Revista Direito Federal nº 94

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Direito Federal Revista da Ajufe

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  • Direito FederalRevista da Ajufe

  • Associao dos Juzes Federais do Brasil

    Ano 27 - Nmero 941 semestre de 2014

  • Utilidade Pblica FederalDecreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p.15057) Presidente: Antnio Csar BochenekDiretor da revista: Jos Antonio Lisba NeivaEdio: Lcio VazIlustraes: Kleber SalesProjeto Grfico e diagramao: Vaz Comunicao Reviso: Gabriela Artemis Impresso e Acabamento: Athalaia Grfica e Editora Periodicidade: semestralObs.: Os textos so de responsabilidade de seus autores.

    Associao dos Juzes Federais do BrasilSHS Quadra 6, Bloco E, Conj. A, sala 1305 a 1311

    Brasil 21, Edifcio Business Center Park 1,Braslia-DF CEP 70322-915

    Tel.: (61) 3321-8482Fax: (61) 3224-7361

    ISSN 1676-2320

  • Antnio Csar Bochenek

    Candice Lavocat Galvo Jobim

    Eduardo Andr Brando Fernandes

    Fernando Marcelo Mendes

    Rodrigo Machado Coutinho

    Andr Lus Maia Tobias Granja

    Roberto Carvalho Veloso

    Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni

    Alexandre Ferreira Infante Vieira

    Jos Antonio Lisba Neiva

    Marcel Citro de Azevedo

    Maria Divina Vitria

    Raquel Coelho Dal Rio Silveira

    Jos Marcos Lunardelli

    Jos Arthur Diniz Borges

    Jos Maximiliano Machado Cavalcanti

    Murilo Brio da Silva

    Marianina Galante

    Marcelle Ragazoni Carvalho

    Frederico Jos Pinto de Azevedo

    Cristiane Conde Chmatalik

    Clara da Mota Santos Pimenta Alves

    Helder Teixeira de Oliveira

    Paulo Csar Villela S. Lopes Rodrigues

    Srgio Murilo Wanderley Queiroga

    Leonardo Vietri Alves de Godoi

    Andr Prado de Vasconcelos

    Roberto Fernandes Junior

    Mrcia Vogel Vidal de Oliveira

    Alessandro Diafria

    Carlos Felipe Komorowski

    Jalsom Leandro de Sousa

    Presidente

    Vice-presidente da 1 Regio

    Vice-presidente da 2 Regio

    Vice-presidente da 3 Regio

    Vice-presidente da 4 Regio

    Vice-presidente da 5 Regio

    Secretrio-geral

    Primeira secretria

    Tesoureiro

    Diretor da Revista

    Diretor Cultural

    Diretora Social

    Diretora de Relaes Internacionais

    Diretor de Assuntos Legislativos

    Diretor de Relaes Institucionais

    Diretor de Assuntos Jurdicos

    Diretor de Esportes

    Diretora de Assuntos de Interesses dos Aposentados

    Diretora de Comunicao

    Diretor Administrativo

    Diretora de Tecnologia da Informao

    Coordenadora de Comisses

    Diretor de Prerrogativas

    Suplente

    Suplente

    Suplente

    Suplente

    Suplente

    Membro do Conselho Fiscal

    Membro do Conselho Fiscal

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    Membro do Conselho Fiscal (Suplente)

    Diretoria da AjufeBinio 2014/2016

  • Niber Pontes de Almeida

    Aloysio Cavalcanti Lima

    rico Rodrigo Freitas Pinheiro

    Jaiza Maria Pinto Fraxe

    Cynthia de Araujo Lima Lopes

    Jlio Rodrigues Coelho Neto

    Maria Candida Carvalho M. de Almeida

    Marcelo da Rocha Rosado

    Marcos Silva Rosa

    Pablo Zuniga Dourado

    Regis de Souza Arajo

    Renato Toniasso

    Silvio Coimbra Mourth

    George Ribeiro da Silva

    Bianor Arruda Bezerra Neto

    Patrcia Helena Daher Lopes Panasolo

    Polyana Falco Brito

    Marina Rocha Cavalcanti Barros Mendes

    Leonardo da Costa Couceiro

    Orlan Donato Rocha

    Marcelo Roberto de Oliveira

    Herculano Martins Nacif

    Gilberto Pimentel de Mendona G. Junior

    Rafael Selau Carmona

    Bruno Csar Lorencini

    Gilton Batista de Brito

    Denise Dias Dutra Drumond

    Acre

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    Distrito Federal

    Esprito Santo

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    Par

    Paraba

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    Rio Grande do Sul

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    Roraima

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    So Paulo

    Sergipe

    Tocantins

    Colgio de Delegados Seccionais

  • Colgio de Delegados Seccionais

    Palavra do diretor............................................................................................................13

    Seo de Doutrina...........................................................................................................15

    A proteo famlia, maternidade e s crianas e aos adolescentes, no pacto interna-cional dos direitos econmicos, sociais e culturais de 1966...........................................17

    Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorrios maculados ............37

    O terror jurdico-ditatorial da suspenso de segurana e a proibio do retrocesso no estado democrtico de direito..........................................................................................71

    A tutela das criaes intelectuais e a existncia do direito de autor na antiguidade clssica .......91

    Direito, Soberania e Efetividade Jurdica.......................................................................111

    A execuo de decises judiciais contra a administrao pblica em uma perspectiva comparada .....................................................................................................................137

    Os efeitos da dualidade de instncias no direito antitruste brasileiro e breve anlise jurisprudencial...............................................................................................................161

    Uma espectrografia ideolgica do debate entre garantismo e ativismo....................177

    Da ofensa do voto duplo aos princpios constitucionais da igualdade e do Estado De-mocrtico de Direito......................................................................................................201

    Estados Liberal, Social e Democrtico de Direito: noes, afinidades e fundamentos..............223

    Reflexes sobre o auxlio direto: fundamentos normativos e posio jurisprudencial........245

    A igualdade no pas do futebol.............................................................................................281

    ndice

  • Caros associados,

    com grande honra e satisfao que apresento mais uma edio

    da Revista de Direito Federal, sempre com ampla diversidade temtica,

    abarcando os diferentes ramos jurdicos, e trazendo discusses sempre

    atuais, objetivas e de destacada importncia prtica, especialmente no

    mbito federal.

    No campo jusfilosfico e da Teoria Geral do Direito, interessante re-

    flexo acerca do conceito de soberania e da importncia do Estado na

    concretizao do Direito, garantindo-lhe efetividade. Destacam-se, ain-

    da, estudo acerca dos Estados Liberal, Social e Democrtico, com a indi-

    cao de seus pontos de contato e suas estruturas poltico-econmicas,

    bem como de suas contribuies para o Estado Democrtico de Direito,

    alm de relevante artigo que trata da influncia das ideologias polticas

    sobre a forma como se enxerga o processo, com crticas impreciso

    terica que domina o debate entre garantismo e ativismo.

    O Direito Processual ganha relevo em estudo de Direito Comparado

    referente execuo contra a Administrao Pblica, a partir da anlise

    dos sistemas alemo, norte-americano, espanhol, portugus e argenti-

    no, com proposta de superao do dogma tradicional da impenhora-

    bilidade dos bens pblicos, com vistas a garantir maior efetividade

    execuo forada em face da Fazenda Pblica. Ainda, surge relevante

    reflexo acerca do contexto ditatorial do nascimento do instituto da

    suspenso de segurana (Lei n 4.348/64), posteriormente ampliado

    pela Lei n 8.437/92, no contexto de bloqueio dos cruzados do Plano

    Collor, bem como questionamento quanto constitucionalidade formal

    da MP n 2.180-35 e, em relao ao Direito Ambiental, demonstra-se a

    preocupao com a proliferao abusiva destes incidentes, o que pode

    ocasionar o amesquinhamento da atuao do Poder Judicirio na con-

    cretizao do comando contido no art. 225, caput, da CRFB/88.

    Palavra do Diretor

  • O Direito Internacional mereceu destaque em artigo relacionado ao

    tratamento do Direito de Famlia no Pacto Internacional dos Direitos Eco-

    nmicos, Sociais e Culturais de 1966 e seu reflexo no ordenamento jur-

    dico constitucional ptrio, bem como em estudo relativo aos instrumen-

    tos de cooperao jurdica internacional, em especial do auxlio direto,

    importante mecanismo de combate aos delitos transnacionais, com cr-

    ticas ao modelo atual, institudo pela Resoluo n 09/2005 do Superior

    Tribunal de Justia em razo da inrcia legislativa.

    A Propriedade Intelectual ganha espao com um panorama histrico

    do tratamento dos direitos do autor na Antiguidade Clssica, com breve

    estudo do tema na Grcia Antiga e no Direito Romano.

    No que concerne ao Direito Econmico, pertinente o trabalho sobre

    os limites da atuao do Judicirio no controle das decises do CADE,

    destacando, por um lado, a importncia da atuao dos Tribunais na

    defesa da ordem econmica e, de outra banda, a necessidade de auto-

    -conteno, sob pena de se legitimar a recorrente substituio do en-

    tendimento do CADE pela orientao das Cortes Federais, o que, em l-

    tima anlise, pode ocasionar o enfraquecimento do Sistema Brasileiro

    de Defesa da Concorrncia.

    No tocante ao Direito Penal, surge nova abordagem acerca do crime

    de lavagem de dinheiro, com enfoque no exame da teoria da cegueira

    deliberada - construo jurisprudencial norte-americana que se aproxi-

    ma do instituto do dolo eventual - ainda incipiente na doutrina ptria, e

    da teoria dos honorrios maculados, oportunidade em que se examina a

    possibilidade de responsabilizao penal do advogado que recebe recur-

    sos sabidamente oriundos de infraes penais.

    Na esfera dos processos administrativos tributrios, judicioso artigo

    examina a constitucionalidade do voto duplo adotado pelo Regimento In-

    terno do CARF em caso de empate no julgamento de recurso voluntrio,

    sob a tica dos princpios da igualdade e do Estado Democrtico de Direito.

    Least but not last, em tempos de Copa do Mundo, destaca-se inte-

    ressante artigo questionando a regra isentiva criada pelo art. 41 da

  • Lei Geral da Copa - que afastou a incidncia de imposto de renda e de

    contribuies previdencirias sobre os prmios pagos aos campees

    mundiais de 1958, 1962 e 1970 -, sob a tica do princpio da isonomia

    e de seus postulados constitucionais-tributrios, cuja inconstituciona-

    lidade fora, inclusive, arguida pela Procuradoria Geral da Repblica na

    ADI 4.946/DF.

    Tenho convico de que, mais uma vez, a qualidade dos trabalhos certa-

    mente agradar ao nvel de exigncia e qualificao de nossos associados.

    Atenciosamente,

    Jos Antonio Lisba Neiva

  • Seo de Doutrina

  • A proteo famlia, maternidade e s crianas e aos adolescentes, no pacto internacionaldos direitos econmicos, sociais e culturais de 1966

  • Revista da Ajufe 20

    Marcelo Barbi GonalvesJuiz federal substituto da Subseo de Alagoas/AL e

    mestrando em Direito Pblico na UFAL

    Resumo: O presente artigo aborda a influncia do artigo 10 do Pacto In-

    ternacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de 1966 na Cons-

    tituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988.

    Palavras-chave: Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Proteo e

    assistncia maternidade, famlia e crianas e adolescentes. Constituio

    Federal de 1988.

    Abstract: This article analyzes the influence of the article ten from the

    International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights of 1966 in

    the Brazil Constitution of 1988.

    Keywords: Economic, Social and Cultural Rights. Protection to the ma-

    ternity, family and children. International Covenant. Brazil Constitution.

    1. Introduo

    O art. 10 do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

    de 1966 (doravante PIDESC) prev o dever de os Estados participantes reconhe-

    cerem a importncia e dar a devida proteo e assistncia famlia, s mes e s

    crianas e aos adolescentes.

    Nesse pensamento, o Brasil ratificou, em 1992, o citado Pacto, comprometen-

    do-se a tutelar a pessoa humana em sua concretude, ou seja, como ser econmico,

    social e culturalmente situado, frente ao novo modelo econmico neoliberal que

    regurgitava pelo mundo.

    A Constituio Federal de 1988 consagrou vrios direitos, impondo deveres ao

    Estado a fim de que adotasse todas as medidas necessrias para garanti-los, assim

    como o fez na legislao infraconstitucional. No entanto, entre os vrios direitos

  • Revista da Ajufe 21

    previstos, quais, de fato, se harmonizam perfeitamente com o art. 10 do PIDESC?

    2. Consideraes iniciais: uma viso do objetivo do pacto internacional

    dos direitos ecnomicos, sociais e culturais de 1966

    2.1 Notas introdutrias

    Os pactos, ou tratados, existem desde a Antiguidade clssica, sendo consagra-

    dos como fonte do Direito Internacional aps o Tratado de Paz de Vestflia. O

    direito dos tratados, como assevera Rezek, uma parte essencial do Direito das

    Gentes, uma vez que repousa sobre o consentimento dos povos, sendo certo que

    at o fim do sculo XIX os tratados eram concretizados nas formas do direito

    consuetudinrio. Veja-se:

    O direito internacional repousa sobre o consenti-

    mento. Os povos assim compreendidas as comunidades

    nacionais, e acaso, ao sabor da histria, conjuntos ou fra-

    es de tais comunidades propendem, naturalmente,

    autodeterminao. Organizam-se, to cedo quanto podem,

    sob a forma de Estados, e ingressam numa comunidade

    internacional carente de organizao centralizada. Tais as

    circunstncias, compreensvel que os Estados no se su-

    bordinem seno ao direito que livremente reconheceram

    ou construram. 1

    O conceito de tratado no engendra significativa divergncia entre os doutri-

    nadores, pois grande parte concorda que se trata de um acordo formal, escrito e

    destinado a produzir efeitos entre seus participantes.

    Nesse sentido, Carlos Roberto Husek diz que: Tratado o acordo formal con-

    cludo entre os sujeitos de Direito Internacional Pblico destinado a produzir

    efeitos jurdicos na rbita internacional.2 Paulo Henrique Gonalves Portela, por

    1 Rezek, Jos Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 7.

    2 HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Pblico. So Paulo: Malheiros, 1995, p. 125.

  • Revista da Ajufe 22

    sua vez, vai mais alm, trazendo o conceito de tratado adotado na Conveno de

    Viena sobre o Direito dos Tratados em 1969:

    O nosso conceito parte da noo fixada pelo artigo 2,

    1, a, da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tra-

    tados, de 1969, que estabeleceu que tratado significa um

    acordo internacional concludo por escrito entre Estados

    e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um ins-

    trumento nico, quer de dois ou mais instrumentos cone-

    xos, qualquer que seja a sua denominao especfica. 3

    A doutrina, conforme aduz Portela, elenca um rol com uma srie de espcies

    de tratados, cada qual com denominao adequada a cada situao diferente nas

    relaes internacionais, diante do contedo do acordo ou do interesse que se

    pretende. No entanto, a nomenclatura adotada no influencia o carter jurdico

    do instrumento, no havendo nenhuma interferncia no contedo caso tenha o

    nome de pacto ou tratado.

    Por derradeiro, os tratados no so meras declaraes de carter poltico e

    no vinculante. Objetivam, na realidade, produzir efeitos jurdicos, modificativos,

    extintivos ou constitutivos de obrigaes e direitos, possibilitando, ainda, sanes

    face ao seu descumprimento. Assim se posiciona Rezek:

    A produo de efeitos de direito essencial ao tratado,

    que no pode ser visto seno na sua dupla qualidade de

    ato jurdico e de norma. O acordo formal entre Estados

    o ato jurdico que produz a norma, e que, justamente por

    produzi-la, desencadeia efeitos de direito, gera obrigaes

    e prerrogativas, caracteriza, enfim, na plenitude de seus

    dois elementos, o tratado internacional. 4

    3 PORTELA, Henrique Gonalves Paulo. Direito Internacional Pblico e Privado. 3 ed. Bahia: Juspodivm, 2011, p. 89.

    4 Op. cit., p. 72.

  • Revista da Ajufe 23

    2.2 O surgimento do PIDESC

    Ao longo da histria da humanidade, medida que o poder de determinados

    grupos de indivduos crescia, a desigualdade social comeava a medrar na mes-

    ma proporo do desenvolvimento econmico, social e cultural dos povos. Com

    o passar do tempo, as desigualdades sociais se tornaram mais contundentes e

    socialmente injustas, percepo essa sentida notadamente com o aumento das re-

    laes comerciais e a consolidao do capitalismo no fim do sc. XIX.

    Mesmo com a Declarao Universal dos Direito Humanos, promulgada em

    10 de dezembro de 1948, alm de outros tratados substancialmente significati-

    vos para a proteo dos indivduos surgidos aps a Primeira e a Segunda Gran-

    de Guerra Mundial, era necessria, frente ao modelo econmico neoliberal, a

    constituio de um instrumento internacional que permitisse ao ser humano

    gozar no s de seus direitos civis e polticos, mas tambm dos direitos econ-

    micos, sociais e culturais.

    Assim, em 16 de dezembro de 1966, na Assembleia Geral das Naes Uni-

    das, foi institudo o PIDESC, sendo ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de

    1992 e tendo entrado em vigor no pas em 06 de julho do mesmo ano pelo

    Decreto n 591/92.

    2.3 O objetivo do PIDESC

    O referido tratado tem por escopo a proteo dos direitos econmicos, sociais

    e culturais, devendo os Estados assegurarem o gozo destes aos seus cidados,

    por esforos prprios ou pela cooperao da prpria sociedade internacional,

    utilizando todos os meios econmicos e tcnicos possveis.

    Conquanto tais direitos devam ser observados sem qualquer discriminao,

    mas tendo em vista a situao econmica dos pases em desenvolvimento, o

    tratado prev que os Estados podero aplicar os direitos acordados no Pacto

    de acordo com um eventual quadro de escassez oramentria, limitando, v.g, os

    direitos dos estrangeiros.5

    5 Artigo 2 - 1. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tan-to por esforo prprio como pela assistncia e cooperao internacionais, principalmente nos planos econmico e tcnico, at o mximo de seus recursos disponveis, que visem a

  • Revista da Ajufe 24

    O PIDESC consagrou direitos em diferentes reas, mas intimamente interliga-

    dos busca do respeito aos direitos que garantam, sem discriminaes, a digni-

    dade de todas as pessoas, atravs da garantia de direitos laborais, de existncia do

    indivduo, da sade, educao e da famlia.

    No mbito do direito laboral, o tratado consagrou a adoo de medidas estatais

    voltadas para o desenvolvimento econmico e a formao tcnica e profissional

    dos trabalhadores. Alm disso, nessa mesma seara, cristalizou: a liberdade sindical

    mediante o direito de fundar sindicatos, federaes e confederaes, tanto nacio-

    nais quanto internacionais; condies de emprego justas e favorveis, incluindo

    remuneraes equitativas que garantam a todos os trabalhadores dignidade; e a

    proteo das mulheres e das crianas, com um especial destaque maternidade.

    Tratou, ainda, sobre a qualidade de vida do homem, prevendo o direito

    alimentao, vestimenta e moradia adequadas. No mais, versou sobre a

    tutela sade, bem como a obrigao do Estado de tomar medidas voltadas

    diminuio da mortalidade infantil; a busca pelo pleno desenvolvimento da

    personalidade humana; a promoo do direito paz e tolerncia entre todos

    os grupos de indivduos.

    Em face a este manancial de bens tutelados, destaca-se na anlise aqueles en-

    campados no art. 10, a saber, o direito famlia, s mes durante a maternidade e

    s crianas e adolescentes.

    3. O art. 10 Do pacto no ordenamento jurdico brasileiro

    3.1 Da proteo e assistncia famlia6

    assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exerccio dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoo de medidas legislativas. 2. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enun-ciados se exercero sem discriminao alguma por motivo de raa, cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situao eco-nmica, nascimento ou qualquer outra situao. 3. Os pases em desenvolvimento, levando devidamente em considerao os direitos humanos e a situao econmica nacional, pode-ro determinar em que medida garantiro os direitos econmicos reconhecidos no presente Pacto queles que no sejam seus nacionais.

    6 Art. 10 - Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que: 1 Uma proteo e uma assistncia mais amplas possveis sero proporcionadas famlia, que ncleo elementar natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista sua formao e no tempo

  • Revista da Ajufe 25

    Ainda que o PIDESC tenha sido ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,

    poca da concepo da Carta Poltica de 1988, os constituintes j possuam o

    entendimento de que a famlia era um dos pilares essenciais ao desenvolvimento

    de um pas. O Estado Democrtico de Direito no poderia ser construdo sem dar

    a devida importncia e zelo a um dos meios de solidificao de uma nao funda-

    mentada na democracia.

    Dessa forma, no entendimento dos Founding Fathers, a famlia merecia um

    destaque especial na nova Constituio, realizando a constitucionalizao do

    instituto familiar e consagrando mecanismos de proteo e assistncia famlia,

    especialmente no campo da seguridade social.7

    Ressalte-se, ainda, no que diz respeito s relaes familiares, que nada foi mais

    adiantado do que a legislao previdenciria, por acolher como legtimos depen-

    dentes do segurado aqueles decorrentes de unies de fato ou de relaes no

    matrimoniais. Nessa linha de inteleco, veja-se:

    Singularmente inovador, para no dizer revolucion-

    rio, o captulo da constitucionalizao da famlia, um ter-

    reno que no passado estava entregue, quase por inteiro,

    livre discrio dos seus integrantes, com destaque para a

    figura paterna, na condio de chefe e condutor dos que

    gravitavam a seu redor, no s a esposa e os filhos, mas

    tambm aqueles que se relacionavam com ele por vnculos

    de dependncia econmica, o que, tudo somando e guar-

    durante o qual ela tem a responsabilidade de criar e educar os filhos. O casamento deve ser livremente consentido pelos futuros esposos.

    7 Nesse panorama, merece destaque a legislao previdenciria, que muito antes da Consti-tuio de 1988 e do Cdigo Civil de 2002 luz das ideias de unio de fato e de dependn-cia econmica j reconhecera como dependentes do segurado, para fins de proteo social, tanto a sua companheira quanto os filhos havidos com ela. No mesmo sentido, no julgamento do RE 66.347, o STF decidiu que a presuno de legitimidade da esposa, para fins de recebi-mento de penso por morte do segurado, no pode ser absoluta, inelutvel e invencvel pr-pria realidade, decaindo ela do direito de postular esse benefcio em favor da companheira do segurado porque ausente o seu maior pressuposto: a dependncia econmica daquele de quem de h muito deixara de depender. A esse respeito, ver, entre outros, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, A previdncia social brasileira e a sua nova organizao, Rio de Janeiro: Record, 1960, e a coletnea Legislao Brasileira de Previdncia Social (org.Victor Valerius), 4. ed. Rio de Janeiro: Grfica Editora Aurora, 1958.

  • Revista da Ajufe 26

    dadas as distncias, fazia lembrar o pater famlias do ve-

    lho Direito Romano, [...] nada foi mais avanado do que a

    nossa legislao previdenciria, que j nos primrdios foi

    sincera com as unies de fato, acolhendo como legtimos

    dependentes do segurado para dispensar-lhes a neces-

    sria proteo social , tanto a sua companheira quanto os

    filhos havidos dessa relao no matrimonial.8

    De relevo sublinhar que a Constituio de 1988 coloca os valores familiares

    como limite liberdade de programao de rdios e da televiso, conforme se

    encontra previsto no art. 221 da Carta Poltica.9 Dessa forma, possvel perceber

    a importncia da famlia no contexto do constituinte.

    A Constituio Federal, no obstante o explanado, constitucionalizou os meca-

    nismos de proteo famlia especialmente nos arts. 226 ao 230, alm da criana,

    do adolescente e do idoso, todos com a sua devida importncia para a famlia e

    para o desenvolvimento do Estado.

    O art. 226 da Constituio de 1988 estabelece que a famlia, base da socieda-

    de, tem especial proteo do Estado, revelando a proteo do instituto familiar

    pelo Estado, alm de cristalizar a importncia da mesma para a sociedade. No 3

    do mesmo dispositivo, reconhece-se a unio estvel entre o homem e a mulher

    como uma das entidades familiares, devendo a lei facilitar a sua converso em

    casamento para fins de proteo do Estado. Isso revela um pensamento muito

    avanado dos constituintes, tendo em vista que no ordenamento jurdico brasilei-

    ro a unio estvel no era legalizada, negando-se direitos pertinentes aos compa-

    nheiros por no serem reconhecidos como uma entidade familiar.

    O Cdigo Civil traz, em seu art. 1.723, um conceito bem mais aprofundado de

    8 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocncio Mrtires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425 ss.

    9 Art. 221. A produo e a programao das emissoras de rdio e televiso atendero aos seguintes princpios: I - preferncia a finalidades educativas, artsticas, culturais e informa-tivas; II - promoo da cultura nacional e regional e estmulo produo independente que objetive sua divulgao; III - regionalizao da produo cultural, artstica e jornalstica, con-forme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores ticos e sociais da pessoa e da famlia.

  • Revista da Ajufe 27

    unio estvel, expondo seus requisitos e ratificando que essa unio uma entida-

    de familiar nos termos da Carta Poltica: reconhecida como entidade familiar

    a unio estvel entre o homem e a mulher, configurada na convivncia pblica,

    contnua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituio de famlia.

    Hodiernamente, diante do enquadramento da unio estvel como uma entida-

    de familiar, os direitos que so originados de um casamento so estendidos aos

    companheiros. Como exemplo, tem-se os dependentes da primeira classe do Regi-

    me Geral da Previdncia Social RGPS, nos termos do art. 16 da Lei n 8.213/91:

    o cnjuge, o companheiro, a companheira.

    Alm dessas entidades, a Constituio Federal consagrou como entidade fami-

    liar aquela monoparental/unilinear, a qual compreende a formao de uma famlia

    por um dos pais e seus descendentes, conforme se depreende da simples leitura

    do 4 do art. 226 da Constituio Federal: Entende-se, tambm, como entidade

    familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

    Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinrio n 687432/

    MG, reconheceu que a unio entre pessoas do mesmo sexo merece a aplicao

    das mesmas regras e consequncias lgicas legtimas para a unio heteroafetiva.

    Entendeu a Suprema Corte que os homossexuais tm o direito constitucional de

    ter a sua unio estvel reconhecida como um instituto familiar, devendo receber

    igual proteo poltico-administrativo, legal e social.

    Acrescentou-se, ademais, que o instituto familiar originado da unio homo-

    afetiva no pode sofrer nenhum tipo de discriminao, sendo-lhes devidos os

    mesmos direitos, prerrogativas, benefcios e obrigaes inerentes s entidades

    familiares formadas pelo sexo distinto. Veja-se, neste diapaso, o seguinte excerto

    de lavra do ministro Luiz Fux:

    [...] Os homossexuais, por tal razo, tm direito de

    receber a igual proteo tanto das leis quanto do sis-

    tema poltico-jurdico institudo pela Constituio da

    Repblica, mostrando-se arbitrrio e inaceitvel qual-

    quer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que

    fomente a intolerncia, que estimule o desrespeito e que

    desiguale as pessoas em razo de sua orientao sexual.

  • Revista da Ajufe 28

    () A famlia resultante da unio homoafetiva no pode

    sofrer discriminao, cabendo-lhe os mesmos direitos,

    prerrogativas, benefcios e obrigaes que se mostrem

    acessveis a parceiros de sexo distinto que integrem uni-

    es heteroafetivas.

    Continuando os mecanismos de defesa da famlia, a Constituio, no 8 do

    art. 226, estabeleceu que o Estado dever garantir assistncia famlia na pes-

    soa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violncia

    no mbito de suas relaes.

    O ordenamento jurdico possui mecanismos de proteo tanto da mulher,

    da criana e do idoso. Hoje, tem-se: a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06),

    que traz uma especial proteo da mulher em casos de violncia domstica;

    o Estatuto da Criana e do Adolescente ECA (Lei 8.069/90), o qual busca a

    proteo efetiva da criana e do adolescente nos planos laboral, civil e penal;

    o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), protegendo o idoso do descaso pelas fa-

    mlias e sociedade, especialmente. Alm desses, existem outros mecanismos

    presentes na legislao brasileira que tm como fim proteger a famlia e os

    indivduos que a formam, dando-lhes a devida assistncia e proteo.

    Tambm constitucionalmente prevista a igualdade entre os cnjuges, di-

    tando que na sociedade conjugal os direitos e os deveres inerentes a mesma

    so exercidos de forma igual tanto pela mulher quanto pelo homem, nos ter-

    mos do art. 226 5 da CF, extinguindo o instituto do pater familias. No mais,

    o artigo 1.513 do Cdigo Civil, como forma de proteo, diz que: defeso a

    qualquer pessoa, de direito pblico ou privado, interferir na comunho de

    vida instituda pela famlia.

    Por fim, concretizando o reconhecimento aos direitos de proteo e as-

    sistncia famlia previstos no art. 10 do Pacto em exame, no artigo 226,

    1 e 2, da Carta de 1988, esto insculpidos a gratuidade da celebrao do

    casamento e o reconhecimento dos efeitos civis, nos termos da lei, do casa-

    mento no religioso.

  • Revista da Ajufe 29

    3.2 Da proteo e assistncia maternidade10

    O objetivo de um Estado Democrtico de Direito construir uma sociedade

    fundamentada na isonomia entre os seus indivduos, devendo-se garantir a igual-

    dade de tratamento com todos os direitos e obrigaes devidos respectivamente a

    cada um pertencente ao Estado.

    Nesse sentido, o Direito Internacional est fundado na igualdade entre os po-

    vos e todos que os constituem. No entanto, existem direitos que foram pactuados

    pelos Estados para garantir especial tratamento em relao s mulheres que pas-

    sam pelo perodo de gestao e depois do nascimento de seus filhos, pelo tempo

    suficiente para garantir os cuidados necessrios desses.

    Assim, o prprio Pacto buscou garantir uma proteo tanto s mulheres no pe-

    rodo da maternidade quanto s crianas e aos adolescentes, demonstrando que

    para ser alcanada a igualdade necessrio, em certos casos, haver a desigualdade.

    3.2.1 A legitimidade dos tratamentos especiais a determinados grupos

    pela Constituio Federal de 1988

    cedio que o ordenamento jurdico brasileiro encampa tratamento jurdico

    dspare face s desigualdades de fato de cada indivduo. nesse sentido que deve

    ser lido o artigo 193, o qual busca promover a igualdade de oportunidades que-

    les que sofreram discriminao durante toda a sua existncia.

    Para proteger os referidos grupos existem instrumentos, tais como o Estatuto

    da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), entre ou-

    tros vocacionados tutela de setores estigmatizados pela sociedade, com o delibe-

    rado escopo de igual-los em nvel de oportunidades aos demais grupos sociais.

    As medidas que so tomadas para o cumprimento da justia social e da igual-

    dade de oportunidades so idneas ao regime adotado pelo Estado brasileiro, um

    Estado Democrtico de Direito, bem como s especiais formas de proteo da

    mulher e de outros grupos. Assim define o regime adotado Jos Afonso da Silva:

    10 2. Deve-se conceder proteo s mes por um perodo de tempo razovel antes e depois do parto. Durante esse perodo, deve-se conceder s mes que trabalhem licena remunerada ou licena acompanhada de benefcios previdencirios adequados.

  • Revista da Ajufe 30

    A democracia, como realizao de valores (igualdade,

    liberdade e dignidade da pessoa) de convivncia humana,

    conceito mais abrangente do que o Estado de Direito, que

    surgiu como expresso jurdica democrtica liberal. A su-

    perao do liberalismo colocou em debate a sintonia entre

    o Estado de Direito e a sociedade democrtica. A evoluo

    desvendou sua insuficincia e produziu o conceito de Es-

    tado Social de Direito, nem sempre de contedo democr-

    tico. Chega-se agora ao Estado Democrtico de Direito que

    a Constituio acolhe no art. 1 como um conceito-chave

    do regime adotado [...] O Estado Democrtico de Direito re-

    ne os princpios do Estado Democrtico e do Estado de

    Direito, no como simples reunio formal dos respectivos

    elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo

    que os supera, na medida em que incorpora um compo-

    nente revolucionrio de transformao em status quo. Para

    compreend-lo, no entanto, teremos que passar em revista

    a evoluo e as caractersticas de seus elementos compo-

    nentes, para, no final, chegarmos ao conceito sntese e seu

    real significado. 11

    Alguns dos dispositivos da Magna Carta brasileira revelam o regime de es-

    pecial tratamento a ser adotado em face de alguns grupos sociais mais desfavo-

    recidos. Os fundamentos e os objetivos do Brasil consubstanciam-se na busca

    por uma sociedade justa, em que a dignidade da pessoa humana se encontra em

    primeiro lugar, com base sempre no princpio aristotlico da isonomia.

    Para ser possvel atingir o escopo sonhado pelos constituintes de uma justia

    social, necessria a discriminao positiva, sendo o agente promotor dessa o

    Estado. Em suma, no a disparidade de tratamento vedada pela Constituio,

    seno autorizada pela prpria Carta Poltica.

    11 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35 ed. So Paulo: Ma-lheiros, 2012, p. 112.

  • Revista da Ajufe 31

    Essa discriminao ocorre atravs de medidas estatais voltadas a certos gru-

    pos sociais desfavorecidos com a funo de igual-los aos demais. O Estado dis-

    crimina, mas no busca prejudicar e sim auxiliar aqueles que sofrem pela dispari-

    dade de oportunidades e proteg-los de circunstncias prejudiciais.

    Tem-se como exemplo de algumas dessas aes a Lei Maria da Penha (Lei 11.340),

    que protege as mulheres que sofrem agresses de seus companheiros no mbito do-

    mstico e familiar, bem como as formas de proteo da mulher no mercado de traba-

    lho estabelecido pela Constituio Federal e pela Consolidao das Leis Trabalhistas.

    3.2.2 Das protees s mes por um perodo de tempo razovel antes e

    depois do parto e dos benefcios previdencirios adequados

    A Constituio Federal, no art. 7, XX adjudicou proteo especfica ao merca-

    do de trabalho da mulher, dispondo que, entre outros direitos dos trabalhadores

    urbanos e rurais, dever, nos termos da lei, ser dada especial proteo do mercado

    de trabalho da mulher, mediante incentivos especficos.

    Nesse mesmo sentido, com a mesma viso dos sujeitos participantes do Pacto,

    o constituinte disponibilizou vrios mecanismos de proteo maternidade, ten-

    do grande reflexo na legislao infraconstitucional.

    A CF/88, no seu art. 10, II, b, dos Atos de Disposies Constitucionais Tran-

    sitrias, protege a me gestante com a proibio de dispensa arbitrria ou sem

    justa causa da empregada gestante, desde a confirmao da gravidez at 5 (cinco)

    meses aps o parto. No art. 7, inciso XVIII, estabelece a licena gestante, sem

    prejuzo do emprego e do salrio, com a durao de 120 (cento e vinte dias). Uma

    inovao constitucional que ampliou a antiga licena de 90 (noventa) dias.

    Nesse diapaso, a legislao infraconstitucional, a CLT, no art. 392, e a Lei do

    Regime Geral da Previdncia Social (Lei 8.213/91), no art. 71, preveem que a em-

    pregada gestante tem direito licena-maternidade de 120 (cento e vinte) dias,

    sem prejuzo do salrio e do emprego. Ainda, na CLT, nos 1 e 2 do dispositivo

    j citado, estabelece que a empregada gestante poder se afastar entre o 28 dia

    antes do parto at a ocorrncia desse, podendo ser aumentado de 2 (duas) sema-

    nas os perodos de repouso antes e depois do parto.

    gestante garantida, sem prejuzo do salrio e demais direitos, nos termos do

  • Revista da Ajufe 32

    art. 392, 4, I e II, da CLT, a transferncia de funo nos casos em que as condi-

    es de sade o exigirem, assegurada a retomada da funo anteriormente exerci-

    da, logo aps o retorno ao trabalho, bem como a dispensa no horrio de trabalho

    pelo tempo necessrio para a realizao de, no mnimo, 6 consultas mdicas e

    demais exames complementares.

    Aps o nascimento, para garantir os devidos cuidados com o beb, a CLT

    impe s empresas o dever de garantirem um espao para que as mes possam

    cuidar dos filhos de colo. O art. 400 impe que os locais destinados guarda

    dos filhos das operrias, durante o perodo de amamentao, devero conter, no

    mnimo, um berrio, uma saleta de amamentao, uma cozinha diettica e uma

    instalao sanitria.

    O art. 389, por sua vez, nos 2 e 3, atribui o dever de as empresas ins-

    talarem local apropriado onde seja permitido s empregadas guardarem sob a

    vigilncia e a assistncia seus filhos no perodo de amamentao, nos estabele-

    cimentos em que trabalharem, pelo menos, 30 (trinta) mulheres com mais de 16

    (dezesseis) anos, podendo ser suprido por creches distritais mantidas diretamente

    pelo empregador ou por convnio com outras entidades.

    Alm desses mecanismos, a CLT prever formas de garantia do emprego da ges-

    tante, consagrando, no art. 391, que a gravidez no constitui justo motivo para a

    resciso do contrato de trabalho da mulher, bem como veda que haja regulamentos

    de qualquer natureza restringindo os seus direitos em decorrncia desse estado.

    Nesse mesmo sentido, prev o art. 391-A, includo em 2013 pelo legislador, aps

    a pacificao jurisprudencial12 e doutrinria, a estabilidade provisria da gestante,

    nos termos do art. 10, II, b do ADCT, durante o prazo do aviso-prvio trabalhado

    ou indenizado, principalmente nos contratos de emprego por tempo determinado.

    H que se destacar, tambm, que a CF/88 consagrou, no campo previdencirio,

    12 Smula do TST n 244 - GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISRIA (redao do item III alterada na sesso do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012 DEJT di-vulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I - O desconhecimento do estado gravdico pelo empregador no afasta o direito ao pagamento da indenizao decorrente da estabilidade (art. 10, II, b do ADCT). II - A garantia de emprego gestante s autoriza a reintegrao se esta se der durante o perodo de estabilidade. Do contrrio, a garantia restringe-se aos salrios e demais direitos correspondentes ao perodo de estabilidade. III - A empregada gestante tem direito estabili-dade provisria prevista no art. 10, inciso II, alnea b, do Ato das Disposies Constitucio-nais Transitrias, mesmo na hiptese de admisso mediante contrato por tempo determinado.

  • Revista da Ajufe 33

    o dever de proteger a maternidade, especialmente a gestante, garantindo-lhe as-

    sistncia por meio da Previdncia Social.

    Art. 201. A previdncia social ser organizada sob a

    forma de regime geral, de carter contributivo e de filiao

    obrigatria, observados critrios que preservem o equil-

    brio financeiro e atuarial, e atender, nos termos da lei, a:

    [...] II - proteo maternidade, especialmente gestante;

    Dessa forma, o RGPS garantiu o salrio-maternidade s gestantes, sendo devido quan-

    do o parto ocorrer a partir do 6 ms ou na 23 semana de gestao, adoo de crianas,

    guarda judicial de crianas para fins de adoo e em casos de aborto no criminoso.

    Ressalta-se, tambm, como um dos mecanismos de proteo da materni-

    dade pelo ordenamento jurdico brasileiro baseado nos termos do pacto, a Lei

    11.770/08, que instituiu o Programa Empresa Cidad, destinado a prorrogar o

    prazo de licena-maternidade por mais 60 (sessenta) dias.

    Essa prorrogao, a ttulo de informao, ser garantida empregada da pes-

    soa jurdica que aderir ao referido programa, devendo ser requerida a prorroga-

    o pela gestante at o fim do primeiro ms aps o parto.

    Durante esse novo perodo, a empregada ter direito, nos termos do art. 3 da

    referida lei, sua remunerao integral, da mesma forma que os devidos no per-

    odo de percepo do salrio-maternidade, sendo que ser pago diretamente pelo

    empregador e no pela Previdncia Social.

    3.3 Da proteo e assistncia s crianas e aos adolescentes13

    O constituinte de 1988, na mesma toada do Pacto, consolidou no caput do art.

    13 3. Devem-se adotar medidas especiais de proteo e de assistncia em prol de todas as crianas e os adolescentes, sem distino por motivo de filiao ou qualquer outra condio. Devem-se proteger as crianas e os adolescentes contra a explorao econmica e social. O emprego de crianas e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos sade ou que lhes faam correr perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento nor-mal, ser punido por lei. Os Estados devem tambm estabelecer limites de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o emprego assalariado da mo de obra infantil.

  • Revista da Ajufe 34

    227 da CF/88 que dever da famlia, da sociedade e do Estado garantir criana,

    ao adolescente e ao jovem,14 com absoluta prioridade, o direito vida, sade,

    alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade,

    ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de sempre

    garantir a segurana deles de todas as formas de negligncia, discriminao, ex-

    plorao, violncia, crueldade e opresso.

    O Tratado, no item 3 do seu art. 10, na parte inicial, revela que os Estados re-

    conhecem que todas as crianas e os adolescentes merecem os mesmos direitos e

    garantias sem discriminaes, salvo em nome do princpio isonmico.

    Nesse raciocnio, a CF/88 estabeleceu, no 6 do art. 227, que os filhos, havi-

    dos ou no no casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualifica-

    es, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao. Bem

    traduz esse artigo Inocncio Mrtires Coelho:

    Quanto pessoa dos filhos, igualmente digna de lou-

    vor a determinao constitucional no sentido de que, havi-

    dos ou no dentro do casamento, ou por adoo, tero eles

    os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer

    designaes discriminatrias relativas filiao.15

    Outra forma de proteo constitucional das crianas e dos adolescentes foi o

    dever da criao de um estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos

    jovens, e a articulao de um plano nacional da juventude, de durao decenal,

    visando articulao das vrias esferas do poder pblico para a execuo das

    polticas pblicas voltadas para as crianas e os adolescentes.

    Com base nos princpios do Pacto e da Conveno dos Direitos da Criana

    de 1989, ratificado pelo Brasil em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criana e

    do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), norteado na Doutrina da Proteo Integral,

    essa estabelecendo o dever do Estado, da sociedade e da famlia de tomarem os

    14 O termo jovem no estava presente na redao original do texto da Carta Poltica, sendo acrescentada em 2010 pela Emenda Constitucional n 65.

    15 Op. cit., p. 1.426.

  • Revista da Ajufe 35

    devidos cuidados dos menores de forma absoluta, conforme j foi anteriormente

    estabelecido pelo Poder Constituinte no art. 227, dando-se assistncia e proteo

    necessrias para as crianas e os adolescentes.

    Valter Kenji Ishida leciona que o ECA, com base na Doutrina da Proteo Inte-

    gral, busca garantir todos os direitos especiais e especficos de todas as crianas

    e os adolescentes, alm de dar especial proteo a elas. uma forma de efetivao

    de todos os diretos fundamentais da criana e do adolescente e proteo, sem

    discriminao, garantindo-se os preceitos do pacto. Veja:

    Segundo a doutrina, o Estatuto da Criana e do Ado-

    lescente perfilha a doutrina da proteo integral, baseada

    no reconhecimento de direitos especiais e especficos de

    todas as crianas e adolescentes. Foi anteriormente previs-

    ta no texto constitucional, no art. 227, instituindo a chama-

    da prioridade absoluta. Constitui, portanto, em uma nova

    forma de pensar, com o escopo de efetivao dos direitos

    fundamentais da criana e do adolescente. A CF, em seu art.

    227, afastou a doutrina da situao irregular e passou a

    assegurar direitos fundamentais criana e ao adolescen-

    te. Tratou na verdade de uma alterao de modelos ou de

    forma de atuao. A doutrina da situao irregular limita-

    va-se basicamente a 3 (trs) matrias: (1) menor carente; (2)

    menor abandonado; (3) diverses pblicas.16

    No campo laboral, tanto a CLT quanto o ECA estabelecem situaes de pro-

    teo, cuidados e vedaes com os menores nas relaes de emprego, dentro da

    viso do item 3 do artigo 10 do pacto:

    Devem-se proteger as crianas e adolescentes contra

    a explorao econmica e social. O emprego de crianas

    e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos sa-

    16 ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criana e do Adolescente. 12 ed. So Paulo: Atlas, 2010, p. 1.

  • Revista da Ajufe 36

    de ou que lhes faam correr perigo de vida, ou ainda que

    lhes venham a prejudicar o desenvolvimento normal, ser

    punido por lei. Os Estados devem tambm estabelecer limi-

    tes de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o

    emprego assalariado da mo-de-obra infantil.

    A CF/88, como as citadas legislaes pertinentes, estabeleceu o mecanismo

    inicial de proteo ao trabalho do menor e definiu a idade de incio do trabalho

    e as vedaes. No art. 7, XXXIII, est a proibio do trabalho noturno, perigoso

    ou insalubre ao menor de 18 anos e de qualquer trabalho ao menor de 16 anos,

    ressalvado a partir de 14 anos na condio de aprendiz.

    Na CLT, o trabalho do menor no poder ser realizado em locais prejudiciais

    sua formao, ao desenvolvimento fsico, psquico, moral e social e em horrios e

    locais que no permitam a frequncia escola, nos termos do art. 403. Ainda, nos

    arts. 405, 407, prever que depender de prvia autorizao do juiz o trabalho rea-

    lizado nas ruas, praas e outros logradouros, sendo que o mesmo dever verificar

    se o trabalho indispensvel subsistncia do menor ou de seus pais, avs ou ir-

    mos, sem, em qualquer caso, prejuzo sua formao moral. Caso seja verificado

    que o trabalho prejudicial sade, ao desenvolvimento fsico ou moral, poder

    a autoridade competente obrigar o menor a sair da ocupao ou fazer com que o

    empregador o mude de funo.

    4. Concluso

    O constituinte de 1988, antes mesmo de o Estado brasileiro ratificar o pacto

    e dar-lhe vigncia, j tinha conscincia da imperiosa necessidade de dar especial

    proteo e assistncia famlia, s mes, antes e depois do parto, e s crianas e

    aos adolescentes.

    Destarte, as inovaes trazidas pela Constituio Federal de 1988, aps um

    longo perodo de tempo de regime ditatorial, revelam que o Brasil reconheceu

    e abraou os ideais do PIDESC, em especial o art. 10 desse, antes mesmo de sua

    adeso em 1992.

    O Pacto consagrou a proteo a diversos direitos que possuem reflexos nos

  • Revista da Ajufe 37

    campos social, econmico e cultural. Os direitos que foram expostos mostram que

    o legislador brasileiro, em respeito tanto CF/88 quanto ao Pacto, cumpriu com a

    misso, imposta pelo referido tratado, de dar a devida proteo e assistncia fa-

    mlia, s mes durante o perodo da maternidade e s crianas e aos adolescentes.

    Sem sombra de dvida, o Brasil consagra no plano do dever-ser os direitos

    consagrados no art. 10 do Pacto, em especial nos mbitos laboral, civil, previ-

    dencirio, entre outros, previstos os direitos e as garantias fundamentais para os

    grupos referidos no tratado.

    No obstante isso, so notrias as dificuldades para a aplicao da legislao.

    Muitas decorrem da falta de estrutura, corrupo, fraude e do sentimento ego-

    cntrico em prejuzo da coletividade. No entanto, no campo terico, importante

    exaltar todas as inovaes trazidas e reconhecer que o Brasil est caminhando de

    acordo com os fins que garantem a dignidade da pessoa humana.

    4. Referncias Bibliogrficas

    HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Pblico. So

    Paulo: Malheiros, 1995.

    ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criana e do Adolescente. 12 ed. So

    Paulo: Atlas, 2010.

    MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocncio Mrtires; BRANCO, Paulo

    Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2009.

    PORTELA, Henrique Gonalves Paulo. Direito Internacional Pblico e Pri-

    vado. 3 ed. Bahia: Juspodivm, 2011.

    REZEK, Jos Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

    SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35 ed.

    So Paulo: Malheiros, 2012.

  • Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorrios maculados

  • Revista da Ajufe 40

    Vlamir Costa Magalhes Mestre em direito penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Ps-graduado em Regulao e Direito Pblico da Economia pela Universidade de Coimbra/Portugal. Juiz Federal.

    Sumrio: 1. Relato histrico; 2. A contextualizao da lavagem de dinhei-

    ro no cenrio jurdico-penal contemporneo; 3. A realidade atual da lavagem

    de dinheiro; 4. Compliance: o dever de colaborao antilavagem; 5. A teoria

    da cegueira deliberada; 6. A teoria dos honorrios maculados; 7. Concluso;

    8. Referncias.

    Resumo: O estudo aborda a lavagem de dinheiro como espcie crimino-

    sa, abrangendo desde o seu histrico at a realidade atual. Neste aspecto,

    busca-se contextualizar o tema no cenrio do mundo globalizado, enfati-

    zando-se a responsabilidade de advogados e agentes econmico-financei-

    ros quanto colaborao no combate lavagem de dinheiro, sobretudo no

    tocante teoria da cegueira deliberada e teoria dos honorrios maculados.

    Palavras-chave: lavagem dinheiro cegueira deliberada honor-

    rios - maculados

    Abstract: The study deals with money laundering as criminal specie,

    ranging from its history to the present reality. In this regard, the author

    seek to contextualize the subject in the scene of a globalized world, em-

    phasizing the responsibility of lawyers and economic agents in combating

    money laundering, particularly as regards the theory of willful blindness

    and the theory of fees tainted.

    Keywords: laundering - money - blindness - willful - fees - tarnished

    A democracia liberal protege os direitos do homem e no os crimes do

    homem. Maldita seria a democracia liberal, se se prestasse a uma poltica de

  • Revista da Ajufe 41

    cumplicidade com a delinquncia.1

    1. Relato histrico

    A cincia penal enfrenta atualmente uma nova era da criminalidade marca-

    da pela organizao, internacionalidade e poderio econmico.2 As tendncias

    do sistema punitivo so, mais do que nunca, pautadas pelas nuances econ-

    mico-sociais. Neste contexto, a camuflagem do patrimnio de origem ilcita

    tem se revelado como instrumento de perpetuao do ciclo vicioso de refinan-

    ciamento da delinquncia moderna, motivo pelo qual significativa parcela da

    doutrina vem contrariando o j corriqueiro discurso de crtica ao alargamento

    temtico do ordenamento criminal, uma vez que se reconhece no combate

    lavagem de dinheiro um claro exemplo de expanso razovel3 do Direito Penal.

    Em linhas gerais, pode-se afirmar que o encobrimento do produto patrimo-

    nial de infraes penais resume a essncia do que se convencionou chamar

    de lavagem de dinheiro e a tipificao penal desta conduta no representou

    a simples adio de um delito ao catlogo legal, mas sim a implementao de

    indita poltica de enfrentamento das graves e incisivas manifestaes crimi-

    1 Cf. HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Cludio Heleno. Comentrios ao Cdigo Penal, vol. I, tomo I: arts. 1o ao 10. 5a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 67.

    2 SILVA-SNCHEZ, Jess-Maria. A expanso do direito penal: aspectos da poltica criminal nas sociedades ps-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. So Paulo: RT, 2002, p. 80.

    3 Pela pertinncia do trecho, vale a transcrio: O que interessa ressaltar neste momento to-somente que existe, seguramente, um espao de expanso razovel do Direito Penal, ainda que, com a mesma convico prxima da certeza, se deva afirmar que tambm se do importantes manifestaes da expanso desarrazoada. A ttulo puramente orientativo: a en-trada macia de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotrfico) em um determinado setor de economia provoca uma profunda desestabilizao desse setor, com importantes repercusses lesivas. , pois, provavelmente razovel que os responsveis por uma injeo macia de dinheiro negro em um determinado setor da economia sejam san-cionados penalmente pela comisso de um delito contra a ordem econmica. Mas, vejamos, isso no faz, por si s, razovel a sano penal de qualquer conduta de utilizao de pequenas (ou mdias) quantidades de dinheiro negro na aquisio de bens ou retribuio de servios. A tipificao do delito de lavagem de dinheiro , enfim, uma manifestao de expanso razo-vel do Direito Penal (em seu ncleo, de alcance muito limitado) e de expanso irrazovel do mesmo (no resto das condutas, em relao as quais no se possa afirmar em absoluto que, de modo especfico, lesionem a ordem econmica de modo penalmente relevante). Cf. SILVA--SNCHEZ, Jess-Mara, op. cit., p. 28.

  • Revista da Ajufe 42

    nosas que, de regra, precedem ou envolvem a lavagem de dinheiro.4

    H milnios, o Cdigo de Hamurabi j punia, com a pena de morte, aquele

    que se encontrasse na posse ou fruio de bens da Corte, da Igreja ou de es-

    cravos de terceiros, sem a devida comprovao da licitude da aquisio.5 H,

    no entanto, quem aponte que a incriminao mais assemelhada lavagem

    teve origem na China, onde, h cerca de trs mil anos, era previsto o sancio-

    namento penal de mercadores que transferissem a terceiros bens sonegados

    perante o Estado.6

    Se por um lado, perdem-se no tempo as tentativas de fazer valer o dita-

    do segundo o qual o crime no compensa - ou no deve compensar -, por

    outro lado, recente o processo de sofisticao da reciclagem patrimonial.

    Na interessante dico de AMBOS,7 a mentalidade reitora da vigente poltica

    criminal pretende que o criminoso seja obrigado a permanecer sentado em

    seu capital sujo, o que deve se dar, segundo a complementao de MORO,8

    at que o Estado lhe tome o assento.

    extensa a variedade de denominaes aplicadas dissimulao de bens

    decorrentes da prtica de infraes penais, sendo colacionadas pela doutrina

    especializada as seguintes: blanchiment dargent (Frana e Blgica); blanchis-

    sage (Sua); gelwsche (Alemanha); blanqueo de capitales (Espanha); ricicla-

    ggio di denaro sporco (Itlia); lavado de dinero (Argentina); money laudering

    (EUA e Reino Unido) e branqueamento de capitais (Portugal). Desta exposio,

    constata-se que a preocupao em torno do tema est longe de ser exclusiva

    de determinado pas ou regio, sendo, ao revs, compartilhada universalmente.

    Acolheu-se no Brasil a expresso lavagem de dinheiro, o que, segundo a

    4 MORO, Srgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 16.

    5 GIORDANI, Mrio Curtis. Histria do Direito Penal entre os povos antigos do oriente pr-ximo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 12/17.

    6 Neste sentido: MACEDO, Amilcar Fagundes Freitas. O crime de lavagem de dinheiro algu-mas reflexes. Revista da AJURIS Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AJURIS, maro/2008, p. 10.

    7 AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Por-to Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 63.

    8 MORO, Srgio Fernando. Op. Cit., p. 16.

  • Revista da Ajufe 43

    exposio de motivos da Lei n. 9.613/98,9 ocorreu com base em duas justifi-

    cativas: (1) a tentativa de uniformizao mediante acolhimento da linguagem

    usualmente empregada em tratados internacionais sobre a matria e (2) a in-

    teno de afastar possveis conotaes racistas decorrentes do termo bran-

    queamento. Entretanto, subsiste crtica doutrinria que vislumbra a opo

    do legislador como atcnica e desafortunada10, seja pelo indevido emprego

    de linguagem figurada, seja porque, segundo a prpria dico legal, o com-

    portamento incriminado abrange como possvel objeto material no apenas

    dinheiro em espcie, mas quaisquer bens, direitos ou valores provenientes,

    direta ou indiretamente, da prtica de infrao penal.

    Etimologicamente, costuma-se atribuir o surgimento da expresso mo-

    ney laudering (lavagem de dinheiro, em traduo literal) ao fato de Alphon-

    sus Gabriel Capone, criminoso talo-americano conhecido como Al Capone

    ou Scarface, ter utilizado lavanderias de roupas e automveis para mascarar

    sua ilcita evoluo patrimonial. Vale lembrar que, apenas em 1931, Capone

    veio a ser condenado por sonegao de imposto de renda, sendo certo que

    jamais foi responsabilizado pelo crime que o notabilizou, qual seja o contra-

    bando de bebidas alcolicas durante a vigncia da Lei Seca nos EUA.11

    No interessante relato de MORRIS12 consta que os agentes pblicos res-

    9 O texto integral consta do seguinte endereo eletrnico: https://www.coaf.fazenda.gov.br. Acesso em 21.06.2013.

    10 H quem proponha a denominao lavagem de ativos. Neste sentido: CALLEGARI, Andr Lus; Scheid, Carlos Eduardo e Andrade, Roberta Lofrano. Breves anotaes sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais n. 92. So Paulo: RT, setem-bro/2011, p. 247. Embora seja correta a crtica doutrinria, sero indistintamente utilizadas neste trabalho as expresses lavagem de dinheiro e de capitais, haja vista a corriqueira utili-zao de ambas no mbito doutrinrio e jurisprudencial..

    11 Sobre o tema, segue a interessante impresso de FROSSARD:Desde a famosa condena-o de Al Capone por sonegao de imposto de renda, sabemos que o aspecto financeiro o ponto muitas vezes vulnervel de organizaes criminosas. No entanto, no somos apenas ns, autoridades pblicas, que aprendemos com a experincia. O crime organizado tambm aprende sua lio e sabe que preciso ocultar, cada vez melhor, os rendimentos obtidos com a prtica de delitos. Essa realidade exige de ns a atualizao permanente. Cf. FROSSARD, Denise. A Lavagem de Dinheiro e a Lei Brasileira. In: Revista de Direito Penal n. 01. Porto Alegre: Editora Magister, agosto/2004, p. 30.

    12 MORRIS, Stanley E. Aes de combate lavagem de dinheiro em outros experincia americana. In: Anais do Seminrio Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Braslia: Centro de Estudos Judicirios do Conselho da Justia Federal, 2000, p. 37.

  • Revista da Ajufe 44

    ponsveis pela captura de Capone no eram policiais fortemente armados,

    conforme retratado no premiada produo hollywoodiana intitulada Os In-

    tocveis, mas sim contadores da agncia de tributos dos EUA (atualmente

    Secretaria da Receita Federal), ento chefiados pelo economista Eliot Ness.

    Este dado enfatiza a realidade tpica de uma criminalidade inteligente, re-

    quintada e que foge do esteretipo predominantemente violento ao qual o

    sistema penal est acostumado. Tanto assim que o insucesso de Capone no

    encobrimento da raiz criminosa de sua renda estimulou outros criminosos

    a contratarem profissionais do campo jurdico-financeiro visando criao

    de mtodos que os livrassem do mesmo destino, o que deu origem, por exem-

    plo, ideia de investimento em cassinos de Las Vegas e Cuba.

    Inicia-se, ento, a tendncia de terceirizao e especializao da lavagem

    fazendo com que, a cada ao repressiva das autoridades estatais, novas

    metamorfoses sejam notadas no tocante ao aperfeioamento tcnico e ex-

    panso mercadolgica da lavagem de dinheiro. Estudos recentes apontam,

    por exemplo, que, sobretudo na Itlia e na Inglaterra, clubes de futebol vm

    servindo como veculos para reciclagem de recursos ilcitos.13 Talvez por

    mera coincidncia (talvez no), clubes brasileiros remeteram, entre os anos

    de 2002 e 2012, cerca de cento e noventa milhes de dlares para pases

    considerados parasos fiscais (dentre eles, Ilhas Virgens e Bahamas) em ne-

    gociaes de direitos federativos sobre atletas.14

    Por todas as vicissitudes demonstradas, a lavagem de dinheiro tem se

    desenhado como viva expresso de teoria criminolgica da aprendizagem

    social, tambm denominada associao diferencial,15 o que importa em re-

    13 Neste sentido: GREER, Charlie. Money laudering in football. Texto em idioma ingls dis-ponvel em: http://www.proximalconsulting.com/. Acesso em 01.05.2013.

    14 Conforme matria publicada, no dia 14.07.2013, pelo jornal Folha de So Paulo (p. D1) ba-seada em dados do Banco Central. Tambm alertando sobre o tema: DE SANCTIS, Fausto Martin. Lavagem de dinheiro: jogos de azar e futebol anlise e proposies. Curitiba: Juru, 2010.

    15 Neste sentido: GOMES, Luiz Flvio. Sobre a impunidade da macro-delinquncia eco-nmica desde a perspectiva criminolgica da teoria da aprendizagem. In Revista Brasileira de Cincias Criminais. Ano 3. Nmero 11. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, julho--setembro de 1995, p. 172. A teoria da associao diferencial ou da aprendizagem social foi vislumbrada por Edwin H. Sutherland na dcada de 30 e prega que a atuao criminosa difundida por meio de um processo de convivncia e comunicao denominado interacionis-mo simblico. Assim, a verdadeira origem da delinquncia econmica moderna estaria ligada

  • Revista da Ajufe 45

    afirmar o equvoco de no se enxergar que organizaes criminosas tm

    tirado lies de suas prprias falhas de modo a estarem sempre um passo

    frente do Estado, tarefa na qual, infelizmente, tm logrado xito.

    O marco normativo internacional acerca da incriminao da lavagem de

    capitais somente adveio em 20.12.1988,16 com a celebrao da Conveno

    de Viena contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes,17 na qual se determinou

    (art. 3) aos Estados signatrios a tipificao penal da dissimulao de bens

    oriundos da explorao do narcotrfico, o que compreensvel, haja vista

    ser este, ainda hoje, o delito mais lucrativo que se conhece.18 Assim, reconhe-

    cida a independncia do interesse jurdico tutelado por meio da incrimina-

    o da lavagem de dinheiro em relao ao delito antecedente,19 os ordena-

    mentos nacionais passaram a incriminar a lavagem de capitais e no mais

    transmisso de informaes, racionalizaes e motivos favorveis ao caminho criminoso. Em suma, o crime no seria um fato hereditrio, fortuito ou irracional: o crime se aprende e a transmisso deste ensinamento provoca uma reao em cadeia (efeito ressaca ou espiral). Sobre o tema: SERRANO MALLO, Alfonso. Introduo Criminologia. 1a ed. Trad. Luiz Regis Prado. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 202; GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flvio. Criminologia. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 275 e HASSEMER, Winfried e MUOZ CONDE, Francisco. Introduo criminologia. Trad. Cntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 60.

    16 A Itlia foi o primeiro pas a criminalizar a lavagem de capitais, o que se deu em 1978. Os EUA o fizeram em 1986, por meio da edio do Money Laudering Control Act.

    17 No Brasil, o Decreto n. 154, de 26.06.1991, promulgou a Conveno de Viena contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas.

    18 A Conferncia das Naes Unidas sobre o crime organizado global de 1994 estimou que o trfico mundial de drogas auferia em torno de 500 milhes de dlares anualmente, ou seja, um volume lucrativo maior que o do comrcio mundial de petrleo. Cf. ZIGA RODRGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuicin a la determinacin del injusto penal de organizacin criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, p. 3.

    19 Embora haja divergncia quanto ao interesse jurdico tutelado por meio da incriminao da lavagem de dinheiro, reconhece-se maciamente a autonomia deste em relao ao crime antecedente e, por conseguinte, a no aplicao do princpio da consuno hiptese e o no cabimento da alegao de dupla punio pelo mesmo fato (bis in idem). Neste sentido: CALLEGARI, Andr Lus; SCHEID, Carlos Eduardo e ANDRADE, Roberta Lofrano. Breves ano-taes sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais n. 92. So Paulo: RT, setembro/2011, p. 244. Registre-se, porm, que GRECO FILHO defende isola-damente que o crime de lavagem de dinheiro no tem autonomia, eis que tutelaria exclusiva-mente um bem jurdico satlite ou perifrico j protegido pelo crime antecedente. Neste sentido: FILHO, Vicente Greco. Tipicidade, bem jurdico e lavagem de valores. Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais. In: Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais Viso Luso Brasileira. Coord. Jos de Faria & Silva e Marco Antonio Marques da Costa. So Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 454.

  • Revista da Ajufe 46

    consider-la como mera fase de exaurimento do crime antecedente.

    Paralelamente, foram envidados esforos no sentido de criar entidades e

    instrumentos internacionais antilavagem, destacando-se, neste particular, a

    criao do GAFI Grupo de Ao Financeira Internacional, organismo inter-

    governamental criado em dezembro de 1998 e que tem o objetivo de colher

    dados e editar recomendaes20 sobre medidas de combate lavagem de di-

    nheiro, bem como avaliar o cumprimento destas mediante listagem de pases

    no-cooperantes.

    imperativo esclarecer que as eufemsticas alcunhas de paraso fiscal,

    tax haven ou pas no-cooperante podem induzir falsa noo de mera

    caracterizao de imunidade tributria. Em verdade, a denominao apli-

    cvel a Estados que, com o intuito de atrair capitais de qualquer procedn-

    cia, promovem a profunda desregulamentao de seus sistemas bancrios e

    financeiros, abdicando ou fazendo vistas grossas em relao diretriz know

    your customer, isto , a poltica de identificao dos titulares dos investi-

    mentos e manuteno de registros das respectivas operaes.21

    Aps longo perodo de certa condescendncia22 com o crime de lavagem

    20 As 40 recomendaes do GAFI foram prolatadas em 1990 e revistas pela primeira vez em 1996. Nesta ltima verso, foram adotadas por mais de 130 pases, passando a constituir o padro internacional de combate lavagem de dinheiro. Este histrico e o teor de todas as recomendaes mencionadas encontram-se disponveis, em idioma ingls, no seguinte ende-reo eletrnico: http://www.fatf-gafi.org. Acesso em 05.01.2013.

    21 Cite-se o exemplo das Ilhas Cayman que possuam, no ano 2000, cerca de 36 mil habi-tantes e uma taxa de 1,25 empresas por habitante, alm de um total de 596 bancos e 1.800 fundos de investimentos, nos quais encontravam-se alocados cerca de 500 bilhes de dla-res, o que tornava este pequeno pas no quinto centro financeiro do mundo. Ocorre que, do total citado, apenas 110 bancos mantinham sede fsica no pas e os demais estariam situados em coqueirinhos, sendo assim chamadas as caixas postais do local. Um estudo do FMI da-tado de 1997 j retratava o crescimento do montante em dinheiro depositado em parasos fiscais, de um total de 3,5 trilhes e meio de dlares em 1992 para 4,8 trilhes de dlares em 1997, sendo que 1/3 deste valor estaria em parasos caribenhos. Curiosamente, o ciclo histrico denota que, no passado, os piratas medievais teriam escondido naquelas ilhas seus tesouros surrupiados ao passo que, no presente, so os piratas econmico-financeiros da modernidade que voltam a fazer o mesmo, mas de maneira muito mais sofisticada e sorratei-ra. Cf. MORAES, Deomar de. Parasos fiscais, centros offshore e lavagem de dinheiro. Anais do Seminrio Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Braslia: Centro de Estudos Judicirios do Conselho da Justia Federal, 2000, p. 95/103.

    22 Em entrevista publicada no jornal Folha de So Paulo, em 28.10.2005, p. A-7, o ento Ministro da Justia, Mrcio Thomaz Bastos, afirmou o seguinte: Existe hoje no Brasil, soli-damente estabelecida, uma cultura de condescendncia com a lavagem de dinheiro. Ainda segundo o ento Ministro, a luta contra a lavagem de dinheiro precisaria prosseguir por v-

  • Revista da Ajufe 47

    de dinheiro, o Brasil comea a dar sinais de que pretende alinhar-se ao mo-

    vimento internacional a fim de no se tornar mais um refgio seguro para

    capitais de origem ilcita. Fato que, ao menos por ora, as normas antilava-

    gem tm escassa aplicao no Brasil e somente em casos pontuais o assunto

    toma a ateno da sociedade, o que se d, sobretudo, por impulso de man-

    chetes jornalsticas.

    2. A contextualizao da lavagem de dinheiro no cenrio jurdico-pe-

    nal contemporneo

    Costuma-se atribuir ao movimento iluminista a formao do Direito Pe-

    nal chamado doutrinariamente de liberal, tradicional ou clssico e que teria

    se constitudo a partir da segunda metade do sculo XVIII. Tratava-se do

    esboo de um sistema de garantias voltado a albergar liberdades individuais

    em face das arbitrariedades tpicas da era feudal. Neste contexto, desenvol-

    veu-se um conjunto de ideias que funcionou como plataforma de resistncia

    ao sistema punitivo do Estado Absolutista. Nota-se, entretanto, que a pauta

    de discusses penais gravita atualmente sobre delitos distintos do paradig-

    ma clssico e, neste aspecto, perde fora o protagonismo dos crimes violen-

    tos (ou de sangue) e da delinquncia patrimonial em sentido estrito, tpicos

    dominantes no sculo XIX e em boa parte do sculo XX.

    H dcadas, BARATTA j assinalava que os interesses que pertencem ao

    mbito da incolumidade fsica e patrimonial individual so historicamen-

    te privilegiados em relao aos interesses difusos ou coletivos (tambm do

    ponto de vista jurdico-processual), ainda que estes ltimos no sejam me-

    nos importantes para a qualidade de vida dos indivduos e afetem a um n-

    mero maior deles. Logo, o Direito Penal no pode se furtar ao cumprimento

    de sua misso fundamental concernente proteo dos bens jurdicos mais

    importantes para a sociedade de sua poca. Neste aspecto, para alm da li-

    berdade e do patrimnio meramente individual, o ordenamento penal deve

    rios motivos e arrematou que: (...) o principal deles que (a lavagem) atrapalha a luta contra o crime organizado, porque essa massa de dinheiro acaba se misturando com o dinheiro do traficante de drogas, do traficante de seres humanos, de armas, que, esses sim, esto conde-nados ao caixa dois e tm de ser combatidos fortemente pelo poder pblico.

  • Revista da Ajufe 48

    proteger tambm as circunstncias econmico-sociais necessrias convi-

    vncia pacfica e ao desenvolvimento da cidadania, bem como o funciona-

    mento do aparato estatal destinado ao atendimento destes objetivos.

    Sob risco de injustificvel ucronismo,23 j no se mostra vivel a centra-

    lizao do debate jurdico-penal na criminalidade das ruas (patrimonial e

    violenta), com seus mtodos explcitos, alm de autores e vtimas bem iden-

    tificados individualmente. H que se atentar para o fato de que as mais fortes

    expresses da macrocriminalidade moderna (v.g.: trfico de armas, pesso-

    as e entorpecentes; crimes econmico-empresariais; fraudes fiscais, dentre

    outros) atingem interesses no diretamente individuais, mas sim de toda a

    coletividade. No mesmo diapaso, a impresso de FELDENS d conta de que,

    na era da sociedade em rede, a criminalidade violenta v-se substituda pela

    astcia, pelo enleio, pelo ardil, pela fraude e pelo artifcio num contexto em

    que as ruas cedem espao s infovias, fazendo do computador e da tecnolo-

    gia instrumentos do crime.

    Na dinmica do planejamento da delinquncia moderna, observa-se que

    a dissimulao do patrimnio de procedncia ilcita tem funcionado como

    mola propulsora de grupos criminosos estruturados que, desta forma, ga-

    rantem a preservao e, no raramente, o incremento de seu poder econ-

    mico. No h dvidas de que a reciclagem de dinheiro sujo propicia tambm

    amplas possibilidades de insero de delinquentes no tecido social, em es-

    pecial por meio do exerccio de atividades aparentemente inofensivas. Desta

    forma, a um s tempo, logra-se a dissimulao do patrimnio de origem

    ilegal e, de quebra, aufere-se prestgio junto sociedade.

    Com amparo em ampla convergncia doutrinria, reconhece-se que a la-

    vagem de capitais e as organizaes criminosas mantm ligao no s an-

    tiga, mas, acima de tudo, umbilical.24 No bojo do processo scio-econmico

    23 SILVA-SNCHEZ emprega a expresso ucronismo para expressar a mescla entre utopia e histria, uma espcie de exerccio mental de imaginar a histria da forma como ela poderia ter sido e no como realmente transcorreu. Neste sentido, o aludido autor chama de ucronis-mo a resistncia de parcela da doutrina quanto modernizao do Direito Penal e tentativa de retorno ao modelo centrado na proteo exclusiva de interesses individuais. Cf. SILVA--SNCHEZ , Jess-Maria. Op. cit., p. 136.

    24 GODINHO Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de branqueamento de capitais: intro-duo e tipicidade. Coimbra: Almedina, 2001, p. 31.

  • Revista da Ajufe 49

    da lavagem de capitais ganha nfase a crescente associao negocial entre a

    macrodelinquncia e os colarinhos brancos, sendo estes personificados por

    profissionais que dominam as estratgias de escamoteamento e movimen-

    tao de ativos, com destaque para a robusta utilizao de artifcios ciber-

    nticos. Esta sintonia fina denota o perfeito enquadramento da criminalida-

    de hodierna nas caractersticas primordiais da delinquncia do colarinho

    branco,25 sendo este tambm um dos fatores que sinalizam a insero da

    lavagem de dinheiro no contexto do Direito Penal Econmico,26 em quais-

    quer de suas acepes.27

    Em meio ao declnio da noo tradicional de soberania, o mundo passou

    a assistir, a partir do final do sculo XX, a profundas mudanas nas mais va-

    riadas searas da atuao e do conhecimento, sendo estas alavancadas pelo

    avano tecnolgico sem precedentes. Na viso ostentada por BECK,28 aliada

    revoluo dos meios de comunicao e informao, a crescente interao

    do comrcio internacional e conexo dos mercados financeiros so as mar-

    cas fundamentais do irreversvel processo de globalizao.

    A extrema volatilidade dos fluxos financeiros internacionais tornou di-

    fcil a identificao da procedncia dos recursos, bem como a aferio das

    intenes dos que os manipulam distncia. Os atores do mercado se con-

    verteram em uma nova classe de legisladores virtuais29 sem ptria que con-

    25 MAIA, Rodolfo Tigre. Algumas reflexes sobre o crime organizado e a lavagem de dinhei-ro. In: Revista da AJURIS. Ed. Especial. Porto Alegre: AJURIS, julho/1999, p. 191/192.

    26 Sobre o enquadramento da criminalidade organizada moderna nas caractersticas tpicas da criminalidade do colarinho branco: SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da Criminologia Po-ltica Criminal. Direito Penal Econmico e o novo Direito Penal. In: Inovaes no direito penal econmico: contribuies criminolgicas, poltico criminais e dogmticas. Braslia: ESMPU, 2011, p. 106. No mesmo sentido: CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de pre-veno e represso. Coimbra: Almedina, 2004, p. 17.

    27 O Direito Penal Econmico em sentido estrito representaria o conjunto de infraes penais que protegem a ordem econmica, isto , a regulao jurdica do intervencionismo estatal na economia. J sob o prisma amplo, o Direito Penal Econmico seria constitudo pelo conjunto de normas jurdico-penais que protegem as relaes de produo, distribuio e consumo de bens e servios. Neste sentido: BAJO FERNANDEZ, Miguel e BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Econmico. Madrid: Editorial Centro Estudos Ramn Areces, 2001, p. 11 e 15.

    28 BECK, Ulrich. O que globalizao: equvocos do globalismo, respostas globalizao. Trad. Andr Carone. So Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, p. 30/31.

    29 CASTILHO, Ela Wiecko V. De. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro

  • Revista da Ajufe 50

    trolam a capacidade financeira dos governos, o que influi no apenas no

    desempenho da macroeconomia, mas tambm nas opes internas da po-

    ltica educacional, ambiental, de seguridade social e de emprego, afetando,

    decisivamente, os valores e a vida dos cidados.

    Com efeito, a utilizao de empresas, instituies financeiras e profis-

    sionais especializados tornou-se ferramenta imprescindvel ao sucesso das

    grandes operaes de lavagem de capitais, sendo esta a razo pela qual, j h

    algum tempo, a tendncia de terceirizao das atividades de lavagem de capi-

    tais chama a ateno das autoridades.30 Segundo as estimativas mais recentes,

    so movimentados, diariamente, mais de dois trilhes de dlares no fluxo fi-

    nanceiro mundial, o que embasa a advertncia de LILLEY31 no sentido de que

    a velha imagem do traficante de drogas carregando uma mala abarrotada de

    dinheiro j no comum ou necessria e, portanto, no deve ser esperada.

    A lavagem de capitais veio a ser facilitada e potencializada como para-

    doxo perverso32 decorrente do citado processo de interatividade econmica.

    Destarte, na pujana de sua complexidade, a globalizao legou ao mundo a

    empresarializao33 da delinquncia que, a ttulo de ilustrao, pode, por

    nacional (Lei n. 7492, de 16 de junho de 1986). 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 90.

    30 GOMES, Luiz Flvio. Lavagem de capitais e quebra do segredo profissional do advogado. Texto disponvel em: http://www.lfg.com.br. Acesso em 01.05.2013, p. 2.

    31 LILLEY, Peter. Lavagem de dinheiro: negcios ilcitos transformados em atividades legais. Trad. Eduardo Lasserre. So Paulo: Futura, 2001, p. 15.

    32 Sobre a internacionalizao da criminalidade propiciada pela integrao financeira e co-municativa dos pases: FERRAJOLI, Luigi. Criminalit e Globalizzzione. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais n. 42. So Paulo: RT, janeiro/2003, p. 79.

    33 DE SANCTIS, Fausto. Combate lavagem de dinheiro: teoria e prtica. Campinas: Millen-nium, 2008, p. 5. No mesmo sentido a preleo de ZIGA RODRGUEZ, in verbis: La crimi-nalidad organizada se ha convertido em una verdadera empresa del crimen. En los ltimos tiempos del desarollo de la globalizacin y la supremaca de las relaciones de produccin capitalistas, monoplicas y financieras, la criminalidad organizada ha extendido sus tent-culos a las empresas legales y al mundo financiero formal, con un efecto contaminacin. La criminalidad organizada ha pasado de realizar sus actividades tradicionales, a participar en actividades no tradicionales como es la creacin de empresas, conglomerados financieros, inversiones en empresas y en la bolsa, para reciclar el dinero negro. De esta manera, ha logra-do corromper las actividades legales de bancos, empresas constructoras, fundaciones, etc., asumiendo un rol empresarial y aprovechando las estructuras econmicas y empresariales de la economia formal para reciclar el dinero obtenido ilcitamente. Tambin ha creado em-presas ficticias o contratado adminsitradores de paja para dominar empresas ya constituidas legalmente. El blanqueo de dinero se ha mostrado como el gran corruptor de toda la activi-

  • Revista da Ajufe 51

    meio da rede mundial de computadores, fazer com que divisas de valor es-

    tratosfrico circulem de um extremo ao outro do planeta em uma frao de

    segundo. Tais fatores so as causas do desenvolvimento da lavagem de di-

    nheiro como espcie criminosa,34 o que ganha relevo no peculiar momento

    em que investimentos do mundo inteiro sero concentrados no Brasil dada

    a iminncia da realizao de eventos internacionais importantes (Copa do

    Mundo de Futebol e Jogos Olmpicos, principalmente).

    Por todo o exposto, na condio de importante expresso moderna da

    criminalidade econmica,35 a lavagem de capitais afigura-se como tema de

    relevncia indubitvel.

    3. A realidade atual da lavagem de dinheiro

    Estima-se que, anualmente, so lavados ao redor do mundo algo entre

    oitocentos milhes e dois bilhes de euros, ou seja, o equivalente ao mon-

    tante entre 2 e 5 % da produo econmica global, o que aproximvel, por

    exemplo, ao produto interno bruto da Alemanha, maior economia da Europa

    na atualidade.36 Ainda assim, extremamente pequeno o nmero de obras

    cientficas, investigaes e decises judiciais sobre o crime de lavagem de

    capitais, no sendo outra a razo pela qual, j h algum tempo, os autores

    dade econmica legal. ZIGA RODRGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuicin a la determinacin del injusto penal de organizacin criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, P. 143.

    34 PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012). In: Revista dos Tribunais v. 926. So Paulo: RT, dezembro/2012, p. 403/404.

    35 Sobre a atualidade das importantes repercusses do tema, esta a preleo de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE: A criminalidade econmica, nas suas formas clssicas ou modernas, um tema de marcada actualidade. Pela dimenso dos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptao e sobrevivncia s mutaes sociais e polticas, pela sua aptido para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe so dirigidas, a criminalidade econmica uma ameaa sria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Da que a inveno de formas eficazes de luta seja hoje preocupao das instncias governamentais, judiciais, policiais, etc., de todos os pases. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRA-DE, Manoel da. Problemtica geral das infraes contra a economia nacional. In Direito penal econmico e europeu: textos doutrinrios. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 319/320.

    36 CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de preveno e represso. Coimbra: Almedina, 2004, p. 8.

  • Revista da Ajufe 52

    tm chamado a ateno para a necessidade de fomentar, no Brasil37 e no

    exterior,38 o estabelecimento uma autntica cultura de investigao e perse-

    cuo quanto ao crime de lavagem de capitais.

    Na esteira deste raciocnio, a ENCCLA - Estratgia Nacional de Combate

    Corrupo e Lavagem de Dinheiro, comisso multidisciplinar constituda

    no mbito do Ministrio da Justia, reconhece a carncia brasileira quanto ao

    aprofundamento terico-acadmico nesta seara e, por conseguinte, estabele-

    ceu, como meta especfica,39 a propositura da incluso do estudo da lavagem

    de dinheiro nos currculos universitrios de graduao e ps-graduao.

    Paradoxalmente, propaga-se, como dito, a percepo equivocada de que

    somente os crimes de sangue ou contra o patrimnio individual teriam re-

    levncia e, por consequncia, os tipos penais que tutelam interesses difusos

    so tradicionalmente tidos como crimes menores, sem vtimas ou consequ-

    ncias dignas de considerao. Esta viso absolutamente insustentvel no

    presente estgio de desenvolvimento da humanidade em que a agilizao e

    internacionalizao dos efeitos de determinadas condutas delitivas demons-

    tram que at mesmo localidades aparentemente beneficiadas com a capta-

    o de recursos ilcitos podem ser repentinamente atiradas em situao de

    grave desequilbrio financeiro.

    Cite-se, como exemplo, o caso do Chipre, pas europeu que recentemente

    vivenciou o colapso de seu sistema econmico-financeiro pela repentina

    fuga de capitais de titularidade e origem desconhecidas. Vale dizer que este

    pas tem presena constante na listagem de Estados no-cooperantes do

    GAFI e chegou a possuir setor bancrio com volume de recursos cerca de

    oito vezes maior que seu produto interno bruto. O resultado da poltica de

    37 MORO, Srgio Fernando. Op. cit., p. 98/99.

    38 Por exemplo, CANAS relata que a escassez de dados estatsticos fiveis um dos fatores que impedem a maior efetividade da legislao penal antilavagem em Portugal. CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de preveno e represso. Coimbra: Almedina, 2004, p. 07.

    39 A ENCCLA foi criada em 2003 e atualmente congrega representantes de cerca de sessen-ta rgos e entidades. A redao da Meta n. 26, no ano de 2004, da ENCCLA foi a seguinte: Promover a incluso nos currculos acadmicos de graduao e ps-graduao do estudo da criminalidade transnacional e, especialmente, do combate lavagem de dinheiro e da co-operao jurdica internacional. Texto integral disponvel em: www.portal.mj.gov.br/enccla. Acesso em 01.01.2013.

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    afrouxamento das medidas antilavagem foi a necessidade de contrair em-

    prstimos recentes no valor bruto aproximado de 10 bilhes de euros. Ou-

    tros pases europeus tradicionalmente classificados como parasos fiscais,

    tais como Luxemburgo, Estnia e Malta, tambm estariam na iminncia de

    colapso de seus sistemas financeiros.40

    Desta maneira, o enorme volume de recursos gerado pelo branqueamen-

    to de capitais no mbito do ordenamento financeiro global acaba, em l-

    tima ponta, vulnerando economias nacionais e afetando a estabilidade da

    economia mundial ao sabor de decises explicveis apenas sob o ponto de

    vista da racionalidade criminosa. No plano microeconmico, os investimen-

    tos com dinheiro reciclado degeneram a concorrncia licitamente feita por

    empresas conduzidas com recursos lcitos. No prisma macroeconmico, as

    naes e instituies financeiras utilizadas como instrumentos de lavagem

    d