Revista Direito Federal nº 94
-
Author
ajufe-associacao-de-juizes -
Category
Documents
-
view
408 -
download
30
Embed Size (px)
description
Transcript of Revista Direito Federal nº 94
-
Direito FederalRevista da Ajufe
-
Associao dos Juzes Federais do Brasil
Ano 27 - Nmero 941 semestre de 2014
-
Utilidade Pblica FederalDecreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p.15057) Presidente: Antnio Csar BochenekDiretor da revista: Jos Antonio Lisba NeivaEdio: Lcio VazIlustraes: Kleber SalesProjeto Grfico e diagramao: Vaz Comunicao Reviso: Gabriela Artemis Impresso e Acabamento: Athalaia Grfica e Editora Periodicidade: semestralObs.: Os textos so de responsabilidade de seus autores.
Associao dos Juzes Federais do BrasilSHS Quadra 6, Bloco E, Conj. A, sala 1305 a 1311
Brasil 21, Edifcio Business Center Park 1,Braslia-DF CEP 70322-915
Tel.: (61) 3321-8482Fax: (61) 3224-7361
ISSN 1676-2320
-
Antnio Csar Bochenek
Candice Lavocat Galvo Jobim
Eduardo Andr Brando Fernandes
Fernando Marcelo Mendes
Rodrigo Machado Coutinho
Andr Lus Maia Tobias Granja
Roberto Carvalho Veloso
Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni
Alexandre Ferreira Infante Vieira
Jos Antonio Lisba Neiva
Marcel Citro de Azevedo
Maria Divina Vitria
Raquel Coelho Dal Rio Silveira
Jos Marcos Lunardelli
Jos Arthur Diniz Borges
Jos Maximiliano Machado Cavalcanti
Murilo Brio da Silva
Marianina Galante
Marcelle Ragazoni Carvalho
Frederico Jos Pinto de Azevedo
Cristiane Conde Chmatalik
Clara da Mota Santos Pimenta Alves
Helder Teixeira de Oliveira
Paulo Csar Villela S. Lopes Rodrigues
Srgio Murilo Wanderley Queiroga
Leonardo Vietri Alves de Godoi
Andr Prado de Vasconcelos
Roberto Fernandes Junior
Mrcia Vogel Vidal de Oliveira
Alessandro Diafria
Carlos Felipe Komorowski
Jalsom Leandro de Sousa
Presidente
Vice-presidente da 1 Regio
Vice-presidente da 2 Regio
Vice-presidente da 3 Regio
Vice-presidente da 4 Regio
Vice-presidente da 5 Regio
Secretrio-geral
Primeira secretria
Tesoureiro
Diretor da Revista
Diretor Cultural
Diretora Social
Diretora de Relaes Internacionais
Diretor de Assuntos Legislativos
Diretor de Relaes Institucionais
Diretor de Assuntos Jurdicos
Diretor de Esportes
Diretora de Assuntos de Interesses dos Aposentados
Diretora de Comunicao
Diretor Administrativo
Diretora de Tecnologia da Informao
Coordenadora de Comisses
Diretor de Prerrogativas
Suplente
Suplente
Suplente
Suplente
Suplente
Membro do Conselho Fiscal
Membro do Conselho Fiscal
Membro do Conselho Fiscal
Membro do Conselho Fiscal (Suplente)
Diretoria da AjufeBinio 2014/2016
-
Niber Pontes de Almeida
Aloysio Cavalcanti Lima
rico Rodrigo Freitas Pinheiro
Jaiza Maria Pinto Fraxe
Cynthia de Araujo Lima Lopes
Jlio Rodrigues Coelho Neto
Maria Candida Carvalho M. de Almeida
Marcelo da Rocha Rosado
Marcos Silva Rosa
Pablo Zuniga Dourado
Regis de Souza Arajo
Renato Toniasso
Silvio Coimbra Mourth
George Ribeiro da Silva
Bianor Arruda Bezerra Neto
Patrcia Helena Daher Lopes Panasolo
Polyana Falco Brito
Marina Rocha Cavalcanti Barros Mendes
Leonardo da Costa Couceiro
Orlan Donato Rocha
Marcelo Roberto de Oliveira
Herculano Martins Nacif
Gilberto Pimentel de Mendona G. Junior
Rafael Selau Carmona
Bruno Csar Lorencini
Gilton Batista de Brito
Denise Dias Dutra Drumond
Acre
Alagoas
Amap
Amazonas
Bahia
Cear
Distrito Federal
Esprito Santo
Gois
Maranho
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Minas Gerais
Par
Paraba
Paran
Pernambuco
Piau
Rio de Janeiro
Rio Grande do Norte
Rio Grande do Sul
Rondnia
Roraima
Santa Catarina
So Paulo
Sergipe
Tocantins
Colgio de Delegados Seccionais
-
Colgio de Delegados Seccionais
Palavra do diretor............................................................................................................13
Seo de Doutrina...........................................................................................................15
A proteo famlia, maternidade e s crianas e aos adolescentes, no pacto interna-cional dos direitos econmicos, sociais e culturais de 1966...........................................17
Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorrios maculados ............37
O terror jurdico-ditatorial da suspenso de segurana e a proibio do retrocesso no estado democrtico de direito..........................................................................................71
A tutela das criaes intelectuais e a existncia do direito de autor na antiguidade clssica .......91
Direito, Soberania e Efetividade Jurdica.......................................................................111
A execuo de decises judiciais contra a administrao pblica em uma perspectiva comparada .....................................................................................................................137
Os efeitos da dualidade de instncias no direito antitruste brasileiro e breve anlise jurisprudencial...............................................................................................................161
Uma espectrografia ideolgica do debate entre garantismo e ativismo....................177
Da ofensa do voto duplo aos princpios constitucionais da igualdade e do Estado De-mocrtico de Direito......................................................................................................201
Estados Liberal, Social e Democrtico de Direito: noes, afinidades e fundamentos..............223
Reflexes sobre o auxlio direto: fundamentos normativos e posio jurisprudencial........245
A igualdade no pas do futebol.............................................................................................281
ndice
-
Caros associados,
com grande honra e satisfao que apresento mais uma edio
da Revista de Direito Federal, sempre com ampla diversidade temtica,
abarcando os diferentes ramos jurdicos, e trazendo discusses sempre
atuais, objetivas e de destacada importncia prtica, especialmente no
mbito federal.
No campo jusfilosfico e da Teoria Geral do Direito, interessante re-
flexo acerca do conceito de soberania e da importncia do Estado na
concretizao do Direito, garantindo-lhe efetividade. Destacam-se, ain-
da, estudo acerca dos Estados Liberal, Social e Democrtico, com a indi-
cao de seus pontos de contato e suas estruturas poltico-econmicas,
bem como de suas contribuies para o Estado Democrtico de Direito,
alm de relevante artigo que trata da influncia das ideologias polticas
sobre a forma como se enxerga o processo, com crticas impreciso
terica que domina o debate entre garantismo e ativismo.
O Direito Processual ganha relevo em estudo de Direito Comparado
referente execuo contra a Administrao Pblica, a partir da anlise
dos sistemas alemo, norte-americano, espanhol, portugus e argenti-
no, com proposta de superao do dogma tradicional da impenhora-
bilidade dos bens pblicos, com vistas a garantir maior efetividade
execuo forada em face da Fazenda Pblica. Ainda, surge relevante
reflexo acerca do contexto ditatorial do nascimento do instituto da
suspenso de segurana (Lei n 4.348/64), posteriormente ampliado
pela Lei n 8.437/92, no contexto de bloqueio dos cruzados do Plano
Collor, bem como questionamento quanto constitucionalidade formal
da MP n 2.180-35 e, em relao ao Direito Ambiental, demonstra-se a
preocupao com a proliferao abusiva destes incidentes, o que pode
ocasionar o amesquinhamento da atuao do Poder Judicirio na con-
cretizao do comando contido no art. 225, caput, da CRFB/88.
Palavra do Diretor
-
O Direito Internacional mereceu destaque em artigo relacionado ao
tratamento do Direito de Famlia no Pacto Internacional dos Direitos Eco-
nmicos, Sociais e Culturais de 1966 e seu reflexo no ordenamento jur-
dico constitucional ptrio, bem como em estudo relativo aos instrumen-
tos de cooperao jurdica internacional, em especial do auxlio direto,
importante mecanismo de combate aos delitos transnacionais, com cr-
ticas ao modelo atual, institudo pela Resoluo n 09/2005 do Superior
Tribunal de Justia em razo da inrcia legislativa.
A Propriedade Intelectual ganha espao com um panorama histrico
do tratamento dos direitos do autor na Antiguidade Clssica, com breve
estudo do tema na Grcia Antiga e no Direito Romano.
No que concerne ao Direito Econmico, pertinente o trabalho sobre
os limites da atuao do Judicirio no controle das decises do CADE,
destacando, por um lado, a importncia da atuao dos Tribunais na
defesa da ordem econmica e, de outra banda, a necessidade de auto-
-conteno, sob pena de se legitimar a recorrente substituio do en-
tendimento do CADE pela orientao das Cortes Federais, o que, em l-
tima anlise, pode ocasionar o enfraquecimento do Sistema Brasileiro
de Defesa da Concorrncia.
No tocante ao Direito Penal, surge nova abordagem acerca do crime
de lavagem de dinheiro, com enfoque no exame da teoria da cegueira
deliberada - construo jurisprudencial norte-americana que se aproxi-
ma do instituto do dolo eventual - ainda incipiente na doutrina ptria, e
da teoria dos honorrios maculados, oportunidade em que se examina a
possibilidade de responsabilizao penal do advogado que recebe recur-
sos sabidamente oriundos de infraes penais.
Na esfera dos processos administrativos tributrios, judicioso artigo
examina a constitucionalidade do voto duplo adotado pelo Regimento In-
terno do CARF em caso de empate no julgamento de recurso voluntrio,
sob a tica dos princpios da igualdade e do Estado Democrtico de Direito.
Least but not last, em tempos de Copa do Mundo, destaca-se inte-
ressante artigo questionando a regra isentiva criada pelo art. 41 da
-
Lei Geral da Copa - que afastou a incidncia de imposto de renda e de
contribuies previdencirias sobre os prmios pagos aos campees
mundiais de 1958, 1962 e 1970 -, sob a tica do princpio da isonomia
e de seus postulados constitucionais-tributrios, cuja inconstituciona-
lidade fora, inclusive, arguida pela Procuradoria Geral da Repblica na
ADI 4.946/DF.
Tenho convico de que, mais uma vez, a qualidade dos trabalhos certa-
mente agradar ao nvel de exigncia e qualificao de nossos associados.
Atenciosamente,
Jos Antonio Lisba Neiva
-
Seo de Doutrina
-
A proteo famlia, maternidade e s crianas e aos adolescentes, no pacto internacionaldos direitos econmicos, sociais e culturais de 1966
-
Revista da Ajufe 20
Marcelo Barbi GonalvesJuiz federal substituto da Subseo de Alagoas/AL e
mestrando em Direito Pblico na UFAL
Resumo: O presente artigo aborda a influncia do artigo 10 do Pacto In-
ternacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de 1966 na Cons-
tituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988.
Palavras-chave: Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Proteo e
assistncia maternidade, famlia e crianas e adolescentes. Constituio
Federal de 1988.
Abstract: This article analyzes the influence of the article ten from the
International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights of 1966 in
the Brazil Constitution of 1988.
Keywords: Economic, Social and Cultural Rights. Protection to the ma-
ternity, family and children. International Covenant. Brazil Constitution.
1. Introduo
O art. 10 do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais
de 1966 (doravante PIDESC) prev o dever de os Estados participantes reconhe-
cerem a importncia e dar a devida proteo e assistncia famlia, s mes e s
crianas e aos adolescentes.
Nesse pensamento, o Brasil ratificou, em 1992, o citado Pacto, comprometen-
do-se a tutelar a pessoa humana em sua concretude, ou seja, como ser econmico,
social e culturalmente situado, frente ao novo modelo econmico neoliberal que
regurgitava pelo mundo.
A Constituio Federal de 1988 consagrou vrios direitos, impondo deveres ao
Estado a fim de que adotasse todas as medidas necessrias para garanti-los, assim
como o fez na legislao infraconstitucional. No entanto, entre os vrios direitos
-
Revista da Ajufe 21
previstos, quais, de fato, se harmonizam perfeitamente com o art. 10 do PIDESC?
2. Consideraes iniciais: uma viso do objetivo do pacto internacional
dos direitos ecnomicos, sociais e culturais de 1966
2.1 Notas introdutrias
Os pactos, ou tratados, existem desde a Antiguidade clssica, sendo consagra-
dos como fonte do Direito Internacional aps o Tratado de Paz de Vestflia. O
direito dos tratados, como assevera Rezek, uma parte essencial do Direito das
Gentes, uma vez que repousa sobre o consentimento dos povos, sendo certo que
at o fim do sculo XIX os tratados eram concretizados nas formas do direito
consuetudinrio. Veja-se:
O direito internacional repousa sobre o consenti-
mento. Os povos assim compreendidas as comunidades
nacionais, e acaso, ao sabor da histria, conjuntos ou fra-
es de tais comunidades propendem, naturalmente,
autodeterminao. Organizam-se, to cedo quanto podem,
sob a forma de Estados, e ingressam numa comunidade
internacional carente de organizao centralizada. Tais as
circunstncias, compreensvel que os Estados no se su-
bordinem seno ao direito que livremente reconheceram
ou construram. 1
O conceito de tratado no engendra significativa divergncia entre os doutri-
nadores, pois grande parte concorda que se trata de um acordo formal, escrito e
destinado a produzir efeitos entre seus participantes.
Nesse sentido, Carlos Roberto Husek diz que: Tratado o acordo formal con-
cludo entre os sujeitos de Direito Internacional Pblico destinado a produzir
efeitos jurdicos na rbita internacional.2 Paulo Henrique Gonalves Portela, por
1 Rezek, Jos Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 7.
2 HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Pblico. So Paulo: Malheiros, 1995, p. 125.
-
Revista da Ajufe 22
sua vez, vai mais alm, trazendo o conceito de tratado adotado na Conveno de
Viena sobre o Direito dos Tratados em 1969:
O nosso conceito parte da noo fixada pelo artigo 2,
1, a, da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tra-
tados, de 1969, que estabeleceu que tratado significa um
acordo internacional concludo por escrito entre Estados
e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um ins-
trumento nico, quer de dois ou mais instrumentos cone-
xos, qualquer que seja a sua denominao especfica. 3
A doutrina, conforme aduz Portela, elenca um rol com uma srie de espcies
de tratados, cada qual com denominao adequada a cada situao diferente nas
relaes internacionais, diante do contedo do acordo ou do interesse que se
pretende. No entanto, a nomenclatura adotada no influencia o carter jurdico
do instrumento, no havendo nenhuma interferncia no contedo caso tenha o
nome de pacto ou tratado.
Por derradeiro, os tratados no so meras declaraes de carter poltico e
no vinculante. Objetivam, na realidade, produzir efeitos jurdicos, modificativos,
extintivos ou constitutivos de obrigaes e direitos, possibilitando, ainda, sanes
face ao seu descumprimento. Assim se posiciona Rezek:
A produo de efeitos de direito essencial ao tratado,
que no pode ser visto seno na sua dupla qualidade de
ato jurdico e de norma. O acordo formal entre Estados
o ato jurdico que produz a norma, e que, justamente por
produzi-la, desencadeia efeitos de direito, gera obrigaes
e prerrogativas, caracteriza, enfim, na plenitude de seus
dois elementos, o tratado internacional. 4
3 PORTELA, Henrique Gonalves Paulo. Direito Internacional Pblico e Privado. 3 ed. Bahia: Juspodivm, 2011, p. 89.
4 Op. cit., p. 72.
-
Revista da Ajufe 23
2.2 O surgimento do PIDESC
Ao longo da histria da humanidade, medida que o poder de determinados
grupos de indivduos crescia, a desigualdade social comeava a medrar na mes-
ma proporo do desenvolvimento econmico, social e cultural dos povos. Com
o passar do tempo, as desigualdades sociais se tornaram mais contundentes e
socialmente injustas, percepo essa sentida notadamente com o aumento das re-
laes comerciais e a consolidao do capitalismo no fim do sc. XIX.
Mesmo com a Declarao Universal dos Direito Humanos, promulgada em
10 de dezembro de 1948, alm de outros tratados substancialmente significati-
vos para a proteo dos indivduos surgidos aps a Primeira e a Segunda Gran-
de Guerra Mundial, era necessria, frente ao modelo econmico neoliberal, a
constituio de um instrumento internacional que permitisse ao ser humano
gozar no s de seus direitos civis e polticos, mas tambm dos direitos econ-
micos, sociais e culturais.
Assim, em 16 de dezembro de 1966, na Assembleia Geral das Naes Uni-
das, foi institudo o PIDESC, sendo ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de
1992 e tendo entrado em vigor no pas em 06 de julho do mesmo ano pelo
Decreto n 591/92.
2.3 O objetivo do PIDESC
O referido tratado tem por escopo a proteo dos direitos econmicos, sociais
e culturais, devendo os Estados assegurarem o gozo destes aos seus cidados,
por esforos prprios ou pela cooperao da prpria sociedade internacional,
utilizando todos os meios econmicos e tcnicos possveis.
Conquanto tais direitos devam ser observados sem qualquer discriminao,
mas tendo em vista a situao econmica dos pases em desenvolvimento, o
tratado prev que os Estados podero aplicar os direitos acordados no Pacto
de acordo com um eventual quadro de escassez oramentria, limitando, v.g, os
direitos dos estrangeiros.5
5 Artigo 2 - 1. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tan-to por esforo prprio como pela assistncia e cooperao internacionais, principalmente nos planos econmico e tcnico, at o mximo de seus recursos disponveis, que visem a
-
Revista da Ajufe 24
O PIDESC consagrou direitos em diferentes reas, mas intimamente interliga-
dos busca do respeito aos direitos que garantam, sem discriminaes, a digni-
dade de todas as pessoas, atravs da garantia de direitos laborais, de existncia do
indivduo, da sade, educao e da famlia.
No mbito do direito laboral, o tratado consagrou a adoo de medidas estatais
voltadas para o desenvolvimento econmico e a formao tcnica e profissional
dos trabalhadores. Alm disso, nessa mesma seara, cristalizou: a liberdade sindical
mediante o direito de fundar sindicatos, federaes e confederaes, tanto nacio-
nais quanto internacionais; condies de emprego justas e favorveis, incluindo
remuneraes equitativas que garantam a todos os trabalhadores dignidade; e a
proteo das mulheres e das crianas, com um especial destaque maternidade.
Tratou, ainda, sobre a qualidade de vida do homem, prevendo o direito
alimentao, vestimenta e moradia adequadas. No mais, versou sobre a
tutela sade, bem como a obrigao do Estado de tomar medidas voltadas
diminuio da mortalidade infantil; a busca pelo pleno desenvolvimento da
personalidade humana; a promoo do direito paz e tolerncia entre todos
os grupos de indivduos.
Em face a este manancial de bens tutelados, destaca-se na anlise aqueles en-
campados no art. 10, a saber, o direito famlia, s mes durante a maternidade e
s crianas e adolescentes.
3. O art. 10 Do pacto no ordenamento jurdico brasileiro
3.1 Da proteo e assistncia famlia6
assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exerccio dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoo de medidas legislativas. 2. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enun-ciados se exercero sem discriminao alguma por motivo de raa, cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situao eco-nmica, nascimento ou qualquer outra situao. 3. Os pases em desenvolvimento, levando devidamente em considerao os direitos humanos e a situao econmica nacional, pode-ro determinar em que medida garantiro os direitos econmicos reconhecidos no presente Pacto queles que no sejam seus nacionais.
6 Art. 10 - Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que: 1 Uma proteo e uma assistncia mais amplas possveis sero proporcionadas famlia, que ncleo elementar natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista sua formao e no tempo
-
Revista da Ajufe 25
Ainda que o PIDESC tenha sido ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,
poca da concepo da Carta Poltica de 1988, os constituintes j possuam o
entendimento de que a famlia era um dos pilares essenciais ao desenvolvimento
de um pas. O Estado Democrtico de Direito no poderia ser construdo sem dar
a devida importncia e zelo a um dos meios de solidificao de uma nao funda-
mentada na democracia.
Dessa forma, no entendimento dos Founding Fathers, a famlia merecia um
destaque especial na nova Constituio, realizando a constitucionalizao do
instituto familiar e consagrando mecanismos de proteo e assistncia famlia,
especialmente no campo da seguridade social.7
Ressalte-se, ainda, no que diz respeito s relaes familiares, que nada foi mais
adiantado do que a legislao previdenciria, por acolher como legtimos depen-
dentes do segurado aqueles decorrentes de unies de fato ou de relaes no
matrimoniais. Nessa linha de inteleco, veja-se:
Singularmente inovador, para no dizer revolucion-
rio, o captulo da constitucionalizao da famlia, um ter-
reno que no passado estava entregue, quase por inteiro,
livre discrio dos seus integrantes, com destaque para a
figura paterna, na condio de chefe e condutor dos que
gravitavam a seu redor, no s a esposa e os filhos, mas
tambm aqueles que se relacionavam com ele por vnculos
de dependncia econmica, o que, tudo somando e guar-
durante o qual ela tem a responsabilidade de criar e educar os filhos. O casamento deve ser livremente consentido pelos futuros esposos.
7 Nesse panorama, merece destaque a legislao previdenciria, que muito antes da Consti-tuio de 1988 e do Cdigo Civil de 2002 luz das ideias de unio de fato e de dependn-cia econmica j reconhecera como dependentes do segurado, para fins de proteo social, tanto a sua companheira quanto os filhos havidos com ela. No mesmo sentido, no julgamento do RE 66.347, o STF decidiu que a presuno de legitimidade da esposa, para fins de recebi-mento de penso por morte do segurado, no pode ser absoluta, inelutvel e invencvel pr-pria realidade, decaindo ela do direito de postular esse benefcio em favor da companheira do segurado porque ausente o seu maior pressuposto: a dependncia econmica daquele de quem de h muito deixara de depender. A esse respeito, ver, entre outros, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, A previdncia social brasileira e a sua nova organizao, Rio de Janeiro: Record, 1960, e a coletnea Legislao Brasileira de Previdncia Social (org.Victor Valerius), 4. ed. Rio de Janeiro: Grfica Editora Aurora, 1958.
-
Revista da Ajufe 26
dadas as distncias, fazia lembrar o pater famlias do ve-
lho Direito Romano, [...] nada foi mais avanado do que a
nossa legislao previdenciria, que j nos primrdios foi
sincera com as unies de fato, acolhendo como legtimos
dependentes do segurado para dispensar-lhes a neces-
sria proteo social , tanto a sua companheira quanto os
filhos havidos dessa relao no matrimonial.8
De relevo sublinhar que a Constituio de 1988 coloca os valores familiares
como limite liberdade de programao de rdios e da televiso, conforme se
encontra previsto no art. 221 da Carta Poltica.9 Dessa forma, possvel perceber
a importncia da famlia no contexto do constituinte.
A Constituio Federal, no obstante o explanado, constitucionalizou os meca-
nismos de proteo famlia especialmente nos arts. 226 ao 230, alm da criana,
do adolescente e do idoso, todos com a sua devida importncia para a famlia e
para o desenvolvimento do Estado.
O art. 226 da Constituio de 1988 estabelece que a famlia, base da socieda-
de, tem especial proteo do Estado, revelando a proteo do instituto familiar
pelo Estado, alm de cristalizar a importncia da mesma para a sociedade. No 3
do mesmo dispositivo, reconhece-se a unio estvel entre o homem e a mulher
como uma das entidades familiares, devendo a lei facilitar a sua converso em
casamento para fins de proteo do Estado. Isso revela um pensamento muito
avanado dos constituintes, tendo em vista que no ordenamento jurdico brasilei-
ro a unio estvel no era legalizada, negando-se direitos pertinentes aos compa-
nheiros por no serem reconhecidos como uma entidade familiar.
O Cdigo Civil traz, em seu art. 1.723, um conceito bem mais aprofundado de
8 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocncio Mrtires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425 ss.
9 Art. 221. A produo e a programao das emissoras de rdio e televiso atendero aos seguintes princpios: I - preferncia a finalidades educativas, artsticas, culturais e informa-tivas; II - promoo da cultura nacional e regional e estmulo produo independente que objetive sua divulgao; III - regionalizao da produo cultural, artstica e jornalstica, con-forme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores ticos e sociais da pessoa e da famlia.
-
Revista da Ajufe 27
unio estvel, expondo seus requisitos e ratificando que essa unio uma entida-
de familiar nos termos da Carta Poltica: reconhecida como entidade familiar
a unio estvel entre o homem e a mulher, configurada na convivncia pblica,
contnua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituio de famlia.
Hodiernamente, diante do enquadramento da unio estvel como uma entida-
de familiar, os direitos que so originados de um casamento so estendidos aos
companheiros. Como exemplo, tem-se os dependentes da primeira classe do Regi-
me Geral da Previdncia Social RGPS, nos termos do art. 16 da Lei n 8.213/91:
o cnjuge, o companheiro, a companheira.
Alm dessas entidades, a Constituio Federal consagrou como entidade fami-
liar aquela monoparental/unilinear, a qual compreende a formao de uma famlia
por um dos pais e seus descendentes, conforme se depreende da simples leitura
do 4 do art. 226 da Constituio Federal: Entende-se, tambm, como entidade
familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinrio n 687432/
MG, reconheceu que a unio entre pessoas do mesmo sexo merece a aplicao
das mesmas regras e consequncias lgicas legtimas para a unio heteroafetiva.
Entendeu a Suprema Corte que os homossexuais tm o direito constitucional de
ter a sua unio estvel reconhecida como um instituto familiar, devendo receber
igual proteo poltico-administrativo, legal e social.
Acrescentou-se, ademais, que o instituto familiar originado da unio homo-
afetiva no pode sofrer nenhum tipo de discriminao, sendo-lhes devidos os
mesmos direitos, prerrogativas, benefcios e obrigaes inerentes s entidades
familiares formadas pelo sexo distinto. Veja-se, neste diapaso, o seguinte excerto
de lavra do ministro Luiz Fux:
[...] Os homossexuais, por tal razo, tm direito de
receber a igual proteo tanto das leis quanto do sis-
tema poltico-jurdico institudo pela Constituio da
Repblica, mostrando-se arbitrrio e inaceitvel qual-
quer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que
fomente a intolerncia, que estimule o desrespeito e que
desiguale as pessoas em razo de sua orientao sexual.
-
Revista da Ajufe 28
() A famlia resultante da unio homoafetiva no pode
sofrer discriminao, cabendo-lhe os mesmos direitos,
prerrogativas, benefcios e obrigaes que se mostrem
acessveis a parceiros de sexo distinto que integrem uni-
es heteroafetivas.
Continuando os mecanismos de defesa da famlia, a Constituio, no 8 do
art. 226, estabeleceu que o Estado dever garantir assistncia famlia na pes-
soa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violncia
no mbito de suas relaes.
O ordenamento jurdico possui mecanismos de proteo tanto da mulher,
da criana e do idoso. Hoje, tem-se: a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06),
que traz uma especial proteo da mulher em casos de violncia domstica;
o Estatuto da Criana e do Adolescente ECA (Lei 8.069/90), o qual busca a
proteo efetiva da criana e do adolescente nos planos laboral, civil e penal;
o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), protegendo o idoso do descaso pelas fa-
mlias e sociedade, especialmente. Alm desses, existem outros mecanismos
presentes na legislao brasileira que tm como fim proteger a famlia e os
indivduos que a formam, dando-lhes a devida assistncia e proteo.
Tambm constitucionalmente prevista a igualdade entre os cnjuges, di-
tando que na sociedade conjugal os direitos e os deveres inerentes a mesma
so exercidos de forma igual tanto pela mulher quanto pelo homem, nos ter-
mos do art. 226 5 da CF, extinguindo o instituto do pater familias. No mais,
o artigo 1.513 do Cdigo Civil, como forma de proteo, diz que: defeso a
qualquer pessoa, de direito pblico ou privado, interferir na comunho de
vida instituda pela famlia.
Por fim, concretizando o reconhecimento aos direitos de proteo e as-
sistncia famlia previstos no art. 10 do Pacto em exame, no artigo 226,
1 e 2, da Carta de 1988, esto insculpidos a gratuidade da celebrao do
casamento e o reconhecimento dos efeitos civis, nos termos da lei, do casa-
mento no religioso.
-
Revista da Ajufe 29
3.2 Da proteo e assistncia maternidade10
O objetivo de um Estado Democrtico de Direito construir uma sociedade
fundamentada na isonomia entre os seus indivduos, devendo-se garantir a igual-
dade de tratamento com todos os direitos e obrigaes devidos respectivamente a
cada um pertencente ao Estado.
Nesse sentido, o Direito Internacional est fundado na igualdade entre os po-
vos e todos que os constituem. No entanto, existem direitos que foram pactuados
pelos Estados para garantir especial tratamento em relao s mulheres que pas-
sam pelo perodo de gestao e depois do nascimento de seus filhos, pelo tempo
suficiente para garantir os cuidados necessrios desses.
Assim, o prprio Pacto buscou garantir uma proteo tanto s mulheres no pe-
rodo da maternidade quanto s crianas e aos adolescentes, demonstrando que
para ser alcanada a igualdade necessrio, em certos casos, haver a desigualdade.
3.2.1 A legitimidade dos tratamentos especiais a determinados grupos
pela Constituio Federal de 1988
cedio que o ordenamento jurdico brasileiro encampa tratamento jurdico
dspare face s desigualdades de fato de cada indivduo. nesse sentido que deve
ser lido o artigo 193, o qual busca promover a igualdade de oportunidades que-
les que sofreram discriminao durante toda a sua existncia.
Para proteger os referidos grupos existem instrumentos, tais como o Estatuto
da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), entre ou-
tros vocacionados tutela de setores estigmatizados pela sociedade, com o delibe-
rado escopo de igual-los em nvel de oportunidades aos demais grupos sociais.
As medidas que so tomadas para o cumprimento da justia social e da igual-
dade de oportunidades so idneas ao regime adotado pelo Estado brasileiro, um
Estado Democrtico de Direito, bem como s especiais formas de proteo da
mulher e de outros grupos. Assim define o regime adotado Jos Afonso da Silva:
10 2. Deve-se conceder proteo s mes por um perodo de tempo razovel antes e depois do parto. Durante esse perodo, deve-se conceder s mes que trabalhem licena remunerada ou licena acompanhada de benefcios previdencirios adequados.
-
Revista da Ajufe 30
A democracia, como realizao de valores (igualdade,
liberdade e dignidade da pessoa) de convivncia humana,
conceito mais abrangente do que o Estado de Direito, que
surgiu como expresso jurdica democrtica liberal. A su-
perao do liberalismo colocou em debate a sintonia entre
o Estado de Direito e a sociedade democrtica. A evoluo
desvendou sua insuficincia e produziu o conceito de Es-
tado Social de Direito, nem sempre de contedo democr-
tico. Chega-se agora ao Estado Democrtico de Direito que
a Constituio acolhe no art. 1 como um conceito-chave
do regime adotado [...] O Estado Democrtico de Direito re-
ne os princpios do Estado Democrtico e do Estado de
Direito, no como simples reunio formal dos respectivos
elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo
que os supera, na medida em que incorpora um compo-
nente revolucionrio de transformao em status quo. Para
compreend-lo, no entanto, teremos que passar em revista
a evoluo e as caractersticas de seus elementos compo-
nentes, para, no final, chegarmos ao conceito sntese e seu
real significado. 11
Alguns dos dispositivos da Magna Carta brasileira revelam o regime de es-
pecial tratamento a ser adotado em face de alguns grupos sociais mais desfavo-
recidos. Os fundamentos e os objetivos do Brasil consubstanciam-se na busca
por uma sociedade justa, em que a dignidade da pessoa humana se encontra em
primeiro lugar, com base sempre no princpio aristotlico da isonomia.
Para ser possvel atingir o escopo sonhado pelos constituintes de uma justia
social, necessria a discriminao positiva, sendo o agente promotor dessa o
Estado. Em suma, no a disparidade de tratamento vedada pela Constituio,
seno autorizada pela prpria Carta Poltica.
11 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35 ed. So Paulo: Ma-lheiros, 2012, p. 112.
-
Revista da Ajufe 31
Essa discriminao ocorre atravs de medidas estatais voltadas a certos gru-
pos sociais desfavorecidos com a funo de igual-los aos demais. O Estado dis-
crimina, mas no busca prejudicar e sim auxiliar aqueles que sofrem pela dispari-
dade de oportunidades e proteg-los de circunstncias prejudiciais.
Tem-se como exemplo de algumas dessas aes a Lei Maria da Penha (Lei 11.340),
que protege as mulheres que sofrem agresses de seus companheiros no mbito do-
mstico e familiar, bem como as formas de proteo da mulher no mercado de traba-
lho estabelecido pela Constituio Federal e pela Consolidao das Leis Trabalhistas.
3.2.2 Das protees s mes por um perodo de tempo razovel antes e
depois do parto e dos benefcios previdencirios adequados
A Constituio Federal, no art. 7, XX adjudicou proteo especfica ao merca-
do de trabalho da mulher, dispondo que, entre outros direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, dever, nos termos da lei, ser dada especial proteo do mercado
de trabalho da mulher, mediante incentivos especficos.
Nesse mesmo sentido, com a mesma viso dos sujeitos participantes do Pacto,
o constituinte disponibilizou vrios mecanismos de proteo maternidade, ten-
do grande reflexo na legislao infraconstitucional.
A CF/88, no seu art. 10, II, b, dos Atos de Disposies Constitucionais Tran-
sitrias, protege a me gestante com a proibio de dispensa arbitrria ou sem
justa causa da empregada gestante, desde a confirmao da gravidez at 5 (cinco)
meses aps o parto. No art. 7, inciso XVIII, estabelece a licena gestante, sem
prejuzo do emprego e do salrio, com a durao de 120 (cento e vinte dias). Uma
inovao constitucional que ampliou a antiga licena de 90 (noventa) dias.
Nesse diapaso, a legislao infraconstitucional, a CLT, no art. 392, e a Lei do
Regime Geral da Previdncia Social (Lei 8.213/91), no art. 71, preveem que a em-
pregada gestante tem direito licena-maternidade de 120 (cento e vinte) dias,
sem prejuzo do salrio e do emprego. Ainda, na CLT, nos 1 e 2 do dispositivo
j citado, estabelece que a empregada gestante poder se afastar entre o 28 dia
antes do parto at a ocorrncia desse, podendo ser aumentado de 2 (duas) sema-
nas os perodos de repouso antes e depois do parto.
gestante garantida, sem prejuzo do salrio e demais direitos, nos termos do
-
Revista da Ajufe 32
art. 392, 4, I e II, da CLT, a transferncia de funo nos casos em que as condi-
es de sade o exigirem, assegurada a retomada da funo anteriormente exerci-
da, logo aps o retorno ao trabalho, bem como a dispensa no horrio de trabalho
pelo tempo necessrio para a realizao de, no mnimo, 6 consultas mdicas e
demais exames complementares.
Aps o nascimento, para garantir os devidos cuidados com o beb, a CLT
impe s empresas o dever de garantirem um espao para que as mes possam
cuidar dos filhos de colo. O art. 400 impe que os locais destinados guarda
dos filhos das operrias, durante o perodo de amamentao, devero conter, no
mnimo, um berrio, uma saleta de amamentao, uma cozinha diettica e uma
instalao sanitria.
O art. 389, por sua vez, nos 2 e 3, atribui o dever de as empresas ins-
talarem local apropriado onde seja permitido s empregadas guardarem sob a
vigilncia e a assistncia seus filhos no perodo de amamentao, nos estabele-
cimentos em que trabalharem, pelo menos, 30 (trinta) mulheres com mais de 16
(dezesseis) anos, podendo ser suprido por creches distritais mantidas diretamente
pelo empregador ou por convnio com outras entidades.
Alm desses mecanismos, a CLT prever formas de garantia do emprego da ges-
tante, consagrando, no art. 391, que a gravidez no constitui justo motivo para a
resciso do contrato de trabalho da mulher, bem como veda que haja regulamentos
de qualquer natureza restringindo os seus direitos em decorrncia desse estado.
Nesse mesmo sentido, prev o art. 391-A, includo em 2013 pelo legislador, aps
a pacificao jurisprudencial12 e doutrinria, a estabilidade provisria da gestante,
nos termos do art. 10, II, b do ADCT, durante o prazo do aviso-prvio trabalhado
ou indenizado, principalmente nos contratos de emprego por tempo determinado.
H que se destacar, tambm, que a CF/88 consagrou, no campo previdencirio,
12 Smula do TST n 244 - GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISRIA (redao do item III alterada na sesso do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012 DEJT di-vulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I - O desconhecimento do estado gravdico pelo empregador no afasta o direito ao pagamento da indenizao decorrente da estabilidade (art. 10, II, b do ADCT). II - A garantia de emprego gestante s autoriza a reintegrao se esta se der durante o perodo de estabilidade. Do contrrio, a garantia restringe-se aos salrios e demais direitos correspondentes ao perodo de estabilidade. III - A empregada gestante tem direito estabili-dade provisria prevista no art. 10, inciso II, alnea b, do Ato das Disposies Constitucio-nais Transitrias, mesmo na hiptese de admisso mediante contrato por tempo determinado.
-
Revista da Ajufe 33
o dever de proteger a maternidade, especialmente a gestante, garantindo-lhe as-
sistncia por meio da Previdncia Social.
Art. 201. A previdncia social ser organizada sob a
forma de regime geral, de carter contributivo e de filiao
obrigatria, observados critrios que preservem o equil-
brio financeiro e atuarial, e atender, nos termos da lei, a:
[...] II - proteo maternidade, especialmente gestante;
Dessa forma, o RGPS garantiu o salrio-maternidade s gestantes, sendo devido quan-
do o parto ocorrer a partir do 6 ms ou na 23 semana de gestao, adoo de crianas,
guarda judicial de crianas para fins de adoo e em casos de aborto no criminoso.
Ressalta-se, tambm, como um dos mecanismos de proteo da materni-
dade pelo ordenamento jurdico brasileiro baseado nos termos do pacto, a Lei
11.770/08, que instituiu o Programa Empresa Cidad, destinado a prorrogar o
prazo de licena-maternidade por mais 60 (sessenta) dias.
Essa prorrogao, a ttulo de informao, ser garantida empregada da pes-
soa jurdica que aderir ao referido programa, devendo ser requerida a prorroga-
o pela gestante at o fim do primeiro ms aps o parto.
Durante esse novo perodo, a empregada ter direito, nos termos do art. 3 da
referida lei, sua remunerao integral, da mesma forma que os devidos no per-
odo de percepo do salrio-maternidade, sendo que ser pago diretamente pelo
empregador e no pela Previdncia Social.
3.3 Da proteo e assistncia s crianas e aos adolescentes13
O constituinte de 1988, na mesma toada do Pacto, consolidou no caput do art.
13 3. Devem-se adotar medidas especiais de proteo e de assistncia em prol de todas as crianas e os adolescentes, sem distino por motivo de filiao ou qualquer outra condio. Devem-se proteger as crianas e os adolescentes contra a explorao econmica e social. O emprego de crianas e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos sade ou que lhes faam correr perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento nor-mal, ser punido por lei. Os Estados devem tambm estabelecer limites de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o emprego assalariado da mo de obra infantil.
-
Revista da Ajufe 34
227 da CF/88 que dever da famlia, da sociedade e do Estado garantir criana,
ao adolescente e ao jovem,14 com absoluta prioridade, o direito vida, sade,
alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade,
ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de sempre
garantir a segurana deles de todas as formas de negligncia, discriminao, ex-
plorao, violncia, crueldade e opresso.
O Tratado, no item 3 do seu art. 10, na parte inicial, revela que os Estados re-
conhecem que todas as crianas e os adolescentes merecem os mesmos direitos e
garantias sem discriminaes, salvo em nome do princpio isonmico.
Nesse raciocnio, a CF/88 estabeleceu, no 6 do art. 227, que os filhos, havi-
dos ou no no casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualifica-
es, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao. Bem
traduz esse artigo Inocncio Mrtires Coelho:
Quanto pessoa dos filhos, igualmente digna de lou-
vor a determinao constitucional no sentido de que, havi-
dos ou no dentro do casamento, ou por adoo, tero eles
os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer
designaes discriminatrias relativas filiao.15
Outra forma de proteo constitucional das crianas e dos adolescentes foi o
dever da criao de um estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos
jovens, e a articulao de um plano nacional da juventude, de durao decenal,
visando articulao das vrias esferas do poder pblico para a execuo das
polticas pblicas voltadas para as crianas e os adolescentes.
Com base nos princpios do Pacto e da Conveno dos Direitos da Criana
de 1989, ratificado pelo Brasil em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criana e
do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), norteado na Doutrina da Proteo Integral,
essa estabelecendo o dever do Estado, da sociedade e da famlia de tomarem os
14 O termo jovem no estava presente na redao original do texto da Carta Poltica, sendo acrescentada em 2010 pela Emenda Constitucional n 65.
15 Op. cit., p. 1.426.
-
Revista da Ajufe 35
devidos cuidados dos menores de forma absoluta, conforme j foi anteriormente
estabelecido pelo Poder Constituinte no art. 227, dando-se assistncia e proteo
necessrias para as crianas e os adolescentes.
Valter Kenji Ishida leciona que o ECA, com base na Doutrina da Proteo Inte-
gral, busca garantir todos os direitos especiais e especficos de todas as crianas
e os adolescentes, alm de dar especial proteo a elas. uma forma de efetivao
de todos os diretos fundamentais da criana e do adolescente e proteo, sem
discriminao, garantindo-se os preceitos do pacto. Veja:
Segundo a doutrina, o Estatuto da Criana e do Ado-
lescente perfilha a doutrina da proteo integral, baseada
no reconhecimento de direitos especiais e especficos de
todas as crianas e adolescentes. Foi anteriormente previs-
ta no texto constitucional, no art. 227, instituindo a chama-
da prioridade absoluta. Constitui, portanto, em uma nova
forma de pensar, com o escopo de efetivao dos direitos
fundamentais da criana e do adolescente. A CF, em seu art.
227, afastou a doutrina da situao irregular e passou a
assegurar direitos fundamentais criana e ao adolescen-
te. Tratou na verdade de uma alterao de modelos ou de
forma de atuao. A doutrina da situao irregular limita-
va-se basicamente a 3 (trs) matrias: (1) menor carente; (2)
menor abandonado; (3) diverses pblicas.16
No campo laboral, tanto a CLT quanto o ECA estabelecem situaes de pro-
teo, cuidados e vedaes com os menores nas relaes de emprego, dentro da
viso do item 3 do artigo 10 do pacto:
Devem-se proteger as crianas e adolescentes contra
a explorao econmica e social. O emprego de crianas
e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos sa-
16 ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criana e do Adolescente. 12 ed. So Paulo: Atlas, 2010, p. 1.
-
Revista da Ajufe 36
de ou que lhes faam correr perigo de vida, ou ainda que
lhes venham a prejudicar o desenvolvimento normal, ser
punido por lei. Os Estados devem tambm estabelecer limi-
tes de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o
emprego assalariado da mo-de-obra infantil.
A CF/88, como as citadas legislaes pertinentes, estabeleceu o mecanismo
inicial de proteo ao trabalho do menor e definiu a idade de incio do trabalho
e as vedaes. No art. 7, XXXIII, est a proibio do trabalho noturno, perigoso
ou insalubre ao menor de 18 anos e de qualquer trabalho ao menor de 16 anos,
ressalvado a partir de 14 anos na condio de aprendiz.
Na CLT, o trabalho do menor no poder ser realizado em locais prejudiciais
sua formao, ao desenvolvimento fsico, psquico, moral e social e em horrios e
locais que no permitam a frequncia escola, nos termos do art. 403. Ainda, nos
arts. 405, 407, prever que depender de prvia autorizao do juiz o trabalho rea-
lizado nas ruas, praas e outros logradouros, sendo que o mesmo dever verificar
se o trabalho indispensvel subsistncia do menor ou de seus pais, avs ou ir-
mos, sem, em qualquer caso, prejuzo sua formao moral. Caso seja verificado
que o trabalho prejudicial sade, ao desenvolvimento fsico ou moral, poder
a autoridade competente obrigar o menor a sair da ocupao ou fazer com que o
empregador o mude de funo.
4. Concluso
O constituinte de 1988, antes mesmo de o Estado brasileiro ratificar o pacto
e dar-lhe vigncia, j tinha conscincia da imperiosa necessidade de dar especial
proteo e assistncia famlia, s mes, antes e depois do parto, e s crianas e
aos adolescentes.
Destarte, as inovaes trazidas pela Constituio Federal de 1988, aps um
longo perodo de tempo de regime ditatorial, revelam que o Brasil reconheceu
e abraou os ideais do PIDESC, em especial o art. 10 desse, antes mesmo de sua
adeso em 1992.
O Pacto consagrou a proteo a diversos direitos que possuem reflexos nos
-
Revista da Ajufe 37
campos social, econmico e cultural. Os direitos que foram expostos mostram que
o legislador brasileiro, em respeito tanto CF/88 quanto ao Pacto, cumpriu com a
misso, imposta pelo referido tratado, de dar a devida proteo e assistncia fa-
mlia, s mes durante o perodo da maternidade e s crianas e aos adolescentes.
Sem sombra de dvida, o Brasil consagra no plano do dever-ser os direitos
consagrados no art. 10 do Pacto, em especial nos mbitos laboral, civil, previ-
dencirio, entre outros, previstos os direitos e as garantias fundamentais para os
grupos referidos no tratado.
No obstante isso, so notrias as dificuldades para a aplicao da legislao.
Muitas decorrem da falta de estrutura, corrupo, fraude e do sentimento ego-
cntrico em prejuzo da coletividade. No entanto, no campo terico, importante
exaltar todas as inovaes trazidas e reconhecer que o Brasil est caminhando de
acordo com os fins que garantem a dignidade da pessoa humana.
4. Referncias Bibliogrficas
HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Pblico. So
Paulo: Malheiros, 1995.
ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criana e do Adolescente. 12 ed. So
Paulo: Atlas, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocncio Mrtires; BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2009.
PORTELA, Henrique Gonalves Paulo. Direito Internacional Pblico e Pri-
vado. 3 ed. Bahia: Juspodivm, 2011.
REZEK, Jos Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35 ed.
So Paulo: Malheiros, 2012.
-
Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorrios maculados
-
Revista da Ajufe 40
Vlamir Costa Magalhes Mestre em direito penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Ps-graduado em Regulao e Direito Pblico da Economia pela Universidade de Coimbra/Portugal. Juiz Federal.
Sumrio: 1. Relato histrico; 2. A contextualizao da lavagem de dinhei-
ro no cenrio jurdico-penal contemporneo; 3. A realidade atual da lavagem
de dinheiro; 4. Compliance: o dever de colaborao antilavagem; 5. A teoria
da cegueira deliberada; 6. A teoria dos honorrios maculados; 7. Concluso;
8. Referncias.
Resumo: O estudo aborda a lavagem de dinheiro como espcie crimino-
sa, abrangendo desde o seu histrico at a realidade atual. Neste aspecto,
busca-se contextualizar o tema no cenrio do mundo globalizado, enfati-
zando-se a responsabilidade de advogados e agentes econmico-financei-
ros quanto colaborao no combate lavagem de dinheiro, sobretudo no
tocante teoria da cegueira deliberada e teoria dos honorrios maculados.
Palavras-chave: lavagem dinheiro cegueira deliberada honor-
rios - maculados
Abstract: The study deals with money laundering as criminal specie,
ranging from its history to the present reality. In this regard, the author
seek to contextualize the subject in the scene of a globalized world, em-
phasizing the responsibility of lawyers and economic agents in combating
money laundering, particularly as regards the theory of willful blindness
and the theory of fees tainted.
Keywords: laundering - money - blindness - willful - fees - tarnished
A democracia liberal protege os direitos do homem e no os crimes do
homem. Maldita seria a democracia liberal, se se prestasse a uma poltica de
-
Revista da Ajufe 41
cumplicidade com a delinquncia.1
1. Relato histrico
A cincia penal enfrenta atualmente uma nova era da criminalidade marca-
da pela organizao, internacionalidade e poderio econmico.2 As tendncias
do sistema punitivo so, mais do que nunca, pautadas pelas nuances econ-
mico-sociais. Neste contexto, a camuflagem do patrimnio de origem ilcita
tem se revelado como instrumento de perpetuao do ciclo vicioso de refinan-
ciamento da delinquncia moderna, motivo pelo qual significativa parcela da
doutrina vem contrariando o j corriqueiro discurso de crtica ao alargamento
temtico do ordenamento criminal, uma vez que se reconhece no combate
lavagem de dinheiro um claro exemplo de expanso razovel3 do Direito Penal.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o encobrimento do produto patrimo-
nial de infraes penais resume a essncia do que se convencionou chamar
de lavagem de dinheiro e a tipificao penal desta conduta no representou
a simples adio de um delito ao catlogo legal, mas sim a implementao de
indita poltica de enfrentamento das graves e incisivas manifestaes crimi-
1 Cf. HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Cludio Heleno. Comentrios ao Cdigo Penal, vol. I, tomo I: arts. 1o ao 10. 5a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 67.
2 SILVA-SNCHEZ, Jess-Maria. A expanso do direito penal: aspectos da poltica criminal nas sociedades ps-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. So Paulo: RT, 2002, p. 80.
3 Pela pertinncia do trecho, vale a transcrio: O que interessa ressaltar neste momento to-somente que existe, seguramente, um espao de expanso razovel do Direito Penal, ainda que, com a mesma convico prxima da certeza, se deva afirmar que tambm se do importantes manifestaes da expanso desarrazoada. A ttulo puramente orientativo: a en-trada macia de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotrfico) em um determinado setor de economia provoca uma profunda desestabilizao desse setor, com importantes repercusses lesivas. , pois, provavelmente razovel que os responsveis por uma injeo macia de dinheiro negro em um determinado setor da economia sejam san-cionados penalmente pela comisso de um delito contra a ordem econmica. Mas, vejamos, isso no faz, por si s, razovel a sano penal de qualquer conduta de utilizao de pequenas (ou mdias) quantidades de dinheiro negro na aquisio de bens ou retribuio de servios. A tipificao do delito de lavagem de dinheiro , enfim, uma manifestao de expanso razo-vel do Direito Penal (em seu ncleo, de alcance muito limitado) e de expanso irrazovel do mesmo (no resto das condutas, em relao as quais no se possa afirmar em absoluto que, de modo especfico, lesionem a ordem econmica de modo penalmente relevante). Cf. SILVA--SNCHEZ, Jess-Mara, op. cit., p. 28.
-
Revista da Ajufe 42
nosas que, de regra, precedem ou envolvem a lavagem de dinheiro.4
H milnios, o Cdigo de Hamurabi j punia, com a pena de morte, aquele
que se encontrasse na posse ou fruio de bens da Corte, da Igreja ou de es-
cravos de terceiros, sem a devida comprovao da licitude da aquisio.5 H,
no entanto, quem aponte que a incriminao mais assemelhada lavagem
teve origem na China, onde, h cerca de trs mil anos, era previsto o sancio-
namento penal de mercadores que transferissem a terceiros bens sonegados
perante o Estado.6
Se por um lado, perdem-se no tempo as tentativas de fazer valer o dita-
do segundo o qual o crime no compensa - ou no deve compensar -, por
outro lado, recente o processo de sofisticao da reciclagem patrimonial.
Na interessante dico de AMBOS,7 a mentalidade reitora da vigente poltica
criminal pretende que o criminoso seja obrigado a permanecer sentado em
seu capital sujo, o que deve se dar, segundo a complementao de MORO,8
at que o Estado lhe tome o assento.
extensa a variedade de denominaes aplicadas dissimulao de bens
decorrentes da prtica de infraes penais, sendo colacionadas pela doutrina
especializada as seguintes: blanchiment dargent (Frana e Blgica); blanchis-
sage (Sua); gelwsche (Alemanha); blanqueo de capitales (Espanha); ricicla-
ggio di denaro sporco (Itlia); lavado de dinero (Argentina); money laudering
(EUA e Reino Unido) e branqueamento de capitais (Portugal). Desta exposio,
constata-se que a preocupao em torno do tema est longe de ser exclusiva
de determinado pas ou regio, sendo, ao revs, compartilhada universalmente.
Acolheu-se no Brasil a expresso lavagem de dinheiro, o que, segundo a
4 MORO, Srgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 16.
5 GIORDANI, Mrio Curtis. Histria do Direito Penal entre os povos antigos do oriente pr-ximo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 12/17.
6 Neste sentido: MACEDO, Amilcar Fagundes Freitas. O crime de lavagem de dinheiro algu-mas reflexes. Revista da AJURIS Associao dos Juzes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AJURIS, maro/2008, p. 10.
7 AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Por-to Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 63.
8 MORO, Srgio Fernando. Op. Cit., p. 16.
-
Revista da Ajufe 43
exposio de motivos da Lei n. 9.613/98,9 ocorreu com base em duas justifi-
cativas: (1) a tentativa de uniformizao mediante acolhimento da linguagem
usualmente empregada em tratados internacionais sobre a matria e (2) a in-
teno de afastar possveis conotaes racistas decorrentes do termo bran-
queamento. Entretanto, subsiste crtica doutrinria que vislumbra a opo
do legislador como atcnica e desafortunada10, seja pelo indevido emprego
de linguagem figurada, seja porque, segundo a prpria dico legal, o com-
portamento incriminado abrange como possvel objeto material no apenas
dinheiro em espcie, mas quaisquer bens, direitos ou valores provenientes,
direta ou indiretamente, da prtica de infrao penal.
Etimologicamente, costuma-se atribuir o surgimento da expresso mo-
ney laudering (lavagem de dinheiro, em traduo literal) ao fato de Alphon-
sus Gabriel Capone, criminoso talo-americano conhecido como Al Capone
ou Scarface, ter utilizado lavanderias de roupas e automveis para mascarar
sua ilcita evoluo patrimonial. Vale lembrar que, apenas em 1931, Capone
veio a ser condenado por sonegao de imposto de renda, sendo certo que
jamais foi responsabilizado pelo crime que o notabilizou, qual seja o contra-
bando de bebidas alcolicas durante a vigncia da Lei Seca nos EUA.11
No interessante relato de MORRIS12 consta que os agentes pblicos res-
9 O texto integral consta do seguinte endereo eletrnico: https://www.coaf.fazenda.gov.br. Acesso em 21.06.2013.
10 H quem proponha a denominao lavagem de ativos. Neste sentido: CALLEGARI, Andr Lus; Scheid, Carlos Eduardo e Andrade, Roberta Lofrano. Breves anotaes sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais n. 92. So Paulo: RT, setem-bro/2011, p. 247. Embora seja correta a crtica doutrinria, sero indistintamente utilizadas neste trabalho as expresses lavagem de dinheiro e de capitais, haja vista a corriqueira utili-zao de ambas no mbito doutrinrio e jurisprudencial..
11 Sobre o tema, segue a interessante impresso de FROSSARD:Desde a famosa condena-o de Al Capone por sonegao de imposto de renda, sabemos que o aspecto financeiro o ponto muitas vezes vulnervel de organizaes criminosas. No entanto, no somos apenas ns, autoridades pblicas, que aprendemos com a experincia. O crime organizado tambm aprende sua lio e sabe que preciso ocultar, cada vez melhor, os rendimentos obtidos com a prtica de delitos. Essa realidade exige de ns a atualizao permanente. Cf. FROSSARD, Denise. A Lavagem de Dinheiro e a Lei Brasileira. In: Revista de Direito Penal n. 01. Porto Alegre: Editora Magister, agosto/2004, p. 30.
12 MORRIS, Stanley E. Aes de combate lavagem de dinheiro em outros experincia americana. In: Anais do Seminrio Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Braslia: Centro de Estudos Judicirios do Conselho da Justia Federal, 2000, p. 37.
-
Revista da Ajufe 44
ponsveis pela captura de Capone no eram policiais fortemente armados,
conforme retratado no premiada produo hollywoodiana intitulada Os In-
tocveis, mas sim contadores da agncia de tributos dos EUA (atualmente
Secretaria da Receita Federal), ento chefiados pelo economista Eliot Ness.
Este dado enfatiza a realidade tpica de uma criminalidade inteligente, re-
quintada e que foge do esteretipo predominantemente violento ao qual o
sistema penal est acostumado. Tanto assim que o insucesso de Capone no
encobrimento da raiz criminosa de sua renda estimulou outros criminosos
a contratarem profissionais do campo jurdico-financeiro visando criao
de mtodos que os livrassem do mesmo destino, o que deu origem, por exem-
plo, ideia de investimento em cassinos de Las Vegas e Cuba.
Inicia-se, ento, a tendncia de terceirizao e especializao da lavagem
fazendo com que, a cada ao repressiva das autoridades estatais, novas
metamorfoses sejam notadas no tocante ao aperfeioamento tcnico e ex-
panso mercadolgica da lavagem de dinheiro. Estudos recentes apontam,
por exemplo, que, sobretudo na Itlia e na Inglaterra, clubes de futebol vm
servindo como veculos para reciclagem de recursos ilcitos.13 Talvez por
mera coincidncia (talvez no), clubes brasileiros remeteram, entre os anos
de 2002 e 2012, cerca de cento e noventa milhes de dlares para pases
considerados parasos fiscais (dentre eles, Ilhas Virgens e Bahamas) em ne-
gociaes de direitos federativos sobre atletas.14
Por todas as vicissitudes demonstradas, a lavagem de dinheiro tem se
desenhado como viva expresso de teoria criminolgica da aprendizagem
social, tambm denominada associao diferencial,15 o que importa em re-
13 Neste sentido: GREER, Charlie. Money laudering in football. Texto em idioma ingls dis-ponvel em: http://www.proximalconsulting.com/. Acesso em 01.05.2013.
14 Conforme matria publicada, no dia 14.07.2013, pelo jornal Folha de So Paulo (p. D1) ba-seada em dados do Banco Central. Tambm alertando sobre o tema: DE SANCTIS, Fausto Martin. Lavagem de dinheiro: jogos de azar e futebol anlise e proposies. Curitiba: Juru, 2010.
15 Neste sentido: GOMES, Luiz Flvio. Sobre a impunidade da macro-delinquncia eco-nmica desde a perspectiva criminolgica da teoria da aprendizagem. In Revista Brasileira de Cincias Criminais. Ano 3. Nmero 11. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, julho--setembro de 1995, p. 172. A teoria da associao diferencial ou da aprendizagem social foi vislumbrada por Edwin H. Sutherland na dcada de 30 e prega que a atuao criminosa difundida por meio de um processo de convivncia e comunicao denominado interacionis-mo simblico. Assim, a verdadeira origem da delinquncia econmica moderna estaria ligada
-
Revista da Ajufe 45
afirmar o equvoco de no se enxergar que organizaes criminosas tm
tirado lies de suas prprias falhas de modo a estarem sempre um passo
frente do Estado, tarefa na qual, infelizmente, tm logrado xito.
O marco normativo internacional acerca da incriminao da lavagem de
capitais somente adveio em 20.12.1988,16 com a celebrao da Conveno
de Viena contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes,17 na qual se determinou
(art. 3) aos Estados signatrios a tipificao penal da dissimulao de bens
oriundos da explorao do narcotrfico, o que compreensvel, haja vista
ser este, ainda hoje, o delito mais lucrativo que se conhece.18 Assim, reconhe-
cida a independncia do interesse jurdico tutelado por meio da incrimina-
o da lavagem de dinheiro em relao ao delito antecedente,19 os ordena-
mentos nacionais passaram a incriminar a lavagem de capitais e no mais
transmisso de informaes, racionalizaes e motivos favorveis ao caminho criminoso. Em suma, o crime no seria um fato hereditrio, fortuito ou irracional: o crime se aprende e a transmisso deste ensinamento provoca uma reao em cadeia (efeito ressaca ou espiral). Sobre o tema: SERRANO MALLO, Alfonso. Introduo Criminologia. 1a ed. Trad. Luiz Regis Prado. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 202; GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flvio. Criminologia. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 275 e HASSEMER, Winfried e MUOZ CONDE, Francisco. Introduo criminologia. Trad. Cntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 60.
16 A Itlia foi o primeiro pas a criminalizar a lavagem de capitais, o que se deu em 1978. Os EUA o fizeram em 1986, por meio da edio do Money Laudering Control Act.
17 No Brasil, o Decreto n. 154, de 26.06.1991, promulgou a Conveno de Viena contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas.
18 A Conferncia das Naes Unidas sobre o crime organizado global de 1994 estimou que o trfico mundial de drogas auferia em torno de 500 milhes de dlares anualmente, ou seja, um volume lucrativo maior que o do comrcio mundial de petrleo. Cf. ZIGA RODRGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuicin a la determinacin del injusto penal de organizacin criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, p. 3.
19 Embora haja divergncia quanto ao interesse jurdico tutelado por meio da incriminao da lavagem de dinheiro, reconhece-se maciamente a autonomia deste em relao ao crime antecedente e, por conseguinte, a no aplicao do princpio da consuno hiptese e o no cabimento da alegao de dupla punio pelo mesmo fato (bis in idem). Neste sentido: CALLEGARI, Andr Lus; SCHEID, Carlos Eduardo e ANDRADE, Roberta Lofrano. Breves ano-taes sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais n. 92. So Paulo: RT, setembro/2011, p. 244. Registre-se, porm, que GRECO FILHO defende isola-damente que o crime de lavagem de dinheiro no tem autonomia, eis que tutelaria exclusiva-mente um bem jurdico satlite ou perifrico j protegido pelo crime antecedente. Neste sentido: FILHO, Vicente Greco. Tipicidade, bem jurdico e lavagem de valores. Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais. In: Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais Viso Luso Brasileira. Coord. Jos de Faria & Silva e Marco Antonio Marques da Costa. So Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 454.
-
Revista da Ajufe 46
consider-la como mera fase de exaurimento do crime antecedente.
Paralelamente, foram envidados esforos no sentido de criar entidades e
instrumentos internacionais antilavagem, destacando-se, neste particular, a
criao do GAFI Grupo de Ao Financeira Internacional, organismo inter-
governamental criado em dezembro de 1998 e que tem o objetivo de colher
dados e editar recomendaes20 sobre medidas de combate lavagem de di-
nheiro, bem como avaliar o cumprimento destas mediante listagem de pases
no-cooperantes.
imperativo esclarecer que as eufemsticas alcunhas de paraso fiscal,
tax haven ou pas no-cooperante podem induzir falsa noo de mera
caracterizao de imunidade tributria. Em verdade, a denominao apli-
cvel a Estados que, com o intuito de atrair capitais de qualquer procedn-
cia, promovem a profunda desregulamentao de seus sistemas bancrios e
financeiros, abdicando ou fazendo vistas grossas em relao diretriz know
your customer, isto , a poltica de identificao dos titulares dos investi-
mentos e manuteno de registros das respectivas operaes.21
Aps longo perodo de certa condescendncia22 com o crime de lavagem
20 As 40 recomendaes do GAFI foram prolatadas em 1990 e revistas pela primeira vez em 1996. Nesta ltima verso, foram adotadas por mais de 130 pases, passando a constituir o padro internacional de combate lavagem de dinheiro. Este histrico e o teor de todas as recomendaes mencionadas encontram-se disponveis, em idioma ingls, no seguinte ende-reo eletrnico: http://www.fatf-gafi.org. Acesso em 05.01.2013.
21 Cite-se o exemplo das Ilhas Cayman que possuam, no ano 2000, cerca de 36 mil habi-tantes e uma taxa de 1,25 empresas por habitante, alm de um total de 596 bancos e 1.800 fundos de investimentos, nos quais encontravam-se alocados cerca de 500 bilhes de dla-res, o que tornava este pequeno pas no quinto centro financeiro do mundo. Ocorre que, do total citado, apenas 110 bancos mantinham sede fsica no pas e os demais estariam situados em coqueirinhos, sendo assim chamadas as caixas postais do local. Um estudo do FMI da-tado de 1997 j retratava o crescimento do montante em dinheiro depositado em parasos fiscais, de um total de 3,5 trilhes e meio de dlares em 1992 para 4,8 trilhes de dlares em 1997, sendo que 1/3 deste valor estaria em parasos caribenhos. Curiosamente, o ciclo histrico denota que, no passado, os piratas medievais teriam escondido naquelas ilhas seus tesouros surrupiados ao passo que, no presente, so os piratas econmico-financeiros da modernidade que voltam a fazer o mesmo, mas de maneira muito mais sofisticada e sorratei-ra. Cf. MORAES, Deomar de. Parasos fiscais, centros offshore e lavagem de dinheiro. Anais do Seminrio Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Braslia: Centro de Estudos Judicirios do Conselho da Justia Federal, 2000, p. 95/103.
22 Em entrevista publicada no jornal Folha de So Paulo, em 28.10.2005, p. A-7, o ento Ministro da Justia, Mrcio Thomaz Bastos, afirmou o seguinte: Existe hoje no Brasil, soli-damente estabelecida, uma cultura de condescendncia com a lavagem de dinheiro. Ainda segundo o ento Ministro, a luta contra a lavagem de dinheiro precisaria prosseguir por v-
-
Revista da Ajufe 47
de dinheiro, o Brasil comea a dar sinais de que pretende alinhar-se ao mo-
vimento internacional a fim de no se tornar mais um refgio seguro para
capitais de origem ilcita. Fato que, ao menos por ora, as normas antilava-
gem tm escassa aplicao no Brasil e somente em casos pontuais o assunto
toma a ateno da sociedade, o que se d, sobretudo, por impulso de man-
chetes jornalsticas.
2. A contextualizao da lavagem de dinheiro no cenrio jurdico-pe-
nal contemporneo
Costuma-se atribuir ao movimento iluminista a formao do Direito Pe-
nal chamado doutrinariamente de liberal, tradicional ou clssico e que teria
se constitudo a partir da segunda metade do sculo XVIII. Tratava-se do
esboo de um sistema de garantias voltado a albergar liberdades individuais
em face das arbitrariedades tpicas da era feudal. Neste contexto, desenvol-
veu-se um conjunto de ideias que funcionou como plataforma de resistncia
ao sistema punitivo do Estado Absolutista. Nota-se, entretanto, que a pauta
de discusses penais gravita atualmente sobre delitos distintos do paradig-
ma clssico e, neste aspecto, perde fora o protagonismo dos crimes violen-
tos (ou de sangue) e da delinquncia patrimonial em sentido estrito, tpicos
dominantes no sculo XIX e em boa parte do sculo XX.
H dcadas, BARATTA j assinalava que os interesses que pertencem ao
mbito da incolumidade fsica e patrimonial individual so historicamen-
te privilegiados em relao aos interesses difusos ou coletivos (tambm do
ponto de vista jurdico-processual), ainda que estes ltimos no sejam me-
nos importantes para a qualidade de vida dos indivduos e afetem a um n-
mero maior deles. Logo, o Direito Penal no pode se furtar ao cumprimento
de sua misso fundamental concernente proteo dos bens jurdicos mais
importantes para a sociedade de sua poca. Neste aspecto, para alm da li-
berdade e do patrimnio meramente individual, o ordenamento penal deve
rios motivos e arrematou que: (...) o principal deles que (a lavagem) atrapalha a luta contra o crime organizado, porque essa massa de dinheiro acaba se misturando com o dinheiro do traficante de drogas, do traficante de seres humanos, de armas, que, esses sim, esto conde-nados ao caixa dois e tm de ser combatidos fortemente pelo poder pblico.
-
Revista da Ajufe 48
proteger tambm as circunstncias econmico-sociais necessrias convi-
vncia pacfica e ao desenvolvimento da cidadania, bem como o funciona-
mento do aparato estatal destinado ao atendimento destes objetivos.
Sob risco de injustificvel ucronismo,23 j no se mostra vivel a centra-
lizao do debate jurdico-penal na criminalidade das ruas (patrimonial e
violenta), com seus mtodos explcitos, alm de autores e vtimas bem iden-
tificados individualmente. H que se atentar para o fato de que as mais fortes
expresses da macrocriminalidade moderna (v.g.: trfico de armas, pesso-
as e entorpecentes; crimes econmico-empresariais; fraudes fiscais, dentre
outros) atingem interesses no diretamente individuais, mas sim de toda a
coletividade. No mesmo diapaso, a impresso de FELDENS d conta de que,
na era da sociedade em rede, a criminalidade violenta v-se substituda pela
astcia, pelo enleio, pelo ardil, pela fraude e pelo artifcio num contexto em
que as ruas cedem espao s infovias, fazendo do computador e da tecnolo-
gia instrumentos do crime.
Na dinmica do planejamento da delinquncia moderna, observa-se que
a dissimulao do patrimnio de procedncia ilcita tem funcionado como
mola propulsora de grupos criminosos estruturados que, desta forma, ga-
rantem a preservao e, no raramente, o incremento de seu poder econ-
mico. No h dvidas de que a reciclagem de dinheiro sujo propicia tambm
amplas possibilidades de insero de delinquentes no tecido social, em es-
pecial por meio do exerccio de atividades aparentemente inofensivas. Desta
forma, a um s tempo, logra-se a dissimulao do patrimnio de origem
ilegal e, de quebra, aufere-se prestgio junto sociedade.
Com amparo em ampla convergncia doutrinria, reconhece-se que a la-
vagem de capitais e as organizaes criminosas mantm ligao no s an-
tiga, mas, acima de tudo, umbilical.24 No bojo do processo scio-econmico
23 SILVA-SNCHEZ emprega a expresso ucronismo para expressar a mescla entre utopia e histria, uma espcie de exerccio mental de imaginar a histria da forma como ela poderia ter sido e no como realmente transcorreu. Neste sentido, o aludido autor chama de ucronis-mo a resistncia de parcela da doutrina quanto modernizao do Direito Penal e tentativa de retorno ao modelo centrado na proteo exclusiva de interesses individuais. Cf. SILVA--SNCHEZ , Jess-Maria. Op. cit., p. 136.
24 GODINHO Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de branqueamento de capitais: intro-duo e tipicidade. Coimbra: Almedina, 2001, p. 31.
-
Revista da Ajufe 49
da lavagem de capitais ganha nfase a crescente associao negocial entre a
macrodelinquncia e os colarinhos brancos, sendo estes personificados por
profissionais que dominam as estratgias de escamoteamento e movimen-
tao de ativos, com destaque para a robusta utilizao de artifcios ciber-
nticos. Esta sintonia fina denota o perfeito enquadramento da criminalida-
de hodierna nas caractersticas primordiais da delinquncia do colarinho
branco,25 sendo este tambm um dos fatores que sinalizam a insero da
lavagem de dinheiro no contexto do Direito Penal Econmico,26 em quais-
quer de suas acepes.27
Em meio ao declnio da noo tradicional de soberania, o mundo passou
a assistir, a partir do final do sculo XX, a profundas mudanas nas mais va-
riadas searas da atuao e do conhecimento, sendo estas alavancadas pelo
avano tecnolgico sem precedentes. Na viso ostentada por BECK,28 aliada
revoluo dos meios de comunicao e informao, a crescente interao
do comrcio internacional e conexo dos mercados financeiros so as mar-
cas fundamentais do irreversvel processo de globalizao.
A extrema volatilidade dos fluxos financeiros internacionais tornou di-
fcil a identificao da procedncia dos recursos, bem como a aferio das
intenes dos que os manipulam distncia. Os atores do mercado se con-
verteram em uma nova classe de legisladores virtuais29 sem ptria que con-
25 MAIA, Rodolfo Tigre. Algumas reflexes sobre o crime organizado e a lavagem de dinhei-ro. In: Revista da AJURIS. Ed. Especial. Porto Alegre: AJURIS, julho/1999, p. 191/192.
26 Sobre o enquadramento da criminalidade organizada moderna nas caractersticas tpicas da criminalidade do colarinho branco: SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da Criminologia Po-ltica Criminal. Direito Penal Econmico e o novo Direito Penal. In: Inovaes no direito penal econmico: contribuies criminolgicas, poltico criminais e dogmticas. Braslia: ESMPU, 2011, p. 106. No mesmo sentido: CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de pre-veno e represso. Coimbra: Almedina, 2004, p. 17.
27 O Direito Penal Econmico em sentido estrito representaria o conjunto de infraes penais que protegem a ordem econmica, isto , a regulao jurdica do intervencionismo estatal na economia. J sob o prisma amplo, o Direito Penal Econmico seria constitudo pelo conjunto de normas jurdico-penais que protegem as relaes de produo, distribuio e consumo de bens e servios. Neste sentido: BAJO FERNANDEZ, Miguel e BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Econmico. Madrid: Editorial Centro Estudos Ramn Areces, 2001, p. 11 e 15.
28 BECK, Ulrich. O que globalizao: equvocos do globalismo, respostas globalizao. Trad. Andr Carone. So Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, p. 30/31.
29 CASTILHO, Ela Wiecko V. De. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro
-
Revista da Ajufe 50
trolam a capacidade financeira dos governos, o que influi no apenas no
desempenho da macroeconomia, mas tambm nas opes internas da po-
ltica educacional, ambiental, de seguridade social e de emprego, afetando,
decisivamente, os valores e a vida dos cidados.
Com efeito, a utilizao de empresas, instituies financeiras e profis-
sionais especializados tornou-se ferramenta imprescindvel ao sucesso das
grandes operaes de lavagem de capitais, sendo esta a razo pela qual, j h
algum tempo, a tendncia de terceirizao das atividades de lavagem de capi-
tais chama a ateno das autoridades.30 Segundo as estimativas mais recentes,
so movimentados, diariamente, mais de dois trilhes de dlares no fluxo fi-
nanceiro mundial, o que embasa a advertncia de LILLEY31 no sentido de que
a velha imagem do traficante de drogas carregando uma mala abarrotada de
dinheiro j no comum ou necessria e, portanto, no deve ser esperada.
A lavagem de capitais veio a ser facilitada e potencializada como para-
doxo perverso32 decorrente do citado processo de interatividade econmica.
Destarte, na pujana de sua complexidade, a globalizao legou ao mundo a
empresarializao33 da delinquncia que, a ttulo de ilustrao, pode, por
nacional (Lei n. 7492, de 16 de junho de 1986). 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 90.
30 GOMES, Luiz Flvio. Lavagem de capitais e quebra do segredo profissional do advogado. Texto disponvel em: http://www.lfg.com.br. Acesso em 01.05.2013, p. 2.
31 LILLEY, Peter. Lavagem de dinheiro: negcios ilcitos transformados em atividades legais. Trad. Eduardo Lasserre. So Paulo: Futura, 2001, p. 15.
32 Sobre a internacionalizao da criminalidade propiciada pela integrao financeira e co-municativa dos pases: FERRAJOLI, Luigi. Criminalit e Globalizzzione. In: Revista Brasileira de Cincias Criminais n. 42. So Paulo: RT, janeiro/2003, p. 79.
33 DE SANCTIS, Fausto. Combate lavagem de dinheiro: teoria e prtica. Campinas: Millen-nium, 2008, p. 5. No mesmo sentido a preleo de ZIGA RODRGUEZ, in verbis: La crimi-nalidad organizada se ha convertido em una verdadera empresa del crimen. En los ltimos tiempos del desarollo de la globalizacin y la supremaca de las relaciones de produccin capitalistas, monoplicas y financieras, la criminalidad organizada ha extendido sus tent-culos a las empresas legales y al mundo financiero formal, con un efecto contaminacin. La criminalidad organizada ha pasado de realizar sus actividades tradicionales, a participar en actividades no tradicionales como es la creacin de empresas, conglomerados financieros, inversiones en empresas y en la bolsa, para reciclar el dinero negro. De esta manera, ha logra-do corromper las actividades legales de bancos, empresas constructoras, fundaciones, etc., asumiendo un rol empresarial y aprovechando las estructuras econmicas y empresariales de la economia formal para reciclar el dinero obtenido ilcitamente. Tambin ha creado em-presas ficticias o contratado adminsitradores de paja para dominar empresas ya constituidas legalmente. El blanqueo de dinero se ha mostrado como el gran corruptor de toda la activi-
-
Revista da Ajufe 51
meio da rede mundial de computadores, fazer com que divisas de valor es-
tratosfrico circulem de um extremo ao outro do planeta em uma frao de
segundo. Tais fatores so as causas do desenvolvimento da lavagem de di-
nheiro como espcie criminosa,34 o que ganha relevo no peculiar momento
em que investimentos do mundo inteiro sero concentrados no Brasil dada
a iminncia da realizao de eventos internacionais importantes (Copa do
Mundo de Futebol e Jogos Olmpicos, principalmente).
Por todo o exposto, na condio de importante expresso moderna da
criminalidade econmica,35 a lavagem de capitais afigura-se como tema de
relevncia indubitvel.
3. A realidade atual da lavagem de dinheiro
Estima-se que, anualmente, so lavados ao redor do mundo algo entre
oitocentos milhes e dois bilhes de euros, ou seja, o equivalente ao mon-
tante entre 2 e 5 % da produo econmica global, o que aproximvel, por
exemplo, ao produto interno bruto da Alemanha, maior economia da Europa
na atualidade.36 Ainda assim, extremamente pequeno o nmero de obras
cientficas, investigaes e decises judiciais sobre o crime de lavagem de
capitais, no sendo outra a razo pela qual, j h algum tempo, os autores
dade econmica legal. ZIGA RODRGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuicin a la determinacin del injusto penal de organizacin criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, P. 143.
34 PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012). In: Revista dos Tribunais v. 926. So Paulo: RT, dezembro/2012, p. 403/404.
35 Sobre a atualidade das importantes repercusses do tema, esta a preleo de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE: A criminalidade econmica, nas suas formas clssicas ou modernas, um tema de marcada actualidade. Pela dimenso dos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptao e sobrevivncia s mutaes sociais e polticas, pela sua aptido para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe so dirigidas, a criminalidade econmica uma ameaa sria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Da que a inveno de formas eficazes de luta seja hoje preocupao das instncias governamentais, judiciais, policiais, etc., de todos os pases. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRA-DE, Manoel da. Problemtica geral das infraes contra a economia nacional. In Direito penal econmico e europeu: textos doutrinrios. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 319/320.
36 CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de preveno e represso. Coimbra: Almedina, 2004, p. 8.
-
Revista da Ajufe 52
tm chamado a ateno para a necessidade de fomentar, no Brasil37 e no
exterior,38 o estabelecimento uma autntica cultura de investigao e perse-
cuo quanto ao crime de lavagem de capitais.
Na esteira deste raciocnio, a ENCCLA - Estratgia Nacional de Combate
Corrupo e Lavagem de Dinheiro, comisso multidisciplinar constituda
no mbito do Ministrio da Justia, reconhece a carncia brasileira quanto ao
aprofundamento terico-acadmico nesta seara e, por conseguinte, estabele-
ceu, como meta especfica,39 a propositura da incluso do estudo da lavagem
de dinheiro nos currculos universitrios de graduao e ps-graduao.
Paradoxalmente, propaga-se, como dito, a percepo equivocada de que
somente os crimes de sangue ou contra o patrimnio individual teriam re-
levncia e, por consequncia, os tipos penais que tutelam interesses difusos
so tradicionalmente tidos como crimes menores, sem vtimas ou consequ-
ncias dignas de considerao. Esta viso absolutamente insustentvel no
presente estgio de desenvolvimento da humanidade em que a agilizao e
internacionalizao dos efeitos de determinadas condutas delitivas demons-
tram que at mesmo localidades aparentemente beneficiadas com a capta-
o de recursos ilcitos podem ser repentinamente atiradas em situao de
grave desequilbrio financeiro.
Cite-se, como exemplo, o caso do Chipre, pas europeu que recentemente
vivenciou o colapso de seu sistema econmico-financeiro pela repentina
fuga de capitais de titularidade e origem desconhecidas. Vale dizer que este
pas tem presena constante na listagem de Estados no-cooperantes do
GAFI e chegou a possuir setor bancrio com volume de recursos cerca de
oito vezes maior que seu produto interno bruto. O resultado da poltica de
37 MORO, Srgio Fernando. Op. cit., p. 98/99.
38 Por exemplo, CANAS relata que a escassez de dados estatsticos fiveis um dos fatores que impedem a maior efetividade da legislao penal antilavagem em Portugal. CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de preveno e represso. Coimbra: Almedina, 2004, p. 07.
39 A ENCCLA foi criada em 2003 e atualmente congrega representantes de cerca de sessen-ta rgos e entidades. A redao da Meta n. 26, no ano de 2004, da ENCCLA foi a seguinte: Promover a incluso nos currculos acadmicos de graduao e ps-graduao do estudo da criminalidade transnacional e, especialmente, do combate lavagem de dinheiro e da co-operao jurdica internacional. Texto integral disponvel em: www.portal.mj.gov.br/enccla. Acesso em 01.01.2013.
-
Revista da Ajufe 53
afrouxamento das medidas antilavagem foi a necessidade de contrair em-
prstimos recentes no valor bruto aproximado de 10 bilhes de euros. Ou-
tros pases europeus tradicionalmente classificados como parasos fiscais,
tais como Luxemburgo, Estnia e Malta, tambm estariam na iminncia de
colapso de seus sistemas financeiros.40
Desta maneira, o enorme volume de recursos gerado pelo branqueamen-
to de capitais no mbito do ordenamento financeiro global acaba, em l-
tima ponta, vulnerando economias nacionais e afetando a estabilidade da
economia mundial ao sabor de decises explicveis apenas sob o ponto de
vista da racionalidade criminosa. No plano microeconmico, os investimen-
tos com dinheiro reciclado degeneram a concorrncia licitamente feita por
empresas conduzidas com recursos lcitos. No prisma macroeconmico, as
naes e instituies financeiras utilizadas como instrumentos de lavagem
d