radiodifusores, empresários das telecomunicações, associações de pais, entidades de defesa e conscientização dos consumidores, grupos de representação minoritária, como homossexuais, mulheres, negros, índios, portadores de deficiência, entre outros). No Brasil, o diálogo por parte do Estado com esse universo de atores teve na I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, a sua principal manifestação.

Por fim, a gestão pelo quadro de especialistas (4) se baseia em princípios técnicos e em valores como eficiência, produtividade, transparência e gastos mí-nimos. A visão que privilegia aspectos universalistas, efetivada através de meca-nismos que garantam a impessoalidade das ações públicas, é uma via de mão dupla: nas palavras de Eli Diniz (1998, p. 38), “conduziria ao aprimoramento da qualidade das decisões”, na medida em que amplia o horizonte de atuação do po-der público, enquanto por outro lado, devido à extensão da máquina burocrática, pode passar “ao largo dos procedimentos rotineiros de controle democrático”. No fundo, pode se constituir como estratégia para mascarar o real propósito da tecnocracia de garantir benefícios para poucos. Trata-se da forma de governança que advém com o capitalismo informacional, defendido por empresas de infote-lecomunicações e por governos de inspiração neoliberal.

FIGURA 3.1 – Formas de governança nas sociedades capitalistas avançadas, a partir dos vetores de forças que pesam no processamento de demandas por parte do Estado

REPRESENTAÇÃO(incorporação ampla)

MERCADO(indireto)

REGULAÇÃO

ESPECIALIZAÇÃO(incorporação restrita)

COMPETIÇÃO

CONTROLESOCIAL(direto)

QUADROS DEESPECIALISTAS

CORPORATIVISMO

Fonte: Vincent Mosco (1988), traduzido

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Se o modelo sugerido por Mosco se aplica a “sociedades capitalistas avançadas”, o que dizer de países com níveis diferentes de desenvolvimento, como seria o caso brasileiro?

A postura do Estado brasileiro, por vezes incapaz de gerar bens públicos, não é exclusiva do setor das comunicações. Reflete antes o patrimonialismo exercido na política brasileira, que se caracteriza pela “apropriação privada dos recursos do Estado, seja pelos políticos ou funcionários públicos, seja por seto-res privados” (SORJ, 2001, p. 13). Durante os ciclos autoritários, o Estado foi confundido com governo e a mesma lógica persistiu após a redemocratização.

Por outro lado, nem todo o aparelho estatal é capturado pela prática de favorecimento de setores hegemônicos, já que não podemos considerar o Estado como um bloco monolítico. Se prevalece a máxima de que para gover-nar é preciso fazer acordos, forças progressistas e conservadoras podem convi-ver no mesmo governo. Desse modo, políticas voltadas para a diversidade cul-tural, empreendidas pelo Ministério da Cultura, dividiram espaço com uma gestão pouco aderente às reivindicações sociais, por parte do Ministério das Comunicações, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), que se caracterizou por coalizões pragmáticas entre políticos remanescentes da ditadura e intelectuais renomados de esquerda.

Qual é, enfim, o papel do Estado nas políticas de comunicação? Nem ár-bitro imparcial dos interesses das organizações, nem uma espécie de “gerente” das mudanças tecnológicas. O Estado é arena dos conflitos políticos, locus de disputa entre os grupos de interesse, espaço de elaboração de decisões a partir de dissensos e consensos (MOSCO, 1988).

Até aqui analisamos o papel do Estado como regulador das comunica-ções, mas é possível entendê-lo ainda como mantenedor de um sistema próprio de mídia, como veremos no item a seguir pela análise do caso brasileiro.

4. O estadO cOmO mantenedOR de televisões nO bRasil

Apesar de ter se constituído sob bases comerciais, a radiodifusão no Brasil contou com o Estado como elemento propulsor de seu desenvolvimento – seja por meio de incentivos ao mercado oligopólico ou ao contribuir com a distribuição de sinais das emissoras comerciais pela extensão do território bra-sileiro. De acordo com Othon Jambeiro (2000, p. 23), é possível visualizar três dimensões para a atuação do Estado nas comunicações brasileiras:

Ele é Estado Proprietário, no que se refere, por exemplo, a bibliotecas, centros de documentação, ao espectro eletromagnético e às emissoras de rádio e TV que explora diretamente. É também Estado Promotor, porque traça as estratégias públicas para o desenvolvimento do setor, faz inversões de infraestrutura, e concede incentivos e subvenções. E, finalmente, é Estado Regulador, na sua função de fixar regras claras de instalação e operação, que eliminem as incertezas e desequilíbrios.

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No exercício da função de proprietário, o Estado mantém serviços de comunicação voltados para a informação, a educação e o entretenimento dos cidadãos, buscando a representação da diversidade dos segmentos sociocul-turais e diferenciando-se da lógica da mídia comercial (pelo menos em tese). De outro modo (e essa é uma tendência mais recente), o poder público monta veículos de divulgação institucional, que atuam como “janelas” para a socieda-de, fomentando a transparência sobre as esferas de poder. É o caso das TVs e rádios ligadas aos órgãos de comunicação dos três poderes da República.

Na prática, entidades públicas ou ligadas ao Estado detêm 45 concessões de televisão aberta no Brasil, segundo levantamento próprio – sendo que 41 delas estão instaladas. Como mostra o Gráfico 2.1, a vinculação com instâncias estatais se dá por meio de governos estaduais (17), universidades públicas fede-rais (11), universidades públicas estaduais (3), Prefeituras (5), Governo Federal (3), Poder Legislativo Federal (2), Judiciário (1) e Assembleias Legislativas (3).

Uma vez que foram incluídas nesse conjunto de emissoras de vinculação estatal também algumas TVs universitárias e entidades geridas por Conselhos Curadores, para as quais a alcunha de “estatal” soaria incômoda, é preciso esclarecer o que se entende por este vínculo: qualquer relação com o poder público em termos de financiamento e nomeação do quadro gestor. A inde-pendência da programação, que reflete a autonomia gerencial e a solidez do orçamento, precisa ser analisada em cada caso.

GRÁFICO 2.1: Vínculo das concessões de TV com as instâncias estatais

Fonte: Levantamento próprio.

Dentre as atuais 20 associadas da Abepec (Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais), percebe-se uma variedade de instituições gestoras. Quatro ligam-se a universidades (Pernambuco,

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Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Tocantins). Nos estados de Amazonas, Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Sul, Sergipe e São Paulo, as emissoras são mantidas por fundações públicas (de direito público ou privado).

A estatal Empresa Brasil de Comunicação (EBC) gerencia a TV Brasil no Distrito Federal, no Maranhão e no Rio de Janeiro. A gestão se dá por meio de autarquias estaduais em Alagoas, Acre, Paraná e Espírito Santo. E, por fim, a TV Minas é mantida por uma OSCIP4. Dentre as televisões esta-duais, quatro não estão associadas à Abepec: Goiás, Piauí e duas emissoras do Governo de Pernambuco (a TV estadual que está em processo de gestação e o canal por meio do qual o Departamento de Telecomunicações leva até a ilha de Fernando de Noronha o sinal da TV Globo, com inserção de progra-mação local – um híbrido “estatal-comercial”).

Na função de proprietários, os governos estaduais exerceram um protagonismo que levou à constituição de canais públicos regionais. As televisões se estruturaram minimamente em uma pirâmide de produção, sob a liderança da TV Cultura de São Paulo e da emissora educativa do Governo Federal, devido ao fornecimento de programação para a grade li-mitada da maior parte delas5. O termo “rede”, utilizado pelo campo desde 1999, após assembleia da Abepec que formalizou a chamada Rede Pública de Televisão, não implica em intercâmbio de conteúdo entre as emissoras. Não é prática frequente, por exemplo, parcerias entre instituições do Norte e Nordeste para a produção cooperativa de séries e documentários (como se poderia esperar de uma estrutura operativa integrada de fato).

GRÁFICO 2.2: Vínculo institucional das associadas da Abepec

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GRÁFICO 2.3: Vínculo institucional das associadas da Abepec

Fonte: Levantamento próprio.

Por outro lado, não se pode falar em uma arquitetura verticalizada seme-lhante ao modelo adotado pela comercial TV Globo porque não existem restri-ções formais para a produção própria, muito menos padrões editoriais a serem seguidos. Devido à ausência de centralização, a parcela de conteúdo produzido pelas emissoras pode variar de acordo com a demanda e as condições locais: como informou o diretor do IRDEB (Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia), o cineasta Pola Ribeiro (Paulo Roberto Vieira Ribeiro), a televisão educa-tiva baiana gera entre 25 a 30% de seu conteúdo, mas durante eventos culturais do estado, como o carnaval e as festas juninas, esse índice pode chegar a 80%.

O que se verifica, na realidade das televisões educativas estatais, é a carência de recursos, que obriga essas emissoras a utilizarem reprise de programação e a re-percutirem as produções daquelas que dispõem de mais verbas. Uma das consequ-ências da fragilidade institucional é a submissão aos favores dos governos. Até anos recentes, a TVE Bahia era considerada uma das emissoras educativas mais sujeitas a injunções políticas: tornou-se célebre o episódio, ocorrido em 2001, em que o programa “Observatório da Imprensa”, produzido pela TVE Brasil, foi retirado do ar enquanto um entrevistado, o jornalista João Carlos Teixeira Gomes, apresentava críticas ao líder político baiano Antônio Carlos Magalhães.

O foco para a maior parte dessas emissoras são programas jornalísticos, com presença do viés opinativo, por demandarem em geral orçamentos meno-res que produtos ficcionais, por exemplo. O atual diretor da TVE Bahia, Pola Ribeiro, defende a abertura das diretrizes de programação aos grupos culturais representativos, como a comunidade negra, e a produtores independentes e universitários6. O campo público emerge como um espaço possível de repre-sentação para as culturas regionais – o que, em tese, é prerrogativa de qualquer

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rádio ou TV, de acordo com o artigo 221 da Constituição, que enuncia o prin-cípio da “regionalização da produção cultural, artística e jornalística”.

A entrada da TV Brasil nessa estrutura representou um recuo na participa-ção da TV Cultura como principal liderança do campo público, para o que con-tribuiu ainda o fato de que esta última passou a cobrar pela retransmissão de seus conteúdos a partir de 2009. Três anos após a criação do canal federal, a emissora de São Paulo somente disponibiliza conteúdo para as televisões de seis estados: Acre, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Tocantins e Minas Gerais, esta última com significativa produção própria e também retransmissora de conteúdo da TV Brasil. Se por um lado o direcionamento do campo assumido por uma instituição federal contribui para formalizar a estrutura pública, por outro a centralidade da TV Brasil traz consigo o risco de enfraquecer ainda mais os braços regionais.

A desatualização do parque tecnológico e a carência de identidade criati-va contribuíram para associar o campo público a uma imagem de televisão de baixa qualidade, sob uma perspectiva que valoriza aquilo que parece “bonito”, “moderno” ou “destinado ao consumo”. Soma-se a esse quadro a lentidão bu-rocrática a que estão submetidas as TVs estatais, sendo uma das consequências dessa dificuldade o fato de que aproximadamente a metade delas tem a con-cessão vencida (e não renovada), inclusive a TV Cultura de São Paulo (desde 2007), a TV Paraná Educativa (2003) e a TV UFPE (1981).

Tal observação é um indicativo de que as TVs públicas no Brasil operam na precariedade, mesmo quando abarcam a criatividade em suas iniciativas. É o que se verifica no projeto de renovação empreendido por uma nova televisão em Pernambuco, lançada em 2010, sob a direção do músico Roger de Renoir. Com um modelo de gestão participativa e programação regional, a emissora estadual oficialmente não dispõe de outorga na capital – o governo do estado possui apenas uma retransmissora em Recife. A concessão de geradora está baseada no município de Caruaru, a 140 km da capital, mas também vencida desde 1997. Projetos inovadores não podem prescindir de solidez jurídica e institucional, porque do contrário não se sustentam no tempo.

Na tendência de representação regional, algumas prefeituras municipais desenvolveram seus próprios canais de televisão, de perfil generalista, como a TVE de São Carlos, criada em 2006, atualmente com 3h30 de grade local (sen-do 75% de produção própria). Nesse cenário, surgem novas possibilidades de gestão e financiamento, adaptadas às realidades locais – em Montenegro, no Rio Grande do Sul, a TV gerida pela Fundação Municipal de Artes (Fundarte) é “mantida por dotação orçamentária municipal, convênios, doação de empresas, participação de patrocinadores de eventos, projetos socioculturais e contribui-ções de alunos”7. Uma tendência de localismo das TVs públicas e estatais precisa-ria ser acompanhada, entretanto, do fortalecimento das instâncias de regulação, para evitar a submissão aos interesses econômicos e políticos dos lugares.

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A outra face da atuação do Estado como mantenedor de veículos de co-municação cumpre com os princípios da publicidade e da prestação de contas, ao considerar a informação pública como um direito dos cidadãos. Trata-se de um fenômeno posterior à Lei 8.977 de 1995, conhecida como Lei do Cabo, que impõe às operadoras de cabodifusão a reserva de sete canais para institui-ções governamentais, universitárias e comunitárias – como mostra a Tabela 2.1. Uma vez que passaram a dispor de um canal reservado na televisão por assinatura, os órgãos de comunicação do Poder Legislativo conceberam as pri-meiras emissoras de divulgação institucional, a começar pela TV Senado em 1996 e pela TV Câmara em 1998.

TABELA 2.1: Canais públicos e estatais transmitidos pelas operadoras de cabodifusão, de acordo com a Lei do Cabo de 1995

Canais Ligação institucional Perfil Financiamento

/Gestão

TV Câmara Câmara dos Deputados

Comunicação institucional pública Estatal

TV Senado Senado Federal Comunicação institucional pública Estatal

TV Justiça Supremo Tribunal Federal

Comunicação institucional pública Estatal

NBR* Empresa Brasil de Comunicação

Educativo / Institucional* Estatal

TVs das Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais

Legislativos Estadual e Municipal

Comunicação institucional pública Estatal

Canal Universitário Universidades pú-blicas ou privadas Educativo Universidades

Canal Comunitário

Instituições comu-nitárias, por meio de acordo com a

operadora

ComunitárioOrganizações da sociedade

civil

* A NBR ocupa a reserva do canal educativo-cultural, na ausência deste, cujo conteúdo deve-ria ser gerado em parceria entre os órgãos encarregados da educação e da cultura nos governos federal, estadual e municipal.

Como estão incumbidas da função de comunicação pública, as televi-sões e rádios estatais com perfil institucional não podem cair no vício da au-torreferência em relação às casas legislativas e aos órgãos assessorados, muito menos se submeter aos interesses dos mandatários. O monitoramento dos go-vernos por meio das redes digitais é uma agenda para as ações de comunicação dos poderes públicos, ao lado de mecanismos de participação e controle social em rádios e TVs institucionais – afinal, estas também são públicas.

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Entretanto, há que se compreender que existe uma diferença conceitual entre os órgãos de comunicação institucional e aquelas televisões chamadas de educativas, mas que se voltam para o entretenimento, a informação e a edu-cação dos cidadãos. Ainda que tenham o orçamento e a gestão vinculados em larga medida ao Estado, as TVs públicas, no sentido amplo da palavra, preci-sam exercitar a distinção em relação ao estatal, no difuso campo das televisões universitárias, comunitárias, legislativas, estaduais, federais e municipais.

No Brasil, o texto da Constituição traz implícita essa pluralidade de sentidos para o público ao enunciar a complementaridade entre os três siste-mas de radiodifusão (público, estatal e privado), de acordo com o artigo 223. A questão que logo surge é: mas o estatal não é público? Aí reside um debate fértil sobre a relação entre as duas esferas e o que a referência constitucional parece apontar é que existe uma noção de “público” que não se resume ao esta-tal. Instituições radiodifusoras controladas pela sociedade e sem fins lucrativos poderiam compor esse universo comunicativo complementar aos sistemas pri-vado e estatal propriamente ditos, ao exemplo das comunitárias autênticas, de algumas universitárias ou mesmo das públicas geridas com participação social.

5. cOnsideRações finais

Seria a regulação dos atores privados condição suficiente para promover o direito à comunicação? A resposta é não. O Estado não é apenas regulador, mas também mantém e incentiva veículos do sistema público-estatal.

Pode-se supor que basta um mercado regulado, em que os participantes observem os princípios da legalidade e da pluralidade, ainda que estejam volta-dos para objetivos de empresas comerciais (como é legítimo que o façam), para garantir o direito de se comunicar a todos e todas. Na realidade, esse quadro levaria a um vício na estrutura das comunicações, criando duas categorias de cidadãos: aqueles que só têm oportunidade de se expressar para seus próximos e outros que podem falar ao conjunto da sociedade, pelo rádio e pela televisão. Já se vê que é preciso ir além da prática regulatória, pois a dimensão pública exige que os cidadãos sejam produtos e copartícipes na comunicação.

Os veículos de comunicação mantidos pelo Estado podem contribuir com essa segunda atribuição, desde que estejam abertos à participação da sociedade tanto no quadro gestor quanto na produção de contéudo. Essa ainda não é a re-gra no conjunto das emissoras estatais, notadamente as vinculadas aos governos estaduais. Outro perfil de entidades radiodifusoras mantidas pelo Estado são as TVs e rádios ligadas aos órgãos de comunicação dos poderes públicos, que emer-giram após a Lei do Cabo de 1995 e cumprem função de comunicação pública.

Não é possível edificar limites estáveis entre os sistemas público e esta-tal, uma vez que, na realidade social, as redes se cruzam e se ampliam, mas definições dinâmicas são exigidas e precisam ser buscadas pelos formuladores e atores das políticas públicas de comunicação.8

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nOtas

1 Livre tradução para “La regulacción es un proceso que consiste en la restricción intencional de la elección de actividades de un sujeto, y proviene de una entidad que no es parte directa ni está involucrada en dicha actividad”.

2 Livre tradução para: “(…) if diversity of information communicated is desirable as an end, the market is not necessarily the best way of achieving it. Even in measur-able common carrier terms of providing universal broadcast service, market compe-tition will not necessarily be an incentive to reach remote areas.”

3 “Class theory sees control over decisions and agendas as expressions of dynamic processes and power relations in the entire social system, in the case developed capitalism societies.”

4 A OSCIP é um modelo de entidade instituído no Brasil em 1999, pela lei 9.790, cujo perfil se caracteriza por não governamental, mas recebe do Ministério da Justiça um título que lhe confere obrigações pertinentes ao direito público. Autarquias e funda-ções públicas são duas modalidades da administração pública indireta.

5 Segundo dados da Abepec anteriores ao lançamento da TV Brasil (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2006, p. 47), “a TV Cultura e a TVE Brasil são as grandes municiadoras de conteúdos para a rede: 40% das emissoras associadas (AL, AM, BA, ES, RN, SC e TO) ocupam entre 80% a 95% de sua grade de programação com material gerado pelas duas. A programação captada da TV Cultura representa em média 46,47%, variando de 83,16% (TVE/AL) a 10,29% (TVE/MT), e a da TVE Brasil ocupa uma média de 30,11% da grade das emissoras associadas, variando de 5,46 % (TVC/SC) a 83,24 % (TVE/MA).” É preciso lembrar que esses números sofreram alterações significativas depois da criação da TV Brasil.

6 Informações concedidas por telefone, em janeiro de 2011. Como ainda men-cionou Pola Ribeiro: “Nós acompanhamos todos os eventos da cultura negra baiana. Quando começamos o trabalho na TV, a Bahia estava um pouco miúda, mesmo sendo um estado diverso. O negão querendo falar, a negona querendo falar. A TVE Bahia percebeu isso e abrimos espaço para questões de interesse dessa comunidade. Também tiramos a missa de domingo, mas fizemos isso de uma forma bacana, chamando o bispo para conversar (e essa discussão agora chegou até a TV Brasil), mas mantivemos uma missa ecumênica na programação, em que partici-pam diversos segmentos religiosos. Também temos um programa que se chama ‘Liberdade Religiosa’, que trabalha com diferentes religiões.”

7 Segundo o site da instituição: http://www.fundarte.rs.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20&Itemid=29

8 Esse artigo é parte da dissertação de mestrado, defendida em 2011 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação de Suzy dos Santos.

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ResumoAs indústrias culturais na América Latina desempenham papel fundamental na conformação de suas culturas ao lado da produção simbólica tradicional. No entanto, tais indústrias estão nas mãos de corporações privadas e os poderes públicos têm evitado intervir nesses setores. Esse texto se propõe a discutir as tensas relações entre as políticas e as indústrias culturais no subcontinente, em uma perspectiva diacrônica e sincrônica.Palavras-chave: Política Cultural; Indústria Cultural; América Latina.

AbstractThe cultural industries in Latin America play a fundamental role in shaping their cultures alongside the traditional symbolic production. However, these industries are in the hands of private corporations and governments have avoided intervening in these sectors. This text aims to discuss the strained relations between the political and cultural industries in the subcontinent, in a diachronic and synchronic perspective.Keywords: Cultural Policy, Cultural Industry; Latin America.

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Políticas e indústrias culturais na América Latina

Policies and cultural industries in Latin America

Alexandre Barbalho | [email protected] dos PPGs em Políticas Públicas e Sociedade da UECE

e em Comunicação da UFC.

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intROduçãO

Em um livro publicado no início deste novo século, Néstor García Canclini (2002) se indaga sobre os significados que o pertencimento à America Latina proporciona na contemporaneidade. Ou em outras palavras: “o que significa ser latino-americano”. A tese do autor é a de que não são apenas as respostas a esta questão que têm se transformado, mas a própria questão, uma vez que ela já não comporta um lugar geográfico e afetivo muito claro, resultado da mera soma de Estados-Nações situados no continente americano com língua oficial de origem latina (espanhol, português e francês).

Com as migrações de latino-americanos, em especial para a Europa e os Estados Unidos, e com o fluxo mundializado das produções simbólicas origi-nárias daquela parte do continente, sentir-se da América Latina não implica mais estar fixado em alguma parte do território entre o México e a Argentina. Por outro lado, habitar algum dos países latino-americanos já não garante mais uma “identidade nacional” ou “regional” estável, integradora do “ser”. Essa sensação de desterritorialização não resulta apenas da mundialização da cultu-ra e do consumo intenso de seus produtos.

À crise dos parâmetros culturais endógenos aos quais recorriam os ideólogos da nacionalidade há que somar outro dado, de ordem político-cultural e social, que é o questionamento feito por dentro da nação por aqueles setores margina-lizados pela tradição inventada que sustenta o discurso identitário ocidental: a herança europeia do homem branco cristão. Contra a História oficial insurge o pensamento liminar com suas histórias locais. Histórias das lutas de diver-sos movimentos sociais que se somam à tradição de resistência dos movimentos operários, campesinos e indígenas latino-americanos: os movimentos feministas, dos jovens, dos afrodescendentes, dos ecologistas, dos homossexuais, enfim, das diversas minorias e seus devires. Cada um deles possui sua própria comunidade imaginada e a negocia com aquela mais ampla, que procura se impor como tota-lidade e integradora, como hegemonia, que é a das elites da Nação.

Retornando ao desafio proposto, pensar sobre o lugar dos latino-americanos no novo século, Canclini nos coloca a seguinte hipótese: “aun reconociendo el vigor y la continuidad de la historia compartida, lo latinoamericano no es una esencia, y más que una identidad es una tarea” (CANCLINI, 2002, p. 32). Sua argumentação se desenvolve em torno de como três esferas profun-damente inter-relacionadas da vida contemporânea podem informar sobre a latino-americanidade: o Estado nacional, cujo sujeito é o cidadão; as indústrias culturais, cujo sujeito é o espectador; o mercado, cujo sujeito é o consumidor.

A partir desse contexto, proponho discutir como a presença do Estado e suas po-líticas na esfera das indústrias culturais respondem, ou não, à tarefa de estabelecer uma latino-americanidade plural, aberta não apenas à diversidade, mas inclusive às diferenças – distinção entre diversidade e diferença que se faz necessária por

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causa da tradição de nossas políticas culturais de fazerem do discurso da diver-sidade um elemento de integração autoritária, esvaziando todo conflito que a diferença traz (BARBALHO, 2007). Uma América Latina onde o cidadão não se transforme apenas em consumidor e nem em mero espectador.

Para dar conta desse debate, nosso percurso vai se dividir em três momentos: 1. Definindo de onde se fala: o que se entende por política cultural; 2. Políticas cultu-rais na América Latina: uma perspectiva histórica; e 3. Cruzamentos entre as polí-ticas de cultura e as indústrias culturais na América Latina: uma visão de conjunto.

definindO de Onde se fala: O que se entende pOR pOlítica cultuRal

Há uma riqueza de significados que a palavra “política” tem na língua inglesa e que não possui no português: policy e politics. Não há consenso na ciência polí-tica sobre o significado desses termos, o que exige sempre um recorte e o esta-belecimento de onde se fala. Nesse sentido, parece-me interessante a definição proposta por Klaus Frey, na qual policy se refere à “configuração dos programas políticos, aos problemas técnicos e ao conteúdo material das decisões políticas”. Se a policy é da ordem material, a politics é processual e dá conta do “processo político, frequentemente de caráter conflituoso no que diz à imposição de ob-jetivos, aos conteúdos e às decisões de distribuição” (FREY, 1999, p. 4).

Para diferenciar, na língua espanhola, os sentidos de policy (que “se refiere más bien a la acción pública, al aspecto programático de la acción gubernamental”) e politics (que “tiene que ver con la política como lucha por el poder”), Eduardo Nivón Bolán (2006, p. 59) propõe chamar a primeira de “Política”, com mai-úscula, e a segunda como “políticas”, com minúscula e no plural.

Ao acrescentarmos o qualificativo cultural, teríamos então cultural politics e cul-tural policy, que agregam as distinções comentadas acima ao campo da cultura. Como não é possível este mesmo jogo de palavras e significados em português, proponho falarmos em “política cultural”, para dar conta da cultural policy, e em “política de cultura”, para fazer referência ao universo da cultural politics.

Assim, política cultural (cultural policy) diz respeito ao universo das políticas públi-cas voltadas para a cultura implementadas por um Governo. Em outras palavras:

un proceso en el que el Estado impone un tratamiento político – es decir, resultado del debate público sobre el sentido de la acción del Estado – a aquello que llama “cultura” y cuyos objetivos consiste en ordenar, jerarquizar o integrar un conjunto necesariamente hetero-géneo de actores, discursos, presupuestos y prácticas administrativas (BOLÁN, 2006, p. 60).

Em sentido próximo a Bolán, Toby Miller e George Yúdice definem polí-tica cultural como os “soportes institucionales que canalizan tanto la creatividad estética como los estilos colectivos de vida” (MILLER; YÚDICE, 2004, p. 11).

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Já as políticas de cultura (cultural politics) se referem às disputas de po-der em torno dos valores culturais ou simbólicos que acontecem entre os mais diversos estratos e classes que constituem a sociedade. Apoiando-se em Jim McGuigan (1996), podemos afirmar que elas dão conta do confronto de ideias, das disputas institucionais e das relações de poder na produção, circulação/distribuição e recepção/consumo de bens e significados simbólicos.

É nesse sentido que podemos entender a afirmação de Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar de que os movimentos sociais na América Latina contemporânea, ao desafiarem os sentidos hegemônicos de nação, de raça, de gênero, de religião, de geração, de desenvolvimento, enfim, ao colo-carem em xeque a cultura política dominante, acabam por colocar em ação políticas culturais. Por política cultural, os autores entendem o “processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando dife-rentes significados e práticas culturais entram em conflito uns com os outros” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 24-25).

Mesmo entendendo que as dimensões da cultural policy e da cultural politics não são independentes, muito pelo contrário, são interdependentes, já que as ações e disputas de uma alimentam a outra e vice-versa, assumimos que neste artigo o lugar privilegiado de análise será o da política cultural (cultural policy). Isso significa que focaremos a atuação do Estado e dos governos e de suas políticas públicas em detrimento das disputas políticas entre os diversos agentes do campo cultural no estabelecimento de suas normas.

Definido o conceito de política cultural, podemos passar para o ponto seguinte que é o de fazer um balanço histórico das relações do Estado e da cultura na América Latina.

pOlíticas cultuRais na améRica latina: uma peRspectiva históRica

Para discutirmos as políticas culturais na América Latina em uma pers-pectiva diacrônica, iremos nos apoiar em um artigo de Néstor García Canclini, publicado no Brasil em 1983.

Naquele início de década, Canclini (1983) se preocupava com as possibi-lidades de uma política popular na América Latina e o lugar que nela ocuparia a cultura. Daí o debate acerca das concepções de “nacional-popular”, vigentes na região ao longo de sua história e suas correlatas políticas culturais: 1) a biológico-telúrica; 2) a partidária do Estado; 3) a mercantil; 4) a militar; e 5) a histórico-popular.

A concepção biológico-telúrica é mais afeita aos regimes oligárquicos e ao nacionalismo de direita, pois entende a nação como uma unidade defi-nida por laços naturais, seja geográfico (o espaço territorial), seja biológico (a raça) e irracionais (o amor à terra natal, a religião). Essa concepção integradora desconsidera as diferenças socioculturais e políticas que compõem a nação, e

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busca, no plano simbólico, operar com uma identificação hegemônica do que considera como “interesse nacional”.

Como define Canclini (1983), o “Ser nacional” é aquele estabelecido pelas grandes famílias privilegiadas e aristocráticas, com suas concepções de submissão à ordem e respeito às origens. A constituição histórica e conflituosa da nação é diluída na noção apaziguadora de “tradição” em prol das institui-ções: Igreja, Exército, Família e Propriedade.

A política cultural correspondente à concepção biológico-telúrica tem como base a promoção do “folclore” que é a fossilização e a despolitização da cultura das camadas populares. Assim, não está interessada em enten-der as “novas práticas de apropriação com que os setores populares tentam modificar sua dependência da cultura hegemônica ou criam, inventam, o que o sistema dominante não lhes dá para satisfazerem suas necessidades” (CANCLINI, 1983, p. 41). O movimento que importa é o de afirmação da identidade nacional em contraposição à alteridade daquele que não pertence ao meio, mas que vem perturbar a sua paz.

A outra concepção é a estatista, também apoiada em uma visão subs-tancialista do nacional. Só que aqui a base da nacionalidade é o Estado. É ele quem legitima os valores a serem cultuados pelo povo e que integra a socie-dade, regulando os conflitos. Não se trata de um Estado democrático, mas sustentado nas corporações e no ideário populista, geralmente personificado na figura de um “grande líder”, como Vargas no Brasil e Perón na Argentina, ou de um partido coeso, como o PRI no México.

A política cultural estatista, na simbiose entre nacional e Estado e se po-sicionando contrariamente às oligarquias, procura unir as camadas populares e a burguesia nacional. Para isso, promove tanto determinadas expressões das culturas populares, como o samba no Brasil e o tango na Argentina, quanto das indústrias culturais, como o rádio e o cinema.

Como situa Canclini, ao contrário da “adesão declamatória do racismo” das oligarquias pautadas pela concepção biológico-telúrica, aqui a tradição é adaptada pelo Estado a novas etapas do desenvolvimento capitalista nacional: “o artesanato mostra a multiplicidade de lugares nos quais o capitalismo pode tornar funcionais objetos e símbolos à primeira vista estranhos a seus fins” (CANCLINI, 1983, p. 43-44).

A outra concepção é a mercantil, na qual o Estado se faz presente pau-tado prioritariamente, não pela questão da cultura nacional, mas pela cons-tituição de um mercado nacional. O esforço é o de unificar os padrões e os costumes, de modo a formatar o consumidor e potencializar a circulação das mercadorias, inclusive ou principalmente, a de bens simbólicos.

Se na lógica estatista há a transformação do étnico e do popular no nacional, na lógica mercantil eles se reduzem ao “típico”, mais uma vez em

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detrimento da pluralidade e das diferentes expressões culturais da nação. Geralmente esse típico é apresentado (e/ou vendido) recorrendo a formatos es-petaculares, em um movimento que, como define Canclini, perde em explica-ção e ganha em exposição. O que ocorre, desse modo, é uma política cultural promotora da padronização em nome do mercado.

A quarta concepção é a militar, que tomou sua forma mais bem-acabada após o golpe no Brasil em 1964 e que, posteriormente, foi seguido por outros paí-ses latino-americanos, como Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Peru e Uruguai. Como força presente nos rumos políticos da região desde os momentos iniciais da independência, o Exército resolve assumir o controle do Estado e da socieda-de diante das ameaças externas (o comunismo), da desordem interna (conflitos sociais) e em nome da ética no combate à corrupção dos governos populistas.

A base ideológica e pretensamente legitimadora dos golpes militares de Estado na América Latina é a “Doutrina da Segurança Nacional”, motivada pelos temores gerados pela Guerra Fria e pela revolução cubana e fundamen-tada nos ensinamentos vindos da Academia Militar Norte-Americana, com posterior contribuição dos militares franceses. A política cultural gerada por tal doutrina é a da apologia de determinados elementos da cultura nacional, mais apropriados à necessidade de controle por parte dos militares e, por outro lado, inibindo a participação da população e de suas organizações (sindicatos, organizações de bairro, estudantis etc.).

Na realidade, não se trata de uma política cultural inovadora. Pelo con-trário: seu programa é o de reproduzir determinadas práticas aristocráticas (concepção biológico-telúrica) e tecno-burocráticas (concepção estatista), com um viés de extremo autoritarismo. O que se evidencia em suas atuações negati-vas: censura, fechamento de instituições culturais, perseguição, prisão, tortura e exílio de intelectuais.

Por fim, a concepção histórico-popular. Analisando o que naquele momento representava as experiências dessa concepção (Cuba, Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Unidade Popular Chilena, Peronismo Revolucionário Argentino), Canclini conclui que esses movimentos estão unidos mais pelas ações político-econômicas e sociais do que por suas políticas culturais e que existem várias e divergentes concepções acerca do “popular”, sendo que, muitas vezes, a cultura não está nem explicitada como vetor das lutas sociais. O que há, portanto, é muito mais um “repertório de problemas” do que uma “fórmu-la alternativa ou de projetos elaborados do que seria uma política popular na cultura” (CANCLINI, 1983, p. 48).

Mas como caracterizar essa concepção, que aparece como um conjunto de ações e intenções dispersas? É possível afirmar, acima das diferenças e singulari-dades, que é aquela que vai se constituindo nos próprios projetos populares, que percebe o popular como força contra-hegemônica e não como algo essencializa-do, substancializado, folclorizado, tipificado, como nas outras concepções.

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Analisando os dilemas da democracia na América Latina nos anos 1980, quando os regimes autoritários começavam a dar lugar a governos eleitos direta-mente, Albert Hirschman (1986) observa que qualquer análise desse tipo deve “partir do pessimismo”. Na sua avaliação, não adianta muito buscar a “causa fundamental” das instabilidades dos regimes democráticos na região, porque se trata de um amplo conjunto de fatores entrelaçados, inclusive de estrutura cultu-ral. Seria também pouco producente alinhavar os elementos necessários para que tal estabilidade possa existir (crescimento econômico, fortalecimento da socieda-de civil e dos partidos políticos, imprensa independente etc.).

Apesar de seu pessimismo, Hirschman indica o caminho que deve ser seguido: o importante é compreender como “a democracia pode sobreviver e se fortalecer, não só em face de como apesar de várias situações adversas persistentes ou emergentes”. Portanto, a posição do analista é a de atenção. É preciso estar atento não às “condições necessárias”, mas àquilo que é da ordem do acontecimento, do inesperado, das “constelações raras de eventos favoráveis, caminhos estreitos, avanços parciais aos quais talvez se sigam ou-tros, e assim por diante. Temos que pensar no possível, em vez do provável” (HIRSCHMAN, 1986, p. 86).

Portanto, o desafio é o da passagem da concepção para a elaboração e exe-cução de políticas populares para a cultura aproveitando os “eventos favoráveis”. Como defende Canclini, são as organizações populares e seus movimentos que podem “socializar os meios de produção cultural, não resgatar, mas reivindicar o próprio, não difundir a cultura de elites, mas apropriar-se criticamente do melhor dela para seus objetivos” (CANCLINI, 1983, p. 48 – itálicos do autor).

Como se observa, a análise de Canclini, no momento em que foi feita, não poderia dar conta de fenômenos que são imediatamente posteriores, ocor-ridos desde a segunda metade dos anos 1980 até os dias correntes, como o fim do bloco socialista, a ascensão do liberalismo, bem como a escalada do processo de globalização e o gradual retorno à democracia nos países latino-americanos.

Em relação a esse último ponto, Guillermo O’Donnell (1998) observa que a redemocratização na América Latina é questionada por vários analistas por ela não responder aos desafios do acesso aos direitos básicos (moradia, trabalho, educação, saúde, cultura, assistência social etc.). Seriam, portanto, democracias políticas, ou “poliarquias”, com governos eleitos livremente, mas sem resultados satisfatórios no que se referem a outras dimensões da democra-cia. A tarefa que se coloca nesse processo é o de efetivar os direitos civis formais e responder às demandas por ampliação da cidadania, inclusive a cultural.

Levando em consideração todas essas transformações e desafios, é neces-sário atualizar a tipologia traçada por Canclini. Diante das variáveis, retomo a questão fundamental de sua reflexão, qual seja, discutir as concepções de nacional popular e as correspondentes políticas culturais. Para dar conta des-ta conjuntura de redemocratização e de integração na região, bem como da

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globalização e do neoliberalismo, parece-me interessante pensar na “concepção de espaço cultural latino-americano” e sua política cultural.

Para isso, recorremos a Manuel Garretón, que conceituou o “espaço cul-tural latino-americano”. O autor levanta três hipóteses que considera básicas para compreender este espaço na contemporaneidade: 1. “No habrá integraci-ón de los países latinoamericanos a la globalización si no es por medio de la integración en un bloque proprio; 2. “La dimensión cultural constituye un eje fundamental en la conformación de un bloque latinoamericano que se integra al mundo globalizado”; 3. “Si la conformación del gran espacio mundial se hace a través de espacios culturales, América Latina puede ser uno de esos espacios” (GARRETÓN, 2008, p. 45-48).

Por outro lado, Garretón enumera três dificuldades que têm que ser en-frentadas para que esse espaço consiga se efetivar. A primeira é que com a crise das comunidades nacionais, provocada, entre outros vetores, pela globalização, faz-se necessário recompor os parâmetros de pertença. O que pode ser uma oportunidade de superar os padrões de nacionalidade excludente, elaborados pelas concepções anteriores (biológico-telúrica, estatista, mercantil e militar), e efetivar um modelo mais democrático não alcançado pela concepção históri-co-popular, mas que dê conta dos parâmetros locais, nacional e supranacional.

A segunda dificuldade é a da exclusão social, ou seja, “la expulsión de masas que ya no pertenecen a las comunidades nacionales ni siquiera en calidad de explotadas u oprimidas, sino que aparecen como simplemente sobrantes” (GARRETON, 2008, p. 48). A questão é como essa grande parcela de latino-americanos deixa de ser vista como sem qualidade, uma sobra, e se transforma em cidadãos.

Por fim, a falta de vontade política dos grupos dirigentes para a cons-trução do espaço cultural latino-americano que está formado por alguns componentes básicos: identidades; patrimônio; memória; educação; ciência e tecnologia; indústrias culturais.

A política cultural correspondente ao que poderíamos denominar de concepção espaço cultural latino-americano passou por dois paradigmas nas duas últimas décadas. Nos anos 1990, segundo Garretón, suas carac-terísticas eram “más de aparatos e instituciones que de sustrato”, o que se configurava na “generación de institucionalidades para desarrollar cultura, protección frente a la globalización, incorporación o acceso a la cultura autonomizada de la educación pero con clara prioridad de ésta, predominio de los enfoques multiculturalistas” (GARRETÓN, 2008, p. 54).

Nos anos 2000, acrescentando-se a elementos vindos do paradigma an-terior, às políticas culturais se colocam questões de substrato. Em outras pala-vras, como responder à nova problemática latino-americana, o que requer

“una redefinición del pasado en función de nuevos proyectos históri-cos, industrias culturales o poderes e influencias mediáticos, que de

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no abordarse a nivel latinoamericano dejarán a estos países dependien-tes de los poderes fácticos transnacionales” (GARRETÓN, 2008, p. 54 – grifos meus).

Diante desse quadro, vale investigar que relações existem ou são possí-veis entre as políticas e as indústrias culturais na região.

cRuzamentOs entRe as pOlíticas e as indústRias cultuRais na améRica latina: uma visãO de cOnjuntO

Quando observamos as relações entre as políticas e as indústrias culturais na América Latina, a primeira constatação é de que, historicamente, tais relações são muito tênues. Ou seja, independente se o modelo for o biológico-telúrico, o partidário do Estado, o mercantil, o militar, ou até mesmo o histórico-popular, não há uma tradição de presença do poder público no que se refere a este campo da cultura. Mesmo o seu papel regulador sofreu com as medidas de desregula-mentação desde os anos 1980, período em que também ocorreram as privatiza-ções das poucas empresas públicas do setor, em especial as de telecomunicações.

Dessa forma, basicamente, as ações das políticas culturais latino-ame-ricanas se restringiram àqueles setores da cultura identificados com a cultura popular, ou com as expressões da cultura erudita e das expressões artísticas de vanguarda que necessitam das benesses governamentais para poderem existir. Assim, os poderes públicos se abstiveram de entrar em uma área de extremo interesse para o setor privado, mas que, ao mesmo tempo, são os principais meios de formação e de informação da população.

Pensando não mais em termos de políticas culturais nacionais, mas na construção do espaço cultural latino-americano, ações públicas no âmbito das indústrias culturais tornam-se mais viáveis na medida em que ocorram no marco de cooperações regionais. No entanto, se a tarefa da latino-america-nidade não deve se resumir apenas ao campo da política e muito menos da economia, e que, muito pelo contrário, ela é acima de tudo cultural, quando observamos os blocos regionais muito pouco se fala e menos ainda se faz em relação à cultura e, em especial, às indústrias culturais. Trata-se mais de ques-tões ligadas ao livre comércio entre os países membros do que da constituição de um espaço político-social e cultural comum.

No caso específico do Mercosul, há uma tensão interna entre ser um tratado de livre comércio, como o Nafta, ou um instrumento de integração re-gional, como a Comunidade Comum Europeia (ACHUGAR, 1997). Mesmo na perspectiva mais econômica, ainda que compreendendo seu valor para a construção de “nossos projetos coletivos, nossos sonhos e valores”, a cultura não tem ganhado destaque nas preocupações e nas ações do Mercosul.

Um sinal desse desprestígio é que em sua página oficial (http://www.mercosur.int), onde se conta a trajetória e a atual situação do Mercosul, a cul-tura não aparece. A questão da integração cultural e a discussão sobre o seu

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significado e consequências só foram introduzidas na Cúpula de Fortaleza, em 1996, de onde surgiu o “Protocolo de Integração Cultural do Mercosul”.

Em relação às indústrias culturais, apesar de pouca ação prática ter sido de fato executada, algo avançou em termos de discussão sobre o assun-to desde então. Especificamente, na XV Reunião de Ministros da Cultura dos países do Mercosul, em 2002, no Rio de Janeiro, ocorreu o “Seminário Indústrias Culturais no Mercosul”, cujo documento final recomendava: 1. Criação de um sistema de informações culturais; 2. Constituição de um Observatório Cultural do Mercosul; 3. Aumento do intercâmbio das indús-trias culturais entre os países do bloco, levando em conta tanto a integração regional, quanto a interna a cada país; 4. Políticas de estímulo à produção de conteúdos para as grandes, médias e pequenas empresas do setor; 5. Criação de circuitos integrados de produção e distribuição entre os grandes e os pe-quenos mercados consumidores; 6. Livre circulação dos produtores e tra-balhadores das indústrias culturais; 7. Criação de contas satélite na cultura de modo a tornar visível o papel das indústrias culturais na economia dos países-membros e associados (ÁLVAREZ, 2003).

Como se observa, as recomendações privilegiam mais o papel do setor privado do que o do público. A participação do Estado no processo de produ-ção, circulação e consumo de bens culturais continua restrita a um papel de financiador, observador e regulador. Sem dúvida, papéis fundamentais. No entanto, se as políticas culturais quiserem oferecer um contraponto aos valores que regem a lógica de mercado, devem fortalecer a criação de empreendimen-tos públicos nas diversas indústrias culturais, que possam, assim, ofertar pro-dutos e serviços diversos que não interessam às empresas privadas por sua baixa rentabilidade financeira (sem falar nas restrições ideológicas).

Em dimensão próxima, talvez a experiência mais interessante no que se refere a uma atuação conjunta dos países latino-americanos no âmbito das indústrias culturais é a TeleSur/Sul, uma empresa pública multiestatal criada em julho de 2005 com sede na Venezuela e que hoje é mantida também por outros seis países: Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Uruguai, além do apoio logístico do Brasil.

A TeleSur/Sul utiliza-se de um satélite de natureza pública, o Satélite Simón Bolívar, e possui correspondentes e colaboradores em várias cidades la-tino-americanas, além de Washington. O canal não tem fins comerciais, por-tanto quase não há publicidade, e ele pode ser acessado gratuitamente em seu site e em canais locais de países de língua espanhola ou de algumas operadoras de TV a cabo ou TV satélite que disponibilizam seu sinal.

O lema da TV explicita claramente sua política editorial: “Nuestro norte es el sur”, o que, além de implicar em uma opção geopolítica pelo sul do globo (inspirada no desenho do artista Joaquín Torres García), aposta também na integração latino-americana. Sua missão, exposta na página

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web da emisora, é ser “un medio de comunicación latinoamericano de vo-cación social orientado a liderar y promover los procesos de unión de los pueblos del SUR. Somos un espacio y una voz para la construcción de un nuevo orden comunicacional”. Sua visão é a de funcionar como “un canal de servicio público con cobertura global que, desde el SUR, produce y di-vulga contenido informativo y formativo para una amplia y leal audiencia; con una visión integradora de los pueblos”1.

Apesar de seu pouco tempo de existência e das dificuldades que en-frenta, a TeleSur/Sul é certamente a experiência mais concreta de integração por meio das indústrias culturais na América Latina a partir de uma lógica pública. Daí o seu papel como contraponto às imagens hegemônicas sobre os países da região, feitas tanto pelas empresas privadas de comunicação latino--americanas, quanto estadunidenses.

cOnsideRações finais

Retomando a questão geradora deste artigo, ou seja, se, na América Latina, as políticas públicas de cultura têm respondido ao desafio de fun-cionar como um contraponto ao mercado, o que observamos é que só muito timidamente os governos atuam no contexto das indústrias culturais, setor privilegiado do mercado simbólico. Com alguma presença no campo do pa-trimônio histórico, da cultura popular e das expressões artísticas de fruição mais restrita, as políticas culturais latino-americanas quase não se voltam para os meios massivos, meios estes fundamentais na formação das comuni-dades nacionais na contemporaneidade.

Esta opção dos Estados latino-americanos se revela em toda a sua dimensão dramática, no que se refere aos seus interesses culturais, com a radicalização da transnacionalização, pois poucas indústrias culturais são de propriedade de empre-sários latino-americanos e menor ainda é o número daquelas que são de propriedade estatal ou mista (empresas com capital público e privado). Essa situação vem se agra-vando nos últimos trinta anos, como resultado dos movimentos de reforma liberal que significam, entre outras coisas, a desregulamentação e a privatização de vários setores das economias nacionais, como os de telecomunicações. Isso provoca novas tensões que “remetem seu alcance e seu sentido às diversas representações nacionais do popular, à multiplicidade de matrizes culturais e aos novos conflitos e resistências que a transnacionalização mobiliza” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 231).

Outro fator que se agrega a essa tendência é o da convergência tecno-lógica entre telecomunicação, informática e indústria cultural, que tem pro-movido processos de fusões entre as transnacionais que atuam nessas áreas, provocando a formação de grandes conglomerados produtores e distribuidores de bens simbólicos. São essas megaempresas que estão comprando algumas das indústrias culturais latino-americanas, nos mais diversos ramos, ou tornando--se sócios, muitas vezes majoritários, das empresas da região.

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Na realidade, são bastante escassos e dispersos os dados e informações quantitativas e qualitativas sobre as indústrias culturais na América Latina, mas as pesquisas existentes apontam para o processo de concentração de em-presas e centralização de produção, o que resulta na dificuldade de acesso por grande parte da população a estes bens e serviços (BECERRA; MASTRINI, 2008; LOPES; MELO, 1997; MASTRINI; BOLAÑO, 1999). Os indícios são de que o processo de conglomeração tende a aumentar na região de modo que se impõe certo modelo que mistura velhos padrões (propriedade familiar) com novos paradigmas (diversificação produtiva; convergência tecnológica; amplia-ção de parcerias; busca do mercado externo).

A conjunção desses fatores (privatização, desregulamentação, convergên-cia tecnológica, monopolização e transnacionalização) vem ratificando o lugar da América Latina como espaço integrado no circuito mundializado da cul-tura, inclusive como grande fornecedor de mão de obra (criadores) e conteúdo simbólico, mas sem deter a posse dos meios de produção, de distribuição e, muitas vezes, de consumo de bens culturais. Daí podermos falar da importan-te presença das indústrias culturais na América Latina, mas das dificuldades enfrentadas por aquelas que ainda são da América Latina.

A partir desse contexto, podemos concluir que o Estado e suas políticas culturais não estão conseguindo fomentar uma latino-americanidade pluralis-ta à altura dos desafios que a produção e o mercado simbólicos contemporâ-neos impõem. Concordamos, por fim, com a afirmação categórica de Teixeira Coelho de que tais políticas devem se voltar para a indústria cultural-comu-nicacional regional, o que, por si só, não garante “uma mudança radical de cenário”, mas “propiciaria em prazo mais curto (e talvez esse seja o único prazo de que dispomos, diante da velocidade do mercado) a consolidação do espaço latino-americano” (COELHO, 2000, p. 102).

nOtas

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ResumoVisando a construção de uma nova perspectiva no plano das políticas culturais, este texto se preocupa em fazer um paralelo entre essas políticas e o conceito de inteligência coletiva, apontando a relação intrínseca entre cultura, cidadania e democracia deliberativa, além das possíveis limitações das políticas culturais no contexto de mobilização de inteligências que há muito tempo vem sendo desconsideradas na área das políticas culturais no Brasil.Palavras-chave: Política Cultural; Cultura; Cidadania; Democracia Deliberativa; Inteligência Coletiva.

AbstractFor the construction of a new perspective in terms of cultural politics, this text is concerned to draw a parallel between these policies and the concept of collective intelligence, pointing out the intrinsic relationship between culture, citizenship and deliberative democracy, and the potential limitations of cultural policy in context of mobilization of intelligence that has long been disregarded in the area of cultural policy in Brazil. Keywords: Cultural Policy, Culture, Citizenship, Deliberative Democracy, Collective Intelligence.

Políticas públicas e o patrimônio histórico:das primeiras ações a economia da cultura

Ed.17 | Vol.9 | N1 | 2011

Políticas culturais e inteligência coletivaCultural policies and collective intelligence

Hortência Nepomuceno Santos | [email protected] em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e mestranda do Programa de Pós-Graduação

em Cultura e Sociedade da mesma instituição

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intROduçãO

A noção de cultura é intrínseca a qualquer política cultural e pode ser definida de forma mais ampla, abarcando não somente a dimensão do con-ceito, mas os desafios a serem enfrentados pelas políticas traçadas e planeja-das sejam elas nos âmbitos estaduais ou municipais, por exemplo. As políticas públicas de cultura são definidas como ações estratégicas norteadas de formas diferentes a partir do entendimento do Estado pelo que é cultura, tanto nos sentidos sociológicos (constitui-se no plano especializado, que pensa a cultura a partir de um circuito organizacional, institucionalmente legitimado), quanto antropológicos (entendida como o resultado das interações entre os modos de vida, origem, atitudes cotidianas), como define Isaura Botelho (2001).

Atualmente, as políticas públicas de cultura são encaradas como o re-sultado de uma complexa interação de múltiplos agentes do Estado somados aos agentes não-estatais: mercado, sociedade civil, entidades associativas, organizações não-governamentais e redes culturais. Por isso é um equívo-co reduzir as políticas públicas de cultura a meras políticas estatais. Além disso, uma política pública efetiva pressupõe deliberação e decisão pública, o que enfatiza ainda mais a importância da atuação e pluralidade dos atores político-sociais. Deste modo, é preciso ter a noção do que é política cultural. O conceito adotado aqui se baseia na concepção de Néstor Garcia Canclini, que afirma ser política cultural:

Conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las instituiciones civis y los grupos comunitários a fin de orientar el desarolho simbólico, satifacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social. (CANCLINI, 2001, p.65).

É preciso levar em consideração que a Cultura enquanto valor de uso, ou seja, de utilidade aplicada à natureza, paisagem, cultura material e imate-rial e embutida na observação do patrimônio e fruição das artes, é um direito e, nesse sentido, transcende a esfera meramente econômica, embora a econo-mia da cultura tenha hoje um papel importante na geração de empregos. “Os direitos sociais são aqueles que dizem respeito a um mínimo de bem-estar econômico, de participação, de ser e viver na plenitude a civilização, direitos cuja conquista se deu a partir do século XX e que se preocupam mais com a igualdade do que com a liberdade”. (SIMIS, 2007, p.02).

Pode-se dizer o mesmo da educação, da saúde e da moradia que são direitos garantidos a todo cidadão pela Constituição da maioria dos países modernos, que entendem como dever do Estado promover o acesso gratuito a essas áreas. Portanto, cabe sinalizar a importância do Estado como articu-lador de atores, ações e políticas públicas para o setor, a fim de dinamizar e potencializar a criação e o acesso a bens e manifestações culturais.

No Estado democrático, o papel do Estado no âmbito da cultura, não é produzir cultura, dizer o que ela deve ser, dirigi-la, conduzi-la, mas sim formular políticas públicas de cultura que a tornem acessível,

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divulgando-a, fomentando-a, como também políticas de cultura que possam prover meios de produzi-la, pois a democracia pressupõe que o cidadão possa expressar sua visão de mundo em todos os sentidos. (SIMIS, 2007, p.03).

Tais afirmações não negam a participação de outros agentes na cons-trução desse processo, mas destacam a importância do Estado como condu-tor dessas ações. Assim, partimos de uma reflexão a respeito de uma nova perspectiva no plano das políticas culturais, na qual o presente trabalho se preocupa em fazer um paralelo entre essas políticas e o conceito de inteligên-cia coletiva, somada aos fluxos de participação que na contemporaneidade tem demonstrado e projetado potencial de expansão, através da apropriação e articulações nos novos meios comunicacionais, a fim de fortalecer suas redes e alcançar objetivos. Portanto, considera-se a contribuição de vários autores, em especial: Henri Lefebvre, Pierre Lévy e Néstor García Canclini.

paRticipaçãO e inteligência cOletiva

A partir da idéia de mobilização de diversos agentes em prol da cons-trução de um bem comum, Pierre Lévy (2002) apresenta o conceito de inte-ligência coletiva, em sua concepção não só aplicado à comunidade científica, que busca a construção de um saber comum, mas também às empresas com a invenção de novas soluções através de um processo coletivo, e por fim se refere ao campo da política e cidadania. Nesse sentido, as comunidades locais juntamente com os governos tentam aprofundar os processos de con-sulta pública através dos fóruns de discussão sobre questões da política lo-cal, debatendo assuntos relacionados diretamente a realidade da população. Estabelecendo, portanto, o que ele chama de democracia deliberativa. Tal sistema é construído através da participação política que dá oportunidades a grupos sociais excluídos a se integrarem aos processos decisórios de formula-ção e implementação de políticas públicas.

Apesar de ser um conceito amplo relacionado em diversos contextos principalmente em relação às possibilidades da web e suas interações, de ma-neira diferente a noção de inteligência coletiva vem permitido um novo olhar sobre o urbano e a vida social das pessoas, no qual a imensa potencialidade da web está voltada para ações no mundo presencial para modificações do espaço em que vivemos. O conceito de inteligência coletiva parte da noção de coope-ração, no qual “a base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimen-to e o enriquecimento mútuos das pessoas (...). Ninguém sabe de tudo, todos sabem alguma coisa, todo o saber está na humanidade”. (LÉVY, 2007, p. 28).

Baseado nessa concepção de complementaridade de inteligências na construção de um bem comum, Lévy e Lemos (2010) propõe a idéia de Utopia do Estado Universal. Calcada na percepção sobre as novas configu-rações da geopolítica mundial, no fim do século XX e início do século XXI, em que se fazem presentes os acordos multilaterais de livre comércio, a idéia

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proposta compreende que as mudanças não visem apenas benefícios econô-micos imediatos, mas que em longo prazo interfiram consideravelmente na soberania dos Estados-nação e suas legislações. A partir disso, vislumbra-se que o Estado relativize sua soberania vis-à-vis a padronização imposta pelos efeitos políticos e com isso passa a sofrer influências e interferências – de uma inteligência coletiva através de mecanismos de transparência e controle típicos do governo eletrônico2.

O processo começará aparentemente pelas zonas que já são as mais conectadas – a Europa, a América e os países avançados da zona Ásia-Pacífico -, depois se estenderá progressivamente para o resto do mundo. A convergência de doutrinas e práticas do governo eletrôni-co, como a transparência e a eficácia aguda das administrações (...), prepara lentamente a instauração de um verdadeiro Estado planetá-rio. O Estado não poderá tornar-se mundial ou universal antes que todos os riscos de ditadura de genocídios culturais planificados ou de totalitarismos tenham sido relegados à memória da humanidade como etapas superadas da evolução histórica (...). Alcançado certo grau de maturidade e de dinamismo democrático, o Estado deverá ser capaz de evoluir, mas graças à abertura de seu próprio funcionamento à inteli-gência coletiva da sociedade. (LEMOS e LÉVY, 2010, p.180).

O movimento que se percebe é de reconfiguração dos modos de inte-ração dos Estados democráticos vigentes com a sociedade, tendo em vista as novas formas de compreensão das dinâmicas sociais e movimentos culturais. Jenkins (2008) ressalta que a idéia da convergência midiática serve para tra-duzir as mudanças nas formas de relacionamento do público com os meios de comunicação. Segundo ele, no futuro, as habilidades adquiridas nestes processos apresentarão implicações consideráveis no modo como aprende-mos, trabalhamos, participamos de procedimentos políticos, etc.

Tais mecanismos são configurados como meios, potencialidades e também como elemento suporte ao desenvolvimento e fortalecimento de uma estrutura participativa e de interação social, deste modo, possibilitando ações efetivas que resultem em uma intervenção sobre as decisões do Estado convertidas, portanto, em políticas públicas eficazes. Henry Lefebvre propõe uma nova concepção sobre a forma de estruturação social, na condição de subverter a lógica centralizada e hegemônica operada pelo Estado e corpora-ções, que atuam sobre as questões sociais sob o aval do capitalismo, de modo despótico e impermeável. O autor propõe uma mudança na lógica a partir na planificação social e não mais pela planificação econômica, pautada pura-mente nos valores do capital financeiro, fruto da industrialização e urbaniza-ção que primam pelo crescimento sem desenvolvimento social.

Discorre ainda, sobre o imperativo de orientar o crescimento no qual coexistem as relações entre os meios da produção e os dispositivos da explo-ração do trabalho social por aqueles que detêm informação, cultura e poder de decisão. Para ele, se faz necessário vislumbrar e prospectar as novas ne-cessidades da sociedade urbana, a fim de orientar o crescimento na direção

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do desenvolvimento. “Certas formulações muito difundidas e que passam por democráticas (o crescimento para o bem-estar de todos, ou “no interesse geral”) perdem seu sentido: tanto o liberalismo, como a ideologia econômi-ca, quanto a planificação estatal centralizada”. Nessa perspectiva, Lefebvre (1991), argumenta que o duplo processo de industrialização e de urbanização não tem sentido se não se concebe a sociedade urbana como fim maior, se se subordina a vida urbana ao crescimento industrial.

A realização da sociedade urbana exige uma planificação orientada para as necessidades sociais, as necessidades da sociedade urbana. Ela necessita de uma ciência da cidade (das relações e correlações na vida urbana). Necessárias, estas condições não bastam. Uma força social e política capaz de operar esses meios (que não são mais do que meios) é igualmente indispensável. (LEFEBVRE, 1991, p.142).

A reflexão proposta é a de que uma política diferenciada deve ser cons-truída, a partir de uma sociedade em que todos os cidadãos participem da tarefa da produção coletiva, mas também de seus resultados.

Isso exige, ao lado da revolução econômica (planificação orientada para as necessidades sociais) e da revolução política (controle democrático do aparelho estatal, autogestão generalizada) uma revolução cultural permanente. (LEFEBVRE, 1991, p.144).

A convocação para a revisão das estruturas políticas vigentes e sua relação com a participação social também é uma questão abordada por Milton Santos que defende a importância da abertura de novas possibilidade e perspectivas.

Certo, nós não mudamos o mundo, mas podemos mudar o modo de vê-lo. Isto é importante porque só assim podemos escapar ao dogmatismo epistemológico e marcar um encontro com o futuro. Precisamos, ainda uma vez, recorrer a Sartre (1963, p. 96) para dizer que “tudo muda quando se considera que a sociedade é apre-sentada a cada homem como uma perspectiva do futuro, e que esse futuro penetra até ao coração de cada um como uma motivação real ao seu comportamento”.

Sob esse ponto de vista, afirma que quando a população ou o homem renovado é convocado a exercer a função de reorganizar as estruturas socioeco-nômicas, os recursos humanos reconquistarão seu papel central.

Apenas, como disseram Baran e Sweezy (1968, p. 301), “toda tentativa de atingir uma sociedade melhor, mais humana, mais racional, é julga-da anticientífica, utópica e subversiva; e assim a ordem social existente na sociedade aparece como sendo não apenas a única possível, como também a única concebível”. (SANTOS, 1986, p.61).

A tomada de consciência social e apropriação dos meios que propi-ciam o florescimento da inteligência coletiva potencializam a participação através da articulação entre os atores sociais, viabilizando o processo de ca-pacitação e aprendizado coletivo, atuando, portanto, em prol de mudanças políticas do processo de promoção de desenvolvimento. Verifica-se, portan-to, que não se trata apenas de uma mudança de postura ou de ação, mas

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uma mudança de cultura política, instituída e tomada pelas mãos da socie-dade por meio das potencialidades apresentadas pela inteligência coletiva.

pOlíticas públicas de cultuRa nO bRasil e limitações da paRticipaçãO

Um dos maiores embates na história as políticas culturais no Brasil pas-sam pela isenção do Estado em convocar a sociedade a participar da constru-ção de políticas públicas. Tal postura é apontada como uma das limitações no processo de formulação e articulação de ações governamentais, programas e projetos implementados ao longo do tempo e marca a falta de dinamismo nas trocas e interações entre diversos atores sociais e cultura participativa no país.

É fundamental destacar a visão de Rubim (2007) quando, através de um panorama das políticas culturais no Brasil, destaca as tristes tradições dessa área no país, em decorrência da trajetória marcada por um cenário autoritário e elitista: o difícil desenvolvimento da cultura e o caráter tardio do Estado como condutor e formulador de políticas culturais efetivas. Esse quadro começa a mudar a partir dos anos 30, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45). Nesse período, destaca-se as políticas imple-mentadas por Mário de Andrade a frente do Departamento de Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo com iniciativas inovadoras, bem como a atuação de Gustavo Capanema a frente no Ministério de Educação e Saúde (1934 a 1945), tais experiências inauguram as políticas culturais no país (RUBIM, 2007). Não obstante a esse cenário, a noção de cultura é um fator primordial para identificar o perfil da política cultural adotada pelo Estado, durante esse período a noção predominante era a cultura relacionada a patri-mônio cultural de pedra e cal.

Já nos anos 90 com a política pautada nos moldes neoliberal a atenção prioritária do governo estava em leis de incentivo fiscal como forma quase úni-ca de financiamento para a área e tinha como slogan, “cultura é bom negócio”, cultura vista como mercadoria. Como herança desse período, hoje o que se percebe são as limitações e insuficiências das políticas culturais, que por muito tempo foram objeto de manipulação política, tendo como consequência para as ações de financiamento do setor, a política de editais como forma predomi-nante de incentivo financeiro para grupos culturais.

O papel do Estado em dinamizar e potencializar a criação e o acesso a bens e manifestações culturais não são de interesse do mercado, segundo o autor Alfonso Martinell, deixar a cultura nas mãos do mercado hoje sig-nificaria que cerca de 65% das formas expressivas existentes desapareceriam. A preservação das diversas identidades culturais e das formas expressivas de interesse geral depende da intervenção do Estado. Desta forma, tais conflitos imperam como desafios para a gestão do Ministério da Cultura (Minc) no governo Lula, que vê a retomada do papel ativo do Estado como importante para execução de políticas públicas de cultura.

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Com base na definição de política pública de cultura e na noção de atuação conjunta de múltiplos agentes, citados acima, que o autor Néstor García Canclini discorre sobre as novas formas de apropriação dos espaços em que vivemos como a emergência de diferentes modos de agir nos ambien-tes urbanos, típicos da cultura contemporânea. Para além dessas questões, destaca a importância do Estado em atentar-se a essas mudanças, promo-vendo ações conjuntas com os megacentros comerciais nas cidades grandes e médias que “além de expandir o capital imobiliário e comercial, (...) gerar empregos e extinguir outros do comércio varejista, oferecem cenários para o consumo onde a monumentalidade arquitetônica é associada ao passeio e à recreação”. (CANCLINI, 2003, p.160).

Na busca por convocar o Estado a atentar-se as sensíveis mudanças so-ciais, o autor argumenta ainda, que os megacentros urbanos conformam novos cenários emblemáticos, compostos por distinção de valores simbólicos, conju-gados de acordo com diferentes classes sociais, portanto, valorizando o consu-mo de produtos e marcas transnacionais na busca por saciar as necessidades.

Muitos shoppings incluem ofertas especificamente culturais tais como multissalas de cinemas, livrarias, lojas de disco, videogames, espetáculos musicais, exposições de arte e área de lazer. Com projeto atraente, segurança e higiene fazem com que seus espaços transcendam sua finalidade comercial e sirvam para o encontro e a socialização, especificamente para os jovens. (...) Essa enorme transformação do uso do espaço urbano e de consumo, incluído o cultural, não entrou no debate sobre a cidade, e menos ainda nas políticas culturais. (...) Mas também se poderia pensar – para além de ações reguladora e restritiva que o Estado poderia exercer – em usos públicos positivos associados aos shoppings centers (CANCLINI, 2003, p.160).

Verifica-se que tais indicadores culturais demonstram potencial de ar-ticulação entre múltiplos agentes, exigindo, portanto, planejamento de ações conjuntas. Além disso, o autor propõe a reflexão da importância da reconfigu-ração do espaço público através da comunicação de massa.

(...) os circuitos midiáticos ganharam mais peso que os tradicionais locais na transmissão de informações e imaginários sobre a vida urbana e, em alguns casos oferecem novas modalidades de encontro e reconhe-cimento, como a comunicação através do rádio e da televisão, progra-mas “participativos” ou de linha direta, ou a reunião em shoppings centers que substituem parcialmente os antigos espaços de encontro e passeio (CANCLINI, 2003, p.160).

De acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais: Perfil dos Municípios Brasileiros (MUNIC, 2009) do IBGE as videolocadoras são apontadas como um dos espaços culturais mais acessados nas capitais brasi-leiras. Tais números também apontam possibilidades de ações conjuntas com a iniciativa pública, já que se mostram tão expressivos. Por que não pensar ações culturais articuladas com esses espaços? Para que serve esses dados se não há um empenho em pensar políticas que contemplem os hábitos culturais da população? O que se percebe é que não se vive mais na era da informação,

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mas na era do conhecimento. Informação que não é acessada, reproduzida, transformada e relacionada torna-se inerte e não gera conhecimento que não gera intervenção e transformação social.

Apesar das limitações claramente impostas pela conjuntura a qual a cul-tura no Brasil encontra-se imersa, destacam-se algumas iniciativas do governo Lula, especificamente do Minc no sentido de pensar políticas mais participa-tivas e integradas com a sociedade com, por exemplo: criação e reativação de Conselhos de Cultura como parte integrante da implementação de um Sistema Nacional de Cultura; criação e ampliação do projeto Pontos de Cultura; e a criação de fóruns de debate sobre Cultura Digital, área que foi incorporada ao Minc e que antes não existia – iniciativa que demonstra certa preocupação do Estado em atentar-se a debates já incorporados no campo cultural.

cOnsideRações finais

Tomar o conceito de inteligência coletiva como guia para pensar as po-líticas públicas de cultura é um caminho para se refletir como os processos de participação podem ser deflagrados e articulados em conjunto tanto por parte do Estado (“cabeça” da sociedade) quanto por parte de outros agentes, seja pela sociedade civil, setor privado etc. Impulsionando, portanto, um movimento de reflexão e preocupação sobre como agir, mediante os novos hábitos e ambientes culturas de interação, além dos espaços de convívio nos centros urbanos que passam a se reconfigurar mediante articulação com fenômenos como a cultura midiática, geradora de transformações culturais e comportamentais de uma nova geração que aprendem e absorvem também novas formas de participação política. Mais que isso, se faz necessário pensar em alternativas ao modelo eco-nômico vigente, reorientar as políticas sociais a fim de orientar o crescimento econômico através do papel atuante da participação da sociedade que passa a se apropriar de novas medias e adquirir outros modos comportamentais e para-digmas sociais condizentes com as mudanças presentes na contemporaneidade.

Nesse sentido, a noção de inteligência coletiva coloca todo cidadão na posição de indivíduo ativo na sociedade, cabendo ao Estado a percepção em atender e articular essas demandas de forma que acarrete em formula-ções e implementação de políticas públicas de cultura que devam levar em consideração diferentes atores e suas variadas e importantes contribuição na construção desse processo.

Por fim, percebe-se que há um movimento que vai além da mera parti-cipação, mas um prenúncio de uma nova cultura política que inverte os papéis de atuação e exercício do poder. O individuo, portanto, passa a ser um sujeito coletivo que incide e interfere diretamente na política e na estrutura social, ten-do suas ações maximizadas através das redes e meios de comunicação, consti-tuídos de uma memória coletiva em que a relação de cooperação e a construção coletiva torna-se um processo contínuo.

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nOtas

1 Embora com dados defasados, há um trabalho significante, que traz informações sobre 1994: “a cultura brasileira, considerando-se todos os seus setores, empre-gava cerca de 510 mil pessoas, divididos em 391 mil empregados no setor privado (76,7% do total); 69 mil trabalhadores autônomos (13,6%) e 49 mil nas adminis-trações públicas (9,7%). Esse contingente é 90% superior ao empregado pelas atividades de fabricação de equipamentos e material elétrico e eletrônico; 53% superior ao da indústria de material de transportes (incluída a indústria automobi-lística, de autopeças e de fabricação de outros veículos); 78% acima dos serviços industriais de utilidade pública (energia elétrica e distribuição da água e esgota-mento sanitário). Com relação ao setor de telecomunicações e correios, o total de empregados na cultura é 2,8 vezes maior”. O PIB da Cultura (2005).

2 Governo eletrônico, ou e-gov, (do inglês electronic government), consiste no uso das tecnologias da informação — além do conhecimento nos processos internos de governo — e na entrega dos produtos e serviços do Estado tanto aos cidadãos como à indústria. Origem: Wikipédia.

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RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradi-ções, enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BARBALHO, Alexandre (orgs). Políticas culturais no Brasil. Salvador, Edufba, 2007, p.11-36.

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ResumoO artigo discute as estratégias de apropriação de esferas públicas contemporâneas empreendidas pelo movimento LGBT na afirmação de identidade e reconhecimento, a partir de estudo do projeto de comunicação desenvolvido pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais, que culmina na criação do portal www.ilga.org.Palavras-chave: tecnologias da informação e comunicação; movimento LGBT; participação política.

AbstractThe article analysis the strategies of contemporary public spheres appropriationundertaken by the LGBT movement in the affirmation of identity and recognition, based on a study of the communication project developed by the International Association of Lesbian, Gays, Bisexual, Transgender and Intersex, culminating in the creation of www.ilga.org portal.Keywords: information technologies and communication, movement LGBT; political participation.

Comunicação e as novas tecnologias no contexto de atuação política dos movimentos sociais contemporâneos: um estudo do portal ILGA.ORG

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Comunicação e as novas tecnologias no contexto de atuação política dos

movimentos sociais contemporâneos: um estudo do portal ILGA.ORG

Communication and new technologies in the context of political action of contemporary social movements:

a study of the portal ILGA.ORG

Antônio Carlos Sardinha | [email protected] formado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, especialista em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Federal da Grande Dourados, com atuação na área de direitos humanos, ênfase nas questões ligadas à comunicação, cidadania, participação social, política pública e sexualidade. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e integra o Grupo

de Estudos sobre Direitos Humanos (FAAC/UNESP).

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uma leituRa da sOciedade cOntempORânea

As inúmeras tentativas de configurar, ao menos provisoriamente, a natu-reza e as características do que se convencionou ser a sociedade contemporânea revelam uma disputa de sentidos estratégicos que os aparatos técnicos de pro-cessamento de dados e informações assumem no contexto contemporâneo da sociedade em rede (CASTELLS, 1999).

Não parece haver dúvidas que a presença das novas tecnologias de infor-mação e comunicação reorganiza e interfere em dinâmicas sociais nos campos da política, da economia e da cultura.

O debate, sobretudo ligado à Comunicação, parece estar no modo como está pensada a apropriação dos recursos potencialmente disponíveis pelos apa-ratos técnicos. A apropriação das novas tecnologias, nesse caso, torna-se um aspecto central na medida em que evidencia posturas políticas reveladoras de uma percepção das relações sociais e das relações de poder que permeiam essa sociedade tecnológica.1

Essa compreensão do significado que a Comunicação assume em um contexto global de trocas e intercâmbio de informações é importante quando pensamos o diálogo entre práticas de comunicação em meio aos discursos da informação, do conhecimento e da ação, que estruturam a relação com o mun-do e referenciam os sujeitos na sua busca por compreender a realidade.

Ao destacar a dimensão normativa da Comunicação, bem como desta-car os seus aspectos políticos e culturais, Wolton (2006) sugere um lugar para a Comunicação. Ao invés de restringir-se à transmissão de dados, comunicar é menos um processo com começo e fim e mais uma questão de mediação, um espaço de coabitação, um dispositivo que visa amortecer o encontro de várias lógicas que coexistem na sociedade aberta (WOLTON, 2006, p.32).

A Comunicação torna-se, nesse sentido, valor central em uma sociedade aberta que há mais de dois séculos, ao menos no Ocidente, superou a centra-lização e as hierarquias em favor do sujeito e de sua liberdade e onde as trocas entre os indivíduos tem um valor intrínseco. Essa dimensão normativa, em contraponto à dimensão funcional, conferem à Comunicação um papel de organização simbólica, mais do que um canal, em meio à profusão técnica de transmissão de dados e informação.

Essa mesma dimensão normativa, que assinala as diferenças entre in-formação e comunicação, marca a transição para uma nova etapa da relação entre o informativo e comunicacional e mais, lança indicadores para enten-dermos as contradições, as falsas promessas e os equívocos da propagada Sociedade da Informação.

Em linhas gerais, as inovações na área das tecnologias da informação e da comunicação tornaram os fluxos de informação uma constante, fruto da globalização das técnicas, que acompanha o movimento das duas primeiras

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globalizações, a política e econômica. Para Wolton (2006) caminha-se para uma terceira etapa da relação informação-comunicação em que estão coloca-das as condições para garantir a dimensão normativa da comunicação, ou seja, em detrimento de aspectos técnicos e econômicos, e do fetiche da velocidade, da quantidade e da transmissão, estão os valores, a sociedade, os conflitos e a questão do sentido negociado, e não imposto.

A negociação presume a idéia da coabitação cultural, de reconhecimento do outro. Esse se torna o horizonte da comunicação e, por conseguinte, da democracia, por presumir a organização do poder e da autoridade pela ne-gociação e pelo debate. Essa possibilidade coloca a Comunicação não como solução, mas como um problema a ser administrado e não negado. Assume-se o risco da incomunicação, das tensões e do conflito que não está previsto na exacerbação estratégica da dimensão funcional da Comunicação pelos adeptos da Sociedade da Informação.

O entendimento de que a Comunicação veicula visões da relação com o outro, ao passo que a cultura veicula visões de mundo, favorece o retorno do social entre a política e a cultura. Isso porque, ao andar de mãos dadas com a Cultura, a Comunicação faz pensar e torna-se, nas palavras de Wolton, um “catalisador de conscientização”.

Há uma mudança de estatuto que sinaliza a vitória da Comunicação e, ao mesmo tempo, a necessidade de salvá-la, nessa perspectiva. O que se nota é a passagem da transmissão para a mediação. Menos que um dispositivo téc-nico, a Comunicação torna-se a condição para simbolização, que permite o funcionamento das sociedades abertas. Ganha o espaço da representação, com reforço da sua dimensão normativa.

Quanto mais a comunicação se instrumentaliza, mais ela se perde, como se finalmente o essencial não estivesse no conteúdo da troca, na intencionalidade dos atores, mas numa certa “poesia” das trocas. (WOLTON, 2006, p.141)

Essa perspectiva revela a contradição que permeia a comunicação, per-meada, ao mesmo tempo, pela abundância, a ideologia da técnica, as raciona-lidades e os serviços. Enfrentar esse desafio, e mais, pensar a incomunicação como estratégia para salvar a comunicação, parece ser estruturante, tanto na perspectiva teórica como na apropriação da Comunicação (e não apenas dos seus aparatos técnicos e de sua dimensão funcional) como elemento desenca-deador de processos políticos contemporâneos.

Adiantamos o que parece ser fundamental para pensar a comunicação no con-texto de afirmação de direitos e das identidades estigmatizadas: a tentativa por parte dos movimentos sociais em superar o olhar instrumental e ao mesmo tempo pontual dispensado à comunicação por elites políticas, culturais, acadêmicas e estatais, em um jogo simulado que envolve desprezo e utilitarismo.

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a identidade cOmO questãO cOntempORânea e a emeRgência dOs nOvOs mOvimentOs sOciais

As questões envolvendo a afirmação e o reconhecimento de identidades com-põem a agenda que permeia as relações sociais na contemporaneidade e que se faz so-bre o tripé infernal definido por Wolton (2006): identidade, cultura e comunicação.

Em cenário delineado por Castells (2002) a sociedade contemporânea é caracterizada pela globalização das atividades econômicas e sua organização em redes, pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-obra. Em meio a essa estrutura, registra-se nos aspectos culturais a virtualidade do real construído por sistema de mídias onipresente, interligado e diversificado. Além disso, há “transformações das bases materiais da vida – tempo e espaço – com a criação de um espaço de fluxos e um tempo intem-poral como expressões das atividades e de elites dominantes” (CASTELLS, 2002, p.17). Nesse cenário contemporâneo, o poder da identidade desafia a globalização e o cosmopolitismo em função da singularidade cultural e do controle das pessoas sobre suas próprias vidas e ambientes. A demanda e neces-sidade de afirmar identidades nessa sociedade em rede desafiam, portanto, a ló-gica dos Estados-nação, da política enquanto gestora dos conflitos, além de re-configurarem a dinâmica dos espaços públicos e as estratégias para construção de consensos – elementos estratégicos para o debate sobre direitos humanos de grupos como os gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs).

Martín-Barbero (2006) resume com precisão o enquadramento para o debate sobre identidade em meio aos processos de globalização econômi-ca e informacional. Ao apontar uma hegemonia comunicacional do mer-cado na sociedade, em que a comunicação torna-se meio para inserção das culturas no tempo e espaço do mercado e das tecnologias, Jesús Martín Barbero dimensiona a face das tensões contemporâneas envolvendo “muta-ções tecnológicas, explosões e implosões das identidades e as reconfigura-ções políticas das heterogeneidades” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p.53).

Para o autor, a cultura assume uma nova dimensão diante dos conflitos entre a revolução das tecnicidades (papel estruturante da mediação tecnológica da comu-nicação) e a revitalização das identidades. Há tensões entre o que Martín-Barbero chama de crise das formas de comunicação discursiva como lugar principal da identi-dade e a demanda pela construção de discursos de experiência que permitam superar a falta de legitimidade dos discursos anônimos.

Em uma sociedade de conexões tecnológicas e de ambiência informacional ba-seada na infra-estrutura hipertecnológica, na qual se formam dispositivos e as novas estruturas de produção e circulação capitalista, os aparatos de comunicação potencia-lizados pelos mecanismos tecnológicos se apresentam como gestores de dispositivos para regulação simbólica dos espaços sociais (VIZER, 2007).

Somado a isso, os fluxos de dados e informações que permeiam essa estrutura funcional da comunicação são mais do que transferências fluídas que tudo podem e

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facilitam, ao contrário, respondem pela circulação sistêmica do global e do local, do público-formal e do privado-real, fraturando seus respectivos marcos temporais de experiência e poder (MARTÍN-BARBERO, 2006).

Esse aspecto político-social de uma configurada sociedade da informação substancia um conflito. Há presença de um fluxo de desestabilização e fluidez das identidades, inseridas na onda dos fluxos que sustentam uma estrutura técnica e fi-nanceira das sociedades capitalistas. É um movimento de extremos. De um lado a fluidez e o desenraizamento; de outro, a rigidez e o fechamento identitário, em um exercício estratégico de manutenção de estruturas sociais.

Em meio a esse movimento, há brechas e possibilidades de resistência. É quan-do as identidades e a demanda pelo seu reconhecimento emergem em meio à disputa por sentido, operadas pelos movimentos de regulação simbólica dos espaços sociais, sobretudo políticos, nas esferas comunicacionais.

(...) o que galvaniza hoje as identidades como motor de luta é a inseparável demanda de reconhecimento e de sentido. Nem um, nem outro são formuláveis em termos meramente econômicos ou políticos, pois ambos se acham referidos ao núcleo próprio da cultura, enquan-to mundo do pertencer a, do compartilhar com. Razão pelo qual a identidade se constitui hoje, na negação mais destrutiva, mas também mais ativa, capaz de introduzir contradições na hegemonia da razão instrumental. (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 63)

Honneth (2003) já apontava a demanda por reconhecimento como mo-tor das transformações. Teórico da terceira geração da Escola de Frankfurt, Honneth propõe uma teoria que percebe a luta por respeito e reconhecimento como geradora dos conflitos sociais aberta à investigação empírica. São essas as contribuições que nos interessa, especificamente, para discutir o escopo para a ação dos sujeitos que vivenciam sua sexualidade fora da normatividade hege-mônica (heterossexualidade compulsória), como são os LGBTs.

Essencialmente, a ideia é de que as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua “tentativa coletiva de estabelecer institucional e cul-turalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco compõem a base em que se realiza a transformação normativa gerida das sociedades” (HONNETH, 2003, p.156).

As questões que circulam em torno da demanda por afirmação e sig-nificação de uma identidade sexual, estigmatizada pelos mecanismos de uma cultura normativa e regulatória das sexualidades, foram os motores da luta empreendida pelo movimento homossexual, que no Brasil ganha, a partir da década de 1990, o nome de movimento LGBT.

A politização das identidades de um modo geral, a articulação e um re-posicionamento da prática política tornaram os movimentos sociais, a partir da década de 1970, espaços de luta que marcaram um rompimento das tradicio-nais categorias que caracterizaram a ação coletiva calcada na leitura marxista do papel das lutas de classes para entendimento da sociedade.

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A introdução de novos fatores que não apenas os econômicos; a rele-vância das micro-relações, e não apenas macro, para analisar o contexto de relações e lutas sociais; a sociedade civil e não apenas a sociedade política como espaço de conflito e disputa; os movimentos sociais em detrimento das lutas de classe, foram elementos que constituíram o que Gohn (2000) chama de paradigma dos Novos Movimentos Sociais.

O novo sujeito que surge é “coletivo difuso, não-hierarquizado, em luta contra as discriminações de acesso aos bens da modernidade, mas tam-bém crítico dos seus efeitos nocivos, a partir da fundamentação de suas ações em valores tradicionais, solidários e comunitários” (GOHN, 2000, p.123-124). Como conseqüência, a prática e o espaço da política acabam redefinidos, por abarcar todas as práticas sociais e os atores passam a ser vistos pelos teóricos dos Novos Movimentos Sociais a partir das ações e identidade coletivas criadas nesse processo.

A identidade, nesse caso, não é confundida com papéis sociais, mas é uma forma de identificação com interação, negociação e oposição entre as distintas concepções, que são importantes para a autodefinição dos próprios atores e de seu modo de relacionamento com a sociedade. É a defesa dessa identidade que dá vida aos movimentos.

Como estratégia marcante dos novos movimentos sociais, é impor-tante destacar o uso da mídia e atividades com visibilidade para mobili-zar a opinião pública na tentativa de exercer pressão. Por meio de ações diretas, os integrantes desses movimentos atuam no campo mais sim-bólico para mudança de valores dominantes e para alterar situações de discriminação, inclusive dentro da própria sociedade civil. Ao focarem a dimensão cultural e não apenas econômica, atuam de modo mais partici-pativo e de maneira mais f lexível, sem tanta hierarquia, com atuação em redes e campanhas cooperativas.

apOntamentOs sObRe estRatégias identificadas nO pORtal www.ilga.ORg

A Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersex é uma federação que reúne ativistas, grupos e or-ganizações com atuação local e nacional em mais de 110 países de todos os continentes2. Fundada em 1978, a federação tem atuação global con-tra a discriminação e violação de direitos ligados à orientação sexual e à identidade de gênero, a partir de apoio e fomento de ações e mobilizações de protesto, fornecendo informações e atuando junto aos meios de comu-nicação e demais organizações internacionais. A articulação de ativistas LGBTs tem nas regiões continentais representações eleitas para integrar um comitê executivo da federação. As escolhas e as decisões sobre as es-tratégias de atuação são feitas nos encontros bienais com a participação de todos os seus integrantes.

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Como parte do fortalecimento da rede de ativistas, a ILGA iniciou a implementação de projeto de comunicação com a proposta de fortale-cer a articulação, sobretudo nas regiões da Ásia, África, América Latina e Caribe3. A proposta é oferecer ferramentas e espaços de comunicação capazes de fazer do grupo um ator global do movimento LGBT, com ações que incluem mapeamento do ativismo e dos cenários ligados a violação de direitos contra LGBTs nos Estados, fortalecimento da rede de ativistas e de grupos parceiros e a produção de informação sobre a Federação. Um dos pontos centrais do projeto é a criação de um portal na internet, que congrega e possibilita a formatação das estratégias sugeridas pelo Proyecto de desarrollo y comunicaciones da ILGA.

O portal www.ilga.org é um espaço colaborativo, parecido com por-tais de relacionamentos sociais, com ferramentas técnicas pensadas para a geração coletiva e interativa de informações e conhecimentos ligados aos temas de interesse do movimento político e da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersex.

Os conteúdos, bem como os espaços de natureza bem específica – notí-cias, informações institucionais e informações e conhecimentos relacionados ao capital político do movimento – estão co-relacionados no portal, dialo-gando sinergicamente, em uma perspectiva de coexistirem enquanto espaços virtuais na geração de informação (contrainformação) em suas mais diversas modalidades e culminando em uma grande narrativa em torno da promo-ção da visibilidade e de experiências políticas de ativistas. Nota-se que essa grande narrativa colaborativa, potencializada pela apropriação dos recursos tecnológicos disponíveis no portal, procura costurar, simbolicamente, uma contra-incidência nas demais esferas públicas na disputa contra os dispositi-vos de regulação simbólica das arenas sociais (VIZER, 2007).

O portal e suas ferramentas tecnológicas apresentam a idéia desse espa-ço: a produção de conteúdo depende, exclusivamente, da participação e cola-boração da rede de ativistas estimulados a integrar à proposta. Há uma primei-ra indicação estratégica: a comunicação como um espaço e não instrumento.

Para lembrar Wolton (2006), a consciência política cria a articula-ção e não as tecnologias; mesmo existindo uma relação entre consciên-cia política e informação, não há um determinismo dessa última. Nessa perspectiva, a lógica em que está estruturado o desenho e funcionamento técnico do Portal é perceptível a uma lógica menos instrumental e mais normativa para a comunicação pensada no contexto de luta política. O que não significa que o processo colaborativo de apropriação das ferra-mentas não venha acompanhado de uma instrumentalização desse espa-ço comunicacional, segundo a lógica de f luxos de dados e informação deslocada de uma estratégia de ação política. O que destacamos que é na leitura da lógica política que estrutura o desenho e o funcionamento

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técnico do portal, a perspectiva apontada inicialmente é acentuada, uma vez que as ferramentas e a proposta do projeto de comunicação do portal permitem diferenciar a mediação tecnológica da comunicação do papel normativo da comunicação na produção do que para o movimento polí-tico é importante: a geração de capital social.

No olhar de Matos (2009), capital social é entendido como origem e resultado de ações comunicativas. A autora cunha a expressão capi-tal comunicacional para ressaltar o potencial das práticas comunicati-vas para a solução de problemas e impasses. Na definição de Bourdieu, apresentada pela autora, capital social é um conjunto de recursos atuais e potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e inter-reconhecimento. Para ele, “o capital social descreve circunstâncias nas quais os indivíduos podem se valer de sua participação em grupos e redes para atingir metas e benefícios” (MATOS, 2009, p.35).

Vejamos a estrutura do portal, nessa perspectiva. É possível identi-ficar uma arquitetura que reúne do ponto de vista visual e textual qua-tro espaços característicos. O primeiro reúne informações jornalísticas divulgadas pelos meios de comunicação de todo mundo sobre temas de interesse do movimento LGBT, em um filtro que condensa assuntos di-versos. Outro espaço possível de identificar refere-se ao dedicado às in-formações organizadas de modo didático por área e temáticas em um mapa interativo que contribui como informe sobre a situação dos direitos humanos de LGBTs em cada um dos países. Há também o espaço dedi-cado às informações de caráter institucional da ILGA e de seus grupos e ativistas. E, por fim, a sessão Qual é o seu ativismo? permite que ativis-tas apresentem relatos de suas experiências e suas histórias como LGBTs.

Esse conjunto é permeado pela metodologia colaborativa entre os ativis-tas que aderem à proposta do portal e, a partir daí, participam da sua cons-trução com fornecimento de conteúdos que permeiam todas as quatro sessões. Por isso, o espaço virtual conta com ferramentas que permitem envio de in-formações e produção de conhecimentos, a partir das ações políticas desenca-deadas localmente. O processo colaborativo permite que os próprios ativistas contribuam na tradução de conteúdo para um dos quatro idiomas do portal (português, espanhol, inglês e francês).

O portal explora recursos audiovisuais e gráficos, além do conteúdo em textos escritos. As ferramentas disponíveis permitem o registro dos ativistas e dos grupos, facilitando a interação entre os que já estão inseri-dos na articulação ILGA, como também abrindo espaço para a inserção de novos ativistas e colaboradores. Todos se integram em uma espécie de diretório virtual que os permitem compartilhar conteúdos, depois de efetuarem registros.

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54Os recursos e ferramentas são um meio para a produção dos conteúdos

que coabitam entre os quatro principais espaços identificados que, por sua vez, compõem o conjunto do portal, com uma lógica textual e uma identi-dade visual. Essa lógica permeada por estratégias de gestão da comunicação4 responde pela composição de uma extensa narrativa estratégica de contrain-formação que extrapola os limites da representação e caminha para atender a demanda por reconhecimento empreendida pelo movimento político.

Na disputa com os fluxos e as estratégicas relações de poder que estão embutidas na lógica da densa circulação de dados e informações, as identidades em suas diversas manifestações tem uma relação politicamente estratégica com a narratividade. Para Martín-Barbero (2006), a relação en-tre narração e identidade é constitutiva. Para que a pluralidade das culturas seja legitimada politicamente é fundamental que a diversidade de identida-des seja contada “em cada um dos idiomas e ao mesmo tempo na lingua-gem multimídia em que hoje se realiza o movimento das traduções – do oral ao escrito, ao audiovisual, ao informático –, e nesse outro, ainda mais complexo e ambíguo: o das apropriações e das miscigenações” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p.63).

Seguindo nessa tentativa de apontar as potencialidades do projeto de comunicação da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Intersexuais em aspectos que em nosso entendimento substanciam uma es-tratégia comunicacional que avança na compreensão das novas tecnologias

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da informação e da comunicação no contexto das lutas políticas contempo-râneas, nota-se que o portal www.ilga.org aproxima-se das características apontadas por Vizer (2007), a de meio de organização. A categoria é usada para classificar a natureza dos meios de comunicação que se diferencia dos meios de informação (tradicionalmente classificados como meios de comunicação de massa) e dos meios radicais (com função aberta de crítica ao modelo de sociedade vigente). Os meios de organização são os canais utilizados pelos movimentos sociais para difundirem idéias e propostas po-líticas. Adota a denúncia crítica dos meios radicais e procura expandir as ideias da organização ou grupo a que está vinculado na busca por legitimi-dade e reconhecimento.

Mais como espaço de comunicação para a ação política e menos como fim meramente utilitário e funcional do movimento LGBT, os quatro es-paços identificados que se correlacionam configuram uma arquitetura ao portal em análise que é estratégica para localizar e distinguir a comunicação em meio às tecnologias mediadas pela comunicação. A confusão entre as duas categorias e a expressiva supremacia da última caracteriza, comumente, a apropriação mitificadora e salvacionista das novas tecnologias nas ações e movimentos sociais organizados.

Notamos que essa tentativa de apropriação comunicacional das tecno-logias da informação e da comunicação, está presente, ao menos, na proposta política do projeto de comunicação e na sua configuração como portal. Uma indicação de que a comunicação é um processo-meio e não processo-fim para a ação política. Mais do que motivar e inspirar o vínculo e identificação, a cons-trução de repertórios e da formação de valores culturais e políticos, a comuni-cação e os recursos tecnológicos confluem-se e perpassam constitutivamente o processo de desencadeamento das práticas sociais.

As práticas sociais possuem, segundo Vizer (2007), dupla face: prá-tica enquanto ação social objetiva e, em uma segunda instância, prática enquanto sentido da ação, entendida como comunicação humana e social. As práticas sociais se expressam, na perspectiva de análise do autor, em três dimensões. As mesmas dimensões são identificadas correlacionadas nos espaços que compõem a arquitetura narrativa do portal www.ilga.org, conforme apresentado anteriormente.

A primeira dimensão, referencial, diz respeito à dimensão do discurso ligado à realidade externa (de que se fala), presente no portal, em grande par-te, nos espaços dedicados às informações jornalísticas e aos dados informati-vos e conhecimentos sobre o cenário político mundial no qual está imerso o movimento LGBT. A segunda dimensão, interferencial, relativa à interação social entre os atores que se referenciam mutuamente, permeia tanto os es-paços destinados à troca de dados, informações e conhecimentos entre os

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ativistas e suas organizações nos diretórios criados, mas como metodolo-gia consubstanciada por ferramentas que permitem a tradução e construção coletiva de conteúdos no modelo wikipedia. Consideramos essa dimensão estruturante na proposta de comunicação, na medida em que funciona como motor da narrativa contra-hegemônica e de resistência e que subsidia, em nosso entendimento, a proposta do portal.

Por fim, a terceira dimensão é a auto-referencial, processo de identidade e identificação do movimento enquanto sujeito e ator social, que considera a re-presentação como um elemento para o reconhecimento dos sujeitos, conforme Vizer (2007). Os espaços dedicados ao Qual é o seu ativismo? e Conte sua História apresentam de modo muito explícito essa dimensão na construção da narrativa em torno do reconhecimento gestada no interior do portal e que contribui para construção do capital social, fundamental para as disputas no universo simbólico e permeado de dispositivos reguladores nos espaços infor-macionais e de comunicação funcional nos fluxos.

Nessa vertente, conforme Vizer (2007), os processos de comunicação e informação como dispositivos culturais apropriados pelos agentes sociais para construir e cultivar ambientes e contextos de relações previsíveis e estáveis vão tecendo um mundo da vida, assegurando recursos para sobrevivência dos su-jeitos, entre eles normas, valores, formas de associação e vinculação, além das dimensões culturais, simbólicas e imaginárias.

A capacidade de contra-informação, nesse caso, ganha um sentido interessante, na medida em que a comunicação, nos contextos desiguais, mobiliza para a distensão e desestabilização que reacomoda forças e rela-ções de poder. Organizar uma narrativa que demanda reconhecimento, em relatos que politizam as identidades, combinados com os relatos de não-reconhecimento inscritos nos fluxos informativos que chegam de to-dos os países, como potencialmente está colocada a operação do portal da ILGA, estruturam uma estratégia de contrainformação, que supera a representação e a visibilidade como meio-fim.

Ao invés de mais uma informação na lógica dos fluxos globais, o cenário de demandas do movimento político acaba conjugado à lógica comunicativa em que coabitam e mantêm a legitimidade dos três discursos identificados por Wolton (informação, conhecimento e ação), importantes para referenciar os atores, sejam ativistas ou LGBTs que habitam o mundo da vida. Essa distinção de discursos preserva referências importantes para que sujeitos conservem a “geografia intelectual e cultural” para situar-se no mundo aberto e, por con-seguinte, atuarem como atores. Entrar em contato, aprender e interagir são as formas de ação na contemporaneidade e fundamentam o discurso da conexão, de acordo com Wolton (2006).

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O portal oferece a possibilidade, pelo modo como está estruturado, de organizar simbolicamente o discurso da informação, do conhecimento e da ação, a partir de um estatuto político para o estar conectado. É possível perceber que esse espaço não é apenas mais um canal do movimento LGBT a ser apropriado como difusor de informação na perspectiva da visibilidade. Ao contrário, procura criar fluxos, conferindo perspectiva à informação-mi-litância gerida no conjunto do ativismo, ao conhecimento político elaborado nesse exercício de disputas e à ação política em si, capaz de situar e referen-ciar o ativismo, em meio às disputas na sociedade aberta.

O portal www.ilga.org estruturalmente elabora uma narrativa inte-ressante. Em meio ao fluxo de informação, ideologicamente racionalizada como dado homogêneo pelo discurso da dita Sociedade da Informação, o que se nota é uma conjugação para significar o conteúdo que chega, a partir dos ativistas, em uma demonstração de que a contrainformação para o reconhecimento entende a informação atrelada ao imaginário, como construção cultural que remete a densidade de uma sociedade (WOLTON, 2006). O que significa que a “informação busca, quando colocada em flu-xo, a opinião, continente que reúne histórias, representações e ideologias” (ibid, p. 86). A possibilidade de coabitação entre o discurso informacional, nessa perspectiva, com a narrativa da experiência que chega da diversidade de vivências e ativismos LGBTs, transformam o portal, ele próprio em um espaço de conflito e não de consenso. Quanto mais informações, mais rumores, imaginários e opiniões divergentes no interior da própria rede. Uma contribuição que, na perspectiva comunicacional, é importante para a ação política de movimentos sociais que se pautam pela diversidade de temas e uma série de contradições, como é o movimento LGBT. Organizar essa sinfonia que a comunicação desperta é um desafio que acompanha a musculatura, a articulação interna e a força social do movimento. A comu-nicação, menos como instrumento, torna-se espaço aliada nesse contexto, quando pensada pelo desafio da incomunicação, perspectiva que embora não prevista clara e conscientemente na proposta de comunicação, viciada na funcionalidade comumente dos projetos nesse sentido, está possibilitada e, por certo, desafiará a viabilidade do portal em análise.

cOnsideRações finais

A apropriação dos aparatos tecnológicos pelo portal em estudo oferece uma indicação significativa capaz de referenciar o debate sobre a comunicação no contexto dos movimentos sociais na contemporaneidade. É evidente que li-mitações e desafios ao projeto de comunicação em estudo são questões presentes e consideradas para composição dessa breve análise. O processo de apropriação

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dos aparatos tecnológicos, a partir de uma nova perspectiva comunicacional, que inclui a crítica ao pensamento mítico que circunda o debate sobre a “sociedade da informação”, é um processo que se constrói sob o signo da resistência do pensamento informacional, que ainda coloniza os debates sobre comunicação, sobretudo nos espaços e arenas sociais que, contraditoriamente, não de desfize-ram da percepção salvacionista (a comunicação tudo pode) e, ao mesmo tempo, do olhar que despreza e torna utilitária a comunicação e os artefatos tecnológicos que permeiam o espaço dos movimentos e das organizações sociais.

nOtas

1 Esse olhar compartilha do pensamento de Wolton (2006) de que qualquer teoria implícita ou explícita para pensar a comunicação remete a uma teoria da sociedade, ou seja, a uma representação das relações sociais, da cultura, da hierarquia, do poder (p. 126).

2 Fonte: www.ilga.org, acesso em 01 de jul de 2010.

3 A versão do projeto foi apresentada durante a V Conferência da Ilga América Latina e Caribe, em janeiro de 2010, na cidade de Curitiba. A conferência é espaço em que são decididas as agendas e as ações da articulação do movimento e que reúne todos os grupos e ativistas filiados no continente.

4 Compreendemos a gestão da comunicação, nesse contexto, como um conjunto de saberes que permite a compreensão de métodos e técnicas de identificação e di-agnóstico dos problemas comunicacionais entendidos em sua complexidade. Esses saberes estão associados a projetos de intervenção, que permitem construir canais de mediação para o fluxo democrático e estratégico de informação e conhecimen-to, pautando a ação política dos atores nas regras de uma sociabilidade em que o uso da informação e conhecimento também assume dimensão política importante em meio ao conflito entre fluxos e identidades, dispositivos de regulação simbólica

dos espaços sociais pelos aparatos técnicos e comunicacionais.

RefeRências bibliOgRáficas

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ResumoO presente artigo busca mostrar a relevância histórica do direito à comunicação no processo de luta por reconhecimento, tanto na dimensão jurídica, quanto na da estima social no contexto social contemporâneo em que os meios de comunicação ocupam um espaço central na manutenção e ampliação da democracia. Assim, as políticas de comunicação presidem não apenas de um processo de redistribuição dos meios de comunicação, mas também da garantia de um espaço dialógico pluralista.Palavras-chave: direito à comunicação; reconhecimento; estima social; políticas de comunicação

AbstractThis article aims to show the historical importance of communication rights in the struggle for recognition in both the legal dimension, as in the social esteem in the social context in which the media occupy a central place in maintaining and advancing democracy. Thus, communication policies need not only a process of redistribution of the media, but also to provide a dialogic pluralistic space.Keywords: right to communication; recognition; social esteem; communication policies.

Políticas públicas e o patrimônio histórico:das primeiras ações a economia da cultura

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Direitos Humanos Fundamentais e Direito à Comunicação:

entre a redistribuição e o reconhecimentoFundamental Human Rights

and Right to Communication: between redistribution and recognition

Rodrigo Garcia Vieira Braz | [email protected] em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB (Lapcom/

UnB), bolsista CAPES/REUNI

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intROduçãO: diReitOs fundamentais e a luta pOR RecOnhecimentO

A ampliação dos direitos humanos seguiu o curso de um processo con-tínuo de luta por reconhecimento, inaugurada com o surgimento dos direitos civis no âmbito do Estado Moderno. Nesse processo, o direito à comunica-ção emergiu, mais tarde, a partir da necessidade histórica de redirecionar e ampliar a produção simbólica, concentrada sob o poder de pequenos grupos. Mas, para além de ser um direito fim, o direito à comunicação é um meio de garantir e ampliar o surgimento de novas formas de reconhecimento tanto na dimensão jurídica, quanto na da estima social. Assim, uma maior demo-cratização da comunicação significa a possibilidade de ampliação do diálogo e organização entre os grupos sociais, que, através da troca de experiências, podem se compreender mutuamente.

Seguindo a perspectiva histórica da formulação dos direitos humanos, o di-reito à informação surgiu na esteira do processo de construção e consolidação do Estado Moderno. No Ancien Régime, a manifestação do pensamento estava limita-da pelos princípios do catolicismo romano, religião oficial das sociedades feudais. Para controlar a difusão de novas idéias e expressões, a Igreja Católica criou no final do século XII a Santa Inquisição ou o Tribunal do Santo Ofício com o intuito de fiscalizar, julgar e condenar os indivíduos que se contrapusessem aos princípios da religião oficial, num período em que não havia separação entre o Estado e a Igreja. Assim, os condenados pelos Tribunais da Inquisição eram entregues às autoridades estatais para que executassem a pena definida. O fluxo de informação e o contro-le das formas de expressão eram administrados e direcionados pelos dogmas da religião Católica. Além disso, no âmbito da ordem social, a troca de informações estava restrita, em certa medida, a dimensão estamental. Ou seja, a intercâmbio informacional entre os estamentos estabelecia-se no sentido de garantir a manu-tenção da ordem social. Por outro lado, ela servia para a consolidação e a coesão de cada estamento, de acordo com os valores hegemônicos. Retomando as ideias de George Herbert Mead, o filósofo e sociólogo alemão, Axel Honneth (2003) afirma que antes das “revoluções sociais” a identidade individual era determinada, no que diz respeito ao pensamento e ao comportamento, de um modo amplo, pelo padrão geral da atividade social organizada e desenvolvida pelo respectivo grupo social, com um restrito espaço para a individualidade. Os direitos de cada indivíduo eram definidos pela ordem e autoridade natural, que, de acordo com os seus preceitos, definia o papel social de cada membro.

Com o advento das Revoluções Burguesas1 e a formação do Estado Moderno, pautada, de modo geral, pelos ideais iluministas de liberdade, igual-dade e fraternidade, surgiram os direitos individuais ou de liberdade (civis), tam-bém conhecidos como direitos de primeira geração. São direitos negativados, uma vez que protegem o indivíduo de intervenções desautorizadas por parte do Estado. Isto é, a vida da sociedade não está mais submetida à revelia do poder absoluto do soberano, mas a uma legislação idealmente autorizada e construí-da pelos cidadãos, sob a qual a ação do ente estatal deve ser pautada2. Bobbio

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(2004) explica que a concepção individualista provocou uma inversão substan-cial, uma vez que o indivíduo, singular e que tem valor em si mesmo, ganhou privilégio frente ao Estado, feito pelo indivíduo. Nesse sentido, há também uma inversão entre direito e dever. Em relação ao indivíduo, os direitos antecedem os deveres; no âmbito do Estado, os deveres antecedem os direitos (BOBBIO, 2004, p. 76). Entre os principais direitos de Primeira Geração estão a liberdade de ini-ciativa econômica (mercado livre), livre manifestação da vontade, liberdade de expressão e de pensamento, liberdade de ir e vir, liberdade política, mão de obra livre e o direito à propriedade privada. O artigo II da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 afirmava que “o fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. De acordo com as propostas de Adam Smith, um dos fundadores do liberalismo econô-mico, os homens eram impulsionados pelo desejo de melhorar suas condições e ampliar seus bens, de modo que a busca pelos seus interesses maximizaria o bem estar coletivo. Assim, seria necessário um mercado livre e ilimitado, cabendo ao Estado um papel periférico, apenas garantindo o pleno funcionamento daquele.

Esse processo representou uma liberação social da identidade individual. Se antes a ação social estava pautada nos rígidos padrões de comportamento do esta-mento social ao qual pertencia, no Estado Moderno todos são abstratamente livres e iguais de forma que, ainda que considerem a existência do outro generalizado, têm consciência que são portadores de pretensões individuais que devem ser respei-tadas pelos demais indivíduos. Abre-se, a partir de então, a possibilidade de uma luta continua por reconhecimento. Nesse sentido, Honneth (2003) destaca que

[...] os sujeitos, sob pressão de seu ‘Eu’, são compelidos a uma deslimi-tação contínua das normas incorporadas no ‘outro generalizado’, eles se encontram de certo modo sob a necessidade psíquica de engajar-se por uma ampliação da relação de reconhecimento jurídica; a práxis social que resulta da união de esforços por um tal ‘enriquecimento da comunidade’ é o que se pode chamar, na psicologia social de Mead, ‘luta por reconhecimento’ (HONNETH, 2003, P. 145)3.

É justamente o diálogo entre o Eu e o Me, incluída aí a dimensão do outro generalizado, que constitui o movimento propulsor da luta por reconhecimento. Honneth destaca que a interiorização da perspectiva do outro generalizado não basta na formação da identidade moral, uma vez que o “Eu” possui capacidade de reação criativa ao “Me”. O sujeito sente, cotidianamente, o afluxo de exigên-cias incompatíveis com as normas intersubjetivamente reconhecidas de seu meio social, de maneira que ele coloca em dúvida o seu próprio “Me”. Essa relação representa, em linhas gerais, o conflito que explica o desenvolvimento moral. “É a existência do ‘Me’ que força o sujeito a engajar-se, no interesse do seu “Eu”, por novas formas de reconhecimento social” (Idem, p. 141). Com a consolidação das liberdades individuais garantidas pelo Estado, o indivíduo torna-se autônomo e livre. A Carta Francesa de 1789 afirmava em seu artigo IV que “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem”.

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A liberdade de expressão e de pensamento foi um dos pilares para a libe-ração da individualidade, pois a capacidade de externalização da reação livre e autônoma do “Eu” em relação ao “Me” só foi possível após o reconhecimento dos direitos civis. Na sociedade estamental, a expressão do “Eu” estava limitada pelos princípios dogmáticos firmados pelo Estado Absolutista. É a capacidade de se expressar livremente que permite ao indivíduo formular e reconstruir o outro generalizado, ampliando o escopo deste ao passo que se alarga as formas de reconhecimento. Além disso, a liberdade de expressão e de pensamento é dimensão indispensável para o associativismo, pois não é possível reconhecer os interesses comuns entre indivíduos de diversos grupos sociais sem externalizá-los. Observando a formação da democracia estadunidense, Tocqueville (2005) sa-lientou que aquele povo entendia as associações civis como o único meio de agir de que dispunham para todo e qualquer empreendimento. Segundo o autor, nas sociedades aristocráticas, os homens não precisavam se reunir para agir, porque eram mantidos juntos pelas regras e leis do próprio regime. Já nas sociedades de-mocráticas, os cidadãos independentes e isolados, portanto, enfraquecidos, não podem nada por si mesmo e, assim, associam-se.

Na dimensão jurídica, independente das diferenças de disposição econô-mica, todos eram hipoteticamente iguais. Para T.H. Marshall (apud Honneth, 2003, p. 190) adquirida por luta social, a pressão para satisfazer juridicamente essa exigência ampliou o conjunto de pretensões jurídicas subjetivas, até que mesmo as desigualdades “pré-políticas”, econômicas, não puderam permanecer intocadas.

Seguindo essa perspectiva histórica, da qual o sociólogo britânico T. H. Marshall é um dos fundadores4, a constituição dos direitos de participação política é a fase posterior de ampliação de direitos, conhecidos como direitos de Segunda Geração. Ramos (2005) explica que os direitos políticos (associação partidária e direitos eleitorais) estão vinculados à formação do Estado democrático representa-tivo e implicam na liberdade ativa, com a participação dos indivíduos nos rumos políticos do Estado. Consolidaram-se no século XIX, contemporâneos de um ca-pitalismo que vivia a emergência de sua fase industrial. De acordo com Honneth (2003), o clima jurídico e político se transformaram de modo que às reivindicações de grupos excluídos passaram a ser incluídas nas ações do Estado.

Já os direitos sociais surgem na sequência de uma ampliação, forçada “a partir de baixo”, por meio de lutas sociais. As reivindicações por esses direitos surgiram na esteira da crítica marxista às teorias liberais e ao sistema capitalista, num período marcado por uma forte proletarização das massas e fortalecimento dos sindicatos. De modo geral, o pensamento marxista mostrou que a igualdade entre os indivíduos só acontecia no nível da aparência (superestrutura), abstra-tamente; mas na essência, no nível econômico (estrutural), a desigualdade era latente, uma vez que uma minoria burguesa detinha o controle dos meios de produção e os utilizava explorando o proletariado de modo a alcançar o lucro máximo. No segundo prefácio, de 1859, da sua Contribuição para a crítica da Economia Política Marx afirmava que “o conjunto dessas relações de produção

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constitui a estrutura da sociedade, isto é, a base sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem forma determinadas de consciência”. Ainda que as correntes do pensamento comunista defendessem o fim do Estado burguês para que houvesse uma verdadeira revolução social, a sua crítica mostrou que a igualdade não passava de um valor abstrato do liberalismo, sendo necessária a proposição e a implementação de novos direitos com o intuito de garantir, de fato, aquele princípio. Nessa perspectiva, o Estado deveria adotar ações positivas e intervir no mercado para que se chegasse a um maior equilíbrio econômico entre os indivíduos. Essa ampliação de direitos foi levada a cabo pelos ideais da social-democracia e atingiu seu auge com a implantação do Estado de bem-estar entre o final do século XIX e os anos 60 do século XX. A partir de um novo posicionamento do Estado, emergem os direitos de Terceira Geração, como direito ao trabalho, à educação, à assistência e à tutela da saúde.

Honneth (2003) salienta que, no tocante aos estudos sobre reconhecimento, essa periodização mostra que a imposição de cada nova classe de direitos funda-mentais foram sempre forçadas historicamente a partir de argumentos pautados na exigência de ser membro com igual valor da coletividade política. Para o autor, o modo dessa sucessiva ampliação dos direitos individuais fundamentais reforça ao princípio normativo de que “todo enriquecimento das atribuições jurídicas dos in-divíduos pode ser entendido como um passo além no cumprimento da concepção moral segundo a qual todos os membros da sociedade devem poder ter assenti-do por discernimento racional à ordem jurídica estabelecida” (Honneth, 2003, p. 192), devendo assim ser esperada deles a disposição individual a obediência.

O processo de ampliação dos direitos fundamentais, inaugurado com a ins-titucionalização dos direitos civis, na análise de Honneth (2003), representa que para poder agir como uma pessoa moralmente imputável, o indivíduo não precisa apenas de proteção jurídica contra intervenções na sua esfera de liberdade, mas também o direito assegurado de participação no processo público de formação da vontade, da qual ele usufrui. Contudo, para que isso ocorra, é necessário também a garantia de um certo nível de vida e de dignidade. Ao longo dos anos, acrescentou--se também direitos que permitem ao indivíduo agir politicamente com autonomia e discernimento racional, como formação cultural e segurança econômica.

Reconhecer-se mutuamente como pessoa de direito significa hoje, nesse aspecto, mais do que podia significar no começo do desenvol-vimento do direito moderno: entrementes, um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normas morais, mas também na propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso (Idem, p. 193).

E ainda:

Essa ampliação dos direitos individuais fundamentais, obtida por luta social, só é um lado de um processo que se efetuou em seu todo na forma de um entrelaçamento de dois fios evolutivos a ser distingui-dos sistematicamente; o princípio de igualdade embutido no direito moderno teve por consequência que o status de uma pessoa de direito

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não foi ampliado apenas no aspecto objetivo, sendo dotado cumula-tivamente de novas atribuições, mas pôde também ser estendido no aspecto social, sendo transmitido a um número sempre crescente de membros da sociedade (Idem, p. 193).

Nesse sentido, no século XX, surgiu uma Quarta Geração dos direitos humanos, que visavam combater as atrocidades cometidas nos período das I e II Guerras e durante os regimes totalitários que surgiram em diversos países do Ocidente neste período Além disso, a chamada globalização evidenciou e, de certo modo, ampliou as desigualdades entre os chamados países de primeiro e terceiro mundo. Foram criados nesse período diversos organismos internacionais , com intuito de, por meio de cooperação entre diversos países, garantir direitos como o direito à paz, ao meio ambiente, ao autodesenvolvimento e à autode-terminação, ao patrimônio comum da humanidade e o direito à comunicação. Esses direitos, também conhecidos como direitos de fraternidade/solidariedade, são coletivos por excelência, pois estão voltados para a comunidade como um todo. Mas, uma questão que perpassa a discussão sobre esses direitos, é que não pode haver paz se não é possível reconhecer as diferenças e as especificidades dos indivíduos. O pressuposto central dos regimes totalitários como o nazismo e o fascismo, por exemplo, era a existência de uma classe ou grupo social superior aos demais. Portanto, o reconhecimento da diferença é um elemento indispensável à paz. Alguns autores, como Bonavides (2003), cometam ainda sobre a existência de uma nova geração de direitos fundamentais que seria caracterizada essencial-mente pelo direito à democracia e ao pluralismo, pautada no estabelecimento de relações de coexistência. Não é nosso objetivo, nos limites desse trabalho, analisar a existência de novas gerações de direito. O objetivo que nos propomos é mostrar que a afirmação do direito à comunicação é essencial para a continuida-de da ampliação do reconhecimento, em suas três dimensões. Sendo necessário para tanto políticas de Estado que promovam a democratização dos meios de comunicação, provendo a redistribuição dessas tecnologias e promovendo um espaço plural no âmbito dos meios de comunicação de modo a fomentar e sub-sidiar a luta por reconhecimento social.

diReitO à cOmunicaçãO, RecOnhecimentO e luta pOR diReitOs

Como destacamos, a livre manifestação da vontade e do pensamento é um direito civil que surgiu no processo de formação do Estado Moderno. É nesse período que a liberdade de imprensa, já uma atividade com certa relevân-cia, tornou-se uma questão constitucional em diversos estados ocidentais (ainda que a censura tenha persistido durante alguns anos em muitos outros), e há a formação de uma “esfera pública” em que pessoas privadas se reúnem enquanto o público, estabelecendo uma instância de diálogo e mediação entre a sociedade e o Estado7. O posterior desenvolvimento dos meios de comunicação, sobretudo após o início da Revolução Industrial, criou, segundo Thompson (2002), novas formas de ação e interação e novos tipos de relacionamentos sociais, fazendo

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surgir uma complexa reorganização dos padrões de interação humana através do espaço e do tempo. Os meios eletrônicos de comunicação, como o telégrafo, o telefone, o rádio e a televisão, permitiram formas de interação mais ágeis entre indivíduos situados em diferentes partes do mundo, além de alcançar simulta-neamente um enorme número de pessoas. Essas tecnologias da informação e da comunicação tornaram-se ferramentas essenciais na busca por consenso e adesão a determinadas idéias. Isto significa que os meios de comunicação assumiram um papel central na disputa política e na luta por direitos.

O desenvolvimento e aquisição dessas tecnologias exigem altos investi-mentos econômicos, de modo que a produção simbólica passou a estar concen-trada nas mãos de alguns poucos conglomerados de mídia8, gerando um fluxo estruturado e direcionado da produção de bens simbólicos. Assim, o direito à informação veraz e oportuna é restringindo uma vez que o controle da infor-mação passa, em grande medida, às mãos de alguns empresários. Atualizando a crítica marxista, é possível afirmar nesse sentido que a liberdade de expressão e o direito igualitário à informação só existem na aparência, pois na essência é a classe burguesa que controla a produção e o fluxo de informações. Como explica Ramos (2005), contemporaneamente, o direito à informação é tradu-zido como o direito que temos, nas democracias representativas de massa, de receber informações oportunas e verazes.

A concentração das empresas de comunicação e o controle por poucos do fluxo da produção simbólica fez surgir, nos anos 60 e 70 do século XX, em âmbito internacional, um debate sobre a necessidade do direito à comunicação e o seu papel no fortalecimento da democracia. As discussões aconteceram sob a coordenação da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e culminou com o lançamento do relatório da comissão pre-sidida pelo jornalista e jurista irlandês Sean MacBride, intitulado “Um mundo e muitas vozes – comunicação e informação na nossa época”. De modo geral, o documento fazia um diagnóstico do fluxo informacional em nível mun-dial e estabelecia diretrizes para a criação de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (Nomic).

Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos Direitos humanos. Mas este direito é concebido cada vez mais como o direito de comunicar, e ultrapassa o direito a receber comunicação ou ser informado. Se estima pois, que a comunicação é um processo bidi-recional, cujos participantes – indivíduos ou coletivos – mantenham um diálogo democrático e equilibrado. Esta idéia de diálogo con-traposta a de monólogo, é a base mesma de muitas idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos Direitos Humanos (UNESCO, 1988, p.300).

A idéia central é de que o processo comunicativo possui uma dimen-são dialógica e bidirecional, entre dois ou mais indivíduos em condições de igualdade, sendo a pluralidade um valor central para qualquer sistema de co-municação democrático. O documento apontava ainda que uma nova ordem

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comunicacional está vinculada a uma nova ordem econômica e que a concen-tração mididática era um dos principais obstáculos para a democratização da comunicação, cabendo ao Estado, para tanto, formular e implementar políticas nacionais de comunicação e cultura. A partir das contribuições de Honneth, é pertinente afirmar que o direito à comunicação amplia a capacidade de ma-nifestação do “Eu”, que em diálogo constante com o “Me” busca a ampliação do outro generalizado no sentido do reconhecimento social e jurídico. Ou seja, um ambiente comunicacional plural e acessível ao conjunto da sociedade fomenta a estima social e o avanço da democracia.

Ramos (2005) salienta que a reivindicação pela democratização da comu-nicação tem diferentes conotações. Entre as principais está aquela que a compre-ende como a distribuição de meios variados e numerosos a maior quantidade de pessoas. Outras afirmam a necessidade de garantir o acesso público aos meios. Contudo, o autor explica que estes são apenas alguns aspectos da democrati-zação, pois ela deve significar também “possibilidades mais amplas – para as nações, forças políticas, comunidades culturais, entidades econômicas e grupos sociais – de intercambiar informações num plano de igualdade, sem domínio dos elementos mais fracos e sem discriminações. Em outras palavras, implica mudança de perspectiva” (RAMOS, 2005, p. 249).

Sem dúvida, isso requer informação mais abundante, procedente de uma pluralidade de fontes, mas se não houver possibilidades de reciprocidade, a comunicação não será realmente democrática. Sem a circulação de duplo sentido entre os participantes, sem a existência de várias fontes de informação que permitam maior seleção, sem o desenvolvimento das oportunidades de cada individuo para tomar determinadas decisões baseadas no conhecimento completo de fatos heteróclitos e de pontos de vista divergentes, sem a participação dos leitores, espectadores e dos ouvintes na adoção de decisões e na cons-tituição dos programas dos meios de comunicação social, a verdadeira democratização não chegará a ser uma realidade (Idem, p. 250).

Retomando a definição de luta por reconhecimento de Honneth (2003), percebe-se que ao engajamento de indivíduos pelo “enriquecimento da comuni-dade” só é possível a partir da externalização, de alguma forma, da necessidade psíquica. Ou seja, não é possível reconhecimento sem comunicação. Isso fica evidenciado nas três esferas de interação em que agem as diferentes formas de reconhecimento recíproco: a do amor, do direito e da solidariedade.

Na esfera amorosa, Honneth une as contribuições de Hegel, Mead e Donald Winnicott sobre as relações entre mãe e filho para mostrar o processo de ligação e autonomia existente e indispensável em todas as relações de reco-nhecimento (MATTOS, 2006, p. 89). Em Hegel, o amor representa a primeira etapa do reconhecimento recíproco, porque é por meio dele que os sujeitos se unem e reconhecem a suas carências mútuas, revelando-se dependentes um do outro. Para o filósofo, o amor deve ser concebido como um “ser-si-mesmo em um outro”, o que depende de um equilíbrio precário entre autonomia e ligação. Em seus estudos de psicanálise, Winnicott mostrou que, nos primeiros meses de

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vida, a relação entre filho e mãe é de simbiose, uma fase de intersubjetividade indiferenciada. Em uma segunda fase, esses sujeitos precisam aprender a dife-renciar-se enquanto seres autônomos. Inicia-se a fase de “des-aptação graduada”, quando a criança começa a ter certos reflexos condicionados e passa a ter a capa-cidade cognitiva de diferenciar o próprio ego e o ambiente. Em seguida, passa-se para um processo de “dependência relativa”, resultado do processo de desilusão que ocorre quando a mãe já não pode estar totalmente a disposição do filho em virtude do novo aumento de sua autonomia de ação, assim, com o afastamento gradativo da pessoa fantasiada como parte do seu mundo subjetivo do seu con-trole onipotente, a criança é levada a um “reconhecimento do objeto como um ser de direito próprio”. A este afastamento da mãe, o bebê reage com atos agres-sivos como numa tentativa de destruir o corpo dela. “Se, pelo caminho assim traçado, um primeiro passo de delimitação recíproca é bem sucedido, a mãe e a criança podem saber-se dependentes do amor respectivo do outro, sem terem de fundir-se simbioticamente uma na outra” (HONNETH, 2003, p. 170). Esta fase é decisiva, pois desenvolve a capacidade de “ser-si-no-outro”, características das relações de afeto maduras. Ao perceber que mãe tolerou e não revidou seus ataques agressivos privando-o do amor, o filho aprende que ainda que faça parte do seu mundo exterior, a mãe continua amando-o. É a partir da confiança no amor da mãe que a criança começa a descobrir sua própria vida pessoal.

A partir dessa descrição de Winnicott, Honeth vê a estrutura comu-nicativa que está na base do reconhecimento mútuo. A segurança emotiva de ser amado, mesmo que a outra pessoa não esteja presente, é condição necessária para que o sujeito que ama seja reconhecido em sua independência. Isso porque a experiência do reconhecimento deve ser mútua na relação de amor (MATTOS, 2006, p. 91).

No âmbito jurídico, Hegel e Mead perceberam uma relação semelhan-te na medida em que só podemos alcançar uma compreensão de nós mesmos enquanto portadores de direitos quando temos, no sentido contrário, a consci-ência sobre quais obrigações devemos observar em relação ao outro. No Estado Modermo ocidental, o sistema jurídico passa a ser entendido como expressão dos interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, sem admitir exceções ou privilégios. Desse modo, os sujeitos de direito se reconhecem como capazes de decidir com autonomia individual sobre as normas morais. Como ex-plica Mattos (2006), a universalização e ampliação dos direitos, como já foi mos-trada anteriormente, é consequência do processo de reconhecimento mútuo de agentes como seres autônomos. Partindo das contribuições de Mashall, Honneth (2003) destaca dois fios evolutivos da ampliação dos direitos fundamentais: o princípio da igualdade existente no sistema moderno mostra que o status de uma pessoa de direito não foi ampliado apenas na sua dimensão objetiva, sendo dotado cumulativamente de novas atribuições, além disso, pode também ser ex-pandido no aspecto social, sendo transmitido a um número crescente de pessoas. Assim, o direito ganhou em conteúdo material, ao incorporar novas diferenças nas chances individuais de realização das liberdades socialmente garantidas, ao

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passo que passa a ser estendidos a um número cada vez maior de indivíduos. A partir dessas possibilidades, há um prosseguimento da luta por reconhecimento, sendo os confrontos práticos, que emergem por conta da experiência do reco-nhecimento denegado ou de desrespeito, propulsores dos conflitos em torno da ampliação tanto do conteúdo material como do alcance social. O caráter público do direito autoriza o seu portador a uma ação perceptível em direção ao outro, o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do auto-respeito, uma vez que a faculdade de reclamar direitos dota o indivíduo de um meio de expressão simbólica, cuja efetividade social pode mostrar-lhe reiteradamente que ele dispõe de reconhecimento universal como pessoa moralmente imputável.

Em sua obra A Mídia e a Modernidade, J. B. Thompson (2002) mostrou como o desenvolvimento da mídia afetou a política. De um lado, os meios de comunicação eletrônicos criaram novas formas de publicidade bem diferentes da “publicidade tradicional de co-presença” e as ações e eventos passaram a ser conhecidos independente de serem presencialmente vistos ou ouvidos. Por outro lado, os meios de comunicação passaram a mediar as relações entre o governante e o povo, de maneira que a administração da visibilidade tornou-se uma prática rotineira da arte de governar. Enquanto idealmente mediadores das relações entre Estado e Sociedade, os meios de comunicação possuem a capacidade de dar maior ou menor visibilidade, ou simplesmente negligenciar determinadas lutas por reconhecimento ou formas de desrespeito. Contudo, enquanto empresas que almejam, principalmente, o lucro, tais meios tendem a defender os interesses dos grupos econômicos aos quais estão atreladas, não raro, vinculados a grupos políticos9. A difusão nesses meios de comunicação de certas lutas por reconhecimento levadas a cabo por grupos sociais tem a capacidade atribuir, ou não, maior adesão e poder político a elas10.

A terceira etapa do reconhecimento, a solidariedade social, está baseada na ideia de que os pilares da solidariedade moderna são as relações simétricas existentes entre os indivíduos e a possibilidade destes referirem-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas. Mattos (2006) explica que, para Honneth, a solidariedade se expressa na relação interativa na qual os sujeitos se interessam reciprocamente pelos seus diferentes modos de vida, uma vez que eles se estimam entre si de maneira simétrica. Diferente do reconhecimento jurídico moderno, a estima social está voltada para as particularidades que caracterizam os seres humanos em suas diferenças pessoais. Se o direito moderno representa um medium de reconhecimento que expressa propriedades universais de sujeitos humanos de maneira diferenciadora, ele necessita de um medium social que deve expressar as diferenças de propriedades entre sujeitos humanos de maneira universal, ou seja, intersubjetivamente vinculante (HONNETH, 2003, p. 199).

Essa tarefa de mediação é operada, no nível social, por um quadro de orientações simbolicamente articulado, mas sempre aberto e poroso, no qual se formulam os valores e os objetivos éticos, cujo todo consti-tui a autocompreensão cultural de uma sociedade; um semelhante qua-dro de orientações pode servir de sistema referencial para a avaliação

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de determinadas propriedades da personalidade, visto que seu ‘valor’ social se mede pelo grau em que elas parecem estar em condições de contribuir à realização das predeterminações dos objetivos sociais. A autocompreensão cultural de uma sociedade predetermina os critérios pelos quais se orienta a estima social das pessoas, já que suas capacida-des e realizações são julgadas intersubjetivamente [...] (Idem, p. 200).

O alcance da estima social e a capacidade de simetria entre os indivíduos estão vinculados, portanto, ao grau de pluralização do horizonte de valores e iden-tidades socialmente definidos e reconhecidos. No lugar do conceito de honra, na modernidade, as categorias de “reputação” ou “prestígio” passam a ser a medida da estima que o indivíduo goza socialmente quanto a suas realizações e capaci-dades sociais. O nível de importância e contribuição dessas definem os graus e formas de auto-realização, de acordo com a contribuição que deu a concretização dos objetivos sociais. Assim, uma tensão subjaz na forma de organização moder-na da estima social, transformando-a em conflito cultural. “O valor conferido as diversas formas de autorealização, mas também a maneira como se definem as propriedades e capacidades correspondentes, se mede fundamentalmente pelas interpretações que predominam historicamente acerca das finalidades sociais” (Idem, p. 207). O autor destaca que essas as interpretações daí decorrentes de-penderá de qual grupo social consegue interpretar de forma pública as próprias realizações e formas de vida como particularmente valiosas. Para ele, contudo, o que decide o final dessas lutas, definido temporariamente, não é somente o poder de dispor dos meios de produção simbólica, restrito a determinados grupos, mas também o clima, dificilmente influenciável, das atenções públicas.

Quanto mais os movimentos sociais conseguem chamar a atenção da esfera pública para a importância negligenciada das propriedades e das capacidades representadas por eles de modo coletivo, tanto mais existe para eles a possibilidade de elevar na sociedade o valor social ou, mais precisamente, a reputação dos seus membros. Além disso, uma vez que as relações da estima social [...] estão acopladas de for-ma indireta com os padrões de distribuição de renda, os confrontos econômicos pertencem constitutivamente a essa forma de luta por reconhecimento (Idem, p. 208).

Desse modo, para Honneth (2003) as formas de reconhecimento e, conse-quentemente, a estima social passam a estar vinculadas às relações simétricas entre os indivíduos, sendo as interpretações culturais dependentes da capacidade dos gru-pos sociais de valorizar os interesses e propriedades defendidos por eles. Contudo, na concepção do autor, a reputação social dos sujeitos é avaliada pelas realizações individuais que eles apresentam na suas formas particulares de auto-realização.

Mattos (2006) destaca que Honneth, acreditando que o conceito de so-lidariedade está ligado à concepção de auto-estima baseada na simetria entre os grupos, o autor atribui maior importância a luta por reconhecimento que a luta de classe pelo controle do capital simbólico. Na análise da autora, isto ocorre porque aquele pesquisador entende que todos os conflitos sociais têm sempre a natureza do reconhecimento se sobrepondo a luta por distribuição de renda.

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Não é a proposta deste trabalho discutir a capacidade de influência dos meios de comunicação no pensamento e na opinião dos indivíduos. Contudo, cabe-nos questionar se a visibilidade e a relevância dados a determinadas reivindicações não são fatores condicionantes da ampliação e aceitação de certas formas de reconhe-cimento em detrimento de outras. Ora, se há uma simetria na disposição destes grupos sociais em termos jurídicos, o mesmo não acontece na sua capacidade de organização e, sobretudo, de difusão de suas interpretações no âmbito da produ-ção simbólica11. Se assim o fosse, a busca pelo direito à comunicação perderia seu sentido, uma vez que caberia exclusivamente aos grupos sociais a capacidade de chamar mais atenção do público para as suas propriedades numa esfera comunica-tiva democrática. O relatório MacBride demonstrou, naquele período, que o fluxo da produção simbólica está diretamente vinculado a capacidade econômica que os grupos sociais têm para controlar os meios de difusão. Não pretendo com isto afir-mar que para existir uma maior igualdade na capacidade de propagação de ideias e pensamentos por parte dos diversos atores sociais baste apenas um distribuição de ferramentas e tecnologias da comunicação. Sobretudo porque utilizá-las exige, de modo geral, investimentos financeiros, necessitando, portanto, de um investimen-to duplo do Estado, no sentido de redistribuir os meios, mas também garantir o seu pleno funcionamento por meio dos grupos sociais que não disponham de condi-ções para isto. Além dessas políticas, é necessário que se crie espaço, principalmente nos meios de comunicação massivos como o rádio e a televisão que ocupam um espaço público concedido pelo Estado, para a difusão de uma produção simbólica atrelada aos movimentos sociais que luta por novas formas de reconhecimento. Para demonstrar como a atuação de meios de comunicação podem auxiliar na bus-ca por reconhecimento jurídico e estima social quando apropriados de maneiras democráticas, passaremos em seguida a uma breve análise de rádios comunitárias que tem uma atuação relevante neste sentido.

RádiOs cOmunitáRias, estima sOcial e a busca pOR diReitOs

No Brasil, as chamadas rádios comunitárias se constituíram ao longo dos últimos anos estruturas de grande relevância para o avanço da estima social e para o reconhecimento de direitos positivados ou não na legislação do país, ainda que tenham uma atuação local. Apesar da ausência histórica de políticas públicas e dos problemas estruturais que atingem o setor, diversos estudos, como os de Lahni (2005), Peruzzo (2007), Leal (2008), Freire e Tauk Santos (2009), Baptista (2009), por exemplo, mostraram como a presença desses meios de comunicação tem contribuído para o fortalecimento da cidadania e o desenvolvimento das comunidades em que estão situadas, além de possibilitar uma maior integração da comunidade e avanços no nível educacional.

A Lei 9.612/1998, que regulamentou o Serviço de Radiodifusão Comunitária, define-o como “radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associa-ções comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do

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serviço”12. A legislação determina ainda que a prestação do Serviço tem como objetivos

I - dar oportunidade à difusão de idéias, elementos de cultura, tradi-ções e hábitos sociais da comunidade; II - oferecer mecanismos à for-mação e integração da comunidade, estimulando o lazer, a cultura e o convívio social; III - prestar serviços de utilidade pública, integrando--se aos serviços de defesa civil, sempre que necessário; IV - contribuir para o aperfeiçoamento profissional nas áreas de atuação dos jornalistas e radialistas, de conformidade com a legislação profissional vigente; V - permitir a capacitação dos cidadãos no exercício do direito de expressão da forma mais acessível possível (BRASIL, 1998, s/p).

A pesquisa realizada por Sayonara Leal (2008)13 em cinco rádios comunitá-rias do Distrito Federal ( Rádio Líder FM, Utopia FM, Rádio Comunidade FM, Rádio Sobradinho FM e Rádio Paranoá) mostrou que, de modo geral, a prática discursiva dessas emissoras estavam acentadas nos problemas sociais das respectivas comunidades, sobretudo porque estão situadas em localidades periféricas, com bai-xos índices de desenvolvimento humano. Entre os temas mais recorrentes estavam: pobreza, violência urbana, problemas de infra-estrutura urbana, críticas ao governo local, reivindicações de políticas públicas, denúncias e pedidos de auxílio material. Além disso, há a prática constante de convidar políticos e administradores públicos para responder aos questionamentos e reclamações do público local. Outro aspecto importante destacado pela pesquisadora é a valorização dos artistas locais, eventos e iniciativas culturais e políticas originadas na comunidade.

Em geral, as propostas associativas e comunicativas das emissoras do Distrito Federal apontam para ações sociais voltadas para a integração e esclarecimento dos membros da comunidade concernida pelo serviço de radiodifusão, colocando-as a par dos processos da vida social, cultural e política da localidade. Existe, nesse sentido, um comprome-timento contratual entre associação e poder público central prevendo o desempenho da rádio segundo demandas e necessidades comunica-tivas e informativas que remetam ao interesse público, à noção de bem comum (LEAL, 2008, p. 341).

Já Freire e Tauk Santos (2009) analisaram a recepção do programa Rádio Mulher do Cabo de Santo Agostinho pelas mulheres da comunidade do Pirapama, em Pernambuco. A programação é produzida pela organização não governamental Centro das Mulheres do Cabo – CMC e veiculada na Rádio Comunitária Calheta FM. O Rádio Mulher é dedicado às questões de gênero e possui quadros de entrevista, entretenimento, prestação de serviços e produção jornalística pautada pelo movimento das mulheres de todo território nacional. Segundo depoimento dado pela locutora do programa, Flávia Lucena, às pesqui-sadoras a finalidade do programa é “empoderar as mulheres sobre os seus direitos [...] à saúde, à moradia, direito a uma vida sem violência, direitos humanos das mulheres”. Observando a recepção em relação às questões de gênero as autoras verificaram que 57% das mulheres declaram já ter opinião formada sobre o tema antes de se tornarem ouvintes do programa, mas 47% das entrevistadas afirma-ram que tomaram consciência sobre as questões de gênero e modificaram seu

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comportamento a partir do Rádio Mulher. No que diz respeito ao tema cidada-nia, os resultados mostraram que houve “apropriação de novos conhecimentos por parte das ouvintes do grupo de customização, porém esses conhecimentos poderiam estar mais relacionados com o cotidiano dessas mulheres” (FREIRE; TAUK SANTOS, 2009, p. 260)14. As autoras destacam que informações sobre gênero, no âmbito do reconhecimento das diferenças entre os sexos e na luta pela igualdade; cidadania, com questões mais relacionadas à saúde e aos direitos so-ciais; e ecologia social, abordando os vários tipos de violência contra as mulheres, foram as mais compreendidas pelas ouvintes entrevistadas.

Para Peruzzo (2007) as rádios comunitárias contribuem para o desenvolvi-mento da comunidade, seja pelas operações econômicas que desencadeia, como pelos conteúdos que transmite e pelo aprendizado que proporciona aos que par-ticipam da produção, da criação e da transmissão dos programas. Em seu arti-go “Rádio Comunitária, Educomunicação e Desenvolvimento Local”, Peruzzo trata de diversos estudos que analisaram o papel de rádios comunitárias no de-senvolvimento das comunidades em que estão localizadas, fomentando práticas cidadãs, luta e conquista de direitos e elevação da estima social. “A importância da comunicação comunitária enquanto meio facilitador do exercício dos direitos e deveres de cidadania é inegável em muitas localidades no Brasil e por onde ela se efetiva na perspectiva de uma comunicação pública” (PERUZZO, 2007, p. 6).

Apesar da relevância que esses meios de comunicação tem conquistado na vida das comunidades, no Brasil há um descaso histórico do poder público em relação ao setor, seja perseguindo e dificultando a legalização das rádios comu-nitárias que ainda não possuem autorização, seja mantendo uma legislação que obstaculiza ainda mais a criação, a atuação e a sobrevivência desses meios, ou não criando ações e políticas de curto e longo prazo que visem fomentar esses meios de comunicação. De acordo com Leal (2008), 2.899 municípios brasileiros, dos 5.562 existentes, não contam com radiodifusoras comunitárias. Contudo, no Ministério das Comunicações existiam naquele período 7.180 requerimentos de entidades que ainda aguardam o início da tramitação do processo (aviso de habilitação).

Nos últimos anos, a repressão e a criminalização das rádios comunitárias tem crescido significativamente. Em 2002, a Polícia Federal bateu recorde de apreensão de emissoras em relação aos cinco anos anteriores (ver Gráfico 1). Já a quantidade geral de rádios comunitárias fechadas pela Anatel, em 2002, foi de 3.200, avançando para 4.412 em 2003, e 862 somente nos primeiros três meses de 2004. Em abril de 2009, a Anatel destruiu oito mil toneladas de equipamen-tos apreendidos em operações de fiscalização a rádios não autorizadas. Cerca de um mês depois, foi destruída 1,5 mil tonelada de material apreendido de 132 rádios que não tinham autorização. De acordo com informações do relatório da subcomissão criada pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados para avaliar os processos de outorga de concessões de rádio e TV, a morosidade no processo de legalização das rádios comunitárias chega a 3,6 anos.

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Gráfico 1: Rádios Comunitárias Apreendidas pela Polícia Federal (1998-2003).

Fonte: Elaboração própria com dados da ABRAÇO (2005).

Leal (2008) aponta ainda que entre as principais problemas do setor estão: de-manda reprimida de outorgas para a prestação do serviço, morosidade na apreciação dos pedidos formalizados, assim como as limitações impostas pela própria legislação que determina a proibição da veiculação de publicidade comercial (não é permitido anunciar valores), restrição da potência do transmissor a 25 watts e e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros, e ausência de subsídios e financiamento público.

cOnsideRações finais

O direito humano à comunicação se constitui hoje um dos pilares na luta por reconhecimento cultural e redistribuição econômica. No primeiro caso, como procuramos demonstrar, ele ocupa um papel central nas três etapas do re-conhecimento apontadas por Honneth, sobretudo no reconhecimento jurídico e social. Um processo de comunicação democrático proporciona espaço equitativo para as reivindicações por novos direitos e amplia a formas de auto-respeito. No segundo caso, uma comunicação democrática representa maior capacidade das classes subalternas de negociar e difundir seus interesses entre os parceiros.

Contudo, para que se implemente concretamente o direito à comunicação são necessárias também políticas públicas que garantam a redistribuição destes meios entre maior números de grupos sociais, mas que também estabeleçam di-retrizes e esferas de discussão que levem os meios de comunicação a criar espaço para o reconhecimento de novas identidades e manifestações culturais, além de tornarem a temática do direito à comunicação recorrente na programação.

A demanda por redistribuição das tecnologias da informação e da comu-nicação é uma demanda econômica, uma vez que o não acesso daquelas se dá, em grande parte, por razões desta ordem. Em essência, são poucos os atores sociais que dispõem de recursos para adquirir tais tecnologias, permitindo-os disputar em condições de igualdade com os grupos midiáticos empresariais já es-tabelecidos. Nesse caso, o remédio transformativo pode ser: criação de cotas para produção nacional independente na programação das emissoras de rádio e TV, sobretudo, nas de caráter gratuito e aberto; facilitar, fomentar subsidiar a criação de rádio e TV s comunitárias para que tais grupos consigam operar e desenvolver as suas atividades em longo; além disso é importante coibir o monopólio e o oli-gopólio dos meios de comunicação; estabelecer cotas para a produção regional; e

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retomar as atividades do Conselho de Comunicação Social, cumprindo assim o que determina a Constituição Brasileira.

A demanda por reconhecimento no âmbito dos meios de comunicação diz respeito ao combate às formas estereotipadas e marginalizadas dadas a determinados grupos sociais. No sentido de fazer tais práticas retrocederem, é possível apontar al-gumas soluções, como a discussão, elaboração e implementação de uma legislação de regule a produção de conteúdo e o direito de resposta; ampliação o direito de antena, proporcionando aos movimentos populares um espaço mínimo no rádio e na televi-são abertos, e a criação de esferas democráticas de debates sobre o setor.

Proposições nesse sentido, mesmo que não representem todas as possibili-dades de formas de democratizar a comunicação, somadas a outras, podem facili-tar a emergência do que Young (2001) denomina de “democracia comunicativa” por meio de espaços que permitam a expressão bem-sucedida, em condições de igualdade, de experiências e perspectivas plurais para que outros grupos e posições sociais aprendam e compreendam outras realidades, levando os sujeitos a entender melhor “o que a sociedade pretende ou quais serão as possíveis consequências de uma política ao situar sua própria experiência e interesse num contexto mais amplo de entendimento” (YOUNG, 2001, 378). Para Young (2001), a busca por uma democracia comunicativa representa avançar na idéia de democracia deliberativa e o estabelecimento de um espaço amplo de reconhecimento. Na análise da auto-ra, a diferença é o recurso central da democracia comunicativa, sendo necessário para que ela seja implementada o comprometimento dos indivíduos com o respeito mútuo, o reconhecimento de que todos tem o direito de expressar suas opiniões e pontos de vista e que todos devem escutar, além de haver uma concordância por parte dos integrantes no que diz respeito às regras de procedimento da discussão e de processos de tomada de decisão. Sendo os meios de comunicação instâncias centrais em qualquer modelo de democracia, a adoção desses princípios represen-taria um importante avanço no processo de democratização da comunicação e na busca por democracia efetivamente comunicativa.

nOtas

1 Processos sociais que aconteceram nos séculos XVII e XVIII que levaram ao fim do regime estamental e a formação do Estado Moderno, com a ascensão da burguesia ao poder e a derrubada do regime absolutista.

2Essas idéias ganharam respaldo no pensamento jusnaturalista e contratualista de Hobbes (1588-19679), Locke (1632-1704) e Rousseau (1712-1778), resguardadas as diferenças teóricas entre os autores.

3 A partir das contribuições de Mead, Honneth explica que o “Eu” é a fonte não regulamentada das minhas ações atuais. Ele deve ser referido à instância da perso-nalidade humana responsável aos problemas práticos. Já o “Me”, conserva a minha atividade momentânea como algo já concretizado, uma vez que ele representa a imagem que o outro tem de mim (Idem, p. 130). Contudo, ao “Eu” precede a consciência que o sujeito possui de si mesmo do ponto de vista do seu parceiro, assim como possui a capacidade constante de responder as novas manifestações práticas mantidas conscientemente no “Me”, comentado-as, o que significa que há um diálogo constante entre estas duas dimensões. Já o outro generalizado concer-ne ao comportamento orientado por uma regra sintetizada a partir das perspectivas

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de todos os companheiros e a interiorização de normas de ação traduzidas a partir da generalização de comportamento de todos os membros da sociedade.

4 Ver MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1967.

5 A social-democracia ganhou corpo material com a fundação do partido social--democrata alemão em 1875, tendo Kautsky como um de seus expoentes.

6 Em 1945, foi fundada a Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de “conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural, ou sanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distin-ção de raça, sexo, língua ou religião”. Em 10 de dezembro de 1948, foi lançada a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

7 Para um aprofundamento sobre o conceito de Esfera Pública, ver HABERMAS, Jürgen. A Mudança Estrutural da Esfera Pública. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,2003.

8 Já no ano de 1900, 190 mil milhas de cabos submarinos haviam sido instaladas no mundo, sendo que 72% destas pertenciam à firmas britânicas (Eastern and Associated Companies). Após a II Guerra Mundial, apenas quatro agências contro-lavam a produção internacional de notícias: Associated Press (AP), Reuters, United Press International (UPI) e Agence France-Presse (AFP). Na década de 1970, os EUA ocupavam 60% do mercado de exportação de programas. Em 1975, ainda que só fornecessem 32% da totalidade dos filmes importados no mundo e só represen-tasse 5 a 6% da produção mundial de longas-metragens, os filmes estadunidenses arrecadavam metade das receitas mundiais.

9 Nos estudos de jornalismo, há uma séria de teorias que busca compreender os elementos definidores dos assuntos/ações/ eventos que ganharam visibilidade nos noticiários. Entre os principais paradigmas das Teorias do Jornalismo estão a do Agendamento, Gatekeeper, Newsmaking, Fractais e Espiral do Silêncio.

10 Em março de 2010, o jornal brasileiro O Globo criou obstáculos à veiculação publicitária da Campanha Afirme-se, movimento em favor de ações afirmativas re-lacionadas à questão racial. Alegando ser uma publicidade que expressava opinião, a direção editorial do jornal decidiu elevar o valor previamente contratado, de R$ 54.163,20 para R$ 712.608,00, o que representa um acréscimo de 1.300%, de acordo com matéria veiculada no Observatório do Direito à Comunicação. A publi-cidade foi veiculada em outros meios de comunicação.

11 Observe-se, por exemplo, o tratamento dado pela mídia brasileira aos movimen-tos em favor da reforma agrária ou aos padrões de comportamento gay difundidos nas séries e telenovelas.

12 Por baixa potência o marco legal entende capacidade máxima de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros. Já a cobertura restrita é entendida como o atendimento a um bairro ou vila. Dessa maneira, o conceito de comunidade da legislação não leva em conta fatores de ordem histórica e cultural.

13 Resultado da tese de doutoramento da autora no âmbito do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).

14 No texto é possível encontrar o resultado das pesquisas por temas, são eles: gênero, mulheres e cidadania, mulheres e participação/organização, mulheres e atividades produtivas, e mulheres e ecologia.

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ResumoO audiovisual tem se transformado, na última década, em locus de participação política para diversos movimentos populares, coletivos e Pontos de Cultura. Concomitantemente à atuação desses grupos, o Ministério da Cultura e a Secretaria do Audiovisual têm fomentado programas destinados à chamada “inclusão audiovisual”, num contexto onde a cultura é associada a um forte recurso de empoderamento de minorias políticas. A relação estabelecida entre sociedade civil e sociedade política, nessa conjuntura, consiste no alvo das reflexões sociológicas do presente artigo, que buscou enfatizar novas formas de compreensão das políticas culturais, a partir da experiência do Festival Audiovisual Visões Periféricas e do Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa).Palavras-chave: Políticas culturais; Audiovisual; Participação; Reconhecimento.

AbstractThe audiovisual sector has been transformed in the last decade, the locus of political participation for many popular movements, collectives, and Pontos de Cultura. Concomitantly with the actions of these groups, the Ministério da Cultura and Secretaria do Audiovisual has promoted programs for the so-called “inclusion audiovisual” in a context where culture is associated with a strong feature of empowerment of political minorities. The relationship between civil society and political society, at this juncture, is the focus of sociological reflections of this article, which sought to emphasize new ways of understanding the cultural politics, from the experience of Festival Audiovisual Visões Periféricas and Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa).Keywords: Cultural policies; Audiovisual; Participation; Recognition.

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Visões Periféricas:políticas culturais, participação

e reconhecimentoVisões Periféricas:

cultural policies, participation and recognition

Michely Peres de Andrade | [email protected] do Programa de Pós-Graduação em Sociologia

da Universidade Federal de Pernambuco

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a tRajetóRia dO festival audiOvisual visões peRiféRicas e dO fóRum de expeRiências pOpulaRes em audiOvisual (fepa)

O Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa) é resultante de um processo político mais abrangente, associado, sobretudo, à luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil. Em reação ao contro-le econômico, político e ideológico desempenhado pelas grandes empresas de comunicação e entretenimento, algumas iniciativas surgem na sociedade civil com vistas à democratização do setor, ainda nas décadas de 1960 e 70.

Na América Latina, particularmente, a luta pela democratização dos meios de comunicação começa a ganhar relevo entre o final da década de 1970 e início da de 1980. Nesse período, o movimento esteve associado à luta de diversos seg-mentos contra as ditaduras militares do continente. Paralelamente à concentração dos meios de comunicação em grandes empresas e corporações, constata-se um ideal de mídia livre, tendo como base os movimentos de contracultura, que possi-bilitaram experiências como as rádios livres e o cinema marginal em vários países.

Entre as experiências de comunicação popular que mais têm adquirido destaque nas últimas décadas, podemos citar: a emergência da mídia indígena, que tem utilizado o audiovisual e outras tecnologias para reivindicar tanto o direito à terra quanto à “descolonização” do olhar e da fala. Junto a esse fe-nômeno, também tomamos conhecimento das centenas de rádios comunitárias atuantes no país, além da formação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação na década de 1990, dos CMI’s (Centros de Mídia Independente) e da Cufa (Central Única de Favelas), entre outras estratégias que expressam fortemente uma reação ao modelo de radiodifusão brasileiro.

No tocante ao interesse de diversos setores populares pelo audiovisual, insistimos na importância que essa linguagem adquiriu na luta por reconheci-mento nos espaços públicos. Como afirmam Ella Shohat e Robert Stam, “nos campos de batalha simbólicos dos meios de comunicação de massa, a luta por representação tem correspondência com a esfera pública” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 267). Os autores denominam essas iniciativas de “Quarto cinema”, em que grupos subalternizados utilizam o audiovisual como forma de autorrepresen-tação. O objetivo central do chamado “Quarto cinema” aproxima-se do argu-mento da teoria pós-colonial, que problematiza o compromisso dos intelectuais com a reinscrita da história a partir do ponto de vista do negro, do colonizado, do subalternizado (BHABHA, 2005; HALL, 2006; COSTA, 2006).

Imbuídos do mesmo compromisso, os participantes do Festival Audiovisual Visões Periféricas e os grupos vinculados ao Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa) produzem desde vídeos caseiros, elaborados por jovens moradores de favelas, até documentários realizados por ciganos, comunidades indígenas e quilombolas.

Cada vez mais, os movimentos indígena, feminista, negro, homosse-xual e demais setores populares têm percebido na tecnologia audiovisual a

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oportunidade de produzir representações diferenciadas sobre si mesmos, em contraposição aos discursos presentes na grande mídia, impregnadas, quase sempre, de estereótipos e declarações preconceituosas em relação às identida-des de grupos historicamente discriminados.

São muitas as organizações não governamentais, os coletivos juvenis, mo-vimentos sociais e Pontos de Cultura, que apostam na produção de vídeos in-dependentes como estratégia de desmistificação dos discursos hegemônicos em circulação nos grandes meios de comunicação. Concomitantemente à atuação desses grupos, as políticas públicas administradas pelo MinC têm gerado ações e programas destinados à chamada “inclusão audiovisual”. Podemos afirmar que algumas das atuais políticas governamentais destinadas à democratização do audiovisual foram resultantes da participação direta de iniciativas a exem-plo do Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa) e do Festival Audiovisual Visões Periféricas. Esses eventos têm sido realizados nos últimos quatro anos na cidade do Rio de Janeiro e contam com a participação de grupos sociais oriundos de diferentes regiões do país, com propostas políticas diversas.

Devido ao papel articulatório que esse fórum tem exercido na relação entre a sociedade civil e o Ministério da Cultura no tocante à democratiza-ção do audiovisual, é inegável a importância das experiências populares em audiovisual para a consolidação de espaços políticos mais democráticos no Brasil. Além disso, a experiência do Fórum consolida a importância que a tecnologia audiovisual adquiriu no processo de reconhecimento de minorias políticas nas últimas duas décadas.

A formação do Fepa foi resultado do I Festival Audiovisual Visões Periféricas, ocorrido em 2007, e que reuniu 42 iniciativas de um universo esti-mado em cerca de 200 grupos, que desenvolvem trabalhos na área de formação audiovisual ligada aos espaços populares em todo o país. Além das exibições de vídeos, também ocorreram diversos debates com representantes de instituições de ensino, pesquisadores, líderes comunitários, jovens e realizadores audiovi-suais em torno de temas necessários ao desenvolvimento de políticas culturais mais democráticas voltadas para o setor.

Desses debates originou-se o Fepa, o fórum que veio afirmar “a neces-sidade de um reconhecimento público das produções periféricas, bem como adequações das políticas públicas para essas expressões populares” (FEPA, 2007). A primeira medida do fórum consistiu na elaboração de uma carta aberta ao Ministério da Cultura, a Carta da Maré, com propostas sobre os temas formação, produção e difusão do audiovisual pelo Brasil. As reivindica-ções do documento foram as seguintes:

1. Alterar a política de financiamento, distribuição e exibição das produções para que o audiovisual popular possa ser amplamente divulgado, possibilitando à sociedade contato com outras visões, di-ferentes das que assistem diariamente em filmes, programas de TV e noticiários. 2. Criar editais públicos adequados aos núcleos populares

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(ONGs, Oscips, coletivos, etc.) de formação audiovisual com dota-ção orçamentária específica para cada região do Brasil (regionalização da produção). Para isso, propomos um diálogo com as instituições que desenvolvem trabalhos nessa área, de modo a que se considere a importância dos processos educativos, as especificidades dos grupos/sujeitos, a continuidade e sustentabilidade das ações, os critérios de avaliação, a distribuição dos produtos, etc. 3. Demarcar a TV pública e a Programadora Brasil como espaços para divulgação das produções periféricas, democratizando o seu perfil e imprimindo uma visão regional. 4. Reivindicar contrapartidas das TVs públicas e comer-ciais no sentido de coproduzir obras a partir dos núcleos populares de formação audiovisual. 5. Incentivar a formação de plateias para o que é produzido pelos núcleos populares de formação audiovisual através dos cineclubes, escolas e espaços de exibição alternativos, festivais e mostras. 6. Apoiar o Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa), no sentido de torná-lo uma atividade itinerante, representado em diferentes eventos de audiovisual do país. Uma das propostas colocadas para apoio imediato é a criação de um site do Fepa. 7. Criar um espaço de discussão para se pensar uma política de educação audiovisual, de modo a agregar os conteúdos e linguagens do audiovisual na escola, a partir de diferentes modos: formação de professores, disciplina própria, atividades complementares, tema transversal, oficinas, gerenciamento de equipamentos, utilização do audiovisual como instrumento pedagógico etc. 8. Fomento à integração das universidades públicas, as instituições de comunicação comunitária e o poder público, de modo a estimular pesquisas e o desenvolvimento de ações, especialmente no campo da formação de comunicadores e educadores. 9. Contribuição na construção de um portal nacional com produções audiovisuais que saíram de oficinas e projetos afins com o público de periferia. 10. Desenvolver uma política de educação audiovisual, de modo a agregar os conteúdos e linguagens do audiovisual na escola (FEPA, 2007).

Desde a elaboração da Carta da Maré, a rede de articulação entre os grupos associados ao Fepa já conseguiu algumas conquistas importantes para o setor audiovisual brasileiro. Após a reunião de 2007, o Fórum passou a integrar o Conselho Consultivo da Secretaria de Audiovisual (SAV) através de uma votação entre os conselheiros existentes desde 2003. Além disso, a SAV criou um edital público específico para as produções “egressas de projetos sociais”; hoje, um dos seus objetivos consiste na “inclusão de moradores de áreas peri-féricas na criação de conteúdos audiovisuais e no contato com novas tecnolo-gias” (MinC, 2007). Essas são algumas das mudanças significativas percebidas nas políticas culturais brasileiras, se comparamos com períodos anteriores. A própria concepção de cultura tem passado por uma série de reavaliações, que merecem ser destacadas, mesmo que rapidamente.

as pOlíticas públicas destinadas à cultuRa nO bRasil (1930-2000)

Em linhas gerais, as políticas públicas destinadas à cultura abarcam desde a preservação de monumentos históricos até o fomento da cinemato-grafia, passando por diversas linguagens artísticas como as artes plásticas, o teatro, a música etc. Entretanto, como afirma Enrique Saravia (2001), as

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ações públicas destinadas à cultura estão quase sempre sujeitas a linhas po-líticas e ideológicas, que englobam desde a antiga distinção entre cultura erudita, cultura popular e cultura de massas, até a tensão do nacional versus o cosmopolita e a ação das indústrias culturais. Frequentemente, esses são alguns dos temas que integram o conjunto de problemas a partir de cujas respostas serão feitos os investimentos e alocados os recursos.

No Brasil, as primeiras tentativas de políticas culturais estiveram orien-tadas por uma linha ideológica bastante presente na formação dos Estados mo-dernos, a saber, a necessidade em forjar uma identidade nacional. Contudo, a concepção de identidade, orientada pelo ideal de “unidade nacional”, não foi capaz de abarcar toda a pluralidade social brasileira e o Estado precisou elaborar políticas inclusivistas direcionadas às manifestações e práticas que permaneciam fora do seu projeto civilizatório e europeizante. Como nos mostra Durval Muniz de Albuquerque (2007), à medida que a sociedade brasileira se complexifica, mais diferenciadas passam a ser as demandas que o Estado recebe em relação ao apoio e reconhecimento de determinadas manifestações culturais.

Somente na década de 1930 o Brasil conheceu um desenvolvimento institucional sistemático na área da cultura, com forte investimento político, simbólico e financeiro no setor. Nesse período, o debate público sobre aquilo que seria compreendido como identidade nacional possuiu fortes implicações políticas. A intervenção sistemática do Estado brasileiro na cultura desse perí-odo ocorre a partir do ideário de integração nacional, centralizando os poderes regionais e locais. Para isso, o sentimento de brasilidade se transformou em um recurso extremamente importante, cujo objetivo era reunir a pluralidade social brasileira em torno do poder central, que contou com uma intensa arti-culação entre o Estado, a elite e os intelectuais.

A valorização da nacionalidade, na busca da construção do “homem brasileiro”, orientou as ações do governo de Getúlio Vargas na área cultural, que utilizou de noções como mestiçagem e sincretismo cultural para forjar as marcas da nossa suposta identidade nacional. As políticas culturais, nesse sentido, tinham como objetivo central forjar um sentimento de brasilidade, de unidade, no lugar da celebração da diversidade de culturas, etnias e crenças. O debate sobre identidade nacional e diversidade cultural, portanto, ganha um caráter conservador na era getulista e suas políticas culturais ajudarão a fomentar o discurso de neutralização das diferenças.

Essa é uma das características que estará presente também nas políti-cas culturais do governo militar. Durante os anos de chumbo, é desenvolvi-do o Conselho Federal de Cultura (CFC), que reunia diversos intelectuais com o objetivo de elaborar uma política cultural em nível nacional. A cultura popular, nesse contexto, passa a ser concebida como um elemen-to central da mitologia nacionalista verde-amarelo (BARBALHO, 2007). Mais uma vez, o lema da miscigenação servirá de formação discursiva na

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construção de um ideal de identidade nacional, pautada pelo encontro har-mônico de culturas, de um Brasil unificado, sem contradições.

Nas políticas culturais administradas pelo governo militar havia uma tendência em essencializar as noções de “identidade cultural” e “cultura popu-lar”, que deveriam preservar, segundo os seus mentores, as seguintes caracterís-ticas: originalidade, genuinidade, tradição, enraizamento, vocação, perenidade, e, sobretudo, “consciência nacional” (Idem). Em contrapartida, o processo de “modernização da cultura” ficou sob a responsabilidade da emergente, porém poderosa, indústria cultural brasileira. Como nos informa Rubim (2007), se até 1968, mais ou menos, a produção cultural predominante vinha do circuito escolar-universitário, após esse período, a produção cultural será intensamente midiatizada e o governo militar possuía motivos políticos e econômicos para isso. Segundo o autor, a partir desse período, a diversidade cultural brasileira passa a ser administrada pela indústria cultural e pelos meios de comunicação de massa, setor privilegiado na agenda das políticas culturais da época.

Como é sabido, serão esses meios que conduzirão, junto aos movimentos sociais, o processo de redemocratização do país. No entanto, esses mesmos meios serão pouco atuantes nas exigências de uma política pública direcionada à produção e ao consumo cultural. A falta de iniciativas públicas destinadas à cultura será reforçada durante os governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso que, marcados pela euforia neoliberal, tornarão as políticas culturais sujeitas às leis do mercado e de incentivo fiscal.

Embora os temas da brasilidade e da segurança nacional não fossem questões centrais na agenda política do governo FHC, jargões como “iden-tidade nacional” e “diversidade cultural” estiveram presentes nas medidas de incentivo e formação de um mercado nacional e internacional que fos-sem capazes de consumir a “diversidade de bens culturais” produzidos no Brasil. Nesse período, a parceria entre Estado e mercado reforça o papel da cultura como mais um setor de investimento para o país, geração de empregos e oportunidades de lucro.

No início do século XXI, contudo, percebemos uma renovada valoriza-ção da diversidade cultural, resultante de uma série de inquietações surgidas na esteira da globalização da economia. A maior, entre elas, diz respeito ao argumento de entidades internacionais sobre a suposta homogeneização da cultura, ocasionada pela hegemonia econômica norte-americana. Aos pou-cos, esse debate ganhará repercussão mundial e, em 2005, será reforçado pela Convenção Internacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural, promovida pela Unesco, na cidade de Paris, que revisará os rumos do traba-lho iniciado em 1982, com a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais. O evento trará uma série de implicações para as políticas públicas destinadas à cultura no governo Lula, que conduzirão à criação do Sistema Nacional de Cultura e a elaboração do Plano Nacional de Cultura.

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O objetivo do Sistema Nacional de Cultura é definir junto aos estados e municípios, representados pelos respectivos secretários de cultura, uma agenda para coordenar planos e ações públicas para a cultura em todo o país. A pri-meira iniciativa do Ministério da Cultura, nesse sentido, foi possibilitar uma discussão ampla com diversos setores da sociedade civil, ocorrida na ocasião de seminários abertos ao público em todo o país. Com essa medida, a intenção foi conhecer as demandas sociais e consolidar, a partir dessas demandas, o Plano Nacional de Cultura, que terá validade por dez anos, fator que o consolida como um plano de Estado e não um plano de governo.

É importante enfatizar que as emendas que constituem o Plano Nacional de Cultura são resultantes do compromisso que o anterior ministro da cultura, Gilberto Gil, assumiu com a Unesco na Convenção sobre a proteção e a promo-ção da diversidade das expressões culturais. Elegendo a cultura como um dos principais indicadores de desenvolvimento social e econômico, a Unesco tem promovido uma campanha de valorização da “diversidade cultural” em todo o mundo. Dentre os diversos temas debatidos no evento relativos à “valorização da diversidade cultural” um aspecto se destaca: a importância da cultura como locus de reconhecimento e empoderamento de comunidades e grupos em situ-ação de vulnerabilidade e de exclusão social.

Convergindo com os valores que permeiam o debate internacional sobre a questão da diversidade cultural, percebe-se que a noção de identidade na-cional nas atuais políticas culturais brasileiras se pluralizou. Nas diretrizes do Plano Nacional de Cultura, as antigas referências a uma “identidade nacional” são substituídas por jargões que exaltam a ideia de “diversos brasis”. Além disso, as políticas culturais atuais ressaltam a preocupação em revelar a plu-ralidade cultural brasileira, apontando para a incorporação de manifestações culturais historicamente excluídas.

Nesse horizonte, cada vez mais a cultura tem sido pensada como uma face essencial ao crescimento econômico dos países e ação importante para a diminuição dos índices de desigualdade e a construção da boa governança. Como afirma Domingues, “no esteio da reconfiguração da esfera econômica mundial, o setor de bens e serviços adquiriu importância vital. Deste, sem dú-vida o campo que mais vem crescendo nas últimas décadas é o da cultura. Pelo fascínio da criatividade humana, mede-se que hoje ela seja responsável por 7% do PIB mundial”. (DOMINGUES, 2008, p. 12).

Influenciadas por mudanças epistemológicas na antropologia, as políti-cas culturais têm pautado a importância de se pensar o desenvolvimento das nações a partir de suas comunidades tradicionais. Em todos os casos, a cultura ganha relevância e nova dimensão. A mudança substantiva nas políticas cultu-rais em curso no Brasil tem sido perceber que quanto mais as classes populares estiverem presentes na produção e a comercialização de bens e serviços e na promoção das ideias que pontuarão as políticas públicas, mais a cultura servirá

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para alcançar melhores e diferentes resultados no desempenho da economia e para diminuir as desiguais relações entre as classes.

De acordo com Domingues, os produtos, bens e serviços culturais vêm sendo percebidos sobre uma dupla dimensão, tanto econômica quanto simbó-lica, já que são portadores de identidades, valores e significados, não devendo, portanto, serem tratados como se tivessem valor meramente comercial (Idem).

Durante a campanha de 2002, o Partido dos Trabalhadores (PT) organiza um importante documento, “A imaginação a serviço do Brasil”, seu Programa de Políticas Públicas de Cultura (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2003). Expressando seu caráter de descontinuidade ao modelo de Francisco Weffort para a cultura, o programa reconhece as limitações das políticas cul-turais do governo FHC e abrange propostas de políticas públicas orientadas à inclusão social e o acesso “dos mais pobres e fragilizados à esfera pública”; ampliação dos mecanismos de fomento (incluindo a participação das institui-ções públicas como o BNDES, Banco do Brasil e a Caixa Econômica); a regio-nalização das políticas públicas de cultura e a reorganização do planejamento cultural, pela implantação de um Sistema Nacional de Política Cultural; e a adoção de mecanismos de participação popular para o controle social das po-líticas. A maior contribuição do documento é estender o papel do Estado na promoção do direito à cultura, e pensá-lo em relação aos compromissos assu-midos mundialmente conquanto o papel das políticas culturais no processo de desenvolvimento humano (DOMINGUES, 2008).

Essas culturas exigem participação nas agendas de política cultural, não só como medida de reconhecimento ou como produto turístico, mas como alternativa inteligente para gerar bônus econômicos, distribuição de renda e, consequentemente, desenvolvimento sustentável. “O que está em jogo é reco-nhecer a necessidade de incluir nas políticas culturais a posse dos recursos, a garantia de assegurar às comunidades locais ‘iguais possibilidades de acesso aos bens da globalização’” (DOMINGUES, 2008, p.137). De acordo com o programa de políticas públicas de cultura do PT, caberia ao poder público, portanto, contribuir para que esses processos culturais adquirissem a dimensão econômica que lhes compete no mundo contemporâneo (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2003).

Nesse horizonte, a primeira reunião do Fepa foi marcada pelo clima de parceria entre setores populares e Ministério da Cultura, que tem investido cada vez mais no audiovisual. No entanto, é preciso considerar as atuais ações do Ministério da Cultura em consonância com as políticas culturais que emergem dos movimentos populares e não àquelas que são restritas aos gabinetes de ges-tores. São políticas culturais que surgem da cotidianidade desses grupos, aparen-temente “microscópicas”, mas na verdade extremamente profícuas para a conso-lidação de espaços de participação política alternativos e democráticos no Brasil.

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pOlíticas cultuRais, paRticipaçãO e luta pOR RecOnhecimentO

As políticas culturais postas em prática pelas experiências populares em audiovisual e, de maneira geral, pelos movimentos sociais atuais, contribuem decisivamente para a consolidação da democracia. Além disso, elas servem para desestabilizar as significações que reproduzem a cultura política dominante, pos-sibilitando, ainda, a articulação entre as diferenças.

Segundo Homi Bhabha (2006) e Stuart Hall (2006), a “política da di-ferença” é fundamentalmente marcada pela necessidade de reconhecimento do Outro e do caráter antagônico que marca as relações sociais. Enquanto a diversidade é “dada”, a diferença é construída no processo mesmo de sua ma-nifestação; “ela não seria uma entidade ou expressão de um estoque cultural acumulado, mas sim um fluxo de representações, articuladas ad hoc, em con-traposição à ideia de identidades totalizantes, puras e essencialistas” (Idem).

Enquanto as ideias de “diversidade cultural” e “identidade” podem estar a serviço de políticas culturais integralistas, cuja referência a um centro con-tinue existindo, a análise da diferença cultural e da identificação propõe uma ideia de sujeito dialógico e transferencial à maneira da psicanálise. “Ele é cons-tituído através do Outro, o que sugere que a agência da identificação nunca é pura ou holística. As designações da diferença cultural interpelam formas de identificação que são sempre incompletas” (BHABHA, 2005, p. 228).

O eu dialógico é empregado para mostrar como a identidade de um indivíduo ou grupo vai se constituindo pelo contato com o Outro, através de uma troca contínua que permite ao self estruturar-se e definir-se pela com-paração e pela diferença (Hall, 2006, p.101). Nesse sentido, a valorização da diferença é importante porque permite ao indivíduo ou grupo “distanciar-se” de sua identidade, colocá-la em jogo.

Seguindo essa linha de argumentação no campo da sociologia política, autores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe teorizam um projeto de demo-cracia radical, que consiste em criar uma cadeia de equivalências entre as várias lutas, não restritas às classes, que marcam o cenário político contemporâneo, contra as diferentes formas de subordinação:

“Las luchas contra el sexismo, el racismo, la discriminación sexual, y en defesa del medio ambiente necesitan ser articuladas con las de los trabajadores en un nuevo proyecto hegemónico de la izquierda. Para ponerlo en una terminología que se ha tornado popular recientemente, en lo que insistimos es en que la izquierda necesita encarar tanto las cuestiones ligadas a la “redistribución” como al “reconocimiento”. Esto es lo que entendemos por democracia radical y plural” (LACLAU; MOUFFE, 2004, p. 19).

Essa articulação requer a criação de novas posições de sujeitos que per-mitam uma articulação comum, por exemplo, o antirracismo, o antissexismo e o anticapitalismo. Segundo Mouffe, “posto que estas lutas não convergem espontaneamente, para estabelecer igualdades democráticas requer-se um novo

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sentido comum que permita transformar a identidade dos diferentes grupos de maneira que suas reivindicações possam articular-se entre si de acordo com o princípio da equivalência democrática” (2003). Não se trata de estabelecer uma mera aliança entre determinados interesses de grupos, mas de modificar a pró-pria identidade dessas forças. Por exemplo, com o objetivo de que a defesa dos interesses dos trabalhadores não se realize à custa dos direitos das mulheres, dos imigrantes e dos consumidores, é necessário estabelecer uma equivalência entre as distintas lutas (Idem).

As práticas articulatórias e a conquista da hegemonia, segundo autores como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, devem ser resultados de uma relação dialética entre a lógica da equivalência e a lógica da diferença. Segundo essa perspectiva, os atores sociais ocupam posições diferenciais no interior dos dis-cursos que constituem o tecido social; eles são particularidades que, devido aos antagonismos que criam fronteiras internas à sociedade, estabelecem entre si relações de equivalência (LACLAU; MOUFFE, 2004).

O projeto de democracia radical teorizado por Mouffe e Laclau leva em consideração, sobretudo, a inerradicabilidade do poder e do antagonismo que marcam as articulações políticas. Tal projeto contrapõe-se a uma ideia de consenso racional, nos moldes habermasianos, na construção de identidades coletivas. Ademais, de acordo com esses teóricos, a sociedade deve ser compre-endida como “um vasto tecido argumentativo no qual a humanidade constrói sua própria realidade” (LACLAU, 1992, p.146).

Sob essa perspectiva, as articulações políticas que ocorrem no interior do Fepa e na sua relação com o Ministério da Cultura, só podem ser enunciadas e compreendidas a partir de uma cadeia de significação, resultante de práticas articulatórias entre os grupos que compõem o fórum e entre a entidade e o Estado, representando, em certa medida, os setores populares que lutam pela democratização do setor audiovisual no país.

O Festival e o Fórum são responsáveis por divulgar as experiências po-pulares em audiovisual nos últimos três anos e, nas edições de 2009 e 2010, os organizadores do evento promoveram algumas mudanças significativas. Dentre elas, destaca-se a contemplação de produções ibero-americanas, além da expan-são da noção de periferia, definida atualmente como uma “atitude criativa e curiosa diante da vida”, não restrita à condição econômica ou geográfica dos seus membros (FEPA, 2009). Segundo o texto de divulgação do Fórum:

“O Fórum de Experiências Populares em Audiovisual (Fepa – Brasil) foi idealizado em um contexto contemporâneo onde o fazer e fruir audio-visual se difunde de forma larga e espaçada em todos os setores da vida moderna. Hoje, nosso principal canal de reconhecimento e interação com o mundo é constituído dos meios de comunicação que lançam mão da união entre som e imagem para produzir discurso. Por isso é cada vez mais comum projetos sociais que contemplem a formação de adoles-centes e jovens, moradores da periferia, na produção audiovisual. Essas experiências vêm configurando um movimento que já pode ser sentido

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em todas as regiões do Brasil e que já se reflete de forma significativa em Festivais e Mostras dedicadas a essa produção. Em 2008 foram contabi-lizados cerca de 240 experiências populares em audiovisual. Apesar da relevância e diversidade que esse movimento alcançou nos últimos anos, ainda subestima-se a importância de sua produção para o audiovisual brasileiro. Geralmente rotuladas de projetos de inclusão social, essas ex-periências estão formando realizadores com propostas estéticas e fazendo um inventário original de imagens e sons de nosso país.”1

Refletindo sobre o papel articulatório do evento, a organização do Fepa – Brasil completa:

“Neste ano, o festival ultrapassa as suas fronteiras, convidando os nossos irmãos ibero-americanos a formar uma grande rede audiovisual (...) ser periférico é cada vez menos uma condição social, geográfica ou econômica e cada vez mais uma atitude criativa e curiosa diante da vida. É comunicar-se com pessoas que estão do outro lado do mundo, mostrando ao mundo um pedaço do seu. Entender a complexidade do ser humano e abraçá-lo em toda a sua força e fragilidade é essencial para nos sentirmos cada vez mais cidadãos planetários”2

Dentre os participantes da edição de 2009, podemos citar: o coletivo Alice, prepara o gato!, que incentiva a realização de vídeos entre os pacientes do Caps – AD Alameda (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas) de Niterói, numa perspectiva antimanicomial; a produtora Crioulas Vídeo, que oferece ofi-cinas de produção audiovisual para jovens quilombolas do território Conceição das Crioulas, em Salgueiro/PE; a organização não governamental Fábrica de Imagens, situada em Fortaleza/CE, e que tem direcionado a formação audiovi-sual de jovens para o debate das questões de gênero e sexualidade; o coletivo Voz da Rua de São Paulo, com ênfase na realização audiovisual de jovens moradores de periferias e integrantes do movimento hip hop; o documentarista Dalcivan Alves da Silva, membro de uma comunidade cigana que vive há trinta anos no interior de Góias e, por último, o projeto Vidas Paralelas, promovido pelos Ministérios da Cultura e da Saúde em parceria com Pontos de Cultura de todo o país. Esse projeto tem como principal objetivo a promoção da saúde e segurança do trabalhador, abordadas a partir da construção simbólica, ou seja, por meio do estímulo à expressão artística e cultural, incluindo aí a realização audiovisual. Há uma expectativa, por parte dos membros desses grupos, de que, através dos vídeos realizados pelos trabalhadores, o governo tenha acesso à realidade deles, podendo atuar na melhoria da sua saúde e segurança.

A escolha dos integrantes revela a heterogeneidade do evento, que percebe a condição de “periférico” atrelada muito mais a fatores culturais e identitários que econômicos. Além dos coletivos e organizações não governamentais, a reunião de 2009 contou ainda com a participação de estudantes, pesquisadores e do repre-sentante da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Rio de Janeiro.

A relação entre as experiências populares em audiovisual e as políticas públicas administradas pelo MinC possui implicações positivas para o campo simbólico do reconhecimento, gerando energia para a contestação política e a

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mudança social. No entanto, o diálogo estabelecido entre o governo federal e os setores populares, na tentativa de estimular a autorrepresentação de grupos subalternizados por intermédio de políticas públicas mais democráticas, suscita uma discussão mais ampla e que consiste na própria relação entre Estado e mo-vimentos sociais na América Latina.

Nas duas últimas décadas, essa relação tem sido marcada pela demanda de autonomia de determinadas redes e movimentos sociais. Por outro lado, essa busca por autonomia nada tem a ver com a afirmação de uma suposta “pureza” dos mo-vimentos sociais, ou ainda, uma recusa radical da relação com a política institucio-nal formal e outros agentes externos. Como sugere Evelina Dagnino, a autonomia exercitada por esse tipo de atuação política na contemporaneidade expressa muito mais a recusa de um tipo determinado de relação que predominava, “caracterizada pela subordinação, a tutela, o paternalismo, o clientelismo e a instrumentalização a que estiveram subordinadas historicamente as organizações populares no nosso país, nas suas relações com o Estado”. (DAGNINO, 2000, p. 82).

Segundo a autora, são nos pequenos núcleos dos movimentos sociais, pre-dominantemente articulados por uma lógica solidarística e igualitária, “que são articuladas novas identidades, são construídas noções de dignidade e, a partir de carências ou demandas, elabora-se a noção de direitos: como os direitos das mulheres, dos moradores de favelas, dos meninos de rua e assim por diante”. Essa perspectiva ajuda-nos a compreender a importância de redes sociais a exemplo do Fepa, onde grupos subalternizados historicamente podem se articular, construir consensos e se fortalecer para enfrentar adversários e conquistar legitimação cres-cente no interior da sociedade, compensando assim o injusto privilégio participa-tório que têm os membros dos grupos sociais dominantes (Idem).

São muitos os pesquisadores3 que têm investigado a contribuição das po-líticas culturais que emergem de experiências como o Fepa. Nesses espaços, são criadas redes de equivalência entre diversos movimentos: étnicos, urbanos, de mulheres, gays, antimanicomiais, de moradores de favelas, entre outros. Muitos desses grupos utilizam a cultura como meio de engajar participantes e promover a mudança social, transformando o cultural em fato político. Ou, como afirmam Sonia Alvarez e Arturo Escobar:

“quando grupos minoritários, residuais e dissidentes apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democra-cia ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais domi-nantes, os movimentos sociais põem em ação uma política cultural” (ALVAREZ; ESCOBAR, 2000, p. 25).

As experiências populares em audiovisual, nesse sentido, põem em prática várias políticas culturais, ao pretenderem dar novos significados às interpreta-ções culturais dominantes da política e desafiar práticas discursivas reproduzi-das pelos meios de comunicação de massa. Ademais, a experiência do Festival Audiovisual Visões Periféricas e do Fepa não deve ser entendido como mero “subproduto” da luta política, mas ao contrário, são eventos constitutivos dos

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esforços dos movimentos sociais para redefinir o sentido e os limites do próprio sistema político. Dito isso, as políticas culturais que emergem de redes sociais como essa devem ser definidas como “articulações discursivas híbridas que mos-tram contrastes significativos em relação às culturas dominantes” (Idem).

Ernesto Laclau, ainda na década de 1980, chegou a afirmar que “os no-vos movimentos sociais teriam contribuído para uma crescente politização da vida social” (LACLAU; 1983), argumento que reforça a tese dos autores citados acima. Todos eles concordam que o político deixou de ser um “nível” do social, tornando-se uma dimensão presente, em maior ou menor escala, ao longo de toda a prática social. A cultura, nessa perspectiva, é eminentemente política. Ela passou a ser concebida como uma arena crucial de disputa pelo poder.

Sob esse aspecto, a obra de Antonio Gramsci foi crucial para a elaboração de uma Sociologia política que enfatizasse a cultura como campo de disputa e de processos hegemônicos. Segundo Eagleton, Gramsci afirmava ser insuficiente, nas sociedades modernas, a ocupação de fábricas ou o confronto com o Estado como formas de disputa pela hegemonia:

“O que também deve ser contestado é toda a área da cultura, definida em seu sentido mais amplo, mais corriqueiro. O poder da classe domi-nante é espiritual assim como material, e qualquer ‘contra-hegemonia’ deve levar sua campanha política até esse domínio de valores e costumes, hábitos discursivos e práticas rituais” (EAGLETON, 1997, p. 116).

Embora as inúmeras redes sociais atuantes no país, a exemplo do Fepa, demonstrem, cada vez mais, o seu potencial enquanto força política, gerando mudanças significativas no setor audiovisual e no campo da representação, não podemos subestimar a forte concentração dos meios de comunicação em empre-sas transnacionais e nacionais. Lembrando das sugestões apontadas por Nancy Fraser (2002), as políticas de reconhecimento devem vir acompanhadas, neces-sariamente, das políticas de redistribuição. De acordo com a autora, devemos examinar a relação entre reconhecimento e redistribuição, teorizando sobre o modo pelo qual desigualdade econômica e desrespeito cultural estão muitas ve-zes entrelaçados e apoiados um ao outro. Isso quer dizer que injustiça econômica e desrespeito simbólico estão imbricados dialeticamente.

A sua sugestão é extremamente pertinente para pensarmos os limites das políticas de reconhecimento e as imbricações entre cultura e política, cultura e economia. Se, como mencionado, não podemos mais conceber cultura e po-lítica como esferas autônomas, devido às imbricações que ambas têm sofrido na contemporaneidade, elas também não podem ser desvinculadas, quando a problemática diz respeito à redistribuição econômica. Caso contrário, estaremos trocando um paradigma truncado por outro.

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nOtas

1 O texto foi disponibilizado aos participantes do Seminário Nacional de Educação Popular em Audiovisual, organizado pelo Fepa em julho de 2009, na cidade do Rio de Janeiro.

2 http://www.visoesperifericas.org.br/sobre_o_festival.html

3 Algumas referências utilizadas na reflexão do presente trabalho: ALVAREZ, Sonia, DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo (Orgs.) Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: Novas Leituras, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000; MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas, Petrópolis, Editora Vozes, 2001; LACLAU, Ernesto. Os Novos Movimentos Sociais e a Pluralidade do Social, CEDLA (Centro de Documentação Latino-Americano), Amsterdã, Outubro de 1983; MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo, Revista Política e Sociedade, n° 3, outubro de 2003.

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ResumoEste artigo tem como objetivo fazer uma análise sobre as ações estatais com relação ao patrimônio histórico nacional, através de um breve histórico das políticas adotadas pelo Estado brasileiro para a área cultural. O estudo vai se focar, sobretudo, nas diretrizes para a construção de políticas públicas adotadas nos mandatos do Presidente Lula e na ação do órgão estatal que na atualidade é o maior patrocinador da preservação de bens tombados: o BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico.Palavras-chave: patrimônio histórico; políticas públicas de cultura; economia da cultura; BNDES.

AbstractThis paper aims to make an analysis on the state’s actions with respect to the national heritage, through a brief history of the policies adopted by the Brazilian government for the cultural area. The study will focus mainly on the guidelines for the construction of public policies adopted in the mandates of President Lula and action of the state agency that today is the major sponsor of the preservation of goods tumbled: BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Social Cheap.Keywords: heritage; culture public policy;, economics; culture; BNDES.

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Public policy and the heritage: from first actions to cultural economy

Mariana Nascimento Bispo | [email protected] do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Uerj

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intROduçãO

Vivemos em um mundo em que a intensificação da globalização modifica as maneiras do poder público lidar com as políticas públicas em diversos setores: economia, segurança, saúde, dentre outras. E a esfera cultural não escapa dessas transformações. O patrimônio histórico, e os usos que devem ser feitos desses bens, têm sofrido também modificações neste contexto. Esta área recentemente recebeu profundas revisões com a extensão do tema – antes restrito ao campo da História – a áreas como a Sociologia, a Antropologia e a Comunicação.

O estatuto do que venha a ser um bem que pertença a uma nação como parte de seu legado artístico, cultural e histórico, perpassa temáticas e concei-tos complexos e diversos como “memória”, “nacionalismo” e “identidade”, etc. O que deve ser patrimônio e, sobretudo, o que deve ser feito desse patrimônio tombado, está diretamente ligado ao que venha a ser a identidade nacional de cada nação, outro conceito que com a crescente globalização, também está sendo revisado. Em um país como o Brasil, cuja formação advém de culturas e nacionalidades tão distintas quanto a européia, a africana e a indígena, e no qual a miscigenação é um traço marcante, como delimitar o que é patrimônio artístico e histórico nacional que mereça ser preservado?

Além disso, a questão do uso desse patrimônio histórico e cultural é outro assunto que provoca embate entre o poder público, setores privados e empresariais – como o turístico – e a sociedade civil organizada, na figura de Organizações Não-Governamentais, que recentemente passaram a colocar os bens simbólicos materiais e imateriais nacionais como objeto de ação de seus projetos sociais.

Diante deste sucinto panorama, este artigo tem como objetivo fazer uma análise sobre as ações estatais com relação ao patrimônio histórico nacional, atra-vés de um breve retrospecto das políticas adotadas pelo Estado brasileiro para a área cultural. O estudo vai se focar, sobretudo, nas diretrizes para a construção de políticas públicas adotadas nos mandatos do Presidente Lula e na ação do órgão estatal que na atualidade é o maior patrocinador da preservação de bens tomba-dos: o BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico. Além disso, será analisado o uso do conceito de “economia da cultura” que o Banco vem adotando como diretriz de gestão para as suas políticas de patrocínio e marketing cultural1. Para isso é necessário se fazer um histórico das políticas culturais esta-belecidas pelo Governo Federal desde a criação de um órgão específico para esta finalidade, o IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. E uma pesquisa de como o BNDES, se estabeleceu como o principal patrocinador de preservação de patrimônio do Brasil e com quais objetivos são realizados tais in-vestimentos. Além disso, é preciso fazer uma introdução ao conceito de patrimônio histórico e analisar as mudanças de concepção pelas quais este conceito passou nos últimos anos, com a entrada das Ciências Sociais neste campo. Estas mudanças conceituais levaram a modificações sobre o que deva ser considerado patrimônio e, principalmente, sobre os usos que devem ser feito dele.

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1. patRimôniO históRicO – RedefiniçãO dO cOnceitO

De acordo com antropólogo Néstor Garcia Canclini (1994), aquilo que se entende por patrimônio nacional muda de acordo com as épocas. O conceito de patrimônio histórico2 se transformou a partir de alguns elemen-tos tais como a urbanização, a industrialização, e as indústrias culturais e tu-rísticas. Ainda segundo Canclini, estes elementos citados, antes vistos como inimigos da preservação destes bens, devem ser agora aceitos como condições que a propiciam. Além disso, ele ressalta que tais elementos contribuem para que o próprio conceito do que venha a ser patrimônio e identidade nacional seja repensado (1994, p.91).

O autor vai além e destaca que a idéia de “nação” foi alterada por estes processos de urbanização, industrialização e de transnacionalização de bens sim-bólicos e materiais e com a globalização econômica. E que não podemos mais conceber “nação” unicamente como “conjunto de bens e tradições mantidos no território historicamente habitado por uma comunidade” (Idem). Isso porque a população nacional se entretém, se alimenta e se informa com produtos culturais oriundos de países estrangeiros. Sem contar os fluxos migratórios que se acelera-ram com a globalização e que fazem com que comunidades inteiras preservem seus valores culturais e históricos fora de suas fronteiras nacionais (Idem).

Neste contexto, ele ressalta a importância dos meios de comunicação de massa, que muitas vezes são acusados de “maltratar” o folclore e a cultura tradicio-nal - e das novas tecnologias de informação - para que esses bens culturais circulem para além das fronteiras nacionais. Ele coloca os produtos midiáticos como “re-cursos-chave para documentação e difusão cultural para além das localidades que a geraram” (Idem, p. 103). E. mais do que isso, ele acrescenta que estes produtos midiáticos são parte de nosso patrimônio, porém de maneira diferente de outros bens tradicionais, como monumentos arquitetônicos, por exemplo. Ele assim os considera por constatar que produtos como a música, filmes e novelas de TV, são responsáveis por gerar, consagrar e socializar certos comportamentos (Idem).

A partir deste ponto, Canclini se pergunta como redefinir o patrimônio cul-tural partindo das condições históricas, sociais e comunicacionais de nossa época. Ele responde a esta pergunta colocando três pontos que têm sido trabalhados pelas Ciências Sociais em um movimento triplo de reconceitualização da temática do patrimônio. O primeiro deles é a afirmação de que patrimônio não inclui somente a herança de cada povo, “as expressões ‘mortas’ de sua cultura”, tais como conjuntos arquitetônicos e objetos antigos, mas também os bens culturais visíveis e tangíveis, e os invisíveis. Dentre estes, ele cita os artesanatos, línguas, conhecimentos e a co-municação, que se desenvolvem através das indústrias culturais (Op. Cit, p.91-92).

O segundo ponto citado pelo antropólogo é o de que houve uma expan-são da política patrimonial para além do que foi produzido no passado, e sua preservação, em conciliação com os usos sociais e com as necessidades contem-porâneas das sociedades às quais estes bens pertencem.

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Por fim, o terceiro elemento destacado como redefinidor da noção de patrimônio, é o de que há um reconhecimento da importância da cultura po-pular como um componente deste legado histórico. Não somente os bens pro-duzidos pelas classes hegemônicas, mas também aqueles criados por grupos populares e não ligados às camadas aristocráticas, como músicas indígenas, textos de camponeses e operários, passaram a ser incluídos como bens culturais passíveis de preservação (Idem). Em resumo, o que o autor pretende ao colocar este três pontos é mostrar que houve um alargamento da noção de patrimônio.

Voltando às análises de Canclini, é importante para o presente trabalho analisar algumas questões teóricas e políticas que, segundo este autor, estão ligadas à expansão da noção de patrimônio. São elas: “patrimônio cultural e desigualdade social”, “usos do patrimônio”, “propósitos da preservação” e o “patrimônio na era da indústria cultural” (Ibidem, p.96).

A primeira questão, patrimônio e desigualdade, diz respeito ao acesso que a população de um país tem ou não aos bens tombados. Ele destaca que apesar de, teoricamente, tais bens pertencerem a todos, investigações socio-logias e antropológicas mostram que os diversos setores sociais se apropriam de forma desigual da herança cultural de um país. E vai além, ao dizer que não basta que existam políticas culturais que criem museus, bibliotecas e ou-tras instituições afins, e ainda programas de incentivos à população, para que esta freqüente tais locais. À medida que se desce na escala social e econômica da sociedade em direção àqueles que têm menos recursos e acesso à educa-ção, percebe-se uma redução da capacidade de apropriação do capital cultural transmitido pelas instituições.

Para o autor, o motivo dessa desigualdade seria a diferença de parti-cipação dos vários grupos sociais na formação deste patrimônio. Ele ainda ressalta que, mesmo em nações que adotam a noção antropológica de cul-tura3, existe uma determinada hierarquia dos capitais culturais. “... vale mais a arte que os artesanatos, a medicina científica que a popular, a cultu-ra escrita que a oral” (Op. Cit, p. 96).

Nesse sentido, o patrimônio cultural serve como um recurso que produz e mantém diferenças entre grupos sociais, que corrobora para a manutenção de um distanciamento entre que os possuem amplo acesso a estes bens e os que, ou não possuem, ou tem acesso, mas não conseguem usufruir dele por completo.

Outra questão relevante é a dos “usos do patrimônio”. Neste ponto, o au-tor ressalta que simplesmente constatar que há desigualdade na formação deste patrimônio, bem como no acesso das classes populares a ele, é uma perspectiva muito simplista e insuficiente para revelar as dinâmicas sociais que envolvem o patrimônio cultural. Existe por trás do binômio “capital cultural - grupos hegemônicos” e “classes populares - pouco acesso”, o que ele chama de “espa-ço de disputa”. Ou seja, este é um espaço onde há disputas tanto econômicas

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quanto políticas e simbólicas e no qual três setores da sociedade, o Estado, o setor privado e os movimentos sociais, agem em conjunto, às vezes de forma antagônica, outras em parceria.

Com relação à atuação do Estado, para o autor, este tenta constantemente imprimir aos bens culturais um tom nacional, de uma arte integrante da identi-dade da nação, ainda que tais bens sejam manifestações muitas vezes regionais.

Mais uma questão levantada pelo antropólogo, que pode agregar ao pre-sente trabalho, é a dos “imaginários da preservação”. Neste caso, Canclini levanta quatro paradigmas político-culturais a partir dos quais costumam serem definidos os objetivos da preservação do patrimônio: o “tradicionalismo substancialista”, o “mercantilista”, o “conservacionista monumentalista” e o “participacionista”.

Em linhas gerais, o primeiro modelo, o “tradicionalismo substancialista” julga os bens a serem conservados pelo valor que eles têm em si mesmo, inde-pendente do uso que seja feito deles. Já a segunda concepção, a “mercantilista”, defende que os bens acumulados por uma sociedade são importantes como elementos de mercado que podem propiciar o avanço ou retardo econômico e material. Tal concepção dá aos bens um “destino mercantil” (Op. Cit, p.100).

O terceiro paradigma, o “monumentalista conservacionista” está relacio-nado, segundo Canclini, à ação do Estado e às suas políticas de preservação. Ele destaca que, de um modo geral, o poder público atua resgatando, custodiando e preservando especialmente bens históricos, a partir dos quais seja permitido que se crie um imaginário de exaltação da nacionalidade, e que eles possam servir como “símbolos de coesão e grandeza” (Idem). Com relação às primeiras ações do Estado brasileiro referentes ao patrimônio, pode-se dizer que foram de cunho “conservacionista e monumentalista”, conforme veremos adiante.

O quarto e último paradigma, o “participacionista”, concebe o patrimô-nio e sua preservação, levando em conta as necessidades da sociedade como um todo. As funções anteriormente descritas, que visam destacar o valor intrínseco desses bens, seu valor mercantil e a capacidade simbólica de representar legi-timação, são submetidas às demandas presentes dos usuários (Ibidem, p.101).

Nesse sentido, a seleção do que deve ser preservado deve passar pela deliberação entre todos os setores interessados, de modo a gerar um debate de-mocrático. Esta visão “participacionista” se caracteriza ainda por incluir entre os bens não só os tradicionalmente vistos como patrimônio, tais como mo-numentos e elementos historicamente relevantes, mas também a arquitetura habitacional, os costumes e as crenças, por exemplo.

A última questão levantada pelo autor, não menos importante que as demais, é a do “patrimônio na era da indústria cultural”. Neste tópico ele analisa o papel dos meios de comunicação na difusão e propagação destes bens e como o patrimônio é reinterpretado pelos Mass Media. O autor também se questiona como é possível que tais veículos sejam usados de forma mais crítica

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e imaginativa a fim de gerar uma consciência social sobre o patrimônio.

Canclini também ressalta que as transformações pelas quais passaram os modos de produção, circulação e distribuição da cultura exigem mudança tam-bém nas políticas públicas para o setor, que devem ir além da expansão da preser-vação às formas populares de cultura. Para ele é necessário que haja uma maior presença do Estado no mercado simbólico de cultura de massa. Ele destaca que as novas tecnologias estão expandindo novas formas de aquisições de bens cultu-rais pelo público, o que fez emergir uma espécie de “cultura a domicílio”, em que as pessoas cada vez mais gastam na aquisição de eletro-eletrônicos, sobretudo, computadores. Ele denomina tais objetos de “máquinas culturais”. Enquanto esse mercado cresce, ele observa que o governo, em suas ações destinadas ao campo, se prende a formas de bens culturais que estão perdendo espaço.

2. bReve históRicO das ações estatais RelaciOnadas aO patRimôniO cultuRal e históRicO bRasileiRO

As intervenções e os investimentos do Estado na esfera da produção, circulação e preservação de bens culturais e históricos que se estabelecem sob a ótica das políticas públicas4 são específicas da contemporaneidade, conforme destaca Lia Calabre (2009, p.9).

As primeiras ações do Estado brasileiro para preservação dos bens patri-moniais no Brasil ocorreram na década de 1930. Vale destacar brevemente o contexto sócio-político e econômico que vivia o Brasil nessa década, com o fim da chamada “política do café-com-leite”5 e a ascensão de Getúlio Vargas pela primeira vez ao poder, como chefe do Governo Provisório, cargo que ocupou até 19346. A partir deste período, o país passou de um Estado com modelo agrário-exportador para um urbano-industrial. (Ibidem, p. 9-15).

A referida autora ressalta que durante a gestão de Vargas, no período de 1930 a 45, houve uma série de ações articuladas na área da cultura que geraram políticas públicas para o campo. Concomitante a essa ação federal, ocorreu uma experiência pioneira no âmbito municipal, na cidade de São Paulo: a criação do Departamento de Cultura daquele estado, sob a tutela de Mário de Andrade. Calabre destaca ain-da que o período compreendido entre os anos de 1946 a 1960 pode ser apontado como o momento de auge do crescimento da indústria cultural no Brasil. No en-tanto, a presença do Estado nesse setor, seja como fomentador ou como elaborador de políticas públicas, ainda era incipiente (Op. Cit, p.11).

Foi em 1930, em seu primeiro ano como governante, que Getúlio criou o Ministério da Educação e Saúde (MES), e em 1934 substituiu o então che-fe do órgão, Francisco Campos, por Gustavo Capanema, que ficou a frente do Ministério até 1945. Em sua gestão, o ministro Capanema levou para o MES nomes como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira, dentre outros. E a característica mais marcante de seu mandato foi que ele fez com que houvesse “um processo de

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construção institucional do campo cultural”. Porém, neste ponto, Lia cita Cecília Londres (2001, p.85) para ressaltar que essa não era uma prioridade do ministro (2009, p.16).

Em 1931, através de decreto, foi criado dentro do Ministério o Departamento Nacional de Ensino, ao qual estavam subordinados museus, bibliotecas e escolas de artes. Era a primeira legislação do MES que fazia referência ao campo da cultura (Ibidem, p.17).

Apesar dessas iniciativas pontuais na área federal, conforme citado an-teriormente, foi no âmbito municipal, mais especificamente na cidade de São Paulo, que surgiu “a primeira experiência efetiva de gestão pública im-plementada no campo da cultura.” (Ibidem, p.18). Em 1935 foi criado o Departamento de Cultura e Recreação da Cidade de São Paulo. A proposta do órgão era de vanguarda, continha muitas das idéias presentes no movi-mento modernista, e visava, sobretudo, transformar o setor cultural público em um elemento humanizador. Cândido apud Calabre (2009, p.18).

Mário de Andrade ficou a frente do Departamento e também acu-mulava a gestão da Divisão de Expansão Cultural. Além disso, ele vai ter papel importante na elaboração do anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1936, a pedido de Gustavo Capanema. A partir do documento elaborado pelo modernis-ta, caberia ao SPHAN “determinar e organizar o tombamento, sugerir a conservação e defesa, determinar a conservação e restauração, sugerir aqui-sição e fazer os serviços de publicidade necessários para a propagação e o conhecimento do patrimônio artístico nacional” (Ibidem, p.21).

Apesar das controvérsias quanto ao anteprojeto de Mário de Andrade, em 13 de janeiro de 1937 foi criado o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Além disso, o Decreto-Lei de n.º25, do mesmo ano, 1937, foi o responsável por organizar o serviço de proteção ao patrimônio e ainda permanece em vigência atualmente, com poucas alterações. Cabe ressalva de que o Serviço de Patrimônio já vinha funcio-nando de forma provisória desde 1936. Ele atualmente se chama IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e está vinculado ao Ministério da Cultura.

2.1 pOlíticas cultuRais dOs anOs 1960 aO gOveRnO lula

Na década de 60, no período pré-ditadura, o governo federal tentou im-plementar algumas ações para o setor, mas com o golpe de 64 e a ascensão dos militares ao poder, houve mudanças nas políticas para a área.

As políticas culturais estabelecidas durante o regime ditatorial podem ser divididas em linhas gerais, em três diretrizes distintas. Inicialmente houve uma forte centralização no Conselho Federal de Cultura; depois a criação e

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reformulação de uma estrutura pública a qual contribuiu para que houvesse uma maior institucionalização na área. E por fim, ocorreu uma efetiva presen-ça em “escala nacional” das instituições que surgiram nos períodos anteriores.

Inversamente ao que ocorreu até o fim dos governos militares, em me-ados da década de 80 e nos anos que se seguiram, sobretudo a partir dos anos 1990, ocorreu uma redução da presença do Estado na formulação de políticas públicas, bem como no financiamento da área cultural. Reflexo das políticas neoliberais que foram adotadas pelos governos brasileiros a partir dos anos 90 (Idem, p. 12).

Calabre ressalta que neste período de quase 20 anos, o Estado foi saindo de cena das questões decisórias e cresceram as leis de incentivo.7 Foi somente no primeiro mandato do presidente Lula, em 2003, que surgiu uma nova ten-tativa de institucionalização do campo.

A visão de gestão do campo cultural implantada no governo Lula foi definida pelo próprio presidente da seguinte maneira:

É outra – e é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, de cultu-ra. Para nós, a cultura está revestida de um papel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação soberana no mundo (...). Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas dimensões, da simbólica à econômica (Rocha, 2009, p.39).

3.2 pOlítica cultuRal e ecOnOmia da cultuRa

Aqui cabe um adendo com relação à conceituação de políticas cultu-rais na contemporaneidade. Calabre (2009) destaca que a despeito do signi-ficado do conceito de cultura, a maioria dos estudiosos contemporâneos da área, dentre eles Canclini, Texeira Coelho e Nivón Bolán, etc, concordam que estas se tratam de:

conjunto de ações elaboradas e implementadas de maneira articulada pelos poderes públicos, pelas instituições civis, pelas entidades priva-das, pelos grupos comunitários dentro do campo do desenvolvimento do simbólico, visando satisfazer as necessidades culturais do conjunto da população (2009, p.12).

Essa conceituação do que seria uma política cultural é adotada tanto por governos democráticos – que levam em consideração a existência de uma diversidade cultural local – quanto pelos mais centralizadores.

A visão contemporânea desta temática é a de que se trata de uma polí-tica pública que deve ser elaborada a partir da deliberação entre os diversos setores que compõe a sociedade, dentre eles, o Estado, a sociedade civil orga-nizada e as empresas. Além disso, os diversos agentes envolvidos no processo da indústria da cultura devem ajudar na elaboração das políticas, dentre eles, consumidores, gestores e produtores. Não cabe mais aqui a visão de um

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Estado que centraliza todas as ações voltadas para o desenvolvimento das práticas culturais, e de único gestor da maneira como elas serão exercidas e apropriadas tanto por produtores como por consumidores (Ibdem, p.13).

Interligando este conceito contemporâneo de políticas públicas com as diretrizes de gestão desta área no governo Lula, cabe começar a conceituar a “economia da cultura” e analisar como este novo campo8 , ainda pouco explorado academicamente, é utilizado pela gestão Lula a partir dos órgãos federais, como o Ministério da Cultura, e principalmente o BNDES. Como o artigo foca a gestão do que é considerado como patrimônio histórico e cultural, o Banco foi escolhido como objeto de análise por se declarar como “o maior patrocinador de ações de preservação do patrimônio histórico e arqueológico brasileiro”9.

Voltando a conceituação de Economia da Cultura, Ana Carla Reis (2009, p.25) ressalta que a disciplina oferece todo um arcabouço de conheci-mento do campo da economia e da lógica, das relações econômicas, de modo a ser usado em favor não só de políticas públicas de cultura, mas também do desenvolvimento. E para que faça sentido se falar em economia da cultura e do potencial econômico da área cultural, é preciso que antes seja definida uma política pública em âmbito local. Para elucidar a questão, a autora cita dados do Censo do IBGE os quais revelam que no ano de 2006, por exemplo, quase metade dos municípios brasileiros, mais especificamente 42%, não tinham po-líticas culturais municipais (Op. Cit. p.25).

A autora então segue explicando o conceito de economia da cultura, partindo da premissa de que a ciência econômica é a responsável por estudar a “produção, a distribuição e o consumo de bens e serviços (assim como as condições para a produção, os modos de distribuição, e as formas de consu-mo)” (Ibidem, p.27).

Depois da economia, Carla Reis especifica o recorte dado à cultura e diz que esta pode ser vista sobre diversos ângulos. Dentre estes enfoques está o antropológico, que é o que engloba os “códigos de valores, morais, modos de conduta, e as formas de expressão e de ver o mundo, compartilhadas por um povo.” Há também o conceito de cultura definido sob a ótica econômica, que em linhas gerais, a autora diz que abarca os bens, serviços e manifestações culturais que fazem parte, ou poderiam fazer do fluxo completo de produção, distribuição e consumo. Neste ponto ela destaca que uma característica dos bens e serviços culturais é sua necessidade de circulação, pois se não circularem tais produtos deixam de transmitir suas mensagens e valores. (Op. Cit, p.28).

Outra questão fundamental dentro do conceito de economia da cultura, ainda segundo Carla Reis, é a do desenvolvimento10. Ela afirma que a disciplina se dedica a “fortalecer a liberdade de escolhas das pessoas que atuam na esfera cultural e a concretizar o potencial econômico da produção cultural.” (2009, p.35).

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3. diRetRizes cultuRais da eRa lula

Sobre as diretrizes do governo Lula para a área cultural, conforme já ci-tamos anteriormente, elas levaram a uma maior institucionalização do campo. Segundo Adair Rocha (2009, p.39) ocorreu na gestão dos dois ministros do governo Lula, Gilberto Gil e Juca Ferreira, uma revolução na gestão territorial, já que passou a haver uma interação e uma integração dos entes federados. Com isso foi possível uma nova política pública de cultura, encorajada princi-palmente pelo MinC, a qual incentiva a participação da sociedade e que é cal-cada na cidadania, na representação simbólica e na economia (Ibidem. p.40).

A atuação mais presente de estados e municípios faz com que haja uma maior descentralização dos recursos alocados para a área, e que a cultura seja entendida como um sistema de representação pública11. Essas mudanças levam, segundo o autor, a uma maior criatividade e diversidade e a um crescimento do “protagonismo dos agentes culturais”, além de fortalecerem o diálogo entre Estado e sociedade civil. Ele destaca ainda que, ao se construir uma política cultural para o país, descarta-se a perspectiva de que promover produção cul-tural seja visto apenas como fazer eventos.

O autor faz ainda um panorama das gestões do ministro Gilberto Gil e de seu sucessor, Juca Ferreira, dando destaque ao apreço pelo diálogo e pela crítica que os dois tiveram na hora de construir políticas públicas de cultu-ra. Ressalta também a atuação da Secretaria de Políticas Culturais dentro do MinC e a reforma na Lei Rouanet, que se encontra em andamento. Além do premente campo da “economia do conhecimento” que também tem sido pen-sado pelo poder público (Ibidem, p.42).

Antônio Rubim, por sua vez, destaca que as gestões de Gil e de Ferreira podem ser destacadas pela questão da abrangência assumida como meta pelo MinC neste período e por um “novo papel ativo do Estado em conexão com a sociedade” (2010, p.64). Gil várias vezes afirmou que o público do Ministério não era composto apenas de criadores e produtores culturais, mas de toda a so-ciedade brasileira. O autor destaca que a opção declarada de construir políticas públicas em diálogo com a sociedade é uma marca da gestão do referido minis-tro. Outra questão presente é a ampliação do conceito de cultura utilizado pelo Ministério, que passou a adotar a noção antropológica, que permitiu ao órgão abrir suas fronteiras para outras manifestações culturais tais como a popular, afro-brasileira, de gênero, das redes informáticas, etc. (Ibidem, p.64 e 65).

Outras marcas da gestão cultural dos ministros do governo Lula são a implantação e o desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e do Plano Nacional de Cultura (PNC), que definem o papel do Estado na gestão pública da cultura e estabelecem os direitos e a “concepção tridimensional” como fundamento da Política Nacional de Cultura12.

Ainda de acordo com Rubim, tais políticas públicas dão substrato para políticas de Estado, que iriam além dos governos - que entram e saem do poder

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- e assim poderiam gerar políticas nacionais mais permanentes para área. E, para ele, nesta perspectiva, os investimentos, ainda que iniciais, do MinC, na área de economia da cultura e economia do conhecimento têm dado resultados.

Diante deste cenário, Adair Rocha destaca que houve um crescimento do interesse por parte de empresas, fundações, empresas estatais e privadas em elaborar pesquisas e estudos sobre a área cultural e seus impactos na economia, e em se prepararem para os efeitos que essa gestão mais descentralizada deste setor pode trazer. Um exemplo disto é o BNDES que criou um departamento voltando para o estudo e aplicação da economia da cultura (2009, p.44).

4.1 O bndes e a ecOnOmia da cultuRa

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social começou a investir no setor cultural no ano de 1995, apoiando a produção cinematográfi-ca e a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Foi a partir de 2006 que o órgão começou a investir na economia da cultura com financia-mento para todas as “etapas de sua cadeia produtiva13”.

Concomitante aos compromissos assumidos com o crescimento do setor cultural, o Banco começou a consolidar sua vertente social, e para cumprir tais objetivos, o órgão enxerga na economia da cultura uma grande aliada. Neste sentido, os investimentos na cadeia produtiva e na preservação do patrimônio não soam como despesas, mas como um investimento na identidade e na ima-gem institucional14 do Banco, através de seu setor de marketing cultural, e no desenvolvimento econômico sustentável do Brasil.

Os gastos do BNDES com a preservação do patrimônio fazem dele o maior patrocinador desta modalidade no Brasil. De acordo com o site da insti-tuição, nos últimos 13 anos, o Banco investiu R$ 155 milhões em projetos que revitalizaram cerca de 160 monumentos tombados pelo IPHAN. A visão do Banco é a de que é preciso restituir a função social do patrimônio e reintegrá--lo à vida cotidiana das cidades, para que a preservação possa se dar de forma constante. Esse pensamento faz alusão, ainda que não mencionada, à perspec-tiva “participacionista” levantada por Canclini, citada anteriormente.

Além disso, essa maneira de encarar a preservação do patrimônio tem relação com a perspectiva de incentivo à economia da cultura adotada pelo Banco. Para o BNDES a cultura nacional é encarada como uma das maiores riquezas do Brasil, e mais do que isso, é vista como “uma alavanca para o desenvolvimento socioeconômico sustentável15” do país. Na visão do setor de patrocínio cultural do órgão, a diversidade cultural é vista como um “ativo” a ser empregado em favor da riqueza e do bem-estar da sociedade brasileira.

O BNDES coloca como uma de suas “missões16” a de “estimular e contri-buir para o desenvolvimento das empresas criativas e dos agentes criadores, ampliar e dar mais eficiência ao mercado de bens e serviços culturais, com sustentabilidade

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econômica e ganhos sociais.” Para tanto o órgão dispõe de “um diversificado con-junto de instrumentos de apoio financeiro, com recursos não reembolsáveis, finan-ciamentos e capital de risco.” Ou seja, há todo um aparato do campo da economia aplicado a cultura, inclusive nos termos e expressões utilizadas.

cOnsideRações finais

Após esta avaliação das políticas culturais do Estado Brasileiro e do es-tudo da atuação do BNDES como o maior patrocinador das obras de restauro e preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro, sob a ótica da eco-nomia da cultura, há algumas observações a serem feitas. A primeira é a de que a atuação do poder público com relação aos bens histórico-culturais passou nas décadas de 30 e 40, e nos governos militares, de “conservacionista-monu-mentalista” e muito presente, para liberal e “mercantil”, a partir de meados dos anos 80, e assim permaneceu até início dos anos 2000.

A partir de 2003, no primeiro mandato do presidente Lula, houve um re-torno a institucionalização da área, mas desta vez não com uma visão “conserva-cionista-monumentalista”, mas sim “participacionista”. As políticas públicas para o campo passaram a ser construídas de forma mais deliberativa e com objetivos mais funcionais, ou seja, visando aliar a conservação dos bens e o desenvolvimen-to da cadeia produtiva da cultura às necessidades da sociedade brasileira. Neste contexto cresceram os estudos sobre economia da cultura, que vieram ao encon-tro dos interesses governamentais para a esfera dos bens culturais e históricos.

O próprio Ministério da Cultura e o BNDES – que criou um depar-tamento só para esta área - adotaram o conceito como diretriz de suas ações, entendendo que ele contribui para que haja crescimento do setor cultural, com geração de desenvolvimento para a sociedade.

É evidente, que a adoção da economia da cultura pelo órgão em todas as suas ações culturais faz parte de sua missão e de sua estratégia de marketing cultural, a fim de fortalecer sua identidade e imagem institucional. Apesar disso, refletem um alinhamento do órgão às diretrizes adotadas pelo MinC. Ainda que sejam aqueles os objetivos mais imediatos, de alguma forma, contri-buem para que o patrimônio nacional seja mais preservado e, sobretudo, tenha uma função social.

nOtas

1 De acordo com Kunsch, o termo está relacionado com a produção e o patrocínio da cultura. “É uma estratégia de comunicação institucional que visa promover, de-fender, valorizar a cultura e os bens simbólicos de uma sociedade.” (2003.p. 178)

2 Umas das definições do que vem a ser Patrimônio Histórico é a criada por Choay (2001), que diz que a expressão designa “um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumula-ção contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas artes, e das artes aplicadas, trabalhos, e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos (Apud Oliveira, 2009p.20) Outra definição é a de Coelho (1999) que diz que Patrimônio Histórico

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se constitui no “conjunto dos produtos artísticos, artesanais e técnicos, das ex-pressões literárias, lingüísticas e musicais, dos usos e costumes de todos os povos e grupos étnicos, do passado e do presente.” (Apud Oliveira, Idem).

3 Segundo Canclini, esta noção antropológica confere legitimidade a todas as for-mas de organizar e simbolizar a vida social. (1994, p.96).

4 Lia Calabre diz que as Políticas Públicas podem ser definidas como “resultado das atividades políticas - que envolvem diferentes agentes e, assim, necessitam de alo-cação de recursos de natureza diversa, e possuem caráter normativo e ordenador.” (2009, p. 09).

5 A mesma autora define de maneira simplificada esse período de nossa história como “um pacto político que garantia uma espécie de revezamento no controle do poder federal entre paulistas e mineiros.” (Ibidem. p. 15)

6 Getúlio governou o país ininterruptamente de 1930 a 1945, em três fases dife-rentes: de 1930 - quando assumiu o cargo de chefe do governo provisório após a revolução de 30 – até 1934. Deste ano a 1937, governou como presidente da república – eleito pela Assembléia Nacional Constituinte de 1934. E por fim, de 1937 a 45, um golpe de Estado implantou o regime do Estado Novo.

7 Leis de incentivo podem ser definidas como leis que oferecem “benefício fiscal (à pessoa física ou jurídica) como atrativo para investimentos em cultura. Existem hoje leis de incentivo federais, estaduais e municipais. Dependendo da lei utilizada, o abatimento em impostos pode chegar até a 100% do investimento.” ( Site www.marketingcultural.com.br)

8 “Disciplina nova no Brasil, mas existente no mundo desde 1960, a economia da cultura representa enorme potencial para facilitar o atingimento dos objetivos de política pública – não apenas cultural, mas desenvolvimento” (Reis e de Marco [Orgs.] 2009, p. 35-36).

9 Retirado do site Oficial do BNDES.

10 Ela enfatiza que há diversas definições para desenvolvimento, mas que uma das mais utilizadas é a de Amartya Sem, para quem o desenvolvimento pressupõe “expansão das liberdades de escolha”(Ibidem, p.34). Esta liberdade, por sua vez, deve significar mais do que a possibilidade de se fazer a escolha, ou seja, de esta estar disponível, mas também a possibilidade de se refletir sobre tal escolha. Pensar se realmente o que fora escolhido reflete uma opção pessoal ou se ouve influencia de agentes externos como a mídia, a crítica especializada e a opinião pública, por exemplo (Op Cit, p.43-35).

11 Isto é, “tudo que adquire significação passa pelo estatuto da cultura, que se desdobra na seleção pública, por sua vez um instrumento de escolha dos melhores projetos e iniciativas para promover o desenvolvimento econômico, social e cultural de uma população específica.” (Reis e de Marco, 2009, p.40).

12 Informações retiradas do Blog do sistema Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura.

13 Informações retiradas do Blog do sistema Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura.

14 Segundo definição do campo da comunicação institucional “por identidade que-remos dizer a natureza verdadeira, própria, dos negócios, o perfil técnico e cultural da empresa. Por imagem deve-se entender aquilo que passa, que se transfere, simbolicamente, para a opinião pública.” (Torquato Apud Kunsch, 2003, p.173).

15 Site oficial do órgão no link “Cultura” http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Areas_de_Atuacao/Cultura/

16 Segundo a definição da área de Administração, a missão de uma organização se constitui em sua razão de existência. Para isso a missão “deve abranger o propósito básico da organização e transmitir seus valores a funcionários, clientes, fornece-dores e a sociedade.” (Porto, 2008) Ela está intimamente ligada não somente ao lucro, mas ao objetivo social da organização. (Jesus, 2008) (site www.administra-dores.com.br).

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ResumoO presente artigo tem como objetivo descrever algumas das possibilidades que o novo Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) pode incorporar à experiência de ver televisão quando se utiliza de aplicações de interatividade, propondo ao espectador um tipo diferente de contato, que supera a condição de passividade do modo de difusão unidirecional, mas que, ao mesmo tempo, não pode competir com a experiência customizada que a internet oferece aos seus usuários. As contradições entre a proposta como política pública e sua dependência do mercado para estabelecer-se também serão detalhadas como fatores de risco ao projeto governamental.Palavras-chave: TV digital; interatividade; convergência.

AbstractThis article aims to describe some of the possibilities that the new Brazilian System of Digital Television (SBTVD) can incorporate to the experience of watching television when using interactive applications, offering to the viewer a different type of contact, which overcomes the passivity condition of the one-way broadcast mode, but at the same time, can not compete with a customized experience that the internet offers its users. The contradictions between the proposal as a public policy and its dependence on the market to establish themselves will also be detailed as risk factors for the government projet.Keywords: digital TV; interactivity; convergence.

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no encontro das políticas públicas com o mercado e o olhar do espectador

Interactive Digital Television in Brazil: consolidation possibilities and contradictions in meeting of public policy with the market and the sight of the viewer

Márcio Carneiro dos Santos | [email protected] Assistente do Departamento de Comunicação Social da UFMA na área de Jornalismo em Redes Digitais. Coordenador do Laboratório

de Convergência de Mídias – Labcom

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televisãO digital e inteRatividade cOmO pOlíticas públicas

O desenvolvimento pela academia nacional do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) com sua ainda pouco conhecida característica da interatividade, é um desses eventos que tem, pelo menos potencialmente, a capacidade de alterar o cenário onde, o até então comportado espectador de televisão, passa a ter possibilidades novas, mudando seu status diante do dis-positivo televisivo e incorporando a capacidade de escolher, participar e mani-festar-se de forma mais direta e efetiva.

O SBTVD foi criado através do Decreto Presidencial nº 4.901 de 2003 que, em termos gerais, não considerava apenas o aspecto técnico do desen-volvimento da televisão, mas também seus impactos sobre a sociedade. Em termos de interatividade, as premissas básicas que guiaram a definição da TV Digital no Brasil seguiam o raciocínio de que, num país de dimensões con-tinentais, onde a internet ainda está distante de chegar à maioria dos lares, a televisão, presente em mais de 90% dos domicílios brasileiros, poderia fazer o papel de instrumento de inclusão digital, oferecendo a todos novos serviços e possibilidades antes inexistentes.

De certa forma, a ideia da TV como fator de “integração nacional” pa-rece ser retomada em novos termos, revigorada pelo potencial da digitalização dos conteúdos audiovisuais e da promessa de entregar agora, junto com eles, softwares, aplicações com as mais diversas finalidades e ainda, com o que se convencionou chamar de canal de retorno, a chance de abrir uma via bidirecio-nal de comunicação num meio até então eminentemente unidirecional, criado para o modelo do broadcast, ou seja, de um para muitos.

É óbvio que o termo interatividade, quando isolado da idea de uma aplicação, um software desenvolvido com uma finalidade específica, não é privilégio, nem foi inventado pela TV Digital. Os espectadores sempre interagiram com a TV, escrevendo cartas, ligando para a emissora e, prin-cipalmente, mantendo ou não a sintonia em determinado canal na forma mais básica de interação.

Já nos tempos atuais, os veículos tem se voltado para a internet num movimento quase que obrigatório na sua eterna busca pela audiência. É cada vez mais comum o direcionamento para o site dos programas, onde via chats, grupos, listas de discussão, blogs, Twitter e todo o repertório das mídias sociais são oferecidos a esse espectador como formas de participar e interagir com a programação da TV aberta.

Definir interatividade tem ocupado muitos estudiosos do assunto. Quando o foco é interatividade na televisão digital, alguns autores partem de conceitos da Internet, outros da computação, artes, comunicação. Apesar da falta de consenso sobre o conceito, a maioria das definições aponta para a transmissão de software junto à programação audiovisual visando melhorar a comunicação entre emissor e receptor da mensagem. (BECKER; ZUFFO, 2009, p.47).

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No presente trabalho usamos o termo interatividade no sentido de de-signar possibilidades tecnológicas específicas ligadas à TV Digital, baseadas em soluções técnicas que envolvem hardware e software, incluindo o conceito de midlleware – este último um ambiente de execução e processamento de aplicações, que fica literalmente no meio de dois tipos de softwares diferentes, intermediando a troca de informações entre um sistema operacional (como o Linux) e o software de aplicação, que tem por objetivo criar um ambiente de contato com o usuário final.

Esse sistema de três níveis pode ser organizado em dois sentidos:

Uma aplicação de TV digital é uma coleção de informações proces-sadas por um ambiente de execução (middleware) para interagir com um usuário final. O processamento pode ser de natureza declaratória (indica “o que” deve ser feito) ou procedural (indicando “como” deve ser feito). (FERRAZ, 2009, p.30).

Com a interatividade do SBTVD, uma aplicação com determinado pro-pósito será transmitida junto com o fluxo audiovisual, processada ou rodada no conversor interno ou Set-top box (STB) através de um software intermedi-ário residente, no nosso caso o Ginga, midlleware criado para compatibilizar o sistema operacional que roda no conversor com a aplicação que será enviada.

No momento atual do desenvolvimento vários programadores têm de-senvolvido aplicações através das linguagens NCL (declarativa) e LUA (pro-cedural) com o objetivo de testar o código e a operacionalidade do Ginga nesse novo cenário. O site do Clube NCL1 é um bom exemplo para quem quer ver o que tem sido produzido na área. As aplicações começaram a ser categorizadas de acordo com a área de interesse em que atuam. Assim uma aplicação de t-learning é uma aplicação de interatividade em TV Digital para a área do ensino, t-health para a saúde, t-banking para operações financeiras e daí em diante. Uma aplicação de interatividade para a área do jornalismo seria algo da área de t-news.

Tudo ainda é muito novo e de forma geral todo o processo de desenvol-vimento das aplicações tem sido guiado pelo interesse em desenvolver o código num esforço de programadores de todo o país que inegavelmente avançaram muito em sua tarefa.

Um problema se apresenta: a TVDi – televisão digital interativa – chega ao momento crítico de enfrentar o mercado e, para tanto, agora as aplicações além de serem logicamente corretas devem ser também interessantes, capazes de realmente interagir com os espectadores não apenas através de uma or-ganizada exibição de mídias via linguagem NCL, mas sim conseguindo sua atenção e participação.

No ambiente do mercado de tecnologia as mudanças acontecem de for-ma muito rápida e perder uma janela temporal de oportunidade pode custar caro. Recentemente dois grupos de empresas globais lutaram para consolidar

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um novo modelo de mídia ótica que pudesse suceder o DVD como supor-te da indústria do audiovisual. Blu-ray e HD-DVD representaram esforços e investimentos milionários desses dois grupos e, como resultado da disputa, o primeiro já está nas locadoras e na casa dos consumidores enquanto o segundo vai em direção ao esquecimento. Há cerca de 30 anos algo parecido aconteceu entre o VHS e o Betamax num final já conhecido. Quantos hoje sabem que um formato de vídeo chamado Betamax um dia existiu, se o próprio VHS, vencedor da disputa, também já é coisa do passado?

Os desafios da interatividade na TV DIGITAL também não são me-nores. Uma nova geração de TVs que podem conectar-se à internet já chegou ao país e oferece, via conexão de rede, acesso a vários sites parceiros dos fabri-cantes através de acordos que podem trazer uma experiência de navegação em páginas da web na tela da TV (figuras 1 e 2).

Figuras 1 e 2 – Exemplos de acesso a conteúdo do Youtube e do Portal Terra a partir de TV co-nectada através de um navegador simples, embutido internamente. Fonte: www.gizmodo.com.br. Acessado em 18 de julho de 2010.

Na Europa, onde a interatividade em TV aberta começou há cerca de 10 anos, apenas na Inglaterra as aplicações de TVDi permanecem com potencial. Na maioria dos outros países as TVs conectadas já dominaram o mercado e os difusores do broadcast já não consideram mais as aplicações como algo viável em termos de negócios. O exemplo da Inglaterra é interessante na medida em que foi lá que as aplicações de interatividade conseguiram de forma mais efi-ciente fazer o que se espera de um programa de TV: atrair e manter o interesse do espectador seja pelo entretenimento ou pela informação.

Ao que tudo indica, uma abordagem de desenvolvimento de produto au-diovisual tem que ser incorporada às aplicações de interatividade acrescentando ao núcleo do código do programa uma camada a mais, pensada não por pro-gramadores, mas sim por profissionais da área de conteúdo audiovisual. Usando termos de mercado poderíamos identificar duas gerações no desenvolvimento das aplicações de interatividade. A primeira, do início dos trabalhos de desen-volvimento do Ginga até os dias atuais, identificada por um processo software driven e a segunda, que começamos agora no Brasil, caracterizada por uma pro-cesso audience driven, ou seja, não mais guiado pelo código e sim guiado pelo alinhamento com o que o espectador se interessa em ver e acha atrativo.

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A primeira geração das aplicações de interatividade tem pouco tempo para evoluir e precisa incorporar conhecimentos da área da Comunicação e ainda resolver problemas novos como a questão da usabilidade em telas de TV que são vistas a distâncias maiores e de uma forma diferente do que já se sabe para a tela do computador.

É importante lembrar também que a TV Digital enquanto imagem com resolução maior, de melhor qua-lidade, gerada por um número bem superior de pontos eletrônicos (pixels) na tela2 já está em processo de difusão pelo país e tem boas chances de consolidar--se. A maioria das emis-soras de TV, por ainda não saber ao certo o que fazer com a interativida-de do sistema, tem foca-do a divulgação da nova TV Digital apenas na característica da qualidade superior de imagem e som e também, ainda que em menor escala, na característica da mobilidade, isto é, na capacidade de sintonizar com qualidade o sinal digital em dispositivos móveis como celulares e smartphones (figura 3).

Mesmo assim, vários experimentos têm sido feitos. Aproveitando o evento da Copa do Mundo da África do Sul, a Rede Globo lançou e testou com su-cesso uma aplicação de interatividade (figuras 4 e 5) que foi oferecida aos pou-cos espectadores já em condições de experimentar a TVDi. Muitos conversores externos (STBs) e televisões que têm o conversor embutido oferecidos hoje no mercado não tem o Ginga disponível e por isso, apesar de receberem o sinal da

Figura 3 –. Fonte: Site do Fórum Brasileiro de Televisão Digital <http://dtv.org.br/> Acessado em 18 de julho de 2010.

Figura 4 e 5 – Telas da aplicação da Rede Globo na Copa de 2010. Fonte: Site da Revista Home Theater.

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TV Digital e exibir imagens em alta definição ainda não rodam as aplicações. Até o momento, a Globo divulgou que já desenvolveu mais de 10 aplicações e continuará trabalhando em novas modalidades, entre elas a já anunciada para o programa Big Brother Brasil.

Poderíamos tentar organizar então esse atual momento no desenvolvimen-to do SBTVD em três contradições que precisam ser solucionadas:

a) Apesar de potencialmente ter a chance de revolucionar o cenário das tecnologias de comunicação agregando ao modelo unidirecional da TV aberta no Brasil a possibilidade de interação efetiva e bi-direcional com o espectador, a TVDi depende de uma avaliação bastante prag-mática em termos de mercado, espectadores e difusores, esses últimos ainda em parte trabalhando com a indefinição sobre a viabilidade co-mercial das aplicações de interatividade.3

b) A maioria das aplicações desenvolvidas atualmente, por terem sido fei-tas com o objetivo de testar o Ginga e as linguagens de programação utilizadas, têm pouco interesse, pouco apelo, ao espectador, justamen-te por serem pensadas por programadores e não por produtores de conteúdo audiovisual.

c) A TVDi parece posicionar-se entre a experiência da TV aberta tradi-cional e a experiência customizada da internet. As aplicações mais ri-cas pressupõem o canal de interatividade para funcionar e justamente por isso poderíamos perguntar por que alguém que poderia acessar a internet pelo modo comum o faria pela TV com as dificuldades de visualização e sem os dispositivos de entrada mais eficientes do com-putador como o teclado e o mouse.

A identidade da TVDi do Brasil e suas chances de consolidação no mercado nacional4 passam por essas questões que precisam ser equalizadas através de uma maior compreensão de qual é a real vocação da interatividade em termos de TV aberta.

pOssibilidades naRRativas da tvdi

Já há alguns anos a internet vem ensinando a todos as habilidades de nave-gação e interação com interfaces amigáveis que nos permitem também escolher caminhos e compartilhar relatos e histórias completas, reais ou de ficção, de um jeito simples e numa escala até então inédita, num modelo de muitos para muitos, rotulado como web 2.0, que cresce em proporções geométricas ou virais, usando o jargão tecnológico.

O advento da TV Digital com a interatividade, mais uma vez, leva as narrativas a um novo patamar, só que agora diante de um problema que os rotei-ristas nunca tinham enfrentado antes: a manipulação do tempo de duração do conteúdo audiovisual tocado a quatro mãos, as do autor e as do espectador que, dependendo do tipo de interatividade proposta pela aplicação, pode quebrar a linearidade da narrativa com idas e vindas sem controle o que, em tese, impediria

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o planejamento e a inserção desse material na grade de programação tradicional da emissora, onde os tempos são contados com precisão e de forma linear; sendo este apenas um dos vários problemas técnicos envolvidos nesse ambiente.

Pensar em narrativas interativas no sentido de oferecer ao usuário a pos-sibilidade de escolher, por exemplo, um entre três finais distintos para uma no-vela ou acompanhar um relato audiovisual sobre a ótica de vários personagens diferentes, como no filme Rashomon do diretor Akira Kurosawa, produzido em 1950 (sim, as narrativas audiovisuais já conseguiam fazer isso muito antes da TV Digital) ou no mais recente Ponto de vista onde uma tentativa de assassinato ao presidente americano é relatada através da visão dos diversos elementos da trama, nos leva a pensar em novos problemas.

As dificuldades poderiam ser resumidas em três níveis:

a) no controle do tempo final do programa – esse problema pode ser melhor explicado considerando que ao ir e vir à vontade nas opções interativas da aplicação, o usuário poderia reduzir ou expandir o tem-po efetivo da exibição para ver as coisas do jeito que gostaria, impos-sibilitando a inserção do programa dentro de uma grade tradicional de televisão, uma espécie de “playlist” que a área de programação das emissoras organiza incluindo também os comerciais e planejando o tempo disponível no canal de difusão.

b) na organização da narrativa em si – apesar de existirem exemplos como os dos filmes de Kurosawa e o recente Ponto de vista, já citado, ou da obra Finnegan’s wake, de James Joyce na literatura, é no modelo da narrativa clássica hollywoodiana, estruturado em fórmulas bastante conhecidas nos manuais de roteiro, que a maioria de nós está acostumada a navegar na fruição das narrativas audiovisuais, principalmente na área da ficção. Uma organização que privilegia o entendimento e a condução segura do espectador pela narrativa, situando a trama em termos espaço-temporais e a caracterização dos personagens de forma clara e definida. A ausência desse ambiente familiar poderia causar estranhamento ao espectador me-diano levado a um lugar onde as coisas podem perder o nexo ou o “fio da meada” ao longo das suas escolhas e gerando talvez a mais temida re-ação da audiência por parte de qualquer difusor, ou seja, a troca de canal. Devemos lembrar que o público de TV é extremamente heterogêneo.

c) no envio dos vídeos ou partes adicionais propostos pela aplicação intera-tiva para a TV ou Set-top Box (STB) do usuário – um detalhe importan-te a ser lembrado é que, quando o tipo de interatividade da qual falamos é disponibilizada, cada espectador na tranquilidade do seu lar poderá então fazer um caminho diferente, o que nos coloca numa configuração que nos termos da internet é conhecido como “vídeo sob demanda” ou VOD (vídeo on demand, no inglês) só que num ambiente de televisão aberta que, através do canal de difusão, em tese só pode gerar a mesma coisa para todos os espectadores. Essa dificuldade se consolida no fato de hoje a maioria dos Set-up Boxes ou conversores dispor apenas de 2 Megabytes de memória interna o que inviabilizaria o armazenamento dos vídeos opcionais ou extras para o acesso ao usuário.

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Poderíamos então começar a imaginar possibilidades para enfrentar as objeções acima listadas. Um bom começo para enfrentar a questão do tempo é lembrar que nas transmissões ao vivo, como num jogo de vôlei, esse controle da duração final e seu encaixe na grade de programação também se tornam instáveis e são enfrentados com várias estratégias de ajuste, como uso de comerciais de apoio cultural ou chamadas para a própria programação, redução do tempo disponível para o programa seguinte (se este também for ao vivo, como um telejornal, por exemplo, numa espécie de transferência da solução para um momento mais adequado) ou simplesmente através do corte antecipado ou postergado de uma longa ficha técnica, que serve de “sanfona” para enfrentar variações imprevisíveis.

Diante da segunda categoria de dificuldades, a primeira coisa a lem-brar seria obviamente que a linearidade e a coerência tão bem representadas pela estrutura clássica da narrativa hollywoodiana não se constituem como único arranjo possível. Ao analisar o que chama de “Modos Narrativos”, uma espécie de categoria ou estrutura organizadora sobre a qual a narrativa é construída, David Bordwell, um dos principais pesquisadores da área do cinema, lista pelo menos outros três. Entre eles o do cinema de arte, onde lacunas e incertezas são bem mais comuns e estruturas não lineares também são freqüentes sem causar estranhamento.

Mesmo dentro do tipo de organização narrativa mais conhecida do cine-ma americano, na tradição dos blockbusters e das intensas campanhas de divul-gação mundial, poderíamos lembrar do formato do trailer, onde uma espécie de reconfiguração narrativa nos apresenta uma outra história que necessariamente não é idêntica a que veremos ao assistir o filme que o trailer ajuda a divulgar. Questões retóricas a parte, os trailers são também um exemplo de configuração não linear que, apesar disso, continua oferecendo uma lógica interna e compre-ensível, abrindo uma janela que talvez possa ser replicada nos novos experimen-tos de interatividade onde, mesmo com a quebra de uma linearidade tradicional, uma nova ordem pode ser estabelecida, principalmente se o espectador participa das escolhas que a tornam possível.

Em termos gerais e considerando as possibilidades acima discutidas, pode-ríamos pensar numa sistematização das aplicações interativas para a TV Digital através de três estratégias básicas de organização das narrativas:

a) Organização Hierárquica – onde o conteúdo será organizado em ca-madas de representatividade ou interesse, lembrando muito a ideia da pirâmide invertida das técnicas do jornalismo. Nesse cenário o usuário teria acesso a um fluxo principal com as informações mais im-portantes e poderia, via interatividade, aprofundar-se em níveis pos-teriores, pesquisando mais detalhes sobre determinado fato (no caso de um programa jornalístico ou documentário) ou indo além e vendo sequências adicionais nas trajetórias de determinados personagens ou ainda escolhendo finais, numa narrativa ficcional.

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b) Organização de Focalização Esférica ou Multi-Angular – onde o mes-mo evento é mostrado pela visão ou focalização de narradores ou per-sonagens diferentes, através de vários ângulos. Como no exemplo da “Torcida Virtual” do LAVID onde posso escolher em que torcida quero estar, ou como no filme “PONTO DE VISTA” em versão para a TV DIGITAL onde eu poderia ver a história do ângulo da vítima, do poli-cial honesto ou do criminoso.

c) Organização Paralela – onde os fluxos da narrativa teriam pouca re-lação uns com os outros e seriam escolhidos apenas pelas preferências individuais de cada espectador. Como no caso de um noticiário que ofe-recesse as escolhas das notícias pelas editorias ou um filme com estru-tura que estipulasse nenhuma ou pouca conexão entre as trajetórias dos personagens, como no filme “CRASH- NO LIMITE” de Paul Haggis, vencedor do Oscar de melhor filme em 2006, que acompanha as his-tórias de oito personagens principais (e de muitos outros secundários) num período de 24 horas na cidade de Los Angeles. Esses fluxos quase independentes ou histórias particulares poderiam ser gerados em modo síncrono, sendo apenas comutados via aplicação interativa ao gosto do usuário, num mecanismo parecido com o da “TORCIDA VIRTUAL” na organização esférica, mas com a diferença fundamental de que, na lógica da torcida, o evento narrado em todas as câmeras ou fluxos é o mesmo, apenas visto em ângulos diferentes, enquanto que na organiza-ção paralela a comutação ou corte de um fluxo para outro determinaria também a mudança do tema principal. (SANTOS, 2010, p.122).

Por todas as complexidades do novo cenário proposto pela TV Digital, fica claro que as possibilidades são imensas, mas que dependem ainda do desen-volvimento tanto da tecnologia envolvida em termos de engenharia e programa-ção das aplicações, como da experimentação e análise das possíveis formas de reconfiguração das narrativas audiovisuais em novos arranjos (às vezes nem tão novos assim), gerando programas interativos para o espectador.

É importante lembrar também que esse desafio se agrava consideran-do que esse espectador, principalmente o das novas gerações, nos dias de hoje já está sendo “treinado” em outros meios, como a internet, os games e os discos blu-ray, a ter experiências muito mais complexas em termos do que chamamos de interatividade.

inteRatividade nO jORnalismO e O mOdelO da piRâmide inveRtida

A ideia da pirâmide invertida tem mais de 100 anos no jornalismo. Mar de Fontcuberta citado por Zamith (2006, p.177) atribui o nascimento da pi-râmide invertida à Guerra da Secessão norte-americana quando os correspon-dentes se precipitavam aos postos de telégrafos procurando ser os primeiros a relatar os acontecimentos.

Autores como Carl Warren e José Alvares Marcos (apud ZAMITH, 2006, p.177) citam a queda do Forte Sumter, em 16 de abril de 1861, como fato que

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desencadeou a prática porque as linhas telegráficas constantemente não funcio-navam e os editores então recomendaram aos repórteres que enviassem apenas o essencial. Pena (2006, p.48) reforça essa tese.

Os autores tradicionalmente afirmam que a estratégia ou estrutura narrativa “pirâmide invertida” surgiu em abril de 1861, em um jornal de Nova York. Pouco tempo depois ela já era usada pelas agências de notícias, espalhando-se por todo o planeta, por ser mais prática e com preço mais barato na transmissão via telegrama, da época; assim de-pendendo do interesse do cliente da agência, o primeiro ou o segundo parágrafos já seriam suficientes para atender à demanda do veículo assinante; em termos de custos, a matéria completa, contada letra a letra saía invariavelmente mais onerosa. (PENA, 2006, p.48).

A técnica que teve, portanto, sua justificativa inicial ligada à economia de custos e tempo em um ambiente tecnológico com muitas dificuldades, chega até os dias atuais como prática difundida e comum, inclusive no jornalismo que se faz no ambiente digital (apesar das discussões específicas sobre esse tema).

Discutindo a utilização da técnica da pirâmide invertida no webjor-nalismo, Mielniczuk (2002) lembra as seis principais características lista-das por vários pesquisadores associadas ao jornalismo on line. São elas: multimidialidade/convergência, interatividade, hipertextualidade, perso-nalização, instantaneidade e memória.

Pensando em termos de TV Digital uma aplicação de t-news poderia incorporar as cinco primeiras características trazendo para o ambiente da TV aberta possibilidades antes apenas disponíveis no ambiente on line.

Quanto à memória, pelo menos se considerarmos essa característica no aparelho do espectador, por enquanto, não existe grande espaço para arquivamento nos Set-top Boxes (STBs) e conversores hoje comercializa-dos, algo que pode mudar com o tempo.

Voltando à técnica da pirâmide invertida é importante ressaltar que ela também tem uma função organizadora, estruturando a informação de uma forma eficiente. É essa função que acaba estabelecendo uma hierarquia de interesse sobre os fatos relatados na notícia, o que parece ter muita se-melhança com a forma em que aplicações inte-rativas tratam o conteú-do disponibilizado.

No diretório do Clube NCL não são muitas as aplicações que têm como objetivo aco-plarem-se a programas Figura 6 – Leitor de RSS. Fonte: <http://manoelcampos.com/tvd/

leitor-de-rss-para-tv-digital/>. Acessado em 23 de julho de 2010.

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de cunho jornalístico. De modo geral as formas mais comuns são as enque-tes, as informações do clima e a escolha do tipo de notícias que se quer ver através da aplicação. Um exemplo é uma aplicação que lê um feed de RSS5 a partir de um servidor web e o apresenta na tela (figura 6).

A lógica do “mais importante” e do “menos importante” para o espec-tador parece ser então a mais comum através da organização que chamamos anteriormente de hierárquica. O espectador a partir de um menu inicial escolhe um tema ou editoria (esportes, economia, política, etc.) que tem as notícias do seu interesse ou ainda pode acessar o noticiário específico de determinado evento como a Copa do Mundo de Futebol.

Figura 7 – Exemplo de aplicação de notícias com organização hierárquica. Fonte: <http://www.broadbandbananas.com/content/blogcategory/27/54/>. Acessado em: 23 de julho de 2010.

As possibilidades de convergência entre aplicações de t-news e uma prática centenária como a pirâmide invertida vão além da organização hierárquica. Apenas ainda em caráter exploratório é possível pensar em semelhanças e pontes entre o código de programação da linguagem NCL e o código da linguagem audiovisual em termos de descrição do que vai acontecer na tela.

A organização da pirâmide invertida que se estabelece através das res-postas às questões originais do lead também está presente na forma como a linguagem NCL estabelece seus principais parâmetros para descrever a aplicação. A semelhança é mais que coincidência já que a função organiza-dora é idêntica apenas sendo traduzida em termos do código de programa-ção para o código audiovisual.

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As telas acima fazem parte de um trabalho sobre a produção de apli-cações para televisão digital utilizando a linguagem Ginga-NCL. Através da determinação do tipo de mídia, da localização, de como e quando essas mídias devem aparecer qualquer aplicação em NCL é estruturada. As res-postas que o lead deve responder para estruturar as principais informações relativas à notícia são quase as mesmas que o NCL usa para descrever a aplicação de interatividade.

cOnsideRações finais

O presente estudo, que tem apenas caráter exploratório, pretende analisar essa situação a partir do conceito de “tradução” através do método semiótico como forma de contribuir para a integração e melhor eficiência dos profissionais que participam da nova e multidisciplinar atividade de desenvolvimento de aplicações para a televisão digital.

Figuras 8, 9, 10 e 11 – Exemplos das semelhanças entre a linguagem NCL e um lead jornalístico. Fonte: NETO, Carlos S. de. Curso “Desenvolvimento de Aplicações para TV Digital em Ginga-NCL” apresentado na JIM-Jornada de Informática do Maranhão, 2010.

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Uma nova geração de produtos audiovisuais com aplicações de inte-ratividade acoplada precisa surgir para que o próprio destino do Ginga e das soluções brasileiras em termos de TVDi possam prosperar num mer-cado cada vez mais competitivo e difícil. Facilitar o entendimento e a co-laboração entre programadores e produtores de conteúdo será fundamental para que a interatividade na TV Digital possa realmente ganhar escala.

Na Argentina, talvez até por tratar-se de uma população bem me-nor que a brasileira, o governo decidiu comprar e entregar gratuitamente à parte da população de baixa renda cerca de um milhão de Set-top Boxes dando um impulso forte à disseminação da interatividade na televisão aberta. Ao mesmo tempo em que criou um novo mercado, acelerou a pro-dução dos conversores gerando uma demanda inicial significativa para a indústria eletrônica nacional e colocou pressão nos difusores para inserir--se nesse novo cenário.

O equilíbrio entre a força da “mão do Estado” e a liberdade de ope-ração dos mercados, em termos de uso do SBTVD como instrumento de inclusão digital, ainda não foi encontrado no Brasil. O Plano Nacional de Banda Larga, política pública de importantíssimo papel em várias frentes, abrirá novas possibilidades para a interatividade na TV Digital que, conectada, terá um canal de retorno e poderá utilizar aplicações mais ricas e interessantes para os usuários. Porém resta saber se, com a possibilidade de conexão com a internet disseminada em áreas onde antes só a TV estava, a utilidade da interatividade como ferramenta de inserção digital permanecerá.

Prever cenários futuros está além das possibilidades desse artigo, en-tretanto é fato que, com o PNBL, uma das premissas da interatividade na TV deixa de existir, ou seja, o da TV como única tecnologia de comunica-ção disseminada com grande capilaridade no território brasileiro. Apesar do grande esforço da academia nacional, o futuro do Ginga parece mais promissor em outros países da América Latina e da África onde a dissemi-nação da internet em grande escala ainda vai demorar mais.

No cenário tecnológico atual, com transformações aceleradas e ci-clos de vida de produtos cada vez menores, governar não significa mais “abrir estradas” e sim decidir o momento certo de fazê-lo em janelas temporais que a estrutura mais rígida do poder público às vezes não consegue ver.

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nOtas

1 www.clubencl.com.br.

2 A resolução máxima proposta pela TV DIGITAL é a conhecida por FULL HD com telas de 1920 por 1080 pontos – pixels – de definição. A resolução da TV Standard ou SD é de 720 por 480 pontos.

3 Uma questão comum é a de que com a sobreposição do material interativo na tela perde-se a atenção na narrativa principal e em todas as modalidades tradicio-nais de comunicação que sustentam o modelo de negócio das TVs abertas através da propaganda e do merchandising.

4 O Ginga também tem conseguido espaço no mercado internacional. No momen-to em que esse artigo está sendo escrito, cerca de 11 países já aderiram ao sistema brasileiro.

5 A sigla representa o padrão Really Simple Syndication, que permite que o usuário se inscreva em determinado site que forneça esse serviço e oferece um “feed”, um conjunto de notícias sobre determinado assunto que é constantemente realimenta-do e atualizado. Na aplicação Leitor RSS esse fluxo é apresentado na tela da TV do espectador confirmando que a característica da instantaneidade pode ser transpor-tada para o jornalismo na TV aberta.

RefeRências bibliOgRáficas

BECKER, Valdecir; ZUFFO Marcelo K. Interatividade na TV Digital: Estado da arte, conceitos e oportunidades In: SQUIRRA, Sebastião & FECHINE, Ivana (Orgs.). Televisão Digital: Desafios para a comunicação. Porto Alegre: Meridional, 2009.

FERRAZ, Carlos. Análise e Perspectivas da Interatividade na TV Digital. In: SQUIRRA, Sebastião & FECHINE, Ivana (Orgs.). Televisão Digital: Desafios para a comunicação. Porto Alegre: Meridional, 2009.

MIELNICZUK, Luciana. A pirâmide invertida na época do webjornalismo: tema para debate. Trabalho apresentado no NP08 – Núcleo de Pesquisa Tecnologias da Informação e da Comunicação, XXV.Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05. Setembro, 2002. Disponível em: <http://www.ericaribeiro.com/Arquivos/PiramideInvertidaWebJornalismo.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2010.

PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2006.

SANTOS, Márcio C. A TV digital e a narrativa reconfigurada: O problema da linearidade no encontro do produtor de conteúdo com o espectador interativo. Revista CAMBIASSU – Ed. Eletrônica Jan/Jun – Nº 6. São Luis: UFMA, 2010. Disponível em: <http://www.cambiassu.ufma.br/carneiro.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2010.

ZAMITH, Fernando. Pirâmide invertida na cibernotícia: a resistência de uma técnica centenária. Disponível em: <http://prisma.cetac.up.pt/artigospdf/pira-mide_invertida_na_cibernoticia.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2010.

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ResumoEste ensaio objetiva fazer uma descrição dos principais pontos defendidos pela Actor-Network Theory (ANT), traduzida para Teoria Ator-Rede (TAR); as relações com os paradigmas de Relações Públicas e a contribuição para o conceito de organização.Palavras-chave: Teoria Ator-Rede; Paradigmas de Relações Públicas; Organizações.

AbstractThis article aims to provide a description of the main points made by the Actor-Network Theory (ANT); relations with the paradigms of public relations and contribution to the concept of organization.Keywords: Actor-Network Theory; Paradigm Public Relations; Organizations.

Políticas públicas e o patrimônio histórico:das primeiras ações a economia da cultura

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Análise da Teoria Ator-Rede (TAR) e sua relação com os paradigmas de Relações Públicas

Actor-Network Theory (ANT) analysis and its relation with Public Relations paradigms

Alessandra MaiaEstudante de Relações Públicas da Faculdade de Comunicação Social da UERJ (FCS/Uerj) e integrante do Laboratório de pesquisa em Comunicação,

Cognição e Práticas de Entretenimento do PPGCom/Uerj.

Sabrina SerafimEstudante de Relações Públicas da FCS/Uerj.

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Políticas públicas e o patrimônio histórico:das primeiras ações a economia da cultura

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intROduçãO

O presente texto visa abordar os paradigmas de Relações Públicas e rela-cioná-los à Teoria Ator-Rede (TAR), desenvolvida por antropólogos, sociólogos e engenheiros franceses e ingleses associados, entre tantos, Bruno Latour, Michel Callon e John Law. Ela transmite a ideia de rede que remete a alianças, fluxos e mediações. Com a TAR tem-se a noção de que uma rede de atores não se reduz a um único ator, mas é composta de elementos heterogêneos1 conectados - sejam eles humanos ou não-humanos. Por um lado, essa rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, que exclui qualquer componente não-huma-no. Por outro, não deve ser confundida com um elo que liga de modo previsível elementos estáveis e definidos perfeitamente, porque as entidades das quais ela é composta podem a qualquer instante redefinir sua identidade e suas relações, for-necendo elementos novos para o rede latour chama de “rede sociotecnica”.

Ao tentar entender o funcionamento de determinados sistemas, Bruno Latour faz uma análise minuciosa deles, tomando as interaçoes como objeto inicial de seu estudo. As interações importam na medida em que carregam mediações, ou seja, conexões capazes de produzir mudança, na medida em que os distintos elementos nelas presentes se articulam e se afetam mutuamente. Portanto, sistemas, objetos materiais, organizações, relações de poder e vida social fariam parte de relações de interação sem que um determine o outro, embora tenham poder de atuar um sobre o outro. Por essa razão, tal teoria se relaciona com o trabalho do profissional de Relações Públicas que precisa distinguir qual é o seu público, assim como a teoria precisa identificar os atores.

Desta forma, entende-se que não existe diferença de natureza entre os atores e/ ou os públicos, já que todos podem ser mediadores ou intermediários no processo de mediação em determinada situação. Neste ponto, Latour aplica o princípio de simetria, segundo o qual os atores têm as mesmas possibilidades de produzir interferência e mediação, ou seja, não são hierarquizáveis (huma-nos mais importantes que não-humanos, ou tal ator determina tal situação etc). O relações públicas necessita ter isto em mente quando for traçar uma estratégia, pois precisa estar atento ao cenário e se adaptar para ter desenvolver um trabalho mais consciente e sem polarizar a sua ação.

Os paRadigmas de Relações públicas

A profissão de relações públicas surge num período em que o capita-lismo norte-americano precisava conquistar a opinião pública para, desta forma, conseguir legitimação diante da sociedade. O relações públicas se torna uma ferramenta útil para suprir as necessidades desse grupo. Assim, o profissional passa a agir antes mesmo de existir um referencial teórico que embasasse a sua ação, portanto, elas eram realizadas de forma prática e intui-tiva, já que a demanda era imediata e capitalista.

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A autora Ana Maria Eirôa da Fonseca afirma que a falta de um “método racional” no início da profissão de Relações Públicas atrasou o desenvolvi-mento teórico e depreciou seu o campo de atuação. Deste modo, a ausência de métodos que resultasse em uma real eficiência na construção das estraté-gias, colocava em dúvida a credibilidade da profissão diante das organizações. Outro aspecto está ligado à transmissão de conhecimento de RP, pois, como dito acima, ainda não existia cobertura teórica, como os adotados pelos cientis-tas do século XX. (FONSECA, 1989, apud CASTRO, 2007, p. 10).

A evolução teórica desta profissão pode ser analisada através de quatro pa-radigmas: funcionalista, interpretativista, humanista radical e estruturalista. Estes paradigmas podem ser usados como ponto de partida para analisar as organizações.

Segundo Janaina Garcia e Josiane Minuzzi, o termo paradigma é ge-ralmente usado para descrever os fundamentos das concepções básicas coe-xistentes nas teorias. As autoras prosseguem citando Morgan que conceitua “paradigma como a visão de mundo aceita amplamente em uma disciplina e que determina a direção e os métodos de seus pesquisadores” (MORGAN, 1980). Ou seja, um conjunto de visões relacionado à sociedade, ao homem, e à maneira de agir para se “alcançar a verdade”. Os paradigmas:

a) Humanista radical: reflete uma posição subjetiva e de mudança radical da sociedade, enfatizando que a realidade social é constru-ída e mantida, porém com uma postura de avaliação mais crítica. Combina a filosofia subjetivista da ciência com a teoria de mudança radical da sociedade. Este paradigma compreende a ordem social como sendo o produto de coerção e não de consentimento. A teoria crítica é o enfoque mais influente no paradigma humanista radical que tem em comum com o paradigma interpretativo a visão do mundo social numa perspectiva antipositivista.

b) Estruturalista radical: advoga as teorias de mudança radical a partir de uma perspectiva objetivista. A dimensão desse paradigma, baseado na teoria marxista, centraliza-se na concepção materialista do mundo social, ligada por estruturas concretas e reais. As contra-dições estruturais tentam explicar a presença de conflitos e tensões sociais tão freqüentes nas organizações e na sociedade. Todo esse contexto tem um grande potencial para mudança radical, sempre que as estruturas não conseguem regular a instabilidade. Para os defensores desse paradigma, as raízes dos problemas e desordens sociais só podem ser minimizados através de uma transformação radical e revolucionária do sistema capitalista.

c) Funcionalista: originou-se no positivismo e reflete uma posi-ção objetiva com uma teoria de regulação social. É dominante nas ciências sociais e nas pesquisas de desenvolvimento e utilização de sistemas de informação. Procura examinar regularidades e relações que levam à generalizações e princípios universais. Nessa perspecti-va, preocupa-se com o entendimento da sociedade como uma forma geradora do conhecimento empírico.

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d) Interpretativo: reflete uma posição subjetiva e de regulação so-cial. Baseia-se na visão de que as pessoas constroem e mantêm, sim-bolicamente e socialmente, suas próprias realidades organizacionais. Nessa perspectiva, a atividade humana é considerada coesa, ordena-da e integrada. (GARCIA e MINUZZI, 2005, p. 2, grifos nossos).

Para analisar os paradigmas, Garcia e Minuzzi separam os paradigmas em “sociologia da mudança radical” e “sociologia da regulação” e através da metáfora explicam o que cada uma significa:

As oito metáforas utilizadas funcionam como sugestões de como uma or-ganização seria de acordo com os paradigmas destacados. O paradigma huma-nista radical é exemplificado pela “prisão psíquica”. De acordo com as autoras, seriam fenômenos psíquicos, ou seja, as pessoas ficariam aprisionadas a processos conscientes e inconscientes gerando imagens, ideias, pensamentos e ações. Dessa forma, qualquer ideal imposto e sem questionamento poderiam ocasionar pers-pectivas limitadas do mundo. E, isso, eliminaria “a possibilidade de ações asso-ciadas a visões alternativas da realidade” (GARCIA e MINUZZI, 2005, p. 5).

Já o paradigma estruturalista radical é destacado pela metáfora do “ins-trumento de dominação”. Morgan afirma “que o real valor desta perspectiva é que a mesma demonstra que até as formas mais racionais e democráticas de organização podem resultar em modelos de dominação” (MORGAN, 1996 apud GARICA e MINUZZI, 2005, p. 6). As autoras utilizam como exemplo “objetivos racionais de maior rentabilidade ou crescimento organizacional”. Elas afirmam que estes geralmente provocam impactos negativos nas organizações e que esses choques, mesmo sem ser intencional, abalam funcionários e ambiente

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de trabalho. “Em outros termos, aquilo que é racional desde o ponto de vista da organização pode ser catastrófico na ótica do funcionário.” (Ibid., p. 6).

O paradigma funcionalista destaca cinco metáforas. A primeira é a “máqui-na” que é sustentada pela Teoria Clássica da Administração e pela Administração Científica. Segundo as autoras a administração científica defende o uso de estu-dos de tempo e de movimento como meio para analisar e padronizar as atitudes de trabalho, já na teoria da administração clássica, os teóricos Taylor e Fayol se valeram da especificação de Weber de que a burocracia é o ideal para as organiza-ções, neste caso, elas são consideradas mais eficazes quando estão em ambientes estáveis ou protegidos ou menos quando o ambiente é turbulento e competitivo, como o que vivemos hoje, mas ainda de acordo com as autoras,

as organizações burocráticas, de forma geral, têm maior dificuldade em se adaptarem a situações de mudança, porque são planejadas para atingir objetivos predeterminados e não para a inovação. Weber (1978) descreveu a burocracia como um “tipo ideal”, sem conotação de valor. O tipo ideal é uma abstração, na qual são definidas as características extremas desse fenômeno, de forma que ele apareça em seu sentido puro (GARCIA e MINUZZI, 2005, p.03).

A segunda metáfora é o “organismo”. Neste há comparação entre as or-ganizações e os organismos vivos o que nos chama a atenção para assuntos como sobrevivência e eficácia organizacional em relação ao ambiente, ou seja, a importância das necessidades sociais no local de trabalho. Nessa metáfora, o organismo é visto como uma combinação de elementos diferentes que pro-curam sobreviver em um mesmo vasto ambiente. Assim, é possível enxergar claramente as semelhanças entre os elementos da teoria das organizações con-temporâneas e o organismo e, para isso, o foco passa a ser os sistemas abertos.

Na perspectiva de Morgan e Smircich, “a teoria dos sistemas abertos parte do principio de que os organismos tendem a se auto-organizarem, numa interação constante com o ambiente, influenciando e sendo influen-ciados por ele, objetivando num plano maior a sua própria sobrevivência”. Já segundo Argyris, o indivíduo não pode ser considerado como uma sim-ples “acumulação de suas partes” e sim, como um ser que possui persona-lidade própria. (MORGAN e SMIRCICH, 1980; ARGYRIS 1957 apud GARCIA e MINUZZI, 2005, p. 4).

De acordo com Morgan, a comparação entre as metáforas da máquina e do organismo é viável, pois, a primeira remete ao “conceito de organização” onde uma estrutura é estática e fechada. No segundo, o “conceito de organização” tra-ta sobre uma “entidade viva”, que está em mudança contínua que interage com o meio ambiente para tentar atender as suas necessidades. Assim, DeGeus destaca que “onde as organizações são denominadas de empresas vivas, pois possuem personalidade própria, conhecem sua própria identidade, compreendem como se enquadram no mundo, valorizando novas idéias e novas pessoas.” (MORGAN, 1980; DEGEUS, 2000 apud GARCIA e MINUZZI, 2005, p.04).

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A metáfora do “cérebro” é a terceira da lista. Esta faz a comparação entre o cérebro e a organização. Garcia e Minuzzi afirmam que os dois funcionam de forma similar, ou seja, mesma capacidade para processar informações, de reter na memória o aprendizado e de refletir sobre algum dado.

(...) Através da aprendizagem, nos recriamos. Através da aprendiza-gem tornamo-nos capazes de fazer algo que nunca fomos capazes de fazer. Através da aprendizagem percebemos novamente o mundo e nossa relação com ele. Através da aprendizagem ampliamos nos-sa capacidade de criar, de fazer parte do processo gerativo da vida (SENGE, 1990 apud Ibid., p. 04).

A partir disso, podemos concluir que a organização deve ser vista como um todo e que esse “todo” é constituído de “partes ou funções ou unidades”, ou seja, cada uma dessas partes pode reconstruir o todo e vice-versa.

A quarta metáfora é o “sistema político” que pode ser diferenciada das demais visões, pois, não observa as organizações como “empreendimentos interligados e racionais que perseguem um objetivo comum”. Ao contrário, ela estuda as organizações como “redes de pessoas interdependentes com in-teresses divergentes” que se juntam para um mesmo objetivo de atender “suas necessidades básicas (ganhar dinheiro), desenvolver uma carreira profissional ou de perseguir metas fora de seus trabalhos (lazer, religião)”. Para Maslow a qualidade de vida é formada quando aspectos básicos são atendidos e, assim os desejos são transferidos para outros alvos mais elevados. Ele conclui que “sua teoria motivacional não é a única a explicar o comportamento humano, pois nem todo comportamento é determinado pelas necessidades.”. Já no campo de ação organizacional, os desejos são

“tarefas, carreira e vida pessoal; a primeira tem a ver com o cargo atual do funcionário, o segundo com as questões de personalidade, atitude, crenças, valores, e o terceiro com o relacionamento do indi-viduo com o mundo exterior”. (MASLOW, 1943 apud GARCIA e MINUZZI, 2005, p. 04-05).

A última metáfora é a “cultura”. Esta está ligada a parte humana da or-ganização. A acepção do simbólico dos vários aspectos da vida organizacional. “Estes aspectos podem ser a linguagem, normas, folclore, cerimônias e outras práticas sociais que comunicam ou expressam ideologias-chave, bem como os valores e crenças que guiam a ação.” (Ibid., p. 05).

De acordo com Fleury e Fischer, “tais aspectos formam uma identidade que é moldada através da interação de seus funcionários que criam e adotam a cultura” (FLEURY e FISCHER, 1996 apud GARCIA e MINUZZI, 2005, p. 05). A partir daí, percebemos o interesse em administrar a “cultura corpo-rativa” como um “elemento de ligação normativo” que sustentaria a harmonia da organização. Assim, a ideia central é composta pela observação de como as organizações “desenvolvem uma cultura própria, uma identidade específica” que mostra como são, como pensam e agem em presença da realidade. Dessa forma, “as crenças e ideias que as organizações possuem de si mesmas, bem

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como daquilo que pensam fazer com respeito a seu ambiente, influenciam sobremaneira na materialização de seus objetivos” (Ibid., p. 5), o que também estimularia “a formação e o estabelecimento” da sua estratégia empresarial.

Por fim, o paradigma interpretativista e a metáfora do “fluxo de transformação”.

Morgan (1996) destaca que uma organização que realmente queira entender o seu ambiente, deve começar primeiro a tentar entender-se a si mesma, uma vez que a compreensão do ambiente é sempre uma projeção de si própria. Para isto, baseia-se na teoria da autopoiesis (MATURANA & VARELA, 1980), a qual argumenta que o fato do sis-tema interagir com seu ambiente facilita a sua própria auto-reprodução. Uma outra vertente de estudo da auto-organização é a de Henri Atlan apud Bauer (1999) e seu princípio da complexidade por auto-organiza-ção através do ruído, onde ruído corresponde a toda desordem, incerte-za, instabilidade e aleatoriedade. (GARCIA e MINUZZI, 2005, p.05).

Assim, as autoras afirmam que muitas organizações acabam com proble-mas sérios ao tentar se comunicar com o mundo externo ao seu meio ambiente e erram por não entenderem que esse “mundo externo” também faz parte do ambiente em que vive. Dessa forma, devemos levar em consideração que “as organizações mudam e se transformam em conjunto com seu meio ambiente (fornecedores, clientes, trabalhadores, coletividade, concorrência), levando a compreender que o padrão de organização que se vai revelando com o passar do tempo é evolutivo.” (Ibid., p. 5).

Mas a partir desses paradigmas expostos e suas metáforas nota-se que a ação do relações públicas está polarizada ou ele age em favor da empresa ou dos funcionários, como ocorre com o Funcionalista ou o Humanista, respec-tivamente. Percebe-se também que há pouca preocupação com o ambiente de trabalho em relação aos empregados e ao mundo exterior; o que acarreta em dominação ou falta de conhecimento da organização, como podemos notar nos paradigmas estruturalista radical e interpretativista, nessa ordem. Contudo, de acordo com Fátima Régis e Fernando Gonçalves, no texto “Paradigmas de rela-ções públicas”, há uma alternativa para esses paradigmas polarizados. Os pesqui-sadores desenvolvem o artigo relacionando a atuação do profissional de Relações Públicas com a Teoria dos Sistemas Complexos “por sua capacidade de estudar sistemas não-lineares, imprevisíveis e capazes de evoluir com criatividade, pode fornecer uma base de análise mais coerente com os desafios enfrentados pelas Relações Públicas na atualidade” (REGIS & GONÇALVES, 2009, p. 73).

Todavia, tais desafios podem ser enfrentados quando o profissional en-tende que as organizações, instituições etc. são formadas por uma “rede hete-rogênea” de atores humanos e não-humanos e que um não é mais importante que o outro, mas que se complementam e fazem parte de um sistema complexo como, no caso da organização, concorrentes, clientes, energia elétrica, colabo-radores terceirizados, funcionários, fornecedores, murais, computadores, inter-net, o prédio, o clima, entre tantos outros. Por isso, que cada vez mais se valo-riza a visão analítica do processo em detrimento da aplicação de mera técnica.

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a ORganizaçãO cOmO uma Rede heteROgênea

O início da Teoria Ator-Rede se deu no campo da sociologia, da ciência e da tecnologia. Os autores já citados, Bruno Latour, Michel Callon e John Law, argumentavam que o conhecimento é um produto social e não algo produzido através da operação de um método científico privilegiado. O que se aproxima do que é dito por Steven Johnson (2003) em seu livro “Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e software” quando fala da inteligência distribuída, bottom-up, segundo o paradigma de Selfridge, de 1958, já neste período suas pesquisas não se baseavam em uma inteligência unificada, top--down. Para ele “essa mistura de ordem e anarquia é o que chamamos de com-portamento emergente” (JOHNSON, 2003, p. 27) e é esse comportamento emergente que se aproxima da ideia de que o conhecimento é um produto social, que acontece na interação tanto social quanto com os objetos técnicos sendo um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos, ou seja, a interação entre humano e não-humano, sem que uma interação determine a outra. Enfim, o “conhecimento” (entendido como uma apresentação oral, textos de blogs, a plataforma wiki, livros etc.) pode se mostrar de diversas formas, humana ou não-humana, por isso se afirma que ele é produto final de muito trabalho, no qual elementos heterogêneos são organizados e ordenados formando o produto final. Essa forma de entender o conhecimento também se aplica a outras instituições como a família, as organizações, sistemas de com-putador, a economia e toda a vida social.

Uma vez que o social é formado por uma rede de materiais heterogêneos, logo, esses materiais não são simplesmente humanos, pois a sociedade se forma pela organização de elementos humanos e não-humanos. Nas relações de interação so-cial, o objeto constitui um papel importante de mediador entre locutor e interlocu-tor. Seja através do computador, do papel ou da imprensa, o elemento não-humano se torna indispensável para que as relações sociais se constituam. Ora, se entende-mos que as relações sociais dependem dos objetos, podemos afirmar que sem eles não teríamos a ordem social, que é um efeito gerado por meios heterogêneos.

Nesse contexto, de interdependência entre humanos e máquinas, surge uma ideia reducionista. Para as correntes, humano ético e episte-mológico, as relações entre as máquinas determinam as relações humanas e vice-versa. A teoria ator-rede, de acordo com John Law, não aceita esse reducionismo, pois não existe razão para assumir que objetos ou pessoas determinem o caráter da mudança ou da estabilidade social. Em casos particulares, pode acontecer de relações sociais moldarem máquinas, ou relações entre máquinas moldarem seus correspondentes sociais.

Como já dito, a teoria ator-rede defende que não existe uma diferença em es-pécie entre pessoas e objetos, negando que pessoas sejam necessariamente especiais, por isso ela incomoda o humanismo ético e epistemológico. John Law ao dizer que não existe diferença entre pessoas e objetos, afirma que isso constitui uma atitude

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analítica e não uma posição ética. Deve-se usar a questão dos direitos e deveres humanos para analisar o caráter especial que as ações humanas têm no campo da ética. O autor cita um caso em que a vida humana é “mantida artificialmente por conta das tecnologias de tratamento intensivo” (LAW, 2006, p. 5).

São raras as vezes que se notam, claramente, as redes existentes por trás dos de objetos, atores ou instituições. Isso acontece por causa da simplificação, que faz surgir a unidade da rede ou a faz desaparecer. Na maior parte do tem-po, não estamos aptos a detectar a complexidade da rede. Já que, normalmen-te, ela se apresenta como um bloco organizado e em perfeito funcionamento, que tende a não se mostrar aos nossos olhos. Por exemplo, o celular, para a grande maioria das pessoas é um objeto coeso e singular, mas quando deixa de funcionar, logo se torna uma rede de diversos componentes eletrônicos e de influências humanas. Ou seja, não é comum prestar atenção à complexidade das partes quando o corpo, a corporação ou a máquina estão funcionando.

John Law diz que tudo é um processo de simplificação, por exemplo, uma bicicleta – para um ciclista normal, é possível resumir a bicicleta como um con-junto de tubos metálicos, com dois pedais, duas rodas ligadas a correntes, algu-mas marchas, e alguns outros acessórios. Entretanto, quando a bicicleta apresenta algum tipo de problema, esse “ciclista normal”, que acreditava poder consertá-la, logo percebe que a bicicleta é muito mais que um simples meio de transporte.

Os teóricos das redes falam desses efeitos simplificadores como pontuali-zações. As “redes cujos padrões de ordenamentos são mais amplamente perfor-mados são aquelas que mais freqüentemente podem ser pontualizadas” (LAW, 2006, p.7). Essas redes podem agir como recursos e se apresentarem como agentes, dispositivos, textos, conjuntos padronizados de relações organizacio-nais. Recursos pontualizados, embora sejam precários, oferecem uma forma de usar as redes do social sem se envolver com complexidades intermináveis.

“A teoria ator-rede assume que a estrutura social não é um nome, mas um verbo” (LAW, 2006, p.7), os organismos da ordem social não se tornam completos e autônomos. Para os teóricos, não existe uma ordem social única, com padrões definidos e relações estáveis, o que existe é um conjunto de ordens e resistências. Isso significa que a ordem social vigente é contestável, o fato de existirem várias ordens, não significa que existam vários centros de poder.

Richard Sennett identifica os elementos escondidos nas modernas formas de flexibilidade das empresas e como criam um sistema de poder: a reinvenção descontínua de instituições; a especialização flexível de produção e a concentra-ção de poder sem centralização. A aceleração dos prazos e processos, na ansie-dade de obter resultados em curtíssimo prazo, permitiu aos funcionários certo controle sobre suas próprias atividades. Na verdade, o funcionário não detém o controle totalmente, ele está sendo vigiado, sobretudo por meio das contínuas inovações tecnológicas. Estas, por sua vez, tornam-se versões ainda mais sofisti-cadas de técnicas de vigilância.

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Podemos ressaltar que nos tempos atuais, as empresas funcionam, mui-tas vezes, sem parar. E, o funcionário em prol da agilidade, cada qual cumpre horários diferentes. O que possibilitaria o home office, ou seja, o trabalho em casa. Esta forma de trabalho, supostamente, “libertadora”, criou mecanismos eficientes para se controlar os ausentes do escritório: os trabalhadores deixam de encarar, face a face, o poder ao qual se submetem, mas estão submetidos às formas eletrônicas. Embora o trabalho seja fisicamente descentralizado, o poder sobre o trabalhador é, assim, mais direto. Segundo a TAR, esse poder é chamado de “controle à distância”:

Essa ideia está diretamente ligada ao modo como as relações de po-der são constituídas “entre pontos que estão geograficamente distantes”. A questão central está relacionada à condição de como o controle será es-tabelecido e que isso só seria possível através da “acumulação de infor-mações a respeito daquilo que se quer dominar. Trata-se de um processo lento e gradual que explica tanto o estabelecimento de impérios e colônias quanto a universalidade da ciência” (LATOUR, 1987; LAW, 1986 apud ALCADIPAI e TURETA, 2009, p.655).

O poder se relaciona entre as várias ordens e tem seu efeito distribuído entre elas, como Sennett diz “o trabalho é fisicamente descentralizado, o poder sobre o trabalhador mais direto” (SENNETT, 1999, p. 68) e atual-mente é nesse contexto que um relações públicas precisa aprender a pensar para, desta forma, criar uma comunicação criativa, eficiente e efetiva. Assim, podemos usar como exemplo uma:

(...) caminhada rumo à linha do horizonte. A linha existe, está “lá”, mas quando chegamos “lá”, deparamos com uma “nova” linha do hori-zonte e a caminhada continua, indefinidamente. Dessa forma, nenhu-ma versão da ordem social, nem de organização, nem nenhum agente está ou estará alguma vez completo, autônomo e final. Qualquer estrutura está constantemente a construir-se e a reconstruir-se a si própria. Isto vem contradizer os ditadores, pois afirma a não existência da “ordem social”, com um centro único ou um conjunto único de re-lações estáveis. Pelo contrário, há ordens e também, resistências (LAW, 1992 apud CORREIA, 2001, p.4).

Ao abordar a questão da resistência, pode-se dizer que os ordenamentos, ao serem constituídos de elementos, estão suscetíveis a falhas e a saída deles. A análise da luta pelo ordenamento é de grande importância para a teoria ator--rede e é nessa análise que surge o processo de tradução que se constitui na possibilidade transformação ou de uma coisa representar outra. Por exemplo, um ator representar uma rede. Segundo Letícia Freire,

traduzir (ou transladar) significa deslocar objetivos, interesses, dispo-sitivos, seres humanos. Implica desvio de rota, invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira modifica os elementos imbricados. As cadeias de tradução referem-se ao trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e transladam os seus vários e contraditó-rios interesses (FREIRE, 2006, p. 51).

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Freire prossegue destacando que Latour enfatizava

ainda que o conceito de rede da TAR não deve ser confundido com o objeto a ser descrito, que é sempre também um ator em relação. Uma rede de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede, mas composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conectados, agenciados. Ela é simultaneamente um ator, cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar seus componentes (FREIRE, 2006, p. 56).

A capacidade desses ordenamentos, constituídos de atores, organizações e elementos externos, de conseguir se tornar estável constitui o objeto central de estudo da teoria ator-rede. Os elementos, constantemente levados a seguir seus próprios caminhos, são de alguma forma controlados pelos atores e orga-nizações, fazendo que os ordenamentos se mantenham unidos.

Para a TAR, a tradução tem a ver com o processo de ordenamento ou estabilização de um conjunto de elementos que de outra forma iriam funcionar de uma forma desagregada entre si. Por exemplo, a organização não é uma coi-sa própria em si, mas um efeito ou produto; ordena e organiza os elementos de redes heterogêneas, num sistema relativamente estável. Sem o poder ordenador da tradução, os elementos podem evoluir em toda e qualquer direção. Segundo Law, “a teoria ator-rede é sobre poder, poder como um efeito e não como um conjunto de causas” (LAW, 2006, p. 8). Dessa forma, a dedução através da experiência é que traduções são contingentes, locais e variáveis.

“Uma boa estratégia de ordenamento é incorporar um conjunto de rela-ções em materiais duráveis” (LAW, 2006, p. 8), uma vez que uma rede estável é aquela incorporada e performada por uma faixa de materiais duráveis. Porém, as formas de materiais duráveis mudam seus efeitos quando postas em novas redes e relações. Ou seja, sozinhas não são suficientes, elas precisam da intera-ção. Outra estratégia de ordenamento é a forma de agir à distância. Ela explora os processos de comunicação: a escrita, a comunicação eletrônica, métodos de representação, sistemas bancários etc. E é o explorado por Sennett em A corrosão do caráter quando fala das relações de trabalho, familiar, entre outras.

A tradução será “mais efetiva se ela antecipa as respostas e reações dos materiais a serem traduzidos” (LAW, 2006, p. 9). Eles tratam de centros de tradução como efeitos relacionais e exploram as condições e os materiais que geram esses efeitos e superam as resistências que os dissol-veriam. Segundo Latour, um dado elemento participa em vários proces-sos da rede, produzindo efeitos, mas mantendo-se imutável, ou seja, não alterando as suas características mediante o local onde atua. Contudo, a mobilidade suscita algumas questões, relacionadas aos problemas da instabilidade dos efeitos das relações.

John Law acredita que, o processo de tradução, para ser mais efe-tivo, deve antecipar as respostas e as reações dos materiais que irão ser traduzidos. Para isso, recorre-se aos centros de tradução, numa tentativa de

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planejar e prever esses mesmos comportamentos, “controlando” e atuando à distância sobre os diversos acontecimentos, promovendo uma ordenação e estabilização dos elementos na rede.

Neste ponto pode-se encontrar uma semelhança com o método empre-gado por Vera Giangrande no Grupo Pão de açúcar2, no qual era ombudsman. Ela no texto explorou as formas do Relações Públicas trabalhar com o público, no que diz respeito, principalmente, à busca do problema (ação ativa) e anteci-pação do problema (ação proativa), o que como a Teoria Ator-Rede se distancia do funcionalismo ou mesmo do humanista radical que reduzem o seu funcio-namento e polariza a ação do profissional, como se o mundo fosse regido dessa forma – que apoiado na teoria dos sistemas complexos e TAR observa-se que não é a regra, mas a exceção que está fadada a se tornar mais escassa.

Uma organização pode ser vista como um conjunto de estratégias (ges-tão, empreendimento, vocação e visão), que operam para gerar complexas con-figurações de durabilidade, mobilidade espacial, sistemas de representação e calculabilidade. Configurações essas que tem o efeito de gerar as assimetrias centro-periferia e as hierarquias características das organizações mais formais. No entanto, vale ressaltar que uma organização não é só isso, é muito mais, ela é composta pelas pessoas que trabalham nela, investem, compram seus produ-tos, fornecem suas matérias-prima, entre tantas outras pessoas.

RelaçãO entRe a teORia atOR-Rede e Os paRadigmas de Rp

Percebe-se, então, que utilizar a TAR para analisar e compreender as organizações é uma alternativa viável. Assim, Alcadipai e Tureta afirmam:

Lowe (2001) argumenta que a TAR proporciona um modo de en-tender como as organizações funcionam, sem precisar empregar os imperativos da agência humana ou estrutural como instrumentos de explicação. Essa abordagem representa, assim, uma poderosa ferramen-ta capaz de revelar o “mistério” das redes heterogêneas que compõem as organizações e seus diferentes aspectos, promovendo maior aber-tura para análises e críticas. Sua utilização, nesse campo, sinaliza uma mudança de foco: de uma ênfase nas organizações formal-funcional para o estudo das práticas e processos de organizar. Na verdade, a TAR deixa claro que as organizações não explicam fenômenos, são elas que precisam ser explicadas em maiores detalhes (CZARNIAWSKA, 2006 apud ALCADIPAI e TURETA, 2009, p.656).

Diferente do que se imagina ao estudar os paradigmas de relações públicas, as organizações não precisam “escolher” em qual das quatro opções devem se en-caixar. Dessa forma, pode-se dizer que a Teoria Ator Rede sinaliza que a rigidez em uma das opções não é o caminho para se obter o tal “sucesso organizacional”.

Dentre as diferentes possibilidades de estudos sob a égide da TAR para analisar o fenômeno organizacional (...), uma opção seria investigar or-ganizações não como existentes de forma independentes e dotadas de fronteiras claras, que podem ser estudadas em diferentes níveis de aná-lise definidos antes da pesquisa começar – postura adotada pela grande

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maioria das pesquisas que são resultados de estabilizações frágeis de múltiplos processos e fluxos, cujas fronteiras não são claras e cujos níveis de análise não existem a princípio (ALCADIPAI e TURETA, 2009, p.656-657).

Desta forma, Law acredita que essa ótica pode ajudar ao representar o “fenômeno organizacional” como “único, incerto e complexo” apresentan-do o que há de mais singular em cada organização que está sob análise, ao contrário de “forçar padrões e moldes teóricos pré-estabelecidos”; o que pro-porciona uma organização construída com “estruturas rígidas e semelhantes”. Através da TAR, cada organização é única e específica e só pode ser entendida através da prática em cada situação e suas particularidades (LAW, 2004 apud ALCACIPAI e TURETA, 2009, p. 656-657).

Assim, não seria errado utilizar os paradigmas como ponto de partida para estudos e entendimentos ou até mesmo construção de estratégias nas or-ganizações, entretanto não se pode esquecer que maximizá-las é ignorar que a estrutura de uma organização envolve elementos sociais e materiais, ou seja, uma rede heterogenia.

Nesse sentido, o profissional de Relações Públicas precisa estar atento ao desafio de que não há uma organização favorecida de fronteiras definidas quando o processo organizativo acontece de forma relativa para um mesmo objetivo. Ao contrário disso, uma organização é algo “extremamente complexo e multifacetado”, que resulta de vários e diferentes elementos que, muitas vezes, não possuem lógica entre si, ainda que mantenham certas características em comum. Assim sendo, uma mesma “organização pode ser organizada de inú-meras formas ao mesmo tempo, sendo que algumas vezes estas formas coinci-dem enquanto em outras disputam e competem. Suas fronteiras são claramen-te delimitadas, mas são fluídas.” (ALCADIPAI e TURETA, 2009, p. 657).

Logo, a teoria ator-rede se configura como uma sociologia que se relaciona com processos que têm como elementos os agentes, as organizações e as máqui-nas e suas relações de interação. Todos eles seriam suficientes para explicar o mo-tivo pelos quais as organizações são do modo que são e não de maneira diferente. Portanto, não há hierarquização de forma natural; e se uma “organização tiver uma estrutura hierárquica, então a TAR pretende analisar como é que o processo de implementação desta hierarquia ocorreu” (CORREIA, 2001, p.8).

Desta forma, fica evidente que uma organização surgirá ou permanecerá no cenário do mercado enquanto as relações que a compõem não mudarem de forma. Ou seja, ela é efeito de um arranjo estável ou rede de relação e somente existe dentro dessa rede. A TAR procura solucionar a questão de como algumas associações permanecem imutáveis e dominantes enquanto outras se desfazem e fracassam. Uma organização é composta por diferentes elementos, como exe-cutivos, seguranças, fios elétricos, computadores, rede de telefone etc. O que transparece estabilidade é a forma de articulação entre esses elementos, humanas e não-humanas, em torno e um objetivo comum para determinado momento.

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Outro aspecto a ser considerado “é que todos os elementos, ou todos os actores, de uma organização, só existem em função dos outros” (CORREIA, 2001, p.4), ou seja, não há realidades separadas; não há humanos e não--humanos de formas distintas. “Tudo o que existe são actores, ou melhor, actants. E todos os actants são “redes” ou, e, efeitos de “redes” constituídas por materiais heterogéneos.” (Ibid., p.4).

Diferente da visão padrão, em que o macro influencia o micro, para a teoria ator-rede, macro e micro são performados nas situações do cotidiano, são consequências da relação das redes de atores, enfim, por essa perspectiva, não se pode afirmar que as pessoas localizadas em micro espaços são sempre influenciadas por macro estruturas.

A tradução é o processo pelo qual diferentes atores partilham um objetivo em comum e constroem uma rede de relações a fim de tal ob-jetivo seja alcançado. O processo de tradução pode ser entendido como composto por quatro diferentes momentos (problematização, interesse, envolvimento e mobilidade de aliados), durante os quais é negociada a identidade dos atores. A ideia de tradução está intimamente ligada à no-ção de poder, considerando tais relações de poder nada mais do que a descrição da maneira como os atores se associam e são levados a perma-necerem leais às alianças estabelecidas.

Para a teoria ator-rede, o poder não é um conjunto de causas, mas de efeito. A noção de poder esta relacionada com a forma que as relações de poder são estabelecidas entre pontos que estão geograficamente distantes. A ideia principal, é que para este tipo de controle seja estabelecido é necessário que uma rede de relações esteja em funcionamento e isso somente é possível por meio da acumulação de informações a respeito daquilo que se quer dominar.

Portanto, a teoria ator-rede, não considera organizações como enti-dades estáveis, mas como arranjo de redes heterogêneas que estão em cons-tante processo de alteração e mudança, e encara a realidade como efeitos dessas redes heterogêneas, considerando que nada é fixo ou irreversível, mas que as organizações somente existem por causa das relações que esta-belecem uma com as outras.

Os pontos levantados, por esta teoria, como ditos durante o texto, se aproximam bastante com o que Fátima Regis e Fernando Gonçalves traba-lham no artigo “Paradigmas de relações públicas: contribuições da teoria da complexidade para se pensar a comunicação interna nas organizações” e que se relaciona com o “paradigma da complexidade” proposto por eles, uma vez que diz que as organizações não podem agir como se fossem uma ilha. Elas precisam ter relações diversas para se manter no mercado. E o profissional de Relações Públicas não pode manter uma atitude reativa ou mesmo polarizada, ele tem que transitar pelos “diversos mundos”, mesmo que não se possa dizer que os paradigmas, funcionalista e humanista, sejam totalmente incorretos, há pontos que podem ser usados e são muito úteis. O importante é que o RP te-nha uma visão de processo crítica e analítica ao invés da mera aplicação de téc-nica que limita a atuação e impede a transformação no modo de se relacionar.

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cOnsideRações finais

Como já abordado no início do texto, o que caracteriza essa teoria é a sua heterogeneidade e a ideia que as relações sociais e a constituição de sistemas se dão através de interações entre partes distintas. Interação humano/não-huma-no que forma redes sociotecnicas.

O que pesquisadores como Fátima Regis, Fernando Gonçalves, Steven Johnson, Bruno Latour e John Law não estão longe da realidade ou mesmo restrito às organizações e o que Richard Sennett e Vera Giangrande escreveram mostra de forma prática os desafios dos profissionais de Relações Públicas e muitos outros que precisam entender as necessidades que emergem e são resol-vidas pela iniciativa bottom-up e não de forma top-down como muitas pessoas acreditam ser o padrão, mas representa a exceção.

Tal exceção pode ser observada na auto-organização de Manchester onde Johnson descreve, através do que Engels registrou, “como é difícil pensar em modelos de auto-organização, imaginar um mundo sem líderes” (JOHNSON, 2003, p. 26), mas Letícia Freire em seu texto, que fala sobre o pensamento do sociólogo francês Bruno Latour, apresenta a abordagem da Teoria Ator-Rede que enfatiza “uma rede de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede, mas composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanima-dos conectados e agenciados” (FREIRE, 2006, p. 56).

É possível usar o que Johnson falou a respeito da cidade para a empresa. Pode-se dizer que esta como aquela é uma máquina de ampliar padrões: seus setores “são uma forma de medir e expressar o comportamento repetitivo de coletividades maiores” (JOHNSON, 2003, p. 29) e pequenas alterações, em qualquer setor, podem se fazer sentir na organização como um todo, e segun-do Regis e Gonçalves “o modelo da auto-organização é um modelo em que o comportamento observável em plano macro emerge a partir de interações entre os elementos simples nos níveis inferiores” (REGIS & GONÇALVES, 2009, p. 77). É nesse ponto, mais uma vez, que fica evidente a relação entre os “sistemas complexos auto-organizados” e a “teoria ator-rede”.

É possível usar o que Johnson falou a respeito da cidade para a empresa. Pode-se dizer que esta como aquela é uma máquina de ampliar padrões: seus setores “são uma forma de medir e expressar o comportamento repetitivo de coletividades maiores” (JOHNSON, 2003, p. 29) e pequenas alterações, em qualquer setor, podem se fazer sentir na organização como um todo, e segun-do Regis e Gonçalves “o modelo da auto-organização é um modelo em que o comportamento observável em plano macro emerge a partir de interações entre os elementos simples nos níveis inferiores” (REGIS & GONÇALVES, 2009, p. 77). É nesse ponto, mais uma vez, que fica evidente a relação entre os “sistemas complexos auto-organizados” e a “teoria ator-rede”.

Enfim, a aliança entre humanos e não-humanos ou resolução de um problema com os palpites de todos os níveis é o que representa o paradigma mais completo do momento. Mesmo assim, vale ressaltar que, não é preciso descartar a contribuição dos paradigmas funcionalista, humanista radical e outros, mas ponderar sobre o que é válido ou não em determinada situação.

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RefeRências bibliOgRáficas

LAW, John. Notas sobre a Teoria do Ator-Rede: ordenamento, estratégia, e heteroge-neidade. Tradução de Fernando Manso. Rio de Janeiro: COMUM, 2006.

FREIRE, Leticia de Luna. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Rio de Janeiro: COMUM, 2006.

JOHNSON, Steven. Emergência – a vida integrada de formigas, cérebros, cida-des e softwares. Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Record Rio, 1999.

REGIS, Fátima; GONÇALVES, Fernando. Paradigmas de relações públicas: contribuiçõeseditora da teoria da complexidade para se pensar a comunicação in-terna nas organizações. In: Por dentro da comunicação interna – Tendências, re-flexões e ferramentas. Charbelly Estrella, Ricardo Benevides e Ricardo Ferreira Freitas (orgs). Curitiba: Editora Champagnat, 2009.

ALCADIPANI, Rafael; TURETA, César. Teoria Ator-Rede e análise organizacio-nal: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Salvador, v.16 - n.51, p. 647-664 - Outubro/Dezembro – 2009. Disponível em <www.revistaoes.ufba.br>.

CORREIA, Rui Pedro F. Da S. Discuta o contributo da teoria actor-network para o conceito de organização. Fundamentos de Gestão, Mestrado em Gestão de Informação, 2001.

GARCIA, Janaína Renata; MINUZZI, Josiane. As tarefas sob a luz das metá-foras das organizações de Morgan. XII SIMPEP - Bauru, SP, Brasil, 07 a 09 de Novembro de 2005.

CASTRO, Daniele Pires de. Conservadorismo ou revolução: as relações públicas segundo seus paradigmas teóricos. Monografia, 2007.

nOtas

1 Latour, segundo Letícia Freire, afirma que “o conceito de rede da TAR não deve ser confundido com o objeto a ser descrito, que é sempre também um ator em rela-ção. Uma rede de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede, mas composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conecta-dos, agenciados. Ela é simultaneamente um ator, cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar seus componentes” (MORAES, 2002 apud FREIRE, 2006, p. 56).

2 Giangrande explora seu trabalho de relações públicas no Supermercado Pão de Açúcar, e expõe seus métodos de trabalho em detrimento de outros que são muito utilizados por outros profissionais de RP no texto “Em defesa do consumidor” pu-blicado na Revista de Comunicação, em 1995.

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ResumoFalar do futuro do cinema é algo arriscado. Devemos compreender que vivemos em tempos de transformação, onde as tecnologias digitais renovam antigas formas e constroem novas possibilidades para exibição. Tecnologias do passado encontram neste tornado de modificações uma forma de retornar repaginadas tecnologicamente. Este é o caso do sistema 3D digital.Palavras-chave: Cinema digital; 3D digital; 3D estereoscópico.

AbstractTalking about the future of filmmaking is risky. We understand that we live in times of transformation, where digital technologies renew old ways and build new opportunities for display. Technologies of the past are made of changes in a way to return repaginate technologically. This is the case of 3D digital system.Keywords: Digital Cinema; 3D Digital; Stereoscopic 3D.

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O Renascimento do 3dRebirth of 3d

Eduardo Pires Christofoli Mestre em Comunicação Social pela PUC-RS, Graduado em Produção

Audiovisual – Cinema e Vídeo pela PUC-RS e Produtor Audiovisual.

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intROduçãO

Podemos dizer que tudo começou com uma pequena experiência do di-retor Eric Brevig, ao lançar o filme Viagem ao centro da Terra (Journey to the center of the Earth, 2008). Este foi o primeiro filme lançado com a nova tec-nologia 3D digital. O padrinho de Eric era o desenvolvedor do que podemos chamar de um novo marco tecnológico do cinema, James Cameron. O 3D digital encontrou, nos “experimentos ‘esquecidos’ (mas hoje relembrados) das tecnologias da imagem” (FELINTO, 2006), um novo caminho, trazendo a possibilidade de um retorno ao passado e um vislumbre para o futuro.

A proliferação de novas salas de cinema 3D deve-se ao estrondoso suces-so de Avatar (Avatar, 2009), que o diretor James Cameron almejou durante 14 anos. O filme demorou tanto tempo para ser produzido porque seu diretor considerava que não havia tecnologia suficiente para produção e finalização do longa. A qualidade das imagens e o sentido de profundidade em 3D oferecem ao espectador uma sensação imersiva, que não encontra paralelo em nenhuma experiência anterior. O resultado é expressivo em números. No Brasil, o filme levou às salas de exibição, aproximadamente, 9,1 milhões de pessoas, das quais 4.224.928 pessoas somente nas salas 3D.

Avatar é um marco da era 3D, afirma Luiz Gonzaga de Luca – espe-cialista nas questões de transformações tecnológicas no cinema – porque cria uma nova linguagem. Antes da superprodução de James Cameron, havia fil-mes com efeito 3D – principalmente animações –, com cenas em que um objeto é arremessado na direção da plateia. Avatar vai muito além, ao criar um universo próprio, envolvido, que leva o espectador a se sentir dentro do filme. Erick Felinto (2010), analisando as possibilidades e complexidades desta obra cinematográfica para a história do cinema, através da produção de imagens digitais, destaca a pretensão de se imaginar um futuro para o cinema a partir desta tecnologia. “Como resultado do enorme êxito do filme e de sua quali-dade técnica, já se tornou lugar-comum afirmar que o futuro do cinema está no efeito 3D” (FELINTO, 2010, p. 36). A partir deste sucesso, os estúdios começaram uma produção de lançamentos no formato.

Por que falar de produção de lançamentos e não de filmes? Esta ques-tão vem do fato de poucos filmes de ficção lançados que tenham se utilizado da mesma tecnologia de Avatar. Um exemplo recente é Santuário (Sanctum, 2011), dirigido por Alister Grierson, apadrinhado por Cameron. Há outros em produção, porém todos os longas metragens lançados posteriormente pas-saram por processos de pós-produção, onde foi realizada uma conversão para o formato 3D. A conversão é uma espécie de trapaça. Enquanto filmes como Avatar são realizados em 3D estereoscópico desde suas filmagens, com câme-ras especiais , os novos filmes passam por processo de conversão realizado na pós-produção, com o longa metragem já montado. O custo da conversão (cerca de US$ 5 milhões por filme) é bem mais baixo do que o 3D de ponta a ponta.

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Em entrevista à matriz da MTV em 2010, antes do Oscar, James Cameron criticou Hollywood em relação à atual discussão do 3D filmado contra o 3D convertido na pós-produção, dizendo que é típico dos estúdios de Hollywood cometer esse tipo erro. “Nós fizemos um filme pensado em 3D e rodado em 3D, e eles assumem que o sucesso dele significa que eles podem pe-gar todos os seus filmes e convertê-los para 3D em semanas”. O diretor ainda foi enfático ao não concordar com o atual processo de conversão. “Não é assim que se faz. Se você quer fazer um filme em 3D, faça-o em 3D!”2.

Grande aposta de Hollywood para levar mais público ao cinema e au-mentar a arrecadação – já que os ingressos são mais caros –, o 3D também repagina sucessos do passado. O próprio James Cameron já prepara a versão tridimensional de Titanic (Titanic, 1997) e George Lucas já anunciou que está convertendo toda a saga Star Wars e deve começar a relançá-la em 2011, sendo um filme por ano. Porém, todo cuidado é pouco para que não se cometam erros e estas “novas” versões não se transformem em grandes fracassos, como foi o caso do filme Fúria de Titãs (Clash of the Titans, 2010).

Porém, o cinema 3D é um processo antigo, que data de meados da dé-cada de 1910, onde já se assistiam às primeiras experiências cinematográficas no formato. Ao fim do cinema mudo, 200 diferentes sistemas estereoscópi-cos haviam sido testados. Nestas experiências, eram projetadas duas películas na mesma velocidade, em dois projetores sincronizados por um eixo central. Através de óculos com uma lente cyan e outra vermelha, obtinha-se uma ima-gem com volume, ocasionando o efeito de tridimensionalidade.

Houve uma popularidade desta técnica durante os anos 50, principal-mente na produção de filmes de horror. Mas logo, por sua precariedade, caiu no esquecimento. Com o advento das tecnologias digitais, surge o novo 3D, este agora digital. Erick Felinto, ao comentar sobre o poder do cinema digital, lembra-nos do poder da renovação proporcionada pela tecnologia, ao afirmar “do mesmo modo, como já se sugeriu, que toda nova mídia se apropria e recon-textualiza as mídias anteriores [...], encontra[ndo] o mais antigo no que deveria ser o mais novo (tecnologias informacionais)”. (FELINTO, 2006, 422-423).

Portanto, o 3D digital nada mais é do que uma repaginação ou renovação de uma tecnologia analógica por meios digitais. Ele traz consigo o conceito de re-invenção do cinema pelo cinema. Não há uma substituição do modelo analó-gico pelo modelo digital. “A promessa central da tecnologia, por mais improvável que soe, tem sido sempre a da restauração de um estado perdido” (FELINTO, 2010). Se, no início, o combate era contra a recém-nascida televisão, hoje “os vilões” são o DVD, o home theater e a pirataria, sendo que o 3D retorna com a mesma missão de antes: fazer o público sair de casa e ir ao cinema.

A tecnologia 3D digital também utiliza imagens para enganar a visão do espectador. Porém, em vez de usar cores para filtrar as imagens em cada olho, a maioria dos sistemas utiliza a polarização. Lentes polarizadas filtram

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apenas ondas de luz, que são alinhadas na mesma direção. Há a utilização de um par de óculos 3-D, no qual cada lente é polarizada de forma diferente. A tela é desenvolvida para manter a polarização correta quando a luz do projetor é refletida. Nos filmes que utilizam essa tecnologia, em vez de um amontoado de imagens vermelhas e verdes, as imagens tornam-se um pouco embaçadas quando vistas sem os óculos.

Porém, há uma questão importante, ressaltada por Marcelo Cajueiro em sua reportagem 3D ou não 3D para a revista Filme Cultura. Ele afirma que o digital já era uma realidade no país há alguns anos, com a exibição de longas independentes brasileiros e estrangeiros no circuito alternativo da RAIN, a que se seguiu o lança-mento dos primeiros filmes de Hollywood com efeitos em 3D. “Foi o advento de Avatar, em dezembro de 2009, que levou muitos a profetizar que, em alguns anos, todos os filmes serão em 3D digital” (CAJUEIRO, 2010, p. 25).

Em Avatar, houve um processo de pré-produção, todo bancado pela Fox, com desenvolvimento de design e tecnologia, que custou 10 milhões de dó-lares e levou cerca de um ano para ficar pronto. Para entendermos o que isso representa, é só analisarmos o caso de Distrito 9, um filme de baixo orçamento do mesmo estúdio, que fechou seu orçamento final em 30 milhões de dólares. Porém, este investimento tem justificativa, já que o cinema norte-americano está apostando todas as suas fichas no cinema estereoscópico como última isca para trazer o consumidor da pequena para grande sala3.

De Luca analisa a questão de que “as projeções 3D atraem público maior, ajudando a pagar o equipamento digital, que necessita ser trocado para as futuras projeções digitais 2D no padrão DCI” (DE LUCA, 2009, p. 147-148). O 3D digital pode ser considerado uma proposição tecnológica que pode salvar alguns projetos dos grandes estúdios, já que atrai um público de curiosos e, com seu ingresso mais caro, aumenta as receitas dos filmes. Podemos, assim, compre-ender que esta ação pode ser considerada o contra-ataque dos grandes estúdios no combate a diminuição de público nas salas de cinema, já que, com o 3D, “demonstrou-se que as rendas do mesmo filme, quando lançado simultanea-mente no formato tridimensional e no tradicional, resultavam em bilheterias das primeiras semanas até três vezes maiores na nova tecnologia” (DE LUCA, 2009, p. 156). Além disso, a permanência em cartaz é muito maior, pois a baixa oferta de salas e de conteúdos faz com que os filmes que possuam este formato fiquem um período duas vezes maior que os formatos tradicionais.

Ao permitir uma multiplicação de formatos, as tecnologias digitais trouxeram como efeito a inexistência de uma única solução – ou seja, ainda não há a existência de um padrão. O formato 3D digital não é exceção a este problema. Há cerca de 2.500 salas de cinema digitais com sistemas 3D no mundo, sendo aproximadamen-te 109 salas instaladas no Brasil. Os sistemas operantes nestas salas variam entre o REAL D e o DOLBY 3D, que utilizam sistemas passivos4; e o XPAND, que oferece um sistema ativo de projeção e recepção dos óculos pelo público.

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De Luca ainda ressalta que a escolha pelo padrão de exibição 3D depende de:

“[...] fatores indiretos como custo de instalação e manutenção, as facilidades operacionais, a capacidade de atualização dos softwares, o suporte técnico aos cinemas, o desgaste e o financiamento dos equi-pamentos que determinarão a escolha pelos circuitos exibidores. Os critérios de adoção até o presente momento estão mais ligados a fatores de oferta e das vantagens que cada exibidor oferece.” (DE LUCA, 2009, p. 171).

James Cameron, hoje tido como “o pai moderno” da renovação do 3D, ressaltou, em uma palestra sobre o futuro do cinema na Comic-Con6 2009, realizada por ele e Peter Jackson, diretor da trilogia O Senhor dos Anéis7, que as pessoas precisam entender o 3D como um ecossistema. Ele ainda ressaltou, que a partir do momento em que existirem grandes filmes em 3D, mais gente vai se interessar em colocar projetores novos no mercado. Os desenvolvedores de blu-ray e televisores vão começar a desenvolver uma forma de as pessoas terem isso em casa. O caso do filme Avatar mostra como “[...] um filme pode ser ‘tradicional’ por sua escolha dos ambientes de exibição (a sala de cinema), mas tecnologicamente inovador pela elaboração das imagens que apresenta” (FELINTO, 2006, p. 422).

De Luca coloca outra questão importante: logo a televisão terá o efeito estereoscópico e o espectador terá acesso a este produto. “O 3D é um caminho óbvio. É muito difícil, é uma tecnologia complicada, mas é um caminho para se chegar”8, lembra o autor. Quando estes aparelhos estiverem no mercado, o cinema novamente terá que provar ter um diferencial. Os resultados dos testes do 3D para a televisão, tanto no Brasil quanto no exterior, são muito melhores do que os obtidos no cinema. Na opinião de De Luca, haverá uma evolução no processo, pois a televisão terá um 3D muito bom, e “vai ser muito difícil solu-cionar este nível de 3D no cinema, então, eu acho que o cinema, rapidamente, vai ter que desenvolver tecnologia de 3D sem os óculos”9.

Segundo calendário de estreias em 3D previstas para o Brasil no site Filme B, ainda estão previstos para o ano de 2011 vinte e quatro filmes no forma-to, além de ter estreado o primeiro longa brasileiro no formato Brasil Animado, de Mariana Caltabiano. Em 2012, estão registrados outros dezenove filmes na agenda de lançamentos. Analisando o caso do primeiro filme em 3D brasileiro, é interessante notar o processo de produção das imagens, onde, mais uma vez, a acessibilidade à tecnologia digital ajudou na produção do longa brasileiro.

Em um depoimento deixado no site da ABC , a diretora de fotografia Maritza Caneca contou a experiência da realização do primeiro longa brasileiro captado em 3D estereoscópico. Foram utilizadas duas câmeras Sony EX3, um rig da P+S Technik para até 15kg, um monitor 3D transvideo para alinhar as câmeras e verificar a separação do 3D, uma boa cabeça O’Connor e um jogo de tripés bem pesado. O sistema funciona com as duas câmeras fazendo o papel dos dois olhos humanos, com a vantagem de ser possível alterar a distância entre elas.

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A câmera de baixo, a vermelha, representa o olho esquerdo, e a de cima, a azul, representa o direito, como mostra a figura 1.

Figura 1 – Foto das câmeras Sony Ex3 usadas na produção de Longa 3d.

Fonte: Caneca, Maritza. Experiências com o primeira longa brasileiro captado em 3D esteroscópico. Disponível em: <http://www.abcine.org.br/artigos/?id=124&/experiencias-com-o-primeiro-longa-brasileiro-captado-em-3-d-estereoscopico>.

Além de Brasil animado, o cinema nacional está realizando outros projetos em 3D. O terceiro longa da indiazinha Tainá 3 já se tornou Tainá 3D. Walkiria Barbosa, da Total Filmes, pretende fazer em 3D o longa O golpe, um thriller diri-gido por Marcio Garcia e com o roteiro original de Carol Castro, com o mesmo orçamento de R$ 7,8 milhões previsto para o filme em película. “Há quem diga que o custo sobe entre 30% e 50%, [...] o orçamento de produção do filme [Tainá 3], cujas filmagens acontece[ram] de julho a agosto, dobraria de R$ 6 milhões para R$ 12 milhões” (CAJUEIRO, 2010, p. 25). Podemos notar que o preço varia e vai depender da estratégia adotada em cada projeto. Além de Tainá 3D, a Downtown Filmes irá lançar o longa em 3D Quem tem medo de fantasma, de Cris D’Amato, um filme infanto-juvenil produzido por Júlio Uchoa.

Imagina-se que a procura do real – que, primeiramente, deu movimento ao registro fotográfico, graças à persistência da imagem na retina, depois som para estas imagens em movimento e, mais tarde, cor – continua. Restava ainda dar-lhe profundidade e, eventualmente, a ilusão de volume, através de uma sepa-ração da imagem em 3 camadas. Um dos principais problemas das exibições 3D é a perda de luminosidade, tanto na polarização das imagens quanto nos óculos. De Luca coloca que “no caso da REAL D, a perda é superior a 75% da luz gerada no projetor” (DE LUCA, 2009, p. 153).

Porém, há um consenso de que o público brasileiro está disposto a sair de casa e pagar mais para ver os filmes em 3D, sobretudo em se tratando de longas comerciais para os públicos infantis (animação) e jovem (aventu-ra, ação e, possivelmente, terror). Outro argumento em favor dos filmes em 3D é a diminuição dos efeitos da pirataria, uma vez que as telas de TV e

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computador não estão, ainda, preparadas para reproduzir a experiência visu-al das salas de cinema. De Luca ainda reforça:

“Por que se investiu tanto no 3D, porque seria o grande diferencial, pois não teria pirataria. Eu assisti palestras, que diziam, que o 3D não chegaria ao vídeo, ao DVD, antes de 2015. Sendo estas informações divulgadas a dois, três anos atrás. [...] Já estou começando a ouvir com muita freqüência a questão do 3D sem óculos.”11

Ao analisar este tema, podemos compreender que o 3D digital é parte da reinvenção do cinema pelas tecnologias digitais. Assim como O cantor de jazz (The Jazz Singer), em 1929, foi pioneiro no uso do som; O mágico de Oz (The wizard of Oz), em 1939, mostrou o potencial uso das cores; Avatar, em 2009, revitalizou o processo do cinema 3D. Seja na existência de opiniões que apontam que a tecnologia é apenas um modismo passageiro, sejam outras que profetizam sobre o futuro do cinema, sabemos que o 3D digital é o presente da renovação tecnológica e um grande aliado da transição digital.

nOtas

1 Câmera Fusion foi desenvolvida pela empresa de Cameron e capta imagens em alta qualidade e 3D estereoscópico.

2 O trecho desta entrevista foi extraído do site Omelete, que publicou uma matéria com comentários do diretor sobre a questão do cinema 3D, da continuação de Avatar e da parceria que está consolidando com o diretor Marc Webb para realização do próximo Homem-aranha. Sobre este tema acessar o link: <http://www.omelete.com.br/cinema/james-cameron-fala-de-avatar-2-homem-aranha-exterminador/>.

3 A pequena sala fará referência às salas de exibição caseiras, onde televisores de LCD, ou plasma, junto com poderosos Home Theater’s tentam imitar a sensação de uma sala de exibição tradicional, a grande sala.

4 Neste sistema a exibição é realizada em 48 quadros por segundo, velocidade mínima para que seja possível dar o perfeito efeito de estereoscopia, expondo, contudo, três fotogramas sequenciais pelo processo triple-flash. Desta forma, tem uma projeção de 48 quadros, sendo que cada um é exposto três vezes, totalizando 144 quadros por segundo.

5 O princípio ativo é “a separação e a sobreposição das imagens” (DE LUCA, 2009, p.164), ou seja, não constituem uma “trapaça” para o cérebro humano. A imagem é exposta na mesma velocidade de seus concorrentes em tripla exposição (triple--flash), porém a observação é alternada pelos óculos, que em seu interior abrem e fecham alternando a entrada de luz.

6 A San Diego Comic-Con, Comic-Con International: San Diego ou apenas Comic-Con é um evento que ocorre durante quatro dias no verão em São Diego na Califórnia (EUA). Originalmente, o evento abordava revistas em quadrinhos conhe-cidas como comics, filmes e televisão. Porém, com o passar dos anos a conveção se expandiu e começou a incluir alguns elementos da cultura pop como anime, mangá, animação, brinquedos, video games e outros.

7 A trilogia de filmes dirigida pelo diretor Peter Jackson foi lançada em três partes em anos consecutivos, obedecendo à seguinte ordem: A sociedade do anel (The Fellowship of the Ring) em 2001, As duas torres (The Two Towers) em 2002 e O retorno do rei (The Return of the King) em 2003.

8 Entrevista concedida, por telefone, ao autor em 25 de setembro de 2010.

9 Entrevista concedida, por telefone, ao autor em 25 de setembro de 2010.

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RefeRências bibliOgRáficas

CAJUEIRO, Marcelo. 3D ou não 3D, Revista Filme Cultura, n. 50, 2010. Rio de Janeiro.

CANECA, Maritza. Experiências com o primeira longa brasileiro cap-tado em 3D esteroscópico. Disponível em: <http://www.abcine.org.br/artigos/?id=124&/experiencias-com-o-primeiro-longa-brasileiro-captado--em-3-d-estereoscopico>.

FELINTO, Erick. Cinema e tecnologias digitais. MASCARELLO, Fernando (Org.). Histórias do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006.

________ e BENTES, Ivana. Avatar: o futuro do cinema e das tecnologias digitais. Porto Alegre: Sulina, 2010.

LUCA, Luiz Gonzaga Assis de. A hora do cinema digital: a democratização e globalização do audiovisual. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2009.

LUCA, Luiz Gonzaga de Assis de. Questões sobre as transformações do ci-nema contemporâneo. Entrevista concedida, por telefone, a Eduardo Pires Christofoli. Porto Alegre, 25 de setembro de 2010.

filmes citadOs

Avatar (Avatar) – James Cameron, 2009.

Brasil animado – Mariana Caltabiano, 2011.

Clash of Titans (Fúria de Titãs) – Louis Leterrier, 2010.

Distric 9 (Distrito 9) – Neil Blomkamp, 2009.

Journey to the center of the Earth (Viagem ao centro da Terra) – Eric Brevig, 2008.

O golpe – Marcio Garcia, sem previsão de estreia.

Quem tem medo de fantasma – Cris D’Amato, 2011.

Tainá 3D – Rosane Svartmann, 2011.

Titanic (Titanic) – James Cameron, 1997.

The jazz singer (O cantor de jazz) – Alan Crosland, 1929.

The wizard of Oz (O mágico de Oz) – Victor Fleming, 1939.

10 Associação Brasileira de Cinematografia.

11 Entrevista concedida, por telefone, ao autor em 25 de setembro de 2010.