Revista do Ministério Público do Estado de Goiás · a avaliação psicológica no contexto da...

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Ministério Público do Estado de Goiás Procuradoria-Geral de Justiça Revista do Ministério Público do Estado de Goiás Goiânia 2017

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Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria-Geral de Justiça

Revista

do Ministério Público

do Estado de Goiás

Goiânia2017

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apresentação................................................................

Direito internaCionaL

Corte interamericana de Direitos Humanos e des-monetarização da responsabilidade civil ...................aDriano pessoa Da Costa / Gina ViDaL MarCÍLio poMpeU

Direito CoLetiVo

o princípio da solidariedade frente aos fenômenos dalitigação repetitiva (repeat players) e apatia racional(rational apathy)...........................................................aLeXanDre pereira Bonna

Judicialização da educação infantil, o trabalho dosprofessores e a qualidade da educação: relaçõespossíveis......................................................................CarLos roBerto JaMiL CUrY / LUiZ antonio MiGUeL Ferreira

Direito CriMinaL

Direito penal perigoso..................................................HaroLDo Caetano

agente infiltrado virtual (Lei n. 13.441/17): primeirasimpressões ..................................................................FLÁVio CarDoso pereira

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SUMÁRIO

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tribunal do Júri: conhecimento de ofício da reincidênciae da menoridade sem afronta à soberania do veredicto......FranCieLY ViCentini HerraDon

Direito CiViL

a legalidade da adoção intuitu personae............................peDro De MeLLo FLorentino

assUntos Gerais

a avaliação psicológica no contexto da alienação parental....MireLLa CaMarota piMenta

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Caros leitores,

É com muita satisfação que apresento esta edição da re-vista do Ministério público do estado de Goiás compilando as pro-duções selecionadas pelo Conselho editorial da escola superior eque compõem a primeira publicação do ano de 2017.

os oito artigos foram publicados nas duas versões (impressae eletrônica) e dialogam dentro das áreas do Direito: internacional,Coletivo, penal e Civil, bem como, em temática atual no contexto dosassuntos gerais.

estamos construindo uma nova formatação para esta publi-cação, que contemple, cada dia mais, as expectativas de ser umcanal de reflexão e fonte de pesquisa com maior visibilidade nomeio acadêmico, seguindo critérios de classificação segundo osestratos da Comissão Qualis de Direito da Coordenação de aper-feiçoamento de pessoal de nível superior (Capes).

esse percurso está sendo trilhado e sabemos que, pormeio das ricas contribuições dos integrantes do Mp de Goiás edemais colaboradores da comunidade jurídica, evoluiremos porcerto.

nossa proposta é de ser referência editorial para discus-sões qualificadas no meio jurídico, suplemento para nosso aper-feiçoamento funcional e elo acadêmico na perspectiva de buscar

APRESENTAÇÃO

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excelência em nosso aprendizado de traduzir em escrita, nossodirecionamento de reflexão e atuação.

Uma ótima leitura a todos!

Flávio Cardoso Pereira

promotor de Justiça

e Diretor da esMp-Go

Goiânia, Brasil, agosto de 2017.

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Adriano Pessoa da Costa*

Gina Vidal Marcílio Pompeu**

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS EDESMONETARIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

INTERAMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTSAND DEMONSTRATION OF CIVIL LIABILITY

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOSY DESMONETARIZACIÓN DE LA RESPONSABILIDAD CIVIL

Resumo:

A centralidade do ordenamento brasileiro repousa na pessoa hu-

mana. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva dos direitos fun-

damentais, força motriz do fenômeno da constitucionalização do

direito privado. No atual cenário, impõe-se uma reconfiguração fun-

cional da responsabilidade civil, na esteira do que já ocorre com ou-

tros institutos privatísticos - como o contrato, a família e a propriedade.

Este trabalho demonstra que, no panorama atual de interação entre

o direito privado e o direito constitucional, a técnica tradicional da re-

paração exclusivamente monetária deve ser repensada em prol de

mecanismos alternativos aptos a proporcionar um adequado ressar-

cimento do dano injusto. A metodologia de abordagem é analítica,

empírica e comparativa. Parte do estudo da teoria dos direitos fun-

damentais e sua projeção no direito privado, nomeadamente a res-

ponsabilidade civil. Avança para análise do quadro hodierno da

matéria no direito brasileiro e desenvolve a crítica ao paradigma mo-

netário de reparação de danos a partir de precedentes da Corte Inte-

ramericana de Direitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte,

marcantes para a promoção das liberdades civis no continente latino-

* Doutorando em Direito pela Universidade de Fortaleza, linha de pesquisa RelaçõesPrivadas. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, área de concentraçãoOrdem Jurídica Constitucional.Especialista em Direito Privado pela Universidade deFortaleza. Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Ceará. Gra-duado magna cum laude pela Universidade Federal do Ceará. Professor em tempointegral da Faculdade Farias Brito (FFB). Advogado e consultor Jurídico em Fortaleza.** Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora eProfessora do Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em DireitoConstitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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americano, costumam inovar na imposição de medidas que trans-

cendem a simples indenização em pecúnia. Ao final, clarifica-se a re-

levância jurisprudencial da CIDH para a edificação da

responsabilidade civil voltada à concretização da dignidade da pessoa

humana como valor jurídico supremo no Brasil e na América Latina.

Abstract:

The centrality of the Brazilian order rests on the human person. This

is reflected in the historical-evolutionary trajectory of fundamental

rights, the driving force of the phenomenon of the constitutionalization

of private law. In the current scenario, a functional reconfiguration of

civil liability is required, in the wake of what already happens with other

private institutes - such as contract, family and property. This paper

demonstrates that in the current context of interaction between private

law and constitutional law, the traditional technique of pure monetary

reparation must be rethought in favor of alternative mechanisms ca-

pable of providing adequate compensation for unfair damages. The

approach methodology is analytical, empirical and comparative. Part

of the study of the theory of fundamental rights and its projection in

private law, namely civil liability. It advances to analyze the current fra-

mework of the matter in Brazilian law and develops the critique of the

monetary paradigm of reparation of damages based on precedents

of the Inter-American Court of Human Rights (IACHR). The Court's

decisions, which are important for the promotion of civil liberties in the

Latin American continent, often innovate in the imposition of measures

that transcend the simple indemnity in pecunia. In the end, it clarifies

the jurisprudential relevance of the IACHR for the construction of civil

responsibility aimed at achieving the dignity of the human person as

a supreme legal value in Brazil and Latin America.

Resumen:

La centralidad del ordenamiento brasileño reposa en la persona

humana. Esto se refleja en la trayectoria histórico-evolutiva de los

derechos fundamentales, fuerza motriz del fenómeno de la consti-

tucionalización del derecho privado. En el actual escenario, se im-

pone una reconfiguración funcional de la responsabilidad civil, en

la estera de lo que ya ocurre con otros institutos privados, como el

contrato, la familia y la propiedad. Este trabajo demuestra que, en

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el panorama actual de interacción entre el derecho privado y el de-

recho constitucional, la técnica tradicional de la reparación exclusi-

vamente monetaria debe ser repensada en pro de mecanismos

alternativos aptos para proporcionar un adecuado resarcimiento

del daño injusto. La metodología de enfoque es analítica, empírica

y comparativa. Parte del estudio de la teoría de los derechos fun-

damentales y su proyección en el derecho privado, en particular la

responsabilidad civil. Avanza para analizar el cuadro actual de la

materia en el derecho brasileño y desarrolla la crítica al paradigma

monetario de reparación de daños a partir de precedentes de la

Corte Interamericana de Derechos Humanos (CIDH). Las decisio-

nes de la Corte, marcadas para la promoción de las libertades ci-

viles en el continente latinoamericano, suelen innovar en la

imposición de medidas que trascienden la simple indemnización

en pecunia. Al final, se aclara la relevancia jurisprudencial de la

CIDH para la edificación de la responsabilidad civil volcada a la

concreción de la dignidad de la persona humana como valor jurí-

dico supremo en Brasil y en América Latina.

Palavras-chave:

Direitos fundamentais, responsabilidade civil, desmonetarização,

Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Keywords:

Fundamental rights, civil liability, dismantling, Inter-American Court

of Human Rights.

Palabras clave:

Derechos fundamentales, responsabilidad civil, desmontaje, Corte

Interamericana de Derechos Humanos.

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INTRODUÇÃO

A centralidade axiológico-material dos sistemas internacio-nais de proteção dos direitos humanos e da Constituição Federal de1988 é a mesma: a tutela integral da pessoa humana em sua digni-dade. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva de expansão eafirmação dos direitos fundamentais, força motriz do fenômeno daconstitucionalização do direito privado. Essa caminhada teórica con-duz ao reconhecimento da reparação de danos como direito funda-mental e à reconfiguração funcional da responsabilidade civil, naesteira do que já ocorre com outros institutos privatísticos - como ocontrato, a família e a propriedade. Repensar essa província jurídica em função do indivíduo eassentir na fundamentalidade do direito ao adequado ressarcimentosão avanços que requerem o necessário reexame de um de seuselementos tradicionais, a saber, o modo por meio do qual o ofensordeverá indenizar integralmente a vítima. Entre nós, há muito predomina, tanto no plano teóricoquanto na aplicação pretoriana das leis, a técnica da reparação ex-clusivamente monetária. Esse modelo cria graves empecilhos à re-configuração do direito de danos na perspectiva civil-constitucional.O principal deles consiste no desprestígio à dimensão existencial doser humano, cuja violação muitas vezes não é compensável comsomas pecuniárias. De tudo isso decorre a necessidade de que outros fatoressejam tomados em conta no arbitramento da indenização. Elementoscomo a anormalidade do dano, a reconstrução completa do bem-estar psíquico da vítima, a repercussão social e a profilaxia da rein-cidência da conduta antijurídica passam a ser imprescindíveis parao adequado ressarcimento. Assim, mecanismos reparatórios alter-nativos devem ser concebidos e praticados, para além da simplescondenação em moeda corrente. A partir da premissa de que a jurisprudência desempenhapapel central no aprimoramento da responsabilidade civil, este tra-balho está focado em precedentes da Corte Interamericana de Di-reitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte são protagonistas dapromoção das liberdades civis e da solidificação dos valores demo-cráticos nos países da região. Não raro, transcendem a indenização

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em pecúnia e determinam, dentre outras, medidas como a adequa-ção legislativa, a implementação de políticas públicas e a designaçãohonrosa de equipamentos urbanos em nome das vítimas. Ao final, será demonstrado que as sentenças da CIDHpodem operar como farol a iluminar o caminho para a edificação deum aprimorado direito de danos, voltado à efetiva concretização dadignidade da pessoa humana como valor jurídico supremo no Brasile na América Latina.

Direito fundamental à reparação de danos

Vive-se hoje a “sociedade de risco”1, em que “tudo, ouquase tudo em direito, acaba em responsabilidade civil”, elevadaà condição de “espécie de estuário onde deságuam todas asáreas do direito - público e privado, contratual e extracontratual,material e processual” (MENEZES DIREITO; CAVALIERI FILHO,2007, p.35). Essa é também a sociedade dita “pós-moderna” dasnovas tecnologias, em que somos alvo de incessante bombar-deio de informações.

O ser humano, mais consciente de seus direitos, torna-semenos tolerante com abusos e atos ilícitos contra si perpetrados.Ano após ano, o número de ações indenizatórias aumenta e inau-ditas situações fáticas terminam por alcançar os tribunais2. Não édifícil chegar-se à conclusão de que esta é a era do direito de danos.

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1 BECK, Ulrich. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage, 1993. Nessanotável obra o autor analisa a chegada do que nomina como a “segunda moderni-dade” ou “modernidade reflexiva”, na qual a distribuição dos riscos não toma emconta as diferenças sociais, econômicas e geográficas como ocorria na “primeiramodernidade” (aquela decorrente das revoluções industriais e políticas que tiveramlugar na Europa a partir do século XVIII). Aponta, dentre os principais perigos domundo atual, os riscos ambientais, químicos, nucleares, genéticos e econômicos.Como cinco maiores processos sociais de potencial nocivo a ser enfrentados pelasociedade contemporânea, elenca: a globalização, a individualização, o desem-prego, a revolução dos gêneros e os riscos globais da crise ecológica e da turbu-lência dos mercados financeiros.2 Nesse contexto, sugere-se a leitura do texto de Nelson Konder acerca da proteçãoda privacidade (2013, p. 386). Em tempos de acentuada comunicação interpessoal,a manipulação inadequada de informações sobre a vida íntima ilustra à perfeiçãoos “novos danos” a que está sujeito o ser humano. Com efeito, a indevida divulgação

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Na tradição jurídica brasileira, a matéria se posicionacomo objeto de estudo da seara privatística, mais precisamentedo direito civil. A influência do Código de Napoleão foi decisivapara a solidificação de um cientificismo vigorosamente apegadoao cânone liberal-individualista-patrimonialista. Nessa linha depensamento, a lógica jurídica predominante na Europa oitocen-tista prestigiava a separação entre sociedade e Estado, assimcomo fazia todo sentido a summa divisio entre direito público edireito privado, haja vista o pleno protagonismo então represen-tado pela codificação civil nas relações jusprivadas – nas quaisoperava como “a verdadeira carta constitucional da sociedadeautossuficiente” (BILBAO UBILLOS, 1997, p. 237).

Segundo Konrad Hesse (1995, p. 69-70), o momento de-cisivo para a guinada dogmática que revolucionou as relaçõesentre o direito constitucional e o direito privado, bem como as ta-refas e funções de cada seara, foi o final da Primeira Guerra Mun-dial. A partir dali, o trato desses diferentes âmbitos jurídicospassou da justaposição e afastamento original a uma relação derecíproca complementaridade e independência3.

A toda evidência, as diretrizes privatísticas do passadonão se coadunam ou, quando muito, carecem de aperfeiçoa-mento diante da ordem jurídica constitucional vigente no Brasilpós-1988. Como se observa,

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de referências como a opção sexual, a ideologia política, a saúde físico-psíquica eas características genéticas da pessoa - os chamados dados sensíveis - têm grandeaptidão de nocividade ao livre desenvolvimento da personalidade. Por exemplo, noâmbito das relações de trabalho, os empregadores podem recusar funcionários maispropensos ao alcoolismo e ao déficit de atenção; no direito contratual, o acesso adados genéticos pode evidenciar propensão a certos males, como câncer, Parkinsone Alzheimer, fato capaz de tornar inviável a contratação do seguro-saúde.3 A seguir, complementa que o direito constitucional e o direito privado “aparecem comopartes necessárias de uma ordem jurídica unitária que se complementam, se apóiam ese condicionam. Nesse ordenamento integrado, o direito constitucional resulta de im-portância decisiva para o direito privado, e o direito privado de importância decisiva parao direito constitucional” (HESSE,1995, p. 81). Igualmente, Habermas (1984, p. 178)aponta o final da Primeira Grande Guerra como o marco temporal em que surgiu umacomplicada mistura de tipos que, de início, “foi registrada sob a rubrica publicização dodireito privado; mais tarde aprendeu-se a considerar o mesmo procedimento tambémsob o ponto de vista inverso, o da privatização do direito público”, até chegar-se ao qua-dro atual, em que “elementos do Direito Público e do Direito Privado se interpenetramaté a incognoscibilidade e a indissolubilidade”.

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O Direito Privado, assim ‘socializado’, é com certeza diverso do Di-reito Privado do Code Napoleón, que exauria a sua tutela, por umlado, no direito subjetivo (ou seja, sobretudo na propriedade) ouantes, no seu titular, e, por outro lado, na vontade individual, ou seja,no contrato. (GIORGIANI, 1998, p. 50).

Na modernidade, leciona Pietro Perlingieri (2002, p. 55),o direito civil não se apresenta em antítese ao direito público; éapenas um ramo que se justifica por razões didáticas e sistemá-ticas e que se conecta diretamente à vida dos cidadãos como ti-tulares de direitos fundamentais, oponíveis ao Estado e tambémaos particulares. Nesse enfoque, não existe contraposição entreprivado e público, na medida em que o próprio direito civil fazparte de um ordenamento unitário4.

Agora bem, não há outra província jurídica em que o pesodas elaborações pretorianas se faça sentir com tamanha intensi-dade quanto à responsabilidade civil, cuja trajetória, na célebremáxima de Louis Josserand (1941, p. 63), representa “a históriado triunfo da jurisprudência”5. Não obstante, no Brasil, o trato cien-tífico e forense das ações indenizatórias revela grave estagnaçãodogmática: seguem teorizadas pela doutrina e apreciadas pelostribunais na perspectiva exclusiva das pretensões individuais eresolvidas somente com amparo em critérios patrimonialistas.

Prevalece, como regra, uma resposta jurisdicional emque se prestigia o interesse particular/individual sobre o social/co-letivo. O foco repousa na resolução do caso sub judice, sem anecessária preocupação com uma adequada profilaxia judicialcapaz de evitar sua repetição por parte do ofensor. Nesse pano-rama, a responsabilidade civil paradoxalmente acaba por se dis-tanciar da reconstrução do direito privado à luz da Constituiçãode 1988 empreendida pela doutrina – o crescente teórico que seconvencionou nominar como “direito civil-constitucional”, no qual

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4 Nessa lógica, desaparece a noção de que temáticas como a responsabilidade civil, dehá muito reguladas somente pela legislação privada, seguem ainda blindadas à irradiaçãojusfundamental. Na sintética metáfora de Ingo Von Munch (1997, p. 33): “una vez des-monorado el dique que separaba el Derecho constitucional del Derecho privado, los de-rechos fundamentales se precipitaron como una cascada en el mar del Derecho privado”.5 Como salienta o autor francês, graças às cortes o direito de danos pôde evoluir com omínimo de intervenção legislativa, processo no qual o juiz “foi a alma do progresso jurí-dico, o artífice laborioso do direito novo contra as fórmulas velhas do direito tradicional”.

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a tutela da pessoa humana é alçada ao ponto mais elevado.Da mesma forma, o direito aquiliano isola-se do que

ocorreu com outros tradicionais institutos civilísticos. Isso porqueaté mesmo família, propriedade e contrato - os “três pilares” dodireito privado (FACCHINI NETO, 2006, p. 31) - ganham diferen-tes tons a partir de sua vinculação direta com a ordem constitu-cional, notadamente com os direitos fundamentais. Com efeito,não é difícil visualizar as transformações desses temas, precio-sos ao direito civil clássico, a partir do momento em que se dei-xaram influenciar pelos valores emanados da Constituição.

Cumpre lembrar que a propriedade deixou de ser um di-reito moldado na plataforma liberal e passou a ter indispensávelfunção social. Nesse viés, a família, antes hierarquizada, tornou-se igualitária em sua conformação interpessoal e democráticaquanto à origem, com o rompimento do paradigma matrimonialcomo única causa de surgimento do núcleo familiar. Já nas rela-ções contratuais, surgiram intervenções voltadas para o interessede categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se apreocupação com a justiça distributiva (RAMOS, 2000, p. 10-11).

Enquanto isso, o direito de danos segue no geral ape-gado à dogmática de tempos idos, fulcrada no trinômio conduta- nexo causal - dano6. Evoluir é preciso! A cláusula de aberturagrifada no art. 5º, §2º, da Constituição Federal de 1988 e as nor-mas dos arts. 5º, V, 5º, X, e 37, §6º, que àquela se alinham, sãoa chave para a compreensão de que à pessoa humana lesadaassiste o direito fundamental de ressarcimento7.

Nesse passo, já se pode observar que a responsabili-dade civil do século XXI adota nova feição. Encontra-se agora

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6 Seria incorreto afirmar que inexistiu qualquer evolução no plano da responsabilidadecivil. Exemplo disso se colhe dos atos lesivos cometidos por agentes estatais no exercíciodessa função. Enquanto no passado o assunto já foi tratado como incapaz de deflagraro dever ressarcitório, hoje a matéria nem mesmo exige a demonstração de culpa, nostermos do art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988. No mesmo diapasão, é nítidaa tendência à objetivização da responsabilidade aquiliana, como ferramenta capaz defacilitar o acesso da vítima à reparação devida.7 No constitucionalismo do novo século, poucos põem em dúvida a primazia axiológicados direitos fundamentais. Assim constatou Peter Häberle (1991, p. 261), ao afirmarque, em nossos dias, há “uma impressionante imagem de onipresença dos direitos fun-damentais no Estado constitucional”.

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iluminada pelos valores constitucionais e adaptada aos princípiosbásicos do direito civil-constitucional brasileiro8. Tem reafirmadoseu escopo de promover a existência digna do indivíduo, e paratanto se vale da recognição da fundamentalidade9 do direito à re-paração do dano e da projeção dos direitos fundamentais sobreas interações jurídico-privadas (“eficácia horizontal”)10.

A inadequação do paradigma monetarista à função social daresponsabilidade civil

O já referido processo de “constitucionalização do direitoprivado” - e, por conseguinte, de conversão da responsabilidade civile outras áreas civilísticas em “direito constitucional concretizado”-,não há de ser visto como algo passageiro; bem ao contrário, de

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8 Gustavo Tepedino (2006, p. 378), em conhecida passagem teórica, anuncia as pre-missas essenciais do direito civil constitucional: (i) o reconhecimento do direito como rea-lidade cultural, e não como resultado (rectius, submissão) da ordem econômica vigente:o direito tem uma intrínseca função promocional e não apenas uma função mantenedorado status quo (repressora) e reguladora de divergências; (ii) o decisivo predomínio dassituações existenciais sobre as situações patrimoniais, devido à tutela constitucional dadignidade humana; (iii) a valorização do perfil funcional em detrimento do perfil estruturaldos institutos jurídicos, impedindo, por essa via, a perpetuação do esquema da subsun-ção, já completamente ultrapassado, e libertando o fato – e juntamente com ele o juiz -dos enquadramentos rígidos em prol da aplicação da normativa mais adequada ao casoconcreto; (iv) o reconhecimento da historicidade dos institutos, na medida da importânciada função que exercem naquela determinada sociedade, naquele determinado momentohistórico; (v) a relatividade dos princípios, das regras e dos direitos, na medida em quetodos exercem sua função em sociedade, isto é, em relação ao outro.9 Há simetria entre a eticidade humana inerente aos direitos da personalidade e o conceitode fundamentalidade material dos direitos fundamentais. Ingo Sarlet (2006, p. 88-89),valendo-se de lições de Alexy e Canotilho, sustenta que esta “decorre da circunstânciade serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, con-tendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade, [...] demodo especial no que diz com a posição nestes ocupada pela pessoa humana”.10 O pioneirismo no reconhecimento jurisprudencial da dimensão objetiva dos direitosfundamentais - passo decisivo para a admissão da eficácia desses direitos entre atoresprivados - se deu no célebre “Caso Lüth”, apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemãono ano de 1958. Ao sublinhar que os direitos fundamentais não reduzem sua operativi-dade à defesa do cidadão nas situações de ameaça imposta pelo poder estatal - postoque representam “decisões de constitucionais de natureza jurídico-objetiva válidas paratodo o ordenamento jurídico” - a Corte de Karlsruhe desempenhou papel histórico naultrapassagem da relação indivíduo-Estado como âmbito exclusivo de aplicação dosdireitos fundamentais.

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há muito encontra-se amadurecido pela doutrina e jurisprudência(TUTIKIAN, 2004, p. 47).

Decorre, na verdade, do surgimento de outro patamar ci-vilizatório, em que “as idéias de dignidade, liberdade, segurança,igualdade e justiça social, dentre outras, conduzem a sociedadebrasileira na busca de seus destinos e influenciam os rumos dalegislação” (BITTAR; BITTAR FILHO, 2003, p. 26), o que bem seexemplifica com o próprio direito de danos, alvo de impulso coma entrada em vigor do Código Civil11.

Da projeção nesse campo da força normativa dos prin-cípios constitucionais, em cujo ápice figura a dignidade da pes-soa humana, é preciso extrair-se uma dogmática assaz diferentedo defasado cânone de outrora, pautado num individualismo pa-trimonialista que enxergava na reparação monetária o objetivomaior da tutela indenizatória - como se tudo se resolvesse pelopagamento em pecúnia efetivado pelo lesante12.

Na contemporaneidade, a responsabilidade civil recons-truída sob a paleta constitucional se volta para o princípio da re-paração integral (restitutio in integrum)13 com olhar diferenciado,até mesmo em vista da fundamentalidade do direito violado(LUTZKY, 2012). Condenações em pecúnia amiúde são insufi-cientes para reconduzir a vítima a patamares próximos da situa-ção vivida antes da lesão14. Elementos de cunho social,

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11 Dentre as inovações positivadas no direito pátrio pelo Código Civil brasileiro, cabecitar a cláusula geral de responsabilidade objetiva baseada no risco da atividade(art. 927, parágrafo único) e a identificação do abuso de direito como espécie dogênero ato ilícito (art. 187), dispositivos que abriram possibilidades até então impen-sadas para o direito de danos.12 Exemplo lapidar dessa linha de pensamento é o art. 944 do Código Civil, que sintetizatão bem a lógica patrimonialista: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.13 O dever de reparar o dano situa-se entre as mais antigas regras humanas de con-vivência. Integra o Código de Hamurabi, os livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo,Levítico, Números e Deuteronômio), o Alcorão e a Lei das Doze Tábuas romana(Lex Duodecim Tabularum).14 Arraigada sempre foi essa concepção monetarista em nosso direito, como secolhe da passagem ora destacada acerca do dano moral: “a sua reparação se fazatravés de uma compensação, e não de um ressarcimento; impondo ao ofensor aobrigação de pagamento de uma certa quantia de dinheiro em favor do ofendido,ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio daquele, proporciona a este umareparação satisfativa” (CAHALI, 2011, p. 38).

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interrelacional e, sobretudo, existencial e preventivo devem sertomados em conta na equação jurídica que levará à definição daforma de ressarcimento.

Ocorre que a tutela integral e efetiva da pessoa humanajá não mais condiz com rótulos dogmáticos (como bem ilustra aerosão da dicotomia entre direito público e privado), muito menoscom o binômio dano/reparação monetária. Agora, exige-se queo arbitramento da indenização inclua instrumentos de efetiva pro-moção do ser vivente, considerado em qualquer situação jurídicade que participe, contratual ou extracontratual, de direito públicoou de direito privado (MORAES, 2004, p. 52).

Com efeito, por figurar a personalidade humana e a pro-moção de sua dignidade no ápice axiológico-constitucional bra-sileiro, sua defesa exige uma proteção judicial diferenciada, quevai além dos mecanismos tradicionais cíveis e criminais de re-pressão. Nessa senda, essencial é o papel da elaboração preto-riana, como sempre foi na responsabilidade civil, para oaperfeiçoamento da compreensão jurídica da matéria.

A atuação dos órgãos judiciários é posta em relevo porClaus-Wilhelm Canaris (2006, p. 241-242), para quem a elabo-ração pretoriana pode “remediar” eventuais transgressões do le-gislador privado. À guisa de exemplo, pondera que o ‘direitodelitivo’ alemão era falho na proteção da personalidade, mas oSupremo Tribunal Federal “eliminou esse déficit, incluindo oassim chamado ‘direito geral de personalidade’ no grupo dos di-reitos tutelados pelo direito dos delitos (direito da responsabili-dade aquiliana)”.

A reconstrução civil-constitucional da pessoa exige dife-renciada concepção da responsabilidade civil por parte dos tri-bunais, já desprendida da antiga visão patrimonialista15 edoravante projetada na perspectiva da reparação integral do

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15 Na ótica do direito civil de outrora, a liberdade individual alçava-se à condição dea mais preciosa das garantias jurídicas. Do pensamento de Benjamin Constant ex-traem-se as idéias hegemônicas do período. Segundo o “corifeu do liberalismo”, odireito público do Estado é alheio aos direitos das pessoas privadas, e o direito po-lítico consiste em jamais conspurcar os direitos imprescritíveis da natureza humana- bem como restaurá-los, quando forem atacados. Liberdade, para ele, não é outracoisa senão “o triunfo da individualidade” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 324-327).

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“dano à pessoa”. Longe vai a percepção de cada pessoa comoum “ter”, bem antes de um “ser”, como ocorria nas antigas codi-ficações civilísticas. Bem ao reverso, na atualidade, as questõesexistenciais é que ganham relevo - e trazem consigo a preocu-pação com formas desmonetarizadas de ressarcimento.

A partir dessa afirmação, até mesmo os elementos dedetecção do dano indenizável sofrem mutações, pois há algomais no horizonte além da “conduta do ofensor” e da “relaçãocausal”. Outros critérios de valoração, como o dever de proteçãoao próximo (duty of care), a ausência de medidas preventivas(carelessness) e a proximidade do dano (remoteness) entram emcena na análise da obrigação de indenizar, como acentua GuidoAlpa (2010, p. 175-184).

Como se pode ver, enquanto o direito privado atribui pre-valência às relações patrimoniais, no sistema do direito civil re-fundado pela Constituição Federal de 1988, a prevalência é dasquestões existenciais, “porque à pessoa humana deve o ordena-mento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, asse-gurar tutela e proteção prioritárias” (MORAES, 2010, p. 21-32).

A título de exemplo de manifestação pretoriana do direitoaquiliano convergente para a integral proteção do indivíduo, es-pecialmente no que tange ao seu bem-estar psicológico, destaca-se a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em 2012,na qual se reconheceu o dever indenizatório decorrente do cha-mado “abandono afetivo”, hipótese inimaginável anos atrás16.

Para além do já exposto, convém relembrar que não sãopoucos os problemas acarretados pelo referencial de indeniza-ção que se materializa somente pela entrega de somas pecuniá-rias ao lesado. Nessa esteira de pensamento, AndersonSchreiber (2013, p. 210), em trabalho dedicado ao tema, apontaos principais deles: (i) a propagação da lógica de que os danos

16 O próprio STJ havia se pronunciado anteriormente pela denegação do pleito deressarcimento sob esse fundamento. O decisório ficara assim ementado: “RES-PONSABILIDADE CIVIL - ABANDONO MORAL - REPARAÇÃO - DANOS MORAIS-IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de atoilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civilde 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especialconhecido e provido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ, Recurso Especialn. 757.411/MG - (2005/0085464-3) - Rel. Min. Fernando Gonçalves - j. 29.11.2005).

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morais podem ser causados desde que seja possível pagar poreles; (ii) o estímulo ao “tabelamento” judicial das indenizações;(iii) a crescente “precificação” dos atributos humanos; (iv) o in-centivo a demandas frívolas, propostas de modo aventureiro, porpessoas que pretendem se valer de cada inconveniente ou abor-recimento social para conseguir uma indenização.

A tais graves inconvenientes pode-se adicionar outras hi-póteses: (i) se o ofensor simplesmente não dispuser de recursosmonetários que lhe permitam fazer frente à reparação arbitrada,a vítima se quedará privada de qualquer ressarcimento; (ii) noutrogiro, caso o lesado seja pessoa abastada, a indenização não re-presentará conforto algum17.

Nessa vertente, enfatiza-se que a fixação judicial do res-sarcimento deve ser focada não apenas no dano, mas, sobretudo,na pessoa. Para tanto, a ciência jurídica e os tribunais devem li-bertar-se do paradigma monetarista, mediante o recurso a diferen-ciadas ferramentas de reação jurídica que alcancem o maiorobjetivo da indenização: a uma, reabilitar a vítima na máxima me-dida possível, incluído o necessário bem-estar psíquico; a duas,evitar a repetição do comportamento antijurídico por parte do ofen-sor. Dessa forma, a responsabilidade civil se alinha aos demaisinstitutos privados no atendimento de sua função social, exigênciaincontornável dos tempos modernos.

Na lição de Judith Martins-Costa acerca da dimensãopreventiva da responsabilidade civil, no processo evolutivo de umdado instituto jurídico é preciso que

a doutrina não se aferre a dogmas que bem vestiam tão-só a funçãoantiga, restando a nova como roupas mal cortadas, em massa pro-duzidas. É precisamente o que ocorre com a insistência de atribuir-se à responsabilidade civil, como se integrasse a sua próprianatureza, um caráter estritamente reparatório, sem nenhum elementode punição ou de exemplaridade. (2002, p. 441).

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17 Nota-se que as duas hipóteses aventadas são bem prováveis no cenário brasileiro.No primeiro caso, pela notória disparidade socioeconômica aqui existente, que pro-duz a existência de milhões de pessoas alijadas até mesmo do “patrimônio mínimo”necessário; no segundo, pelo fato de os tribunais pátrios adotarem uma política defixação de valores ressarcitórios bem modestos, prática amiúde justificada pelo com-bate a uma tal “indústria da indenização” que jamais se estabeleceu entre nós.

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Por tais motivos, os precedentes da Corte Interameri-cana de Direitos Humanos (CIDH)18 muito têm a contribuir paraa desmonetarização da responsabilidade civil, e sua influênciana aplicação do direito pátrio pode indicar o caminho a seguir.Destarte, cumpre examiná-los.

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E ADESMONETARIZAÇÃO DO DIREITO DE DANOS

A partir da segunda metade do século XX, assistiu-se àconsagração dos direitos humanos em documentos multinacio-nais, como a Carta de Direitos Fundamentais da União Européiae a Convenção Americana de Direitos Humanos. O crescenteprotagonismo das cortes internacionais é consectário natural doprocesso de afirmação desses direitos.

Na América Latina, a Convenção Americana de DireitosHumanos (Pacto de São José da Costa Rica) é pedra angular dosistema de proteção dos direitos humanos. Na esfera nacional,por óbvio, incumbe a cada Estado o asseguramento das liberda-des humanas fundamentais; no plano internacional, a própriaConvenção esclarece, em seu preâmbulo, que a tutela dessesdireitos, quando insuficiente no âmbito interno, propicia a atuaçãosubsidiária e complementar da CIDH.

Esse tribunal, que entrou em funcionamento no ano de1978, foi reconhecido pelo Brasil, juntamente com o Pacto deSão José, somente em 1992. A CIDH está autorizada a apreciare julgar denúncias de violação da Convenção Americana de Di-reitos Humanos por qualquer Estado-parte19. Cumpre reafirmar

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18 Essa sigla será usada no presente texto para se reportar à Corte.19 O Pacto de São José da Costa Rica prevê a existência de outro órgão, a ComissãoInteramericana de Direitos Humanos, a quem compete receber petições de vítimasde violações de direitos humanos e realizar o juízo de admissibilidade das denún-cias. Caso positivo, são solicitadas informações ao Estado denunciado, após o que,se necessário, é realizada uma investigação dos fatos, seguida de tentativa de con-ciliação. Se esta for infrutífera, a Comissão elaborará relatório conclusivo, eventual-mente fazendo recomendações ao Estado violador, que terá prazo de 3 (três) mesespara atendê-las. Expirado o prazo, o caso será submetido à CIDH para apreciação(PIOVESAN, 2006, p. 139).

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sua relevância para a consolidação continental de uma verda-deira cultura democrática (O´DONNELL, 2007, p. 152-153)20 ede respeito humanístico a partir das decisões por ela proferidas,que têm força vinculante.

Em trabalho dedicado à análise da atuação da CIDH en-quanto tribunal “garantista” ou “ativista”, Lênio Streck e Jânia Sal-danha (2013) se valem da metáfora do “romance em cadeia”,proposta por Dworkin, para enaltecer o trabalho da Corte. Se-gundo eles, o tribunal leva a sério suas “responsabilidades decontinuidade” no que tange à expansão dos direitos individuaise dos deveres estatais de respeitá-los. Concluem no sentido de“reconhecer na jurisprudência da CIDH uma atitude garantista ede reafirmação do pacto democrático assumido pelos Estadosda América Latina”.

A exemplo do que ocorre na Corte Europeia, a CIDH criadireito jurisprudencial, que se rege pela lógica do precedente ju-dicial do tribunal supranacional de direitos humanos em causa,donde decorre que

não são as normas convencionais que detêm maior relevância dentrode cada ordenamento estatal, mas a sua interpretação uniforme re-lativa à tutela de um determinado direito, em termos ‘compensatórios’– e certamente não ‘substitutivos’ - do direito interno (CARDUCCI;MAZZUOLI, 2014, p. 44).

Na esteira do anunciado, a análise de alguns precedentesdo tribunal há de reforçar a tese até aqui desenvolvida, a saber:que o objetivo essencial de proporcionar à vítima de lesão anti-jurídica a integral reparação demanda maior sensibilidade do jul-gador, a quem compete determinar providências outras - alémdo ressarcimento pecuniário -, voltadas ao necessário confortoespiritual e existencial do lesado e seus parentes dentro de cada

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20 Pondera Guillermo O´Donnell que as recorrentes violações de direitos humanosna América Latina levam vários autores a questionar se a maioria dos países da re-gião efetivamente merece o rótulo de “democracias”. Conforme o autor, a verdadeirademocracia exige mais do que eleições livres periódicas, partidos políticos, liberdadede associação e expressão, etc.; demanda a concretização de um patamar consi-derável de igualdade socioeconômica, ou seja, que haja uma ordem política geralvoltada à efetivação desta igualdade.

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contexto fático. Nessa senda, questiona Maria Alice Hofmeister,ao defender a tese de que o julgador deve ter em mente a integralproteção e ressarcimento do ofendido: “Quem é a vítima? A queaspira? O que se pode entender como ampla indenização, re-composição ao status quo ante? O que se conhece acerca desuas necessidades?” (HOFMEISTER, 2002, p. 213).

Assim, nas sentenças a seguir relembradas, o foco daabordagem incide sobre os aspectos não monetários presentesem cada condenação - com a atenção voltada ao fato de quenesses pronunciamentos houve arbitramento de indenização fi-nanceira, mas a decisão da CIDH a esse aspecto não se limitou(SALES; CORREIA, 2013).

Com frequência são determinadas providências de longoalcance, como mudanças na legislação para adequá-la ao Pactode São José da Costa Rica21, a tipificação de delitos até entãonão previstos no ordenamento interno22 e a criação de medidaslegislativas, executivas, administrativas e judiciárias voltadaspara a efetivação dos direitos humanos23.

No caso Caracazo24, a CIDH, ao reafirmar o primado da re-paração integral do dano, impôs à Venezuela a obrigação de inves-tigar os fatos e apurar responsabilidades, localizar os restos mortaisdas vítimas, implementar medidas de capacitação das forças ar-

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21 Isso ocorreu no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e To-bago (2002). Na espécie, um total de trinta e duas pessoas denunciaram o país porsuas condenações penais à morte por enforcamento. Diante do esgotamento daspossibilidades recursais no plano interno, restou-lhes acionar a CIDH, cuja decisãofoi pela substancial mudança nas leis criminais daquele país.22 No caso Trujillo Oroza vs. Bolívia (2000), o senhor José Carlos Trujillo Oroza haviasido preso sem ordem judicial válida, torturado e seu corpo jamais foi encontrado. ACIDH, além de cominar a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pes-soas, impôs a investigação completa do caso e a punição dos responsáveis, bemcomo a atribuição do nome da vítima a um centro educativo da cidade de Santa Cruz.23 No precedente Niños de la Calle vs. Guatemala (1999), analisou-se o assassinatode vários jovens moradores de rua por agentes de segurança, com característicasde execução sumária (disparo de arma de fogo no crânio).24 No julgamento Caracazo vs. Venezuela (1999), o termo define uma sequência deprotestos populares contra medidas econômicas adotadas pelo Governo AndrésPerez no começo de 1989. A escalada dos conflitos levou o Estado venezuelano aadotar medidas como a mobilização do aparato militar e a suspensão de garantiasconstitucionais. Números oficiais mencionam, como decorrência dos enfrentamentos,276 mortos e múltiplos desaparecidos, além de consideráveis danos patrimoniais.

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madas e divulgar a sentença em jornal de ampla circulação. Noutroaresto, determinou a criação, em cursos de formação dos servidorespúblicos militares e de segurança, de um programa voltado à análiseda jurisprudência do sistema interamericano de proteção dos direi-tos humanos25.

Como exposto, o direcionamento da responsabilidade civilà promoção da dignidade humana exige medidas voltadas à rea-firmação existencial das vítimas. Atenta a isso, a Corte frequente-mente impõe ao país transgressor a realização de ato público dereconhecimento de sua responsabilidade, o que inclui a ampla di-vulgação da decisão em jornais de grande circulação26.

Em várias decisões a ordem de reparação inclui obrigaçõesconcretas de fazer - cujo cumprimento efetivo é fiscalizado pelaCorte -, as quais tomam a forma de expedientes diversos e variados.Por exemplo, o custeio de uma bolsa de estudos27; o fornecimentode serviços de saúde gratuitos28; a publicação de declaração escritaformal de reconhecimento da responsabilidade e pedido de descul-pas29; a anulação de prévia condenação penal e a retirada do nomeda vítima dos registros públicos de antecedentes criminais30.

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25 Caso Gutiérrez Soler vs. Colômbia (2005). A vítima, Wilson Gutiérrez Soler, foipresa, extorquida e torturada por agentes públicos, fatos que ainda ensejaram pos-teriores ameaças a si e seus familiares para que se mantivesse calado. Durantemais de 10 anos lutou contra a impunidade de seus agressores, sem êxito.26 Em Juan Humberto Sanchez vs. Honduras (2003), a vítima havia sido presa porforças estatais de segurança, sem ordem judicial e nem ao menos a explicitação dasrazões. Após sua liberação, militares armados invadiram sua residência, em julho de1992, constrangeram seus familiares e o levaram amarrado. Seu corpo seria encon-trado dias depois. Além do ato público de desagravo, a CIDH ordenou o traslado deseus restos mortais para novo sepultamento, em local a ser definido pelos parentes.27 Cantoral Benevides vs. Peru (2000). Acusado de fazer parte do grupo extremistaconhecido como “Sendero Luminoso”, Luis Alberto Cantoral Benavides foi preso deforma arbitrária, permaneceu incomunicável por vários dias e foi torturado por poli-ciais, em período de provação que durou mais de quatro anos.28 No julgamento Barrios Altos vs. Peru (2001), os fatos tocavam à ação de um grupode extermínio que, em novembro de 1991, invadiu uma festa de arrecadação defundos para a manutenção de edifício situado no bairro de Barrios Altos, na capitalLima. Após atirar a esmo, dizimaram quinze pessoas, uma criança inclusive.29 No caso Tibi vs. Equador (2004), a vítima Daniel Davi Tibi - francês residente noEquador - foi preso por agentes da Interpol, sem respaldo judicial, sob a acusaçãode envolvimento com o tráfico de drogas. Foi submetido a torturas durante vinte eoito meses e teve seus bens apreendidos, que não lhe foram restituídos nem mesmoquando deixou o cárcere, em janeiro de 1998.30 Eduardo Gabriel Kimel, jornalista, escritor e historiador político argentino, publicara

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Outro traço marcante é a superação do vetusto modelo desolução individual e atomística para cada caso, deixado de ladoem prol de uma resposta adequada também no plano transindivi-dual. Já a dimensão preventiva da indenização, tão cara à funçãosocial da responsabilidade civil, se evidencia quando o Tribunalexplicitamente ordena a adoção de medidas para que os fatosnão se repitam, mediante a efetivação de políticas públicas deadequação das normas de direito interno à Convenção Americanade Direitos Humanos31.

Em julgamento sobre morticínio de centenas de pessoasde etnia indígena, ocorrido na Guatemala em 1982, a decisãoda Corte impôs ao país diligências para o fortalecimento da culturamaia, mediante a implementação de políticas públicas de difusãodas tradições e da memória daquele grupo social32. Decisãosemelhante decorreu do massacre ocorrido no presídio Retende Catia, em Caracas, do qual resultou uma ordem de amplareformulação do sistema carcerário venezuelano33. Na mesma

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obra sobre o assassínio de religiosos durante a ditadura daquele país. Um dos juízesmencionados no livro iniciou processo penal por delito de calúnia, que gerou a con-denação do escritor a um ano de prisão (caso Kimel vs. Argentina (2008)).31 Foi o que se verificou no caso Bulacio vs. Argentina (2003). A vítima, Walter DavidBulacio, de dezessete anos, havia sido presa e torturada pelas autoridades, o queocasionou seu óbito logo depois. Sua detenção ocorreu durante operação da políciafederal argentina que levou ao cárcere dezenas de pessoas, num bairro pobre deBuenos Aires. Embora os detidos fossem liberados gradualmente, no caso da vítima,sua família sequer fora notificada do aprisionamento. A CIDH não apenas determi-nou que se prosseguisse a investigação sobre os responsáveis pela barbárie, comotambém exigiu o asseguramento da participação dos familiares em todas as etapasde processos dessa natureza.32 Esse foi o caso Massacre Plán de Sánchez vs. Guatemala (2004), evento consi-derado “genocida” pela CIDH.33 Em novembro de 1992, durante um período de grande instabilidade política contrao presidente Andres Perez, os reclusos do presídio Reten de Catia, em Caracas, te-riam tentado uma fuga em massa. A violenta intervenção militar daí decorrente resultouem nada menos que 63 reclusos mortos, 52 feridos e 28 desaparecidos. Afora isso,motivou a denúncia também a falta de colaboração das autoridades para com as fa-mílias das vítimas. No precedente Monteiro Aranguren e outros (2006), a CIDH impôsà Venezuela a adoção de medidas retificadoras das condições inumanas a que eramsubmetidos os presos no país e sua adequação aos padrões internacionais - ou seja,medidas de caráter legal, administrativo, político e econômico aptas a evitar a repetiçãodos abjetos fatos ali apurados. Ordenou-se, ainda, a realização de ato público de ad-missão da responsabilidade estatal pelos eventos ocorridos no Reten de Catia.

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senda, a partir de sentença de 2010, foi o México obrigado a realizarcampanhas de conscientização da população acerca da vio-lência e discriminação contra mulheres indígenas34.

Acrescenta-se que atentados à liberdade de expressãoconsubstanciam grave ameaça a este princípio imprescindível àssociedades democráticas. A Corte reafirmou seu desiderato de de-fensora do desenvolvimento humano na América Latina ao ordenarà Venezuela - em julgamento que teve atuação de entidades deimprensa de vários países na condição de amicus curiae -, que seabstivesse de qualquer restrição infundada ao direito de obter edifundir informações35.

Os aportes do Tribunal à evolução do direito de danos in-cluem a dogmática jurídica. Ao analisar precedente acerca doataque de forças militares a uma minoria étnico-cultural do Suri-name, do qual resultou a morte de dezenas de pessoas, o juizAntonio Augusto Cançado Trindade inovou na terminologia cien-tífica ao reportar-se ao chamado “dano espiritual”, por ele consi-derada como “forma agravada de dano moral insuscetível dereparação monetária”36.

A CIDH igualmente contribui para a ampliação e aperfei-çoamento da reparação de danos com a efetivação de medidasvoltadas ao apaziguamento espiritual dos parentes dos mortos edesaparecidos pela preservação de sua memória. Por tal motivo,em vários arestos adotou o expediente de ordenar a atribuiçãodos nomes das vítimas a equipamentos públicos.

À guisa de exemplo, o Tribunal incluiu nas sentenças me-didas como a construção de um monumento às vítimas e o des-cerramento de placa com sua identificação na presença dos

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34 No julgamento Rosendo Cantú e outra vs. México (2010), a sra. Valentina Ro-sendo Cantú, indígena, sofreu violação sexual e tortura, às quais se seguiu mani-festa ausência de diligências para apuração de responsabilidades. Sucede que ocrime fora praticado por soldados, e o caso restou encaminhado à jurisdição militarprecisamente para que ninguém fosse punido.35 No caso Perozo e outros vs. Venezuela (2009), a moldura fática envolvia atos deassédio, agressões físicas e prisão praticados contra dezenas de profissionais docanal de televisão Globovisión durante o conturbado período 2001-2005, quandoum golpe tentou tirar Hugo Chávez do poder e um contragolpe o manteve.36 Caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname (2005). Na espécie, integrantes doexército nacional atacaram a comunidade Maroon N´djuka Moiwana em novembrode 1986, tirando a vida de homens, mulheres e crianças.

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respectivos familiares37; a atribuição de seus nomes a centroseducativos38; a criação de disciplina ou curso de direitos humanoscom o nome do lesado39; a designação de rua, praça ou escolaem homenagem à vítima40. Em precedente acerca da desapari-ção forçada de jornalista político na República Dominicana, foiimposta ao país a realização de um documentário sobre a vidada vítima, no qual fosse exaltado seu trabalho jornalístico e seusesforços para a cultura do país41.

Constata-se que nos pronunciamentos condenatórios daCIDH há nítida atenção focada na verdadeira e integral reparaçãodo infortúnio - não apenas no plano monetário, mas igualmentena esfera psíquica da vítima, mediante imposições ao ofensor devariadas obrigações de fazer aptas a oferecer àquela algumalento, imprescindível a seu bem-estar. Na mesma vertente,nota-se que a Corte busca incutir no transgressor a mudançacomportamental necessária para evitar a repetição do ilícito, pro-filaxia jurisprudencial que bem se alinha à função social da res-ponsabilidade civil.

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37 No precedente denominado 19 Comerciantes vs. Colombia (2004), apurou-se amorticínio de dezoito comerciantes por um grupo paramilitar na fronteira entre Co-lômbia e Venezuela porque estes se recusaram a pagar “impostos” ao referidogrupo. Os desditosos tiveram seus corpos esquartejados e lançados num rio.38 Trujillo Oroza x Bolívia; o mesmo ocorreu no caso Molina Theissen x Guatemala(2004), em que o tribunal determinou que se designasse um centro educativo na ci-dade da Guatemala com um nome que fizesse menção aos meninos desaparecidosdurante conflito armado ocorrido no país. Ordenou-se também que ali deveria haveruma placa em memória de Marco Antonio Molina Theissen.39 Versava o caso Huilca Tecse vs. Peru (2005) sobre o assassinato do líder sindicalperuano Pedro Crisólogo Huilca Tecse em dezembro de 1992. Ativo, respeitado ecombativo às medidas do então presidente Alberto Fujimori, sua morte foi artifíciopara atemorizar os trabalhadores peruanos e causou grande comoção no país.40 No caso Baldeón Garcia vs. Peru (2006), apurou-se a detenção, tortura e mortede Bernabé Baldeón García, camponês de 68 anos, por militares. Os fatos ocorre-ram em setembro de 1990.41 O desaparecimento de Narciso González Medina, ativista e opositor ao governo,foi o eixo central do caso Gonzáles Medina e familiares vs. República Dominicana(2012). Após publicar artigo de opinião com duras críticas ao presidente JoaquínBalaguer e conclamar os professores e estudantes de uma universidade local à de-sobediência civil, desapareceu para jamais ser encontrado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na “sociedade de risco” contemporânea, em que se viveà sombra permanente da ameaça de dano injusto, é considerávelo ganho de prestígio da responsabilidade civil como ciência jurí-dica, segundo se constata, por exemplo, a partir da proliferaçãode inéditas situações que passaram a chegar aos tribunais. Emparalelo, o direito civil sofreu consideráveis mutações a partir dasegunda metade do século XX, quando a reconstrução dogmá-tica do constitucionalismo levou à queda da antiga dicotomiaentre direito público e direito privado. Com a ascensão da digni-dade da pessoa humana ao ápice axiológico da Constituição Fe-deral de 1988, seus valores e princípios ultrapassaram asrelações entre indivíduo e Estado e alcançaram as interaçõesentre atores privados. Consequências relevantes disso decorrem:a recognição da eficácia dos direitos fundamentais entre particu-lares e a fundamentalidade do direito à reparação de danos.

Remodelada em função da tutela efetiva da pessoa, aresponsabilidade civil carece de um novo olhar sobre seus ele-mentos substanciais, da mesma forma como sucedeu com outrosinstitutos civilísticos, nomeadamente o direito de propriedade,contratual e familista. Nessa lógica, o modelo tradicional de com-pensação monetária mostra-se em tudo infenso ao direito funda-mental à reparação do dano injusto. Várias adversidades deledecorrem, como a precificação das tribulações humanas, a me-canização das condenações, o estímulo à propositura de deman-das aventurescas e, pior ainda, o desprezo ao fato de quemedidas outras de natureza não pecuniária muitas vezes sãoigualmente importantes para a plena reparação do infortúnio.

No cenário latino-americano, a atuação da CIDH é de ine-gável relevância na defesa das liberdades civis e na propagaçãodos valores democráticos. No que tange ao direito de danos,suas sentenças demonstram aguda preocupação com a funçãosocial da responsabilidade civil, tanto pelo foco na reabilitaçãoexistencial - não apenas material -, da vítima quanto pela impo-sição de medidas focadas na prevenção de outros malfeitos.

Diante dessa ótica, os precedentes da CIDH devem sertomados como paradigmáticos para a edificação de um direito

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de danos alinhado ao centro axiológico comum do Pacto de SãoJosé da Costa Rica e da Constituição Federal de 1988: a promo-ção e concretização da dignidade da pessoa humana em todasas suas dimensões.

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Alexandre Pereira Bonna*

O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FRENTE AOS FENÔMENOS DA LITIGAÇÃO REPETITIVA (REPEAT

PLAYERS) E APATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

THE PRINCIPLE OF SOLIDARITY IN INTERFACE OF REPEAT PLAYERS AND RATIONAL APATHY

EL PRINCIPIO DE LA SOLIDARIDAD FRENTE A LOS FENÓMENOS DE LA LITIGACIÓN REPETITIVA (REPEAT PLAYERS)

Y APATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

Resumo:

Aborda as características da sociedade moderna em relação à ato-mização do ser humano. Aprofunda a relação entre a sociedade ato-mizada e a litigação repetitiva e a apatia racional. Apresenta noçõesda teoria do direito como integridade, com enfoque na fase pré-inter-pretativa e interpretativa proposta por Ronald Dworkin. Explana asexigências do princípio jurídico da solidariedade, especialmente emface dos efeitos nocivos de uma sociedade altamente individualizada.Retoma a discussão envolvendo o princípio da solidariedade comoelemento de destaque na fase pré-interpretativa e interpretativa evetor de peso na interpretação de categorias do direito e problemasconcretos enfrentados pelo Poder Judiciário.

Abstract:

It discusses the features of modern society in relation to the atomiza-tion of the human being. Deepens the relationship between the ato-mized society and repetitive litigation and rational apathy. It presentsthe right theory of concepts such as integrity, focusing on pre-inter-pretative phase and interpretation proposed by Ronald Dworkin. Ex-plains the requirements of the legal principle of solidarity, especially in

* Doutorando e mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará.Professor de graduação e pós-graduação da Universidade da Amazônia e EscolaSuperior da Advocacia.

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the face of the harmful effects of a highly individualized society. Resu-mes discussion involving the principle of solidarity as a prominent ele-ment in the pre-interpretation and interpretive phase and weight vectorin the interpretation of the right categories and specific problems facedby the judiciary.

Resumen:

Aborda las características de la sociedad moderna en relación a laatomización del ser humano. Aprovecha la relación entre la sociedadatomizada y el litigio repetitivo y la apatía racional. Se presenta no-ciones de la teoría del derecho como integridad, con enfoque en lafase pre interpretativa e interpretativa propuesta por Ronald Dworkin.Explica las exigencias del principio jurídico de la solidaridad, espe-cialmente ante los efectos nocivos de una sociedad altamente indivi-dualizada. Se reitera la discusión envolviendo el principio de lasolidaridad como elemento destacado en la fase pre-interpretativa einterpretativa y vector de peso en la interpretación de categorías delderecho y problemas concretos enfrentados por el Poder Judicial.

Palavras-Chave:

Litigantes repetitivos, apatia racional, danos em massa,integridadeda lei, princípio da solidariedade.

Keywords:

Repeat players, rational apathy, massive damages, integrity of law,principle of solidarity.

Palabras-clave:

Litigación repetitiva, apatía racional, daños en masa, como integridad,principio de solidaridad.

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INTRODUÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO, NOÇÕES DA TEORIADO DIREITO COMO INTEGRIDADE, PROBLEMA, JUSTIFICA-TIVA E METODOLOGIA

A presente pesquisa parte de uma constatação filosóficade que a modernidade produziu um lado sombrio nas relações pri-vadas: a sociedade de massa e desinteressada – desenvolvida nasobras “A Condição Humana” (2011) de Hanna Arendt e “After Vir-tue” (1991) de Alasdair MacIntyre.

Por conseguinte, essa sociedade (de massa/desinteres-sada) fomentou uma grave distorção no modo como os danos sãoproduzidos e encarados pelo Judiciário e pelas vítimas dos mes-mos, já que por um lado o sujeito atomizado na modernidade aceitacom parcimônia condutas danosas, especialmente as de baixovalor e intensidade, e, de outro lado, essa apatia racional (rationalapathy)1 está imbrincada com a existência de litigantes repetitivos(repeat players)2, que se beneficiam dessa apatia e da falta de res-ponsabilização à altura dos danos causados.

Essas duas consequências (rational apathy e repeatplayers), pelo fato de revelarem um aspecto banalizado e padroni-zado da produção de danos na sociedade atual, podem ser carac-terizadas preocupantemente como elementos de violação dedireitos (fundamentais ou não) no bojo das relações privadas, acen-dendo o alerta para a reflexão sobre se as instituições criadas pelohomem - que em última instância servem para garantir o respeito ea concretização de bens básicos3 -, são deficitárias em face desses

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1 Expressão desenvolvida por Louis Visscher em “Economic analysis of punitivedamages” (2009), afirmando a pertinência do valor indenizatório de cunho pu-nitivo de modo a causar um desestímulo ao ofensor, assim como para fazerfrente a falta de responsabilização na mesma proporção do dano causado, emespecial pela apatia racional relacionada a um certo grau de aceitação do danoe falta de vigor, disposição e tempo para buscar proteção judicial.2 Expressão desenvolvida por Marc Galanter (1983), ao se referir a litigantesque se valem da falta de clareza do tratamento jurídico de determinados temasassim como da alta probabilidade de vítimas de danos não agirem judicialmentena defesa de seus direitos. 3 Os bens básicos são evidentes por si mesmos, inquestionáveis, são valores ouprincípios que são necessários para qualquer boa ação do homem, além de seremfundamentais para o pleno florescimento humano. Eles servem de referência paraa avaliação das instituições criadas pelo homem (FINNIS, 2007, p. 67).

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fenômenos, de modo a contribuir às “reflexões práticas daquelesque se preocupam em agir, quer como juízes, quer como estadis-tas, quer como cidadãos” (FINNIS, 2007, p. 31), um dos fundamen-tos do Direito Natural.

Embora esse trabalho não utilize em seu desenvolvimentoos pressupostos da teoria do Direito Natural, reconhece a impor-tância de refletir sobre a harmonia das categorias jurídicas e dasinstituições que garantem direitos com um modelo de racionalidadejurídica suficiente para impedir graves distorções morais e de for-talecer os laços de dependência comunitária entre os membros deum determinado grupo de pessoas, dimensão esta que também seencontra no pensamento de Ronald Dworkin, especialmentequando trata das obrigações comunitárias/associativas.

As obrigações comunitárias/associativas na concepçãodworkiana nada tem a ver com deveres que são deliberados e es-colhidos, mas sim estão relacionados a uma atitude interpretativa,porque se deve honrar compromissos que surgem no bojo da prá-tica social na qual se está inserido, os quais estão vinculados a umgrau de reciprocidade e noção de integridade e interpretação, mo-tivo pelo qual esse tipo de obrigação implica algum sacrifício dospróprios interesses (DWORKIN, 1999, p. 237-244).

Nesse viés, é possível conceber uma comunidade políticacomo um ente com personalidade e exigências próprias, diferentedas dos indivíduos que a compõem, de modo que ser fiel a uma prá-tica social implica agir de acordo com os princípios que emanamdessa comunidade personificada, o que por um lado afasta essamoral das crenças populares, mas que por outro está interligada aum conjunto de práticas. Assim, o agir moral em harmonia comessas práticas nada tem a ver com o que as pessoas individualmentepensam ser o moralmente correto (DWORKIN, 1999, p. 204-208).

Portanto, a concepção do direito como integridade à tarefade explicar como um padrão de comportamento exigido por princí-pios surge a partir de uma prática social, caracterizando-se comouma teoria do direito que possui um elemento comunitário, porqueembora acate um certo grau de liberdade de perseguir ambições,compromissos, projetos e interesses pessoais, essa esfera da so-berania individual sofre restrições pela integridade (DWORKIN,1999, p. 211).

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Essa concepção de direito (direito como integridade), ado-tada como premissa na presente pesquisa, presta substrato parajustificar a interferência da autoridade do Estado na esfera de di-reitos dos indivíduos. Vale destacar que a atividade jurisdicionaltambém tem cunho político, não de política partidária, mas sim deprincípio político, especialmente em casos controvertidos (DWOR-KIN, 2001, p. 5-6).

É por esse motivo que o direito como integridade defendeuma visão “centrada nos direitos” e não no “texto legal”, em razãoda amplitude a que o magistrado está autorizado a adentrar, apro-ximando a atividade jurisdicional da política. Enquanto que a con-cepção “centrada no texto legal” afirma que o poder do Estado sópode ser exercido contra os cidadãos a partir de regras explicita-mente especificadas, não podendo inovar até que as mesmassejam modificadas, a concepção “centrada nos direitos” parte deum ideal de justiça substantiva segundo a qual os cidadãos têm di-reitos e deveres morais entre si e perante o Estado, assim como oEstado do Direito necessita incorporar e aplicar esses direitos mo-rais (DWORKIN, 2001, p. 6-7).

Isso não significa que o texto legal (Constituição, leis, de-cretos) não tenha peso e importância, pelo contrário, “um elevadograu de aquiescência à concepção centrada no texto jurídico pa-rece ser necessário a uma sociedade justa” (DWORKIN, 2001, p.9). Contudo, sob essa ótica centrada nos direitos, não são apenasas decisões oficiais que os outorgam, nem tampouco a intenção desoberanos e muito menos o consenso em uma certa comunidade,apesar de muitos críticos da concepção dworkiana alegarem quese trata de uma versão falha do direito por não conseguir refletirprevisibilidade na vida dos cidadãos nem reivindicar autoridade,visto que as questões extralegais comportam muitos dissensos.

De fato, a integridade não exige concordância (exceto nafase pré-interpretativa). A própria falta de consenso sobre direitosmorais e a pluralidade de opiniões enriquece a prática social, demodo que a existência de direitos está imbricada com a comuni-dade personificada, a qual é um ente diverso dos sujeitos que acompõem e, por esse motivo, exige um conjunto de padrões quepodem não ter relação com a opinião da maioria.

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Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não depolítica – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistemaconstitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar geral (DWORKIN, 2001, p. 101).

Construir os direitos, a partir da comunidade personificada,exige a compreensão de um tipo especial de moralidade política,que respeite o passado, o presente e o futuro, considerando que amelhor concepção de direitos será aquela que descrever da ma-neira mais coerente a continuidade do empreendimento interpreta-tivo, teoria esta que será retomada mais adiante.

A presente pesquisa busca refletir – na fase pré-interpre-tativa e interpretativa do direito como integridade -, sobre se o juizestá obrigado a pesar o princípio da solidariedade previsto no artigo3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, na interpretação dedireitos inseridos nos fenômenos da litigação repetitiva e da apatiaracional, pois, caso possua, em algum grau o Poder Judiciário es-taria contribuindo para a construção de uma sociedade mais soli-dária, menos apática e propensa a danos em massa, fortalecendolaços comunitários e de dependência mútua.

A justificativa da referida discussão se revela a partir darealidade alarmante que se instaurou na sociedade brasileira no to-cante a práticas ilegais e danosas, que continuam sendo perpetra-das, posto que, à luz do custo-benefício, são lucrativas (há umpreço do ilícito)4 e se valem da apatia racional, além de outros fa-tores como a morosidade do Poder Judiciário. Nesse cenário, en-gendrado pelo profundo individualismo que afetou a sociedademoderna, torna-se natural pautar condutas em detrimento ou comindiferença perante o outro, sendo fundamental retomar a discus-são ética pelo canal do princípio da solidariedade e do direito comointegridade, que possui também um aspecto comunitário na análisedos direitos.

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4 Já desenvolvi a relação de práticas ilícitas com altos lucros em meu “Punitivedamages (indenização punitiva) e os danos em massa: “’preço do ilícito’, pormeio do qual os ofensores sabem previamente quantas vítimas ingressarão emjuízo e também quanto despenderão a título de indenização compensatória, ve-rificando quão vale a pena violar direito alheio” (BONNA, 2015, p. 102)

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Primeiramente, será feita uma abordagem da sociedadede massa e a sua influência na subsistência dos litigantes repetiti-vos e da apatia racional. Em seguida, será dada continuidade àconstrução da teoria do direito como integridade de Dworkin, es-pecialmente explicando a fase pré-interpretativa e interpretativa. Aofinal, refletir-se-á acerca do peso do princípio da solidariedade emcasos judiciais onde o magistrado se vê diante daqueles fenôme-nos enunciados pela filosofia.

A INFLUÊNCIA DA SOCIEDADE DE MASSA NA FORMAÇÃODOS LITIGANTES REPETITIVOS (REPEAT PLAYERS) E DAAPATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

A vida do homem em uma sociedade de massa é marcadapelo isolamento e falta de vínculos de dependência, formando oque podemos chamar de atomização, que representa a existênciade vínculos muito fracos entre os membros de uma dada comuni-dade, perdendo-se a noção de algum objetivo a ser alcançado emcooperação.

Inúmeras razões contribuíram para a alienação do homemem relação ao próximo, como a reforma protestante, as conquistasmarítimas, o movimento de aglutinação nas cidades e o avançocientífico, porém, nenhum desses motivos foi mais forte que o fatode o trabalho ter se tornado a atividade mais importante da vida dohomem moderno, ou, em outras palavras, o animal laborans tervencido o homo faber na modernidade.

O animal laborans representa o estado do homem comomantenedor da vida e do processo biológico correlato, não se dife-renciando nessa condição de outros animais. É caracterizado pelaatividade do trabalho (labor), ou seja, para Hannah Arendt o traba-lho é sinônimo de ações inseridas em um ciclo de obtenção de ne-cessidades imediatas, motivo pelo qual o resultado do trabalho tempermanência breve no mundo, “seja por meio da absorção no pro-cesso vital do animal humano, seja por meio da deterioração (...)desaparecem mais rapidamente que qualquer outra parte domundo” (ARENDT, op. cit., p. 118-119).

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O homo faber (homem fabricante) possui como atividadea obra (work), por meio da qual violenta a natureza para produzirobjetos duráveis, para além de seu ciclo biológico. Nesse estado,o homem opera sobre a natureza para produzir um conjunto de ob-jetos artificiais com caráter permanente a serem partilhados por ou-tros homens (ARENDT, op. cit., p. 169).

A transformação do trabalho, como a atividade preponde-rante do homem moderno, fez com que todos os valores dessehomem trabalhador (animal laborans) fossem transportados paraoutros campos da vida social. Assim, o aspecto cíclico e efêmerodo homem trabalhador impregnou as relações sociais de modo queo homem passou a não ver mais nada além de si mesmo e suasrespectivas necessidades, perdendo, inclusive, o interesse pelo as-pecto comunitário e social.

Esse desinteresse pelo outro pode claramente ser consta-tado através da bifurcação de dois campos abertos de vida e reci-procamente excludentes: a vida social e a esfera individual: “thisbifurcation is itself an important clue to the central characteristics ofmodem societies”5 (MACINTYRE, op. cit., p. 34). No aspecto indi-vidual, os indivíduos são soberanos em suas escolhas relacionadasaos bens que desejam perseguir; no tocante à vida social, a buro-cracia e as decisões oficiais são soberanas.

Ressalta-se que a sociedade de consumidores está imbri-cada com a sociedade de trabalhadores, pois o consumo desenfreadodo homem, caracterizado pela voracidade da substituição rápida demobílias, carros, celulares, roupas e demais objetos do mundo, en-globa um processo produtivo composto de uma massa de trabalha-dores para dar conta de imprimir alta produtividade em face davelocidade com que os itens de consumo são tragados e descartados.

É nesse sentido que se diz que o animal laborans venceuno mundo moderno, porque a abundância e efemeridade domesmo são características próprias do homem que visa à manu-tenção da vida, em contraste com o homo faber, que despende es-forços para que os objetos fabricados sejam efetivamente utilizadose tenham durabilidade e permanência no mundo. Ou seja, o ciclo

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5 "essa bifurcação é uma importante pista para compreender as característicasessenciais das sociedades modernas" (MACINTYRE, op. cit., p. 34).

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interminável da vida (caça, pesca, reprodução etc) se encaixa nociclo interminável do consumo, e em ambas a fronteira entre a hu-manidade e a animalidade são estreitas.

É possível relacionar esse isolamento ocasionado pelapreponderância do trabalho com o fenômeno da apatia racional (ra-tional apathy), visto que a vida plena do ser humano, de acordocom o pensamento de Hannah Arendt, deveria envolver uma rela-ção harmônica entre a atividade do trabalho, da fabricação e daação (relacionada ao agir moral, reflexões, decisões), e, como ohomem moderno dedica a maior parte do seu tempo à atividadedo trabalho (leia-se atividade para manter-se vivo), pouco espaçosobra para tarefas de preservação e defesa de direitos, poucosobra para o agir.

Nesse sentido, é muito comum deparar-se com situaçõesilegais e danosas (valor mínimo de compra para cartão de crédito,cláusulas abusivas, publicidade enganosa, assédio moral, débitoautomático de serviço não autorizado, descumprimento parcial decontratos), que facilmente são aceitas com parcimônia pelas víti-mas, seja porque tem pouca disposição e vigor para agir, seja por-que individualmente considerados os referidos danos são baixos.

Nesse desiderato, o lucro ilícito a partir de uma apatia co-letiva de pequenos danos gera outro fenômeno: o da litigação re-petitiva (repeat players), o qual é reforçado pelo enorme grau dedesinteresse6 pelo outro próprio da modernidade, individualismo li-beral à coexistência pacífica de setores da vida humana incomuni-cáveis entre si, mas considerados harmônicos (a vida individual e a

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6 Tamanho é o isolamento do homem moderno que há pesquisas que entendemque para o filósofo MacIntyre as relações de trabalho e de consumo não pode-riam ser caracterizadas como práticas visto que os seus componentes estãosempre em busca de bens externos a essas práticas, como dinheiro, poder etc.Nesse sentido: “As atividades laborais de boa parte dos habitantes do mundomoderno não podem ser compreendidas como uma prática nos termos que Ma-cIntyre desenvolve. Pois, ao deslocar o trabalho produtivo de dentro dos laçoscomunitários, se perdeu a noção de trabalho como uma arte que contribuía parao sustento da comunidade e dos lares. (...) Por conseguinte, as relações meio-fins são necessariamente externas aos fins daqueles que trabalham, e como járessaltamos, as práticas com bens internos foram excluídas, assim como asartes, as ciências e os jogos são tidos como trabalhos de uma minoria especia-lizada” (SANTOS, 2012, p. 101-102).

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vida comunitária): “so work is divided from leisure, private life frompublic, the corporate from the personal. (...) And all these separationshave been achieved so that it is the distinctiveness of each and notthe unity of the life of the individual”7 (MACINTYRE, op. cit., p. 204).

Por fim, um magistrado insensível ao mundo que lhe rodeiae aos seus fenômenos desagregadores não julgará atendendo aosditames constitucionais do solidarismo, que, como princípio que é,impõe interpretações jurídicas em um determinado vetor, podendoinfluenciar na interpretação de categorias do direito privado, espe-cialmente diante de casos que denotem a apatia racional e a litiga-ção repetitiva, elementos que evidenciam essa fragmentação e odesinteresse pela esfera de bens jurídicos de outrem.

A FASE PRÉ-INTERPRETATIVA E INTERPRETATIVA DO DI-REITO COMO INTEGRIDADE: A IMPORTÂNCIA DO RECORTENORMATIVO JUSTIFICADO

A concepção de direito de Ronald Dworkin exige que o in-térprete tenha responsabilidade com as reivindicações da integri-dade, uma delas é a de que o destino dado ao direito seja o quemelhor se amolde às práticas da comunidade e isso implica poten-cializar a efetividade de princípios jurídicos, os quais são respon-sáveis por dotar de sentido, unidade e coerência os sistemasjurídicos, especialmente os de cunho constitucional como o da so-lidariedade. Nesse sentido, Lenio Luiz Streck acentua essa dimen-são da integridade:

(...) de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e eqüi-dade na correta proporção, diante do que, por vezes, a coerência comas decisões anteriores será sacrificada em nome de tais princípios (cir-cunstância que assume especial relevância nos sistemas jurídicos comoo do Brasil, em que os princípios constitucionais transformam em obri-gação jurídica um ideal moral da sociedade) (2008, p. 272-273).

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7 "Então o trabalho é dividido do lazer, a vida privada da vida pública, o corporativodo pessoal. (...) E todas essas separações fazem com que cada esfera seja distinta,não fomentando a unidade da vida do indivíduo" (MACINTYRE, op. cit., p. 204).

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Assim, uma das pretensões da integridade é conferir im-portância à totalidade do direito, pois, como visto, a sociedade per-sonificada explicada por Ronald Dworkin revela que a comunidadepolítica possui imposições e deveres que não necessariamentecondizem com as pretensões individuais de cada um dos seusmembros, posto que estes estão submetidos a princípios comunse fundantes da comunidade, a ponto de a concepção de justiça terde se pautar em princípios fundamentais, como o da solidariedade,em detrimento de normas mais específicas, princípios menos abs-tratos ou regras.

É como se a sociedade/comunidade fosse portadora deum objetivo/telos próprio e que esses princípios representassemisso, podendo impor limites a determinadas interpretações jurídicas,motivo pelo qual o direito não se diferencia de outras práticas so-ciais, que necessitam para a sua inteira compreensão em momen-tos de dúvida de uma noção adequada sobre o que a prática requerse devidamente compreendida (DWORKIN, 1999, p. 58).

Nesse viés, a tarefa dworkiana de interpretação do direitodeve conceber três momentos distintos: pré-interpretativo, interpre-tativo e pós-interpretativo (DWORKIN, 1999, p. 81). O trabalho seatém especificamente às fases relacionadas ao recorte normativoe às justificativas desse recorte (respectivamente, fases pré-inter-pretativa e interpretativa), deixando de lado a fase atinente à análisedas exigências que as justificativas das etapas anteriores requeremno caso concreto.

A fase pré-interpretativa parte do pressuposto de que, parainiciar qualquer atividade interpretativa, faz-se necessário partir deelementos que evidenciem decisões políticas do passado, que con-sensualmente devam ser consideradas à tarefa interpretativa, que,em última instância e em consonância com as outras fases, irá jus-tificar a força do Estado na esfera particular. Em outras práticasesse recorte é comum, como nas obras literárias:

Na interpretação de obras literárias, a etapa equivalente é aquela emque são totalmente identificados romances, peças etc., isto é, a etapana qual o texto de Moby Dick é identificado e distinguido do texto de ou-tros romances (DWORKIN, 1999, p. 81).

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O pressuposto da etapa pré-interpretativa é de que qual-quer diálogo só tem sentido se primeiro as premissas dos partici-pantes foram consensualmente selecionadas, de modo a identificarbases e padrões comuns sobre quais práticas são relevantes paraa prática jurídica. Somente em momento posterior será possívelpercorrer um aprofundamento interpretativo sobre qual a melhorinterpretação que se amolda à comunidade política:

Essa é uma exigência prática de qualquer empreendimento interpreta-tivo. (...) Todos entramos na história de uma prática interpretativa emum determinado momento; nesse sentido, o necessário acordo pré-in-terpretativo é contingente e local (DWORKIN, 1999, p. 113).

Em seguida, passa-se à fase interpretativa, marcada pelanecessidade de dar razões e justificativas para o recorte normativofeito na fase anterior, motivo pelo qual o recorte será diferente paracada caso. Portanto, as decisões políticas do passado, que serãodeterminantes para a interpretação construtiva de um caso, nãoserão as mesmas para outro, mostrando toda a dinamicidade dodireito e o permanente ônus argumentativo imposto ao intérprete,no sentido de justificar os pilares estruturantes da sua tarefa her-menêutica para, posteriormente, pesar os princípios em jogo.

JUSTIFICATIVAS DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAFASE PRÉ-INTERPRETATIVA E INTERPRETATIVA EM FACEDOS LITIGANTES REPETITIVOS (REPEAT PLAYERS) E DAAPATIA RACIONAL (RATIONAL APATHY)

Agora o trabalho ocupar-se-á da tarefa de avaliar a pre-sença do princípio da solidariedade em casos de litigação repetitivae apatia racional, analisando as razões da fase interpretativa quejustificariam o seu peso no recorte normativo de casos envolvendolitigação de massa, visto que, caso existam boas razões para a suainclusão, diversas categorias do direito podem ter a sua interpreta-ção alterada e aprofundada.

Antes de adentrar no conteúdo do princípio da solidarie-dade, faz-se necessário frisar dois aspectos: a) ao avaliar o conteúdo

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do princípio da solidariedade e a sua relação com as questões demassa e da litigação repetitiva, está-se na fase pré-interpretativa einterpretativa, momento em que o intérprete realiza um corte nor-mativo sobre quais decisões políticas do passado terão peso naavaliação de um certo fenômeno jurídico a partir de justificativas;b) afirmar que a solidariedade se trata de um princípio e não deuma regra implica o reconhecimento de que não existe a possibili-dade de enumerar aprioristicamente hipóteses de cabimento, vistoque um princípio é obrigatório em um certo caso particular, porquefunciona como um vetor que deve ser contrabalanceado com ou-tros vetores (princípios). Quando há um princípio, significa que eledeve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como sefosse uma razão numa ou outra direção. Quando os princípios seintercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar emconta a força relativa de cada um. Faz sentido perguntar que pesoele tem ou qual importância (DWORKIN, 2002, p. 38-43), e, acres-centaria, mesmo que um princípio não se intercruze com o outro, éválido indagar qual o peso que ele possui na interpretação de ca-tegorias do direito envolvidas no litígio.

Quanto à fase pré-interpretativa, não há maiores dificulda-des em reconhecer que a Constituição Federal e seus princípiossão práticas que compõem a prática jurídica e são levados emconta para a atuação não só de funcionários públicos como tam-bém de particulares, assim como pautam as decisões da atividadejurisdicional, que interpretam o direito à luz de princípios. Ou seja,a questão não está em justificar que os princípios constitucionaisfazem parte de nossas práticas, mas sim de justificar a presençado princípio da solidariedade no recorte normativo de casos envol-vendo litigação repetitiva e apatia racional.

Quanto às justificativas para o princípio da solidariedade,dentro da fase interpretativa, vale ressaltar que a solidariedade,antes de ser inserida como um dos objetivos da Constituição daRepública Federativa do Brasil de 1988, foi muito discutida noâmbito do direito internacional e dos direitos humanos. Na dé-cada de 1970, Karel Vasak mencionou “direitos de solidariedade”ou de “fraternidade”, ao se referir aos direitos à paz, meio am-biente equilibrado, desenvolvimento e patrimônio comum da hu-manidade, em outras palavras, direitos relacionados ao

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bem-estar e ao reconhecimento de interesses comuns entre oshomens (BIONDI, 2015, p. 16).

Dessa feita, haveria uma dimensão de direitos abstratoscentrados no indivíduo em si (civis e políticos), direitos relacionadosàs necessidades básicas a serem supridas (sociais, econômicos eculturais) e, por fim, uma dimensão em que a dignidade da pessoahumana cresce e se expande a ponto de exigir um tipo especial derelação entre os indivíduos. Frisa-se que há estudos que apontampara outras dimensões de direitos humanos.

Portanto, esse viés solidário exige uma concepção de bemcomum a todos os membros de uma comunidade política, bem esteque só pode ser alcançado mediante o esforço de todos, pessoasfísicas e jurídicas, públicas e privadas, tornando-se jurídico (obri-gatório) no comportamento das pessoas o dever de empenhar-senessa tarefa, de modo que a humanidade ou a personalidade hu-mana só estaria completa caso essa percepção do outro (e de seusrespectivos interesses) fosse lapidada.

Em razão dos limites do presente trabalho, parte-se dopressuposto de que a solidariedade possui viés jurídico e obrigató-rio, visto que existem teóricos críticos do caráter jurídico da solida-riedade, aduzindo que se trata de um princípio ainda vago eabstrato e que comporta exigências morais e não jurídicas.

Essa exigência jurídica da solidariedade pode envolveruma dimensão interna ou até mesmo restrita a um certo grupo depessoas e não necessariamente atrai um fator internacional, tendocomo característica central o fato de que as partes isoladas de umtodo só terem sentido se consideradas por inteiro e por completo,como explica Fábio Konder Comparato (2006, p. 577): “a solidarie-dade não diz respeito, portanto, a uma unidade isolada, nem a umaproporção entre duas ou mais unidades, mas à relação de todasas partes de um todo, entre si e cada uma perante o conjunto detodas elas”.

Ao refletir sobre o alcance dessa exigência no direito, épossível constatar que se deve ir além dos direitos e interesses in-dividuais, de modo a interpretar regras e princípios no sentido deatenderem também o vetor que busca harmonizar os interesses in-dividuais com um objetivo coletivo relacionado ao prestígio da coe-xistência e compatibilidade de projetos de vida distintos, que são

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justamente os valores necessários para fazer frente ao fenômenodo isolamento e da atomização do ser humano, que na moderni-dade propiciaram o surgimento da litigação de massa e da apatiaracional, que são consequências do profundo grau de individua-lismo que a humanidade atingiu.

O direito, como reflexo também dos valores da sociedadena qual está inserido, foi contaminado não tanto em seus institutosda responsabilidade civil e do direito processual civil – que até pos-sui elementos de bem comum, como a função social da proprie-dade e dos contratos, boa-fé objetiva, dignidade da pessoahumana, etecetera –, mas principalmente na instância da atividadejurisdicional, particularmente na interpretação que juízes e tribunaisdão aos direitos que os cidadãos têm em litígios envolvendo danosem larga escala e apatia racional.

Vê-se a insuficiência da interpretação de categorias do di-reito privado ao constatar-se que, quando se está diante de danosem massa, os magistrados não levam em conta o momento pré-processual (pré-litigioso) relacionado à inércia das vítimas dedanos em relação a danos de pequena monta, se atento a fixarvalor indenizatório meramente compensatório do dano individual,não se preocupando em majorar a verba de modo a causar umdesestímulo à conduta do ofensor, a ponto de inibir ele e outrosem igual condição de perpetrarem danos em massa e pautaremsuas atividades com alto grau de desinteresse7 pelos projetos devida do outro.

Aliás, constata-se a nefasta equação do custo-benefíciono manejo de produtos e serviços, assim como no trato com ascondições de trabalho, onde as escolhas são sempre pautadas sobessa ótica, de modo a reduzir custos e incrementar os ganhos,mesmo que isso signifique lesionar o outro, devendo o Poder Judi-ciário, valendo-se do princípio da solidariedade e de suas exigên-cias, atribuir peso, por exemplo, ao cabimento da indenizaçãopunitiva na experiência brasileira, de modo a fazer frente às práticasindividualistas e estabelecer um padrão público de comportamentoe de justiça relacionado à solidarização.

De igual modo, registra-se outro aspecto que demonstracomo a atomização do ser humano atinge a interpretação dos tri-bunais quanto à fraqueza das ações coletivas no trato das questões

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de massa e a inúmeros entraves criados jurisprudencialmente paralimitar o grau de abrangência dos entes legitimados para proporações coletivas, exigindo, por exemplo, que os interesses em jogosejam “relevantes” ou possuam “interesse público”, fatores estesque acarretaram, juntamente com o regime de coisa julgada, umaespécie de falência das ações coletivas no trato das questões demassa:

Mesmo com a implantação de um regime próprio para os processos co-letivos, persistem as demandas repetitivas, que se multiplicam a cadadia. (...) Na sociedade atual, caracterizada pela crescente complexidadedas relações jurídicas, há um enorme agigantamento na quantidade delitígios, sendo praticamente ilusório tentar conter tal crescimento. As de-mandas coletivas não têm conseguido resolver todos esses casos. Mui-tos dos problemas de massa são solucionados individualmente, emcada uma das milhares de demandas propostas a respeito do mesmotema. Com efeito, não é raro que uma determinada situação atinja, aum só tempo, uma quantidade exagerada de pessoas, que, diantedisso, passam a ingressar em juízo na busca do reconhecimento deseu direito (DIDIER; CUNHA, 2015, p. 584).

Assim, caso o princípio da solidariedade fosse selecionadona fase pré-interpretativa e justificado na interpretativa, em conflitosde massa, os rumos interpretativos acerca das ações coletivas po-deriam ser outros, e estas serem fortalecidas como instrumentopara fazer frente, de maneira satisfatória, a condutas danosas re-petitivas e marcadas pela desproteção das vítimas, apontando paraa direção de conferir maior efetividades às causas coletivas, aosentes legitimados e aos direitos em jogo em contraposição aos ar-gumentos e princípios em sentido contrário, visto que o ideal soli-dário implica enfrentar a atomização do ser humano e, porconsequência, os efeitos dessa atomização (leia-se: litigação repe-titiva e apatia racional).

Outra categoria do direito que poderia ser atingida no seumodo de interpretar, a partir do recorte normativo que leve em contaa solidariedade, é a boa-fé objetiva, como exigência de que os con-tratantes guardem entre si antes, durante e após a relação jurídica,deveres de lealdade, retidão, transparência, probidade e informa-ção mútua. Esse princípio pode e deve ser manejado em relaçõesde massa e danos repetitivos, pois é um típico instituto do direito

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privado que pode ter a sua extensão comprometida pela desconsi-deração do princípio da solidariedade, uma vez que o grau deabrangência do que se exige a partir da lealdade e probidade é pro-fundamente aumentado, se for posto à prova o ideal de construiruma sociedade solidária e lutar contra o isolamento do ser humano,denotando mais uma vez a relevância e importância do referidoprincípio no trato das questões de massa.

Assim, considerando a escolha político-legislativa de elevara objetivo da República Federativa do Brasil à construção de umasociedade solidária, assim como o papel que esse princípio podedesempenhar em casos concretos envolvendo litigação repetitivae apatia racional, apontando para a interpretação do direito quemais se amolde a esse ideal, há justificativa para que esse princípionão seja negligenciado como guia interpretativo de litígios demassa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há saída. Se a litigação repetitiva e a apatia racionalsão fenômenos do isolamento do ser humano e trazem consigouma série de mazelas, sendo o princípio da solidariedade um vetorque abranda, atenua e enfraquece essa selvageria, como demons-trado ao longo da pesquisa, o magistrado está obrigado a sele-cioná-lo na fase pré-interpretativa e interpretativa como princípiojurídico de estatura constitucional, a ser pesado com outros princí-pios, ou mesmo em conflito de regras de modo a favorecer umadas interpretações.

Desse modo, o Judiciário agregaria um ingrediente inter-pretativo que fizesse frente à atomização e isolamento do ser hu-mano, contribuindo para o incremento dos institutos de direitoprivado na esteira desse ideal, porque, quando o princípio da soli-dariedade é atraído para um caso, a interpretação jurídica é reves-tida de um patamar ético, terreno fértil para a eficácia dos direitosfundamentais, fonte última da autoridade do direito.

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Carlos Roberto Jamil Cury*Luiz Antonio Miguel Ferreira**

JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL, O TRABALHO DOS PROFESSORES E A QUALIDADE

DA EDUCAÇÃO: RELAÇÕES POSSÍVEIS

JUDICIALIZATION OF CHILD EDUCATION, THE WORK OF TEACHERSAND QUALITY OF EDUCATION: POSSIBLE RELATIONSHIPS

JUDICIALIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN INFANTIL, EL TRABAJO DE LOSPROFESORES Y LA CALIDAD EDUCACIÓN: RELACIONES POSIBLES

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo discutir a judicialização da edu-

cação infantil e os seus reflexos nas condições de trabalho do profis-

sional da educação. Tendo como foco o direito à educação e à

discussão judicial de temas relacionados com as creches, busca tra-

çar as consequências que as decisões judiciais acarretam para os

professores, em especial no que diz respeito à falta de vagas e re-

cesso ou férias. Proporciona, também, uma reflexão sobre a questão

da qualidade da educação infantil e as consequências das decisões

judiciais a respeito do tema.

Abstract:

This article aims to discuss the judicialization of early childhood educa-

tion and its impact on the working conditions of the education profes-

sional. Focusing on the right to education and the judicial discussion of

* Pós-Doutor pela Faculdade de Direito do Largo S.Francisco- USP, pela Universitéde Paris e pela École des Hauts Études en Sciences Sociales. Professor Titular daUniversidade Federal de Minas Gerais e professor adjunto da PUC Minas. Mestree doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciênciase Letras Nossa Senhora Medianeira. Professor titular (aposentado) da Faculdadede Educação da UFMG e professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica deMinas Gerais atuando na graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado). ** Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de MesquitaFilho". Integrante do Grupo de Atuação Especial em Educação - GEDUC Regiãode Presidente Prudente. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado deSão Paulo.

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issues related to day-care centers, it seeks to outline the consequences

that court decisions impose on teachers, especially regarding the lack

of vacancies and recess or holidays. It also provides a reflection on the

issue of the quality of early childhood education and the consequences

of judicial decisions on the subject.

Resumen:

El presente artículo tiene como objetivo discutir la judicialización de

la educación infantil y sus reflejos en las condiciones de trabajo del

profesional de la educación. Con el enfoque de la educación y la dis-

cusión judicial de temas relacionados con las guarderías, busca trazar

las consecuencias que las decisiones judiciales acarrean para los

profesores, especialmente en lo que se refiere a la falta de vacantes

y recesos o vacaciones. También ofrece una reflexión sobre la cues-

tión de la calidad de la educación infantil y las consecuencias de las

decisiones judiciales sobre el tema.

Palavras-Chave:

Mudança, paradigma, judicialização, não oferecimento, oferta

irregular, creche.

Keywords:

Change, paradigm, judicialization, no offer, irregular offer, day care.

Palabras-clave:

Cambio, paradigma, judicialización, no ofrecimiento, oferta irregular,

guardería.

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INTRODUÇÃO

Num passado não muito remoto, a primeira etapa da edu-cação infantil – creche –, tinha um caráter assistencial que objetivavagarantir o trabalho para as mães, ou seja, era considerado um direitoda mãe trabalhadora, a ponto de a legislação trabalhista estabelecera necessidade de creche em estabelecimentos em que trabalhas-sem trinta ou mais mulheres, de acordo com a redação original doart. 389 da Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei n.5.452/1943.

Assim, as creches constituíam-se num modelo assistencialàs crianças, mas tendo como foco a genitora. Por outro lado, a legis-lação educacional fazia breves e genéricas referências a escolas ma-ternais ou jardins de infância em geral, sob a rubrica de pré-primário,como é o caso dos artigos 23 e 24 da Lei n. 4.024/61, e não o con-signando como direito. Com o advento da Constituição Federal de1988, ficou expressamente estabelecido que a educação infantil éum direito relativo à educação, a que faz jus a criança de até 05 anosde idade, mediante o dever do Estado. Assinala-se que a educaçãoinfantil se distingue em creche (0 a 3 anos) e pré-escola (4 a 5 anos).

Nesse sentido, pontua a Constituição Federal:

Art. 208. O DEVER DO ESTADO com a educação será efetivado me-diante a garantia de: ..... IV – Educação infantil, em CRECHE e pré-escola, às crianças até 5anos de idade. VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação bá-sica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,transporte, alimentação e assistência à saúde.

Verifica-se que a Lei Maior não apenas estabeleceu comodever do Estado a garantia da creche, como também do atendi-mento mediante programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência.

Porém, não obstante essa norma, o efetivo reconheci-mento desse direito somente ocorreu quando do julgamento do REn. 467255, em 22 de fevereiro de 2006, pelo Supremo Tribunal Fe-deral, em que ficou decidido:

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CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRE-CHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSE-GURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208,IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL ÀEDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AOPODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, §2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.

Consta expressamente da decisão:

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponívelque, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desen-volvimento integral, e como primeira etapa do processo de educaçãobásica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208,IV). Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, porefeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil,a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem,de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos deidade” (CF, art. 208, IV) 1, o efetivo acesso e atendimento em creches eunidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissãogovernamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adim-plemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o pró-prio texto da Constituição Federal.

Apontou o Supremo Tribunal Federal que a oferta de cre-che não se qualifica como um ato discricionário da AdministraçãoPública e “nem se subordina às razões de puro pragmatismo go-vernamental”. Os municípios “não poderão demitir-se do mandatoconstitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado peloartigo 208, IV, da Lei Fundamental da República, que representafator de limitação da discricionariedade político-administrativa”.

Posteriormente, com o advento da Emenda Constitucionaln. 53/09 e da pressão de muitos educadores, a educação infantilfoi contemplada com um porcentual do Fundo de Manutenção eDesenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Pro-fissionais da Educação – FUNDEB, cuja regulamentação se deupela Lei n. 11.494/2007, artigo 36.

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1 Vale ressaltar que a redação original do artigo 208, IV, estabelecia o direito àscrianças de zero a seis anos de idade. Porém, com a Emenda Constitucional n.53, de 2006, tal direito ficou assegurado às crianças de zero a cinco anos de idade.

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Após essa decisão do STF e da Lei n. 11.494/2007, os re-flexos foram sentidos por todos os interessados, ou seja, dos tribu-nais às prefeituras, isso porque, se a justiça anteriormente nãoreconhecia expressamente esse direito2, com a decisão do Su-premo Tribunal Federal, passou a dar efetividade a tal comando,obrigando os municípios a ofertarem a creche a toda criança, desdeque o pai ou responsável manifestasse interesse. Na verdade, opai não tem a obrigação de matricular o filho na creche, mas, sim,na educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (de-zessete) anos de idade (art. 208, I, da CF e Lei n. 13.005/2014).No entanto, a partir do momento que manifesta o desejo de colocara criança na creche, surge, em contrapartida, a obrigação de oPoder Público (município) oferecê-la em quantidade e qualidadesuficientes. Ademais, o município passou a receber um valor doFundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica ede Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, para ga-rantir esse direito. Em síntese: reconheceu expressamente o direitoà creche e garantiu-lhe o financiamento.

Pois bem. Tendo a lei consagrado o direito à creche comoum direito da criança de até 3 anos de idade, impondo a obrigaçãode sua oferta pelo município, é óbvio que essa mudança de para-digma proporcionou discussão no âmbito judicial, não somente emrelação à oferta de vagas, mas também no tocante a outros temas,como financiamento adequado, férias, qualidade da educação, ali-mentação, transporte e outros, proporcionando uma verdadeira ju-dicialização da educação infantil.

O problema é que a judicialização realizada no âmbito doPoder Judiciário acarreta consequências reais e imediatas, não sóem relação ao poder público (gestor), como também ao processopedagógico, envolvendo todos os servidores (com especial atençãoao professor - executor), crianças, pais e responsáveis.

Tendo como parâmetro tal situação, o presente artigo buscaanalisar as consequências da judicialização da educação infantil em

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2 Antes dessa decisão, havia posicionamentos judiciais contrários ao direito dacreche, fundamentando-se no sentido de que a creche não se enquadraria comodireito público subjetivo, posto que não é considerada obrigatória, e que o PoderJudiciário não poderia interferir na esfera da decisão discricionária do Poder Exe-cutivo, em face do princípio constitucional da separação dos poderes.

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relação ao professor, abordando alguns temas específicos e suge-rindo uma reflexão sobre o problema que atinge grande número demunicípios brasileiros, tendo como foco a questão da qualidade daeducação.

JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

É certo que o reconhecimento legal do direito à educaçãoinfantil – creche –, por si só não traria tanta discussão no âmbitodo Poder Judiciário, se não fosse a legitimação conferida pela leiao Ministério Público e à Defensoria Pública para buscar a garantiae efetividade do direito por meio de ações judiciais individuais e co-letivas. Assim, além dos pais ou responsáveis, o Ministério Públicoe a Defensoria Pública também passaram a atuar para fazer valeros direitos previstos na Constituição Federal, no que diz respeito àeducação, em especial, à educação infantil.

Com isso, como já afirmamos, “o Poder Judiciário passoua ter funções mais significativas na efetivação desse direito. Inau-gurou-se no Poder Judiciário uma nova relação com a educação,que se materializou através de ações judiciais visando a sua ga-rantia e efetividade. Pode-se designar este fenômeno como a JU-DICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO, que significa a intervenção doPoder Judiciário nas questões educacionais em vista da proteçãodesse direito até mesmo para se cumprir as funções constitucionaisdo Ministério Público e outras instituições legitimadas” (FERREIRA;CURY, 2010).

No mesmo sentido, Álvaro Chrispino e Raquel Chrispinoapontam “a judicialização das relações escolares como aquelaação da Justiça no universo da escola e das relações escolares,resultando em condenações das mais variadas” (CHRISPINO;CHRISPINO, 2008).

Em síntese, a judicialização da educação está diretamenterelacionada com o disposto no artigo 208 da Constituição Federal.Com efeito, estabelece o citado artigo:

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Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediantea garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezes-sete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todosos que a ela não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiên-cia, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criaçãoartística, segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação bá-sica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ousua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.§ 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fun-damental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis,pela frequência à escola. (grifos nossos)

Verifica-se que a Constituição Federal, impondo algumasobrigações para o Estado, o seu não cumprimento pode ensejarações judiciais para garantir a sua concretização. É isso que vemocorrendo com a educação. Cada vez mais, a Justiça está sendoacionada para discutir temas relacionados à educação, abrangendouma variedade imensa de assuntos.

Por um lado, tem sido positiva essa judicialização, umavez que os direitos consagrados constitucionalmente, em relaçãoà educação, estão entrando na pauta de discussão dos poderespúblicos e sendo garantidos, independente da vontade do órgãoexecutor. Isso é relevante e apresenta-se como a efetivação do es-tado de direito. Na verdade, o Poder Judiciário está sendo levadoa formular e implementar políticas públicas na área educacionalpara que não reste vulnerado o direito fundamental previsto cons-titucionalmente. Ademais, verifica-se, em âmbito nacional, uma pro-cura pela especialização da matéria por aqueles que estãodiretamente envolvidos, como juízes, promotores de Justiça, de-fensores públicos e advogados, dado o caráter complexo da legis-lação educacional. É crescente o número de promotorias de Justiça

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que vêm se especializando em educação. No entanto, a judicialização traz consigo outra faceta, não

muito positiva. Nas citadas carreiras jurídicas, existem profissionaisque desconhecem os meandros da educação, proporcionandoequívocos judiciais com reflexos educacionais por suas ações oudecisões, embora com fundamentação jurídica legítima. E, muitasvezes, as consequências atingem diretamente a criança ou o ado-lescente, e, em outras ocasiões, os próprios professores. Essa rea-lidade requer uma análise mais ampla a fim de possibilitar a perfeitafusão do pedagógico com o jurídico, de modo a se cumprir a lei,sem prejuízo da questão educacional. É o que se passa a analisar,especificamente, no que diz respeito à educação infantil.

RELAÇÕES FIRMADAS ENTRE A JUDICIALIZAÇÃO E A EDU-CAÇÃO INFANTIL

A judicialização da educação infantil tem abrangido váriosaspectos, como: a) falta de vaga; b) férias escolares; c) período in-tegral e parcial; d) merenda escolar; e) transporte escolar; f) mate-rial didático-pedagógico; g) inclusão do aluno com deficiência; h)adequação do prédio escolar; i) matrícula escolar; j) financiamento,entre outros.

Constata-se que todos esses temas têm um reflexo diretopara o professor, podendo atingir sua atuação docente. Por outrolado, guardam relação imediata com a qualidade da educação in-fantil que, muitas vezes, é desconsiderada quando da judicializa-ção. Vejamos, de forma exemplificativa, algumas situações queocorrem na prática.

a) Vagas nas creches

Essa questão está pacificada na justiça, no sentido de quea vaga na creche se trata de um direito indisponível e público sub-jetivo (quando ocorre a procura pelo pai ou responsável, de vezque essa etapa da educação infantil não é obrigatória), que nãopode ficar a critério da conveniência ou oportunidade do município

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para oferecê-la. Existem até súmulas dos tribunais a respeito3.Dessa forma, o ingresso de uma ação judicial para obtenção devaga em creche encontra respaldo no Poder Judiciário, que confereefetividade ao que estabelece a Constituição Federal.

De um lado, esse direito responde a uma situação socioan-tropológica muito real de nossas cidades, especialmente aquelaspautadas por uma metropolização complexa. As famílias, quaisquerque sejam seus desenhos, buscam a recomposição da renda.Nesse sentido, os pais se veem obrigados a buscar nichos no mer-cado de trabalho. A escola vem sendo o lugar por excelência paradeixarem seus filhos aos cuidados de educadores, pois ela é umlocus permanente, sistemático e aberto a todos com apoio do Es-tado. Por outro lado, as famílias diminuíram seu tamanho, os vizinhosenfrentam situações similares e a rua tornou-se lugar de preocupa-ção e mesmo de violência. Daí que a educação infantil tenha se tor-nado uma necessidade nascida das transformações pelas quaispassam tanto as cidades como as famílias. O direito à educação in-fantil e o dever do Estado respondem a esse contexto maior.

O problema é que não se pode analisar essa questão rela-cionando-a apenas ao direito individual ou coletivo. Há necessidadede se seguirem parâmetros de qualidade, sob pena de se transfor-marem as creches em depósitos de crianças. Com efeito, as diretrizescurriculares nacionais para a educação infantil – Resolução CNE/CEBn. 01, de 07/04/99, a revisão do Parecer n. 20/09, a Resolução n. 5,de 17/02/09, do CNE e Resolução n. 4, de 13/ 07/10 – definem as di-retrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica e esta-belecem o número máximo de crianças por professor. Constaexpressamente do Parecer n. 20/09 do CNE, devidamente homolo-gado em 09/12/09, que a proporção a ser seguida é a seguinte:

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3 No Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça formulou duas súmulas a res-peito da vaga em creches. Súmula 63: É indeclinável a obrigação do município de providenciar imediata vagaem unidade educacional à criança ou adolescente que reside em seu território. Súmula 65: Não violam os princípios constitucionais da separação e independên-cia dos poderes, da isonomia, da discricionariedade administrativa e da anualidadeorçamentária as decisões judiciais que determinam às pessoas jurídicas da ad-ministração direta a disponibilização de vagas em unidades educacionais ou o for-necimento de medicamentos, insumos, suplementos e transportes a crianças ouadolescentes.

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O número de crianças por professor deve possibilitar atenção, respon-sabilidade e interação com as crianças e suas famílias. Levando emconsideração as características do espaço físico e das crianças, no casode agrupamentos com criança de mesma faixa de idade, recomenda-se a proporção de 6 a 8 crianças por professor (no caso de crianças dezero e um ano), 15 crianças por professor (no caso de criança de doise três anos) e 20 crianças por professor (nos agrupamentos de criançasde quatro e cinco anos).

Em síntese, a proporção é a seguinte: - um professor para cada 6 a 8 crianças de 0 a 1 anos de idade;- um professor para cada 15 crianças de 2 e 3 anos de idade;- um professor para cada 20 crianças de 4 a 5 anos de idade.

A decisão judicial que determina a colocação de umacriança na creche ou pré-escola, na maioria das vezes, não levaem consideração essa questão que acaba refletindo diretamenteno professor e no processo pedagógico. E nem sempre consideraque há uma inscrição das famílias na expectativa de serem atendi-das pelo aumento planejado de vagas. Assim, da mesma formaque a vaga é um direito da criança, a educação de qualidade tam-bém é um direito consagrado, que deverá ser observado. Comefeito, estabelece a Constituição Federal:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: ........ VII - garantia de padrão de qualidade. ........ Art. 211. A União Federal e os Municípios organizarão em regime decolaboração seus sistemas de ensino. § 1º - A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios,financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, emmatéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a ga-rantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo dequalidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Es-tados, ao Distrito Federal e aos Municípios. (grifos nossos)

Idêntica determinação consta dos artigos 3º, IV, e 4º, IX,da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n.9394/1996. Aliás, o termo qualidade da educação é citado em inú-meros outros artigos e leis esparsas, reforçando a ideia de que não

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basta garantir vaga a uma criança na creche, tornando-se neces-sário garantir a qualidade do serviço ofertado. Porém, quando nãohá esse questionamento no âmbito judicial, muitas vezes tornandoa demanda na busca de vaga apenas um acesso, as consequên-cias são sentidas pelos professores, que são obrigados a suportaruma carga de alunos maior do que foi estabelecido para a garantiada qualidade da educação. Essa questão representa um exemploclaro de como a judicialização interfere no trabalho docente e, con-sequentemente, na educação das próprias crianças atendidas.

Dessa forma, reputa-se necessário não somente garantira vaga, mas saber e acompanhar como a criança será inserida naescola. Na impossibilidade de pronto atendimento, por falta de pro-fessores em números suficientes, há necessidade de se aguardara regularização dessa situação. Essa solução apresenta-se peda-gogicamente consequente ao ciclo da existência da criança em opo-sição ao acúmulo de crianças para um único professor, em totalprejuízo ao seu desenvolvimento. Trata-se de uma avaliação quedeve ser feita para garantir a vaga e a qualidade da creche. A deci-são judicial que garante a vaga deveria, como consequência lógica,garantir a qualidade da educação, com o acompanhamento do cum-primento da decisão, no sentido de saber onde a criança foi matri-culada e se há o respeito às diretrizes curriculares nacionais para aeducação infantil com relação ao número de alunos por professores.

Ademais, há que se considerar a responsabilidade dosmunicípios em relação à educação obrigatória, ora estendida paraas crianças desde os 4 anos e o orçamento disponível. Nesse sen-tido, cumpre trazer à questão dois pontos importantes. O primeirose refere às responsabilidades dos entes federativos no apoio àeducação infantil. Elas não são exclusivas dos municípios. Deacordo com o artigo 23 e artigo 30 da Constituição Federal, essaresponsabilidade deve ser compartilhada com os estados e aUnião. É o que é reforçado pela Lei n. 13.005/2014 na primeira es-tratégia da meta 1:

1.1) definir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Dis-trito Federal e os Municípios, metas de expansão das respectivas redespúblicas de educação infantil segundo padrão nacional de qualidade,considerando as peculiaridades locais.

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O segundo se reporta ao alinhamento estabelecido peloPlano Municipal de Educação em relação à meta 01 e suas res-pectivas estratégias postas no Plano Nacional de Educação (Lei n.13.005/2014).

E tem ainda como derradeiro, a questão do financiamentoda creche, que deve obedecer aos critérios estabelecidos no FUN-DEB, não se concretizando o repasse de dinheiro de forma ime-diata com a matrícula da criança.

Em síntese, verifica-se que a garantia de uma vaga nacreche envolve muitas outras questões que devem ser observadas,sob pena de prejudicar o desenvolvimento da criança e uma so-brecarga ao professor. A garantia de uma vaga reflete em muitasoutras crianças e afeta o trabalho docente, circunstâncias que nãopodem ser desconsideradas.

b) Férias escolares

A Constituição Federal é clara no sentido de tratar a cre-che como educação.

Nesse sentido estabelece:

Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediantea garantia de: ..... IV - Educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)anos de idade;

No mesmo sentido, detalha a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (Lei n. 9394/96) o dever do Estado, bem comoos níveis e composição da educação, inserindo as creches na edu-cação infantil, uma das modalidades da educação básica.

Diz a lei:

Art. 30. A educação infantil será oferecida em: I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anosde idade; II - pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade.

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Diante da legislação supracitada, só há uma conclusão:creche é educação. Nessa circunstância, sujeita-se às regras es-pecíficas da legislação educacional quanto aos dias de trabalho.Nesse sentido, pontua a Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (Lei n. 9394/96):

Art. 31. A educação infantil será organizada de acordo com as se-guintes regras comuns: I - avaliação mediante acompanhamento e registro do desenvolvimentodas crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso aoensino fundamental; II - carga horária mínima anual de 800 (oitocentas) horas, distri-buída por um mínimo de 200 (duzentos) dias de trabalho educa-cional; III - atendimento à criança de, no mínimo, 4 (quatro) horas diárias parao turno parcial e de 7 (sete) horas para a jornada integral; IV - controle de frequência pela instituição de educação pré-escolar, exi-gida a frequência mínima de 60% (sessenta por cento) do total de horas; V - expedição de documentação que permita atestar os processos dedesenvolvimento e aprendizagem da criança (grifos nossos).

Logo, as creches devem ter o recesso ou férias escolarespor imposição legal, pois, integrando o calendário anual, a sua pro-posta de trabalho educacional inclui o recesso. O objetivo é claro:a) de um lado, garantir à criança o direito à convivência familiar ecomunitária prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (art.19 do ECA: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado eeducado no seio de sua família); b) proporcionar aos profissionaisque trabalham na creche – professores –, o tempo necessário parao descanso e planejamento da operacionalização do projeto po-lítico-pedagógico da escola.

Não é por outra razão que a Câmara de Educação Básicaaprovou o voto da conselheira relatora Malvina Tânia Tuttman (Pa-recer n. 23/2012 – Processo n. 23001. 000049/2011-19, devida-mente homologado pelo Ministro da Educação conformepublicação no DOU de 19/03/2013), assim estabeleceu:

1. As creches e pré-escolas constituem-se em estabelecimentos educa-cionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0(zero) a 5 (cinco) anos de idade, por meio de profissionais com a forma-ção específica legalmente determinada, a habilitação para o magistério

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superior ou médio, refutando assim funções de caráter meramente as-sistencialista, embora mantenha a obrigação de assistir às necessida-des básicas de todas as crianças.

2. Nas creches e pré-escolas mostra-se adequada uma estrutura curri-cular que se fundamente no planejamento de atividades durante um pe-ríodo, sendo normal e plenamente aceitável a existência de intervalo(férias ou recesso), como acontece, aliás, na organização das atividadesde todos os níveis, etapas e modalidades educacionais. Tal padrão deorganização de tempo de operacionalização do projeto político-peda-gógico, com inclusão de intervalos, não constitui obstáculo ou empecilhopara a consecução dos objetivos educacionais, ao tempo em que con-tribui para o atendimento de necessidades básicas de desenvolvimentodas crianças relacionadas à convivência intensiva com suas famílias ea vivências de outras experiências e rotinas distintas daquelas organi-zadas pelas instituições de educação.

Não obstante toda essa sistemática legal, o Poder Judi-ciário tem se posicionado no sentido da não interrupção do atendi-mento na creche, ou seja, da impossibilidade de férias ou recesso,sendo que, em determinados julgados, ainda se manifesta pelo ca-ráter assistencial da creche. Essa lição pode ser extraída da deci-são proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo naApelação n. 022152290.2009.8.26.0000, em que figura como ape-lante o município de São Paulo e apelada a Defensoria Pública doEstado de São Paulo.

Consta do acórdão:

Caráter pedagógico e assistencial da educação infantil, que, ao pro-porcionar aos pais meios para obter o sustento da família, contribui paraa realização dos fundamentos da República Brasileira consubstancia-dos na dignidade humana e nos valores sociais do trabalho e da livreiniciativa (artigo 1º, III, IV da Constituição Federal). Serviço público es-sencial, que deve ser prestado continuamente sem a possibilidadede restrição de caráter infraconstitucional, inviabilizando, também, aadoção do sistema de plantão ou a limitação aos estabelecimentos darede direta de ensino.

Em decisão mais recente, referido tribunal reiterou a im-possibilidade de férias ou recesso nas creches:

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COMINATÓRIA - Obrigação de fazer - Propositura em face do Municípiode Salto/SP - Dever do Poder Público de fornecer educação básica, ob-rigatória e gratuita a criança em unidade de educação infantil próximaà sua residência, no período integral, observado o período de recesso- Pedido procedente - Serviço essencial que deve ser prestado ininter-ruptamente, até nos recessos de férias - Possibilidade, entretanto, doPoder Público promover eventual redirecionamento das crianças queutilizarão creche neste período, com a garantia de atendimento de todaa demanda, providenciando o necessário transporte em caso de trans-ferência para local distante a mais de dois quilômetros da residência dacriança - Recurso do Município parcialmente provido para este fim. Salto- Câmara Especial - Relator Pinheiro Franco (Pres. Seção de Direito -05/10/2015 - Votação: Unânime - Voto n. 29702).

Com isso a questão das férias ou do recesso da educaçãoinfantil – creche –, quando judicializada não encontra respaldo legal,refletindo diretamente no profissional da educação, que se encontratolhido de tal direito. O professor da creche é tão professor como oda pré-escola. Muitas vezes, ocupam o mesmo prédio. Porém,quando do recesso escolar, um goza das férias e o outro não. Caberessaltar que o trabalho do professor da creche, às vezes, é maiscansativo que o de outras modalidades de ensino, em face da idadedas crianças.

A justiça nesses casos, a pretexto de contribuir com os paisou responsáveis para garantir o sustento da família (sendo que ospais trabalhadores têm direito a férias) sobrecarrega o professor.Questiona-se, nessa situação, não apenas o direito do professortrabalhador, mas também a qualidade do ensino. Aliás, esse pontotem o mesmo fundamento da questão da vaga. A pretexto de segarantir um serviço de forma ininterrupta, compromete-se a suaqualidade. E as crianças, que seriam as beneficiadas pelo serviçocontínuo, acabam sendo prejudicadas pelo ensino ministrado.

Essa situação revela apenas que há necessidade de sepensar a creche como educação, dando-lhe o tratamento jurídicoque lhe é reservado pela Constituição Federal.

O recesso, como apontado no parecer do Conselho Na-cional de Educação, não impede a utilização do prédio por ou-tras secretarias municipais para o desenvolvimento deatividades extracurriculares. Trata-se de uma questão de política

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intersetorial para a infância e não educacional4. Consta expres-samente do parecer:

Considera-se que muitas famílias necessitam de atendimento para suascrianças em períodos e horários que não coincidem com os de funcio-namento regular dessas instituições educacionais, como o horário no-turno, finais de semana e em períodos de férias e recesso. Contudo,esse tipo de atendimento, que responde a uma demanda legítima dapopulação, enquadra-se no âmbito de “Políticas para a Infância”, de-vendo ser financiado, orientado e supervisionado por outras áreas,como assistência social, saúde, cultura, esportes e proteção social. Osistema de ensino define e orienta, com base em critérios pedagógicos,o calendário, os horários e as demais condições para o funcionamentodas creches e pré-escolas, o que não elimina o estabelecimento de me-canismos para a necessária articulação que deve haver entre a educa-ção e outras áreas, como a saúde e a assistência, a fim de que secumpra, do ponto de vista da organização dos serviços nessas institui-ções, o atendimento às demandas das crianças. Dessa forma, insta-lações, equipamentos, materiais e outros recursos, sejam dascreches e pré-escolas, sejam dos outros serviços, podem e devemser mobilizados e articulados para o oferecimento de cuidados eatividades às crianças que delas necessitarem durante o períodode férias e recesso das instituições educacionais. (grifos nossos)

Dessa forma, seria muito mais adequado planejar demodo intersetorial junto ao município programas alternativos paraas crianças de modo a atendê-las em férias escolares. Até porque,a prioridade que se deve dar à criança e ao adolescente engloba aprecedência na formulação e na execução das políticas sociais pú-blicas, conforme expressamente previsto no artigo 4º, parágrafoúnico, “c”, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos moldes

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4Afora a legislação educacional propriamente dita, pode-se verificar esta inter-setorialidade na CLT, art. 389, § 2º. Nada impede que esta intersetorialidade,também prevista no ECA, seja expandida à luz da LDB. O recente Decreto nº8.869, de 05 de outubro de 2016, que instituiu o Programa Criança Feliz, quetem entre os seus objetivos a promoção e o desenvolvimento humano a partirdo apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeirainfância, estabeleceu que a sua implantação ocorrerá a partir da articulaçãoentre as políticas de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos hu-manos, direitos das crianças e dos adolescentes, entre outros (art. 5º), refor-çando assim a necessidade da colaboração recíproca, não somente entre ospoderes, mas também no âmbito administrativo.

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da “escola da família”, seria interessante a criação de programa so-cial “escola em férias”, que não abrangeria apenas as crianças emidade para creche, mas com outras idades e cujos pais tambémprecisam trabalhar. Com isso, cumprir-se-ia a lei e não sobrecarre-garia o professor. E a qualidade da educação estaria garantida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face dessas considerações, pode-se afirmar, em relaçãoà questão da ausência de vagas e do recesso ou férias escolares naeducação infantil, que as ações judiciais ingressadas têm por funda-mento o disposto no artigo 208, III, do ECA, que trata da proteção ju-dicial dos interesses individuais, difusos e coletivos, que estabelece:

Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsa-bilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adoles-cente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: I - ... II - .... III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cincoanos de idade; (grifo nossso)

Assim, quando se almeja a vaga em creche, é porque o ser-viço não está sendo oferecido a todos. Quando se busca o trabalhocontínuo do professor de creche, mesmo no recesso ou férias es-colares, a ação está fundamentada também na ausência de ofere-cimento do serviço durante esse período.

Contudo, o que se propõe a refletir neste estudo é que ga-rantir a matrícula da criança, sem levar em consideração o númerode alunos por professor ou a ausência de férias ou recesso dascreches, caracteriza uma oferta irregular do serviço público, tam-bém passível de questionamento judicial. No fundo, o que se buscaé a garantia do ensino de qualidade que passa por esses proble-mas. A lei deve ser interpretada em sua integralidade, ou seja, ana-lisando o não oferecimento ou a oferta irregular. O problema é quea análise judicial dessas questões tem se centrado apenas naquestão do não oferecimento. É hora de mudar o foco e garantir a

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vaga na creche com qualidade e o recesso ou férias escolares, tam-bém como fundamento na qualidade do ensino ministrado.

Ressalta-se que esses dois problemas decorrentes da ju-dicialização da educação infantil tem uma ligação direta com o pro-fessor e sua atividade docente. Mas, outros efeitos também sãosentidos pela administração de um modo geral em face dessa ju-dicialização e que merecem análise. Trata-se da questão referenteà data da matrícula da criança em creche e a sua consequente ju-dicialização. Nesse caso, dois problemas são levantados:

a) Pode-se estabelecer data de corte etário para o ingresso na cre-che? A Lei fala em creche e educação infantil às crianças até 05anos de idade5. Logo, a criança ao nascer já tem direito à creche edeve o município ofertar a vaga. Porém, a Constituição Federal es-tabelece no artigo 6º, como direito social “a proteção à maternidadee à infância”. Também garante no artigo 227, o direito da criança àconvivência familiar. A Lei n. 13.257/2016, que estabelece as políti-cas públicas para a primeira infância, destaca a convivência dacriança com os pais como forma de favorecer a criação de vínculosafetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança. Paraa mãe trabalhadora é garantida a licença gestante (CF, art. 7º, XVIII- licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com aduração de cento e vinte dias). Como a justificativa judicial para agarantia da vaga na creche é a questão do trabalho dos pais ou res-ponsáveis, apresenta-se razoável, diante da legislação citada, a pos-sibilidade de se estabelecer um corte etário para o ingresso nacreche, que coincidiria com os quatro meses da licença gestante.Contudo, deve-se levar em consideração, à vista do trabalho informalcrescente em que pessoas trabalham sem carteira de trabalho assi-nada, que muitos pais carecem dessa proteção direta da legislaçãocitada. Assim, esse tema requer uma análise mais criteriosa pelosoperadores do direito, sob pena de penalizar a criança ao invés delhe garantir um direito. Volta-se à questão da compatibilização dodireito ao trabalho dos pais ou responsáveis com o direito dacriança à educação infantil e à convivência familiar.

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5 Diferente da redação original do artigo 208, IV, da CF, que citava o “atendi-mento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.

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b) Há período pré-estabelecido a ser obedecido para a matrículanas creches? Essa é a outra questão que traz reflexos diretos paraa administração e que merece apreciação. A rede pública de edu-cação como um todo estabelece, por meio de resoluções, critériose procedimentos para a implantação do processo de atendimentoda demanda escolar. Há um calendário a ser obedecido que servepara orientação dos pais, bem como da própria administração, paraefeito de planejamento. Com as creches, essa situação não se ve-rifica, principalmente quando é judicializado esse direito. Isso por-que, independente do dia ou mês, a decisão judicial impõe amatrícula, sem levar em consideração um eventual planejamento.Esse tema acarreta reflexos diretos às crianças, pais e à Adminis-tração Pública e também requer uma atenção especial. Ressal-tam-se, no caso, as estratégias 1.3 e 1.4 do Plano Nacional deEducação, respectivamente:

1.3) realizar, periodicamente, em regime de colaboração, levantamentoda demanda por creche para a população de até 3 (três) anos, como formade planejar a oferta e verificar o atendimento da demanda manifesta;

1.4) estabelecer, no primeiro ano de vigência do PNE, normas, proce-dimentos e prazos para definição de mecanismos de consulta públicada demanda das famílias por creches;

Diante de todas essas observações, constata-se que a ju-dicialização da educação, em especial da educação infantil na mo-dalidade de creche, requer dos operadores do direito uma visãomais alargada, posto que, a pretexto de cumprir a lei, acabam porestabelecer situações que mais prejudicam a criança do que a be-neficiam. Também se vislumbra dessas considerações a importân-cia de uma maior especialização dos operadores do direito naseara educacional, que tem suas peculiaridades e especificidades.

Por fim, resta firmar o posicionamento jurídico e educacionalquanto à qualidade da educação infantil (principalmente quandojudicializada). Isso porque a vaga deve ser garantida na creche, massem desmerecer a qualidade. Tanto que, entre as estratégias previstaspara a Meta 01 do Plano Nacional de Educação está a 1.6, queimpõe a implantação da “avaliação da educação infantil, realizadacom base em parâmetros nacionais de qualidade, a fim de aferir a

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infraestrutura física, o quadro de pessoal, as condições de gestão,os recursos pedagógicos, a situação de acessibilidade entre outrosindicadores relevantes”.

Segundo o estudo “Impacto do Desenvolvimento na Pri-meira Infância sobre a Aprendizagem”, realizado pelo Núcleo Ciên-cia pela Infância (NCPI)6, pesquisas evidenciam que essa qualidadeda creche pode ser conferida por uma série de fatores, dentre eles:

• Profissionais com bom nível de formação, atentos e responsivos àsnecessidades das crianças e engajados em promover o desenvolvi-mento pleno. • Turmas pequenas com número reduzido de crianças por educadores. • Currículo adequado à faixa etária com atividades e programa peda-gógico bem estruturados. • Ambiente estimulante e voltado para a participação ativa da criança. • Infraestrutura segura. • Rotinas de higiene e cuidado pessoal. • Modelo de atendimento associado a atividades para apoiar e orientaros pais.

O que se almeja é uma escola de qualidade para todos. Atéporque creches de baixa qualidade impactam de forma negativa o de-senvolvimento regular da criança e os operadores do direito nãopodem desconsiderar tal questão.

Resta, ainda, a efetiva aplicação do princípio da colaboraçãorecíproca posto no art. 211 da Constituição Federal, que implica todosos poderes públicos. Como decorrência desse princípio e o da gestãodemocrática, a melhor saída, além dos parâmetros estabelecidos pelaLei n. 13.005/2014, é o estabelecimento de um diálogo entre os pode-res, sem desmerecer a especialização dos operadores do direitoquanto às questões educacionais.

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6 Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Primeira Infância (2014). Estudo n.1. O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem.Disponível em: <www.ncpi.org.br>. Acesso em: 4 de out. 2016.

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REFERÊNCIAS

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BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em13 de julho de 1990. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. (ColeçãoSaraiva de Legislação).

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n.9394, promulgada em 20 de dezembro de 1996. São Paulo:Roma Victor Ed., 2007.

Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Primeira Infância(2014). Estudo n. 1. O impacto do desenvolvimento na primeirainfância sobre a aprendizagem. Disponível em:<www.ncpi.org.br>. Acesso em: 4 de out. 2016.

CHRISPINO, Álvaro; CHRISPINO, Raquel S. P. A Judicializaçãodas relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores.Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ensaio/v16n58/a02v1658.pdf>. Acesso em: 4 de out. 2016.

Editorial. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação,Rio de Janeiro, vol.16, n. 58, jan./mar. 2008. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40362008000100001>. Acesso em: 4 de out. 2016.

CURY, C.R.J; FERREIRA, L.A.M. A judicialização da educação. IN:FERREIRA, A.M.F. Temas de Direito à Educação. São Paulo: Im-prensa Oficial: Escola Superior do Ministério Público, 2010, p. 53-94.

GOTTI, Alessandra. A Qualidade Social da Educação Brasileiranos Referenciais de Compromisso do Plano e do Sistema Nacio-nal de Educação. São Paulo, 2016. Disponível em:<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view

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=download&alias=41851-estudo-processos-judicializacao-temas-tratados-normas-da-ceb-cnepdf&category_slug=maio-2016-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 4 de out. 2016.

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Haroldo Caetano*

DIREITO PENAL PERIGOSO

DANGEROUS CRIMINAL LAW

DERECHO PENAL PELIGROSO

Resumo:

A análise da teoria da periculosidade, sua origem histórica no século

XIX e posterior inserção no direito penal brasileiro, bem assim a crítica

ao mito da periculosidade do louco, compõem o plano deste trabalho,

que se volta para a desconstrução dos fundamentos que ainda hoje

permitem a imposição de medidas de segurança a pessoas com

transtornos mentais.

Abstract:

The analysis of the theory of dangerousness, your historical origin in

the 19th century and later insertion in the Brazilian criminal law as well

as the critique of the myth of the dangerousness of the madness,

make up the plan of this work, which turns to the deconstruction of the

foundations that still today allow the imposition of security measures

to the persons with mental disorders.

Resumen: El análisis de la teoría de la peligrosidad, su origen histórica en el

siglo XIX y posterior inserción en el derecho penal brasileño, así

como la crítica al mito de la peligrosidad del loco, componen el plano

de este trabajo, que se vuelve a la deconstrucción de los fundamen-

tos que aún hoy permiten la imposición de medidas de seguridad a

personas con trastornos mentales.

* Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, mestre em CiênciasPenais pela Universidade Federal de Goiás e graduado em Direito pela Pontifícia Uni-versidade Católica de Goiás. Vencedor do VI Prêmio Innovare com o Programa deAtenção Integral ao Louco Infrator (PAILI). Promotor de Justiça do Estado de Goiás.

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Palavras-chave:

Direito penal, periculosidade, medidas de segurança, loucura.

Keywords:

Criminal law, dangerousness, security measures, madness.

Palabras clave:

Derecho penal, peligrosidad, medidas de seguridad, locura.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Na Escola Clássica¹, o poder do homem de tomar deci-sões segundo o próprio discernimento, o seu livre-arbítrio, funda-menta a aplicação do direito penal, sendo a liberdade individual deprimordial relevância para o funcionamento de todo o sistema puni-tivo. O crime é um ente jurídico e a culpabilidade do indivíduo cons-titui o pressuposto essencial para a imposição da pena, que deveser proporcional à gravidade do delito praticado. Santiago Mir Puigesclarece que não se punia para além da gravidade da infração co-metida “nem sequer por considerações preventivas, porque a digni-dade humana se opunha a que o indivíduo fosse utilizado como

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¹ Nota do autor: Não existiu propriamente uma escola clássica do direito penal.Tal denominação surgiu da rotulação de Enrico Ferri, que propôs tal definiçãocom a pretensão de desqualificar os pensamentos contrários aos da escola po-sitiva, que se tornavam hegemônicos. O que houve foi uma disputa entre posi-tivistas e os que não admitiam os seus pontos de vista, conforme explanamZaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, em seu Direito PenalBrasileiro, obra à qual remeto o leitor para uma mais aprofundada compreensãoacerca desse debate interessante. Entretanto, a expressão ganhou tamanhaforça que passou a ser ratificada pelos mais variados juristas, notadamentepelo caráter didático da terminologia, que facilita a compreensão das muitastensões provocadas com a inauguração da escola positiva no séc. XIX. Mante-nho a referência à escola clássica, então, exclusivamente pelo caráter didáticoadvindo da contraposição entre os argumentos de legitimação do direito penalque se afastam do determinismo e, mais especificamente, da concepção redu-cionista biológica do ser humano, defendida pelo positivismo criminológico.

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instrumento de consecução de fins sociais de prevenção a ele trans-cendentes” (SANTIAGO, 2007, p. 60). É que por trás das formulaçõesde Kant e Hegel, bases filosóficas do retribucionismo penal, encon-tra-se uma filosofia político-liberal, que tem na proporcionalidade entrea pena e a conduta ilícita uma garantia em favor do indivíduo. Entretanto, a ideia de livre-arbítrio, fundamental para a Es-cola Clássica, é negada radicalmente pelos positivistas. Para a Es-cola Positiva, de raiz determinista, o homem não governa suaspróprias ações e não tem liberdade de agir, pois é condicionado porvários e complexos fatores, de tal sorte que “a escolha, diante daopção, aparentemente livre, é resultante daqueles fatores” (CER-NICCHIARO, 1972, p. 94). Conforme explica Sérgio Carrara, o “bio-determinismo chocava-se frontalmente com o princípio dolivre-arbítrio, que atribuía aos homens a faculdade de dirigir suasações conforme sua vontade, liberta de quaisquer determinaçõesextraconscientes” (CARRARA, 1998, p. 110). Para o positivismo criminológico, a infração penal é ex-pressão sintomática de uma personalidade antissocial, anormal eperigosa. Reflexo de uma doença ou de uma anomalia, o crime nãodeve ter como resposta uma sanção penal de natureza retributiva. Apena ganha, pois, a companhia da medida de segurança, esta decaráter preventivo, capaz de alcançar os objetivos da correção, daeducação, da inocuização e da cura, que irão proporcionar a rea-daptação do delinquente à vida normal e honesta da sociedade. Se, por um lado, a culpabilidade é a premissa fundamen-tal de aplicação da pena, será a periculosidade, por outro, o pres-suposto para a imposição da medida de segurança. Para ospositivistas, o crime é sintoma de uma enfermidade psicossomáticae merece não a retribuição de uma sanção de caráter punitivo. Ocriminoso não deve sofrer a repressão da pena, porém, diversa-mente, deve ser submetido a tratamento com vistas à prevençãode futuras infrações em face de sua periculosidade. Nessa perspec-tiva, as medidas de segurança são os meios aptos a alcançar osobjetivos pretendidos.

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PERICULOSIDADE: EM BUSCA DE UM CONCEITO

Confusão e discrepância de critérios marcam a extrema di-ficuldade dos juristas para conceituar a periculosidade. Sebastián Soler, em seu livro Exposición y crítica de la teoria

del estado peligroso, evidencia as dificuldades conceituais enfrenta-das nas mais variadas formulações propostas. Para Filippo Grispigni,periculosidade é a relevante capacidade de uma pessoa para come-ter um crime ou a probabilidade de vir a se tornar autora do crime.Segundo Jiménez de Asúa, a periculosidade é o reflexo externo deum estado subjetivo, la inmanenza criminale, que, por sua vez, ex-pressa uma disposição orgânica tendente para o crime. Já para Al-fredo Rocco, a periculosidade não passa de um dos efeitospsicológicos do delito. Finalmente, o próprio Soler a conceitua comosendo a “potência, a capacidade, a aptidão ou a idoneidade que umhomem tem para converter-se em causa de ações danosas”(SOLER, 1929, p. 14-21). Conceitos abertos como os que buscam explicar a peri-culosidade revelam a extrema fragilidade da própria teoria, comotambém se revelaram frágeis outros mitos fundantes do positi-vismo criminológico. Quando apontam a periculosidade como po-tência, capacidade ou aptidão para causar danos (Soler),probabilidade de delinquir (Grispigni), tendência para o crime(Asúa), ou, em sentido absolutamente diverso, como simplesefeito psicológico do próprio crime (Rocco), os conceitos poucoou quase nada dizem, pois levam à inafastável conclusão de quequalquer indivíduo carregaria consigo a periculosidade. Sob taisformulações conceituais, absolutamente precárias, todas as pes-soas poderiam ser identificadas como perigosas, uma vez quetodas as pessoas carregariam de forma latente os atributos ca-racterísticos da periculosidade. Contudo, foi Raffaele Garofalo quem antes, em 1878, deu oscontornos conceituais primitivos da periculosidade. Para Garofalo, tambémcitado por Soler, se a pena constitui um meio de prevenção, deve entãoadaptar-se não só à gravidade da infração ou ao dever violado, mas à te-mibilidade do agente, por ele definida como “a perversidade constante eativa do delinquente e a quantidade de mal previsto que se deve temerpor parte do mesmo delinquente” (SOLER, 1929, p. 16). Kátia Mecler, a

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propósito da definição de Garofalo, assinala ter sido a temibilidade “o con-ceito-chave, para fins penais, dos positivistas, sendo o antecessor da con-temporânea teoria da periculosidade” (MECLER, 2010). Foi sob tal perspectiva que Enrico Ferri propôs a defesa so-cial como legitimação para a pena. Para ele, o Estado tem o direitode defender-se dos indivíduos perigosos, sem qualquer diferencia-ção entre imputáveis e inimputáveis, devendo a culpabilidade sersubstituída pela periculosidade. Conforme sustenta, se cada delito,desde o mais leve até o mais cruel, é a expressão sintomática deuma personalidade antissocial, que é sempre mais ou menos anor-mal ou perigosa, “é inevitável a conclusão de que o ordenamentojurídico de defesa social repressiva não pode subordinar-se a umapretensa normalidade ou intimibilidade ou dirigibilidade do delin-quente” (CERNICCHIARO, 1972, p. 95). Segundo os partidários da teoria da defesa social, diante dohomem determinado à prática do crime, a sociedade deve estar de-terminada a defender-se. Nesse contexto, explica Soler, a pena nãotem nenhuma razão de ser como retribuição; é somente um meio dedefesa (SOLER, 1992, p. 383). Corolário desse entendimento,então, e diferentemente da culpabilidade (pressuposto de imposiçãoda pena), que resulta de um juízo sobre o passado e tem no própriocrime a sua razão de ser, a periculosidade (pressuposto para a apli-cação da medida de segurança) remete a um olhar rumo ao porvir,para a probabilidade de o indivíduo praticar um delito no futuro.

O CRIMINOSO NATO

A concepção periculosista que aponta para a necessidadede um direito penal destinado à prevenção em muito se sustenta naideia do criminoso nato², cuja aparição aconteceu na década de1870, com a publicação do livro O homem delinquente, de autoriado médico psiquiatra italiano Cesare Lombroso. Aníbal Bruno pontuaque Lombroso compreendia o criminoso como “uma variedade da

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² Expressão com que Enrico Ferri batizou o descobrimento do seu mestre, CesareLombroso (ZAFFARONI et al, 2015, p. 575).

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espécie humana, um tipo definido pela presença constante de ano-malias anatômicas e fisiopsicológicas” (BRUNO, 2003, p. 62).

Para Lombroso, era certo que, assim como o degene-rado, o criminoso possuía estigmas que, na superfície de seucorpo, indicavam as disposições de sua alma. Entretanto,

...no caso do criminoso nato, os estigmas tornavam-se imediata egrosseiramente indicadores de uma ferocidade original, e não pro-priamente de uma anomalia orgânica. Em termos anatômicos, a au-sência de pêlos, o comprimento exagerado dos braços, a obtusidadedas feições, as orelhas munidas do tubérculo de Darwin, os maxilaressuperdesenvolvidos, a fronte fugidia, a saliência dos zigomas, o exa-gerado escavamento da abóbada palatina e das fossas oculares eainda outras peculiaridades do crânio desenhavam sobre o corpo docriminoso o perfil anatômico dos símios. Em termos fisiológicos, aanalgesia (insensibilidade à dor), a desvulnerabilidade (capacidadede rápida recuperação dos ferimentos), o mancinismo ou o ambides-trismo eram tidos tanto como características dos selvagens quantodos criminosos natos. Psicologicamente, o gosto pela tatuagem, pelagíria e onomatopéias, a imprevidência, a prodigalidade, a vaidade, aimprudência, a impulsividade, a insensibilidade moral, o caráter vin-gativo, o amor pela orgia, a preguiça, a precocidade e o prazer nodelito, a ausência de remorsos completavam a figura do atávico.Havia ainda características fisionômicas: o olhar, frio e fixo nos as-sassinos; errante, oblíquo e inquieto nos ladrões. Além disso tudo, oscriminosos natos seriam geralmente muito sensíveis aos metais, àeletricidade, aos meteoros e às mudanças atmosféricas (principal-mente às tempestades), sendo em sua maioria pederastas ou poucoafeitos às mulheres (CARRARA, 1998, p. 105).

Depois que Cesare Lombroso colocou o problema do cri-minoso nato, não tardou para que os criminosos fossem identifi-cados com as pessoas com menos poder ou em situação devulnerabilidade social, os quais desde sempre povoaram os pre-sídios que, não por acaso, constituíram o campo das pesquisasdo psiquiatra italiano. Por isso, Bartira Macedo de Miranda Santospontua que as teorias de Lombroso tiveram ampla repercussão po-lítico-criminal que “provocaram transformações no saber penalcom rupturas com o princípio da legalidade, servindo de instru-mental teórico ideológico para a punição e controle penal dos in-desejáveis” (SANTOS, 2015, p. 48).

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REFLEXOS DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO

A biologização do crime, conforme proposta por Lom-broso, fez surgir a criminologia como um saber que se propunhaa identificar signos e sintomas de uma specie generis humani in-ferior, como capítulo da antropologia física. Seu objeto “estavabem delimitado – tendo em vista tratar-se do estudo de um grupohumano biologicamente diferente e inferior – motivo pelo qual sechegou a dizer que ela era um ramo da zoologia” (ZAFFARONIet al, 2015, p. 573-574).

Tal teoria teve desdobramentos terríveis nos campos sociale político.

As ideias de Lombroso³ desencadearam um verdadeiroescândalo ideológico e, ainda que as tenha temperado pruden-temente no decorrer de sua vida, sempre estiveram circunscritasa um biologismo bastante reacionário, que culminou por servirde fundamento às teorias racistas do crime do nacional-socia-lismo, conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli, autores que des-tacam também o triste fado ideológico “de um pensamento cujamais difundida versão foi proporcionada por Lombroso, que per-tencia a uma distinta família de judeus italianos” (ZAFFARONI;PIERANGELI, p. 298). É que, por ironia do destino, as teoriaslombrosianas culminaram por dar fundamento ao pensamentoeugênico e higienista, servindo, assim, como argumento de legi-timação da perseguição das raças inferiores, particularmente osjudeus, durante a ascensão nazista na Europa.

As doutrinas positivistas da defesa social partem dessaconcepção periculosista do criminoso e levam o determinismopara o direito penal, que se afasta do livre-arbítrio e abraça aideia oposta, embora também metafísica, do homem, visto comoum animal desprovido de liberdade e plenamente sujeito às leis

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³ “Cabe assinalar que Lombroso era um grande observador, assim como queos presos europeus de seu tempo se pareciam com os colonizados. Hoje sa-bemos que a seleção criminalizadora se efetua de acordo com os estereótipose que também, graças a Lombroso, os estereótipos de sua época se nutriamdas características físicas dos colonizados: todo mau era ‘feio’, como um ame-ricano ou um africano, na conjuntura em que a Europa havia superado a visãobucólica de seus colonizados e passado a considerá-los selvagens” (ZAFFARONIet al, 2015, p. 574).

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da necessidade natural. Mais precisamente, como esclarece Fer-rajoli, as doutrinas da defesa social representam a síntese deuma infeliz mistura das teorias de Lombroso sobre o criminosonato e sobre a natural desigualdade dos homens com aquelasde Spencer acerca da sociedade, como organismo social, e asideias de Darwin a respeito da seleção e da luta pela existência,que “se aplicadas a tal organismo, legitimam-no a defender-sedas agressões externas e internas por meio de práticas social-mente profiláticas” (FERRAJOLI, 2006, p. 249).

A ideologia brutal do positivismo criminológico difundiu-se, tomando conta da Europa e foi exportada para a América La-tina. Em nosso continente foi um pensamento que, acolhido porregimes da mesma forma autoritários e racistas, “serviu para jus-tificar o desprezo pelo índio, o negro, o mestiço e o mulato, quesão os habitantes ‘naturais’ de nossos cárceres” (ZAFFARONI;PIERANGELI, 1997, p. 297).

A pena destina-se, na concepção positivista, a quem re-presente perigo para a sociedade, devendo inclusive sofrer mu-dança significativa e ser substituída pelas pretensamenteassépticas medidas de segurança. A periculosidade, por seu fun-damento racista, será identificada dentre os homens classificadoscomo de pior qualidade, os degenerados, os biologicamente de-ficientes, que deveriam ser controlados pelos que exercem opoder, pois se convertem em uma classe social perigosa. Já osgrupos de poder são praticamente invulneráveis a tais medidasde coerção, pois sua superioridade genética ou biológica os pre-servam e somente por acidente algum de seus integrantes ficariavulnerado (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 297).

O positivismo criminológico frutificou com incrível intensi-dade. Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo fizerammuitas cabeças, de forma que suas ideias ainda continuam vivas napsiquiatria4 e no nosso sistema punitivo5. Paulo Jacobina faz o alerta

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4 Como, por exemplo, Guido Arturo Palomba, para quem “os alienados mentais crimi-nosos são, salvo raras exceções (quando não há nexo causal entre psicopatologia ecrime), biocriminosos puros (o biológico determina a psicopatologia que leva ao crime)”(PALOMBA, 2003, p. 188).5 No direito, embora não sejam poucos os autores que problematizam o assunto, espe-cialmente na criminologia crítica (Ferrajoli, Zaffaroni, Salo de Carvalho, Sérgio Salomão

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de que o criminoso nato “é um fantasma que assombra não só asnossas faculdades de direito, mas também as conversas de bote-quim, as páginas policiais e os repórteres sensacionalistas, sem con-tar os políticos de extrema direita” (JACOBINA, 2008, p. 79-80).

O delito é o sintoma da personalidade antissocial do delin-quente, o que autoriza a defesa social por meios que persigam aprevenção especial dos delitos, para o que penas e medidas de se-gurança assumem a dupla função de curar o condenado, visto comodoente, e/ou segregá-lo e neutralizá-lo em decorrência da sua peri-culosidade. Explica Luigi Ferrajoli que a ideia central dessa teoria éa de que o delinquente é um ser antropologicamente inferior, “maisou menos pervertido ou degenerado, e que, portanto, o problema dapena equivale àquele das defesas socialmente mais adequadas aoperigo que ele representa”. Nessa perspectiva, prossegue Ferrajoli,as penas assumem o caráter de medidas apropriadas às exigênciasterapêuticas da defesa social, “higiênico-preventivas, terapêutico-repressivas, cirúrgico-eliminatórias, dependendo do tipo dedelinquente – ocasionais, passionais, habituais, loucos ou natos –e dos fatores sociais, psicológicos e antropológicos do crime”(FERRAJOLI, 2006, p. 248-249). Os princípios orientadores dasdoutrinas positivistas da defesa social são, assim, a segregação portempo indeterminado, a adaptação dos instrumentos defensivos àrespectiva categoria antropológica do delinquente e a revisãoperiódica da sentença.

Não se fala em imputabilidade ou inimputabilidade, porémestá presente a responsabilidade moral do delinquente, de vezque, na acepção de Ferri, o sujeito ativo do delito é “sempre pe-nalmente responsável, porque o ato é seu, isto é, expressão desua personalidade, quaisquer que sejam as condições físico-psí-quicas em que haja deliberado e agido” (CERNICCHIARO, 1972,

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Shecaira), prevalece na academia e nas instituições do sistema de justiça criminal o en-tendimento segundo o qual a periculosidade do louco é pressuposto apto a sustentar aimposição de medidas de segurança. Tal quadro se explica pela relativamente recenteLei Antimanicomial e pela não assimilada elevação da culpabilidade à condição de prin-cípio constitucional (especialmente no art. 5º, incisos XLV e LVII). São incontáveis os au-tores que dão sustentação à teoria da periculosidade, com forte penetração nasfaculdades de direito e que, por isso mesmo, se faz hegemônica. A título de ilustração,podemos mencionar os nomes de Damásio Evangelista de Jesus, René Ariel Dotti, AndréEstefam, Rogério Greco, Guilherme Nucci, dentre muitos.

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p. 95). Se a culpabilidade não é pressuposto da sanção penal, apericulosidade do criminoso ou, aqui mais precisamente, a peri-culosidade do louco, toma esse lugar.

O LOUCO É PERIGOSO APENAS POR SER LOUCO?

No sistema de duplo binário, penas e medidas de se-gurança coexistem e são simultaneamente aplicáveis ao indiví-duo imputável como respostas legais para a mesma infraçãopenal. No Brasil, desde a reforma penal de 1984, quando foi ado-tado o sistema vicariante na parte geral do Código Penal, so-mente os indivíduos inimputáveis ou semi-imputáveis (CP, art.26), assim declarados por força de doença ou perturbação dasaúde mental, passaram a ter a periculosidade presumida. É paraessas duas categorias que hoje se reservam no direito penal bra-sileiro as medidas de segurança (CP, art. 97). A periculosidadeé, nos termos da norma penal de agora, um predicado exclusivodo louco.

Mas por que motivo o louco deve ser considerado peri-goso? O louco é perigoso apenas por ser louco? A construção ju-rídica do conceito de periculosidade, embora de frágilsustentação, é bastante refinada e exige, para sua configuração,que, além de louco, o indivíduo tenha cometido uma infraçãopenal. O indivíduo não é perigoso por ser louco. Só a prática docrime pode demonstrar a sua periculosidade, esta condicionadaàquela. O crime, por si só, não determina a periculosidade do in-divíduo, como acontecia nas revogadas disposições do duplo bi-nário; da mesma forma a loucura que, por si só, não determina apericulosidade. Para que seja reconhecida, a periculosidade deveconjugar esses dois fatores: a loucura e o crime.

A verificação da periculosidade pelo juiz do processo levaráem consideração esses dois elementos a ela essenciais e, umavez demonstrada no caso concreto a prática do crime pelo agenteinimputável ou semi-imputável, estará autorizada pelo CódigoPenal a imposição da medida de segurança.

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AFINAL, O LOUCO É PERIGOSO?

Conforme demonstrado, a periculosidade é de conteúdojurídico, resultante que é da junção entre dois fatores que tentamlhe dar alguma sustentação conceitual: a loucura e a prática docrime. São muito frágeis os pilares dessa ideia, uma vez que apericulosidade não resulta da loucura em si. A periculosidade re-sulta de uma abstração construída pela norma, de maneira queserá considerado perigoso somente o louco que vier a praticaruma infração penal.

Originalmente, convém lembrar, o louco não era “o” indi-víduo perigoso de que falava a Escola Positiva. Como já exposto,para o positivismo criminológico a periculosidade era inata ao cri-minoso, visto como um indivíduo que nascia fatalmente destinadoà prática da infração penal, independentemente de eventualtranstorno psíquico. Louco ou não, perigoso era o criminoso. Sómais tarde a periculosidade foi restringida ao agente inimputávelpor força de doença mental ou perturbação da saúde mental, oque demonstra o quão flexível era – e ainda é –, o conceito depericulosidade, cujo alcance, conteúdo e significado podem sermodificados ao alvedrio do legislador penal.

Como se percebe, a periculosidade não se fundamenta emum conceito de natureza médica, como poderia parecer à primeiravista. Seu conteúdo é puramente normativo. É certo que Lombrosoera um médico psiquiatra e que foi responsável pelos estudos quelevaram à ideia do criminoso nato, o que mais tarde serviu de refe-rência para a construção do conceito de periculosidade no campodo direito penal. Ocorre que, conforme depois se denunciou, suasconclusões careciam de fundamento científico (não há como indicaruma base biológica para o crime), embora tenham ganhado terrenocom extrema facilidade em função, principalmente, de uma sucessãode fatores – políticos, sociais e econômicos – presentes na Europado século XIX, fruto da ruptura das relações entre servos e nobres,da racionalização da produção agrícola e pecuária, o que impeliugrandes contingentes de camponeses empobrecidos para as cida-des, sem demanda suficiente para acolher a imensa oferta de tra-balho tanto pela baixa produtividade quanto pela escassez decapital. Tal descompasso criou um novo problema: o aparecimento

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da marginalidade urbana como classe perigosa, obrigada a convi-ver no exíguo espaço geográfico das cidades (ZAFFARONI et al,2015, p. 517). Nesse ambiente de crise, particularmente pelo au-mento da pobreza, somada ao medo da guerra e outros problemassociais derivados das mudanças impostas pelo modo de produçãocapitalista, é que se abriu espaço, segundo Rosa Del Olmo, para“uma ciência que fosse efetiva para o controle da sociedade e paramanter a ordem” (SANTOS, 2015, p. 33-34). A periculosidade surge,assim, como um estratagema, um disfarce, um embuste para o con-trole de populações vulneráveis na Europa do século XIX.

Levada a periculosidade para o direito penal, como funda-mento para a imposição de sanções, num primeiro momento foramprevistas, como se demonstrou, várias hipóteses legais de presun-ção da periculosidade, em sintonia com aquela proposta de imporordem e controle às classes perigosas, de sorte que qualquer indi-víduo poderia ser marcado como perigoso em decorrência da práticacriminosa, circunstância reconhecida na própria sentença condena-tória proferida pelo juiz. Agora, em face da flexível conceituação pelanorma penal, perigoso seria somente o louco.

Absolutamente desprovida de fundamento na medicina, apericulosidade tem nos frágeis argumentos do médico psiquiatraCesare Lombroso, todavia, apenas uma explicação artificial, em-bora tenha sido tão sedutora para tantos. A difícil conceituação dapericulosidade como um atributo humano, cuja configuração pres-supõe a presença de fatores estranhos ao próprio homem, resul-tante que é de uma fórmula legal, acaba por expressar, pelas suaspróprias deficiências conceituais, o sofisma que ela representa.Não há como atribuir-se a um ser humano a condição de perigoso.Para ser rotulado de perigoso, o homem deve ser reduzido a umanimal aprisionado às suas necessidades naturais.

É importante lembrar, com Fernanda Otoni de Barros-Brisset,que nem sempre o termo periculosidade se prestou a designar aqualidade de uma pessoa, tampouco constava dos conceitos em-pregados na linguagem jurídica. Não se qualificava alguém comointrinsecamente perigoso. Foi justamente no período compreen-dido entre o final do século XIX e o início do século XX, que otermo ganhou o sentido com que hoje é empregado. Antes, o ad-jetivo perigoso era utilizado como qualquer outro, “um modo de

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predicar situações e coisas; muito dificilmente encontraremos, nosregistros anteriores ao século XIX, essa palavra usada como qua-lidade para predicação de pessoas” (BARROS-BRISSET, 2010, p.20). Até então, certas situações poderiam ser rotuladas de perigo-sas, mas tal qualidade não se projetava para vincular a pessoa emsi, com a conotação patológica que passou a carregar na lingua-gem jurídica.

Não obstante a tentativa da antropologia criminal em apon-tar fundamentos biológicos para o crime, tal concepção só temlugar no positivismo criminológico. Somente com base nas teoriaslombrosianas é que se faz possível vincular loucura e perigo.

DIREITO PENAL PERIGOSO

A experiência de um século em que o direito penal temse orientado pelo mito da periculosidade do criminoso, louco ounão, mostrou-se catastrófica e permitiu que o autoritarismo penaltomasse o lugar da legalidade no sistema punitivo. No Brasil,desde o Código Penal de 1940, com suas medidas de segurançaaplicadas de forma generalizada para indivíduos imputáveis ounão, o direito penal perigoso causou estragos que ainda hojese fazem fortemente presentes para muito além das medidas desegurança. São corriqueiras expressões como bandido peri-goso ou preso de alta periculosidade tanto no sistema de jus-tiça criminal quanto fora dele, com destaque para os meios decomunicação social, o que acaba por naturalizar no imaginárioda população a ideia de que a periculosidade é, de fato, um atri-buto humano.

Além de dar o embasamento essencial para as medidasde segurança, a periculosidade está também embutida em outrosdispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e daLei de Execução Penal, em institutos de nítido fundamento nasteorias lombrosianas. É o que se percebe, por exemplo, no art.326 do CPP, em que a autoridade policial, para determinar o valorda fiança em favor do preso, deverá verificar “as circunstânciasindicativas de sua periculosidade”; ou no art. 8º da LEP, que

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prevê o exame criminológico, procedimento também previstopara a concessão do livramento condicional, nos termos do art.83, parágrafo único, do Código Penal, que exige, para o conde-nado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaçaà pessoa, a constatação de “condições pessoais que façam pre-sumir que o liberado não voltará a delinquir”. O mesmo CódigoPenal, em seu art. 59, prevê ainda a averiguação, pelo juiz, dapersonalidade do agente no ato de fixação da pena. Não é di-fícil perceber que a teoria da periculosidade deixou marcas pro-fundas e dificilmente será algum dia extirpada por completo dosistema repressivo penal.

A periculosidade é uma herança lombrosiana maldita, masque ainda seduz. É injustificável, exceto para quem não se inco-moda em face do autoritarismo punitivo, a acomodação de grandeparte dos pensadores do direito penal diante de uma bizarrice quevem do século XIX, mas que passa distante de qualquer proble-matização mesmo depois da Constituição de 1988 e, o que expõeum pouco mais a omissão acadêmica, mesmo em face da clarezasolar dos avançados dispositivos da Lei Antimanicomial, esta querompe definitivamente com o mito da periculosidade para estabe-lecer uma nova ordem no plano da atenção em saúde mental, pau-tada na liberdade e no respeito à dignidade do louco.

O homem deve ser respeitado em sua dignidade e jamaispoderia ter sido rotulado de perigoso. Perigosa, como demonstrouo nazifascismo europeu da primeira metade do século XX, é a pró-pria doutrina da periculosidade. Perigoso tornou-se o direito penalao acolher as ideias de Cesare Lombroso.

De sua parte, os manicômios judiciários estão em plenofuncionamento na maioria dos estados brasileiros, assegurando aperpetuação do sofrimento de milhares de mulheres e homens apretexto de um conceito que jamais se sustentou cientificamente,uma vez que, e aqui respondendo à indagação inicialmente pro-posta, não! Definitivamente, o louco não é perigoso!

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REFERÊNCIAS

BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni de. Por uma política de atenção

integral ao louco infrator. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de MinasGerais, 2010.

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Flávio Cardoso Pereira*

AGENTE INFILTRADO VIRTUAL (LEI N. 13.441/17): PRIMEIRAS IMPRESSÕES

VIRTUAL INFILTRATED AGENT (LAW N. 13.441/17): FIRST IMPRESSIONS

AGENTE INFANTRADO VIRTUAL (LEY N. 13.441/17): PRIMERAS IMPRESIONES

Resumo:

A figura do agente infiltrado virtual, introduzida ao ordenamento bra-

sileiro por força da Lei n. 13.441/17, veio suprir lacuna no tocante ao

enfrentamento da crimilalidade cibernética, especialmente em se tra-

tando de crimes contra a dignidade sexual de pessoas menores de

idade. Referido meio de obtenção de prova, se empregado com fulcro

e obediêcia aos princípios de legalidade, proporcionalidade e ultima

ratio, por certo apresentará resultados eficazes na luta contra essa

espécie grave de deliquência.

Abstract:

The figure of the virtual infiltrated agent, introduced to the Brazilian

order by virtue of Law no. 13.441 / 17, provided a loophole for dealing

with cybercrime, especially in relation to crimes against the sexual dig-

nity of underage persons. The aforementioned means of obtaining

proof, if employed with fulcrum and compliance with the principles of

legality, proportionality and ultima ratio, will certainly present effective

results in the fight against this severe species of deliquency.

* Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra-Portugal.Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca-Espanha. Especialista emCombate à Corrupção, Crime Organizado e Terrorismo pela USAL-Espanha. Autorda obra “El agente infiltrado desde el punto de vista del garantismo procesal penal”.Professor e palestrante no Brasil e no exterior.Promotor de Justiça do MP-GO. Diretorda Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás.

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Resumen: Una figura del agente infiltrado virtual, introducida al ordenamiento

brasileño por fuerza de la ley. 13.441 / 17, veio suprir lacuna no to-

cante ante el enfrentamiento de crimilalidade cibernética, especial-

mente en el tratamiento de crímenes contra una dignidad sexual de

personas menores de edad. Referido medio de obtención de pruebas,

se emplea con fulcro y obediencia a los principios de legalidad, la pro-

porcionalidad y la última proporción, por cierto presenta los resultados

efectivos en la lucha contra la especie grave de deliquencia.

Palavras-chave:

Agente infiltrado, virtual, crime organizado.

Keywords:

Agent infiltrated, virtual, organized crime.

Palabras clave:

Agente infiltrado, virtual, crimen organizado.

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O AGENTE INFILTRADONOTAS ESSENCIAIS E CARACTERÍSTICAS

O meio de obtenção da prova denominado “infiltração deagentes” refere-se a uma técnica policial utilizada nos dias atuaispela grande maioria dos países democráticos, sendo certo que foinos Estados Unidos da América, e muito particularmente no âmbitoda luta contra o tráfico de drogas, que o recurso a essa estratégiainvestigativa adquiriu historicamente maior relevância, a partir dosanos oitenta do século passado.

A origem histórica, entretanto, pode ser buscada na Françaà época do Ancien Régimen, tendo sido identificada a pessoa deEugène François Vidocq como sendo o primeiro agente a executartarefas típicas de infiltração no ano de 1800.

A aceitação da figura do infiltrado, a nível mundial, justifica-sedesse modo em razão do estabelecimento de uma política criminalbastante significativa, baseada na atuação de agentes policiais, quetem por objeto afrontar as atuações delitivas graves praticadas pororganizações criminosas (perspectiva penal punitiva), porém, comrespeito às garantias constitucionais das pessoas investigadas(perspectiva penal garantista).

Justifica-se o recurso a esse meio extraordinário de investiga-ção, em razão da ineficácia das técnicas tradicionais de investigação,utilizadas habitualmente no controle da expansão da criminalidadeorganizada, e, ainda, diante da dimensão internacional desses gru-pos delitivos, da destacada estrutura logística utilizada em suas ati-vidades ilícitas, e, por fim, face às dificuldades em se conhecer afundo a potencialidade lesiva, a estrutura material e o modus ope-

randi dessas verdadeiras “multinacionais do crime”.Dessa forma, a utilização da infiltração de agentes para a in-

vestigação de determinados delitos de natureza grave é algo natu-ralmente aceito e admitido por um número significativo deordenamentos jurídicos, vez que, apesar de tratar-se de uma téc-nica claramente restritiva de direitos fundamentais, é consideradanecessária para se conter um tipo de criminalidade cada vez maisdesenvolvida e sofisticada, portanto, fruto da atual sociedade glo-balizada. Na grande maioria das vezes, sua utilização ocorre noscasos envolvendo atividades criminosas de caráter transnacional,

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tendo, inclusive, sido incluída entre as técnicas de assistência judicialprevistas no Convênio de Assistência Judicial em Matéria Penal e aceitapelos Estados Membros da União Europeia, em 29.05.2000 (art. 14.1).

O infiltrado investiga as atividades delitivas estando entra-nhado no interior da organização criminosa e, segundo nosso pontode vista, deverá atuar sem exceder ou violar de forma desnecessáriaas garantias constitucionais das pessoas investigadas, utilizando-sede estratégias de investigação, como o engano e a dissimulação,para obter dados, informações e provas que venham a comprovar aprática de delitos graves praticados por membros de um determinadogrupo de delinquentes organizados.

Assim, não tem o agente a intenção de criar nas mentes dosdemais membros do grupo algum propósito delitivo, por isso nãosendo correto falar-se em atos de “provocação”. Ademais, seu obje-tivo consiste tão somente no ato de ingressar no centro estrutural daorganização criminosa e, aproveitando-se da confiança adquiridajunto aos delinquentes, obter informações e provas que possam aju-dar as autoridades encarregadas da persecução criminal, visandoao fim, à desarticulação e à persecução das pessoas envolvidas natrama delituosa.

A técnica da infiltração necessita de um meio para torná-la rea-lidade. Haverá de ser uma pessoa física que irá penetrar de formacamuflada nas estruturas sociais, não necessariamente delitivas, paracumular quaisquer tipos de dados relevantes e referentes a fatos decaráter reservado. Para tanto, o simples estabelecimento de suportestécnicos, como meio de arrecadar informações, não é, no sentido puroda palavra, uma infiltração. São consideradas como característicasbásicas e fundamentais a execução de uma infiltração policial, o usode identidade falsa pelo agente encoberto, a investigação de deter-minada classe de delitos classificados como graves, o uso do enganoe da dissimulação para aproximação do grupo criminoso, a conivên-cia do Estado para com a prática excepcional de crimes de escassagravidade pelo infiltrado, desde que observado o princípio da propor-cionalidade e, por fim, a autorização judicial e sigilosa.

Assim, o êxito da infiltração policial deve ser aferido a partir daconstatação de alguns requisitos básicos e imprescindíveis.

O primeiro requisito seria o caráter excepcional. Como toda me-dida suscetível de restringir um direito fundamental, deverá a infiltração

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apresentar um caráter excepcional e, somente se adotará tal medida,quando não exista outro meio de investigação do delito menos gravosopara os investigados, o que normalmente traduz-se em que a atuaçãodo agente infiltrado seja a ultima ratio. Justifica-se esse requisito, vezque seria totalmente inoportuno e desproporcional a infiltração deagentes policiais para a investigação de um simples grupo de pessoasque praticam furtos esporádicos próximos a uma escola.

Em segundo, deverá ser necessária uma resolução (decisão)expedida pela autoridade judicial. Tal requisito assegura a idoneidadedo método de investigação, obrigando o magistrado a que procedaa uma análise, de forma pormenorizada, acerca da viabilidade daconcessão da autorização, documento este que tornará legítima aatuação do infiltrado, mesmo em caso de eventual violação a direitofundamental do investigado ou imputado.

Em correlação com os primeiros requisitos já abordados,exige-se, ainda, o denominado juízo de proporcionalidade. Este ter-ceiro requisito quer significar que, como toda medida restritiva de umdireito fundamental, a atividade do agente encoberto deverá estarsubmetida ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que o di-reito ao castigo por parte do Estado não deverá realizar-se a qualquerpreço, senão, com respeito, sempre que necessário e possível, aosdireitos e garantias fundamentais do investigado (os quais, como écediço, não se revestem de caráter absoluto).

Em apertada síntese, seriam três as perguntas a serem for-muladas e respondidas pela autoridade encarregada de formularuma representação de infiltração (Polícia), ou emitir um parecer ourequerimento (Ministério Público) ou decidir favorável ou desfavorávelao início da operação de infiltração (magistrado):

1. O meio de investigação (infiltração policial) é apto à ob-tenção do fim perseguido na operação encoberta? 2. Foram previamente esgotadas outras formas de investi-gação, menos agressivas aos direitos e garantias funda-mentais dos investigados?3. As vantagens derivadas do fim público que se persegue(a segurança coletiva) compensam os eventuais prejuízosprovocados aos direitos individuais que serão violados?

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Se respondidos positivamente os três questionamentos, poder-se-á afirmar que a infiltração policial passou pelo filtro de constitucio-nalidade (à luz do princípio da proporcionalidade), estando apta a sercolocada em prática, desde que obedecidos os limites impostos pelaLei n. 12.850/13 e pela resolução judicial do magistrado.

O quarto requisito seria a especialidade. Este requisito estariaintimamente ligado à existência de indícios suficientes para a impu-tação de um delito determinado, de natureza grave, que permita afir-mar a possibilidade de que o sujeito esteja cometendo ou tenhacometido um crime, de forma tal que a autorização, que permite aatuação do agente infiltrado, determinará, concretamente e de modoespecífico, qual seria o delito ou delitos que se investiga e quais sãoas pessoas que provavelmente serão objeto dessa investigação.

A motivação figura como quinto requisito, determinando quedeverá ser argumentado, na autorização judicial, as razões que con-duziram o magistrado a restringir, pelo menos a priori, um direito fun-damental pertencente ao investigado. Nesse sentido, deve serressaltada a importância do papel da Polícia e do Ministério Públicono momento de fornecer ao juiz todos aqueles dados, fatos e indíciosracionais de criminalidade organizada, para que se realize correta-mente a motivação da autorização judicial.

Nesse aspecto em particular, perdeu o legislador brasileiro a opor-tunidade de inserir nos textos das Leis n. 12.850/13 e 13.441/17 redaçãosemelhante àquela prevista no ordenamento penal espanhol (art. 282bis, apartado 3 da LEcrim), no sentido de que “cuando las actuacionesde investigación puedan afectar a los derechos fundamentales, elagente encubierto deberá solicitar del órgano judicial competente lasautorizaciones que, al respecto, establezca la Constitución y la Ley, asícomo cumplir las demás previsiones legales aplicables”1.

Parece-nos que referida disposição contida na lei espanhola apre-senta o condão de alertar previamente o magistrado que irá analisar opedido de infiltração, suscitando o mesmo a proceder a uma verificaçãoacerca de eventuais direitos fundamentais a serem violados no caminharda operação encoberta, sopesando, à luz dos critérios da proporcionalidade

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1 “Quando as atuações de investigação podem afetar aos direitos fundamentais,o agente infiltrado deve solicitar junto ao órgão judicial competente, as autori-zações que, a respeito, estabelecem a Constituição e a lei, assim como, cumpriroutras disposições legais aplicáveis".

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(necessidade, adequação e juízo de ponderação), a viabilidade do de-ferimento do pleito, de modo a evitar a mitigação desnecessária e de-sarrazoada de direitos e garantias fundamentais do investigado.

Por fim, tem-se um último e talvez o mais importante requisitopara o êxito da infiltração. Trata-se do controle a ser exercido pelojuiz e pelo Ministério Público durante o período da operação enco-berta. O órgão do Parquet, como titular do munus do controle externoda atividade policial, deve participar de toda a elaboração do orga-nograma do plano de infiltração. Deve, ademais, durante a operação,ter acesso às informações a serem recolhidas junto ao infiltrado, jus-tificando-se tal direito, em razão de ser o Ministério Público quem irá,durante a persecução penal, utilizar-se das eventuais provas a seremrecolhidas pelos agentes infiltrados junto às organizações criminosas.Velará assim o parquet pela obediência do infiltrado às disposiçõescontidas na autorização judicial. Não é pelo fato de o MinistérioPúblico ser o dominus litis da ação penal, que estará isento de velarpela legalidade e pelo repúdio às práticas de atos abusivos por partedos agentes infiltrados. Da mesma forma, deve o juiz criminal con-trolar, mesmo que de forma indireta (vez que não poderá participarda investigação), a atividade de infiltração, a fim de que não se pro-movam abusos e excessos que, no futuro, além de produziremdanos irreparáveis aos direitos dos investigados, certamente fulmi-narão a prova penal a ser produzida durante a instrução criminal.

Em síntese, a esta breve introdução sobre o tema é importantefinalizar, destacando que o infiltrado consiste na figura representadapela pessoa investida na função policial, todavia, devidamente treinadapara essa situação, que, estando subordinada a outras autoridadesde persecução criminal e utilizando-se de uma identidade falsa, con-segue penetrar nas entranhas de uma determinada organização cri-minosa. Para tanto, vale-se o infiltrado do uso de várias técnicas, aexemplo da dissimulação e do engano, com a finalidade específica deobtenção de provas e outras informações acerca da prática de delitosgraves pelos membros do grupo delitivo. Por consequência, consegueo infiltrado, via de regra, oferecer, ao fim da operação encoberta, infor-mações às autoridades competentes, com o objetivo de colaborar nadesarticulação de toda a estrutura de macro criminalidade2.

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2 Com riqueza de detalhes acerca do tema do agente infiltrado, cf. PEREIRA,

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A LEI N. 12.850 DE 2013 (NOVA LEI DE ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS)

A recente legislação, inserida no ordenamento pátrio no anode 2013, acabou por suprir uma lacuna histórica relativa ao tra-tamento do tema da criminalidade organizada e dos meios deobtenção de provas.

Até então, estávamos subordinados à caótica Lei n. 9.034/953, aqual primava pela ausência de tratamento específico de algumas téc-nicas a serem utilizadas no enfrentamento à delinquência organizada.

Mais que isso, pecava a citada legislação por não apresentarsequer um conceito normativo sobre o que seriam consideradascomo organizações criminosas.

Os meios de obtenção de provas, a exemplo das ações con-troladas e da infiltração policial, eram tratados de forma pouco técnicae não apresentavam na lei sequer os requisitos de validade para aoperacionalização dessas formas de investigação.

Mais grave ainda, na redação original da Lei n. 9.034/95, afigura do agente infiltrado foi vetada, sendo que seu ingresso nalegislação supracitada, mesmo que dotado de imperfeição técnica,somente se deu por meio da edição da Lei n. 10.217/01.

Portanto, temos a figura do infiltrado no âmbito do direito bra-sileiro tão somente a partir de 2001.

No ano de 2012, percebe-se a edição da Lei n. 12.694, a qualdisciplinou o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau dejurisdição de crimes praticados por organizações criminosas. Nãohouve menção aos meios de obtenção de provas em casos de in-vestigações complexas envolvendo criminalidade organizada, res-tando como novidade o surgimento do primeiro conceito normativode organizações criminosas (art. 2º)4.

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Flávio Cardoso; ALMEIDA FERRO, Ana Luiza; GAZZOLA, Gustavo dos Reis.Criminalidade organizada. Comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013.Curitiba: Editora Juruá, 2014, pp. 192-230; PEREIRA, Flávio Cardoso. El agenteinfiltrado desde el punto de vista del garantismo procesal penal”. 2. ed. Curitiba:Editora Juruá Internacional, 2016. 3 Importante destacar também que a infiltração de agentes já estava previstano art. 53, I, da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), porém, de forma acanhadae sem previsão dos requisitos necessários a sua operacionalização. 4 Conceito este que restaria revogado quando da edição da Lei n. 12.850/13.

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Com o advento da Lei n. 12.850/13, houve significativa mu-dança no panorama do tratamento normativo do tema das organi-zações criminosas, devendo ser reconhecido um salto na excelênciade qualidade do reconhecimento da importância de detalhamentolegislativo sobre o assunto.

Em apertada síntese, foram estas as principais novidades tra-zidas pela nova lei de organizações criminosas:

a) novo conceito de organização criminosa (art. 1º, § 1º);b) organização criminosa por equiparação (art. 1º, § 2º);c) tipo penal de organização criminosa (art. 2º);d) meios de obtenção de provas e seus requisitos (art. 3º);e) tipificação dos crimes ocorridos na investigação e na

obtenção da prova (arts. 18 a 21).

Naquilo que nos interessa nesse breve ensaio, a infiltração deagentes teve sua regulamentação na Lei n. 12.850/13 por meio dospreceitos esculpidos nos artigos 3º, VII, e 10 a 14.

De início, cumpre-nos esclarecer quais foram as mudanças dedestaque na novel legislação do agente infiltrado.

A primeira diz respeito à questão do infiltrado e ao número mí-nimo de participantes da organização criminosa.

Parece-nos que a resposta certeira poderá ser extraída do textodo § 1º do art. 1º da Lei n. 12.850/13, ou seja, 4 (quatro) pessoas5.Ademais, que fique claro que o infiltrado não deve ser considerado comoum delinquente a mais, portanto, não figurando nesse quantum de-terminado pela lei. De forma distinta, inimputáveis e pessoas nãoidentificadas são admitidas para a contagem do número mínimo.

O conceito de infiltração permaneceu inexistente na nova leide organizações criminosas, cabendo à doutrina se debruçar sobreessa questão6.

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5 É de se observar que o número mínimo de 04 (quatro) pessoas não se coa-duna com os principais textos internacionais sobre o tema, sendo que a exi-gência do mínimo de 03 (três) pessoas é tendência já consolidada na doutrina,jurisprudência e legislações estrangeiras. 6 Em nossa opinião, no aspecto conceitual, vale destacar que agente infiltrado,encoberto ou topo, é a figura representada pela pessoa que exerce uma funçãopolicial (com uma identidade falsa) e que devidamente treinado para determi-nada situação, sob a subordinação das autoridades competentes e contando

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De outra parte, a infiltração de agentes de polícia poderá seoriginar de requerimento pelo Ministério Público ou representaçãopela polícia (civil ou federal).

Exige-se, pelo texto do artigo 10, caput, da Lei n 12.850/13 a“manifestação técnica” do delegado de polícia, quando a medida deobtenção de provas for solicitada no curso do inquérito policial.

A intenção do legislador teria sido no sentido de que fosse opor-tunizado à autoridade policial, ou seja, aquele órgão que efetivamenteexecutará a operação encoberta, opinar sobre a viabilidade da colo-cação em prática dessa técnica de investigação. Inclusive, seria o mo-mento para que o delegado de polícia, com atribuições legais, pudesseofertar ao magistrado e ao Ministério Público informações úteis sobrea existência ou não de material humano disponível para infiltrar-se naorganização criminosa, para que relatasse acerca das condições ma-teriais e estruturais disponíveis para elaboração do plano operacionalsobre o momento para deflagração da operação, etc.

Manifestando-se o órgão policial contrariamente à viabilidadeda operação, ficaria a cargo do juiz, após analisar os fundamentosofertados, decidir se acolhe ou não o requerimento ministerial.

Ao contrário, opinando a autoridade policial favorável à infiltra-ção, por lógica, será desencadeada a montagem do plano operacio-nal, desde que acolhido o requerimento elaborado pelo MinistérioPúblico. Outras novidades foram a necessidade de sigilosa autori-zação judicial fixando os limites da operação, a oitiva obrigatória doMinistério Público e a demonstração de indícios de infração penal deque trata o art. 1º da Lei n. 12.850/13. Observa-se que não se falouem demonstração de indícios de “autoria”, embora sejam estesnormalmente relevantes.

Por outra parte, uma excelente notícia foi a introdução no artigo 10,§ 2º, de dispositivo no sentido de que somente será admitida a infiltração,

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com autorização judicial fundamentada no princípio da proporcionalidade, con-segue introduzir-se nas entranhas de uma determinada organização criminosa,utilizando-se de várias técnicas de investigação (atos de engano e dissimula-ção), com a finalidade específica de obtenção de informações e dados acercada comissão de delitos graves pelos membros desse clã criminoso e, por con-sequência, com o oferecimento dessas valiosas informações ou dados às au-toridades de persecução, no intuito de que seja desarticulada toda a estruturade macro criminalidade através de uma sentença condenatória futura.

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se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis. Reco-nheceu-se a necessidade concreta de respeito ao princípio da ultima ratio.

Ademais, quanto ao aspecto operacional da operação, positi-vou-se o prazo de 06 (seis) meses para a operação de infiltração,admitindo-se prorrogações, desde que justificadas (art. 10, § 3º).

Deverá haver a apresentação de relatório circunstanciado aojuiz e comprovação pela autoridade solicitante da necessidade da me-dida, do alcance das tarefas dos agentes quando possível, os nomesou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração (art. 11).

Por fim, citam-se os dispositivos referentes ao sigilo quanto aopedido de infiltração (art. 12, caput), ao prazo de 24 (vinte e quatro)horas para que o juiz decida sobre a legalidade do pedido da opera-ção (art. 12, § 1º), a possibilidade de sustação da medida em casode risco ao agente (art. 12, § 3º), a obediência ao princípio da pro-porcionalidade (art. 13, caput) e a previsão de exclusão da culpabili-dade pela inexigibilidade de conduta diversa (art. 13, § único).

Tratou-se, por fim, dos direitos do infiltrado (art. 14).Em síntese, tem-se que a nova lei de organizações (Lei n.

12.850/13), inobstante críticas pontuais, apresentou avanços signifi-cativos em matéria de infiltração de agentes, equiparando-se a outrostantos regramentos internacionais avançados no tocante ao enfren-tamento à criminalidade organizada.

AGENTE INFILTRADO VIRTUAL. A NOVA LEI N. 13.441/2017

A novidade objeto deste estudo sobre a infiltração deagentes diz respeito à publicação da recentíssima Lei n. 13.441,de 08 de maio de 2017, a qual promoveu alterações na Lei n.8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para prever ainfiltração de agentes de polícia na internet, com o fim de investi-gar crimes contra a dignidade sexual de criança e de adolescente.

Alterou-se, portanto, o ECA, promovendo a inserção dospreceitos contidos nos artigos 190-A, 190-B, 190-C, 190-D e 190-D7.

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7 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13441.htm>. Acesso em: 31de mai. 2017.

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Assim, a utilidade maior da infiltração policial cibernética resideno uso de identidade fictícia para coletar informações sigilosas (privadas,em relação às quais há expectativa de privacidade) e na penetraçãoem dispositivo informático do criminoso a fim de angariar provas8.

A partir de agora, poderão ser deflagradas operações deinvestigação mediante a utilização da figura do agente infiltradodentro do ambiente virtual da internet, mesmo não se tratando dehipótese concreta de atuação de uma organização criminosa.

Dentro dessa temática, importante ressaltar que o procedi-mento mais detalhado de infiltração de agentes previsto na Lei n.12.850/13 pode e deve ser utilizado para complementar a previsãolegal da infiltração virtual de agentes. Em outras palavras, a infiltraçãovirtual seria apenas uma espécie do gênero infiltração de agentes.

Justamente por isso, seria perfeitamente possível a adoçãodo procedimento de infiltração virtual de agentes para a apuraçãode organizações criminosas. Nesse sentido, a nova lei em mo-mento algum estabelece essa vedação9.

Justifica-se, ademais, tal inovação legislativa trazida pelaedição da Lei n. 13.441/17, vez que, dentre os crimes que podemser praticados contra a dignidade sexual de infantes e adolescen-tes, destaca-se a pedofilia10, tema de moda dentre os problemasenfrentados pelas sociedades modernas, em razão do incre-mento e crescimento dos meios tecnológicos, em especial faceaos avanços da rede mundial de computadores (internet).

Assim, tornou-se algo comum a utilização dessa forma decontato virtual para se iniciar, sem aparente risco, uma amizade

8 Nesse sentido, vide MONTEIRO DE CASTRO, Henrique Hoffmann. “Lei13.441/17 instituiu a infiltração policial virtual”. Artigo publicado no site Conjur, em16/05/2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-16/academia-policia-lei-1344117-instituiu-infiltracao-policial-virtual>. Acesso em: 31de mai. 2017.9 Adotando essa posição, cfr. SANNINE NETO, Francisco. “Infiltração virtual deagentes é um avanço nas técnicas especiais de investigação criminal”. Artigopublicado no site Damásio Educacional, em 15/05/2017. Disponível em:<http://noticias.damasio.com.br/noticias-damasio/infiltracao-virtual-de-agentes-e-um-avanco-nas-tecnicas-especiais-de-investigacao-criminal/>.Acesso em: 31de mai. 2017.10 Destaca-se que a pedofilia, segundo corrente majoritária no Brasil, não é con-siderada infração penal. Conforme SYDOW, Spencer Toth. “Pedofilia virtualeconsiderações críticas sobre a Lei n. 11.829/08”, Revista Liberdades (IBCCrim),n.1, 2009, pp.46-65.

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do criminoso com uma vítima menor de idade, com o objetivo demanter com ela, em um futuro próximo, atos de satisfação de las-cívia sexual.

Além da pedofilia propriamente dita, a internet acabasendo utilizada como meio de prática de inúmeras outras infra-ções penais, dentre as quais se destacam aquelas mencionadasno caput do art. 190-A do ECA.

Referida prática delitiva11 encontra-se catalogada comouma das atividades ilícitas mais frequentemente perpetradaspelas grandes organizações criminosas de cunho transnacional.Justifica-se tal assertiva em razão dos altíssimos lucros advindosda exploração, principalmente, de material pornográfico na redemundial de computadores.

A infiltração virtual prevista na Lei n. 13.441/17 poderáser operacionalizada para o enfrentamento a crimes graves, aexemplo dos crimes de invasão de dispositivo informático, estu-pro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia,mediante presença de criança ou adolescente e favorecimentoda prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criançaou adolescente ou de vulnerável.

É de se destacar que a nova modalidade de infiltração,a qual podemos denominar como “virtual”, deverá ser levada aefeito por agente policial devidamente treinado para tal desígnio,devendo este apresentar aspectos psicológicos condizentes coma complexidade da operação, perfil intelectual adequado para ocorreto desempenho das tarefas inerentes ao plano operacional,conhecimentos avançados em matéria cibernética e capacidadede inovar em situações de extrema fragilidade no tocante ao sigilodo trabalho encoberto.

Caberá ao mesmo obter a confiança daquelas pessoasenvolvidas na trama delitiva e, após o uso de meios e técnicasde dissimulação no meio virtual, conseguir obter dados e infor-mações acerca da prática de delitos graves (mencionados nanova lei), visando à deflagração a posteriori de um plano de desar-ticulação e persecução aos eventuais delinquentes ou membros deuma determinada organização criminosa.

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11 A pedofilia é consderada em alguns ordenamentos jurídicos como delito.

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Interessante mencionar alguns pontos nucleares da in-filtração virtual, lançando ainda algumas observações críticaspertinentes ao tratamento legislativo da matéria.

De início, deverá haver autorização judicial devidamentecircunstanciada e fundamentada, explicitando os limites para aobtenção da prova.

Nesse aspecto, andou bem o legislador pátrio, vez queacorde com uma concepção garantista do processo penal, nadamais lógico do que nortear a atuação do magistrado à explicita-ção de sua decisão sob o manto da justificação das razões dedecidir (imperativo constitucional do art. 93, IX, da CF).

Na mesma linha, deverá ser ouvido o Ministério Público,quando a representação tiver origem em solicitação formuladapela autoridade policial.

A legitimidade para o pedido de infiltração poderá partirtanto do Ministério Público (via de requerimento) ou do delegadode polícia (via representação).

Uma falha a ser apontada na nova Lei n. 13.441/17 diz res-peito à ausência de exigência de “manifestação técnica” da autoridadepolicial, quando o pedido for formulado pelo representante do parquet.

Ora, poder-se-ia ter o legislador utilizado da mesma linha deraciocínio da Lei n. 12.850/13 (art. 10, caput), vez que a menção e aexigência de manifestação técnica do delegado de polícia se traduzemem requisito primordial e imperioso ao êxito da operação de infiltração.

Imagina-se que o Ministério Público faça um requeri-mento ao juiz, pleiteando autorização de deflagração de opera-ção mediante uso de um agente infiltrado virtual, vindo a mesmaa ser acatada, autorizando-se o pedido.

Levada a decisão ao conhecimento da polícia, observao delegado de polícia a ausência de pessoa qualificada nos qua-dros da instituição policial para o desempenho de tal função.

O que fazer? Inserir no mundo virtual um agente sem a ap-tidão e o preparo necessários ao bom caminhar das investigações?

Não nos parece ser essa a solução adequada, vez queum dos requisitos basilares, quando da elaboração do plano ope-racional de infiltração, consiste no recrutamento inicial do agenteportador de perfil técnico e psicológico correspondente à finali-dade da investigação.

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Outra observação de interesse diz respeito ao prazo de90 (noventa) dias, cujo limite não poderá ser excedido, salvo emcaso de eventuais renovações, e ainda desde que não ultrapasseno seu total o lapso temporal de 720 (setecentos e vinte) dias.

Haveria em todo caso a necessidade de demonstraçãopor parte do órgão solicitante da efetiva necessidade de opera-cionalização da infiltração virtual.

O prazo inicial de 90 (noventa) dias parece-nos razoável,vez que cada operação encoberta apresentará particularidades,que podem ao fim justificar a elasticidade ou não desse lapsotemporal previsto em lei.

Nessa mesma linha de intelecção, as renovações sãopermitidas como consectário lógico ao desenvolvimento da com-plexa operação de infiltração.

Diante do exposto, parece ter falhado o legislador, aoprever no art. 190-A, III, da Lei n. 8.069/90 (com as alteraçõespromovidas pela Lei n. 13.441/17), o prazo máximo dessas pror-rogações, fixando um patamar único e fechado de 720 (setecen-tos e vinte) dias para a conclusão da operação de investigação.

Ora, é cediço dentre aqueles que conhecem o mínimosobre investigações criminais que cada situação concreta apre-senta suas particularidades e nuances, devendo ser lembrada asituação esdrúxula de uma investigação focada em uma estrutu-rada e poderosa rede de pedofilia, portanto, verdadeira organi-zação criminosa transnacional, na qual o órgão de persecuçãose veja prestes a concluir o trabalho investigativo em data pró-xima ao prazo limite de 720 (setecentos e vinte) dias.

Nessa hipótese aventada, perder-se-ia todo o trabalhoárduo desenvolvido pelo agente infiltrado virtual, em razão deeste não ter conseguido concretizar a obtenção da prova dentrodo limite fixado por lei12.

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12 Basta lembrar que grandes operações de infiltração a nível mundial, que re-dundaram em desarticulação de poderosas organizações criminosas, perdura-ram por alguns anos, face à complexidade da obtenção de provas quepudessem incriminar agentes pertencentes a esses grupos delitivos. Cita-se,como exemplo, a operação levada a efeito pelo agente de codinome “lobo” naEspanha, a qual desarticulou nos anos oitenta boa parte da estrutura operacio-nal da organização terrorista conhecida por ETA.

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Andou melhor o texto da Lei n. 12.850/13, bem como damaioria dos ordenamentos jurídicos que tratam do tema, ao fixa-rem um prazo inicial razoável, porém, permitindo quantas foremas prorrogações, desde que a autoridade solicitante demonstre,perante o juiz da causa, as razões técnicas e operacionais quepossam justificar a continuidade do trabalho de busca de dadose informações sobre os delitos graves praticados em detrimentoda dignidade sexual de criança e adolescente.

Cumpre papel relevante nesse contexto, a análise docaso concreto à luz do princípio da proporcionalidade, o qual podeser compreendido como um verdadeiro critério que busca esta-belecer os limites à intervenção do agente infiltrado virtual nabusca da verdade, equilibrando-se os interesses do Estado e osdireitos das pessoas que figuram como investigadas. Referimo-nos ao reconhecido e compatibilização do binômio garantia-eficiência.

Outra nota de destaque no texto da Lei n. 13.441/17 con-diz com o reconhecimento do princípio da ultima ratio, exigindo-se que a infiltração dos agentes policiais virtuais só ocorra se aprova não puder ser obtida por outros meios menos invasivos adireitos e garantias individuais.

Por essa razão, em conformidade com o § 3º, poder-se-áadmitir que, como toda medida suscetível de restrição de direitosfundamentais, deverá a infiltração de agentes apresentar um ca-ráter excepcional, sendo adotada somente na hipótese de ine-xistência de outros meios de obtenção de provas.

Acertou a nova lei ao prever que as informações da ope-ração deverão ser encaminhadas diretamente ao juiz responsávelpela operação, visando com isso concretizar e garantir o sigilo ne-cessário a essa técnica de investigação (art. 190-B, caput, do ECA).

Digna de crítica parece-nos ser a redação dada ao art.190-C do ECA (inserido por força da Lei n. 13.441/17), a qual nãomenciona explicitamente a causa de exclusão de ilicitude oucausa absolutória na qual estará amparado o agente infiltradovirtual que ocultar sua identidade no ambiente cibernético, a fimde colher indícios de autoria e materialidade dos crimes mencio-nados nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do Esta-tuto da Criança e do Adolescente e nos arts. 154-A, 217-A, 218-A

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e 218-B do Código Penal. Cita-se, a título de comparação, que a Lei n. 12.850/13

fez constar expressamente no § único do art. 13, que não é puní-vel, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infil-trado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.

E mais grave, ainda, seria a conduta do infiltrado no sen-tido de ocultar a sua identidade no mundo virtual, infração penalprevista no ordenamento jurídico brasileiro? Não, em nossa opinião.

Da mesma forma, ficou em aberto, no texto da nova leisobre o infiltrado virtual, o tratamento jurídico a respeito da respon-sabilidade penal, civil e administrativa do agente que, no curso dainvestigação devidamente autorizada judicialmente, cometer atose crimes que possam redundar em tais consequências jurídicas.

Limitou-se o legislador a apontar que o agente policial in-filtrado, que deixar de observar a estrita finalidade da investiga-ção, responderá pelos excessos praticados (art. 190-C, § único,do ECA, com a alteração promovida pela Lei n. 13.441/17).

Dirão os mais simplistas que bastará aplicar a analogiapara se buscar amparo na tese da inexigibilidade de conduta di-versa, a fim de justificar eventuais crimes praticados pelo infil-trado virtual. Não nos apresenta tal justificativa tão acertada.

Por fim, restou positivamente consignado na lei reguladorado agente infiltrado virtual que, concluída a investigação, todos osatos eletrônicos praticados durante a operação deverão ser regis-trados, gravados, armazenados e encaminhados ao juiz e ao Mi-nistério Público, juntamente com o relatório circunstanciado.

Consectário lógico, deverá, ao fim da operação enco-berta, assegurar-se a identidade do infiltrado e das crianças eadolescentes envolvidos no caso sob investigação (art. 190-E doECA, introduzido por força da Lei n. 13.441/17).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, a introdução do agente infiltrado virtual,no contexto das investigações atinentes ao enfrentamento à cri-minalidade organizada e aos atos isolados de pedofilia, reveste-se de suma importância em razão do avanço promovido pelaevolução assustadora das novas tecnologias.

O mundo cibernético se transformou em terreno vasto paraa proliferação e perpetuação de atividades criminosas que promo-vem lucros altíssimos a poderosas organizações criminosas.

A descoberta dos segredos contidos nos bastidores da“rede das redes” tem se tornado uma aspiração mundial por partedos agentes incumbidos de promover a prevenção e a repressãoao crime organizado.

Assim, a justificação do uso de técnicas, como a dissi-mulação e o engano, para se infiltrar no meio cibernético, con-siste em questão de política criminal, retratando asconsequências advindas dessa violação de direitos e garantiasindividuais do investigado.

Porém, em nossa visão sobre o tema, a explicação lógicaacerca da utilização, em ultima ratio, desse meio de obtenção deprovas poderá ser justificada em uma ponderação de valores, naqual prepondera, no caso concreto, o valor “eficácia”, vez que ameta consiste em enfrentar de forma contundente essa formagrave de perpetração de delitos contra vítimas vulneráveis, utili-zando-se para tal do agente infiltrado virtual, na busca de pro-mover o bem- estar e a pacificação social da sociedade, que seencontra atemorizada diante de tantas atrocidades cometidascontra nossa juventude através da rede internet.

Nesse aspecto, dentro de um Estado de Direito, deveráser visada a aplicação da “justiça”, mas sem se descuidar dasprecauções para se evitar o “vale tudo” no tocante à obtenção daprova penal.

Não se pode dessa forma promover o engano via virtual,de modo desproporcional e sem obedecer aos critérios legaispara a concessão de autorização judicial para a infiltração de umagente policial na internet.

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Embora se possam vislumbrar equívocos e, principal-mente, distorções entre as Leis n. 12.850/13 e 13.441/17, andoubem o legislador brasileiro ao preocupar-se com o enfrentamentodessa nova modalidade de criminalidade “virtual”, a qual infeliz-mente atinge um público totalmente vulnerável e passível dedanos físicos e psicológicos irreparáveis.

Espera-se uma vez mais que os atores do processopenal possam, tal qual um remédio com alta propensão de resul-tados práticos, utilizar os norteamentos promovidos pela ediçãoda nova lei, com moderação e cuidado, evitando-se fazer “justiça”com resultados também gravosos aos direitos das pessoas acu-sadas ou investigadas pela prática de delitos graves cometidoscontra crianças e adolescentes.

Que se promova o respeito e culto a um processo penalgarantista. No bom sentido, é lógico.

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REFERÊNCIAS

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Lei 13.441/17 instituiu ainfiltração policial virtual. Artigo publicado no site Conjur, em16/05/2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-16/academia-policia-lei-1344117-instituiu-infiltracao-policial-virtual>.Acesso em: 31 de mai. 2017.

PEREIRA, Flávio Cardoso; ALMEIDA FERRO, Ana Luiza; GAZ-ZOLA, Gustavo dos Reis. Criminalidade organizada. Comentá-rios à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. Curitiba: EditoraJuruá, 2014.

PEREIRA, Flávio Cardoso. El agente infiltrado desde el punto de

vista del garantismo procesal penal. 2. ed. Curitiba: Editora JuruáInternacional, 2016.

SANNINE NETO, Francisco. Infiltração virtual de agentes é umavanço nas técnicas especiais de investigação criminal. Artigopublicado no site Damásio Educacional, em 15/05/2017. Dispo-nível em: <http://noticias.damasio.com.br/noticias-damasio/infil-tracao-virtual-de-agentes-e-um-avanco-nas-tecnicas-especiais-de-investigacao-criminal/>. Acesso em: 31 de mai. 2017.

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Franciely Vicentini Herradon*

TRIBUNAL DO JÚRI: CONHECIMENTO DE OFÍCIO DA REINCIDÊNCIA E DA MENORIDADE SEM AFRONTA À SOBERANIA DO VEREDICTO

JURy: lEGAl KNOWlEDGE OF tHE CRiMiNAl RECURRENCE AND MiNORity WitH NO

AFRONt tO tHE SOVEREiGNty OF tHE VERDiCt

tRiBUNAl DEl JURADO: CONOCiMiENtO DEOFiCiO DE lA REiNCiDENCiA y DE lA MENORiDAD

SiN AFRONtA A lA SOBERANÍA DEl VEREDiCtO

Resumo:

A Lei n. 11.689/2008 provocou acentuadas mudanças quanto ao pro-

cesso e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, especialmente

a matéria referente à formulação de quesitos. Assim, circunstâncias

agravantes e atenuantes apreciadas pelo magistrado na segunda

fase da dosimetria não são quesitadas aos jurados, porém, o juiz pre-

sidente somente poderia aplicá-las se sustentadas pelas partes du-

rante os debates. Todavia, a agravante da reincidência e a atenuante

da menoridade são circunstâncias de caráter objetivo, já demonstra-

das nos autos documentalmente e também pelo interrogatório judicial,

o que permitiria ao julgador conhecê-las de ofício, sem qualquer

afronta ao contraditório e à plenitude de defesa, bem como à sobe-

rania dos veredictos, conforme importante precedente do Supremo

Tribunal Federal lastreado no princípio da proporcionalidade da pena.

Abstract:

The Law n. 11.689/2008 promoted drastic changes in procedures

related judgement of deliberate crime committed against human

life, especially concerning issues referring to questions formula-

tion. Thus, aggravating or attenuating circumstances assessed

*Pós-graduada em Ciências Criminais pela Escola Superior Associada de Goiâniae graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR. Juíza de Direitoda Comarca de Novo Gama-GO.

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by the magistrate at the second stage of penalty setting, do not

submit to jury’s questioning anymore, but a judge presiding would

be able to apply them only if mentioned by the parts involved du-

ring jury debates. However, the aggravating concerning habitual

offense, as well as attenuating minority are circumstances of ob-

jective nature, as they have already been registered at court re-

cords and trial inquiry, which allows the judge to appoint them by

his own initiative, with no harm to contestation and broad de-

fense, as well as to verdict prevalence, in accordance with im-

portant precedent at Brazilian Federal Supreme Court based on

the penalty proportionality.

Resumen:

La Ley n. 11.689/2208 hizo grandes cambios en el proceso y juzga-

miento de los delitos dolosos contra la vida, especialmente en lo que

atañe a la formulación de los quesitos. Así, las circunstancias agra-

vantes y atenuantes preciadas por el juez en la segunda fase de la

dosimetría de la pena no son objeto de los quesitos a los jurados, sin

embargo, el juez presidente solo podría aplicarlas si sustentadas por

las partes durante los debates. Por otra parte, la agravante de la rein-

cidencia y la atenuante de la menoridad son circunstancias de carác-

ter objetivo, ya demostradas en los autos documentadamente así

como en el interrogatorio judical, lo que permitiría al juez conocerlas

de ofício, sin cualquier afronta al contradictorio y a la amplia defensa,

como tampoco a la soberanía de los veredictos, conforme importante

precedente del Supremo Tribunal Federal basado en el principio de

la proporcionalidad de la pena.

Palavras-chave:

Dosimetria, atenuante, agravante, circunstâncias objetivas.

Keywords:

Penalty dosimetry, attenuating, aggravating, objective circumstances.

Palabras-clave:

Dosimetría, atenuante, agravante, circunstâncias objetivas.

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INTRODUÇÃO

As normas processuais que disciplinam o tribunal do Júri,previstas no Código de Processo Penal de 1941, sofreram inúme-ras modificações com a lei n. 11.689/2008, com o fito de agilizar,simplificar e modernizar o procedimento atinente aos crimes dolo-sos contra a vida.

Dentre as alterações oriundas da novel legislação, ocupaposição de destaque a formulação de quesitos.

Pelo regramento anterior, as circunstâncias agravantes eatenuantes necessariamente eram objeto de quesitos, de maneiraque o juiz sentenciante não poderia decidir isoladamente e tam-pouco contrariar o entendimento dos jurados. todavia, o sistemaprocessual vigente permite que aludidas circunstâncias sejam re-conhecidas pelo magistrado independente de qualquer indagaçãoao Conselho de Sentença.

Para que tais circunstâncias incidam na segunda fase defixação da pena, mister se faz que sejam sustentadas pelas partesdurante o momento processual denominado “debates”, em confor-midade com o disposto no artigo 492, inciso i, alínea b, do Códigode Processo Penal.

Entretanto, será que mencionado preceito aplica-se indis-tintamente a qualquer agravante ou atenuante? Ora, não se podeolvidar que há circunstâncias agravantes e atenuantes de naturezaobjetiva, as quais dispensam maiores indagações entre os sujeitosprocessuais, mormente porque já se encontram documentadas nosautos, não pairando dúvidas quanto às suas existências.

Desse modo, para o reconhecimento na sentença da agra-vante da reincidência e da atenuante da menoridade, ambas decaráter objetivo, seria necessário que fossem postuladas peloórgão acusatório e pelo defensor durante os debates?

O estudo em questão tem por escopo demonstrar pelométodo dedutivo, através de evolução doutrinária e jurisprudencialnacional, que o magistrado pode aplicar a agravante da reincidên-cia e a atenuante da menoridade, ainda que não tenham sido sus-citadas pelas partes, sem acarretar qualquer nulidade processuale ofensa à soberania do júri popular.

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A SOBERANIA DO VEREDICTO DO TRIBUNAL DO JÚRI: DELIMI-TAÇÃO

O tribunal do Júri - integrante do Poder Judiciário de pri-meira instância da Justiça Comum Estadual e Federal -, é de natu-reza eclética, ou seja, composto por um juiz togado, que o presidee por 25 (vinte e cinco) cidadãos, dentre os quais, 07 (sete) serãosorteados para compor o Conselho de Sentença em cada sessãode julgamento e com competência mínima para julgar os crimesdolosos contra a vida.

A Constituição Federal de 1988, no título ii, reservado aosdireitos e garantias fundamentais, conferiu ao júri a importância defigurar como garantia e direito-instrumental (art. 5º, XXXViii), com opropósito de tutelar o direito de liberdade e também o direito coletivoe social do cidadão para participar ativamente do Poder Judiciário1.

Além do mais, a instituição do júri foi erigida à categoria decláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, iV), não podendo ser abolida doordenamento jurídico pátrio, sendo ainda regida por um microssis-tema inserido no âmbito do Código de Processo Penal2 em conso-nância com os princípios constitucionais.

Dentre tais princípios, merece especial ênfase aquele de-nominado de soberania dos veredictos (CF, art. 5º, XXXViii, c), oqual estabelece que a decisão coletiva e sigilosa dos jurados sejaacatada, impossibilitando qualquer alteração em seu mérito, seja

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1 Nesse sentido: “Se é uma garantia, há um direito que tem por fim assegurar.Esse direito é, indiretamente, o da liberdade. [...] o Estado só pode restringir a li-berdade do indivíduo que cometa um crime doloso contra a vida, aplicando-lheuma sanção restritiva de liberdade, se houver um julgamento pelo tribunal doJúri. O Júri é o devido processo legal do agente de delito doloso contra a vida,não havendo outro modo de formar sua culpa. E sem formação de culpa, ninguémserá privado de sua liberdade (art. 5º, liV). logicamente, é também um direito.Em segundo plano, mas não menos importante, o Júri pode ser visto como umdireito do cidadão de participação na administração de justiça do país.” (NUCCi,1999, p. 55). Enaltecendo ainda a importância do tribunal do Júri: “Por sua posi-ção topográfica no texto constitucional, contemplado entre as garantias funda-mentais dos cidadãos, vê-se, de logo, o estreito liame da instituição do júri comos ideais democráticos acolhidos pela nação, a um tempo servindo de garantiaao acusado, de ser julgado por seus pares, e permitindo a participação popularna administração da justiça criminal.” (BONFiM; PARRA NEtO, 2009, p.1).2 Após ser sancionada a lei n. 11.689, de 09 de junho de 2008, a matéria foi discipli-nada nos artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal (Cf. CPP, art. 394, § 3º).

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por um juiz de direito, seja por um tribunal.Nesse viés, oportuna a distinção de José Frederico Mar-

ques (1997, p. 80) entre soberania do júri e soberania dos veredic-tos. Enquanto a primeira refere-se à impossibilidade de outro órgãodo Poder Judiciário, por exemplo, tribunal de Justiça, em sede re-cursal, modificar o entendimento dos jurados, a segunda atinge opróprio magistrado presidente, impedindo-o que contrarie a vontadepopular ao proferir sentença com conteúdo diverso do que foi deli-berado pelos juízes naturais da causa3.

Mas se a decisão dos jurados for manifestamente contráriaàs provas dos autos, caberá à parte interessada interpor apelação,podendo o juízo ad quem determinar a realização de novo julgamentopelo próprio júri, com outros jurados (CPP, art. 593, iii, d e § 3º), semque haja violação ao postulado da soberania dos veredictos.

Frisa-se que o jurado, pelo princípio da íntima convicção,simplesmente vota, condenando ou absolvendo o réu, de acordocom sua consciência e sem apego à lei4. Como bem asseverou Ro-berto lyra, “não é o jurado obrigado, como Juiz, a decidir pelas pro-vas do processo, contra os impulsos da consciência” (apudtOURiNHO FilHO, 1997, p. 76). Ele apenas vota “sim” ou “não”aos quesitos, sem externar qualquer fundamento.

Entende-se por quesitos as perguntas dirigidas aos juradospara que se pronunciem sobre a imputação que recai sobre o réu,cujo resultado das respostas materializará a soberania do veredicto.Ao conjunto de quesitos dá-se o nome de questionário.

Assim, a soberania dos veredictos restringe-se ao méritoda causa, isto é, os juízes leigos votam os quesitos pela condena-ção ou absolvição do acusado, cabendo ao juiz de direito, a partirdo resultado obtido, empenhar-se na fixação da reprimenda.

Portanto, o preceito constitucional da soberania dos vere-dictos não abrange a dosimetria da pena, sendo esta de compe-tência exclusiva do magistrado presidente.

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3 Vide também: ANSANElli JÚNiOR, 2005.4 A propósito, uma vez formado o Conselho de Sentença composto por 07 (sete)cidadãos sorteados, procede-se ao juramento, ocasião em que os jurados sãochamados nominalmente, firmando o compromisso de que decidirão o caso emjulgamento, de acordo com a consciência e os ditames da justiça, sem qualquerreferência às leis e às jurisprudências pátrias. Vide artigo 472 do Código deProcesso Penal.

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AS CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES: NECES-SIDADE DE ELABORAÇÃO DE QUESITOS ANTES E APÓS ALEI N. 11.689/2008

Anteriormente às alterações introduzidas pela lei n.11.689/2008, uma das funções do libelo-crime - peça articulada pri-vativa do órgão acusatório -, era permitir a inclusão das circunstân-cias agravantes, que, nesta hipótese, obrigatoriamente, seriamobjeto de quesitos, sob pena de nulidade.

Nesse sentido decidiu o Superior tribunal de Justiça que,“no julgamento pelo júri, não formulado quesito sobre a reincidên-cia, a agravante não pode ser considerada pelo juiz presidente aoexarar a sentença, sob pena de nulidade” (BRASil, 2009), se-guindo a mesma orientação do Supremo tribunal Federal quantoà indispensabilidade de elaboração de quesito sobre a agravanteda reincidência, ou de qualquer outra, para que se pudesse na sen-tença reconhecê-la5.

logo, pela sistemática outrora vigente, as circunstânciasagravantes deveriam ser articuladas no libelo-crime ou, então, sus-tentadas em plenário durante os debates, para que fossem subme-tidas ao crivo do Júri Popular, a requerimento do acusador6.

No tocante às circunstâncias atenuantes, antes da reformaprocessual, compunham elas o rol de quesitos obrigatórios, inde-pendente da defesa articulá-las na contrariedade ao libelo oumesmo em plenário7. A ausência desse quesito ensejava nulidadeabsoluta, em consonância com a Súmula 156 do StF8.

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5 Cf. Habeas Corpus n. 69.803, segundo o qual o Relator Ministro Paulo Brossardsedimentou que a “reincidência induz nulidade de sentença por falta de quesitonesse sentido.”6 Eis a redação do antigo artigo 484, parágrafo único, do Código de ProcessoPenal: “Serão formulados quesitos relativamente às circunstâncias agravantese atenuantes [...]: i – para cada circunstância agravante, articulada no libelo, ojuiz formulará um quesito; ii – se resultar dos debates o conhecimento da exis-tência de alguma circunstância agravante, não articulada no libelo, o juiz, a re-querimento do acusador, formulará o quesito a ele relativo.”7 A redação antiga determinava que “o juiz formulará, sempre, um quesito sobre a exis-tência de circunstâncias atenuantes, ou alegadas” (CPP, art. 484, parágrafo único, iii). 8 “É absoluta a nulidade do julgamento, pelo júri, por falta de quesito obrigatório.”

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todavia, o libelo-crime não mais foi contemplado. Hodier-namente, é a pronúncia que delimita a acusação em plenário, de-vendo o juiz, de forma comedida e fundamentada, indicar amaterialidade do fato e a existência de indícios suficientes de auto-ria ou de participação, bem como citar o dispositivo legal que seacha incurso o pronunciado, além de eventuais qualificadoras ecausas de aumento de pena (CPP, art. 413, § 1º).

trata-se, pois, do princípio da correlação entre a pronúnciae o questionário, isto é, “teses não abordadas especificamente nadecisão de admissibilidade da acusação, relacionadas ao tipo penalincriminador, são vedadas ao órgão acusatório, ao atuar em plenário”(NUCCi, 2013b, p. 138).

Observa-se, porém, que a novel legislação não mencionouas chamadas circunstâncias agravantes, previstas nos artigos 61 e62 do Código Penal, como parte integrante da decisão de pronúncia9.

Desse modo, exsurge a seguinte indagação: As circuns-tâncias agravantes, tais como as atenuantes, devem ser objeto dequesitos?

Em outras palavras, compete aos jurados votarem pelaconfiguração ou não de tais causas legais de elevação ou reduçãoda pena, assim como ocorria antes da entrada em vigor da lei n.11.689/2008?

Oportuno ponderar que as circunstâncias agravantes (CP,arts. 61 e 62) e atenuantes (CP, arts. 65 e 66) são matérias atinen-tes à fixação da pena, tendo sido adotado em nosso ordenamentojurídico o sistema trifásico (ou Nelson Hungria), conforme se inferedo artigo 68, do Código Penal10.

As agravantes e as atenuantes podem ser assim definidascomo “circunstâncias objetivas ou subjetivas que não integram a es-trutura do tipo penal, mas se vinculam ao crime, devendo ser con-sideradas pelo juiz no momento da aplicação da pena” (CUNHA,2014, p. 384), mais precisamente, na segunda fase da dosimetria.

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9 Com efeito, “mesmo no regime anterior, já era entendimento dominante que apronúncia não deveria conter referências a questões relativas à pena, entre asquais as circunstâncias agravantes (CP, arts. 61 e 62).” (BADARÓ, 2008, p.185). No mesmo sentido: CAPEZ, 2004, p. 600; MiRABEtE, 1998, p. 488-489.10 Art. 68 do CP: “A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes eagravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.”

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Ademais, em consonância com o artigo 385 do Código deProcesso Penal, admite-se o reconhecimento de circunstânciaagravante ainda que não descrita na denúncia. logo, permite-seao magistrado aplicá-la de ofício, malgrado não tenha sido susten-tada pela acusação11-12 .

O mesmo raciocínio, com mais razão ainda, deve ser em-pregado acerca das circunstâncias atenuantes, por serem de incidên-cia obrigatória, posto que sempre atenuam a pena, representandoum direito público subjetivo do réu seu reconhecimento pelo juiz nafixação da reprimenda, ainda que não arguida pelas partes.

Pois bem. Na seara do tribunal do Júri, com a supressãodo libelo-crime, não se torna mais necessária a formulação de que-sitos referentes tanto à agravante quanto à atenuante.

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11 Confira: HABEAS CORPUS. PENAl E PROCESSUAl PENAl. ANUlAÇÃODA SENtENÇA tRANSitADA EM JUlGADO NA PARtE DA FiXAÇÃO DAPENA. MANUtENÇÃO DA EXECUÇÃO PENAl. AGRAVANtE DO ARt. 62, iDO CP. DEMONStRAÇÃO DA RESPONSABiliDADE DA PACiENtE NA OR-GANiZAÇÃO CRiMiNOSA. 1. [...]. 2. As agravantes, ao contrário das qualifica-doras, sequer precisam constar da denúncia para serem reconhecidas pelo Juiz.É suficiente, para que incidam no cálculo da pena, a existência nos autos de ele-mentos que as identifiquem. [...]. (StF - HC 93211, Relator(a): Min. EROS GRAU,Segunda turma, julgado em 12/02/2008, DJe-074 DiVUlG 24-04-2008 PUBliC25-04-2008 EMENt VOl-02316-06 PP-01294 lEXStF v. 30, n. 356, 2008, p.449-454). (destacou-se); HABEAS CORPUS. SUBStitUtiVO RECURSAl.CRiME CONtRA A ORDEM tRiBUtÁRiA. NUliDADES. AlEGADA AUSÊNCiADE MOtiVAÇÃO DE ACÓRDÃO PENAl. APliCAÇÃO DE AGRA-VANtE. FUN-DAMENtAÇÃO iDÔNEA. SUPRESSÃO DE iNStÂNCiA. 1. [...] 3. O reconheci-mento de agravante não envolve a questão da quebra de congruência entre aimputação e a sentença, por força do art. 385 do CPP (Precedentes) – [...] .(StJ - HC 246.398/AM, Rel. Ministro SEBAStiÃO REiS JÚNiOR, SEXtAtURMA, julgado em 05/03/2013, DJe 13/03/2013). (destacou-se).12 De acordo com Guilherme de Souza Nucci, “o magistrado não está atrelado aopedido de reconhecimento das agravantes, feito pela acusação, para poder aplicaruma ou mais das existentes no rol do art. 61 do Código Penal (além de outrasque, porventura, surjam em leis especiais). Se o juiz pode o mais, que é aplicaras circunstâncias judiciais, em que existe um poder criativo de larga extensão [...],é natural que possa o menos, isto é, aplicar expressas causas agravantes, bemdescritas na lei penal. Não há, muitas vezes, contraditório e ampla defesa acercadas agravantes e atenuantes, tanto quanto não se dá em relação às circunstânciasjudiciais do art. 59 do Código Penal.” (2013a, p.747). De outro lado, Eugênio Pacellie Douglas Fischer sustentam a aplicação da parte final do artigo 385 do Códigode Processo Penal, somente se a circunstância agravante, ainda que não apon-tada na denúncia ou na queixa, foi debatida, e desde que tenha natureza objetiva,assim como ocorre com a reincidência (CP, art. 61, i) (2014, p. 794).

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O artigo 483 do Código de Processo Penal enumera asmatérias que integrarão o questionário, sendo elas: a) a materiali-dade do fato; b) a autoria ou a participação; c) se o acusado deveser absolvido; d) se existe causa de diminuição de pena alegadapela defesa; e e) se existe circunstância qualificadora ou causa deaumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões pos-teriores que julgaram admissível a acusação.

Entretanto, Guilherme de Souza Nucci aduz que as cir-cunstâncias agravantes e atenuantes continuam sendo objeto dequesitos, de modo que o juiz presidente se submeterá à conclusãodo Conselho de Sentença, não podendo ser reconhecidas na sen-tença, se foram expressamente rejeitadas pelos jurados (2013b, p.360). trata-se, porém, de entendimento minoritário.

Por sua vez, a doutrina majoritária, conjugando os artigos 483e 492, ambos do Código de Processo Penal13, posiciona-se no sentidode ser desnecessária a elaboração de quesitos referentes às circuns-tâncias agravantes e atenuantes, uma vez alegadas nos debates14.

Segue-se, assim, o espírito simplificador do questionário,aliás, um dos grandes objetivos da lei n. 11.689/2008.

Nota-se que o legislador infraconstitucional mencionou noartigo 492, inciso i, alínea c, do Código de Processo Penal, que osaumentos ou diminuições da pena deverão ser levados em conta, seadmitidos pelo júri, ou seja, desde que apresentado quesito próprio arespeito de qualificadoras, majorantes, privilégios e minorantes.

lado outro, no que tange às circunstâncias agravantes eatenuantes, basta que sejam sustentadas nos debates, para que omagistrado as aplique na segunda fase da dosimetria da pena, semqualquer interferência do corpo de jurados, como se observa da re-dação do artigo 492, inciso i, alínea b, do diploma processual penal.

A propósito, esse é o entendimento que predomina nos tri-bunais pátrios, com o advento da lei n. 11.689/200815.

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13 Art. 492 do CPP: “Em seguida, o presidente proferirá sentença que: i – no casode condenação: a) fixará a pena-base; b) considerará as circunstâncias agra-vantes ou atenuantes alegadas nos debates; c) imporá os aumentos ou diminui-ções de pena, em atenção às causas admitidas pelo júri [...].” (destacou-se).14 Nesse sentido: BADARÓ, 2008, p. 205; CAMPOS, 2014, p. 302; liMA, 2015,p. 1396; PACElli, 2012, p. 736.15 À guisa de exemplo, confira os seguintes julgados: NUliDADE. AGRAVANtE.

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EVOLUÇÃO INTERPRETATIVA DA EXPRESSÃO “ALEGADASNOS DEBATES” PREVISTA NO ARTIGO 492, INCISO I, ALÍNEAB, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Em consonância com a interpretação gramatical do artigo492, inciso i, alínea b, do Código de Processo Penal, o reconheci-mento das circunstâncias agravantes e atenuantes pelo juiz togadodepende de alegação pelas partes nos debates.

Assim, a admissão das causas legais previstas nos artigos61, 62, 65 e 66, todos do Código Penal, não poderá ocorrer de ofício,

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REiNCiDÊNCiA. MAtÉRiA QUE NÃO FOi AlVO DE QUESitO PERANtE OtRiBUNAl DO JÚRi. ARt. 484, § ÚNiCO, i E ii DO CPP. RitO PROCEDiMEN-tAl. NOVEl lEGiSlAÇÃO. lEi N. 11.689/2008. NÃO APliCAÇÃO. MAJORA-ÇÃO DA REPRiMENDA NA DOSiMEtRiA. iMPOSSiBiliDADE.CONStRANGiMENtO ilEGAl EViDENCiADO. ORDEM PARCiAlMENtECONCEDiDA. 1. Não obstante o advento da inovação processual no sentidode que as circunstâncias atenuantes e agravantes não mais são objeto dequesitação, constata-se que o paciente foi submetido a julgamento peloTribunal do Júri em sessão realizada em 18-7-2007, isto é, em momento an-terior à entrada em vigor da Lei n. 11.689/2008. Logo, no presente caso,ainda se fazia necessária a inclusão das circunstâncias atenuantes e agra-vantes no questionário a ser apreciado pela Corte Popular, consoante de-terminava a antiga redação do art. 484, parágrafo único, incisos I e II, doEstatuto Processual. [...] (StJ - HC 100.641/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSi,QUiNtA tURMA, julgado em 21/09/2010, DJe 16/11/2010). (destacou-se). APE-lAÇÃO CRiMiNAl. HOMiCÍDiO SiMPlES. JÚRi. NUliDADE. AtENUANtE.AUSÊNCiA QUESitAÇÃO. Com o advento da lei n. 11.689/08, o reconhecimentode circunstâncias atenuantes e agravantes basta sejam debatidas em plenário,não se exigindo a formulação de quesitos a serem apreciados pelo conselho desentença. [...] (tJGO - APElACAO CRiMiNAl 271549-55.2004.8.09.0023, Rel.DES. lEANDRO CRiSPiM, 2A CAMARA CRiMiNAl, julgado em 19/03/2013,DJe 1279 de 10/04/2013). (destacou-se). APElAÇÃO CRiMiNAl - JÚRi - HO-MiCÍDiO QUAliFiCADO - RECURSO QUE iMPOSSiBilitOU A DEFESA DOOFENDiDO - DECiSÃO MANiFEStAMENtE CONtRÁRiA À PROVA DOSAUtOS - iNOCORRÊNCiA - CONDENAÇÃO MANtiDA - AtENUANtE DACONFiSSÃO ESPONtÂNEA - MAtÉRiA NÃO DEBAtiDA EM PlENÁRiO - RE-CONHECiMENtO - iNADMiSSiBiliDADE - AFRONtA AO DiSPOStO NO ARt.492, i, B, DO CPP - PENAS EXACERBADAS - REDUÇÃO QUE SE iMPÕE. [...]02. Com a reforma introduzida pela Lei n. 11.698/2008 não mais se submeteaos jurados quesitos acerca da existência de circunstâncias agravantesou atenuantes, as quais somente poderão ser consideradas pelo juiz pre-sidente, na dosimetria da pena, desde que suscitadas nos debates orais,a teor do que prescreve o art. 492, inciso I, alínea b, do CPP. [...] (tJMG -Apelação Criminal 1.0134.13.003422-3/003, Relator(a): Des.(a) Fortuna Grion, 3ª CÂMARA CRiMiNAl, julgamento em 03/03/2015, publicação da súmula em13/03/2015). (destacou-se).

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sujeitando-se à provocação da parte interessada no momento pro-cessual chamado “debates”, após o encerramento da instrução emplenário16.

Contudo, em março de 2011, o Supremo tribunal Federal,ao julgar o Habeas Corpus n. 106.376/MG, criou importante prece-dente quanto à possibilidade de reconhecimento pelo juiz senten-ciante da circunstância atenuante referente à confissão espontânea(CP, art. 65, iii, d), apesar de não debatida em plenário do júri, oque implicou reforma da decisão exarada pela Quinta turma do Su-perior tribunal de Justiça17.

Eis o teor da ementa do significativo julgado da maior ins-tância do Poder Judiciário:

CONStitUCiONAl, PENAl E PROCESSUAl PENAl. tRiBUNAl DOJÚRi. CONFiSSÃO ESPONtÂNEA NÃO DEBAtiDA NO PlENÁRiO.AUtODEFESA. PlENitUDE DE DEFESA. RECONHECiMENtOPElO MAGiStRADO DE OFÍCiO. POSSiBiliDADE. NAtUREZA OB-JEtiVA DA AtENUANtE. DiREitO PÚBliCO SUBJEtiVO DO RÉU.PRiNCÍPiOS DA iNDiViDUAliZAÇÃO DA PENA E DA PROPORCiO-NAliDADE RESGUARDADOS. HARMONiZAÇÃO DO ARt. 492, i, DOCÓDiGO DE PROCESSO PENAl, AOS ARt. 65, iii, D, DO CÓDiGOPENAl, E ARt. 5º, XXXViii, “A”, e XlVi, DA CONStitUiÇÃO DA RE-PÚBliCA. 1. Pode o Juiz Presidente do Tribunal do Júri reconhecera atenuante genérica atinente à confissão espontânea, ainda quenão tenha sido debatida no plenário, quer em razão da sua natu-reza objetiva, quer em homenagem ao predicado da amplitude de

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16 Assim, “a acusação deve sustentar a pronúncia e se desejar o reconheci-mento de alguma circunstância agravante deverá também sustentá-la em ple-nário, não podendo, portanto, considerar agravantes se não houve expressasustentação da mesma pela acusação” (tASSE, 2009, p. 64).17 A ementa do acórdão proferido pelo StJ dando provimento ao Recurso Es-pecial n. 1.157.292-MG, interposto pelo Ministério Público, é a seguinte: PENAlE PROCESSUAl PENAl. RECURSO ESPECiAl. JÚRi. DOSiMEtRiA DAPENA. APliCAÇÃO DE AtENUANtE. CONFiSSÃO ESPONtÂNEA. JUlGA-MENtO REAliZADO NOS tERMOS DA lEi N. 11.689/08. NECESSiDADE DEtER SiDO A tESE AlVO DOS DEBAtES. i - Com a reforma introduzida pelalei n. 11.698/08 não há mais necessidade de submeter aos jurados quesitosacerca da existência de circunstâncias agravantes ou atenuantes. ii - Não obs-tante, embora tenha sido transferido o exame da presença das referidas cir-cunstâncias ao Juiz Presidente do tribunal do Júri, elas somente serãoconsideradas na dosimetria da pena desde que suscitadas nos debates orais,a teor do que prescreve o art. 492, inciso i, alínea b do CPP. Recurso especialprovido. (REsp 1157292/MG, Rel. Ministro FEliX FiSCHER, QUiNtA tURMA,julgado em 02/09/2010, DJe 04/10/2010). (destacou-se).

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defesa, consagrado no art. 5º, XXXVIII, “a”, da Constituição da Repú-blica. 2. É direito público subjetivo do réu ter a pena reduzida, quandoconfessa espontaneamente o envolvimento no crime. 3. A regra con-tida no art. 492, I, do Código de Processo Penal, deve ser interpretadaem harmonia aos princípios constitucionais da individualização dapena e da proporcionalidade. 4. Conceder a ordem. (StF - HC 106376,Relator(a): Min. CÁRMEN lÚCiA, Primeira turma, julgado em 01/03/2011,PROCESSO ElEtRÔNiCO DJe-104 DiVUlG 31-05-2011 PUBliC 01-06-2011 REVJMG v. 62, n. 196, 2011, p. 345-353). (destacou-se).

Segundo as razões do voto da Ministra Cármen lúcia, oentendimento adotado pelo Superior tribunal de Justiça, negandoo reconhecimento da atenuante não sustentada nos debates pelojuiz presidente, “iguala aquele que confessa ao que nega os fatos,prestigiando a forma, ou a ausência dela, em detrimento ao con-teúdo” (BRASil, 2011).

Desse modo, ignora-se “o princípio da proporcionalidade,que deriva do princípio da individualização da pena, à medida queestabelece um resultado final incompatível com as circunstânciasque envolvem o delito e o seu protagonista” (BRASil, 2011).

Além disso, não se pode olvidar que a atenuante em ques-tão, assim como a menoridade e a senilidade (CP, art. 65, i), possuinatureza objetiva, tornando sua constatação independente do sub-jetivismo do julgador.

De mais a mais, conforme ressaltado pela referida relatora,“afigura-se impróprio, porque inócuo, determinar que seja debatidoalgo que documentalmente se comprovou e sobre tema que nãosubsistem dúvidas” (BRASil, 2011).

Firmado esse entendimento, parcela doutrinária passou aposicionar-se favoravelmente ao reconhecimento pelo magistradode circunstância atenuante, ainda que não sustentada nos debates18.

18 Nesse sentido, salienta a doutrina que “o mais adequado é que o juiz presi-dente possa reconhecer as circunstâncias atenuantes comprovadas nos autos,independentemente de solicitação do defensor do acusado em plenário, quandoo advogado pedir a absolvição. Diferente situação ocorrerá se o defensor tiverrequerido aos jurados a condenação de seu cliente, apenas tendo sustentadoa diminuição de sua carga (v.g., afastamento de qualificadoras, reconhecimentode privilégio), pois caberá a ele postular ao juiz o reconhecimento da atenuanteque julgar cabível, o que não trará qualquer prejuízo à imagem de coerênciade sua atuação frente aos jurados. Se não o fizer, não poderia, em tese, o ma-gistrado, nos termos da lei processual, reconhecê-la”. (CAMPOS, 2014, p. 303).

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A jurisprudência também trilhou o mesmo caminho, comose vê das razões do acórdão referente à Apelação Criminal n.374952-82.2006.8.09.0051 interposta perante o tribunal de Justiçade Goiás, no sentido de que, muito embora não pleiteadas nos de-bates, tanto a menoridade quanto a confissão, uma vez comprova-das nos autos, devem ser levadas em consideração na dosimetriada pena19.

Quanto às circunstâncias agravantes, independente do ca-ráter subjetivo ou objetivo que apresentarem, prevalece que são re-pelidas de ser conhecidas pelo juiz de direito, se não constituíram alvodos debates, mesmo que devidamente comprovadas nos autos20.

Entretanto, oportuno registrar que no tocante à agravanteda reincidência, em tempo longínquo, mais precisamente emagosto de 1997, houve o adiamento do julgamento do Habeas Cor-pus n. 75.256-0/RJ, em virtude de requerimento de vista do Ministro

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Em adição: “não cabe, no caso das atenuantes, interpretação restritiva, em pre-juízo do réu. [...] Ainda que a atenuante não tenha sido explicitada nos debates,se não mais existe previsão para a formulação de proposição específica noquestionário sobre o assunto, o magistrado deverá reconhecê-la, de ofício, porser direito público subjetivo do réu. [...] Em resumo, na prática, o juiz presidentesomente irá valorar por si mesmo as circunstâncias judiciais elencadas no art.59 do CP, bem como as circunstâncias agravantes e atenuantes, sendo que naprimeira hipótese dependerá de requerimento, ao passo que na segunda po-derá agir de ofício” (CANO; ANtUNES; DOMiNGUES, 2004, p. 334-335). Videtambém MARQUES, 2009, p.158.19 Confira: APElAÇÃO CRiMiNAl. HOMiCÍDiO QUAliFiCADO. NUliDADE.iNiMPUtABiliDADE. AUSÊNCiA DE FORMUlAÇÃO DE QUESitOS. iNO-CORRÊNCiA. REGiME DE CUMPRiMENtO DA PENA. [...] APliCAÇÃO DASAtENUANtES CONFiSSÃO E MENORiDADE. COMPEtÊNCiA DO JUiZ PRE-SiDENtE. É sabido que, apesar de as atenuantes e as agravantes não seremsubmetidas ao Conselho de Sentença, elas devem ser analisadas pelo Juiz Pre-sidente do Júri ao dosar a pena, o que não ocorreu no caso em tela. Assim, ape-sar de não terem sido alegadas nos debates, tanto a menoridade quanto aconfissão estão devidamente demonstradas nos autos. Deve, portanto, seremconsideradas para minorar a pena imposta ao apelante. [...]. APElAÇÃO CO-NHECiDA E PARCiAlMENtE PROViDA. (tJGO, APElACAO CRiMiNAl374952-82.2006.8.09.0051, Rel. DES. lEANDRO CRiSPiM, 2A CAMARA CRi-MiNAl, julgado em 18/02/2014, DJe 1501 de 12/03/2014) (destacou-se).20 Afirma-se que “a denominada cláusula de debates (necessidade de expressaarguição de atenuantes e agravantes nos debates para seu reconhecimentopelo juiz), [...], só é aplicável à acusação, que tem o ônus de, sempre que opor-tuno, sustentar ao juiz o agravamento da pena quando presentes as hipóteseslegais, sob pena de preclusão”. (CAMPOS, 2014, p. 304).

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Nelson Jobim que, naquela época, já ousou em pensar que a reinci-dência, por se tratar de uma questão objetiva, prescindiria de quesito.

O citado ministro do Supremo tribunal Federal, mesmo es-boçando entendimento de vanguarda, acabou refluindo, adotandoposição de que a reincidência deveria ser objeto de quesito paraser considerada na dosimetria da pena21.

Ressalta-se, porém, que a decisão em tela ocorreu antesda reforma gerada pela lei n. 11.689/2008, isto é, quando o Códigode Processo Penal ainda exigia que as circunstâncias agravantesfossem quesitadas, sob pena de nulidade.

Com efeito, os princípios constitucionais devem orientar ainterpretação e a aplicação das normas infraconstitucionais.

Nessa perspectiva, a expressão “alegadas nos debates”inserta no artigo 492, inciso i, alínea b, do Código de ProcessoPenal, não deve ser interpretada restritivamente, a ponto de tolherdo juiz presidente o reconhecimento da agravante da reincidência,bem como da atenuante da menoridade.

Como já mencionado, aludidas circunstâncias possuemstatus objetivo. Assim, somente as agravantes e atenuantes de na-tureza subjetiva é que dependeriam de alegações durante os de-bates, condicionando o juiz presidente a admiti-las no momento dadosimetria da pena, sob pena de invalidade.

Se a agravante da reincidência e a atenuante da menori-dade ostentam caráter objetivo e já foram demonstradas nos autos,corroboradas, inclusive, pelo interrogatório judicial, ocasião em queo réu é indagado sobre sua qualificação e vida pregressa, qual anecessidade/utilidade de que tais circunstâncias fossem quesitadasaos jurados ou mesmo debatidas pelas partes?

Somado a isso, o interrogatório não pode ser desprezadocomo exercício da autodefesa e tampouco como elemento deprova, no momento da aplicação da pena pelo juiz presidente.

Vale a pena repisar que, antes das alterações provocadas

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21 “AGRAVANtE - liBElO - QUESitO. Uma vez não havendo constado do li-belo, ou não tendo sido submetida ao corpo de jurados determinada agravante,descabe levá-la em conta na dosimetria da pena, procedendo-se à compensa-ção da atenuante reconhecida pelo júri”. (StF - HC 75256, Relator(a): Min.MARCO AURÉliO, Segunda turma, julgado em 23/09/1997, DJ 30-03-2001PP-00081 EMENt VOl-02025-01 PP-00232).

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pela lei n. 11.689/2008, não se admitia em hipótese alguma que omagistrado reconhecesse a agravante da reincidência de ofício,pois, necessariamente, os jurados deveriam ser consultados sobresua configuração.

Hodiernamente, não se formula mais quesitos sobre cir-cunstâncias agravantes e atenuantes.

Destarte, não haveria razão plausível para impedir que ojuiz togado aplicasse a agravante da reincidência e a atenuante damenoridade, quando da análise da segunda fase de dosimetria dapena, ainda que não tenham sido objeto de quesitos e sequer sus-tentadas pelas partes nos debates.

Assim, desde que a matéria tenha sido ventilada nos autose durante o plenário, ainda que não especificamente na etapa dos“debates” (CPP, arts. 476-481), pode e deve ser conhecida pelo juizde direito a circunstância de natureza objetiva, seja agravante, sejaatenuante.

Negar ao magistrado o conhecimento de ofício de tais cir-cunstâncias implica um apego exacerbado à forma, por meio deuma interpretação meramente literal, quando o mais prudente e ra-zoável seria a aplicação de uma interpretação sistemática, mor-mente com os princípios constitucionais da individualização dapena e da proporcionalidade.

Nem se diga que haveria cerceamento de acusação ou dedefesa, pois tanto as partes como os jurados tiveram acesso à exis-tência das circunstâncias genéricas, não só pelos documentos car-reados aos autos, mas também pelas declarações do réu em seuinterrogatório judicial.

Outrossim, no que diz respeito à agravante da reincidência,calha salientar que está ela intimamente relacionada com a análiseda pena-base, na fase do artigo 59 do Código Penal referente aosantecedentes, tanto é assim que, se o acusado apresentar sen-tença penal condenatória com trânsito em julgado por fato crimi-noso anterior, não poderá servir ela ao mesmo tempo para elevara pena como circunstância judicial e como circunstância agravante,sob pena de haver bis in idem22. Nesse caso, costuma-se valorar a

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22 Eis o teor da Súmula 241 do StJ: “A reincidência penal não pode ser consideradacomo circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial.”

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condenação transitada em julgado na segunda fase de fixação dareprimenda, como agravante da reincidência.

Por conseguinte, mesmo os adeptos do entendimento deque a circunstância agravante da reincidência não pode ser reco-nhecida pelo juiz presidente, sem a provocação da acusação, naprática, resultará idêntica elevação da pena no momento de apreciara circunstância atinente aos antecedentes do acusado (CP, art. 59).

Ora, há verdadeiro consenso de que o magistrado aprecialivremente as circunstâncias judiciais descritas no artigo 59 do CódigoPenal, na primeira fase da dosimetria da pena no procedimento es-calonado do Júri, independente de qualquer alegação das partes.

logo, ainda que impedido seja o juiz togado de conside-rar a condenação penal definitiva como agravante da reincidência,fatalmente a levará em conta quando da análise das circuns-tâncias judiciais (CP, art. 59), notadamente aquela referente aosantecedentes.

Além disso, não se pode perder de vista que, na fase doartigo 422 do Código de Processo Penal é bastante comum aoórgão acusatório requerer como diligência a juntada de certidão deantecedentes atualizada do pronunciado, constando eventual sen-tença e seu trânsito em julgado. E qual seria então a finalidadedesta providência? Por óbvio, em caso de condenação, a elevaçãoda pena pelo reconhecimento da reincidência 23.

Assim, se a mais alta Corte de Justiça brasileira admitiu apossibilidade de reconhecer as atenuantes de cunho objetivo deofício pelo juiz sentenciante, impõe-se a adoção de idêntico critérioem relação à agravante da reincidência de natureza objetiva, sobpena de clara violação aos princípios da igualdade entre acusaçãoe defesa24 e da proporcionalidade na aplicação da pena.

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23 Giza-se que, o requerimento de provas e de diligências outrora constituía umadas partes do libelo. Com a supressão do libelo, tais providências passaram aser exercitadas após o trânsito em julgado da decisão de pronúncia, nos termosdo artigo 422 do Código de Processo Penal.24 “insere-se aí a garantia de paridade de armas no processo penal, igualandoacusação e defesa. Mas quando se afirma que as duas partes devem ter trata-mento paritário, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações,dar-se a uma delas tratamento especial para compensar eventuais desigualda-des, suprindo-se o desnível da parte inferiorizada a fim de, justamente, resguar-dar a paridade de armas.” (FERNANDES, 2000, p. 50).

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O INTERROGATÓRIO COMO FONTE DE DADOS RELEVANTESPARA O RECONHECIMENTO DA REINCIDÊNCIA E DA ME-NORIDADE

A confissão do réu e sua menoridade quando da práticado delito, mesmo que não tenham sido levantadas em sede de de-bates, foram exteriorizadas no momento do interrogatório.

Assim, ao apreciar as agravantes ou atenuantes, “deve ojuiz presidente levar em consideração tanto a tese apresentadapela defesa técnica quanto aquela apresentada pelo próprio acu-sado, no exercício de sua autodefesa” (liMA, 2013, p. 1419)25.

É cediço, portanto, que o interrogatório exprime a autode-fesa ou defesa pessoal do acusado, não podendo ser desprezadono julgamento, notadamente diante do princípio constitucional daplenitude de defesa (CF, art. 5º, XXXViii, a).

Giza-se, ainda, que o próprio artigo 482 do Código de Pro-cesso Penal elege, como fonte dos quesitos, a decisão de pronún-cia, as alegações orais das partes em plenário e o interrogatório.

De acordo com a lição de Guilherme de Souza Nucci, o in-terrogatório (CPP, art. 187) está dividido em três etapas: a primeira,chamada interrogatório de qualificação, é o momento em que ocorrea colheita de dados pessoais do réu, como nome, naturalidade,

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25 Aliás, seguindo essa linha de pensamento, assim decidiu recentemente o Su-perior tribunal de Justiça: PENAl E PROCESSUAl. HABEAS CORPUS SUBS-titUtiVO DE RECURSO ORDiNÁRiO. HOMiCÍDiO tENtADO. AtENUANtEDA CONFiSSÃO. iNCiDÊNCiA. DEFESA tÉCNiCA. iNtERROGAtÓRiO JU-DiCiAl. DEBAtE EM PlENÁRiO. CONSiDERAÇÃO. [...] 2. Esta Corte possuio entendimento de que a Lei 11.689/2008, alterando a redação do art. 492do CPP, conferiu ao juiz presidente do Tribunal do Júri a atribuição de apli-car as atenuantes e agravantes alegadas nos debates. 3. O juiz presidentedeve considerar como "alegada nos debates" ou "debatidas em Plenário"tanto a defesa técnica quanto a autodefesa realizada pelo acusado no mo-mento do interrogatório, de forma que ambas são legítimas para ensejaro reconhecimento de atenuantes e agravantes. 4. A atenuante prevista noartigo 65, iii, d, do Código Penal, deve ser aplicada em favor do condenadoainda que a sua confissão somente corrobore a autoria delitiva já evidenciadapela prisão em flagrante delito. 5. Habeas corpus não conhecido ante a inade-quação da via eleita. Ordem concedida de ofício para determinar que o Juízoda Execução aplique a atenuante da confissão. (StJ, HC 161.602/PB, Rel. Re-lator: Ministro GURGEl DE FARiA, Data de Julgamento: 18/11/2014, t5 -QUiNtA tURMA). (destacou-se).

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idade, estado civil, filiação, profissão, grau de instrução, residênciaetc.; a segunda é o interrogatório de individualização, consistentena obtenção de dados sobre a vida pessoal do acusado, incluindosua vida pregressa, sendo a ele indagado se já foi preso ou proces-sado alguma vez, se sofreu condenação e o quantum da pena, sejá cumpriu a reprimenda etc.; e, a terceira, refere-se ao interrogatóriode mérito, oportunidade concedida ao infrator para apresentar suaversão a respeito da imputação acusatória (2013a, p. 444-447).

inegável, assim, que o interrogatório, além de cumprir pri-mordialmente a função de autodefesa, também é meio de provacontra ou a favor do réu, podendo materializar perante as partes,os jurados e o juiz presidente, inclusive, a presença de certas ate-nuantes, como a menoridade26 (CP, art. 65, i), quando o réu declarasua idade ou a data de nascimento (interrogatório de qualificação),bem como a agravante da reincidência27 (CP, art. 61, i), ao serquestionado sobre sua vida pregressa, isto é, os antecedentes cri-minais consistentes em condenações definitivas (interrogatório deindividualização).

Não se desconhece, é claro, que para o reconhecimentoda agravante da reincidência, exige-se certidão de trânsito em jul-gado de sentença penal condenatória, ao passo que, para a ate-nuante da menoridade, seria necessário cópia de certidão denascimento ou outro documento pessoal equivalente (CPP, art. 155).

Ademais, tanto a agravante da reincidência quanto à ate-nuante da menoridade possuem indiscutivelmente caráter objetivo,haja vista que foram concebidas documentalmente nos autos, nãopairando, em tese, dúvidas quanto às suas existências.

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26 Diga-se que “a menoridade relativa é atenuante aplicável aos indivíduos comidade entre 18 e 21 anos à época do fato. [...] entendendo-se que o menor,nessa fase da sua vida, ainda está em formação da sua personalidade, mere-cendo a benevolência do juiz no momento da fixação da pena.” (NUCCi, 2014,p. 229).27 “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois detransitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha conde-nado por crime anterior” (CP, art. 63). Configura reincidência também o come-timento de contravenção penal após já ter sido o autor condenado com trânsitoem julgado por anterior contravenção penal, nos termos do art. 7º do Decreto-lei 3.668/1941.

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Salienta-se ainda que, a despeito das críticas existentesquanto à incidência do artigo 385 do Código de Processo Penal,sob o argumento de que o reconhecimento de agravantes não ale-gadas afrontaria os princípios do contraditório e da ampla defesa eo próprio sistema acusatório, definitivamente, essa situação nãoatinge a reincidência, posto não se tratar de circunstância relacio-nada ao fato imputado, mas de uma condição pessoal do réu, oque dispensa sua narrativa na peça inicial acusatória, bastando queesteja documentalmente demonstrada por certidão de condenaçãodefinitiva28.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A lei n. 11.689/2008 acarretou importantes alterações norito escalonado do tribunal do Júri, tornando desnecessária a for-mulação de quesitos referentes às circunstâncias agravantes eatenuantes.

O termo “alegadas nos debates” contido no artigo 492, in-ciso i, alínea b, do Código de Processo Penal, merece ser interpre-tado em consonância com os princípios constitucionais,especialmente o da individualização da pena e da proporcionali-dade, possibilitando ao juiz togado, de ofício, a aplicação da agra-vante da reincidência e a atenuante da menoridade, principalmentepor ostentarem caráter objetivo, dispensando maiores indagações,se devidamente demonstradas nos autos, independente de seremsustentadas pelas partes.

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28 Na verdade, na maioria das vezes, somente se toma ciência acerca da reinci-dência do acusado após o recebimento da denúncia, durante o trâmite proces-sual, com a juntada de certidão de antecedentes criminais. Em sentido contrário,“ainda que na pronúncia não haja necessidade de fazer referência a circunstân-cias agravantes, [...] elas devem ter uma descrição mínima implícita na denúnciaou nas alegações finais para que possam ser aplicadas pelo juiz presidente emsua sentença condenatória, ato que não possibilita uma inovação em plenário,como fosse viável rebater a exposição sem oportuna produção de provas, sur-preendendo a defesa que não estará preparada para demonstrar a não incidên-cia da circunstância legal.” (CANO; ANtUNES; DOMiNGUES, 2004, p. 334).

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tanto é assim que, para corrigir essa anomalia, o Supremotribunal Federal permitiu que o magistrado reconhecesse a ate-nuante de natureza objetiva, como a menoridade e a confissão,ainda que não debatida em plenário, conforme decisão exarada noHabeas Corpus n. 106.376/MG.

Malgrado os tribunais superiores não tenham enfrentadoainda o tema29, o mesmo raciocínio deve incidir no que toca à agra-vante da reincidência, posto que, tratando-se de matéria devida-mente comprovada nos autos através de certidão e não tendo sidoobjetada pelas partes, inexiste motivo para que não seja levada emconta diretamente pelo juiz sentenciante.

Só haveria sentido em condicionar a aplicação da reinci-dência na dosimetria da pena, se fosse obrigatória sua quesitação!

lado outro, as agravantes de ordem subjetiva e que en-volverem questões de fato devem ser levantadas pelo órgão acu-satório durante os debates, abstendo-se o magistrado deconhecê-las de ofício, por manifesta violação ao contraditório e àplenitude da defesa.

Certo é que a discussão em questão perderia o sentido se,em plenário do tribunal do Júri, houvesse promotores de justiça eadvogados talhados à função de verificar com acuidade a presençade agravantes e atenuantes e, de conseguinte, sustentá-las duranteos debates, o que muito facilitaria a tarefa do julgador em aplicarcorretamente e com justiça a pena ao condenado.

todavia, é cada vez mais recorrente a ausência de alega-ções do órgão acusatório e da defesa durante os debates, quantoà presença de causas legais que interferirão na fixação da pena.

impedir que o juiz presidente do tribunal popular dose de-vidamente a reprimenda, por deficiência na atuação do órgão acu-satório e da defesa, significa tolher a consciência jurídica dojulgador, forçando-o a ignorar a incidência de uma agravante e/ouatenuante de ordem objetiva, quando seu convencimento apontajustamente que elas indubitavelmente existem.

136

29 Em pesquisa jurisprudencial realizada até o término deste trabalho, não houveo registro de qualquer pronunciamento judicial acerca da admissão ou não dareincidência, ainda que tal agravante não tenha sido alegada pelo órgão acu-satório durante os debates.

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Por derradeiro, se as circunstâncias agravantes e atenuan-tes não figuram mais como quesitos obrigatórios, não há que sefalar em ofensa à soberania do veredicto do tribunal do Júri ou aqualquer outro princípio, na hipótese de o juiz de direito conhecê-las diretamente na fixação da pena.

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Pedro de Mello Florentino⃰⃰

A LEGALIDADE DA ADOÇÃO INTUITU PERSONAE

THE LEGALITY OF ADOPTION INTUITU PERSONAE

LA LEGALIDAD DE LA ADOPCIÓN INTUITU PERSONAE

Resumo:

A Lei Nacional de Adoção (Lei n. 12.010/09) assegurou a obriga-

toriedade dos cadastros de adoção, estabelecendo rígida obediên-

cia à ordem dos inscritos, prevendo somente três exceções à

adoção direta ou intuitu personae. Apesar das vantagens trazidas

pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), uma boa parte das ado-

ções no país são realizadas fora do CNA. O objetivo central do

trabalho é traçar parâmetros para o reconhecimento legal da ado-

ção intuitu personae, além das hipóteses expressamente previs-

tas, quando pretendida por postulantes previamente habilitados

ou por interessados sem habilitação. A análise é feita a partir do

direito à convivência familiar, dos princípios da proteção integral e

do superior interesse. Envolve, por sua vez, o reconhecimento de

valor jurídico aos vínculos de apego, desenvolvidos até por recém-

nascidos, considerando que o rompimento abrupto causa sérios

danos psicológicos à criança, que serão sentidos na fase adulta.

Abstract:

The National Adoption Law (Law No. 12,010/09) made mandatory

the adoption register, establishing rigid obedience to the order of

names enrolled in the register, foreseeing only three exceptions

to the direct adoption or intuitu personae. In spite of the advanta-

ges brought by the National Adoption Register (NAR), a large

number of adoptions in the country is made out of the NAR. The

core goal of this work is to establish parameters to legal recognition

* Pós-Graduado em Direito da Criança e do Adolescente pela Escola Superior daMagistratura do Estado de Goiás e em Direito Tributário pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo e graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católicade Campinas-SP. Promotor de Justiça do MP-GO.

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of intuitu personae adoption, besides the hypothesis expressly fo-

reseen, when intended by candidates previously registered in the

NAR or by not-registered candidates. The analysis is made based

on the right to family life, on the principles of integral protection and

on the major interest. It involves the acknowledgment of legal value

to attachment relationships, developed even by newborns, consi-

dering that its abrupt rupture causes serious psychological dama-

ges to the children, which will be felt in the adult phase.

Resumen:

La Ley Nacional de la Adopción (Ley n. 12.010/09) assegura la ob-

ligatoriedad de los registros de adopción, y fija la obediencia al

orden de los inscritos, previendo solamente tres excepciones a la

adopción directa o intuitu personae. Aunque haya ventajas en el

Registro Nacional de Adopción (RNA), parte considerable de las

adopciones en el país son realizadas fuera de este registro. El ob-

jetivo principal de este proyecto es trazar parámetros para el reco-

nocimiento legal de la adopción intuitu personae, además de las

hipótesis expresamente contempladas, cuando pretendida por

postulantes previamente habilitados o por interesados sin habilita-

ción. El análisis está basado en el derecho a la convivencia familiar,

en los principios de la protección integral y del superior interés.

Comprende el reconocimiento del valor jurídico a los vínculos de

apego, desarrollados incluso por recién nacidos, teniendo en

cuenta que la ruptura abrupta de ellos desencadena serios daños

psicológicos al niño, sentidos en la edad adulta.

Palavras-Chave:

Adoção intuitu personae, adoção consensual, Cadastro Nacional

de Adoção (CNA), adoção à brasileira.

Keywords:

Adoption intuitu personae, Consensual adoption, National Adoption

Register (NAR), “Adoção à brasileira”.

Palabras-clave:

Adopción intuitu personae, Adopción consensual, Registro Nacional

de Adopción (RNA), “Adopción a la brasileña”.

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INTRODUÇÃO

A reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),introduzida pela Lei n. 12.010/2009, chamada de Lei Nacional daAdoção, teve como fundamento assegurar, com maior eficácia, o di-reito fundamental à convivência familiar1.

Nesse propósito, regulamentou de forma ampla e detalhadaos cadastros de adoção, compreendendo dados de crianças e ado-lescentes em condições de serem adotados, bem como de pessoasinteressadas e em condições de adotar (artigo 50).

Esses dois grandes bancos de dados ainda foram objetodas Resoluções n. 54 e 190 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),que trataram da implementação do Cadastro Nacional de Adoção(CNA), além da Recomendação n. 8, desse mesmo órgão correcio-nal, que defende a obediência ao cadastro nas decisões de guardaprovisória envolvendo a colocação de crianças menores ou comidade igual a três anos em família substituta.

A sistemática introduzida pela Lei n. 12.010/09 estabeleceurígida obediência à fila dos inscritos, incumbindo ao Ministério Públicofiscalizar a alimentação do cadastro e a observância à ordem esta-belecida para convocação2. Previu, contudo, três exceções que au-torizam a adoção direta por postulantes não cadastrados, desde quedomiciliados no Brasil3.

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1 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista paragarantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes,na forma prevista pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criançae do Adolescente. 2 Art. 50, parágrafo 12. A alimentação do cadastro e a convocação criteriosados postulantes à adoção serão fiscalizadas pelo Ministério Público. 3 Art. 50, parágrafo 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de can-didato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Leiquando:

I - se tratar de pedido de adoção unilateral;II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente

mantenha vínculos de afinidade e afetividade;III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou a guarda legal de

criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo deconvivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não sejaconstatada ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts.237 ou 238 desta Lei.

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Mesmo assim, passados mais de seis anos da vigência danova legislação, uma boa parte dos processos de adoção no Brasiltratam de adoções fora do CNA, como é o caso da adoção dirigidaou intuitu personae, em que, em uma das hipóteses mais comuns, agenitora escolhe a pessoa ou o casal que adotará seu filho, indepen-dentemente de estarem previamente habilitados.

Nesse contexto, considerando os princípios que estruturama legislação da infância e juventude, a teoria do apego, que procuraexplicar, no âmbito da psicologia, o surgimento da ligação afetivaentre a criança e a pessoa que dela cuida, independente de vínculobiológico, assim como as consequências de uma ruptura forçada,este artigo procurará traçar alguns parâmetros em que a adoção di-rigida deve ter a sua legalidade reconhecida, regularizando a situa-ção de crianças e adolescentes adotados na informalidade, comprivilégio aos vínculos de cuidado amoroso, essenciais ao desenvol-vimento saudável para a fase da vida adulta.

A ADOÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL:PREVISÃO LEGAL, A OBRIGATORIEDADE DOS CADASTROSE A GRANDE QUANTIDADE DE ADOÇÕES FORA DO CNA

O microssistema do Estatuto da Criança e do Adolescente(Lei n. 8.090/90) foi estruturado a partir dos princípios da proteçãointegral4 , já consagrado na Constituição Federal de 1988, e do su-perior interesse, este com previsão na Convenção Internacionalsobre os Direitos da Criança de 1989, da Organização das NaçõesUnidas (ONU)5, ratificada pelo Brasil e incorporada ao nosso orde-namento por meio do Decreto n. 99.710/90.

As crianças e adolescentes foram então reconhecidos comosujeitos de direito e não mais como objetos de proteção, conformeera a previsão do Código de Menores (Lei n. 6.697/79), fundado na

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4 Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. 5 Art. 3º. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituiçõespúblicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativasou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maiorda criança.

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doutrina da situação irregular do menor. Nesse contexto, ao tratar daadoção, o ECA assegurou que a medida será deferida quando apre-sentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos le-gítimos6, ou seja, a adoção passou a ser entendida como a buscade uma família para uma criança e não uma criança para uma família(RIBEIRO, 2012, p. 179).

No ano de 2009, o ECA passou por grandes modificaçõesintroduzidas pela Lei n. 12.010, chamada de Lei Nacional de Adoção,que procurou aperfeiçoar a sistemática prevista para a garantia dodireito à convivência familiar, trazendo, nesse propósito, detalhadaregulamentação ao instituto da adoção, sem desconsiderar os prin-cípios da proteção integral e do superior interesse. Ao comentar a Lei n. 12.010/09, Paulo Hermano Soares Ri-beiro bem observou:

[...] Há um evidente caráter de dependência principiológica, o que contri-bui para elevar a consistência sistêmica do Estatuto, impelindo o intér-prete e o operador a retornarem aos conceitos gerais e princípiosestabelecidos no ECA. A nova Lei observa e aprofunda, na sua função de conformação, os fun-damentos constitucionais e sociais do ECA, entre outros, principalmenteno que se refere à garantia do direito à convivência familiar, a proteçãointegral da criança e do adolescente, e a prioridade de observância domelhor interesse destes. (2012, p. 82-83)

Sobre a adoção, o artigo 50 regulamentou os cadastros, pre-tendendo tornar mais produtiva a utilização de dois grandes bancosde dados, um de crianças e adolescentes em condições de seremadotados, e outro de pessoas interessadas e em condições de adotar(RIBEIRO, 2012, p. 161). Os cadastros foram previstos em âmbitomunicipal, estadual e federal, tendo o dispositivo também especifi-cado a existência de cadastro distinto para pessoas ou casais resi-dentes fora do país.

Na esfera federal, o Cadastro Nacional de Adoção (CNA)funciona junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e sua implan-tação foi regulada pelas resoluções n. 54/2008 e 190/2014. Atual-mente, abarca todos os dados dos cadastros municipais e estaduais,

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6 Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para oadotando e fundar-se em motivos legítimos.

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representando a principal ferramenta disponibilizada aos juízes dasvaras da infância e juventude para acelerar os processos de adoçãoem todo o país, uma vez que uniformiza as informações, possibili-tando que pretendentes de um estado possam adotar uma criançade outro estado (RIZZARDO, 2014, p. 521).

Conforme previsto pela Lei Nacional de Adoção, as pessoasinteressadas em adotar devem passar por um procedimento de ha-bilitação, onde é averiguado se possuem condições psicológica e fi-nanceira para assumirem uma filiação socioafetiva. Uma vezhabilitados, os postulantes são inscritos no cadastro, sendo que aconvocação será feita de acordo com a ordem cronológica de habi-litação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentesadotáveis. Existe, contudo, um subcadastro para postulantes resi-dentes no exterior, que somente será consultado diante do insucessoem se obter uma família substituta de habilitados residentes no país.

Além da agilidade do procedimento, ampliando o cruza-mento de dados da lista de postulantes com a lista de crianças e ado-lescentes aptos a serem adotados, o CNA traz outras vantagens,como a de evitar que crianças sejam entregues a pessoas não ca-dastradas, cuja aptidão para adotar ainda não foi certificada porequipe interprofissional, ou, ainda mais grave, que a entrega sejafeita em troca de dinheiro ou outro benefício.

Ao prever a obrigatoriedade dos cadastros, a Lei Nacionalde Adoção buscou dificultar as adoções diretas a postulantes nãohabilitados. Mesmo assim, previu expressamente três exceções, apli-cáveis somente a candidatos residentes no Brasil (artigo 50, pará-grafo 13). Elas ocorrem quando: a) se tratar de pedido de adoçãounilateral; b) for formulada por parente com o qual a criança ou ado-lescente mantenha vínculos de afinidade ou afetividade; ou c)oriundo o pedido de quem detém a tutela ou a guarda legal decriança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso detempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade eafetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou dos cri-mes previstos nos artigos 237 e 238 do ECA7.

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7 Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob suaguarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar subs-tituto.

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Sobre a obrigatoriedade dos cadastros e as exceções trazi-das expressamente pela lei, Rolf Madaleno comentou:

Os cadastros de adoção, tanto para inscrição de crianças ou adolescenteshabilitados para adoção como de pessoas ou casais habilitados para ado-tarem, deverão seguir a ordem cronológica de inscrição e o artigo 197-Edo Estatuto reafirma não só a obrigatoriedade da inscrição dos candidatosà adoção e o rigor a ser observado pela autoridade judiciária na restriçãoda ordem de inscrição, salvo quando, atento ao princípio dos melhores in-teresses do infante, se façam presentes as hipóteses previstas nos incisosI, II e III do §13 do artigo 50 do ECA. E como observa Sávio Bittencourt,“se uma criança tem características que demonstrem a inconveniência daadoção pelo primeiro habilitado da lista, em função de incompatibilidadeentre o perfil da criança e do interessado, deve ele ser preterido, entre-gando-se a criança aos cuidados de outro habilitado cadastrado”. Por fim,salutar e revolucionário o espírito renovado pela Lei 12.010-2009 ao alteraro Estatuto da Criança e do Adolescente e realçar e priorizar, também paraefeitos de adoção, sobrepondo-se ao rigor de uma listagem de inscrição,quando em benefício da criança ou do adolescente se fazem presentesantecipadamente os elos de afetividade e afinidade (ECA, art. 50, §13, III),ficando justamente em segundo plano o prévio cadastro de candidato àadoção quando o pretendente à adoção já detém a tutela ou a guardalegal de criança maior de três anos ou adolescente, desde que o lapso detempo de convivência comprove a fixação dos referidos laços de afinidadee afetividade, consagrando o presente dispositivo de lei a institucionaliza-ção da filiação socioafetiva. (2015, p. 678)

Não obstante as vantagens trazidas pelo CNA, é certoque uma boa parte dos processos de adoção que tramitam atual-mente no país envolvem adoções fora do cadastro.

Ainda não foi produzida uma estatística específica sobreo tema, com dados de todo o Brasil, no entanto, a pesquisa “OTempo dos Processos Relacionados à Adoção no Brasil. UmaAnálise sobre os Impactos da Atuação do Poder Judiciário”, en-comendada pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Con-selho Nacional de Justiça (CNJ) à Associação Brasileira de

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Pena - reclusão de dois a seis anos, e multa.Art. 238. Promoter ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediantepaga ou recompensa:

Pena - reclusão de um a quatro anos, e multa. Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva

a paga ou recompensa.

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Jurimetria (ABJ), com dados dos Tribunais de Justiça dos Esta-dos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina,Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Territórios, Pará e Pernam-buco, apontou que apenas 29% das adoções ocorrem no CNA:

Em nossa pesquisa, detectamos que pelo menos 48% dos processosde adoção envolviam adoções fora do CNA (Observamos, além disso,que 29% das adoções ocorrem no CNA, 12% dos processos tratavamde adoção unilateral e 11% dos processos não continham nenhumainformação nesse sentido). (2015, p. 147)

Essa grande quantidade de adoções diretas demonstrauma realidade que precisa ser melhor compreendida, à luz dosprincípios que orientam e estruturam a legislação da infância ejuventude, assegurando a supremacia dos direitos da criança edo adolescente no Brasil.

O enfrentamento passa por diversos setores, como:campanhas de conscientização à população sobre as vantagensdo CNA; maior celeridade no julgamento de processos de desti-tuição do poder familiar e de adoção; aparelhamento dos conse-lhos tutelares, dos conselhos de direitos, das entidades deacolhimento, dos órgãos da assistência social e das equipes in-terdisciplinares que atuam junto às varas da infância e juventude;capacitação dos profissionais que atuam na rede de proteção dacriança e do adolescente, incluindo juízes e promotores; além doreconhecimento da legalidade da adoção intuitu personae nascondições expostas nos capítulos seguintes.

ADOÇÃO INTUITU PERSONAE E POSTULANTES PREVIA-MENTE HABILITADOS

A adoção intuitu personae usualmente ocorre quando agenitora - na grande maioria das vezes a criança não tem pai re-gistral -, escolhe a pessoa ou o casal a quem pretende entregaro filho. Sobre a matéria, transcrevemos a explicação mais abran-gente de Maria Berenice Dias:

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Chama-se de adoção intuitu personae quando há o desejo da mãe deentregar o filho a determinada pessoa. Também é assim chamada adeterminação de alguém em adotar uma certa criança. As circunstân-cias são variadas. Há quem busque adotar o recém-nascido que en-controu no lixo. Também há esse desejo quando surge um vínculoafetivo entre quem trabalha ou desenvolve serviço voluntário com umacriança abrigada na instituição. Em muitos casos, a própria mãe en-trega o filho ao pretenso adotante. [...] (2011, p. 498).

A adoção intuitu personae não se confunde com a ado-ção à brasileira, que é o registro de filho alheio como próprio (MA-CIEL, 2016, p. 385). A adoção à brasileira consiste em uma burlaao registro civil, uma falsidade ideológica prevista como crime noartigo 242 do Código Penal8.

Verifica-se a adoção à brasileira quando um casal recebeum recém-nascido de uma mãe que não deseja criá-lo, dirigem-seao Cartório de Registro Civil e registram o bebê como se fossemos pais biológicos. Situação ainda mais comum ocorre quando ocompanheiro registra o filho da companheira como seu, mesmosabendo não ser o pai biológico.

De outro lado, na adoção intuitu personae, a genitora co-nhece uma família com quem cria afinidade e decide entregar seufilho para que possam adotá-lo. Não há falsidade de registro, oque ocorre é uma adoção consentida, onde não se obedece à filado cadastro de adoção.

Uma primeira situação a ser observada ocorre quando ospostulantes à adoção intuitu personae estão previamente cadas-trados, ou seja, quando já se submeteram ao procedimento dehabilitação, encontrando-se com condições psicológicas e mate-riais para estabelecerem uma filiação socioafetiva certificadaspelo Poder Judiciário.

Situações como essa tratam de adoções consentidas,que não encontram previsão nas exceções do artigo 50 do ECA,

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8 Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem;ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerenteao estado civil:

Pena – reclusão, de dois a seis anos. Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida

nobreza: Pena – detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

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mas são autorizadas pelos artigos 459 e 16610 da mesma legisla-ção, que cuidam da adoção consensual. Esses dispositivos foramintroduzidos pela Lei n. 12.010/2009 e devem ser interpretadosem coadunação com os artigos 50, §13, e 197-E, §1º11, que tratamde exceções ao cadastro prévio e da obediência à ordem crono-lógica das habilitações.

Se a regra do parágrafo 1º do artigo 197-E autoriza a fle-xibilização da fila do cadastro nas hipóteses excepcionais do pará-grafo 13 do artigo 50, ou seja, para postulantes não cadastrados,com maior razão, a ordem cronológica deve ser relativizada nasadoções dirigidas em que os postulantes se encontram previa-mente inscritos no CNA, desde que comprovado, no caso em con-creto, ser essa a melhor solução no interesse do adotando.

Defendendo a legalidade da adoção consentida a casaispreviamente habilitados, vejamos o posicionamento de Silvanado Monte Moreira, Presidente da Comissão de Adoção do InstitutoBrasileiro de Direito de Família (IBDFAM):

A adoção intuitu personae é a conhecida adoção consensual onde afamília biológica, comumente apenas a mãe, eis que desconhecidoou ausente o pai, entrega a criança em adoção a pessoa conhecida. Tal adoção tem seu embasamento legal fulcrado no ECA – Artigos 45,caput e 166. Principalmente depois do advento da Lei nº 12.010/2009a adoção consentida passou a ser uma grande dúvida jurídica, sendoaceita em alguns juízos e outros não. A fundamentação para sua não

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9 Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou representante legaldo adotando.

§1º O consentimento será dispensado em relação à criança ou adolescentecujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar.

§2º Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, serátambém necessário o seu consentimento.10 Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos dopoder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação emfamília substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petiçãoassinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.11 Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastrosreferidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita deacordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade decrianças ou adolescentes adotáveis.

§1º A ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de serobservada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no §13º do art. 50 destaLei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.

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aceitação tem base em suposto conflito com relação à interpretaçãoliteral do parágrafo 13, do art. 50, em cotejamento com o artigo 166,visto que a interpretação de tal parágrafo, perfunctoriamente, induz aum pseudo entendimento de revogação do art. 166 do ECA.Entendemos, contudo, assim como vários outros operadores do di-reito, que se o legislador tivesse a intenção de revogar tal artigo o teriafeito e não o manteria na mesma lei. Não se trata de erro material, oartigo 166 subsiste e é claro no que determina, através da inclusão,pela própria Lei n. 12.010/2009, dos parágrafos de 1º ao 7º, vez queo objetivo dos parágrafos, de conformidade com a hermenêutica jurí-dica, é o de dar especificidade à matéria de que trata o caput. Assim, com base no acima aduzido, é nosso entendimento que a ado-ção consentida é juridicamente possível, desde que realizada por pes-soas previamente habilitadas.12

Devemos também observar que o Código Civil brasileiroreconhece expressamente o direito dos pais de escolherem tutorpara os filhos em testamento13, ou seja, uma escolha que surtiráefeitos após a extinção do poder familiar com a morte. Nessascondições, não há obstáculo para que, no exercício do poder fa-miliar, os pais biológicos escolham a pessoa ou o casal a quementregarão o filho para adoção, desde que os adotantes estejampreviamente habilitados.

Em se tratando do direito da mãe biológica de escolheros pais socioafetivos de seu filho, transcrevemos a enfática posi-ção de Maria Berenice Dias:

E nada, absolutamente nada impede que a mãe escolha quem sejamos pais de seu filho. Às vezes é a patroa, às vezes uma vizinha, emoutros casos um casal de amigos que têm uma maneira de ver a vida,uma retidão de caráter que a mãe acha que seriam os pais ideais parao seu filho. É o que se chama de adoção intuitu personae, que nãoestá prevista na lei, mas também não é vedada. A omissão do legis-lador em sede de adoção não significa que não existe tal possibilidade.Ao contrário, basta lembrar que a lei assegura aos pais o direito denomear tutor a seu filho (CC, art. 1.729). E, se há a possibilidade de

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12 A adoção intuitu personae e a necessária habilitação prévia. Disponível em:<http://silvanammadv.blogspot.com.br/2012/02/adocao-intuitu-personae-e-necessaria.html>. Acesso em: 02 jul. 2016.13 Art. 1729. O direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto.

Parágrafo único. A nomeação deve constar de testamento ou de qual-quer outro documento autêntico.

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eleger quem vai ficar com o filho depois da morte, não se justificanegar o direito de escolha a quem dar em adoção.14

A exigência da habilitação prévia para as adoções con-sentidas busca atender o superior interesse da criança. Não des-consideramos que a adoção intuitu personae pode ensejarsituações em que a genitora acaba entregando o filho a um casalsem preparo para adoção. Esse risco pode ser diminuído com ahabilitação prévia, onde as condições materiais e psicológicasdos adotantes são avaliadas por um conjunto de estudos técnicosespecializados.

Não olvidamos, de igual modo, que um casal de postu-lantes, mesmo que habilitado, possa assediar a família biológica,oferecendo dinheiro e outras vantagens financeiras para furarema ordem cronológica do cadastro. Essa hipótese, contudo, nãotrata de adoção intuitu personae. A situação configura crime edeve estar sob constante fiscalização dos órgãos que integram arede de proteção da criança e do adolescente, de modo que,quanto mais cedo for detectada a conduta de má-fé ou quaisquerdas situações criminosas dos artigos 237 e 238 do ECA, menorserá o prejuízo para a vida da criança com a ruptura do vínculo.

Nessas condições, a adoção intuitu personae, com pos-tulantes previamente cadastrados, deve constituir uma exceçãoà ordem cronológica dos cadastros, pois a proteção da fila, nes-ses casos, atenderá mais aos interesses dos casais habilitadosdo que os direitos da criança a ser adotada.

Esse reconhecimento mostra-se necessário para evitarque inúmeras crianças permaneçam em situação irregular, sob aguarda de fato de pessoas bem-intencionadas, mas que tememperdê-las se acionarem os juizados da infância e juventude.Esses adotantes recebem orientação jurídica para permaneceremem situação irregular por lapso de tempo que consolide os laçosde afinidade e afetividade, até se enquadrarem na exceção do in-ciso III, do parágrafo 13, do artigo 50. Situações como essa, muitocorriqueiras em todo o país, contrariam a vontade do legislador,

14 Adoção e a espera do amor. Disponível em: <file:///C:/Users/pedro/Documents/Mo-nografia/Textos/Maria%20Berenice%20-%20Adocao%20e%20a%20espera%20de%20amo.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2016.

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pois retiram a adoção do controle e da fiscalização do Poder Ju-diciário, limitando-o a um mero órgão homologador de situaçõesjá consolidadas.

Não bastasse, a aceitação da adoção intuitu personae

evita condutas criminosas, como a adoção à brasileira, que, den-tre tantas irregularidades, privam a criança do direito de conhecersua origem genética, assegurado aos adotados15.

Gradativamente, os casais interessados se sentirão maismotivados a se submeterem ao procedimento de habilitação, au-mentando a fiscalização e, consequentemente, a proteção àscrianças adotadas.

Sobre a necessidade de se reconhecer a adoção intuitu

personae, transcrevemos trecho da autorizada doutrina de Gal-dino Augusto Coelho Bordallo:

O registro de filho alheio como próprio é situação incorreta que não deveser aceita, sob os argumentos que é menos trabalhoso agir desta formado que propor a ação de adoção. Há, no sistema jurídico, instituto quetem por finalidade única tornar jurídica a paternidade de fato já existente,a adoção. Não se deve aceitar que as pessoas usem de meios ilegaispara obter o mesmo fim. Para evitar estas situações, devemos buscarinstrumentos que retirem das pessoas o medo de procurar nas varasda infância o meio correto para regularizar a situação de afeto que jápossuem com relação a uma criança. Devemos, para tanto, aceitar asadoções intuitu personae, conforme exposto no subitem anterior, poisesta é a única forma que o Estado terá de controlar o estabelecimentodas filiações socioafetivas e verificar se as crianças estarão sendo pro-tegidas de forma efetiva. (apud MACIEL, 2016, p. 387).

As adoções consentidas são uma realidade e devemparar de ser feitas na informalidade, sem fiscalização dos órgãosde proteção da infância e juventude.

Não cabe ao Poder Judiciário se limitar a homologar vín-culos socioafetivos já consolidados. Os adotantes, por sua vez,não podem ser tratados como marginais, com a má-fé presumidaem um ato que é, antes de tudo, regido por sentimentos de amorao próximo. Já os principais interessados, as crianças adotadas,

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15 Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem comode obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seuseventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.

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não podem ter seu direito fundamental à convivência familiar pre-judicado para serem recolhidas a um abrigo. O zelo deve ser dadoà qualidade dos vínculos estabelecidos pela adoção, e não àordem cronológica da fila do cadastro de adotantes, sob pena dese protegerem as pessoas habilitadas em detrimento das criançasadotadas, cujo superior interesse é resguardado pela Lei Nacionalde Adoção.

ADOÇÃO INTUITU PERSONAE E POSTULANTES NÃO PRE-VIAMENTE HABILITADOS: TEORIA DO AFETO

Uma segunda situação, mais complexa, ocorre quando aadoção intuitu personae é requerida por pessoa ou casal não ha-bilitado. O caso envolve um maior risco à criança a ser adotada,pois a família substituta pode não se encontrar em condições deadotar.

Conforme já exposto, o Estatuto da Criança e do Adoles-cente previu expressamente a possibilidade de adoção direta apostulantes não cadastrados residentes no país em três hipótesesdispostas no artigo 50.

Sobre a matéria, o Conselho Nacional de Justiça expediua Recomendação n. 8, de 07 de novembro de 2012, buscandorestringir as adoções intuitu personae às hipóteses expressa-mente previstas no Estatuto:

Art. 1º Recomendar aos juízes com jurisdição na infância e juventudeque ao conceder a guarda provisória, em se tratando de criança comidade igual ou menor de 3 (três) anos, seja ela concedida somente apessoas ou casais previamente habilitados nos cadastros a que se re-fere o art. 50 do ECA, em consulta a ser feita pela ordem cronológicada data de habilitação na seguinte ordem: primeiro os da comarca;esgotados eles, os do Estado e, em não havendo, os do Cadastro Na-cional de Adoção.16

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16 CNJ. Recomendação n. 08, 07 de novembro de 2002. Dispõe sobre a colocaçãode criança e adolescente em família substituta por meio de guarda. Disponívelem: <file:///C:/Users/pedro/Documents/Monografia/Resoluções%20e%20Reco-mendações%20CNJ/Recomendacao_8_07-11-2012.pdf. >Acesso em: 16 jul. 2016.

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No entanto, boa parte da doutrina tem defendido, aonosso ver de forma acertada, a legalidade das adoções intuitu per-

sonae, mesmo com postulantes não habilitados, desde que verifi-cada a consolidação de vínculos socioafetivos entre os envolvidos.

Para tanto, as exceções dispostas no artigo 50 são inter-pretadas de forma exemplificativa, excluindo-se a interpretaçãorestritiva e literal do dispositivo.

Nesse sentido, vejamos a explicação de Paulo HermanoSoares Ribeiro:

O cadastramento não pode ser visto como regra absoluta para oscasos de adoção, diante da singularidade que envolve o desejo e oafeto já sacralizados entre os maiores envolvidos: crianças a seremadotadas e pessoas que querem adotar. Portanto, a exceção deve seranalisada e levada a termo, se o caso assim o ensejar. Há que se tra-balhar casos, em que o casal não está inscrito no Cadastro Nacionalde Adoção. Os propósitos contidos no artigo 50 do Estatuto da Criançae do Adolescente (ECA) são nobres, mas a inscrição cronológica dosadotantes não pode prevalecer sobre o melhor interesse da criançaou do adolescente. A frustração de ver interrompido um processo de adoção, por falta derequisito técnico, burocrático ou meramente legal, é a declaração claraque a criança foi abandonada, mais uma vez, e que o seu interesseprioritário é uma mera declaração constitucional (2012, p. 172).

Essa interpretação busca dar maior atenção aos casosem concreto, já que a adoção é estruturada por vínculos de sen-timento, que perpassam por aspectos psicológicos e sociais degrande complexidade e inquestionável individualidade, cujo reco-nhecimento não pode ficar condicionado ao simples processo desubsunção da casuística a uma das três exceções dispostas noartigo 50.

Mostra-se, portanto, necessário reconhecer valor jurídicoaos vínculos de apego, diretamente relacionados ao direito à con-vivência familiar e aos princípios da proteção integral e do superiorinteresse, que constituem os valores fundamentais do ECA. Essesprincípios e sua inquestionável força normativa representam ofundamento das regras jurídicas do ECA e refletem a própria es-trutura ideológica do Estado, representativa dos valores consa-grados pela nossa sociedade (TAVARES, 2006, p. 101).

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Além da doutrina, esse posicionamento tem sido acolhidopor parcela significativa da jurisprudência17, inclusive do SuperiorTribunal de Justiça. Vejamos a ementa de conhecido precedentedesse Tribunal Superior:

RECURSO ESPECIAL - AFERIÇÃO DA PREVALÊNCIA ENTRE OCADASTRO DE ADOTANTES E A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE -APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR- VEROSSÍMIL ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO DAMENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NÃO CADASTRADOS -PERMANÊNCIA DA CRIANÇA DURANTE OS PRIMEIROS OITOMESES DE VIDA - TRÁFICO DE CRIANÇA - NÃO VERIFICAÇÃO -FATOS QUE, POR SI, NÃO DENOTAM A PRÁTICA DE ILÍCITO - RE-CURSO ESPECIAL PROVIDO. I - A observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferênciadas pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinadacriança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observân-cia ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador detodo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculoafetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este nãose encontre sequer cadastrado no referido registro;II - É incontroverso nos autos, de acordo com a moldura fática deli-neada pelas Instâncias ordinárias, que esta criança esteve sob aguarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeirosoito meses de vida, por conta de uma decisão judicial prolatada peloi. desembargador-relator que, como visto, conferiu efeito suspensivoao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590-5/001. Em se tratandode ações que objetivam a adoção de menores, nas quais há a prima-zia do interesse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem opotencial de consolidar uma situação jurídica, muitas vezes, incontor-nável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo;III - Em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente, du-rante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisão judicial,ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial, o estreitamentoda relação de maternidade (até mesmo com o essencial aleitamento dacriança) e de paternidade e o consequente vínculo de afetividade;

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17 Conferir: TJGO, Apelação Cível 360314-23.2010.8.09.0142, Rel. Des. Fran-cisco Vildon José Valente, 5ª Câmara Cível, julgado em 06/09/2012, DJe 1156de 03/10/2012; TJMG, Apelação Cível 1.0194.12.006162-8/002, Rel. Des. HildaTeixeira da Costa, 2ª Câmara Cível, julgamento em 27/01/2015, publicação dasúmula em 04/02/2015; TJRS, Apelação Cível 70050679125, 8ª Câmara Cível,Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 29/11/2012; TJRJ, Agravo de Ins-trumento 0071376-22.205.8.19.0000, Rel. Des. Mônica Costa di Pietro, 8ª Câ-mara Cível, julgamento em 29/03/2016.

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IV - Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal deorigem no sentido de que a criança, por contar com menos de um anode idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afas-tada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único eimprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vín-culo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto,insinua-se presente;V - O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, depen-dente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anterior-mente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusãode que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ade-mais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menorcom os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatosque, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança;VI - Recurso Especial provido.18

Nessas condições, caberá à autoridade judiciária, por in-termédio de pareceres da equipe interprofissional, analisar, casoa caso, a existência e, principalmente, a qualidade dos vínculossocioafetivos entre as partes envolvidas, verificando, de igualmodo, as condições dos postulantes para adotar, já que não seencontravam previamente habilitados.

A questão se apresenta, contudo, mais intricada quandose trata de bebês. Um ponto fundamental no reconhecimento devalor jurídico aos vínculos de apego é o estudo da formação econsolidação dos vínculos de afetividade e afinidade em recém-nascidos, bem como as consequências da ruptura para o seu de-senvolvimento psicológico saudável.

Conforme já exposto, a exceção prevista pela lei não es-tabelece prazo determinado para a fixação dos laços de socioa-fetividade, mas exige, dentre outros requisitos, que a criançatenha mais de 3 (três) anos de idade (art. 50, §13, III).

Por essa razão, inúmeras crianças menores de 3 (três)anos são retiradas da guarda de fato de famílias substitutas, apóslongo período de convivência, para serem recolhidas a entidadesde acolhimento ou encaminhadas a outra família substituta, me-lhor posicionada na fila do cadastro, o que atende à citada Reco-mendação n. 8/2012 do CNJ.

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18 STJ, 3ª Turma, REsp 1172067/MG, Rel. Ministro Massami Uyeda, julgado em18/03/2010, DJe 14/04/2010.

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No entanto, essas providências desconsideram estudosque a psicologia reconhece há muitas décadas, ignorando os efei-tos adversos que a ruptura de um vínculo seguro de amor podecausar ao desenvolvimento saudável de uma criança, mesmo quemenor de 3 (três) anos.

Ainda na década de 40 do século passado, o psiquiatrae psicanalista britânico John Bowlby começou a desenvolver achamada teoria do apego, a partir do estudo interdisciplinar docomportamento de crianças órfãs e sem lar logo após a SegundaGuerra Mundial.19

Os trabalhos de Bowlby são de reconhecida importânciapara a psicologia e foram fonte para o desenvolvimento de diver-sas outras pesquisas relacionadas ao desenvolvimento da vincu-lação afetiva entre crianças e seus cuidadores, bem como asconsequências de eventual rompimento abrupto.

Ao tratarem da teoria do apego, em parecer psicológicocoletivo sobre a formação e rompimento de laços afetivos enco-mendado pela ANGAAD – Associação Nacional de Grupos deApoio à Adoção - uma equipe de especialistas na área da psico-logia e do desenvolvimento infantil especificou:

Para Bowlby (1969/1990), o bebê irá desenvolver vinculação afetiva,ao longo do primeiro ano de vida, com uma figura preferencial com aqual mantiver vivências constantes e afetuosas de interação social.As interações do bebê com a mãe ou outro cuidador principal ensina-riam a criança a discriminar esta pessoa das outras e fariam com que

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19 Ao tratar da fase inicial de suas pesquisas sobre o vínculo de apego, JohnBowlby relatou: “Em 1950 fui convidado para assessorar a Organização Mundialde Saúde na área de saúde mental de crianças sem lar. Essa missão propor-cionou-me uma valiosa oportunidade para conhecer muitos dos investigadoresmais eminentes no campo da puericultura e da psiquiatria infantil, e para mefamiliarizar com a respectiva literatura. Conforme escrevi no prefácio do relatórioresultante (1951), o que mais me impressionou entre aqueles que conheci foi o“elevado grau de concordância existente a respeito tanto dos princípios quesubjazem à saúde mental infantil como às práticas pelas quais ela pode ser sal-vaguardada”. Na primeira parte do meu relatório apresentei provas e formuleium princípio: “O que se acredita ser essencial para saúde mental é que o bebêe a criança pequena experimentem um relacionamento carinhoso, íntimo e con-tínuo com a mãe (ou mãe substituta permanente), no qual ambos encontremsatisfação e prazer”. In: Apego. A Natureza do Vínculo. Volume 1 da Trilogia. 3.ed. 3. reimpressão. São Paulo: Martins Fontes, junho de 2015. p. X.

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ela preferisse a sua presença, demonstrando reações de protesto emedo quando afastada desta figura de referência. Verificou-se quedois comportamentos do cuidador reforçam este padrão de apego: asiniciativas de interação com a criança e a prontidão para responder e atender ao seu choro.20

Sobre os prejuízos que a ruptura abrupta dos vínculosafetivos poderá causar na criança, o já citado parecer psicológicocoletivo enumerou:

Os pesquisadores que se dedicam ao estudo desta temática, de formageral, concordam que crianças com rupturas de vínculos afetivospodem sofrer efeitos adversos para o desenvolvimento, especialmentese forem rupturas abruptas, nas quais a criança tem a impossibilidadede compreender o motivo de uma separação prolongada (ou definitiva)de seus cuidadores afetivos. Diversos pesquisadores listam uma série de efeitos adversos com se-parações abruptas de crianças pequenas de seus cuidadores amorosos:- a criança poderá sofrer de regressão em termos de dependência deatividades das quais já dominava; - diminuição do senso de segurança e confiança de que adultos esta-rão disponíveis; - interrupção de aquisição de novos comportamentos de desenvolvi-mento global; - interferência no desenvolvimento da identidade; - a consciência de estímulos externos e internos sofrerá franca regres-são; - interrupção de aquisição de linguagem ou perda de habilidades jáadquiridas; - a capacidade cognitiva ainda não desenvolvida poderá levar àcriança a pensar que ela é a causa dessa separação e da perda; - prejuízo no desenvolvimento do hemisfério cerebral direito respon-sável por processar informações relacionadas com nossas interaçõessociais e emoções; - a capacidade de formar novos apegos ficará prejudicada tanto comum comportamento indiscriminado de apegar-se a qualquer pessoaquanto a uma passividade e indiferença que poderá ser confundidacom a aceitação dessa separação; - quebra do laço de apego seguro e da compreensão do seu padrão

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20 Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD). Parecer Psi-cológico Coletivo sobre Formação e Rompimento de Laços Afetivos. Recife,2014. p. 4. Disponível em: <file:///C:/Users/pedro/Documents/Monografia/Pes-quisas/Parecer%20Psicológico%20Coletivo%20sobre%20Formação%20e%20Rompimento%20de%20Laços%20afetiv....pdf>. Acesso em: 19 ago. 2016.

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que prejudicará o desenvolvimento emocional, pois como afirma Shore(2002) “a segurança de um apego íntimo e seguro é a defesa primáriacontra psicopatologias futuras”; - problemas de aprendizagem e de fala são conseqüências inerentes; - separações abruptas e desorganizadas podem levar crianças aterem menor controle de impulso, menos capacidade de tolerar ostress, menor habilidade de frustração e, no futuro, podem levar a riscode ansiedade, depressão, agressão, violência, suicídio e uso de subs-tâncias (Toth & Cichetti, 1998). Desta forma, as pesquisas mostram claramente que quando as ne-cessidades de dependência e vinculação afetiva de uma criança nãosão supridos (ou são interrompidos de forma abrupta, retirando-seuma criança pequena de uma família amorosa), esta criança crescecom falhas em seu desenvolvimento socioemocional: ela sempre vaiachar que a vida está lhe devendo e sua confiança em outras pessoasserá seriamente prejudicada. Quem será esse ser humano incapazde confiar em outros? Como formará laços? Como desenvolverá suaempatia, generosidade, tolerância se tudo isso lhe foi tirado duranteseu desenvolvimento? Esta criança poderá crescer sempre assumindoo papel de vítima ou ainda ser uma vitimizadora, pois suas caracterís-ticas de controle foram danificadas. Poderá se tornar um adulto rígido,inflexível e incapaz de lidar com controle de impulsos agressivos demaneira adequada. (2014, p. 5)

Baseado na teoria de Bowlby, dentre outros estudos cien-tíficos dela decorrentes, como os do professor Terry Faw e da psi-cóloga Mary Ainsworth, o Promotor de Justiça Júlio AlfredoAlmeida defendeu que a vinculação afetiva em bebês se conso-lida a partir do sexto mês de vida:

Isso significa, que no caso de uma pessoa ou conjunto de pessoas,tenha indevidamente recebido criança recém-nascida, seja pela trans-ferência direta efetuada pelo genitor, seja pelo encontro de exposto,poderá – e ao final direi que deverá – ter essa relação ilegal imediata-mente rompida, até os seis meses de idade da criança, isso indepen-dentemente das boas ou más condições dos adotantes. Poderá ainda, até os oito meses, ser rompida mediante análise do com-portamento da criança, com o objetivo de verificar se formou ou nãoapego, a ocorrência ou não do medo, pois é nessa idade, que a maioriadas crianças apresenta, de forma inconfundível, a reação medo21.

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21 In: Adoção intuitu personae – Uma proposta de agir. Síntese da Monografia deEspecialização em Direito Comunitário: Infância e Juventude. 2002. Fundação Es-cola Superior do Ministério Público, Porto Alegre. Disponível em:<https://www.mprs.mp.br/infancia/doutrina/id393.htm>. Acesso em 20 ago. 2016 .

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Comentando os critérios sugeridos por Júlio Alfredo deAlmeida, Galdino Augusto Coelho Bordallo observou:

Para a verificação da existência do vínculo e pelo fato de nestas si-tuações sempre estarmos diante de bebês, Júlio Alfredo de Almeidasugere critérios que devam ser utilizados, dividindo-os pelo tempo devida da criança, entendendo que as crianças de até seis meses deidade devam ser retiradas da guarda dos adotantes e entregues a pes-soas cadastradas, afirmando que estas ainda não criaram vínculosafetivos com aqueles. Para as demais crianças, o autor entende quedevam passar por avaliação da equipe interprofissional para que sejaatestada a existência do vínculo. Não temos certeza se este critérioproposto por Júlio Alfredo de Almeida é correto no que se refere àscrianças com idade igual ou inferior a seis meses, já que se pode per-ceber que desde muito pequenas as crianças já reconhecem as pes-soas com as quais convivem diariamente. (apud MACIEL, 2016, p. 381)

De fato, estabelecer marco temporal para a conclusão deum processo de desenvolvimento psicológico, procura tornarexata uma ciência humana, marcada pela singularidade, genera-lizando a vinculação afetiva que, na verdade, depende da quali-dade do vínculo e da individualidade dos envolvidos. O próprioBowlby ponderou:

Embora existam provas abundantes mostrando que o tipo de cuidadosque um bebê recebe de sua mãe desempenha um importante papelna determinação do modo como se desenvolve seu comportamentode apego, não se deve jamais esquecer em que medida a própriacriança inicia a interação e influencia a forma que ela adota. Ainsworthe Schaffer estão entre os numerosos observadores que chamam aatenção para o papel muito ativo do bebê humano. (2015, p. 251)

Contudo, se a idade de seis meses não serve de marcotemporal exato para a autoridade judiciária decidir se retira orecém-nascido em situação irregular de uma família substituta,sem prejuízo para o seu desenvolvimento futuro; por outro lado,essa idade serve de parâmetro, mesmo que aproximado, para so-pesar a determinação da medida, o que deverá sempre ser me-lhor avaliado por intermédio de parecer da equipeinterprofissional.

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Em todo caso, o que não pode ser olvidado é que osrecém-nascidos se apegam a adultos e são capazes de criar vín-culos socioafetivos com eles, o que torna a ruptura abrupta pre-judicial ao seu desenvolvimento saudável, causando sequelaspsicológicas que serão sentidas na vida adulta. Ignorar essa pre-missa é desconsiderar os reconhecidos estudos que a psicologiavem desenvolvendo, há mais de setenta anos, além de voltar aoferecer ao recém-nascido o tratamento do Código de Menores,deixando de reconhecê-lo como um sujeito que possui direitos àconvivência familiar e à proteção integral, para insistir no trata-mento como objeto de proteção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei Nacional de Adoção previu expressamente comoobjetivo aperfeiçoar a sistemática existente para garantir o direitoà convivência familiar a todas as crianças e adolescentes.

Nesse propósito, regulamentou detalhadamente o cadastrode adoção, tornando mais produtiva a utilização dos bancos dedados, o que veio a ser aperfeiçoado com a implementação do CNA,por intermédio das resoluções n. 54/2008 e 190/2014 do CNJ.

Atualmente, o CNA concentra dados de todo o país, re-presentando uma ferramenta para ampliar o cruzamento dedados, possibilitando que pretendentes de um estado possamadotar uma criança de outro local da federação.

Além de agilizar o procedimento, o CNA dá transparênciaao processo de adoção, facilita a fiscalização e, consequente-mente, diminui os riscos, evitando que crianças sejam adotadaspor meios escusos e por pessoas despreparadas.

Não obstante as vantagens da ferramenta, uma boa partedas adoções no país ainda são realizadas fora do CNA, consis-tindo em adoções intuitu personae.

A Lei Nacional de Adoção previu expressamente três hi-póteses de adoções dirigidas. Em razão de interpretações literaise restritivas, crianças têm sido retiradas de famílias substitutasmesmo após o estabelecimento de vínculos de socioafetividade,

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com vistas a resguardar a obrigatoriedade do cadastro e a rígidaobediência à fila de habilitados.

Essas medidas têm criado nos adotantes o temor deacionarem a Justiça quando recebem uma criança diretamenteda mãe. Por medo de terem os vínculos rompidos, a criança émantida em situação irregular por anos. O Judiciário só é procu-rado quando os vínculos já estão consolidados e o caso pode seencaixar em uma das exceções previstas expressamente pelalegislação.

O radicalismo desse posicionamento, ao invés de asse-gurar as vantagens do CNA, está retirando a adoção do controledo Poder Judiciário.

Em vez de fiscalizar os processos de adoção, certificandoo preparo dos adotantes e acompanhando a adaptação da criançano estágio de convivência, o Poder Judiciário passou a ser umhomologador de vínculos já estabelecidos, pois somente é acio-nado quando o delicado processo de adaptação da criança emfamília substituta já se encontra concluído.

Um procedimento que deveria ser acompanhado de pertopelos órgãos de proteção da infância e juventude tem sido feitona informalidade, longe da fiscalização dos órgãos competentes.

O enfrentamento dessa realidade passa por diversos fa-tores, conforme foi exposto, mas ressalta a importância de se re-conhecer a legalidade da adoção intuitu personae nos termospropostos.

Quando a pessoa ou casal se encontrar previamente ha-bilitado, ou seja, com as condições para adotar certificadas peloPoder Judiciário, não há impedimento legal para que adotem umacriança que a própria genitora lhes confiou a criação. Trata-se dehipótese de adoção consentida, que encontra previsão nos artigos45 e 166 do ECA, e atende os interesses superiores da criança.

Por outro lado, quando a pessoa ou casal não se encon-trar previamente habilitado, a autoridade judiciária deve verificar,caso a caso, principalmente por intermédio de relatórios da equipeinterdisciplinar, o preparo dos adotantes e a sedimentação de vín-culos socioafetivos na criança, sendo recomendável a sua retiradacaso um desses requisitos não seja constatado.

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Mesmo tratando-se de bebês, a teoria do afeto e outrosestudos da psicologia já demonstraram que são capazes de criarvínculos de amor e afinidade com seus cuidadores durante o pri-meiro ano de vida. O rompimento abrupto dessas ligações podecausar sequelas psicológicas irreparáveis, prejudicando o desen-volvimento saudável e a fase adulta da vida do adotado.

A aceitação da adoção intuitu personae, nas condiçõesdefendidas, trará segurança para que os adotantes acionem o Ju-diciário caso recebam uma criança em confiança da própria geni-tora. Também incentivará as pessoas interessadas a sesubmeterem previamente aos procedimentos de habilitação. Aadoção à brasileira, assim como outros procedimentos escusos,perderão utilidade aos postulantes de boa-fé. Todas essas mu-danças ajudarão a retirar a adoção do terreno da marginalidade,aumentando a fiscalização por parte dos órgãos de proteção, oque possibilitará detectar e punir, com maior eficiência, os proce-dimentos criminosos promovidos por postulantes de má-fé.

Não bastasse, as crianças adotadas terão seus direitosà convivência familiar e à proteção integral assegurados, fazendovaler seu superior interesse em detrimento da ordem cronológicado cadastro de adotantes, o que coloca o CNA na condição idea-lizada pelo legislador, qual seja, de instrumento para garantir o di-reito à convivência familiar e não de motivo para prejudicá-lo.Dessa forma, será dado privilégio ao que é mais caro à adoção,os sentimentos de afinidade, afetividade e o vínculo seguro decuidado amoroso.

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REFERÊNCIAS

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Mirella Camarota Pimenta*

A AvAliAção psicológicA no contexto dA AlienAção pArentAl

RELIGIOSIY OF STATE LAICO

EL ESTADO LAICO RELIGIOSIDAD

Resumo:

A interdisciplinaridade entre a Psicologia e o Direito pode possibilitar

a diminuição da violência intrafamiliar e a promoção da justiça, pois

propiciam um melhor entendimento dos fenômenos emocionais ob-

servados nas partes de um processo judicial, principalmente aqueles

que permeiam um processo de separação ou divórcio que envolve

filhos. A alienação parental ocorre quando o genitor alienador denigre

a imagem do outro e cria resistência entre este e seu filho, ocasionado

o distanciamento do convívio com o filho de forma gradativa até o

ponto de o genitor alienado tornar-se um estranho para o próprio filho,

e este tratá-lo de forma indiferente e agressiva. O presente estudo

visa demonstrar quais instrumentos psicológicos podem ser utilizados

para a realização de uma avaliação psicológica, quando se tratar de

casos jurídicos com suspeita de alienação parental.

Abstract:

The interdisciplinarity between Psychology and Law can allow the re-

duction of intrafamily violence and the promotion of justice, since they

provide a better understanding of the emotional phenomena observed

in the parts of a judicial process, especially those that permeate a pro-

cess of separation or divorce involving children. Parental alienation

occurs when the alienating parent denigrates the image of the other

and creates resistance between him and his son, resulting in the se-

paration of the relationship with the child gradually until the alienated

* Pós-Graduada em Psicologia Jurídica pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais -IPES e pós-graduada em Avaliação Psicológica pelo Instituto de Pós-Graduação e Gra-duação- IPOG. Graduada em Direito e Psicologia pela Universidade de Rio Verde - UniRV.

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parent becomes a stranger to his own son, and This will treat you in-

differently and aggressively. The present study aims at demonstrating

which psychological instruments can be used to perform a psycholo-

gical evaluation when dealing with legal cases with suspected parental

alienation.

Resumen: La interdisciplinariedad entre la psicología y la ley puede permitir la

reducción de la violencia familiar y la promoción de la justicia, ya que

proporcionan una mejor comprensión de los fenómenos emocional

observado en algunas partes de una demanda, especialmente

aquellos que impregnan el proceso de separación o divorcio partici-

pación de los niños. La alienación parental se produce cuando el

progenitor alienador denigra la imagen del otro y crea resistencia

entre este y su hijo, hizo que el desprendimiento de vivir con el niño

poco a poco hasta el punto de que el padre alienado convertido en

un extraño a su propio hijo, y este tratar con indiferencia y agresiva-

mente. Este estudio tiene como objetivo demostrar que las herra-

mientas psicológicas pueden ser utilizados para llevar a cabo una

evaluación psicológica cuando se trata de casos legales de sospe-

cha de alienación parental.

Palavras-chave:

Psicologia, direito, família, testes psicológicos.

Keywords:

Psychology, law, family, psychological tests.

Palabras clave:

Psicología, derecho, familia, tests psicológicos.

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introdUção

É notável o crescente índice de divórcio e, consequen-temente, a disputa pela guarda dos filhos. A literatura aponta que,em muitos processos de disputa de guarda, outorga-se a um dosgenitores a guarda do filho, e ao outro genitor o direito de visitas,de forma que garanta o direito da criança à convivência em fa-mília previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, asse-gurando, assim, o não rompimento de vínculo entre o filho e ogenitor não guardião.

Em meio a essa disputa pela guarda, pais estão cheiosde ressentimentos, mágoas e sentimentos egoístas, querendo,na maioria das vezes, atingir o outro, usando nesse caso os pró-prios filhos. São genitores que, de forma silenciosa, ou quase im-perceptível, colocam empecilhos para que a criança não tenhaacesso ao outro genitor, promovendo, então, o que se chama dealienação parental.

Por meio dessa prática, o genitor alienador denigre aimagem do outro, cria hostilidade entre este e seu filho, distanciao convívio do filho com o outro genitor, normalmente seu ex-côn-juge, e gera dessa forma um afastamento gradativo, até que ogenitor alienado torne-se um estranho para o filho, que o trataráde forma indiferente e agressiva.

Essa alienação produz várias consequências de ordememocional e comportamental, podendo ser graves e irreparáveis.Essas crianças podem se tornar adultos com doenças psicosso-máticas, ansiosas, agressivas, depressivas crônicas, dentre ou-tras que, se não identificadas a tempo, podem ensejar adenominada síndrome da alienação parental.

Fonseca (2007) relata que a síndrome da alienação pa-rental consiste em sequelas emocionais e comportamentais, emque a criança se recusa terminantemente a ter contato com umdos progenitores em decorrência da alienação parental, que é oafastamento do filho de um dos genitores, causado pelo outrogenitor.

Diante disso, o presente estudo visa demonstrar quaisinstrumentos psicológicos podem ser utilizados para a realização

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de uma avaliação psicológica quando se tratar de casos jurídicoscom suspeita de alienação parental.

De acordo com Primi (2010, p. 26), “a avaliação psicoló-gica é uma atividade mais complexa e constitui-se na busca sis-temática de conhecimento a respeito do funcionamentopsicológico das pessoas, de tal forma a poder orientar ações edecisões futuras”.

interdisciplinAridAde

De acordo com Farias e Rosenvald (2014), a ciência ju-rídica se avizinha de outros ramos, como a Psicologia, a Socio-logia, a Antropologia, a Medicina, dentre outros, com o intuito deobter conhecimento para a boa solução dos conflitos familiares,sendo assim, essa interdisciplinaridade impõe uma aproximaçãodo direito de família com diferentes áreas do saber humano.

Para Rovinski (2004, p. 13), “Psicologia e Direito, mesmoconstituindo-se disciplinas distintas, possuem como ponto de in-tersecção o interesse pelo comportamento humano”.

Pena Junior (apud FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 59)assinala que:

A interdisciplinaridade considera as contribuições oriundas dos vários ramosdo conhecimento, integrando-as no estudo de determinado fenômeno. Elanão busca criar uma nova disciplina, e sim somar essas realidades diferen-ciadas, na organização de um conhecimento relacionado com o todo.

No mesmo sentido, Dias (2015, p. 65) afirma que:

No âmbito das demandas familiares, é indispensável mesclar o direito comoutras áreas do conhecimento que têm, na família, seu objeto de estudo eidentificação. Nessa perspectiva, a psicanálise, a psicologia, a sociologia, aassistência social ensejam um trabalho muito mais integrado. O aporte inter-disciplinar, ao ampliar a compreensão do sujeito, traz ferramentas valorosaspara a compreensão das relações dos indivíduos, sujeitos e operadores dodireito, com a lei. Os profissionais devem reconhecer o benefício do trabalhode cooperação com outras áreas do conhecimento, sob pena de se infringi-rem princípios maiores que gozam de garantia constitucional.

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Sendo assim, denota-se que estudos realizados por assis-tentes sociais e avalições psicológicas são importantes ferramentasque auxiliam a formar um juízo que, muitas vezes, seria impossívelsem o uso da interdisciplinaridade.

No Brasil, a divulgação da síndrome da alienação parentalintensificou-se no âmbito do Poder Judiciário em meados de 2003,com o surgimento das primeiras decisões que reconheciam tal fe-nômeno. Foi importante a participação das equipes multidiscipli-nares nos processos que envolvem direito de família, bem comoa realização de pesquisas e divulgações realizadas por órgãoscomo a APASE – Associação dos Pais e Mães Separados, IBD-FAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, dentre outros(FREITAS; PELIZZARO, 2010).

A respeito do seu surgimento, Dantas (2011) pondera quea síndrome da alienação parental passou a despertar bastante in-teresse nos profissionais da área da psicologia e do direito, hajavista ser do interesse desses dois ramos do saber, levando a umaconstatação da real necessidade de que o direito e a psicologiacaminhem juntos, a fim de propiciar um melhor entendimento dosfenômenos emocionais observados nas partes de um processojudicial, principalmente aqueles que permeiam um processo deseparação ou divórcio.

Conforme o disposto na Resolução n. 17/2012 do ConselhoFederal de Psicologia, a atuação do psicólogo perito nos diversoscontextos consiste em uma avaliação direcionada a responder de-mandas específicas, originadas no contexto pericial, e poderá con-templar observações, entrevistas, visitas domiciliares e institucionais,aplicação de testes psicológicos, utilização de recursos lúdicos eoutros instrumentos, métodos e técnicas reconhecidas pela ciênciapsicológica.

Segundo Barbosa e Castro (2013), promulgada a Lei daAlienação Parental, surgiu uma grande necessidade de que os ope-radores do direito tivessem conhecimento e domínio acerca dos con-ceitos ligados ao tema, o que se tornou fator imprescindível paratodos os profissionais das áreas jurídicas e psicológicas que traba-lhavam com litígios ligados à família.

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AlienAção pArentAl

origem e definição legal de alienação parental

Somente na década de 80, o psiquiatra e professor RichardGardner, que trabalhava com o aconselhamento de pais divorciados,retomou as pesquisas que culminaram na delimitação e formalizaçãoteórica da alienação parental (SILVA, 2011).

De acordo com Gardner (apud GAGLIANO; PAMPLONAFILHO, 2013, p. 613), ressalta-se:

A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que apa-rece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças.Sua manifestação preliminar é a campanha denegritória contra um dos geni-tores, uma campanha feita pela própria criança e que não tem nenhuma jus-tificação. Resulta da combinação das instruções de um genitor (o que faz a‘lavagem cerebral, programação, doutrinação’) e contribuições da própriacriança a caluniar o genitor-alvo. Quando o abuso e/ou a negligência paren-tais verdadeiros estão presentes, a animosidade da criança pode ser justifi-cada, e assim a explicação de Síndrome de Alienação Parental para ahostilidade da criança, não é aplicável.

Após a entrada em vigor da Lei da Alienação Parental (Lein.12.318/10), aconteceu uma verdadeira revolução na atividade doPoder Judiciário no que diz respeito aos litígios familiares, haja vistaque, por força do texto legal, os magistrados, por provocação dosadvogados e do Ministério Público, passaram a ser obrigados a con-siderar as práticas de alienação parental como elemento subjetivo enão somente como um fator de caráter subjetivo, como era feito an-teriormente a essa lei, em que a alienação ficava em segundo planopor não haver regulamentação legal (FREITAS, 2012).

Araújo (2011) comenta que a Lei n. 12.318/10 trouxe mudançasimportantes para o Judiciário brasileiro, pois disciplinou o contexto daalienação parental. O conceito de alienação parental, após esse textolegal, não vê o fato somente como a interferência prejudicial à forma-ção psicológica da criança ou do adolescente por parte dos genitores,incluindo nesse rol também os avós ou outros parentes que detenhamautoridade sobre a criança ou adolescente, ou que tenham a guardaou vigilância e que também podem fazer com que repudiem o genitornão guardião, ou prejudicar a manutenção do vínculo com ele.

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Conforme explica Freitas (2012, p. 24), a Lei n. 12.318/10conceitua alienação parental como:

A interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente pro-movida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenhama criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para querepudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutençãode vínculos com este.

Cabral (2014, p. 1) detalha o conceito legal de alienaçãoparental:

Através dessa prática, um genitor tenta denegrir a imagem do outro, criandohostilidade entre este e seu filho, tentando impedir a convivência do filho (que éde ambos) com o outro (geralmente ex-cônjuge), promovendo um afastamentoprogressivo até torná-lo estranho, indiferente e agressivo. Tem início principal-mente após o término de uma relação conjugal contenciosa, em que apenasum dos genitores fica responsável pela guarda da criança ou adolescente.

Gardner observou que “na disputa judicial, os genitoresdeixavam muito claro em suas ações que tinham como único ob-jetivo a luta incessante para ver o ex-cônjuge afastado dos filhos,fazendo muitas vezes uma verdadeira lavagem cerebral namente das crianças” (apud FREITAS, 2012, p. 21).

Os conflitos familiares tornaram-se mais complexos, poiscom o fim do relacionamento conjugal, os genitores passaram areclamar a guarda dos filhos. No entanto, a ruptura conjugal gerano genitor detentor da guarda um sentimento de abandono, re-jeição, traição, e surge uma tendência vingativa muito grande,pois há casos de desvio do afeto das crianças somente a um dosgenitores, o que prejudica seu relacionamento afetivo com ooutro, fenômeno este denominada por Gardner como alienaçãoparental (apud MAGALHÃES, 2010).

Para Dantas (2011), a alienação parental é na verdadeuma verdadeira campanha em busca da desmoralização do geni-tor, onde o filho é usado como um instrumento apto a imprimiragressividade ao parceiro, configurando uma forma de maus-tratosou abusos contra a criança.

Nesses casos, de fato os filhos acabam sendo penaliza-dos de forma bastante cruel pela falta de maturidade de um dos

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pais, que não é capaz de fazer a devida separação entre o fimdo relacionamento conjugal e a relação parental, criando uma re-lação de dependência entre o modo de viver dos filhos e a rela-ção dos pais posteriormente ao rompimento do vínculo entre oscônjuges (SOUZA, 2008).

De acordo com o posicionamento de Freitas e Pelizzaro(2010), a alienação parental é, por uma série de motivos, umadiscussão que vai além do debate jurídico puro e simples, con-substanciando-se em um mal sociofamiliar que precisa ser ur-gentemente extirpado da sociedade. Salientam que, naimpossibilidade em virtude da falta de maturidade do genitoralienante, precisam ser aplicadas medidas enérgicas, previstasem lei, a fim de evitar que ocorra de pais e filhos serem privadospor muito tempo de contato um com o outro.

Fonseca (2007) explica que a síndrome da alienação pa-rental surge em virtude de um apego exagerado do filho a umdos genitores, ao passo que se afasta definitivamente do outro.Na verdade é o resultado de todo um processo realizado, cons-ciente ou inconscientemente, pelo genitor alienante, aliado aofato de que a criança normalmente não tem muita vontade deestar com o outro genitor.

Nas situações em que há essa síndrome, a criança é le-vada a se recusar de estar na companhia do genitor alienado, oque gera a quebra da relação do filho com esse genitor. É este oobjetivo do genitor alienador: destruir a relação entre a criança eo genitor.

De acordo com Fonseca (2007), é necessário esclarecerque a síndrome da alienação parental não pode ser confundidacom a simples alienação parental, haja vista que esta em si sig-nifica tão somente o afastamento do filho de um dos pais, cau-sado pelo outro genitor, que no caso é o detentor da guarda dacriança. Já a síndrome está relacionada às sequelas emocionaise comportamentais de que a criança passa a estar acometida emvirtude daquele afastamento, ou seja, a síndrome diz respeito aocomportamento da criança, que se nega veementemente a tercontato com o outro genitor. A alienação parental tem a ver como procedimento adotado pelo guardião para conseguir afastar acriança do seu progenitor.

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práticas consideradas alienação parental

O processo alienante inicia-se por meio de uma campa-nha de modificação nas emoções do alienador e da criança. Paraalcançar seu objetivo, o genitor alienador começa a trabalhar acabeça da criança para que ela o veja como seu psicólogo par-ticular, desabafa e lamenta as decepções da sua vida, cujas con-sequências são trágicas para a criança, que começa desde ir malna escola até a agredir outras pessoas sem motivos aparentes(FREITAS, 2012).

Gardner delineou quatro aspectos gerais da alienaçãoparental: lavagem cerebral, programação engenhosa, fatores daprópria criança e fatores situacionais referentes à separação,sendo que apenas os dois primeiros referem-se aos comporta-mentos e ações do alienador (apud LASS, 2013). A lavagem ce-rebral é constituída por ações conscientes realizadas com ointuito de colocar a criança contra o genitor alienado. Essas ati-tudes são no sentido de proferir difamações contra o genitor alie-nado na presença da criança, dizer a esta que o genitor aabandonou e exponenciar as mínimas falhas do alienado. A pro-gramação engenhosa é definida como um processo de progra-mação sutil e muitas vezes inconsciente de atribuir aspectosnegativos ao genitor alienado, sem o dizer de forma aberta, masgradativamente sabotar as visitas por meio de indução de culpae desencorajamento passivo.

Souza (2008, p.7) pontua que:

o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito,e do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus geni-tores, apenas porque o casamento deles fracassou. Os filhos são cruelmentepenalizados pela imaturidade dos pais quando estes não sabem separar amorte conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos filhos ao tipode relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura.

Diante do exposto, Cabral (2014) define três protagonis-tas: o guardião, que passa a funcionar como alienador; o ex-côn-juge, que não detém a guarda dos filhos, porém, tem direito devisitação e convivência, que é classificado como genitor alienado;e, a criança, que é a vítima da discórdia entre seus genitores.

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A atuação do genitor alienador consiste em distanciar pro-gressivamente a criança do genitor que se encontra fora do lar, ge-ralmente caracterizada por motivos infundados como maledicências,falsas afirmativas, fatos inverídicos e até mesmo difamação, daí a ex-pressão “falsas memórias”. Todas essas condutas são dirigidas comintenção de causar um abismo cada vez maior entre o filho e o ex-cônjuge, no intuito de impor ao outro genitor as consequências da-nosas da separação por meio da falta do filho, que está sendocerceado de sua convivência (CABRAL, 2014).

Dentre os exemplos observados na literatura do que real-mente ocorre ou que poderá ocorrer como elementos identifica-dores da alienação parental, Carneiro (2007, p.44) disserta:

É a recusa de passar as chamadas telefônicas; a passar a programação deatividades com o filho para que o outro genitor não exerça o seu direito de vi-sita; apresentação do novo cônjuge ao filho como seu novo pai ou mãe; de-negrir a imagem do outro genitor; não prestar informações ao outro genitoracerca do desenvolvimento social do filho; envolver pessoas próximas na la-vagem cerebral dos filhos; tomar decisões importante a respeito dos filhossem consultar o outro genitor; sair de férias sem os filhos e deixá-los com ou-tras pessoas que não o outro genitor, ainda que este esteja disponível e queiracuidar do filho para que não se comunique com o outro genitor.

Vê-se, dessa forma, que a prática da alienação parentalcomumente está associada a uma modificação do status quo fa-miliar, quer pelo casamento do genitor, uma nova namorada ounamorado, o ingresso de ação revisional de alimentos ou o pe-ríodo de convivência. Enfim, a modificação da situação em quese encontra o contexto familiar geralmente está associada ao iní-cio da prática da alienação parental, ou mesmo a sua execuçãoem um nível diverso do que vinha comumente se realizando(FREITAS, 2012).

Na prática, a criança exposta à alienação parental passaa se recusar a manter qualquer tipo de contato com o genitor quenão é seu guardião, em virtude de passar a nutrir um sentimentode rejeição com relação a ele, o que é gerado pela alienação em-pregada por seu guardião. Inicialmente, o alienado pode atémesmo externar esse sentimento, mas normalmente não apresentajustificativas e explicações plausíveis, limitando-se a conceitos

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negativos. Contudo, com o passar do tempo, o afastamento setorna completo e irreversível, chegando a criança a afastar-se atémesmo dos familiares do seu genitor (FONSECA, 2007).

Cuenca (2008, p. 93) explica que:

Ao estudar o perfil do genitor alienador, conclui que este geralmente demons-tra uma grande impulsividade e baixa autoestima, medo de abandono repe-titivo, esperando sempre que os filhos estejam dispostos a satisfazer as suasnecessidades, variando as expressões em exaltação e cruel ataque. Estafase é a mais grave.

De acordo com Freitas e Pelizzaro (2010), a conduta enten-dida como alienante pode ou não ser intencional e gera uma sériede modificações nas emoções, tanto do alienador quanto da criançaque sofre a alienação. Ato contínuo, a vítima da alienação é induzidaa desenvolver um sistema de cumplicidade e compreensão no quediz respeito às atitudes do alienador. Dessa forma, a criança passatanto a justificar essa conduta perante outras pessoas quanto a pra-ticar atos da mesma natureza.

Sobre os efeitos da alienação parental, Xaxá (2008, p.18)diz que:

Com o passar dos tempos e a constante repetição de conceitos negativossobre o outro genitor, esse quadro evolui para um completo e, via de regra,irreversível afastamento. Essa alienação pode durar anos com consequên-cias gravíssimas para a formação da criança, que somente será superada(se for!) quando ela adquirir alguma independência do genitor alienante.

Na prática, o alienador costuma acusar o outro genitorde haver praticado agressões à criança. Contudo, tais afirmaçõesfalsas acabam se traduzindo em ofensas ao próprio filho, tor-nando-se ele o agressor, haja vista que, além desses males cau-sados pelas afirmações inverídicas, o alienante ainda erra ao nãoconscientizar-se de que o vínculo com ambos os genitores é es-sencial para que a criança tenha o equilíbrio psicológico ade-quado para um ser em formação (SILVA, 2011).

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Avaliação psicológica

De acordo com a Cartilha de Avaliação Psicológica ex-pedida pelo Conselho Federal de Psicologia (2013, p.13), a ava-liação psicológica é um processo técnico e científico realizadocom pessoas ou grupos de pessoas que, de acordo com cadaárea de conhecimento, requer metodologias específicas; é dinâ-mica e constitui-se em fonte de informações de caráter explica-tivo sobre os fenômenos psicológicos, com a finalidade desubsidiar os trabalhos nos diferentes campos de atuação do psi-cólogo, dentre eles, saúde, educação, trabalho e outros setoresem que ela se fizer necessária. Trata-se de um estudo que re-quer um planejamento prévio e cuidadoso, de acordo com a de-manda e os fins para os quais a avaliação se destina.

Por intermédio da avaliação, os psicólogos buscam in-formações que os ajudem a responder questões sobre o funcio-namento psicológico das pessoas e suas implicações. Como ocomportamento humano é resultado de uma complexa teia dedimensões inter-relacionadas que interagem para produzi-lo, épraticamente impossível entender e considerar todas as nuancese relações a ponto de prevê-lo deterministicamente.

De acordo com Noronha e Vendramini (apud MANFREDINI;ARGIMON, 2010, p. 134):

Os testes psicológicos são instrumentos utilizados na prática do psicólogo epodem fornecer importantes contribuições para a elaboração de um diag-nóstico, em um processo de avaliação psicológica. Para que os testes sejamúteis e eficientes, eles devem passar por estudos que comprovem suas qua-lidades psicométricas, assim como devem atender determinadas especifica-ções que garantam reconhecimento e credibilidade por parte da comunidadecientífica e de leigos.

Meyer e cols. (apud PRIMI, 2010, p. 33) sugerem que“as avaliações que usam múltiplos métodos são mais eficazes eque clínicos que fazem avaliações exclusivamente com entrevis-tas e observação são propensos a entendimentos incompletos”.

De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2004),os testes caracterizam-se como instrumentos de avaliação oumensuração de características psicológicas observadas através

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da manifestação do comportamento. Sendo assim, conside-rando-se a maneira como as pessoas se comportam nas tarefas,faz-se análise das características psicológicas que o teste buscaavaliar. Esses testes auxiliam na avaliação psicológica comdados úteis e confiáveis.

Resta evidente, dessa forma, que é imprescindível que averificação da alienação parental seja feita por profissionais gaba-ritados no assunto, capazes de visualizarem o problema biopsi-cossocial que a influência danosa por parte de um dos genitores,originada pela alienação parental, gera na criança, sendo capazde agir de maneira a evitar que o trauma cresça ainda mais nacriança vítima da alienação parental (ARAÚJO, 2013).

Segundo a Resolução n. 007/2003 do Conselho Federalde Psicologia (2003), os resultados das avaliações devem consi-derar e analisar os condicionantes históricos e sociais e seus efei-tos no psiquismo, com a finalidade de servirem como instrumentospara atuar não somente sobre o indivíduo, mas na modificaçãodesses condicionantes, que operam desde a formulação da de-manda até a conclusão do processo de avaliação psicológica.

De acordo com a Cartilha de Avaliação Psicológica ex-pedida pelo Conselho Federal de Psicologia (2013, p.18), a es-colha adequada de um instrumento/estratégia é complexa e develevar em conta os dados empíricos que justifiquem, simultanea-mente, o propósito da avaliação associado aos contextos espe-cíficos. No caso da escolha de um teste, é necessário que opsicólogo faça a leitura cuidadosa do manual e das pesquisasenvolvidas em sua construção para decidir se ele pode ou nãoser utilizado naquela situação.

Sendo assim, para o caso de alienação parental, sugere-seuma bateria de instrumentos favoráveis, de acordo com o SATEPSI– Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos desenvolvido peloConselho Federal de Psicologia, os quais se descrevem nas li-nhas seguintes.

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A hora do jogo diagnóstica

Conforme Efron et al. (2001), a hora do jogo diagnós-tica é um recurso técnico utilizado no processo psicodiagnós-tico com o objetivo de conhecer a realidade da criança a serconsultada, o qual implica o vínculo transferencial breve paraconhecer e compreender a criança. As possibilidades de co-municação são mediadas utilizando-se a atividade lúdica. Pormeio de um brinquedo, a criança pode expressar aquilo quevivencia no momento. Essa atividade pode revelar o sentidooculto das angústias e dos sintomas que a criança apresenta.

A mesma autora ressalta que nessa técnica existem al-guns indicadores importantes para fins diagnósticos e prognós-ticos, como: escolha de brinquedos e brincadeiras, conforme aidade da criança; modalidade de brincadeira, pela qual se podedetectar plasticidade, rigidez e/ou estereotipia e perseverança;motricidade, que demonstra o desenvolvimento neurológico ede fatores psicológicos e ambientais; tolerância e abertura paraexperiências novas; tolerância à frustração, que está relacio-nada ao princípio de prazer e de realidade; capacidade simbó-lica, que demonstra capacidade intelectual e qualidade doconflito; e, adequação à realidade, que permite a avaliação desuas possibilidades.

Sistema de Avaliação do Relacionamento Parental (SARP)

O Sistema de Avaliação do Relacionamento Parental(SARP) é um conjunto de técnicas que tem como objetivo avaliara qualidade do relacionamento entre pais e filhos (ou entre res-ponsáveis e crianças), para subsidiar recomendações acerca dadisputa de guarda e/ou regulamentação de visitas em períciasjudiciais.

As características do SARP não se enquadram na defi-nição de um teste psicológico padronizado. Trata-se, assim, deum método de avaliação não restrito a psicólogos, recomendadopara psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.

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Tendo em vista a flexibilidade do método e a possibili-dade de adaptação e/ou supressão de algumas questões daentrevista e/ou itens da escala, o SARP revela-se passível deuso em outros contextos que não exclusivamente o de disputade guarda, servindo a uma gama de situações em que seja ne-cessário subsidiar o Judiciário com informações acerca do re-lacionamento entre responsáveis e filhos (adoção, guardacompartilhada, regulamentação de visitas, alienação parental).

O SARP foi desenvolvido a partir da tese de doutoradode Vivian de Medeiros Lago, com orientação de Denise RuschelBandeira. Essa foi uma das teses em Psicologia vencedoras doPrêmio Capes de Tese 2013.

O SARP é composto de três técnicas aplicadas a res-ponsáveis e filhos: a entrevista SARP, o protocolo de avaliaçãoinfantil “Meu Amigo de Papel” (uma versão para meninos e umapara meninas) e a Escala SARP. Ainda há um livreto de apresen-tação do profissional, para ser utilizado juntamente com o “MeuAmigo de Papel”.

Teste de Apercepção Infantil – CAT-A

O Teste de Apercepção Infantil – CAT-A tem por objetivoinvestigar a dinâmica da personalidade da criança em sua sin-gularidade, de modo a compreender o seu mundo vivencial, suaestrutura afetiva, a dinâmica de suas reações diante dos proble-mas e a maneira como os enfrenta. Abrange a população entre5 e 10 anos de idade, ou seja, somente aplicado em crianças.

O CAT-A – Teste de Apercepção Infantil é um dos maisimportantes instrumentos para diagnóstico psicológico e psicote-rapia, sendo imprescindível no exame psicológico de crianças,principalmente aquelas com problemas emocionais ou vítimas deviolência de qualquer natureza. Visa revelar a estrutura de per-sonalidade da criança, as defesas e o modo dinâmico de reagire enfrentar os problemas do crescimento, captando o mundo vi-vencial da criança a partir da interpretação das histórias narradasaos estímulos apresentados.

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Composto por dez gravuras (cartões) representando ani-mais em diferentes situações, as quais permitem investigar as-pectos como o relacionamento da criança com figurasimportantes em sua vida, a dinâmica das relações interpessoais,a natureza e a força dos impulsos, as defesas mobilizadas, o es-tudo do desenvolvimento infantil e a compreensão da dinâmicafamiliar.

Para a interpretação do CAT-A, é proposto um conjuntode nove dimensões, identificadas como aspectos do sujeito, arespeito dos quais podem ser levantadas hipóteses, com basenos elementos concretos da narrativa: autoimagem, relações ob-jetais, concepção de ambiente, necessidades e conflitos, ansie-dades, mecanismos de defesa, superego e integração do ego.

Teste de Apercepção Temática – TAT

O Teste de Apercepção Temática – TAT é consideradouma técnica projetiva que consiste em apresentar uma série depranchas, selecionadas pelo examinador, ao sujeito que deverá,assim, contar uma história sobre cada uma das pranchas.

Para criar o T.A. T, o autor partiu do princípio de que di-ferentes indivíduos, frente a uma mesma situação vital, a expe-rimentam cada um a seu modo, de acordo com a sua perspectivapessoal. Essa forma pessoal de elaborar uma experiência revelaa atitude e a estrutura do indivíduo frente à realidade experimen-tada. Assim, expondo-se o sujeito a uma série de situações so-ciais típicas e possibilitando-lhe a expressão de sentimentos,imagens, ideias e lembranças vividas em cada uma dessas con-frontações, é possível ter acesso à personalidade subjacente.Esse procedimento, nas situações apresentadas, favorece a pro-jeção do mundo interno do sujeito.

É um instrumento útil em qualquer estudo abrangente dapersonalidade, no caso de distúrbios da conduta, doenças psi-cossomáticas, nas neuroses e psicoses.

Segundo Werlang (apud CUNHA, 2000, p. 409), espera-se que o examinando utilize a sua reserva de experiência, ela-borando narrações, em que, sem se dar conta, se identifica com

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os personagens da cena. Tais histórias denunciarão dados sobrea relação do examinando com as figuras de autoridade e outrostipos de vínculos, revelando também o funcionamento das rela-ções familiares, a natureza dos temores, desejos e dificuldades.

De acordo com Cunha (2000), as principais indicaçõespara a utilização são: avaliação da personalidade, principalmentepara analisar a natureza dos vínculos afetivos, regulação dos afe-tos, qualidade das relações interpessoais e identificação de con-flitos e mecanismos de defesa; avaliação de condições paraindicação psicoterápica e acompanhamento da evolução duranteo processo psicoterápico; coleta de subsídios sobre a funçãocognitiva de planejamento, através da análise do manejo que oexaminando faz de ideias verbalizadas sequencialmente; análiseda capacidade de organização e manutenção de ideias.

Teste Projetivo Rorschach

O método Rorschach foi criado pelo psiquiatra suíço Her-mann Rorschach, nascido em Zurique, aos 8 de novembro de1884. O Psicodiagnóstico Rorschach é um teste projetivo, capazde captar a vivência subjetiva do sujeito, bem como os seus di-namismos, suas áreas de potencialidades e de patologias.

De acordo com Adrados (1991), o teste constitui-se emdez pranchas padronizadas, compostas por manchas de tinta,cuidadosamente selecionadas, de modo que cumpram com cer-tos requisitos de composição e ritmo espacial; são simétricos, oque condiciona o teste de maneira igual para destros e canhotos,sendo que esta simetria ainda favorece as interpretações daspessoas inibidas ou bloqueadas.

Esse teste revela a organização básica da estrutura dapersonalidade, bem como características da afetividade, sexua-lidade, vida interior, recursos mentais, energia psíquica e traçosgerais e particulares do estado intelectual do indivíduo. A inter-pretação das manchas situa-se no campo da percepção e daapercepção (ADRADOS, 1991, p. 5).

Desse modo, Costa (2006) ensina que o Psicodiagnós-tico Rorschach traz dados valiosos sobre a estrutura e dinâmica

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da personalidade, a compreensão da constituição das bases afe-tivas sobre as quais repousa todo o funcionamento psíquico, daqualidade das fantasias, assim como as concepções ligadas àpercepção de si e do ambiente, as reações afetivo-emocionais eas condições para a ação prática no ambiente são aspectos cen-trais em uma leitura integrada de um protocolo de Rorschach.

De acordo com Vaz (1997, p. 6-7):

O Rorschach é considerado como um instrumento capaz de fornecer subsídiospara avaliação da estrutura da personalidade do sujeito e o funcionamento deseus psicodinamismos. Através da técnica avaliar seus traços de personalidade,o funcionamento de suas condições intelectuais, o nível de ansiedade básica esituacional, a depressão, suas condições efetivas e emocionais; fornece-nos con-dições para vermos como está a pessoa quanto ao controle geral, quanto à ca-pacidade para suportar frustrações e conflitos, quanto à adaptação ao trabalho eao ajustamento e integração humanos; impulsos, instintos, reações emocionais,nível de aspiração, são outros elementos psicodinâmicos avaliáveis através doRorschach. Além disso, é um instrumento capaz de auxiliar o examinador no diag-nóstico de paciente com problemas de interferência neurológica e com perturba-ção ou desvio de conduta.

Segundo Costa (2006), as possibilidades e as formas decontrole dos impulsos, assim como a consciência das motivaçõespessoais em um comportamento manifesto, é um dado eminenteem um protocolo de Rorschach. A capacidade de suportar frustra-ções, de reagir ao estresse e os níveis de ansiedade, assim comoos modos de manejá-la, são evidentes à luz dos dados oriundosda aplicação de Rorschach.

Ao avaliar a prática do Rorschach, o instrumento não deveser utilizado somente como uma conclusão diagnóstica, mas tam-bém como uma intervenção que possibilite à pessoa, uma vez di-mensionada suas dificuldades, compreender como se relacionaconsigo, com o mundo e os objetos, bem como de se percebercomo campo de possibilidades.

Ensina Costa (2006) que o Rorschach traz dados riquís-simos a respeito da forma particular de integração do indivíduocom o seu ambiente social.

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considerAçÕes FinAis

Ao abordar o tema referente à alienação parental obser-vou-se que é preciso discutir uma interdisciplinaridade entre aPsicologia e o Direito, com o intuito de garantir um espaço rela-cional que proporcione mudanças no universo comunicativo deinteração entre os juízes, promotores, defensores e os psicólogose assistentes sociais do setor psicossocial forense.

Um efetivo diálogo entre essas duas áreas de conheci-mento, bem como uma análise reflexiva da importância da inter-disciplinaridade como instrumento, pode possibilitar a diminuiçãoda violência intrafamiliar e a promoção da justiça.

A interação dessas ciências tornará mais efetiva as de-cisões judiciais, uma vez que os trabalhadores do Direito e daPsicologia serão coautores em ações conjuntas, a fim de conciliara aplicação da lei com as reais necessidades da família.

A alienação parental e o abandono afetivo são problemassérios e, por isso, identificaram-se diversos casos em que os fi-lhos ficavam sob a guarda da genitora, e esta, muitas vezes, porainda não ter aceitado e interiorizado sua nova realidade, ou seja,estar divorciada, acabava por transferir esse "luto" ao filho. Ofilho, por sua vez, acabava por exteriorizar sua insatisfação comtal situação, aliando-se à genitora em desfavor do pai, o que, in-felizmente, em alguns casos, gerava o abandono afetivo porparte do genitor em relação ao filho.

Denota-se que se esse abandono pode ocorrer porqueo genitor, ao sentir-se “cansado” dos conflitos e cenas vexatóriasem frente ao filho, afasta-se da ex-mulher e, em consequência,acaba se afastando do filho.

A alienação parental causa problemas sérios para todosenvolvidos na relação (pai, mãe e filho). O cuidado com o menoralienado deve ser dobrado e impreterivelmente acompanhado porprofissionais em tratamentos psicológicos, quando identificada aalienação, juntamente com os que praticam os atos. É necessáriotambém que o pai seja encaminhado ao tratamento psicológico,para que tal alienação não enseje um abandono afetivo.

É primordial que psicólogos, psiquiatras e assistentes so-ciais conheçam os critérios de identificação da alienação parental,

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para poder diferenciar o ódio exacerbado que leva a um senti-mento de vingança e a programação do filho para se afastar dooutro genitor. Somente o diagnóstico correto permite apontar otratamento adequado, capaz de evitar uma sobreposição de trau-mas psicológicos a todas as pessoas envolvidas.

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