Revista Direito Federal nº 94

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Direito Federal Revista da Ajufe

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Direito FederalRevista da Ajufe

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Associação dos Juízes Federais do Brasil

Ano 27 - Número 941º semestre de 2014

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Utilidade Pública FederalDecreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p.15057) Presidente: Antônio César BochenekDiretor da revista: José Antonio Lisbôa NeivaEdição: Lúcio VazIlustrações: Kleber SalesProjeto Gráfico e diagramação: Vaz Comunicação Revisão: Gabriela Artemis Impressão e Acabamento: Athalaia Gráfica e Editora Periodicidade: semestralObs.: Os textos são de responsabilidade de seus autores.

Associação dos Juízes Federais do BrasilSHS Quadra 6, Bloco E, Conj. A, sala 1305 a 1311

Brasil 21, Edifício Business Center Park 1,Brasília-DF CEP 70322-915

Tel.: (61) 3321-8482Fax: (61) 3224-7361

ISSN 1676-2320

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Antônio César Bochenek

Candice Lavocat Galvão Jobim

Eduardo André Brandão Fernandes

Fernando Marcelo Mendes

Rodrigo Machado Coutinho

André Luís Maia Tobias Granja

Roberto Carvalho Veloso

Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni

Alexandre Ferreira Infante Vieira

José Antonio Lisbôa Neiva

Marcel Citro de Azevedo

Maria Divina Vitória

Raquel Coelho Dal Rio Silveira

José Marcos Lunardelli

José Arthur Diniz Borges

José Maximiliano Machado Cavalcanti

Murilo Brião da Silva

Marianina Galante

Marcelle Ragazoni Carvalho

Frederico José Pinto de Azevedo

Cristiane Conde Chmatalik

Clara da Mota Santos Pimenta Alves

Helder Teixeira de Oliveira

Paulo César Villela S. Lopes Rodrigues

Sérgio Murilo Wanderley Queiroga

Leonardo Vietri Alves de Godoi

André Prado de Vasconcelos

Roberto Fernandes Junior

Márcia Vogel Vidal de Oliveira

Alessandro Diaféria

Carlos Felipe Komorowski

Jaílsom Leandro de Sousa

Presidente

Vice-presidente da 1ª Região

Vice-presidente da 2ª Região

Vice-presidente da 3ª Região

Vice-presidente da 4ª Região

Vice-presidente da 5ª Região

Secretário-geral

Primeira secretária

Tesoureiro

Diretor da Revista

Diretor Cultural

Diretora Social

Diretora de Relações Internacionais

Diretor de Assuntos Legislativos

Diretor de Relações Institucionais

Diretor de Assuntos Jurídicos

Diretor de Esportes

Diretora de Assuntos de Interesses dos Aposentados

Diretora de Comunicação

Diretor Administrativo

Diretora de Tecnologia da Informação

Coordenadora de Comissões

Diretor de Prerrogativas

Suplente

Suplente

Suplente

Suplente

Suplente

Membro do Conselho Fiscal

Membro do Conselho Fiscal

Membro do Conselho Fiscal

Membro do Conselho Fiscal (Suplente)

Diretoria da AjufeBiênio 2014/2016

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Náiber Pontes de Almeida

Aloysio Cavalcanti Lima

Érico Rodrigo Freitas Pinheiro

Jaiza Maria Pinto Fraxe

Cynthia de Araujo Lima Lopes

Júlio Rodrigues Coelho Neto

Maria Candida Carvalho M. de Almeida

Marcelo da Rocha Rosado

Marcos Silva Rosa

Pablo Zuniga Dourado

Regis de Souza Araújo

Renato Toniasso

Silvio Coimbra Mourthé

George Ribeiro da Silva

Bianor Arruda Bezerra Neto

Patrícia Helena Daher Lopes Panasolo

Polyana Falcão Brito

Marina Rocha Cavalcanti Barros Mendes

Leonardo da Costa Couceiro

Orlan Donato Rocha

Marcelo Roberto de Oliveira

Herculano Martins Nacif

Gilberto Pimentel de Mendonça G. Junior

Rafael Selau Carmona

Bruno César Lorencini

Gilton Batista de Brito

Denise Dias Dutra Drumond

Acre

Alagoas

Amapá

Amazonas

Bahia

Ceará

Distrito Federal

Espírito Santo

Goiás

Maranhão

Mato Grosso

Mato Grosso do Sul

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Pará

Paraíba

Paraná

Pernambuco

Piauí

Rio de Janeiro

Rio Grande do Norte

Rio Grande do Sul

Rondônia

Roraima

Santa Catarina

São Paulo

Sergipe

Tocantins

Colégio de Delegados Seccionais

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Colégio de Delegados Seccionais

Palavra do diretor............................................................................................................13

Seção de Doutrina...........................................................................................................15

A proteção à família, à maternidade e às crianças e aos adolescentes, no pacto interna-cional dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966...........................................17

Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorários maculados ............37

O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança e a proibição do retrocesso no estado democrático de direito..........................................................................................71

A tutela das criações intelectuais e a existência do direito de autor na antiguidade clássica .......91

Direito, Soberania e Efetividade Jurídica.......................................................................111

A execução de decisões judiciais contra a administração pública em uma perspectiva comparada .....................................................................................................................137

Os efeitos da dualidade de instâncias no direito antitruste brasileiro e breve análise jurisprudencial...............................................................................................................161

Uma espectrografia ideológica do debate entre garantismo e ativismo....................177

Da ofensa do voto duplo aos princípios constitucionais da igualdade e do Estado De-mocrático de Direito......................................................................................................201

Estados Liberal, Social e Democrático de Direito: noções, afinidades e fundamentos..............223

Reflexões sobre o auxílio direto: fundamentos normativos e posição jurisprudencial........245

A igualdade no país do futebol.............................................................................................281

Índice

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Caros associados,

É com grande honra e satisfação que apresento mais uma edição

da Revista de Direito Federal, sempre com ampla diversidade temática,

abarcando os diferentes ramos jurídicos, e trazendo discussões sempre

atuais, objetivas e de destacada importância prática, especialmente no

âmbito federal.

No campo jusfilosófico e da Teoria Geral do Direito, interessante re-

flexão acerca do conceito de soberania e da importância do Estado na

concretização do Direito, garantindo-lhe efetividade. Destacam-se, ain-

da, estudo acerca dos Estados Liberal, Social e Democrático, com a indi-

cação de seus pontos de contato e suas estruturas político-econômicas,

bem como de suas contribuições para o Estado Democrático de Direito,

além de relevante artigo que trata da influência das ideologias políticas

sobre a forma como se enxerga o processo, com críticas à imprecisão

teórica que domina o debate entre garantismo e ativismo.

O Direito Processual ganha relevo em estudo de Direito Comparado

referente à execução contra a Administração Pública, a partir da análise

dos sistemas alemão, norte-americano, espanhol, português e argenti-

no, com proposta de superação do dogma tradicional da impenhora-

bilidade dos bens públicos, com vistas a garantir maior efetividade à

execução forçada em face da Fazenda Pública. Ainda, surge relevante

reflexão acerca do contexto ditatorial do nascimento do instituto da

suspensão de segurança (Lei nº 4.348/64), posteriormente ampliado

pela Lei nº 8.437/92, no contexto de bloqueio dos cruzados do Plano

Collor, bem como questionamento quanto à constitucionalidade formal

da MP nº 2.180-35 e, em relação ao Direito Ambiental, demonstra-se a

preocupação com a proliferação abusiva destes incidentes, o que pode

ocasionar o amesquinhamento da atuação do Poder Judiciário na con-

cretização do comando contido no art. 225, caput, da CRFB/88.

Palavra do Diretor

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O Direito Internacional mereceu destaque em artigo relacionado ao

tratamento do Direito de Família no Pacto Internacional dos Direitos Eco-

nômicos, Sociais e Culturais de 1966 e seu reflexo no ordenamento jurí-

dico constitucional pátrio, bem como em estudo relativo aos instrumen-

tos de cooperação jurídica internacional, em especial do auxílio direto,

importante mecanismo de combate aos delitos transnacionais, com crí-

ticas ao modelo atual, instituído pela Resolução nº 09/2005 do Superior

Tribunal de Justiça em razão da inércia legislativa.

A Propriedade Intelectual ganha espaço com um panorama histórico

do tratamento dos direitos do autor na Antiguidade Clássica, com breve

estudo do tema na Grécia Antiga e no Direito Romano.

No que concerne ao Direito Econômico, pertinente o trabalho sobre

os limites da atuação do Judiciário no controle das decisões do CADE,

destacando, por um lado, a importância da atuação dos Tribunais na

defesa da ordem econômica e, de outra banda, a necessidade de auto-

-contenção, sob pena de se legitimar a recorrente substituição do en-

tendimento do CADE pela orientação das Cortes Federais, o que, em úl-

tima análise, pode ocasionar o enfraquecimento do Sistema Brasileiro

de Defesa da Concorrência.

No tocante ao Direito Penal, surge nova abordagem acerca do crime

de lavagem de dinheiro, com enfoque no exame da teoria da cegueira

deliberada - construção jurisprudencial norte-americana que se aproxi-

ma do instituto do dolo eventual - ainda incipiente na doutrina pátria, e

da teoria dos honorários maculados, oportunidade em que se examina a

possibilidade de responsabilização penal do advogado que recebe recur-

sos sabidamente oriundos de infrações penais.

Na esfera dos processos administrativos tributários, judicioso artigo

examina a constitucionalidade do voto duplo adotado pelo Regimento In-

terno do CARF em caso de empate no julgamento de recurso voluntário,

sob a ótica dos princípios da igualdade e do Estado Democrático de Direito.

Least but not last, em tempos de Copa do Mundo, destaca-se inte-

ressante artigo questionando a regra isentiva criada pelo art. 41 da

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Lei Geral da Copa - que afastou a incidência de imposto de renda e de

contribuições previdenciárias sobre os prêmios pagos aos campeões

mundiais de 1958, 1962 e 1970 -, sob a ótica do princípio da isonomia

e de seus postulados constitucionais-tributários, cuja inconstituciona-

lidade fora, inclusive, arguida pela Procuradoria Geral da República na

ADI 4.946/DF.

Tenho convicção de que, mais uma vez, a qualidade dos trabalhos certa-

mente agradará ao nível de exigência e qualificação de nossos associados.

Atenciosamente,

José Antonio Lisbôa Neiva

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Seção de Doutrina

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A proteção à família, à maternidade e às crianças e aos adolescentes, no pacto internacionaldos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966

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Marcelo Barbi GonçalvesJuiz federal substituto da Subseção de Alagoas/AL e

mestrando em Direito Público na UFAL

Resumo: O presente artigo aborda a influência do artigo 10 do Pacto In-

ternacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 na Cons-

tituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Palavras-chave: Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Proteção e

assistência à maternidade, família e crianças e adolescentes. Constituição

Federal de 1988.

Abstract: This article analyzes the influence of the article ten from the

International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights of 1966 in

the Brazil Constitution of 1988.

Keywords: Economic, Social and Cultural Rights. Protection to the ma-

ternity, family and children. International Covenant. Brazil Constitution.

1. Introdução

O art. 10 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

de 1966 (doravante PIDESC) prevê o dever de os Estados participantes reconhe-

cerem a importância e dar a devida proteção e assistência à família, às mães e às

crianças e aos adolescentes.

Nesse pensamento, o Brasil ratificou, em 1992, o citado Pacto, comprometen-

do-se a tutelar a pessoa humana em sua concretude, ou seja, como ser econômico,

social e culturalmente situado, frente ao novo modelo econômico neoliberal que

regurgitava pelo mundo.

A Constituição Federal de 1988 consagrou vários direitos, impondo deveres ao

Estado a fim de que adotasse todas as medidas necessárias para garanti-los, assim

como o fez na legislação infraconstitucional. No entanto, entre os vários direitos

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previstos, quais, de fato, se harmonizam perfeitamente com o art. 10 do PIDESC?

2. Considerações iniciais: uma visão do objetivo do pacto internacional

dos direitos ecônomicos, sociais e culturais de 1966

2.1 Notas introdutórias

Os pactos, ou tratados, existem desde a Antiguidade clássica, sendo consagra-

dos como fonte do Direito Internacional após o Tratado de Paz de Vestfália. O

direito dos tratados, como assevera Rezek, é uma parte essencial do Direito das

Gentes, uma vez que repousa sobre o consentimento dos povos, sendo certo que

até o fim do século XIX os tratados eram concretizados nas formas do direito

consuetudinário. Veja-se:

“O direito internacional repousa sobre o consenti-

mento. Os povos – assim compreendidas as comunidades

nacionais, e acaso, ao sabor da história, conjuntos ou fra-

ções de tais comunidades – propendem, naturalmente, à

autodeterminação. Organizam-se, tão cedo quanto podem,

sob a forma de Estados, e ingressam numa comunidade

internacional carente de organização centralizada. Tais as

circunstâncias, é compreensível que os Estados não se su-

bordinem senão ao direito que livremente reconheceram

ou construíram”. 1

O conceito de tratado não engendra significativa divergência entre os doutri-

nadores, pois grande parte concorda que se trata de um acordo formal, escrito e

destinado a produzir efeitos entre seus participantes.

Nesse sentido, Carlos Roberto Husek diz que: “Tratado é o acordo formal con-

cluído entre os sujeitos de Direito Internacional Público destinado a produzir

efeitos jurídicos na órbita internacional”.2 Paulo Henrique Gonçalves Portela, por

1 Rezek, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 7.

2 HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Público. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 125.

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sua vez, vai mais além, trazendo o conceito de tratado adotado na Convenção de

Viena sobre o Direito dos Tratados em 1969:

“O nosso conceito parte da noção fixada pelo artigo 2º,

§ 1º, ‘a’, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tra-

tados, de 1969, que estabeleceu que tratado ‘significa um

acordo internacional concluído por escrito entre Estados

e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um ins-

trumento único, quer de dois ou mais instrumentos cone-

xos, qualquer que seja a sua denominação específica’”. 3

A doutrina, conforme aduz Portela, elenca um rol com uma série de espécies

de tratados, cada qual com denominação adequada a cada situação diferente nas

relações internacionais, diante do conteúdo do acordo ou do interesse que se

pretende. No entanto, a nomenclatura adotada não influencia o caráter jurídico

do instrumento, não havendo nenhuma interferência no conteúdo caso tenha o

nome de pacto ou tratado.

Por derradeiro, os tratados não são meras declarações de caráter político e

não vinculante. Objetivam, na realidade, produzir efeitos jurídicos, modificativos,

extintivos ou constitutivos de obrigações e direitos, possibilitando, ainda, sanções

face ao seu descumprimento. Assim se posiciona Rezek:

“A produção de efeitos de direito é essencial ao tratado,

que não pode ser visto senão na sua dupla qualidade de

ato jurídico e de norma. O acordo formal entre Estados é

o ato jurídico que produz a norma, e que, justamente por

produzi-la, desencadeia efeitos de direito, gera obrigações

e prerrogativas, caracteriza, enfim, na plenitude de seus

dois elementos, o tratado internacional”. 4

3 PORTELA, Henrique Gonçalves Paulo. Direito Internacional Público e Privado. 3ª ed. Bahia: Juspodivm, 2011, p. 89.

4 Op. cit., p. 72.

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2.2 O surgimento do PIDESC

Ao longo da história da humanidade, à medida que o poder de determinados

grupos de indivíduos crescia, a desigualdade social começava a medrar na mes-

ma proporção do desenvolvimento econômico, social e cultural dos povos. Com

o passar do tempo, as desigualdades sociais se tornaram mais contundentes e

socialmente injustas, percepção essa sentida notadamente com o aumento das re-

lações comerciais e a consolidação do capitalismo no fim do séc. XIX.

Mesmo com a Declaração Universal dos Direito Humanos, promulgada em

10 de dezembro de 1948, além de outros tratados substancialmente significati-

vos para a proteção dos indivíduos surgidos após a Primeira e a Segunda Gran-

de Guerra Mundial, era necessária, frente ao modelo econômico neoliberal, a

constituição de um instrumento internacional que permitisse ao ser humano

gozar não só de seus direitos civis e políticos, mas também dos direitos econô-

micos, sociais e culturais.

Assim, em 16 de dezembro de 1966, na Assembleia Geral das Nações Uni-

das, foi instituído o PIDESC, sendo ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de

1992 e tendo entrado em vigor no país em 06 de julho do mesmo ano pelo

Decreto n° 591/92.

2.3 O objetivo do PIDESC

O referido tratado tem por escopo a proteção dos direitos econômicos, sociais

e culturais, devendo os Estados assegurarem o gozo destes aos seus cidadãos,

por esforços próprios ou pela cooperação da própria sociedade internacional,

utilizando todos os meios econômicos e técnicos possíveis.

Conquanto tais direitos devam ser observados sem qualquer discriminação,

mas tendo em vista a situação econômica dos países em desenvolvimento, o

tratado prevê que os Estados poderão aplicar os direitos acordados no Pacto

de acordo com um eventual quadro de escassez orçamentária, limitando, v.g, os

direitos dos estrangeiros.5

5 Artigo 2º - 1. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tan-to por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a

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O PIDESC consagrou direitos em diferentes áreas, mas intimamente interliga-

dos à busca do respeito aos direitos que garantam, sem discriminações, a digni-

dade de todas as pessoas, através da garantia de direitos laborais, de existência do

indivíduo, da saúde, educação e da família.

No âmbito do direito laboral, o tratado consagrou a adoção de medidas estatais

voltadas para o desenvolvimento econômico e a formação técnica e profissional

dos trabalhadores. Além disso, nessa mesma seara, cristalizou: a liberdade sindical

mediante o direito de fundar sindicatos, federações e confederações, tanto nacio-

nais quanto internacionais; condições de emprego justas e favoráveis, incluindo

remunerações equitativas que garantam a todos os trabalhadores dignidade; e a

proteção das mulheres e das crianças, com um especial destaque à maternidade.

Tratou, ainda, sobre a qualidade de vida do homem, prevendo o direito à

alimentação, à vestimenta e à moradia adequadas. No mais, versou sobre a

tutela à saúde, bem como a obrigação do Estado de tomar medidas voltadas

à diminuição da mortalidade infantil; a busca pelo pleno desenvolvimento da

personalidade humana; a promoção do direito à paz e à tolerância entre todos

os grupos de indivíduos.

Em face a este manancial de bens tutelados, destaca-se na análise aqueles en-

campados no art. 10, a saber, o direito à família, às mães durante a maternidade e

às crianças e adolescentes.

3. O art. 10 Do pacto no ordenamento jurídico brasileiro

3.1 Da proteção e assistência à família6

assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. 2. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enun-ciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação eco-nômica, nascimento ou qualquer outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, pode-rão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais.

6 Art. 10 - Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que: 1 – Uma proteção e uma assistência mais amplas possíveis serão proporcionadas à família, que é núcleo elementar natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista à sua formação e no tempo

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Ainda que o PIDESC tenha sido ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,

à época da concepção da Carta Política de 1988, os constituintes já possuíam o

entendimento de que a família era um dos pilares essenciais ao desenvolvimento

de um país. O Estado Democrático de Direito não poderia ser construído sem dar

a devida importância e zelo a um dos meios de solidificação de uma nação funda-

mentada na democracia.

Dessa forma, no entendimento dos Founding Fathers, a família merecia um

destaque especial na nova Constituição, realizando a constitucionalização do

instituto familiar e consagrando mecanismos de proteção e assistência à família,

especialmente no campo da seguridade social.7

Ressalte-se, ainda, no que diz respeito às relações familiares, que nada foi mais

adiantado do que a legislação previdenciária, por acolher como legítimos depen-

dentes do segurado aqueles decorrentes de uniões de fato ou de relações não

matrimoniais. Nessa linha de intelecção, veja-se:

“Singularmente inovador, para não dizer revolucioná-

rio, é o capítulo da constitucionalização da família, um ter-

reno que no passado estava entregue, quase por inteiro, à

livre discrição dos seus integrantes, com destaque para a

figura paterna, na condição de chefe e condutor dos que

gravitavam a seu redor, não só a esposa e os filhos, mas

também aqueles que se relacionavam com ele por vínculos

de dependência econômica, o que, tudo somando e guar-

durante o qual ela tem a responsabilidade de criar e educar os filhos. O casamento deve ser livremente consentido pelos futuros esposos.

7 Nesse panorama, merece destaque a legislação previdenciária, que muito antes da Consti-tuição de 1988 e do Código Civil de 2002 — à luz das ideias de união de fato e de dependên-cia econômica — já reconhecera como dependentes do segurado, para fins de proteção social, tanto a sua companheira quanto os filhos havidos com ela. No mesmo sentido, no julgamento do RE 66.347, o STF decidiu que a presunção de legitimidade da esposa, para fins de recebi-mento de pensão por morte do segurado, não pode ser absoluta, inelutável e invencível à pró-pria realidade, decaindo ela do direito de postular esse benefício — em favor da companheira do segurado — porque ausente o seu maior pressuposto: a dependência econômica daquele de quem de há muito deixara de depender. A esse respeito, ver, entre outros, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, A previdência social brasileira e a sua nova organização, Rio de Janeiro: Record, 1960, e a coletânea Legislação Brasileira de Previdência Social (org.Victor Valerius), 4. ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, 1958.

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dadas as distâncias, fazia lembrar o pater famílias do ve-

lho Direito Romano, [...] nada foi mais avançado do que a

nossa legislação previdenciária, que já nos primórdios foi

sincera com as uniões de fato, acolhendo como legítimos

dependentes do segurado – para dispensar-lhes a neces-

sária proteção social –, tanto a sua companheira quanto os

filhos havidos dessa relação não matrimonial”.8

De relevo sublinhar que a Constituição de 1988 coloca os valores familiares

como limite à liberdade de programação de rádios e da televisão, conforme se

encontra previsto no art. 221 da Carta Política.9 Dessa forma, é possível perceber

a importância da família no contexto do constituinte.

A Constituição Federal, não obstante o explanado, constitucionalizou os meca-

nismos de proteção à família especialmente nos arts. 226 ao 230, além da criança,

do adolescente e do idoso, todos com a sua devida importância para a família e

para o desenvolvimento do Estado.

O art. 226 da Constituição de 1988 estabelece que “a família, base da socieda-

de, tem especial proteção do Estado”, revelando a proteção do instituto familiar

pelo Estado, além de cristalizar a importância da mesma para a sociedade. No § 3º

do mesmo dispositivo, reconhece-se “a união estável entre o homem e a mulher

como uma das entidades familiares, devendo a lei facilitar a sua conversão em

casamento” para fins de proteção do Estado. Isso revela um pensamento muito

avançado dos constituintes, tendo em vista que no ordenamento jurídico brasilei-

ro a união estável não era legalizada, negando-se direitos pertinentes aos compa-

nheiros por não serem reconhecidos como uma entidade familiar.

O Código Civil traz, em seu art. 1.723, um conceito bem mais aprofundado de

8 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425 ss.

9 Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informa-tivas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, con-forme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

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união estável, expondo seus requisitos e ratificando que essa união é uma entida-

de familiar nos termos da Carta Política: “É reconhecida como entidade familiar

a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,

contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Hodiernamente, diante do enquadramento da união estável como uma entida-

de familiar, os direitos que são originados de um casamento são estendidos aos

companheiros. Como exemplo, tem-se os dependentes da primeira classe do Regi-

me Geral da Previdência Social – RGPS, nos termos do art. 16 da Lei nº 8.213/91:

“o cônjuge, o companheiro, a companheira”.

Além dessas entidades, a Constituição Federal consagrou como entidade fami-

liar aquela monoparental/unilinear, a qual compreende a formação de uma família

por um dos pais e seus descendentes, conforme se depreende da simples leitura

do § 4º do art. 226 da Constituição Federal: “Entende-se, também, como entidade

familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 687432/

MG, reconheceu que a união entre pessoas do mesmo sexo merece a aplicação

das mesmas regras e consequências lógicas legítimas para a união heteroafetiva.

Entendeu a Suprema Corte que os homossexuais têm o direito constitucional de

ter a sua união estável reconhecida como um instituto familiar, devendo receber

igual proteção político-administrativo, legal e social.

Acrescentou-se, ademais, que o instituto familiar originado da união homo-

afetiva não pode sofrer nenhum tipo de discriminação, sendo-lhes devidos os

mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações inerentes às entidades

familiares formadas pelo sexo distinto. Veja-se, neste diapasão, o seguinte excerto

de lavra do ministro Luiz Fux:

[...] “Os homossexuais, por tal razão, têm direito de

receber a igual proteção tanto das leis quanto do sis-

tema político-jurídico instituído pela Constituição da

República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qual-

quer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que

fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que

desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual.

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Revista da Ajufe 28

(…) A família resultante da união homoafetiva não pode

sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos,

prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem

acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uni-

ões heteroafetivas”.

Continuando os mecanismos de defesa da família, a Constituição, no § 8º do

art. 226, estabeleceu que o Estado deverá garantir assistência à família na pes-

soa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência

no âmbito de suas relações.

O ordenamento jurídico possui mecanismos de proteção tanto da mulher,

da criança e do idoso. Hoje, tem-se: a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06),

que traz uma especial proteção da mulher em casos de violência doméstica;

o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90), o qual busca a

proteção efetiva da criança e do adolescente nos planos laboral, civil e penal;

o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), protegendo o idoso do descaso pelas fa-

mílias e sociedade, especialmente. Além desses, existem outros mecanismos

presentes na legislação brasileira que têm como fim proteger a família e os

indivíduos que a formam, dando-lhes a devida assistência e proteção.

Também é constitucionalmente prevista a igualdade entre os cônjuges, di-

tando que na sociedade conjugal os direitos e os deveres inerentes a mesma

são exercidos de forma igual tanto pela mulher quanto pelo homem, nos ter-

mos do art. 226 § 5º da CF, extinguindo o instituto do pater familias. No mais,

o artigo 1.513 do Código Civil, como forma de proteção, diz que: “É defeso a

qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de

vida instituída pela família”.

Por fim, concretizando o reconhecimento aos direitos de proteção e as-

sistência à família previstos no art. 10 do Pacto em exame, no artigo 226, §§

1º e 2º, da Carta de 1988, estão insculpidos a gratuidade da celebração do

casamento e o reconhecimento dos efeitos civis, nos termos da lei, do casa-

mento no religioso.

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Revista da Ajufe 29

3.2 Da proteção e assistência à maternidade10

O objetivo de um Estado Democrático de Direito é construir uma sociedade

fundamentada na isonomia entre os seus indivíduos, devendo-se garantir a igual-

dade de tratamento com todos os direitos e obrigações devidos respectivamente a

cada um pertencente ao Estado.

Nesse sentido, o Direito Internacional está fundado na igualdade entre os po-

vos e todos que os constituem. No entanto, existem direitos que foram pactuados

pelos Estados para garantir especial tratamento em relação às mulheres que pas-

sam pelo período de gestação e depois do nascimento de seus filhos, pelo tempo

suficiente para garantir os cuidados necessários desses.

Assim, o próprio Pacto buscou garantir uma proteção tanto às mulheres no pe-

ríodo da maternidade quanto às crianças e aos adolescentes, demonstrando que

para ser alcançada a igualdade é necessário, em certos casos, haver a desigualdade.

3.2.1 A legitimidade dos tratamentos especiais a determinados grupos

pela Constituição Federal de 1988

É cediço que o ordenamento jurídico brasileiro encampa tratamento jurídico

díspare face às desigualdades de fato de cada indivíduo. É nesse sentido que deve

ser lido o artigo 193, o qual busca promover a igualdade de oportunidades àque-

les que sofreram discriminação durante toda a sua existência.

Para proteger os referidos grupos existem instrumentos, tais como o Estatuto

da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), entre ou-

tros vocacionados à tutela de setores estigmatizados pela sociedade, com o delibe-

rado escopo de igualá-los em nível de oportunidades aos demais grupos sociais.

As medidas que são tomadas para o cumprimento da justiça social e da igual-

dade de oportunidades são idôneas ao regime adotado pelo Estado brasileiro, um

Estado Democrático de Direito, bem como às especiais formas de proteção da

mulher e de outros grupos. Assim define o regime adotado José Afonso da Silva:

10 2. Deve-se conceder proteção às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto. Durante esse período, deve-se conceder às mães que trabalhem licença remunerada ou licença acompanhada de benefícios previdenciários adequados.

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Revista da Ajufe 30

“A democracia, como realização de valores (igualdade,

liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana,

é conceito mais abrangente do que o Estado de Direito, que

surgiu como expressão jurídica democrática liberal. A su-

peração do liberalismo colocou em debate a sintonia entre

o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução

desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Es-

tado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrá-

tico. Chega-se agora ao Estado Democrático de Direito que

a Constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave

do regime adotado [...] O Estado Democrático de Direito re-

úne os princípios do Estado Democrático e do Estado de

Direito, não como simples reunião formal dos respectivos

elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo

que os supera, na medida em que incorpora um compo-

nente revolucionário de transformação em status quo. Para

compreendê-lo, no entanto, teremos que passar em revista

a evolução e as características de seus elementos compo-

nentes, para, no final, chegarmos ao conceito síntese e seu

real significado”. 11

Alguns dos dispositivos da Magna Carta brasileira revelam o regime de es-

pecial tratamento a ser adotado em face de alguns grupos sociais mais desfavo-

recidos. Os fundamentos e os objetivos do Brasil consubstanciam-se na busca

por uma sociedade justa, em que a dignidade da pessoa humana se encontra em

primeiro lugar, com base sempre no princípio aristotélico da isonomia.

Para ser possível atingir o escopo sonhado pelos constituintes de uma justiça

social, é necessária a discriminação positiva, sendo o agente promotor dessa o

Estado. Em suma, não é a disparidade de tratamento vedada pela Constituição,

senão autorizada pela própria Carta Política.

11 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo: Ma-lheiros, 2012, p. 112.

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Revista da Ajufe 31

Essa discriminação ocorre através de medidas estatais voltadas a certos gru-

pos sociais desfavorecidos com a função de igualá-los aos demais. O Estado dis-

crimina, mas não busca prejudicar e sim auxiliar aqueles que sofrem pela dispari-

dade de oportunidades e protegê-los de circunstâncias prejudiciais.

Tem-se como exemplo de algumas dessas ações a Lei Maria da Penha (Lei 11.340),

que protege as mulheres que sofrem agressões de seus companheiros no âmbito do-

méstico e familiar, bem como as formas de proteção da mulher no mercado de traba-

lho estabelecido pela Constituição Federal e pela Consolidação das Leis Trabalhistas.

3.2.2 Das proteções às mães por um período de tempo razoável antes e

depois do parto e dos benefícios previdenciários adequados

A Constituição Federal, no art. 7º, XX adjudicou proteção específica ao merca-

do de trabalho da mulher, dispondo que, entre outros direitos dos trabalhadores

urbanos e rurais, deverá, nos termos da lei, ser dada especial proteção do mercado

de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos.

Nesse mesmo sentido, com a mesma visão dos sujeitos participantes do Pacto,

o constituinte disponibilizou vários mecanismos de proteção à maternidade, ten-

do grande reflexo na legislação infraconstitucional.

A CF/88, no seu art. 10, II, “b”, dos Atos de Disposições Constitucionais Tran-

sitórias, protege a mãe gestante com a proibição de dispensa arbitrária ou sem

justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco)

meses após o parto. No art. 7º, inciso XVIII, estabelece a licença à gestante, sem

prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 (cento e vinte dias). Uma

inovação constitucional que ampliou a antiga licença de 90 (noventa) dias.

Nesse diapasão, a legislação infraconstitucional, a CLT, no art. 392, e a Lei do

Regime Geral da Previdência Social (Lei 8.213/91), no art. 71, preveem que a em-

pregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias,

sem prejuízo do salário e do emprego. Ainda, na CLT, nos §§ 1º e 2º do dispositivo

já citado, estabelece que a empregada gestante poderá se afastar entre o 28º dia

antes do parto até a ocorrência desse, podendo ser aumentado de 2 (duas) sema-

nas os períodos de repouso antes e depois do parto.

À gestante é garantida, sem prejuízo do salário e demais direitos, nos termos do

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Revista da Ajufe 32

art. 392, §4º, I e II, da CLT, a transferência de função nos casos em que as condi-

ções de saúde o exigirem, assegurada a retomada da função anteriormente exerci-

da, logo após o retorno ao trabalho, bem como a dispensa no horário de trabalho

pelo tempo necessário para a realização de, no mínimo, 6 consultas médicas e

demais exames complementares.

Após o nascimento, para garantir os devidos cuidados com o bebê, a CLT

impõe às empresas o dever de garantirem um espaço para que as mães possam

cuidar dos filhos de colo. O art. 400 impõe que os locais destinados à guarda

dos filhos das operárias, durante o período de amamentação, deverão conter, no

mínimo, um berçário, uma saleta de amamentação, uma cozinha dietética e uma

instalação sanitária.

O art. 389, por sua vez, nos §§ 2º e 3º, atribui o dever de as empresas ins-

talarem local apropriado onde seja permitido às empregadas guardarem sob a

vigilância e a assistência seus filhos no período de amamentação, nos estabele-

cimentos em que trabalharem, pelo menos, 30 (trinta) mulheres com mais de 16

(dezesseis) anos, podendo ser suprido por creches distritais mantidas diretamente

pelo empregador ou por convênio com outras entidades.

Além desses mecanismos, a CLT prever formas de garantia do emprego da ges-

tante, consagrando, no art. 391, que a gravidez não constitui justo motivo para a

rescisão do contrato de trabalho da mulher, bem como veda que haja regulamentos

de qualquer natureza restringindo os seus direitos em decorrência desse estado.

Nesse mesmo sentido, prevê o art. 391-A, incluído em 2013 pelo legislador, após

a pacificação jurisprudencial12 e doutrinária, a estabilidade provisória da gestante,

nos termos do art. 10, II, “b” do ADCT, durante o prazo do aviso-prévio trabalhado

ou indenizado, principalmente nos contratos de emprego por tempo determinado.

Há que se destacar, também, que a CF/88 consagrou, no campo previdenciário,

12 Súmula do TST n° 244 - GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item III alterada na sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012 – DEJT di-vulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade (art. 10, II, “b” do ADCT). II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade. III - A empregada gestante tem direito à estabili-dade provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucio-nais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado.

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Revista da Ajufe 33

o dever de proteger a maternidade, especialmente a gestante, garantindo-lhe as-

sistência por meio da Previdência Social.

Art. 201. A previdência social será organizada sob a

forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação

obrigatória, observados critérios que preservem o equilí-

brio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:

[...] II - proteção à maternidade, especialmente à gestante;

Dessa forma, o RGPS garantiu o salário-maternidade às gestantes, sendo devido quan-

do o parto ocorrer a partir do 6º mês ou na 23ª semana de gestação, adoção de crianças,

guarda judicial de crianças para fins de adoção e em casos de aborto não criminoso.

Ressalta-se, também, como um dos mecanismos de proteção da materni-

dade pelo ordenamento jurídico brasileiro baseado nos termos do pacto, a Lei

11.770/08, que instituiu o Programa Empresa Cidadã, destinado a prorrogar o

prazo de licença-maternidade por mais 60 (sessenta) dias.

Essa prorrogação, a título de informação, será garantida à empregada da pes-

soa jurídica que aderir ao referido programa, devendo ser requerida a prorroga-

ção pela gestante até o fim do primeiro mês após o parto.

Durante esse novo período, a empregada terá direito, nos termos do art. 3º da

referida lei, à sua remuneração integral, da mesma forma que os devidos no perí-

odo de percepção do salário-maternidade, sendo que será pago diretamente pelo

empregador e não pela Previdência Social.

3.3 Da proteção e assistência às crianças e aos adolescentes13

O constituinte de 1988, na mesma toada do Pacto, consolidou no caput do art.

13 3. Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência em prol de todas as crianças e os adolescentes, sem distinção por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Devem-se proteger as crianças e os adolescentes contra a exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à saúde ou que lhes façam correr perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento nor-mal, será punido por lei. Os Estados devem também estabelecer limites de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o emprego assalariado da mão de obra infantil.

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Revista da Ajufe 34

227 da CF/88 que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança,

ao adolescente e ao jovem,14 com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,

à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,

ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de sempre

garantir a segurança deles de todas as formas de negligência, discriminação, ex-

ploração, violência, crueldade e opressão.

O Tratado, no item 3 do seu art. 10, na parte inicial, revela que os Estados re-

conhecem que todas as crianças e os adolescentes merecem os mesmos direitos e

garantias sem discriminações, salvo em nome do princípio isonômico.

Nesse raciocínio, a CF/88 estabeleceu, no § 6º do art. 227, que os filhos, havi-

dos ou não no casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualifica-

ções, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Bem

traduz esse artigo Inocêncio Mártires Coelho:

“Quanto à pessoa dos filhos, é igualmente digna de lou-

vor a determinação constitucional no sentido de que, havi-

dos ou não dentro do casamento, ou por adoção, terão eles

os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação”.15

Outra forma de proteção constitucional das crianças e dos adolescentes foi o

dever da criação de um estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos

jovens, e a articulação de um plano nacional da juventude, de duração decenal,

visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução das

políticas públicas voltadas para as crianças e os adolescentes.

Com base nos princípios do Pacto e da Convenção dos Direitos da Criança

de 1989, ratificado pelo Brasil em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e

do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), norteado na Doutrina da Proteção Integral,

essa estabelecendo o dever do Estado, da sociedade e da família de tomarem os

14 O termo jovem não estava presente na redação original do texto da Carta Política, sendo acrescentada em 2010 pela Emenda Constitucional n° 65.

15 Op. cit., p. 1.426.

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Revista da Ajufe 35

devidos cuidados dos menores de forma absoluta, conforme já foi anteriormente

estabelecido pelo Poder Constituinte no art. 227, dando-se assistência e proteção

necessárias para as crianças e os adolescentes.

Valter Kenji Ishida leciona que o ECA, com base na Doutrina da Proteção Inte-

gral, busca garantir todos os direitos especiais e específicos de todas as crianças

e os adolescentes, além de dar especial proteção a elas. É uma forma de efetivação

de todos os diretos fundamentais da criança e do adolescente e proteção, sem

discriminação, garantindo-se os preceitos do pacto. Veja:

“Segundo a doutrina, o Estatuto da Criança e do Ado-

lescente perfilha a ‘doutrina da proteção integral’, baseada

no reconhecimento de direitos especiais e específicos de

todas as crianças e adolescentes. Foi anteriormente previs-

ta no texto constitucional, no art. 227, instituindo a chama-

da prioridade absoluta. Constitui, portanto, em uma nova

forma de pensar, com o escopo de efetivação dos direitos

fundamentais da criança e do adolescente. A CF, em seu art.

227, afastou a doutrina da situação irregular e passou a

assegurar direitos fundamentais à criança e ao adolescen-

te. Tratou na verdade de uma alteração de modelos ou de

forma de atuação. A doutrina da situação irregular limita-

va-se basicamente a 3 (três) matérias: (1) menor carente; (2)

menor abandonado; (3) diversões públicas”.16

No campo laboral, tanto a CLT quanto o ECA estabelecem situações de pro-

teção, cuidados e vedações com os menores nas relações de emprego, dentro da

visão do item 3 do artigo 10º do pacto:

“Devem-se proteger as crianças e adolescentes contra

a exploração econômica e social. O emprego de crianças

e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à saú-

16 ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criança e do Adolescente. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 1.

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Revista da Ajufe 36

de ou que lhes façam correr perigo de vida, ou ainda que

lhes venham a prejudicar o desenvolvimento normal, será

punido por lei. Os Estados devem também estabelecer limi-

tes de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o

emprego assalariado da mão-de-obra infantil”.

A CF/88, como as citadas legislações pertinentes, estabeleceu o mecanismo

inicial de proteção ao trabalho do menor e definiu a idade de início do trabalho

e as vedações. No art. 7º, XXXIII, está a proibição do trabalho noturno, perigoso

ou insalubre ao menor de 18 anos e de qualquer trabalho ao menor de 16 anos,

ressalvado a partir de 14 anos na condição de aprendiz.

Na CLT, o trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à

sua formação, ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e

locais que não permitam a frequência à escola, nos termos do art. 403. Ainda, nos

arts. 405, 407, prever que dependerá de prévia autorização do juiz o trabalho rea-

lizado nas ruas, praças e outros logradouros, sendo que o mesmo deverá verificar

se o trabalho é indispensável à subsistência do menor ou de seus pais, avós ou ir-

mãos, sem, em qualquer caso, prejuízo à sua formação moral. Caso seja verificado

que o trabalho é prejudicial à saúde, ao desenvolvimento físico ou moral, poderá

a autoridade competente obrigar o menor a sair da ocupação ou fazer com que o

empregador o mude de função.

4. Conclusão

O constituinte de 1988, antes mesmo de o Estado brasileiro ratificar o pacto

e dar-lhe vigência, já tinha consciência da imperiosa necessidade de dar especial

proteção e assistência à família, às mães, antes e depois do parto, e às crianças e

aos adolescentes.

Destarte, as inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, após um

longo período de tempo de regime ditatorial, revelam que o Brasil reconheceu

e abraçou os ideais do PIDESC, em especial o art. 10 desse, antes mesmo de sua

adesão em 1992.

O Pacto consagrou a proteção a diversos direitos que possuem reflexos nos

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Revista da Ajufe 37

campos social, econômico e cultural. Os direitos que foram expostos mostram que

o legislador brasileiro, em respeito tanto à CF/88 quanto ao Pacto, cumpriu com a

missão, imposta pelo referido tratado, de dar a devida proteção e assistência à fa-

mília, às mães durante o período da maternidade e às crianças e aos adolescentes.

Sem sombra de dúvida, o Brasil consagra no plano do dever-ser os direitos

consagrados no art. 10 do Pacto, em especial nos âmbitos laboral, civil, previ-

denciário, entre outros, previstos os direitos e as garantias fundamentais para os

grupos referidos no tratado.

Não obstante isso, são notórias as dificuldades para a aplicação da legislação.

Muitas decorrem da falta de estrutura, corrupção, fraude e do sentimento ego-

cêntrico em prejuízo da coletividade. No entanto, no campo teórico, é importante

exaltar todas as inovações trazidas e reconhecer que o Brasil está caminhando de

acordo com os fins que garantem a dignidade da pessoa humana.

4. Referências Bibliográficas

HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Público. São

Paulo: Malheiros, 1995.

ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criança e do Adolescente. 12ª ed. São

Paulo: Atlas, 2010.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo

Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

PORTELA, Henrique Gonçalves Paulo. Direito Internacional Público e Pri-

vado. 3ª ed. Bahia: Juspodivm, 2011.

REZEK, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed.

São Paulo: Malheiros, 2012.

Page 38: Revista Direito Federal nº 94
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Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorários maculados

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Revista da Ajufe 40

Vlamir Costa Magalhães Mestre em direito penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Pós-graduado em Regulação e Direito Público da Economia pela Universidade de Coimbra/Portugal. Juiz Federal.

Sumário: 1. Relato histórico; 2. A contextualização da lavagem de dinhei-

ro no cenário jurídico-penal contemporâneo; 3. A realidade atual da lavagem

de dinheiro; 4. Compliance: o dever de colaboração antilavagem; 5. A teoria

da cegueira deliberada; 6. A teoria dos honorários maculados; 7. Conclusão;

8. Referências.

Resumo: O estudo aborda a lavagem de dinheiro como espécie crimino-

sa, abrangendo desde o seu histórico até a realidade atual. Neste aspecto,

busca-se contextualizar o tema no cenário do mundo globalizado, enfati-

zando-se a responsabilidade de advogados e agentes econômico-financei-

ros quanto à colaboração no combate à lavagem de dinheiro, sobretudo no

tocante à teoria da cegueira deliberada e à teoria dos honorários maculados.

Palavras-chave: lavagem – dinheiro – cegueira – deliberada – honorá-

rios - maculados

Abstract: The study deals with money laundering as criminal specie,

ranging from its history to the present reality. In this regard, the author

seek to contextualize the subject in the scene of a globalized world, em-

phasizing the responsibility of lawyers and economic agents in combating

money laundering, particularly as regards the theory of willful blindness

and the theory of fees tainted.

Keywords: laundering - money - blindness - willful - fees - tarnished

“A democracia liberal protege os direitos do homem e não os crimes do

homem. Maldita seria a democracia liberal, se se prestasse a uma política de

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cumplicidade com a delinquência.”1

1. Relato histórico

A ciência penal enfrenta atualmente uma nova era da criminalidade marca-

da pela organização, internacionalidade e poderio econômico.2 As tendências

do sistema punitivo são, mais do que nunca, pautadas pelas nuances econô-

mico-sociais. Neste contexto, a camuflagem do patrimônio de origem ilícita

tem se revelado como instrumento de perpetuação do ciclo vicioso de refinan-

ciamento da delinquência moderna, motivo pelo qual significativa parcela da

doutrina vem contrariando o já corriqueiro discurso de crítica ao alargamento

temático do ordenamento criminal, uma vez que se reconhece no combate à

lavagem de dinheiro um claro exemplo de expansão razoável3 do Direito Penal.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o encobrimento do produto patrimo-

nial de infrações penais resume a essência do que se convencionou chamar

de lavagem de dinheiro e a tipificação penal desta conduta não representou

a simples adição de um delito ao catálogo legal, mas sim a implementação de

inédita política de enfrentamento das graves e incisivas manifestações crimi-

1 Cf. HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I: arts. 1o ao 10. 5a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 67.

2 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002, p. 80.

3 Pela pertinência do trecho, vale a transcrição: “O que interessa ressaltar neste momento é tão-somente que existe, seguramente, um espaço de ‘expansão razoável’ do Direito Penal, ainda que, com a mesma convicção próxima da certeza, se deva afirmar que também se dão importantes manifestações da ‘expansão desarrazoada’. A título puramente orientativo: a en-trada maciça de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotráfico) em um determinado setor de economia provoca uma profunda desestabilização desse setor, com importantes repercussões lesivas. É, pois, provavelmente razoável que os responsáveis por uma injeção maciça de dinheiro negro em um determinado setor da economia sejam san-cionados penalmente pela comissão de um delito contra a ordem econômica. Mas, vejamos, isso não faz, por si só, razoável a sanção penal de qualquer conduta de utilização de pequenas (ou médias) quantidades de dinheiro negro na aquisição de bens ou retribuição de serviços. A tipificação do delito de lavagem de dinheiro é, enfim, uma manifestação de expansão razo-ável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance muito limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação as quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante).” Cf. SILVA--SÁNCHEZ, Jesús-María, op. cit., p. 28.

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Revista da Ajufe 42

nosas que, de regra, precedem ou envolvem a lavagem de dinheiro.4

Há milênios, o Código de Hamurabi já punia, com a pena de morte, aquele

que se encontrasse na posse ou fruição de bens da Corte, da Igreja ou de es-

cravos de terceiros, sem a devida comprovação da licitude da aquisição.5 Há,

no entanto, quem aponte que a incriminação mais assemelhada à lavagem

teve origem na China, onde, há cerca de três mil anos, era previsto o sancio-

namento penal de mercadores que transferissem a terceiros bens sonegados

perante o Estado.6

Se por um lado, perdem-se no tempo as tentativas de fazer valer o dita-

do segundo o qual o crime não compensa - ou não deve compensar -, por

outro lado, é recente o processo de sofisticação da reciclagem patrimonial.

Na interessante dicção de AMBOS,7 a mentalidade reitora da vigente política

criminal pretende que o criminoso seja obrigado a permanecer sentado em

seu capital sujo, o que deve se dar, segundo a complementação de MORO,8

até que o Estado lhe tome o assento.

É extensa a variedade de denominações aplicadas à dissimulação de bens

decorrentes da prática de infrações penais, sendo colacionadas pela doutrina

especializada as seguintes: blanchiment d’argent (França e Bélgica); blanchis-

sage (Suíça); gelwäsche (Alemanha); blanqueo de capitales (Espanha); ricicla-

ggio di denaro sporco (Itália); lavado de dinero (Argentina); money laudering

(EUA e Reino Unido) e branqueamento de capitais (Portugal). Desta exposição,

constata-se que a preocupação em torno do tema está longe de ser exclusiva

de determinado país ou região, sendo, ao revés, compartilhada universalmente.

Acolheu-se no Brasil a expressão “lavagem de dinheiro”, o que, segundo a

4 MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 16.

5 GIORDANI, Mário Curtis. História do Direito Penal entre os povos antigos do oriente pró-ximo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 12/17.

6 Neste sentido: MACEDO, Amilcar Fagundes Freitas. O crime de lavagem de dinheiro – algu-mas reflexões. Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AJURIS, março/2008, p. 10.

7 AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Por-to Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 63.

8 MORO, Sérgio Fernando. Op. Cit., p. 16.

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Revista da Ajufe 43

exposição de motivos da Lei n. 9.613/98,9 ocorreu com base em duas justifi-

cativas: (1) a tentativa de uniformização mediante acolhimento da linguagem

usualmente empregada em tratados internacionais sobre a matéria e (2) a in-

tenção de afastar possíveis conotações racistas decorrentes do termo “bran-

queamento”. Entretanto, subsiste crítica doutrinária que vislumbra a opção

do legislador como atécnica e desafortunada10, seja pelo indevido emprego

de linguagem figurada, seja porque, segundo a própria dicção legal, o com-

portamento incriminado abrange como possível objeto material não apenas

dinheiro em espécie, mas quaisquer bens, direitos ou valores provenientes,

direta ou indiretamente, da prática de infração penal.

Etimologicamente, costuma-se atribuir o surgimento da expressão “mo-

ney laudering” (lavagem de dinheiro, em tradução literal) ao fato de Alphon-

sus Gabriel Capone, criminoso ítalo-americano conhecido como Al Capone

ou Scarface, ter utilizado lavanderias de roupas e automóveis para mascarar

sua ilícita evolução patrimonial. Vale lembrar que, apenas em 1931, Capone

veio a ser condenado por sonegação de imposto de renda, sendo certo que

jamais foi responsabilizado pelo crime que o notabilizou, qual seja o contra-

bando de bebidas alcoólicas durante a vigência da Lei Seca nos EUA.11

No interessante relato de MORRIS12 consta que os agentes públicos res-

9 O texto integral consta do seguinte endereço eletrônico: https://www.coaf.fazenda.gov.br. Acesso em 21.06.2013.

10 Há quem proponha a denominação “lavagem de ativos”. Neste sentido: CALLEGARI, André Luís; Scheid, Carlos Eduardo e Andrade, Roberta Lofrano. Breves anotações sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 92. São Paulo: RT, setem-bro/2011, p. 247. Embora seja correta a crítica doutrinária, serão indistintamente utilizadas neste trabalho as expressões lavagem de dinheiro e de capitais, haja vista a corriqueira utili-zação de ambas no âmbito doutrinário e jurisprudencial..

11 Sobre o tema, segue a interessante impressão de FROSSARD:“Desde a famosa condena-ção de Al Capone por sonegação de imposto de renda, sabemos que o aspecto financeiro é o ponto muitas vezes vulnerável de organizações criminosas. No entanto, não somos apenas nós, autoridades públicas, que aprendemos com a experiência. O crime organizado também aprende sua lição e sabe que é preciso ocultar, cada vez melhor, os rendimentos obtidos com a prática de delitos. Essa realidade exige de nós a atualização permanente.” Cf. FROSSARD, Denise. A Lavagem de Dinheiro e a Lei Brasileira. In: Revista de Direito Penal n. 01. Porto Alegre: Editora Magister, agosto/2004, p. 30.

12 MORRIS, Stanley E. Ações de combate à lavagem de dinheiro em outros – experiência americana. In: Anais do Seminário Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Brasília: Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, 2000, p. 37.

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Revista da Ajufe 44

ponsáveis pela captura de Capone não eram policiais fortemente armados,

conforme retratado no premiada produção hollywoodiana intitulada “Os In-

tocáveis”, mas sim contadores da agência de tributos dos EUA (atualmente

Secretaria da Receita Federal), então chefiados pelo economista Eliot Ness.

Este dado enfatiza a realidade típica de uma criminalidade inteligente, re-

quintada e que foge do estereótipo predominantemente violento ao qual o

sistema penal está acostumado. Tanto é assim que o insucesso de Capone no

encobrimento da raiz criminosa de sua renda estimulou outros criminosos

a contratarem profissionais do campo jurídico-financeiro visando à criação

de métodos que os livrassem do mesmo destino, o que deu origem, por exem-

plo, à ideia de investimento em cassinos de Las Vegas e Cuba.

Inicia-se, então, a tendência de terceirização e especialização da lavagem

fazendo com que, a cada ação repressiva das autoridades estatais, novas

metamorfoses sejam notadas no tocante ao aperfeiçoamento técnico e ex-

pansão mercadológica da lavagem de dinheiro. Estudos recentes apontam,

por exemplo, que, sobretudo na Itália e na Inglaterra, clubes de futebol vêm

servindo como veículos para reciclagem de recursos ilícitos.13 Talvez por

mera coincidência (talvez não), clubes brasileiros remeteram, entre os anos

de 2002 e 2012, cerca de cento e noventa milhões de dólares para países

considerados paraísos fiscais (dentre eles, Ilhas Virgens e Bahamas) em ne-

gociações de direitos federativos sobre atletas.14

Por todas as vicissitudes demonstradas, a lavagem de dinheiro tem se

desenhado como viva expressão de teoria criminológica da aprendizagem

social, também denominada associação diferencial,15 o que importa em re-

13 Neste sentido: GREER, Charlie. Money laudering in football. Texto em idioma inglês dis-ponível em: http://www.proximalconsulting.com/. Acesso em 01.05.2013.

14 Conforme matéria publicada, no dia 14.07.2013, pelo jornal Folha de São Paulo (p. D1) ba-seada em dados do Banco Central. Também alertando sobre o tema: DE SANCTIS, Fausto Martin. Lavagem de dinheiro: jogos de azar e futebol – análise e proposições. Curitiba: Juruá, 2010.

15 Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Sobre a impunidade da macro-delinquência eco-nômica desde a perspectiva criminológica da teoria da aprendizagem. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 3. Número 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, julho--setembro de 1995, p. 172. A teoria da associação diferencial ou da aprendizagem social foi vislumbrada por Edwin H. Sutherland na década de 30 e prega que a atuação criminosa é difundida por meio de um processo de convivência e comunicação denominado interacionis-mo simbólico. Assim, a verdadeira origem da delinquência econômica moderna estaria ligada

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Revista da Ajufe 45

afirmar o equívoco de não se enxergar que organizações criminosas têm

tirado lições de suas próprias falhas de modo a estarem sempre um passo à

frente do Estado, tarefa na qual, infelizmente, têm logrado êxito.

O marco normativo internacional acerca da incriminação da lavagem de

capitais somente adveio em 20.12.1988,16 com a celebração da Convenção

de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes,17 na qual se determinou

(art. 3) aos Estados signatários a tipificação penal da dissimulação de bens

oriundos da exploração do narcotráfico, o que é compreensível, haja vista

ser este, ainda hoje, o delito mais lucrativo que se conhece.18 Assim, reconhe-

cida a independência do interesse jurídico tutelado por meio da incrimina-

ção da lavagem de dinheiro em relação ao delito antecedente,19 os ordena-

mentos nacionais passaram a incriminar a lavagem de capitais e não mais

à transmissão de informações, racionalizações e motivos favoráveis ao caminho criminoso. Em suma, o crime não seria um fato hereditário, fortuito ou irracional: o crime se aprende e a transmissão deste ensinamento provoca uma reação em cadeia (efeito ressaca ou espiral). Sobre o tema: SERRANO MAÍLLO, Alfonso. Introdução à Criminologia. 1a ed. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 202; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 275 e HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 60.

16 A Itália foi o primeiro país a criminalizar a lavagem de capitais, o que se deu em 1978. Os EUA o fizeram em 1986, por meio da edição do Money Laudering Control Act.

17 No Brasil, o Decreto n. 154, de 26.06.1991, promulgou a Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas.

18 A Conferência das Nações Unidas sobre o crime organizado global de 1994 estimou que o tráfico mundial de drogas auferia em torno de 500 milhões de dólares anualmente, ou seja, um volume lucrativo maior que o do comércio mundial de petróleo. Cf. ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuición a la determinación del injusto penal de organización criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, p. 3.

19 Embora haja divergência quanto ao interesse jurídico tutelado por meio da incriminação da lavagem de dinheiro, reconhece-se maciçamente a autonomia deste em relação ao crime antecedente e, por conseguinte, a não aplicação do princípio da consunção à hipótese e o não cabimento da alegação de dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem). Neste sentido: CALLEGARI, André Luís; SCHEID, Carlos Eduardo e ANDRADE, Roberta Lofrano. Breves ano-tações sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 92. São Paulo: RT, setembro/2011, p. 244. Registre-se, porém, que GRECO FILHO defende isola-damente que o crime de lavagem de dinheiro não tem autonomia, eis que tutelaria exclusiva-mente um bem jurídico “satélite” ou “periférico” já protegido pelo crime antecedente. Neste sentido: FILHO, Vicente Greco. Tipicidade, bem jurídico e lavagem de valores. Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais. In: Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso Brasileira. Coord. José de Faria & Silva e Marco Antonio Marques da Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 454.

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Revista da Ajufe 46

considerá-la como mera fase de exaurimento do crime antecedente.

Paralelamente, foram envidados esforços no sentido de criar entidades e

instrumentos internacionais antilavagem, destacando-se, neste particular, a

criação do GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional, organismo inter-

governamental criado em dezembro de 1998 e que tem o objetivo de colher

dados e editar recomendações20 sobre medidas de combate à lavagem de di-

nheiro, bem como avaliar o cumprimento destas mediante listagem de países

não-cooperantes.

É imperativo esclarecer que as eufemísticas alcunhas de paraíso fiscal,

tax haven ou país não-cooperante podem induzir à falsa noção de mera

caracterização de imunidade tributária. Em verdade, a denominação é apli-

cável a Estados que, com o intuito de atrair capitais de qualquer procedên-

cia, promovem a profunda desregulamentação de seus sistemas bancários e

financeiros, abdicando ou fazendo vistas grossas em relação à diretriz know

your customer, isto é, a política de identificação dos titulares dos investi-

mentos e manutenção de registros das respectivas operações.21

Após longo período de certa condescendência22 com o crime de lavagem

20 As 40 recomendações do GAFI foram prolatadas em 1990 e revistas pela primeira vez em 1996. Nesta última versão, foram adotadas por mais de 130 países, passando a constituir o padrão internacional de combate à lavagem de dinheiro. Este histórico e o teor de todas as recomendações mencionadas encontram-se disponíveis, em idioma inglês, no seguinte ende-reço eletrônico: http://www.fatf-gafi.org. Acesso em 05.01.2013.

21 Cite-se o exemplo das Ilhas Cayman que possuíam, no ano 2000, cerca de 36 mil habi-tantes e uma taxa de 1,25 empresas por habitante, além de um total de 596 bancos e 1.800 fundos de investimentos, nos quais encontravam-se alocados cerca de 500 bilhões de dóla-res, o que tornava este pequeno país no quinto centro financeiro do mundo. Ocorre que, do total citado, apenas 110 bancos mantinham sede física no país e os demais estariam situados em “coqueirinhos”, sendo assim chamadas as caixas postais do local. Um estudo do FMI da-tado de 1997 já retratava o crescimento do montante em dinheiro depositado em paraísos fiscais, de um total de 3,5 trilhões e meio de dólares em 1992 para 4,8 trilhões de dólares em 1997, sendo que 1/3 deste valor estaria em paraísos caribenhos. Curiosamente, o ciclo histórico denota que, no passado, os piratas medievais teriam escondido naquelas ilhas seus tesouros surrupiados ao passo que, no presente, são os piratas econômico-financeiros da modernidade que voltam a fazer o mesmo, mas de maneira muito mais sofisticada e sorratei-ra. Cf. MORAES, Deomar de. Paraísos fiscais, centros offshore e lavagem de dinheiro. Anais do Seminário Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Brasília: Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, 2000, p. 95/103.

22 Em entrevista publicada no jornal Folha de São Paulo, em 28.10.2005, p. A-7, o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, afirmou o seguinte: “Existe hoje no Brasil, soli-damente estabelecida, uma cultura de condescendência com a lavagem de dinheiro.” Ainda segundo o então Ministro, a luta contra a lavagem de dinheiro precisaria prosseguir por vá-

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de dinheiro, o Brasil começa a dar sinais de que pretende alinhar-se ao mo-

vimento internacional a fim de não se tornar mais um refúgio seguro para

capitais de origem ilícita. Fato é que, ao menos por ora, as normas antilava-

gem têm escassa aplicação no Brasil e somente em casos pontuais o assunto

toma a atenção da sociedade, o que se dá, sobretudo, por impulso de man-

chetes jornalísticas.

2. A contextualização da lavagem de dinheiro no cenário jurídico-pe-

nal contemporâneo

Costuma-se atribuir ao movimento iluminista a formação do Direito Pe-

nal chamado doutrinariamente de liberal, tradicional ou clássico e que teria

se constituído a partir da segunda metade do século XVIII. Tratava-se do

esboço de um sistema de garantias voltado a albergar liberdades individuais

em face das arbitrariedades típicas da era feudal. Neste contexto, desenvol-

veu-se um conjunto de ideias que funcionou como plataforma de resistência

ao sistema punitivo do Estado Absolutista. Nota-se, entretanto, que a pauta

de discussões penais gravita atualmente sobre delitos distintos do paradig-

ma clássico e, neste aspecto, perde força o protagonismo dos crimes violen-

tos (ou de sangue) e da delinquência patrimonial em sentido estrito, tópicos

dominantes no século XIX e em boa parte do século XX.

Há décadas, BARATTA já assinalava que os interesses que pertencem ao

âmbito da incolumidade física e patrimonial individual são historicamen-

te privilegiados em relação aos interesses difusos ou coletivos (também do

ponto de vista jurídico-processual), ainda que estes últimos não sejam me-

nos importantes para a qualidade de vida dos indivíduos e afetem a um nú-

mero maior deles. Logo, o Direito Penal não pode se furtar ao cumprimento

de sua missão fundamental concernente à proteção dos bens jurídicos mais

importantes para a sociedade de sua época. Neste aspecto, para além da li-

berdade e do patrimônio meramente individual, o ordenamento penal deve

rios motivos e arrematou que: “(...) o principal deles é que (a lavagem) atrapalha a luta contra o crime organizado, porque essa massa de dinheiro acaba se misturando com o dinheiro do traficante de drogas, do traficante de seres humanos, de armas, que, esses sim, estão conde-nados ao caixa dois e têm de ser combatidos fortemente pelo poder público”.

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Revista da Ajufe 48

proteger também as circunstâncias econômico-sociais necessárias à convi-

vência pacífica e ao desenvolvimento da cidadania, bem como o funciona-

mento do aparato estatal destinado ao atendimento destes objetivos.

Sob risco de injustificável ucronismo,23 já não se mostra viável a centra-

lização do debate jurídico-penal na criminalidade das ruas (patrimonial e

violenta), com seus métodos explícitos, além de autores e vítimas bem iden-

tificados individualmente. Há que se atentar para o fato de que as mais fortes

expressões da macrocriminalidade moderna (v.g.: tráfico de armas, pesso-

as e entorpecentes; crimes econômico-empresariais; fraudes fiscais, dentre

outros) atingem interesses não diretamente individuais, mas sim de toda a

coletividade. No mesmo diapasão, a impressão de FELDENS dá conta de que,

na era da sociedade em rede, a criminalidade violenta vê-se substituída pela

astúcia, pelo enleio, pelo ardil, pela fraude e pelo artifício num contexto em

que as ruas cedem espaço às infovias, fazendo do computador e da tecnolo-

gia instrumentos do crime.

Na dinâmica do planejamento da delinquência moderna, observa-se que

a dissimulação do patrimônio de procedência ilícita tem funcionado como

mola propulsora de grupos criminosos estruturados que, desta forma, ga-

rantem a preservação e, não raramente, o incremento de seu poder econô-

mico. Não há dúvidas de que a reciclagem de dinheiro sujo propicia também

amplas possibilidades de inserção de delinquentes no tecido social, em es-

pecial por meio do exercício de atividades aparentemente inofensivas. Desta

forma, a um só tempo, logra-se a dissimulação do patrimônio de origem

ilegal e, de quebra, aufere-se prestígio junto à sociedade.

Com amparo em ampla convergência doutrinária, reconhece-se que a la-

vagem de capitais e as organizações criminosas mantêm ligação não só an-

tiga, mas, acima de tudo, umbilical.24 No bojo do processo sócio-econômico

23 SILVA-SÁNCHEZ emprega a expressão “ucronismo” para expressar a mescla entre utopia e história, uma espécie de exercício mental de imaginar a história da forma como ela poderia ter sido e não como realmente transcorreu. Neste sentido, o aludido autor chama de ucronis-mo a resistência de parcela da doutrina quanto à modernização do Direito Penal e tentativa de retorno ao modelo centrado na proteção exclusiva de interesses individuais. Cf. SILVA--SÁNCHEZ , Jesús-Maria. Op. cit., p. 136.

24 GODINHO Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de “branqueamento” de capitais: intro-dução e tipicidade. Coimbra: Almedina, 2001, p. 31.

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da lavagem de capitais ganha ênfase a crescente associação negocial entre a

macrodelinquência e os colarinhos brancos, sendo estes personificados por

profissionais que dominam as estratégias de escamoteamento e movimen-

tação de ativos, com destaque para a robusta utilização de artifícios ciber-

néticos. Esta sintonia fina denota o perfeito enquadramento da criminalida-

de hodierna nas características primordiais da delinquência do colarinho

branco,25 sendo este também um dos fatores que sinalizam a inserção da

lavagem de dinheiro no contexto do Direito Penal Econômico,26 em quais-

quer de suas acepções.27

Em meio ao declínio da noção tradicional de soberania, o mundo passou

a assistir, a partir do final do século XX, a profundas mudanças nas mais va-

riadas searas da atuação e do conhecimento, sendo estas alavancadas pelo

avanço tecnológico sem precedentes. Na visão ostentada por BECK,28 aliada

à revolução dos meios de comunicação e informação, a crescente interação

do comércio internacional e conexão dos mercados financeiros são as mar-

cas fundamentais do irreversível processo de globalização.

A extrema volatilidade dos fluxos financeiros internacionais tornou di-

fícil a identificação da procedência dos recursos, bem como a aferição das

intenções dos que os manipulam à distância. Os atores do mercado se con-

verteram em uma nova classe de legisladores virtuais29 sem pátria que con-

25 MAIA, Rodolfo Tigre. Algumas reflexões sobre o crime organizado e a lavagem de dinhei-ro. In: Revista da AJURIS. Ed. Especial. Porto Alegre: AJURIS, julho/1999, p. 191/192.

26 Sobre o enquadramento da criminalidade organizada moderna nas características típicas da criminalidade do colarinho branco: SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da Criminologia à Po-lítica Criminal. Direito Penal Econômico e o novo Direito Penal. In: Inovações no direito penal econômico: contribuições criminológicas, político criminais e dogmáticas. Brasília: ESMPU, 2011, p. 106. No mesmo sentido: CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de pre-venção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 17.

27 O Direito Penal Econômico em sentido estrito representaria o conjunto de infrações penais que protegem a ordem econômica, isto é, a regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia. Já sob o prisma amplo, o Direito Penal Econômico seria constituído pelo conjunto de normas jurídico-penais que protegem as relações de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Neste sentido: BAJO FERNANDEZ, Miguel e BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro Estudos Ramón Areces, 2001, p. 11 e 15.

28 BECK, Ulrich. O que é globalização: equívocos do globalismo, respostas à globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, p. 30/31.

29 CASTILHO, Ela Wiecko V. De. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro

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trolam a capacidade financeira dos governos, o que influi não apenas no

desempenho da macroeconomia, mas também nas opções internas da po-

lítica educacional, ambiental, de seguridade social e de emprego, afetando,

decisivamente, os valores e a vida dos cidadãos.

Com efeito, a utilização de empresas, instituições financeiras e profis-

sionais especializados tornou-se ferramenta imprescindível ao sucesso das

grandes operações de lavagem de capitais, sendo esta a razão pela qual, já há

algum tempo, a tendência de terceirização das atividades de lavagem de capi-

tais chama a atenção das autoridades.30 Segundo as estimativas mais recentes,

são movimentados, diariamente, mais de dois trilhões de dólares no fluxo fi-

nanceiro mundial, o que embasa a advertência de LILLEY31 no sentido de que

a velha imagem do traficante de drogas carregando uma mala abarrotada de

dinheiro já não é comum ou necessária e, portanto, não deve ser esperada.

A lavagem de capitais veio a ser facilitada e potencializada como para-

doxo perverso32 decorrente do citado processo de interatividade econômica.

Destarte, na pujança de sua complexidade, a globalização legou ao mundo a

“empresarialização”33 da delinquência que, a título de ilustração, pode, por

nacional (Lei n. 7492, de 16 de junho de 1986). 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 90.

30 GOMES, Luiz Flávio. Lavagem de capitais e quebra do segredo profissional do advogado. Texto disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em 01.05.2013, p. 2.

31 LILLEY, Peter. Lavagem de dinheiro: negócios ilícitos transformados em atividades legais. Trad. Eduardo Lasserre. São Paulo: Futura, 2001, p. 15.

32 Sobre a internacionalização da criminalidade propiciada pela integração financeira e co-municativa dos países: FERRAJOLI, Luigi. Criminalità e Globalizzzione. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 42. São Paulo: RT, janeiro/2003, p. 79.

33 DE SANCTIS, Fausto. Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática. Campinas: Millen-nium, 2008, p. 5. No mesmo sentido é a preleção de ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, in verbis: “La crimi-nalidad organizada se ha convertido em una verdadera ‘empresa del crimen’. En los últimos tiempos del desarollo de la globalización y la supremacía de las relaciones de producción capitalistas, monopólicas y financieras, la criminalidad organizada ha extendido sus tentá-culos a las empresas legales y al mundo financiero formal, con un efecto ‘contaminación’. La criminalidad organizada ha pasado de realizar sus actividades tradicionales, a participar en actividades no tradicionales como es la creación de empresas, conglomerados financieros, inversiones en empresas y en la bolsa, para reciclar el dinero negro. De esta manera, ha logra-do corromper las actividades legales de bancos, empresas constructoras, fundaciones, etc., asumiendo un rol empresarial y aprovechando las estructuras económicas y empresariales de la economia formal para reciclar el dinero obtenido ilícitamente. También ha creado em-presas ficticias o contratado adminsitradores de paja para dominar empresas ya constituidas legalmente. El blanqueo de dinero se ha mostrado como el gran corruptor de toda la activi-

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meio da rede mundial de computadores, fazer com que divisas de valor es-

tratosférico circulem de um extremo ao outro do planeta em uma fração de

segundo. Tais fatores são as causas do desenvolvimento da lavagem de di-

nheiro como espécie criminosa,34 o que ganha relevo no peculiar momento

em que investimentos do mundo inteiro serão concentrados no Brasil dada

a iminência da realização de eventos internacionais importantes (Copa do

Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos, principalmente).

Por todo o exposto, na condição de importante expressão moderna da

criminalidade econômica,35 a lavagem de capitais afigura-se como tema de

relevância indubitável.

3. A realidade atual da lavagem de dinheiro

Estima-se que, anualmente, são lavados ao redor do mundo algo entre

oitocentos milhões e dois bilhões de euros, ou seja, o equivalente ao mon-

tante entre 2 e 5 % da produção econômica global, o que é aproximável, por

exemplo, ao produto interno bruto da Alemanha, maior economia da Europa

na atualidade.36 Ainda assim, é extremamente pequeno o número de obras

científicas, investigações e decisões judiciais sobre o crime de lavagem de

capitais, não sendo outra a razão pela qual, já há algum tempo, os autores

dade económica legal.” ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuición a la determinación del injusto penal de organización criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, P. 143.

34 PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012). In: Revista dos Tribunais v. 926. São Paulo: RT, dezembro/2012, p. 403/404.

35 Sobre a atualidade das importantes repercussões do tema, esta é a preleção de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE: “A criminalidade econômica, nas suas formas clássicas ou modernas, é um tema de marcada actualidade. Pela dimensão dos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptação e sobrevivência às mutações sociais e políticas, pela sua aptidão para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe são dirigidas, a criminalidade econômica é uma ameaça séria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Daí que a invenção de formas eficazes de luta seja hoje preocupação das instâncias governamentais, judiciais, policiais, etc., de todos os países.” Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRA-DE, Manoel da. Problemática geral das infrações contra a economia nacional. In Direito penal econômico e europeu: textos doutrinários. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 319/320.

36 CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 8.

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Revista da Ajufe 52

têm chamado a atenção para a necessidade de fomentar, no Brasil37 e no

exterior,38 o estabelecimento uma autêntica cultura de investigação e perse-

cução quanto ao crime de lavagem de capitais.

Na esteira deste raciocínio, a ENCCLA - Estratégia Nacional de Combate

à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, comissão multidisciplinar constituída

no âmbito do Ministério da Justiça, reconhece a carência brasileira quanto ao

aprofundamento teórico-acadêmico nesta seara e, por conseguinte, estabele-

ceu, como meta específica,39 a propositura da inclusão do estudo da lavagem

de dinheiro nos currículos universitários de graduação e pós-graduação.

Paradoxalmente, propaga-se, como dito, a percepção equivocada de que

somente os crimes de sangue ou contra o patrimônio individual teriam re-

levância e, por consequência, os tipos penais que tutelam interesses difusos

são tradicionalmente tidos como crimes menores, sem vítimas ou consequ-

ências dignas de consideração. Esta visão é absolutamente insustentável no

presente estágio de desenvolvimento da humanidade em que a agilização e

internacionalização dos efeitos de determinadas condutas delitivas demons-

tram que até mesmo localidades aparentemente beneficiadas com a capta-

ção de recursos ilícitos podem ser repentinamente atiradas em situação de

grave desequilíbrio financeiro.

Cite-se, como exemplo, o caso do Chipre, país europeu que recentemente

vivenciou o colapso de seu sistema econômico-financeiro pela repentina

fuga de capitais de titularidade e origem desconhecidas. Vale dizer que este

país tem presença constante na listagem de Estados não-cooperantes do

GAFI e chegou a possuir setor bancário com volume de recursos cerca de

oito vezes maior que seu produto interno bruto. O resultado da política de

37 MORO, Sérgio Fernando. Op. cit., p. 98/99.

38 Por exemplo, CANAS relata que a escassez de dados estatísticos fiáveis é um dos fatores que impedem a maior efetividade da legislação penal antilavagem em Portugal. CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 07.

39 A ENCCLA foi criada em 2003 e atualmente congrega representantes de cerca de sessen-ta órgãos e entidades. A redação da Meta n. 26, no ano de 2004, da ENCCLA foi a seguinte: “Promover a inclusão nos currículos acadêmicos de graduação e pós-graduação do estudo da criminalidade transnacional e, especialmente, do combate à lavagem de dinheiro e da co-operação jurídica internacional.” Texto integral disponível em: www.portal.mj.gov.br/enccla. Acesso em 01.01.2013.

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afrouxamento das medidas antilavagem foi a necessidade de contrair em-

préstimos recentes no valor bruto aproximado de 10 bilhões de euros. Ou-

tros países europeus tradicionalmente classificados como paraísos fiscais,

tais como Luxemburgo, Estônia e Malta, também estariam na iminência de

colapso de seus sistemas financeiros.40

Desta maneira, o enorme volume de recursos gerado pelo branqueamen-

to de capitais no âmbito do ordenamento financeiro global acaba, em úl-

tima ponta, vulnerando economias nacionais e afetando a estabilidade da

economia mundial ao sabor de decisões explicáveis apenas sob o ponto de

vista da racionalidade criminosa. No plano microeconômico, os investimen-

tos com dinheiro reciclado degeneram a concorrência licitamente feita por

empresas conduzidas com recursos lícitos. No prisma macroeconômico, as

nações e instituições financeiras utilizadas como instrumentos de lavagem

de capitais perdem, numa espécie de efeito bumerangue,41 a credibilidade e

a capacidade de gerir seu próprio destino.42

Outrossim, a crise econômica iniciada no ano de 2008 por conta da que-

bra do sistema hipotecário norte-americano fez com que, na busca pelas es-

cassas divisas, diversas instituições financeiras multinacionais passassem

a flexibilizar os controles sobre a origem dos capitais investidos.43 Aliás,

a atratividade exercida pelas divisas de origem infracional ou de duvidosa

legalidade tem conformado próximos e perigosos exemplos de ressurreição

40 Conforme matéria públicada no jornal Jornal Folha de São Paulo, em 26.03.2013, p. A-10. Em meio a uma ofensiva global contra a lavagem de capitais, vem sendo observado o recuo de tradicionais paraísos fiscais (Luxemburgo, Áustria e Ilhas Cayman) quanto ao absolutismo do sigilo bancário. Neste sentido: HIGGINS, Andrew. Paraísos fiscais europeus abandonam o antigo sigilo. Artigo publicado no Jornal The New York Times, em 03.06.2013, p. 2.

41 PINTO, Edson. Lavagem de capitais e paraísos fiscais. São Paulo: Atlas, 2007, p. 64.

42 CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p 18.

43 Este fato foi denunciado, em entrevista publicada no jornal El País, em 22.02.2009, por Antonio Maria Costa, ex-Diretor Executivo da Agência das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime. Segundo o mesmo, as instituições financeiras se viram atraídas pelos ganhos anuais das organizações criminosas transnacionais, que teriam auferido, somente com o narcotráfi-co em 2005, entre 300 e 350 milhões de dólares, segundo dados da ONU. Texto disponível no site: http://elpais.com/elpais. Acesso em 10.07.2013.

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do vetusto adágio pecunia non olet,44 ainda que a ingestão prolongada desta

fórmula tenha representado para alguns povos a exclusão da igualdade de

oportunidades, da livre concorrência, quando não a corrosão do próprio

Estado Democrático de Direito.45

Em relação ao Brasil, no mais recente relatório de avaliação do GAFI46 sobre

o sistema nacional antilavagem, foram apontados avanços pontuais (v.g.: a es-

pecialização de órgãos jurisdicionais em matéria de lavagem de capitais),47 mas

também muitas deficiências persistentes (v.g.: baixo número de investigações

e sentenças proferidas sobre o crime de lavagem de dinheiro;48 inexistência de

estatísticas confiáveis; não submissão efetiva de empresas e profissionais autô-

nomos às obrigações de colaboração com as autoridades, dentre outras).

É neste último aspecto que se destacam, respectivamente, o instituto da

compliance e assuntos relacionados, tais como a teoria da cegueira delibe-

rada e a teoria dos honorários maculados.

4. Compliance: o dever de colaboração antilavagem

Em meados da década de 1990, a expressão “compliance”49 surgiu no

44 Ditado, segundo o qual, o dinheiro não tem cheiro, ou seja, não importa de onde o capital venha, desde que ele venha. Neste sentido, em norma vigorante a partir de 01.07.2013, a Ar-gentina anistiou, em termos penais e tributários, o regresso ao país de dólares não declarados eventualmente existentes em aplicações no exterior. Fonte: site do jornal Valor Econômico, matéria publicada em 01.07.2013, às 19:49 hs. Texto disponível em: www.valor.com.br/inter-nacional. Acesso em 08.07.2013.

45 GOMES, Abel. A obrigação de comunicar operações suspeitas. Brasília: Revista da AJUFE - Associação dos Juízes Federais do Brasil, v. 21, 2004, p. 45.

46 O relatório mais recente é datado de 25.06.2010. Texto em idioma inglês disponível em: https://www.coaf.fazenda.gov.br/destaques/relatorio-de-avaliacao-mutua-do-brasil. Acesso em 01.01.2013.

47 Ainda assim, em 2001, uma pesquisa publicada pelo Centro de Estudos Judiciários do Con-selho da Justiça Federal apontou que 94 % dos magistrados federais jamais haviam participado efetivamente de qualquer curso ou atividade de especialização sobre lavagem de capitais e 63% dos membros do Ministério Público Federal afirmaram inexistir estrutura técnica especializada, o que inviabilizava a efetiva aplicação da legislação antilavagem. Cf. Uma análise crítica da lei dos crimes de lavagem de dinheiro. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2002, p. 56.

48 Em 2012, no âmbito de todas as Varas Federais do Brasil, havia em trâmite apenas 971 inquéritos policiais e 83 ações penais sobre lavagem de capitais, conforme matéria publicada no site do Conselho Nacional de Justiça: http://www.cnj.jus.br/noticias. Acesso em 21.06.2013.

49 O termo advém do verbo“to comply”, que no idioma inglês significa, em tradução literal,

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Revista da Ajufe 55

mercado financeiro como um mandamento ético de governança corporati-

va voltado à reorganização das rotinas operacionais de empresas. De modo

geral, após sucessivos abalos gerados por comportamentos negociais obs-

curos, buscava-se preservar a reputação de grandes instituições privadas,

disseminando-se o hábito de cumprimento dos deveres normativos perti-

nentes aos mais diversos ramos da economia. No entanto, o termo tem sido

empregado em sentido mais restrito para espelhar não só o acatamento, mas

o próprio conjunto de obrigações de colaboração antilavagem estabelecidas

normativamente pelo Estado ou órgãos reguladores setoriais e que devem

ser observadas por determinados profissionais e entidades, sob pena de res-

ponsabilização administrativa, cível e penal.50

O marco regulatório inicial sobre a matéria deu-se na Conferência de Haia,

realizada em 1930, que estabeleceu a fundação do Bank for International Set-

tlements – BIS, com sede na Suíça e que tem por finalidade proporcionar a

cooperação entre os bancos centrais. Posteriormente, em meados da década

de 1960, a Securities and Exchange Commission fomentou a contratação de

compliance officers visando à criação de procedimentos internos de controle,

treinamento de pessoas e o monitoramento e supervisão de atividades suspei-

tas. Ainda que considerados tais acontecimentos, o diploma legal precursor

de determinações neste sentido foi a Lei Sarbanes-Oxley, de 2002, nos EUA.51

O conceito de criminal compliance surgiu mais recentemente como re-

flexo da expansão do Direito Penal Econômico e da criminalidade empre-

sarial.52 A partir de então, tem sido comum nos EUA e em países da Europa

cumprir. Compliance é, portanto, o ato de cumprir normas e agir dentro de seus limites.

50 Em agosto de 2003, com atualização em julho de 2009, A ABBI – Associação Brasileira dos Bancos Internacionais e a FEBRABAN – Federação Brasileira de Bancos lançaram uma cartilha com regras básicas para exercício da compliance. Disponível no site: www.febraban.org.br. Acesso em 21.06.2013.

51 BERTONI, Felipe Faoro; CARVALHO, Diogo. Criminal compliance e lavagem de dinhei-ro. Texto disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/cienciascriminais/IV/08.pdf. Acesso em 01.01.2014.

52 Neste sentido: SAAVEDRA, Giovani Agostini. Compliance na Nova Lei de Lavagem de Di-nheiro. In: Revista Síntese n. 75. Porto Alegre: Síntese, agosto/2012, p. 23. É sabido que, no Brasil, apenas a Lei n.º 9.605/1998 prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica e, ainda assim, somente nos casos de delitos contra o meio ambiente. Entretanto, vale mencionar o disposto no art. 41 do Projeto de Lei do Senado 236/2012, que amplia a responsabilização

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Revista da Ajufe 56

ocidental, especialmente na Alemanha, o estabelecimento de departamentos

internos que teriam a missão específica de avaliar constantemente os pro-

cedimentos da empresa com vistas a garantir a conformidade de sua atua-

ção com as exigências normativas, em especial quanto ao cumprimento das

obrigações de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro.53

É sabido que, a partir de seu art. 9º, a Lei n. 9.613, de 03.03.1998, com a

redação dada pela Lei n. 12.683, de 09.07.2012, alargou consideravelmen-

te o rol de colaboradores obrigatórios e detalhou seus respectivos deve-

res.54 Embora não exista no ordenamento jurídico brasileiro55 um tipo penal

específico,56 não há razão para afastar, de plano, que o reconhecimento de

que o descumprimento doloso e injustificado dos deveres de colaboração

antilavagem configura omissão penalmente relevante nos termos do art. 13,

p. 2º, ´a´ do Código Penal,57 dentre outros fundamentos.58

de pessoas jurídicas para casos de atos praticados “contra a administração pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em que a infração seja co-metida por decisão de seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado, ou interesse ou benefício de sua entidade”.

53 SAAVEDRA, Giovani Agostini. Reflexões iniciais sobre o controle penal dos deveres de compliance. In: Boletim do IBCCRIM n. 226. São Paulo: RT, setembro/2011, p. 13/14.

54 As principais obrigações de colaboração antilavagem podem ser assim resumidas: iden-tificação do cliente; manutenção do registro das transações; atendimento às requisições das autoridades; comunicação das operações suspeitas e preservação do sigilo destas.

55 Ao revés, o art. 14.3 do Regulamento Modelo sobre Crimes de Lavagem de Dinheiro, da Comissão Interamericana para Controle do Abuso de Drogas (CICAD), da OEA prevê o seguin-te: “Comete delito penal a instituição financeira, seus empregados, funcionários, diretores, proprietários ou outros representantes autorizados, que, atuando, como tal, deliberadamente não cumpram as obrigações estabelecidas nos artigos 10 a 13 do presente Regulamento, ou que falseiem ou adulterem os registros ou informações aludidos nos mencionados artigos”.

56 DE SANCTIS propõe a criação de novo tipo penal incriminando o retardamento ou omis-são da efetuação da comunicação de operações suspeitas, bem como a prestação de infor-mação inexata ou revelação ao cliente da respectiva comunicação. Cf. DE SANCTIS, Fausto. Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática. Campinas: Millennium, 2008, p. 42.

57 Ao inaugurar a disciplina da Teoria do Crime, o Título II do Código Penal dispõe sobre a relação de causalidade nos seguintes termos: “Art. 13 - O resultado, de que depende a exis-tência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.(...)§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”,

58 Considerando-se a já mencionada essencialidade da lavagem de dinheiro para subsis-tência e perpetuação das mais graves expressões da macrocriminalidade, relembre-se que o

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Revista da Ajufe 57

Em outras palavras, havendo a previsão normativa específica do dever

de agir;59 sendo tais obrigações claras, plenamente conhecidas e de cumpri-

mento viável, torna-se evidente o dever de cuidado, proteção e vigilância a

caracterizar a posição de garante. Logo, caso a consciente inobservância de

algum dos deveres inerentes à compliance venha a viabilizar ou, de alguma

forma, facilitar a ocultação de patrimônio de origem ilícita, deve o agente ser

penalmente responsabilizado pelo crime de lavagem de dinheiro.60

Quanto ao elemento volitivo, discute-se a possibilidade de que a punição

do agente econômico-financeiro se dê com base em dolo eventual ou exclu-

sivamente com base em dolo direto,61 havendo ampla divergência doutriná-

ria e parca produção jurisprudencial a respeito no direito brasileiro.

A corrente restritiva defende que o enquadramento penal do agente

econômico-financeiro por lavagem de dinheiro exige prova cabal do dolo

direto,62 ou seja, a demonstração da ciência plena do mesmo acerca da ori-

gem ilícita dos recursos manejados, embora não se exija o conhecimento

exato sobre a espécie de infração penal (crime ou contravenção) que pro-

porcionou o ganho patrimonial, nem detalhes de seu cometimento.

Costuma-se alegar que os funcionários de bancos ou profissionais do

sistema financeiro em geral não teriam o dever de averiguar a procedência

art. 5º, XLII da CR/88 determina expressamente a punição daqueles que se omitirem, mesmo podendo evitar a prática do terrorismo, do narcotráfico e outros crimes hediondos.

59 Refiro-me à obrigação positiva de colaborar com as autoridades nos termos dispostos pelo art. 9º e seguintes da Lei n. 9.613/98, com a redação dada pela Lei n. 12.683/2012.

60 O enquadramento do agente econômico-financeiro a título de co-autor ou partícipe de-penderia logicamente das circunstâncias do caso concreto que denotassem a relevância ou essencialidade da contribuição deste para a empreitada delitiva, nos termos do art. 29 do CP.

61 Ao contrário do que ocorre na Espanha (art. 301.3 do CP/1995), o ordenamento bra-sileiro não estabelece a punição da lavagem de dinheiro a título culposo, sendo aplicável, portanto, o disposto no art. 18, p. único do CP.

62 Neste sentido: CALLEGARI, André Luís. Participação criminal de agentes financeiros e garantias de imputação no delito de lavagem de dinheiro. In: Garantismo penal integral: ques-tões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 354; PITOMBO, Antonio Sérgio Altieri de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: RT, 2003, p. 136; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A particular imputação penal do agente financeiro nos crimes de lavagem de dinheiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 54. Outubro/2011, p. 237 e BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas. São Paulo: RT, 2008, p. 58.

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Revista da Ajufe 58

ilícita dos fundos ou, mesmo que saibam ou desconfiem da origem ilícita, se

não participam do grupo, associação ou escritório destinado à lavagem, não

ocupariam a posição de garantidores da ordem legal e, portanto, incorre-

riam no crime de lavagem pela simples efetuação de operações econômicas

normais e cotidianas.63 Diz-se também que o livre exercício profissional e a

normal circulação de riquezas seriam dificultados com a ameaça de incidên-

cia da norma penal.

A seu turno, a corrente ampliativa entende ser cabível a punibilidade

por dolo eventual, sendo desnecessária uma previsão legal específica nes-

te sentido. Logo, para fins de responsabilização por lavagem de dinheiro,

pouco importaria se o agente quis efetivamente ocultar patrimônio ilícito

(dolo direto) ou assumiu o risco de contribuir para esse resultado ao inob-

servar espontaneamente algum dos deveres expressos de colaboração (dolo

eventual). Parece-me que a razão está com esta última corrente, haja vista a

suficiência do disposto art. 18, I, in fine c/c art. 12, ambos do Código Penal.64

Acrescente-se também que a interpretação explicitada pelo próprio legisla-

dor reforça esta conclusão.65

Sobre o tema, revela-se pertinente a teoria da cegueira deliberada, que

será exposta a seguir.

5. A teoria da cegueira deliberada

A teoria da cegueira deliberada (willful blindness), também conhecida

como doutrina das instruções do avestruz (ostrich instructions) e doutri-

na da evitação da consciência (conscious avoidance doctrine), consiste em

construção jurisprudencial assemelhada à formulação do dolo eventual e

63 Neste sentido: PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012). In: Revista dos Tribunais v. 926. São Paulo: RT, dezembro/2012, p. 427.

64 Neste sentido: MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 69.

65 A Exposição de Motivos da Lei n. 9.613/98, no item 40, dispõe o seguinte: “40. Equipara o projeto, ainda, ao crime de lavagem de dinheiro a importação ou exportação de bens com valores inexatos (art. 1o, § 1o, III). Nesta hipótese, como nas anteriores, exige o projeto que a conduta descrita tenha como objetivo a ocultação ou a dissimulação da utilização de bens, direitos ou valores oriundos dos referidos crimes antecedentes. Exige o projeto, nesses casos, o dolo direto, admitindo o dolo eventual somente para a hipótese do caput do artigo.”

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por meio da qual se afigura possível o enquadramento, por lavagem de di-

nheiro, daquele que, mesmo ciente da elevada probabilidade da procedência

ilícita dos recursos, assume o risco de produzir o resultado ao agir, ainda

assim, de modo indiferente a este conhecimento.66

Desta forma, embora seja possível checar a natureza dos bens, o indiví-

duo que detém o dever de impedir o resultado (ex.: compliance officer ou

agente econômico-financeiro) opta pela ignorância confortável, comportan-

do-se como o avestruz que enterra a cabeça para não ver a luz do sol. Em

bom português, o garante ou quem se encontre nesta posição faz vista gros-

sa e ouvidos de mercador, viabilizando, dessarte, a ocultação de patrimônio

ilícito pelo que responderá por lavagem de dinheiro, ainda que com base em

dolo eventual.

Ainda que considerada a origem inglesa e norte-americana, a tese tem

proliferado mesmo em países que adotam o sistema civil law e consagram

textualmente a possibilidade de punição por dolo eventual, como é o caso

da Espanha, na qual, a partir do ano 2000, foram prolatadas dezenas de

decisões pelo Tribunal Supremo acolhendo a teoria da cegueira deliberada.

Apesar de se tratar de assunto ainda pouco discutido no Brasil, não se vis-

lumbra obstáculo que impeça o acolhimento da teoria da cegueira delibera-

da, sendo este, ao revés, um imperativo de cunho moral com base legal (art.

18, I, in fine do CP).

Quanto à aplicabilidade dos deveres inerentes à compliance aos advo-

gados, em especial no tocante à obrigação de comunicação de operações

suspeitas,67 o direito estrangeiro costuma distinguir a advocacia entre os

66 A origem histórica se dá no direito inglês, mais precisamente em 1861, no caso Regina vs. Sleep. Sleep era proprietário de uma ferragem e teria tentado remeter ao exterior parafusos de cobre desviados do patrimônio público. Nos EUA, o precedente teria se dado, em 1899, por ocasião do julgamento do caso United States vs. Spurr pela Suprema Corte norte-americana. Spurr era presidente do Commercial Bank of Nashville e teria certificado a existência de fun-dos em cheques emitidos por um cliente que não possuía recursos suficientes para cobri-los. No entanto, o precedente mais lembrado é o United States vs. Jewell, no qual este último teria alegado ignorar estar transportando entorpecentes e dinheiro, mesmo possuindo em seu car-ro particular um compartimento de fundo falso. Cf. BECK, Francis. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in) aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. In: Revista de Estudos Criminais n. 41. São Paulo: ITEC, abril/2011, p. 49/50.

67 O caráter inusitado e incomum de determinadas operações financeiras e sua despropor-ção para com o perfil sócio-econômico do interessado em realizá-las são alguns dos motivos

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Revista da Ajufe 60

ramos consultivo e contencioso.

No primeiro caso, uma vez envolvida tão-somente a orientação sobre a

condução negocial e patrimonial, é maciçamente reconhecido o dever do

advogado de prestar informações às autoridades estatais sobre eventuais

operações suspeitas de clientes.68 Neste diapasão, a Diretiva n. 91/308,

de 10.06.1991 (itens 16 e 17), com a redação dada pela Diretiva n. 97, de

04.12.2001, ambas do Conselho da Comunidade Europeia, estabelece a obri-

gação de notificação de operações suspeitas para profissionais forenses,

sobretudo notários e advogados, estes últimos expressamente alcançados

quando da participação em atividades extrajudiciais (transações financei-

ras e empresariais) ou consultas jurídicas, excluído o dever de colaboração

quando da atuação em processos judiciais.

Neste caso, em havendo ocultação de patrimônio de origem ilícita, a

consciente e espontânea inobservância de algum dos deveres de colabora-

ção antilavagem enseja, em tese, a responsabilização do advogado por crime

de lavagem de dinheiro, o que pode ocorrer, dependendo das circunstâncias

do caso concreto, com base em dolo direto ou dolo eventual, este caracteri-

zado por aplicação da já comentada teoria da cegueira deliberada.

No Reino Unido (Satutory Instrument – The money Laudering Regula-

tions/2003) e nos EUA (Sarbanes-Oxley Act/2002) já vigoram normas es-

pecíficas que determinam a responsabilidade do advogado pelos controles

para a prevenção à lavagem de dinheiro no exercício de seu ofício. No Brasil,

a nova redação da Lei n. 9.613/98 é bastante clara ao estabelecer uma série

de hipóteses (em especial, o art. 9º, p. único, XIV e XV) nas quais o advogado-

-consultor está enquadrado, assim como qualquer outro profissional. Isto

se dá sem qualquer violação a prerrogativas profissionais ou direitos fun-

que orientam a elaboração da listagem de operações suspeitas que devem ser comunicadas aos órgãos competentes. De modo a atualizar esta lista, o Banco Central edita regularmente cartas-circulares, como, por exemplo, a de n. 3.542, de 12.03.2012.

68 Segundo CANAS, a descoberta deve ocorrer no curso do exercício da atividade profis-sional. Se, por exemplo, surgir, num almoço social, a informação de que um cliente a quem assiste está envolvido em operações de branquamento, não está o advogado obrigado ao comunicar, não se exigindo também que o advogado abandone a colaboração com o cliente, apenas que realize a comunicação. Neste sentido: CANAS, Vitalino. Op. cit., p. 61.

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damentais, conclusão reforçada pelo próprio Estatuto da Advocacia.69 Aliás,

defender o contrário importaria em chancelamento do direito de orientação

jurídica para práticas criminosas e socialmente perniciosas.

Com a devida vênia, não há razão na afirmação de que, mesmo na função

de consultor, o advogado não deveria ser incluído na política de prevenção

à lavagem, sob risco de comprometimento e flexibilização de direitos fun-

damentais. Vale lembrar que os direitos fundamentais são flexíveis por na-

tureza face à necessidade de convivência aplicativa com a generalidade dos

interesses igualmente merecedores de proteção constitucional. Ademais, o

livre exercício de qualquer profissão, inclusive a de advogado, é sujeita à

regulamentação legal (art. 5º, XII, CR/88), o que, no caso específico, já ocorre

(vide o disposto no art. 34, XVII da Lei n. 8.906/94).

Já na hipótese de advocacia contenciosa, uma vez envolvido o exercício do

direito de defesa em processos e investigações sancionatórias lato sensu,70

costuma-se afirmar o impedimento da exigência de colaboração do advoga-

do sob o argumento de violação a direitos fundamentais e a prerrogativas

profissionais (art. 34, VII da Lei n. 8.906/94),71 além de possível incursão no

crime previsto no art. 154 do CP (violação do segredo profissional).72 Nes-

te caso, a imunidade profissional teria também os seguintes fundamentos:

liberdade e essencialidade da atividade advocatícia (art. 133 da CR/88); di-

reito de escolha do defensor (art. 8º, 2, ‘d’ do Pacto de São José da Costa Rica

– Decreto n. 678/92); impossibilidade de imputação objetiva do resultado (a

69 O art. 34, XVII e XVIII da Lei n. 8.906/94 veda ao advogado a prestação de concurso a clien-tes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la, bem como a solicitação ou recebimento de qualquer importância para aplicação ilícita ou desonesta.

70 A meu sentir, em respeito ao princípio constitucional da ampla defesa, a imunidade advo-catícia contenciosa quanto aos deveres de colaboração antilavagem abrangeria a totalidade das informações recebidas por atuação profissional não só em ações e investigações penais, mas em qualquer ação judicial, procedimento administrativo ou pré-processual que possa acarretar sancionamento de toda espécie para pessoas físicas ou jurídicas.

71 Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Lavagem de capitais e quebra do segredo profissional do advogado. Texto disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em 01.05.2013.

72 Em comentário aplicável ao histórico brasileiro, CANAS ressalta o especial valor do de-ver-direito de sigilo dos profissionais do foro, particularmente dos advogados, em países onde permanece ainda viva a memória de um regime autoritário onde o segredo profissional era uma das poucas barreitas à lesão de direitos fundamentais dos cidadãos. Cf. CANAS, Vitalino. Op. cit., p. 49.

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Revista da Ajufe 62

atividade advocatícia nestes casos configuraria um risco permitido); vulne-

ração da relação de confiança defensor-investigado e aplicação da teoria da

adequação social (teoria da ação neutra).73

6. A teoria dos honorários maculados

É possível a responsabilização penal do advogado que recebe honorários

pagos com recursos sabidamente oriundos da prática de infrações penais?

A resposta a esta indagação demanda inicialmente uma singela distinção. De

plano, não há dúvida de que a aceitação de honorários “fingidos”74 provo-

cam a incursão do advogado na prática do crime de lavagem de dinheiro.75 Já

quanto ao recebimento de honorários reais, ou seja, sem qualquer falsidade

entre o valor contratado e efetivamente recebido, há fundada controvérsia

quanto à repercussão penal deste comportamento.

De um lado, há países que reconhecem a plena viabilidade da punição

nestes casos, como ocorre em terras germânicas desde o início da década

passada,76 quando se iniciou a tendência de que o recebimento de honorá-

rios conscientemente oriundos de atividades ilícitas acarrete a condenação

73 As chamadas ações neutras, socialmente adequadas ou standards seriam, em tese, atípi-cas por serem normalmente aceitas e praticadas no cotidiano da coletividade.

74 Por exemplo, no caso do advogado que aceite prestar declaração ou assinar contrato relatando falsa informação sobre o valor dos honorários efetivamente recebidos de modo a legitimar o patrimônio ilicitamente obtido por seu cliente.

75 Cf. SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Direito penal econômico: advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 219.

76 Neste sentido: AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 58. Em 04.07.2001, o Tribunal Constitucional da Alemanha manteve a condenação de um casal de advogados por lavagem de capitais (art. 261, II, 1 do CP), haja vista terem recebido honorários antecipados mesmo cientes da origem ilícita. No mesmo sentido, em 30.03.2004, o mesmo órgão jurisdicional manteve a condenação destes advogados por lavagem de capitais configurada esta a partir do recebimento de honorários oriundos de fraudes no mercado de investimentos financeiros. Em 14.01.2005, o mesmo Tribunal reconheceu a validade da busca e apreensão em escritório e residência de advogados diante de indícios da participação destes em atividades de lava-gem de capitais. Em todos estes casos, o Tribunal considerou, para fins de configuração da aceitação dolosa de honorários maculados, a desproporcionalidade do valor dos honorários, bem como a forma de pagamento (em espécie). Cf. SCHORSCER, Vivian C. A responsabilidade penal do advogado na lavagem de dinheiro: primeiras observações. In: Revista dos Tribunais v. 863. São Paulo: RT, setembro/2007, p. 441.

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Revista da Ajufe 63

do advogado pela prática de lavagem de dinheiro.

Nos EUA, visando à preservação do direito de assistência jurídico-cri-

minal previsto na 6ª Emenda Constitucional, diversos órgãos e entidades

advocatícias têm defendido a prerrogativa de exoneração da responsabili-

dade penal ao menos no tocante à atividade contenciosa, intenção que obte-

ve êxito na regulamentação do diploma legal norte-americano antilavagem

(Money Laudering Prosecution Improvements Acts, de 1988).77

No Brasil, não há tipo penal específico neste sentido e, por esta razão,

em obediência ao princípio da legalidade, inexistindo prova da intenção

de ocultação de patrimônio ilícito por meio do recebimento de honorários,

não é viável o sancionamento penal do advogado na hipótese, mesmo ante

a ciência deste sobre a origem ilícita dos recursos utilizados no pagamento.

Porém, o conhecimento (real ou possível) sobre a maculação dos honorários

não é desprovido de efeitos.

Primeiramente, há que se dizer que a caracterização da ciência sobre a

origem maculada dos honorários pode perfeitamente ser extraída das cir-

cunstâncias que envolvem a (des)propocionalidade entre o valor pago e o

perfil sócio-econômico do cliente, bem como por uso de meios incomuns

de pagamento (ex.: depósitos em paraísos fiscais, vultosos valores em espé-

cie, etc.), nos mesmos moldes definidos pela teoria da cegueira deliberada,

acolhida pela jurisprudência alemã e norte-americana. A exigência de um

mínimo de cautela neste aspecto não faz necessariamente do advogado um

investigador da vida pregressa de seu cliente e se mostra razoável, desde que

real ou robustamente possível o acesso a este conhecimento.

Dessarte, caso comprovada a ciência inequívoca ou mesmo a alta proba-

bilidade de que os valores recebidos provinham de ilícitos penais, torna-se

legítima a persecução, pelo Estado, dos bens e recursos que serviram para

o pagamento da verba honorária, sujeitando-se o advogado aos efeitos das

medidas patrimoniais assecuratórias legalmente previstas (busca e apreen-

são, sequestro, arresto e hipoteca legal), bem como à futura perda do mon-

tante auferido.78

77 AMBOS, Kai. Op. Cit., p. 85.

78 Cf. SCHORSCER, Vivian C. Op. cit., p. 445.

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Revista da Ajufe 64

A outra consequência refere-se à afirmação de que, também seguindo

a linha já definida pela jurisprudência alemã e norte-americana, o direito

de escolha do defensor não é absoluto, assim como não o é nenhum outro

direito fundamental. Logo, a possibilidade de eleição do advogado pelo in-

vestigado está condicionada à possibilidade deste de pagar os respectivos

honorários com recursos de origem comprovadamente lícita, salvo aceita-

ção de atuação gratuita pelo causídico escolhido. Caso contrário, deve ser

o investigado equiparado ao hipossuficiente, sendo-lhe nomeado defensor

público ou advogado dativo para atuar em seu favor.79

Interpretação distinta resultaria na institucionalização do direito de pa-

gar e receber honorários maculados ou, com exclusão do eufemismo, cus-

teados com dinheiro sujo. Ademais, a independendência e a liberdade do

exercício advocatício também deixariam de existir se admitido o pagamento

de honorários maculados, haja vista que o advogado se tornaria dependente

do crime organizado. Aliás, a proibição de receber recursos de origem ilícita

recai sobre todos e não apenas sobre o advogado.80

Na jurisprudência norte-americana, registram-se há décadas louváveis

reafirmações do descabimento de exceção quanto ao adágio segundo o qual

o crime não deve compensar, nem mesmo para pagar o serviço de advo-

79 SCHORSCER, Vivian C. Op. cit., p. 442/443.

80 Já se ouviu, com indisfarçável excesso irônico, a indagação sobre o eventual enquadra-mento de um vendedor ambulante que recebe pagamento por um picolé vendido a, por exem-plo, um conhecido narcotraficante ou explorador de jogo ilegal. Logicamente, o princípio da insignificância afastaria o enquadramento citado, o que não se aplica ao advogado e profis-sionais do mercado financeiro, cujo custo dos serviços e possibilidade de informação sobre a origem dos bens são evidentemente diferenciados.

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Revista da Ajufe 65

gados.81 Sendo assim, de lege ferenda,82 não se vislumbra empecilho83 ao

estabelecimento da exigência legal de declaração do valor recebido a título

de honorários (bem como comprovação da origem destes recursos) ou afir-

mação de atuação gratuita, o que poderia ser feito em autos apartados sob

segredo de justiça, mas sempre sob pena de responsabilização por eventual

falsidade das informações.84

7. Conclusão

“O criminoso do colarinho branco goza de um cinturão de impunidade

(...) No Brasil, criam-se, replicam-se e aplicam-se teses convenientemente

desenvolvidas para a faixa de delitos onde prepondera o alto empresariado,

banqueiros e os homens de negócios.”85

81 Do precedente da Suprema Corte norte-americana (US v. Peter Monsanto, julgado em 22.06.1989), extrai-se o seguinte trecho: “We conclude that there is no exemption from § 853’s forfeiture or pretrial restraining order provisions for assets which a defendant wishes to use to retain an attorney. In enacting § 853, Congress decided to give force to the old adage that ´crime does not pay.´ We find no evidence that Congress intended to modify that nostrum to read, ´crime does not pay, except for attorney’s fees´. If, as respondent and supporting amici so vigorously assert, we are mistaken as to Congress’ intent, that body can amend this statute to otherwise provide. But the statute, as presently written, cannot be read any other way.” Grifou-se.

82 A proposta é feita a despeito da ciência de tentativas anteriores. A respeito do tema, re-gistrem-se os seguintes projetos de lei: (1) o PL n. 6.413/2000, de autoria do falecido Senador Antônio Carlos Magalhães, pretendia a alterar a redação do art. 261-A do CPP para estabele-cer a imposição de defensor público ao acusado por lavagem; (2) o PL n. 577/2003 pretendia estabelecer a obrigação de comprovação da origem ilícita dos valores pagos a título de ho-norários; (3) o PL n. 5562/2005 pretendia obrigar o acusado da prática de crime hediondo a comprovar o valor e a origem dos honorários despendidos e (4)) o PL n. 712/2003 pretendia alterar o Estatuto da OAB para incluir como infração o recebimento de importância prove-niente de atividades criminosas. Todos os referidos projetos de lei foram arquivados pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 22.05.2007.

83 Em sentido contrário: SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Direito penal econômico: advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 194.

84 Ao fim da palestra proferida por ocasião do Seminário Internacional de Direito Penal, re-alizado no dia 03.10.2013, Isidoro Blanco Cordero, Professor da Universidade de Alicante/Es-panha, afirmou que as informações prestadas sobre os honorários podem ser, inclusive, con-frontadas com a declaração anual de imposto de renda, o que ocorreria comumente na Europa.

85 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da Criminologia à Política Criminal. Direito Penal Econô-mico e o novo Direito Penal. In: Inovações no direito penal econômico: contribuições crimi-nológicas, político criminais e dogmáticas. Brasília: ESMPU, 2011, p. 139.

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Revista da Ajufe 66

São incontáveis os casos diariamente noticiados nos quais delinquentes

contumazes ou de alto poder político-econômico, mesmo desprovidos mui-

tas das vezes de profissão ou fonte de renda lícita, investem o patrimônio

obtido ilegalmente em grandes instituições financeiras e, quando investi-

gados, contratam os mais renomados advogados e escritórios de advocacia

sob valores de montante e origem convenientemente acobertados por manto

argumentativo de suposto viés constitucional. O mesmo se diga em relação

a alguns agentes públicos que, quando investigados pelos mais rumorosos

escândalos de corrupção e desvio de recursos do erário, conseguem, sabe-

-se lá como, idêntica proeza financeira, mesmo tendo limitada remuneração

de conhecimento coletivo86 e insípido patrimônio declarado ao fisco.

Ainda não se conseguiu explicar no que exatamente estaria o direito de

defesa cerceado com a mera explicitação da origem do custeio do serviço ad-

vocatício ou onde a livre circulação de riqueza (lícita) seria impedida pela

simples imposição de cautelas e deveres aos agentes econômico-financeiros.

A verdade é que, em que pesem as indiscutíveis repercussões contempo-

râneas, as teorias da cegueira deliberada e dos honorários maculados têm

sido praticamente ignoradas no Brasil, ao contrário do que ocorre em países

desenvolvidos. Cabe deixar claro que não se defende a acrítica importação

da disciplina e interpretação destes tópicos para o cenário jurídico nacional,

mas é indubitável que o premente enfrentamento do tema demanda desape-

go em relação a argumentos impertinentes, já exauridos e indignos de credi-

bilidade. O escorreito exercício de atividades profissionais tão significativas

para a sociedade, como a advocacia e a atividade financeira em geral, deve

estar acima do corporativismo inócuo, quando não nocivo, bem como de in-

teresses escusos impublicáveis, para que o Brasil possa enfim alcançar uma

regulamentação justa e adequada para este assunto de singular importância.

8. Referências

AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo

Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007.

86 A Lei n. 12.527/2011 possibilita o amplo acesso à informação sobre a renda mensal de agentes públicos de quaisquer dos Poderes da República.

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O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança

E a proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito

Page 74: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 74

Souza Prudente Doutor e mestre em Direito Público-Ambiental pela Universidade Federal de

Pernambuco. Professor decano e fundador do curso de Direto da Universidade Católica de Brasília. Desembargador federal do TRF da 1ª Região.

Sumário: 1 – Introdução: O Perfil histórico do Poder Judiciário Republi-

cano no Estado Democrático de Direito. 2 – A Reforma Processual Civil no

contexto das garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito. 3

– O Terror jurídico-ditatorial da Suspensão de Segurança no contexto abu-

sivo de Medida Provisória invasora da competência legislativa do Congresso

Nacional. 4 – A contratutela procedimental da suspensão de segurança am-

biental e a proibição do retrocesso no sistema de proteção ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado. 5 – O silêncio agressor do Congresso Nacio-

nal ante os abusos de Medida Provisória genitora do juízo de exceção da

Suspensão de Segurança em atentado às garantias fundamentais do Estado

Democrático de Direito.

Resumo: O presente artigo jurídico versa sobre o terror jurídico-dita-

torial da suspensão de segurança e a proibição do retrocesso no Estado

Democrático de Direito.

Visualiza-se, de logo, o perfil histórico do Poder Judiciário Republicano no

Estado Democrático de Direito, destacando-se, no contexto da Reforma Pro-

cessual em tramitação no Congresso Nacional, a figura do juiz republicano,

corajoso e independente, como indispensável à concessão das tutelas de ur-

gência, estruturadas nas vertentes de um processo civil ágil, seguro, moderno

e assim legitimado pela soberania popular a servir de instrumento apto ao

exercício de uma jurisdição oportuna e efetiva na defesa dos direitos funda-

mentais garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil.

Aponta-se, com prioridade, o terror jurídico-ditatorial da suspensão de

segurança no contexto abusivo de Medida Provisória invasora da compe-

tência legislativa do Congresso Nacional, com manifesto propósito de es-

trangular a ordem jurídico-processual brasileira, restabelecendo os juízos

de exceção nas cúpulas do Poder Judiciário, próprios dos regimes ditato-

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Revista da Ajufe 75

riais, visando anular o juízo natural das instâncias judiciais singulares e

colegiadas de nossos Tribunais, em flagrante atentado à segurança jurídica

do Estado Democrático de Direito.

Destaca-se, por último, a contratutela procedimental da suspensão de se-

gurança ambiental nos Tribunais Federais do Brasil, agredindo o princípio

da proibição do retrocesso no sistema de proteção ao meio ambiente ecolo-

gicamente equilibrado, ante o silêncio agressor do Congresso Nacional, em

face dos abusos da Medida Provisória genitora do odioso juízo de exceção da

suspensão de segurança, em atentado às garantias fundamentais da República

Federativa do Brasil na expressão literal de nossa Carta Política Federal.

Palavras-chave: Poder Judiciário Republicano – Estado Democrático de

Direito – Reforma Processual Civil – Garantias Constitucionais – Medida

Provisória – Suspensão de segurança – Juízo de Exceção – Proibição do

Retrocesso Ecológico – Silêncio Agressor do Congresso Nacional.

Abstract: This article deals with legal-dictatorial terror of the suspension

of security and of the prohibition of kicker in the Democratic Rule of Law.

It is visualized, immediately, the historical profile of the Judiciary Repu-

blican in the Democratic Rule of Law, especially in the context of Procedure

Reform in the National Congress, the figure of the judge republican, brave

and independent, as indispensable to the granting of guardianships of ur-

gency, structured in a modern civil proceeding, agile and safe, legitimized

by popular sovereignty to serve as an instrument able to exercise jurisdic-

tion in a timely and effective defense of the fundamental rights, guaranteed

by the Constitution of the Federative Republic of Brazil.

It is appointed, as a priority, the legal-dictatorial terror of the suspension

of security in the abusive context of Provisional Measures invading the

legislative competence of the National Congress, with the manifest purpo-

se of strangling the Brazilian legal-procedural system, reestablishing the

exception courts in the summits of the Judiciary, peculiar of dictatorial re-

gimes, seeking to annul the natural judgment of the single judges and of

the our collegiate courts, in flagrant violation of the legal security of the

Democratic Rule of Law.

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Revista da Ajufe 76

It should be noted, finally, the procedural guardianship of the suspen-

sion of environmental security in the Federal Courts of Brazil, attacking the

principle of prohibition of kicker at the protection system to an ecologically

balanced environment faced with the aggressive silence of National Con-

gress about the abuses of Provisional Measure, which is the progenitor of

the odious exception courts of the suspension of security, in offense of the

fundamental guarantees of the Federative Republic of Brazil in the literal

expression of our Federal Charter Policy.

Keywords: Republican Judiciary – Democratic Rule of Law - Civil Pro-

cedure Reform - Constitutional Guarantees - Provisional Measures- Sus-

pension security – Exception Court - Prohibition of Ecological Rewind -

Aggressive Silence of National Congress.

1. Introdução: O Perfil histórico do Poder Judiciário Republicano no

Estado Democrático de Direito

No ideário de instalação de um Estado Democrático de Direito e de Jus-

tiça, as Constituições modernas, que consagram a divisão tripartite de po-

deres, apontam os juízes como legítimos representantes da soberania popu-

lar, resgatando-os do perfil fossilizante de seres inanimados, que, apenas,

anunciam as palavras da lei, sem poder algum para lhe controlar o arbítrio

e o rigor. Nesse sentido, advertia João Barbalho, em comentários à primeira

Constituição Republicana do Brasil, nas letras seguintes: “A magistratura

que agora se instala no país, graças ao regime republicano, não é um ins-

trumento cego ou mero intérprete na execução dos atos do Poder Legisla-

tivo. Antes de aplicar a lei, cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou

recusar-lhe sanção se ela lhe parecer conforme a lei orgânica. (...) Aí está

posta a profunda diversidade de índole que existe entre o Poder Judiciário,

tal como se achava instituído no regime decaído, e aquele que agora se inau-

gura, calcado sobre os moldes democráticos do sistema federal. De poder

subordinado, qual era, transforma-se em poder soberano, apto, na elevada

esfera de sua autoridade, para interpor a benéfica influência de seu critério

Page 77: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 77

decisivo, a fim de manter o equilíbrio, a regularidade e a própria indepen-

dência dos outros poderes, assegurando ao mesmo tempo o livre exercício

dos direitos do cidadão”.1

Nesse visor, merece destaque, aqui, a sábia reflexão do Min. Sálvio de Fi-

gueiredo Teixeira, ainda na qualidade de Presidente da Escola Nacional da

Magistratura, em prol de “um novo processo, uma nova Justiça”, nestes termos:

“O Estado Democrático de Direito não se contenta mais com uma ação pas-

siva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder equidistante, mas como

efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum. Os

direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássi-

cos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura

repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, ven-

do-as sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução

das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, valori-

zação do trabalho e da livre iniciativa, defesa do meio ambiente e construção

de uma sociedade mais livre, justa e solidária. Foi-se o tempo do Judiciário

dependente, encastelado e inerte. O Povo, espoliado e desencantado, está nele

a confiar e reclama sua efetiva atuação através dessa garantia democrática

que é o processo, instrumento da jurisdição. É de convir-se, todavia, que so-

mente procedimentos rápidos e eficazes têm o condão de realizar o verdadeiro

escopo do processo. Daí a imprescindibilidade de um processo ágil, seguro e

moderno, sem as amarras fetichistas do passado e do presente, apto a servir

de instrumento à realização da Justiça, à defesa da cidadania, a viabilizar a

convivência humana e a própria arte de viver”.2

2. A Reforma Processual Civil no contexto das garantias constitucio-

nais do Estado Democrático de Direito

Com essa inteligência, o projeto de reforma processual civil, em trâmi-

1 Cavalcanti, João Barbalho de Uchoa. Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro, Typographia da Companhia Litho, 1902. p. 222.

2 Teixeira, Sálvio de Figueiredo. Estatuto da Magistratura e reforma do processo civil. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 26-27

Page 78: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 78

te no Congresso Nacional, visa implantar as regras de um novo Código de

Processo Civil, no ordenamento jurídico nacional, resgatando o perfil re-

publicano do juiz brasileiro, como garantia fundamental do processo justo

e do acesso pleno à Justiça, na determinação de que o processo civil será

ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios

fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do

Brasil, não se excluindo da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a di-

reito, ressalvados os litígios voluntariamente submetidos à solução arbitral,

na forma da lei.

Em busca da realização do objetivo fundamental da República Federativa

do Brasil, visando “construir uma sociedade solidária, justa e livre” (CF, art.

3º, I), a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição e do pleno

acesso à Justiça (CF, art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII), se bem instrumentali-

zada, na procedimentabilidade do processo justo e na força determinante de

sua autoaplicabilidade protetora e de eficácia imediata (CF, art. 5º, § 1º), com

a técnica processual moderna da tutela mandamental-inibitória negativa ou

positiva (antecipatória ou final), reprimirá os abusos, em tempo de evitar, em

muitos casos, que a prática do ilícito aconteça (CPC, arts. 273, § 7º, e 461,

§§ 3º, 4º e 5º), livrando, assim, o cidadão e a coletividade de correr atrás

do prejuízo, em busca de uma indenização quase sempre injusta, ainda que

tardia e materialmente possível.

A dimensão da tutela jurisdicional assim prevista no ordenamento jurídi-

co-processual brasileiro, com natureza mandamental e específica, ilumina-

-se nos ensinamentos de Cândido Dinamarco, quando afirma que “a reforma

pretendeu armar o juiz de poderes muitos intensos, destinados a combater a

resistência do obrigado, em todos os casos”, pois “inexiste tutela jurisdicio-

nal enquanto o comando na sentença permanecer só na sentença e não se

fizer sentir de modo eficaz na realidade prática da vida dos litigantes. Agora,

tudo depende da tomada de consciência dos juízes e da energia com que ve-

nham a exercer esses poderes, a bem da efetividade da tutela jurisdicional e

da própria respeitabilidade de sua função e dos seus comandos”.3

3 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil, Vol. II, São Paulo, Malheiros, 1995, pp. 143/144

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Revista da Ajufe 79

Destacam-se, nesse contexto de afirmação das garantias fundamentais

do processo justo, dentre outras, as normas supressoras do duplo juízo de

admissibilidade recursal, as que autorizam a tutela cautelar de urgência, na

determinação judicial do efeito suspensivo dos recursos, bem assim as que

visam afastar riscos ao direito das partes, garantindo o resultado útil do

processo, como também aquelas que determinam a concessão da tutela de

evidência, independentemente da demonstração de risco de dano irrepará-

vel ou de difícil reparação, quando ficar caracterizado o abuso do direito de

defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte requerida, bem assim

quando um ou mais dos pedidos cumulados ou parcelas deles mostrar-se

incontroverso, a exigir, de logo, solução definitiva da lide, ou, ainda, quando

a matéria for unicamente de direito e houver tese firmada em julgamento de

recursos repetitivos ou resultar de enunciado de súmula vinculante.

Não se cuida, assim, na sistemática do processo civil moderno, da im-

plantação de um “ativismo judicial irresponsável”, como fator determinante

de uma “ditadura do Judiciário”, a ferir postulados históricos de uma míope

exegese privatista do direito, sob a luminosidade restrita dos tempos de Na-

poleão, mas, de um sistema de normas processuais, revelador do autêntico

perfil constitucional do juiz, como agente da soberania nacional, no exercí-

cio pleno de seu poder geral de cautela, que de há muito rompera as mor-

daças da doutrina liberal, para garantir os direitos do cidadão, neste novo

século, no exercício de uma comunhão difusa de sentimentos e de solidarie-

dade, que se ilumina na inteligência criativa e serviente à aventura da vida,

no processo de construção de uma democracia plenamente participativa.

De ver-se, pois, que a tutela específica e processual de urgência, liminar-

mente antecipável, como já prevista no § 3.º do art. 461 do CPC, identifica-se,

em seus pressupostos de admissibilidade, como aquela inserida no art. 7.º, III,

da Lei 12.016, de 07.08.2009, bem assim com a antecipação de tutela cautelar,

constante do § 7.º do art. 273 do CPC, na redação determinada pela Lei 10.444,

de 07.05.2002, em harmonia com o art. 5.º, § 4.º, da Lei 4.717/1965 (Lei da

Ação Popular) e com os arts. 4.º, 11 e 12 da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil

Pública) com força mandamental-inibitória, aplicável até mesmo, de ofício, em

matéria ambiental, por imposição do comando constitucional da tutela caute-

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Revista da Ajufe 80

lar do meio ambiente (art. 225, caput, da CF/1988) e da instrumentalidade dos

§§ 4.º, 5.º e 6.º, do aludido art. 461 do CPC, com a redação dada pela referida

Lei 10.444/2002, visando a eficácia plena do progresso ecológico.

A tutela jurisdicional-inibitória do risco ambiental, como instrumento de

eficácia do princípio da precaução, resulta, assim, dos comandos normati-

vos do art. 5.º, caput e incs. XXXV e LXXVIII e respectivo 2.º, c/c o art. 225,

caput, da CF/1988, visando garantir a inviolabilidade do direito fundamental

à sadia qualidade de vida, bem assim a defesa e a preservação do meio am-

biente ecologicamente equilibrado, em busca do desenvolvimento sustentá-

vel e da minimização de riscos para as presentes e futuras gerações, em toda

sua dimensão cósmico-difusa, planetária e global.

No contexto dessas garantias constitucionais expressas, não há mais

como se admitir a figura do juiz medroso, covarde e formalista, comprometi-

do apenas com seus projetos egoístas de autopromoção política, a esconder-

-se em todo tempo, nas técnicas embaraçosas dos procedimentos tradicio-

nais, sem o vigor psicológico e intelectual do juiz republicano, legitimado

pela soberania popular, no perfil de coragem e independência, traçado na

Carta Política Federal, como figura indispensável à concessão das tutelas de

urgência, estruturadas nas vertentes do moderno processo civil brasileiro.

Na conjuntura atual de uma globalização econômica cada vez mais in-

sensível em seus projetos de acumulação de riqueza material em poder dos

mais fortes e dominadores, numa ação gananciosa e aniquiladora dos valo-

res fundamentais da pessoa humana e dos bens da natureza, há de se exigir,

por imperativos de ordem pública, na instrumentalidade do processo civil,

atualizado aos reclamos dos novos tempos, uma ação diligente e corajosa de

um Judiciário republicano e independente, na defesa de uma ordem jurídica

justa para todos, no exercício de uma tutela jurisdicional oportuna e efetiva,

visivelmente comprometida com a defesa dos direitos e garantias tutelados

pela Constituição da República Federativa do Brasil.

3. O Terror jurídico-ditatorial da Suspensão de Segurança no con-

texto abusivo de Medida Provisória invasora da competência legislativa

do Congresso Nacional

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Revista da Ajufe 81

A esdrúxula figura da Suspensão de Segurança, nascida das entranhas da

Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no limiar sangrento da ditadura militar,

visando amordaçar a magistratura independente do Brasil na truculência do

regime de exceção que ali se instalava, editou normas processuais, apenas,

relativas ao mandado de segurança, para aniquilar essa garantia fundamental

de segurança, nas comportas autoritárias de conceitos indeterminados, as-

sim redigidos: “Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público

interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à eco-

nomia públicas, o Presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do

respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da

liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo,

no prazo de (10) dez dias, contados da publicidade do ato” (art. 4º).

Ampliando o perfil adamastor da suspensão de segurança para incluir,

autoritariamente, a execução de liminares nas ações movidas contra o Poder

Público ou seus agentes, no amparo do refrão normativo de conceitos difu-

sos, com o suposto propósito de evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segu-

rança e à economia públicas, sob o indisfarçável e ganancioso ideário capi-

talista selvagem do bloqueio dos cruzados, no governo Collor, em flagrante

assalto aos ativos financeiros das economias populares, foi publicada a Lei

nº 8.437, de 30 de junho de 1992, dispondo sobre essa anômala figura, nos

termos seguintes: “Compete ao presidente do Tribunal, ao qual couber o

conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamen-

tado, a execução da liminar nas ações movidas contra o poder público ou

seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica

de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou

de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à

segurança e à economia públicas” (art. 4º, caput), “aplicando-se o disposto

nesse artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada,

no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transi-

tada em julgado” (art. 4º, § 1º).

Assim editada em agressão a direitos e garantias fundamentais expressos

no Texto Magno da Constituição Republicana, de 05 de outubro de 1988, so-

bretudo em afronta à garantia da inafastabilidade da jurisdição e do acesso

pleno à justiça oportuna, através da instrumentalidade do processo justo, na

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Revista da Ajufe 82

determinação de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário

lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, XXXV), a malsinada Lei nº 8437, de

30/06/92, não conseguiu intimidar e amordaçar os corajosos juízes fede-

rais do Brasil, no propósito firme de cumprir sua missão constitucional de

ministrar justiça rápida e oportuna, ante o espectro aterrorizante da “sus-

pensão de segurança”, exumada dos fósseis normativos da ditadura militar,

que se inaugurou nos idos de 1964, visando garantir, nesse novo e sombrio

contexto histórico da ditadura do capitalismo neoliberal, o assalto oficial ao

bloqueio dos cruzados, em flagrante sequestro às sobras dos ativos finan-

ceiros da tão confiscada população brasileira, nos espaços movediços das

searas tributárias abusivas, nos quadrantes deste país.

A farsa governamental do referido bloqueio dos cruzados, pelo visto, fora

afastada, corajosamente, naquele momento histórico sombrio, pela magis-

tratura federal do Brasil, no exercício pleno do controle difuso de consti-

tucionalidade (CF, art. 97) e na instrumentalidade processual das tutelas de

urgência, a despeito da instalação normativa da arrogante “suspensão de

segurança”, no texto anômalo da Lei 8.437/92.

Com a edição da Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de

2001, revigorando os cadáveres normativos do regime de exceção, para as-

segurar a política governamental das privatizações de empresas estatais, e,

agora, também, o programa energético do Governo Federal, devastador das

florestas brasileiras e, sobretudo, do bioma amazônico, bem assim, de seu

patrimônio sócio-cultural, instalou-se no ordenamento processual do Brasil

o terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança, no perfil arrogante

da ideologia capitalista neoliberal, em permanente agressão ao princípio da

proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito, com respaldo,

agora, na contraditória Emenda Constitucional nº 32, de 2001, publicada

no Diário Oficial de 12/09/2001, que, embora visando conter o abuso na

edição dessas medidas provisórias, com proibição expressa para tratar de

matéria de direito processual civil, entre outras, ali, elencadas, permitiu, ex-

pressamente, que “as medidas provisórias editadas em data anterior à da

publicação dessa Emenda continuassem em vigor até que medida provi-

sória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do

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Revista da Ajufe 83

Congresso Nacional” (art. 2º da EC nº 32/2001).

A infeliz Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, cor-

rompeu, visceralmente, em mutação cancerígena, o ordenamento jurídico-

-processual brasileiro, com a blindagem protetiva de caráter permanente,

que obtivera logo após sua abusiva edição, ante o comando contraditório e

inconstitucional do prefaldo art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 11

de setembro de 2001, em manifesta agressão à cláusula pétrea de proteção

dos direitos e garantias individuais, coletivos e difusos, constitucionalmente

protegidos (CF, art. 60, § 4º, IV c/c o § 2º do art. 5º da mesma Carta Políti-

ca Federal), afrontando expressamente as garantias fundamentais do pleno

acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV), da segurança jurídica, que resulta da

proteção constitucional do ato jurídico sentencial perfeito e da coisa julgada

formal (CF, art. 5º, XXXVI), da proibição expressa do retrocesso ao juízo de

exceção (CF, art. 5º, XXXVII), do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), das

tutelas de segurança e de urgência dos mandados de segurança individual e

coletivo, nos marcos regulatórios de suas hipóteses de incidência constitu-

cional (CF, art. 5º, LXIX e LXX, a e b), da razoável duração do processo e dos

meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5º, LXXVIII) e da

eficácia plena e imediata dos direitos e garantias fundamentais, expressos

em nossa Carta Magna e de outros decorrentes do regime e dos princípios

por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federa-

tiva do Brasil seja parte (CF, art. 5º, §§ 1º e 2º).

O rol de agressões ao texto constitucional republicano, que resulta do

terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança no contexto normativo

da malsinada Medida Provisória nº 2.180-35/2001 em manifesta afronta

ao princípio da proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito,

expressa-se no aditamento abusivo ao texto historicamente agressor da Lei

nº 8.437, de 30 de junho de 1992, que passou a vigorar com as seguintes

alterações: “Art. 4º (...) - § 3º Do despacho que conceder ou negar a suspen-

são caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na

sessão seguinte à sua interposição. § 4º - Se do julgamento do agravo de

que trata o § 3º resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão

que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presiden-

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Revista da Ajufe 84

te do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou

extraordinário. § 5º - É cabível também o pedido de suspensão a que se re-

fere o § 4º, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto

contra a liminar a que se refere este artigo. § 6º - A interposição do agravo

de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder

Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedi-

do de suspensão a que se refere este artigo. § 7º - O Presidente do Tribunal

poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo

prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da

medida. § 8º - As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas

em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efei-

tos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento

do pedido original. § 9º - A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal

vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal”.

De ver-se, assim, que o texto normativo em referência estrangula, com re-

quintes de crueldade, a garantia constitucional do devido processo legal e da

segurança jurídica, em tons de violência autoritária, próprios dos regimes

ditatoriais, anulando-se o juízo natural das instâncias judiciais singulares

e colegiadas (CPC, art.512)4, com o propósito indisfarçável de enfraquecer

e intimidar os magistrados do Brasil, ao restabelecer o império do juízo de

exceção na suspensão de segurança, no âmbito monocrático das decisões

presidenciais de nossos Tribunais, que só tardiamente se manifestam em

sessão de julgamento colegiado sobres essas suspensões, quando já se tor-

nam irreversíveis e com danos irreparáveis ao interesse público, ante situa-

ções de fato consolidadas pelo decurso do tempo no processo. Aniquila, ain-

da, a segurança jurídica, que resulta das decisões colegiadas dos Tribunais

de apelação, que não mantenham essas odiosas suspensões, anulando-se o

fenômeno preclusivo das referidas decisões, a permitir, qual “fênix malig-

namente renascida”, a reedição da mesma pretensão de segurança perante,

agora, a Presidência dos Tribunais Superiores (STJ e STF). Busca, também,

nesse propósito, anular, por ato político ditatorial da suspensão de seguran-

4 CPC, art. 512: O julgamento proferido pelo Tribunal substituirá a sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso.

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Revista da Ajufe 85

ça, o exercício da jurisdição colegiada dos Tribunais do Brasil e a eficácia

imediata de suas decisões, a permitir a instauração do pleito de suspensão

da decisão judicial impugnada, quando já confirmada ou a se confirmar pelo

juízo natural do órgão jurisdicional competente do próprio Tribunal (CPC,

art.512), contrariando, assim, sabia orientação jurisprudencial do colendo

Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “em havendo superposição

de controle judicial, um político (suspensão de tutela pelo presidente do Tri-

bunal) e outro jurídico (agravo de instrumento) há prevalência da decisão

judicial” (REsp. 47469/RJ. Segunda Turma, julgado em 20/03/2003. DJ de

12/05/2003, p. 297), a não se permitir qualquer relação de prejudicialidade

do agravo de instrumento, em virtude de decisão proferida pela presidência

do Tribunal, em sede de suspensão de segurança, posto que se afigura juri-

dicamente impossível o ajuizamento de pedido de suspensão de segurança

perante a presidência do tribunal de apelação, para cassar os efeitos da de-

cisão judicial de qualquer dos órgãos fracionários do próprio tribunal, a

negar vigência ao postulado normativo do mencionado artigo 512 do CPC.

A referida Medida Provisória nº 2.180-35/2001 atinge o grau máximo

desse terror jurídico-ditatorial na suspensão de segurança, quando deter-

mina que “a suspensão deferida pelo presidente do Tribunal vigorará até

o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal”, nulificando,

assim, a eficácia imediata das decisões judiciais impugnadas e dos direitos

e garantias fundamentais por elas tutelados, abrindo, dessa forma, espaço

odioso às intermináveis protelações recursais do poder público e de seus

agentes sem escrúpulos, na busca irrefreada da consolidação de situações

de fato pelo decurso do tempo no curso do processo, sobretudo naqueles

feitos judiciais que envolvem interesses coletivos e difusos, contrariados e

agredidos por mal-intencionadas políticas governamentais de natureza fis-

cal-tributária, econômica e ambiental.

Observe-se, por último, que a Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009, ao

disciplinar o mandado de segurança individual e coletivo, desgarrou-se de

seu perfil constitucional, pois fora contaminada, também, pelo vírus letal

da suspensão de segurança, nos parâmetros agressivos da aludida Medida

Provisória nº 2.180-35/2001, como se vê nas letras do art. 15 e respectivos

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Revista da Ajufe 86

§§ 1º a 5º do referido texto legal.

Nesse contexto, há de se observar a importância do juiz republicano como

agente da soberania popular, ao ser convocado para o exercício da nobre

função jurisdicional, a legitimar-se perante os destinatários dos atos de sua

jurisdição, no elevado grau de justiça de suas decisões em defesa do bem

comum e do desenvolvimento sustentável das presentes e futuras gerações.

4. A contratutela procedimental da suspensão de segurança ambien-

tal e a proibição do retrocesso no sistema de proteção ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado

Em artigo jurídico de minha autoria sobre “a missão constitucional do

Poder Judiciário Republicano na defesa do meio ambiente e do desenvol-

vimento sustentável”, destaquei, em tom de alerta, a figura da contracaute-

la de urgência e a consequente anulação das Varas Ambientais pelo abuso

procedimental da suspensão de segurança nos Tribunais Federais do Brasil,

observando o seguinte: “A instalação de Varas ambientais, no âmbito de

competência da Justiça Federal, no território nacional, possui papel rele-

vante no sistema de proteção do meio ambiente. Contudo, o procedimento

que vem sendo adotado na localização dessas Varas, na escolha dos Juízes

condutores dessa peculiar jurisdição e na postura dos Presidentes dos Tri-

bunais Federais na apreciação dos incidentes de suspensão de segurança,

cassando, sistematicamente e com razões padronizadas e contraditórias,

as corajosas decisões de juízes singulares, nessas Varas Especializadas na

defesa do meio ambiente, praticamente esvaziam seus objetivos institucio-

nais.

De notar-se que medidas administrativas e decisões judiciais também

podem atentar contra o sistema de segurança ambiental, as quais, além

de estarem incumbidas, constitucionalmente, de um dever permanente de

desenvolvimento e concretização eficiente dos direitos fundamentais (de

modo particular da defesa e proteção do meio ambiente ecologicamente

equilibrado – CF, art. 225, caput), não podem, em qualquer hipótese su-

primir pura e simplesmente, por ação ou omissão, o sistema de proteção

constitucional do meio ambiente essencial à sadia qualidade de vida das

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Revista da Ajufe 87

presentes e futuras gerações, posto que estamos todos vinculados pelo Tex-

to Magno ao fiel cumprimento dos princípios do progresso ecológico e da

proibição do retrocesso ecológico, como garantias fundamentais de um de-

senvolvimento sustentável para todos.

A proliferação abusiva dos incidentes procedimentais de suspensão de

segurança, como instrumento fóssil dos tempos do regime de exceção, a

cassar, reiteradamente, as oportunas e precautivas decisões tomadas em

varas ambientais, neste país, atenta contra os princípios regentes da Polí-

tica Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), prestigiada internacio-

nalmente pelo Projeto Redd Plus (Protocolo de Kyoto, COPs 15 e 16 – Co-

penhague e Cancún), e a garantia fundamental do progresso ecológico e do

desenvolvimento sustentável, agredindo, ainda, os acordos internacionais,

de que o Brasil é signatário, num esforço mundialmente concentrado, para

o combate às causas determinantes do desequilíbrio climático e do pro-

cesso crescente e ameaçador da vida planetária pelo fenômeno trágico do

aquecimento global.

A experiência forense nos tem revelado, com manifesta frequência, que

o tempo médio de validade de uma decisão judicial, proferida por um Juízo

singular de vara ambiental, amparada pela supremacia do interesse pú-

blico em defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, equivale,

apenas, ao tempo de que dispõe o Presidente de um Tribunal de Apelação

para anular os seus efeitos, através do autoritário procedimento de suspen-

são de segurança, sob o pretexto de preservar o mesmo interesse público,

que serviu de fundamento para aquela decisão monocrática, cercada de

precaução e abusivamente cassada. Sem a urgente correção desses des-

vios procedimentais, as varas ambientais não cumprirão sua nobre missão

constitucional nem poderão atingir seus objetivos legalmente previstos, em

busca do progresso ecológico e do desenvolvimento sustentável, neste país,

com reflexos difusos na vida do planeta”.5

E, no mesmo texto desse artigo jurídico, considerei que “se antes da

5 PRUDENTE, Antônio Souza. A missão constitucional do Poder Judiciário Republicano na defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável. Revista de Direito Ambiental – RDA, ano 17, 66, Abril-Junho, 2012. RT, p. 99.

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Revista da Ajufe 88

vigência da EC 32/2001, o abuso na edição e reedição de medidas provi-

sórias caracterizava flagrante atentado ao Estado Democrático de Direito,

por ato arrogante do Presidente da República ante a omissão agressora do

Congresso Nacional, agora, esse abuso normativo se qualifica, já não mais

pelo excesso editorial das medidas provisórias, feito exceção derrogatória

do postulado da divisão funcional do poder, mas pela tipificação criminal

do atentado expresso contra a Constituição Federal, especialmente quando

o Presidente da República edita ato normativo contra o cumprimento das

decisões judiciais. Nesse contexto, não se deve ignorar que o princípio da

responsabilidade dos governantes, nos governos democráticos, fora adota-

do, em plenitude, pela Constituição da República Federativa do Brasil, em

termos graves e expressos (arts. 85 e 86 da CF/1988)”.6

5. O silêncio agressor do Congresso Nacional ante os abusos de Me-

dida Provisória genitora do juízo de exceção da Suspensão de Segurança

em atentado às garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito

Já desde os tempos idos de 1997, manifestei-me sobre “o poder abusivo

das medidas provisórias”, com a convicção de que “medida provisória, no

regime presidencialista do Brasil, é ato do Príncipe, que só tem validade

jurídica, quando em seu uso constitucionalmente mitigado, recebe a pronta

acolhida do Povo, através de seus representantes, no Congresso”.7

Contudo, até nos dias de hoje, o abuso na edição de medidas provisó-

rias pelo Poder Executivo, no Brasil, continua em vigor, em termos cada vez

mais ousados e truculentos perante a ordem jurídica nacional. O Príncipe (e

agora, também, a Princesa) abusa e o Congresso se omite, quando não com-

pactua expressamente com esse abuso na edição de medidas provisórias,

como ocorrera em relação ao texto flagrantemente inconstitucional da refe-

rida Medida Provisória n. 2.180-35/2001, ao dispor sobre matéria de direito

processual civil, que é da competência legislativa exclusiva do Congresso

Nacional (CF, arts. 22, I e 48, caput), como assim lhe restou proibido pelo

6 PRUDENTE, Antônio Souza. Op. cit. p. 99.

7 PRUDENTE, Antônio Souza. Revista Panorama da Justiça. SP. 1997. RT, p. 42.

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art. 62, § 1º, b, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda

Constitucional nº 32/2001.

Para que se afaste, de vez e logo, essa postura omissiva e de silêncio

agressor das Casas Congressuais, ante a determinação expressa da aludida

Emenda Constitucional nº 32/2001, no sentido de que o Congresso pode e

deve deliberar sobre as medidas provisórias editadas em data anterior à da

publicação dessa Emenda Constitucional, especialmente sobre o texto da

malsinada Medida Provisória 2.180-35/2001, no que nela se contém de ma-

téria processual civil, usurpando, expressamente, a competência congressu-

al, na espécie, e, sobretudo, no que tange à implantação do juízo de exceção

na suspensão de segurança, com o terror jurídico-ditatorial das cúpulas do

Poder Judiciário do Brasil, em prejuízo do direito fundamental à jurisdição e

do acesso pleno e oportuno à Justiça, na instrumentalidade do processo jus-

to, compete ao Congresso Nacional, com urgência, “zelar pela preservação

de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros

poderes”, por imperativo constitucional (CF, art. 49, XI), sob pena de restar

cada vez mais enfraquecido perante os atos de dominação e abuso dos de-

mais Poderes. E, a partir daí, em grave retrocesso histórico, com a quebra do

princípio da independência e da harmonia entre os poderes da República

Federativa do Brasil (CF, art. 2º), haverá o total aniquilamento do Estado

Democrático de Direito.

Nesse contexto de abusos e danos irreversíveis, a ser evitado, com urgên-

cia, por atuação diligente e responsável do Congresso Nacional, no uso de

sua competência legislativa plena, se assim não for, sempre que as decisões

do Poder Judiciário independente, no Brasil, contrariarem interesses do Po-

der Executivo e aqueles gerenciados pelas multinacionais, que aqui cam-

peiam, predatoriamente, explorando as sofridas economias da população

brasileira e os valores fundamentais de sua dignidade, em afronta à sobe-

rania nacional, editar-se-ão medidas provisórias abusivas para reforçar os

juízos de exceção das cúpulas do Poder Judiciário, visando anular as corajo-

sas decisões monocráticas e colegiadas da Justiça brasileira. Já não haverá,

assim, o tão sonhado Estado Democrático de Direito nem segurança jurídica,

nem mesmo paz e tranquilidade social, em face do arbítrio e da truculência

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dos Poderes, avalizando, no país, as forças gananciosas do mercado global,

sem qualquer compromisso com o desenvolvimento sustentável das presen-

tes e futuras gerações.

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A tutela das criações intelectuais e a existência do Direito de Autor

na Antiguidade Clássica

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Leonardo Estevam de Assis ZaniniPós-doutorado em Direito pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und

internationales Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela USP. Juiz Federal. Diretor Acadêmico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento da Justiça Federal em São Paulo. Ex-Diretor da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso

do Sul. Ex-delegado da Polícia Federal. Ex-procurador do Banco Central do Brasil. Ex-defensor público federal. Ex-bolsista da Max-Planck-Gesellschaft e da CAPES.

Resumo: O artigo aborda a proteção das criações intelectuais nas civilizações

da Antiguidade Clássica. Inicia fazendo um breve estudo do tema na Grécia Antiga,

passando, em seguida, ao estudo do Direito Romano. Analisa a consciência dos ro-

manos em relação à proteção dos interesses morais do autor, o interesse econômico

na produção intelectual e a possibilidade de tutela dos direitos da personalidade

do autor pela actio iniuriarum. Por fim, aborda a discussão relativa à existência do

Direito de Autor na Antiguidade Clássica.

Palavras-chave: Direito de Autor; direitos da personalidade; direitos intelectuais;

direitos morais do autor; direito romano; actio iniuriarum; direito grego; direito de

paternidade; direito de divulgação; direito à integridade.

Abstract: The article discusses the protection of the intellectual creations in the

civilizations of antiquity. It starts with a brief analysis of the subject in Ancient

Greece, passing then to analyze the Roman law. The consciousness of the romans

in regard to the protection of the moral interests of the authors is analyzed as well

as the possibility of safeguarding of the personality rights of the authors and the

economic interest in intellectual production. Finally, the discussion focuses on the

existence of copyright in Classical Antiquity.

Keywords: Copyright; rights of personality; intellectual rights; moral ri-

ghts; ancient roman law; actio iniuriarum; ancient greek law; right of paterni-

ty; right to publish; right of integrity.

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Revista da Ajufe 95

1. Introdução

A tutela das criações intelectuais, na história do direito, não foi simplesmente

ignorada, passando a ser objeto de regulamentação apenas a partir dos decretos

revolucionárias franceses de 1791 e 1793.

De fato, ainda que de forma incipiente, se comparamos com nossa realidade, há

inúmeros registros históricos da proteção do autor em épocas bastante remotas,

como é o caso das civilizações grega e romana.

Nesse contexto, para uma melhor compreensão da necessidade de proteção das

criações intelectuais na atualidade, focaremos, no presente trabalho, a eventual tu-

tela concedida às obras do espírito na Antiguidade e procuraremos responder à

indagação acerca da existência do Direito de Autor nas civilizações grega e romana.

2. A proteção autoral na Grécia Antiga

Na Grécia Antiga, após o surgimento da escrita, era comum a transcrição de

obras de vários escritores, as quais, a cada nova cópia, sofriam transformações,

manipulações e modificações. Tal atividade era considerada lícita, visto que para

os antigos gregos a imortalidade correspondia à recordação, ao fato de que após a

morte do autor as novas gerações continuariam a aprender com seu trabalho, não

importando se a obra tinha sido alterada.1

A cultura da época era predominantemente oral, de maneira que a literatura era

bastante limitada e tinha que ser avaliada de acordo com as condições existentes.

Era então compreensível, até pela necessidade de desenvolvimento das letras, a au-

sência de punição de determinadas condutas, hoje vedadas pelo Direito de Autor.

Assim, fica evidente que após a distribuição da “primeira cópia de um livro, o

autor não mais podia controlar seu destino”, pois não havia nenhuma forma de

proteger a integridade de um texto ou de limitar o seu número de cópias.2

Em Atenas, entretanto, uma lei do ano de 330 a.C. mostrou-se bastante avançada,

ordenando o depósito de cópias exatas das obras dos três grandes clássicos nos

1 GAUDENZI, Andrea Sirotti, Il nuovo diritto d’autore, p. 41.

2 CARBONI, Guilherme, Direito Autoral e Autoria Colaborativa: na Economia da Informação em Rede, p. 34.

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Revista da Ajufe 96

arquivos estatais. Com isso, os atores e os copistas deveriam respeitar o texto depo-

sitado, já que, até então, havia pouca consideração pelo texto original.3

Também no mundo helênico, por volta de 650 a.C., sabe-se que muitos pinto-

res de vasos, como Aristonotos, Exekias, Eutimedes, Euphiletos e outros, garan-

tiam o reconhecimento da autoria com a aposição de sua assinatura na obra,4

preservando-se, desse modo, o direito de paternidade.

Procedimento semelhante foi adotado pelo renomado poeta Teógnis de

Mégara, que criou um sinal de identificação em suas obras, com o objetivo

de evitar a sua utilização sem indicação da autoria, bem como para garantir a

integridade do texto.5

Outra manifestação interessante diz respeito às acusações de plágio. Era

bastante comum a promoção de concursos em que o vencedor era aclamado

publicamente e recebia prêmios. Em vista disso, sabe-se que acusações por plá-

gio eram frequentes, lembrando Daniel Rocha que:

Philóstrato de Alexandria acusava Sófocles de ter

aproveitado de Ésquilo. A Ésquilo, de ter feito o mesmo

com Frínico. A Frínico, de agir assim com seus ante-

cessores.

Platão censurava Eurípedes pela reprodução literal

em seus coros da filosofia de Anaxágoras. Aristófanes,

em “As rãs”, não poupa Eurípedes, e propõe que se co-

loque num prato da balança apenas os seus versos, e

no outro, Eurípedes, mulher e filhos e Cephisophon

(amigo e colaborador de Eurípedes) com todos os li-

vros.

Aristófanes não ficou imune à acusação de haver se

aproveitado de Crátinos e Eupólis, o que levou a qualifi-

3 LIPSZYC, Delia, Derecho de autor y derechos conexos, p. 28

4 FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoral: da Antiguidade à Internet, p. 58.

5 FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoralautoral: da Antiguidade à Internet, p. 56-57

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car este último de “miserável plagiário” de sua obra Les

Chevaliers (“As nuvens” – verso 553).6

É igualmente digno de nota, conforme relatou Suidas, o fato de que “Euforion,

filho de Ésquilo, teria conquistado por quatro vezes a vitória nos torneios de tragé-

dia, apresentando peças inéditas de seu pai como suas”. Isso levou Daniel Rocha a

afirmar que o filho também herdava a obra intelectual paterna inédita como se fora

uma res comum.7

Por outro lado, não se pode negar o interesse da pólis na coibição do plágio, o

que guardava relação com a correta atribuição de autoria dos livros depositados

nas bibliotecas gregas.8

Vê-se, portanto, que os gregos já tinham uma consciência incipiente acerca da

necessidade da proteção da integridade e da paternidade da obra. No entanto, isso

não nos permite afirmar que se fazia presente naquela sociedade o Direito de Autor.

3. A situação do autor no Direito Romano

Os romanos não eram dotados de muita imaginação artística, por isso suas artes

derivavam basicamente de influências recebidas de povos conquistados, especial-

mente dos gregos. Entrementes, é certo que os romanos deixaram sua marca nas

artes herdadas9 e, ao que tudo indica, também deram sua contribuição, ainda que

embrionária, ao que viria a ser conhecido como Direito de Autor.

A ausência de disposição legal específica acerca das criações intelectuais não

significou que os escritores e artistas em geral não pudessem ser, de alguma forma,

pelo menos em tese, amparados pelo Direito Romano.10

Ao contrário, pode-se notar que os romanos tinham consciência acerca do direi-

6 ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 14.

7 ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 14.

8 CARBONI, Guilherme, Direito Autoral e Autoria Colaborativa: na Economia da Informação em Rede, p. 34.

9 EBOLI, João Carlos de Camargo, Pequeno Mosaico do Direito Autoral, p. 17.

10 COSTA NETTO, José Carlos, Direito autoral no Brasil, p. 52.

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to moral e patrimonial de autor. Apesar disso, não são conhecidas regras específi-

cas a esse respeito e também não são conhecidos casos em que autores contestaram

judicialmente o desrespeito à autoria.11

3.1. A consciência dos romanos em relação aos interesses espirituais

e morais do autor

Os romanos realmente estavam cientes do fato de que a publicação e a explo-

ração da obra guardavam íntima ligação com interesses espirituais e morais, tanto

é que cabia ao autor a decisão quanto à divulgação ou não de seu trabalho, e os

plagiadores eram malvistos pela sociedade.12

Aliás, em Roma, tal qual na Grécia, era corrente o problema do plágio, palavra

que chegou ao português pelo latim (plagium), decorrendo das previsões da Lex

Fabia de Plagiariis, do século segundo antes de Cristo. O plágio do direito romano,

entretanto, não tinha nada a ver com a acepção atual da palavra,13 pois os romanos,

sob o nome de plagium, puniam “a escravização de homem livre, bem como a com-

pra e venda ou assenhoreamento de escravo alheio”.14

Contudo, a expressão sofreu desvio histórico, atribuído ao poeta Marco Valério

Marcial (42-104 d.C.), que comparou seus epigramas a escravos libertos, os quais

estariam nas mãos de um sequestrador de nome Fidentino (plagiarius).15

Marcial escreveu em seus epigramas (Epigrama 30, Livro I): “Segundo consta,

Fidentino, tu lês os meus trabalhos ao povo como se fossem teus. Se queres que os

digam meus, mandar-te-ei de graça os meus poemas; se quiseres que os digam teus,

11 SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 66. Rehbinder, igualmente, aponta a inexistência, na Antiguidade, do reconheci-mento de um direito do autor a um bem espiritual, não obstante a perfeita consciência acerca de uma “propriedade espiritual” (REHBINDER, Manfred, Urheberrecht, p. 7).

12 LIPSZYC, Delia, Derecho de autor y derechos conexos, p. 28.

13 Conforme esclarece Chinellato, durante a Renascença, os “jurisconsultos Duareno e To-másio concluíram que o plágio era punido pela Lex Fabia de Plagiariis, entendimento que foi seguido por autores modernos, o qual, no entanto, baseou-se em erro” (CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Notas sobre plágio e autoplágio. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, v. 29, p. 305-328, jan./jun. 2012, p. 306).

14 HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, v. 6, p. 198.

15 REHBINDER, Manfred, Urheberrecht, p. 7.

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compra-os, para que deixem de ser meus”. E no quinto epigrama asseverou ainda o

escritor latino: “Quem busca a fama por meio de poesias alheias, que lê como suas,

deve comprar não o livro, mas o silêncio do autor”.16

Outro caso célebre de plágio envolveu Virgílio e Batilo. O autor da Eneida,

ainda desconhecido do público, acusou Batilo de se apropriar da paternidade de

um texto em honra de Augusto.17 Era época de jogos e Virgílio escreveu anonima-

mente, durante a noite, no pórtico do palácio imperial, em honra do imperador, o

seguinte dístico:

Nocte pluit tota, redeunt spectacula mane

Divisum imperium cum Jove Caesar habet.18

O imperador, então, sentindo-se lisonjeado, quis saber quem tinha escrito os ver-

sos, apresentando-se Batilo como o autor. Inconformado, Virgílio, novamente de

forma anônima, acrescentou aos versos anteriores mais um outro verso, seguido de

quatro outros incompletos e repetidos:19

Hos ego versiculos fecit, tulit alter honoris:

Sic vos non vobis

Sic vos non vobis

Sic vos non vobis

Sic vos non vobis

Diante do texto, o imperador Augusto pediu a Batilo a sua complementação, no

entanto, ele não obteve êxito na tarefa, dando espaço para Virgílio, seu verdadeiro

16 ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 15

17 GAUDENZI, Andrea Sirotti, Il nuovo diritto d’autore, p. 41.

18 “Chove a noite toda, de manhã recomeçam os jogos. Deste modo, César divide o poder com Júpiter”. Tradução de Mauro Mendes (MENDES, Mauro. Virgílio e os cantadores. Dispo-nível em: <http://www.arquivors.com/mmendes_virgilio.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2011).

19 MENDES, Mauro. Virgílio e os cantadores. Disponível em: <http://www.arquivors.com/mmendes_virgilio.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2011.

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autor, que completou os versos da seguinte forma:20

Hos ego versiculos fecit, tulit alter honoris:

Sic vos non vobis nidificates aves,

Sic vos non vobis vellera fertis oves,

Sic vos non vobis mellificatis apes,

Sic vos non vobis fertis aratra boves21

E para além de todos esses casos, é muito marcante um episódio envolvendo

uma disputa entre Cícero e o editor Dorus, que foi analisada de forma bastante só-

bria por Sêneca, não deixando dúvida acerca da consciência dos romanos em re-

lação à distinção entre a criação intelectual e o suporte físico. Segundo o filósofo

romano, o litígio tinha, em realidade, dois lados, visto que Cícero reivindicava seus

livros como autor (auctor), enquanto que Dorus o fazia como comprador (emptor).22

Pois bem, das passagens transcritas ficou evidenciado que os romanos tinham

consciência acerca da autoria de uma obra, inclusive distinguindo o suporte físico

(corpus mechanicum) da criação intelectual propriamente dita (corpus mysticum).23

Todavia, ao lado da consciência dos romanos, resta-nos indagar se seria possível

a utilização dos instrumentos jurídicos da época para a proteção da obra e do autor.

3.2. A possibilidade de tutela dos direitos da personalidade do autor

A actio iniuriarum era uma demanda relacionada com a iniuria e delitos seme-

20 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 45.

21 “Eu escrevi estes versos, outro ficou com as honrarias: Assim vós, aves, não fazeis os ninhos para vós, assim vós, ovelhas, não produzis a lã para vós, assim vós, abelhas, não fabri-cais o mel para vós, assim vós bois, puxais o arado, mas não para vós.” Tradução de Ignácio Maria Poveda Velasco (VELASCO, Ignácio Maria Poveda. “Actio iniuriarum” e direito de autor. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, ano 17, p. 109-114, jan./mar. 1993, p. 113).

22 FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoral: da Antiguidade à Internet, p. 199

23 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 32. Não é outra a lição de Gautier, o qual destaca que os romanos conheciam perfeitamente a noção de obra do espírito, de maneira que foram os pioneiros no que toca à distinção entre o suporte material e a obra do espírito (GAUTIER, Pierre-Yves, Propriété littéraire et artistique, p. 13).

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Revista da Ajufe 101

lhantes. Inicialmente, no período da República, o tipo da iniuria era interpretado

restritamente, pois era necessário para sua configuração uma severa agressão con-

tra uma pessoa. Porém, com o passar do tempo, a actio iniuriarum foi envolvendo

um número cada vez maior de condutas, como, por exemplo, a contrariedade aos

costumes e o ataque à boa fama de uma mulher.24

A extensão dada pelo pretor ao conceito de iniuria acabou, no decorrer da

evolução do Direito Romano, assegurando a proteção contra qualquer lesão a um

aspecto da personalidade, diferentemente do antigo conceito, que abarcava ape-

nas as lesões físicas.25

Assim sendo, especula-se sobre a possibilidade de utilização da actio iniuriarum

em casos como de plágio, de publicação sem o consentimento do autor e de desres-

peito à integridade da obra.26 Nessa linha, poder-se-ia afirmar, por exemplo, que a

publicação de uma obra sem autorização, por desrespeitar a vontade do autor e, por

conseguinte, sua própria pessoa, ensejaria a aplicação da actio iniuriarium para

garantir a proteção da honra.27

Esse raciocínio foi complementado por Carlo Fadda, ao esclarecer que

“assim como ofendia a personalidade a ilícita revelação das disposições tes-

tamentárias, de segredos familiares ou do conteúdo de uma carta missiva, da

mesma forma ofendia a divulgação de uma obra não destinada pelo autor a

vir a público”.28

A tese poderia ser aplicada em um caso ocorrido em Roma, em que um edi-

tor, sem o consentimento do autor, publicou sua obra. Trata-se do quinto livro

24 SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 63.

25 VELASCO, Ignácio Maria Poveda, “Actio iniuriarum” e direito de autor, p. 111.

26 SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, passim.

27 SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 64. Na mesma linha, Santos Cifuentes aduz que os romanos “não concebiam que os frutos da inteligência ou da inspiração artística pudessem ser matéria de um ius especial; que o pensamento representaria um bem suscetível de proteção, à parte da matéria que serve de suporte”. Entretanto, lembra que se recorria à actio iniuriarum “quando a violação importava um ataque à personalidade, em particular se não se havia cedido a obra a ninguém” (CIFUEN-TES, Santos. Derechos personalíssimos. 3. ed. Buenos Aires: Astrea, 2008,

28 VELASCO, Ignácio Maria Poveda, “Actio iniuriarum” e direito de autor, p. 112.

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da obra De finibus, que chegou às mãos de Balbus por meio de Atticus, o que

foi severamente criticado por seu autor, Cícero, pois isso ocorreu antes mesmo

que Brutus, a quem foi dedicada, pudesse ter tido contato com o trabalho. Entre-

mentes, Cícero não chegou a tomar medidas jurídicas contra Atticus, uma vez que

possuíam amizade muito próxima.29

Aliás, não somente a publicação sem autorização, mas também a própria fi-

gura do plágio poderia ser considerada ilícita e tutelada pela actio iniuriarum.30

Nesse sentido, adverte Velasco que, se considerarmos a obra como projeção da

personalidade de seu autor, então o plágio levaria à ofensa da personalidade e

poderia ser punido com o uso da actio iniuriarum.31

Contudo, ao lado da possibilidade de proteção da autoria, da integridade e

do ineditismo, em várias passagens de textos de Marcial fica evidente a pos-

sibilidade de transferência da autoria de escritos ainda não publicados, o que

certamente configuraria uma afronta ao Direito de Autor atualmente em vigor.

Realmente, conforme alguns doutrinadores, a figura do ghost writer, como

a conhecemos na atualidade, não era repudiada pelo Direito Romano, posto

que, às vezes, era permitido que autores, mediante pagamento, entregassem

seus trabalhos não publicados a terceiros, que os assumiriam como seus.32

De qualquer forma, o tema é bastante discutível, não sendo possível saber

se a autoria poderia ser ocultada por meio de contrato e se a suspensão de

tal obrigação poderia ser conseguida à força, mesmo porque a reconstrução

da exata organização romana existente à época é impossível.33

29 SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 57.

30 GAUDENZI, Andrea Sirotti, Il nuovo diritto d’autore, p. 42.

31 VELASCO, Ignácio Maria Poveda, “Actio iniuriarum” e direito de autor, p. 113.

32 Marcial, por exemplo, menciona um certo Paulo, que comprou poesias e as recitou como suas. E o próprio Marcial exigiu várias vezes de Fidentino a compra da autoria de textos, os quais poderiam, posteriormente, ser recitados em conformidade com o direito, visto que até então Marcial denominava-se dominus de suas poesias (SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 71).

33 SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 72.

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3.3. O interesse econômico na produção autoral

Os romanos tinham plena ciência da existência de interesse econômico na pro-

dução autoral. É notório, por exemplo, o benefício pecuniário que desfrutavam os

poetas Horácio e Virgílio junto de Caius Maecenas, estadista romano cujo nome

simboliza atualmente o patronato das artes.34

A existência do interesse econômico também fica patente em uma carta de Cíce-

ro dirigida ao seu amigo e editor Atticus, em que Cícero elogia o excelente trabalho

do editor na “venda” do seu discurso Pro Ligario, afirmando o autor que no futuro

entregaria a Atticus, para publicação, o que viesse a escrever.35

É certo ainda que o interesse despertado pelos espetáculos teatrais abriu no-

vas perspectivas para os autores. De fato, vale lembar que Terêncio, então escravo

cartaginês, recebeu por seus versos seis mil sestércios, pagos pelo edil Cecílio.36

Há, igualmente, outro relato da compra de versos do mesmo Terêncio. Segundo

revelou Seutônio, os edis pagaram oito mil sestércios por duas representações da

comédia “O Eunuco”.37

Poderíamos, ademais, para reafirmar o interesse econômico na produção in-

telectual, citar o caso de Plauto, “que adquiriu no teatro uma verdadeira fortuna,

perdida depois no comércio, porque era simultaneamente autor, ator e diretor de

companhia”.38

Porém, afora algumas exceções, deve-se notar que havia em Roma um comércio

para as criações literárias e artísticas ao qual os autores estavam sujeitos de manei-

ra muito similar àquela verificada mais tarde com a invenção da imprensa, ou seja,

em Roma também era evidente a hipossuficiência dos autores.

Os autores não tinham, como os livreiros, relações comerciais para vender e es-

palhar as obras por Roma e suas províncias. Também não tinham condições de

34 COSTA NETTO, José Carlos, Direito autoral no Brasil, p. 51.

35 FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoral: da Antiguidade à Internet, p. 61

36 JORDÃO, Levy Maria. A propriedade litteraria não existia entre os romanos. In: Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa: Classe de Sciencias Moraes, Políticas, e Bellas-lettras, tomo II, parte II. Lisboa: Academia, 1863, p. 10.

37 ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 15.

38 JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 12.

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Revista da Ajufe 104

reproduzir as obras, o que demandava trabalho enfadonho e, às vezes, necessitava

de um copista com tal instrução que não era fácil encontrar. Isso sem falar na adu-

lação e no servilismo, especialmente diante dos imperadores, o que acabava por

ofuscar, muitas vezes, o gênio de muitos artistas romanos, que não podiam criar

com independência.39

Realmente, até mesmo autores de sucesso não chegaram a se beneficiar com

os lucros das vendas de seus textos, valendo aqui, mais uma vez, citar Marcial,

que, apesar de toda a popularidade, viveu e morreu pobre, escrevendo: “Que me

importa saber que os nossos soldados leem meus versos no interior da Dácia, e

que os meus epigramas são cantados no fundo da Bretanha, se isto não apro-

veita à minha bolsa?”.40

Tácito também explicita a situação dos escritores no “Diálogo dos oradores”

(Dialogus de oratoribus), evidenciando que o interesse moral era quase o único in-

citamento que impelia boa parte dos autores: “Os versos não dão fortuna, o seu

fruto limita-se a um prazer curto, a louvores frívolos e estéreis; e a fama a que os

poetas se sacrificam, e que confessam ser o único preço de seus escritos, ainda é

inferior à dos oradores”.41

Ademais, é curioso observar que os romanos, tal como corriqueiramente ve-

mos na atualidade, pagavam vultosas quantias por obras de arte de artistas já fale-

cidos. Não davam, no entanto, o mesmo valor ao trabalho dos artistas vivos, o que

fica muito claro nas palavras de Sêneca: “Adoramos as imagens e desprezamos os

que as esculpem”.42

Vê-se, assim, que os autores e os artistas, no geral, não obtinham grande com-

pensação financeira pelos seus trabalhos. Eram impulsionados, na realidade, mais

pelo interesse moral, pela glória e pelo reconhecimento dos concidadãos, do que

propriamente pela pretensão de lucro com a exploração da obra.

Enfim, ao lado de todas essas dificuldades, deve-se ainda acrescentar que havia

na sociedade romana repulsa e reprovação pela conduta do criador que explorava

39 JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 4-7.

40 JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 3.

41 JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 2-3.

42 EBOLI, João Carlos de Camargo, Pequeno Mosaico do Direito Autoral, p. 18.

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Revista da Ajufe 105

economicamente sua obra, o que configurava mais um obstáculo para o desenvol-

vimento dos direitos patrimoniais de autor.43

3.4. A defesa do autor como um problema atinente aos direitos reais

O problema atinente ao reconhecimento dos chamados direitos patrimoniais do

autor está ligado ao fato de se saber se o Direito Romano admitia a existência de

direitos intelectuais. É certo que o livro, antes de sua publicação, era propriedade

de seu autor, o qual poderia, inclusive, mantê-lo inédito. No entanto, a indagação

que deve ser respondida refere-se à situação depois da venda ou da cessão da obra.

Parece-nos acertada, apesar da grande polêmica existente sobre o tema, a po-

sição de Lipszyc, a qual afirma que em Roma a “criação intelectual era regida pelo

direito de propriedade comum”, já que o autor, ao criar uma obra literária ou ar-

tística, produzia uma coisa, a qual poderia ser alienada por seu proprietário, como

qualquer outro bem material.44

Seja como for, a questão relativa à res incorporalis no Direito Romano está longe

de ser pacífica. Pode-se citar, nessa linha, o estudo de Marie Claude D’Ock, o qual

“atesta com robustez, que havia estruturas sociais e econômicas a demonstrar que a

noção de ‘propriedade literária’ em Roma estava presente, ainda que indiretamente

e em regiões localizadas”.45

A controvérsia surge, precipuamente, em razão do tratamento dado pelo Direito

Romano aos textos literários (scriptura) e às pinturas (pictura).

De acordo com Gaio, se alguém escreve em papiro ou em pergaminho, ainda que

com letras de ouro, o objeto pertence ao proprietário do papiro ou do pergaminho.

O mesmo não acontecia na hipótese de pintura, que pertencia ao pintor, a despeito

de ter sido feita em tela alheia.46 O jurisconsulto considerava de difícil explicação a

diversidade do tratamento dado ao tema (cuius diversitate vix idonea ratio reddi-

43 LEITE, Eduardo Lycurgo, Plágio e outros estudos em Direito de Autor, p. 116.

44 LIPSZYC, Delia, Derecho de autor y derechos conexos, p. 29.

45 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 43.

46 ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 16.

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Revista da Ajufe 106

tur), mas deixou claro que a tela é que acede à pintura.47

A ideia também foi acolhida por Justiniano, nas Institutas (553 a.C.), o que pode

ser observado no Livro Segundo, que trata “Da divisão das coisas” (Inst. 2.1.33 e Inst.

2.1.34).48 De fato, a solução acolhida pelo direito justinianeu é aquela que conside-

rava principal não a coisa de maior valor ou volume, mas sim aquela que imprimia

ao todo sua função social. Assim, no caso particular da pictura, os sabinianos con-

sideravam principal a tela, enquanto que os proculianos a obra pintada. Justiniano,

interrompendo a disputa, considerou que o quadro pertencia ao pintor, que deveria,

porém, indenizar o valor da tela.49

Em relação ao tema, ensina Moreira Alves que nas hipóteses de acessão de

coisa móvel a coisa móvel, “quanto à scriptura, sempre se julgou, no direito ro-

mano, que o escrito acede ao material sobre o qual se escreve; assim, se alguém

escrevesse em material alheio, o escrito passava, materialmente (e não literal-

mente),” ao dono da matéria.50

Já no caso de pintura sobre tela alheia, destaca o romanista que no direito clás-

sico havia divergência no tocante à solução do problema. Alguns entendiam que “as

tintas acediam à tela, e, assim, o proprietário dela se tornava proprietário do quadro;

outros eram de opinião contrária – o quadro passava à propriedade do pintor”. No

entanto, no fim, como já mencionamos, prevaleceu a tese de que o quadro passava à

propriedade do pintor, opinião seguida por Justiniano.51

Diante das soluções encontradas pelo Direito Romano, bem como com respal-

do nas lições de Moreira Alves, conclui Chinellato que “os romanos tinham plena

consciência da diferença entre suporte físico da obra e a criação intelectual que deu

origem à terminologia de fundamental importância para o direito autoral: corpus

mechanicum e corpus mysticum”.52

Em sentido contrário, Brunner assevera que “o direito romano não conhecia ne-

47 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 29.

48 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 29.

49 SANFILIPPO, Cesare, Istituzioni di diritto romano, p. 205.

50 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano, v. 1, p. 299.

51 ALVES, José Carlos Moreira, Direito Romano, v. 1, p. 299

52 CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 32.

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Revista da Ajufe 107

nhuma diferenciação entre a propriedade do objeto no qual um trabalho intelectual

estava incorporado e o trabalho em si mesmo”.53 Não é outro o entendimento de

Picard, o qual lembra que repugnava ao espírito eminentemente positivo e materia-

lista dos romanos a ideia de que uma “uma coisa puramente intelectual pudesse ser

objeto de um direito”.54

Levy Maria Jordão, com efeito, atento ao problema mencionado, adverte que “a

diversidade da solução das duas hipóteses não provinha da diferença entre o papel

e a escrita, entre o quadro e a tela”, mas sim decorria do princípio da praevalentia.55

Parece-nos, a despeito das inúmeras interpretações voltadas para a análise da

questão da pictura e da scriptura, que os romanos não estavam preocupados com

nenhum tipo de questionamento envolvendo uma suposta “propriedade intelectu-

al”, mas sim tinham em vista apenas a resolução do problema da atribuição da pro-

priedade material em caso de escrito ou de pintura feitos em bens alheios.56

4. Considerações finais

A partir dessas premissas, é fácil de se constatar que o Direito de Autor não

existia em Roma e muito menos na Grécia. Em Roma, apenas de forma embrio-

nária poderia ser assegurada a proteção de alguns aspectos da personalidade

do autor, que, não obstante a ausência de registro histórico, poderiam ser tute-

lados pela actio iniuriarum.

Ainda, ao que tudo indica, os romanos tinham consciência da distinção entre

o corpus mechanicum e o corpus mysticum, porém, isso não outorgou à res

53 Tradução livre: “Das römische Recht kannte keine Differenzierung zwischen dem Eigen-tum an dem Gegenstand, in dem ein geistiges Werk verkörpert war und dem Werk selbst” (BRUNNER, Richard, Urheber- und leistungsschutzrechtliche Probleme der Musikdistribution im Internet: unter besonderer Berücksichtigung der Richtlinie 2001/29/EG und ihrer Umset-zung in deutsches Recht, p. 13).

54 PICARD, Edmond, Le Droit Pur, p. 93.

55 JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 14.

56 Nesse sentido, também se manifesta Rehbinder, para quem a disputa entre os sabinianos e os proculianos em torno da pintura ou da escrita feita em objeto alheio diz respeito me-ramente ao problema da aquisição da propriedade de um novo bem, que surge como decor-rência de uma especificação, não tendo a discussão nenhuma relação com o direito aos bens intelectuais (REHBINDER, Manfred, Urheberrecht, p. 7).

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Revista da Ajufe 108

incorporalis uma proteção patrimonial. E não poderia ser diferente, pois seria

bastante difícil pretender que um povo aristocrático, pragmático e guerreiro,

preocupado com questões concretas, pudesse ter reconhecido ao autor o direi-

to exclusivo de reprodução de sua obra, bem como a remuneração pela produ-

ção de cada novo exemplar dela.

Assim sendo, a despeito de o comércio de obras intelectuais ter se desenvolvido

muito em Roma, os autores não obtinham grande compensação financeira pelos

seus trabalhos, pois acabavam sendo explorados pelos editores e comerciantes. Por

isso, pode-se afirmar que a glória e o reconhecimento dos concidadãos impulsio-

navam a produção de obras do espírito, ficando o lucro com sua exploração rele-

gado a um segundo plano.

Por conseguinte, acreditamos que, não obstante a importância dos desenvolvi-

mentos ocorridos na Antiguidade Clássica, os direitos autorais não foram reconhe-

cidos nas sociedades grega e romana, pois o que existiu foi apenas uma proteção

embrionária e fragmentada de alguns pontos da matéria, que não pode ser compa-

rada com a tutela posteriormente outorgada pelo Estatuto da Rainha Ana (1710) e

pelos decretos franceses de 1791 e 1793.

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Revista da Ajufe 111

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Direito, Soberania e Efetividade Jurídica

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Reis FriedeDesembargador Federal, ex-Membro do Ministério Público e Professor-Adjunto

da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Mestre e Doutor em Direito, é autor de inúmeras obras jurídicas, dentre as quais

“Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica”, 8ª edição, Forense/ GEN, 2011, RJ (256 ps.), “Vícios de Capacidade Subjetiva do Julgador: Do

Impedimento e da Suspeição do Magistrado nos Processos Civil, Penal e Trabalhis-ta”, 6ª edição, Forense, 2010, RJ (532 ps.) e Lições Esquematizadas de Introdução

ao Estudo do Direito, Ed. Freitas Bastos, 2ª edição, 2013, RJ (100 ps.).

Resumo: O presente artigo analisa o direito como uma realidade ficcio-

nal desprovido de qualquer efetividade própria. O direito somente se trans-

forma em uma realidade efetiva na presença de elementos de concreção que

são estranhos à realidade jurídica. Nesse sentido, o artigo tece considera-

ções sobre o Estado como Principal Elemento de Concreção do Direito, atra-

vés da efetivação da Soberania Nacional.

Palavras-chave: Direito. efetividade. realidade jurídica e soberania.

Abstract: this article examines the law as a fictional reality devoid of

any own effectiveness. The law only becomes an effective reality in the

presence of concretion elements that are foreign to the legal reality. In this

sense, the article reflects on the state as Key Element of Concretion of the

Law, through the enforcement of National Sovereignty.

Keywords: Law. effectiveness. legal reality and sovereignty.

1. Introdução

Sobre o direito, transcendendo sua noção, conceituação e finalidade so-

cial, deve ser assinalado, - em sublime ratificação à doutrina mais abalizada

sobre o tema -, que este, isoladamente considerado, se constitui em uma ine-

xorável e singela realidade ficcional, posto que, reconhecidamente, despro-

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Revista da Ajufe 115

vido de qualquer efetividade inerente ao mundo fático.

Por efeito, é cediço concluir que o direito somente se transmuda em uma

realidade efetiva na presença de indispensáveis elementos de concreção

que, em princípio, são completamente estranhos à realidade jurídica.

Tais elementos, de nítido caráter instrumental, revelam-se como autên-

ticos mecanismos de conversão, permitindo que o direito, a partir de sua

inerente percepção abstrata originária, possa se exteriorizar através de uma

consequente percepção concreta derivada que viabilize, em última análise, a

imprescindível sinergia à sua própria previsão teórica de sanção, provendo-

-lhe o seu indispensável fator de credibilidade.1

1 É a situação clássica (ainda que, nesse caso, meramente ilustrativa) de um garoto que, na inerente fragilidade física de seus 10 anos de idade, após comprar (com seu dinheiro) um sorvete – e, portanto, titularizar um Direito de propriedade e de posse sobre o mesmo –, é violentamente abordado por um adolescente de 16 anos (necessariamente provido de maior robustez atlética) que, através do simples uso da ameaça ou da própria força, lhe exige o sorvete, tomando-o, por fim, independentemente da insistente alegação, por aquele primeiro menor, de que ele é titular de indiscutíveis direitos sobre o objeto jurídico, de cuja posse, aliás deixou, pelo uso da força, de ser detentor.Nessa situação, o Direito revela-se, de forma insofismável, como uma inconteste realidade ficcional, posto que, não obstante a sua expressa previsão de sanção para a exata hipótese narrada, ele, por si só, não possui as condicionantes operativas que o tornam efetivo, dotan-do, em último grau, o Direito de uma necessária concretude.Todavia, o resultado final do caso descrito pode ser completamente diferente, na hipótese de o garoto de 10 anos ter, por exemplo, um irmão de 22 anos que, chamado em seu socorro, no exato momento da abordagem ameaçadora do adolescente de 16 anos, comparece ime-diatamente para fazer valer o direito titularizado por aquele, e de cuja simples alegação de existência não foi suficiente para inibir a ação antijurídica do agente.Ainda assim, é importante consignar que, - de forma diversa da relação direta entre o garoto de 10 anos e o adolescente de 16 anos, em que necessariamente este é maior e mais forte que aquele -, o irmão de 22 anos (inobstante possuir a mesma diferença de idade) não será obrigatoriamente capaz de impor o direito ao adolescente de 16 anos, considerando que, em uma situação real, ainda que em caráter excepcional, o rapaz de 22 anos - eventualmente in-telectualizado e avesso a atividades físicas - pode não ser páreo para um possível adolescente de 16 anos, que seja praticante de fisiculturismo e iniciado em técnicas de lutas marciais.Nessa hipótese particular, não obstante a presença de um indiscutível elemento de concreção, mais uma vez o Direito continuará em seu âmbito ficcional, deixando de se projetar, no mun-do real, de forma sinérgica e efetiva.No exemplo ilustrativo, que nada mais é do que uma analogia metafórica, vale assinalar que o irmão mais velho representa, sobretudo (ainda que não exclusivamente), o Estado, como instrumento por excelência de efetivação jurídica, sendo certo, nesse prisma analítico, que a simples presença do Estado, conforme assinalado, não é por si só fator suficiente e derradei-ro para prover a necessária concretude ao Direito, sendo indispensável a existência do deno-minado Estado forte, ou seja, dotado de recursos e de disposição política para fazer valê-los.

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2. O estado como principal elemento de concreção do direito

Muito embora o Estado não seja o único elemento de concreção do Direi-

to, - considerando que, em princípio, toda forma de exteriorização de poder

efetivo seja, em tese, capaz de fazer valer previsões abstratas de ordenação -,

é, sem dúvida, o Estado (e, em particular, o Estado forte)2 a principal geratriz

de produção e efetivação do Direito, o que é realizado, em última instância,

através do elemento componente da soberania, na qualidade de virtual ins-

trumento de vinculação político-jurídica e parcela, por excelência, de forma-

ção e irradiação de poder político e, nesse diapasão analítico, responsável

pela necessária concreção do próprio Estado.3

2.1. Soberania como pressuposto de existência do Estado e do Direito

Soberania, em termos objetivos, se traduz através de um conceito extre-

mamente complexo. Trata-se de uma expressão que pode ser traduzida si-

multaneamente por intermédio de duas diferentes classes gramaticais, ou

seja, a classe substantiva e a adjetiva. No sentido material (substantivo), é

o poder que tem a coletividade humana (povo) de se organizar jurídica e

politicamente (forjando, em última análise, o próprio Estado) e de fazer va-

ler no seu território a universalidade de suas decisões. No aspecto adjetivo,

por sua vez, a soberania se exterioriza conceitualmente como a qualidade

2 Estado Forte, por definição, como veremos mais detalhadamente, em capítulo próprio, é, em última análise, o Estado que edita e faz valer o direito positivo, assegurando não somente a ple-na realização prática de sua normatização, como bem assim a universalidade de suas decisões. O conceito técnico de Estado Forte, portanto, não guarda qualquer relação com a concepção estrutural de Estado Autoritário ou Totalitário, como igualmente não traduz qualquer neces-sária simetria com a noção básica de Estado Democrático, sendo certo que o autoritarismo, o totalitarismo e mesmo a democracia - na qualidade de regimes políticos - são apenas formas diferentes de exteriorização do poder estatal, inerentes ao Estado Forte.Não é por outra razão que é sempre lícito concluir inexistir verdadeira democracia - ou seja, democracia material (dotada de conteúdo substancial) - em Estados Fracos (ou seja, naqueles desprovidos de capacidade de realizar, em termos práticos e efetivos, o direito democrático legis-lado), caracterizando o que convencionalmente designamos por democracia formal (ou aparente).

3 Nesse especial aspecto, é forçoso concluir que, como numa autêntica espiral de derivação, é a soberania, em último grau, o elemento maior de caracterização do Estado, capaz de via-bilizar a essência da projeção do poder político e, em consequência, a própria efetividade do Direito, transformando-o em uma realidade perceptível, capaz de prover, em sua plenitude, a sua função precípua de ordenação político-jurídica e de sinérgica projeção comportamental.

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suprema do poder, inerente ao Estado, como Nação política e juridicamente

organizada.4

“O primeiro aspecto importante a considerar é o que

se refere ao conceito de soberania. Entre os autores

há quem se refira a ela como um poder do Estado, en-

quanto outros preferem concebê-la como qualidade do

poder do Estado, sendo diferente a posição de KELSEN,

que, segundo sua concepção normativista, entende a

soberania como expressão da unidade de uma ordem.

Para HELLER e REALE ela é uma qualidade essencial do

Estado, enquanto JELLINEK prefere qualificá-la como

nota essencial do poder do Estado. RANELLETTI faz

uma distinção entre a soberania, com o significado de

poder de império, hipótese em que é elemento essen-

cial do Estado, e soberania com o sentido de qualidade

do Estado, admitindo que esta última possa faltar sem

que se desnature o Estado, o que, aliás, coincide com

a observação de JELLINEK de que o Estado Medieval

não apresentava essa qualidade” (DALMO DE ABREU

DALLARI, 1994, p. 67).

No sentido substantivo (que alguns autores salientam como o princi-

pal), a soberania é também concebida, em termos políticos, como o poder

incontrastável de querer coercitivamente e de fixar competências (soberania

como elemento de expressão última da plena eficácia do poder); em termos

jurídicos, como o poder de decidir em última instância sobre a eficácia da

4 Deve ser observado que, pelo menos inicialmente, a maioria dos estudiosos do tema não conseguiu perceber o inconteste aspecto binário da caracterização conceitual da soberania, optando, por efeito, por traduzi-la ora por seu aspecto substantivo (acepção de poder efe-tivo), ora por seu aspecto adjetivo [como qualidade inerente (e essencial) do poder estatal]. RANELLETTI parece ter sido, nesse particular, o primeiro autor a arranhar a concepção con-temporânea de soberania, permitindo a dupla tradução do vocábulo como poder (elemento essencial de caracterização do Estado) e como qualidade inerente ao Estado (embora, em ter-mos mais corretos, a soberania deva ser percebida, em seu aspecto adjetivo, como qualidade do próprio poder e não do Estado, posto que todo Estado é, em tese, soberano).

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normatividade jurídica; e, em termos culturais (que alguns autores, como MI-

GUEL REALE, preferem denominar concepção política, mas que, em essên-

cia, é uma tradução mista político-jurídica), como o poder de organizar-se

política e juridicamente e de fazer valer, no âmbito de seu território (prin-

cípio da aderência territorial), a universalidade de suas decisões no “limite

dos fins éticos de convivência” (REALE, 1960, p. 127) ou, como preferimos,

no limite da legitimidade (consensus) imposta pela coletividade humana ori-

ginária (povo).

Na expressão básica, de caráter material, a soberania pode ser ainda con-

siderada como o pressuposto fundamental do Estado: é o poder de império

(poder sobre todas as coisas no território pátrio) e o poder de dominação (po-

der sobre todas as pessoas no território pátrio), geradores, por sua vez, de um

autêntico corolário de direitos e obrigações. É, por fim, o poder máximo do

Estado, efetivando-se na organização política, social e jurídica de um Estado.5

Para alguns autores em particular (como CALMON, 1942, p. 177 e MALUF,

1995, ps. 29-30), o conceito de soberania está intrinsecamente relacionado

ao conceito de Estado perfeito, como qualidade inerente ao mesmo (Estado

soberano). Todavia, o mais correto é entender o fenômeno em questão como

inconteste elemento de formação (ou caracterização) do Estado que possui,

desta feita, dois âmbitos distintos de atuação: o interno (de caracterização

institucional) e o externo (de projeção no cenário internacional). Interna-

mente, é o direito de criar o governo, as instituições e a própria Constitui-

5 Deve ser consignado, por oportuno, que os conceitos de coisa e pessoa são excludentes no direito. Para o mundo jurídico, coisa é tudo aquilo que não é pessoa, ao passo que pessoa é tudo aquilo que não é coisa. Como a soberania, em seu aspecto substantivo, engloba o poder de império (sobre as coisas), e o poder de dominação (sobre as pessoas) abrange, por definição conclusiva, o poder sobre todos os aspectos físicos e humanos no território pátrio. Vale assinalar que alguns autores elencam a soberania como virtual expressão-origem, afir-mando que a mesma não pode ser, nesse sentido, precisamente conceituada, posto que, em sua essência, o termo soberania representa a explicação inicial de diversos outros conceitos jurídicos (e, para certos estudiosos, também políticos) que encontram, desta feita, o seu ine-rente fundamento, em última análise, na própria soberania.Analogicamente, segundo essa doutrina, soberania representaria para o direito o mesmo que a expressão Deus (como entidade abstrata originária) para a vida (e a consequente explica-ção de sua origem, seu fundamento, seu objetivo etc.), o que, por si só, invalidaria qualquer tentativa de maiores explicações e análises sobre o vocábulo. Ainda nesse contexto, esses estudiosos chegam a comparar as diversas teorias justificativas da soberania com as várias religiões existentes no planeta.

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ção (por intermédio do denominado Poder Constituinte). Externamente, é

o poder absoluto aderente ao território que propiciou forjar; no direito in-

ternacional público, o conceito basilar de não intervenção entre os Estados

(soberanos) no contexto mundial.6

6 Vale assinalar que alguns autores elencam a soberania como virtual expressão-origem, afirmando que a mesma não pode ser, nesse sentido, precisamente conceituada, posto que, em sua essência, o termo soberania representa a explicação inicial de diversos outros con-ceitos jurídicos (e, para certos estudiosos, também políticos) que encontram, desta feita, o seu inerente fundamento, em última análise, na própria soberania.Analogicamente, segundo essa doutrina, soberania representaria para o direito o mesmo que a expressão Deus (como entidade abstrata originária) para a vida (e a consequente explica-ção de sua origem, seu fundamento, seu objetivo etc.), o que, por si só, invalidaria qualquer tentativa de maiores explicações e análises sobre o vocábulo. Ainda nesse contexto, esses estudiosos chegam a comparar as diversas teorias justificativas da soberania com as várias religiões existentes no planeta.

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2.2. Significado do termo

Soberania, do latim super omnia ou de superanus ou supremitas (caráter

dos domínios que não dependem senão de Deus), significa, vulgarmente, o

poder supremo e, nesse aspecto, incontestável do Estado, acima do qual ne-

nhum outro poder se encontra, ou mesmo tangencia.

2.3. Os variáveis conceitos de soberania

A soberania, como bem observa PAUPÉRIO (1997, ps. 3-4), “é a causa

formal do Estado; o que não impede, no entanto, que existam outras formas

menores de associações humanas, como, por exemplo, a que se observa na

família, com sua potestas dominativa ou econômica. É preciso convir, po-

rém, que a potestas dominativa do pai de família é fundamentalmente pri-

vada, enquanto a potestas política do Estado é, por sua essência, pública”.

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A soberania “constitui, assim, para muitos, verdadeira diferença especí-

fica do Estado, a característica histórica e racional que distingue o poder

político” (MACHADO PAUPÉRIO, ob. cit., p. 3).

GERBER definiu-a como um poder de dominação (GERBER apud ADOLF

POSADA, 1915, ps. 76 e 213). Já ORBAN define-a como a plenitude do poder

público, a suprema potestas (apud VIVEIROS DE CASTRO, 1924, p. 47). SANTI

ROMANO diz ser “o caráter que distingue o Estado de todas as pessoas terri-

toriais que constituem o seu gênero próximo” (1931, p. 53), e CALMON con-

ceitua a soberania como caracterização do Estado perfeito (ob. cit., p. 177).

No sistema da técnica jurídica, diz CHIMIENTI que “a soberania é qualifi-

cada como fonte da capacidade jurídica do Estado” (1932, p. 27).

MALUF conceitua soberania como “uma autoridade superior, que não

pode ser limitada por nenhum outro poder” (ob. cit., p. 29).

SINAGRA afirma: “Concebido o Estado como pessoa jurídica, a soberania

pertence-lhe como um direito subjetivo, mas a soberania, antes de ser um

direito, é um poder de fato, força material constringente” (apud PAUPÉRIO,

ob. cit., p. 5).

Segundo HAURIOU, o conceito de soberania, sob o ângulo da concep-

ção política, consiste na ideia da independência fundamental do poder do

Estado. A soberania-independência é o conceito negativo, pois limita-se a

afastar do poder toda e qualquer ideia de limites, sem atender ao conteúdo

positivo do poder (1993, ps. 16-17).

Outro, porém, é o conceito quando uma lei básica estabelece, por exem-

plo, que “a soberania reside na Nação”, pois, nesse caso, impõe-se a con-

cepção política, uma vez que se atende não só ao poder organizado como

também à fonte, à maneira de constituir-se o poder. Soberania, então, é so-

berania política, exprimindo o fenômeno do poder desde o seu desdobra-

mento como força social, até a sua caracterização como direito subjetivo do

Estado constituído.7

7 A maioria das Constituições limita-se a declarar que a soberania é do povo ou da Nação, ou que o poder político emana do povo e em seu nome é exercido, sem maior preocupação técnica. Digno de especial menção é o art. 1º da Constituição da Irlanda, que frisa bem o sig-nificado político da soberania: “La nation Irlandaise proclame par la présente Constitution son droit inalénable, imprescriptible et souve- rain de choisir la forme de gouvernement qui lui agréera, de determiner ses rapports avec les autres nations, de développer sa vie politique,

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“A soberania (majestas, summum imperium) signi-

fica, portanto, um poder político supremo e indepen-

dente, entendendo-se por poder supremo aquele que

não está limitado por nenhum outro na ordem inter-

na; e por poder independente aquele que na sociedade

internacional não tem de acatar regras que não sejam

voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com

os poderes supremos dos outros povos.

Do que ficou exposto, resulta que poder político e

soberania não são a mesma coisa. A soberania é uma

forma do poder político, correspondendo à sua ple-

nitude: é um poder político supremo e independente.

Se uma coletividade tem liberdade plena de escolher

a sua Constituição e pode orientar-se no sentido que

bem lhe parecer, elaborando as leis que julgue conve-

nientes, essa coletividade forma um Estado soberano”

(CAETANO, 1972, p. 132).

Hodiernamente, novos autores surgem com outras ideias, outros valores,

outros conceitos, em face de um processo normal de desenvolvimento, sob

todos os aspectos. Porém, sob qualquer ângulo analítico, não há como dei-

xar de se reconhecer a soberania como o instrumento fundamental de con-

creção do direito, atribuindo-lhe, - através do poder estatal -, a necessária

efetividade.

économique et culturelle, conformément à son génie propre et à ses traditions”. (Trad. adota-da por GUETZÉVITCH, 1938, p. 337.)

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2.4. Titularidade (e justificação) da soberania

No que concerne à titularidade da soberania e sua consequente justifica-

ção, basicamente duas diferentes teorias se apresentam buscando impor a

explicação básica do fenômeno, em sua origem: as chamadas teorias teocrá-

ticas (de direito divino sobrenatural e providencial) e as denominadas teorias

democráticas (soberania do povo, soberania da Nação e soberania do Estado).

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Além dessas, alguns autores, como MALUF e PAUPÉRIO, elencam a teoria

das escolas alemã e austríaca (JELLINEK e KELSEN que, em certa medida, se

confundem com a teoria da soberania do Estado), a teoria negativista da so-

berania (DUGUIT), a teoria realista e a teoria institucionalista da soberania.

As teorias teocráticas, de modo geral, partem do pressuposto de que, di-

reta (direito divino sobrenatural) ou indiretamente (direito divino providen-

cial), a titularidade da soberania pertence ao monarca, como uma autêntica

concessão divina.

As teorias democráticas, por sua vez, reconhecem a inconteste titularida-

de do povo, ainda que adstrito a um contexto evolutivo que pode ser con-

cebido desde a ideia primitiva de população (teoria da soberania do povo),

passando pela noção de agrupamento com efetivo vínculo de nacionalida-

de (teoria da soberania da Nação), até chegar à concepção contemporânea

(inaugurada no século XX) de povo como conjunto de nacionais, institutiva-

mente considerado (teoria da soberania do Estado).

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2.5. Características (atributos) da soberania

No que concerne às características basilares da soberania (que alguns

autores denominam atributos), resta afirmar que a quase unanimidade dos

autores reconhece que a soberania é sempre una (posta a impossibilidade de

coexistência, no mesmo espaço territorial-estatal, de duas soberanias distin-

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tas), indivisível (considerando que se aplica à universalidade dos fatos polí-

tico-jurídicos), inalienável (tendo em vista que uma vez concebida não pode

ser desconstituída), imprescritível (no sentido de que não se encontra condi-

cionada a termo temporal) e aderente ao território estatal e ao vínculo nacio-

nal [posto que concebida a partir da existência do elemento humano (povo)

e do elemento físico (território)], e que corresponde, sob a ótica substantiva,

a um poder que é necessariamente supremo (na acepção de sua incontes-

te superioridade), originário (tendo em vista que nasce concomitantemente

com o próprio Estado, como elemento fundamental desse), ilimitado (posto

que não encontra restrições objetivas), incondicionado (considerando que

não se encontra adstrito a nenhuma regra ou limitação anterior), intangível

(no sentido de que não é alcançado por outro poder, independentemente de

sua natureza) e coativo (tendo em vista que o poder da soberania é exercido

por ordem imperativa e através de instrumentos de coação).

DUGUIT (1926, p. 116), acrescendo à relação de atributos formalizada

por ZANZUCCHI (1948, p. 21), também assinala que a soberania se traduz

em um poder de vontade subordinante (à medida que o poder soberano se

relaciona com outros poderes através de uma relação entre subordinantes

e subordinados) e em um poder de vontade independente (que, em essência,

amplia a concepção clássica do poder incondicionado para a esfera inter-

nacional, impedindo que qualquer convenção seja automaticamente obriga-

tória para o Estado não signatário).

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3. Efetivação da soberania e concretização objetiva do direito e da

realidade jurídica

Destarte, a soberania constitui-se, desta feita, por excelência, no elemen-

to abstrato – basilar e sinergético – de formação do Estado, que se cristali-

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za, em última instância, através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto

de nacionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde

a vontade individual ceda espaço para a imposição da vontade coletiva, por

intermédio da caracterização última de um verdadeiro Poder Constituinte e de

sua normatização consequente, ou seja, o Direito em sua concepção efetiva.

Não é por outra razão, portanto, que o conceito próprio e específico de

Poder Constituinte, na qualidade de poder originário e institucionalizante,

é comumente sintetizado como a expressão máxima da soberania nacional,

numa evidente alusão ao objetivo último desta modalidade suprema de exte-

riorização teórica do poder político que é exatamente a de transformar a Na-

ção – dotando-a de uma organização político-jurídica fundamental (Cons-

tituição) e instrumentalizando-a normativamente – em um efetivo Estado.8

A soberania, por efeito consequente, caracteriza, em última instância, o

próprio Estado, atribuindo-lhe a capacidade de forjar um direito interno

ou, em outras palavras, dotando-o de instrumentos de regulação inerentes

à vida de seus diversos integrantes, em princípio de forma legítima (consen-

sual), ainda que, em sua ação prática, de modo compulsório.9

8 Não podemos nos esquecer, em harmonia com as teorias mais abalizadas sobre o tema, de que o Estado se constitui na soma de três elementos básicos, ou seja, povo (elemento huma-no), território fixo (elemento físico ou geográfico) e soberania (elemento abstrato de concre-ção), sendo certo que, de forma simples, o Estado representa a Nação dotada de uma Cons-tituição, ou seja, de uma organização político-jurídica fundamental, em que é estabelecido o direito nacional em sua dimensão maior. Não é por outra razão que DEL VECCHIO entende que, além do povo e do território, o que caracteriza o Estado é a existência de vínculo jurídico.“Quanto às notas características do Estado Moderno, que muitos autores preferem denomi-nar elementos essenciais por serem todos indispensáveis para a existência do Estado, existe uma grande diversidade de opiniões, tanto a respeito da identificação quanto a do número. (...)Para DEL VECCHIO, em especial, além do povo e do território, o que existe é o vínculo jurídico, que seria, na realidade, um sistema de vínculos, pelo qual uma multidão de pessoas encontra a própria unidade na forma do direito. (...)” (DALLARI, DALMO DE ABREU. 1994, ps. 60-61)Por outro lado, o Estado também se apresenta como uma entidade com fins precisos e deter-minados, razão pela qual alguns autores incluem, como uma espécie de quarto elemento de caracterização do Estado, a finalidade (A. GROPPALLI), considerando, sobretudo, a função es-tatal precípua de regular globalmente, em todos os seus aspectos, a vida social da comunida-de, visando à realização do bem comum (cf. PALLIERI, GIORGIO BALLADORE. 1955, p. 10)

9 De fato, muito embora o Direito concebido pela função legislativa do Estado seja consen-sual, ou seja, resultado da vontade geral manifestada através dos representantes do povo em assembleia, ele também é obrigatório (uma vez publicado), independentemente da vontade de cada indivíduo, em face da prevalência, que passa a existir, da comunidade estatal sobre os seus componentes, individualmente considerados.

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Todavia, como a soberania também se constitui em uma inconteste abs-

tração, o direito estatal que dela deriva para realmente valer, de maneira

genérica vinculativa e obrigatória, necessita de algum tipo de elemento con-

creto, que tenha a capacidade de viabilizar, sob o ponto de vista real (factual)

e efetivo, a indispensável concreção dos já mencionados poder de império

(poder sobre todas as coisas no território estatal) e do denominado poder

de dominação (poder sobre todas as pessoas no território estatal), inerentes

ao poder político derivado da soberania. Este elemento de efetivação se tra-

duz, em última análise, pela sinérgica existência de uma força coerciva de

natureza múltipla (política, econômica, militar e/ou psicossocial), mas que,

de modo derradeiro, se perfaz por meio de uma inexorável existência de ca-

pacidade política no sentido amplo da expressão.

Desta feita, é sempre lícito concluir, neste contexto analítico restritivo, que

a soberania (e o direito dela decorrente), embora inicialmente estabelecida por

consenso, somente se efetiva, de modo amplo e pleno, através do necessário

respaldo de uma capacidade de força efetiva, em mãos do Estado, que seja

facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunidade

social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção reco-

nhecida e inexoravelmente concreta e a concepção ficcional (originária) do

direito, por seu turno, em uma realidade universal e perceptível.10

“A lei deve ter autoridade sobre os homens e não os

homens sobre a lei.”

[PAUSÂNIAS - Geógrafo grego (4 a.C. - 65 d.C.)]

Assim, de modo objetivo, é possível analisar didaticamente o que se con-

vencionou denominar de anatomia da soberania, desvendando os seus va-

riados graus de exteriorização (desde o sentido mais abstrato até o mais

concreto) e, sobretudo, caracterizando conceitualmente, em síntese, os vo-

10 Não é por outro motivo que, nos Estados desprovidos de instrumentos de força coativa real, onde inexiste a garantia derradeira da imposição do direito estatal interno, é sempre permeável a indesejáveis possibilidades, tais como a do estabelecimento marginal (e paralelo ao Estado) de grupos de indivíduos que, através do uso da força, tornem toda a sociedade organizada refém de sua vontade (não legítima), independentemente da natural contrariedade que tal fato necessariamente acarrete em termos fáticos.

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cábulos poder (como elemento teórico de exteriorização da soberania abs-

trata, em que a mesma é revestida de autoridade, faculdade e possibilidade

de ação, forjando a sua concepção teórica) e força (na qualidade de elemento

efetivo de concreção do poder, em que esse é dotado de vigor e robustez em

termos práticos, forjando a concepção da soberania em termos efetivos).

Destarte, é exatamente nesse contexto que se enquadra a concepção clássi-

ca de que o Estado é o verdadeiro e principal (senão único) detentor do “mo-

nopólio do uso (legítimo) da violência”, permitindo dotar a positividade de

seus regramentos de plena e necessária efetividade, ou, em outras palavras,

transformando o direito positivo (legislado) em direito efetivo (aplicado).

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4. Estados Fortes e Estados Fracos

Muito embora a doutrina tradicional não comente, pelo menos de modo

mais detalhado, a questão da força imperativa do Estado, optando, muitas ve-

zes, por simplesmente ignorar a moderna tendência política de se classifica-

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rem os Estados contemporâneos em Estados Fortes e em Estados Fracos, é

extremamente importante, na atualidade, enfrentar essa questão que, de um

modo muito especial, também se encontra associada à formação da concep-

ção técnico-jurídica o próprio Estado e, em particular, da democracia material.

Neste diapasão, vale registrar, inicialmente, que a noção mais elementar

de Estado Forte se encontra irremediavelmente associada ao conceito amplo

de Estado de legalidade, no exato sentido não só da efetiva constatação da

presença de um sólido poder político, mas também da sinérgica disposição de

utilizá-lo, de acordo com os ditames da ordem jurídico-política estabelecidos

e, particularmente, em favor de sua completa concretização.

Como toda democracia material (substantiva) necessariamente caracteriza-se

pelo binômio associativo da legitimidade/legalidade – incluindo, através desse úl-

timo atributo, a ideia da força imperativa estatal –, é lícito (e razoável) concluir

que todo verdadeiro Estado democrático de direito se constitui inexoravelmente

em um Estado Forte, não obstante ser igualmente verdadeira a máxima segundo a

qual nem todo Estado reputado forte traduzir necessariamente um regime político

genuinamente democrático, considerando a ausência de insuperável compromis-

so desse tipo de Estado com a questão ampla da legitimidade.

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4.1. Princípio da autoridade, autoritarismo e ausência de autoridade

Por outro prisma, também resta obrigatório deduzir, para um melhor entendi-

mento dos conceitos de Estado forte e Estado fraco, que o princípio da autoridade

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não possui qualquer correspondência com a noção conceitual de autoritarismo e

muito menos com a simples ideia de ausência de autoridade.

Em essência, o denominado princípio da autoridade é consequência natural da

plena legitimidade do regime político democrático na construção de uma ordem

jurídico-política e de sua sinérgica aplicação rigorosamente de acordo com as re-

gras previamente estabelecidas, forjando, em última análise, a própria concepção

do Estado democrático material, que associa, entre outros, no contexto do prin-

cípio da autoridade, a natureza nitidamente vinculativa do binômio poder-dever.

O autoritarismo, neste diapasão analítico, corresponde a apenas um viés es-

tritamente legalista do Estado, caracterizando, em sua tradução ampla, o que co-

mumente ocorre, em diferentes graus, nos Estados Fortes rotulados no âmbito

da ciência política como democracias formais legalistas, Estados autoritários e

Estados totalitários.

Finalmente, a acepção técnico-jurídica da ausência (parcial ou total) de auto-

ridade, por sua vez, traduz-se pela falta de capacidade e/ou determinação política

para impor a ordem jurídico-política estabelecida legitimamente (como no caso

das democracias formais fundadas na legitimidade) ou imposta pela força (como

na hipótese dos Estados autoritários e totalitários instáveis ou protegidos), carac-

terizando os chamados Estados Fracos.

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5. Conclusões

Conforme expressamente registrado, o Direito, transcendendo sua noção, con-

ceituação e finalidade social, constitui-se em uma inexorável e singela realidade

ficcional, posto que, reconhecidamente, é desprovido de qualquer efetividade ine-

rente ao mundo fático, sendo certo afirmar que o Direito somente se transmuda

em uma realidade efetiva na presença de indispensáveis elementos de concreção.

Embora o Estado não seja o único elemento de concreção do Direito, é, sem

dúvida, a sua principal geratriz de produção e efetivação, o que é realizado através

de seu elemento componente (fundamental) chamado soberania.

A soberania, por sua vez, constitui-se no elemento abstrato de formação do Es-

tado, que se cristaliza através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto de na-

cionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde a vontade

individual necessariamente acabe por ceder espaço para a imposição da vontade

coletiva, por intermédio da caracterização última de um sinérgico Poder Consti-

tuinte, criador do próprio Estado e, particularmente, normatizador de um direito

dotado do necessário atributo de efetividade.

Desta feita, é sempre lícito concluir que a soberania (e o direito dela decorren-

te), embora inicialmente estabelecida por consenso, somente se efetiva através do

necessário respaldo de uma capacidade de força efetiva, em mãos do Estado, que

seja facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunida-

de social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção reco-

nhecida e inexoravelmente concreta e a concepção ficcional do direito, por seu

turno, em uma realidade universal, sobretudo, perceptível no âmbito da “realidade

jurídico-factual”.

6. Referências bibliográficas

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Revista da Ajufe 137

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Page 138: Revista Direito Federal nº 94
Page 139: Revista Direito Federal nº 94

A execução de decisões judiciais contra a administração pública em

uma perspectiva comparada

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Revista da Ajufe 140

Alexandre da Silva ArrudaJuiz Federal Titular da Vara Federal de Magé-RJ; mestrando em Justiça

Administrativa na Universidade Federal Fluminense

Resumo: Este texto trata da execução de decisões judiciais contra a Ad-

ministração Pública no direito comparado, em especial na Alemanha, nos

Estados Unidos da América e na Argentina, através da análise da evolução

doutrinária, legislativa e jurisprudencial, para ao final extrair paradigmas e

conclusões aplicáveis ao direito brasileiro.

Sustenta que o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos não

é levado ao extremo nos países estudados, os quais permitem a constrição

judicial de bens públicos, em dadas condições, nas hipóteses de não cum-

primento voluntário de sentença pecuniária pela Administração, com funda-

mento no princípio da tutela judicial efetiva.

Afirma que o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos sempre

foi tido como um dogma pela doutrina e jurisprudência brasileiras, mas que

o panorama se modificou a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribu-

nal Federal nas ADI 4357, 4372, 4400 e 4425, que julgou inconstitucional o

regime especial de parcelamento previsto no art. 97 do ADCT.

Palavras-chave: Administração pública, execução forçada, tutela judicial efe-

tiva, direito comparado, precatório judicial, impenhorabilidade, bens públicos.

1. Introdução

A execução de decisões judiciais proferidas contra a Administração Pública

recebe diferentes abordagens de acordo com o ordenamento jurídico analisado,

como naturalmente ocorre sempre que se estudam distintos países, cada um com

institutos, história e cultura próprios.

Contudo, o traço comum que se observa no direito comparado é a busca cada

vez maior pela efetividade no cumprimento destas decisões, como forma de se

assegurar o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo.

Nesta perspectiva, a garantia de uma tutela judicial efetiva, consagradora não

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Revista da Ajufe 141

apenas do acesso formal aos tribunais, mas sobretudo do efetivo controle dos

atos do Poder Público, vem se tornando o elemento central da ordem constitucio-

nal de diversos países, em especial da Europa, tais como Alemanha, França, Itália,

Grécia, Portugal e Espanha.

Tanto é assim que a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, adotada no

ano 2000 pelo Parlamento Europeu, consagra o direito a uma tutela jurisdicional

efetiva em seu artigo 47.1 Esta Carta passou a ter força vinculante no direito co-

munitário europeu após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2007.

No continente americano também verificamos uma atenção cada vez maior a

este princípio, inclusive no Brasil, como se mostrará neste trabalho.

Pode-se afirmar, portanto, que o desenvolvimento do princípio da tutela efe-

tiva vem impondo a construção de soluções legislativas e jurisprudenciais ten-

dentes a assegurar uma efetividade cada vez maior no cumprimento de decisões

judiciais em face da Administração Pública, o que, em uma análise mais abran-

gente, contribui para promover o respeito aos valores essenciais à existência do

Estado de Direito.

Com essas considerações, passa-se a analisar a sistemática adotada por dife-

rentes países, para que ao fim possamos extrair conclusões e paradigmas que nos

permitam entender o atual estágio do tema no direito brasileiro.

2. A execução contra a Administração no Direito alemão

2.1 Antecedentes

Na Alemanha, a possibilidade de execução forçada de decisões judiciais contra

a Administração não era uma ideia evidente. Otto Mayer, um dos precursores do

Direito Administrativo alemão, afirmava que a execução forçada contra o Estado

feria a sua dignidade, pois este não precisaria ser coagido para satisfazer seu

próprio Direito. Por sua vez, o jurista alemão Así Ernst Forsthoff afirmava que o

Estado seria sempre solvente (fiscus semper idoneus sucessor sit et solvendo), de

modo que seria desnecessária a expropriação de seus bens para o cumprimento

1 “Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados temdireito a uma ação perante um tribunal.”

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Revista da Ajufe 142

de decisões judiciais.

Contudo, a partir da edição da vigente Constituição alemã, em 1949, passou-se

a entender que a possibilidade de execução forçada contra o Estado decorre da

garantia de acesso ao Poder Judiciário, assegurado pelo artigo 19, IV, GG:

“Àquele que for lesado em seus direitos pelo poder

público é facultado o acesso à via jurisdicional”

A jurisprudência da Corte Constitucional alemã extraiu deste dispositivo o di-

reito do indivíduo a uma tutela efetiva de direitos subjetivos, o que abrange não

apenas o acesso formal aos órgãos do Poder Judiciário, mas, principalmente, uma

pretensão a um controle eficaz, que assegure instrumentos de coação para o cum-

primento de decisões judiciais, inclusive em face do Estado.2

Ainda que parcela da doutrina alemã interprete restritivamente a expressão

“poder público” contida no artigo 19, IV da Lei Fundamental, de modo a excluir

de seu âmbito de incidência as atividades em que o Estado atue como particular,

a Corte Constitucional estabeleceu que a pretensão genérica à tutela jurisdicional

decorre também do princípio do Estado de Direito (artigos 20 e 28 GG), do direito

geral de liberdade (artigo 2º, I, GG) e da garantia à propriedade (artigo 14, I, GG), o

que vem a corroborar a possibilidade de execução forçada contra o Estado qual-

quer que seja a sua forma de atuação.3

Não obstante, a execução forçada contra a Fazenda Pública na Alemanha ob-

serva regras próprias, distintas das aplicáveis aos particulares, com o objetivo de

resguardar o interesse da coletividade e manter a capacidade de funcionamento

da Administração Pública.

2.2 A jurisdição administrativa na Alemanha

A jurisdição no direito alemão é dividida em três ramos, que possuem códigos

processuais específicos. Assim, coexistem no sistema alemão a jurisdição ordiná-

ria (cível e penal), a trabalhista e a administrativa. Esta última divide-se em jurisdi-

2 BverfGE 34, 52, 59;95, 1, 95

3 BverfGE 54, 277, 291;85, 337, 345 et seq.

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Revista da Ajufe 143

ção administrativa geral, jurisdição social e jurisdição de finanças.

O Código de Processo Civil alemão (ZPO) aplica-se subsidiariamente às hi-

póteses não contempladas nos códigos processuais específicos dos diversos

ramos da jurisdição.

Nesta perspectiva, cada um dos ramos da jurisdição administrativa – geral, so-

cial e de finanças – possui normas especiais que regulam o processo de execu-

ção, destinadas a disciplinar o cumprimento das sentenças proferidas nas diver-

sas espécies de demandas existentes no processo administrativo alemão.

O Código de Jurisdição Administrativa (VwGO) prevê três espécies de ações, de

acordo com o conteúdo da pretensão deduzida em juízo: ação constitutiva, ação

condenatória e ação declaratória.

A ação constitutiva mais relevante no contencioso administrativo alemão é a

ação de impugnação (Anfechtungsklage),4 cuja finalidade é a anulação do ato ad-

ministrativo. Caso a pretensão do autor seja a emissão de um ato administrativo, a

ação cabível é a ação de condenação (Verpflichtungsklage).5 Para as demais pres-

tações não incluídas no conceito de ato administrativo deve ser utilizada a ação

condenatória geral (allgemeine Leistungsklage).6

2.3 O procedimento de execução forçada contra a Administração

O procedimento de execução das sentenças proferidas contra a Administra-

ção está disciplinado nos §§ 167 a 172 do Código de Jurisdição Administrativa

(VwGO), com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (ZPO).

Não há regras específicas para a execução das sentenças proferidas em ações

de impugnação e de declaração, pois a própria sentença produz o efeito preten-

dido pelo demandante, constituindo ou declarando a situação jurídica almejada.

No que se refere às sentenças que condenam ao cumprimento de uma obri-

gação de fazer ou de não fazer, a execução se dá através da intimação da autori-

dade competente para editar o ato administrativo ou para abster-se de realizar a

conduta vedada, sob pena de imposição de multa coercitiva. O § 172 do Código

4 §42, 1 e §113, 1 VwGO

5 § 42, 1 e §113, 5 VwGO

6 § 43, 2; 111; 113, 4; 169, 2, 170, 1 VwGO

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Revista da Ajufe 144

de Jurisdição Administrativa (VwGO) prevê a possibilidade de fixação de multa

de até 10.000 euros, que poderá ser aplicada de forma reiterada caso persista o

descumprimento. A fixação e a execução desta multa pode ser feita de ofício pelo

próprio Tribunal.

Já decidiu o Tribunal Constitucional alemão que o princípio do Estado de Di-

reito exige respeito ao preceito da mais completa proteção jurídica possível, o

que significa dizer que o Judiciário deve fazer tudo aquilo que a Administração se

recusa a fazer, desde que se apresente como necessário ao pleno gozo dos diretos

dos particulares.

Na hipótese de execução de obrigação pecuniária contra a Federação ou um

Estado, fundada em título originário da jurisdição civil, a execução somente po-

derá ter início quatro semanas após a manifestação formal do credor dirigida à

autoridade que representa a entidade devedora, informando-a de sua intenção de

promover a execução.

No caso de execução contra um município, em regra, faz-se necessária a auto-

rização da autoridade administrativa estatal a que o município está subordinado,

a fim de fixar os objetos patrimoniais sobre os quais recairá a constrição e o

período de tempo em que a execução ocorrerá. De se ressaltar, contudo, que esta

autorização não constitui ato discricionário, uma vez que a autoridade somente

poderá recusar a execução na hipótese de verificar a existência de causa excep-

cional que prejudique o funcionamento da Administração.

Em se tratando de execução por quantia certa fundada em título oriundo da

jurisdição administrativa, há uma disciplina única para todos os entes federados,

prevista no Código de Jurisdição Administrativa (§ 170, VwGO).

Antes de iniciada a execução propriamente dita, deve o juízo comunicar a sua

existência à Administração, exortando-a ao cumprimento espontâneo da senten-

ça, em prazo não superior a um mês. Em que pese a fixação deste prazo pelo §170,

2 VwGO, a Corte Constitucional entende que ele pode ser ampliado, em razão das

peculiaridades do caso concreto.

Satisfeita a obrigação, ainda que após a apresentação da demanda executiva, o

processo é extinto, por falta de necessidade da tutela judicial.

Terminado o prazo fixado pelo juízo para o cumprimento espontâneo da sen-

tença pela Administração, inicia-se a execução forçada, através de ordem judicial

que especifica as medidas coercitivas necessárias e determina ao órgão admi-

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Revista da Ajufe 145

nistrativo competente o seu cumprimento, sem que haja vinculação a pedidos do

credor. Nada impede que o tribunal utilize-se de um órgão auxiliar para a concre-

tização das medidas executivas, tais como o tribunal municipal (para efetivação

da inscrição em registros de imóveis), o leiloeiro judicial (para a alienação de bens

móveis) ou as próprias autoridades administrativas (à semelhança do commissa-

rio ad acta do direito italiano).7

Ressalte-se, contudo, que o Código de Jurisdição Administrativa (§ 170, 3) im-

pede que a constrição recaia sobre bens pertencentes ao domínio público im-

prescindíveis ao exercício das funções públicas ou cuja venda seja contrária ao

interesse público, tais como veículos da polícia e dos bombeiros, transportes cole-

tivos, edifícios da Administração, museus, etc. A impenhorabilidade abrange, ain-

da, os fundos públicos destinados ao pagamento de créditos vencidos, mas não

os demais créditos e direitos patrimoniais. Pode-se afirmar, assim, que o Direito

alemão somente permite a constrição sobre bens pertencentes ao patrimônio fi-

nanceiro da Administração, e não ao patrimônio administrativo.

A Administração devedora pode formular objeção unicamente no que se re-

fere à indispensabilidade do bem para o cumprimento de suas funções públicas

ou que a alienação seja contrária ao interesse público, cabendo recurso contra a

decisão que a rejeitar.

Na prática, a execução forçada somente é levada a efeito em alguns poucos

casos, em razão da cultura administrativa dominante de acatamento às decisões

judiciais, corolário da estrita observância da Administração alemã ao princípio da

legalidade, que inclui o dever de cumprir as decisões dos tribunais. Esta cultura

encontra suas raízes no consenso formado na sociedade alemã após a Segunda

Grande Guerra acerca da necessidade de preservar os direitos fundamentais do

indivíduo em face do Estado.

Neste sentido já afirmava O. Mayer:

“Simplesmente torna-se dever das autoridades de fi-

nanças zelar para que seja saldada a dívida do Estado.

Às responsabilidades funcionais, legais e constitucio-

7 Na Itália, o juiz administrativo nomeia comissários ad acta para exercerem atividades em substituição à Administração inadimplente.

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nais dos funcionários pertence a última palavra. E, por

fim, deve tudo isto ser informado por um sadio senti-

mento de Justiça de parte da coletividade, sem o qual o

mais belo direito administrativo nada poderá obter.”8

A Federação e os Estados não podem ser submetidos a processo de insol-

vência, conforme reconhecido pela jurisprudência da Corte Constitucional e

positivado no §12, I da Lei de Insolvência (Insolvenzordnung). Tal garantia, em

princípio, não se estende às demais pessoas jurídicas de direito público, como

os municípios, salvo se assim determinar a legislação estadual, o que, na prática,

comumente ocorre.9

Por fim, pode-se afirmar que o direito alemão busca alcançar o equilíbrio en-

tre a tutela dos direitos subjetivos do cidadão e a continuidade da prestação dos

serviços públicos, através de um sistema que protege os bens indispensáveis da

Administração, mas, por outro lado, permite a expropriação forçada do patrimô-

nio que não esteja afetado ao cumprimento de suas tarefas essenciais.

3. Execução contra a administração nos Estados Unidos da América

3.1 Imunidade soberana

O direito americano adotou a doutrina da imunidade soberana vigente no di-

reito anglo-saxão, em especial na Inglaterra, pela qual o rei não podia ser proces-

sado, sem o seu consentimento, perante a sua própria corte (conhecida como The

king can do no wrong). Apesar de não haver norma expressa na Constituição dos

Estados Unidos, esta doutrina foi acolhida pela Suprema Corte em 1793.10 Em

1896, a Suprema Corte estendeu esta proteção aos atos praticados por funcioná-

8 MAYER, 1924 apud BLANKE, Hermann-Joseph. El Patrimonio Financiero como Bien Pú-blico Ejecutable em el Derecho Alemán, Hermann-Joseph Blanke. In: PERLINGEIRO, Ricardo (Org.). Execução contra a Fazenda Pública. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, CJF, 2003. p. 433-447.

9 Em todos os estados alemães a legislação exclui o patrimônio dos municípios dos proces-sos de insolvência, à exceção do estado de Mecklenburg-Vorpommern.

10 Chisholm vs Georgia, 2 U.S. (2 Dall.) 419 (1793)

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Revista da Ajufe 147

rio público, se a ação afetar as relações dos Estados Unidos ou seus bens.11 Con-

tudo, o ato ilegal ou que extrapole a autoridade do funcionário não está abrangido

pela imunidade soberana.

No âmbito dos Estados, em razão da 11ª Emenda à Constituição americana –

que impede o ajuizamento de ações pelos cidadãos contra seus próprios Estados

em tribunais federais – também vigora a regra da imunidade soberana, com a

disciplina prevista na respectiva Constituição estadual.

Os Estados Unidos renunciaram a sua imunidade soberana no Ato de Litígios

Contratuais de 1978, no Ato de Tucker e no Ato de Demandas.

3.2 O Ato de Litígios Contratuais de 1978

O Ato de Litígios Contratuais de 1978 (Contract Disputes Act of 1978) é apli-

cável às controvérsias contratuais entre particulares e órgãos da Administração

Pública. Através dele, o Poder Executivo renúncia à imunidade soberana e sub-

mete-se à jurisdição dos tribunais federais. Contudo, faz-se necessário o prévio

esgotamento da instância administrativa, antes da instauração de um processo de

reparação, exceto nos contratos marítimos.

O ato não se aplica aos contratos celebrados com governos ou órgãos públi-

cos estrangeiros, ou organizações internacionais, se o chefe do órgão contratan-

te determinar que essa aplicação seria contrária ao interesse público. Por outro

lado, suas disposições regem as atividades dos fundos não-apropriados sobre os

quais os tribunais atualmente possuem jurisdição.

3.3 Ato de Tucker

Através do Ato de Tucker (Tucker Act) o governo americano renunciou à sua

imunidade soberana em litígios fundados na Constituição, em ato do Congres-

so ou em regulamento de departamento do Poder Executivo, bem como em pre-

tensão de condenação por perdas e danos não baseada em delito civil. Também

submetem-se ao ato as controvérsias decorrentes de contratos celebrados com

algumas agências do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (Army and Air

Force Exchange Service, Navy Exchange, Marine Corps Exchange, Coast Guard

11 Stanley vs Scwalby, 162, U.S. 255 (1896)

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Revista da Ajufe 148

Exchange e NASA).

O Ato de Tucker permite ao tribunal emitir mandados dirigidos a qualquer ofi-

cial competente dos Estados Unidos, com as determinações que julgar adequadas

e justas, tais como, recondução ao cargo, aposentadoria, etc.

O ato pode ser dividido em “Big” Act Tucker, que se aplica às reivindicações

acima de US $ 10.000 e dá jurisdição exclusiva ao Tribunal de Ações Federais,

e o “Little” Tucker Act (28 USC § 1346), relativo aos créditos inferiores a US $

10.000, que dá competência concorrente ao Tribunal de Ações Federais e aos

Tribunais Distritais.

3.4. Ato de demandas extracontratuais

O Ato de Demandas Extracontratuais (Tort Claims Act) autoriza o ajuizamen-

to de ações civis contra os Estados Unidos, perante os Tribunais Federais, nas

hipóteses de ressarcimento de tributos ou qualquer outra ação civil não supe-

rior a US $ 10.000,00.

O Federal Tort Claims Act, promulgado em 1946, ampliou a renúncia da imu-

nidade soberana do governo federal. Ele admite a responsabilidade civil dos Esta-

dos Unidos nos casos de danos causados por ato negligente ou doloso ou omissão

de qualquer funcionário federal, agindo no âmbito de sua função, nas hipóteses

em que uma pessoa privada pudesse ser responsabilizada pela demanda.12

Há três importantes exceções a esta regra, nas quais a Administração Pública

americana não pode ser responsabilizada: a chamada doutrina Feres,13 que con-

fere imunidade nos casos de ferimentos sofridos por militares em serviço; a dis-

cricionariedade, que imuniza os Estados Unidos por atos ou omissões de seus

empregados que envolvam decisões políticas, ainda que o funcionário tenha agi-

do de forma negligente no desempenho de seu poder discricionário; e a exceção

do delito intencional, que impede ações contra o governo americano por assalto

e agressão, dentre outros delitos intencionais, a menos que sejam cometidos em

12 “Public employers shall be liable for injury or loss of property, or personal injury or death caused by the negligent or wrongful act or omission of any employee of the government while acting within the scope of his office or employment, under circumstances where the United States, if a private person would be liable to the claimant in accordance with the law of the place where the act or omission occurred.” 28 U.S.C. § 1346(b).

13 Feres v. United States, 340 U.S. 135 (1950)

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Revista da Ajufe 149

razão da aplicação da lei federal ou por funcionários de investigação.

Além destas exceções, os Estados Unidos não podem ser responsabilizados por

juros antes do julgamento ou por danos punitivos (28 USC § 2674), pelo ato ou

omissão de um funcionário que atue com o devido cuidado na execução de uma lei

inválida ou regulamento (28 USC § 2680), pelas reivindicações decorrentes da per-

da ou da transmissão negligente de cartas ou material postal, pelas reivindicações

decorrentes do lançamento ou cobrança de qualquer imposto ou direitos aduanei-

ros, ou a detenção de quaisquer bens, mercadorias ou outros bens por qualquer

funcionário da alfândega, pelas reivindicações causadas pelas operações fiscais do

Tesouro ou pela regulação do sistema monetário, pelas reivindicações decorrentes

de atividades militares; ou reclamações provenientes de um país estrangeiro.

3.5 Execução de sentenças não-pecuniárias contra os EUA

As sentenças não-pecuniárias (others than money judgments) são aquelas que

impõem ao réu a obrigação de dar coisa diversa de dinheiro, de fazer ou de não-

-fazer, além das sentenças declaratórias e constitutivas.

As sentenças não-pecuniárias são executadas mediante meios livremente es-

tabelecidos pelo juiz, que deve fixar as medidas mais adequados a cada caso. Não

há necessidade de autorização legislativa expressa para a fixação destas medidas,

pois se entende que este é um poder inerente à jurisdição.

Estes meios podem ser sub-rogatórios, pelos quais o juiz realiza a prestação

devida substituindo-se ao devedor, ou coercitivos, com as quais ameaça o deve-

dor a fim de induzi-lo a cumprir a prestação devida.

As medidas coercitivas mais comuns no direito americano são a prisão

civil e a multa.

3.6 Execução de sentenças pecuniárias contra os EUA

O procedimento para a execução de sentenças por quantia certa contra o go-

verno americano é disciplinado pelo Code of Federal Regulations (Pt. 256).14

Originalmente, no caso de condenações superiores a US$ 100.000, o credor

14 Disponível em <http://www.gpo.gov/fdsys/pkg/CFR-2002-title31-vol2/xml/CFR-2002--title31-vol2-part256.xml>, acesso em 30/07/2013

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Revista da Ajufe 150

deveria, através do Tribunal Federal de Demandas, enviar os autos originais da

sentença ao Secretário do Tesouro, que solicitava ao Congresso a apropriação

do pagamento. Após, o Gabinete-Geral de Contabilidade (Government Accounta-

bility Office - GAO), órgão vinculado ao Congresso, transmitia um certificado de

liquidação ao Departamento de Tesouro.

Com o passar do tempo, como a quantidade de condenações em valor superior

a US$ 100.000 aumentou consideravelmente, o Congresso transferiu a competên-

cia para certificar o pagamento do GAO para o Financial Management Service,

órgão do Departamento de Tesouro, que faz o pagamento diretamente ao credor

através de cheque enviado pela via postal.

Para as condenações inferiores a US$ 100.000, o procedimento era semelhan-

te, exceto pelo fato de não haver atuação prévia do Departamento do Tesouro.

Atualmente, em razão de não haver mais intervenção do Congresso no pagamen-

to, o procedimento é único independentemente do valor da execução.

Em regra, os recursos destinados ao cumprimento de sentenças judiciais contra a

Administração são oriundos de um fundo permanente (Judgment Fund). Este fundo

foi instituído em 1956 com o escopo de agilizar os pagamentos e reduzir o lançamen-

to de juros contra o governo (nas hipóteses em que esta incidência seja permitida).

O Fundo de Sentenças não está limitado ao ano contábil e o Congresso não

está obrigado a destinar-lhe recursos anualmente, ou de forma periódica. Ele está

disponível para o pagamento de sentenças que não podem ser apropriadas por

outra via ou por um fundo já existente.15 O órgão cuja atuação gerou a condena-

ção não está obrigado a reembolsar o fundo, salvo disposição legal em contrário.

Admite-se a compensação de dívida do exequente com o governo americano

por ocasião do pagamento do valor fixado na condenação. No caso United States

vs Cohen, o Tribunal Federal de Apelação entendeu que o governo tem o direito de

utilizar o valor da condenação para extinguir dívidas do contribuinte.

3.7 Execução de sentença no writ of mandamus

Nos Estados Unidos, o writ of mandamus possui a finalidade de compelir um

órgão, um oficial ou um funcionário americanos a cumprir uma obrigação legal.

15 Algumas situações em que não cabe o uso do Fundo de Sentenças: sentenças tributárias, sentenças em ações de desapropriação, etc.

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Revista da Ajufe 151

A competência originária para sua apreciação é do Tribunal Distrital e a ação

somente é cabível para a prática de ato não discricionário, tratando-se de instru-

mento processual subsidiário, ou seja, somente é cabível quando outros meios

estejam esgotados.16

No que se refere à execução de sentenças que concedem a ordem, a legisla-

ção americana autoriza o tribunal a suspender, de ofício ou a requerimento da

parte, o ato impugnado ou a adotar as medidas necessárias para assegurar o

direito do autor.

Para isto, o tribunal expede uma ordem de execução (writ of execution), que

deverá ser cumprida no prazo fixado (normalmente 30 dias), sob pena de con-

tempt of court e consequente ação indenizatória contra a autoridade responsável.

Em se tratando de situação em que haja perigo de dano irreparável, a parte

deve apresentar uma interlocutory injunction, que deve ser decidida no prazo

de 5 dias.

No caso de obrigações de fazer, o tribunal pode estabelecer medidas específicas

para o cumprimento da obrigação (dispositive order ou remedial decree), igualmen-

te sob pena de contempt of court, tanto contra agentes públicos como particulares.

Nas ações coletivas (class actions), o Tribunal nomeia um ou mais responsá-

veis pela execução (receive ou master), normalmente magistrados, advogados ou

profissionais de renomada reputação, que disporão das faculdades e da estrutura

necessárias ao cumprimento da sentença.

4. Execução contra a administração pública na Argentina

4.1 Antecedentes

Tradicionalmente, o direito argentino conferia efeito meramente declaratório

às sentenças condenatória em face do Estado, com fundamento na Lei 3.952 de

1900, que permitia o ajuizamento de demandas contra o Poder Público, mas obs-

tava a execução da sentença.

16 A Suprema Corte americana estabeleceu orientações sobre os mandados de segurança em Kerr v United States District Court, 426 EUA 394, 96 S. Ct. 2119, 48 L. Ed. 2d 725 (1976). Neste precedente, a Suprema Corte entendeu que o writ interposto contra decisão judicial somente seria cabível se o tribunal decidisse erroneamente um problema, se a falha para re-verter essa decisão tivesse prejudicado irreparavelmente uma parte e se não houvesse outro método para a correção do ato.

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Revista da Ajufe 152

Contudo, a Suprema Corte argentina abandonou esta concepção em 1966, no

caso Pietranera Josefa e outros contra o Governo Federal, quando a Corte passou

a entender que a Lei 3.952 tinha por objetivo evitar a perturbação da marcha

normal da Administração, mas de forma alguma autorizava o descumprimento

de decisões judiciais pelo Estado, sob pena de colocá-lo fora do ordenamento

jurídico. Entendeu a Corte que era possível uma intervenção judicial na hipótese

de uma desarrazoada demora da Administração para o cumprimento da sentença.

A partir deste precedente, passou-se a exigir que o Estado fosse intimado para

informar o prazo em que o pagamento seria feito, sob pena de, mantendo-se em

silêncio ou fixando um prazo excessivo, o juiz estabelecer o prazo de cumprimen-

to da obrigação.

Em 1991, a Lei nº 23.982, invocando razões de emergência, estabeleceu a con-

solidação das dívidas do Estado e dilatou o pagamento por 16 anos, permitindo

ao credor o recebimento em títulos da dívida pública. O citado diploma legal tam-

bém estabeleceu o procedimento para a execução pecuniária em face do Estado,

que será adiante analisado. A partir desta lei, considera-se definitivamente derro-

gada a Lei 3.952.

4.2 Execução forçada por quantia certa

Com advento da Constituição de 1994, que estabeleceu a ação de amparo em

seu art. 43,17 a doutrina argentina passou a extrair deste dispositivo o fundamento

do direito à tutela judicial efetiva e, como consequência, a possibilidade de o juiz

exercer plenamente o seu imperium, inclusive em face da Administração Pública.

No plano infraconstitucional, a execução de sentença por quantia certa no

direito argentino encontra-se disciplinada no artigo 22 da Lei 23.982/91, já re-

ferido anteriormente.

O princípio geral estabelecido nesta norma é de que o crédito deve ser satis-

feito no exercício financeiro seguinte ao ano de seu reconhecimento definitivo,

17 “ Art. 43.- Toda persona puede interponer acción expedita y rápida de amparo, siempre que no exista otro medio judicial más idóneo, contra todo acto u omisión de autoridades pú-blicas o de particulares, que en forma actual o inminente lesione, restrinja, altere o amenace, con arbitrariedad o ilegalidad manifiesta, derechos y garantías reconocidos por esta Cons-titución, un tratado o una ley. En el caso, el juez podrá declarar la inconstitucionalidad de la norma en que se funde el acto u omisión lesiva.”

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Revista da Ajufe 153

destacando-se que, na Argentina, o ano orçamentário encerra-se em 30 de no-

vembro. Caso não tenha havido a inclusão da verba no orçamento até esta data, a

Lei Permanente de Orçamento permite a inclusão no ano subsequente, com o que

se admite a dilação do prazo por até cerca de 2 anos.

A omissão, negligente ou dolosa, da inclusão no orçamento da verba necessá-

ria ao cumprimento de sentença judicial pela autoridade pública poderá causar a

sua responsabilização funcional, nos termos do art. 42 da Lei 24.156.

Destaque-se que o prazo de espera não se aplica às ações de desapropria-

ção, por força de norma constitucional expressa que determina a indenização

prévia (art. 17).18

Uma vez transcorrido o prazo de pagamento, o credor pode requerer a execu-

ção forçada da sentença, que poderá incidirá sobre bens móveis e imóveis não

afetados ao domínio público.

Já afirmou a Corte Suprema argentina que um bem estará afetado ao domí-

nio público por um feito ou por uma manifestação de vontade do poder público,

quando haja sido incorporado a um uso ou proveito comum.19 A Corte admite a

penhora de dinheiro, como se depreende do seguinte julgado: “O dinheiro, em seu

caráter de coisa fungível que pode ser substituída por outra da mesma quan-

tidade, não é equiparável aos bens do Estado afetados a um serviço público”.

(Julgados: 116:80-81; 119:373)

5. Execução contra a Administração Pública no direito brasileiro

No Brasil, a execução de sentenças contra a Administração Pública é tratada

de forma assistemática. A execução de sentenças que condenam o Estado a uma

obrigação de fazer ou não fazer é disciplinada pelo Código de Processo Civil e

segue rito idêntico ao aplicado aos particulares.

No que se refere à execução por quantia certa, há necessidade de observân-

cia do regime do precatório judicial, cuja disciplina encontra-se no artigo 100 da

Constituição Federal.

18 “Art. 17.- La propiedad es inviolable, y ningún habitante de la Nación puede ser privado de ella, sino en virtud de sentencia fundada en ley. La expropiación por causa de utilidad pública, debe ser calificada por ley y previamente indemnizada. (...)”

19 Julgados 149: 71/76 e 161: 420/6

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Revista da Ajufe 154

Ricardo Perlingeiro afirma que o precatório judicial não constitui procedi-

mento de execução, em razão da impossibilidade de expropriação forçada dos

bens do Estado para a satisfação do direito do credor. Em sua concepção, trata-se

de um procedimento administrativo, de natureza voluntária, uma vez que a satis-

fação do crédito depende de prévia disponibilidade orçamentária.20

No mesmo sentido é o magistério de Humberto Theodoro Júnior, para quem

o procedimento “não tem a natureza própria da execução forçada, visto que se

faz sem penhora e arrematação, vale dizer, sem expropriação ou transferência

forçada de bens”.21

Nesta perspectiva, não se pode falar em execução forçada, pois não há subs-

tituição da vontade do devedor pela atividade jurisdicional. Fundada nesta mes-

ma constatação, parcela da doutrina prefere afirmar que se trata de execução

imprópria,22 o que não altera a essência do instituto do precatório.

E isso é assim porque a jurisprudência nacional, fundada no dogma da total

impenhorabilidade dos bens públicos, não admite a expropriação forçada para o

cumprimento de decisões judiciais.

Não obstante, mais recentemente, parcela da doutrina vem reconhecendo a

possibilidade, em determinadas hipóteses, de constrição judicial de bens públicos.

Ricardo Perlingeiro, de forma pioneira, já sustentava a admissibilidade de penho-

ra sobre bens públicos em obra doutrinária.23

A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal nega-se a autorizar a cons-

trição de bens da Administração Pública para o pagamento de seus débitos, salvo

na hipótese de preterição da ordem de precedência dos credores. O acórdão a

seguir transcrito ilustra este entendimento:

“Reclamação - Ordem de sequestro de verbas públi-

20 PERLINGEIRO, Ricardo. Redefinição de Papéis na Execução de Quantia Certa contra a Fazenda Pública (2005). Revista CEJ, Brasília, No. 31, p. 68- 74, 2005. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=2250524>

21 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução. 23. ed., rev. e atual. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2005, p. 425

22 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 94

23 PERLINGEIRO, Ricardo. Execução contra a Fazenda Pública. Rio de Janeiro: Malheiros, 1999

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Revista da Ajufe 155

cas - Trânsito em julgado não caracterizado - ofensa

ao entendimento firmado na ADI nº 1.662/SP. 1. Na-

tureza administrativa das decisões da presidência dos

Tribunais no cumprimento dos precatórios judiciais,

caráter que se estende também às decisões colegiadas

dos recursos internos contra elas interpostos. Não há

que se falar em trânsito em julgado, pois esse pressu-

põe decisão proferida por órgão do Poder Judiciário

no exercício de sua função jurisdicional. 2. O venci-

mento de prazo legal para pagamento de precatório

não é motivo suficiente para dar ensejo ao sequestro

de verbas públicas, uma vez que não se equipara à pre-

terição da ordem de precedência. 3. Reclamação pro-

cedente, agravos regimentais prejudicados.” (Rcl 2425,

Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado

em 06/03/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-063 DI-

VULG 05-04-2013 PUBLIC 08-04-2013)

Não obstante, em casos excepcionais, nos quais o Poder Judiciário se vê diante

da necessidade de conferir efetividade a direitos fundamentais de maior enverga-

dura, como o direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal vem admitindo a miti-

gação do regime constitucional do precatório:

“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRU-

MENTO. CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. MEDI-

CAMENTOS. FORNECIMENTO A PACIENTES CAREN-

TES. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I - O acórdão recorrido

decidiu a questão dos autos com base na legislação

processual que visa assegurar o cumprimento das de-

cisões judiciais. Inadmissibilidade do RE, porquanto a

ofensa à Constituição, se existente, seria indireta. II - A

disciplina do art. 100 da CF cuida do regime especial

dos precatórios, tendo aplicação somente nas hipóte-

ses de execução de sentença condenatória, o que não é

Page 156: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 156

o caso dos autos. Inaplicável o dispositivo constitucio-

nal, não se verifica a apontada violação à Constituição

Federal. III - Possibilidade de bloqueio de valores a fim

de assegurar o fornecimento gratuito de medicamen-

tos em favor de pessoas hipossuficientes. Precedentes.

IV - Agravo regimental improvido.” (AI 553712 AgR,

Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira

Turma, julgado em 19/05/2009, DJe-104 DIVULG 04-

06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-09

PP-01777 RT v. 98, n. 887, 2009, p. 164-167).

5.1 Do novo panorama após o advento da EC 62/2009

A EC 62/2009 promoveu uma série de modificações no regime do precatório

judicial, alterando o artigo 100 da Constituição e inserindo o art. 97 no ADCT.

Em apertada síntese, a EC 62/2009 instituiu um regime especial para paga-

mento dos precatórios dos Estados e Municípios, admitindo um parcelamento de

até 15 anos dos precatórios vencidos (prorrogando, na prática, o parcelamento de

10 anos que havia sido criado pela EC 30/2000). A referida emenda determinou,

ainda, que a quitação dos débitos da Fazenda Pública se desse através de depósi-

tos mensais em conta judicial administrada pelo Tribunal competente, cujos valo-

res seriam calculados sobre percentual incidente sobre a receita corrente líquida

destes entes federativos (variável de 1% a 2%).

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADI 4357, 4372,

4400 e 4425 julgou inconstitucional o regime especial de parcelamento previsto

no art. 97 do ADCT. A Corte também reputou inválida a possibilidade de com-

pensação de precatórios judiciais com débitos do exequente perante a Fazenda

Pública e a instituição do índice de correção das cadernetas de poupança para a

atualização do valor devido pela Administração.

Entendeu a Suprema Corte que o regime especial de parcelamento, ao pror-

rogar por 15 anos o cumprimento de sentenças judiciais transitadas em julgado,

subverteria os valores do Estado de Direito, do devido processo legal, do livre e

eficaz acesso ao Poder Judiciário e da razoável duração do processo.

Importante ressaltar que a EC-62/2009 introduziu no texto permanente da

Page 157: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 157

Constituição a possibilidade de sequestro de verba pública em caso de descum-

primento do precatório judicial por ausência de previsão orçamentária, como se

pode verificar da nova redação do §6º do artigo 100:

§ 6º As dotações orçamentárias e os créditos aber-

tos serão consignados diretamente ao Poder Judiciá-

rio, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a

decisão exequenda determinar o pagamento integral e

autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente

para os casos de preterimento de seu direito de pre-

cedência ou de não alocação orçamentária do valor

necessário à satisfação do seu débito, o sequestro da

quantia respectiva.

Ocorre que a eficácia desta norma havia sido suspensa pela própria EC

62/2009, relativamente aos Estados e Municípios que aderissem ao regime espe-

cial, nos termos do § 13 do art. 97 do ADCT:

Ҥ 13. Enquanto Estados, Distrito Federal e Muni-

cípios devedores estiverem realizando pagamentos de

precatórios pelo regime especial, não poderão sofrer

sequestro de valores, exceto no caso de não liberação

tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do §

1º e o § 2º deste artigo.”

Entretanto, como dito, o regime especial previsto no art. 97 do ADCT foi inte-

gralmente declarado inconstitucional pelo STF, inclusive o §13 acima transcrito,

o que significa dizer que, a partir desta decisão (ou do momento que vier a ser

estabelecido pela Corte em razão da possibilidade de modulação de seus efeitos),

o §6º do artigo 100 passou a ter eficácia plena, já que a norma que impedia a

produção dos seus efeitos foi eliminada do ordenamento jurídico.

Por via de consequência, atualmente o texto permanente da Constituição

possui previsão expressa de sequestro de valores para pagamento aos credo-

res do Poder Público, não apenas nas hipóteses de descumprimento do par-

Page 158: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 158

celamento (como já havia sido fixado em suas disposições transitórias), mas

em qualquer caso em que não ocorra o cumprimento da sentença por falta de

previsão orçamentária.

Pode-se afirmar, portanto, que a partir da decisão proferida nas ADI 4357,

4372, 4400 e 4425, o ordenamento jurídico brasileiro admite a execução forçada

em face da Administração Pública, na hipótese de falta de previsão orçamentária

para o pagamento dos precatórios judiciais.

Entendo não haver qualquer vício na norma constitucional em comento, pois

a constrição de bem público para a satisfação de título judicial pode ser prevista

até mesmo pelo legislador infraconstitucional, como aliás já ocorre nas hipóteses

de execução de quantias consideradas de pequeno valor no âmbito federal, nos

termos do artigo 17 da Lei 10.259/01,24 cujo parágrafo 2º estabelece a hipótese de

sequestro da quantia em caso de não pagamento no prazo de 60 dias.

6. Conclusão

Como exposto neste artigo, em países como Alemanha, Estados Unidos e Ar-

gentina o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos é mitigado, a fim de

se permitir a expropriação judicial em caso de não cumprimento voluntário da

sentença pela Administração Pública.

Do mesmo modo, no direito português25 e no direito espanhol26 admite-se a

penhora de bens públicos dominiais para a satisfação do direito do credor fixado

no título judicial.

De maneira geral, no direito comparado concede-se um prazo para que a Ad-

ministração Pública cumpra espontaneamente a sentença condenatória, através

da inclusão do valor necessário à satisfação do crédito no orçamento público, à

semelhança do que ocorre no Brasil.

Contudo, em caso de inércia da Administração, abre-se a possibilidade de exe-

cução forçada sobre seus bens, em regra apenas aqueles não afetados a um ser-

viço ou destinação públicos.

24 “§ 2o Desatendida a requisição judicial, o Juiz determinará o sequestro do numerário suficiente ao cumprimento da decisão.”

25 Art. 822, b e art. 823, 1 do Código de Processo Civil português

26 Vide Sentença nº 166/1998 do Tribunal Constitucional Espanhol

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Revista da Ajufe 159

A experiência obtida no direito comparado revela que a simples possibilidade

de execução forçada reduz em muito os casos de descumprimento de sentenças

pecuniárias pela Administração, o que termina por gerar uma cultura virtuosa de

acatamento às decisões judiciais no âmbito da própria Administração, como bem

nos revela os exemplos alemão e norte-americano, já estudados.

Em nosso país, contudo, a falta de previsão de uma sanção adequada à Admi-

nistração Pública pelo não pagamento de seus débitos,27 em especial no âmbito

dos Estados e Municípios – maiores renitentes em alocar recursos orçamentários

para a satisfação integral dos débitos judiciais – contribuiu para o descrédito do

regime do precatório judicial.28

Após a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade do regime espe-

cial de pagamento de precatórios instituído pela EC-62/2009, espera-se que um

novo cenário surja no ordenamento brasileiro, eis que a norma prevista no § 13

do artigo 100 ganhou plena eficácia, permitindo o sequestro da quantia na hipó-

tese de não cumprimento voluntário da obrigação de pagar fixada em sentença

condenatória transitada em julgado.

Pode-se afirmar que este panorama já chega com grande atraso em nosso or-

denamento, pois é assente no direito comparado que a possibilidade de execução

forçada contra a Fazenda Pública é consequência indissociável do Estado de Di-

reito e do princípio da inafastabilidade da jurisdição, que entre nós está positiva-

do no inciso XXXV do art. 5º da Carta da República.

Registre-se, ainda, que o Pacto de São José da Costa Rica, incorporado ao nos-

so ordenamento jurídico interno, outorga o direito à tutela efetiva em seu artigo

25, bem como o Código Modelo de Processos Administrativos – Judicial e Ex-

trajudicial – para Ibero-América, que consagra no caput do artigo 36 o direito à

tutela jurisdicional efetiva e estabelece expressamente em seu parágrafo 3º que “o

27 A única sanção admitida pelo STF para o caso de descumprimento de precatório judicial – a intervenção federal – não vem sendo admitida nas hipóteses concretas levadas à Corte, sob o fundamento de que não haveria configuração de atuação dolosa e deliberada do ente público com finalidade de não pagamento. (Veja, dentre inúmeros outros precedentes, a IF 3601, Tribunal Pleno, julgado em 08/05/2003)

28 No julgamento conjunto das ADI 4357, 4372, 4400 e 4425 o relator afirmou que não fal-taria dinheiro para o adimplemento dos precatórios, mas sim compromisso dos governantes quanto ao cumprimento de decisões judiciais. Observou-se que o pagamento dos precatórios não se contraporia, de forma inconciliável, à prestação de serviços públicos.

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Revista da Ajufe 160

Estado garantirá o cumprimento das decisões judiciais contra a Administração”.

Isso é assim porque de nada adiantaria assegurar-se o acesso formal do cida-

dão ao Poder Judiciário se não lhes fosse garantida, na mesma medida, uma tutela

judicial efetiva, capaz de proporcionar, no plano material, a proteção de seus di-

reitos fundamentais frente ao Poder Público.

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Os efeitos da dualidade de instâncias no direito antitruste brasileiro e breve

análise jurisprudencial

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Revista da Ajufe 164

Marcelle Ragazoni CarvalhoJuíza federal

2ª vara Gabinete de Osasco/SP

Resumo: Considerando que a Constituição Federal, ao estabelecer no seu

art. 5º, inciso XXXV, a garantia fundamental da inafastabilidade do controle

do Judiciário sobre qualquer lesão ou ameaça a direito, instituiu a dualidade

de instâncias no ordenamento jurídico brasileiro, diversas questões surgem

acerca da revisibilidade das decisões administrativas pelo Poder Judiciário.

Embora não haja muitas divergências acerca da possibilidade de revisão

das decisões administrativas pelo Judiciário, no âmbito do processo judicial,

dúvidas surgem a respeito dos limites de atuação desse Poder, ou seja, se o

controle pode ser amplo ou restrito a alguns aspectos do ato administrativo.

A questão ganha relevância, principalmente, em razão da projeção que

teve o CADE recentemente e da sua atuação mais combativa no tocante à de-

fesa da concorrência, sistema que ganhou novos contornos após a vigência

da Lei nº 12.529/2012, notadamente os atos de conduta, os quais são mais

comumente levados ao conhecimento do Judiciário, em comparação com os

atos de concentração.

Com isso, a tendência é que um maior número de casos envolvendo de-

cisões proferidas pelo CADE chegue ao Judiciário para análise e controle,

sendo importante, portanto, o estudo dos limites da atuação judicial, tendo

em vista as características especiais da atuação administrativa nesses casos

específicos.

Palavras-chave: Direito antitruste. Direito Administrativo. Ato adminis-

trativo. Vinculação. Discricionariedade. Separação de poderes. Controle ju-

dicial das decisões do CADE. Jurisprudência brasileira.

Abstract: Taking into account that the Federal Constitution, while esta-

blishing in article 5th, XXXV, the fundamental guarantee of the right to evoke

jurisdiction, it also established the right to judicial review in the Brazilian

legal system. Therefore, several questions arise about the act of reviewing

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Revista da Ajufe 165

administrative decisions by the judiciary.

Although there aren’t many divergences about the possibility of courts

reviewing administrative decisions, questions arise about the limits of that

power, mainly whether the control can be extended or limited to certain

aspects of the administrative act.

The issue becomes relevant particularly due to the importance recently

given to CADE – Administrative Council of Economic Defense - and its in-

creasingly combative action regarding the antitrust system that gained new

dimensions after Law n. 12.529/2012 was enacted, mainly the acts of con-

duct, which are most commonly brought to the attention of the judiciary, in

comparison with the merger.

Thus, there is a trend of a greater number of cases involving decisions

rendered by CADE reaching the Judiciary for analysis and control. Conse-

quently, it’s important to study the limits of judicial action and the special

characteristics of the administrative action in these specific cases.

Keywords: Antitrust law. Administrative Law. Administrative act. Bin-

ding. Discretion. Separation of powers. Judicial review of CADE’s decisions.

Brazilian jurisprudence.

Título: Os efeitos da dualidade de instâncias no direito antitruste brasi-

leiro e a análise do direito comparado.1

1. Introdução

O escopo do presente trabalho é analisar a doutrina e a jurisprudência

brasileiras no tocante ao controle, pelo Judiciário, das decisões administra-

tivas proferidas pelo CADE.

É inconteste, no Brasil, a existência de duas instâncias – administrativa e

judicial – autônomas e independentes, decorrência do sistema de separação

1 Projeto de pesquisa produzido para o Programa de bolsa de estudos em direito concorren-cial e direito econômico oferecido pelo Cedes – Centro de Estudos de Direito Econômico e Social – em convênio com o King’s College London.

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Revista da Ajufe 166

de poderes albergado pela nossa Constituição.

A dualidade de instâncias e as características próprias do Poder Judiciá-

rio fazem com que somente as decisões deste tenham o caráter de definitivi-

dade, não comportando revisão no âmbito de outro Poder.

No entanto, a Administração, embora adstrita à lei, tem também certa mar-

gem de liberdade na sua atuação, havendo, portanto, limites para o controle

judicial dos atos por ela praticados.

A questão ganha contornos especiais quando se trata da revisão das deci-

sões administrativas do CADE, órgão que tem características diferenciadas,

especialmente por ser técnico, cuja natureza jurídica será analisada adiante.

Apesar disso, suas decisões, como órgão administrativo que é, são também

atos administrativos.

Assim, pra definir os limites da intervenção do Judiciário, primeiramente,

é preciso distinguir os tipos de atos administrativos e analisar seus requi-

sitos de validade e eficácia, o conteúdo, a discricionariedade, o conceito de

mérito, etc., questões que virão à tona sempre que se tratar da revisão de um

ato administrativo pelo Judiciário.

Consequentemente, se faz necessário um breve estudo da doutrina da se-

paração de poderes e do direito administrativo, especialmente quanto ao

controle dos atos da Administração, ao conceito de ato administrativo e, es-

pecificamente, de ato discricionário e vinculado.

2. O controle da Administração Pública

A teoria clássica da separação de poderes, concebida por Montesquieu,

apresentou a divisão das funções típicas do Estado entre os poderes Exe-

cutivo, Legislativo e Judiciário, concebida como uma forma de garantia da

sociedade contra os abusos do Governo e também como forma de organiza-

ção e controle da Administração, através do sistema de freios e contrapesos.2

O controle da Administração pelos outros Poderes, no caso específico,

pelo Judiciário, tem por objetivo assegurar a observância dos princípios es-

tabelecidos constitucionalmente e que devem reger a sua conduta.

2 FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 77.

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Revista da Ajufe 167

Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro,

pode-se definir o controle da Administração Pública

como o poder de fiscalização e correção que sobre ela

exercem os órgãos dos Poderes Judiciário, Legislativo

e Executivo, com o objetivo de garantir a conformidade

de sua atuação com os princípios que lhe são impostos

pelo ordenamento jurídico.3

Além da observância dos princípios constitucionais, que conferem legi-

timidade ao ato administrativo, este também deve observar fielmente o dis-

posto em lei.

É certo que se presume de plano a legalidade e a legitimidade do ato ad-

ministrativo, cabendo ao administrado a prova em sentido contrário. Por-

tanto, ao Judiciário, caso questionadas a validade e a eficácia do ato admi-

nistrativo, caberá confirmar sua validade ou invalidá-lo, caso haja provas

suficientes de que o ato não observou os preceitos legais e constitucionais

a ele inerentes.

Tendo em vista a previsão constitucional expressa de inafastabilidade do

Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição), conclui-se que no Brasil a

função jurisdicional foi atribuída com exclusividade ao Poder Judiciário, de

modo que apenas este tem o poder de proferir decisões resguardadas pela

efetividade da coisa julgada.

Nosso ordenamento jurídico adotou, assim, “o sistema da jurisdição

una”,4 em contraponto aos países que utilizam o sistema do contencioso

administrativo, no qual órgãos administrativos exercem também a função

jurisdicional em lides envolvendo a Administração Pública.

Dessa forma, diante da garantia constitucional de se recorrer ao Judici-

ário sempre que verificadas lesão ou ameaça a direito, é possível concluir

que toda decisão administrativa está sujeita ao controle judicial. É preciso,

assim, traçar os limites e as características desse controle.

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 637.

4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ibid. p. 654.

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Revista da Ajufe 168

Para tanto, há que se fazer algumas considerações sobre o ato administrativo.

2. Conceito e características do ato administrativo

Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua ato administrativo como sendo

Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes

– como, por exemplo, um concessionário de serviço

público), no exercício de prerrogativas públicas, mani-

festada mediante providências jurídicas complementa-

res da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a

controle de legitimidade por órgão jurisdicional.5

Assim, segundo o autor, a possibilidade de controle de legitimidade por

órgão jurisdicional faz parte da própria definição de ato administrativo.

Maria Sylvia Zanella di Pietro também menciona expressamente a pos-

sibilidade de controle judicial, definindo o ato administrativo como “a de-

claração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos

imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e

sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.6

Diferencia-se o ato administrativo dos atos jurídicos em geral em razão

das suas peculiaridades, entre elas a presunção de legitimidade e a veracida-

de, que dizem respeito à conformidade do ato com a lei e com os princípios

que regem a Administração Pública e com a veracidade dos fatos alegados

pela Administração como motivação para o ato. Além disso, em decorrência

do regime público a que está submetido, goza das características da impera-

tividade e da autoexecutoriedade.

Os atos administrativos podem ainda ser classificados segundo diferen-

tes parâmetros, interessando ao presente estudo a classificação dos atos em

discricionários e vinculados, o que terá reflexos quanto ao controle sobre

eles exercidos.

5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 389.

6 Ibid. p. 189.

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Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, atos discricionários, ou atos

praticados no exercício de competência discricionária, seriam “os que a Ad-

ministração pratica dispondo de certa margem de liberdade para decidir-se,

pois a lei regulou a matéria de modo a deixar campo para uma apreciação

que comporta certo subjetivismo”. Já os atos vinculados seriam aqueles que “a

Administração pratica sem margem alguma de liberdade para decidir-se, pois

a lei previamente tipificou o único possível comportamento”.7 Nesses casos,

não há espaço para qualquer apreciação subjetiva por parte da Administração.

Para serem válidos e aptos a produzirem efeitos, os atos administrativos

devem cumprir os requisitos essenciais relacionados a competência, finali-

dade, forma, motivo e objeto. Porém, quanto aos atos administrativos discri-

cionários, a lei não regulou inteiramente o seu conteúdo, deixando ao admi-

nistrador a possibilidade de escolha, dentre as soluções possíveis, daquela

que parecer mais conveniente e oportuna ao interesse da Administração.

Tendo em vista a classificação dos atos administrativos em atos vinculados e dis-

cricionários, ganha relevo a definição do chamado “mérito” do ato administrativo.

O mérito está relacionado com o ato administrativo discricionário e cor-

responde justamente ao campo de liberdade conferido pela lei, para que o

administrador possa escolher, entre duas opções viáveis, aquela que melhor

atende à finalidade da lei.

A discricionariedade, porém, tem limites, que devem ser observados, sob

pena de invalidade do ato. Assim, também o ato discricionário pode sofrer con-

trole, pois, ainda que se confira margem de decisão ao administrador quanto ao

conteúdo, os demais requisitos, como finalidade e motivo, são vinculados.

3. Revisão dos atos administrativos pelo Poder Judiciário

É assente na jurisprudência brasileira que cabe aos tribunais o controle

quanto à legalidade dos atos administrativos.

Como exposto acima, para serem válidos e eficazes, os atos administrati-

vos devem cumprir todos os requisitos relacionados a competência, finali-

dade, forma, motivo e objeto.

7 Ibid. p. 428.

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Revista da Ajufe 170

Assim, o Poder Judiciário pode verificar se subsistem os motivos invoca-

dos para a prática do ato, ou se eles são idôneos; se o fim alcançado pelo ato

é realmente aquele a que se destinava (desvio de poder); se a causa do ato

é compatível com o seu objeto, tendo em vista a finalidade prevista em lei.

Mesmo quanto aos atos discricionários, o Judiciário pode exercer o con-

trole quanto a certos aspectos do ato, a fim de verificar se não foram ultra-

passados os limites da discricionariedade, ficando defesa sua intervenção

apenas “quanto aos aspectos reservados à apreciação subjetiva da Adminis-

tração Pública”,8 ou seja, o mérito do ato administrativo.

Em relação ao mérito, correspondente à conveniência e oportunidade

conferidas pela lei, tal análise é exclusiva do administrador, sob pena de

invasão de competências indevida pelo Judiciário, extrapolando os limites

da separação de poderes.

Nas palavras de Hely Lopes Meirelles,

o Judiciário não poderá substituir a Administração

em pronunciamentos que lhe são privativos, mas di-

zer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua

competência (...) Quaisquer que sejam a procedência, a

natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a pos-

sibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimô-

nio público, ficará sujeito à apreciação judicial, exata-

mente para que a Justiça diga se foi ou não praticado

com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo

ou interesses da coletividade.9

E ainda o mesmo autor:

no nosso sistema de jurisdição judicial única, consa-

grado pelo preceito constitucional de que não se pode

8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ibid. p. 654.

9 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28.ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 203.

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Revista da Ajufe 171

excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer le-

são ou ameaça a direito, individual ou coletivo (art. 5º,

XXXV), a Justiça Ordinária tem a faculdade de julgar todo

ato de administração praticado pode agente de qualquer

dos órgãos ou Poderes de Estado. Sua limitação é ape-

nas quanto ao objeto do controle, que há de ser unica-

mente a legalidade, sendo-lhe vedado pronunciar-se so-

bre conveniência, oportunidade ou eficiência do ato em

exame, ou seja, sobre o mérito administrativo.10

Assim, tem-se que em nosso sistema o controle do Judiciário em relação

aos atos administrativos está adstrito à legalidade e à legitimidade do ato,

sendo vedado o controle quanto ao seu mérito.

De se ressaltar que sobre os atos administrativos recai a presunção de le-

galidade e de legitimidade, sendo a primeira a subsunção dos atos adminis-

trativos à lei, enquanto a legitimidade decorre da observância dos princípios

que regem a Administração Pública.

E, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, não se pode atri-

buir às decisões administrativas o mesmo caráter de definitividade de que

gozam as decisões judiciais transitadas em julgado.

4. A atuação do CADE

Nos termos da Lei 12.529/2012, o CADE é uma entidade judicante com

jurisdição em todo o território nacional, possuindo natureza de autarquia

especial, exercendo a função de tribunal administrativo, responsável por

apurar, prevenir e punir as infrações à ordem econômica.

Como autarquia, órgão integrante da estrutura da Administração Públi-

ca, deve observar os princípios que regem a Administração em geral. No

entanto, diferencia-se por se submeter a regime especial, uma vez que suas

decisões não estão sujeitas à revisão na esfera administrativa, gozando, por-

tanto, de autonomia.

10 Ibid. p. 677.

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Revista da Ajufe 172

Embora considerado órgão judicante pela lei, não há o exercício da fun-

ção jurisdicional propriamente dita, que é conferida com exclusividade ao

Poder Judiciário, apesar de o CADE exercer funções assemelhadas às de um

Tribunal Judicial.11

5. Controle judicial das decisões do CADE

Superada a questão da possibilidade de revisão das decisões administra-

tivas pelo Poder Judiciário, bem como entendidos os conceitos de mérito do

ato administrativo e discricionariedade da Administração, incumbe analisar

os limites para atuação do Poder Judiciário em face de uma decisão proferi-

da por órgão técnico administrativo, como é o CADE. Além da sua natureza

jurídica, cabe perquirir acerca da natureza das suas decisões.

É entendimento pacífico que se trata de decisões administrativas, portan-

to, atos administrativos, que devem ter os mesmos requisitos de validade dos

atos administrativos em geral, o que já foi explicado anteriormente.

Segundo parte da doutrina, por se tratar de órgão técnico, as decisões

do CADE não são discricionárias, mas vinculadas a critérios científicos que

devem reger as decisões tomadas. Nesse sentido, Fernanda Mercier Querido

Farina, explicando que, na atividade sancionatória,

o ente administrativo não pode aplicar os princípios

da oportunidade e conveniência, porque a atividade

sancionadora é poder exclusivo do Judiciário e exerci-

do em caráter excepcional pela Administração Pública

(...) Sendo assim, para aplicar sanções, a Administração

deve observar a estrita legalidade.12

Nos termos expostos, não haveria discricionariedade em decisões téc-

11 ANDERS, Eduardo Caminati; PAGOTTO, Leopoldo; BAGNOLI, Vicente. Comentários à nova lei de defesa da concorrência: Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011. São Paulo: Mé-todo, 2012, p. 17-20.

12 FARINA, Fernanda Mercier Querido. Deferência ou desconfiança? O alcance judicial das revisões judiciais sobre atos das agências reguladoras em análise comparada com o direito norte-americano. Revista Jurídica Consulex, ano XVII, n. 383, jan. 2013, p. 64.

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Revista da Ajufe 173

nicas, pois o julgador fica adstrito aos aspectos técnicos, o que configura

o regramento da questão. Portanto, em sendo ato verdadeiramente vincu-

lado, e não discricionário, não suscitaria maiores questões a possibilidade

de revisão da decisão do CADE pelo Judiciário, ressaltando-se mais uma vez

quanto à impossibilidade de revisão administrativa das decisões do CADE,

em razão da sua autonomia.

Assim, a se considerar a decisão do CADE um ato vinculado, seria ampla

a possibilidade de revisão pelo Judiciário, concluindo Walter Nunes da Silva

Junior, pela “possibilidade de reexame judicial do mérito, ressalvada a recep-

ção do pronunciamento do CADE, em seus aspectos técnicos, em condição

análoga à dos laudos periciais”.13

Segundo ainda o autor, caberia, porém, à parte o ônus da prova quanto ao

enfrentamento judicial (pedido constitutivo negativo) da decisão do CADE.14

Por outro lado, caso se entenda que as decisões do CADE estejam inseri-

das no âmbito da discricionariedade administrativa, mais importante torna-

-se a discussão acerca dos limites do controle judicial.

Nesse caso, conforme entende a maioria da doutrina nacional, seria vedado

ao Judiciário adentrar no mérito do ato administrativo, cabendo a ele apenas o

controle de legalidade e também quanto à proporcionalidade ou à razoabilida-

de da penalidade aplicada ou de qualquer outra obrigação imposta.

Mais difícil, porém, é a solução, quando se trata da possibilidade de re-

valoração das provas produzidas na esfera administrativa pelo Judiciário,

implicando na reanálise de todas as provas produzidas na esfera adminis-

trativa, bem como dos debates lá travados.

Resposta simplista seria pela impossibilidade de revaloração pelo Judi-

ciário, sob o argumento de que o Judiciário não tem conhecimento técnico

para decidir controvérsias de direito econômico. Esse argumento, porém, é

facilmente afastado, pois a maioria das controvérsias envolve questões fáti-

cas, e o Judiciário, nos casos comuns, também as resolve.

13 SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Revista de direito da concorrência, n. 12, out/dez 2006, p. 109.

14 Ibid. p. 114.

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Revista da Ajufe 174

Outro argumento seria o de que, sendo a questão eminentemente técnica,

com regras claras e objetivas, não caberia a revisão pelo Poder Judiciário,

restando apenas a possibilidade de revisão quanto à proporcionalidade ou

à razoabilidade do ato ou quanto à observância dos requisitos essenciais.

Uma solução proposta seria a utilização da decisão do CADE como prova

emprestada nos autos judiciais, sendo objeto de valoração como qualquer

outra prova produzida nos autos, dentro do âmbito do livre convencimento

motivado do juiz.

6. Jurisprudência brasileira

Na jurisprudência brasileira encontram-se decisões judiciais que corro-

boram o entendimento quanto à possibilidade da mais ampla revisão das

decisões proferidas pelo CADE.

Como exemplo, é possível citar a decisão proferida pela 4º vara Federal do

Distrito Federal, nos autos da ação nº 2007.34.00.044314-6, em que o Judiciá-

rio afastou decisão do CADE que reconheceu a prática de cartel na produção de

medicamentos genéricos. Houve no caso revaloração das provas produzidas na

esfera administrativa, embora tenha reconhecido que o processo administrativo

desenvolveu-se sem qualquer ofensa aos princípios constitucionais.15

Cabe ainda citar decisão proferida pelo então ministro do STJ Luiz Fux,

segundo quem

“a atuação paralela das entidades administrativas do

setor (CADE e SDE) não inibe a intervenção do Judiciá-

rio in casu, por força do princípio da inafastabilidade,

segundo o qual nenhuma ameaça ou lesão a direito deve

escapar à apreciação do Poder Judiciário, posto inexis-

tente em nosso sistema o contencioso administrativo,”16

15 Autos nº 2007.34.00.044314-6, 4ª Vara Federal/DF, disponível em http://www.conjur.com.br/2011-dez-20/justica-federal-df-anula-decisao-cade-absolve-acusados-cartel, aces-so em 30/07/2013.

16 Superior Tribunal de Justiça, AGRMC 8791, Luiz Fux, 1ª T., 21.03.2005, disponível em www.stj.jus.br/juris.asp, acesso em 30/07/2013.

Page 175: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 175

concluindo-se, portanto, pela admissão, nos tribunais pátrios, da revisão

judicial do mérito das decisões do CADE.

No âmbito da revisão judicial das decisões do CADE, mas referente a atos

de concentração, observou-se importante atuação do Judiciário no caso das

multas aplicadas por aquele órgão, sob o fundamento de intempestividade na

submissão, ao seu controle, da realização de atos de concentração, nos termos

do §4º do art. 54 da Lei 8.884/94, c/c o art. 2º da Resolução nº 15/1998-CADE.

De acordo com a lei então vigente, as empresas deveriam, previamente ou

no prazo de 15 dias, submeter à apreciação do CADE os atos que pudessem

limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na

dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, como ocorre, por

exemplo, com os atos de aquisição de uma empresa por outra.

A referida Resolução nº 15/1998-CADE definiu que a realização da ope-

ração, para os fins da lei, ocorreria na data do primeiro documento vincu-

lativo firmado entre os requerentes, ou seja, mesmo na fase ainda das trata-

tivas, já correria o prazo legal, antes do negócio definitivamente celebrado.

Porém, prevaleceu na jurisprudência brasileira17 o entendimento de que,

nas operações empresariais complexas,

os acordos prévios de intenções entabulados pelas

empresas interessadas não estão sujeitos à regra pre-

vista no § 4º do art. 54 da Lei nº 8.888/94, uma vez que

não consubstanciam atos que, por si só, possam limitar

ou prejudicar a livre concorrência, ou resultar na do-

minação de mercados relevantes de bens ou serviços.18

17 TRF1, 6ª T., Apelação Cível 200134000076384, Relator: desembargador federal Jirair Aram Meguerian, e-DJF1:03/06/2013, p. 96; TRF1, 4ª T. Suplementar, Apelação em Manda-do de Segurança 200234000383735, Relator: juiz federal Rodrigo Navarro de Oliveira, e--DJF1:31/10/2012, p. 1672; TRF1, 4ª T. Suplementar, Apelação Cível 200334000212522, Relator: juiz federal Rodrigo Navarro de Oliveira, e-DJF1:28/09/2012, p. 783; TRF1, 1ª T. Su-plementar, Apelação Cível 200134000276690, Relator: juiz federal Miguel Ângelo de Alvaren-ga Lopes, e-DJF1:21/06/2013, p. 1490, disponível em www.jf.jus.br, acesso em 30/07/2013.

18 TRF1, 5ª T., Apelação Cível 200134000211703, Relatora: desembargadora federal Se-lene Maria de Almeida, e-DJF1: 08/07/2013, p. 60, disponível em www.jf.jus.br, acesso em 30/07/2013.

Page 176: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 176

Em relação à atuação do Judiciário, pode-se tratar ainda das ações de

indenização cíveis, cuja competência para apreciação lhe é exclusiva.

7. Conclusão

Verifica-se, a partir dos casos citados, exemplos da importância do Judi-

ciário na defesa da ordem econômica, fundamentada sua atuação na garan-

tia da inafastabilidade da jurisdição.

Porém, embora não se possa descuidar dessa garantia constitucional,

instrumento fundamental de controle do Estado pelo indivíduo, torna-se

também necessário definir limites dessa intervenção, uma vez que a possibi-

lidade ampla de revisão judicial das decisões administrativas do CADE pode

levar à perda de credibilidade do órgão administrativo técnico e à inefetivi-

dade de suas decisões, acarretando consequências, como o enfraquecimento

do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.

Há que se ressaltar que a Constituição elegeu alguns valores a serem pro-

tegidos, dentre eles a concorrência, elencando no seu art. 170 os princípios

que regem a ordem econômica.

Assim, visando à efetiva realização desses valores constitucionais, o

sistema mais adequado é aquele que permite a convivência harmônica dos

agentes que atuam na sua defesa e proteção – sendo os principais o CADE

e o Poder Judiciário.

Por fim, as dificuldades iniciais do Judiciário em lidar com questões afei-

tas à defesa da concorrência, dada sua relativa escassez nos tribunais, ten-

dem a ser reduzidas com a participação mais ativa que vem tendo o CADE

no exercício de sua função, aumentando o número de lides trazidas à apre-

ciação judicial, o que levará, após algum tempo, à formação de uma jurispru-

dência consolidada, trazendo maior segurança jurídica.

8. Bibliografia

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Uma espectrografia ideológica do debate

entre garantismoe ativismo

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Eduardo José da Fonseca CostaJuiz federal substituto em Ribeirão Preto (SP)

Bacharel em Direito pela USP. Especialista, mestre e doutorando em Direito processual Civil pela PUC-SP. Membro do IPDP, do IBDP

e da ABDPC. Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual.

Resumo: As ideologias políticas influenciam a maneira como se vê o pro-

cesso, motivo pelo qual se pode traçar com tranquilidade uma divisão entre:

a) processualistas liberais (simpáticos ao laissez-faire, eles veem o juiz como

“vigilante noturno”, o qual deve somente cuidar do fair play processual); b)

processualistas socialistas (simpáticos a um “sociosssanitarismo”, estes de-

fendem que ao juiz cabe resolver com justiça social os conflitos subjacentes,

não apenas a lide); c) processualistas fascistas (simpáticos a um dirigismo à

outrance, entendem que o juiz deve desempenhar no feito uma monocracia

policiesco-inquisitorial); d) processualistas social-liberais (simpáticos ao

gerencialismo, divisam o processo como microempresa a ser estrategica-

mente administrada pelo manager judge). O objeto do presente artigo será,

portanto, tratar de cada uma dessas correntes, investigar os debates ence-

tados e criticar o simplismo da dicotomia entre o garantismo (ao qual se

filiam os liberais) e o ativismo (a que se filiam os socialistas, os fascistas e

os social-liberais).

Palavras-chave: Ideologia – Processo civil – Garantismo – Ativismo –

Liberalismo – Neoliberalismo – Socialismo – Fascismo – Social-Liberalismo

Resumen: Las ideologías políticas influyen en nuestra forma de ver el

proceso. Por eso se puede tranquilamente hacer una división entre: a) los

procesalistas liberales (que simpatizan con el laissez-faire y sostienen que

el juez debe ser un “vigilante nocturno”, que cuida el fair play procesal),

b) procesalistas socialistas (que simpatizan con el “sanitarismo social” y

sostienen que el juez no debe promover la composición del litigio, pero re-

solver los conflictos subyacentes con justicia social), c) procesalistas fas-

cistas (que simpatizan con el dirigismo à outrance y entienden que el juez

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debe desempeñar una monocracia policiesco-inquisitorial) d) procesalistas

social liberales (que simpatizan con el gerencialismo e ven el proceso como

una microempresa gestionada por el manager judge). El objeto de este ar-

tículo se referirá a cada una de estas corrientes, investigará los debates

y hará una crítica de la dicotomía simplista entre el garantismo (a que se

unen los liberales) y el activismo (a que se unen los socialistas, fascistas y

social liberales).

Palabras clave: Ideología – Proceso civil – Garantismo – Activismo – Li-

beralismo – Neoliberalismo – Socialismo – Fascismo – Liberalismo Social

1. Introdução

As ideologias políticas influenciam enormemente a forma como se enxer-

ga: (i) a estruturação básica do Estado e a sua ordenação normativo-consti-

tucional [polity]; (ii) a maneira de formularem-se as decisões governamen-

tais e de ocuparem-se os postos de governo pelos competidores [politics];

(iii) as metas, as tarefas e os objetivos a serem alcançados pelo Estado e os

meios técnicos a serem empregados para essa consecução [policy]. Daí por

que não é preciso grande esforço para que se conclua que as ideologias

políticas exercem sugestão indeclinável sobre a forma como se visualiza a

organização administrativo-funcional do Estado-juiz, o modo de formula-

rem-se as decisões judiciais, a maneira de ocupação dos cargos judiciários

e de apoio, e os objetivos, as metas e as tarefas que cabem ao Estado no

desempenho específico da função jurisdicional. Em vista disso, é inevitá-

vel que essa influência ideológica também acabe sendo exercida sobre o

principal instrumento a serviço da justiça não criminal, o processo civil, ou

sobre a forma de se interpretá-lo. Existe, assim, uma profunda relação entre

o direito processual e as ideologias políticas (infelizmente, ainda pouco es-

tudada no Brasil, não obstante objeto de detida análise na América e Europa

Latinas, especialmente por Juan Montero Aroca na Espanha, Adolfo Alva-

rado Velloso na Argentina, Glauco Gumerato Ramos no Brasil e Girolamo

Monteleone e Franco Cipriani na Itália, todos ilustres “garantistas”, os quais

se opõem ao “ativismo” sustentado por autores como José Carlos Barbosa

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Moreira no Brasil e Augusto Mario Morello, Roberto Omar Berizonce e Jor-

ge Walter Peyrano na Argentina). Ademais, as ideologias políticas sempre

portam consigo uma espécie de “antropologia filosófica”, i.e., a elas subjaz

uma metafísica, que reflete sobre os homens e como eles se relacionam entre

si, com a Natureza e com Deus. Logo, esse pressuposto filosófico acabará

esquematizando a forma como o jurista entenderá as vocações das partes e

dos juízes – como homens unidimensionais que o reducionismo ideológico

deles faz – no curso de um processo judicial. Não sem motivo, as partes são

vistas pela concepção socialista de processo (mais cooperativa) como os

“bons homens” de Jean-Jacques Rousseau, que precisam ser tutelados pelo

Estado-provedor. Em contrapartida, para a vertente liberal clássica (mais

adversarial), as partes são os “lobos belicosos” de Thomas Hobbes [homo

hominis lupus], que têm de ser protegidos contra as impetuosidades imper-

tinentes de Leviatã, e que precisam ser salvos de si mesmos, já que vivem sob

o regime bellum omnium contra omnes.

Nesse sentido, o objetivo da presente reflexão-mirim é desocultar o mis-

sing-link entre as concepções sobre o processo civil e as ideologias políticas

e mostrar como elas subjazem inúmeras concepções e construções dogmá-

tico-processuais pretensamente “técnicas”. Aliás, dado que os debates dog-

máticos nada mais têm sido do que ingênuas confrontações “técnicas”, é

possível afirmar que o real e necessário debate – o debate ideológico – tem

sido menoscabado pela própria intelligentsia processual brasileira (ao con-

trário do que ocorre nos países hispanohablantes latino-americanos, onde

a disputa entre garantismo e ativismo parece estar no zênite). Isso revela

um comportamento sui generis de autoalienação e abdicação intelectual. De

pronto, já se vê que o processo, posto que seja instrumento técnico à dispo-

sição do Estado-juiz, também é instrumento político: é técnico, já que se re-

vela como conjunto de normas analíticas, hermenêuticas e pragmáticas, ten-

do como objetivo a aplicação do direito material à solução dos conflitos; é

político, pois o Estado, ao monopolizar a distribuição da justiça, dela se vale

para promover a paz social. Daí o motivo por que a estrutura e a dinâmica do

processo civil obedecem a uma “lógica substancial híbrida”, em que razões

de neutralidade técnico-jurídica e motivações de índole político-axiológica

se interpenetram. Com isso, se nota a grave inadequação metodológica que

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inquina a dogmática dominante, cujo insulamento sistêmico não permite aos

processualistas – mesmo após a difusão das ideias-força do instrumentalis-

mo processual de Cândido Rangel Dinamarco no Brasil – se comunicarem

com o direito constitucional e a ciência política (se bem que isso esteja pau-

latinamente mudando no Brasil), e cujo cientificismo asséptico os faz tratar

o processo civil apenas como um expediente gélido.

Decerto, não se pretende aqui discorrer enfadonhamente sobre a concei-

tuação de ideologia. Isso porque talvez seja o mais inexato termo das ciên-

cias sociais. Afinal de contas, a própria noção de ideologia é alvo de influxos

ideológicos. Tampouco se deseja rascunhar a história do emprego do termo

na literatura político-científica desde Destutt de Tracy, em 1801, para quem

ideologia = ιδεα + λογος = “ciência fundamental das ideias” (o que produ-

ziria obra interminável). Para os propósitos limitados do presente trabalho,

é suficiente dizer que a palavra ideologia assumiu, fundamentalmente, dois

grandes sentidos na tradição ocidental: um negativo e outro positivo. O pri-

meiro sentido (que Norberto Bobbio preferiu chamar de “sentido forte”) foi

cunhado por Karl Marx na cartilha A ideologia alemã e está associado às

ideias de mistificação, mascaramento, manutenção do status quo, manipula-

ção, ficção, ilusão, “falsa consciência”. Segundo a tradição marxista, a ideo-

logia seria, em outras palavras, um elemento superestrutural, que representa

a consciência dos interesses da própria classe burguesa como sendo os in-

teresses de todos os grupos sociais e que, consequentemente, encobriria a

verdadeira natureza das relações de produção, em que a classe trabalhadora

é explorada. Nesse sentido, as ideologias seriam reprováveis e entendidas

como o oposto de conceitos edificantes como ciência, filosofia, racionali-

dade, objetividade, verdade e clareza. No entanto, apesar da penetração do

sentido negativo no meio intelectual, prevaleceu nas análises político-cien-

tíficas o sentido positivo (ao qual Norberto Bobbio deu o nome de “sentido

fraco”). Ou seja, a ideologia passou a ser principalmente entendida como

um conjunto de crenças, opiniões e valores que: a) de um ponto de vista

conservativo: a.1) fornecem uma perspectiva, geralmente na forma de “visão

de mundo” (que os alemães chamam de Weltanschauung), para a compreen-

são e a explicação da ordem vigente; a.2) ajudam a modelar a natureza dos

sistemas políticos; a.3) funcionam como uma forma de “cimento social”, aju-

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dando a estabelecer a estabilidade social e a ordem; b) de um ponto de vista

modificativo: b.1) desenvolvem um modelo de futuro desejável; b.2) explicam

como a mudança política para esse futuro pode ser realizada.

A fortiori, no que diz especificamente respeito ao processo civil, a ideolo-

gia: 1) fornece uma cosmovisão para a explicação e a compreensão do sistema

processual civil positivo vigente (ou seja, a ideologia do jurista interfere no seu

discurso doutrinário); 2) ajuda a modelar esse próprio sistema processual po-

sitivo vigente a ser compreendido e explicado (ou seja, a ideologia dominante,

muitas vezes, influência o discurso normativo, embora essa influência não

seja automática, na medida em que a história mostra a edição de leis democrá-

ticas em regimes autoritários de exceção); 3) proporciona, dentro de uma de-

terminada comunidade dos operadores desse sistema, um paradigma ou uma

cultura unificada de interpretação-aplicação (ou seja, a ideologia política do

juiz pode interferir na forma como ele interpreta e aplica a lei processual); 4)

desenvolve um modelo de futuro desejável para o sistema jurídico-processual

(ou seja, a ideologia política pode inspirar propostas de reforma legislativa ou

novas formas de interpretação da lei processual civil vigente); 5) identifica as

circunstâncias que podem levar a comunidade jurídica a resistir a essas mo-

dificações (ou seja, a ideologia dominante pode contribuir para a conservação

do sistema processual vigente). Em conclusão, a ideologia desempenha, na

seara do processo civil, uma função jurídico-positiva, uma função teórico-

-cognitiva e uma função prático-social.

Há quem sustente que, em um mundo pós-moderno e globalizado – mar-

cado por consumo pessoal, fragmentação social, perda do senso comum e

legitimação tópica de poder – não haveria mais lugar para “sistemas globais

de interpretação do mundo social”. Entrementes, o dia a dia tem frustrado

essa aposta. Na verdade, tem-se assistido simplesmente à superação histórica

das principais tradições ideológicas e ao surgimento de “novas” formas ide-

ológicas (feminismos, ecologismos, fundamentalismos religiosos, multicultu-

ralismos, ambientalismos etc.). Mesmo que assim seja, não se pode negar que

as ideologias clássicas ocidentais (socialismo, liberalismo, conservadorismo,

fascismo, etc.), bem como suas subdivisões (marxismo, comunismo ortodoxo,

social-democracia, liberalismo clássico, liberalismo social, conservadorismo

autoritário, conservadorismo liberal, etc.), ainda têm influenciado profunda-

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mente as grandes formas de compreensão da política, das tarefas do Estado,

do papel da jurisdição e, por conseguinte, da estrutura e da dinâmica proces-

sual civil. Enfim, ainda é possível traçar com tranquilidade uma divisão entre

“processualistas à direita” (afetos a uma “concepção neoprivatista ou liberal

clássica do processo”) e “processualistas à esquerda” (atrelados à chamada

“concepção social do processo”). Mais: é possível identificar vários posicio-

namentos intermediários (p. ex., concepção social-liberal do processo). Em

suma, a velha contenda entre o liberal e o social ainda influi e dá sentido a

grande parte das principais disputas do pensamento processualístico hodier-

no (embora os paradigmas fascista e conservador também fomentem impor-

tantes linhas do pensamento dogmático-processual).

2.

O grande Leitmotiv do pensamento liberal clássico é o indivíduo (valor

supremo acima de qualquer grupo social), ser humano dotado de razão, pen-

sante, capaz de definir seus próprios interesses e ir atrás deles. Para satisfa-

zerem esses seus interesses pessoais, os indivíduos devem desfrutar de uma

máxima liberdade, compatível com uma liberdade similar para todos, me-

diante o gozo dos mesmos direitos [= igualdade jurídico-formal], e, com isso,

serem recompensados de acordo com o seu talento e a sua disposição para o

trabalho [= desigualdade meritocrática]. Nesse sentido, os liberais entendem

serem inevitáveis as desigualdades de riqueza, posição social e poder políti-

co (por influência do princípio darwinista-social da “sobrevivência do mais

apto”). Mais: entendem que a igualdade social é injusta, já que trata os indiví-

duos – que são naturalmente diferentes entre si – da mesma maneira. Assim,

para que sejam livres de interferências, possam agir de acordo com as suas

próprias escolhas e se desenvolvam moralmente aprendendo com os erros,

é preciso que eles estejam protegidos contra o governo (necessário, porém,

potencialmente tirano). Note-se que a escolha moral do que é “bom” cabe

ao indivíduo [= autonomia pessoal], não ao governo, que deve se limitar a

uma “neutralidade moral”, circunscrita à garantia dos direitos subjetivos.

Aliás, aqui reside a chave do liberalismo econômico: o exercício autonômico

do egoísmo material de cada indivíduo – sem as intervenções do Estado na

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economia – faz nascer um conjunto de pressões impessoais que despontam

um mecanismo autorregulado pelas forças da oferta e da procura, chamado

“mercado”, o qual, pela “mão invisível” de Adam Smith, tende naturalmente a

promover o bem-estar e a prosperidade econômica.

A proteção contra a tirania dos governos é possível mediante uma or-

ganização político-econômica fundamentada em valores como democracia,

economia de mercado, descentralização administrativa e constitucionalis-

mo. A concretização desses valores deve direcionar-se à formação de um

“Estado mínimo soberano” (o que não se confunde com a estadofobia dos

anarquistas), cuja função seja limitada à preservação da ordem interna, à

manutenção da segurança pessoal e à proteção da sociedade contra ataques

externos (como afirmava Locke, é o Estado como um “guarda noturno”). Se-

gundo Thomas Jefferson dizia, “o melhor governo é o que menos governa”

[“That government is best which governs least”]. Sem isso, não se viabiliza

uma sociedade equilibrada e tolerante, onde seja possível a maximização

do domínio da autossuficiente, irrestrita e livre ação dos indivíduos e das

associações voluntárias. Daí já se percebe que a autoridade política vem “de

baixo”: o Estado é instituído por indivíduos e para indivíduos com o obje-

tivo de proteger os direitos naturais e ser um árbitro neutro, que aplique as

“regras do jogo” quando eles entrarem em conflito uns com os outros (o que

revela a vital importância de um Judiciário que desfrute de independência

formal e neutralidade política).

O transplante ao microambiente jurisdicional dos importantes topoi da

retórica liberal (como individualismo, liberdade negativa, razão, justiça e

tolerância) faz nascer uma espécie de “laissez-faire processual civil” (tão

caro até hoje à composição das lides empresariais, p. ex.). No livro A fábula

das abelhas: vícios privados, benefícios públicos (editado pela primeira vez

em 1714, e em 1723 numa versão mais completa), o mignon dos liberais

Bernard de Mandeville defende que tudo quanto seja entendido como vício

pelos homens – ganância, inveja, vaidade e orgulho – é fundamental para a

prosperidade da nação, porquanto o desejo humano na busca do autointe-

resse tem como consequência não intencional um caráter estabilizador para

a sociedade; ou seja, o “bem comum” não é produto da retidão das pesso-

as, de suas virtudes, mas de seus vícios individuais e de seu amour propre.

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Mutatis mutandis, o sistema adversarial prega algo similar para a dinâmi-

ca processual civil: tanto mais o juiz terá subsídios para bem julgar quanto

mais deixar as partes digladiarem-se livremente, dentro de uma “saudável

desordem”, até o esgotamento das discussões sobre todos os fundamentos e

argumentos (ainda assim, isso não sabota a desejada presteza jurisdicional

caso as partes se percam em hostilizações mútuas e discussões periféricas?).

Nesse sentido, observa-se a iluminista sacralização do contraditório ad nau-

seam, a relativa tolerância à astúcia, sem qualquer abertura para pronuncia-

mentos judiciais moralizantes, e um juiz que acaba se limitando a simples

“árbitro passivo”, “vigilante noturno” [Nachtwächter Richter], “mandatário

das partes”, “guarda de trânsito”, que cuida do fair play tão-só para que o

processo não descambe para uma deslealdade daninha e insuportável (daí

por que o sistema de combate à litigância de má-fé é erguido sob a respon-

sabilidade subjetiva do improbus litigator).

Com isso, já se nota que o processo é tido como “coisa das partes” [Sache

der Parteien], e não como um instrumento do juiz: o magistrado, para não

“sujar as suas mãos” e manter-se “bacteriologicamente puro” [José Igreja

Matos], não pode ter iniciativas probatórias [iudex non potest supplere in

facto] e deve guiar-se por uma atuação de tipo tabua rasa. Cabe tão-somente

às partes municiá-lo com os elementos objetivos de convencimento [princí-

pio puramente dispositivo], tendo em vista que elas são as senhoras dos pró-

prios interesses. Nenhuma medida pode ser concedida pelo juiz ex officio, a

não ser que exista o prévio requerimento das partes, que gozam de igualdade

meramente formal, não podendo o juiz igualá-las mediante qualquer provi-

mento compensatório. O perito passa a ser simples testemunha qualificada

da parte que o indica. Os ônus de prova são predefinidos mecanicamente em

lei a cada uma das partes, sem existir a possibilidade de invertê-los. O juiz

de Montesquieu – bouche de la loi – não tem o poder de flexibilizar o proce-

dimento legal (ordinário, indisponível e predominantemente escrito), o que,

quando muito, é possível mediante a celebração prévia de um acordo entre

as partes; visto que o juiz é um singelo “convidado de pedra” e as partes são

as “donas do processo”, este fundamentalmente se destina a aplicar ao caso

individual e concreto o direito objetivo que regula a relação de direito mate-

rial controvertida, e não promover uma política pública supraindividual de

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pacificação social [privatismo particularista]. O objeto litigioso é definido

apenas pelas partes, sem que o juiz tenha qualquer ingerência sobre o seu

conteúdo. O “devido processo legal” é visto como um conjunto de direitos

e garantias fundamentais, atribuídos às partes e oponíveis ao Estado-juiz,

a fim de que o processo possa nomocraticamente desenrolar-se sob uma

visão bilateral dialética simétrica, sem poderes exacerbados a qualquer dos

sujeitos do processo [garantismo]; tão-só as partes podem, eventualmente,

desconstituir a coisa julgada material por meio de ação rescisória ou quere-

la nullitatis insanabilis, razão por que o juiz não pode relativizá-la de ofício.

Na trilogia estrutural da ciência processual civil, o aspecto mais estudado

é o processo, em especial as situações jurídicas subjetivas ativas proces-

suais, que as partes podem assumir diante do Estado-juiz; o juiz-símbolo

do liberalismo clássico é um “juiz-anão”, reativo, agnóstico, singelo orga-

nizador do duelo das partes (bem ao gosto do processo germânico antigo),

que sofre do weberiano “desencantamento do mundo” [Entzauberung der

Welt] e que não acredita em soluções “justas ou corretas”. Ante todas essas

considerações, não é difícil concluir que, para os liberais clássicos, numa lei

processual civil (como a Ley de Enjuiciamento Civil espanhola, por exemplo,

rotulada de ser preponderantemente “garantista”), torna-se a previsibilidade

um canto sacral: a vigência de “regras do jogo” claras e imutáveis e de um

procedimento construído more geometrico, que se desenvolva always under

law, por meio de raciocínios concepto-subsuntivos, é conditio sine qua non

para a exclusão da arbitrariedade e prepotência judiciais, portanto, e para a

atuação irrefreada das partes no “livre mercado processual”.

3.

A flama social foi alimentada pelas condições cruéis e, muitas vezes, desu-

manas em que vivia e trabalhava a classe operária. Por isso, surgiu como críti-

ca à sociedade de mercado liberal e numa tentativa de ofertar uma alternativa

ao capitalismo industrial. Da mesma forma que o credo liberal, o socialismo

compartilha a fé nos princípios da razão e do progresso. Entretanto, aqui, a

chave do desenvolvimento não está no egoísmo individual competitivo (ge-

rador de agressividades), mas na cooperação mútua (geradora de afeição e

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solidariedade), a ser estimulada pelo Estado. Os homens podem ser motivados

não só por incentivos materiais (e.g., recompensas financeiras), mas morais

(e.g., contribuição para o bem comum). São enxergados como criaturas emi-

nentemente sociais, unidas por sua humanidade comum e tão-somente capa-

zes de superar os seus problemas sociais e econômicos apoiando-se na força

da comunidade. Por conseguinte, a iniciativa humana coletiva tem mais valor

que o esforço individual. Mais: os homens são divisados como seres “plásti-

cos”, de comportamento e identidade moldados não pela “natureza”, mas pela

“cultura” através de experiências de interação intersubjetiva, circunstâncias

da vida social e participação em entidades de caráter coletivo. Em vista disso,

enquanto os pensadores liberais estabelecem clara distinção entre o “indiví-

duo” e a “sociedade”, os socialistas acreditam que o indivíduo é inseparável da

sociedade. Nesse sentido, sustentam que os seres humanos são naturalmente

iguais, mas se diferenciam por força da desigualdade de oportunidades. Em

suma, a desigualdade humana reflete a estrutura desigual do sistema capita-

lista. Daí por que a igualdade meramente formal dos liberais lhes soa como

algo inadequado. Com isso, o principal valor do socialismo, e a grande missão

da autoridade governamental, é a promoção da igualdade social, que fortalece

a coesão e a estabilidade sociais.

Originariamente, o socialismo foi associado à ideia de “política de classes”,

ora por entender que os homens pensam e agem junto daqueles que compar-

tilham uma mesma posição socioeconômica (o que, nos evangelhos civis de

Karl Marx, Friederich Engels e tutti quanti, era a chave para a compreensão

da História), ora por entender que o próprio socialismo era a expressão dos

interesses da classe trabalhadora, a qual lutava para emancipar-se. Essa visão

classista, todavia, acabou enfraquecendo-se por força da desindustrialização,

da redução da classe trabalhadora tradicional e do crescimento da classe mé-

dia, o que desmentiu Marx e sua gafe teórica biclassista. Com isso, as uto-

pias sociais hard do marxismo clássico e o comunismo ortodoxo (fundadas

na crença de que o motor da história é a luta de classes e de que o capitalismo

será abolido pela revolução proletária e substituído pela sociedade sem clas-

ses, sem propriedade privada, sem desigualdades sociais, e de economia as-

sentada na coletivização estatal e na planificação centralizada) sofreram pro-

fundas revisões e geraram linhas mais softs do pensamento socialista, o qual

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passou a ser chamado de New Left: o neomarxismo (em que, dentre outras

coisas, se recriminam o determinismo primacial da economia e o status pri-

vilegiado da classe proletária); a social-democracia (fundada na ideia de que

o capitalismo, conquanto seja meio defeituoso de distribuir riqueza, é a única

forma confiável de gerá-la, motivo pelo qual – à luz dos ditames da justiça

social e dos princípios liberais democráticos – pode ser pacificamente cor-

rigido e humanizado por regulação social e econômica de um Estado que se

direcione à erradicação da pobreza); a “terceira via” (que repele o “andar com

os próprios pés” dos liberais, rejeita a social-democrata “assistência do berço

ao túmulo”, admite pragmaticamente a economia globalizada acima do Estado,

aceita as diferenças de classe e as desigualdades econômicas, e defende uma

assistência social tão-somente aos excluídos, mediante uma política merito-

crática de “oportunidade, não esmola”, que, embora fraternal, contrabalanceie

direitos e responsabilidades).

De qualquer modo, todas essas correntes ideológicas de inspiração so-

cialista são permeadas por idealizações como igualdade material, justiça

social, preocupação com os pobres, colaboração, prevalência do social so-

bre o individual, solidariedade e planificação estatal. Transplantados para

o âmbito jurisdicional, esses valores acabam infundindo uma espécie de

“sociossanitarismo processual” (até hoje tão querido às lides sobre welfa-

re rights, i.e., às lides trabalhistas, previdenciárias e assistenciais). Aqui, ao

contrário da concepção liberal clássica de processo civil, não se está apenas

preocupado em “compor ilides”. O cavalo de batalha da vanguarda socialista

é resolver com justiça social o conflito subjacente. Não por outro motivo

a figura processual central se torna o juiz – o “juiz-gnóstico” –, investido

nos “poderes iniciáticos” de transpor a realidade “verossimilhante” in statu

assertionis. Através desta big science que é a Sociologia, ele “desmascara”

a realidade “verdadeira” em suas mais “profundas contradições” mediante

uma “análise microscópica marginal”, que dá de ombros para os princípios

clássicos do direito probatório. Em suma, fazem-se vistas grossas ao adágio

“o que não está nos autos não está no mundo” [quod non est in actis non

est in hoc mundo], e a fria “verdade formal” dá lugar à efervescente “ver-

dade material”. Em síntese, o juiz do “fabianismo processual” é aquele que

segue o script hegeliano da “reconciliação com a realidade” [Versohnung

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mit der Wirklichkeit]. Para tanto, o processo deixa de ser instrumento à dis-

posição das partes para tornar-se instrumento público colocado à disposi-

ção do Estado-clínica para a implementação ex cathedra de uma política de

equalização social [publicismo social]. Mais: ao juiz são conferidos amplos

poderes extroversos [princípio inquisitivo], que ele tem de exercitar com a

missão soteriológica de reequilibrar as forças entre as partes e prevalecer

a igualdade substancial entre elas. Para a concepção socialista, juiz bom é o

juiz-Hobin-Hood, executor testamentário das ideias dos grandes ícones do

“romantismo social”. Em favor do “elo mais fraco” da relação processual –

iniciativa conhecida como “parcialidade positiva” (?!) – o juiz, excepcional-

mente, pode flexibilizar o procedimento-padrão legal (conquanto aqui, via

de regra, seja praticado um procedimento sumário e preponderantemente

oral), inverter o ônus da prova, relativizar pro misero as asperezas da res iu-

dicata (o que explica a disseminação contra legem, no Brasil, da coisa julga-

da secundum eventum probationis, especialmente nas lides previdenciárias

e assistenciais), interferir na formação do objeto litigioso, suprir as lacunas

probatórias (isso não afronta a “imparcialidade”?) e conceder provimentos

ex officio (como, v.g., tutelas de urgência) [ativismo autoritário “socioequili-

brante”, que os críticos veem como práxis gauchiste].

Por isso, o magistrado deixa de ser o “inerte anêmico” da heresia liberal

para se tornar um apaixonado “politburocrata soixante-huitard”, um “rei-

-filósofo” de Platão, um centralizador das iniciativas, interessado nas ma-

zelas socioeconômicas da relação jurídica material controvertida e predis-

posto a erradicá-las. Com isso, já se percebe que o foco dogmático maior

sai do processo e recai sobre o estudo da jurisdição, a qual é vista menos

como jurisdictio [= poder de “dizer direitos”) e mais como imperium [= po-

der de “concretizar direitos”]. Isso faz com que a cláusula do due process of

law, do “processo civil justo”, seja o processo efetivo, aquele que consegue

transformar a realidade social. Além disso, o processo passa a ser um “bem

de todos”, uma “propriedade do povo”, posta sob a custódia de um manda-

rinato judiciário, que deve desempenhar os seus misteres com visão social

e sentimento altruísta. Sendo o magistrado um “grande timoneiro” a la Mao

Zedong, não se é de estranhar que o contraditório tão-só seja permitido den-

tro de rédeas firmes, sem que as partes se percam em longos debates febris,

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muitos dos quais estéreis. Ora, se o processo é instrumento social, ele não

pode se perder em artimanhas, ofensas, astúcias e outras imoralidades: a

litigância de má-fé é reprimida incisivamente. Diante de todas essas consi-

derações, pode-se concluir que, para uma visão socialista, o lema de ordem

em uma lei processual civil deve ser a transformação social (especialmente

em favor dos “excluídos e marginalizados”): se o juiz não tiver poderes para

modificar o status quo, o processo não cumprirá a sua finalidade última.

4.

Semelhante ao processualismo social é o processualismo gerado pela

ideologia fascista.

Não é fácil definir o fascismo. Nacionalismos frustrados e desejos de vin-

gança mal resolvidos desde a Primeira Guerra Mundial vieram à tona no seio

da classe média baixa (comerciantes, pequenos empresários, fazendeiros,

artesãos, etc.), atingida pela crise econômica da década de 1930 e espremida

entre os crescentes poderes das grandes empresas e do trabalho organizado.

Com isso, floresceu um ódio tanto ao capitalismo (livre mercado) quanto

ao socialismo (planificação centralizada), o que fez despontar o chamado

“corporativismo”, em razão do qual as classes sociais não lutam entre si, mas

trabalham em harmonia para o bem comum, mediadas pelo Estado. A base

desse novo modo de produção seria uma comunidade nacional espiritual

e organicamente unificada, sob coesão social incondicional, expressa no

lema “l’union fait la force” e regida por um Estado totalitário, sob o governo

pessoal de uma liderança forte e incontrastável (Il Duce; Der Führer). Para

que isso tudo fosse viabilizado, indispensável era que as ideias iluministas

de igualdade, liberdade, progresso e fraternidade da Revolução Francesa de

1789 fossem aniquiladas por valores marciais como poder, guerra, ordem,

autoridade, obediência, lealdade e heroísmo. O individualismo deveria ceder

lugar, consequentemente, a uma nova concepção de homem: um herói, ab-

sorvido pela comunidade e motivado pelos sentimentos de dever, honra, ab-

negação, glória e fidelidade absoluta ao chefe supremo e todo-poderoso. Daí

se vê que o fascismo jamais se preocupou com a elaboração de um sistema

racional e coerente: tratava-se de “uma disparatada miscelânea de ideias”

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Revista da Ajufe 193

[Hugh Trevor-Roper]. De todo modo, é possível identificar alguns princí-

pios fundamentais: a) o antirracionalismo (que enfatiza o mítico, a história,

o passado comum, o sentimento, a cultura, a vontade, o impulso, o instinto e

os limites da razão e do intelecto); b) a luta (que crê no darwinismo social e

na guerra como forma de seleção natural dos homens mais fortes); c) socia-

lismo (que desenvolve um coletivismo antimaterialista e faz com que o capi-

talismo sirva aos interesses do Estado); d) ultranacionalismo (que acredita

na superioridade de uma nação sobre as demais e fomenta o expansionis-

mo e o imperialismo, pois); e) liderança (que entende que a sociedade civil

deve ser guiada por uma autoridade carismática, liberta de qualquer amarra

constitucional); f) elitismo patriarcal (que rejeita a igualdade, crê no governo

de uma minoria “guerreira” masculina, disposta ao sacrifício, sobre as mas-

sas fracas, inertes e ignorantes, destinadas à obediência cega).

Transplantada a Weltanschauung fascista para o âmbito jurisdicional,

chega-se a um “dirigismo processual à outrance”. O processo torna-se um

regnum iudicis, em que o juiz exerce uma monocracia formalista, legalista e

policiesco-inquisitorial. Por outro lado, os litigantes são vistos como doentes

inferiores, que destoam da harmonia sócio-orgânica e precisam ser espiri-

tualmente curados com Justiça pelo Estado Paternal (e, se possível, reconci-

liados, mas nunca em âmbito alternativo privado extrajudicial: “Nada fora do

Estado”, como pregava Mussolini). Aqui, também o juiz é investido em “pode-

res ilimitados quase místicos” – afinados com a livre recherce scientifique,

dos franceses, e a Freirechtbewegung, dos alemães – de transpor a “verdade

formal”, trazida aos autos in statu assertionis, e chegar à “verdade material”,

ignorando o adágio quod non est in actis non est in hoc mundo. Apesar disso,

o juiz não manipula esses mecanismos probatórios com a intenção “socioe-

quilibrante” dos aventureiros marxistas, i.e., com o fito de reequilibrar par-

tes socioeconomicamente desiguais: a sua iniciativa probatória dá-se a tout

propos, simplesmente para reafirmar a autoridade incontrastável do Estado.

Trata-se da redução destro-hegeliana e ad Hitlerum da “reconciliação com a

realidade” [Versohnung mit der Wirklichkeit]. É como se a jurisdição, segundo

a dicção de um dos maiores teólogos do Estado, fosse “fim último”, “finali-

dade própria, absoluta e inamovível”, “o razoável em si e por si”, que tem “o

supremo direito contra o indivíduo, cuja suprema obrigação se centra em ser

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Revista da Ajufe 194

membro do Estado”. Não por outro motivo se admite que, arbitrariamente, o

juiz, sem uma finalidade específica: imponha aditamentos oficiosos ao obje-

to litigioso; supra oficiosamente os pressupostos processuais; investigue ou

fixe fatos não alegados; flexibilize o procedimento-padrão; inverta o ônus da

prova; relativize a res iudicata sem provocação das partes (especialmente em

favor da própria Fazenda Pública em juízo); conceda provimentos ex officio

[ativismo autoritário publicístico radical]. Nesse sentido, para a concepção

fascista, tem mais-valia o “juiz-general”, o “linha-dura monista”, que seja a

prima donna do espetáculo processual.

Logo, o processo deixa de ser instrumento à disposição das partes para

tornar-se um instrumento do Estado-juiz a serviço de uma pacificação a

fórceps e, portanto, um instrumento de dominação [publicismo estatólatra].

Com isso, o foco dogmático recai sobre o estudo da jurisdição, a qual efeti-

va os direitos subjetivos, não para transformar subversivamente a realidade

social em favor dos mais necessitados, mas para alimentar a libido domi-

nandi estatal. Afinal de contas, mais importante que a transcendência da

jurisdictio e de suas palavras é a imanência do poder judicial de imperium

e de sua ação realizadora. Ademais, o processo civil passa ser um “bem pú-

blico”, uma “propriedade do Estado”, posta sob custódia de um patriciado

cartorial, formado por agentes judiciais plenipotenciários. Sendo o juiz o

Führer, não se é de estranhar que o contraditório seja reelaborado à luz de

uma cooperação orgânico-espiritual entre as partes, sem que elas se percam

na dialética febril e mesquinha do abjeto homo economicus liberal. Ou seja,

sob os auspícios do ideal da cooperação monocêntrico-judicial, o contradi-

tório é tido menos como debate dialético simétrico [= desentendimento entre

formalmente iguais] e mais como “diálogo” exlético assimétrico [= tentativa

de entendimento – não raro forçada – entre materialmente desiguais]. Ora,

se o processo é um instrumento público-estatal, ele não pode se perder em

artimanhas, ofensas, astúcias e outras imoralidades próprias aos lobos ca-

pitalistas: a litigância de má-fé é demonizada in extremis. Diante de todas es-

sas considerações, pode-se concluir que, para uma visão fascista, a palavra

de ordem numa lei processual deve ser a efetividade: sem que o juiz tenha

poderes para implementar as suas resoluções, o processo não passa de um

“antro de pronunciamentos inofensivos”. É o que foi feito, segundo os ga-

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Revista da Ajufe 195

rantistas, pelo Código de Processo Civil português de 1939, as modificações

operadas no ZPO alemão pelo Decreto de 8 de novembro de 1933, o Code

di Procedura Civile italiano de 1940 e o Zivilprozessordnung austríaco de

1895, de Franz Klein (que o garantismo afirma ser a opus magnum do fas-

cismo processual, o nec plus ultra do protagonismo autoritário judicial e o

“organon metodológico” de todos os ativistas judiciocratas).

5.

Existe uma acirrada discussão a respeito da identidade do chamado “li-

beralismo moderno”. Neoliberais, veementemente apegados aos postulados

básicos do liberalismo clássico, entendem que os cânones da doutrina li-

beral foram traídos por essa nova forma de governo e que a expressão “li-

beralismo social” é uma contradictio in terminis. A questão, porém, não é

tão singela. Afinal, o liberalismo social é erguido sobre os quatro grandes

pilares do liberalismo (constitucionalismo, democracia, descentralização

administrativa e economia de mercado). Esses pressupostos sofrem, apesar

disso, uma releitura oxigenadora. De um lado, está o liberalismo clássico e

seu enorme déficit de empiricidade, a defender o livre mercado, vigiado por

um governo mínimo e fomentado por indivíduos egoístas, autorresponsá-

veis e titulares de pretensões negativas contra o Estado, os quais buscam a

maximização de utilidade e a recompensa por critérios de meritocracia. De

outro, está o social-liberalismo. Aqui, o individualismo egoísta dá lugar a

um individualismo altruísta e progressista, que vê nos homens uma interli-

gação por laços de cuidado e simpatia, um caráter mais sociocooperativo e

uma busca por crescimento pessoal; ante o fracasso do livre-cambismo e da

inviabilidade do empreendimento privado irrestrito, o capitalismo desregu-

lado – tendente a baixos investimentos, imediatismo e fragmentação social

– é retirado da “anarquia econômica” e submetido pelo Estado a controles

regulatórios “de cima para baixo”, que buscam promover a prosperidade,

a harmonia na sociedade civil e a redução das desigualdades dos pontos

de partida. Por conseguinte, o Estado mínimo dos liberais radicais (incapaz

de corrigir injustiças e desigualdades) e o Estado máximo dos socialistas

marxistas (pesado, ineficiente e opressor) cedem passo a um Estado ágil e

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Revista da Ajufe 196

promotor, a um “liberalismo de Estado”, o qual – embora continue sendo

adversário de nivelamentos e uniformização sociais – ajuda as pessoas a se

ajudarem, intervém por indução na economia e promove serviços de bem-

-estar social, como saúde, habitação, previdência social e educação. A liber-

dade negativa dos liberais clássicos dá lugar a uma liberdade positiva, à qual

subjaz a ideia de que a liberdade também pode ser ameaçada por desigualda-

des e desvantagens sociais muito intensas.

O transplante ao âmbito jurisdicional de relevantes topoi retóricos so-

cial-liberais (como individualidade, liberdade positiva, cooperação, regu-

lação, eficiência) faz nascer o chamado “gerencialismo processual civil”.

Aqui: desconfia-se do sistema adversarial paleoliberal da common law, que

conduz o desfecho da causa a morosidade inaceitável às exigências atuais

de celeridade [right delayed is right denied]; o ardil e a astúcia são com-

batidos veementemente pelo magistrado (que se baseia em um sistema de

repressão à litigância de má-fé fundamentado na responsabilidade objetiva

do improbus litigator); o magistrado se torna um “agente regulador”, que

deixa de guardar soluções legislativas milagrosas, assume a responsabili-

dade [accountability] pela boa gestão dos processos e passa a intervir extra

legem – não raro sob racionalidade organizacional e por meio de técnicas de

gestão informática – para eliminar as travas que causam “congestionamento

processual” e para um desfecho da causa em “tempo razoável”. O processo é

trabalhado como uma “microempresa gerenciável pela macroempresa judi-

ciária”, a qual atua sob planejamento estratégico, produz decisões em larga

escala e é composta por magistrados dotados de inteligência organizativa,

capacidade mobilizadora e liderança motivacional. Nesse caso, o protago-

nista da relação processual não é a pessoa física do juiz ou das partes, mas

a administração judiciária e seu caudaloso staff assessorial, os quais sofrem

forte pressão por performance institucional satisfatória (que é medida – à

luz das recomendações do New Public Management de Mark Moore – por

indicadores estatísticos e monitorização do alcance de metas objetivas).

Instala-se um nexo de complementação entre o processo civil [case mana-

gement] e as políticas públicas judiciárias [court management], ambos per-

meados pela filosofia do just in time. O juiz (visto como um fornecedor) e

as partes (vistas como consumidoras) operam num regime de colaboração

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para a produção trium personarum das provas necessárias à maior proxi-

midade possível entre realidade intraprocessual e realidade extraprocessual

(o que dá, aqui, certo “tom social-democrático”) [princípio da cooperação

probatória]. Medidas podem ser concedidas, tanto de ofício quanto a pedido

das partes, com vistas ao gerenciamento eficiente do processo. Os ônus da

prova são adaptativamente definidos pelo juiz à luz da teoria das cargas pro-

batórias dinâmicas. Tanto o juiz (oficiosamente) quanto as partes (por meio

de acordos) podem imprimir flexibilizações sumarizantes ad hoc ao proce-

dimento-padrão da lei, inclusive mediante fixação de cronogramas [schedu-

les] ou calendarizações [timing of procedural steps] capazes de suprimir os

“tempos neutros” ou os “buracos negros” [black holes] do trâmite proces-

sual, adaptando-os criativamente às particularidades do direito material e

às exigências do caso concreto. A forma mais eficiente de estancar o fluxo

de processos intermináveis e, com isso, dar à atividade jurisdicional maior

rendimento de produção, são as políticas de conciliação e os meios alterna-

tivos de solução de conflitos [publicismo gerencial]. O objeto litigioso é um

constructum colaborativo entre o juiz e as partes; o “processo legal devido”

é o processo eficiente, maleável, efetivo e ágil, tramitando em autos virtuais

e calcado em uma legislação processual aberta; o juiz, sem colocar-se em

posição hierárquica, recebe poderes discricionários [judicial case manage-

ment powers] para a fixação de balizas de atuação para as partes [ativismo

regulatório]; não se está preocupado com a trilogia estrutural do processo

(jurisdição, ação e processo), mas com uma trilogia funcional (eficiência,

organização e celeridade); dá-se extrema ênfase ao procedimento e, em es-

pecial, à “engenharia procedimental inventiva e particularizante” (que é um

dos saberes práticos arcanos da good judicial governance); o juiz-símbolo

do liberalismo social é um “juiz manager, produtivo, plástico, pragmático e

informal”, que, advertido do colapso do adversarismo mandevilliano e ma-

nietado pelos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, estabe-

lece marcos regulatórios de atuação para as partes, a fim de que não façam

um uso irracional do tempo processual e este tenha um desfecho abreviado

(em suma, dentro de uma espécie de “pós-keynesianismo processual civil”,

o managerial judge não suprime o exercício do contraditório pelas partes,

porém, imprime-lhe planejamento calculado e algumas “bitolas corretivas”).

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Ante todas essas considerações, não é difícil concluir que, para os social-

-liberais, em uma lei processual, o slogan de inspiração deve ser a flexibi-

lidade (conseguida por meio de textos normativos concisos e redigidos sob

termos vagos, conceitos jurídicos indeterminados e standards jurídicos, que

permitam ao magistrado um raciocínio sobresuntivo). Tudo bem ao gosto

do “fetiche business” e das suas reengenharias laboratoriais corporativas...

6.

É importante registrar que o gerencialismo processual floresceu, pionei-

ramente, nos EUA e na Inglaterra (nos quais recebe o nome de case mana-

gement), que, por força de uma arraigada tradição liberal clássica, sempre

foram adeptos do sistema adversarial. Contudo, dentro de uma visão liberal

moderna, não mais existe um laissez faire laissez passer: o Estado intervém

para dinamizar a vida social. No âmbito processual civil, isso significa que

“técnicas” próprias aos processualismos socialista e fascista são utiliza-

das não para compensar a hipossuficiência da parte socioeconomicamente

desfavorecida, ou para fortalecer o Estado perante a sociedade civil, mas

para assegurar “the just, speedy, and inexpensive determination of every

action and proceeding” [Federal Rules of Civil Procedure dos EUA, Rule 1].

Ou seja, essas “técnicas” – tradicionalmente tidas pelos garantistas como

“autoritárias”– são relidas à luz de uma mentalidade managerial. O auto-

ritarismo dá lugar ao gerencialismo. Todavia, compulsando o Civil Proce-

dure Rules inglês de 1999 e The elements of case management: a pocket

guide for judges, redigido por William W. Schwarzer e Alan Hirsch (que é

um livro de recomendações, editado pelo Federal Judicial Center no ano de

2006, com base no qual os juízes federais norte-americanos têm difundido

práticas procedimentalmente ativistas), os garantistas seriam obrigados a

dizer que Inglaterra e EUA têm consagrado em seus sistemas processuais as

mais odiosas tendências “fascistas” ou “comunistas” (?!). Aliás, tais tendên-

cias estariam maculando os sistemas nacionais dos países da Comunidade

Europeia, uma vez que esse gerencialismo processual ativista foi elevado à

condição de diretriz comunitária atrávés da Recomendação R (1984) 5 do

Comitê de Ministros do Conselho da Europa, adotada em 28 de fevereiro

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de 1984 (diretriz essa encampada pelo Dispute Act norueguês de 2005, por

exemplo, especialmente pela regra contida no § 9-4).

Tudo isso mostra o simplismo com que ainda vem sendo travado o deba-

te entre “garantistas” e “ativistas”. É preciso saber contra qual ativismo os

garantistas, todos eles marcadamente neoliberais, se insurgem: contra o pro-

toativismo autoritário publicista dos fascistas, contra o ativismo autoritário

engagée do processualismo social, ou contra o neoativismo gerencial do li-

beralismo moderno? Ou seja, é necessário que os clérigos do garantismo su-

bestimem menos a complexidade do fenômeno ativista, retornem à antessa-

la, refaçam o seu discurso crítico e reassumam a discussão com argumentos

menos inexatos. Afinal, a differentia specifica entre os ativismos socialista,

publicista e gerencial não é apenas de grau, mas – sobretudo – de natureza

(conquanto os garantistas façam uma ginástica acrobática para equipará-

-los). Enfim, entre o juiz-justiceiro, o juiz-general e o juiz-gerente, existem

enormes semelhanças (especialmente de capacidade de mando); ainda as-

sim, as dessemelhanças (especialmente de propósito) são grandes e mere-

cem uma análise mais particularizada. Eis o xis do problema. Além do mais,

é imprescindível que os próprios ativistas também refinem o seu discurso

e esclareçam se o ativismo judicial que defendem está mais “à esquerda” ou

mais “à direita”. Se o establishment ativista julgar-se socialista ou fascista,

então o debate entre o garantismo e o ativismo, tal como hoje desenvolvido,

terá algum sentido e revelará uma autêntica dicotomia [mors tua vita mea].

No entanto, se ele julgar-se social-liberal, então terá o ônus de demonstrar

que o garantismo neoliberal – em sociedades tecnológicas altamente com-

plexas e na economia de mercado globalizada, em que a litigância é massi-

ficada, crônica e explosiva – nada mais é do que um fóssil processual do

Aufklärung oitocentista e o propagador de uma crepuscular sporting theory

of justice [Roscoe Pound].

Além disso, é importante frisar que, na prática, não existem sistemas

processuais civis puramente garantistas, ou ativistas. Hodiernamente, a

tendência dos ordenamentos jurídicos é fazer com que dentro de si coa-

bitem em harmonia os princípios dispositivo e inquisitivo, posto que – é

inegável – sempre se constate a preponderância de um sobre o outro. De

qualquer maneira, o direito é um instrumento de segurança para a perqui-

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rição da justiça: os dois valores convivem sem que um consiga nulificar o

outro. Por isso, em qualquer sistema processual concretamente considera-

do, sempre haverá o convívio simultâneo de elementos para a garantia das

partes (funcionalizados à concretização do valor-mor da segurança) e de

elementos propulsores da iniciativa judicial (direcionados à realização do

valor-mor da justiça). Noutras palavras: todo sistema processual não passa

de uma heterogeneidade dispositivo-inquisitiva (assim como o direito não

passa de uma grande arquitetônica de concordância entre justiça e segu-

rança). A questão de relevo é saber, entretanto, qual a dosagem ótima dessas

duas ideias-força. Arrisco-me a dizer que não existe uma resposta univer-

salmente válida: mesmo entre as grandes democracias do Ocidente, um quid

de inquisitividade sempre haverá e variará em função de fatores internos de

natureza política, econômica, moral, religiosa, jurídico-cultural, etc. De todo

modo, esse quantum parece-me ineliminável. Mais: uma vez refratado, o seu

espectro revelará infinitas possibilidades combinatórias entre as colorações

social, publicista e gerencial. Lembre-se de que Diké, a deusa grega da Jus-

tiça, traz os olhos desvendados e a espada em uma das mãos: no processo

civil, os olhos expostos representam a vigília judicial sobre a atuação das

partes; a espada simboliza um ímpeto mínimo, que é a força dos institutos

naturais culturalmente domesticados, sem os quais o direito fenece como

uma brandura ingênua.

Mesmo assim, a démarche garantista é razoável. Afinal, a prevenção

contra o despotismo está longe de ser uma “dádiva-engodo” do liberalis-

mo clássico. Trata-se de insight que continuamente se confirma no dia a

dia forense: não raro os juízes ativistas descem ao summum malum da ar-

bitrariedade. Isso acontece com requinte na cultura político-administrativa

subdesenvolvida do Brasil, cuja tradição social-estatista, até hoje não su-

perada, se herdou da velha e selvagem estrutura autoritária, paternalista,

patrimonialista, mercantilista e clientelista do Estado burocrático e hierar-

quizado dos tempos de Pombal e da colônia: “Uma paradoxal combinação

do nacional-socialismo do século XX e absolutismo modernizante de fins do

século XVIII” [J. O. Meira Penna]. Não sem razão, portanto, a Exposição de

Motivos do nosso Código de Processo Civil de 1939 já anunciava uma es-

pécie de ativismo judicial, o qual ganhou alguns contornos mais específicos

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no Código Buzaid de 1973. Daí o sincero respeito que se deve devotar ao

aggiornamento neoliberal europeu e à adequação das suas preocupações à

realidade judicial brasileira. Aliás, no que concerne ao plano das ideias, os

garantistas são dignos dos mais elevados encômios, seja porque inseriram

na pauta acadêmica uma discussão importantíssima para o aperfeiçoamen-

to dos institutos processuais (que é a relação o direito processual civil e as

ideologias político-sociais), seja porque fizeram do cânone liberal um dado

“quente” e “subversivo” contra as estruturas potencialmente autoritárias das

tecnocracias estatais contemporâneas. Porém, ortodoxos do garantismo en-

ragé têm simploriamente rotulado de “autoritário” – e, muitas vezes, de “co-

munista” ou “fascista” – tudo que lhes soa oponente, o que vem gerando al-

guns debates de baixo resultado líquido. Daí a necessidade de reflexões cum

grano salis mais penetrantes – especialmente pelos garantistas – sobre as

raízes político-ideológicas do gerencialismo processual anglo-saxão. Se es-

sas reflexões advierem de juristas do Brasil, onde o debate entre garantismo

e ativismo ainda se mostra in statu nascendi, tanto melhor: poderemos ini-

ciar nossas discussões a partir de traços teóricos um pouco mais precisos.

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Da ofensa do voto duplo aos princípios constitucionais da igualdade e do Estado

Democrático de Direito

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Revista da Ajufe 204

Fábio Martins de AndradeDoutor em Direito Público pela UERJ,

mestre pela UCAM e advogado

Sumário: Introdução – Violação ao princípio da isonomia – Ensaio ju-

risprudencial – Violação ao princípio democrático – Possíveis alternativas

– Conclusão.

Resumo: O estudo busca analisar a ilegitimidade do voto duplo proferido

pelo presidente das turmas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais

nos casos de empate no cômputo dos votos à luz dos princípios constitucio-

nais da igualdade e do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Voto duplo – Voto de qualidade.

Abstract: The study assesses de illegitimacy of the double vote given by

the presidente of the Chambers of the Administrative High Court of Appeals

in cases of tied votes under the perspective of the constitutional principles

of equality and Rule of Law.

Keywords: double vote – Casting vote.

1. Introdução

O voto duplo adotado pelo Regimento Interno do CARF, também denomi-

nado “voto cumulativo”, viola expressamente a norma constitucionalmente

insculpida no caput do artigo 5º da Constituição da República acerca da

igualdade de todos perante a lei, e também a própria essência do princípio

republicano do Estado Democrático de Direito, determinado no artigo 1º da

nossa Lei Maior.

Quando do julgamento de Recurso Voluntário no âmbito do Conselho

Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, face ao empate de votos (3 x 3),

Page 205: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 205

aplica o presidente da turma, o artigo 54 do Anexo II do Regimento Interno.1

Ocorre que, tal prerrogativa eiva-se de máculas indeléveis. Com efeito,

é atribuída apenas aos presidentes das turmas do CARF e, por conseguinte,

somente aos Conselheiros representantes da Fazenda Nacional. Além dis-

so, confere apenas a um cidadão que compõe determinada turma do CARF

(conselheiro), um tratamento flagrantemente diferenciado, uma condição

especial, ou um poder maior do que cada um dos seus pares. Esse cidadão,

votando, é capaz de provocar um empate quando somado aos demais votos

dos membros integrantes do colegiado, e em seguida, “resolver” esse mesmo

empate com o cômputo duplo de seu voto, ao arrepio do postulado da igual-

dade que deve ser permanentemente observado pela Administração Pública,

especialmente em suas manifestações, atos e decisões.

Ainda que o Regimento atribuísse ao representante dos Contribuintes o

voto duplo, o resultado seria do mesmo modo incompatível com a Consti-

tuição Federal, vez que, em um ordenamento jurídico calcado nos princípios

norteadores da igualdade ou da isonomia e do Estado Democrático de Direi-

to, não há como se admitir válida uma decisão que, com o voto duplicado de

um dos julgadores, modifica e define (distorce) o resultado de um julgamento

sobre o qual paira dúvida pelo colegiado acerca da regra a ser aplicada, dú-

vida essa configurada inequivocamente pelo empate na votação ordinária.

Isso porque uma das aplicações do princípio fundamental da igual-

dade é exatamente evitar ou impedir as situações que possam produzir

tratamento diferenciado em relação a pessoas que se encontram em situ-

ações idênticas.

2. Violação ao princípio da isonomia

Em realidade, inquina-se a aplicação de norma regimental que, violando

o postulado da igualdade, atribui ao conselheiro presidente um poder maior

do que aquele conferido aos demais julgadores do mesmo órgão e na mesma

1 Eis a dicção do dispositivo: “Art. 54. As turmas ordinárias e especiais só deliberarão quan-do presente a maioria de seus membros, e suas deliberações serão tomadas por maioria sim-ples, cabendo ao presidente, além do voto ordinário, o de qualidade”.

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Revista da Ajufe 206

assentada na hipótese de empate no julgamento.2

O alcance do conceito de igualdade e, portanto, a identificação, ou não,

de sua violação, pode ser evidenciada com maior facilidade se examinada

à luz das situações concretas que surgem no cotidiano da sociedade, e que

podem provocar sérios gravames de ordem moral e material se não forem

corrigidas ou evitadas tempestivamente.3

Como se vê, a doutrina brasileira converge no sentido de que o princípio

da igualdade impede que determinada norma institua fatores de discrimina-

ção entre seus destinatários, tal como faz o Regimento Interno do CARF, que

atribui peso diferente ao voto de um determinado conselheiro (presidente,

nomeado pelo ministro da Fazenda, não eleito por seus pares, e sempre re-

presentante da Fazenda Nacional), em detrimento dos demais conselheiros,

cujos votos acabam por gozar de um valor notoriamente menor.

Willis Santiago Guerra Filho corrobora a incompatibilidade entre o prin-

cípio da isonomia e a concessão de privilégios a quem quer que seja (in casu,

ao presidente da turma julgadora no CARF).4

2 O eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao proferir voto no Mandado de Injunção nº 58 (publicado no DJ de 19/04/1991), explicita o exato alcance desse princípio fundamental, especialmente no que diz respeito ao Poder Público, ao doutrinar que: “O princípio da isonomia, que se reveste de autoaplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de comple-mentação normativa. Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não po-derão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e pro-duzido a eiva de inconstitucionalidade”.

3 Cf. CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribu-nais, 2004, p. 55-58.

4 O jurista esclarece que: “Essa incompatibilidade entre a isonomia e a concessão de privi-légios vem expressa, por exemplo, na própria definição dada pelo constituinte lusitano ao princípio, no inc. II, art. 13º da CRP, após enunciá-lo no inc. I . Daí que, para um dos mais au-torizados exegetas do texto constitucional português – não só por ser Catedrático de Direito Constitucional em Lisboa, mas também por ter sido Deputado-Constituinte em 1976 -, o Prof. Jorge Miranda (1988, p. 240), ‘o sentido primário do princípio é negativo: consiste na veda-ção de privilégios e discriminações’, definindo, em seguida, privilégios, como ‘situações de

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Revista da Ajufe 207

Resta evidente que o cômputo duplicado do voto de um dos conselheiros

que compõem o órgão colegiado competente para decidir caracteriza injusto

privilégio e discriminação em relação aos demais.

Registre-se, ademais, que este tratamento diferenciado ocorre exatamente

na situação de maior acirramento da controvérsia em torno da questão jurí-

dica posta sob julgamento, isto é, quando o entendimento do órgão julgador

cinde-se em porções igualitárias através do empate dos votos.

3. Ensaio jurisprudencial

Acerca da impossibilidade de prolação de voto duplo pelo presidente, cabe

registrar o entendimento do E. Tribunal Regional Federal da 2ª Região5 sobre

a interpretação do seu próprio Regimento Interno em causa que versou sobre

tema administrativo do referido tribunal (referente aos serventuários):

“Note-se que embora o inciso VIII do art. 21 do Regi-

mento Interno diga que o presidente proferirá voto de qua-

lidade, trata-se evidentemente de voto de desempate. Isto,

aliás, ficou consignado no acórdão embargado (fls. 65/66).

Penso não ser possível, em julgamento judicial, que

qualquer julgador profira dois votos na mesma causa e

no mesmo julgamento.

No caso, o ilustre presidente, com o seu primeiro

voto, empatou a votação. Logo a seguir ele mesmo pro-

feriu voto de desempate. Tenho como irregular e desca-

bido esse procedimento. Primeiro, porque o § 1º do art.

148 do Regimento Interno é claro em dizer que se o pre-

sidente tiver de votar, e houver possibilidade de se tor-

nar par o número de julgadores, o de menor antiguidade

vantagem não fundadas’, e discriminações, por seu turno, como ‘situações de desvantagem’” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2003. p. 134).

5 Embargos de declaração em MS nº 2005.02.01.014093-6; UF: RJ; Órgão Julgador: Plenário; Data da decisão: 14/06/2007; Documento: TRF-200169188; DJU - Data: 16/08/2007 - Página: 95; Relatora: Desembargadora Federal Vera Lucia Lima – g.n.

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Revista da Ajufe 208

não votará. Ocorre que no julgamento deste mandado

de segurança, excluindo-se o presidente, o número de

votantes era ímpar, tanto que o presidente votou empa-

tando e, depois, votou desempatando. Segundo, porque

se o presidente votou, por se tratar de questão constitu-

cional, como lhe permite o regimento, não poderia ter

votado o julgador de menor antiguidade. Isto deveria ter

sido verificado antes de iniciar a votação. Como o pre-

sidente, ao votar pela primeira vez, provocou o empate

na votação, deveria ter sido suspenso o julgamento para

aguardar-se o voto dos Desembargadores Federais que

estavam ausentes naquela sessão (ou pelo menos de al-

guns deles) que eram nada menos do que 8 (oito), con-

forme consta do acórdão (fls. 65/66).

O que não pode, no meu entendimento, é o presidente

votar duas vezes, pois isto não tem amparo legal. Ali-

ás, isto desequilibra, evidentemente, a votação e, conse-

quentemente, compromete o resultado do julgamento.

Eu diria até que desequilibra a ‘balança’ da Justiça, fa-

zendo-a pender para um dos lados sem a indispensável

equidade e neutralidade que lhe são inerentes.

Note-se que o próprio Código de Processo Civil con-

tém mecanismos que evidenciam a necessidade de preser-

var-se o resultado absolutamente isento dos julgamentos.

Assim é que está impedido de votar o juiz que tenha

proferido a sentença em primeira instância (art. 134

- III); o que tenha atuado anteriormente no processo

como advogado ou membro do Ministério Público (art.

134 - II e IV). Nas sessões de julgamento, quando dois

julgadores forem parentes, o que primeiro votar torna-

rá impedido o outro (art. 136).

Ora, com muito mais razão não pode um mesmo jul-

gador “julgar” duas vezes o mesmo caso.

A hipótese é, pois, de nulidade absoluta do julga-

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Revista da Ajufe 209

mento, passível, como se viu, de ser declarada em sede

de embargos de declaração. (...)”.

Eis a ementa do acórdão em foco:

“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARA-

ÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA ORIGINÁRIO. MA-

TÉRIA CONSTITUCIONAL. PRESIDENTE DA SESSÃO

DE JULGAMENTO. VOTO DUPLO PARA DESEMPATAR.

IMPOSSIBILIDADE (REGIMENTO INTERNO, ARTS. 21 –

VIII e 148).

1 - São cabíveis embargos de declaração para apre-

ciar alegação de nulidade processual.

2 - Tendo o presidente do tribunal votado no jul-

gamento do mandado de segurança originário, por se

tratar de matéria constitucional e, com o seu voto, pro-

vocado empate na votação, não poderia proferir novo

voto, já agora para desempatar o julgamento.

3 - No sistema processual pátrio não há previsão

de que o mesmo julgador possa proferir dois votos em

um mesmo julgamento (mesmo processo), pois a prer-

rogativa que tem o presidente da Corte de proferir voto

de desempate só é cabível quando a votação, sem que o

presidente tenha votado, chega a ele empatada.

4 - Tanto isto é verdade que o Código de Processo Ci-

vil contém mecanismos que impedem até mesmo quem

já tenha atuado no processo de participar de novo jul-

gamento. Assim é que estão impedidos de participar do

julgamento no tribunal o juiz que tenha proferido sen-

tença em primeira instância (art. 134 - III); quem já tenha

atuado nos autos como advogado ou membro do Minis-

tério Público (art. 134 – II e IV). Além disso, nas sessões

de julgamento, quando dois julgadores forem parentes, o

que primeiro votar tornará impedido o outro (art. 136).

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Revista da Ajufe 210

5 - No caso, como estavam ausentes da sessão, jus-

tificadamente, alguns membros do tribunal, o correto

teria sido suspender-se o julgamento, aguardando-se a

próxima sessão para colher os votos deles.

6 - Embargos de declaração do Ministério Público

Federal acolhidos para declarar-se nulo o julgamento.

Embargos de declaração da União prejudicados”.

O mandado de segurança foi impetrado originariamente no Egrégio Tri-

bunal Regional Federal da 2ª Região. O Ministério Público opôs Embargos

de Declaração sustentando a nulidade do julgamento que concedeu a segu-

rança em favor dos Impetrantes em razão de interpretação equivocada do

art. 21, inciso VIII, do Regimento Interno do TRF/2ª Região.6

Além dessa regra, há outra, prevista no art. 148, § 1º, do mesmo Regimen-

to Interno, que a legitima, desde que interpretada adequadamente.7

Da leitura dos trechos acima destacados do referido acórdão, verifica-se

que a terminologia “voto de qualidade” nessas situações deve ser tratada

como verdadeiro “voto duplo”.

Nesse sentido, o voto de qualidade é prolatado quando, chegando ao pre-

sidente a questão empatada, cabe-lhe, com a prolação de um único voto,

desempatar o julgamento e proclamar o resultado final. Verifica-se, por con-

seguinte, que realmente assim não há adoção do famigerado “voto duplo”.

No caso destacado, foi afastada a aplicação do voto duplo, previsto no

inciso VIII do art. 21 do RITRF/2ª Região, quando computado duas vezes no

julgamento e reconhecida a sua legitimidade quando aplicado como “voto de

desempate” (computado apenas uma vez no julgamento).

6 Eis o teor do dispositivo em questão: “Art. 21. São atribuições do presidente: (...). VIII – Proferir, nos julgamentos do Plenário e do Órgão Especial, voto de qualidade e votar quando a questão for de natureza constitucional”.

7 Eis a dicção do dispositivo em referência: “Art. 148. Concluído o debate oral, o presidente tomará os votos do relator e do revisor, se houver. Após, dará a palavra aos outros juízes que se lhe seguirem na ordem de antiguidade decrescente, para que profiram voto no tempo máximo de 15 (quinze) minutos ou peçam vista. § 1º Se o presidente tiver de votar, por estar vinculado ao processo, e em consequência se tornar par o número de julgadores, deixará de votar o vogal de menor antiguidade”.

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Revista da Ajufe 211

O Colendo Plenário do Egrégio Supremo Tribunal Federal, em lapidar

decisão, cujo relator foi o eminente ministro Carlos Velloso, interpretou o

princípio constitucional da igualdade perante a lei, invocando e confirman-

do lição do maior dos constitucionalistas brasileiros, Rui Barbosa, eviden-

ciando a procedência e a atualidade da seguinte lição:

“Tratando-se de isonomia e de igualdade ou desi-

gualdade entre as pessoas, nunca é demais citar bri-

lhante frase do inolvidável Rui Barbosa em sua ‘Oração

aos Moços’ quando destaca:

‘tratar com desigualdade a iguais ou a desiguais

com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não

igualdade real”.8

Em acórdão proferido pela E. 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal de-

corrente do exame do Agravo Regimental no AI nº 682.486, o ministro Mar-

co Aurélio proferiu voto no seguinte sentido:

“(...) É possível que em um Colegiado, o cidadão, fa-

lível como outro qualquer, como nós também somos,

profira um voto, e, neutralizando-se os votos ante o

empate dos demais integrantes do colegiado, ele venha

a decidir isoladamente? O voto de qualidade, para

mim, ele acaba por consubstanciar a existência de

um superórgão. Não consigo, diante das guaridas

da Constituição dita cidadã por Ulisses Guimarães,

concluir que alguém possa ter um poder tão gran-

de de provocar empate, votando, e posteriormente

reafirmando a ótica anterior, dirimir esse mesmo

empate” (grifamos).

8 Acórdão do Recurso Extraordinário nº 236.604-7 PR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 06/.08/.1999, Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, Dialética, nº 49, outubro de 1999, p. 165 a 169. O trecho transcrito encontra-se na p. 168 – g.n.

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Revista da Ajufe 212

Na mesma assentada, o ministro Ayres Britto, assim, em resumo, se manifestou:

“É possível conferir ao agente estatal que faz parte de

uma autarquia federal, da cúpula de uma autarquia federal,

a duplicidade de voto, o voto em dobro, o voto dúplice?

(...)

Isso precisa ser confrontado com a natureza jurídi-

ca da autarquia federal CADE e com a natureza jurídica

do cargo titularizado pelo prolator do voto em dobro.

(...)

Por que se falou de República? Porque a República

é constituída não de súditos, mas de cidadãos, regidos

todos pelo princípio da igualdade. (...) quando se passa

de vista o sistema de comandos da Constituição, alvitra

esse princípio da República desde o artigo 5º da Cons-

tituição cuja voz de comando inicial é essa:

‘Art. 5º todos são iguais perante a lei, sem distinção

de qualquer natureza, ...’

Igualdade, aliás, que estava no preâmbulo da Cons-

tituição, onde efetivamente está, e volta a ser mencio-

nado na cabeça do artigo 5º.

O único valor jurídico que é duas vezes mencionado

na cabeça do artigo 5º é o da igualdade, que é da mais

entranhada essência da República. Por que ele falou de

Estado democrático de Direito? Porque a Constituição

consagrou o princípio: um homem, um voto.

‘Art. 14. A soberania popular será exercida pelo su-

frágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor

igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:’

Quando cuidou até de partido político, que é pessoa

jurídica de direito privado, a Constituição não deixou

de dizer se a estruturação deles obedeceria ao princípio

democrático: um homem, um voto. E há outro elemento

conceitual da democracia que me parece nesse caso e que

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Revista da Ajufe 213

não pode ser ignorado. A democracia se rege pela coisa

mais ínsita, mais inerente a ela, que é a majoritariedade.

(...)

Os órgãos públicos podem decidir ignorando o

princípio da majoritariedade? Esse princípio mais que

modular da democracia? Pode um dirigente de uma au-

tarquia votar duas vezes? Vossa Excelência lembrou:

ele compôs a igualdade - a votação estava em 3 a 2

para a Agravante -, então, ele conseguiu empatar, e ele

mesmo desempatou. Isso é democrático, é republicano,

é coerente com a Constituição?” (grifamos).

Registre-se, por oportuno, que apesar dos esforços dos ministros Marco

Aurélio e Ayres Britto, a 1ª Turma do STF não logrou afetar a discussão ao

Pleno, em razão da ausência de prequestionamento da matéria constitucio-

nal naqueles autos.9

4. Violação ao princípio democrático

A título de reforço da lógica democrática, notadamente diante das pala-

vras acima anotadas e proferidas pelo ministro Ayres Britto no sentido de

que a igualdade entre os cidadãos prestigiada na Lei Maior é expressa no

que se refere ao direito de voto, constituindo, assim, importante postulado

básico do sistema constitucional, vale recordar os exatos termos do artigo

14 da Constituição Federal, que afirma: “A soberania popular será exercida

pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para

todos, e, nos termos da lei”.

9 Eis a sua ementa: “CONSTITUCIONAL. VOTO VENCIDO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIO-NAMENTO. VOTO DE QUALIDADE. FUNDAMENTO EM NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE. QUESTÃO DE ORDEM. REMESSA AO PLENO. INDEFERIMENTO. REGI-MENTAL IMPROVIDO. I - O presquestionamento requer que, na decisão impugnada, haja sido adotada explicitamente a tese sobre a matéria do recurso extraordinário. II - Se, no acórdão recorrido, apenas o voto vencido, isoladamente, tratou do tema constitucional suscitado no RE, não se tem por configurado o prequestionamento. Precedentes. III - O Tribunal de origem decidiu a questão relativa ao voto de qualidade com base em normas infraconstitucionais, o que torna inviável o recurso. IV - Indeferimento de questão de ordem no sentido de se remeter o caso ao Pleno. V - Agravo regimental improvido”.

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Revista da Ajufe 214

A disposição acima transcrita faz alusão à sistemática por intermédio da

qual o povo exercerá o poder, como, aliás, está expressamente previsto no pa-

rágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal. No entanto, as linhas gerais

do regime democrático apontam que o voto, em regra, deve ser igual para todos.

Com efeito, essa igualdade consiste, no plano político, exatamente no im-

pedimento de que o cidadão possa votar mais de uma vez em um mesmo

candidato, na mesma eleição, ou ainda de se atribuir, em um regime demo-

crático, um valor diferenciado a um ou outro cidadão em razão de qualquer

critério que seja.

Trata-se, como bem lembrou o ministro Ayres Britto, da aplicação do

princípio democrático norte-americano “um homem, um voto” (one man,

one vote). O voto igualitário reflete o vetor da isonomia (art. 5º, caput, da CF),

pois cada um dos cidadãos brasileiros tem a mesma importância política.

A título ilustrativo, a constitucionalidade da atribuição de pesos diferen-

ciados a votos de eleitores foi debatida diversas vezes na Suprema Corte

norte-americana, cujos julgados, como bem destacou o ministro Joaquim

Barbosa quando do voto que proferiu nos autos do Recurso Extraordinário

nº 631.102, referente ao Caso “Ficha Limpa” – Jader Barbalho, são fonte de

inspiração das nossas instituições.

Emblemático, nesse sentido, foi o julgamento no caso Reynolds versus

Sims, quando restou consagrada a adoção naquele vizinho do norte do prin-

cípio “um homem, um voto”:

“Em Gray v. Sanders, 372 US 368, decidimos que o

sistema unitário distrital da Geórgia, aplicável nas elei-

ções primárias do Estado, era inconstitucional, já que

resultaria na diluição do peso dos votos de determina-

dos eleitores meramente em razão do lugar onde eles

moram. Depois de indicar que a Décima Quinta e a Dé-

cima Nona Emendas proíbem um Estado de sobrepesar

ou diluir votos com base em raça ou sexo, afirmamos:

Como, então, uma pessoa pode receber duas ou dez

vezes o poder de voto de outra pessoa em uma eleição

estadual simplesmente porque ela vive em uma área

Page 215: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 215

rural ou porque ela vive no condado rural menor? Uma

vez que a unidade geográfica para a qual um represen-

tante deve ser escolhido seja designada, todos os que

participam nas eleições devem ter um voto igual – in-

dependente de sua raça, independentemente do seu

sexo, independentemente da sua ocupação, [377 U.S.

533, 558], independentemente da sua renda, e onde

quer que sua casa se encontre nessa unidade geográfi-

ca. Isso é exigido pela Cláusula de Proteção Igualitária

da Décima Quarta Emenda. O conceito de ‘nós, o povo’

sob a Constituição não visualiza preferenciais clas-

ses dos eleitores, mas a igualdade entre aqueles que

atendam às qualificações básicas. A ideia de que cada

eleitor é igual a cada eleitor no seu Estado, quando ele

lança o seu voto em favor de um dos vários candidatos

concorrentes, é base para muitas das nossas decisões.

Prosseguindo, dissemos que ‘não há nenhuma indi-

cação na Constituição no sentido de que endereço ou

profissão proporcione um meio válido para a distinção

entre os eleitores no interior do Estado’”.

E, finalmente, concluiu: “A concepção de igualdade

política a partir da Declaração de Independência, até

o discurso Gettysburg de Lincoln, para as Emendas

Quinze, Dezesseis e Dezenove, pode significar apenas

uma coisa – uma pessoa, um voto”.10

10 Traduzimos livremente o texto e grifamos a partir dos seguintes trechos originais: In Gray v. Sanders, 372 U.S. 368, we held that the Georgia county unit system, applicable in statewide primary elections, was unconstitutional since it resulted in a dilution of the weight of the vo-tes of certain Georgia voters merely because of where they resided. After indicating that the Fifteenth and Nineteenth Amendments prohibit a State from overweighting or diluting votes on the basis of race or sex, we stated:‘How then can one person be given twice or ten times the voting power of another person in a statewide election merely because he lives in a rural area or because he lives in the smal-lest rural county? Once the geographical unit for which a representative is to be chosen is designated, all who participate in the election are to have an equal vote - whatever their race, whatever their sex, whatever their occupation, [377 U.S. 533, 558] whatever their income, and wherever their home may be in that geographical unit. This is required by the Equal Protec-

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Revista da Ajufe 216

Como se vê, o voto igualitário reflete o vetor da isonomia que alicerça o

nosso ordenamento jurídico, com a previsão expressa no caput do art. 5º da

Constituição da República, atribuindo a cada cidadão de um Estado Demo-

crático de Direito a mesma importância política. Ora, com muito mais razão,

como bem lembrou o ministro Ayres Britto, é adotada, em nossos órgãos julga-

dores colegiados, a definição de que justo e constitucional em uma escolha ou

julgamento é atribuir o mesmo valor ao voto de cada um (cidadão ou julgador).

Cumpre registrar que, em outra situação, o E. Tribunal Regional Federal

da 1ª Região adotou entendimento no sentido de que a prolação de mais de

um voto por um mesmo julgador é ilegítima.

Veja-se o que manifestou a Exma. Desembargadora Federal Maria do Carmo

Cardoso, relatora da Apelação Cível nº 2000.34.00.045920-6/DF, em seu voto:

“No âmbito administrativo, da decisão que julgou

procedente a ação fiscal, a empresa impetrante apresen-

tou recurso voluntário. Por maioria de votos, a 2ª Câ-

mara do Segundo Conselho de Contribuintes, presidida

pelo Conselheiro Marcos Vinicius Neder de Lima, deu

parcial provimento ao recurso em 25/02/1997 (fl. 225).

Interposto recurso especial de divergência pela em-

presa, o mesmo Conselheiro, Marcos Vinicius Neder de

Lima, em novembro de 1997, por despacho, negou-lhe

seguimento (fl. 267).

A apelada, inconformada com o despacho 202-

08.957, formulou pedido de reexame, encaminhado à

2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, ten-

tion Clause of the Fourteenth Amendment. The concept of `we the people’ under the Constitu-tion visualizes no preferred class of voters but equality among those who meet the basic qua-lifications. The idea that every voter is equal to every other voter in his State, when he casts his ballot in favor of one of several competing candidates, underlies many of our decisions.Continuing, we stated that ‘there is no indication in the Constitution that homesite or oc-cupation affords a permissible basis for distinguishing between qualified voters within the State.’ And, finally, we concluded: ‘The conception of political equality from the Declaration of Independence, to Lincoln’s Gettysburg Address, to the Fifteenth, Seventeenth, and Ninete-enth Amendments can mean only one thing - one person, one vote” (Disponível em: ‹http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=377&invol=533#t36›. Acesso em: 09.05.2012).

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Revista da Ajufe 217

do como relatora a Conselheira Luiza Helena Galante

de Mourão, que reformou o despacho da lavra do Con-

selheiro Presidente da 2ª Câmara do 2º Conselho de

Contribuintes, admitindo o processamento do Recurso

Especial de Divergência.

No Plenário da Câmara Superior de Recursos Fis-

cais, colegiado que o referido conselheiro compõe,

participante da sessão de julgamento, ficou assentada

a não admissão do recurso especial (fls. 280-281).

O art. 14 da Portaria 538/1992, que aprovou o Regi-

mento Interno do Segundo Conselho de Contribuintes,

estabelece o impedimento dos conselheiros e procura-

dores de participar do julgamento dos recursos em que

tenham: sido atuantes nos processos; praticado ato de-

cisório na 1ª instância; interesse econômico e financei-

ro, direto ou indireto; parentes, consanguíneos ou afins,

até o terceiro grau, interessados no litígio (fl. 302).

A Portaria 540/1992 aprovou o Regimento Interno

da Câmara Superior de Recursos Fiscais. No art. 13,

estão previstas as hipóteses de impedimento dos con-

selheiros e, entre elas, a prática de ato decisório na pri-

meira instância (fl. 308).

Em 1998, foi editada a Portaria Ministerial 55, que

aprovou os Regimentos Internos da Câmara Superior de

Recursos Fiscais e dos Conselhos de Contribuintes do

Ministério da Fazenda. Está disposto, em ambos, o impe-

dimento dos conselheiros de participar do julgamento

dos recursos em que tenham sido atuantes nos proces-

sos e que tenham praticado ato decisório na 1ª instância

(arts. 13 e 15, fls. 316 e 335, respectivamente).

O entendimento firmado na sentença quanto à

afronta ao Regimento Interno da Câmara Superior está

correto, pois o mesmo conselheiro atuou em três fases

do processo administrativo fiscal.

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Revista da Ajufe 218

Contrariamente ao alegado nas razões recursais da

União, está flagrante o óbice regimental quanto à par-

ticipação do Conselheiro, Marcos Vinicius Neder de

Lima, no julgamento do pedido de reexame.

Do parecer do representante do MPF, destaco que res-

tou configurada ofensa ao princípio da imparcialidade.

Da mesma forma que é vedado ao juiz exercer jurisdição

no processo em que tiver funcionando como juiz de outra

instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a

questão (art. 252, CPC), é razoável que tal interpretação

seja estendida aos processos administrativos”.11

Ora, se a prolação de dois ou mais votos pelo mesmo julgador, em di-

ferentes instâncias de julgamento, ofende o princípio da imparcialidade, é

certo que também a prolação de dois votos por um julgador em uma única

assentada igualmente ofende o referido princípio.

Cabe ainda lembrar que, nas associações e em conselhos diversos, a

igualdade de direitos conduz a que cada um seja titular de um voto. Nas so-

ciedades, diversamente, mas mantendo viva a chama da igualdade, os votos

poderão ser contados segundo o valor das quotas de capital. Aqui, particu-

larmente, o tratamento diferenciado justifica-se, uma vez que, tendo a socie-

dade finalidade exclusivamente econômica, a possibilidade de influenciar

em seus destinos será diretamente proporcional ao capital nela investido.

Não há, pelo que se pode depreender, como indicar um critério apto a justi-

ficar a flagrante desigualdade imposta pelo artigo 54 do Anexo II do Regimen-

to Interno do CARF, justamente entre os seus próprios integrantes, permitindo

que a apenas um deles, e nesse ponto não importa se representante da Fazenda

Nacional ou dos Contribuintes, seja dado provocar o empate e, na sequência

imediata, seja dado o privilégio de definir (distorcer) o resultado do julgamen-

to, fazendo prevalecer uma suposta “maioria”, quando essa, na realidade, não

se verificou, na medida em que foi alcançado empate no cômputo dos votos

11 AMS 200034000459206, desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, TRF1 - Oi-tava Turma, e-DJF1 04/12/2009 - g.n.

Page 219: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 219

prolatados pelos membros integrantes do órgão colegiado.

Falta, desse modo, correlação lógica entre o fato adotado como discrímen

– a circunstância de ser presidente de uma das turmas do CARF – vaga esta

que nunca é concedida a um representante dos contribuintes em um tribu-

nal administrativo que se diz paritário – e a discriminação feita: cômputo

duplicado de voto.

Em respeito ao princípio da igualdade e de outros postulados constitu-

cionais, a legislação interna dos órgãos colegiados administrativos deveria

estabelecer mecanismos capazes de solucionar conflitos desse tipo.

5. Possíveis alternativas

Cuidando-se especificamente do CARF, é importante registrar que não

há outra previsão regimental que possa solucionar o embaraço do empate

no cômputo dos votos sem a adoção da espúria sistemática do voto duplo.

Não existe, por exemplo, disposição que determine, antes mesmo da injusta

adoção do voto duplo, a convocação de outro conselheiro, ainda que presi-

dente de outra turma, ou sorteado dentre os conselheiros substitutos, para

proferir o voto de desempate necessário à proclamação do resultado final.

Em suma, outro conselheiro julgador, cujo peso de sua manifestação pelo

voto seja exatamente igual ao de seus pares.

É esta “criatividade normativa” que evolui para os fins de se evitar – no

exercício da prestação jurisdicional emanada dos tribunais – as violações

dos postulados constitucionais da igualdade, devido processo legal, juiz na-

tural, razoabilidade, dentre outros, amplamente percebida e presente nos Re-

gimentos Internos dos tribunais.

Nesse sentido, a título de se demonstrar que, diferentemente do que ocor-

re no âmbito do CARF, é possível a todos os colegiados a adoção de normas

internas que busquem preservar a melhor prestação jurisdicional, sendo

oportuno destacar as seguintes regras regimentais, no âmbito dos Tribunais

Superiores da República.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, constam diversas regras que

trazem critérios capazes de solucionar a delicada questão do empate no

cômputo dos votos.

Page 220: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 220

Em caso de empate em votação de uma das turmas do STF – na qual o

presidente sempre tem direito a voto – adia-se a decisão até tomar-se o voto

do ministro que esteve ausente (art. 150, § 1º). Ausente por mais de um mês,

convoca-se ministro da outra turma, na ordem decrescente de antiguidade

(art. 150 § 2º). Há exceção no caso de empate em julgamento de habeas

corpus e recursos em matéria criminal (exceto recurso extraordinário), em

que prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente ou réu (art. 150 § 3º).

Já nos julgamentos do Pleno do STF, a regra geral é que havendo empate

na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, conside-

rar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida

ou à proposta, à exceção do julgamento de habeas corpus, e seus recursos,

quando proclamar-se-á, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao

paciente (art. 146, parágrafo único).

Como atribuições do presidente, cabe proferir voto de qualidade nas deci-

sões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução di-

versa, quando o empate na votação decorra de ausência de ministro em virtude

de: a) impedimento ou suspeição; b) vaga ou licença médica superior a 30 dias,

quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o ministro licenciado.

Na hipótese específica de julgamento de mandado de segurança contra

ato do presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Conselho Nacional de

Justiça será presidido pelo vice-presidente, se lhe couber votar e seu voto

produzir empate, observar-se-á o seguinte: I – não havendo votado algum

ministro, por motivo de ausência ou licença que não deva durar por mais de

três meses, aguardar-se-á o seu voto; II – havendo votado todos os minis-

tros, salvo os impedidos ou os licenciados por período remanescente supe-

rior a três meses, prevalecerá o ato impugnado.

Verifica-se, portanto, o caráter residual e subsidiário do voto duplo den-

tre o amplo elenco de possíveis alternativas para solucionar a questão quan-

do do empate de votos.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sequer consta a previsão

que atribui ao presidente a prerrogativa do voto duplo (não constando nem

como regra residual e subsidiária).

Em caso de empate em votação de uma das turmas do STJ – na qual o presi-

dente sempre tem direito a voto – adia-se a decisão até tomar-se o voto do mi-

Page 221: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 221

nistro que esteve ausente (art. 181, § 2º). Ausente por mais de um mês, convoca-

-se ministro da outra turma, na ordem decrescente de antiguidade (art. 181 §

3º e art. 55, parágrafo único). Há exceção no caso de empate em julgamento de

habeas corpus e recursos em matéria criminal (exceto recurso especial), em que

prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente ou réu (art. 181, § 4º).

Já nos julgamentos do Pleno, da Corte Especial ou das Seções do STJ, a

regra geral é que o presidente vote somente quando o julgamento depender

de quórum qualificado de 2/3 (dois terços) dos membros para apuração do

resultado (art. 175, inc. I) ou em caso de empate (art. 21, inc. VI; art. 24, inc.

I e art. 175, inc. III).

Nos julgamentos em que haja previsão regimental de voto do presidente, se

houver empate – por impedimento de algum dos demais ministros – convoca-

-se para completar o quórum outro ministro do STJ, por ordem de antiguidade

(art. 55 caput), ou juiz convocado de Tribunal Regional Federal (art. 56).

Verifica-se, por conseguinte, no tocante ao RISTF, por exemplo, variados

critérios aptos a promover o desempate de determinado julgamento, che-

gando inclusive ao casuísmo de diferentes situações específicas. Quando do

julgamento de turma, de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta,

de habeas corpus e seus recursos e de ato do presidente do STF ou do CNJ,

há diferentes soluções previstas regimentalmente para cada uma dessas hi-

póteses. Por fim, quando o RISTF não previr solução diversa, o que de plano

afasta cada uma das hipóteses anteriormente colocadas, quando o empate

decorrer da ausência de ministro nas condições que especifica, aí sim, e so-

mente aí, é que caberá ao presidente proferir o voto de qualidade.

Não obstante, o então presidente do STF, eminente ministro Cezar Peluso,

quando o plenário chegou ao empate no julgamento do RE 630.147 (Caso

Ficha Limpa – Joaquim Roriz), afirmou expressamente a respeito do voto de

qualidade previsto no inciso IX do art. 13 do RISTF: “Eu não tenho nenhuma

vocação para déspota, nem acho que o meu valha mais do que qualquer dos

outros Ministros, porque, se valesse, cinco Ministros não teriam discordado

do meu voto!” (pág. 340 do acórdão - julgado em 29/09/2010, DJe-230 Di-

vulg 02-12-2011 Public 05-12-2011 Ement Vol-02639-01).

Page 222: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 222

6. Conclusão

Enquanto se percebe a constante preocupação dos tribunais judiciais

pátrios para preservar os julgamentos das violações constitucionais já men-

cionadas, o CARF, por sua vez, anda na contramão em detrimento das garan-

tias individuais.

Diante disso, verifica-se o necessário afastamento da aplicação do art. 54

do Anexo II do Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos

Fiscais, aprovado pela Portaria MF nº 256, de 22 de junho de 2009, que per-

mite a aplicação do voto duplo, vez que flagrante a violação ao princípio da

igualdade previsto no caput do art. 5º e ao princípio do Estado Democrático

de Direito, estabelecido no art. 1º, ambos da Constituição da República.

7. Referências bibliográficas

ANDRADE, Fábio Martins de. Dúvida, empate no julgamento e interpreta-

ção mais favorável ao contribuinte. Revista Dialética de Direito Tributário.

São Paulo: Ed. Dialética, n. 215, ago 2013, p. 88-98.

CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista

dos Tribunais, 2004.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fun-

damentais. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Di-

reito Constitucional, 2003.

STF - Acórdão do Recurso Extraordinário nº 236.604-7 PR, Rel. Min. Car-

los Velloso, DJU de 06.08.1999, in Revista Dialética de Direito Tributário.

São Paulo: Dialética, nº 49, outubro de 1999, p. 165 -169.

STF – Acórdão do Recurso Extraordinário nº 630.147-DF, Rel. Min. Mar-

co Aurélio, julgado em 29.09.2010, DJe 02.12.2011.

TRF/1ª Região - AMS 200034000459206, Desembargadora Federal Ma-

ria do Carmo Cardoso, TRF1 - Oitava Turma, e-DJF1 04/12/2009.

Page 223: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 223

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Estados Liberal, Social e Democrático de Direito: noções, afinidades e fundamentos

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Revista da Ajufe 226

Leonardo Cacau Santos La BradburyJuiz Federal Substituto, Mestre em Estado, Políticas Públicas e Educação

pela UNIOESTE, Professor da Escola da Magistratura e da UNIVEL.

Resumo: O presente artigo busca analisar as principais características

dos Estados Liberal, Social e Democrático, seus fundamentos, pontos em co-

mum, noções e estrutura político-econômica.

Busca-se, através dessa interpretação histórica, melhor entender os ali-

cerces que regem o Estado Democrático de Direito e a nova ordem jurídica

implementada pela Constituição Federal de 1988, a fim de que se possa re-

alizar, atualmente, uma interpretação teleológica, buscando alcançar a fina-

lidade da norma jurídica.

Palavras-chave: Estado Liberal. 2. Estado Social. 3. Estado Democrático

de Direito. 5. Direitos Fundamentais.

Abstract: The present article aims to analyze the main characteristics of

the Liberal, Social and Democratic States, its foundations, commonalities,

notions and politic-economic structure.

It seek, through this historical interpretation, better understand the foun-

dations that underpinning the Democratic Law State and the new legal or-

der implemented by the Federal Constitution of 1988, so that it can realize,

actually, a theological interpretation to seek the juridical norm purpose.

Keywords: Liberal State. 2. Social State. 3. Democratic Law State. 5.

Fundamental Rights.

1. Surgimento do Estado Liberal

O Estado de Direito Liberal institucionalizou-se após a Revolução Fran-

cesa de 1789, no fim do século XVIII, constituindo o primeiro regime jurídi-

co-político da sociedade que materializava as novas relações econômicas e

sociais, colocando de um lado os capitalistas (burgueses em ascensão) e do

Page 227: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 227

outro a realeza (monarcas) e a nobreza (senhores feudais em decadência).

A Revolução de 1789 foi uma revolta social da burguesia, inserida no

Terceiro Estado francês, que se elevou do patamar de classe dominada e

discriminada para dominante e discriminadora, destruindo os alicerces que

sustentavam o absolutismo (antigo regime), pondo fim ao Estado Monárqui-

co autoritário.

O lema dos revolucionários era “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”,

que resumia os reais desejos da burguesia: liberdade individual para a ex-

pansão dos seus empreendimentos e a obtenção do lucro; igualdade jurídica

com a aristocracia visando à abolição das discriminações; e fraternidade

dos camponeses e sans-cullotes1 com o intuito de que apoiassem a revolu-

ção e lutassem por ela.

Podemos citar, consoante os ensinamentos de José de Albuquerque Ro-

cha2 e de Carlos Ari Sundfeld,3 as seguintes características básicas do Esta-

do Liberal: não intervenção do Estado na economia, vigência do princípio da

igualdade formal, adoção da Teoria da Divisão dos Poderes de Montesquieu,

supremacia da Constituição como norma limitadora do poder governamen-

tal e garantia de direitos individuais fundamentais.

Nesse contexto, a classe burguesa emergente detinha o poder econômico,

enquanto que o poder político estava sob o domínio da realeza e da nobreza.

Logo, percebe-se que o princípio da não intervenção do Estado na econo-

mia, defendido pelo Estado Liberal, foi uma estratégia da burguesia para

evitar a ingerência dos antigos monarcas e senhores feudais nas estruturas

econômicas da época, garantindo a liberdade individual para a expansão

dos seus empreendimentos e a obtenção do lucro.

Dessa forma, os capitalistas em ascensão tinham liberdade para ditar a

1 Sans-culottes (tradução: sem-calças): população pobre de Paris, formada pela massa de artesãos, aprendizes, lojistas, biscateiros e desempregados; teve importante participação nos acontecimentos revolucionários de 1789 a 1794.

2 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 126.

3 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7ª tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo.

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Revista da Ajufe 228

economia a seu favor, através da prática da autorregulação do mercado, a

qual está sendo bastante utilizada atualmente, por meio do surgimento do

Estado Neoliberal. Pregava-se a mínima intervenção do Estado na economia,

criando a figura do “Estado Mínimo”, defendendo a ordem natural da eco-

nomia de mercado, com o escopo de expandir seus domínios econômicos.

Outra característica do Estado Liberal é a defesa do princípio da igual-

dade, uma das maiores aspirações da Revolução Francesa. Porém, é preci-

so observar quais os fatores que influenciaram a burguesia em ascensão a

pregar a aplicação de tal princípio. Ressalte-se que a igualdade aplicada é

tão-somente a formal, na qual se buscava a submissão de todos perante a

lei, afastando-se o risco de qualquer discriminação. Logo, sob o manto de tal

fundamento, todas as classes sociais seriam tratadas uniformemente, pois as

leis teriam conteúdo geral e abstrato, não sendo específicas para determina-

do grupo social.

Trata-se de outra tática da burguesia, pois se sabe que o sistema feudal

possuía uma estrutura estamental ou de ordens, isto é, era composto por

várias classes sociais, a que correspondiam diferentes ordenamentos jurídi-

cos. Essa pluralidade de textos legais vigentes representava que a lei e a ju-

risdição eram distintas, variando conforme o grupo social do destinatário da

norma. Tal situação acabava fazendo com que a realeza e a nobreza tivessem

uma série de privilégios, enquanto a burguesia era discriminada.

A fim de demonstrar tal situação de discriminação existente à época, im-

portante transcrever um trecho da Carta de Reclamações do Terceiro Estado

da Paróquia de Longey, presente na obra de Kátia M. de Queiroz Mattoso:

“[...] pedimos também que as talhas com as quais a

nossa paróquia está sobrecarregada sejam abolidas;

que este imposto que nos oprime, e que só é pago pelos

infelizes, seja convertido num só e único imposto ao

qual devem ser submetidos todos os eclesiásticos e no-

bres sem distinção, e que o produto deste imposto seja

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Revista da Ajufe 229

levado diretamente ao Tesouro4.”4 (grifo nosso).

Percebe-se, pois, que esse grande número de ordenamentos jurídicos ge-

rava temor à classe burguesa, pois temia que a nobreza, ainda detentora do

poder político, continuasse implementando leis que conferissem privilégios

apenas à sua casta. Então, os capitalistas idealizaram a criação de um único

ordenamento jurídico, defendendo a igualdade formal, no qual todos eram

iguais perante a lei, que possuía conteúdo geral e abstrato, aplicando-se in-

discriminadamente a todos os grupos sociais, não permitindo o estabeleci-

mento de prerrogativas para determinada classe em detrimento das outras,

surgindo o conceito de Estado de Direito e a figura da Constituição, que

passava a limitar os poderes do governante, visando conter seus arbítrios,

que preponderavam no Estado Monárquico, resumidos na conhecida frase

de Luiz XIV, símbolo do poder pessoal: “l´État cést moi”.5

No tocante à Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu, adotada

pelo Estado Liberal, José de Albuquerque Rocha observa que o objetivo de

Montesquieu ao idealizar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário era

preservar os privilégios da sua própria classe, a nobreza, ameaçada tanto

pelo rei, que almejava recuperar sua influência nacional, quanto pela bur-

guesia, que, dominando o poder econômico, intentava o poder político.6 Ela-

borou, então, sua teoria que repartia o poder entre a burguesia, a nobreza e

a realeza, afastando, desse modo, a possibilidade de a burguesia em cresci-

mento ser a sua única detentora.

Assim, o Estado de Direito, na precisa lição de Carlos Ari Sunfeld, pode

ser definido:

“[...] como o criado e regulado por uma Constituição

(isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o

4 MATTOSO, Kátia M. de Queiróz. Textos e documentos para o estudo da história contempo-rânea, 1789 – 1963, São Paulo, HUCITEC: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.

5 CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado. 3ª .ed.: São Paulo, 1949, p.95.

6 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 128.

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Revista da Ajufe 230

exercício do poder político seja dividido entre órgãos

independentes e harmônicos, que controlem uns aos

outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha

de ser necessariamente observada pelos demais e que

os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-

-los ao próprio Estado”.7

Dessa feita, o Estado de Direito criou a figura do direito subjetivo público,

isto é, a possibilidade de o cidadão, sendo o titular do direito, ter a faculdade

de exigi-lo (facultas agendi) em desfavor do Estado, regulando a atividade

política, situação que não era prevista no Absolutismo, no qual apenas esta-

belecia direito subjetivo dos indivíduos nas suas relações recíprocas, isto é,

o cidadão podia exigir o cumprindo de uma obrigação pactuada com outro

cidadão, mas não em face do Estado.

Dessa forma, o Estado de Direito, ao passar a impedir o exercício arbi-

trário do poder pelo governante e garantir o direito público subjetivo dos

cidadãos, reconhece, constitucionalmente, e de uma forma mínima, direitos

individuais fundamentais, como a liberdade (apregoada na Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual foi mantida como pre-

âmbulo da Constituição Francesa de 1791), consoante os ensinamentos de

Norberto Bobbio, assim delineados:

“Na doutrina liberal, Estado de direito significa não

só subordinação dos poderes públicos de qualquer

grau às leis gerais do país, limite que é puramente for-

mal, mas também subordinação das leis ao limite mate-

rial do reconhecimento de alguns direitos fundamen-

tais considerados constitucionalmente, e portanto em

linha de princípio invioláveis”.8

7 SUNDELD Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7ª tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, p.38/39.

8 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, pág. 19.

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Revista da Ajufe 231

Assim, o Estado Liberal cria os chamados “direitos de primeira geração”,

que decorrem da própria condição de indivíduo, de ser humano, situando-se,

desta feita, no plano do ser, de conteúdo civil e político, que exigem do Estado

uma postura negativa em face dos oprimidos, compreendendo, dentre outros,

as liberdades clássicas, tais como, liberdade, propriedade, vida e segurança,

denominadas, também, de direitos subjetivos materiais ou substantivos.

É preciso ressaltar que tais direitos exigiam do Estado uma conduta ne-

gativa, isto é, uma omissão estatal em não invadir a esfera individual do na-

cional, que deixou de ser considerado mero súdito, elevando-se à condição

de cidadão, detentor de direitos tutelados pelo Estado, inclusive contra os

próprios agentes estatais.

Ao lado dos direitos subjetivos materiais, criaram-se as garantias funda-

mentais, também chamadas de direitos subjetivos processuais (ou adjetivos,

ou formais, ou instrumentais), visando, efetivamente, assegurar os direitos

substantivos, como, p.ex., o habeas corpus, que tem o escopo de assegurar

o direito à liberdade.

2. Criação do Estado Social

A igualdade tão-somente formal aplicada e o absenteísmo do Estado Li-

beral em face das questões sociais apenas serviram para expandir o capita-

lismo, agravando a situação da classe trabalhadora, que passava a viver sob

condições miseráveis.

O descompromisso com o aspecto social, agravado pela eclosão da Re-

volução Industrial, que submetia o trabalhador a condições desumanas e

degradantes, a ponto de algumas empresas exigirem o trabalho diário do

obreiro por 12 horas ininterruptas, culminou com a Revolução Russa de

1917, conduzindo os trabalhadores a se organizarem com o objetivo de re-

sistir à exploração.

Esse movimento configurava a possibilidade de uma ruptura violenta do

Estado Liberal, devido à grande adesão de operários do ocidente europeu. A

burguesia, hesitando a expansão dos ideais pregados pela Revolução Russa,

adotou mecanismos que afastassem os trabalhadores da opção revolucioná-

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Revista da Ajufe 232

ria, surgindo, então, o Estado Social, com as seguintes características: inter-

venção do Estado na economia, aplicação do princípio da igualdade material

e realização da justiça social.

A burguesia, agora detentora do poder político, passou a defender o in-

tervencionismo estatal no campo econômico e social, buscando acabar com

a postura absenteísta do Estado, preocupando-se com os aspectos sociais

das classes desfavorecidas, conferindo-lhes uma melhor qualidade de vida,

com o único intuito de conter o avanço revolucionário.

Para alcançar tal intento, os capitalistas tiveram que substituir a igualda-

de formal, presente no Estado Liberal, que apenas contribuiu para o aumen-

to das distorções econômicas, pela igualdade material, que almejava atingir

a justiça social.

O princípio da igualdade material ou substancial não somente considera

todas as pessoas abstratamente iguais perante a lei, mas se preocupa com a

realidade de fato, que reclama um tratamento desigual para as pessoas efeti-

vamente desiguais, a fim de que possam desenvolver as oportunidades que

lhes assegura, abstratamente, a igualdade formal. Surge, então, a necessidade

de tratar desigualmente as pessoas desiguais, na medida de sua desigualdade.

Assim, Carlos Ari Sundfeld sintetiza, afirmando que:

“O Estado torna-se um Estado Social, positiva-

mente atuante para ensejar o desenvolvimento (não

o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural

e a mudança social) e a realização da justiça social (é

dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto

econômico)”.9

Há, assim, uma semelhança entre o Estado Social e o Estado de Direito,

na medida em que foi este, como vimos no tópico anterior, que originou o

conceito de direito público subjetivo, cabendo àquele a abrangência de seu

9 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, pág. 55.

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Revista da Ajufe 233

alcance, regulando, mais efetivamente, atividades políticas governamentais.

Sobre as semelhanças e as diferenças existentes entre essas duas formas

de Estado, Gordillo assim enuncia:

“A diferença básica entre a concepção clássica do

liberalismo e a do Estado de Bem-Estar é que, enquanto

naquela se trata tão-somente de colocar barreiras ao

Estado, esquecendo-se de fixar-lhe também obrigações

positivas, aqui, sem deixar de manter as barreiras, se

lhes agregam finalidades e tarefas às quais antes não

sentia obrigado. A identidade básica entre o Estado de

Direito e Estado de Bem-Estar, por sua vez, reside em

que o segundo toma e mantém do primeiro o respeito

aos direitos individuais e é sobre esta base que cons-

trói seus próprios princípios.”.10

Verifica-se, assim, que o Estado Social (ou do Bem-Estar), apesar de

possuir uma finalidade diversa da estabelecida no Estado de Direito, pos-

sui afinidades, uma vez que utiliza deste o respeito aos direitos individuais,

notadamente o da liberdade, para construir os pilares que fundamentam a

criação dos direitos sociais.

Surgem, desta forma, os “direitos de segunda geração”, que se situam no

plano do ser, de conteúdo econômico e social, que almejam melhorar as con-

dições de vida e de trabalho da população, exigindo do Estado uma atuação

positiva em prol dos explorados, compreendendo, dentre outros, o direito ao

trabalho, à saúde, ao lazer, à educação e à moradia.11

Como visto no capítulo anterior, percebe-se que os direitos públicos sub-

jetivos criados, minimamente, pelo liberalismo, exigiam uma postura estatal

negativa, enquanto que o Estado Social reclamava por uma conduta positiva,

10 GORDILLO, Agustín. Princípios Gerais de Direito Público. Trad. Brasileira de Marco Au-relio Greco. Ed. RT: São Paulo, 1977, pág. 74.

11 Inserida no rol do art.6º da C.F./88 por meio da Emenda Constitucional nº 26/2000.

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Revista da Ajufe 234

dirigente, ativista, em que se implementassem políticas governamentais que,

efetivamente, garantissem o mínimo de bem-estar à população.

Assim, ampliam-se os direitos subjetivos materiais, exigindo um com-

promisso dos governantes em relação aos governados, com vistas a lhes

proporcionar, dentre outros, direito à educação, à saúde e trabalho, que se

situam no plano do ter, diferentemente dos direitos assegurados pelo libera-

lismo, que se estabelecem no plano do ser.

Assim, o Estado de Bem-Estar busca implementar a seguinte premissa

lógica: “É preciso ter para ser”. Ou seja, é necessário ter, materialmente, um

mínimo de direitos assegurados e realizados para que o indivíduo possa ser,

realmente, um cidadão.

Por essa razão, como nos ensina Carlos Ayres de Britto,12 os direitos sociais

são todos indisponíveis (não potestativos), pois são um meio para se alcançar

a plenitude do ser humano, enquanto que os direitos individuais dividem-se

em disponíveis (potestativos) ou indisponíveis (não potestativos).

O ilustre ex-ministro do STF, de forma brilhante, nos ensina a Teoria da

Essencialidade dos Direitos Sociais, pois os considera como condições ma-

teriais objetivas de concretização dos próprios direitos individuais, ao nos

alertar para a seguinte constatação: serve o direito à inviolabilidade do do-

micílio se a pessoa não tem casa? Ou, em outras palavras, de que se serve o

direito ao sigilo da correspondência se a pessoa não tem endereço?

Sintetizando sua teoria, Carlos Ayres Britto cita um ensinamento de San-

to Agostinho, que dizia: “Sem o mínimo de bem-estar material, não se pode

nem louvar a Deus”.

Cumpre registrar que a primeira Constituição a consagrar os direitos so-

ciais foi a do México, de 1917, apesar de a Constituição Alemã de 1919 (de

Weimar) ser a mais conhecida. No Brasil, a primeira Constituição a prever

em seu texto os direitos sociais foi a de 1934, época do governo de Getúlio

Vargas, que consagrou os direitos trabalhistas.

12 BRITTO, Carlos Ayres de. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Aula Magna exibida em 12.10.06 na TV Justiça (Canal 04 da NET).

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Revista da Ajufe 235

3. Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito surge como uma tentativa de corrigir

algumas falhas presentes no Estado Social.

O publicista Jose Afonso da Silva nos ensina que a igualdade pregada

pelo Estado Liberal, fundada num elemento puramente formal e abstrato,

qual seja a generalidade das leis, como analisado anteriormente, não tem

base material que se realize na vida concreta.

A tentativa de corrigir isso, na doutrina do constitucionalista, foi a constru-

ção do Estado Social, que, no entanto, não conseguiu garantir a justiça social

nem a efetiva participação democrática do povo no processo político.13

O Estado Social, consoante os ensinamentos de Paulo Bonavides, não

atendia efetivamente aos anseios democráticos, pois a Alemanha nazista, a

Itália fascista, a Espanha franquista, a Inglaterra de Churchill, bem como o

Brasil de Vargas tiveram essa estrutura política, concluindo o ilustre consti-

tucionalista que “o Estado Social se compadece com regimes políticos anta-

gônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo”.14

Surge, então, o Estado Democrático de Direito, que, na doutrina de Ivo

Dantas, concilia “duas das principais máximas do Estado Contemporâneo,

quais sejam a origem popular do poder e a prevalência da legalidade”.15

Fundem-se, assim, as diretrizes do Estado Democrático com as do Estado

de Direito, tendo em vista que formam uma forte relação de interdependên-

cia, brilhantemente observada por Bobbio, nos seguintes termos:

“Estado Liberal e estado democrático são interdepen-

dentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo

à democracia, no sentido de que são necessárias certas

13 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed. São Paulo: Ma-lheiros, 2005, p. 118.

14 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 205-206.

15 DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989, p.27.

Page 236: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 236

liberdades para o exercício correto do poder democrá-

tico, e na direção oposta que vai da democracia ao libe-

ralismo, no sentido de que é necessário o poder demo-

crático para garantir a existência e a persistência das

liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco

provável que um estado não liberal possa assegurar um

correto funcionamento da democracia, e de outra parte

é pouco provável que um estado não democrático seja

capaz de garantir as liberdades fundamentais.”16

Assim, forma-se um vetor de mão dupla: o direito fundamental da liber-

dade, garantido pelo Estado de Direito, é necessário para o regular exercício

da democracia, a qual é condição singular para a existência, a manutenção e

a ampliação desses direitos e garantias individuais, razão pela qual surge o

Estado Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito cria os “direitos de terceira geração”,

que se situam no plano do respeito, de conteúdo fraternal, compreendendo

os direitos essenciais ou naturalmente coletivos, isto é, os direitos difusos e

os coletivos strictu sensu, passando o Estado a tutelar, além dos interesses

individuais e sociais, os transindividuais (ou metaindividuais), que compre-

endem, dentre outros, o respeito ao meio ambiente ecologicamente equili-

brado, a paz, a autodeterminação dos povos e a moralidade administrativa.

Ressalta-se que Paulo Bonavides,17 em precisa lição, nos alerta sobre a

existência dos “direitos de quarta geração”, ao nos ensinar que a “globali-

zação política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de

quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de instituciona-

lização do Estado social”, compreendendo, entre outros, o direito à demo-

cracia, à informação e ao pluralismo político, étnico e cultural.

Ademais, convém frisar, neste contexto de mundo globalizado, o pensa-

16 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo. Trad. Brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, pág.20.

17 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524-526.

Page 237: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 237

mento oportuno de Peter Häberle,18 ao afirmar que vivemos em um Esta-

do Constitucional Cooperativo, no qual a figura estatal não se apresenta

voltada para si mesmo, mas sim como referência para os outros Estados

Constitucionais membros de uma comunidade, no qual ganha importância o

papel dos direitos humanos fundamentais, gerando a ideia da criação de um

direito comunitário internacional.

3.1 Fundamentos

O Estado Democrático de Direito, assentado nos pilares da democracia e

dos direitos fundamentais, surge como uma forma de barrar a propagação

de regimes totalitários, que, adotando a forma de Estado Social, feriam as

garantias individuais, maculando a efetiva participação popular nas deci-

sões políticas.

No Estado Democrático de Direito, coexistem harmonicamente o Princí-

pio da Soberania Popular, aplicado através do regime democrático, e o da

Legalidade, herança do Estado Liberal.

Cumpre expormos alguns conceitos de “democracia”, a fim de melhor

entendermos o seu alcance e significado.

Pinto Ferreira a define como:

“[...] governo constitucional das maiorias que, sobre

as bases de uma relativa liberdade e igualdade, pelo

menos a igualdade civil (a igualdade diante da lei), pro-

porciona ao povo o poder de representação e fiscaliza-

ção dos negócios públicos”.19

Paulo Bonavides complementa, afirmando que democracia é:

18 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. de Hector Fix-Fierro. México: Universi-dad Nacional Autónoma de México, 2003. p. 75-77.

19 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.88.

Page 238: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 238

“[...] aquela forma de exercício da função governati-

va em que a vontade soberana do povo decide, direta ou

indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte

que o povo seja sempre o titular e o objeto – a saber, o su-

jeito ativo e o sujeito passivo de todo o poder legítimo”.20

Não podemos deixar de mencionar a célebre definição de democracia

conferida por Lincoln, o libertador dos escravos, afirmando ser o “governo

do povo, para o povo e pelo povo”.21

José Afonso da Silva, citando os ensinamentos de Emilio Crosa, delimita

o alcance da democracia:

“[...] a democracia impõe a participação efetiva e ope-

rante do povo na coisa pública, participação que não se

exaure na simples formação das instituições representa-

tivas, que constituem um estágio da evolução do Estado

Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento”.22

Logo, na busca por instaurar a plena incorporação do povo nos mecanis-

mos de controle das decisões políticas, surge o Estado Democrático de Di-

reito, por meio da fusão dos conceitos de Estados de Direito e Democrático,

aplicando, sob o crivo da legalidade, os ditames democráticos, e garantindo,

em sua plenitude, os direitos humanos fundamentais.

3.2 Promulgação pela Constituição Republicana de 1988

O Estado Democrático de Direito foi proclamado pela Constituição da Re-

20 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 17.

21 Ibid., p. 18.

22 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed. São Paulo: Ma-lheiros, 2005, p. 117, apud Emili Crosa, Lo Stato democrático, p.25.

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Revista da Ajufe 239

pública Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo primeiro, que, consoante

as lições de José Afonso da Silva, não se trata de “mera promessa de organizar

tal Estado, pois a Constituição aí já está proclamando e fundando”. 23

A Carta de Outubro, por meio do regime democrático, busca garantir a

participação popular no processo político, estabelecer uma sociedade livre,

justa e solidária, em que todo o poder emana do povo, diretamente ou por

representantes eleitos, respeitando a pluralidade de ideias, culturas e etnias,

considerando o princípio da Soberania Popular como garantia geral dos di-

reitos fundamentais da pessoa humana.24

O legislador constituinte conferiu tamanha importância aos direitos e às

garantias individuais, que os enquadrou logo no título segundo da Consti-

tuição, no qual incluiu o artigo quinto, que possui 78 incisos, o mais extenso

artigo da Carta Fundamental.

Importante perceber que o Estado Democrático de Direito, instituído no Bra-

sil pela Carta Republicana de 1988, não se resume na participação dos cidadãos

no processo político, formando as instituições representativas. Na perspectiva

da doutrina de Ivo Dantas “deve-se evitar que se confunda, por qualquer mo-

tivo, a defesa do Estado Democrático de Direito com a defesa de um ‘sistema

político’ que nem sempre representa o verdadeiro conceito de democracia”.25

Logo, assentado nos pilares da democracia e dos direitos fundamentais, o

regime democrático brasileiro garante não somente a participação de todos

os cidadãos no sistema político nacional, mas também busca, por todos os

meios assegurados constitucional e legalmente, preservar a integridade dos

direitos essenciais da pessoa humana.

Carlos Ari Sundfeld26 defende que “o Estado brasileiro de hoje constrói

23 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.119.

24 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 2005.

25 DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989, p.27.

26 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, pág. 56.

Page 240: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 240

a noção de Estado Social e Democrático de Direito”, na medida em que a

figura estatal, além de garantir a efetiva democracia e o respeito aos direitos

e às garantias fundamentais, deve atingir determinados direitos sociais, atri-

buindo ao cidadão a possibilidade de exigi-los.

Verifica-se tal situação quando a Constituição Federal de 1988 enuncia,

em seu art. 6º, alguns direitos sociais oponíveis ao Estado, como a educação,

a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a

proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Assim, podemos concluir que a atual organização da República Federa-

tiva do Brasil em um Estado Social e Democrático de Direito reúne alguns

fundamentos presentes nos três regimes de governo ora analisados: o Li-

beral, quando adota a supremacia da Constituição, limitando e regulando o

Poder Estatal, e assegura o respeito aos direitos individuais dos cidadãos; o

Social, na medida em que garante princípios e os direitos sociais oponíveis

ao Estado, exigindo-lhe uma postura positiva e dirigente; e o Democrático,

tendo em vista que busca garantir, efetivamente, a participação popular nas

decisões políticas, repudiando qualquer forma de governo autoritário.

4. Conclusão

Ao analisarmos as diversas estruturas de Estado existentes, e partindo da

premissa de que nossa sociedade evoluiu, pois vivenciou uma república es-

cravocrata, duas ditaduras (Estado Novo e Ditadura Militar) e, consequente-

mente, dois processos de redemocratização política (Constituições de 1946

e de 1988), podemos tirar conclusões que nos ajudarão a compreender o

novo ordenamento jurídico estabelecido pela Carta de Outubro.

No tocante aos direitos criados por cada estrutura política estatal, Paulo

Bonavides27 assim nos ensina:

“Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívo-

co de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com

27 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524-526.

Page 241: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 241

vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso

este último venha a induzir apenas sucessão cronoló-

gica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das

gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrá-

rio, os direitos da primeira geração, direitos individu-

ais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, di-

reitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à

fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estrutu-

rais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à demo-

cracia; coroamento daquela globalização política para

a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a

humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de

haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos

da quarta geração não somente culminam a objetivida-

de dos direitos das duas gerações antecedentes como

absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade

dos direitos individuais, a saber, os direitos de primei-

ra geração. [...] Tais direitos sobrevivem, e não apenas

sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua di-

mensão principal, objetiva e axiológica, podendo, do-

ravante, irradiar-se a todos os direitos da sociedade e

do ordenamento jurídico”.

Dessa feita, da mesma forma que houve a evolução normativa, gerada

pelos diversos ordenamentos jurídicos proclamados por cada nova estru-

tura estatal, que criaram e graduaram as respectivas “gerações de direitos”

(primeira, segunda, terceira e quarta), deve haver a progressão interpretativa

por parte dos operadores do direito, os quais devem procurar analisar o

texto da lei não somente em seu aspecto literal, mas, sobretudo, em seu sen-

tido histórico, sistemático e teleológico, visando atingir os fins estabelecidos

pelo legislador, a fim de que não partam de premissas que conduzirão a con-

clusões retrógradas e dessarazoadas.

Sintetizando tal evolução, vimos que o Estado Liberal assegurou o direito

Page 242: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 242

individual (plano do ser), que ensejava uma postura omissa do governo em

não intervir na sua livre manifestação, limitando a atuação política estatal

na esfera do indivíduo, visando assegurar a liberdade; o Social ampliou o

conceito de direito público subjetivo e criou os direitos sociais (plano do

ter), exigindo políticas governamentais positivas que garantissem o mínimo

de bem-estar à população, limitando o poder econômico, objetivando imple-

mentar a igualdade material.

Por sua vez, o Estado Democrático de Direito Brasileiro amplia o conceito

de direito social, criando o chamado “direito fraternal”, reclamando do Esta-

do uma postura pro-ativa, que deve se antepor aos fatos, buscando contro-

lar a sociedade, implementando formas de concretizar o modelo previsto na

CF/88, pautado nos ditames da justiça, da solidariedade, do pluralismo e da

ausência de preconceitos.

Mas como assim “controlar a sociedade”? Os direitos fraternais, previs-

tos no art.4º, I e IV, bem como no Preâmbulo da CF/88, buscam formas de

“controlar” a sociedade que promove discriminações culturais, raciais, re-

ligiosas e sexuais, realizando, assim, injustiças sociais, como, p.ex., contra

ciganos, índios, negros, homossexuais e ateus.

O Estado, assim, deve agir proativamente, se antevendo aos fatos, pois ne-

cessita executar políticas públicas e formular leis que assegurem os direitos

de afirmação do ser humano, privilegiando os das minorias étnicas, raciais,

sexuais e religiosas.

A título de exemplo desses direitos, podemos citar as cotas afirmativas de

negros e de índios em universidades públicas, reservando-lhes um percen-

tual de vagas.

Os direitos fraternais, também chamados de afirmativos ou compensa-

tórios, buscam compensar as desigualdades civis e morais sofridas pelas

classes discriminadas ao longo da história. Outros exemplos de tais direitos,

que, por sinal, encontram-se previstos no texto constitucional, são o fato de

a mulher se aposentar 5 (cinco) anos antes que os homens (art. 40, III) e a

assistência gratuita e integral ao necessitado (art.5º, LXXIV).

Podemos, em síntese, afirmar que enquanto o Estado Liberal vivenciou a

fase Declaratória dos Direitos (individuais) e o Social, a fase Garantista dos

Page 243: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 243

Direitos (sociais), o Estado Democrático de Direito, no qual vivemos, insere-

-se na fase Concretista dos Direitos (fraternais), por meio da qual se busca,

efetivamente, formar uma sociedade plural, onde se respeitam as diferenças

de credo, sexo, cor e religião.

Nesse sentido, Lênio Streck afirma que enquanto o Estado Liberal pro-

duziu um Direito Ordenador; e o Social, um Direito Promovedor, o Estado

Democrático visa concretizar um Direito Transformador.28

Assim, não basta apenas declarar direitos (liberalismo clássico) ou ga-

ranti-los (Estado Social), urge que consigamos, efetivamente, concretizá-los,

razão pela qual vivemos em um Estado Democrático de Direito, que, via de

regra, na precisa lição de Lênio Streck, deve nos fornecer um direito trans-

formador, a fim de que possamos implementar o modelo de sociedade plura-

lista e sem preconceitos previsto na Constituição Federal de 1988.

A fim de concretizar essa transformação social, ao aplicarmos e inter-

pretarmos a norma jurídica em conformidade com a Constituição de 1988,

não podemos, em nenhum momento, esquecer os postulados do Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos do Estado Democrático

de Direito Brasileiro (art. 1º, III, CF/88), que, em apertada síntese, representa

a seguinte equação: concretização dos Direitos Individuais (art.5º, CF/88 –

plano do ser – Liberdade) + Direitos Sociais Genéricos (art.6º, CF/88 – plano

do ter – Igualdade Material) + Direitos Fraternais (art. 4º, I e IV, CF/88 – pla-

no do respeitar – Fraternidade).

Mas, para que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana seja plena-

mente concretizado em nosso ordenamento, não basta somente a vigência

das chamadas “leis dirigentes ou programáticas”, necessita-se que tais nor-

mas tenham eficácia social, obtida mediante a participação direta de toda

a sociedade e dos operadores do Direito, através da realização dos ensina-

mentos da moral, do respeito ao próximo, da fraternidade e da honestidade,

conceitos que não se aprendem lendo artigos e livros jurídicos ou se cum-

prindo, friamente, as disposições legais, mas, sim, através de uma boa forma-

28 STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: as possibilidades transfor-madoras do Direito. Palestra referente à III Jornada de Estudos da Justiça Federal, exibida em 22.09.06, na TV Justiça (Canal 04 da NET).

Page 244: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 244

ção humana, ética e educacional, a qual devemos, primeiramente, propiciar

ao povo brasileiro, para que possamos, por via consequêncial, lutar pela

efetivação dos – ainda hoje tão idealistas – direitos fraternais garantidos

pela Carta de Outubro desde 1988.

5. Referências bibliográficas

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Aurélio Nogueira. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

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gem. Ed. Malheiros: São Paulo, 2006.

Page 246: Revista Direito Federal nº 94
Page 247: Revista Direito Federal nº 94

Reflexões sobre o auxílio direto: fundamentos normativos e

posição jurisprudencial

Page 248: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 248

Marcos Antonio Mendes de Araújo FilhoBacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

Agente Administrativo da Defensoria Pública da União, Técnico Administrativo do Ministério Público Federal e Analista

Processual também do MPF. Pós-graduando pela Escola Superior do Ministério Público da União. Juiz federal

Resumo: O presente artigo tem por objetivo propor algumas reflexões

sobre o instituto do auxílio direto e suas peculiaridades no cenário do or-

denamento jurídico pátrio. Tal propósito tem como escopo a maturação do

estudo da cooperação jurídica internacional como forma de combate mais

efetivo à macrocriminalidade transnacional, a qual cresce em ritmo geomé-

trico. De início, traçando um panorama sobre as disposições normativas vi-

gentes no tema da cooperação jurídica internacional e tecendo comentários

mais específicos sobre o auxílio direto. Após, é de se ressaltar algumas in-

coerências dentro da ordem jurídica que dificultam o alcance da tão neces-

sária celeridade no combate ao crime entre fronteiras como, por exemplo,

a ausência de diploma legal que trate sobre os instrumentos de cooperação

jurídica internacional e a reflexão acerca do atual modelo de repartição de

competência nesse tema.

Palavras-chave: Cooperação Jurídica Internacional. Auxílio Direito. Cons-

titucionalidade. Cartas Rogatórias. Competência. Criminalidade Transnacional.

Abstract: This article aims to propose some reflections on the institution

of mutual legal assistance and its peculiarities in the setting of national

legal system. Such purpose is scoped to the maturation of the study of inter-

national legal cooperation as a way to more effectively combat transnatio-

nal crime which grows in geometric pace. Start by drawing an overview of

the existing legal provisions on the issue of international legal cooperation

and weaving more specific comments on mutual legal assistance. After, is

to highlight some inconsistencies within the legal system that hinder the

achievement of much needed speed to fight organized crime across borders,

Page 249: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 249

for example , the absence of law to treat the instruments of international

legal cooperation and reflection on the current model of allocation of juris-

diction in this matter.

Keywords: International Legal Cooperation. Mutual Legal Assistance.

Constitutionality. Letters Rogatory. Competence. Transnational crime.

1. Introdução

Há muito tempo se observa na história da civilização uma tendência de apro-

ximação entre os habitantes das regiões mais longínquas do planeta. Desde a

Idade Antiga, com os pequenos comércios realizados pelos povos Fenícios, até

as grandes navegações no século XV, pode-se perceber essa tendência.

Com o advento da Revolução Industrial, a necessidade de difusão dos

bens de consumo se intensificou e a globalização aumentou. Digo que au-

mentou, pois a globalização não é um fenômeno típico da era contemporâ-

nea, mas surgiu desde os primórdios da civilização humana. O que, de fato,

vem ocorrendo no último século XX é o estreitamento das distâncias cultural

e informacional entre os países e as regiões.

Desse modo, com o incremento da circulação de pessoas, riquezas, bens e

serviços, através das fronteiras, e a revolução cibernética deflagrada no fim

do século passado, a globalização passou a ser uma característica natural da

contemporaneidade. Cada vez mais são firmadas relações entre países das

mais diversas naturezas como: comerciais, financeiras, trabalhistas, geopo-

líticas, militares etc.

Em decorrência lógica dessa tendência, as relações jurídicas também

passaram a possuir um atributo transnacional. Logo, a visão de soberania

do Estado precisa ser relativizada a fim de permitir uma efetivação das deci-

sões judiciais através da produção de efeitos extraterritoriais.

Como mecanismo de efetivação das decisões judiciais, o pensamento

jurídico já há um bom tempo vem se fortalecendo na necessidade de uma

atuação cooperativa e colaborativa entre os Estados, em vista desse cenário

internacional. Portanto, a cooperação jurídica internacional é tema de gran-

de relevância a ser estudado e que precisa de uma maturação cotidiana em

razão do crescimento das relações jurídicas internacionais.

Page 250: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 250

No plano interno, o Brasil tem adotado instrumentos para possibilitar

a efetivação dessa cooperação jurídica internacional como, por exemplo, a

celebração de acordos bilaterais em temas específicos com outras nações, a

criação de figuras jurídicas como a homologação de sentença estrangeira,

as cartas rogatórias, a extradição e, também, o auxílio direto.

Entretanto, como já ressaltado, o estudo da cooperação estrangeira ne-

cessita sempre ser aperfeiçoado. O fluxo instantâneo de informações e o

surgimento de novos meios de comunicação em geral permitiram esse es-

treitamento entre os povos tanto para a execução de atividades lícitas quan-

to para as ilícitas. A macrocriminalidade passou a se organizar através de

uma rede estruturada e hierarquizada e a se utilizar de técnicas mais sofisti-

cadas do ponto de vista tecnológico e informacional.

Diante desse cenário, deve o Estado se manter bem aparelhado e juridica-

mente maduro para se estruturar de forma apta a combater essa macrocrimi-

nalidade, a qual, por sua vez, se utiliza da transnacionalidade para, justamente,

alcançar os seus objetivos escusos e dificultar o trabalho de persecução.

Portanto, o objeto do presente trabalho se restringe justamente na tenta-

tiva de contribuir um pouco com a necessidade de maturação do estudo da

cooperação jurídica internacional em matéria penal como um mecanismo

de combate à macrocriminalidade. Por óbvio, não se pretende esgotar todos

os subtemas afetos à cooperação jurídica transnacional, mas apenas propor

algumas reflexões com a finalidade de aperfeiçoar a estrutura jurídica exis-

tente no Brasil na atualidade.

E, na esteira desse objetivo, o autor dedicará um maior espaço para o

enfrentamento de questões pontuais referentes ao instituto do auxílio direto

em comparação com os demais instrumentos de cooperação estrangeira.

Com o ensejo de alcançar tal objetivo, dividir-se-á este trabalho em qua-

tro capítulos. No primeiro deles, o Direito Processual Internacional será o

tema central. Far-se-á uma explicação mais didática e clara da cooperação

jurídica internacional com a abordagem sobre os fundamentos de sua exis-

tência, a previsão normativa e as classificações eminentemente doutrinárias.

Por fim, mostrar-se-á oportuna a realização de uma breve digressão sobre

cada um dos instrumentos existentes no arcabouço jurídico brasileiro, sem

prejuízo de eventuais apontamentos reflexivos e críticos.

Page 251: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 251

No segundo capítulo, adentrar-se-á mais na questão específica do auxílio

direto como mecanismo eficaz no combate célere à criminalidade transna-

cional. Assim, diversos acordos bilaterais e convenções internacionais se-

rão mencionados como fundamento normativo para a sua adoção. Também,

mencionar-se-á, em breves linhas, sobre as autoridades centrais.

Ainda, não se poderá deixar de tratar sobre um dos pontos nevrálgicos

da presente proposta, qual seja, a constitucionalidade do auxílio direto, que

precisa ser debatida em virtude de algumas decisões do Supremo Tribunal

Federal refratárias à nova dinâmica exigida atualmente. Por último, impres-

cindível será uma análise detalhada dos precedentes judiciais das cortes pá-

trias sobre a aceitação do auxílio direto. Da mesma forma como no primeiro

capítulo, o autor se reserva a fazer algumas reflexões.

Por fim, o derradeiro capítulo será o momento dedicado para a realização

de críticas e sugestões acerca de dois subtemas, quais serão o déficit nor-

mativo na ordem jurídica sobre o auxílio direto e os demais instrumentos de

cooperação internacional, bem como sobre o atual modelo constitucional

de repartição de competência em matéria de cooperação estrangeira como

entraves à solução célere dos processos criminais.

2. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

2.1 Conceito e classificações

A cooperação jurídica internacional consiste na ajuda entre Estados para

solucionar questões jurídicas afetas a mais de uma jurisdição. Como se sabe,

em decorrência da soberania estatal, a jurisdição é um poder exclusivo exer-

cido pelo Estado dentro de seu território. Em outras palavras, a autoridade

do juiz está adstrita aos limites territoriais de sua jurisdição.

Entretanto, quando houver algum elemento transnacional na relação ju-

rídica, poderá haver a necessidade de participação de outro Estado. Nessas

ocasiões, a cooperação entre os Estados precisa ser adotada com vistas a

alcançar o escopo maior da jurisdição, que é a composição do litígio.

Para melhor esclarecimento, Nádia de Araújo define cooperação jurídica

internacional como sendo:

(...) em sentido amplo, o intercâmbio internacional

Page 252: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 252

para o cumprimento extraterritorial de medidas deman-

dadas pelo Poder Judiciário de outro Estado. Isso por-

que o Poder Judiciário sobre uma limitação territorial de

sua jurisdição – atributo por excelência da soberania do

Estado, e precisa pedir ao Poder Judiciário de outro Es-

tado que o auxilie nos casos em que suas necessidades

transbordam de suas fronteiras para as daquele.1

A doutrina divide a cooperação jurídica em passiva e ativa a critério da po-

sição do Estado brasileiro. Chama-se de passiva aquela cooperação jurídica

em que o Brasil figura como Estado requerido, ou seja, um país formula um

pedido de cooperação dirigido ao Brasil e este é quem providencia a atividade

requerida. Por óbvio, chama-se de ativa a cooperação jurídica em que o órgão

brasileiro é quem formula o pedido de cooperação a um Estado estrangeiro.

Além dessa classificação, há autores2 que, também, dividem a coopera-

ção jurídica internacional em cooperação administrativa e jurisdicional a

depender da natureza da providência requerida. Assim, se o ato reclamado

detém natureza jurisdicional, necessita-se da participação do Poder Judiciá-

rio para a conclusão do procedimento de cooperação estrangeira.

Por outro lado, chama-se de cooperação jurídica internacional administra-

tiva aquela em que o ato reclamado ostenta natureza meramente administra-

tiva ou não jurisdicional, isto é, não há risco de ofensa à soberania nacional

nem à ordem pública. Observe-se que a participação do Poder Judiciário nes-

sa modalidade de cooperação pode ser dispensada, mas não sendo vedada.

2.2 Fundamentos

1 ARAÚJO, Nádia de. “A importância da Cooperação Jurídica Internacional para a atuação do Estado Brasileiro no plano interno e internacional”, in BRASIL, Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Manual de Cooperação Jurídica Internacional e Recuperação de Ativos: Cooperação em Matéria Pe-nal, 2ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 34

2 SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. “Cooperação jurídica internacional e o auxílio di-reto”, in Revista CEJ /Conselho da Justiça Federal, ano X, n. 32, jan-mar, 2006, p. 76 e LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacio-nal cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 114.

Page 253: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 253

A cooperação jurídica internacional ganhou, nas últimas décadas, gran-

de atenção dos juristas em vista da necessidade crescente de solucionar os

litígios com atributos transfronteiriços, sobretudo com referência à macro-

criminalidade organizada.

A doutrina3 aponta dois fundamentos principais para a cooperação es-

trangeira, a saber, a confiança mútua entre as nações e a solidariedade. A

confiança é pressuposto para a cooperação. Somente se coopera com aque-

le que se mantém uma boa relação. Todavia, os Estados precisam se portar

de maneira a adquirir a confiança da comunidade internacional para que,

com isso, possam se utilizar dos instrumentos de cooperação para alcançar

os seus objetivos.

Não há como negar que a confiança é adquirida pela postura adotada. A

proteção aos direitos humanos, a adoção de uma estrutura democrática de

poder e o respeito à dignidade da pessoa humana são exemplos de caracte-

rísticas das quais um Estado deve se valer para transmitir certa credibilidade

a seus parceiros, especialmente no mundo ocidental.

Da mesma forma, a solidariedade4 é apontada como outro fundamento

para a efetivação da cooperação jurídica internacional. Os Estados devem

ter ciência de que a necessidade de se valer do auxílio internacional pode

surgir a qualquer momento, até quando menos se espera. Em outras pala-

vras, eventuais dificuldades surgidas diante de um caso concreto demandam

a cooperação de um Estado “A” para um outro Estado “B”. Não há dúvida de

que, no futuro, haja uma mesma questão na qual, desta vez, o Estado “B” será

o necessitado da colaboração do Estado “A”.

Além disso, a solidariedade entre as nações é exigida, por vezes, de uma

forma expressa quando, a título de exemplo, os atos normativos interna-

cionais mencionam a “reciprocidade” como fundamento para se realizar a

3 BECHARA, Fábio Ramazzini. “Cooperação jurídica internacional: equilíbrio entre eficiên-cia e garantismo”, in BRASIL, Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Manual de Cooperação Jurídica Inter-nacional e Recuperação de Ativos: Cooperação em Matéria Penal, 2ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 52.

4 ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal inter-nacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 71.

Page 254: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 254

cooperação internacional. A exigência de reciprocidade para a concessão de

extradição quando não prevista em tratado internacional é uma manifesta-

ção clara do fundamento da solidariedade.5

Assim, os Estados precisam atuar de forma harmoniosa, mediante a ado-

ção de posturas confiáveis e sempre abertos a cederem em um pedido de

cooperação como meio de lograrem êxito no intercâmbio jurídico.

2.3 Previsão normativa no plano interno

Alguns dispositivos previstos na Constituição Federal de 1988 são fun-

damentos para a existência da cooperação jurídica internacional no Brasil:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas

suas relações internacionais pelos seguintes princí-

pios:

IX - cooperação entre os povos para o progresso da

humanidade;

(...)

Art. 5º:

LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o na-

turalizado, em caso de crime comum, praticado antes

da naturalização, ou de comprovado envolvimento em

tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma

da lei;

LII - não será concedida extradição de estrangeiro

por crime político ou de opinião;

(…)

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,

precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente

g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro;

5 MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: consi-derações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 21.

Page 255: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 255

(...)

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

i) a homologação de sentenças estrangeiras e a con-

cessão de exequatur às cartas rogatórias; (Incluída pela

Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

(...)

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

X - os crimes de ingresso ou permanência irregular

de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o

exequatur, e de sentença estrangeira, após a homolo-

gação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive

a respectiva opção, e à naturalização;

Além do texto constitucional, a Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-

sileiro (LINDB), o Código de Processo Civil (CPC), o Código de Processo Penal

(CPP), a Resolução nº 09, de 2005, editada pelo Superior Tribunal de Justiça

(STJ), e os tratados internacionais bilaterais e multilaterais são os principais

diplomas normativos de regulamentação da cooperação jurídica internacional.

Para permitir um aprofundamento melhor do tema, importante traçar, de

início, um panorama didático dos instrumentos previstos na ordem jurídica.

2.4 Os instrumentos e suas diferenças

2.4.1 Extradição

A extradição é tema muito rico em detalhes e, portanto, os juristas têm

estudado de forma separada, tanto por especialistas em direito internacional

quanto por penalistas.

Nas linhas mestras do Dr. Artur Gueiros, “pode-se definir a extradição

como sendo o ato pelo qual um Estado (denominado Requerido) proceda a

captura e a entrega de um indivíduo procurado pela Justiça de outro Estado

(denominado Requerente), para que seja julgado ou para que cumpra a pena

Page 256: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 256

que lhe foi imposta”.6

Trata-se, portanto, de um claro e importante instrumento de cooperação

jurídica internacional. Com a extradição não se confunde, todavia, o institu-

to da entrega. O Estatuto de Roma, de 1998, que entrou em vigor em 2002,

previu que o Tribunal Penal Internacional (TPI) poderá dirigir pedidos de

entrega de pessoa a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa

encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e na entrega da

pessoa em causa (art. 89).

A grande distinção entre a extradição e a entrega consiste, justamente,

em que nesta um Estado-parte do Estatuto entregará a pessoa a um Tribu-

nal internacional que não pertence a um único Estado, pois é independente.

Enquanto que, na extradição, a entrega é dirigida a um Estado estrangeiro

soberano onde será processado e julgado por um tribunal vinculado a ape-

nas esse Estado.

2.4.2 Homologação de Sentença Estrangeira

No âmbito do Direito Processual Internacional, o estudo da homologação

de sentença estrangeira é um dos mais recorrentes. À luz do texto constitu-

cional, compete ao STJ realizar o juízo de delibação e homologar ou não a

sentença estrangeira. Antes da Emenda à Constituição de nº 45/2004, cabia

ao Supremo Tribunal Federal fazer essa análise.7

O juízo de delibação8 consiste em se fazer uma análise superficial do que

está tratado na sentença alienígena, sem adentrar no mérito da demanda.

Conjugando as disposições pertinentes do CPP, da LINDB e da Resolução nº

6 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. “Curso de direito penal: parte geral”. Rio de Janeiro: Else-vier, 2011, p. 113.

7 Cumpre fazer um adendo acerca da alteração constitucional. Antes da dita Reforma do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal concentrava o poder nos processos de cooperação ju-rídica internacional. Somente era ele quem analisava o pedido de extradição, de homologação de sentença estrangeira e de concessão do exequatur nas cartas rogatórias. Após a alteração da Constituição, houve uma repartição de competência, de forma a desafogar mais a Corte Suprema, e o Colendo Superior Tribunal de Justiça recebeu parte daquelas atribuições ao fi-car incumbido de apreciar os pedidos de homologação de sentença estrangeira e a concessão de exequatur nas cartas rogatórias.

8 “Delibar, em termos literais, é ‘tocar com os lábios’; é ‘sentir apenas o gosto’” in SOUZA, Artur de Brito Gueiros. “Curso de direito penal: parte geral”. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 115.

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Revista da Ajufe 257

09/2005 do STJ, cabe à Corte verificar os seguintes requisitos: (a) a sentença

haver sido proferida por autoridade competente; (b) as partes de o processo

estrangeiro terem sido citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;

(c) ter transitado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias

para a execução no lugar em que foi proferida; (d) a sentença deve estar

autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor

oficial ou juramentado no Brasil e (e) não pode ofender a soberania nem a

ordem pública e nem os bons costumes.

Logo, percebe-se que o juízo de delibação não passa de uma análise me-

ramente formal, mas com uma grande carga de subjetividade no que tange

aos conceitos jurídicos indeterminados de “soberania”, “ordem pública” e

“bons costumes”.

A finalidade da homologação da sentença estrangeira é, em último grau,

atribuir a mesma eficácia conferida pelo ordenamento jurídico interno a

uma sentença proferida no plano interno. O processamento da homologa-

ção de sentença estrangeira foi disciplinado pela mencionada Resolução nº

09/2005 do STJ.

O sistema de homologação de sentença estrangeira adotado no Brasil é o

de delibação, proveniente da Itália.9 Entretanto, esse não é o único sistema

existente no Direito Comparado.10

9 THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento”, 31ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 699.

10 “Sistema de revisão do mérito da sentença: julga-se novamente a causa que inspirou a “sentença” como se essa não existisse, ensejando até nova produção de provas, reanalisando as preexistentes, somente após a decisão estrangeira poderá ou não ser ratificada. Esse mé-todo é mais complexo, moroso, todavia torna o direito estrangeiro aplicado no exterior mais justo frente à jurisdição interna do país homologador; criando, inclusive, jurisprudência para resolução de novas demandas relativas a tais Estados.Sistema parcial de revisão do mérito: sistema imposto com o fim de analisar a aplicação da lei do país em que será executada a sentença. Ainda nesse sistema, o que se busca distinguir é se há a possibilidade de aplicação da lei embasadora da sentença estrangeira no Estado em cujo território a sentença estrangeira produzirá efeitos.Sistema de Reciprocidade Diplomática: utiliza-se dos tratados como barsilar. Não existindo esse entre os dois Estados, sequer será possível a homologação.Sistema de Reciprocidade de Fato: nesse sistema, a homologação só se faz possível se e so-mente se ambos os Estados envoltos na relação protegerem os mesmos institutos, eg; União de indivíduos de mesmo sexo é permitida na Holanda, logo para homologação em Portugal seria necessário a união ser um instituto previsto na legislação lusa.” Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Homologa%C3%A7%C3%A3o_de_senten%C3%A7a_estrangeira>.

Page 258: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 258

2.4.3 Cartas Rogatórias

A carta rogatória é um meio de comunicação entre os Judiciários de dois

países. Além da previsão constitucional, o art. 210, do CPC, dispõe que:

“Art. 210. A carta rogatória obedecerá, quanto à sua

admissibilidade e modo de seu cumprimento, ao dis-

posto na convenção internacional; à falta desta, será

remetida à autoridade judiciária estrangeira, por via

diplomática, depois de traduzida para a língua do país

em que há de praticar-se o ato”.11

Em cristalinas palavras, Maria Rosa Guimarães Loula define a carta roga-

tória como o “(...) instrumento do qual se vale uma Jurisdição para solicitar

que se pratique, no território de outra, atos de impulso processual, produção

e coleta de provas ou qualquer ato de instrução processual”.12

Para que uma carta rogatória seja cumprida no Brasil, é necessário que

passe pelo crivo do STJ, nos termos supraapontados, momento em que a

Corte Cidadã analisará se proferirá ou não a ordem exequatur. Esse termo é

de origem latina e significa “cumpra-se”, “execute-se”, revelando, portanto,

que o teor da carta estrangeira poderá ser concretizado no Brasil.13

Nessa análise, o STJ realiza um juízo de delibação assim como na ho-

mologação da sentença estrangeira, em conformidade com as disposições

previstas na Resolução de nº 09/2005, daquela corte.

À frente, serão abordadas questões mais reflexivas acerca das cartas rogatórias.

2.4.4 Auxílio Direto

Acesso em 04.03.2014.

11 Há, também, disposição sobre o trâmite da carta rogatória nos arts. 783 a 786, do CPP.

12 LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 60.

13 Ibidem, p. 59.

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Revista da Ajufe 259

O auxílio direto é um dos instrumentos de cooperação jurídica interna-

cional menos tratado na doutrina brasileira. Não se sabe o motivo desse

esquecimento, mas, talvez, haja uma razão para tanto, qual seja a ausência de

previsão normativa expressa na legislação.

Conforme adiante esmiuçado, o auxílio direto encontra fundamento exis-

tencial nos atos normativos internacionais através dos quais os países reco-

nhecem a sua importância e utilidade prática. Entretanto, não se conhece no

Brasil disciplinamento normativo expresso editado única e exclusivamente

pelo nosso parlamento.14

O auxílio direto consiste na cooperação realizada entre autoridades cen-

trais de Estados-parte de convenções internacionais em cujos textos há esse

mecanismo de colaboração como ocorre, por exemplo, na Convenção de

Haia sobre aspectos cíveis do sequestro de menores.

A questão terminológica também é um dos pontos controversos. Além de

auxílio direto, há menção a pedido de assistência, pedido de auxílio jurídico

e assistência legal mútua (mutual legal assistance – MLA). As diferenças po-

dem derivar de problemas na tradução dos textos estrangeiros ou até mesmo

na confusão entre os instrumentos de cooperação jurídica, conforme aponta

Maria Rosa Guimarães:

“Muitas vezes, ouvimos falar em pedido de assistên-

cia jurídica, o que, no nosso idioma e no nosso sistema

jurídico, pode ocasionar confusão com os instrumen-

tos de gratuidade de justiça, comumente designados de

assistência judiciária. Em outras situações, observa-

mos a utilização do termo ‘assistência judiciária mú-

tua’’, que soa como uma tradução livre e pouco técnica

14 Há tratamento normativo sobre o auxílio direto na Resolução nº 09/2005, editada pelo Superior Tribunal de Justiça em seu art. 7º, parágrafo único, e na recente Portaria Interminis-terial dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores de nº 501, de 2012, que disciplina a tramitação das cartas rogatórias e dos pedidos de auxílio direto, ativos e passivos, em matéria penal e civil. Destaque-se que a referida portaria se aplica na ausência de acordo de coope-ração jurídica internacional bilateral ou multilateral, ou, havendo acordo, sua aplicação será subsidiária. De fato, tais atos normativos veem confirmar a consolidação do auxílio direto e a sua importância, porém, não raro, a questão ainda é alvo de discussões.

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Revista da Ajufe 260

do termo na língua inglesa”.15

Neste momento, mostra-se oportuno fazer uma distinção entre o auxílio di-

reto e a já vista cooperação jurídica internacional administrativa. A cooperação

será administrativa quando a natureza do ato solicitado pelo Estado requerente

for meramente administrativa. Por outro lado, se a cooperação demanda a prá-

tica de atos jurisdicionais, com ou sem conteúdo decisório, o auxílio direto e a

carta rogatória são os mecanismos de materialização desse pedido.16

E quando será utilizado o auxílio direto ou a carta rogatória? A doutrina

especializada traz uma resposta que parece ser simples. Caso o pedido se

baseie na reciprocidade ou em tratado internacional e tramite por intermé-

dio das autoridades centrais, está-se diante do auxílio direto.17 Nesse caso, a

judicialização do pedido somente ocorrerá no Estado rogado por iniciativa

da autoridade central.

De outro modo, se estiver diante de uma decisão proferida no Estado

estrangeiro na qual solicita cumprimento no Brasil, intermediada pelas re-

presentações diplomáticas, utiliza-se a carta rogatória, ou seja, um procedi-

mento bilateral entre juízes.18

Percebe-se que a Resolução nº 09/2005, no seu art. 7º, fez uma observa-

ção quanto ao nomen juris do instrumento:

Art. 7º As cartas rogatórias podem ter por objeto

atos decisórios ou não decisórios.

Parágrafo único. Os pedidos de cooperação jurídi-

ca internacional que tiverem por objeto atos que não

ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de

Justiça, ainda que denominados como carta rogatória,

serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da

Justiça para as providências necessárias ao cumpri-

15 Ibidem, p. 99.

16 Ibidem, p. 115.

17 Ibidem, p. 106.

18 GRINOVER, Ada Pellegrini. “Processo Penal transnacional: linhas evolutivas e garantias processuais” in Revista Forense, v. 331, p.3-37, 1995.

Page 261: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 261

mento por auxílio direto. (g.n)

Em sintonia, a já mencionada Portaria Interministerial nº 501/2012 MJ/

MRE veio diferenciar o auxílio direto passivo da carta rogatória passiva à

luz da necessidade da delibação, senão vejamos:

“Art. 2º - Para fins da presente Portaria, considera-

-se: I. pedido de auxílio direto passivo, o pedido de co-

operação jurídica internacional que não enseja juízo de

delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, nos ter-

mos do art. 7º, parágrafo único da Resolução STJ nº. 9,

de 04 de maio de 2005; e II. carta rogatória passiva, o

pedido de cooperação jurídica internacional que ense-

ja juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça.

Parágrafo Único. A definição de pedido de auxílio dire-

to ativo e de carta rogatória ativa observará a legisla-

ção interna do Estado requerido”.

Essas e outras questões referentes ao auxílio direto serão detalhadas a seguir.

3. ASPECTOS DO AUXÍLIO DIRETO

3.1 Fundamentos normativos

A cooperação jurídica internacional tem se mostrado de grande relevân-

cia para o combate ao crime organizado desde os seus primeiros momen-

tos quando, por exemplo, em dezembro de 1987, o juiz Giovanni Falcone

conseguiu, com o depoimento de Tommaso Buscetta, extraditado do Brasil,

indiciar 474 (quatrocentos e setenta e quatro) mafiosos no famoso processo

contra a “Cosa Nostra” em Palermo, Itália.19

O primeiro grande ato internacional que se preocupou com essa forma

de cooperação jurídica internacional foi a Convenção de Viena contra o Trá-

19 VALLE, Sandra ao prefaciar a obra BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

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Revista da Ajufe 262

fico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, aprovada no ano

de 1988, no âmbito da ONU. Tal texto foi incorporado ao plano interno atra-

vés do Decreto Legislativo nº 162/1991, editado pelo Congresso Nacional.

Conforme preceituado (art. 7º), as partes aderentes devem prestar a mais

ampla assistência jurídica recíproca nas investigações, julgamentos e pro-

cessos com vistas a um intercâmbio global de informações e ações. No mes-

mo dispositivo, há um rol meramente enumerativo aduzindo os fins que mo-

tivarão os pedidos de cooperação.20

Interessante ressaltar que o mesmo dispositivo, alinhado a outros diplo-

mas normativos adiante referenciados, traz a ressalva de que os Estados-

-parte não poderão declinar a assistência jurídica recíproca sob a alegação

de sigilo bancário. De outro lado, o mesmo tipo excepciona a obrigatorieda-

de da cooperação em algumas situações, ou seja, o Estado requerido poderá

denegar o pedido, por exemplo, quando o cumprimento da solicitação possa

prejudicar a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses

fundamentais do Estado requerido.

Outro relevante ato normativo internacional foi a Convenção das Nações

Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, apreciada em Palermo nos

idos de 1999, mas que só entrou em vigor no ano de 2003, após a ratificação

de 40 (quarenta) países. O propósito da Convenção é, dentre outros, promover a

cooperação para o combate e a prevenção do crime organizado transnacional.

O artigo 18 é o mais longo de toda a Convenção e trata justamente da as-

sistência judiciária recíproca, de modo a servir de norte para a consolidação

do auxílio direto tanto na aplicação prática dos propósitos da Convenção

quanto na edição de outras normas sobre o tema. Apesar da relevância das

disposições trazidas, mostra-se interessante ressaltar a clareza, especial-

mente em:

20 “2. A assistência jurídica recíproca que deverá ser prestada, de acordo com este artigo, e poderá ser solicitada para qualquer um dos seguintes fins: a) receber testemunhas ou de-clarações de pessoas; b) apresentar documentos jurídicos; c) efetuar buscas e apreensões; d) examinar objetos e locais; e) facilitar acesso de informações e evidência; f) entregar originais ou cópias autenticadas de documentos e expedientes relacionados ao caso, inclusive docu-mentação bancária, financeira, social ou comercial; g) identificar ou detectar o produto, os bens, os instrumentos ou outros elementos comprobatórios.”

Page 263: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 263

“13. Cada Estado Parte designará uma autoridade

central que terá a responsabilidade e o poder de re-

ceber pedidos de cooperação judiciária e, quer de os

executar, quer de os transmitir às autoridades compe-

tentes para execução. Se um Estado Parte possuir uma

região ou um território especial dotado de um sistema

de cooperação judiciária diferente, poderá designar

uma autoridade central distinta, que terá a mesma fun-

ção para a referida região ou território. As autoridades

centrais deverão assegurar a execução ou a transmis-

são rápida e em boa e devida forma dos pedidos rece-

bidos. Quando a autoridade central transmitir o pedido

a uma autoridade competente para execução, instará

pela execução rápida e em boa e devida forma do pedi-

do por parte da autoridade competente”.

No mesmo sentido da Convenção anterior, o Estado requerido poderá de-

negar a cooperação quando afetar sua soberania, segurança, ordem pública

ou outros interesses essenciais.

Mais uma Convenção de destaque é a das Nações Unidas contra a Cor-

rupção celebrada em Mérida, no México, no ano de 2005.

A presente convenção guarda grande semelhança com as demais já men-

cionadas, mas merece atenção a questão da repatriação de ativos dentro

da cooperação jurídica internacional. Como regra, o trânsito em julgado

da sentença é necessário para restituição de ativos confiscados no Estado

requerido, mas a Convenção possibilita essa cooperação mesmo antes do

trânsito em julgado como forma de garantir a eficácia da futura condenação.

A cooperação jurídica internacional em matéria penal ainda é prevista

em diversos outros diplomas, sejam eles multilaterais, como, por exemplo, a

Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal (De-

creto nº 6.340/2008), e o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em As-

suntos Penais do Mercosul (Decreto nº 3.468/2000), sejam bilaterais .21

21 O Brasil tem tratado de assistência jurídica em matéria penal com diversos países, den-

Page 264: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 264

Ainda há dentro dos organismos internacionais, como a Organização dos

Estados Americanos (OEA), rede de intercâmbio de informações para o Au-

xílio Jurídico mútuo em matéria penal e de extradição. A Rede Hemisférica

reúne os países-membros da OEA e estabeleceu mecanismo bastante útil e

eficaz de comunicação através de um correio eletrônico seguro por meio do

software Groove Virtual Office.

Embora já mencionado antes, mas a título de registro, frise-se novamente

que a Resolução nº 09/2005 do STJ, no parágrafo único do art. 7º, menciona

a utilização do auxílio direto, bem como há disciplinamento do referido ins-

trumento na Portaria Interministerial de nº 501/2012.

3.2 Autoridades Centrais

É certo que as relações entre nações no âmbito das questões jurídicas vão

muito além da mera comunicação entre juízes através das cartas rogatórias,

pois procedimentos investigativos, informações e dados sobre os crimes e de-

mais questões pertinentes são obtidos através da cooperação entre os Estados.22

Na intermediação dessas relações, existe a autoridade central que “é um órgão

técnico especializado, em regra, não jurisdicional, que se encarrega da interlocu-

ção internacional em matéria de cooperação jurídica em matéria civil e penal.”23

Geralmente, a criação das autoridades centrais fica a cargo da legislação

interna e não do ato normativo internacional. A título de ilustração, para

os fins da Convenção de Viena de 1988, outrora mencionada, o Decreto nº

6.061/2007 atribuiu competência ao Departamento de Recuperação de Ati-

vos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), ligado à Secretaria Nacional

de Justiça do Ministério da Justiça, para exercer o papel de autoridade cen-

tral na tramitação dos pedidos de cooperação jurídica internacional.

tre outros, França (Decreto nº 3.324/1993), Itália (Decreto n º 862/1992), Portugal (Decreto nº 1.320/1994), Paraguai (Decreto nº 139, 1995), Estados Unidos da América (Decreto nº 3.810/2001) etc.

22 ZAVASKI, Teori Albino. “Cooperação jurídica internacional e a concessão de exequatur” in Revista de Interesse Público, ano 12, nº 61, maio/jun. 2010, p. 13-28.

23 ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal inter-nacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 73.

Page 265: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 265

Em muitos tratados internacionais, sobretudo em matéria penal, o DRCI é

a autoridade central designada para se comunicar com os órgãos postulató-

rios como, por exemplo, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral

da República.

3.3 Constitucionalidade

A constitucionalidade do instituto do auxílio direto ainda não está com-

pletamente pacífica. A Primeira Turma do STF, por maioria, já entendeu que

a prática de atos relacionados ao combate ao crime decorrentes da coope-

ração direta usurparia a competência constitucional do STJ para conceder o

“exequatur” às cartas rogatórias.24

Entretanto, para se reconhecer sua constitucionalidade, é necessário an-

tes analisar a autonomia do auxílio direto como instrumento de cooperação

jurídica internacional. Até que limite vai essa autonomia?

Em outras palavras, o auxílio direto é autônomo, pois não necessita pas-

sar pelo crivo do STJ no juízo de delibação à luz do art. 105, da Constituição

Federal, ou é um mecanismo de cooperação jurídica internacional clássico

e deve obediência ao procedimento da carta rogatória e da homologação de

sentença estrangeira?

Por entender que usurparia o mandamento constitucional, entendia o

STF pela inconstitucionalidade. Tal posição causou uma grande divergência

na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, já após a alteração cons-

titucional de 2004.

Todavia, o mesmo STF, posteriormente, ainda que não conhecendo do HC

102.041, teceu comentários sobre a possibilidade da utilização do auxílio

direto entre os Estados no combate à criminalidade.25

24 CRIME - COOPERAÇÃO INTERNACIONAL - COMBATE - DILIGÊNCIAS - TERRITÓRIO NACIONAL - MEIO. A prática de atos decorrentes de pronunciamento de autoridade judicial estrangeira, em território nacional, objetivando o combate ao crime, pressupõe carta roga-tória a ser submetida, sob o ângulo da execução, ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, não cabendo potencializar a cooperação internacional a ponto de colocar em segundo plano formalidade essencial à valia dos atos a serem realizados. (HC 85588, Relator(a): Min. MAR-CO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 04/04/2006, DJ 15-12-2006 PP-00095 EMENT VOL-02260-04 PP-00685).

25 HC 102041, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010,

Page 266: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 266

3.4 Posição Jurisprudencial

Neste tópico, o propósito apenas é o de confirmar o crescente espaço que

o auxílio direto vem tomando nos acórdãos dos tribunais brasileiros.26

O STF, nos últimos anos, proferiu algumas decisões baseadas em pedidos

de assistência jurídica internacional em casos de grande repercussão na-

cional, como, por exemplo, na Extradição nº 1103 (caso do narcotraficante

Juan Carlos Ramirez Abadía), no HC 91.002-5/RJ (caso Propinoduto) e no

HC 87.759-1/DF (caso Rollo).

O Colendo STJ é o tribunal que vem trazendo algumas diretrizes para a

utilização do auxílio direto, fazendo a distinção com a carta rogatória. Como

exemplo, podemos citar: ARCR 200800570332, Rel. Min. CESAR ASFOR RO-

CHA, Corte Especial, DJE 06/09/2010; HC 200901794848, Rel. Min. JORGE

MUSSI, Quinta Turma, DJE DATA:19/12/2011 e RCL 200702549165, Rel.

Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Corte Especial, DJE 16/12/2009.

Os Tribunais Regionais Federais,27 também, tem decidido sobre o auxí-

lio direto na mesma linha do preceituado pelo colendo STJ, mas a carência

de balizas legais provoca discussões jurídicas que atrasam as investigações

criminais, consoante será abordado adiante.

Ainda é de se destacar que a utilização do auxílio direto ganhou mais

espaço em decorrência da antiga jurisprudência quase que pacífica do STF

sobre as cartas rogatórias executórias.

Quando o STF ainda tinha a competência para conceder o “exequatur” às

cartas rogatórias, aquela corte máxima tinha a posição no sentido de que às

DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-03 PP-00669.

26 A metodologia da pesquisa jurisprudencial consistiu na coleta de dados através das fer-ramentas de busca disponíveis ao público nas páginas da internet do STF, do STJ e de demais tribunais. Como parâmetros das pesquisas, foram utilizados “auxílio direto”, “assistência ju-rídica internacional”, “cooperação jurídica internacional” e “auxílio jurídico direto”.

27 RSE 201051018122738, Desembargador Federal ABEL GOMES, TRF2, PRIMEIRA TUR-MA ESPECIALIZADA, E-DJF2R – Data:09/05/2013; HC 00647686620074030000, DESEM-BARGADOR FEDERAL LUIZ STEFANINI, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, DJF3 DATA:23/06/2008; MS 00154914220114030000, DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, TRF3 - PRIMEIRA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:24/11/2011; AC 200370000359078, SILVIA MA-RIA GONÇALVES GORAIEB, TRF4 - TERCEIRA TURMA, DJ 07/11/2005;

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Revista da Ajufe 267

cartas rogatórias que tivessem por objeto medidas de cunho executivo, como

a quebra de sigilo bancário, busca e apreensão, não poderia ser concedido

o “exequatur” pelo direito interno, por vislumbrar ofensa à ordem pública.28

Naquele contexto, para se obter uma medida executiva em outro Esta-

do, mostrava-se necessário uma decisão alienígena com trânsito em julgado

para, somente então, ser homologada via sentença estrangeira. As cartas ro-

gatórias somente serviam para a prática de atos de comunicação.

Tal posicionamento representava verdadeiro entrave na cooperação do Bra-

sil com as demais nações, motivo pelo qual o STJ, com a nova competência lhe

atribuída, editou a Resolução nº 09, de 2005, e utilizou a expressão “as cartas

rogatórias podem ter por objeto atos decisórios e não decisórios”, de maneira

a permitir a prática de atos executórios solicitados por Estados estrangeiros.

Mas essa simples inovação normativa, de longe, não resolveu todas as

problemáticas atinentes ao tema.

4. REFLEXÕES PONTUAIS

4.1 Prejuízos da omissão legislativa

Os pedidos de cooperação jurídica em matéria criminal podem ter vários

objetos, como, por exemplo, a prática de comunicação de atos processuais

(citação ou intimação), de produção de provas (oitiva de testemunha, perícia,

obtenção de documentos), de efetivação de medidas de cunho assecuratório

(arresto ou sequestro de bens), de efetivação de decretos de confisco conde-

natório, etc.29

Como visto acima, a jurisprudência do Colendo STJ não faz mais a distin-

28 CR 337, Relator(a): Min. JOSÉ LINHARES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 13/05/1953, ADJ DATA 10-10-1955 PP-03740 DJ 13-08-1953 PP-09597; CR 1408 AgR, Relator(a): Min. LUIZ GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. AMARAL SANTOS, Tribunal Pleno, julgado em 20/03/1969, DJ 03-10-1969 PP-04557 EMENT VOL-00778-01 PP-00038; SE 3421, Relator(a): Min. OSCAR CORREA, Tribunal Pleno, julgado em 05/09/1984, DJ 05-10-1984 PP-16449 EMENT VOL-01352-01 PP-00001 e CR 4881 AgR, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/1991, DJ 13-03-1992 PP-02922 EMENT VOL-01653-01 PP-00145.

29 MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: con-siderações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 18.

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Revista da Ajufe 268

ção que fazia outrora acerca da utilização de cartas rogatórias para executar

medidas judiciais. Assim, atualmente, a satisfação de provimentos judiciais

pode se dar por cartas rogatórias ou por auxílio direto, também conhecido

como assistência jurídica mútua.

A legislação vigente não tem disposição que diferencie a utilização de um

ou de outro mecanismo de cooperação jurídica internacional. Apenas pou-

cos doutrinadores, especialistas no tema, fazem uma distinção meramente

formal do auxílio direto e da carta rogatória.

Essa diferenciação já foi mencionada no capítulo anterior, mas, a título

de recordação, destacou-se, em linhas gerais, que a carta rogatória é o ins-

trumento utilizado quando o pedido de cooperação se dá entre juízes e cuja

matéria enseja juízo de delibação. Por outro lado, o pedido de auxílio direto

é aquele fundado em tratado internacional ou na reciprocidade e tramitado

através das autoridades centrais e a respectiva judicialização ocorre por in-

termédio da autoridade central do Estado rogado.

Em suma, percebe-se que a distinção entre os ditos instrumentos so-

mente se foca no aspecto procedimental, ou seja, meramente formal. Não há

qualquer previsão legislativa que traga uma diferenciação prática com pa-

râmetros relacionados ao aspecto material, isto é, ao conteúdo dos pedidos.

Apenas por atos infralegais30 é que se tem feita a distinção meramente formal

entre a utilização do auxílio direto e da carta rogatória, qual seja, a análise sobre

a necessidade de submeter o pedido ao juízo de delibação pelo Colendo STJ.

Então, mostra-se imperiosa a edição de norma que venha a trazer um

disciplinamento seguro que distinga sob o aspecto substancial a utilização

do auxílio direto e da carta rogatória.

Há precedente no Tribunal Federal da 2ª Região,31 no qual se acentuou a

deficiência normativa na disciplina do auxílio direto. Tanto é que o juiz de

primeiro grau proferiu decisão requerendo a cooperação jurídica dos EUA

para realizar o interrogatório do réu por auxílio direto ou, alternativamen-

30 Os atos infralegais referidos são a Resolução nº 09/2005, do STJ, e a Portaria Interminis-terial nº 502/2012, do MJ/MRE.

31 HC 201302010142360, Desembargador federal ABEL GOMES, TRF2, PRIMEIRA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R – Data:13/12/2013.

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Revista da Ajufe 269

te, por carta rogatória, porém fundamentando-o no Acordo de Assistência

Judiciária em Matéria Penal. Já a Corte Regional determinou que a medida

requerida deveria ser realizada pelo auxílio direto, mas reconhecendo a de-

ficiência normativa em relação ao tema.

No mesmo sentido, o Tribunal Federal da 3ª Região já se deparou com

essa problemática e reconheceu a dificuldade em se delimitar quais atos

ensejam juízo de delibação. No caso em consulta,32 o juiz de primeiro grau

entendeu que o pedido de quebra de sigilo telemático ensejaria juízo de de-

libação e não poderia ser realizado pelo auxílio direto, ao passo que a Corte

Regional, com fundamento apenas em precedentes do STJ, entendeu que não

era o caso de delibação, permitindo o trâmite por auxílio direto.

Inclusive, nesse caso, a Corte Regional também reconheceu o déficit

normativo, mesmo invocando o parágrafo único do art. 7º, da Resolução nº

09/2005, ao ressaltar:

“O ponto nodal que se coloca é o de se saber, no

respeitante à cooperação passiva (recebimento de pe-

didos), quais são os atos que não prescindem de con-

cessão de exequatur, em carta rogatória encaminhada

ao Superior Tribunal de Justiça, e, no âmbito da coo-

peração ativa (formulação de pedidos), os atos que

dependem da expedição de carta rogatória para seu

cumprimento válido. (…) Entretanto, mesmo após a lei-

tura do dispositivo em referência, não se evidenciam

as hipóteses ou os atos que ensejam juízo de delibação

pelo Superior Tribunal de Justiça, motivo pelo qual, na

tentativa de se obter parâmetros mais concretos para

se resolver a questão, se faz necessário socorrer à ju-

risprudência da ilustrada Corte”.

O MM. Relator finaliza seu voto à luz de paradigmas extraídos dos prece-

32 MS 00356861920094030000, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO FONTES, TRF3 - PRIMEIRA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:29/11/2013 ..FONTE_REPUBLICACAO.

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Revista da Ajufe 270

dentes das Cortes Superiores, senão vejamos:

“Observa-se, pois, que, em conformidade com a atu-

al jurisprudência das cortes superiores, o pedido for-

mulado pelo órgão ministerial de primeiro grau peran-

te a autoridade impetrada não se enquadra na hipótese

de carta rogatória, prescindido do exequatur do Supe-

rior Tribunal de Justiça, haja vista que: a) foi formulado

por autoridade não investida de jurisdição; e b) não diz

respeito a ato constritivo de bens situados no Brasil”.

A dificuldade é tamanha ao ponto de o próprio STJ já ter entendido que a

natureza do ato requerido é que condiciona o procedimento a ser seguido e

não a qualificação da autoridade estrangeira solicitante.33

Inclusive, há de se ressaltar que a decisão em remeter o feito para o juízo

de delibação no STJ tem, em último grau, recaído nos gabinetes dos juízes e

tribunais, como se pode depreender do julgado acima destacado. Isso signi-

fica que a observância de a competência constitucionalmente estabelecida

para o STJ conceder exequatur às cartas rogatórias está sendo decidida por

órgãos jurisdicionais inferiores à Colenda Corte. Com isso, percebe-se, de

logo, uma completa inversão da estrutura orgânica do Judiciário nacional.

Nesse diapasão, mostra-se urgente a edição de norma que traga um dis-

ciplinamento substancial sobre o tema a fim de que não mais se permita a

interpretação casuística dos pedidos de cooperação jurídica internacional.

Ainda, registre-se que, somente através de ato legislativo, editado pelo

Congresso Nacional, se poderia distinguir quais os pedidos de cooperação

jurídica passiva demandariam o juízo de delibação pelo STJ e quais estariam

dispensados desse rito, podendo ser cumprido via juízo de primeiro grau

ou, até mesmo, administrativamente, como, por exemplo, entre as Polícias e

Ministérios Públicos.

De fato, não se desconhece que, para a cooperação internacional, mes-

33 AgRg na CR 7350/EX, Rel. ministro FELIX FISCHER, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2013, DJe 05/12/2013)

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Revista da Ajufe 271

mo em matéria criminal, não há sempre reserva absoluta de jurisdição, ou

seja, nem toda medida requerida deve necessariamente passar pelo crivo da

autoridade judiciária, contudo tal distinção deve ser disciplinada por ato

normativo legítimo, ou seja, através de lei em sentido formal.

Os prejuízos da omissão legislativa são percebidos a todo instante. Por

exemplo, já foi ressaltado que a doutrina entende possível que o pedido de

auxílio direto se funde na reciprocidade, mesmo que não haja acordo in-

ternacional entre os Estados envolvidos. Por outro lado, o Colendo STJ já

negou a possibilidade da cooperação direta quando os fatos não estejam

relacionados com o tratado de assistência celebrado entre os países.34 Tal

divergência, certamente, poderia ser sanada diante de uma regulamentação

ao menos satisfatória sobre o tema.

A insuficiência das regras processuais tem sido notada por especialistas 35no tema, consoante se extrai dos enfáticos trechos:

“Note-se que a ausência de uma lei geral sobre coo-

peração penal internacional pode implicar em situações

delicadas, também no âmbito da cooperação penal passi-

va. (…) O que me parece fundamental, entretanto, é a ne-

cessidade urgente de uma lei geral de cooperação jurídica

internacional que delimite o procedimento em questão”.36

Em conclusão, a ausência de norma prejudica a celeridade tão almejada no

trâmite dos pedidos de auxílio direto, o que vem, por via reflexa, a fomentar a

macrocriminalidade, sobretudo aquela com característica transnacional.

34 SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. COOPERAÇÃO IN-TERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL. PEDIDO DE AUXÍLIO DIRETO ARTICULADO NO ÂMBI-TO DE INQUÉRITO CIVIL. Anulado o processo penal, com a remessa dos respectivos autos à Justiça Federal, o Ministério Público Estadual não pode sustentar o pedido de auxílio direto nos autos de inquérito civil, sob pena de se ampliar os termos de um acordo internacional restrito à repressão penal. Agravo regimental provido. (AASS 201001556676, ARI PARGEN-DLER, STJ - CORTE ESPECIAL, DJE DATA:23/09/2011).

35 ARAÚJO, Nádia (coord.). “Cooperação jurídica internacional no Superior Tribunal de Jus-tiça: comentários à Resolução nº 9/2005”. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 100.

36 PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. “Cooperação penal internacional nos delitos econômi-cos” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 54, maio-junho 2005, p.167-8.

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Revista da Ajufe 272

4.2 Críticas ao modelo de repartição de competências

Outra reflexão bastante relevante sobre o tema que merece alguns apon-

tamentos, os quais corroboram a constatada deficiência normativa, refere-

-se à competência para exercer esse juízo de delibação.

A competência para exercer o juízo de delibação foi atribuída ao Supe-

rior Tribunal de Justiça pela Emenda Constitucional nº 45/2004. De acordo

com a redação original da Carta Magna, o STF concentrava a competência na

cooperação jurídica internacional, mas, com o advento da dita “Reforma do

Judiciário”, houve uma parcial desconcentração para o STJ quanto à homo-

logação de sentença estrangeira e à concessão do exequatur às cartas roga-

tórias, remanescendo com a Suprema Corte a competência para apreciar os

pedidos de extradição.

Além dessa inovação, com a crescente utilização dos pedidos de auxílio

direto formulados pelas autoridades centrais – Procuradoria-Geral da Re-

pública e Advocacia-Geral da União –, os juízes federais também absorve-

ram parte da competência na cooperação jurídica internacional.

A reflexão que se propõe no caso é a desconcentração ainda maior no

tema da cooperação jurídica internacional, mais especificamente quanto à

competência do STJ para exercer o juízo de delibação. Por óbvio, é cediço

que a alteração nessa distribuição de competência para os juízes federais de

primeira instância caberia ao poder constituinte derivado reformador.

A doutrina especializada, ao comentar sobre a alteração da competência

do STF de exercer o juízo de delibação nas cartas rogatórias e sentenças

estrangeiras (EC nº 45/2004), asseverou que:

“A desconcentração da competência foi positiva.

Não há motivos para concentração de tal competência

em um único órgão jurisdicional. Aliás, em rigor, tam-

bém pouco se justifica a concentração de tal compe-

tência nos Tribunais Superiores. Estes, no Brasil, como

é notório, sofrem acentuada crise em vista da ampli-

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Revista da Ajufe 273

tude excessiva de sua competência e da prodigalidade

recursal. Embora tal crise traga reflexos negativos para

a prestação jurisdicional em geral – e, portanto, não só

no âmbito da cooperação internacional – ela assume

ares de acentuada gravidade nesta matéria, uma vez

que a lentidão do atendimento a pedidos de coopera-

ção pode resultar em avaliação do Brasil como, na prá-

tica, país não-cooperante ou pouco cooperante, o que

teria reflexos negativos para a imagem do país perante

a comunidade nacional e ainda, em vista do princípio

da reciprocidade, reflexos também negativos para a co-

operação internacional ativa”.37

Com base em tais premissas, defende-se uma reflexão mais aprofundada

sobre a real necessidade de se manter a competência do STJ para exercer o juí-

zo de delibação dos pedidos de cooperação jurídica internacional. Renomados

especialistas na área vêm se posicionando sobre o tema, senão vejamos:

“É imprescindível que o Brasil tenha uma lei geral de

cooperação internacional, e que, como primeiro passo

para um regime comunitário, sejam aperfeiçoadas as

autoridades centrais nacionais no Mercosul, livrando-

-as de ingerências políticas e especializando-as ainda

mais. Também é necessário que a competência do STJ

para conceder exequatur a rogatórias seja suprimida e

tal tarefa seja atribuída aos juízes de primeira instân-

cia, para que, com isso, harmonize-se o sistema dual de

cooperação no qual coexistem as rogatórias e os pedi-

dos de assistência jurídica internacional (MLA)”.38

37 MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: con-siderações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 22.

38 ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal inter-nacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica

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Revista da Ajufe 274

“Em julho de 2002, sustentei, em concurso público,

a necessidade de competência difusa entre juízes de 1º

grau, para o reconhecimento e execução de decisões

judiciais estrangeiras, afirmando não haver razões

principiológicas para mantê-la concentrada no STF.”39

Ainda, para aprofundar o debate, podemos nos deparar com o seguinte ques-

tionamento: na verdade, em que consiste esse juízo de delibação? Já se falou que

o juízo de delibação, em tese, não adentra no mérito, consistindo apenas em uma

análise superficial, tendo como parâmetros alguns critérios procedimentais.

Entretanto, sobre o mérito, sempre os ministros emitirão juízo de valor,

uma vez que há de se observar eventual violação à ordem pública, à sobera-

nia nacional e aos bons costumes. Trata-se de conceitos jurídicos bastante

indeterminados, os quais, desde sempre, carregam consigo uma ampla carga

de subjetivismo a revelar indesejável insegurança jurídica.

Assim, em último grau, a aferição do mérito será realizada tanto pelo STJ,

ao proceder com o juízo de delibação, quanto pelo juiz federal de primeira

instância, quando se deparar com o pedido de auxílio direto e o analisará

com base no ordenamento jurídico.

Outra relevante razão a ser considerada consiste na diminuição de de-

mandas dessa natureza na Corte Cidadã. Não é custoso dizer que o STJ es-

taria bem mais desafogado se a sua competência fosse revista. Inclusive, se

a competência para conceder o exequatur às cartas rogatórias e homologar

sentença estrangeira fosse atribuída aos juízes de primeira instância. Os nú-

meros40 revelam que a Corte ficaria menos sobrecarregada para poder se

internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 92.

39 DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. “Anotações sobre o anteprojeto de lei de coopera-ção jurídica internacional” in Revista de Processo, nº 129, ano 30, nov./2005, p. 137.

40 Em consulta aos Boletins Estatísticos nos anos de 2012 e 2013, elaborados pela Coordenado-ria de Gestão Estratégica do Superior Tribunal de Justiça, os números de Cartas Rogatórias (CR) e Sentenças Estrangeiras (SE), recebidas nos anos de 2012 e 2013 foram, respectivamente, 2.746 e 3.133. No fim desses anos, houve um passivo de 345 e 448, respectivamente, ou seja, restando para o ano seguinte. Ainda que tal quantidade não represente significativo percentual em com-paração com o total da distribuição de processos por ano naquela Corte (309.677, em 2013), é

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Revista da Ajufe 275

debruçar com mais afinco sobre embates jurídicos relevantes na interpreta-

ção da lei federal, inclusive exercendo o precípuo papel na uniformização

da jurisprudência.

De fato, alguns podem até argumentar que eventual defesa da desconcen-

tração da competência para apreciar os pedidos de cooperação jurídica in-

ternacional venha causar maior morosidade nos seus atendimentos ao invés

de agilidade. Com a atribuição da competência para o STJ da homologação

de sentença estrangeira e do exequatur nas cartas rogatórias pela EC nº

45/04, permitiu-se a apreciação de tais questões por mais uma instância,

através de recursos para o STF. E, então, caso se desconcentre ainda mais

para os juízes federais como se propõe, haveria a chance de a pretensa cele-

ridade ceder espaço a uma lentidão na resposta cooperativa?

A uma primeira vista, sim. Mas, no caso em análise, as medidas de cunho

assecuratório e executivo seriam objetos de pedidos na cooperação e, nes-

ses casos, o contraditório se dá, geralmente, de maneira diferida. Logo, cer-

tamente, a resposta judicial aos órgãos de investigação seria inevitavelmente

prestada de maneira célere.

Questões como essas precisam ser formuladas, e o debate, amadurecido,

para que a cooperação jurídica internacional se torne cada vez mais uma

medida viável e eficaz, notadamente no combate ao crime transnacional.

Não se pode deixar de lado certa incoerência no modelo atual de repartição

de competência. Nos moldes como se apresenta atualmente, o juiz federal so-

mente participa da cooperação jurídica internacional quando recebe os pedidos

de auxílio direto, judicializados pelos órgãos postulantes, e, também, no cumpri-

mento das cartas rogatórias após a ordem de exequatur dada pelo STJ.

Nesse cenário, o juiz federal não exerce o malogrado juízo de delibação.

Por outro lado, o ordenamento jurídico permite que ele faça a análise inci-

dental do controle de constitucionalidade de atos normativos. Percebe-se, de

pronto, uma clara incoerência nesse modelo. Ora, o juízo de delibação em que

se adentra na análise da violação à ordem pública, soberania nacional e bons

costumes se apresenta mais relevante que o controle de constitucionalidade?

cediço que diversos crimes graves deixaram de ser investigados na celeridade desejada diante da sobrecarga processual. Boletins disponíveis em <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?vPortalAreaPai=483&vPortalArea=483&vPortalAreaRaiz=334 >. Acesso em 04.04.2014.

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Revista da Ajufe 276

Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 é um texto deveras analítico

e, sob o pálio do neoconstitucionalismo, os princípios lá contidos detêm

forte carga normativa, de maneira a conferir certo subjetivismo no exercício

do controle difuso de constitucionalidade pelo juiz de primeira instância.

Portanto, não se afigura inútil registrar a incoerência sistêmica, uma vez

que ora é dado ao juiz federal afastar a aplicação de um ato legislativo à luz

da Constituição, ora não se permite que exerça um juízo de delibação de um

pedido de cooperação estrangeira.41

Inclusive, tal questão já foi objeto da PEC de nº 152, de 1999, segundo a qual

propunha a supressão da alínea h, do inciso I, do art. 102, e acrescentava o §

5º no art. 125, com o seguinte teor: “Ao juiz da execução compete processar e

julgar a homologação de sentença estrangeira e a concessão do exequatur às

cartas rogatórias”. Convém transcrever trecho da justificativa apresentada:

“A Proposta de Emenda à Constituição Federal que

ora submetemos à apreciação dos ilustres Pares visa

a transferir a competência processual para homologa-

ção de sentença estrangeira e execução de carta roga-

tória do Supremo Tribunal Federal aos juízes de pri-

meiro grau competentes para a execução da sentença.

Hoje o rito, criado no início do século, encontra-se in-

teiramente anacrônico, incompatível com o dinamismo

e a crescente circulação de bens e de pessoas na socie-

dade moderna, sobretudo no momento em que mais e

mais se caminha para a globalização da economia, com

a criação de organismos multinacionais e a integração

dos sistemas jurídicos. (...) Em verdade, não há moti-

vo relevante que justifique tal competência da Corte

Constitucional, sendo esse o entendimento da doutrina

e até mesmo dos próprios Ministros do Supremo Tri-

bunal Federal, que já tiveram oportunidade de se mani-

41 LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 152.

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Revista da Ajufe 277

festar, por ocasião das audiências públicas da Reforma

do Judiciário, como os Ministros Carlos Mário Velloso,

Marco Aurélio Melo e José Celso Mello Filho. (...)”.42

Ainda é interessante observar que, na maioria dos países desenvolvidos,

a competência para a homologação de sentenças estrangeiras é atribuída

aos juízes de primeiras instâncias (Alemanha, França, Canadá, Suíça, Itália

dentre outros).43

Portanto, mostra-se perfeitamente possível a alteração constitucional

para permitir aos juízes federais homologarem sentença estrangeira, bem

como executarem cartas rogatórias executórias ou não, sem a necessidade

de prévia apreciação pelo STJ.

5. Conclusão

É cediço que o auxílio direto é uma ferramenta que veio a facilitar e agili-

zar a comunicação interestatal com vistas ao atendimento das necessidades

judiciais, pois os procedimentos das rogatórias as tornam instrumentos mo-

rosos e não coerentes com a dinâmica das relações humanas atualmente.44

Entretanto, mesmo havendo extrema necessidade,45 as autoridades legis-

lativas não se dedicaram ao amadurecimento do tema. Os motivos não são

conhecidos, mas, talvez, o combate à macrocriminalidade transnacional não

seja uma tarefa tão atraente.

Coube aos juízes a incumbência de fixar algumas balizas para a aplicação

do instituto e a efetivação de suas decisões. Sobre o tema, foi editado o men-

cionado parágrafo único do art. 7º, da Resolução nº 09/2005, do STJ. Toda-

42 Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14466>. Acesso em 04.04.2014.

43 TIBURCIO, Carmen. “Temas de direito internacional”. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 195.

44 ANSELMO, Márcio Adriano. “Cooperação internacional em matéria penal no âmbito do Mercosul – anatomia do Protocolo de San Luis” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 222.

45 BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Departamento de Recuperação de Ativos e Coo-peração Jurídica Internacional. “Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal.” 2. ed., Brasília : Ministério da Justiça, 2012. p. 45.

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via, esse diploma não teve o condão de distinguir as hipóteses de utilização

do rito do auxílio direto, da carta rogatória e, muito menos, da cooperação

meramente administrativa.46

Também já se ressaltou que o atual entendimento prevalecente é o de que

não importa o nomen iuris do pedido nem a qualidade da autoridade solici-

tante, mas sim a sua natureza. Portanto, à luz do direito interno, os juízes e

os demais agentes públicos, de um modo geral, analisam a natureza do ato

requestado para determinar qual o procedimento a ser adotado, sem qual-

quer fixação normativa.

O procedimento de cooperação passiva se dá com o recebimento do pedi-

do pelo DRCI, que analisará se tem natureza jurisdicional ou administrativa.

Tendo natureza jurisdicional e, à luz do amplo ordenamento jurídico, verifi-

ca se demanda juízo de delibação pelo STJ. Caso contrário, e sendo o caso da

competência da Justiça Federal, remete ao Ministério Público Federal para

judicializar a questão penal na primeira instância.47

Quando se remete o pedido de cooperação ao STJ para o supostamente

devido juízo de delibação, o presidente daquela casa faz um juízo prévio à

própria delibação e o analisa para saber se há conteúdo decisório ou não.

Se houver conteúdo decisório, segue-se o procedimento de delibação pela

Corte (art. 9ª, da Resolução nº 09/2005); caso contrário, encaminha-se ao

Ministério da Justiça para que providencie o trâmite via autoridade central,

se for o caso, para prestar o atendimento.

Percebe-se que, diante dessa estrutura, há uma desconstrução da própria

figura do auxílio direto, pois de “direto” não há nada. O pedido de auxílio

entrará no país pela via diplomática (Ministério das Relações Exteriores); na

sequência, é encaminhado ao Ministério da Justiça, que, por sua vez, enviará

para o STJ. Realizada essa análise prévia à delibação, devolve-se ao Minis-

tério da Justiça, se não for o caso de a Corte delibar. A uma simples vista,

percebe-se o quão burocrático ainda é o percurso.

46 LOULA, Maria Rosa Guimarães. Op.cit., p. 178.

47 BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Departamento de Recuperação de Ativos e Coo-peração Jurídica Internacional. “Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal.”2. ed., Brasília : Ministério da Justiça, 2012, p. 82.

Page 279: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 279

Também não transmite qualquer lógica que um pedido de cooperação

internacional passiva tenha seu rito determinado pela autoridade central

ou pelo Ministério das Relações Exteriores sem qualquer respaldo legal. Ao

mero juízo de um servidor público do ministério, ora se remete o pedido ao

STJ para o juízo de delibação, ora para a autoridade central, sem balizas le-

gislativas que determinem o trâmite de cada um dos tipos de pedido.

Alguns dos problemas apresentados acima tiveram soluções apontadas

pelos autores do anteprojeto de lei sobre a cooperação jurídica internacio-

nal (Ministério da Justiça). Contudo, a dificuldade ainda persiste, consoante

esclarecedora lição de Ricardo Perlingeiro:

“Penso que a ideia tenha sido a substituição da carta

rogatória pela assistência direta, tal como previsto no

art. 1º do Anteprojeto da AJUFE: ‘A República Federativa

do Brasil poderá requerer ou prestar assistência judici-

ária em matéria penal a qualquer Estado estrangeiro, em

procedimento regulamentado por esta lei, que substitui-

rá a carta rogatória, para investigação, instrução pro-

cessual e julgamento de infrações penais’ (...) No entanto,

o que afinal pode ser objeto de auxílio direto? Decisões

interlocutórias ou de urgência não deveriam, por estão

sujeitas à carta rogatória, no art. 40, III e IV, do próprio

Anteprojeto. Citação, intimação e provas também estão

previstas naquele artigo, incs I e II. Seria então discri-

cionariedade do ente estrangeiro ou Ministério da Jus-

tiça em optar entre o procedimento do auxílio direto e

da carta rogatória? Nenhum problema existiria se não

existisse competência privativa do STJ para carta roga-

tória, instituída pela CF/88, e a competência difusa para

o auxílio direto ter sido instituído pelo Anteprojeto, o

que torna a regra inconstitucional”.48

48 DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. “Anotações sobre o anteprojeto de lei de coopera-ção jurídica internacional” in Revista de Processo, nº 129, ano 30, nov./2005, p. 156.

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Revista da Ajufe 280

Nesse cenário jurídico, justifica-se a preocupação em se dedicar, com

urgência, esforços para a reflexão madura do modelo de competência adota-

do atualmente. Imprescindível que o legislativo delegue ao juízo de primeira

instância ferramentas e instrumentos mais eficazes para o combate célere à

criminalidade transnacional.

6. Referências bibliográficas

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Page 283: Revista Direito Federal nº 94

A igualdade no país do futebol

Page 284: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 284

Márcio Rached MillaniJuiz Federal, especialista em Direito Processual Público

pela Universidade Federal Fluminense e Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica.

Resumo: Este artigo busca examinar a constitucionalidade dos recentes

dispositivos legais inseridos no bojo da denominada Lei Geral da Copa (ar-

tigos 37, 38 e 41 da Lei nº. 12.663/2012) frente aos princípios republicano,

da capacidade contributiva e da igualdade.

Palavras-chave: isenção. Tributação. Igualdade. Republicano. Capacidade

contributiva.

Abstract: this paper intends to examine the constitutionality of some

legal articles of a law issued especially for the World Soccer Cup (37, 38

and 41 of the law 12.663/2012) by confronting them with the republican

principle, the equality principle and the ability to pay principle.

Keywords: exemption. Taxation. Principle of equality. Republican. Abi-

lity to pay.

1 Introdução

O Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e pro-

clamada pela Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas,

de 10 de dezembro de 1948, dispõe que todas as pessoas nascem livres e

iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem

agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

O princípio da igualdade aparece em vários artigos da nossa Constitui-

ção Federal, ora de forma explícita, ora de forma implícita. Para demonstrar

a sua relevância, o constituinte, logo no preâmbulo da Constituição, já tratou

de apresentá-lo, mostrando com isso a sua imprescindibilidade:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos

Page 285: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 285

em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um

Estado Democrático, destinado a assegurar o exercí-

cio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a se-

gurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade

e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na

harmonia social e comprometida, na ordem interna e

internacional, com a solução pacífica das controvér-

sias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte

Constituição da República Federativa do Brasil”.

Positivado no artigo 5º, caput, de nossa Constituição, estatui serem todos

iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito

à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O princípio não se destina apenas ao Judiciário e ao Executivo na apli-

cação da lei, mas também ao Legislativo quando de sua elaboração. Dessa

forma, o legislador, ao produzir determinada lei, deve regular, com iguais

disposições, situações idênticas, devendo distinguir aquelas que não pude-

rem ser equiparadas.

A aferição de uma situação de igualdade normalmente é efetivada me-

diante a eleição de um critério de comparação, o que demonstra ser a igual-

dade não um estado, mas uma relação. Nesse sentido, observou Bobbio1 que

o homem como pessoa – ou para ser considerado como pessoa – deve ser,

enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve

estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade.

A mera afirmação de que dois indivíduos são iguais sem nenhum outro

dado específico não revela muito significado, pois a igualdade é uma rela-

ção formal que pode ser preenchida pelos mais diversos conteúdos. Luciano

Amaro2 nos traz o seguinte exemplo: dois indivíduos em idêntica situação

têm direito a um tratamento igual. Isso não significa muito, pois se de ambos

1 BOBBIO, Norberto: Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 7.

2 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.134.

Page 286: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 286

fosse exigido um idêntico tributo iníquo, de nada lhes adiantaria invocar a

igualdade, que na hipótese concreta estaria sendo aplicada.

O princípio da igualdade está relacionado a diversos outros princípios

da Constituição. Roque Carrazza3 afirma ser intuitiva a inferência de que o

princípio republicano leva à igualdade da tributação. Assevera o autor que

os dois princípios se completam, uma vez que o princípio republicano exige

que os contribuintes recebam tratamento isonômico.

O princípio da igualdade também está relacionado ao da capacidade con-

tributiva. Luciano Amaro4 aduz que os princípios se avizinham, pois, ao se

fazer a adequação do tributo à capacidade dos contribuintes, deve se buscar

um modelo que não ignore as diferenças evidenciadas nas situações eleitas

como suporte para a imposição, o que corresponde a um dos aspectos da

igualdade, que consiste no tratamento desigual para os desiguais.

Tendo por fundamento as três vertentes acima expostas e relacionadas

ao princípio da igualdade – princípio republicano, capacidade contributiva

e igualdade propriamente dita – proceder-se-á a uma análise de recentes

dispositivos legais inseridos no bojo da denominada Lei Geral da Copa (Lei

nº. 12.663/2012), mais especificamente os artigos 37, 38 e 41, que têm a

seguinte redação:

Art. 37. É concedido aos jogadores, titulares ou reser-

vas das seleções brasileiras campeãs das copas mundiais

masculinas da FIFA nos anos de 1958, 1962 e 1970:

I - prêmio em dinheiro

.....

Art. 38. O prêmio será pago, uma única vez, no valor

fixo de R$ 100.000,00 (cem mil reais) ao jogador.

.....

Art. 41. O prêmio de que trata esta Lei não é sujeito ao pa-

gamento de Imposto de Renda ou contribuição previdenciária.

3 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.67.

4 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.134.

Page 287: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 287

A análise tem por escopo verificar se a exoneração con-

cedida está em consonância com os já citados princípios.

2. Espécies de exoneração tributária

Antes, porém, algumas considerações iniciais são imprescindíveis. A pri-

meira se refere à espécie de exoneração tributária prevista no artigo 41.

Para isso, apontaremos as principais diferenças entre as seguintes figuras:

isenção, imunidade, alíquota zero, não incidência, remissão e anistia.

Dizemos que ocorre a incidência do tributo quando determinado fato

amolda-se à descrição abstrata da lei. Esse enquadramento dá nascimento à

obrigação tributária. Quando o fato não se subsume à hipótese descrita na

lei, ocorre a não incidência e, em decorrência desse não enquadramento, tal

fato não tem aptidão para gerar tributos.

O Código Tributário Nacional regulou a isenção no artigo 175, juntamente

com a anistia, classificando-as como hipóteses que excluem o crédito tributário.

A isenção, diga-se, não pode ser considerada como dispensa do paga-

mento do tributo devido. Essa teoria, adotada pelo CTN, parte da ideia de

que o fato jurídico ocorreu, nasceu a obrigação tributária e, posteriormente,

em razão da norma de isenção, o pagamento foi dispensado. Por ela dois

momentos existiriam: no primeiro, ocorreria a incidência da norma e o sur-

gimento da obrigação tributária, e, no segundo, incidiria a regra isentiva que

dispensaria o sujeito passivo do pagamento do tributo.

Vários autores se insurgiram contra esse entendimento. José Souto Maior

Borges5 sustenta que as isenções tributárias são hipóteses de não incidên-

cia legalmente qualificadas. Adverte que não há o nascimento da obrigação

tributária e, por conseguinte, não há que se falar em dispensa de algo que

nunca existiu.

Sacha Calmon6 refuta a tese de Borges por entender que não há duas

normas, uma de tributação e uma de isenção (ou tantas normas isencio-

5 BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3a edição. São Paulo: Ma-lheiros, 2011, pp. 190 e 191.

6 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.145.

Page 288: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 288

nais quantos fossem os fatos isentos previstos pelo legislador), mas somente

uma, pois as normas não derivam de textos legais isoladamente considera-

dos. A norma jurídica de tributação é resultante de uma combinação de leis

ou artigos de leis existentes no sistema jurídico, combinação essa que define

os fatos tributáveis e se conjuga com as previsões imunizantes e isencionais,

para compor uma única hipótese de incidência.

Paulo de Barros Carvalho,7 por sua vez, leciona que a regra de isenção,

que é uma regra de estrutura e não de comportamento, investe contra um ou

mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os, parcial-

mente. Não há, evidentemente, supressão total do critério, pois isso equiva-

leria a destruir a regra-matriz, inutilizando-a como regra válida no sistema.

O que o preceito da isenção faz é retirar parcela do campo de abrangência

do critério do antecedente ou consequente.

Há autores que aproximam a isenção da denominada alíquota zero, pois

o efeito prático das duas figuras é o mesmo. Na alíquota zero, admitir-se-ia

um fato gerador que nada gera, o nascimento de uma obrigação sem objeto.8

Para Paulo de Barros Carvalho, na alíquota zero há a aniquilação do critério

quantitativo do consequente da regra-matriz, não enxergando o professor

qualquer diferença entre esta supressão e a que ocorre nos casos de isenção.

O Supremo Tribunal Federal, todavia, entende que isenção e alíquota zero

não se confundem. Nesta há fato gerador, há contribuinte e há a incidência

da norma, só não há tributo devido em razão de a alíquota ser zero.

A remissão é o perdão da dívida tributária. Há o fato gerador e a obri-

gação tributária, todavia, a dívida é perdoada. Já a anistia é o perdão de

infrações. Por fim, vejamos a última das figuras, a imunidade. A imunidade

é técnica usada pelo constituinte no momento em que define o campo sobre

o qual outorga competência.9 São normas constitucionais que estabelecem

a incompetência das pessoas políticas para expedir regras instituidoras de

7 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 568.

8 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 154.

9 AMARO, Luciano. Direito . 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.265.

Page 289: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 289

tributos sobre determinadas situações.10

Pelo exposto, podemos afirmar tratar-se de isenção (o prêmio de que trata

esta lei não é sujeito ao pagamento de Imposto de Renda) a exoneração con-

tida no artigo 41 da Lei nº. 12.663/2012. A regra isentiva ataca a funcionali-

dade da regra-matriz tributária comprometendo-lhe o consequente no que se

refere ao sujeito passivo. Uma parcela do conjunto possível dos contribuintes

foi extraída (jogadores de futebol campeões do mundo), e assim a regra-matriz

será inoperante em relação a eles no que tange ao prêmio auferido.

3. Estrutura da regra isentiva do artigo 41 da lei nº. 12.663/2012

Visto o tipo de exoneração contido na lei, passa-se a analisar a sua estru-

tura. Dizemos que a lei é geral quando se reporta a uma classe de indivídu-

os. Generalidade, nesse sentido, contrapõe-se à individualização que ocorre

quando a lei se refere a um indivíduo apenas. Além de geral ou individual, a

lei também poderá ser abstrata ou concreta. Será concreta quando se referir

a situação única com previsão de realização por uma só vez. Abstrata é a lei

que supõe uma situação reproduzível.11

A lei em comento é concreta e individual. É concreta, pois a situação nela

prevista não é renovável, mas se esgota após a produção dos efeitos pre-

vistos. É individual, pois já estão previamente determinados os indivíduos

quando da edição da lei, muito embora não se reporte a uma única pessoa.

A doutrina costuma equipar a lei individual e concreta ao ato adminis-

trativo. É considerado lei de efeitos concretos o ato normativo consignado

como lei em sentido formal que, porém, não atende aos critérios da generali-

dade e da abstração, ou seja, são leis complementares, ordinárias, delegadas

ou medidas que se assemelham a atos administrativos. Possuem destinatário

certo (não são gerais), ou não possuem possibilidade de repetição (não pos-

suem abstração). As leis individuais são marcadas pela falta de generalidade

(aplicação a um universo indeterminado de pessoas) ou de impessoalidade

(destinação impessoal).

10 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 236.

11 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p .26.

Page 290: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 290

4. Princípios e regras

Por fim, e antes de adentrarmos no objeto específico do estudo, vejamos as

principais características dos princípios e modos de diferenciá-los das regras.

Na definição de Geraldo Ataliba,12 sistema normativo é o conjunto unitá-

rio e ordenado de normas, em função de uns tantos princípios fundamen-

tais, reciprocamente harmônicos, coordenados em torno de um fundamento

comum. Os sistemas, adverte, não são formados pela mera soma de seus

elementos, mas pela conjugação harmônica deles.

Canotilho13 afirma que o sistema jurídico do Estado é um sistema norma-

tivo aberto de regras e princípios. É um sistema de regras e princípios, pois

as normas se revelam sob ambas as modalidades.

Não é fácil, contudo, a tarefa de distinguir regra de princípio.

Princípio traz a ideia de origem, começo, ponto de partida. Para Celso An-

tônio Bandeira de Mello,14 princípio é o mandamento nuclear de um sistema,

verdadeiro alicerce dele, que se irradia sobre as normas, compondo-lhes o

espírito e servido de critério para sua compreensão.

Paulo de Barros Carvalho aduz que sempre que houver consenso ou que

um número considerável de indivíduos reconhecerem que determinada nor-

ma veicula um vetor axiológico forte, desempenhando importante papel para

o entendimento do sistema normativo, estaremos diante de um princípio.

“Quer isto significar, por outros torneios, que ‘prin-

cípio’ é uma regra portadora de núcleos significati-

vos de grande magnitude influenciando visivelmente

a orientação de cadeias normativas, às quais outorga

caráter de unidade relativa, servindo de fator de agre-

12 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Empresa Grá-fica da Revista dos Tribunais, 1966, p. 19

13 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1143.

14 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 15ª ed. 2003, p. 817

Page 291: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 291

gação para outras regras do sistema positivo. Advirta-

-se, entretanto, que ao aludirmos a “valores” estamos

indicando somente aqueles depositados pelo legislador

(consciente ou inconscientemente) na linguagem do

direito posto ”.15

Além de transmitir a ideia de valor, o termo princípio pode ser definido

sob outra perspectiva, como o faz Alexy, para quem princípios são manda-

mentos de otimização, normas que exigem que algo seja realizado na maior

medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, vale

dizer, os princípios podem ser realizados em diversos graus.16 Nos princí-

pios, os direitos são garantidos direitos prima facie, havendo uma diferença

entre o que é garantido inicialmente e o que é garantido definitivamente, di-

ferença essa que apenas será superada quando da análise do caso concreto.

As regras, a seu turno, são normas que garantem direitos de modo defi-

nitivo, ou seja, o direito será totalmente realizado se a regra for aplicada ao

caso concreto. As regras, ademais, são aplicadas por subsunção e os conflitos

existentes entre elas serão resolvidos no plano da validade, o que significa

que uma das regras será declarada inválida, no todo ou em parte, caso preveja

consequências diferentes para o mesmo fato. Já a aplicação dos princípios se

dá por sopesamento enquanto os seus conflitos se resolvem no campo da efi-

cácia, é dizer, eles continuam válidos, mantêm a sua validade, todavia deixam

de ser aplicados no caso concreto. Assim, o que ocorre quando dois princípios

colidem é a fixação de relações condicionadas de precedência.17

Canotilho18 aponta cinco critérios para diferenciar regras de princípios.

O primeiro refere-se ao grau de abstração, entendendo ele que os princípios

são normas com elevado grau de abstração. O segundo refere-se ao grau

15 LUCCA, Newton de; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; BAETA NEVES, Mariana Barboza. Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 286.

16 SILVA, Afonso Virgílio. Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 46.

17 SILVA, Afonso Virgílio. Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 50.

18 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.144.

Page 292: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 292

de determinabilidade na aplicação no caso concreto. Os princípios, por se-

rem vagos e indeterminados, necessitam das mediações concretizadoras do

juiz ou legislador. O terceiro diz respeito ao caráter de fundamentalidade no

sistema das fontes de direito. Os princípios são normas de natureza estrutu-

rante ou com papel fundamental no ordenamento jurídico em razão de sua

posição hierárquica no sistema das fontes. O quarto critério – proximidade

da ideia de direito – afirma que os princípios são standarts juridicamente

vinculantes radicados na exigência de justiça ou ideia de direito. Por fim,

o quinto trata da natureza normogenética dos princípios, que constituem

fundamentos para a edição das regras.

Humberto Ávila19 critica tanto a corrente que define princípio em razão

do grau de abstração e generalidade como a que o define em função do

modo de aplicação. Afirma que princípio não pode ser definido com fun-

damento no elevado grau de abstração e generalidade,pois toda norma, por

ser veiculada por meio da linguagem, é em alguma medida indeterminada.

Argumenta que as regras também servem para a concretização de valores,

já que cada uma tem uma finalidade que lhe é subjacente. Argumenta que

toda norma é aplicada mediante ponderação, inclusive as regras. Há uma

ponderação interna (por exemplo, qual o significado de livro para a norma

de imunidade) e uma externa quando duas normas entram em conflito sem

que seja decretada a invalidade de uma delas. Ressalta que há casos em que o

conflito de regras não se resolve com decretação de invalidade de uma delas.

Entende que também as regras estabelecem deveres provisórios como nas

hipóteses de superação por meio do princípio da razoabilidade.

A grande importância dos princípios, além de seu caráter normogené-

tico, está no fato de vincularem o entendimento e a aplicação das normas

jurídicas que com ele se conectam. Destarte, as regras devem ser editadas

consoante os valores nelas expressos e consagrados na Constituição, bem

como na análise do caso concreto elas devem ser interpretadas de modo

a conferir ao princípio a máxima efetividade possível, sendo compatíveis,

portanto, as doutrinas que as definem em razão do grau de abstração e do

modo de aplicação.

19 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

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Revista da Ajufe 293

5. Princípio republicano e a regra isentiva

O princípio republicano encontra-se previsto no artigo 1º da Constitui-

ção Federal. Não deve ele ser encarado sob uma ótica estritamente formal,

conforme adverte José Afonso da Silva,20 como simples oposição à forma

monárquica de governo. Citando a lição de Ruy Barbosa, afirma que o que

caracteriza a República não é a mera coexistência dos três poderes, Legis-

lativo, Executivo e Judiciário, mas sim a condição de que os membros dois

primeiros poderes tenham sido eleitos pelo povo, em eleições periódicas,

por tempo limitado, o que leva à não vitaliciedade dos cargos políticos.

Renato Becho21 diz que é possível apresentar todo o direito tributário

brasileiro, notadamente o superior direito tributário constitucional, a partir

dos princípios republicano, federativo, da autonomia municipal, da anterio-

ridade, da legalidade e da segurança jurídica, o que realçaria a posição des-

tacada da Constituição Federal sobre todo o subsistema jurídico-tributário.

Roque Antônio Carrazza22 define República como o tipo de governo fun-

dado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder po-

lítico exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e

com responsabilidade.

Uma característica extraída do conceito e que mais de perto nos interes-

sa para a análise do ponto controvertido diz respeito à igualdade formal. Tal

igualdade não admite haver distinções entre os indivíduos, sejam eles pobres

ou ricos, cultos ou ignorantes, médicos ou jogadores de futebol. Como decor-

rência dessa igualdade, não são aceitas, tampouco, leis que contenham diver-

sidade de tratamento para pessoas que se encontrem em uma mesma situação

fática e jurídica. Vale dizer, são proibidas discriminações que privilegiem uns

em detrimento de outros. Os poderes que os representantes escolhidos pelo

povo receberam devem retornar sob a forma de leis que possibilitem as mes-

mas oportunidades para todos e garantam o bem-estar dos cidadãos.

20 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malhei-ros, 1998, p.106.

21 BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p.357.

22 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 48.

Page 294: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 294

O Supremo Tribunal Federal por várias vezes já decidiu que o princípio

republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo qual-

quer vantagem conferida apenas a um indivíduo não extensível aos demais.

Entendeu a Corte Constitucional em julgamento23 que aferia a legitimidade

de vantagens que detinham candidatos que já eram parlamentares, ser ina-

ceitável, na hipótese, a quebra essencial da igualdade que deve existir entre

todos aqueles que, parlamentares ou não, disputam mandatos eletivos.

Também já decidiu o Supremo Tribunal Federal24 que as normas, inclu-

sive as constitucionais, devem ser interpretadas de maneira a dar eficácia e

efetividade ao princípio republicano.

Voltando as nossas atenções para a seara tributária, temos que, nos ter-

mos do princípio republicano, a lei não pode estabelecer vantagens para

uma determinada classe de indivíduos tão-somente baseada em sua profis-

são. Destarte, o princípio republicano conduz, em última análise, à generali-

dade da tributação, ou seja, todos os indivíduos que se encontrem na mesma

situação devem suportar idêntica tributação. Os mesmos argumentos são

válidos no que concerne a leis que concedem isenções.

A Lei nº 12.663/2012 (artigos 37 e 38) concedeu aos jogadores, titulares

ou reservas das seleções brasileiras campeãs das copas mundiais masculi-

nas da Fifa nos anos de 1958, 1962 e 1970, um prêmio em dinheiro no valor

de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Não entraremos no mérito do artigo, con-

quanto sejam duvidosos os critérios para o prêmio, que privilegiou apenas

os jogadores de futebol, deixando de lado outros atletas igualmente impor-

tantes ou indivíduos tão ou mais necessitados. Também não serão tecidos

comentários sobre artigos contidos na lei que, de modo ostensivo, afrontam

o princípio da soberania nacional.

O que pretendo trazer à discussão é o artigo 41 da mencionada lei que

tem a seguinte redação: o prêmio de que trata esta Lei não é sujeito ao pa-

gamento de Imposto de Renda ou contribuição previdenciária.

23 Pet 4444 AgR / DF – Distrito Federal. AG.ReG. na Petição. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 26/11/2008.

24 RE 543117 AgR / AM – Amazonas. AG.Reg. em RE. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julga-mento: 24/06/2008.

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Revista da Ajufe 295

Não tenho dúvidas de que o artigo fere de morte o princípio republicano.

Não há qualquer justificativa razoável para não submeter à tributação do Im-

posto de Renda o prêmio instituído pela lei, haja vista que o valor se subsu-

me com perfeição ao conceito de renda estabelecido na Constituição. Além

do perfeito enquadramento à hipótese de incidência, não há qualquer tipo de

exoneração prevista no texto constitucional que dispense o seu pagamento.

É evidente que a lei pode estabelecer isenções, todavia, ao fazê-lo, deve

observar os princípios de nossa carta magna, sob pena de inconstituciona-

lidade. Entre esses o princípio republicano, que não apenas estabelece uma

relação de igualdade entre os contribuintes, mas proíbe peremptoriamente

vantagens fiscais com fundamento na profissão.

A lei poderia produzir o mesmo efeito sem afrontar o princípio repu-

blicano. Bastaria para isso aumentar o valor do prêmio para que, no fim,

após a devida incidência do Imposto de Renda, restassem líquidos para os

jogadores o mesmo montante, isto é, 100 mil reais. O que não pode a lei é

passar a ideia de que nem todos são iguais perante ela, que há valores que,

embora enquadrados no conceito de renda, não são tributados em razão de

um privilégio especial concedido a poucos.

6. Princípio da capacidade contributiva e a regra isentiva

Roque Antonio Carrazza entende que o princípio da capacidade contribu-

tiva encontra-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no

campo tributário, os ideais republicanos.25 Alberto Xavier26 não reconhece

a autonomia do princípio da capacidade contributiva, entendendo ser este

mero aspecto em que se desdobra o princípio da igualdade, não constituin-

do princípio autônomo.

Renato Becho,27 conquanto reconheça a correlação entre ambos, admite

a existência de elementos que os diferenciam. Afirma que no princípio da

25 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 74.

26 XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 74.

27 BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 405.

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Revista da Ajufe 296

igualdade é necessário um elemento comparativo e um outro indivíduo para

se verificar se os dois estão sendo tratados consoante determina o princípio,

o que não ocorre no que diz respeito ao princípio da capacidade contributi-

va. Se dois indivíduos em idêntica situação estão sendo tributados da mesma

forma, está se atendendo ao princípio da igualdade. Todavia, se, não obs-

tante essa igualdade, a tributação estiver retirando deles parcela necessária

para a sua subsistência e vida digna, não se estará respeitando o princípio

da capacidade contributiva. Não basta, pois, que se analise o contribuinte

isoladamente em seu contexto econômico. Não obstante as diferenças apon-

tadas, o autor entende que a capacidade contributiva é um limite mínimo de

igualdade tributária, indicando o espaço que o legislador não deve violar ao

realizar a tributação. A partir desse limite, o princípio da igualdade busca o

equilíbrio entre os contribuintes.

O princípio encontra-se expresso no artigo 145, § 1º, da Constituição,

afirmando que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e se-

rão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado

à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses

objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei,

o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

De maneira geral, o princípio estabelece que aqueles que possuem mais

riqueza devem pagar mais imposto. Segue que o montante de tributos exi-

gido de determinado contribuinte irá variar de acordo com a manifestação

de seu poder econômico. O princípio tem inspiração na ordem natural das

coisas,28 uma vez que onde não houver riqueza é inútil a instituição de um

imposto. Mas não é apenas essa a sua função. Além de preservar a racio-

nalidade da lei, o princípio visa preservar o contribuinte de uma tributação

exagerada, tributação que possa comprometer o mínimo necessário para a

sua subsistência e vida digna. Por intermédio do princípio da capacidade

contributiva, busca-se alcançar a justiça fiscal, exigindo-se dos mais ricos

maior contribuição para os gastos do Estado.

A expressão “sempre que possível” não constitui simples recomendação

28 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 133. AMARO, Luciano. Obra citada, p. 88.

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Revista da Ajufe 297

para o legislador. Ao contrário, ele deve, se for da natureza constitucional do

imposto, conferir caráter pessoal e graduá-lo de acordo com a capacidade

econômica do contribuinte. Assim, a exceção contida na lei refere-se tão-

-somente aos impostos que, em virtude de sua natureza, não permitem que

se atenda ao comando constitucional, como, por exemplo, o IPI. Vale dizer,

quando houver a possibilidade de escolha, o legislador, deverá, obrigatoria-

mente, ao criar in abstracto o imposto, atender aos ditames do princípio da

capacidade contributiva, isto é, deverá imprimir à exação caráter pessoal,

graduando-a segundo a aptidão econômica do contribuinte.29

Isso significa que todos os impostos, à exceção do ICMS, IPI, Imposto

de Importação e Imposto de Exportação, devem ser graduados segundo a

capacidade econômica dos contribuintes. A pessoalidade dos impostos está

condicionada à viabilidade jurídica de ser considerada a situação individual

do sujeito passivo numa dada hipótese de incidência tributária.30

Melhor esclarecendo, e tomando como modelo o IPI, vemos que o valor do

imposto é transferido para o preço da mercadoria. Quem o suporta não é o

contribuinte, mas o consumidor final da mercadoria. Este, quando da aqui-

sição do bem, o adquire com o valor do imposto nele embutido. Esta carga é

igual para todos os consumidores finais. Essa a razão de não ser possível a

aplicação do princípio aos impostos indiretos.

Em resumo, quando a norma tributária referir-se a elementos pessoais do contri-

buinte, deve, por conseguinte, ser observada até o fim a pessoalidade na tributação.31

Humberto Ávila32 afirma que há, ainda, outro critério para sujeitar os

impostos à capacidade contributiva. Aduz que o princípio deve ser obser-

vado quando a tributação tiver finalidade fiscal, ou seja, quando a institui-

ção do imposto tiver por fundamento preponderante a obtenção de receitas.

Esclarece o autor que a Constituição não garante apenas a realização dos

29 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 133. AMARO, Luciano. Obra citada, p. 88.

30 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p.104.

31 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.437.

32 Princípio da Isonomia em Matéria Tributária. Teoria Geral da Obrigação Tributária. Estu-dos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005, p 742.

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Revista da Ajufe 298

princípios fundamentais, ou gerais de tributação, mas vários outros, como

os princípios gerais da atividade econômica, implementação da política ur-

bana, proteção do meio ambiente etc. Destarte, quando os impostos tiverem

uma finalidade extrafiscal, ou seja, quando tiverem por objetivo atingir uma

finalidade constitucional que não seja a mera arrecadação de tributos, já não

mais será o princípio da capacidade contributiva a medida de diferenciação

entre os contribuintes.

Conclui o autor afirmando que quando o legislador erigir outra finali-

dade para o imposto, ainda assim há o dever de preservar ao máximo a ca-

pacidade contributiva, e isso será realizado por intermédio do princípio da

proporcionalidade. A medida adotada deverá, por conseguinte, ser adequada

à consecução do fim, necessária, no sentido de ser a menos restritiva entre

as medidas igualmente adequadas, e proporcional. Justamente porque o le-

gislador irá se afastar do princípio da capacidade contributiva o fim deve

estar perfeitamente estabelecido.

Retomando, não há dúvidas de que impostos como, por exemplo, o im-

posto sobre a renda permitem a aplicação do comando constitucional. Mas

e quanto aos impostos reais e indiretos?

Recordemos, impostos pessoais são aqueles cujo aspecto material da hipó-

tese de incidência leva em consideração certas características, juridicamente

qualificadas, dos sujeitos passivos. Já os impostos reais são aqueles nos quais

o aspecto material da hipótese de incidência limita-se a descrever um fato,

independentemente do aspecto pessoal do sujeito passivo e suas qualidades.33

No que diz respeito aos impostos reais, como o IPTU, a Constituição esta-

beleceu a possibilidade de progressividade em razão do valor do imóvel, da

localização e do uso. Esses critérios, geralmente, demonstram a capacidade

econômica do contribuinte, pois é certo que imóveis com grande valor venal

e localizados em bairros nobres indicam que o seu proprietário tem maior

capacidade contributiva. O mesmo vale para o IPVA, que poderá ter alíquotas

diferenciadas em função do tipo e da utilização do veículo.

Já no que diz respeito aos impostos indiretos, vimos acima que não há a

possibilidade de imprimir-se a eles feição pessoal. Todavia, mesmo em rela-

33 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 5ª ed., 1992, p. 125.

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Revista da Ajufe 299

ção a esses impostos, conquanto não seja possível estabelecer uma relação

direta no que se refere à capacidade contributiva – uma vez que o imposto

pago pelo contribuinte mais abastado é o mesmo que o pago pelo não tão

abastado –, há mecanismos que, de maneira reflexa, tentam minimizar o pro-

blema. Nessas hipóteses, a capacidade contributiva se daria pela seletivida-

de de alíquotas e pela não cumulatividade,34 pois o consumo de certos bens

revelaria uma riqueza do contribuinte.

De fato, não há como negar que, de certo modo, o princípio é realiza-

do com a aplicação de alíquotas seletivas, conforme destacado por Regina

Helena Costa,35 que argumenta que a seletividade e a não cumulatividade

são expedientes que demonstram que mesmo não sendo viável considerar

as condições pessoais dos contribuintes nesses tributos, ainda assim é pos-

sível prestigiar a noção de capacidade contributiva. Arremata a autora afir-

mando que, se a capacidade contributiva não puder ser levada em conta

para a graduação desses tributos, ao menos dever servir como indicativo das

hipóteses de isenção da obrigação tributária.

O destinatário do princípio da capacidade contributiva é o legislador,

uma vez que a ele caberá editar as leis que instituem impostos, impostos

esses que deverão ser graduados segundo a capacidade econômica do con-

tribuinte. Mas não apenas ao legislador se destina o comando, como também

ao Judiciário, uma vez que a ele é reservada a missão de fazer valer o prin-

cípio se porventura não observado pelo legislador. Nesse sentido, o enten-

dimento de Elizabeth Nazar Carrazza,36 que entende como destinatários não

somente o legislador, mas também o aplicador na norma.

Diz-se que a capacidade contributiva é de natureza objetiva, quando não

se preocupa com as reais condições econômicas do contribuinte, mas sim

com as suas manifestações objetivas de riqueza. Já a capacidade contributi-

va subjetiva considera o indivíduo e sua real condição econômica. Presente

34 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 54

35 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 54.

36 CARRAZA, Elizabeth Nazar. IPTU e progressividade. Igualdade e Capacidade Contributiva. Curitiba: Juruá, 1992, p. 41

Page 300: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 300

a capacidade contributiva in concreto, o sujeito passivo torna-se apto para

absorver o impacto tributário.37

Para Sacha Calmon Navarro Coelho,38 a capacidade contributiva é subjetiva,

e, desse modo, deve considerar a real capacidade econômica do sujeito passivo,

ou seja, a sua condição concreta de suportar a carga econômica do tributo.

A maioria da doutrina entende ser objetiva a natureza do princípio. É

o entendimento de Roque Antonio Carrazza,39 para quem o princípio será

atendido quando a lei, ao criar o imposto, colocar em sua hipótese de inci-

dência fatos que façam presumir a riqueza do contribuinte.

A capacidade contributiva impõe um limite à discricionariedade do legisla-

dor na eleição dos fatos tributáveis na medida em que não autoriza como pres-

suposto de impostos aqueles que não sejam reveladores de alguma riqueza.40

Vistos os contornos do princípio da capacidade contributiva, voltemos à

análise do artigo 41 da Lei nº. 12.663/2012, que isenta o prêmio da incidên-

cia do Imposto de Renda.

Há vários métodos para graduar os impostos de acordo com a capaci-

dade econômica do sujeito passivo. Entre esses, se sobressaem as autori-

zações para deduções da base de cálculo de despesas consideradas vitais

e a progressividade de alíquotas. Há, entretanto, dúvidas no que se refere à

compatibilidade das isenções com o princípio da capacidade contributiva.

Elizabeth Nazar Carraza entende que tal princípio, assim como o da igualda-

de, não impede a concessão de isenções.41

Hugo de Brito Machado42 entende constitucional a isenção desde que se

37 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 26.

38 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: Sistema Tributá-rio, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1990, p. 90.

39 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 48.

40 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 26.

41 CARRAZA, Elizabeth Nazar. IPTU e progressividade. Igualdade e Capacidade Contributiva. Curitiba: Juruá, 1992, p. 81.

42 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 53.

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Revista da Ajufe 301

refira a imposto cujo fato gerador não constitua um indicador da capacida-

de contributiva do contribuinte. Adverte, todavia, que a isenção afrontará o

princípio se a hipótese tratar de imposto sobre o patrimônio ou sobre a ren-

da, cujo contribuinte é exatamente aquele que se revela possuidor de riqueza

ou renda. Vale a pena transcrever as suas impressões sobre o tema:

“É certo que nossa Constituição contém regras no

sentido de que o desenvolvimento econômico e social

deve ser estimulado (art. 170), e especificamente no

sentido de que a lei poderá, em relação à empresa de

pequeno porte constituída sob as leis brasileiras, e que

tenham sua sede a administração no País, conceder tra-

tamento favorecido (art. 170, IX). Não nos parece, to-

davia, sejam tais disposições capazes de validar regra

isentiva de imposto de renda, a não ser que se trate de

situações em que a isenção realiza o princípio da ca-

pacidade contributiva, como acontece com a concedida

às microempresas, ou aquelas que em geral são perti-

nentes ao considerado o mínimo vital”.

A isenção é, por assim dizer, uma tributação com sinal trocado. O princí-

pio da capacidade contributiva determina que mais tributos sejam cobrados

de quem tenha mais condições de pagá-los. Ora, a isenção pode funcionar

exatamente deste modo, ou seja, retirando parcela maior da tributação da-

queles com menor capacidade econômica.

José Souto Maior Borges assevera que uma das hipóteses para a utilização

de isenções respeitando-se a capacidade contributiva dos indivíduos é a que

determina a exoneração do mínimo vital para a sobrevivência. Argumenta que:

“Dentre as hipóteses de serem utilizadas isenções em

consideração à capacidade contributiva dos indivídu-

os, inclui-se a de exoneração do mínimo vital (isenção,

Page 302: Revista Direito Federal nº 94

Revista da Ajufe 302

p.ex., das pequenas rendas). A isenção leva em conta, aí,

peculiares circunstâncias denunciadoras de ausência

de capacidade contributiva. Sustenta-se, mesmo, que a

tributação termina onde começa o mínimo vital, inexis-

tindo nas hipóteses de rendas insignificantes, matéria

a ser tributada ”.43

Deflui do entendimento de Hugo de Brito Machado que quando o imposto

tiver hipótese de incidência relacionada ao patrimônio ou renda, a isenção

contrariaria o princípio se o contribuinte possuísse renda suficiente para

cumprir a sua obrigação sem ferir a sua capacidade econômica. A assertiva

está correta quando a isenção é concedida para um contribuinte em parti-

cular (ou determinados contribuintes) sem considerar a sua renda. Também

está correta quando a isenção é concedida, no mesmo montante, para todos

os indivíduos, sem particularizar as situações.

Em conclusão, também as isenções devem respeitar o princípio da capa-

cidade contributiva. De fato, as isenções, por integrarem o sistema constitu-

cional tributário brasileiro, devem submeter-se a todos os princípios que o

informam.44 No mesmo sentido, Regina Helena Costa anota que as isenções

técnicas – em oposição às políticas – são legitimamente reconhecidas e não

afrontam o princípio da capacidade contributiva, como, por exemplo, a des-

tinada a preservar o mínimo vital.

Voltando os olhos para a lei em discussão, tenho que ela contraria o prin-

cípio da capacidade contributiva seja qual for a perspectiva adotada.

Objetivamente considerado, o princípio da capacidade contributiva afir-

ma que temos que nos ater tão-somente à manifestação objetiva de riqueza

do contribuinte, como, por exemplo, possuir um imóvel, possuir um auto-

móvel e assim por diante. O proprietário de uma Ferrari não pode alegar não

ter auferido renda no período para não pagar o IPVA de seu veículo. Se as-

43 BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3a ed. São Paulo: Malhei-ros, 2011, p. 49.

44 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 226.

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Revista da Ajufe 303

sim não fosse, deveríamos reconhecer o direito de o devedor contumaz (não

honra as suas dívidas embora possua uma grande fortuna) não recolher o

tributo por falta de capacidade contributiva.45

Assim, o prêmio instituído é uma manifestação objetiva de riqueza e não

deve escapar à tributação. Independentemente da situação particular do be-

neficiário, o valor referente ao prêmio deveria ser incluído na relação de

rendimentos de sua declaração de Imposto de Renda e oferecido à tributa-

ção. O mero recebimento da quantia, dessa forma, revela a sua capacidade

contributiva.

A inconstitucionalidade da isenção ocorre mesmo se considerada a na-

tureza subjetiva do princípio. É certo que entre os beneficiários há joga-

dores que não foram bem-sucedidos e não alcançaram o reconhecimento

profissional e o financeiro esperados. São conhecidas as histórias daqueles

que enfrentaram muitas dificuldades financeiras, sem dinheiro sequer para

custear gastos com doenças na velhice.

Todavia, há entre os campeões mundiais jogadores extremamente ricos,

como, por exemplo, Carlos Alberto, Tostão e Pelé. Ora, se a capacidade con-

tributiva tem por finalidade que os mais ricos paguem mais impostos, não há

qualquer razão para isentar tais prêmios por eles auferidos.

7. Princípio da igualdade e a regra isentiva

O princípio da igualdade está estampado no artigo 150, I da Constituição.

O dispositivo veda que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Muni-

cípios instituam tratamento desigual entre contribuintes que se encontram

em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação

profissional ou função por eles exercida, independentemente da denomina-

ção jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

O princípio é dirigido tanto para o legislador ordinário, que deverá ob-

servá-lo para a elaboração de leis, quanto para a administração e o Judiciá-

rio, que irão aplicá-las. Temos assim a igualdade na lei e perante a lei.

45 BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 410.

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Revista da Ajufe 304

Dessa feita, não nos parece correto o entendimento46 de que a concessão

de isenções não deve ser submetida a controle judiciário por ser ato discri-

cionário fundado em juízo de conveniência e oportunidade, uma vez que tais

juízos não são absolutos, mas encontram seus limites na Constituição.

A redação do artigo deixa patente que a lei não poderá estabelecer dife-

renças entre contribuintes tendo por fundamento as suas condições pes-

soais ou critérios arbitrários. A própria Constituição traçou os parâmetros

que entendeu serem inadmissíveis para a criação de distinções: ocupação

profissional, função exercida e denominação jurídica dos rendimentos, tí-

tulos ou direitos.

Evidentemente, a lei não impede a criação de distinções, uma vez que o

princípio será concretizado, muitas das vezes, com o estabelecimento de dis-

tinções que procuram igualar as desigualdades. Celso Antônio Bandeira de

Mello ensina que são três os critérios que devem ser utilizados para aferição

da quebra do princípio.47 O primeiro diz respeito ao elemento (indetermina-

do) utilizado como fator de desigualação; o segundo se refere à correlação

lógica tomada em abstrato entre o fator eleito para o discrímen e a dispari-

dade estabelecida no tratamento; e o terceiro busca verificar a consonância

dessa correlação com os valores presentes na Constituição.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que o princípio da igualdade não é

violado desde que cumpridos os seguintes requisitos: i) a norma tratar da

mesma forma contribuintes que estejam em idêntica situação; ii) não houver

violação a nenhum direito fundamental; iii) nenhuma pretensão decorrer do

igual tratamento e iv) o tratamento diferenciado possuir uma fundamenta-

ção constitucional.48

Em diversas ocasiões, a nossa Corte Constitucional chancelou leis que

46 A concessão do benefício da isenção fiscal é ato discricionário, fundado em juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo, cujo controle é vedado ao Judiciário. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. RE 480107 AgR / PR – PARANÁ Relator(a): Min. EROS GRAU.

47 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p .21.

48 ÁVILA, HUMBERTO. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. O Princípio da Isonomia em Matéria Tributária. Teoria Geral da Obrigação Tributária. São Pau-lo: Malheiros, 2005, p. 742.

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Revista da Ajufe 305

instituíam tratamento privilegiado a determinadas indivíduos. Como exem-

plo trago à colação acórdão que considerou constitucional lei do Estado do

Espírito Santo49 que isentava do pagamento da taxa de inscrição para in-

gresso no serviço público os trabalhadores que ganhassem até três salários

mínimos por mês. O ministro Marco Aurélio ponderou que o dispositivo, ao

emprestar um tratamento desigual a desiguais, acabou por viabilizar a feitu-

ra do concurso por aqueles que não teriam condições para o recolhimento

da taxa sem prejuízo do próprio sustento e de sua família.

Observe-se que nessa hipótese foram respeitados todas as condições tra-

zidas pelo professor Bandeira de Mello. Elegeu-se uma categoria de pessoas

não individualizadas previamente – trabalhadores que ganham até três salá-

rios mínimos – e a elas foi concedida uma vantagem, a de não pagar a taxa

de inscrição de concurso público, havendo uma justificativa racional para a

diversidade de tratamento, qual seja, os que ganham menos têm menos con-

dições de arcar com os gastos referentes à inscrição. Por fim, tem-se que a

diversidade de tratamento realiza valores constitucionais.

A isenção relativa ao prêmio concedido pela Lei nº. 12.663/2012 aos

jogadores de futebol das seleções brasileiras campeãs das copas mundiais

masculinas da FifaIFA nos anos de 1958, 1962 e 1970 não satisfaz nenhum

dos requisitos acima enumerados. Comecemos a análise pelo elemento utili-

zado como fator de desigualação.

A lei não pode adotar um critério diferencial tão específico que acabe por

individualizar no presente e definitivamente o indivíduo que será atingido

pela norma. As leis gerais e abstratas não ofendem o princípio da igualdade.

O mesmo não ocorre com as individuais e as concretas.

A regra individual poderá ou não ser compatível com o princípio da

49 EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N° 6.663, DE 26 DE ABRIL DE 2001, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. O diploma normativo em causa, que estabelece isenção do pagamento de taxa de concurso público, não versa so-bre matéria relativa a servidores públicos (§ 1º do art. 61 da CF/88). Dispõe, isto sim, sobre condição para se chegar à investidura em cargo público, que é um momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público. Inconstitucionalidade formal não confi-gurada. Noutro giro, não ofende a Carta Magna a utilização do salário mínimo como critério de aferição do nível de pobreza dos aspirantes às carreiras púbicas, para fins de concessão do benefício de que trata a Lei capixaba nº 6.663/01. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

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Revista da Ajufe 306

igualdade no que diz respeito à singularização absoluta e atual do indivíduo.

Obedecerá ao princípio a regra que se referir a sujeito futuro, atualmente

indeterminado e indeterminável.50 A regra concreta, do mesmo modo, poderá

ou não se adequar ao princípio da igualdade. Será conforme o princípio se,

conquanto concreta, for geral.

O princípio da igualdade não apenas procura evitar a existência de per-

seguições, mas também objetiva impedir privilégios ou favoritismos, e essa

função é alcançada com a formulação de leis gerais. A lei em comento, to-

davia, singularizou os beneficiários, e em assim o fazendo, desrespeitou o

princípio, por não se reportar a sujeito futuro, atualmente indeterminado.

Além de pecar no que diz respeito à generalidade, a lei também contrariou a

isonomia em razão de seu caráter concreto.

Conquanto a determinabilidade dos sujeitos seja um indicativo da trans-

gressão da isonomia, tenho que a mais patente violação está na ausência de

correlação lógica entre o fator utilizado para o discrímen e a diversidade de

tratamento estabelecida pela lei. Ora, não há qualquer justificativa razoável

para a concessão de isenções pelo mero fato de alguém ter sido campeão

mundial de futebol. De fato, há outros desportistas, igualmente importantes

ou quiçá mais importantes, – cito, a guisa de exemplo, Adhemar Ferreira da

Silva, bicampeão olímpico do salto triplo – que, por justiça, deveriam ter sido

agraciados e não o foram.

Por fim, a isenção também não passa no terceiro teste, uma vez que a

Constituição expressamente veda a concessão de tratamento tributário dife-

renciado em razão da ocupação profissional ou função exercida pelos con-

tribuintes.

O Supremo Tribunal Federal51 não admite distinções em razão da profis-

são ou da ocupação profissional. Com efeito, foi julgado inconstitucional

dispositivo inserido na Lei Orgânica do Ministério Público do Rio Grande do

Norte que previa a concessão de isenção, em favor de seus membros, no que

50 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p .29.

51 ADI 3260 / RN - RIO GRANDE DO NORTE. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 29/03/2007.

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tange ao pagamento de custas judiciais, notariais e cartorárias. A decisão

considerou injustificado o privilégio aos membros do Parquet. Disse a Corte

que a concessão da isenção pelo mero fato de os indivíduos integrarem a

instituição viola o princípio da igualdade.

8. Ofensa à regra da especificidade

Não bastasse ter contrariado os princípios da capacidade contributiva,

republicano e da isonomia, o artigo 41 da Lei nº 12.663/02 ainda afrontou

a regra constitucional expressa no § 6.º do artigo 150 da Constituição, que

tem a seguinte redação:

“Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de

cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou re-

missão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só

poderá ser concedido mediante lei específica, federal,

estadual ou municipal, que regule exclusivamente as

matérias acima enumeradas ou o correspondente tri-

buto ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art.

155, § 2.º, XII, g”.

A redação primitiva do parágrafo foi modificada pela Emenda Constitu-

cional nº 3/93, cujo texto original exigia lei específica apenas nas hipóteses

de anistia e de remissão. A finalidade do parágrafo é evitar a inserção de

dispositivos estranhos em leis que não guardam qualquer relação com a tri-

butação, dispositivos que poderiam ser aprovados sem a devida reflexão e

debates necessários.

Em fim de governo ou às vésperas de eleição, tornou-se hábito por estes

brasis afora dar anistias e remissões fiscais sem motivos justos, a não ser o

de captar a simpatia do eleitor. Mancomunados, o Executivo e o Legislativo

utilizavam o patrimônio fiscal realizável, dispensando-o e dissipando-o com

intuitos eleitoreiros.52

52 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p 286.

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Tércio Sampaio Ferraz53 esclarece que o comando constitucional presen-

te no § 6° deve ser contextualizado, e, assim, as suas exigências devem ser

entendidas como garantias asseguradas ao contribuinte, conforme consta do

caput do artigo 150 da Constituição. O dispositivo constitui uma restrição

ao poder normativo para a proteção do contribuinte contra a discriciona-

riedade, ou seja, impede, por exigência de lei, que exceções sejam abertas ao

arbítrio da autoridade concedente, evitando-se ilegítimos favorecimentos.

A lei deve ser específica. O preceito é específico quando se dirige a deter-

minados destinatários ou se refere a um objeto em particular (singulariza-

ção da matéria). Será específica a lei que conceder anistia geral aos proprie-

tários de usinas de açúcar (especificidade pelo destinatário), como também

será específica a lei do IPI que conceder isenção do imposto aos taxistas

(especificidade pela matéria). A exigência de especificidade, em ambos os

sentidos, é coerente com os objetivos do preceito constitucional de garantir

o contribuinte contra o tratamento igual de situações desiguais ou de sujei-

tos em situações desiguais.

Além de específica a lei deve ser exclusiva, que tem o sentido de uma

concentração temática. A exclusividade busca prevenir que as matérias enu-

meradas no parágrafo (remissão, anistia, isenção, etc.) sejam tratadas dentro

de um contexto no qual elas não possuam nenhum significado.

À vista do exposto, é fácil perceber que a denominada Lei Geral da Copa

(Lei nº. 12.663/2012) não poderia conceder a isenção do prêmio que insti-

tuiu, pois não é nem específica nem exclusiva, estando o artigo 41 totalmen-

te dissociado do restante das matérias ali tratadas.

9. Conclusões

1. O artigo 41 da Lei nº. 12.663/2012, que dispensa do pagamento do

Imposto de Renda o prêmio de R$ 100.000,00, estabelecido nos artigos 37

e 38 da mesma lei, é uma regra isentiva. Tal regra ataca a funcionalidade da

regra-matriz tributária comprometendo-lhe o conseqente no que se refere

ao sujeito passivo.

53 http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/36

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2. O artigo fere de morte o princípio republicano, pois não há qualquer

justificativa razoável para não submeter à tributação do Imposto de Renda

o prêmio instituído. O princípio republicano não apenas estabelece uma re-

lação de igualdade entre os contribuintes, como também proíbe categorica-

mente vantagens fiscais com fundamento na profissão do indivíduo.

3. O prêmio é uma manifestação objetiva de riqueza e não deve esca-

par à tributação, pois o mero recebimento da quantia já revela a capacidade

contributiva do indivíduo. Haverá ofensa à capacidade contributiva mesmo

que seja considerada a natureza subjetiva do princípio, haja vista a situação

econômica de vários dos beneficiados.

4. Não há correlação lógica entre o fator utilizado para o discrímen e a

diversidade de tratamento estabelecida pela lei, não podendo ser conside-

rado razoável para a diferenciação o mero fato de alguém ter sido campeão

mundial de futebol.

5. A isenção concedida pela lei não é nem específica nem exclusiva, o que

afronta o artigo 150, § 6º, da Constituição Federal.

10. Referências bibliográficas

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