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Brasília • ano 43 • nº 169Janeiro/março – 2006

Revista deInformação Legislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORESSenador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 3311-3575, -3576 e -3579Fax: (61) 3311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva e Cláudia Moema de Medeiros LemosREVISÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Raquel Pimentel dos Santos e

Francisco Rafael Amorim dos SantosREVISÃO DE PROVAS: Leila Rodrigues Mariano e Cláudia PantuzzoEDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Ana Maria da Silva Peixoto e

Francisco Donato González FernandesCAPA: Renzo ViggianoIMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - - Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1964– .v. Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº

11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretaria de Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria de Edi ções Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 43 · nº 169 · janeiro/março · 2006

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva

Dilvanir José da CostaAngela Cristina Pelicioli

Ronaldo Guimarães GalloBernardo Leôncio Moura Coelho

Eduardo Fortunato Bim

Eneida Desiree Salgado

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

Ana Letícia Queiroga de Mattos

Elísio Augusto Velloso Bastos

Gustavo Henrique F. Taglialegna e Paulo Afonso F. de Carvalho

Daniel Rocha Corrêa

Marcela Harumi Takahashi Pereira

Rogério Duarte Fernandes dos Passos

Princípio da isonomia e a administração pública em juízo: a realidade brasileira. Aspectos jurídicos 7A família nas Constituições 13A atualidade da refl exão sobre a separação dos poderes 21Soberania: poder limitado (parte I) 31A contratação de aprendizes pelos entes públicos: uma aplicação dos princípios constitucionais de legalidade e moralidade 49A cassação de mandato por quebra de decoro parlamen-tar. Sindicabilidade jurisdicional e tipicidade 65Iniciativa popular de leis: as proposições, o positivado e o possível 95A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917 101A realidade constitucional da República Federal da Alemanha 127A função tributária: por uma efetiva função social do tributo 143Atuação de grupos de pressão na tramitação do Projeto de Lei de Biossegurança 161

Certifi cação ambiental, desenvolvimento sustentável e barreiras à entrada 189A sentença estrangeira sem fundamentação pode ser homologada? 203A cooperação entre Venezuela e Irã: um conceito so-cialmente construído na sociedade internacional ou uma alternativa ao desenvolvimento? 233

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OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS DE COLABORAÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Nara Maria Esteves F. Gonçalez, Christian Dugas de la Boissonny e Joaquim Carlos Gonçalez

Contribuição da legislação fl orestal francesa para a legislação fl orestal brasileira 265

Resenha Legislativa (artigos de contribuição da Consultoria Legislativa do Senado Federal)

Promessas de empoderamento para mulheres 245O campo da ética, seu lugar na política 255

Leila Maria Da’Juda BijosDirce Mendes da Fonseca

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Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva

1. IntroduçãoO tema “prerrogativas processuais da

Administração Pública” está relacionadodiretamente com a linha de pesquisa “exe-cução contra a Fazenda Pública”, em desen-volvimento na Universidade Federal Flumi-nense, por meio do Grupo de Pesquisa Efe-tividade da Jurisdição (GPEJ), do qual fa-zem parte os professores doutores Hermann-Josef Blanke, da Universität Erfurt, e Karl-Peter Sommermann, da Deutsche Hochshulefür Verwaltungswissenschaften Speyer.

Na aula ministrada no curso para juízesfederais brasileiros1, ocorrido em novembrode 2000, em Brasília, o prof. Sommermann(2003, p. 117) concluiu sua exposição sobrea “execução forçada por quantia certa con-tra a Fazenda Pública no Direito Alemão”afirmando que “deve existir um regime jurí-dico que tenha em vista, de um lado, a pre-tensão do cidadão à tutela de seus direitos,e de outro a manutenção da capacidade defuncionamento da Administração Pública”.

No I Seminário de Direito Processual Ad-ministrativo da UFF2, realizado em agostode 2003, o prof. Hermann-Josef Blanke, emsua exposição sobre o tema “Prerrogativasprocessuais da Administração Pública noDireito Alemão”, assinalou que a tutela ju-dicial, que pressupõe lesão a direito subjeti-

Princípio da isonomia e a administraçãopública em juízoA realidade brasileira. Aspectos jurídicos

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva é Dou-tor em Direito, Professor Titular da Faculdadede Direito da Universidade Federal Fluminen-se, Juiz Federal no Rio de Janeiro.

Sumário1. Introdução. 2. Prerrogativas processuais

na ordem jurídica brasileira. 3. Conclusão.

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vo, deve ser capaz de reparar com efetivida-de o dano e, para isso, é indispensável queno processo haja igualdade de armas entreos litigantes. Na opinião do publicista daUniversität Erfurt, a relação de subordinaçãonos Tribunais entre Estado e cidadão somen-te deve proteger o patrimônio público strictosensu, como os bens afetos a serviço essencialà coletividade, no caso da execução forçada.

Blanke, sempre contrário a qualquer es-pécie de prerrogativa no plano processual emfavor da Administração Pública, cético notocante aos fundamentos apresentados emfavor das prerrogativas meramente processu-ais do direito brasileiro, arremata ao questio-nar como proceder diante das situações emque o Estado for parte mais forte: “Há outrassituações no Brasil em que o Estado é a figuradominante. Não se trata de um vício contraou a favor de uma empresa globalizada oualgo assim. E neste momento, qual seria a ar-gumentação com respeito ao cidadão normal?Como é a justificação das prerrogativas nes-tes casos, que também existem neste país?Estou absolutamente seguro, sem ter estu-dado empiricamente a situação no Brasil”.Naquela oportunidade, registrei que, “noBrasil, a única prerrogativa que parece serverdadeiramente necessária para preservaro interesse público é a proibição de execu-ção forçada em face de bens indispensáveisà existência do Estado e, indiretamente, aproibição de medidas de urgência, como li-minares ou cautelares, que possam permitira execução forçada e atingir bens necessári-os à existência do Estado. Isto porque todasas demais prerrogativas existentes no Brasil,que são muitas, não têm fundamento no inte-resse público ou na supremacia do interessepúblico, e sim fundamento meramente pro-cessual, no interesse econômico do Estado”.

2. Prerrogativas processuais naordem jurídica brasileira

As principais prerrogativas processuaisda Administração Pública que podem serencontradas no direito brasileiro são enu-

meradas da seguinte maneira: prazo pro-cessual em dobro, intimação pessoal e nãopela imprensa oficial, recursos privativos(duplo grau de jurisdição obrigatório e re-cursos específicos como suspensão de limi-nar), inexistência de conseqüência quantoà revelia, proibição de transação, restrição àconcessão de liminares e medidas de urgên-cia em face da Administração Pública, e proi-bição de execução forçada de sentença dedinheiro em face da Administração Pública.

Com relação ao prazo diferenciado, dis-põe o art. 188, do Código de Processo Civil3:“computar-se-á em quádruplo o prazo paracontestar e em dobro para recorrer quandoa parte for a Fazenda Pública ou o Ministé-rio Público”.4 A intimação pessoal é asse-gurada à Fazenda Pública pelo art. 38 daLei Complementar 73, de 10 de fevereiro de1993: “as intimações e notificações são fei-tas nas pessoas do Advogado da União oudo Procurador da Fazenda Nacional queoficie nos respectivos autos”, ao passo quetodos os demais entes privados são intima-dos pela imprensa oficial. Sobre o duplograu de jurisdição, modalidade de recursoobrigatório em favor da Administração Pú-blica, dispõe o Código de Processo Civil que“está sujeita ao duplo grau de jurisdição,não produzindo efeito senão depois de con-firmada pelo tribunal, a sentença (...) profe-rida contra a União, (...)”.

As prerrogativas de prazo diferenciado,de intimação pessoal e de recursos pró-prios visam atender uma deficiência ad-ministrativa, interna corporis, da Adminis-tração Pública na condição de parte pro-cessual. Falta de advogados próprios, qua-lificados, infra-estrutura material etc. têmservido de justificativa ao longo dos anospara que tal prerrogativa persista. Além dis-so, há um certo grau de desconfiança no ju-diciário de 1a instância, muito embora in-confessável, por parte do executivo e legis-lativo, única razão concreta para persistir o“duplo grau de jurisdição”, que consiste naobrigatoriedade de remessa da sentença aoórgão judicial ad quem, independentemente

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de recurso da Administração Pública, o qualconfirmará ou não a decisão a quo. Essasprerrogativas, fundamentadas exclusiva-mente na desigualdade processual, ocasio-nada pela deficiência administrativa do entepúblico litigante, partem da falsa premissade que o Estado é a parte mais fraca da rela-ção processual. A falta de recursos finan-ceiros, no atual contexto brasileiro, é opçãopolítica das mais infelizes, demonstrandodescaso com o princípio da tutela judicial.No início do século, podia ser justificávelem alguns Estados tal postura, como muitobem lembrou o prof. Blanke na reunião deagosto de 2003. Entretanto, no Brasil, creioque tal situação não necessita mais sub-sistir, sob pena de evidente atentado aoEstado de Direito e ao princípio da igual-dade.

No direito processual público brasilei-ro, embora sem previsão legislativa explíci-ta5, foi construída jurisprudência segundoa qual a Administração Pública revel, quecitada não apresenta defesa, não está sujei-ta ao efeito da presunção de verdade dosfatos alegados pelo autor. Esse entendimen-to parte de premissa de que, sendo o direitopúblico indisponível, não sujeito à transa-ção judicial, da inércia da AdministraçãoPública não pode ser extraída uma renún-cia tácita. A idéia é relacionar a inexistênciade efeito da revelia e a proibição de transa-ção judicial a fundamento substancial, nãoprocessual, mas sim de direito material. Tra-ta-se mais uma vez de falsa premissa. Osbens públicos são de fato inalienáveis, po-rém tal inalienabilidade é impeditiva de tran-sação privada, no interesse privado disso-ciado do interesse público, o que impõe au-torização legislativa prévia para que hajaqualquer alienação. Na relação processual,a transação deixa de ser ato essencialmenteprivado, ou com objetivos privados, pois, in-termediada pelo Estado-jurisdição, visa à re-alização do direito à tutela judicial. Se forpermitido à Administração Pública não sesujeitar à pena de revelia, significa dizer quea ela está sendo conferido o direito de con-

testar não em prazo em dobro, mas a qual-quer tempo e grau de jurisdição, o que lhepropicia uma vantagem desigual, que sub-verte toda sistemática processual, até mes-mo com ofensa ao princípio do contraditório.

No tocante à proibição de liminares oumedidas de urgência em face do poder pú-blico, a principal legislação sobre a matéria,a Lei 8.437, de 30 de junho de 19926, estádisposta nos seguintes termos: “Art. 1o Nãoserá cabível medida liminar contra atos doPoder Público, no procedimento cautelar ouquaisquer outras ações de natureza caute-lar ou preventiva, toda vez que providênciasemelhante não puder ser concedida emações de mandado de segurança, em virtu-de de vedação legal. (...) Parágrafo terceiro.Não será cabível medida liminar que esgo-te, no todo ou em parte, o objeto da ação”.

A Constituição Federal, art. 100, na prá-tica impede que as sentenças de dinheirotenham execução forçada contra a Adminis-tração Pública: “... os pagamentos devidospela Fazenda Federal, Estadual ou Munici-pal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológi-ca de apresentação dos precatórios e à con-ta dos créditos respectivos, proibida a de-signação de casos ou de pessoas nas dota-ções orçamentárias e nos créditos adicionaisabertos para este fim”.

A proibição de liminares e medidas deurgência está intimamente relacionada coma proibição de execução forçada em face daAdministração Pública. Não adianta admi-tir a medida de urgência em face da Admi-nistração Pública se a execução dessa mes-ma medida de urgência encontra restrições.Aliás, essas restrições normalmente apre-sentadas às medidas de urgência são sem-pre em função da dificuldade de execução7.No Brasil, a execução de sentenças contra aAdministração Pública está sujeita a umprocedimento diferenciado quando a obri-gação é de dar dinheiro. No plano constitu-cional, há impedimento para a execução for-çada, de dar dinheiro, contra a Administra-ção Pública8. Exceto para créditos de peque-

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no valor, a execução fica sujeita a um regi-me denominado precatório, em que na prá-tica a entidade devedora somente paga nahipótese de legislação orçamentária previrrecursos para tanto9.

No III Seminário de Direito ProcessualAdministrativo, sobre o anteprojeto de leide execução contra a Fazenda Pública, con-signei no relatório final que “a execuçãocontra a Fazenda Pública sempre foi consi-derada no direito brasileiro ponto de estran-gulamento da efetividade da jurisdição fren-te à Administração Pública, sendo o regimeconstitucional do precatório, dada a suaintrínseca natureza voluntária, institutocapaz de romper com o princípio do Estadode Direito, se aplicado abstratamente e emdescompasso com o princípio da proporci-onalidade. A efetividade da jurisdição comomeio de realização de direitos em face daAdministração Pública, atrelada à noção dedireito fundamental, só pode ser limitadaem prol de um valor supremo e excepcional,como o da dignidade da pessoa humana,nas relações processuais entre entes priva-dos e como o da continuidade do serviçopúblico essencial à coletividade, nas rela-ções envolvendo entes públicos”10.

3. Conclusão

É tradição do direito brasileiro prever,nos processos judiciais, vantagens em fa-vor da Administração Pública, sob o funda-mento de que a supremacia do interessepúblico prevalece em certos casos sobre oprincípio da igualdade das partes litigan-tes. De fato, o Estado, como parte processu-al, não deve ser tutelado como seu cidadãocomum, porque a isonomia que se propagacom o princípio do Estado de Direito deveser limitada pelas regras essenciais ao fun-cionamento e à própria existência do Esta-do (Cf. SILVA, 1999, p. 18). Não obstante,tais vantagens, na verdade prerrogativas,devem ser estritamente necessárias à com-pensação de desigualdades, sob pena deconfigurarem odiosos privilégios11. Consi-

dero as normas processuais que consagramas prerrogativas da Administração Públicaem três grandes grupos. No primeiro, asnormas possuem fundamentos e são coeren-tes com a supremacia do interesse público;no segundo grupo, as prerrogativas previs-tas não são capazes de evidenciar sua utili-dade e essencialidade ao funcionamento eexistência do Estado, o que leva facilmenteà sua inconstitucionalidade; e, no terceirogrupo, as normas que possuem fundamen-tos coerentes com a supremacia do interes-se público, muito embora tais fundamentosnão mais existam ou nem mesmo tenhamexistido, o que, sem adentrar no juízo políti-co do legislador, reclamam, de lege lata, de-cisão judicial que encontre um ponto de equi-líbrio, de acordo com a particularidade docaso concreto12, e, de lege ferenda, análise só-cio-jurídica destinada à sua revogação oumodificação.

As prerrogativas meramente processu-ais, as de prazo em dobro, intimação pesso-al ou de recursos próprios e específicos sãoprerrogativas calcadas em fundamentos for-mais, processuais, injustificáveis na atualevolução do Estado brasileiro. As prerroga-tivas substanciais, relativas à inexistênciade efeitos da revelia ou proibição de transa-ção, estão calcadas em falsa premissa, a deque a regra da indisponibilidade do bempúblico é direcionada também ao juiz, noexercício da sua jurisdição. A venda ou tran-sação judicial é ato essencialmente público,no interesse público e não privado, no inte-resse da função jurisdicional. As prerroga-tivas de origem substancial, voltadas paraa execução de sentenças contra a FazendaPública, serão indispensáveis apenas parapreservar da expropriação forçada dos bensafetados a serviço público essencial à socie-dade.

Notas 1 I Curso de Extensão Execução contra a Fa-

zenda Pública, organizado pela Universidade Fe-deral Fluminense, em parceria com o Conselho da

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tiva ao direito de execução de sentenças contra aAdministração Pública”.

11 A profa. Ada Pellegrini Grinover (1975, p.30), aplicando o princípio da proporcionalidade,afirma que “a prerrogativa não deve superar o es-tritamente necessário para restabelecer o equilíbrio”.

12 Proposição de Willis Santiago Guerra (1996,p. 70, 91) no excelente trabalho “princípios da iso-nomia e da proporcionalidade e privilégios proces-suais da Fazenda Pública”. Willis Guerra (1971, p.316) classifica essas normas como adequadas po-rém não exigíveis, a partir da distinção entre normaadequada e exigível formulada pelo Tribunal Cons-titucional Alemão.

Justiça Federal, em Brasília, no período de 20 a 24de novembro de 2000.

2 Seminário organizado pelo Grupo de Pesqui-sa Efetividade da Jurisdição (GPEJ), quando desua II Missão Científica, ocorrida no Rio de Janeiroe em Niterói, no mês de agosto de 2003.

3 Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973.4 O Supremo Tribunal Federal já decidiu ser

constitucional o prazo diferenciado do art. 188 doCódigo de Processo Civil (STF-Pleno, RE 194.925-2-MG-SDcl-ED, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 24.3.99,um voto vencido).

5 O preceito do Código de Processo Civil invo-cado é o art. 320, II, in verbis: “À revelia não induz,contudo, o efeito mencionado no artigo anterior (seo réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadei-ros os fatos afirmados pelo autor): (...) se o litígioversar sobre direitos indisponíveis”.

6 Além da Lei 8.437, prevêem restrições à con-cessão de liminares ou tutelas de urgência: Lei 5.021,de 9 de junho de 1966, restringindo liminares emsede de mandado de segurança; Lei 9.494, de 10 desetembro de 1997, aplicando as restrições da Lei8.437 às tutelas antecipadas prevista no Códigode Processo Civil (art. 273), em face do PoderPúblico.

7 Na Ação Direta de Constitucionalidade 4, pro-posta pelo Presidente da República em função daLei 9494, que proibia antecipação de tutela (medi-das de urgência) contra a Administração Pública, oSTF acolheu a tese de que algumas liminares (me-didas de urgência) estavam sendo deferidas e exe-cutadas sem observância ao regime tradicional econstitucional do precatório judicial.

8 Não obstante, lembra o prof. Leonardo Grecoque “conforme já decidiu o Tribunal Constitucio-nal Alemão, o princípio do Estado de Direito exigerespeito ao preceito da mais completa proteção ju-rídica possível, o que significa que o Judiciário devefazer tudo aquilo que a Administração se recusa afazer, desde que se apresente como necessário parao pleno gozo dos direitos dos particulares” (Execu-ção de liminar em sede de mandado de segurança,2003) .

9 A Emenda Constitucional 30, de setembrode 2000, dispensa do regime dos precatórios oscréditos inferiores a 40 salários mínimos, o querepresenta 5.000 dólares americanos aproximada-mente.

10 Realizado na Faculdade de Direito, no dia 10de outubro de 2003, sob coordenação do Grupo dePesquisa Efetividade da Jurisdição (GPEJ), com aparticipação dos professores Leonardo Greco, Mi-nistro Teori Zavascki, Ministro Athos Carneiro, Dr.Petrônio Calmon Filho, Wilson Madeira Filho, Ri-cardo Perlingeiro, além de mestrandos da UFF. Naobra “ejecución de sentencias contra el Estado”,Pedro Aberastury relaciona o direito da tutela efe-

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1. A Constituição do Impérioe o casamento apenas religioso

A Constituição do Império, de 25 de mar-ço de 1824, assim dispunha em seu artigo5o:

“A Religião Católica ApostólicaRomana continuará a ser a Religiãodo Império. Todas as outras Religiõesserão permitidas com seu culto domés-tico, ou particular em casas para issodestinadas, sem forma alguma exteri-or de Templo.”

Por isso o grande civilista e ConselheiroLafayette Rodrigues Pereira (1956, p. 38-39),em obra publicada em 1869, afirmou:

“Prevalece, pois, entre nós, a dou-trina que atribui à religião exclusivacompetência para regular as condi-ções e a forma do casamento e para

A família nas Constituições

Dilvanir José da Costa é Professor e doutorem direito civil pela UFMG.

Sumário1. A Constituição do Império e o casamen-

to apenas religioso. 2. A Constituição republi-cana de 1891 e o casamento apenas civil. 3. AConstituição de 1934 e o casamento religiosocom efeitos civis. 4. A Constituição de 1937. 5.A Constituição de 1946 e o efeito civil imedia-to e a posteriori do casamento religioso. 6. AConstituição de 1967 e a Emenda no 1 de 1969.7. A Emenda Constitucional no 9 de 1977 e ofim do casamento indissolúvel. 8. As grandesinovações da Constituição de 1988. 9. A uniãoestável como entidade familiar: conceito, for-ma, prova, efeitos e distinção do casamento edo concubinato. 10. Conclusões.

Dilvanir José da Costa

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Revista de Informação Legislativa14

julgar da validade do ato. Todavia, arecente lei acerca do casamento entreos membros das seitas dissidentes (lei1.144, de 11 de setembro de 1861) con-sagrou uma inovação que cumpre as-sinalar: passou para a autoridade ci-vil a faculdade de dispensar os impe-dimentos e a de julgar da nulidadedesta forma de casamento.”

O casamento católico era regulado pelasnormas do Concílio Tridentino e pela Cons-tituição do Arcebispado da Bahia.

A Constituição imperial tratou dos cida-dãos brasileiros, seus direitos e garantias,mas nada de especial sobre a família e o ca-samento, salvo sobre a família imperial e suasucessão no poder.

Proclamada a República, em 15 de no-vembro de 1889, houve a separação entre aIgreja e o Estado e, portanto, a necessidadede regular o casamento, o que se fez peloDecreto 181, de 24 de janeiro de 1890, que sóconsiderou válidos os casamentos celebra-dos no Brasil se realizados de acordo comsuas normas. Permitiu, porém, aos contra-entes, celebrar, antes ou depois do casamen-to civil, o matrimônio segundo suas respec-tivas religiões. Ante a persistência da reali-zação exclusiva do casamento católico, foiexpedido novo Decreto, no 521, em 26 de ju-nho de 1890, dispondo: “O casamento civil,único válido nos termos do artigo 108 doDecreto 181, de 24 de janeiro último, prece-derá sempre as cerimônias religiosas dequalquer culto, com que desejam solenizá-lo os nubentes. O ministro de qualquer con-fissão, que celebrar as cerimônias religiosasdo casamento antes do ato civil, será puni-do com seis meses de prisão e multa da me-tade do tempo. No caso de reincidência seráaplicado o duplo das mesmas penas.”

2. A Constituição republicana de1891 e o casamento apenas civil

Também a Constituição republicana de24 de fevereiro de 1891 não contém discipli-na especial sobre a família. No título IV, dos

cidadãos brasileiros, seção II sobre declara-ção de direitos, o § 4o do artigo 72 veio dispor:

“A República só reconhece o casa-mento civil, cuja celebração será gra-tuita.”

O Código Civil de 1916, cujo projeto Be-vilaqua (1955) fora de 1899, regulou exaus-tivamente o casamento civil em todas assuas formalidades, requisitos e efeitos, in-clusive a sua nulidade e anulação e a sim-ples dissolução da sociedade conjugal pelodesquite (arts. 180 e segts).

3.A Constituição de 1934 e ocasamento religioso com efeitos civis

A Constituição de 16 de julho de 1934,primeira a consagrar os direitos sociais, in-troduziu inovações, diante da reiteração docasamento apenas religioso pelo interior dopaís. Tratou da família no capítulo I do títu-lo V, onde se lê:

“Art. 144 – A família, constituídapelo casamento indissolúvel, está soba proteção especial do Estado.”

“Art. 146 – O casamento será civile gratuita a sua celebração. O casa-mento perante ministro de qualquerconfissão religiosa, cujo rito não con-trarie a ordem pública ou os bons cos-tumes, produzirá, todavia, os mesmosefeitos que o casamento civil, desdeque, perante a autoridade civil, na ha-bilitação dos nubentes, na verificaçãodos impedimentos e no processo, se-jam observadas as disposições da leicivil e seja ele inscrito no Registro Civil.(...) A lei estabelecerá penalidades paraa transgressão dos preceitos legais ati-nentes à celebração do casamento.”

Leis especiais, ao longo do tempo, vie-ram regulamentar o casamento religiosocom efeitos civis (Lei 379/37, DL 3.200/41,Lei 1.110/50, Lei 6.015/73, arts. 71 a 75 eCódigo Civil de 2002, arts. 1515 e 1516 ),inclusive com efeitos a partir do ato religio-so e, obviamente, independentemente dacelebração civil.

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4. A Constituição de 1937

A Constituição de 10 de novembro de1937 apenas reiterou que a família é consti-tuída pelo casamento indissolúvel, sem sereferir à sua forma (art. 124).

5. A Constituição de 1946 e oefeito civil imediato e a posteriori

do casamento religioso

A Constituição de 18 de setembro de 1946foi explícita em consagrar: a) o casamentode vínculo indissolúvel; b) o casamento ci-vil; c) o casamento religioso equivalente aocivil se, observadas as prescrições da lei,assim o requerer o celebrante ou qualquerinteressado, e inscrito o ato no registro públi-co; d) o casamento religioso celebrado semprévia habilitação civil, mas inscrito pos-teriormente no registro público, a requerimen-to do casal, mediante habilitação civil poste-rior à cerimônia religiosa (art. 163, §§ 1o e2o).

6. A Constituição de 1967 e aEmenda no 1 de 1969

A Constituição de 1967, no artigo 167 e§§, e a Emenda no 1 de 1969, no artigo 175 e§§, mantiveram os conceitos supra do arti-go 163 e §§ da Constituição de 1946.

7. A Emenda Constitucional no 9, de1977 e o fim do casamento indissolúvel

A Emenda Constitucional no 9, de 28 dejunho de 1977, pôs fim ao caráter indissolú-vel do casamento civil e instituiu o divórcioem nosso país. O artigo 1o dessa Emendadeu a seguinte redação ao § 1o do artigo 175da Emenda Constitucional no 1 de 1969:

“O casamento somente poderá serdissolvido, nos casos expressos em lei,desde que haja prévia separação judi-cial por mais de três anos.”

E o artigo 2o da mesma Emenda no 9 as-sim dispôs:

“A separação, de que trata o § 1o

do artigo 175 da Constituição, poderáser, de fato, devidamente comprova-da em Juízo, e pelo prazo de cincoanos, se for anterior à data destaEmenda.”

A chamada Lei do Divórcio – Lei 6.5l5,de 26 de dezembro de 1977, regulou os ca-sos de dissolução da sociedade conjugal edo casamento, seus efeitos e respectivos pro-cessos, hoje disciplinados nos artigos 1571a 1590 do novo Código Civil, em tudo o quederrogou a Lei do Divórcio.

8. As grandes inovações daConstituição de 1988

Inovações de vulto na família e no casamen-to trouxe a Constituição de 1988 ou Consti-tuição cidadã, assim chamada em razão daevolução que promoveu nos direitos da per-sonalidade e da família, com destaque paraa indenização do dano moral, o reconheci-mento de novas entidades familiares, aigualdade dos cônjuges e dos filhos e a facili-tação do divórcio. O seu artigo 226 veio dis-por na linha das Constituições precedentes:

“ § 1o O casamento é civil.§ 2o O casamento religioso tem efeitocivil, nos termos da lei.§ 3o Para efeito da proteção do Estado,é reconhecida a união estável entre ohomem e a mulher como entidade fa-miliar, devendo a lei facilitar sua con-versão em casamento.§ 4o Entende-se, também, como enti-dade familiar a comunidade formadapor qualquer dos pais e seus descen-dentes.§ 5o Os direitos e deveres referentes àsociedade conjugal são exercidos igual-mente pelo homem e pela mulher.§ 6o O casamento civil pode ser dis-solvido pelo divórcio, após prévia se-paração judicial por mais de um anonos casos expressos em lei, ou com-provada separação de fato por maisde dois anos.”

Page 15: Revista de Informação Legislativa · 8 Revista de Informação Legislativa vo, deve ser capaz de reparar com efetivida-de o dano e, para isso, é indispensável que no processo

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E o artigo 227:“§ 6o Os filhos, havidos ou não da re-lação do casamento, ou por adoção,terão os mesmos direitos e quaficações,proibidas quaisquer designações dis-criminatórias relativas à filiação.”

9. A união estável comoentidade familiar: conceito,

forma, prova, efeitos e distinçãodo casamento e do concubinato

Merecem destaque especial, no texto su-pra da Constituição e seu regulamento noCódigo Civil, o conceito, os requisitos e efei-tos da união estável e o seu confronto com ocasamento e com a nova figura do concubi-nato.

Quanto à forma, o casamento é formal:além do consentimento manifestado peran-te o juiz, representante do Estado e da pro-clamação deste, é ele inscrito no registropúblico. A união estável admite todas asformas de constituição tendentes a demons-trar seus requisitos, desde fatos e circuns-tâncias até o contrato verbal ou escrito, par-ticular ou público, inclusive o casamentoreligioso sem os efeitos civis.

Quanto à prova, a certidão do registrocivil faz prova plena do casamento civil, docasamento religioso inscrito no registro ci-vil e da união estável convertida em casa-mento e inscrita naquele registro. A uniãoestável sem conversão, se contestada suaexistência, dependerá de ação própria e sen-tença para prová-la, ainda que resulte deescritura pública. Essa a sua capitis diminu-tio formal e probatória, a exigir comprova-ção judicial quando posta em dúvida a suaexistência e sobrevivência. Não obstante, ocolendo STJ, por acórdão unânime de17.02.04, de sua egrégia 4a Turma, admitiuo pedido cautelar de alimentos provisionaisindependentemente da prévia e cabal pro-va da existência da união estável. “O fumusboni juris, no processo cautelar, pode serapurado em instrução sumária, sem a qualnão se poderá considerar inviável a caute-

lar de alimentos provisionais por ausênciade prova da união estável. Admite-se o po-der geral de cautela (art. 798 do CPC)” (BRA-SIL, 2004, p. 178).

Os requisitos da união estável são: a) aunião entre o homem e a mulher – entre doishomens ou duas mulheres poderá existircontrato de trabalho, prestação de serviço,empreitada ou sociedade de fato ou de di-reito com efeitos obrigacionais apenas, semdireito a alimentos e herança, salvo por con-trato ou testamento; b) convivência pública,contínua e duradoura estabelecida com oobjetivo de constituir família, independen-temente de prazo definido ou limitado. Nãoo será se com objetivo outro, como trabalhosubordinado, serviço autônomo ou socieda-de civil ou comercial.

Na união estável, ocorrem os impedi-mentos do casamento, pelas mesmas razõeséticas e eugênicas. Não obstante, emboracasados, os separados de fato ou de direitopodem constituir união estável. Isso de-monstra que o próprio casamento pode de-cair de seu status legal, se lhe faltar o requi-sito fundamental da convivência ou estadode espírito de casado. Não se constitui uniãoestável em concorrência com o casamentosem separação de fato ou de direito. Merascausas suspensivas (art. 1523) não impedi-rão a constituição de união estável.

Quanto aos efeitos, além do respeito eassistência moral, os companheiros estãosujeitos aos deveres máximos dos cônjugesno casamento, sobretudo a fidelidade e osalimentos. Pelo que a infração desses deve-res abre ensejo às ações cabíveis, inclusivepara a dissolução da união estável, por ini-ciativa do companheiro inocente. Quanto aherança, os companheiros estão sujeitos àsrestrições do vigente artigo 1790 do CódigoCivil, in verbis: “A companheira ou o com-panheiro participará da sucessão do outro,QUANTO AOS BENS ADQUIRIDOS ONE-ROSAMENTE NA VIGÊNCIA DA UNIÃOESTÁVEL, nas condições seguintes:...............................” (BRASIL, 2002a, grifo nos-so).

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Os bens adquiridos onerosamente navigência da união estável são, em regra, co-muns, por efeito da sociedade de fato e emrazão do próprio regime legal da comunhãoparcial de bens entre os companheiros (art.1725). Outro é o direito de herança que, se-gundo o texto supra do artigo 1790, incidesobre a meação do companheiro morto nosbens adquiridos onerosamente na vigênciada união estável. Tudo a depender aindada existência de outro regime escrito de bensentre os companheiros. Pode até ocorrer queos bens adquiridos onerosamente durantea união estável sejam produto de sub-roga-ção de outros bens exclusivos de um doscompanheiros, pelo que não incidiria o di-reito de herança do outro. Os companheirospodem contratar, por instrumento parti-cular ou público, desde o regime da co-munhão universal até a separação totalde bens. Na falta de convenção, prevaleceo regime legal da comunhão parcial (art.1725).

A conversão da união estável em casa-mento depende de três requisitos: a) ausên-cia de impedimentos; b) pedido dos compa-nheiros ao juiz de casamentos; c) assentono registro civil. Assim surge o casamentoformal, de prova plena e com todos os efei-tos legais (art. 1726), inclusive o direito deherança inerente aos cônjuges. As Leis8.971/94, 9.278/96 e os artigos 1723 a 1727do novo Código Civil regularam o § 3o doartigo 226 da Constituição de 1988, sobreunião estável, mas não esclareceram a efi-cácia imediata ou retroativa da conversão,tal como o fez o Código Civil em relação aocasamento religioso (art. 1515).

As relações sexuais estáveis ou contínu-as, ainda que exclusivas, entre o homem e amulher impedidos de casar constituem con-cubinato (art. 1727). Logo, não caracterizamunião estável. Só geram efeitos patrimoni-ais e obrigacionais, sem amparo do direitode família, tais como as uniões entre pesso-as do mesmo sexo. Direito a alimentos e deherança entre os mesmos dependem de con-venção e testamento lícitos.

10. Conclusões

a) A Constituição de 25 de março de 1824proclamou que a Religião Católica Apostó-lica Romana continuaria como Religião doImpério e, em conseqüência, o casamentocatólico. A Lei 1.144, de 11 de setembro de1861, regulou o casamento dos não católi-cos, a dispensa de impedimentos e a nuli-dade desses casamentos.

Proclamada a República, em 15 de no-vembro de 1889, houve a separação entre aIgreja e o Estado. O Decreto 181, de 24 dejaneiro de 1890, regulou o casamento civil esó considerou válidos no Brasil os casamen-tos celebrados de acordo com suas normas.O Decreto 521, de 26 de junho do mesmoano, determinou que o casamento civil pre-cedesse sempre as cerimônias religiosas dequalquer culto, sob cominação da pena deprisão por seis meses do ministro que cele-brasse o ato religioso antes do civil

b) A Constituição de 24 de fevereiro de1891 declarou que “a República só reconheceo casamento civil”. O Código Civil de 1916o regulou exaustivamente.

c) A Constituição socializada de 16 dejulho de 1934 dedicou título especial à fa-mília e atribuiu efeitos civis ao casamentoreligioso, desde que atendidos os requisitosdo casamento civil e inscrito no registropúblico (art. 146). Foi a primeira aberturapara ampliar as formas de casamento comeficácia civil. Leis especiais vieram regularo casamento religioso com efeitos civis (Lei379, de 16.1.37; DL 3.200/41; Lei 1.110/50; Lei 6.015/73 e CC de 2002, arts 1515 e1516). A Constituição de 10 de novembrode 1937 apenas reiterou o casamento ci-vil indissolúvel, sem se referir ao religio-so (art.124).

d) A Constituição de 18 de setembro de1946 foi mais ampla e explícita em admitir oefeito civil do casamento religioso, distin-guindo: I – o celebrado com observância dosrequisitos legais e inscrito no registro civilequivalerá ao civil; II – o celebrado sem a pré-via observância dos requisitos terá efeitos ci-

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vis se, a requerimento do casal, vier a serinscrito no registro civil posteriormente (art.163, §§ 1o e 2o).

e) A Constituição de 1967 (art. 167 e §§) ea Emenda constitucional no 1 de 1969 (art.175 e §§) reiteraram os termos da Constitui-ção de 1946, quanto à equivalência e à eficá-cia civil posterior do casamento religioso.

f) A Emenda constitucional no 9, de 28de junho de 1977, finalmente deu o grandepasso para a flexibilização do casamento esua adaptação à realidade familiar: insti-tuiu o divórcio e permitiu o fim dos casa-mentos frustrados e inoperantes, ensejandosua renovação. A chamada “Lei do Divór-cio” – Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977,regulou a dissolução da sociedade conju-gal e do casamento, complementada hojepelo novo Código Civil (arts. 1571 a 1590).

g) A vigente Constituição federal trouxeo maior avanço nos direitos da personali-dade e da família, donde a sua fama de“Constituição cidadã”. Consagrou não so-mente a socialização como a personaliza-ção dos direitos subjetivos privados, comrepercussão no novo Código Civil e nos mi-crossistemas de proteção ao cidadão, à fa-mília, à criança e ao adolescente, ao idoso,ao consumidor e a outros vulneráveis.

O casamento civil é a regra para institui-ção da família em caráter formal e para to-dos os efeitos de direito. O casamento religi-oso com efeitos civis imediatos ou por trans-formação posterior adquire o mesmo statusformal e os mesmos efeitos, desde que ins-crito no registro civil, retroagindo esses efei-tos à data da celebração e dispensando acelebração civil. Eram essas as formas decasamento formal e de prova plena median-te simples certidão do registro público. AConstituição de 1988 instituiu mais uma,ou seja, a união estável convertida em casa-mento e inscrita no registro civil. Tudo omais, desde o casamento religioso sem efei-tos civis e outras uniões livremente pactua-das, verbais ou por escrito, ainda que porescritura pública, constituem, no máximo,uniões estáveis, que, embora reconhecidas

como entidades familiares, não se equiparamao casamento, tanto que o texto constitucio-nal manda a lei ordinária “facilitar sua con-versão em casamento.” E tanto mais que oCódigo Civil exige, para a conversão, o pe-dido de ambos os companheiros ao juiz e oassento no registro civil (art. 1726). E tudoao pressuposto de que a união estável sejaentre o homem e a mulher, com os requisitose sem os impedimentos legais. As uniõesestáveis não convertidas, se contestadas,dependem, para constituírem entidades fa-miliares protegidas, de serem comprovadaspor todos os meios de prova, com os requisi-tos legais e ausência de impedimentos, o queexige procedimento nas vias ordinárias esentença judicial. Nem mesmo a escriturapública constituirá prova plena e imediatade sua existência. Essa a razão de uma típi-ca união estável, não convertida em casa-mento, quando contestada, depender dessaprova judicial prévia, ainda que em instru-ção sumária cautelar, para gozar do direitoa alimentos. E mais: a união estável sem con-versão em casamento e assento no registrocivil, mesmo comprovada judicialmente,não tem os mesmos direitos sucessórios docasamento, ex vi do artigo 1790 do CódigoCivil, segundo o qual o companheiro só temdireito de herança “quanto aos bens adqui-ridos onerosamente na vigência da uniãoestável”.

Daí a diferença, de forma e de fundo,entre a união estável sem conversão e a con-vertida em casamento. Donde a razão dadiscriminação sucessória: o legislador quisestimular a conversão, dando proteção mai-or ao casamento. Napoleão já dissera, a pro-pósito do Código Civil francês: “ os concu-binos (companheiros) driblam a lei, não secasando. Por isso o Código os ignora.” Onosso Código discrimina, mas não ignora,visando atraí-los para melhor situação.

Diante dos requisitos da união estável, onovo Código conceituou ainda o concubi-nato como “relações não eventuais entre ohomem e a mulher, impedidos de casar” (art.1727), as quais não podem constituir união

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estável. O mesmo ocorre com a união entredois homens ou duas mulheres, com os mes-mos efeitos apenas obrigacionais e patrimo-niais (sociedade de fato), fora da proteçãodo Direito de Família e das Sucessões, pormais que a defendam correntes doutrinári-as e jurisprudenciais minoritárias, com fun-damento em analogia. Essa prática aindanão foi assimilada pela sociedade, encon-trando melhor suporte no artigo 17, partefinal, da Lei de Introdução ao Código Civil(costume restrito que ainda choca e é trata-do jocosamente). Além disso, os conceitosde “entidade familiar” e de “união estável”,por serem de ordem pública, não compor-tam aplicação analógica. “As prescrições deordem pública, quando ordenadoras ou ve-dantes, visam a proteger o interesse da cole-tividade, motivo por que se sujeitam à inter-pretação estrita, impossibilitada, assim, aextensiva e o aplicar da analogia.” (BRA-SIL, 2002b). As exceções constitucionais aocasamento civil não comportam aplicaçãoanalógica. A “união estável” deve ser entreo homem e a mulher, para constituir “enti-dade familiar” (art. 226, § 3o da CF). Comodissera Miguel Reale, em exposição sobre oProjeto do Código na Faculdade de Direitoda UFMG: “a família não deve ter por hori-zonte o concubinato”. E muito menos a uniãohomossexual.

Referências

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Angela Cristina Pelicioli

1. Introdução É certo que a teoria da separação dos

poderes tem desempenhado um papel pri-mordial na conformação do chamado Esta-do Constitucional. Utiliza-se o termo sepa-ração dos poderes, mas sabe-se que o poderdo Estado é uno e indivisível.1 Em verdade,esse poder2 é exercido por vários órgãos, quepossuem funções distintas.

Como conseqüência dessa teoria, os Po-deres Executivo, Legislativo e Judiciário sãopoderes políticos.3 No entanto, como cadahomem em si é “a-político”4, uma vez que apolítica surge “no entre-os-homens, portanto,totalmente fora dos homens”5 e é essa mes-ma política que “organiza, de antemão, asdiversidades absolutas de acordo com umaigualdade relativa e em contrapartida às di-ferenças relativas,” 6 deve-se constatar que opoder do Estado somente deve existir paracumprir e manter a paz na sociedade e asse-gurar o gozo da liberdade.

Transcorrido o tempo, os poderes políti-cos transformaram-se e o Poder Judiciáriopassou a ter uma função de maior destaque,qual seja, a de estabelecer o equilíbrio entre

A atualidade da reflexão sobre a separaçãodos poderes

Angela Cristina Pelicioli é Procuradora doEstado de Santa Catarina; Mestre em CiênciasJurídicas (Processo Civil) pela UniversidadeClássica de Lisboa; Doutoranda em Direito Pro-cessual Civil pela Pontifícia Universidade Ca-tólica do Rio Grande do Sul.

Sumário1. Introdução. 2. A evolução da separação

dos poderes. 2.1. A separação dos poderes emAristóteles. 2.2. A separação dos poderes emJohn Locke. 2.3. A separação dos poderes emMontesquieu. 2.4. A separação dos poderes naatualidade. 3. Conclusões.

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os Poderes Executivo e o Legislativo, redefi-nindo, assim, o papel do juiz.

A separação dos poderes, que, em últi-ma instância, objetiva manter a paz na soci-edade e assegurar o gozo da liberdade, evi-tando a arbitrariedade e o autoritarismo,pode estar, nos dias atuais, em cheque, casonão se esclareçam, com a maior precisãopossível, as legítimas esferas de atuação decada Poder.

Para tanto, é necessário examinar a evo-lução histórica da separação dos poderesdesde Aristóteles até hoje, para situar osvalores que nutrem cada povo em cada épo-ca, no tocante aos seus Poderes e em razãodas suas necessidades históricas e culturais,pois, como ensina Nicolai Hartmann (1986,p. 23), “a cambiante validez de determina-dos valores em determinado tempo não sig-nifica seu nascer e perecer ao correr da histó-ria. O câmbio não é mutação dos valores, masmudança de preferência que prestam deter-minadas épocas a determinados valores.”

2. A evolução da separação dos poderes

2.1. A separação dos poderes em Aristóteles

Aristóteles, filósofo grego que nasceu em384 a.C. e morreu em 322 a.C., escreveu so-bre muitos assuntos, das ciências à lógica.Tornou-se, no entanto, célebre por suas obrasfilosóficas, como a Metafísica, a Física, a Éti-ca a Nicômaco, a Política, Da alma, Da Ge-ração e da Corrupção e a Poética.7 A obra“Constituições”8 de Aristóteles teve comoobjeto um estudo histórico e político de to-das as formas de governo e de poder exis-tentes na época. Esse trabalho foi a base paraAristóteles elaborar a sua obra mais com-pleta, “A Política”.

Na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles(2001, p. 18) define a política como sendoaquela que estrutura as ações e as produ-ções humanas e ensina “que a ciência polí-tica usa as ciências restantes e, mais ainda,legisla sobre o que devemos fazer e sobreaquilo de que devemos abster-nos.”

A ética e a política estão intrinsecamen-te unidas na obra de Aristóteles (1999), tan-to que a “Ética a Nicômacos” insere um pla-no que se idealiza na obra “A Política.” Aética está subordinada à política, ciênciaprática arquitetônica que tem por fim o bempropriamente humano.9

“A Política”, que estuda não apenas ospoderes políticos, mas também a estrutura eo comportamento das autoridades adminis-trativas e judiciárias, atesta que os elemen-tos do Estado são: a população, o território ea autoridade política.

Inicia seu estudo definindo o homemcomo um animal cívico, “mais social do queas abelhas e os outros animais que vivemjuntos” (ARISTÓTELES, 1991, p. 4). O ho-mem civilizado é o melhor de todos os ani-mais, entretanto, aquele que não conhecenem justiça nem leis é o pior de todos(ARISTÓTELES, 1991, p. 5). Esse homem sereúne para formar uma sociedade, pois deoutro modo não poderia satisfazer suas ne-cessidades físicas e intelectuais. O respeitoao direito forma a base da vida em socieda-de e os juízes são os seus primeiros órgãos.

A finalidade do Estado é facilitar a con-secução do bem-comum, conseqüentemen-te, o próprio bem-comum. Para Aristóteles,as Constituições possíveis são justas e in-justas, sendo as primeiras as que servem aobem-comum do povo e não só aos governan-tes e as segundas as que servem ao bem dosgovernantes e não ao bem-comum. Nessesegundo caso, está-se tratando do pereci-mento do Estado e da corrupção do regimepolítico.10 As Constituições justas são as di-vididas em: monarquia, que é o governo deum só que cuida do bem de todos; aristocra-cia, que é o governo dos virtuosos que cui-dam do bem de todos, sem atribuir-se privi-légios; república, que é o governo popularque cuida do bem de toda a cidade. E asConstituições injustas dividem-se em: tira-nia, que consiste no governo de um só queprocura o interesse próprio; oligarquia, de-finida como governo dos ricos que procu-ram unicamente o bem econômico próprio;

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e democracia, que consiste no comando damassa popular em diminuir toda a diferen-ça social.11

Para Aristóteles (1991, p. 93) “o gover-no é o exercício do poder supremo do Esta-do” tendo todo governo três Poderes. NoLivro III, Capítulo X, da obra “A Política”,define quais são os Poderes, a sua estruturae as suas funções, cabendo ao legisladorprudente acomodá-los, da forma mais con-veniente, e quando essas três partes estive-rem acomodadas é que o governo será bem-sucedido. O cidadão será o homem adultolivre nascido no território da cidade ou doEstado e, também, aquele que participar evotar diretamente nos assuntos políticos dostrês Poderes. Portanto, ser cidadão é ter Po-der Legislativo, Executivo e Judiciário(CHAUÍ, 2002, p. 467).

Assim, para Aristóteles, o primeiro Po-der é o deliberativo, ou seja, aquele que deli-bera sobre os negócios do Estado. Esse Po-der corresponde ao Legislativo, e a Assem-bléia tem a competência sobre a paz e a guer-ra, realizar alianças ou rompê-las, fazer asleis e suprimi-las, decretar a pena de morte,de banimento e de confisco, assim como pres-tar contas aos magistrados.12

O segundo Poder compreende “todas asmagistraturas ou poderes constituídos, istoé, aqueles de que o Estado precisa para agir,suas atribuições e a maneira de satisfazê-las” (ARISTÓTELES, 1991, p. 113). Este Po-der corresponde ao Poder Executivo, e é exer-cido por magistrados governamentais, massomente os que participassem do poder pú-blico é que deveriam assim ser chamados.Ensina que as magistraturas devem ser cria-das para se formar um Estado. Quais sãoabsolutamente necessárias para que umEstado possa existir? Quais as que foramcriadas para a “boa ordem e para o bem-estar, sem as quais a vida civil não seriamuito agradável?” (ARISTÓTELES, 1991, p.117). As funções essenciais para Aristótelessão as seguintes: a) encarregado de abaste-cimento de alimentos nos mercados; b) ad-ministrador dos edifícios públicos e priva-

dos, das construções, da conservação dasruas, dos limítrofes das propriedades, peloofício da polícia urbana; c) a dos agrôno-mos ou guardas-florestais; d) encarregadodas rendas públicas; e) funcionário parareceber contratos privados, escrever os jul-gamentos dos tribunais e redigir petições ecitações em justiça; f) executor das senten-ças de condenação, pregoeiro de bens apre-endidos e o de guarda das prisões; g) co-mandos de praças e outros oficiais milita-res; h) auditor ou inspetor de contas ou gran-de procurador. Afirma que a diversidadedas formas de governo acarreta alguma di-ferença entre as funções das magistraturas.Aponta as três questões principais para es-colha dos magistrados: A quem cabe nome-ar os magistrados? De onde devem ser tira-dos? E como proceder? Responde às inda-gações ensinando que as nomeações serãorealizadas por todos cidadãos ou apenasalguns entre eles; a elegibilidade é de todosou apenas aqueles pertencentes a uma clas-se determinada, quer pela renda, quer pelonascimento, quer pelo mérito, quer por al-guma outra razão e a designação se dará oupor eleição ou por sorteio. O tempo de dura-ção do exercício destas também é discutidoe declara que “alguns o pretendem semes-tral, outros, mais curtos, outros, anual, ou-tros, mais longo. Resta também saber se devehaver exercícios perpétuos ou mesmo delonga duração, ou, nem um nem outro; se épreferível, ou que não assumam duas vezeso cargo, mas apenas uma. Quanto à escolhados magistrados, convém considerar a suaorigem, por quem e como devem ser escolhi-dos, de quantas maneiras isto pode ser feitoe qual a que mais convém a cada forma degoverno.” (ARISTÓTELES, 1991, p. 116).

O terceiro Poder abrange os cargos dejurisdição. O estudo mostra oito espécies detribunais e de juízes, quais sejam, os tribu-nais para: a) a apresentação das contas eexame da conduta dos magistrados; b) asmalversações financeiras; c) os crimes deEstado ou atentados contra a Constituição;d) as multas contra as pessoas, quer públi-

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cas, quer privadas; e) os contratos de algu-ma importância entre particulares; f) os as-sassínios ou tribunal criminal; g) negóciosdos estrangeiros; e h) os juízes para os ca-sos mínimos. A forma de nomeação podeser por eleição ou por sorteio (ARISTÓTE-LES, 1991, p. 125-127).

Aristóteles (2001, p. 123), na “Ética a Ni-cômacos”, afirma que julgamento acertadoocorre quando uma pessoa julga “segundoa verdade.” Esse conceito é tratado em ter-mos de julgamento pessoal, mas que podeser inserido no contexto de quem julga, poiscomo o próprio Aristóteles (2001, p. 18) de-finiu “cada homem julga corretamente osassuntos que conhece, e é um bom juiz detais assuntos. Assim, o homem instruído arespeito de um assunto é um bom juiz em re-lação ao mesmo, e o homem que recebeu umainstrução global é um bom juiz em geral.”

Para o filósofo, é nas Constituições queestão distribuídos ou ordenados os Poderesque existem num Estado, isto é, “a maneiracomo são divididos, a sede da soberania e ofim a que se propõe a sociedade civil.”(ARISTÓTELES, 2001, p. 132).

Aristóteles (2001, p. 146) afirma que “omaior bem é o fim da política, que superatodos os outros. O bem político é a justiça,da qual é inseparável o interesse comum, emuitos concordam em considerar a justiça,como dissemos em nossa Ética, como umaespécie de igualdade. Se há, dizem os filó-sofos, algo de justo entre os homens é aigualdade de tratamento entre as pessoasiguais.”

2.2. A separação dos poderes em John Locke

John Locke, expoente da filosofia ingle-sa do século XVII, nasceu em Wrington, naInglaterra, em 1632. Suas obras principaissão o Primeiro tratado sobre o governo civil,o Segundo tratado sobre o governo civil, En-saio sobre o intelecto humano e Cartas sobrea tolerância religiosa (MONDIM, 1982, p. 102).

A política foi estudada por Locke emseus dois tratados. O Primeiro, sobre o go-verno civil, atacou aquilo que apontou como

“falsos princípios” contidos no Patriarchade Sir Robert Filmer, sob o fundamento deque o direito divino da monarquia absolutaera baseado na descendência hereditária deAdão e dos patriarcas.

No Segundo tratado, sobre o governo ci-vil e outros escritos, Locke (1994, p. 83) de-fine o estado de natureza como uma condi-ção em que os homens são livres e iguais,uma “condição natural dos homens, ou seja,um Estado em que eles sejam absolutamen-te livres para decidir suas ações, dispor deseus bens e de suas pessoas como bem en-tenderem, dentro dos limites do direito na-tural, sem pedir a autorização de nenhumoutro homem nem depender de sua vonta-de.”

Não significa que Locke (1994, p. 84)advogasse a permissividade, pois defendiaque “o ‘estado de natureza’ é regido por umdireito natural que se impõe a todos, e comrespeito à razão, que é este direito, toda ahumanidade aprende que, sendo todosiguais e independentes, ninguém deve le-sar o outro em sua vida, em sua liberdadeou seus bens; todos os homens são obra deum único Criador todo-poderoso e infinita-mente sábio, todos servindo a um único se-nhor soberano, enviados ao mundo por suaordem e a seu serviço; são portanto sua pro-priedade, daquele que os fez e que os desti-nou a durar segundo sua vontade e de maisninguém.”

Assegura que, no estado de natureza,cada um tem “o poder executivo da lei danatureza” e cada homem é juiz em causaprópria. Isso produz confusão e desordem,e a solução para esse impasse é o governocivil (LOCKE, 1994, p. 89).

Diferentemente da clássica teoria da se-paração dos poderes, que divide o poder doEstado em Poder Executivo, Legislativo eJudiciário, no capítulo XII, do Segundo tra-tado sobre o governo civil, Locke garante quehá três poderes que se convertem em dois13:o Poder Legislativo, o Poder Executivo e oPoder Federativo. Competência do PoderFederativo é a de administrar a segurança e

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o interesse público externo e competênciado Poder Executivo é a da execução das leisinternas (LOCKE, 1994, p. 171). No entanto,mais adiante, afirma que esses dois Poderesestão “quase sempre unidos”. E embora osPoderes Executivo e Federativo sejam dis-tintos em si, “dificilmente devem ser sepa-rados e colocados ao mesmo tempo nasmãos de pessoas distintas”, pois “submetera força pública a comandos diferentes” re-sultaria em “desordem e ruína” (LOCKE,1994, p. 171-172).

Locke (1994, p. 162) apresenta o PoderLegislativo como poder supremo em todacomunidade civil, sendo a primeira atribui-ção da sociedade política criá-lo. Tem comoa sua “primeira lei natural a própria preser-vação da sociedade e (na medida em queassim o autorize o poder público) de todasas pessoas que nela se encontram.” “O po-der absoluto arbitrário, ou governo sem leisestabelecidas e permanentes, é absolutamen-te incompatível com as finalidades da soci-edade e do governo, aos quais os homensnão se submeteriam à custa da liberdade doestado de natureza, senão para preservarsuas vidas, liberdades e bens...” (LOCKE,1994, p. 165).

Segundo Locke (1994, p. 169), os limitesque se impõem ao Poder Legislativo sãoquatro, quais sejam:

1o) as leis devem ser estabelecidas paratodos igualmente, e não devem ser modifi-cadas em benefício próprio;

2o) as leis “só devem ter uma finalidade:o bem do povo”;

3o) não deve haver imposição “de impos-tos sobre a propriedade do povo sem queeste expresse seu consentimento, individu-almente ou através de seus representantes”;

4o) a competência para legislar não podeser transferida para outras mãos que nãoaquelas a quem o povo confiou.

Traça a separação entre os Poderes Le-gislativo e Executivo quando afirma que“não convém que as mesmas pessoas quedetêm o poder de legislar tenham tambémem suas mãos o poder de executar as leis,

pois elas poderiam se isentar da obediênciaàs leis que fizeram, e adequar a lei à suavontade, tanto no momento de fazê-la quan-to no ato de sua execução, e ela teria interes-ses distintos daqueles do resto da comuni-dade, contrários à finalidade da sociedadee do governo.” (LOCKE, 1994, p. 170).

Verifica-se que Locke não trata o PoderJudiciário como “poder genuíno” (BOBBIO,1997, p. 232). Cita algumas situações de lití-gio, mas não assinala o Poder Judiciáriocomo apaziguador dessas situações, porexemplo, quando trata da hipótese de o Po-der Executivo estar sendo utilizado de for-ma ilegítima e questiona: quem julgará estegovernante? Locke assegura em sua respos-ta o direito fundamental da revolução dopovo. “Entre um Poder Executivo constituí-do, detentor desta prerrogativa, e um Legis-lativo que depende da vontade daquele parase reunir, não pode haver juiz na terra...Como não pode existir ninguém entre o Le-gislativo e o povo, quando o Executivo ou oLegislativo, que têm o poder em suas mãos,planejam ou começam a escravizá-lo ou adestruí-lo. Nesse caso, assim como em to-dos os outros casos em que não houver juizna terra, o povo não teria outro remédio se-não apelar para o céus; assim, quando osgovernantes exercem um poder que o povojamais lhes confiou, pois nunca pensou emconsentir que alguém pudesse governá-lovisando o seu mal, agem sem direito.” Con-trariamente a Hobbes, que entendeu que oafastamento da autoridade soberana provo-caria a destruição do Estado e o retorno aocaos do estado de natureza, Locke (1994, p.186) distingue entre a dissolução da socie-dade e a dissolução do governo, pois umgoverno pode ser dissolvido internamente,e um novo governo ser estabelecido. Quan-do houver litígio entre o governante e umparticular, referente a questões não previs-tas em lei ou de interpretação duvidosa, asolução deve advir de um árbitro do povo,caso contrário, a solução se dará, também,pelo direito fundamental de revolta dessemesmo povo (LOCKE, 1994, p. 234).

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Para Locke, não há uma diferença essen-cial entre o Legislativo e o Judiciário, por-tanto este último está incluído no primeiro;isso porque “a função do juiz imparcial éexercida, na sociedade política, eminente-mente pelos que fazem as leis, porque umjuiz só pode ser imparcial se existem leisgenéricas, formuladas de modo constante euniforme para todos” (BOBBIO, p. 233).

Para Bobbio (1997), a teoria de Lockenada tem a ver com a teoria da separação edo equilíbrio entre os poderes, mas de sepa-ração e de subordinação. É o que se depre-ende da afirmação de que o Poder Executi-vo deve estar subordinado ao Poder Legis-lativo e de que as “ofensas sofridas por al-gum membro dessa sociedade política” se-rão julgadas ou por magistrado designadopelo Poder Legislativo ou pelo próprio Po-der Legislativo.

2.3. A separação dos poderes em Montesquieu

O Barão de La Brède e de Montesquieu,Charles-Louis de Secondat, nasceu em Bor-déus, no dia 18 de janeiro de 1689. Foi ma-gistrado14 durante 12 anos entre os anos de1714 a 1726. Em 24 de janeiro de 1728, en-trou para a Academia Francesa. Entre suasobras estão as “Lettres Persanes”, “Le Tem-ple de Gnide”, “Considerações sobre as cau-sas da grandeza dos romanos e de sua deca-dência” e o “Espírito das Leis”, esta últimade 1748 (MONTESQUIEU, 1997, p. 5-13).

“O Espírito das Leis” de Montesquieu(1999) representa “um manual de Política eDireito Constitucional” em que é estudadoo governo15 e a política cientificamente. Ogoverno foi classificado em: governo repu-blicano, em que o poder soberano é de todoo povo (democracia) ou somente de umaparcela do povo (aristocracia); governo mo-nárquico, em que somente um governa, porleis fixas e estabelecidas (leis fundamentais);e governo despótico em que somente umgoverna, mas sem lei e sem regra, satisfa-zendo a sua vontade e seus caprichos(MONTESQUIEU, 2000, p. 19-26). Aponta omotor de agir da política que movimenta

cada governo traduzindo-se em princípios16,pois a natureza do governo é o que o faz sercomo é, e seu princípio o que o faz agir(MONTESQUIEU, 2000, p. 19-26). O princí-pio do agir17 no governo republicano (de-mocrático e aristocrático) será a virtude, pois“aquele que faz executar as leis sente queestá a elas submetido e que suportará o seupeso” (MONTESQUIEU, 2000, p. 32); nogoverno monárquico, será a honra, que podelevar ao objetivo do governo e “o preconcei-to de cada pessoa e de cada condição tomao lugar da virtude política” (MONTES-QUIEU, 2000, p. 36); e, no governo despóti-co, o temor, que acaba “com todas as cora-gens e apaga o menor sentimento de ambi-ção” (MONTESQUIEU, 2000, p. 38).

Fala-se muito sobre a separação dos po-deres18 ensinada por Montesquieu, em “OEspírito das Leis”, mas foram esquecidosou perdidos pelo tempo o real conceito e aforma como a separação de poderes se con-figurava. O Poder é único e indivisível e paraseu exercício era conveniente estabeleceruma divisão de competências entre os trêsórgãos diferentes do Estado. Montesquieuacentuou mais o equilíbrio do que a separa-ção dos poderes.19

Para Montesquieu, o Estado é subdi-vidido em três poderes: o Poder Legislativo;o Poder Executivo das coisas, que se traduzno poder Executivo propriamente dito; e oPoder Executivo dependente do direito ci-vil, que é o poder de julgar. Os Poderes Exe-cutivo, Legislativo e Judiciário devem tersuas atribuições divididas, para que cadapoder limite e impeça o abuso uns dos ou-tros. Montesquieu (2000, p. 168) leciona que:”Tampouco existe liberdade se o poder dejulgar não for separado dos Poderes Legis-lativo e Executivo. Se estivesse unido aoPoder Legislativo, o poder sobre a vida e aliberdade dos cidadãos seria arbitrário, poiso juiz seria legislador. Se estivesse unido aoPoder Executivo, o juiz poderia ter a forçade um opressor.”

O Poder Legislativo é o verdadeiro re-presentante do povo e para isso firma a du-

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alidade das câmaras do legislativo: umaconfiada aos nobres e a segunda confiadaaos escolhidos para representar o povo(MONTESQUIEU, 2000, p. 172).

O Poder Executivo “deve estar nas mãosde um monarca, porque esta parte dogoverno, que precisa quase sempre de umaação mais instantânea, é mais bem ad-ministrada por um do que por vários”(MONTESQUIEU, 2000, p. 172).

O Poder Judiciário deve ser nulo e in-visível, o que nos leva a negativa da triparti-ção dos poderes (VASCONCELOS, 1998, p.31). Isso porque “o poder de julgar tão terrí-vel entre os homens, como não está ligadonem a certo estado, nem a certa profissão,torna-se, por assim dizer, invisível e nulo.Não se tem continuamente juízes sob osolhos; e teme-se a magistratura, e não osmagistrados (MONTESQUIEU, 2000, p.169). Assevera, de fato, que: “Dos três pode-res dos quais falamos, o de julgar é, de algu-ma forma, nulo. Só sobram dois; e, como pre-cisam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é com-posta por nobres é muito adequada paraproduzir esse efeito” (MONTESQUIEU,2000, p. 172). No entanto, percebe-se queMontesquieu (2000, p. 170) diferencia os tri-bunais dos julgamentos, sendo que os pri-meiros não deverão ser permanentes, en-quanto que os segundos devem sê-lo, poissão o “texto preciso da lei”, devendo-se ro-dear o poder de julgar20 das maiores caute-las, uma vez que “os juízes da nação são (...)seres inanimados que não podem moderarnem sua força nem seu rigor” (MONTES-QUIEU, 1997, p. 175).

Os poderes políticos, para o pensadorfrancês, são o Poder Executivo e o PoderLegislativo. Estes vivem em uma balança,procurando o equilíbrio, por meio de duasfaculdades: a de impedir, que define como odireito de tornar nula ou anular uma reso-lução tomada por quem quer que seja; e a deestatuir, que atribui a um órgão constitucio-nal controlar, limitar ou contrabalançar opoder de outro órgão (PIÇARRA, 1989, p. 111).

2.4. A separação dos poderes na atualidade

Os ensinamentos de Montesquieu repro-duziram-se por toda Europa continental e,nos Estados Unidos da América, foi criadoo sistema de freios e contrapesos entre ór-gãos constitucionais democraticamente elei-tos, direta ou indiretamente, pelo mesmopovo soberano, ficando estabelecida assima separação dos poderes. A prática consti-tucional veio “revelar que o sistema de frei-os e contrapesos determinou, afinal, não umequilíbrio permanente entre os ‘poderes se-parados’, mas sim a predominância cíclicade cada um deles” (PIÇARRA, 1989, p. 184).

A separação dos poderes foi associada,por Montesquieu, ao conceito de liberdadee de direitos fundamentais e acolhida, pe-los revolucionários franceses, na Declara-ção dos Direitos do Homem e do Cidadão,em seu art. 16: “toda sociedade, onde a ga-rantia dos direitos não esteja asseguradanem a separação dos poderes determinada,não possui Constituição” (BONAVIDES,1999, p. 156-157). A separação dos poderes,como limitadora do poder público, preten-de favorecer a abstenção do Estado, garan-tindo o gozo efetivo dos direitos de liberda-de perante o Estado.

Surgida, originalmente, para impor a li-berdade e a segurança individuais, a redu-ção do Estado pelo Direito conduziu a que atripartição se convertesse numa teoria dasfunções estatais e que cada poder correspon-deria a uma função estadual materialmentedefinida. A função legislativa traduzidapela forma como o Estado cria e modifica oordenamento jurídico, mediante a edição denormas gerais, abstratas e inovadoras; a fun-ção jurisdicional se destina à conservação eà tutela do ordenamento jurídico proferin-do decisões individuais e concretas, dedu-tíveis das normas gerais; e a função executi-va concretiza-se quando o Estado realiza osseus objetivos, nos limites impostos pelasnormas jurídicas (PIÇARRA, 1989, p. 248).Essa classificação baseia-se na condição deque o Estado e o Direito se identificam.

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No entanto, Kelsen (1992, p. 263) refu-tou essa classificação, definindo que o con-ceito de separação de poderes “designa umprincípio de organização política. Ele pres-supõe que os chamados três poderes podemser determinados como três funções distin-tas e coordenadas do Estado, e que é possí-vel definir fronteiras separando cada umadessas três funções.” Constata, mais adian-te, que não são três, mas duas as funçõesbásicas do Estado: a criação e a aplicação doDireito e que “é impossível atribuir a criaçãodo Direito a um órgão e a sua aplicação (exe-cução) a outro, de modo tão exclusivo que ne-nhum órgão venha a cumprir simultaneamen-te ambas as funções” (KELSEN, 1992, p. 264).

Nessa perspectiva, não se pode distin-guir material ou intrinsecamente, em termosabsolutos, uma função estadual da outra.Dessa forma, Kelsen desestabilizou a teoriada separação dos poderes, como teoria dadiferenciação material das funções do Esta-do (PIÇARRA, 1989, p. 250).

3. Conclusões

A idéia de controle, de fiscalização e decoordenação recíprocos tornou-se o foco naseparação dos poderes. Os controles juris-dicionais da legalidade da administração eda constitucionalidade da legislação evi-denciam o avanço da atuação do Poder Ju-diciário contrariando os ensinamentos deMontesquieu que lecionava ser a jurisdiçãoum poder nulo.

Não há dúvida de que o controle juris-dicional constituiu o núcleo central da se-paração dos poderes no Estado constitucio-nal contemporâneo. Exemplos dessa situa-ção está nas democracias brasileira, estadu-nidense, alemã e italiana21, em que toda leiaprovada pode ser cassada por um órgãodo Poder Judiciário. Não obstante, na terranatal de Montesquieu, o exame da constitu-cionalidade somente se dá antes da entradaem vigor da lei, ainda na esfera dos seusprojetos, por um Conselho Constitucionalde natureza política.

Nos dias atuais, a separação dos pode-res caracteriza a idéia de Estado constituci-onal democrático e não existe país demo-crático que não possua essa regra em suaConstituição. De há muito ensina Duguit sera separação absoluta de poderes uma ilu-são “que desde o ponto de vista lógico nãopode conceber-se; isto porque qualquer ma-nifestação de vontade do Estado exige o con-curso de todos os órgãos que constituem apessoa Estado.”22 Por tal razão, a separaçãodos poderes deve ser encarada como princí-pio de moderação, racionalização e limita-ção do poder político no interesse da paz eda liberdade, modificando-se, como tudo“no entre-os-homens”, de acordo com ascondições históricas de cada povo.

Notas

1 Cf. DALLARI, 1995, p. 181, 15.2 O Estado, como é uma sociedade, não pode

existir sem um Poder e para a maioria dos autoreso “poder é um elemento essencial ou uma notacaracterística do Estado” (DALLARI, 1995 p. 93).

3 Cf. CAPPELLETTI, 1999, p. 94.4 Cf. ARENDT, 1998, p. 23.5 Cf. ARENDT, 1998, p. 24.6 Cf. ARENDT, 1998, p. 24.7 Cf. MONDIN, 1981, p. 82.8 Tal obra desapareceu, restando um único frag-

mento, que foi publicado em 1891 por Sir FredericoKenyon.

9 Cf. NOVAES, 1992, p. 35.10 “Cada forma política tem uma causa própria

para sua corrupção. A realeza degenera em tiraniaporque o rei começa a acumular riquezas e pode-res, a ter um exército próprio, acreditando que podetudo quanto queira. (...) A aristocracia degeneraem oligarquia quando os aristocratas se tornamdemagogos para obter para si os favores popularese quando formam facções rivais que se combatem,enfraquecendo o poder. (...) o regime constitucionalou popular degenera em democracia porque os di-rigentes se transformam em demagogos, querendoos favores populares e permitindo que os ricos sealiem contra o governo; os ricos, por sua vez, distri-buem riquezas e promessas ao povo para obterseus favores e se aliam aos pobres (a quem fazemfavores) para que estes, cujo número é o maior doque o restante, derrubem os governantes” (CHAUÍ,2002, p. 472).

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11 Cf. MONDIN, 1982, p. 103-104.12 Para Aristóteles, todos os participantes dos

três Poderes eram chamados de magistrados.13 Os dois Poderes típicos do Estado, em Locke,

são o Legislativo e o Executivo, pois, quando ohomem ingressa na sociedade civil, renuncia aospoderes naturais de fazer leis e de punir aquelesque se rebelam (BOBBIO, 1997, p. 232).

14 Montesquieu, em 1716, herdou de seu tio ocargo de membro do Parlement de Bordeau, queera um órgão judiciário coletivo. Exerceu a funçãoaté 1726 quando vendeu o cargo, pois necessitavade dinheiro e, também, porque não sentia interesseem realizar aquele tipo de atividade. Raymond Carréde Malberg (apud DALLARI, 1995, p. 5-13) ensinaque, na França do século XVII e XVIII, “o ofício dosjuízes, que integravam os Parlements, era conside-rado um direito de propriedade, tendo a mesmasituação, jurídica das casas e das terras. Em talsituação, a magistratura podia ser comprada, ven-dida, transmitida por herança, ou mesma alugadaa alguém quando o proprietário não se dispunha aexercer a magistratura mas queria conservá-la, parafutura entrega a um descendente que ainda eramenor de idade. O ofício era rendoso, pois a presta-ção de justiça era paga, havendo muitos casos decobrança abusiva.”

15 O estudo feito por Montesquieu sobre a clas-sificação das formas de governo “não desterrou daciência política o genial esboço de Aristóteles, quecom uma ou outra emenda perdura há mais dedois mil anos. Das formas de governo, resta o juízocerto que Montesquieu fez acerca do papel dos gru-pos intermediários, enquanto técnica auxiliar deconservação da liberdade, consoante as fórmulas eos conceitos do Estado liberal” (BONAVIDES,1999, p. 156).

16 “Pode-se incluir, sem dificuldades, a glórianesses princípios, tal como conhecemos no mundohomérico, ou a liberdade, tal como a encontramosem Atenas do tempo clássico, ou a justiça, mastambém a igualdade se entendemos entre eles aconvicção da dignidade original de tudo que temrosto humano” (ARENDT, 1998, p. 128).

17 Hannah Arendt (1998, p. 127) entende quetodo agir político, além do princípio do agir criadopor Montesquieu, possui mais três elementos: oobjetivo que persegue, que só começa a aparecer narealidade quando a atividade que o produziu che-gou a seu fim; a meta, que produz os parâmetrospelos quais deva ser julgado tudo que é feito; e osentido de uma atividade que só pode existir en-quanto durar essa atividade.

18 Livro Décimo Primeiro, “Das Leis que for-mam a liberdade política em sua relação com aConstituição”, Capítulo IV, “Da Constituiçãoda Inglaterra”(MONTESQUIEU, 2000, p. 167-178).

19 Cf. DROMI, 1982, p. 36; “Quem liga aos con-ceitos “divisão” e “separação” conteúdos diferen-tes e porventura contraditórios encontra-se, comisso, em consonância com a linguagem comum (...).Uma divisão, seja ideal ou real, pressupõe umaunidade e não exclui que uma parte fique, de al-gum modo, relacionada com a outra, enquanto queuma separação exige pelo menos duas unidades aseparar uma da outra e conduz a que estas unida-des subsistam completamente independentes umada outra”. Cf. LANGE apud PIÇARRA, 1989, p.105.

20 O pensamento de Montesquieu a respeito dosjuízes implementou-se na Constituição Francesa de1791, que fixou a eletividade e a temporariedadedos juízes, no entanto, a Constituição de 1814 esta-beleceu serem os juízes nomeados pelo rei. Com osistema republicano de 1848, foi mantida a desig-nação dos juízes por nomeação, com a indicaçãofeita pelo Presidente da República, tendo garantidoaos juízes de primeira instância e dos tribunais avitaliciedade. A atual Constituição Francesa tratade “autoridade judiciária” e não de “Poder Judici-ário”.

21 A Corte Constitucional italiana se manifestacomo sendo um órgão legislativo que profere “de-cisões com as quais não só se eliminam normas,mas se criam de novo ou se transformam aquelasexistentes; adverte ao legislador que proceda deum determinado modo, com a ameaça subentendi-da de anular a lei eventualmente disforme; e con-trola o bom senso da lei, que pode transformar-se em um refazimento integral da escolha ope-rada em sede legislativa” (ZAGREBELSKY, 1997,p. 513).

22 Cf. BONNARD, R. Leon Duguit. Sés oeuvres.Sa doctrine. Revue de Droit Public et de la sciencepolitique en France et á l´étranger apud DUGUIT,1998.

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Ronaldo Guimarães Gallo

1. IntroduçãoA proposta deste trabalho é analisar os

limites da soberania, ou melhor, perquirirse há limites a serem impostos ao fenôme-no. Pautados nesse propósito, inúmeros ins-titutos deverão ser desvendados, propician-do que se trilhe uma base sólida sob a qualpoder-se-ão desenvolver as idéias que(des)constituirão o cerne da questão.

Fica consignado que nosso compromissonão reflete uma análise perfunctória dos te-mas adjacentes que circundam a soberania,sob pena de, em vez de subsidiarmos a evolu-ção do trabalho, inviabilizá-la por completo.

Tendo como foco as elucidações traça-das, daremos início ao trabalho analisandoa evolução histórica do instituto, salientan-do as diferentes feições que o mesmo incor-pora, dependendo das necessidades apre-sentadas pelo momento histórico. Observa-remos que a soberania é tingida com a fortecoloração dos interesses, é dizer, seu con-teúdo e sua força gravitam de acordo com ascontingências de um determinado período.

Da evolução histórica, adentraremos aoestudo do conceito da soberania, bem como

Soberania: poder limitado (parte I)

Ronaldo Guimarães Gallo é Procurador Fe-deral (SP) e especialista em direito constitucio-nal.

Sumário1. Introdução. 2. Evolução histórica. 3. Con-

ceito e características. 4. Soberania e o titulardo seu exercício. 5. Soberania e poder constitu-inte originário. 5.1. Poder Constituinte – con-ceito e natureza. 5.2 Atributos do Poder Cons-tituinte.

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apresentaremos suas principais caracterís-ticas e atributos, tópicos intransponíveispara a compreensão do tema. De forma com-plementar, porém não menos importante,avaliaremos quem é o titular do seu exercí-cio, ponderando acerca das teorias que in-tentam desvendar o questionamento.

Feito isso, observaremos que existe umainteressante ligação entre o instituto da so-berania e o Poder Constituinte, sendo certoque referido liame em muito nos interessapara os propósitos deste trabalho. Portanto,faremos uma breve incursão na matéria Po-der Constituinte, com o fito de apresentar umesboço consistente do fenômeno.

Essa análise implicará alinhavarmos ummínimo de informação para o entendimen-to do Poder Constituinte, logo, de forma im-preterível, deveremos analisar seu conceito,principais características e atributos.

Quando estivermos desvendando as pre-missas básicas do fenômeno constituinte, cons-tataremos que elas não são suficientes paraa elaboração de um resultado convincenteque importe num fechamento adequado aopresente estudo. Denotaremos que suas ba-ses desembocam num terreno por demaisnebuloso, cuja dubiedade é a marca maissignificativa.

Nesse ponto nos deteremos, o que nãoimplica o esgotamento do tema, nem a con-clusão do nosso intento. Ao contrário, apre-sentaremos numa segunda parte do traba-lho, a ser publicada na próxima edição, aevolução do Poder Constituinte e sua inte-ressante relação com o instituto do jus co-gens, que, por sua vez, merecerá toda nossaatenção e análise; análise essa que imbrica-rá num embate entre os institutos da sobe-rania e do jus cogens, propiciando novos en-tendimentos acerca dos temas e, finalmen-te, a nossa conclusão acerca da limitação,ou não, da soberania.

É este o estudo que nos propusemos de-senvolver e que passamos a apresentar, porora, com ênfase na soberania e no poder cons-tituinte.

2. Evolução histórica

Para o pretendido neste trabalho, enten-demos ser essencial, ab initio, a análise dodesenvolvimento histórico da soberania.Com base nesse procedimento, poderemosdelinear a gênese do fenômeno jurídico, fa-tos que culminaram por agregar determina-das características ao mesmo, ou então fin-daram por enrijecer crenças que não maisse coadunam com o momento político-his-tórico atual.

Diferente do que normalmente ocorrecom outros temas, quando então a relevân-cia do desenvolvimento histórico é adjacen-te, com o fenômeno da soberania tal não sedá. A síntese histórica lança informaçõesimportantes, que voltarão a ser lembradasquando do avançar do tema, emergindo, porvezes, como fundamento para intrigantesconfrontos.

De se ver, portanto, a atenção que mereceo presente tópico, cujo início já se faz tarde.

Na Antiguidade, a nota fundamental quecaracteriza o Estado, apartando-o das de-mais comunidades humanas, é o que Aris-tóteles denomina autarquia. Esta, por suavez, implica a auto-suficiência do Estadoque, mediante os esforços da comunidadeque o compõe, finda por suprir todas as suasnecessidades, não dependendo de qualquerauxílio externo.

Não obstante a autarquia ser, na Antigui-dade, adjetivo essencial do Estado, não temqualquer ligação com o moderno conceitode soberania, aliás, muito mais se asseme-lha ao que se entende por autodetermina-ção. A somar com o entendimento esposa-do, tem-se o fato de que a autarquia não per-faz uma categoria jurídica, mas sim ética,ao primar pela realização da “vida perfei-ta” como condição fundamental a ser alcan-çada pelo Estado.

Em consonância, ressalta Jellinek (1970,p. 328) que “la antigua polis posee la posibi-lidad moral de aislarse del resto del mundo,porque lo tiene todo em sí misma, no sólo loque puede ser necesario a la vida, sino tam-

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bién lo que da a los hombres um valor. Lapolis no necesita del mundo bárbaro, ni tam-poco de sus hermanas las ciudades griegas,para cumplir su fin. El concepto de la autar-quia no nos enseña nada acerca de la libredeterminación del Estado em su conducta,sobre su derecho y administración, sobre supolítica interior y exterior”.

Assim, tem-se que “o Estado antigo naconcepção grega era uma comunidade soci-al perfeita, a única organização política,aquela que abrangia o homem em toda aexteriorização e largueza de sua vida soci-al, caracterizando-se, segundo Aristóteles,como autarquia, noção inteiramente diver-sa da moderna soberania e que permitia dis-tinguir o Estado das demais formas de soci-edade” (BONAVIDES, 1986, p. 131).

Sem prejuízo da distância existente en-tre a autarquia e o fenômeno jurídico da so-berania, pode-se constatar naquela a gêne-se desta, principalmente no que diz respei-to à supremacia do poder estatal, conferidapelo instituto jurídico hodiernamente.

A característica atual da soberania (ali-nhavada por alguns), de independênciaextremada, de poder incontrastável, é utili-zada pelos Estados como alicerce para osmais diversos desmandos, remetendo às con-dições encampadas na polis com a sutil,porém mui relevante, diferença da falta deauto-suficiência a lhes permitir ignorar osdemais poderes que com eles coabitam omundo globalizado. Algumas das condiçõesespeciais que decorriam do ser autarquia ain-da permeiam o centro de poder de algunsEstados sob os eflúvios da concepção equi-vocada da soberania. Desses traços é queapanhamos a autarquia como a gênese, in-cipiente é certo, do que hoje se entende porsoberania (não obstante, como já ressalta-do, a total falta de parentesco entre o insti-tuto ético-político e o fenômeno jurídico).

Entretanto, vale anotar que do raciocí-nio acima desenvolvido discorda o Profes-sor Mário Lúcio Quintão Soares (2002, p.544), ainda que destacando as mesmas im-portantes distinções por nós também apon-

tadas. Vale a transcrição do entendimento:“O conceito aristotélico de ‘autarquia’, defi-nida como nota característica do Estado, queo diferencia das demais comunidades hu-manas, distingue-se radicalmente da con-cepção moderna de soberania. Ou seja, doconceito de autarquia não se deduz nenhu-ma conseqüência relativa às condições mú-tuas dos Estados empíricos, nem a respeitoda amplitude do poder de dominação quelhe corresponde em seu interior”.

Na verdade, o mundo antigo restou im-possibilitado de desenvolver um conceito,ainda que assemelhado, de soberania, fatoque se justifica pelo próprio ambiente histó-rico de então: não existia oposição ao poderestatal, principalmente perante outros po-deres.

A concepção das autarquias, subsisten-tes por si próprias, em todos os sentidos,bem está a demonstrar a inocorrência doconfronto de poderes estatais, dificultandoque se desenvolvesse um conceito de sobe-rania, pois que sem qualquer utilidade1.

O Estado Moderno, diferentemente doque se passou com o antigo – capturadopelos delineamentos acima sublevados –,teve que afirmar sua existência ultrapassan-do árduos conflitos que, por fim, forjaramsuas características. Três foram os poderesque se entrechocaram para, medindo forças,apresentarem a substância do ente estatal,que lhes parecia consentânea com seus pro-pósitos. São eles: a igreja, que intentou colo-car o Estado a seu serviço; após, o impérioromano, que conferia aos Estados o poderequivalente ao observado às suas provínci-as; finalmente, os grandes senhores e cor-porações, que entendiam ser um poder in-dependente dentro do próprio Estado.

Como resultado da luta entre esses trêspoderes, nasceu a idéia de soberania. Sen-do assim, verificaremos, rapidamente, o de-senrolar dos embates que propiciarão umamelhor noção do instituto foco do presenteestudo.

Na luta entre o Estado e a Igreja, três eramos pontos de vista que sobressaíam: a Igreja

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se sobrepõe ao Estado; os dois se equiva-lem; o ente estatal deve ter supremacia pe-rante o religioso. Inúmeras foram as teoriasque amparavam todos os pontos menciona-dos, porém, foi na França do século VII quenasceu a idéia da supremacia estatal ante aigreja.

A segunda força, na Idade Média, quelutou contra a teoria do estado independen-te foi o império. Preponderava na época aidéia de que os Estados (cristãos) eram sub-metidos ao poder imperial, somente a estecabendo a feitura de leis, a integridade dopoder monárquico, enfim, a plenitudo potes-tatis (JELLINEK, 1970, p. 332). O poder im-perial provia de entendimentos, como os deBartolo (JELLINEK, 1970, p. 332), que pro-fessava a heresia daquele que afirmasse nãoser o imperador senhor e monarca de toda aorbe; ou então do papa Pio II (JELLINEK,1970, p. 333), que escreve a Frederico III quetodos os povos estão submetidos a ele dedireito.

Com a derrocada dos Hohenstaufen,essa doutrina oficial passa a ser contradita-da. França e Inglaterra passam a negar a su-perioridade do Império, bem como importan-tes cidades italianas (Florença e Pisa) deixamde reconhecer a supremacia imperial.

Entretanto, a concepção de direito pri-vado reinante à época professava a inde-pendência do Império como decorrência deum privilégio provindo da prescrição e pos-se imemorial do Imperador, não se conside-rando, pois, tal poder como decorrente danatureza do Estado, sob pena de essa dou-trina implodir utilizando como munição suaprópria retórica. Por isso, os reis que conse-guiam afastar-se da superioridade imperi-al, não obstante, permaneciam nas cercani-as do império, mesmo porque o Imperadorera o único que tinha em mãos o direito deconceder o título de rei. O que havia, por-tanto, eram reis que exerciam “poderes im-periais” nas terras do Império por conces-são do Imperador.

Todavia, novamente na França, eclodiao inconformismo à superioridade imperial,

sob os eflúvios da propalada independên-cia do Estado perante a Igreja. O fundamen-to era fincado no argumento de que o reinão reconhece nenhum senhor superior aci-ma de si. Desenvolveu-se uma teoria imper-feita de Estado, afastada dos ideais aristoté-licos, mas que se mostrou diferente e propi-ciou o desenvolvimento de um novo pensa-mento acerca da natureza estatal, o elemen-to independência.

Contra essa nova doutrina acerca doEstado não se contrapunham apenas a Igrejae o Império, eis que o feudalismo tambémengrossava essas fileiras, desenvolvendorelações com a população que findavam pornegar por completo a natureza estatal quese desenhava.

Os senhores feudais, dotados de pode-res análogos aos provindos do Estado, oqual lhes servia como se fosse uma posses-são privada, desenvolvem instituições comcaracterísticas inerentes às de caráter pú-blico e que não se submetiam a um regra-mento superior, findando por atender a po-pulação diretamente interessada, é dizer,aqueles que se encontravam estabelecidosna circunscrição territorial atendida pelofeudo.

Como decorrência desse cenário, o reivia-se impedido de ter um contato direto coma população, ainda mais porque, normal-mente, ao ceder um feudo, aquele que o rece-bia ficava subordinado diretamente a umbarão, afastando-se ainda mais do poderreal. Fazia-se necessária, portanto, a quebrada barreira que distanciava o rei dos seussúditos, o afastamento dos que se encontra-vam como intermediários do poder estatal.E assim procederam Inglaterra e França,aquela reconhecendo e criando poderes sub-metidos diretamente à coroa e que findarampor integrar o próprio Estado; e esta por meioda aniquilação de todos os elementos polí-ticos que se contrapunham ao rei.

Narra Jellinek (1970, p. 337)que o movi-mento de fortalecimento do poder do rei e,conseqüentemente, do Estado começou “enFrancia a principios del siglo XII con Luis VI;

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proceso que mediante Felipe Augusto alcanzauna significación permanente en la Historia. Enel año 1202 había treinta y ocho distritos judici-ales reales (prévôtés), y al final del gobierno deaquel rey (1223) existían noventa y cuatro. Conel aumento del dominio real aumenta también lafuerza del rey frente a los barones. El rey adqui-ere el poder supremo de justicia, y asume igual-mente en sí el poder legislativo y el de policía. Alfinal del siglo XIII aparece por vez primera elprincipio de que el rey era sovrains de todo elreino sobre los barones, a quienes igualmente seles llamaba soberanos. Como signos de esta sobe-ranía senãla Beaumanoirs el derecho del rey ajuzgar como órgano supremo de justicia y legénéral garde de son roiaume, y de dondededuce el jurista, anticipándose a su tiempo, elderecho libre del rey a legislar por le porfit duroyaume. Los legistas exaltan más tarde la doc-trina abolutista del Bajo Império acerca de él, ydeducen de ella el poder ilimitado del rey de Fran-cia, mediante la cual llegan a la negación de quehaya un poder substantivo frente al del rey. Es-tos legistas son los que forman a la vanguardiaen la lucha por la unidad del Estado, y atacan deun modo decisivo al Estado feudal por su faltade punto de unión, el cual, más que un Estado, esun conglomerado de una diversidad de señoríos.De este modo se transforma el concepto de la so-beranía del rey, que en un comienzo era conceptorelativo, comparativo, en un concepto absoluto.De superior que era adviene supremus”.

A nova doutrina que nascia trazia o reiacima do direito positivo (embora submeti-do ao direito natural), passando os Estadosa possuírem fundamento na autoridade domonarca e não na autoridade do direito.Essa concepção de soberania somente viriaa declinar com a Revolução Francesa.

Na época de transição para o Estadomoderno, restou evidenciada a necessida-de da concentração do poder nas mãos dopríncipe, quer para implementar a união doEstado, quer para dizimar forças regiona-listas que atuavam de forma a imprimir des-membramentos no ente estatal. A concen-tração do poder, unificando o Estado, foipossível graças ao aparecimento das monar-

quias absolutas (séculos XV a XVIII), firman-do-se o poder soberano do rei e do Estadodentro do seu território contra quaisqueroutros organismos que intentassem a repar-tição do domínio.

O instituto da soberania passa a ter comocaracterística a “não limitação”, conformenos explica Machado Paupério (1958, p. 45)

“O conceito de soberania, pode-sedizer, evolveu com o conceito de Esta-do. Mas, no limiar do mundo moder-no, quando começou a ser vulgariza-do, compreendia, além da completaindependência em relação a todo equalquer país estrangeiro e do máxi-mo poder interno, um caráter de ilimi-tação, que se encontra, como vamosver, nas várias definições dos teoris-tas do Estado, da época. As limitaçõesque porventura surgem ao poder doEstado são de ordem casuística oumoral, nunca de ordem jurídica”.

Com o movimento humanista, a doutri-na que unia o poder em torno da Igreja e doImpério desaba. A Reforma iniciada por Lu-tero propicia o avanço do poder temporalante o espiritual, saindo vencedor aquele,consubstanciando a divindade do Estado. Adoutrina luterana, pela via transversa, fin-da por angariar um aumento do poder esta-tal.

Lutero pretendia, com sua nova doutri-na, imprimir profundas modificações naIgreja, que esta não podia permitir. Sendoassim, aliou-se o Mestre do trabalhismo in-glês ao Império, para que este, com seu po-der, fosse-lhe útil para impor força às novasteorias que desenhava. Mas o Imperadormostrou-se vacilante diante das propostasde Lutero, voltando-se este, por sua vez, aospríncipes.

Percebendo-se que para a derrocada daIgreja seria necessária a contraposição deoutro poder, também considerado divino,Lutero passa a reafirmar a divindade dopoder dos príncipes, culminando por esbo-çar o Estado nacional que se desenharia. OEstado passa a encerrar-se no príncipe e a

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doutrina da superioridade do Império é ani-quilada.

No final do século XVI, o rei da Françapassa a ser considerado “como o mais ele-vado da terra” (PAUPÉRIO, 1958, p. 45), oprimeiro rei do mundo, não encontrandopoder superior em qualquer fundamentofático ou jurídico. O reinado cresce com ta-manha força que o rei passa a ter direitossobre a própria Igreja, chegando a impor-lhe o pagamento de impostos, independen-temente de qualquer audiência com o Papa.

Do que restou alinhavado, até o momen-to, abstrai-se três significações distintaspara o conceito de soberania (PAUPÉRIO,1958, p. 48):

“1. A princípio, a soberania apre-senta apenas uma superioridade re-lativa ao domínio em que se exercita.

2. Paulatinamente, de comparati-vo passa a soberania a ter caráter su-perlativo, considerando ora o Reicomo órgão de uma autoridade quepertence ao Estado, ora como o pro-prietário de todo o poder.

3. Finalmente a soberania, exce-dendo-se, vai compreender o conjun-to dos poderes próprios do Estado,tendendo à supremacia definitiva eabsoluta”.

3. Conceito e características

O termo soberania traz consigo a adjeti-vação de poder incontrastável, acima doqual não existe qualquer outro; é o poder“de decisão em última instância de todos osseus assuntos, internos ou externos, não de-pendendo de ninguém e a ninguém precisan-do consultar”2 (AZEVEDO, [19- -?], p. 20-21).

Segundo Paulo Dourado de Gusmão(1992, p. 367), “pode-se definir soberaniacomo o poder supremo e originário de go-vernar e organizar juridicamente a vida deum povo, em um território sem a ingerênciade outro poder, ou de outro Estado ou deoutra ordem jurídica. É, assim, poder origi-nário, que não provém de ordem jurídica

alguma ou de outro poder. (...) Assim, é opoder originário de impor a um povo emum território uma ordem jurídica e um go-verno”.

No mesmo sentido, mas com acabamen-to diferente, Hermann Heller (1965, p. 197)salienta que “la soberania es la cualidad dela independencia absoluta de una unidadde voluntad frente a cualquiera otra volun-tad decisoria universal efectiva. Este con-cepto, en su aspecto positivo, significa quela unidad de voluntad a la que correspondela soberania es la unidad decisoria univer-sal suprema dentro del orden de poder deque se trate”.

O Professor Paulo Bonavides (1986, p.129), por sua vez, informa que a soberania éapresentada, por inúmeros publicistas,como um conceito histórico e relativo. “His-tórico, porquanto a Antigüidade o desconhe-ceu em suas formas de organização políti-ca. Haja vista o exemplo da polis grega, doEstado-cidade na Grécia clássica3. A sobe-rania surge apenas com o advento do Esta-do moderno, sem que nada por outra partelhe assegure, de futuro, a continuidade”.

“Relativo, uma vez que tomado de iníciopor elemento essencial do Estado – confor-me sucedeu ainda entre juristas do séculoXIX – raro o autor hoje que após os traba-lhos exaustivos de Jellinek ainda se ocupada soberania sob o prisma do direito inter-nacional, como de um dado essencial cons-titutivo do Estado. Há Estados soberanos eEstados não soberanos. Do ponto de vistaexterno, a soberania é apenas qualidade dopoder, que a organização estatal poderá os-tentar ou deixar de ostentar”.

Tendo em vista o enfoque suso apresen-tado, o mesmo doutrinador salienta que, “doponto de vista interno, porém, a soberania,como conceito jurídico e social, se apresen-ta menos controvertida, visto que é da es-sência do ordenamento estatal uma superi-oridade e supremacia, a qual, resumindo jáa noção de soberania, faz que o poder doEstado se sobreponha incontrastavelmenteaos demais poderes sociais, que lhes ficam

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subordinados. A soberania assim entendi-da como soberania interna fixa a noção depredomínio que o ordenamento estatal exer-ce num certo território e numa determinadapopulação sobre os demais ordenamentossociais. Aparece então o Estado como por-tador de uma vontade suprema e soberana– a suprema potestas – que deflui de seu pa-pel privilegiado de ordenamento políticomonopolizador da coação incondicionadana sociedade. Estado ou poder estatal e so-berania assim concebidos, debaixo dessepressuposto, coincidem amplamente. Ondehouver Estado haverá pois soberania” (BO-NAVIDES, 1986, p. 130).

No mesmo sentido, Márcio Monteiro Reis(2000, p. 197) descreve a soberania como“poder originário, incondicionado, exclusi-vo e coativo. O poder soberano nasce nomesmo momento em que nasce o Estado, daídizer-se originário, além disso não depen-de de outros para justificar sua existência.Só pode ser possuído pelos Estados, embo-ra nem todo o Estado o possua, portanto éuma característica exclusiva de Estados.Outra característica importante a ser desta-cada é a coatividade. Só o poder soberano éautorizado a empregar a força material, atra-vés de elementos de coação, que possamobrigar os indivíduos ao cumprimento daordem jurídica”.

Se nem todo Estado possui soberania,consoante ecoa nas conceituações alinha-vadas, cabe perquirir, antes de se dar pros-seguimento, se o atributo da soberania é es-sencial à definição de Estado, eis que, po-sitiva a resposta, os delineamentos sob ênfa-se não nos ajudarão no desenlace dos obstá-culos que virão; contrariamente, sendo nega-tiva, importante apontar os delineamentosque propiciarão uma explicação a contento.

O Professor José Alfredo de Oliveira Ba-racho (1986-1987, p. 14), também perscru-tando se, entre as notas essenciais do con-ceito de Estado, está a soberania, aponta queeste instituto revela um atributo, um predi-cado que acompanha e caracteriza o Esta-do. Referido “atributo” pode ser constatado

na posição de supremacia, de inexistênciade poder superior.

Segundo Víctor Flores Olea (1975, p. 92),“la soberanía del Estado no es, en consecuencia,el poder del Estado; ni siquiera uno de los atri-butos de su poder, sino la cualidad de suprema-cia y universalidad propia de la estructura es-tatal, considerada como un todo”4.

No entanto, não se pode olvidar que asoberania é uma noção traçada pela Ciên-cia Jurídica, o que não equivale dizer queperfaz um aspecto do direito positivo. O ins-tituto é elaborado pela Ciência Jurídica, masnão como forma de imprimir determinadaqualidade ao direito positivo, pois este nãotem a capacidade de centrar em si a quali-dade de supremacia máxima, própria dasoberania (BARACHO, 1986-1987, p. 14-15).

Nessa linha de raciocínio, a soberaniaestaria conectada ao poder e à autoridade,logo, “se a Soberania acompanha por formanecessária o Poder ou Autoridade, e, por seuturno, o Poder ou Autoridade acompanhamnecessariamente a noção de sociedade, de-riva em linha reta do originário por nós en-contrado, temos que assentar no seguinte: aSoberania está numa relação direta e seminterrupção com o originário” (BARACHO,1986-1987, p. 15), concluindo-se que o po-der/autoridade ligados à soberania nãoderivam de outro poder, ao contrário, são agênese, a fonte que ingressa regulamentan-do e construindo.

Com a ligação detectada entre a sobera-nia e o poder, o que se tem, portanto, é aque-la atuando como uma qualidade deste. “ASoberania, tida como superioridade, recla-ma imediatamente para sua compreensãoplena o conceito de Poder”.

“A autêntica superioridade e domínioresidem na conjugação das entidades entresi que se dispõem numa hierarquia, não emnenhuma dessas entidades mesmas. Asnoções de supremacia que se resumem naconceituação de Soberania ligam-se às no-ções de Poder e Sociedade. A Soberania, paraalguns, não é concebida sem o Poder. Estaafirmativa não é suficiente para acreditar-

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se legitimamente que a Soberania se definecomo atributo ou qualidade do Poder. ASoberania como atributo ou qualidade doPoder não se confunde com ele, por inteiro.A distinção entre Poder e Soberania não écompleta. Como qualidade ou atributo doPoder, reconhece-se que entre ambos existea conexão e condicionamentos recíprocosde relação” (BARACHO, 1986-1987, p. 17).

Nessa seara, pontuando e complemen-tando, estabelecendo a dependência e a di-ferenciação, os posicionamentos são os maisvariados e, talvez bem por isso, muito inte-ressantes. Vale a observação do seguinte tre-cho: “Reparemos que, se a soberania incluio Poder, o Poder, conforme vimos no pará-grafo anterior, também em si a noção de So-berania e, portanto, nenhum destes concei-tos pode ser mais extenso do que o outro.São, pois, de extensão igual. Mas como é queduas noções de igual extensão estão incluí-das uma dentro da outra? De uma únicamaneira: coincidindo plena e perfeitamen-te. Partindo da hipótese de um Poder e deuma Soberania separados, temos de chegarà conclusão que a Soberania e o Poder sãocírculos coincidentes, isto é, uma realidadesó. Soberania e Poder convertem-se um nooutro. A Soberania é soberania, ou seja, ésupremacia radical, ausência de superior,etc., porque é Poder, Autoridade, unidadeque reduz todo o resto (toda a pluralidade)a si; e por sua vez o Poder, ou seja vínculounificador do plural e do particular, porqueé Soberania, porque é supremo, último, semnada acima de si. Por conseqüência, Podere Soberania constituem uma mesma coisa eesta última, em lugar de ser uma qualidadeou atributo daquele, confunde-se com ele,quando corretamente apreendida na suasubstância. A Soberania é o Poder expressonuma noção certa e verídica ou, se quiser-mos, a Soberania é a verdade do Poder e vice-versa” (BRITO, [198-?], p. 457 apud BARA-CHO, 1986-1987, p. 17).

Ultrapassado os rápidos comentários arespeito do conceito e natureza do institutoem comento, vale traçar a classificação adu-

zida pela grande maioria dos doutrinado-res, que, por sua vez, imputam à Soberaniaa qualidade de una, indivisível, imprescri-tível e inalienável5. “Una, por não ser possí-vel a convivência simultânea de dois pode-res soberanos. Soberano é aquele poder quese situa acima de todos os demais, não es-tando submetido a nenhum outro. Não écompatível a convivência de mais de umpoder soberano no mesmo âmbito. Indivisí-vel, por conclusão lógica ante a sua unida-de. No entanto, a indivisibilidade da sobe-rania não impede a divisão do seu exercí-cio. A teoria da divisão de poderes importa,na verdade, em uma divisão de funções. Nãose deve confundir isto com a divisão da pró-pria soberania. Imprescritível e inalienável,pois encarna o poder supremo, insuscetívelde lesão e indisponível. Na verdade, a inali-enabilidade não é uma característica da so-berania. O que ocorre é que a renúncia dopoder soberano equivale a sua própria mor-te. O poder soberano que renuncia deixa deser soberano” (REIS, 2000, p. 922).

O Professor A. de Sampaio Dória (1953,p. 55-57 apud AZEVEDO, (19- -?), p. 30-31),quando examinando o fenômeno da sobe-rania, imputa-lhe três atributos essenciais:supremacia, exclusividade e autodetermina-ção. Assim, “a supremacia indica que, aocontrário de algumas formas sociais de coa-ção subalternas como o pátrio poder do se-nhor sobre o escravo na época do escrava-gismo, as quais dependem da lei, a coaçãoexercida pela soberania é suprema e exclu-siva, isto é, acima dela não existe qualqueroutro poder. A exclusividade significa quea coação não pode ser exercida por qual-quer particular ou organização, mas ape-nas pelo próprio Estado, cujo poder neces-sita ser invocado por qualquer pessoa, sin-gular ou coletiva, que haja de exigir de ou-trem o cumprimento de obrigação ou encar-go que assumiu. Por fim, a autodetermina-ção assinala que o Estado é o árbitro últimode sua própria competência, podendo agirem última instância, sem necessidade deconsultar a quem quer que seja”.

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Haja vista o conteúdo assinalado a res-peito dos principais delineamentos da so-berania, fez-se concreta a base que nos pro-piciará prosseguir com o objetivo deste tra-balho. Entretanto, antes de avançarmos, éde bom alvitre apontar a conexão existenteentre a soberania (principalmente no quetange ao ordenamento jurídico interno) e oPoder Constituinte Originário, eis que estetambém, segundo a doutrina majoritária,não encontra limites às suas proposições,não deriva de outro poder ou condiciona-mento normativo e finda por constituir umnovo ordenamento jurídico. A ligação quese intenta deixar clara é a força incontrastá-vel advinda da soberania e do Poder Cons-tituinte Originário, mas os desdobramentos,conseqüências e efeitos dessa ilação serãooportunamente acentuados.

4. Soberania e o titular do seu exercício

Como já verificado no presente trabalho,a soberania apresentou-se, num primeiromomento, como forma de confrontar o Im-pério e a Igreja, afastando sua ingerência econcretizando o “poder estatal” nas mãosdo rei. Ocorre que, com tal manobra, o insti-tuto passou também a designar aquele quedetinha o poder – soberano –, personifican-do o poder estatal. O verbete passou a apre-sentar verdadeira confusão do seu signifi-cado, o que era muito proveitoso ao rei.

Entretanto, com o surgimento do pensa-mento democrático e com a revolução bur-guesa, a coincidência acima sublinhada co-meçou a ser desfeita, distinguindo-se a “so-berania do Estado” da “soberania no Esta-do”.

“A soberania do Estado diz respeito porconseqüência à questão dos elementos e ca-racterísticas do poder estatal que o distin-guem (...) dos demais poderes e instituiçõessociais. A soberania no Estado formaria aorevés outra categoria de problemas de rele-vante importância, concentrados sumaria-mente na determinação da autoridade su-prema no interior do Estado, na verificação

hierárquica dos órgãos governativos da co-munidade política e sobretudo na justifica-ção da autoridade conferida ao sujeito outitular do poder supremo” (BONAVIDES,1986, p. 135).

Facilmente se constata que o objeto destetrabalho condiz com a análise da soberaniaenquanto “poder estatal”, porém, já que tan-genciado o assunto, prosseguiremos na aná-lise das teorias que tentam desvendar quem éo sujeito de direito de soberania no Estado.

Destacam-se, nessa seara, duas doutri-nas: a que sustenta o poder divino do reicomo legitimador da titularidade e a queassenta no povo a sede da soberania. As te-ses que se amoldam à primeira facção sãoconhecidas como “doutrinas teocráticas”, eas que encontram fundamento na segundasão denominadas “doutrinas democráti-cas”.

Entre as “doutrinas teocráticas”, a maisexagerada é denominada “doutrina da na-tureza divina dos governantes”, que temcomo fundamento alçar os governantes aopatamar de deuses vivos, e nesta condiçãosão legitimados ao exercício do poder 6.

Outra vertente é a “doutrina da investi-dura divina”; menos extremada, não consi-dera seus governantes divindades, ao con-trário, são pessoas intituladas como dele-gados diretos e imediatos de Deus, que lhesinveste na condição de governantes com ori-gem divina.

“Essa variante do pensamento teocráti-co não somente entende o poder como insti-tuído por Deus para conservação da socie-dade, senão que faz da escolha deste oudaquele governante, neste ou naquele país,um ato da vontade divina. Designadas porDeus para o exercício da autoridade, as di-nastias revestem caráter sagrado” (BONA-VIDES, 1986, p. 137).

Como última variável da teoria teocráti-ca de legitimação da titularidade do exercí-cio da soberania tem-se a “doutrina da in-vestidura providencial”, que tem como mar-ca apenas a origem divina do poder, o queimplica dizer que os atos praticados pelo

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governante são humanos, advindos do in-teresse e vontade dos mesmos (segundo essadoutrina, os governantes devem observar deforma escrupulosa o bem comum na utili-zação do poder). Com essa proposição, pas-sou a surgir, de forma incipiente, entendi-mento no sentido da possibilidade de osgovernados escolherem seus governantes,eis que tais não necessitavam de qualquerqualidade divina para o exercício do poder.

Com relação às “doutrinas democráti-cas”, denota-se o desenvolvimento da “dou-trina da soberania popular”, que consagrao povo como detentor de direito da sobera-nia. Mais especificamente, soberania popu-lar seria “tão-somente a soma das distintasfrações de soberania, que pertencem comoatributo a cada indivíduo, o qual, membroda comunidade estatal e detentor dessa par-cela do poder soberano fragmentado, parti-cipa ativamente na escolha dos governan-tes” (BONAVIDES, 1986, p. 140).

A outra teoria que integra a vertente de-mocrática é a “doutrina da soberania naci-onal”, que detém como grande diferencialda anterior o fato de a titularidade da sobe-rania residir na nação e não em cada mem-bro do povo, de forma fracionada. “A dou-trina democrática da soberania que os po-deres da Revolução (francesa) fundaram efizeram prevalecer na Assembléia Consti-tuinte foi a doutrina da soberania nacional.A nação surge nessa concepção como depo-sitária única e exclusiva da autoridade so-berana. Aquela imagem do indivíduo titu-lar de uma fração da soberania, com milhõesde soberanos em cada coletividade, cedelugar à concepção de uma pessoa privilegi-adamente soberana: a Nação. Povo e Naçãoformam uma só entidade, compreendidaorganicamente como ser novo, distinto eabstratamente personificado, dotado devontade própria, superior às vontades indi-viduais que o compõem. A Nação, assimconstituída, apresenta-se nessa doutrinacomo um corpo político vivo, real, atuante,que detém a soberania e a exerce através deseus representantes”.

5. Soberania e PoderConstituinte Originário

Tendo em vista os contornos traçadossobre o instituto da “soberania”, competedizer que a sua materialização incide na atu-ação do Poder Constituinte, em especial ooriginário7. “Poder constituinte equivale àcapacidade de escolher entre um ou outrorumo, nessas circunstâncias. E nele consis-te o conteúdo essencial da soberania (naordem interna), porquanto soberania signi-fica faculdade originária de livre regênciada comunidade política mediante a insti-tuição de um poder e a definição do seu es-tatuto jurídico” (MIRANDA, 2000, p. 77-78).

Logo, já que a soberania toma corpo coma atuação do poder constituinte, vale umarápida análise do instituto com o pertinentetraço das suas principais características.

5.1. Poder Constituinte – conceito e natureza

Do Poder Constituinte pode-se começardizendo, com Luís Roberto Barroso (1996,p. 104), que é revolucionário nas suas raí-zes históricas e político na sua essência. Aprimeira característica decorre da atuaçãode o instituto implicar um total rompimentocom o ordenamento jurídico anterior (ou asregras em que se encontra estabelecido oente estatal – adiante melhor explicitado) ea segunda por perfazer a expressão da von-tade do poder político de uma determinadacomunidade8.

Para o Professor José Afonso da Silva(2000, p. 67), “poder constituinte é o poderque cabe ao povo de dar-se uma constitui-ção. É a mais alta expressão do poder políti-co, porque é aquela energia capaz de organi-zar política e juridicamente a Nação”.

Prossegue o eminente doutrinador res-saltando que Fischbach (apud SILVA, 2000,p. 68) “define o poder constituinte como a“genuína e original expressão da soberaniado povo. É o poder supremo que o povo temde dar-se uma constituição e de reformar avigente”. Aí, ele inclui também o poder dereforma constitucional, que, em geral, é de

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competência do Poder Legislativo ordiná-rio. Segue, assim, a doutrina que concebedois tipos de poder constituinte: o poder cons-tituinte originário, que serve de fundamentoà criação de uma constituição nova, e o po-der constituinte derivado (ou poder de emen-da ou de reforma da constituição), que não épropriamente poder constituinte, mas com-petência para modificar a constituição exis-tente – ou seja, poder constituinte derivadoé simples competência constituinte (...)”.

Trazendo novos contornos ao tema, oProfessor Manoel Gonçalves Ferreira Filho(1994, p. 19) esclarece que “o reconhecimen-to de um poder capaz de estabelecer as re-gras constitucionais, diverso do de estabe-lecer regras segundo a Constituição, é, des-de que se pretenda serem aquelas superio-res a estas, uma exigência lógica. A superio-ridade daquelas, que se impõe aos própriosórgãos do Estado, deriva de terem uma ori-gem distinta, provindo de um poder que éfonte de todos os demais, pois é o que cons-titui o Estado, estabelecendo seus poderes,atribuindo-lhes e limitando-lhes a compe-tência: Poder Constituinte.

Deve-se, portanto, reconhecer a existên-cia de um Poder Constituinte do Estado edos poderes deste (os quais são, por essemotivo, ditos constituídos). Esse Poder Cons-tituinte é que estabelece a organização jurí-dica fundamental, é que estabelece o con-junto de regras jurídicas concernentes à for-ma do Estado, do governo, ao modo de aqui-sição e exercício do governo, ao estabeleci-mento de seus órgãos e aos limites de suaação, bem como as referentes às bases doordenamento econômico e social”.

Os delineamentos fornecidos a respeitodo instituto propiciam a visualização domesmo e sua compreensão, em linhas ge-rais. No entanto, tal não se faz suficientepara a estreita ligação que ora se pretendecom a soberania, o que nos impele a umaobservação mais detida, imediatamentetransmutada em questionamento: o PoderConstituinte (originário!)9 encontra-se abar-cado pela ciência do direito ou, poder polí-

tico que é (?), fica relegado seu estudo à soci-ologia?

Podemos iniciar respondendo ao ques-tionamento amparados em duas correntesdoutrinárias – a dos jusnaturalistas e a dosjuspositivistas – que nos trazem diferentesfundamentos para a solução da controvér-sia. De súbito, ressaltamos que aqueles en-tendem o poder constituinte como sendojurídico, enquanto estes o compreendemcomo metajurídico, social. Ressaltamos, en-tretanto, que, não obstante a divergência dasteorias quanto à natureza do poder consti-tuinte, constata-se que há uniformidade deentendimento quanto ao fato de ser este ofenômeno que provê a Constituição e, conse-qüentemente, é desta Carta que se abstrai aorganização estatal e o ordenamento jurídi-co. Analisemos as teorias.

A escola jusnaturalista carrega comomérito a façanha de alçar à categoria de ci-ência autônoma, desvinculada da teologiae do direito canônico, o Direito e o Estado.Com o Estado Moderno e o início do consti-tucionalismo (século XVIII, mais especifica-mente com a Constituição dos Estados Uni-dos da América do Norte de 1787 e a Cons-tituição Francesa de 179110), passou-se aoquestionamento acerca da existência de umpoder anterior que deflagrasse a constitui-ção de regras que subsumiriam à condiçãoorganizacional jurídica do Estado.

Como precursor da idéia de que o poderque constitui, que cria a Carta Política temnatureza diferente da mesma, com ela nãose confundindo, o padre, político e juristaEmmanuel Joseph Sieyès (1997), em sua obra“Que é o Terceiro Estado?”, forjou a deno-minação Poder Constituinte.

Afora o caráter político inerente à obrado abade, pré-revolucionário (início de1789) e com fulcro na tentativa de arquitetaruma organização estatal para a França, adescoberta do poder constituinte despertou ointeresse para o fenômeno, importante paraa elaboração da Constituição, mas que aprecede e não a integra. A descoberta culmi-nou em uma teoria que tentou desvendar e

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esquematizar o instituto, denominada “Te-oria Racional Ideal”.

A referida teoria vem embasada na liber-dade individual do Homem, anterior aoadvento do próprio Estado, logo, prevale-cendo sobre o mesmo, bem como na liberda-de de auto-organização, cujo direito seriainerente à nação e não ao povo11. Então oque se tem é o Homem livre e que deve se or-ganizar segundo a vontade da nação (depo-sitária e detentora da liberdade dos Homens).

Não se pode olvidar, deparando-se comas considerações iniciais sobre a Teoria deSieyès, que as mesmas são pautadas sob for-te influência da teoria jusnaturalista (naverdade “contratualista-jusnaturalista”12).De qualquer forma, aquelas premissas de-veriam ser utilizadas como fundamento paraa elaboração de uma Constituição escrita.

A obra de Sieyès (1997) atinge seu ápiceexatamente neste ponto, quando o cura per-cebe que anterior à Constituição existia umpoder que a concebia. Mais importante, de-notou o sábio jurista que se tratava de pode-res distintos e inconfundíveis, ou seja, aConstituição era o resultado provindo de umpoder especial, qual seja, o Poder Constituinte.

Arremata o mestre ressaltando que o po-der especial está fundado na vontade da na-ção, detentora da liberdade da comunida-de. Evidentemente que, não possuindo mei-os instrumentais para a manifestação dacomunidade, Sieyès elaborou um sistema derepresentação, segundo o qual a nação seexpressaria por meio de mandatários porela designados.

Portanto, ante os aspectos enunciados,tem-se como elementos identificadores da“Teoria Racional Ideal”: “a) princípio daliberdade, sob o qual se estrutura a nação;b) a nação, como ente de direito natural; c) osistema de representação-imputação, comosistema procedimental para o exercício doPoder Constituinte; d) a criação do PoderConstituinte como poder estabelecedor daConstituição” (SANTOS, 1980, p. 23).

Novamente ressaltamos que, segundo adoutrina de Sieyès (1997), a nação sobera-

na, fundada no direito natural, tudo pode,exceto contrariar os princípios do jusnatu-ralismo. E, sendo ela a legítima detentora dopoder de criar a Constituição, logo, do Po-der Constituinte, conclui-se que, para a “Te-oria Racional Ideal”, esse instituto não éestranho ao mundo jurídico, pois que se con-cretiza em poder do Direito Natural.

Lançamos o entendimento de Sieyès(1997) sobre a natureza social ou políticado Poder Constituinte, eis que somente comos estudos do abade se vislumbrou a dife-rença entre a força que cria uma Constitui-ção e as regras inerentes à própria.

No entanto, como passaremos a notar, aconclusão do mestre francês acerca da na-tureza jurídica do instituto não destoa doresultado encontrado pelos estudiosos vin-culados à corrente jusnaturalista, mesmoporque Sieyès (1997) também nela ancoraseus estudos para exprimir sua tese. De qual-quer maneira, entendemos importante a re-ferência à descoberta do cura, pois que gê-nese do fenômeno ora focado. Passo adian-te, averigüemos as considerações dos jus-naturalistas sobre o Poder Constituinte.

Entre as inúmeras Escolas do DireitoNatural, daremos maior destaque, pela pro-eminência, às que expressaram os pensa-mentos de Santo Tomás de Aquino (apudSANTOS, 1980) e Hugo Grócio (apud SAN-TOS, 1980), sem embargo das importantescontribuições conferidas por EmmanuelKant (apud SANTOS, 1980), merecedoras danossa atenção.

Como principal destaque da doutrina deSanto Tomás (apud SANTOS, 1980), tem-sea razão e a inclinação do Homem em se so-cializar.

Quanto à razão, explica, parte dela é re-velada pela Igreja e a outra parcela é desco-berta pelo próprio Homem por meio do usoda razão. Os dois elementos compõem umtodo – Lei Eterna provinda da razão de Deus– cuja parcela que cabe ao Homem desven-dar perfaz a Lei Natural.

A maior contribuição dessa vertente teó-rica do jusnaturalismo condiz com a instin-

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tiva necessidade de associação dos Homens,decorrente de uma força inata provinda deDeus, que legitima a criação dos Estados.

Tal poder (de criação dos Estados) resi-de no povo (por outorga de Deus), conse-qüentemente operando-se uma distinçãoentre o poder espiritual e o poder temporal.

Igual consideração merece a Escola doDireito Natural e das Gentes, surgida em1625 com a publicação do primeiro livro deDireito Natural, De Jure Belli ac Pacis, da lavrade Hugo Grócio (Cf. SANTOS, 1980, p. 28).

A obra de Grócio (apud SANTOS) temcomo importante marco o estudo científicodo direito de forma autônoma, desvincula-da da Teologia, bem como conferiu funda-mento terreno ao Estado, apartando-o dealicerces doutrinários religiosos. No desen-volvimento das suas teses, o jurista conce-beu o princípio da Justiça como fundamentoeterno do direito, alertando que a regra éobservada como cerne das ciências jurídi-cas independentemente da vontade divina.

De forma concatenada, Grócio (apudSANTOS, 1980, p. 29), “repetindo Aristóte-les, proclamou a natureza social do homeme a inclinação inata deste à vida em socie-dade. Sua concepção de uma sociedade jus-ta conduziu seu pensamento a edificá-la demolde a assegurar os direitos fundamentaisdo homem. No seu dizer, não basta ao ho-mem viver, pois carece ele de viver bem, epara isso a sociedade deve se firmar sob aégide do Direito e se estabelecer sob o impériode uma ordem justa. Só a ordem justa é legíti-ma, por sua adequação à racionalidade”.

Alinhavadas as principais correntes jus-naturalistas, faz-se de bom alvitre a obser-vância do pensamento de Emmanuel Kant(apud SANTOS, 1980), a quem se atribui asistematização do Direito Natural. A suadoutrina contratualista-jusnaturalista temcomo base as excelências e virtudes do Ho-mem em seu estado de natureza, é dizer, serlivre e de boa índole, dotado de inclinaçãosocial, concluindo o filósofo que a própriarazão impinge aos Homens a associaçãopara o alcance de seus objetivos.

A teoria elaborada por Kant (apud SAN-TOS, 1980, p. 30) encontra-se fundamenta-da em dois pressupostos: “pelo primeiro (ra-zão pura) estabelece que o homem reconhe-ce ser a causa necessária e livre de suasações; pelo segundo (imperativo categórico)estabelece que o homem deve obediência àsnormas prefixadas pela razão prática”.

Portanto, sobressaem na teoria de Kant(apud SANTOS, 1980) o Direito e o Estadocomo garantia da indispensável liberdade doHomem, princípio esse em que aqueles ele-mentos obrigatoriamente encontram-se as-sentados.

O que se pode abstrair, ante os elemen-tos essenciais pinçados dos fundamentosencontrados nas principais Escolas do Di-reito Natural, de forma a conferir alicercecomum à corrente científica, é a idéia de liber-dade, a inclinação social do Homem e o poderde auto-organização política da comunidade.

Como característica marcante da correntejusnaturalista, tem-se a distinção, evidente,entre o Direito Natural e o Positivo, sendoque o direito posto somente é detentor devalidade quando devidamente fundamen-tado nos princípios que dão suporte e sus-tentação ao direito natural.

Voltando ao laço que une os jusnatura-listas e o Poder Constituinte, ressaltamos queaquela doutrina, desde sempre, confere aopovo o poder de se auto-organizar. Ocorreque, com o movimento constitucionalista doséculo XVIII, tal capacidade inseriu-se nopoder de criar uma Constituição, daí deno-tando-se a importância do Poder Constitu-inte para a ciência do Direito Natural.

Para o jusnaturalismo, o Poder Consti-tuinte é caracterizado por ser um poder ini-cial e incondicionado, porém limitado. Oslimites balizadores desse poder são os pró-prios princípios que fundamentam o direitonatural, em especial o princípio da liberdade.

Dessa forma, a conclusão a que se chegaquanto à natureza do Poder Constituinte,para a corrente jusnaturalista, é de verda-deiro poder jurídico, advindo de uma ordemjurídica natural que o contempla.

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No que tange à corrente juspositivista,que tem em Hans Kelsen (1998) e sua obra“Teoria Pura do Direito” a retórica mais pro-eminente, faz-se necessário uma realocaçãode habitat doutrinário para o devido enqua-dramento do Poder Constituinte, bem comosua natureza, segundo a corrente que ora seempresta atenção.

Contrariamente ao que se passa com adoutrina jusnaturalista, para os juspositi-vistas não se admite a intromissão filosófi-ca, social ou metajurídica, como elementosintegrantes (ou de sustentação) do direito.O positivismo jurídico circunscreve o direi-to às regras que compõem o direito posto.

Dessa feita, “o positivismo, ao sustentarque o direito é um sistema de normas, expli-cita, por conseqüência, que a positividadeconstitui, em verdade, a forma de manifes-tação e de realização do Direito. Decorre dis-so que, para o positivismo jurídico, tanto aConstituição13 como o poder que a cria nadade jurídico significam” (SANTOS, 1980, p. 34).

Como Hans Kensen (1998) expurgou doconceito de Direito qualquer elemento não-jurídico, a conclusão a que se chega, comrelação ao Poder Constituinte, é no sentidode que, não obstante, poder, que expressa agênese do Direito e do Estado, não é poder dedireito, é dizer, não tem natureza jurídica.

A norma, para o positivismo kelsenia-no, é válida porque obedece a uma formadeterminada e atende a um procedimentoespecífico, desembocando no chamado di-reito posto, que se insere num sistema gradu-al de normas que alcança sua unidade14 nanorma hipotética fundamental15.

Como essa teoria não admite, como járeferido, a intrusão de elementos não jurídi-cos a compô-la, no ápice do sistema, a vali-dá-la, encontra-se a norma hipotética funda-mental, propiciando, assim, ao autor alemãoexplicar juridicamente a obrigatoriedade daConstituição sem reconhecer a existência, nasua origem, de um fenômeno não jurídico.

Explica, com propriedade, o ProfessorAricê Moacyr Amaral Santos (1980, p. 36)que, “como para o positivismo jurídico o Di-

reito se resume no Direito posto pelo Esta-do, a Constituição, como estabelecedora doEstado e da ordem jurídica, não passa deum fato.

À vista dessa colocação positivista, nãocogita igualmente o positivismo do PoderConstituinte, por entender dita corrente queesse poder constitui mera força social, umaforça metajurídica, a ser estudada pela So-ciologia e por outras ciências, mas, nunca,pela Ciência do Direito”.

Como resultado das elucubrações acimaformuladas, temos que, para a corrente en-cabeçada pelos jusnaturalistas, o PoderConstituinte transverte-se em conteúdo ju-rídico; para os positivistas, o mesmo podernão passa de fato social, desprovido de qual-quer fundamento de Direito. Finalmente, tra-zemos à colação o entendimento do Profes-sor Aricê Amaral Santos (1980, p. 84), que,em excelente trabalho acerca da naturezado Poder Constituinte e não se submetendoàs idéias preconcebidas provindas das inú-meras correntes doutrinárias que analisou,assim concluiu: “Essa idéia de Direito, quenão se pode qualificar como de um Direitosui generis, caracteriza-se, por seus atribu-tos, como força jurígena ou pára-jurídica.Conclui-se, assim, que o Poder Constituinteé força jurígena ou pára-jurídica (sociológi-ca-política quanto à origem e natureza, jurí-dica quanto aos seus efeitos)”.

A discussão que ora se empreendeu nopresente tópico não foi em vão, ela serviráde substrato para as discussões subseqüen-tes e de fundamento para a análise de deter-minados atributos do Poder Constituinte, emespecial aqueles intitulados desprovidos delimites. Sendo assim, passemos à análise dosatributos do Poder Constituinte.

5.2. Atributos do Poder Constituinte

São citados como atributos do PoderConstituinte a anterioridade, a ausência de vin-culação, a inalienabilidade, a permanência e asuperioridade. O Professor José HorácioMeirelles Teixeira (1991, p. 212-215) confe-

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re o seguinte conteúdo aos atributos menci-onados:

“a) Anterioridade. O Poder Constituinte éum poder originário, anterior a qualqueroutro poder, expressão primeira da sobera-nia nacional. Daí seu caráter transcendental,metaconstitucional. É nesse sentido queHauriou (...) o denomina ‘fundador’ e Bur-deau, ‘primário’. Ele constitui, realmente, aprimeira e suprema oportunidade de manifesta-ção da soberania, e Sieyès já o comparava aoFiat da Criação. Criando as normas jurídi-cas fundamentais (produção originária dasnormas jurídicas), é o Poder Constituinte,realmente, anterior a qualquer outro poder.

b) Ausência de vinculação. A atividade, asdiretrizes, as decisões fundamentais do Po-der Constituinte não podem, por definiçãoe essência, achar-se juridicamente vincula-das, pois, segundo vimos, na situação consti-tuinte não existe normatividade nem ordenamen-to jurídico definitivos, nem poderes constituí-dos. Não podem existir, nem são imagináveis,portanto, vinculações prévias, preceitos jurídi-cos a observar, limitações ou restrições positivasde nenhum gênero ao Poder Constituinte, ne-nhuma ligação, em sua atividade criadora, anormas ou procedimentos jurídicos prévios. É aisso que Friedrich denomina ‘potencialida-des’ revolucionárias do Poder Constituinte,pois este acha-se, realmente, em condiçõesde modificar totalmente a estrutura políticae o ordenamento jurídico vigentes.

c) Superioridade. Decorre da anterioridadee da ausência de vinculação. O Poder Consti-tuinte estabelece os demais poderes constitu-ídos, traça-lhes as normas fundamentais deação, expressas na Constituição. É-lhes, por-tanto, não só anterior como também superior.

d) Inalienabilidade. A Nação pode dele-gar o exercício do Poder Constituinte a re-presentantes, como geralmente ocorre. A ta-refa constituinte é realizada, então, por As-sembléias Constituintes, compostas de re-presentantes da Nação, eleitos especialmen-te para elaborarem a Constituição.

e) Permanência. É uma conseqüência dainalienabilidade. Significa que a modificação

da Constituição, isto é, da organização po-lítico-jurídica fundamental da Nação, é sem-pre possível, porque, sendo inalienável, oPoder Constituinte permanece no povo, per-durando através e acima da ordem jurídicaconstituída. Daí dizer Schmitt que ‘o povo, aNação, seguem sendo a base de toda a evoluçãopolítica, a fonte de toda a força, que se manifestaem formas sempre novas, que tira sempre de simesma novas formas e organizações, não subor-dinando nunca, entretanto, sua existência polí-tica a uma formulação definitiva’. Isto signifi-ca, em última análise, que não existe consti-tuição, nem formas de Estado, ou de gover-no, irrevogáveis ou irreformáveis, em face doPoder Constituinte” .

Denota-se das explicações lançadasacerca de cada um dos atributos do PoderConstituinte que a característica condizen-te com a ausência de vinculação é a que maisnos interessa, isso porque, como posta, pro-picia o entendimento de que o fenômeno édesprovido de limites. Ora, em não haven-do vinculação, preceitos jurídicos ou limites aobservar, a reta conclusão a que se desembo-ca concerne à qualidade de ausência de li-mites para o poder criador/fundador daConstituição.

Entretanto, talvez com o intuito de evitaro resultado acima antecipado, o próprio Pro-fessor Meirelles Teixeira (1991, p. 212-215)alerta que a ausência de vinculação “não sig-nifica (...), e nem poderia significar, que oPoder Constituinte seja um poder arbitrá-rio, absoluto, que não conheça quaisquer li-mitações. Ao contrário, tanto quanto a sobera-nia nacional, da qual é apenas expressão máxi-ma e primeira, está o Poder Constituinte limita-do pelos grandes princípios do Bem Comum, doDireito Natural, da Moral, da Razão”.

Nova luz e perspectiva é posta ao tema eo foco agora insinua a limitação do poderconstituinte (por conseqüência, da sobera-nia) por meio de amarras advindas dos prin-cípios norteadores do direito natural. Sen-do assim, o que se tem é a caracterização dopoder constituinte/soberania como poderlimitado, desde que o intérprete adote como

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premissa os fundamentos do direito natu-ral, não ocorrendo a mesma conclusão caso omesmo hermeneuta tenha como ponto departida, exempli gratia, a doutrina positivista.

Com fundamento no positivismo, o quese tem é o poder constituinte como não jurí-dico, perfazendo uma força social; conse-qüentemente, as limitações (ou não) acercada força do fenômeno serão estipuladas pelaprópria comunidade (ou melhor, seus repre-sentantes), o que se traduz, indubitavelmen-te, numa força ilimitada.

A caracterização do poder constituintecomo poder ilimitado ou limitado, então,depende da doutrina que alicerça o precei-to? Se é assim, qualquer dos resultados écorreto, apenas dependendo a evolução doentendimento da vocação do intérprete (jus-naturalista ou juspositivista)?

É o que iniciaremos a perquirir na se-gunda parte do nosso estudo, a ser publica-da na próxima edição.

Notas

1 “Si el Estado autárquico es la forma suprema de losfenómenos de la vida política, entonces es posible para elEstado formado de esta suerte mantenerse extraño a losdemás; pero no es posible concebir entre él y las otrascomunidades estatistas unas relaciones de cambio, per-manentes y amistosas, encaminadas al desenvolvimientode la cultura. Todo cambio descansa por necesidad psico-lógica en las necesidades económicas y espirituales, medi-ante las cuales se completan los hombres unos a otros,necesidades que, según consideraba la antigua doctrina,hallaban su satisfacción absoluta dentro del própio Esta-do.” (JELLINEK, 1970, p. 329-330).

2 O mesmo autor salienta, no que tange à ori-gem do termo, ser o mesmo proveniente do latim,“segundo alguns do latim medieval, de super omniaou de superanus ou supremitas (caráter dos domíni-os que não dependem senão de Deus). ‘Provavel-mente, derivou-se o termo soberania de superanus,vocábulo do baixo latim equivalente a superior. Devalor comparativo, de início, passou depois ao desuperlativo absoluto, ao significado de supremitas’(Cf. SOVRANITÁ, 1972). Embora haja uma certadivergência etimológica quanto à palavra sobera-nia, entende-se que venha de superanus, que, porsua vez, teria originado com a alteração do prefixo,ao termo suserano (nome dado ao senhor de um

domínio cujo feudo ou senhorio dependia somentedo rei, tendo, contudo, outros feudos que lhe rendi-am vassalagem ou lhe pagavam tributo). Entretan-to, é certo que a referida palavra nos chegou atra-vés da formação francesa souveraineté, do direitogaulês (MEYER; REHM, [19 - -?] apud CARRÉ DEMALBERG, 1948). Gerber (apud CARRÉ DE MAL-BERG, 1948) definiu a soberania como um poderde dominação – Herrschergewalt – de império”.

3 Vide capítulo I deste trabalho.4 Ainda segundo Víctor Flores Olea (1975, p.

101-102): “(...) la comunidad, en cuanto se unificapolíticamente, es decir, en cuanto llega a constituiruna estructura social organizada para la realizaci-ón de ciertos fines y para la ejecución de determina-das funciores, constituye el Estado. Esa estructurasocial, cuyos fines y funciones pueden tomar reali-dad, únicamente, porque forma, a través de órga-nos, una unidad de decisión y acción, tiene la cuali-dad de ser soberana, es decir, suprema y universal enel radio de actividad dentro del cual la estructuraactúa. Esos peculiares fines y funciones del Estado,también hemos dicho, son solo posibles porque elEstado es soberano, esto es, porque sobre la estruc-tura estatal no hay ninguna instancia de voluntadque determine, por una parte, el ser y forma de laestructura, y, por outro, el contenido de cada deci-sión que, para el logro de sus metas, ha de tomar,ante cada nueva situación a la que se enfrenta, launidad de decisión y acción que forma la mismaestructura. (...) La estructura estatal es soberanaporque se da, a sí misma, forma concreta de existen-cia política y porque, al decidir, no sólo sobre elmodo y forma de su ser, sino también, sobre cualqui-er exigencia que plantee el cumplimiento de susfines y funciones, no está sujeta a ninguma instan-cia de voluntad que se imponga. El Estado es sobe-rano porque es una organización supraordenada enrelación con las demás oranizaciones y unidades devoluntad existentes dentro de los limites de su com-petencia”.

5 A Constituição Francesa de 1791, no seu arti-go 1o, título terceiro, já conferia à soberania as qua-lidades assinaladas – nota do autor.

6 “A história anda cheia de exemplos de reisque fielmente professavam essa doutrina e se repu-tavam divindades, como os faraós do Egito, osimperadores romanos, os príncipes orientais e atémesmo o Imperador do Japão até o fim da Segun-da Guerra Mundial” (BONAVIDES, 1986, p. 137).

7 “(...) as constituições foram sempre o reflexoda ocorrência do poder soberano dos Estados naci-onais dotados de um território – elemento objetivo,e de um povo – elemento subjetivo, sobre e para osquais se constituíam e organizavam em um docu-mento legislativo supremo as formas e os conteú-dos da vida política e social da comunidade”(MORAIS, 2002, p. 530-531).

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8 Observe-se que nos referimos à comunidade enão ao Estado, isso porque o poder político é ante-rior ao próprio Estado, é a força que funda o Esta-do, conferindo-lhe uma Constituição, organizan-do-o, impondo-lhe limites e dispondo sobre fins aserem alcançados – nota do autor.

9 Sempre que nos referirmos ao Poder Constitu-inte, deste momento em diante, assim o faremoscom foco no poder constituinte originário, pela impli-cação que estamos a desenvolver com relação àsoberania. Quando a referência for ao poder consti-tuinte derivado, enunciaremos expressamente – notado autor.

10 Segundo Carlos Sanchez Viamante (1957, p.240), “A Sieyès se le debe la verdadera y definitivaconsagración doctrinaria del Estado de derecho, con-cebido com alguma claridad por Francisco Suárezen el siglo XVII, y realizado prácticamente por losEstados Unidos, a partir de la Declaración de losderechos del hombre, del Estado de Virginia, em1776”.

11 No que pertine a essa distinção conceitual(nação – povo), vale a transcrição do entendimentoabalizado do Professor Manoel Gonçalves FerreiraFilho (1974, p. 27 apud SANTOS, 1980, p. 25):“Povo para ele (Sieyès) é o conjunto de indivíduos,é um coletivo, uma reunião de indivíduos sujeitosa um poder. Ao passo que a nação é mais do queisso, porque a nação é a encarnação de uma comu-nidade em sua permanência, nos seus interesses,interesses que eventualmente não se confundem nemse reduzem aos interesses dos indivíduos que acompõem em determinado momento”.

12 A doutrina contratualista a que se faz referên-cia diz com a doutrina de Rousseau, utilizada peloabade juntamente com os preceitos jusnaturalis-tas. No entanto, novamente nos valendo dos traçosdo Professor Argentino Carlos Sanchez Viamante(1957, p. 242), “aquí está lo fundamental de ladoctrina: lo que no se le ocurrió a Rousseau, por nohaber admitido tampoco la existencia de um poderlegislativo ordinario, que actuase como cuerpo, pordelegación y representación del pueblo, y por nohaber diferenciado la Constitución de la ley ordina-ria. Es verdad que Rousseau supone, sin discrimi-nación alguna, que toda ley es expresión de la von-tad general soberana y, por consiguiente, sólo tienevalor cuando es el pueblo reunido quien la dicta.Pero también es verdad que él reconocía las dificul-tades del sistema democrático, y hasta llegó a decirque era impossible su aplicación (...). No sería justopasar por alto la circunstancia de haber escrito Rous-seau su obra cuando aun no existia ninguna verda-dera Constitución, lo que daba a su doctrina el ca-ráter de una construcción utópica o, por lo menos,puramente teórica”.

13 Neste ponto ousamos discordar do ilustreprofessor, eis que entendemos ser a Constituição

expressão do direito positivo. Segundo Hans Kel-sen (1998, p. 247): “Se começarmos levando emconta apenas a ordem jurídica estadual, a Consti-tuição representa o escalão de Direito positivo maiselevado. A Constituição é aqui entendida num sen-tido material, quer dizer: com esta palavra signifi-ca-se a norma positiva ou as normas positivas atra-vés das quais é regulada a produção das normasjurídicas gerais. Esta Constituição pode ser produ-zida por via consuetudinária ou através de um atode um ou vários indivíduos a tal fim dirigido, istoé, através de um ato legislativo. Como, neste se-gundo caso, ela é sempre condensada num docu-mento, fala-se de uma Constituição ‘escrita’, paraa distinguir de uma Constituição não escrita, cria-da por via consuetudinária. A Constituição mate-rial pode consistir, em parte, de normas escritas,noutra parte, de normas não escritas, de Direitocriado consuetudinariamente. As normas não es-critas da Constituição, criadas consuetudinaria-mente, podem ser codificadas; e, então, quandoesta codificação é realizada por um órgão legislati-vo, e, portanto, tem caráter vinculante, elas trans-formam-se em Constituição escrita”.

14 “Como a norma fundamental é o fundamen-to de validade de todas as normas pertencentes auma e mesma ordem jurídica, ela constitui a uni-dade da pluralidade destas normas” (KELSEN,1998, p. 228).

15 “A função desta norma fundamental é: fun-damentar a validade objetiva de uma ordem jurí-dica positiva, isto é, das normas, postas através deatos de vontade humanos, de uma ordem coercivaglobalmente eficaz, quer dizer: interpretar o senti-do subjetivo destes atos como seu sentido objetivo.A fundamentação da validade de uma norma po-sitiva (isto é, estabelecida através de um ato devontade) que prescreve uma determinada condutarealiza-se através de um processo silogístico. Nestesilogismo a premissa maior é uma norma conside-rada como objetivamente válida (melhor, a afirma-ção de uma tal norma), por força da qual devemosobedecer aos comandos de uma determinada pes-soa, quer dizer, nos atos de comando; a premissamenor é a afirmação do fato de que essa pessoaordenou que nos devemos conduzir de determina-da maneira; e a conclusão, a afirmação da validadeda norma: que nos devemos conduzir de determi-nada maneira. A norma cuja validade é afirmadana premissa maior legitima, assim, o sentido subje-tivo do ato de comando, cuja existência é afirmadana premissa menor, como seu sentido objetivo. Porexemplo: devemos obedecer às ordens de Deus.Deus ordenou que obedeçamos às ordens dos nos-sos pais. Logo, devemos obedecer às ordens de nos-sos pais” (KELSEN, 1998, p. 226).

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Bernardo Leôncio Moura Coelho

1. IntroduçãoEste estudo, ancorado nos princípios

constitucionais da moralidade e da legali-dade, na normatização da aprendizagemprofissional e interpretando a doutrina daproteção integral, pretende abordar a ques-tão da obrigatoriedade ou não de os entespúblicos contratarem adolescentes vincula-dos a um programa de aprendizagem paracumprimento da cota estabelecida no artigo429 da Consolidação das Leis do Trabalho.

O enfrentamento de tal questão, que serevela bastante delicada, decorre de nossaatuação profissional como Procurador doTrabalho e Coordenador do Núcleo de Com-bate ao Trabalho Infantil e Regularizaçãodo Trabalho do Adolescente da Procurado-ria Regional do Trabalho da 15a Região. Não

A contratação de aprendizes pelos entespúblicosUma aplicação dos princípios constitucionais delegalidade e moralidade

Bernardo Leôncio Moura Coelho é Procu-rador do Trabalho – MPT/PRT 15a Região, Es-pecialista em Interesses Difusos e Coletivos pelaEscola Superior do Ministério Público, Mestreem Direito Constitucional pela Faculdade deDireito da UFMG, Docente da Escola Superiordo Ministério Público da União.

“A garantia dos direitos do homem e docidadão necessita de uma força pública; esta

força é, pois, instituída para fruição por todos,e não para utilidade particular daqueles a

quem é confiada” (artigo 12 da Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão – 1789).

Sumário1. Introdução. 2. A aprendizagem profissi-

onal. 3. A admissão de aprendizes pelos entespúblicos. 4. A proteção destinada às crianças eaos adolescentes. 5. A interpretação constituci-onal. 6. A decorrente improbidade administra-tiva. 7. Conclusões.

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encontramos trabalhos doutrinários queanalisem essa questão, nem mesmo decisõesjudiciais em que o tema tenha sido aborda-do, o que reforçou o nosso interesse pelaquestão.

O tema da proteção à criança, durantesua trajetória histórica, apresentou mudan-ças que determinaram novos rumos em suaorientação e interpretação. Até o advento doEstatuto da Criança e do Adolescente – ECA,as crianças e os adolescentes eram conside-rados objetos de direito, passivos e sem con-sideração perante o Direito, que os orienta-va de acordo com os interesses e estipula-ções apenas dos adultos. O próprio Códigode Menores, de 1979, consentâneo com essaorientação, adotava a doutrina da situaçãoirregular, na qual as crianças e adolescen-tes são considerados sujeitos de direitos“quando se encontrem em estado de patolo-gia social” (art. 2o do Código de Menores de1979).

A partir da Constituição Federal de 1988e do ECA, quando houve a adoção da dou-trina da proteção integral, as crianças e ado-lescentes alcançaram o status pleno de su-jeitos de direitos, em qualquer situação naqual se encontrem, devendo sempre ser con-siderado o papel por eles desempenhado,sua condição de pessoas em desenvolvi-mento e os direitos que lhes foram assegu-rados constitucionalmente.

O comando legal que determina o cum-primento de cota de contratação de apren-dizes, contido no artigo 429 da Consolida-ção das Leis do Trabalho, assim se enuncia:

“Art. 429. Os estabelecimentos dequalquer natureza são obrigados aempregar e matricular nos cursos dosServiços Nacionais de Aprendizagemnúmero de aprendizes equivalente acinco por cento, no mínimo, e quinzepor cento, no máximo, dos trabalha-dores existentes em cada estabeleci-mento, cujas funções demandem for-mação profissional.”

Iniciaremos nossa abordagem com umaanálise histórica da evolução da aprendi-

zagem profissional, enfocando, brevemen-te, aspectos mais relevantes da nova legis-lação, que foi remodelada com a edição daLei no 10.097/2000.

A partir desse conhecimento prévio, che-garemos ao cerne da questão que se coloca:os entes públicos podem contratar aprendi-zes?

Nossa análise se foca na obrigação decontratação de aprendizes, decorrente denorma emanada do Direito do Trabalho, cominterfaces no Direito Comercial, com a defi-nição de estabelecimento e empresa dentrodo novo Código Civil, e com o Direito Admi-nistrativo, dentro da organização legal dosservidores públicos, sempre capitaneadospelos princípios constitucionais que devemsempre regrar essa interpretação.

Nossa principal proposição será elabo-rar as diretrizes norteadoras da atuação dosentes públicos quanto à aprendizagem, uti-lizando-se dos conceitos acima para classi-ficar os entes públicos de acordo com a suadestinação legal e constitucional, sendo esseo objetivo do tópico que se segue.

Ao largo desta análise, pinçamos algu-mas noções acerca da aplicação da Lei deImprobidade Administrativa (Lei no 8.429/1992) em face da conduta de contrataçãoadotada pelo dirigente público.

Ao final de nosso estudo, buscaremos de-monstrar a impossibilidade de os entes pú-blicos, vinculados à administração direta,cumprirem a cota de contratação de apren-dizes, conforme determinação constante doartigo 429 da Consolidação das Leis do Tra-balho.

2. A aprendizagem profissional

A aprendizagem profissional foi inicia-da no Brasil com a criação dos primeirosintegrantes do Sistema Nacional de Apren-dizagem, mais conhecido como Sistema “S”.

Com efeito, o Serviço Nacional de Apren-dizagem Industrial (SENAI) foi criado pormeio do Decreto-lei no 4.048, de 22.1.1942,competindo a ele organizar e administrar,

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em todo o país, escolas de aprendizagempara industriários (artigo 2o) e também, apóssua organização como escolas de aprendi-zagem, ministrar ensino de aperfeiçoamen-to e especialização para trabalhadores in-dustriários não sujeitos à aprendizagem (ar-tigo 2o, parágrafo único).

Seguiu-se o Decreto-lei no 4.481, de16.7.1942, estipulando uma quota de apren-dizes correspondente a 5% (cinco por cento),no mínimo, dos operários existentes em cadaestabelecimento e cujos ofícios demandassemformação profissional (artigo 1o, letra “a”).

Mediante o Decreto-lei no 8.621, de10.1.1946, foi criado o Serviço Nacional deAprendizagem Comercial (SENAC), comobjetivo de organizar e administrar, no ter-ritório nacional, as escolas de aprendiza-gem comercial (artigo 1o), determinando,ainda, a manutenção de cursos de continu-ação ou práticos e de especialização paraos empregados adultos do comércio nãosujeitos à aprendizagem (artigo 1o, parágra-fo único).

Pelo Decreto-lei no 8.622, também de10.1.1946, determinou-se quota de admis-são de aprendizes para os estabelecimentoscomerciais com mais de 9 (nove) emprega-dos, com limite máximo de 10% (dez porcento) do total de empregados de todas ascategorias em serviço no estabelecimento (ar-tigo 1o).

Posteriormente, foram criados o ServiçoNacional de Aprendizagem Rural (SENAR)(Lei no 8.315, de 23.12.1991), com o objetivode organizar, administrar e executar o ensi-no da formação profissional rural (artigo 1o);o Serviço Nacional de Aprendizagem doTransporte (SENAT) (Lei no 8.706, de14.9.1993), como entidade de direitoprivado, tendo como objetivo gerenciar,desenvolver, executar e apoiar programasde aprendizagem (artigo 3o); e o Serviço Na-cional de Aprendizagem do Cooperativis-mo (SESCOOP) (por meio da Medida Provi-sória no 1.715, de 3.9.1998), com a finalidadede incrementar a aprendizagem nos diversossetores da atividade econômica.

Inicialmente o SENAR havia sido cria-do pelo Decreto no 77.354, de 31.3.76, no âm-bito do Ministério do Trabalho, e tinha porobjetivo organizar e administrar os progra-mas de formação profissional rural, masesse decreto foi revogado, sendo criado no-vamente com novas disposições.

Importante ressaltar que, apesar da de-nominação dada aos serviços nacionais, ou-tras atividades econômicas encontravam-seabrangidas pela sua atuação, como, porexemplo, os setores de transportes, de co-municações e de pesca, que foram incluídosem sua obrigação de fornecer aprendizagempor meio do SENAI nos termos do Decreto-lei no 4.936, de 7.11.1942.

Mediante a Portaria no 127, de 18.12.1956,foi criada a Aprendizagem Metódica no Pró-prio Emprego (AMPE), consistente na “for-mação profissional metódica do ofício noemprego onde trabalha o menor aprendiz,correspondendo a um processo educacio-nal, com o desdobramento do ofício, ou daocupação, em operações ordenadas de con-formidade com um programa, cuja execu-ção se faça sob a direção de um responsá-vel, em ambiente adequado à aprendiza-gem” (artigo 1o), mas sob a orientação doSENAI e SENAC, que ficaram encarregadosde elaborar os programas de acordo com asempresas (artigo 2o, parágrafo único).

Como a aprendizagem poderia ser mi-nistrada apenas pelo Sistema “S”, ocorriade não haver vagas ou cursos para atendertoda a demanda existente. Nestas hipóte-ses, não existência de cursos ou falta de va-gas, a empresa recebia um certificado dis-pensando-a do cumprimento da admissãode aprendizes em seu quadro de funcioná-rios.

Tínhamos então o seguinte quadro: aaprendizagem era fornecida exclusivamen-te pelo Sistema Nacional de Aprendizagem(SNA) e, não havendo vagas ou cursos, aempresa ficava dispensada do cumprimen-to da quota para aprendizes, caso não op-tasse pela aplicação da aprendizagem me-tódica no próprio emprego.

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Essa situação perdurou até a edição daLei no 10.097, sancionada em 19.12.2000,que teve o condão de trazer, para o âmbitoda Consolidação das Leis do Trabalho, odisciplinamento da aprendizagem, que erafeito apenas por decretos e portarias espar-sos.

Verifica-se que a legislação, ao mesmotempo em que disciplinou o trabalho permi-tido para os adolescentes, vinculou o traba-lho à educação, que deve ser destinada prio-ritariamente às crianças e adolescentes.

Pela Lei no 10.097, foram introduzidasmodificações quanto ao instituto da apren-dizagem, podendo-se apontar algumas de-las:

1) uniformização das quotas de apren-dizagem: agora temos aplicação uniformede cota variável de 5%, no mínimo, e 15%,no máximo, dos trabalhadores existentes emcada estabelecimento, cujas funções deman-dem aprendizagem;

2) garantia do salário mínimo hora: re-vogando expressamente o artigo 80 da Con-solidação das Leis do Trabalho, que previao pagamento de meio salário mínimo du-rante a primeira metade do contrato e 2/3,pelo menos, no restante;

3) abertura na oferta de aprendizagem: anova legislação manteve a primazia do Sis-tema Nacional de Aprendizagem para o for-necimento de aprendizagem, nos termos econdições estabelecidos. A mudança veiocom a possibilidade de as Escolas Técnicasde Educação – ETE e de as entidades semfins lucrativos oferecerem cursos de apren-dizagem;

4) contratação: poderá ser efetivada pelaempresa em que se realiza a aprendizagemou pelas entidades sem fins lucrativos;

5) FGTS: redução da alíquota de 8% (oitopor cento) para 2% (dois por cento).

Temos hoje, portanto, o seguinte quadroda legislação, quanto à questão do trabalhode crianças e adolescentes:

– Até a idade de dezesseis anos, é proibi-do o trabalho de qualquer espécie, permi-tindo-se, nas claras hipóteses descritas na

Lei no 10.097, a contratação do adolescente,desde os quatorze anos, para assinatura decontrato de aprendizagem.

– A partir dos dezesseis anos, permite-se o trabalho do adolescente, com a ressalvade que o mesmo não pode ser desenvolvidoem ambientes perigosos, insalubres ou pe-nosos; permite-se a compensação de jorna-da, sendo o trabalho extraordinário tolera-do apenas quando seja imprescindível aofuncionamento da empresa, entre outras re-gulamentações.

– Completados os dezoito anos, tem-se aplena capacidade para o trabalho, poden-do ser contratado para o exercício em qual-quer função ou horário, com o fim das res-trições legais.

3. A admissão de aprendizespelos entes públicos

Essa questão revela-se de ampla aplica-ção na prática, posto que a maioria das enti-dades que tem por objetivo a proteção aosadolescentes, às vezes meramente interme-diando mão-de-obra, coloca os adolescen-tes em entes públicos sob o rótulo de contra-to de aprendizagem.

O instituto da aprendizagem profissio-nal passou por uma ampla reformulação emnosso país com a edição da Lei no 10.097/2000, que alterou os artigos da Consolida-ção das Leis do Trabalho que orientavam acontratação dos aprendizes.

Para iniciarmos nosso trabalho, neces-sário trazermos a determinação legal que es-tipula o sistema de cotas nas empresas e quese encontra estampado no novo artigo 429:

“Artigo 429. Os estabelecimentosde qualquer natureza são obrigados aempregar e matricular nos cursos dosServiços Nacionais de Aprendizagemnúmero de aprendizes equivalente acinco por cento, no mínimo, e quinzepor cento, no máximo, dos trabalha-dores existentes em cada estabeleci-mento, cujas funções demandem for-mação profissional.

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a) revogada;b) revogada;§ 1o – A O limite fixado neste artigo

não se aplica quando o empregadorfor entidade sem fins lucrativos, quetenha por objetivo a educação profis-sional.

§ 1o As frações de unidade, no cál-culo da percentagem de que trata ocaput, darão lugar à admissão de umaprendiz.”

Ocorre que aos entes públicos, especial-mente aqueles integrantes da Administra-ção Pública direta, não foi imputada cargade contratação de aprendizes, posto queexiste norma constitucional, prevista no ar-tigo 37, que lhes impõe, entre outros regra-mentos, o ingresso apenas por concursopúblico.

“Artigo 37. A administração pú-blica direta e indireta de qualquer dosPoderes da União, dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios obe-decerá aos princípios de legalidade,impessoalidade, moralidade, publici-dade e eficiência e, também, ao seguin-te:

I – os cargos, empregos e funçõespúblicas são acessíveis aos brasilei-ros que preencham os requisitos esta-belecidos em lei, assim como aos es-trangeiros, na forma da lei;

II – a investidura em cargo ou em-prego público depende de aprovaçãoprévia em concurso público de pro-vas ou de provas e títulos, de acordocom a natureza e a complexidade docargo ou emprego, na forma previstaem lei, ressalvadas as nomeações paracargo em comissão declarado em leide livre nomeação e exoneração”.

Determinando a Constituição Federal,em seu artigo 37, que o ingresso no serviçopúblico deverá ser precedido de concursopúblico, constitui a colocação desses ado-lescentes burla aos princípios constitucio-nais, pois “os entes públicos não detêm le-gitimidade para promover dentro de seus

quadros a aprendizagem, posto que a fina-lidade da aprendizagem consiste em pro-mover a inserção do adolescente no merca-do de trabalho e qualificar mão-de-obra”(SANTOS, 2003, p. 20).

Importante ressaltar que, quanto à inser-ção do adolescente no mercado de trabalho,há um desdobramento para constituir-se ofim teleológico da aprendizagem: a possibi-lidade de contratação definitiva do adoles-cente pelo estabelecimento onde ocorre aaprendizagem. Esse fim da aprendizagemnão será alcançado, posto que existe a bar-reira intransponível do concurso públicopara ingresso nos entes públicos.

Como bem salienta Santos (2003, p. 22):“Esse é um dos motivos pelos quais

a obrigação de contratar está relacio-nada com o número de empregadosdo estabelecimento cujas funções de-mandem aprendizagem.

O aproveitamento do adolescenteno próprio estabelecimento em queocorre a aprendizagem constitui umafinalidade da lei. Não se trata de umafinalidade que deva necessariamenteser alcançada, pois o empregador nãoestá obrigado a contratar o adolescenteao final da aprendizagem. Trata-se deuma expectativa, uma conseqüênciadesejada, que inspirou o legislador –e é nesse sentido que constitui umafinalidade”.

A dicção do artigo 429, da Consolida-ção das Leis do Trabalho, é bem clara aodeterminar que “os estabelecimentos de qual-quer natureza são obrigados a empregar ematricular nos cursos dos Serviços Naci-onais de Aprendizagem número de apren-dizes equivalente a cinco por cento, no mí-nimo, e quinze por cento, no máximo, dostrabalhadores existentes em cada estabe-lecimento, cujas funções demandem for-mação profissional”(grifos acrescidos aooriginal).

O ente público, ou qualquer de seus ór-gãos, não se confunde com o estabelecimen-to, que é definido pelo Novo Código Civil

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Brasileiro, que adotou novo conceito empre-sarial, em seu artigo 1.142, verbis:

“Artigo 1.142. Considera-se esta-belecimento todo complexo de bensorganizado, para exercício da empre-sa, por empresário, ou por sociedadeempresária.”

Como bem salientado na Mensagem no

160, de 10.6.1975, quando foi encaminhadoao Congresso Nacional o projeto do novoCódigo Civil Brasileiro, este tinha como umade suas diretrizes fundamentais “a compre-ensão do Código Civil como lei básica, masnão global, do Direito Privado” (grifos acres-cidos ao original).

Essa definição é coerente com o pensa-mento de famosos comercialistas, que es-tamparam as seguintes definições:

“Estabelecimento comercial é ocomplexo de meios materiais e imate-riais, pelos quais o comerciante explo-ra determinada espécie de comércio.”(MENDONÇA, 1934).

“Estabelecimento comercial é ocomplexo de bens, materiais e imate-riais, que constituem o instrumentoutilizado pelo comerciante para ex-ploração de determinada atividademercantil.” (BARRETO FILHO, 1988).

Insista-se, também, que ao conceito deestabelecimento mercantil corresponde o deazienda dos italianos, caracterizada pelocomplexo orgânico dos meios materiais deprodução – capitais, atividades em instru-mento de trabalho – e dos meios imateriais– crédito, aviamento, reputação – com parti-cular destinação à produção e à circulaçãode riqueza.

A partir dessas definições, ficam clarosos elementos de um estabelecimento, con-forme mencionado acima, que serão:

– complexo ou conjunto de bens;– integrado por bens materiais (corpóre-

os) e imateriais (incorpóreos);– reunidos, criados e organizados por ini-

ciativa e risco do empresário;– necessários ao exercício da atividade em-

presarial;

– com a finalidade de gerar lucros para aremuneração do capital investido.

Atualmente o conceito de estabelecimen-to comercial é mais amplo: é a empresa queproduz bens e serviços para o mercado. As-sim, o clássico conceito de mercancia, cen-trado nos critérios subjetivos (figura do co-merciante) e objetivos (prática de atos decomércio), deu lugar à doutrina, finalmenteconsagrada no artigo 966 do Novo CódigoCivil, que classifica a sociedade como em-presária pelo modo de exploração de seuobjeto social.

Lembra Coelho (2003, p. 111, grifo nos-so) que:

“Por critério de identificação da soci-edade empresária, elegeu, pois, o di-reito o modo de exploração do objetosocial. (...) Assentadas essas premissas, asociedade empresária pode ser conceitua-da como a pessoa jurídica de direito pri-vado não-estatal que explora empresari-almente seu objeto social ou a forma desociedade por ações”.

Nesse contexto, Pacheco (1997, p. 499)nos fornece o conceito de estabelecimentocomercial ou industrial, que é “o complexode meios idôneos, pelos quais o comercian-te explora determinada espécie de comér-cio; é o organismo econômico para o exercí-cio do comércio”.

Ainda, segundo os termos da Mensagemno 160, empresa é “a unidade econômica deprodução, ou a atividade econômica unita-riamente estruturada para a produção ou acirculação de bens ou serviços”.

Verifica-se, portanto, que a legislação quedetermina a obrigação de contratar apren-dizes dirige-se, apenas, às empresas, não seconstituindo em norma aplicável aos en-tes públicos. O conceito de empresa comoente que visa ao lucro não abarca, e nempode abarcar ou dirigir, as atividades doente público que as realiza por outorgaconstitucional, indelegáveis, em sua mai-oria, ou indeclináveis, prevalecendo-se deregras específicas de interpretação em suaatuação.

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O ente público visa, contrariamente à em-presa, ao atendimento do interesse público,razão pela qual deve balizar sua atuaçãoaos rígidos contornos constitucionais, sobpena de aplicação das normas de puniçãoaos entes públicos e seus dirigentes.

Encontra-se inscrito, entre as normasconstitucionais, o princípio da legalidade,previsto no inciso II do artigo 5o e no caputdo artigo 37, aplicável aos entes públicos.

Segundo Moraes (2002, p. 99, grifo nos-so), o princípio da legalidade “aplica-se nor-malmente na Administração Pública, porémde forma mais rigorosa e especial, pois o ad-ministrador público somente poderá fazer o queestiver expressamente autorizado em lei nas de-mais espécies normativas, inexistindo inci-dência de sua vontade subjetiva, pois naAdministração Pública só é permitido fazero que a lei autoriza, diferentemente da esfe-ra particular, onde será permitido a realiza-ção de tudo que a lei não proíba”.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho ressal-ta que, apesar do desprestígio da lei, o “prin-cípio da legalidade subsiste e é a cúpula dosistema jurídico dos Estados de derivaçãoliberal, como o Brasil”.

O mesmo entendimento vem sendo es-tampado por Mello (1993, p. 48-49), ao tra-zer que:

“Michel Stassinopoulos, em fórmulasintética e feliz, esclarece que, além denão poder atuar contra legem ou prae-ter legel, a Administração só pode agirsecundeum legem. Aliás, no mesmo sen-tido é a observação de Alessi, ao aver-bar que a função administrativa sesubordina à legislativa não apenasporque a lei pode estabelecer proibi-ções e vedações à Administração, mastambém porque esta só pode fazeraquilo que a lei antecipadamente au-toriza. Afonso Rodrigues Queiró afir-ma que a Administração ‘é a longamanus do legislador’ e que ‘a ativida-de administrativa é a atividade de sub-sunção dos fatos da vida real às cate-gorias legais’”.

Verifica-se, pois, e com solar clareza, quea administração é atividade subalterna à lei;que se subjuga inteiramente a ela; que estácompletamente atrelada à lei; que sua fun-ção é tão-só a de fazer cumprir lei preexis-tente.

Como nos lembra o saudoso Meirelles(1993, p. 82-83, grifo nosso), “na Adminis-tração Pública não há liberdade nem vonta-de pessoal. Enquanto na administração par-ticular é lícito fazer tudo que a lei não proí-be, na Administração Pública só é permitido fa-zer o que a lei autoriza. A lei para o particularsignifica ‘pode fazer assim’; para o adminis-trador público significa ‘deve fazer assim’”.

Trilhando o mesmo posicionamento,Mello (1993, p. 52) leciona que:

“O princípio da legalidade, no Brasil,significa que a Administração nada podefazer senão o que a lei determina. Ao con-trário dos particulares, os quais po-dem fazer tudo o que a lei não proíbe,a Administração só pode fazer o quea lei antecipadamente autorize. Don-de, administrar é prover os interessespúblicos, assim caracterizados em lei,fazendo-o na conformidade dos meiose formas nela estabelecidos ou parti-cularizados segundo suas disposi-ções. Segue-se que a atividade admi-nistrativa consiste na produção de de-cisões e comportamentos que, na for-mação escalonada do direito, agre-gam níveis maiores de concreção aoque já se contém abstratamente nasleis”.

Os órgãos públicos, totalmente vincula-dos ao princípio da legalidade, têm quadrode pessoal organizado, escalonado em car-gos e funções, que são ocupadas pelos ser-vidores públicos concursados ou aquelescontratados em comissão, nos termos pre-conizados pela Constituição Federal.

Com efeito, as entidades estatais são li-vres para organizar o seu pessoal visandoao atendimento do interesse público, razãode sua existência, mas subordinam-se a re-gras fundamentais para tal. Interessa-nos

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aquela atinente à observação de normasconstitucionais pertinentes.

Quando organiza seu funcionalismo, aAdministração Municipal cria, entre outros,cargos e funções. Cargo público, na defini-ção de Meirelles (1993, p. 359, grifo nosso)“é o lugar instituído na organização do fun-cionalismo, com denominação própria, atri-buições específicas e estipêndio corresponden-te, para ser provido e exercido por um titu-lar”, sendo função “a atribuição ou o con-junto de atribuições que a Administraçãoconfere a cada categoria profissional, ou co-mete individualmente a determinados servi-dores para a execução de serviços eventuais”.

Não existe, na estrutura organizacionaldo ente público, cargo sem função, ou seja, atodas as pessoas são acometidas funções quefazem parte da estrutura administrativa.

A inserção desses adolescentes em fun-ções que não demandam aprendizagem eexercendo as funções típicas de um servi-dor público municipal configura, claramen-te, burla ao princípio do concurso público eda moralidade, pois que impede a contrata-ção de novos servidores para gerenciar amáquina administrativa. Esses adolescen-tes encontram-se substituindo, de forma ba-rata, eventuais servidores públicos.

As atividades a serem desempenhadaspelos adolescentes nos entes públicos sãoexercidas por outros servidores públicos.Veja-se, por exemplo, quando se encarregaos adolescentes aprendizes de “entrega e co-leta de correspondência, papéis, documen-tos e processos”; caracteriza-se essa comoatividade de mensageiro (office-boy), nãopassível de aprendizagem, como bem obser-va Oliveira (apud CURY, 1992, p. 183):

“vulgarmente, e às vezes por conve-niência, qualifica-se como aprendizo adolescente que começa a traba-lhar exercendo qualquer atividadeque não comporte profissionaliza-ção, como a de office-boy, estafeta,mensageiro, empurrador de carri-nho ou ensacador de compra em su-permercado”.

Outro problema, decorrente da coloca-ção de adolescentes em contratos de apren-dizagem nos entes públicos, vem a ser opagamento de taxas de administração paraas entidades que capacitam os adolescen-tes para o ingresso no mercado de trabalho.

A Instrução Normativa no 01, de 15.1.1997,publicada no DOU de 31.1.1997, que disci-plina a celebração de convênios de nature-za financeira que tenham por objeto a exe-cução de projetos ou realização de eventos edá outras providências, veda expressamen-te tal pagamento, verbis:

“Art. 8o É vedada a inclusão, tole-rância ou admissão, nos convênios,sob pena de nulidade do ato e respon-sabilidade do agente, de cláusulas oucondições que prevejam ou permitam:

I – realização de despesas a títulode taxa de administração, de gerênciaou similar;”

Essa previsão legislativa se aplica, comoestabelecido no artigo 1o, à “execução des-centralizada de Programa de Trabalho acargo de órgãos e entidades da Administra-ção Pública Federal, Direta e Indireta, queenvolva a transferência de recursos finan-ceiros oriundos de dotações consignadasnos Orçamentos Fiscal e da Seguridade So-cial, objetivando a realização de programasde trabalho, projeto, atividade, ou de even-tos com duração certa, será efetivada medi-ante a celebração de convênios ou destina-ção por Portaria Ministerial”.

Tal situação não passa desapercebidaao Tribunal de Contas da União, que, emdiversos acórdãos, tem-se pronunciado pelailegalidade de tal pagamento, como ressal-tado no Acórdão no 962/2004-Plenário, quedeterminou, verbis:

“[...] suspender os pagamentos a títu-lo de taxa de administração ou simi-lar a qualquer entidade convenente,por estarem em desacordo com o inci-so I do art. 8o da IN/STN 01/97, sen-do tal suspensão imediata para quais-quer convênios e alcançando inclusi-ve eventuais taxas incidentes sobre os

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desembolsos relativos aos valores res-cisórios de contratos de trabalho dosmenores.”

Cabe ressaltar, por final, que a inobser-vância dessas disposições, nos termos doestabelecido em seu artigo 40, “constituiomissão de dever funcional e será punidana forma prevista em lei”.

Tal orientação também consta do Decre-to Estadual no 45.038, de 4.7.2000, que alte-rou o modelo-padrão de Convênio constan-te do Anexo integrante do Decreto Estadualno 44.143, de 27.7.1999, em sua cláusula 5.3,verbis:

“5.3. É vedado ao (Nome da Institui-ção):5.3.1. contratar pessoas para funçõesou atividades que não estejam nasnormas da IN 001/97, Resolução 194do CODEFAT e normas do MTE quevierem a ser editadas em substituição;5.3.2. utilizar os recursos em finalida-des diversas das estabelecidas no Pla-no de Trabalho, ainda que em caráterde emergência;5.3.3. realizar despesas a título de taxade administração, de gerência ou si-milar;”

4. A proteção destinada àscrianças e aos adolescentes

A legislação tutelar, destinada a crian-ças e adolescentes, remonta ao século XVIIIe encontra sua origem nos países industria-lizados, em que se buscou vedar seu traba-lho em locais perigosos, insalubres, dimi-nuir a jornada de trabalho, entre outras nor-mas protetivas.

A preocupação com a preservação dosdireitos das crianças, em decorrência de suaimaturidade física e mental, já foi objeto dedeliberação da Organização das NaçõesUnidas – ONU, por meio da Declaração dosDireitos da Criança, de 1924, e da Declara-ção Universal dos Direitos Humanos. Nosvários Estatutos das agências especializa-das e organizações internacionais interes-

sadas no bem-estar da criança, encontramoso estabelecimento de princípios protetivos.

A Constituição Federal foi a primeiraconstituição a albergar em seu seio os prin-cípios da proteção integral destinada às cri-anças e adolescentes, mesmo antes da ado-ção pela Organização das Nações Unidasda Convenção sobre os Direitos da Criançapela Assembléia Geral de novembro de 1989.Ela enfoca o compromisso do Estado comos direitos da criança e do adolescente, des-tacando-se o papel concernente à família eà sociedade.

O epicentro da proteção integral desti-nada às crianças e aos adolescentes está noartigo 227, incluído por emenda popular,prescrevendo a Constituição Federal que:

“É dever da família, da sociedadee do Estado assegurar à criança e aoadolescente, com absoluta prioridade,o direito à vida, à saúde, à alimenta-ção, à educação, ao lazer, à profissio-nalização, à cultura, à dignidade, aorespeito, à liberdade e à convivênciafamiliar e comunitária, além de colo-cá-los a salvo de toda forma de negli-gência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão”.

A partir da adoção da doutrina da pro-teção integral, a atuação na área da criançae do adolescente deixou de ser assistencia-lista, merecendo uma releitura por meio daConstituição Federal, do Estatuto da Crian-ça e do Adolescente e da Lei Orgânica daAssistência Social para verificar se o pro-grama desenvolvido encontra guarita nanova legislação.

Antes da vigência da nova ordem cons-titucional, as crianças e os adolescenteseram considerados objetos de direito, mere-cedores de políticas assistenciais que lhesdestinavam, apenas a partir do momento emque se encontravam no estado de patologiadefinido pelo Código de Menores.

A mudança de paradigma constitucio-nal elevou as crianças e adolescentes ao sta-tus de sujeitos de direitos, ou seja, todas asações devem ser pautadas nas conseqüên-

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cias do ato para eles – não mais podem sertratados como objetos passivos de controle.Não se admitem programas assistencia-listas apenas para gerar renda para osadolescentes. Os programas necessitamde um plus, “uma pitada de cidadania”para se enquadrar no novo conceito detrabalho.

“A Constituição de 1988 apontoupara uma mudança no caráter do pa-drão brasileiro de proteção social,apontando para a possibilidade deuma transição do modelo meritocráti-co-particularista para um mais próxi-mo do institucional-redistributivo, ouseja, para um padrão de proteção so-cial mais igualitária e universalis-ta” (COSTA apud CARVALHO,2002, p. 35).

Na esteira do texto Constitucional, o Es-tatuto da Criança e do Adolescente – ECA,promulgado pela Lei no 8.069, de 13.7.1990,regula muitas das conquistas consubstan-ciadas pela Carta Magna em favor da infân-cia e da juventude. O Estatuto introduz ino-vações importantes no tratamento dessaquestão, sintetizando mudanças, deslocan-do a tendência assistencialista, prevalenteem programas destinados ao públicoinfanto-juvenil, para o âmbito sócio-educa-tivo, de cunho emancipatório.

O ECA redefiniu o conteúdo, método egestão das políticas de atendimento à cri-ança e ao adolescente, definidos agora comosujeitos de direitos.

As atividades desenvolvidas pelos ado-lescentes junto aos entes públicos não se ca-racterizam como aprendizagem, pois ape-nas substituem mão-de-obra que deveria sercontratada por concurso público.

O trabalho infantil é um fenômeno com-plexo, principalmente quando consideradasas contingências culturais, econômicas e so-ciais predominantes atualmente em nossopaís.

A idéia prevalecente, no âmbito de nos-sa sociedade, consiste em manter o adoles-cente inserido no mercado de trabalho, como

forma de contribuir para o aumento da ren-da familiar e evitar seu ingresso na margi-nalidade.

O que os entes públicos necessitam rea-lizar, dentro de suas atividades legais, é do-tar as crianças e adolescentes de políticaspúblicas que os insiram e os mantenham naescola, de qualidade, para colocá-los nomercado de trabalho apenas após o seuamadurecimento e com mais possibilidadesde manutenção do emprego.

5. A interpretação constitucional

Verifica-se, a princípio, um aparente cho-que entre as normas constitucionais do arti-go 227, que prevê a primazia do atendimen-to do adolescente, com o artigo 37, que pre-vê o ingresso no serviço público apenasmediante concurso público, enumerando ashipóteses de exceção à regra e determinan-do a obediência aos princípios da morali-dade e da legalidade.

Toda e qualquer interpretação constitu-cional deverá ser feita no cotejamento detodo o corpus constitucional perante o cho-que de princípios.

A interpretação dos princípios consti-tucionais segue parâmetros definidospela hermenêutica, sendo oportuno tra-zer a definição de Ráo (apud MORAES, 2002,p. 22):

“A hermenêutica tem por objeti-vo investigar e coordenar por modosistemático os princípios científicose leis decorrentes, que disciplinam aapuração do conteúdo, do sentido edos fins das normas jurídicas e a res-tauração do conceito orgânico do di-reito, para efeito de sua aplicação einterpretação; por meio de regras eprocessos especiais procura realizarpraticamente, estes princípios e estasleis científicas; a aplicação das nor-mas jurídicas consiste na técnica deadaptação dos preceitos nela conti-dos assim interpretados, às situaçõesde fato que se lhe subordinam.”

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Portanto, faz-se necessário o cotejamen-to das normas de proteção à criança e aoadolescente com as demais normas consti-tucionais, ressaltando-se a necessidade deuma interpretação constitucional, em espe-cial com relação aos direitos humanos maislatentes da comunidade.

Analisando a Constituição Federal, osaudoso mestre da Casa de Afonso Penna,professor Horta (1995, p. 239-240), aponta aprecedência, em termos interpretativos, dosPrincípios Fundamentais da República e àenunciação dos Direitos e Garantias Fun-damentais, dizendo que:

“É evidente que essa colocação nãoenvolve o estabelecimento de hierar-quia entre as normas constitucionais,de modo a classificá-las em normassuperiores e normas secundárias. To-das são normas fundamentais. A pre-cedência serve à interpretação daConstituição, para extrair dessa novadisposição formal a impregnação va-lorativa dos Princípios Fundamen-tais, sempre que eles forem confronta-dos com atos do legislador, do admi-nistrador e do julgador, motivo peloqual classifica-se de Constituição plás-tica”.

O ilustre constitucionalista portuguêsCanotilho (apud MORAES, 2002) enumeradiversos princípios interpretativos das nor-mas constitucionais, podendo ser elencadosos seguintes:

– da unidade da Constituição: a interpre-tação deve ser realizada de maneira a evitarcontradições entre suas normas;

– do efeito integrador: na resolução dosproblemas jurídico-constitucionais, deveráser dada maior primazia aos critérios favo-recedores da integração política e social,bem como ao reforço da unidade política;

– da máxima efetividade ou da eficiên-cia: a uma norma constitucional deve seratribuído o sentido que maior eficácia lheconceda;

– da justeza ou da conformidade funcio-nal: os órgãos encarregados da interpreta-

ção da norma constitucional não poderãochegar a uma posição que subverta ou per-turbe o esquema organizatório-funcionalconstitucionalmente estabelecido pelo legis-lador constituinte originário;

– da concordância prática ou da harmo-nização: exige-se a coordenação e combina-ção dos bens jurídicos em conflito de formaa evitar o sacrifício total de uns em relação aoutros;

– da força normativa da Constituição:entre as interpretações possíveis, deve seradotada aquela que garanta maior eficácia,aplicabilidade e permanência das normasconstitucionais.

Para Moraes (2002, p. 25), esses princí-pios são perfeitamente complementados poralgumas regras propostas por Jorge Miran-da, podendo-se ressaltar que “a contradi-ção dos princípios deve ser superada oumediante a redução proporcional do âmbi-to de alcance de cada um deles, ou, em al-guns casos, mediante a preferência ou a pri-oridade de certos princípios”.

A legislação ordinária garantiu aos ado-lescentes o ingresso, por cota de preenchi-mento obrigatório, em todos os estabelecimen-tos comerciais, em sentido amplo, conformeexplanado, e, também, nos casos previstosno artigo 173 da Constituição Federal.

Caso o ente público da AdministraçãoDireta (União, Estados, Municípios e Au-tarquias) queira atuar na aprendizagem,essa atuação será efetivada, por exemplo,mediante a criação de escolas técnicas,subvencionando entidades que promo-vam cursos de aprendizagem, alocandoverbas na educação e saúde, desestimu-lando, assim, o ingresso precoce no mer-cado de trabalho.

Não há conflito entre as normas, postoque o artigo 227 tratou da proteção integralque deve ser dispensada às crianças e aosadolescentes quando inseridos dentro das hi-póteses legais de admissão ao emprego, concer-nente ao direito público subjetivo de profis-sionalização e não exploração, ou mesmoquando se negligenciam seus cuidados.

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Também, analisando-se a questão sob oângulo do bloco de constitucionalidade, te-remos a mesma conclusão, pois que aConstituição deve ser analisada como umtodo e todo choque de princípios deve serafastado.

Como já tivemos a oportunidade de es-crever, entendemos que o bloco de consti-tucionalidade tem sua origem “na teoria doÜberrecht, ou superdireito, como traduzidopara o português, mas trazida para o âmbitodo direito público, em suas análises não sósobre regras de colisão, mas fundamental-mente sobre suas regras de interpretação”(COELHO, 1994, p. 263).

Também constitui Superdireito o métododas fontes e interpretação das leis, porquedetermina a formação de regras e o alcancelógico-conceitual e proposicional, bem comoaquele conjunto de regras que dizem qual omomento em que entram em vigor.

O bloco de constitucionalidade está inse-rido naquele posicionamento que considerao parâmetro constitucional mais vasto do queas normas e princípios constantes das leisconstitucionais escritas, devendo alargar-se,pelo menos, aos princípios reclamados pelo“espírito” ou pelos “valores” que informama ordem constitucional global. O bloco deconstitucionalidade excede a constituiçãoescrita, buscando os valores maiores, que ser-virão de orientação para as normas constitu-cionais escritas.

Ressalte-se, contudo, que não existe hie-rarquia entre os “princípios de valor consti-tucional” em função de sua origem e que, emcaso de contradição entre eles, devem ser con-ciliados, não se excluindo uns aos outros.

Não se pode atender a direito individu-al ante princípios de ordem pública que re-clamem, de toda a coletividade, obediênciae observância, sob risco de termos uma en-tropia sistêmica, que abalará toda a ordemjurídica.

Os entes privados, vinculados ao lucro,devem fornecer a sua parcela de contribui-ção, tendo sido criada para essa finalidadea cota de aprendizes, não se podendo colo-

car sob a responsabilidade do ente públicomais essa obrigação.

Quando analisamos sob o enfoque dadoutrina da proteção integral, devemos noslembrar que o artigo 227 da Constituição Fe-deral, cerne de seu entendimento, proclamaser dever da família, da sociedade e do Esta-do a proteção às crianças e adolescentes.

Dessa forma, entendo que a conciliaçãoentre esses princípios, considerando-se aprimazia da proteção integral e os princípi-os constitucionais da moralidade e legali-dade administrativa, passa pela não con-tratação de aprendizes pelo ente público.

6. A decorrente improbidadeadministrativa

A improbidade administrativa significao exercício de função, cargo, mandato ou em-prego público sem observância dos princí-pios administrativos da legalidade, da im-pessoalidade, da publicidade, da moralida-de e da eficiência.

A colocação de adolescentes trabalhan-do junto aos entes públicos caracteriza-secomo ato de improbidade administrativa,posto que se trata de uma infração ao prin-cípio da legalidade.

A conduta do administrador público emdesrespeito ao princípio da moralidade ad-ministrativa enquadra-se nos denominadosatos de improbidade, previstos pelo artigo 37,§ 4o, da Constituição Federal e sancionadoscom a suspensão dos direitos políticos, aperda da função pública, a indisponibili-dade dos bens e o ressarcimento ao erário,na forma e gradação prevista em lei, semprejuízo da ação penal cabível, permitindoao Ministério Público a propositura da açãocivil pública por ato de improbidade, com basena Lei no 8.429/92, para que o Poder Judiciá-rio exerça o controle jurisdicional sobre lesãoou ameaça de lesão ao patrimônio público.

Prevê a Constituição Federal, em seu § 4o

do artigo 37, que:“Os atos de improbidade administra-tiva importarão a suspensão dos di-

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reitos políticos, a perda da função pú-blica, a indisponibilidade dos bens eo ressarcimento ao erário, na forma egradação previstas em lei, sem prejuí-zo da ação penal cabível.”

Também, nos termos do artigo 11 da Leino 8.429, de 2.6.1992, caracteriza-se como atode improbidade administrativa:

“Artigo 11. Constitui ato de impro-bidade administrativa que atenta con-tra os princípios da administraçãopública qualquer ação ou omissãoque viole os deveres de honestida-de, imparcialidade, legalidade, e le-aldade às instituições, e notada-mente:

I – praticar ato visando fim proibi-do em lei ou regulamento ou diversodaquele previsto, na regra de compe-tência;

II – retardar ou deixar de praticar,indevidamente, ato de ofício;

III – revelar fato ou circunstânciade que tem ciência em razão das atri-buições e que deva permanecer emsegredo;

IV – negar publicidade aos atos ofi-ciais;

V – frustrar a licitude de concursopúblico;

VI – deixar de prestar contas quan-do esteja obrigado a fazê-lo;

VII – revelar ou permitir que che-gue ao conhecimento de terceiro, an-tes da respectiva divulgação oficial,teor de medida política ou econômicacapaz de afetar o preço de mercado-ria, bem ou serviço.”

Nos termos do artigo 2o da citada lei:“Reputa-se agente público, para os

efeitos desta lei, todo aquele que exer-ce, ainda que transitoriamente ou semremuneração, por eleição, nomeação,designação, contratação ou qualqueroutra forma de investidura ou víncu-lo, mandato, cargo, emprego ou fun-ção nas entidades mencionadas no ar-tigo anterior.”

Os agentes públicos são obrigados a ve-lar pela estrita observância dos princípiosde legalidade, impessoalidade, moralidadee publicidade no trato dos assuntos que lhessão afetos. Atentar contra os princípios jurí-dicos é muito mais grave do que violar re-gras, pois significa agredir todo o sistema,causando-lhe uma entropia que deverá sercorrigida.

Como bem salienta Fazzio Júnior (2001,p. 174):

“Os princípios constitucionais daAdministração são fontes do ordena-mento jurídico positivo; traçam as fei-ções da Constituição nesse aspecto.Esta nada mais é senão sua anfitriãinstrumental que, simultaneamente,informa o programa de Estado nelesproposto e enuncia sua operativida-de. Estão nela para serem aplicados,constituem seu núcleo emulador devalidade”.

No mesmo sentido Rocha (1994, p. 50):“Postos para serem determinantes

de comportamentos públicos e priva-dos, não são eles arrolados como pro-postas ou sugestões: formam o Direi-to, veiculam-se por normas e prestam-se ao integral cumprimento. A suainobservância vicia de mácula insa-nável o comportamento, pois signifi-ca a negativa dos efeitos a que se deveprestar. Quer-se dizer, os princípiosconstitucionais são positivados nosistema jurídico básico para produzirefeitos e devem produzi-los”.

Ao admitir a contratação de aprendizes,ao arrepio da legislação, o administradorpúblico viola o princípio da legalidade,posto que não há autorização legal paratal ato.

Além do mais, ao contratar adolescen-tes aprendizes por meio de entidades semfins lucrativos, conforme previsão legal con-tida no artigo 430 da Consolidação das Leisdo Trabalho, pagando-lhes taxa de admi-nistração, viola outras disposições legais,constituindo “omissão de dever funcio-

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nal”, que deverá ser punida na forma daLei de Improbidade Administrativa.

Necessário será, para que se possa ca-racterizar a improbidade administrativa, quese apure o dolo do agente público. Esse dolo,a intenção de burlar a legislação, mostrar-se-á nos atos do administrador público se omesmo, por exemplo, tiver sido devidamen-te orientado quanto à irregularidade, sejamediante comparecimento em audiênciasadministrativas do Ministério Público doTrabalho, seja por expedição de notificaçãorecomendatória, ou mesmo pela apuraçãode irregularidades da administração públi-ca quanto à contratação irregular de servi-dores, que demonstrarão o animus de burlaà legislação.

7. Conclusões

O histórico de nossa aprendizagem pro-fissional sempre esteve vinculado ao preen-chimento de cotas nas empresas privadas,tendo sido criado para essa finalidade o Sis-tema Nacional de Aprendizagem, mantidopelas associações patronais. A nova legis-lação não alterou esse quadro regulatório,não tendo conferido aos entes públicos apossibilidade de contratação de aprendizes.

O princípio da legalidade e da morali-dade, sempre presentes em nossas Consti-tuições, prevêem a contratação apenas pormeio de regular concurso público, bem comoa obediência às normas prescritivas autori-zadoras de sua atuação. Como bem observaa doutrina, “na Administração Pública só épermitido fazer o que a lei autoriza”, nãohavendo espaço para atuação discricioná-ria do administrador público.

É necessário romper a tradição assisten-cialista dos antigos textos legais para quese possa aplicar, em toda a sua extensão, adoutrina da proteção integral. É preciso queos entes públicos façam políticas públicasconcretas voltadas para a criança e o ado-lescente, não apenas o mero assistencialis-mo de colocá-los dentro do serviço público,furtando de outros cidadãos a possibilida-

de de ingresso mediante regular concursopúblico, bem como frustrando a principalfinalidade da aprendizagem, que é a prepa-ração de mão-de-obra especializada para aempresa.

O pagamento de taxa de administração,procedimento adotado quando se utiliza daprevisão contida no artigo 430 da Consoli-dação das Leis do Trabalho, viola as dispo-sições do inciso I do art. 8o da IN/STN 01/97, do artigo 48 do Decreto no 93.872, de23.12.1986, bem como do Decreto Estadualno 45.038, de 4.7.2000.

Sob qualquer ângulo em que se faça ainterpretação constitucional dos princípiosem análise, ver-se-á que não se pode privile-giar a aplicação de direitos individuais emdetrimento de direitos públicos, sob penade termos uma entropia da ordem jurídica,balizamento de toda a sociedade.

A contratação dos aprendizes pelos en-tes públicos, em detrimento dos princípioslegais e constitucionais, poderá ocasionar aperda do cargo público do agente públicopela inobservância das regras constitucio-nais da moralidade e da legalidade.

Pelas razões expostas, entendemos,S.M.J., que aos entes públicos não se reser-vou lugar para a contratação dos aprendi-zes, guardando a ordem constitucional ou-tro lugar para estes – na formulação de polí-ticas públicas que se podem voltar ao fo-mento de contratação pelas entidades pri-vadas, desiderato da legislação.

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1. Introdução. 2. A perda do mandato parla-mentar: cassação vs. extinção. 3. Entraves episte-mológicos ao controle jurisdicional dos atos decassação por quebra de decoro parlamentar emnossa jurisprudência. 4. A inexistência da dou-trina da insindicabilidade dos atos políticos oude governo (political question doctrine) na cassa-ção de mandato de parlamentar. 4.1. A sindica-bilidade jurisdicional dos atos interna corporis dolegislativo na Suprema Corte norte-americana(Powell vs. Mc Comarck e Bond vs. Floyd). 5. A sin-dicabilidade jurisdicional dos atos de cassaçãode mandato parlamentar: existência de direitossubjetivos em jogo. 6. A evolução da concepçãosobre o decoro parlamentar nas Constituiçõesbrasileiras. 6.1. O decoro parlamentar como umconceito indeterminado (CF/67 e de 1946). 6.2.O decoro parlamentar como um conceito nãotão indeterminado (CF/69 e de 1988): tipicidadeconstitucional. 7. A possibilidade de controlesobre a definição regimental dos atos indecoro-sos: inexistência de atribuição de cheque em bran-co ao legislador regimental. 8. Os limites da sin-dicabilidade jurisdicional do processo de cassa-ção de mandato no direito constitucional brasi-leiro: tipicidade e proporcionalidade. 8.1. O exa-me da tipicidade: existência dos fatos e corretaqualificação normativa. 8.2. O controle da pro-porcionalidade do ato de expulsão. 9. O ato in-decoroso e o crime: incisos II e VI do artigo 55 daCF/88. 9.1. A influência da esfera penal na parla-mentar. 10. A ratio essendi da quebra de decoroparlamentar e a inexistência do princípio da con-temporaneidade: atos pré-mandato e os pratica-dos fora da função parlamentar (art. 56 da CF).10.1. A revogação da Súmula 4 do STF e a possi-bilidade de se cassar o parlamentar afastado parao exercício de cargos executivos (CF, art. 56). 11.

A cassação de mandato por quebra dedecoro parlamentarSindicabilidade jurisdicional e tipicidade

Eduardo Fortunato Bim

Sumário

Eduardo Fortunato Bim é Advogado em SãoPaulo, SP.

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1. Introdução

Em várias legislaturas, membros doLegislativo têm o seu mandato cassado porquebra de decoro parlamentar, fazendo sur-gir diversas questões jurídicas em torno dotema. Essas questões são relevantes porqueo parlamentar vencido na esfera políticageralmente tenta a perpetuação de seu man-dato no Judiciário, invocando razões jurídi-cas para obstar o julgamento político de seuspares.

O conceito de decoro parlamentar foidefinido em nosso direito constitucionalsomente na CF/1969, que imprimiu um ca-ráter menos indeterminado a esse conceito.Paralelamente, alguns atos tidos como in-decorosos são anteriores à vida de parla-mentar ou são da legislatura antecedente;alguns são praticados quando o parlamen-tar se afasta do parlamento para assumirfunções executivas (ministérios, secretariasetc.) ou quando tira simples licenças (CF,art. 56). Discute-se se em tais casos há a pos-sibilidade de cassação do mandato por que-bra do decoro parlamentar, uma vez que taisatos não foram praticados pelo parlamen-tar enquanto tal.

Como questão prejudicial, tem-se o fatode o Judiciário considerar o ato de cassaçãoum ato exclusivamente político, logo, insin-dicável jurisdicionalmente pela aplicaçãoda political question doctrine.

O propósito deste estudo é responder atais questões e algumas que gravitam emtorno dela, tais como a renúncia para evitara cassação.

2. A perda do mandato parlamentar:cassação vs. extinção

A perda do mandato dos parlamentaresestá prevista no artigo 55 da Constituição e

A vedação da renúncia como instrumento de sal-vação da cassação do mandato e da inelegibili-dade. 12. Conclusão.

pode ocorrer por extinção ou cassação(MELLO FILHO, 1984, p. 124). Uadi LammêgoBulos (2003, p. 770) define a cassação como“o ato que decreta a perda do mandato pelocometimento de uma falta funcional, tipifi-cada em lei e sancionada por ela.” José Afon-so da Silva (2005, p. 539-540, grifo do au-tor), por sua vez, explica que extinção do man-dato “é o perecimento do mandato pela ocor-rência de fato ou ato que torna automatica-mente inexistente a investidura eletiva, taiscomo a morte, a renúncia, o não compareci-mento a certo número de sessões expressa-mente fixado (desinteresse, que a Constitui-ção eleva à condição de renúncia), perda oususpensão dos direitos políticos”.

A utilidade e razão da distinção residena necessidade ou não de votação da Câ-mara ou do Senado para a perda do manda-to do parlamentar e, ipso facto, na existência(cassação) ou inexistência (extinção) de juí-zo político do parlamento.

Para os casos de cassação (incisos I, II e VIdo art. 55 da CF), há necessidade de votaçãosecreta1 pela maioria absoluta dos membrosda casa, mediante a provocação da respec-tiva Mesa ou de partido político representa-do no Congresso Nacional, assegurada aampla defesa. Nos de extinção do mandato(CF, art. 55, incs. III, IV e V), haverá apenas adeclaração da Mesa, não votação secreta pormaioria absoluta.2

Na cassação, a decisão tem naturezaconstitutiva; na extinção, meramente decla-ratória. Em ambos os casos, a Constituiçãoassegura a ampla defesa ao parlamentar, oque não significa a admissão de advogadona tribuna, ficando tal matéria à disposiçãoregimental.3

Na cassação de mandato, o parlamentomove-se em duplo e cumulativo juízo: umobjetivo (existência e enquadramento nassituações previstas nos incisos I, II e VI) eoutro subjetivo (aprovação por maioria ab-soluta – típica questão política). Sem aexistência de qualquer um deles, não háque se falar em cassação de mandato par-lamentar.

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Por último, ressalte-se o fato de que aConstituição vê ambas as formas de perdado mandato (cassação e extinção) em umavisão procedimentalista, uma vez que cita“processo que vise ou possa levar à perda”(CF, art. 55, § 4o). Essa visão procedimenta-lista também é usada na Constituição Fin-landesa (seção 28, 3 e 4), uma vez que essareconhece que a cassação do mandato pornegligência essencial e reiterada dos deve-res de parlamentar e por fato grave que de-monstre a ausência de confiança e respeitonecessários às funções inerentes ao cargotem que ser previamente aprovada pelo Co-mitê de Direito Constitucional antes de servotada por dois terços. No Brasil, a matériaé reservada ao regimento interno da casalegislativa, assim como nos EUA, no qual aCasa dos Representantes submete a resolu-ção de expulsão à House Committe on Stan-dards of Official Conduct.

3. Entraves epistemológicos aocontrole jurisdicional dos atos de

cassação por quebra de decoroparlamentar em nossa jurisprudência

Questão prejudicial ao tema deste artigoreside na possibilidade do controle jurisdi-cional dos atos de cassação; caso contrário,pouco adiantará qualquer especulação ju-rídica sobre a quebra de decoro parlamen-tar, porque não haverá nenhuma instânciapara controlar esse ato da casa legislativa,tornando-o incontrastável.

Para avaliar a sindicabilidade do pro-cesso e do ato de cassação de mandato, faz-se necessário auscultar a doutrina da insin-dicabilidade das questões políticas. Os pre-cedentes do Supremo que inadmitem a sin-dicabilidade do ato de cassação sob o pris-ma da ocorrência ou não da quebra de deco-ro parlamentar baseiam-se na impossibi-lidade de se controlar os atos internacorporis do Legislativo, por pertenceremunicamente à esfera de decisão doparlamento, sendo questões exclusiva-mente políticas.

Nos antigos Recursos em Mandado deSegurança nos 8.893/SC (BRASIL, 1961, p.72) e 10.141/CE (BRASIL, 1964, p. 4432) enos recentes Mandados de Segurança nos

21.8614, 23.5295 e 23.3886, o Supremo enten-deu que a cassação do mandato é uma ques-tão política (political question doctrine) porcaber exclusivamente ao parlamento, im-possibilitando ao Judiciário conhecer sobreo mérito da cassação, ou seja, se houve ounão quebra de decoro parlamentar.

No pronunciamento mais recente de quese tem notícia (17 de agosto de 2005), o STF– pela decisão monocrática do MinistroCezar Peluso no RE 382.344/SP (agravo re-gimental pendente) – manteve sua posiçãode somente analisar os aspectos formais doprocesso de cassação, confirmando a eluci-dativa decisão do STJ (BRASIL, 2002c, p.112):

“RECURSO EM MANDADO DESEGURANÇA. DEPUTADO ESTA-DUAL. PERDA DO MANDATO. MÉ-RITO. ATO INTERNA CORPORIS.REPRESENTAÇÃO. VALIDADE.

– No tocante ao aspecto meritórioda penalidade aplicada, à valoraçãoe ao acerto da decisão daquela CasaLegislativa, se efetivamente o recorren-te é autor de procedimentos contrári-os à Ética e ao Decoro Parlamentar,na gradação suficiente para a medidadisciplinar adotada, tenho que estaquestão é de natureza unicamentepolítica, interna corporis, sendo veda-do ao Judiciário apreciar o recurso emtal direção. Resta, tão-somente, a estaCorte considerar o aspecto formal doprocesso de cassação, com a aplica-ção dos princípios constitucionais daampla defesa, contraditório e devidoprocesso legal.

– A representação instaurada pelaAssembléia Legislativa do Estado coma indicação de perda de mandato nãoprecisa, obrigatoriamente, obedeceraos parâmetros do art. 41, do CPP, oumesmo o art. 161, da Lei 8.112/90,

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devendo ater-se aos preceitos e regra-mentos insculpidos no diploma legalespecífico da Assembléia Legislativa,in casu, a Resolução no 766, de 16 dedezembro de 1994.”

Alexandre de Moraes ( 2005, p. 416) en-tende da mesma maneira, aduzindo que, portratar-se de ato disciplinar do parlamento,não compete ao Judiciário analisar a tipici-dade da conduta nas previsões regimentaisou sob o acerto da decisão, “pois tal atitudeconsistiria em indevida ingerência em com-petência exclusiva de órgão do Poder Legis-lativo, atribuída diretamente pela Constitui-ção Federal (CF, art. 55, §§ 1o e 2o), sem preju-ízo de qualquer recurso de mérito”.

Registre-se, em um primeiro momento,não se tratar de jurisprudência restritiva porestar em causa a interpretação do regimen-to interno das casas legislativas, uma vezque a quebra de decoro está expressamenteprevista na Constituição, sendo função doregimento simplesmente esclarecer o senti-do constitucional.

Torna-se, portanto, imprescindível ana-lisar a political question doctrine para enten-der a fundamentação das decisões do Su-premo em relação à insindicabilidade dosatos de cassação de mandato.

4. A inexistência da doutrina dainsindicabilidade dos atos políticos ou degoverno (political question doctrine) na

cassação de mandato de parlamentarDecorrente da teoria da separação de

poderes, a political question doctrine, que po-deria ser traduzida como da insindicabili-dade jurisdicional das questões políticas, foifruto da evolução da jurisprudência da Su-prema Corte norte-americana e constava nasConstituições de 1934 (art. 68) e de 1937 (art.94) com idêntica redação: “É vedado ao Po-der Judiciário conhecer de questões exclusi-vamente políticas.”

Entende-se por questões políticas aque-las decorrentes dos atos políticos ou de governo.Na classificação, que pressupõe a distinção

entre função política ou de governo da exe-cutiva, existem os atos políticos ou de go-verno ao lado dos atos administrativos. Res-salte-se que os atos políticos não são privi-légios do Executivo, podendo ser editadospelos outros Poderes da República, emboranesses sejam menos freqüentes.

Os atos políticos são aqueles mais dire-tamente ligados à condução política do Es-tado. Nos primórdios do desenvolvimentoda doutrina dos atos de governos, dizia-seque estes eram insindicáveis pelo Judiciá-rio lato sensu (o que inclui o contencioso ad-ministrativo para os países que o adotam).Aliás, essa foi a razão de sua criação. Se-gundo Oswaldo Aranha Bandeira de Mello(1969, p. 416), “a criação dessa categoria deatos objetivou justamente excluir uma sériede atos, de caráter político, do controle daJustiça”. Régis Fernandes de Oliveira (1992,p. 35) também aduz que a criação dos atospolíticos “objetivou excluir determinadasatitudes estatais, de caráter político, da apre-ciação pelo Poder Judiciário”. A tese separaos atos de administração dos políticos; es-tes extraem seu fundamento direto da Cons-tituição, aqueles das leis infraconstitucio-nais; a discricionariedade destes é maior doque daqueles, uma vez que a Constituição émais aberta.

Eduardo García de Enterría (1995, p. 56),em sua clássica obra A Luta Contra as Imuni-dades do Poder no Direito Administrativo, re-chaça a tese da insindicabilidade dos atosde governo, in verbis: “Ao se insistir sobre adiferença qualitativa entre Política e Admi-nistração se está dizendo algo óbvio, mas éuma petição de princípio pretender arran-car desta diferença material uma diferençade regime jurídico.” Por isso, também JohnP. Roche, citado por Herman Pritchett (1968,p. 177), “atacou a doutrina das questões po-líticas taxando-a de ilógica, baseada em umraciocínio circular: ‘Questões políticas sãoproblemas não solucionáveis pelo proces-so judicial; problemas não solucionáveispelo processo judicial são questõespolíticas’”.

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No Estado de direito, não podem existircírculos de poder imunes ao controle juris-dicional, uma vez que uma de suas caracte-rísticas é a responsabilidade pelos atosestatais, corolário da República (ATALI-BA, 1998); responsabilidade impossívelsem o controle jurisdicional (CF, art. 5o,XXXV).

Prossegue Enterría (1995, p. 62) aduzin-do que, excepcionalmente, os atos de rela-ções internacionais estão isentos da apreci-ação judicial por serem autênticos atos po-líticos, como ocorre no direito inglês com osacts of State. Ele acredita, porém, que todosos demais pretendidos atos de governo,“sem exceção, são atos administrativos pu-ros e simples, somente dotados de uma es-pecial importância política (ordinaria-mente em sentido da luta política)”, alegan-do ser exatamente essa importância que jus-tificaria a sua classificação, razão pela qualse exigiria a sua análise mais cuidadosa pelajurisdição, não havendo que se proclamar asua isenção radical ante esta.

A configuração política de um ato nãoexclui seu caráter político, fazendo de seusdefensores – coincidentemente os governan-tes cujos atos não querem que sejam exami-nados sob o acidental prisma da legalidadee constitucionalidade, principalmente quan-do causem dano ao direito individual doscidadãos ou dos próprios entes da federa-ção – autênticos sectários da doutrina darazão de Estado.

O que a doutrina da insindicabilidadedos atos políticos propugna é exatamenteuma das formas de apologia das razões deEstado. Sob o pretexto de que o problema épolítico (argumento nunca bem compreen-dido), quer-se violar o direito ou a moral (ar-gumentos sempre bem compreendidos nes-ses casos); e a melhor maneira de fazê-lo éexcluindo o controle jurisdicional, deixan-do o poder sem controle.

Não por outro motivo – antes de relataro desaparecimento da doutrina dos atos degoverno do direito francês –, Eduardo Garcíade Enterría (1995, p. 70) concluiu: “Se há

dito com justiça da doutrina dos atos políti-cos que ela constitui pura e simplesmenteuma reminiscência da velha idéia da razãode Estado e do poder desta para subjugarem algum momento a justiça; este é justa-mente o título, La survivance de la raisond´Etat, do famoso livro de André Gros (Pa-rís, 1932), e basta seu enunciado para con-denar sua presença em um Estado de Direi-to que mereça esse nome”7.

No Brasil, fica clara a relação entre auto-ritarismo e razões de Estado vestidas sob ocaráter da insindicabilidade das questõespolíticas quando no governo de Vargas –social, mas não tutelador das liberdadesindividuais – ambas as Constituições (CF/1934, art. 68, e CF/37, art. 94) vedavam aoPoder Judiciário conhecer de questões ex-clusivamente políticas.

Não se nega a existência, nos atos políticos (etambém nos administrativos em sentido es-trito), de uma zona de liberdade em que o Judici-ário não pode substituir o órgão decisor (politi-cal question)8; mas daí defender a insindica-bilidade de maneira ampla e genérica é fa-zer apologia à doutrina da razão de Estado,inadmissível em um Estado de direito quefaça jus a esse nome (Enterría), motivo peloqual a doutrina nacional em peso rechaça acategoria dos atos políticos como atos in-sindicáveis.9

A seara da political question doctrine nãoé demarcada pela pura e simples insindica-bilidade jurisdicional, sendo o círculo vici-oso descrito por John P. Roche, mas pelasquestões que dizem respeito aos outros poderes(Legislativo e Executivo) ou ao eleitoradocomo um todo e que não tenham norma visi-velmente aplicável ao caso (CASTRO, 1999,p. 60; COELHO, 2004, p. 369; TRIBE, 2000,p. 367).

Não se pode entrar na discricionarieda-de do ato político, assim como também nãose pode fazê-lo nos administrativos (embo-ra essa discricionariedade possa ser contro-lada sob alguns aspectos). O que identifica-mos como razões de Estado não é a resistên-cia contra a ingerência do Judiciário nessa

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discricionariedade – que nas questões polí-ticas deu azo à genuína political questiondoctrine –, mas a tentativa de absolutizaressa zona de discricionariedade do ato po-lítico, impossibilitando qualquer tentativade controle jurisdicional. Afinal, ato políti-co não pode ser confundido com ato arbi-trário. Aceitar isso seria negar o Estado dedireito porque este – nos dizeres de JacquesChevallier (2003, p. 132) – implica que aliberdade dos órgãos estatais, em todos osníveis, enquadra-se na existência de normasjurídicas, cujo respeito é garantido pela in-tervenção judicial.

Rejeitando essa tentativa de alargamen-to das questões políticas, diversos autoresnorte-americanos criticaram-na, chegandouns, como os brasileiros, a propugnar a suaextinção pelo perigo que a sua existênciaencerra à liberdade. Bernard Schwartz(1966, p. 167) doutrinava: “‘Se admitirmosapenas uma exceção ao princípio da legali-dade’, como um jurista francês [Duguit] acer-tadamente declarou, ‘não podemos saberaonde isto nos levará’... Admitir apenas umaexceção ao princípio da legalidade é dar oprimeiro passo fatal na direção da doutrinaalemã e dizer... com Jellinek: ‘O Estado estáacima de toda e qualquer regra de lei’.” LouisHenkin (apud TRIBE, 2000) (Is there a “poli-tical question” doctrine), depõe Tribe (2000, p.367), “como outros, tem criticado duramen-te a idéia de que existem partes da Consti-tuição para as quais o judiciário deve sercego”.

A political question doctrine, na sua feiçãoabsoluta, é muito bem explicada e refutadapor Canotilho (2002, p. 1291, grifo do au-tor), em longo trecho que vale ser citado naíntegra:

“O princípio foi definido pelo juizMarshall como significando havercertas ‘questões políticas’, da compe-tência do Presidente, em relação àsquais não pode haver controlo juris-dicional. No entanto, como acentua aprópria doutrina americana, a doutri-na das questões políticas não pode

significar a existência de questões cons-titucionais isentas de controlo. Em pri-meiro lugar, não deve admitir-se umarecusa de justiça ou declinação de compe-tência do Tribunal Constitucional sóporque a questão é política e deve serdecidida por instâncias políticas. Emsegundo lugar, como já se disse, o pro-blema não reside em, através do controloconstitucional, se fazer política, mas simem apreciar, de acordo com os parâmetrosjurídico-materiais da constituição, a cons-titucionalidade da política. A jurisdiçãoconstitucional tem, em larga medida,como objecto, apreciar a constitucio-nalidade do ‘político’. Não significaisto, como é óbvio, que ela se transfor-me em simples ‘jurisdição política’,pois tem sempre de decidir de acor-do com os parâmetros materiais fi-xados nas normas e princípios daconstituição.”

Dizer que a cassação dos mandatos dosparlamentares é questão política, desauto-rizando o judicial review, ignora de formacristalina o requisito negativo dessa doutri-na: a ausência de norma diretamente aplicá-vel ao processo de cassação (CF, art. 58, § 1o).

Reconhecer questão política no proces-so de cassação de mandatos ignora outrosinteresses vitais à democracia, como a liber-dade de voto, pressuposto da soberania po-pular, e as eleições livres, que vão além damera diplomação e posse. O poder de cas-sar o mandato deve ser controlado pelo Ju-diciário, porque não são apenas interessesdo parlamento que estão em jogo, mas detoda a democracia, uma vez que expulsarparlamentares sem justa causa ameaçaautorizar um poder sem controle sobre avontade do eleitor e sobre a liberdade deeleição.

Inexiste motivo para que o Judiciário nãojulgue o ato de cassação do mandato, con-clusão reforçada pela análise dos julga-dos da Suprema Corte norte-americanaPowell vs. Mc Comarck e Bond vs. Floyd,como se verá.

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4.1. A sindicabilidade jurisdicional dosatos interna corporis do legislativo naSuprema Corte norte-americana (Powell

vs. Mc Comarck e Bond vs. Floyd)

A resolução de expulsão do parla-mentar tem tratamento diverso de acordocom o sistema e a cultura constitucional vi-gente. Na Inglaterra, por exemplo, as cortesnão analisam a legalidade da cassação doparlamentar, sustentando a doutrina daque-le país que isso não é exatamente um pro-blema, porque contra eventuais abusos doParlamento existe a possibilidade de umareeleição do parlamentar expulso, ou seja,não haveria inelegibilidade como resultadoda expulsão( BRADLEY; EWING, 2003, p.221).

Por outro lado, nos EUA, a possibilida-de de análise judicial do processo de quali-ficação de seus membros foi expressamenteadmitida pela Suprema Corte. Exatamentea mesma corte que inaugurou a doutrina dainsindicabilidade das questões políticas. AConstituição dos EUA admite que os parla-mentares sejam julgados, em suas qualifi-cações, pelos seus próprios membros. É osistema de controle do processo eleitoraldenominado verificação de poderes, pratica-do na França em 1588 como uma concessãodo poder real e posteriormente consolidadona Inglaterra (GOMES, 1998, p. 24-25).

Nos Estados Unidos, distingue-se a ex-pulsão da exclusão. A expulsão (expulsion)equivale ao ato incompatível por quebra dedecoro parlamentar, ocorrendo por escrutí-nio de dois terços e por disorderly behaviour.Na exclusão (exclusion), corolário da verifi-cação de poderes, nega-se ao eleito sua vagano parlamento por votação majoritária(MASKELL, 2002, p. 3). Por causa da au-sência de requisitos constitucionais do par-lamentar-eleito para ocupar sua vaga noparlamento, a exclusão é hoje entendidacomo não sendo uma punição disciplinar(MASKELL, 2002, p. 4).

No caso Powell vs. Mc Comarck (1969), aSuprema Corte estadunidense decidiu que

o poder do Congresso de julgar os seus pa-res será limitado às qualificações previstasna Constituição, não havendo como ampli-ar o taxativo rol constitucional e nem que sefalar em questão política. Muito embora,corretamente, o Justice Douglas tenha afirma-do que o caso não se confunde com o daexpulsão do membro por comportamentodesregrado – disorderly behaviour (caso si-milar ao nosso decoro parlamentar) –, a con-clusão que se extrai do caso é que esse atointerna corporis não é ilimitado e muito me-nos imune ao judicial review quando há pre-visão constitucional, ainda que vaga.

No caso Bond vs. Floyd (1966), a Supre-ma Corte norte-americana reconheceu-seapta a julgar caso de expulsão de parlamen-tar (Bond) da Casa de Representantes daGeorgia por criticar a política do governofederal na Guerra do Vietnã. Ela declarou aexpulsão inconstitucional por ofender a li-berdade de expressão prevista na PrimeiraEmenda à Constituição, que consistia em ex-pressar-se contra a Guerra do Vietnã, nãohavendo que falar em incitação a condu-tas subversivas (lembrar que era o augeda Guerra Fria).

A diferença de regime do judicial re-view em relação aos atos políticos entre osEUA e a Inglaterra reside em uma série defatores concatenados. Enquanto na Ingla-terra tem-se a supremacia do Legislativo, nosEUA tem-se a supremacia da Constituição.Por tradição, a Inglaterra tem uma visão exa-cerbada da separação de poderes, fato ino-corrente nos EUA, no qual o Legislativo,como todos os poderes do Estado, submete-se ao império da Constituição. As seme-lhanças entre o sistema brasileiro e o nor-te-americano, mas não com o inglês, sal-tam aos olhos. Temos uma Constituiçãoescrita e temos a supremacia da Consti-tuição, que vincula todos os poderes doEstado10.

Não há que se falar em questão políticaou em ato interna corporis para justificar ainsindicabilidade jurisdicional do ato quan-do a Constituição dá as balizas para o jul-

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gamento; como a brasileira fornece tal parâ-metro no artigo 58, § 1o, a sindicabilidade épossível. No entanto, isso não significadizer que o Judiciário pode substituir oparlamento, mas somente que, em princí-pio, a cassação é suscetível de controlejurisdicional.

5. A sindicabilidade jurisdicionaldos atos de cassação de mandato

parlamentar: existência de direitossubjetivos em jogo

Como se viu, o problema da sindicabili-dade do ato ou processo de cassação residena existência da doutrina das questões po-líticas (political question doctrine), que nãoexiste no caso não só por ter norma consti-tucional expressa, mas ainda por existiremdireitos subjetivos lesados.

O Ministro Sepúlveda Pertence (BRASIL,1998a, p. 209) realçou a possibilidade de osdireitos dos parlamentares serem lesadosenquanto tais:

“Há casos, entretanto, em que aviolação de norma regimental pode,sim, a meu ver, violar direito subjeti-vo; não só de terceiros, de estranhosao Congresso, mas, também, de mem-bros do Congresso, que têm, como ins-trumentos do exercício do seu man-dato, numerosos direitos-função quenão lhes podem ser subtraídos, sejapor violação de norma constitucional,legal ou regimental.”

No processo de cassação do mandato doparlamentar, estão em jogo seus direitossubjetivos; e quando existem direitos subje-tivos em jogo, não há que se falar em politi-cal question doctrine. Por isso, a doutrina dainsindicabilidade das questões políticas so-fre críticas da doutrina e da jurisprudênciade nossa Suprema Corte. Como entende oSupremo desde a década de 50:

“A tese de que as questões políti-cas escapam à apreciação judiciáriatem de ser aceita em termos. Já na vi-gência das Constituições anteriores se

fixara o entendimento de que o que seexclui do conhecimento do Judiciáriosão os aspectos de conveniência eoportunidade do ato, não os seus pres-supostos constitucionais ou legais. AConstituição vigente reforçou essadoutrina, ao dispor que a lei não po-derá excluir da apreciação do PoderJudiciário qualquer lesão de direitoindividual (art. 141, § 4o).” (BRASIL,1956, p. 3564, grifo nosso)

Recentemente, o STF voltou a se pronun-ciar sobre a questão, admitindo a sindicabi-lidade jurisdicional de questões aparente-mente políticas quando em jogo direitos sub-jetivos (BRASIL, 1992b, p. 88; 1999a, p. 792;1999b, p. 88). Carlos Velloso (BRASIL,1999b, p. 51), no voto no MS 21.564/DF, éenfático quanto à inexistência de questãopuramente política quando em jogo direitossubjetivos:

“Onde houver a alegação no sen-tido de que um direito subjetivo, pú-blico ou privado, está sendo violado,lá estará o juiz para curar a lesão. Écerto que há atos de natureza pura-mente política, tanto do Congressoquanto do Executivo, que estão imu-nes ao controle jurisdicional. Todavia– a lição é velha, mas é atual, é a domaior constitucionalista brasileiro, éde Ruy –, ‘a violação de garantias in-dividuais, perpetradas à sombra defunções políticas, não é imune à açãodos tribunais.’”

Não discrepando desse entendimento, oMinistro Celso de Mello (BRASIL, 1998a,p. 2001), ao votar no MS 22.494/DF,consignou:

“É da essência de nosso sistemaconstitucional, portanto, que, ondequer que haja uma lesão a direitossubjetivos, não importando a origemda violação, aí sempre incidirá, emplenitude, a possibilidade de contro-le jurisdicional. A invocação do cará-ter interna corporis de determinadosatos, cuja prática possa ofender direi-

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tos assegurados pela ordem jurídica,não tem o condão de impedir a revi-são judicial de tais deliberações. Oscírculos de imunidades de poder –inclusive aqueles que concernem aoPoder Legislativo – não o protegem daintervenção corretiva e reparadora doJudiciário, que tem a missão de fa-zer cessar os comportamentos ilíci-tos que vulnerem direitos públicossubjetivos.”11

Em nossa doutrina, não se passa dife-rente. Entende-se, desde Ruy Barbosa(1933), que não existe questão exclusivamen-te política quando se ferem direitos subjeti-vos de alguém. Depois de dizer que nãoexiste nada mais artificial do que a distin-ção entre questões políticas e jurídicas, RuyBarbosa (1933, p. 42) afirmou: “Quando apendência toca a direitos individuais, a jus-tiça não se pode abster de julgar, ainda quea hipótese entenda com os interesses políti-cos de mais elevada monta.”12 Mais recen-temente, Pontes de Miranda (1960, p. 204),após listar algumas matérias que são consi-deradas como questões políticas, doutrinoucom precisão:

“As espécies de que tratamos sãoas que comumente se apontam comoexcludentes do judicial review. Ora,não se podem enumerar casos, por-que tais casos ratione materiae não exis-tem. O que existe é a regra de compe-tência. O que um Poder, Legislativo,Executivo ou Judiciário, faz – dentrode suas atribuições – vale, nos casosconcretos; o que qualquer deles prati-ca fora das suas atribuições, ferindodireitos públicos e privados, a quecorrespondam ações ou exceções, ésuscetível de ser considerado incons-titucional. Quando John Marshall di-zia que as questões por sua naturezapolítica nunca poderiam ser ventila-das na Corte Suprema, pronunciavafrase vaga, que não se pode repetir semperigo. Onde a ‘questão política’ seliga a atos que violaram direitos, a

ação leva-a à Justiça e a Justiça podedela conhecer. Já não é exclusividadepolítica.”

Eduardo García de Enterría (1995, p. 62)afirma: “Proclamar a imunidade jurisdicio-nal da Administração nessas matérias, as-sim genérica e imprecisamente chamadaspolíticas, implica nada mais nada menosdo que consagrar que a Administração podeoperá-las sem limite legal algum, inclusiveatropelando os direitos mais elementares emais óbvios dos cidadãos”. Por isso,Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1969,p. 417), ao negar a sua existência sob a au-sência de critérios científicos para a suaconstatação, aduziu que, “no Estado de Di-reito, torna-se inadmissível atividade insus-cetível de controle do Judiciário, quando vi-ola direitos e causa danos.”

Powell vs. Mc Comarck (1969) é um típicoexemplo de a negação da diplomação ouposse ao parlamentar ser questão sindicá-vel pelo Judiciário porque há direitos subje-tivos envolvidos, como nos casos de expul-são do parlamentar por quebra de decoro.Constata-se o mesmo em Bond vs. Floyd(1966), quando a Suprema Corte reconhe-ceu sua jurisdição para declarar inconstitu-cionalidade da exclusão de Bond da Casade Representantes da Georgia por criticar apolítica do governo federal na Guerra doVietnã.

Embora se referisse ao impeachment, a li-ção do Ministro Sepúlveda Pertence é apli-cável ao processo de cassação de mandatopor quebra de decoro parlamentar, uma vezque esse também se submete a uma tipologiaconstitucional mínima13, ou seja, a uma defi-nição mínima dos atos indecorosos por parteda Constituição, conforme veremos no pró-ximo item. Disse o Ministro do STF:

“(...) não excluo, por exemplo, que cai-ba ao Poder Judiciário a verificaçãoda existência, em tese, da imputaçãode um crime de responsabilidade,dada a exigência constitucional, queé peculiar ao nosso sistema, de suatipificação em lei, ainda que não ex-

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clua a ampla discricionariedade e aexclusividade do juízo do Senado naconcretização dos conceitos inde-terminados da definição legal típicados crimes de responsabilidade.”(BRASIL, 1999b, p. 58)

Posta a possibilidade do judicial reviewdo processo de cassação de mandato porquebra de decoro, uma vez que há (i) diretadisposição constitucional e também (ii) di-reitos subjetivos em jogo (os do parlamentarcassado ou em vias de sê-lo), atraindo acláusula do artigo 5o, XXXV, da CF com todaa sua força normativa (princípio da máxi-ma efetividade dos direitos fundamentais),vejamos a concepção de decoro parlamen-tar nas Constituições brasileiras.

6. A evolução da concepção sobre odecoro parlamentar nasConstituições brasileiras

O parlamento tem o direito de punir eaté expulsar os seus membros por condutaincompatível com o decoro parlamentar.Esse poder deriva da “compreensão de que,no universo da honra, a conduta desonra-da não se esgota no indivíduo que a come-teu, mas compromete todo o coletivo a queele pertence. Pois se um membro partilhada honra de seu grupo, e com este seidentifica predominantemente, a sua deson-ra se reflete sobre a honra de todos. Havia,assim, uma honra coletiva a ser preservada,que encontrou expressão na noção dedecoro parlamentar.” (TEIXEIRA, 1996, p.112).

O decoro parlamentar serve para extir-par a maçã podre do parlamento, que com-promete a imagem e abala a segurança e es-tabilidade das instituições, uma vez que asimples existência do Estado não é sufici-ente para acabar com a guerra de todos con-tra todos; somente a crença e o respeito nasinstituições são capazes de fazê-lo. Nele re-side uma defesa da instituição parlamen-tar. Miguel Reale (1969, p. 89), de maneiraacertada, expõe a função de defesa do deco-

ro parlamentar, advertindo: “No fundo, fal-ta de decoro parlamentar é a falta de decên-cia no comportamento pessoal, capaz dedesmerecer a Casa dos Representantes (in-continência de conduta, embriaguez, etc.) efalta de respeito à dignidade do PoderLegislativo, de modo a expô-lo a críticas in-fundadas, injustas e irremediáveis, de for-ma inconveniente.”

O poder de legislar seria de pouca valiase não houvesse o poder de punir os mem-bros por quebra de decoro ou desobediên-cia às regras da casa (que precisam estarprevistas no regimento para dar azo à cas-sação do mandato – CF, art. 58, § 1o). Quan-do um membro perde de tal maneira o sensode dignidade e dever do cargo de parlamen-tar, o parlamento cai na desgraça pela inde-corosa conduta, sendo indispensável o po-der de expulsão pela grave conduta ofensi-va ao decoro; poder esse que é excepcional,constituindo o último dique de contençãoda dignidade da instituição parlamentar.Na Inglaterra, Bradley e Ewing (2003, p. 220,tradução nossa) aduzem que “a expulsão éa última sanção disciplinar que a Casa podeexercer sobre seus membros”. Logo, esse po-der punitivo tem natureza político-discipli-nar (CAVALCANTI, 1952, p. 59; MORAES,2005, p. 416).

Essa natureza disciplinar do processode cassação tem uma importante conse-qüência prática: o seu impulsionamento deofício, salvo regra legal ou regimental emsentido contrário. Não pode o denuncianteencerrar o processo sob o fundamento dequerer retirar a sua denúncia. O processodisciplinar é indisponível, sendo apenas oimpulso inicial exclusivo das pessoas arro-ladas no regimento do parlamento. A me-lhor analogia é com a ação penal pública ecom a ação direta de inconstitucionalidade.

O poder de expulsar um membro não estáreduzido a ofensas cometidas durante a ses-são parlamentar (ou durante a legislatura)14,mas se estende a todos os casos nos quais aofensa é tamanha que, a juízo da casa legis-lativa, desapropria-o de seus deveres parla-

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mentares15. A imposição de decoro parla-mentar é uma defesa do parlamento, razãopela qual a condição de parlamentar é a queimporta, não a temporariedade ou qualida-de do ato tido como indecoroso.

Tal poder não é uma exclusividade bra-sileira. Com maior ou menor diferença, ou-tras Constituições também o prevêem. Porexemplo, na Constituição norte-americana(art. I, seção 5, cláusula 2), o comportamen-to incompatível com o decoro parlamentar échamado de comportamento desregrado –disorderly behaviour; na Constituição argen-tina (1994), o artigo 66 fala em desorden deconducta; a Constituição Finlandesa (seção28) preceitua negligência essencial e reite-rada (essentially and repeatedly neglects) deseus deveres como parlamentar ou por acu-sação que demonstre a ausência de confi-ança e respeito necessários às funções ine-rentes ao cargo (“If the offence is such thatthe accused does not command the trust andrespect necessary for the office of a Repre-sentative”).

O decoro parlamentar, em uma acepçãonão normativa, pode ser entendido comoprática de atos que ferem a imagem do Parla-mento, como violação de regras e menti-ra. Segundo os léxicos, decoro significacorreção moral, compostura, decência,dignidade, nobreza, honradez, brio (DE-CORO, 1999, p. 611; DECORO, 2001, p.922).

No entanto, essa concepção léxica doconceito de decoro não serve bem à Consti-tuição, porque houve uma alteração normativana fisionomia do decoro parlamentar. Confor-me se verá, era um conceito indeterminadonas Constituições brasileiras até a Consti-tuição de 1967. A partir da CF/69, foi alte-rada a sua natureza para imprimir-lhe o ca-ráter de puro conceito legal, deixando-o me-nos indeterminado, muito embora tenha quese balizar ao limite semântico da expressão,ou seja, não se admite que qualquer ato sejatido por indecoroso, mas tão-somente aque-les que demonstrem um conteúdo mínimode desonra ou descompostura.

6.1. O decoro parlamentar como umconceito indeterminado (CF/67 e de 1946)

As Constituições de 1946 e de 1967 dis-punham sobre a perda do mandato por con-duta incompatível com o decoro parlamen-tar de maneira genérica. Dizia o artigo 48, §2o, da CF/46: “Perderá, igualmente, o man-dato o Deputado ou Senador cujo procedi-mento seja reputado, pelo voto de dois ter-ços dos membros de sua Câmara, incompa-tível com o decoro parlamentar.” Por suavez, o artigo 37, II, da CF/67: “Perde o man-dato o Deputado ou Senador: (...) II – cujoprocedimento for declarado incompatívelcom o decoro parlamentar;”.

Ambas não definiram o que se entende-ria por decoro parlamentar, deixando umaampla margem de discrição ao Legislativosobre a extensão da expressão. Como osvocábulos da Constituição têm conteúdosemântico mínimo, o que se tinha – e aindase tem, embora com o plus da tipicidade –era uma definição de decoro parlamentarcomo exposta por Manoel GonçalvesFerreira Filho (1997, p. 330): “Entende-se poratentatório ao decoro parlamentar a condu-ta que fira os padrões elevados da morali-dade, necessários ao prestígio do mandato,à dignidade do Parlamento.” Celso Bastos(1999, p. 243), por sua vez, doutrina: “O par-lamentar deve ter conduta impecável, con-dizente com o prestígio da função que de-sempenha. O comportamento incompatíveldo congressista com os padrões éticos exi-gidos pela dignidade do Parlamento é cau-sa bastante para a perda do mandato.”

Nesse quadro normativo, pode até pare-cer razoável que o STF se esquive de anali-sar a ocorrência ou não do decoro parla-mentar por dizer que isso é uma questãopolítica. Quem teria que dizer o que se en-tende por decoro seria a própria casa legis-lativa ofendida, não outro poder. Emboratal concepção infirmasse a força normativada Constituição e ignorasse a doutrina dasindicabilidade dos atos políticos quandoem jogo direitos subjetivos, ela não agredia

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tão diretamente a Constituição quanto a suaaplicação agride hoje.

De qualquer maneira, frise-se que, se porum lado os conceitos indeterminados têmum núcleo mínimo de significado que nãopode ser desprezado, por outro não se estáperante uma political question quando se temtexto constitucional expresso que a resolvae a decisão não pertença ao eleitorado comoum todo ou exclusivamente aos poderesexecutivo ou legislativo (CASTRO, 1999,p. 60; COELHO, 2004, p. 369; TRIBE, 2000,p. 367).

6.2. O decoro parlamentar como umconceito não tão indeterminado (CF/69e de 1988): tipicidade constitucional

Com o advento da EC 1/69, a situaçãonormativa do decoro parlamentar foi modi-ficada. Dispunha o artigo 35 da CF/69:

“Perderá o mandato o deputado ousenador:(...) II – cujo procedimento for declara-do incompatível com o decoro parla-mentar ou atentatório das instituiçõesvigentes; (...)§ 1o Além de outros casos definidosno Regimento Interno, considerar-se-á incompatível com o decoro parla-mentar o abuso das prerrogativas as-seguradas aos congressistas ou a re-cepção, no exercício do mandato, devantagens ilícitas ou imorais.”

Cristalino é o fato de que a previsão cons-titucional (de 1969) dos atos incompatíveiscom o decoro parlamentar era tipificada.Havia previsões de três tipos – expressãoemprestada do direito penal – para os atosatentatórios ao decoro parlamentar.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1972,p. 230) afirmava que a CF/69 “restringiu oâmbito do decoro parlamentar. De fato, àluz deste parágrafo [§ 1o do art. 35], cumpreafirmar que não há infração ao decoro par-lamentar apta a ensejar a perda do manda-to, senão quando configurar ação ou omis-são descrita como tal, na Constituição ouno regimento interno. Adotou-se, pois,

aqui, o rígido princípio da legalidadecriminal”.

Na Constituição de 1988, manteve-se atipificação constitucional do decoro parla-mentar. Em seu artigo 55, § 1o, preceituaser incompatível com o decoro parlamen-tar, além dos casos definidos no regimen-to interno, o abuso das prerrogativasasseguradas a membro do CongressoNacional ou a percepção de vantagensindevidas16.

Percebe-se que existem três hipóteses cons-titucionais de quebra de decoro parlamentar:

(i) os casos previstos no regimento (amais ampla de todas);

(ii) o abuso das prerrogativas assegura-das a membro do Congresso Nacional, As-sembléias Legislativas e Câmaras de Verea-dores; e

(iii) percepção de vantagens indevidas.Quando a acusação do comportamento

incompatível com o decoro parlamentar,seja no Senado, seja na Câmara dos Depu-tados, for formalizada, é preciso que ela, sobpena de ofensa à Constituição, descreva con-duta prescrita em uma daquelas três hipó-teses constitucionais. A maior amplitudeacusatória certamente residirá nos regimen-tos internos e nos seus respectivos códi-gos de ética e decoro parlamentar (comono caso da Câmara dos Deputados, queinstituiu o Código de Ética e Decoro Par-lamentar como uma extensão do seu regi-mento interno)17.

Embora a Constituição exija uma tipifi-cação dos atos indecorosos nos regimentosinternos, o decoro parlamentar continua re-lativamente indeterminado em face da car-ga axiológica que ainda se pode nele inserire da descrição aberta do tipo previsto no re-gimento. Carla Costa Teixeira (1996, p. 124)explica a razão da maior indeterminação dodecoro: “O decoro parlamentar, como umcódigo de honra, precisa se referir aos valo-res de uma época e de um grupo. Vem daísua necessária imprecisão, sua naturezaavessa à plena tradução em atos especifica-dos juridicamente.”

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O abuso das prerrogativas asseguradasa membro do Congresso Nacional seria oequivalente a abusar das imunidades ou-torgadas ao parlamentar para o bom eindependente desempenho de seu cargo(BASTOS, 1999, p. 243). Ressalve-se queo exercício das imunidades não pertencetão subjetivamente ao próprio parlamen-to, podendo ser controlado se o parlamen-to não extrapolou na qualificação de in-decoroso do regular exercício das imuni-dades.

Precisa a advertência de Miguel Reale(1969, p. 88): “Grave risco cercearia o regi-me democrático se ‘faltar ao decoro parla-mentar’ viesse a significar, também, preten-sos excessos praticados pelo parlamentarno exercício de seu dever de crítica e de fis-calização dos negócios públicos, a começarpelos da própria Casa a que pertence.” Nãohá que se falar em ato interna corporis, sendoperfeitamente admitido o controle judicialsobre o eventual abuso, como admitiram oTribunal de Justiça do Rio Grande do Sul18 ea Suprema Corte norte-americana, que, nojulgamento Bond vs. Floyd (1966), decidiu quea cassação do parlamentar por criticar a po-lítica do governo federal em relação à Guer-ra do Vietnã era inconstitucional por violara liberdade de expressão, prevista na pri-meira emenda à Constituição norte-ameri-cana19.

A percepção de vantagens indevidaspode ser definida como qualquer benefícioque o parlamentar receba, seja de particula-res, seja do próprio Estado por meio de seusórgãos, sem título legítimo. A legitimidadeda vantagem deverá ser aferida formal esubstancialmente, sendo possível provar talilegitimidade pela via indiciária (desde queseja um feixe de indícios convergentes). Nãose exige mais a contemporaneidade da per-cepção da vantagem indevida com o man-dato, como ocorria com o regime constituci-onal de 1969. Vantagens indevidas auferi-das antes do mandato ou fora dele são ca-pazes de violar o decoro parlamentar, au-torizando a cassação do mandato.

6.2.1. A questão do quórum de cassaçãocomo corolário da menor indeterminação

do conceito de decoro parlamentar

Reforça a tese de que houve uma consci-ente tipificação constitucional dos atos ti-dos como incompatíveis com o decoro par-lamentar a questão do quórum de cassaçãodo mandato.

Na Constituição dos EUA, a inserção doquórum de 2/3 dos votos dos parlamenta-res ocorreu porque havia um receio de queas paixões políticas levassem grupos majo-ritários a cassarem colegas também eleitospelo povo por motivos outros que não fosseo comportamento desregrado. Por isso,inspirados no sistema estadunidense(MAXIMILIANO, 1954, p. 75; REALE, 1969,p. 90-91), copiamos o seu quórum e o ca-ráter aberto do conceito de decoro (“deco-ro parlamentar” aqui e “comportamentodesregrado” lá) nas Cartas de 1946 e de1967.

Quanto maior a indeterminação do con-ceito que autoriza a perda do mandato, maiselevado é o quórum para proteger a repre-sentação cristalizada no mandato dos ca-prichos da maioria. Isso não ocorre apenasna Constituição dos EUA, está presente naMagna Carta Finlandesa também. NestaConstituição, na seção 28, há duas previ-sões abertas: a primeira consistente na ne-gligência essencial e reiterada dos deveresde parlamentar (3), a segunda na acusaçãopor fato que demonstre a ausência de confi-ança e respeito necessários às funções ine-rentes ao cargo (4). Em ambos os casos, oquórum de cassação é de maioria qualifica-da (2/3).

Com a tipificação constitucional dos atosindecorosos promovida pela Constituição de1969 e seguida pela de 1988, a possibilida-de de que paixões políticas no processo decassação influenciassem em sua conduçãodiminuiu sensivelmente, uma vez que aschances de arbítrio são remotas com um con-ceito de decoro parlamentar tipificado. Con-seqüentemente houve uma redução do quó-

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rum de cassação, que passou de 2/3 (CF/46 e 1967) para maioria absoluta (CF/69 e1988).

Em suma, defender que há incontrolávelâmbito de atuação e qualificação dos atosindecorosos aos parlamentares é interpreta-ção retrospectiva, uma vez que “procura in-terpretar o texto novo de maneira a queele não inove em nada, mas, ao revés, fiquetão parecido quanto possível com o antigo(BARROSO, 2003, p. 71)20”. No atual siste-ma normativo (desde a Carta de 1969), osatos indecorosos são constitucionalmente tipifi-cados, diminuindo o poder do parlamentopara cassar o mandato baseado no inciso IIdo artigo 55 da CF.

7. A possibilidade de controle sobre adefinição regimental dos atos indecorosos:

inexistência de atribuição de cheque embranco ao legislador regimental

Definidos os atos tidos como atentado-res ao decoro parlamentar pelo regimentointerno da casa legislativa, poderiam essesser controlados pelo Judiciário? A questãoé relevante porque esse é o único caso emque a Magna Carta delega a tarefa de defi-nir os procedimentos incompatíveis com odecoro parlamentar ao regimento, de modoque, pela amplitude de tal delegação, a casalegislativa facilmente pode extrapolar seupoder delegado e prever atos manifestamen-te não-indecorosos como ofensivos ao deco-ro parlamentar.

As palavras da Constituição têm que terum significado mínimo, sob pena de menos-prezo a sua força normativa. Quando a CF/88 fala em decoro parlamentar, ainda queremeta a sua definição ao regimento, não ofaz de forma ilimitada, não passa um chequeem branco ao legislador regimental. Ainda quehaja amplitude na definição dos atos incom-patíveis com o decoro parlamentar, não hácomo ignorar o conteúdo mínimo da expres-são como algo que minimamente fira a dig-nidade, a imagem, a respeitabilidade do par-lamento, sob pena de transformar-se a cas-

sação pela quebra de decoro em uma des-culpa para revogar mandatos legitimamen-te conferidos pelo povo.

A teoria do cheque em branco ignora aforça normativa dos vocábulos constitucio-nais, uma vez que o decoro parlamentar nãopode ser encarado como uma desculpa qual-quer para cassar o mandato parlamentarpela maioria; tal proceder compactua com aonipotência da maioria e com o arbítrio, vi-olando diversos corolários do princípio de-mocrático: proteção das minorias contra amaioria (TOCQUEVILLE, 1998, p. 289-305),contenção do arbítrio estatal21 e preserva-ção da representação, cristalizada no man-dato outorgado pelo povo.

O mandato dado pelo povo não pode serusurpado pela maioria parlamentar sem queestejam presentes as hipóteses constitucio-nais, o que não significa que o parlamentodeva se intimidar com a gravidade dapena a ser aplicada. Por isso, faz-se ne-cessário delimitar o conceito de decoropara que o regimento interno não prevejaatos indecorosos que manifestamente nãoo são.

Celso Bastos (1999, p. 236) aduz que oconceito de decoro parlamentar não é tãoamplo que abarque qualquer forma de imo-ralidade, mas tão-somente aquela que aten-te contra o prestígio do parlamento. São suasas palavras:

“O que parece certo é que o consti-tuinte não quis encampar toda e qual-quer forma de moralidade, mas ape-nas aquela cuja lesão possa deporcontra o decoro parlamentar, ou seja,contra a nobreza, a dignidade, cujadegradação possa influir no próprioconceito do Parlamento. Por isso, Nel-son de Souza Sampaio refere-se aodecoro como uma moralidade exteri-or ou expressão externa da honradezou auto-respeito. Não se trata de coi-sas que se passam no foro íntimo decada um, mas de comportamentos, deatitudes que, pelo seu caráter incom-patível com o bom proceder de um

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parlamentar, acabam por deporcontra a própria reputação da insti-tuição.”22

Rubem Nogueira (1993, p. 354) tem en-tendimento semelhante ao dizer que não équalquer ato contrário à moral (ou ética) queautoriza a cassação do mandato parlamen-tar, mas o declarado incompatível com odecoro parlamentar.

Esse entendimento fica bem evidente emantigo pronunciamento do STF (RMS 2.319),da lavra do Min. Nelson Hungria (BRA-SIL, 1954, grifo nosso), que, após realçara sindicabilidade judicial da cassação porquebra de decoro parlamentar, negandoseu caráter puramente discricionário23,expôs:

“Não é exato que o reconhecimen-to dessa incompatibilidade atende acritério meramente subjetivo. Admiti-lo valeria por admitir, obliquamente,o arbítrio que a Constituição e a leiordinária repelem.

Não fica ao puro capricho da CâmaraLegislativa esse reconhecimento, pois, deoutro modo, qualquer atitude de um deseus membros, por mais alheia ao decoroparlamentar, poderia ser consideradaofensiva deste, com a mais intoleráveldesgarantia à função de representantedo povo.

O critério de apreciação há de ser,necessariamente, objetivo, isto é, ten-do por base ‘id quod plerumqueaccidit’.

A ofensa ao decoro parlamentar háde ser reconhecível segundo a opiniãogeral.” (BRASIL, 1954, p. 891, grifonosso).

Se essas afirmações deram-se em face daCF/46, quando o conceito de decoro era in-determinado, com tanto mais razão e demaneira mais rigorosa deve ser aplicável aoconceito de decoro parlamentar da CF/88,que agora é determinado, tipificado pelaMagna Carta.

Deduz-se, dessa forma, que o ato inde-coroso tem que ser imoral e ofender a digni-

dade do parlamento. Em regra, ninguémmelhor do que o próprio Parlamento parasaber quais os atos imorais que ofendem oseu decoro; por isso a delegação ao regimen-to interno. No entanto, tal poder tem limitesno conteúdo semântico mínimo da expres-são decoro parlamentar. Se a previsão regi-mental estiver em desacordo com o signifi-cado mínimo do decoro, ou seja, o ato mani-festamente não for indecoroso, o Judiciáriopode anular o processo de cassação, con-trolando a constitucionalidade do regimen-to interno de forma incidental (que não im-possibilita, antes recomenda, o controle con-centrado).

8. Os limites da sindicabilidadejurisdicional do processo de cassação de

mandato no direito constitucionalbrasileiro: tipicidade e proporcionalidade

8.1. O exame da tipicidade: existênciados fatos e correta qualificação normativa

Em regra, o Judiciário não pode dizer setal ato é ou não ofensivo ao decoro parla-mentar, exceto e excepcionalmente se o atonão estiver enquadrado em uma das trêshipóteses constitucionais ou ele estiver forado conteúdo semântico mínimo da expres-são constitucional decoro parlamentar. Estarfora do conteúdo semântico mínimo da ex-pressão também é uma afronta à tipicidadeporque pune ato que a Constituição nãoautoriza, já que ela não passou um chequeem branco ao parlamento na interpretaçãodas duas condutas constitucionais que ca-racterizam os atos incompatíveis com o de-coro parlamentar ou na previsão de outrasno regimento.

A tipicidade dos atos indecorosos exigeque, mais do que o enquadramento em al-guma das hipóteses constitucionais, ela efe-tivamente deva ocorrer no mundo dos fatos.Não estão imunes ao controle os atos de cas-sação fundados em motivos inexistentes ouos que, embora fundados em motivos exis-tentes, foram erroneamente qualificados.

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Pensar diferente poderia levar à cassa-ção de mandato não somente por atos ine-xistentes como por atos que não se enqua-drariam em nenhuma das hipóteses consti-tucionais (acusação de um fato e qualifica-ção por outro), o que se revela arbitrário,negando a essência do Estado de direito eabalando exatamente o fundamento das ins-tituições que o parlamento alega defenderao proceder a cassação de mandato por que-bra de decoro.

O parlamento não é tão senhor de si as-sim; não pode escolher quem permanece equem vai ser cassado. Admitir isso serianegar o poder investido ao parlamentar pe-los votos populares e ser conivente com per-seguições políticas às minorias ou a desafe-tos da maioria parlamentar.

Não há como negar que o primeiro re-quisito para a instauração de um processode cassação de mandato por quebra de de-coro “é a existência de um ato que, por suanatureza, possa configurar, objetivamente,uma infração a um dever político determi-nado: quando não há qualquer correspon-dência lógica entre o supedâneo fático (paraempregarmos expressões de Pontes de Mi-randa) e a norma constitucional invocada,o que surge, sob a aparência de um proces-so, é o abuso ou desvio de poder, como de-corrência do puro querer da maioria.”(REALE, 1969, p. 91)

8.2. O controle da proporcionalidadedo ato de expulsão

Quanto à proporcionalidade da puni-ção, o tema é mais delicado. Poderia o Judi-ciário medir a graduação da pena discipli-nar imposta ao parlamentar? Em outraspalavras, poderia entender o Judiciário quea pena de expulsão já imposta ou a ser im-posta é desproporcional à conduta do par-lamentar e anulá-la, ou o processo, ou mes-mo substituí-la?

O controle da proporcionalidade é, emregra, vedado ao Judiciário. Embora a nos-sa Suprema Corte admita o controle da pro-porcionalidade das punições disciplinares

dos servidores públicos (BRASIL, 2005b, p.13), a punição na esfera parlamentar é umpouco mais delicada. Os padrões puniti-vos de reprovabilidade são carregados deintensa paixão e sensibilidade política, con-tendo grande carga axiológica, constituin-do área em que o Judiciário normalmentenão tem a sensibilidade necessária paradosar a pena. Somente em casos excepci-onais deve o Judiciário se ingerir na cor-reção da intensidade da punição parla-mentar.

Nessas hipóteses excepcionalíssimas, oJudiciário não deve substituir a pena apli-cada pelo parlamento, mas declará-la des-proporcional, determinando que a autori-dade competente aplique outra que sejamenos grave (BRASIL, 2000c, p. 293).

9. O ato indecoroso e o crime: incisosII e VI do artigo 55 da CF/88

O fato indecoroso não precisa constituircrime, mas o sendo, não há óbice ao proces-so de cassação, ainda que tal fato seja objetode investigação ou processo judicial, re-vestindo, por assim dizer, uma dupla ti-picidade24.

Ives Gandra da Silva Martins (1994, p.267) – em opinião legal, frise-se – deixou-seseduzir pelo argumento de que o fato de oato tido como indecoroso ser capituladocomo crime inibiria a cassação de mandatopelo inciso II do artigo 55 da CF/88, restan-do somente a possibilidade de cassação peloinciso VI do mesmo artigo. Entendeu o ju-rista: “Se todo o ato considerado criminosofosse também tido como atentatório ao de-coro parlamentar, à evidência, o n. VI nun-ca poderia ser utilizado, na medida em quea sanção pretendida viria com a singela apli-cação do n. II.”

Não faria sentido suprimir o poder dis-ciplinar da casa legislativa exatamente noscasos mais graves, como são os crimes. Ovoto do Ministro Octavio Gallottti (BRASIL,1992b, p. 794), no MS 21.443 foi categórico aesse respeito:

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“Nem seria compreensível que, nashipóteses presumivelmente mais gra-ves de quebra de decoro (as coinci-dentes com tipos delituosos), a açãode disciplina da Câmara ficasse tolhi-da pela dependência e a espera nãosó da deliberação do Poder Judiciá-rio, como da própria iniciativa do ór-gão do Ministério Público, em se tra-tando de crime de ação pública.”

Aceitar que a existência do crime – porser causa autônoma de perda do mandato –impede a cassação por quebra de decoro alijao poder disciplinar do parlamento, confun-dindo a esfera político-disciplinar do par-lamento com a judicial. Atos indecorosospodem ter descrição parecida com a de umcrime, mas não preencher todos os seus pres-supostos porque, não raro, as acusações sãode crimes (nominalmente falando), mas osfatos se enquadram em descrições regimen-tais ou constitucionais que comumente nãotêm todos os elementos do crime. Agregue-se que, não raras vezes, pelo princípio datipicidade em matéria penal, por questõesprocessuais, por prazos prescricionais etc.,o criminoso não é condenado ou o é muitotempo após o término da legislatura. Sus-tentar que atos indecorosos não podem sercriminosos é garantir a desonra do parla-mento, deixando-o aleijado enquanto nãotransitar em julgado a condenação do pro-cesso judicial nos casos presumivelmentemais graves.

Ademais, a existência de crime não jus-tificaria a impossibilidade da perda de man-dato por quebra de decoro somente porquehá disposição específica sobre o crime comocausa autônoma.

Primeiro, porque não se sabe se o fato érealmente um crime, só quem poderá dizê-lo é o Judiciário, após processo em que fo-rem observadas as garantias inerentes aodevido processo legal, não o Legislativo. Seo fato for crime, a causa da perda é outraque não a simples quebra de decoro, embo-ra a descrição do fato seja a mesma. A qua-lificação que o Legislativo faz é diferente da

do Judiciário, embora em ambos os casoshaja observância à tipicidade (da lei penalou a da Constituição, seja direta ou indireta– regimento interno), mais intensa na searacriminal.

Em segundo lugar, o fato de o ato inde-coroso constituir crime não poderia trans-formá-lo em salvo-conduto para o parlamen-tar faltoso, deixando o parlamento indefe-so. Na interpretação das normas constitu-cionais, deve-se atentar para as exegeses queevitem o absurdo, bem como as que restrin-gem a eficácia dos preceitos constitucionais.A previsão da perda do mandato por con-denação criminal transitada em julgado tema função de proteger o parlamento – não ne-cessariamente o parlamentar – e não de pre-judicá-lo. É que, além da perda do cargopúblico ser efeito secundário, embora nãoautomático, da sentença criminal condena-tória transitada em julgado (art. 92, I, do CP),ela também suspende os direitos políticos(CF, art. 15, III), levando, se não fosse o arti-go 55, VI, à extinção do mandato do parla-mentar. Em suma, com a previsão constitu-cional, a perda não é automática, dependen-do da avaliação da casa parlamentar em umjuízo político (processo de cassação) paraaveriguar eventuais danos à imagem da ins-tituição.

9.1. A influência da esfera penal na parlamentar

Ao Legislativo interessa a prova do fatofeita perante ele, que não se confunde com asua prova ou qualificação judiciária. Inilu-divelmente há uma independência das es-feras cíveis, criminais e político-disciplina-res.

Sabe-se que o julgamento da esfera pe-nal, quando absolve por inexistência do fatoou da autoria (o que não se confunde com aausência de provas sobre eles), impossibili-ta a ação cível ex delicto, bem como eventualpunição disciplinar dos servidores públi-cos. Essa relação da jurisdição penal com acível influenciaria a esfera parlamentarquando a sentença criminal reconhecesse ainexistência do fato ou da autoria?

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Acredita-se que sim. Se na esfera dis-ciplinar do Poder Executivo essa influên-cia existe25, não haveria motivos para queela não existisse na punição disciplinarparlamentar, que tem natureza político-disciplinar (BRADLEY; EWING, 2003, p.220; CAVALCANTI, 1952, p. 59; MORA-ES, 2005, p. 416). Essa natureza política,agregada à disciplinar, não é uma pala-vra mágica para imunizar o juízo políti-co. Alegar a separação de poderes seriaargumento frágil porque no Executivo, queé tão Poder quanto o Legislativo, o STFreconhece a influência da jurisdiçãocriminal.

Obviamente, essa influência somenteadvirá com o trânsito em julgado da deci-são ou quando ela sair da esfera ordinária,indo para a especial. Assim não fosse, umaabsolvição de um juiz de primeiro grau bas-taria. De qualquer modo, o magistrado de-verá ser cauteloso para ordenar – em pro-cesso próprio, não no criminal – a reinte-gração do parlamentar cassado pelo reco-nhecimento na sentença penal da inexistên-cia do fato ou da autoria antes do trânsitoem julgado. Embora haja perigo na demorapara o parlamentar cassado, que não pode-rá assumir o cargo em virtude da cassação,também o há para o parlamento, cuja ima-gem continuará conspurcada e que não po-derá processá-lo novamente, ficando inertee esperando o resultado dos longos e prote-latórios recursos da esfera criminal (quepodem até caminhar para a prescrição). Aanálise, no processo administrativo ou ju-dicial em que o parlamentar tentará a rein-tegração, dos motivos da absolvição no pro-cesso penal deve ser substancialmente críti-ca, evitando a sacralização do título abso-lutório penal que pode acabar absolvendopor uma causa do artigo 366 do CPP e escre-vendo outra.

Efeito importante reside no cancelamen-to da inelegibilidade de oito anos estabele-cida pela LC 64/90 (art. 1o, I, b), podendo talcancelamento ocorrer por declaração da Jus-tiça Eleitoral.

10. A ratio essendi da quebra dedecoro parlamentar e a inexistência doprincípio da contemporaneidade: atospré-mandato e os praticados fora dafunção parlamentar (art. 56 da CF)Estabelecida a premissa de que o ato de

cassação é sindicável – com limites – peloJudiciário e que os atos indecorosos preci-sam se amoldar a uma das três hipótesesconstitucionais de quebra de decoro parla-mentar, investigue-se a possibilidade dacassação do mandato por quebra de decoroparlamentar quando o ato praticado prece-de ao mandato ou foi praticado pelo parla-mentar afastado em uma das hipóteses doartigo 56 da CF/88.

Embora o TJSC tenha decidido (em casode cassação de mandato de vereador) que acontemporaneidade entre os atos indecoro-sos com a legislatura em curso do mandatoque se quer cassar deve existir, impossibili-tando a cassação por ato anterior26, ela nãoexiste. Não se exige a contemporaneidade do atoindecoroso com o mandato a ser cassado. A elei-ção não é uma borracha que expia os peca-dos do passado ou a sua potencialidade le-siva à imagem do parlamento.

Nos autos do MS 23.388, as informaçõesdo Presidente da Câmara dos Deputadossão esclarecedoras a esse respeito:

“28. Dúvida inexiste, pois, que aquebra de decoro parlamentar afetadireta e imediatamente às Casas Le-gislativas, transferindo a má imagemdo congressista indecoroso à própriainstituição que integra.

(...) e o bem jurídico tutelado é aboa imagem ou, mesmo, a credibilida-de que o Parlamento deve ter perantea Nação, como condição primeirapara o eficaz exercício de suas fun-ções institucionais.

30. Em assim sendo, consideran-do que a manutenção da imagem doPoder Legislativo não pode se ater acritérios exclusivamente cronológicos,ligados à duração das legislaturas,

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pois a instituição parlamentar é per-manente, tem-se também que o expur-go dos maus congressistas que cons-purcam sua imagem não deve se limitarà coexistência entre a prática dos atos inde-corosos e o momento em que o poder censó-rio da instituição faz operar seus efeitos.

31. Destarte, nada obsta que De-putado, autor de atos atentatórios aodecoro parlamentar em determinadalegislatura, possa responder a proce-dimento disciplinar destinado à per-da de seu mandato em legislatura sub-seqüente, para a qual se restringiu; istoporque o dano à imagem do corpo legisla-tivo, de ter no seu seio autor de fato inde-coroso, persiste íntegro, independente dalegislatura em que foi praticado aqueleato.” (BRASIL, 2001b, p. 105)

Esse entendimento também foi acatadopor unanimidade pelo Supremo TribunalFederal (BRASIL, 2001b, p. 209):

“(...) Sustenta-se que a cassação domandato, para nova legislatura, ficarestrita à hipótese de, no curso dessalegislatura, se verificarem condutas,dela contemporâneas, capituláveiscomo atentatórias do decoro parla-mentar. (...) 6. Tese invocada, acercada inexistência de contemporaneida-de entre o fato típico e a competênciada atual legislatura, que se rejeita.”27

O rechaço da tese da contemporaneida-de torna admissível, em nosso sistema jurí-dico, a cassação de mandato por ato inde-coroso praticado antes da legislatura emquestão, ainda que o parlamentar não o te-nha praticado nessa qualidade, ou seja, ain-da que ele estivesse licenciado do parlamen-to ou não fosse um parlamentar.

10.1. A revogação da Súmula 4 doSTF e a possibilidade de se cassar o

parlamentar afastado para o exercíciode cargos executivos (CF, art. 56)

Argumento de certa forma superado peloitem anterior, mas que parece ter certa auto-nomia (lá, atos pré-mandato, aqui, atos fora

do mandato, da função parlamentar) e, ipsofacto, merece ser refutado separadamente, éo de que não há possibilidade de cassar omandato do parlamentar por atos que pra-ticou quando assumiu cargos do Executivo,nos termos do artigo 56 da CF. Aduz-se que,por serem atos praticados na condição desecretário ou ministro de Estado, eles nãopoderiam ser tidos em conta para a quebrade decoro parlamentar, uma vez que o par-lamentar não exercia as funções de parla-mentar.

Ademais, a revogação da Súmula 4 doSTF vem reforçar tal entendimento, na me-dida em que prevê: “Não perde a imunida-de parlamentar o congressista nomeadoministro de Estado.” No Inquérito 104, elafoi revogada sob o argumento de que o par-lamentar investido da função de Ministrode Estado não perde o mandato, porém nãopode invocar a prerrogativa da imunidade– material ou processual – pelo cometimen-to de crime no exercício da nova função(BRASIL, 1982, p. 477).

O argumento da revogação da Súmula 4do STF pode ser assim resumido: se o parla-mentar não pode invocar a imunidade, éporque não estaria ao abrigo do regime par-lamentar constitucional, não podendo, con-seqüentemente, faltar com o decoro parla-mentar, parte integrante desse regime. Comose não fosse suficiente, punir por quebra dedecoro o parlamentar investido em funçõesexecutivas quebraria o equilíbrio entre ospoderes, ferindo a cláusula da separação depoderes (CF, art. 2o).

O argumento peca pela ausência de con-sistência, porque é somente o regime dasimunidades o que não se aplica ao que estáafastado do cargo de parlamentar para as-sumir funções executivas por ausência doexercício do mandato. A revogação da Sú-mula 4 do STF reconhece somente isso: semexercício do mandato, sem imunidade. Aausência de proteção penal não significa queo parlamento perdeu o poder disciplinarsobre o membro licenciado em termos de de-coro ou, em última instância, que o parlamen-

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to não poderia ter a sua respeitabilidade ma-culada pelo membro licenciado ou afastado.

O fundamento do poder punitivo poratos incompatíveis com o decoro parlamen-tar está na maculação que o comportamen-to do parlamentar causa ou pode causar àdignidade da instituição parlamentar. Pou-co importa se o parlamentar está ou não exer-cendo o mandato, estando afastado paraassumir algum cargo executivo, em licença-saúde ou para tratar de interesse particular.A dignidade do parlamento pode ser macu-lada de qualquer maneira enquanto o par-lamentar for um de seus membros, ainda queesteja afastado ou licenciado (CF, art. 56).Lapidares as palavras de Carla Teixeira(1996, p. 113):

“Na identidade parlamentar, oanonimato inexiste, seja enquanto ide-al ou prática, pois a valorização dosujeito se dá a partir do seu pertenci-mento ao corpo de parlamentares; apretensão/reconhecimento de umaimagem (prestígio e dignidade) é fun-damental no desempenho de sua fun-ção; a condição de deputado federalintegra todas as demais inserções so-ciais do sujeito (...) Pois é imprescin-dível à honra/decoro parlamentarque o sujeito tenha uma conduta dig-na em todas as circunstâncias da vidacotidiana: nas obrigações como pai,marido, filho, empresário/trabalha-dor, contribuinte e, por fim, represen-tante político. Não é possível postu-lar meia honra – em apenas uma esfe-ra social –, pois a honra rejeita a frag-mentação do sujeito; a honra é sem-pre pessoal.”

Admitir que o afastamento para assumirfunções executivas exime o parlamentar dese comportar com decoro seria negar a pró-pria condição de parlamentar, fato inocor-rente, uma vez que a Constituição fala emafastamento e não em renúncia do mandatoou aposentadoria compulsória.

O argumento do STF é claro: se os atosnão foram praticados no exercício do man-

dato (que ainda existe), então não autori-zam a imunidade parlamentar constitucio-nal, que só serve para quem está exercendoas funções de parlamentar. Quem está noExecutivo não exerce as funções de parla-mentar, mas não perde o mandato, poden-do ferir o decoro do parlamento, uma vezque ainda está vinculado ao parlamento.Não há que se confundir a imunidade como poder disciplinar do parlamento.

Argumento que deve ser visto com cui-dado é o risco de haver uma ingerência doPoder Legislativo, por meio do processo decassação do mandato, na política do Execu-tivo, ferindo a separação de poderes. Nãoexiste a alegada interferência, uma vez quea política do Executivo estará a salvo, nãohavendo como o parlamento influenciar nis-so. Se o parlamentar for cassado, a pena nãoatingirá o cargo executivo, uma vez que acominação de inelegibilidade não alcançacargos de confiança – cargos não elegíveispor natureza. O Executivo continuará como seu ministro ou secretário, se quiser, nãohavendo nenhuma interferência entre ospoderes da República.

A Administração Federal é exercida peloPresidente, sendo somente auxiliada pelosministros, não havendo que se falar em in-gerência em outro poder (CF, art. 84, II), prin-cipalmente atentando que, embora a nome-ação seja prerrogativa do Presidente da Re-pública, na prática, ela é dividida com mem-bros do Poder Executivo, legisladores, juí-zes e com representantes do setor privado,como bem observa Louis Fisher no presiden-cialismo norte-americano (FISHER, 1997, p.22)28. Não menos verdadeiro é que, aindaque houvesse alguma ingerência, essa seriamínima e perfeitamente afinada com a se-paração de poderes na medida em que certainterferência entre os poderes faz parte dosistema de check and balances29.

Essa situação não se alteraria se os atosindecorosos praticados pelo Ministro deEstado fossem aqueles previstos na sua com-petência constitucional (CF, art. 87) ou in-fraconstitucional. O ato praticado nas fun-

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ções institucionais dos Ministros ou Secre-tários pode ser enquadrado como ato incom-patível com o decoro parlamentar desde queeles estejam naquele mínimo constitucionalsemântico do conceito de ato indecoroso esejam tipificados pelo regimento ou se enqua-drem em uma das hipóteses constitucionais.

As esferas cíveis, criminal e administra-tiva não se confundem porque os bens queelas protegem são distintos, exigindo formasjurídicas diferenciadas para essa tutela.Como as esferas de responsabilidade doLegislativo (quebra de decoro) e do Executi-vo (crimes de responsabilidade) são distin-tas, elas necessitam de formas diversifica-das para a sua proteção, ensejando a possi-bilidade de punição por atos que estejamelencados no artigo 87 da CF, desde que res-peitada a tipicidade constitucional dos atosindecorosos e de seu mínimo semântico. Oargumento parece levar à impossibilidadeda punição dos atos indecorosos pratica-dos no exercício dos poderes conferidos aosMinistros ou Secretários de Estado por ofen-sa à separação de poderes, mas esquece oimportante: não importa com base em que oato indecoroso foi praticado, na maioria doscasos sempre haverá alguma desculpa le-gal e/ou constitucional para a sua prática,o que importa é a tipicidade e sua real lesi-vidade (ainda que potencial) ao decoro doparlamento. Certamente o Judiciário devecontrolar a tipicidade do ato (existência equalificação do fato) e a sua compatibilida-de com o mínimo semântico do conceitoconstitucional de decoro parlamentar parasaber se não há um desvio de poder na utili-zação dessa sanção disciplinar.

Por último, deixe consignado que o par-lamentar licenciado não precisa retornar àcasa legislativa para que possa ser cassadopor quebra de decoro. Ainda que licencia-do, submete-se ao processo de cassação demandato por quebra de decoro porque aimagem do parlamento continua passívelde conspurcação. Esperar o parlamentar li-cenciado retornar pode causar ainda maisdanos à imagem da instituição parlamentar.

11. A vedação da renúncia comoinstrumento de salvação da cassação

do mandato e da inelegibilidade

Por último, não se poderia deixar deabordar o § 4o do artigo 55 da ConstituiçãoFederal e o Decreto Legislativo 16/94.

Com o caso dos anões do orçamento, emque os parlamentares acusados de mano-brar o orçamento tinham o pedido de cassa-ção pronto, mas não foram cassados por-que renunciaram aos seus cargos antes davotação, o Congresso aprovou o DecretoLegislativo 16, de 24/3/1994, estabelecen-do que a renúncia do parlamentar ficariasujeita a uma condição suspensiva, só pro-duzindo efeitos se a decisão final não con-cluísse pela perda do mandato. Dispõe o seuartigo 1o:

“A renúncia de parlamentar sujei-to a investigação por qualquer órgão doPoder Legislativo ou que tenha contrasi procedimento já instaurado ou proto-colado junto à Mesa da respectiva Casa,para apuração das faltas a que se re-ferem os incisos I e II do art. 55 daConstituição Federal, fica sujeita acondição suspensiva, só produzindoefeitos se a decisão final não concluirpela perda do mandato.

Parágrafo único. Sendo a decisãofinal pela perda do mandato parla-mentar, a declaração da renúncia seráarquivada.”

Ficou evidente a intenção do legisladorde evitar que se repetisse a impunidade docaso dos anões do orçamento, protegen-do a imagem do Congresso e mantendoativo o seu poder disciplinar. Ademais,aprovou-se também uma emenda à Cons-tituição, inserindo o § 4o ao artigo 55, inverbis:

A renúncia de parlamentar subme-tido a processo que vise ou possa le-var à perda do mandato, nos termosdeste artigo, terá seus efeitos suspen-sos até as deliberações finais de quetratam os §§ 2o e 3o.

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Embora Alexandre de Moraes (2005, p.417) entenda que houve uma constitucio-nalização do Decreto Legislativo 16/94, aquestão merece maiores desenvolvimentos,porque tal decreto é mais rigoroso que a LeiMaior.

Enquanto o decreto legislativo fala em“parlamentar sujeito a investigação” ou“que tenha contra si procedimento já instau-rado ou protocolado junto à Mesa”, a Consti-tuição fala em “parlamentar submetido aprocesso que vise ou possa levar à perda domandato”. Pela Constituição, haveria a ne-cessidade de processo instaurado; pela re-dação do Decreto Legislativo, o simples pro-tocolo junto à Mesa seria suficiente. Mas oDecreto não pára por aqui: preceitua que asimples investigação por qualquer órgão do Po-der Legislativo é suficiente para suspender osefeitos da renúncia (“sujeito a investigação porqualquer órgão do Poder Legislativo”).

O que precisa ficar claro é o momento emque se inicia a suspensão do pedido de re-núncia ao mandato. Para precisar tal mo-mento, urge analisar as relações entre o De-creto Legislativo 16/94 e a Constituição. Ainserção do § 4o ao artigo 55 revogaria a nor-ma constante do Decreto Legislativo 16/94?Existe a possibilidade de ambas as normasconviverem?

A questão afigura-se fundamental por-que, se houver uma renúncia inválida e acassação se confirmar, haverá inelegibilida-de por oito anos (LC 64/90, art. 1o, I, b), pos-sibilitando ao parlamentar que renunciarpara evitar a inelegibilidade sofrer ação deimpugnação de registro de candidatura.

Preliminarmente, é preciso ressaltar quea função do Decreto Legislativo é regular asrelações internas do Congresso, motivo peloqual não precisa de sanção do Executivo.Logo, ele teria condições de determinar asuspensão da renúncia para evitar impuni-dades, acarretando a inelegibilidade nostermos da LC 64/90 (art. 1o, I, b).

Outra questão que se afigura é a relaçãoentre a Constituição e o Decreto Legislativo.Poderia o Decreto Legislativo estabelecer

norma mais restritiva que a Lei Maior, con-vivendo ambos os preceitos normativos?Acredita-se que sim. Somente seria inadmis-sível a regulamentação diferente da formaprevista na Constituição se ela quisesse es-gotar a matéria, o que não é o caso. Emboraa Emenda Constitucional seja posterior aoDecreto, não se vê elementos para dizer queela é exaustiva, fechada (numerus clausus),impossibilitando prescrições mais restriti-vas por instrumentos infraconstitucionais.A inserção do § 4o ao artigo 55 da CF tem omérito de tirar das maiorias eventuais umnúcleo duro da sistematização da matéria –a suspensão da renúncia enquanto o parla-mentar estiver submetido a processo que viseou possa levar à perda do mandato –, masnão impede a sua normatização mais restri-tiva nas esferas parlamentares federal, esta-dual e municipal.

No caso do Congresso Nacional, vale oDecreto Legislativo 16/94. Nas Assembléi-as Legislativas e nas Câmaras de Vereado-res, aplica-se o § 4o, artigo 55, da CF/88 casonão haja regulamentação diversa e mais res-tritiva, uma vez que a Constituição Federalé o limite mínimo e não máximo, podendoas casas parlamentares, fruto de sua auto-nomia, dispor de maneira mais restritiva.

Deixa-se um último questionamentoquanto à possibilidade de o parlamentar re-querer aposentadoria para escapar do pro-cesso de cassação, uma vez que a cassaçãoda aposentadoria de servidores públicos éconstitucional, ainda que os benefícios pre-videnciários assumam caráter contributivo(BRASIL, 2005a, p. 4), não havendo que sefalar em violação ao ato jurídico perfeito(BRASIL, 2002a, p. 629; 2002b, p. 161) ou auma proibição de bis in idem (BRASIL,2002a, p. 629). Se a pena disciplinar de cas-sação da aposentadoria para o servidor pú-blico será aplicada quando o inativo hou-ver praticado, na atividade, falta punívelcom a demissão (Lei 8.112/90, art. 134), é dese perguntar se não se aplicaria o mesmoregime (ainda que com fundamento unica-mente constitucional, como ocorre com o

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prosseguimento do impeachment nos EUA,mesmo depois da renúncia do Presidente)(TRIBE, 2000, p. 157-158) ao parlamentarcassado, uma vez que ele, de certa forma,também é um servidor federal, embora nacategoria agente político.

12. Conclusão

A análise judicial do processo de cassa-ção de mandatos não esbarra na insindica-bilidade da questão puramente política. Adoutrina da questão política (political ques-tion doctrine) propugna, de forma geral, queo Judiciário não pode se imiscuir em assun-tos decididos pelos outros poderes quandoa decisão é atribuída a outro poder ou aoeleitorado como um todo e não há parâme-tro constitucional. Não é, entretanto, o queocorre na cassação dos mandatos dos par-lamentares. Embora a questão seja de com-petência de outro poder (Legislativo), temclaro parâmetro constitucional: o § 1o doartigo 55 da Magna Carta. Derrubando omito de que o julgamento pelo parlamentoda qualificação de seus pares seria umaquestão política ou interna corporis, a Supre-ma Corte norte-americana (Powell vs. McComarck) entendeu inválida a desqualifica-ção de um parlamentar (Powell) pelo Con-gresso porque os motivos alegados excede-ram as possibilidades constitucionais. Em-bora o julgamento refira-se ao sistema de con-trole eleitoral chamado verificação de pode-res, no qual o próprio Legislativo cuida daregularidade das eleições, o tema refuta aaplicação da political question doctrine nosjulgamentos feitos pelo Legislativo, refutan-do a pretensa imunidade da decisão somen-te por se caracterizar um ato interna corporis.

Ademais, a doutrina – desde RuyBarbosa – e a jurisprudência do Supremosão unânimes em não reconhecer a aplica-bilidade da political question doctrine quan-do em jogo lesão ou ameaça de lesão a direi-tos individuais e – acrescenta-se – coletivos.Indubitavelmente os direitos do parlamen-tar sujeito à cassação de seu mandato têm

um direito subjetivo em jogo, afastando ainsindicabilidade jurisdicional.

Por um motivo e/ou pelo outro, é perfei-tamente sindicável o processo de cassaçãode mandato por quebra de decoro parlamen-tar pelo Judiciário. O Poder Judiciário nãopode lavar as mãos quanto à análise do pro-cesso de cassação do mandato do parlamen-tar.

O decoro parlamentar não é mais umconceito tão indeterminado quanto nasConstituições de 1967 e de 1946, quando eraum puro conceito indeterminado, uma vezque elas somente falavam em decoro par-lamentar, não dando mais nenhuma balizapara a descoberta do conceito, deixandoamplíssima margem de liberdade aoLegislativo. No entanto, nas Constituiçõesde 1969 e na de 1988, o conceito de decorosofreu uma mutação normativa; ficou maispreciso, sendo constitucionalmente tipifica-do. Essas Constituições definiram o que seentenderia por quebra de decoro. O atual §1o do artigo 55 da Lei Maior preceitua queos atos incompatíveis com o decoro parla-mentar são aqueles que: (i) são definidos noregimento, (ii) abusam das prerrogativas as-seguradas a membro do Congresso Nacio-nal ou (iii) consistem em percepção de van-tagens indevidas.

O atual sistema normativo preceitua queo decoro parlamentar tem que estar definidono regimento ou consistir em atos caracteri-zadores de abuso das prerrogativas asse-guradas aos parlamentares ou em percep-ção de vantagens indevidas, aquelas quecontrariam o direito. Sem a subsunção doato tido como incompatível com o decoroparlamentar às definições constitucionais,ainda que indireta, no caso da previsão re-gimental, impossível a cassação de qualquerparlamentar sob a luz do inciso II do artigo55 da CF/88. Existe, dessa forma, uma tipi-cidade constitucional dos atos indecorososperfeitamente controlável pelo Judiciário.

Por sua abrangência praticamente ilimi-tada, faz-se necessário especificar a previ-são dos atos indecorosos no regimento in-

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terno da casa parlamentar. Quando a CF/88 fala em decoro parlamentar, ainda queremeta a sua definição ao regimento, não ofaz de forma ilimitada, não passa um chequeem branco ao legislador regimental. Emborahaja amplitude na definição dos atos incom-patíveis com o decoro parlamentar, não hácomo ignorar o conteúdo mínimo da expres-são como algo que minimamente fira a dig-nidade, a imagem ou a respeitabilidade doparlamento, sob pena de transformar a cas-sação pela quebra de decoro em uma des-culpa para revogar mandatos legitimamen-te conferidos pelo povo. A teoria do chequeem branco ignora a força normativa dos vo-cábulos constitucionais, uma vez que o de-coro parlamentar não pode ser encaradocomo uma desculpa qualquer para cassar omandato parlamentar pela maioria; tal pro-ceder compactua com a onipotência da mai-oria e com o arbítrio, violando diversos co-rolários do princípio democrático: proteçãodas minorias contra a maioria, contençãoao arbítrio estatal e preservação da repre-sentação do parlamentar eleito.

A tipicidade constitucional dos atos in-decorosos exige mais do que o enquadra-mento em alguma das hipóteses constituci-onais; ela efetivamente deve ocorrer no mun-do dos fatos. Não estão imunes ao controleos atos de cassação de mandato fundadosem motivos inexistentes ou os que, emborafundados em motivos existentes, foram er-roneamente qualificados. Outro controle,excepcionalíssimo, que o Judiciário podefazer é sobre a proporcionalidade do ato decassação. Tal faculdade deve ser usada commais cautela que o exame da tipicidade,porque será a sensibilidade do parlamento,certamente influenciada pelas repercussõesdo ato, que dirá se o ato típico (e existente nomundo dos fatos) deve levar ou não a cassa-ção. Nessas hipóteses excepcionalíssimas,o Judiciário não deve substituir a pena apli-cada pelo parlamento, mas declará-la des-proporcional, determinando que a autori-dade competente aplique outra que sejamenos grave.

Não existe a impossibilidade de se cas-sar um mandato por ato incompatível porquebra de decoro quando esse for um crime.Não faria sentido deixar os casos mais gra-ves de ausência de decoro condicionadosao trânsito em julgado de uma sentença cri-minal. Além da demora, há outras questõesque podem levar à absolvição do parlamen-tar, como a prescrição. Sustentar a inexis-tência da cassação por quebra de decoronesses casos é alijar o parlamento do direitode defesa de sua respeitabilidade, honra,decoro. Tal posição é inadmissível tambémporque não se sabe se o fato é realmente umcrime, embora seja enquadrado como ato in-compatível com o decoro; só quem poderádizê-lo é o Judiciário. A qualificação que oLegislativo faz é diferente da do Judiciário,ainda que em ambos os casos haja obser-vância à tipicidade: da lei penal ou a daConstituição, seja direta ou indireta – regi-mento interno. Depois, o fato de o ato inde-coroso constituir crime não poderia trans-formá-lo em salvo-conduto para o parlamen-tar faltoso, deixando o parlamento indefe-so. A previsão da perda do mandato porcondenação criminal transitada em julga-do tem a função de proteger o parlamento –não necessariamente o parlamentar – e nãode prejudicá-lo. É que, além da perda do car-go público ser efeito secundário, embora nãoautomático, da sentença criminal condena-tória transitada em julgado (art. 92, I, do CP),ela também suspende os direitos políticos(CF, art. 15, III), levando, se não fosse o arti-go 55, VI, automaticamente à extinção domandato do parlamentar. Essa cláusula evi-ta a perda automática, mantendo na esferaparlamentar a avaliação dos danos à ima-gem da instituição no juízo político que é oprocesso de cassação.

Questão relacionada ao processo crimi-nal pelo mesmo fato, ainda que a qualifica-ção dada pelo parlamento seja nominalmen-te diferente da criminal, é a da influência dojulgamento penal na esfera parlamentar.Sabe-se que a inexistência de fato ou de au-toria na esfera penal tem efeitos na esfera

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disciplinar e até mesmo na cível. A pergun-ta residiria nisso: haveria essa influência daesfera penal no disciplinar-parlamentar?Acredita-se que sim. Se a sentença penaltransitada em julgado der o fato por inexis-tente, o parlamentar cassado pode requerer,judicial ou administrativamente, a sua rein-tegração ao cargo, se isso ainda for possível,ou seja, se estiver na mesma legislatura. Ou-tro efeito seria o de cancelar a inelegibilidadede oito anos estabelecida pela LC 64/90.

Não existe o princípio da contemporanei-dade dos atos indecorosos com a legislaturaem que o parlamentar exerce seu mandato.Por esse princípio, somente os atos pratica-dos na legislatura autorizariam a cassaçãodo parlamentar; atos pré-mandato não po-deriam ser atos indecorosos para fins decassação de mandato. Felizmente, o STF (MS23.388) reconheceu a inexistência desseprincípio, que poderia prejudicar a funçãode defesa da respeitabilidade que exerce avedação de atos incompatíveis com o deco-ro parlamentar.

Desdobramento do princípio da contem-poraneidade é a possibilidade de cassaçãodos parlamentares afastados por estarem delicença prevista no artigo 56 da CF/88. Osdefensores do princípio da contemporanei-dade aduzem que os atos praticados na con-dição de secretário ou ministro de Estado,os praticados quando em licença-saúde oupara tratar de motivo particular não poderi-am ser tidos em conta para a quebra dedecoro, uma vez que o parlamentar não exer-cia as funções de membro do Legislativo.Sempre que o parlamentar estivesse licenci-ado pelos motivos elencados no artigo 56da CF/88, haveria a impossibilidade de cas-sá-lo. Usam em reforço de sua tese a revoga-ção da Súmula 4 do STF, cujo argumentopode ser assim resumido: se o parlamentarnão pode invocar a imunidade, é porquenão estaria ao abrigo do regime parlamen-tar constitucional, não podendo, conse-qüentemente, faltar com o decoro parlamen-tar, parte integrante desse regime. Haveria,ainda, violação à cláusula da separação de

poderes (CF, art. 2o) quando a punição reca-ísse sobre o parlamentar licenciado paraassumir cargos executivos.

Os argumentos pecam pela ausência deconsistência, porque é somente o regime dasimunidades que não se aplica ao que estáafastado do cargo de parlamentar para as-sumir funções executivas. A revogação daSúmula 4 do STF reconhece somente isso. Aausência de proteção penal não significa queo parlamento perdeu o poder disciplinarsobre o membro licenciado em termos dedecoro ou, em última instância, que o parla-mento não poderia ter a sua respeitabilida-de maculada pelo membro licenciado.

O fundamento do poder punitivo poratos incompatíveis com o decoro parlamen-tar está na maculação que o comportamen-to do membro causa ou pode causar à dig-nidade da instituição parlamentar. Poucoimporta se ele está ou não exercendo o man-dato, estando afastado em cumprimento aoartigo 56 da CF. A dignidade do parlamen-to pode ser maculada de qualquer maneiraenquanto o parlamentar for um de seusmembros, ainda que esteja afastado ou li-cenciado (CF, art. 56). Admitir que o afasta-mento para assumir funções executivas exi-me o parlamentar de se comportar com de-coro seria negar a própria condição de par-lamentar, fato inocorrente, uma vez que aConstituição fala em afastamento e não emrenúncia do mandato ou aposentadoriacompulsória.

O argumento do STF é claro: os atos nãoforam praticados no exercício do mandato(que ainda existe), então não autorizam aimunidade constitucional, que só serve paraquem está exercendo as funções de parla-mentar. Quem está no Executivo não exerceas funções de parlamentar, mas não perde omandato, podendo ferir o decoro do parla-mento, uma vez que ainda está a ele vincu-lado.

Argumento que deve ser visto com cui-dado é o risco de haver uma ingerência doPoder Legislativo, por meio do processo decassação do mandato, na política do

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Executivo, ferindo a separação de poderes.Não existe a alegada interferência. Se o par-lamentar for cassado, a pena não atingirá ocargo executivo, uma vez que a cominaçãode inelegibilidade não alcança cargos deconfiança.

Instigante é a relação entre o preceitoconstitucional constante no § 4o do artigo55 e o Decreto Legislativo 16/94, ambos sus-pendendo a renúncia do parlamentar atéque seja finalizado o processo de cassação.A diferença entre ambos reside no termo adquem para a suspensão da renúncia. PelaConstituição, haveria a necessidade de pro-cesso instaurado; pela redação do DecretoLegislativo, o simples protocolo junto à Mesaou a simples investigação por qualquer ór-gão do Poder Legislativo seria suficientepara suspender os efeitos da renúncia. Oconteúdo constitucional é mínimo, poden-do a casa parlamentar, no uso de sua auto-nomia, instituir maior rigor para evitar arepetição de casos como o dos anões do or-çamento, no tratamento da matéria, comofez o Decreto Legislativo 16/94 em relaçãoao Congresso Nacional. Mesmo sendo nor-ma anterior, não foi revogada pela inserçãodo § 4o do artigo 55 da CF, que teve a funçãode estabelecer um limite mínimo para toda afederação, não suprimindo a autonomia dascasas para imprimir regime que entendammais adequado às suas peculiaridades.

Notas

1 Votação obrigatoriamente secreta, desautori-zando a Constituição Estadual ou Lei Orgânica aprever a votação aberta sob pena de inconstitucio-nalidade (BRASIL, 2005b) do procedimento de vo-tação e, conseqüentemente, do de cassação do man-dato.

2 Não há definição sobre qual modalidade deperda de mandato ocorre no caso de perda dosdireitos políticos (inc. IV), mas a doutrina, correta-mente, entende que ela ocorre na modalidade extin-ção do mandato (SILVA, 2005, p. 540; BULOS,2003, p. 770). Teori Albino Zavascki (1985) defen-de que a perda também ocorre por meio da extin-ção, mas distingue esse caso da condenação crimi-

nal com trânsito em julgado, que, embora acarretea perda dos direitos políticos, é caso de cassaçãode mandato.

3 “AMPLA DEFESA – PARLAMENTAR – PER-DA DE MANDATO – REPRESENTAÇÃO PORADVOGADO NO ÂMBITO DA CÂMARA DOSDEPUTADOS OU DO SENADO FEDERAL – SUS-TENTAÇÃO DA TRIBUNA. A expressão ‘ampla de-fesa’ contida no § 2o do artigo 55 da Constituição Federalnão encerra, necessariamente, a representação do parla-mentar por profissional da advocacia, a ponto de impor,a qualquer das casas do legislativo, a admissão deste natribuna. O processo de perda de mandato não éadministrativo, nem judicial, mas político, sendoregido por normas interna corporis. Mesmo no cam-po jurisdicional, em que se tem o advogado comoindispensável à administração da justiça – artigo133, Capítulo IV, ‘Do Poder Judiciário’, da Consti-tuição Federal –, é possível encontrar recursos quenão ensejam a sustentação da tribuna, sem que,com isto, a norma restritiva possa ser tida comomerecedora da pecha de inconstitucional. Tantoquanto possível, deve ser preservada a disciplinado funcionamento dos órgãos dos Poderes daUnião, buscando-se, dessa forma, a eficácia da clá-usula constitucional que lhe é inerente – da harmo-nia e independência. A solução emprestada ao pro-cesso político de perda de mandato não obstaculi-za o acesso ao Judiciário, cuja atuação se faz, sob oângulo da legalidade, com a inestimável colabora-ção do profissional da advocacia” (BRASIL, 1993,p. 153, grifo nosso).

4 “Inviável qualquer controle sobre o julgamen-to do mérito da acusação feita ao impetrante, porprocedimento incompatível com o decoro parlamen-tar.” (BRASIL, 2001a).

5 “Mandado de segurança de que não conhece,na parte referente à qualificação do fato tido comoindecoroso.” (BRASIL, 2001c, p. 215).

6 “Não cabe, no âmbito do mandado de segu-rança, também discutir deliberação, interna corpo-ris, da Casa Legislativa. Escapa ao controle do Ju-diciário, no que concerne a seu mérito, juízo sobrefatos que se reserva, privativamente, à Casa doCongresso Nacional formulá-lo” (BRASIL, 2001b,p. 209).

7 Antes de André Gros, Jèze (apud ENTERRÍA,1995, p. 70) tinha dito que a teoria dos atos degoverno não era mais do que uma “‘sistematizaçãoda razão de Estado’: Das Verwaltungsrecht derfranzösischen Republik, 1913, pág. 448”.

8 Para uma visão geral da political question doc-trine, cf. o excelente e crítico livro de Antonio Um-berto de Souza Júnior (2004, p. 61-98).

9 Ver: Castro (1999, p. 61-63), Coelho (2004, p.373), Comparato (1997, p. 355-366), Figueiredo(2004, p. 200), Freitas (2004, p. 71), Celso Mello(2004, p. 352), Oswaldo Mello (1969, p. 417),

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Moreira Neto (1999, p. 98, 170), Oliveira (1992, p.35-37), Silva Filho (1994, p. 123-134).

10 “Nenhum dos Poderes da República está aci-ma da Constituição.” (BRASIL, 2002a, p. 20)

11 No mesmo sentido, votou o Ministro Celso deMello (BRASIL, 1999a, p. 833) no MS 21.689: “Aten-ta a esse princípio básico, a jurisprudência consti-tucional do Supremo Tribunal Federal jamais tole-rou que a invocação do caráter político das resolu-ções tomadas pelas Casas Legislativas pudesse con-figurar – naquelas estritas hipóteses de lesão aodireito de terceiros – um inaceitável manto protetorde comportamentos abusivos ou arbitrários, prati-cados à margem da Constituição”.

12 Embora as lições de Ruy (1933) sejam basea-das em doutrina norte-americana, caracterizando-se, entre outras coisas, como uma defesa do con-trole difuso de constitucionalidade, entende-se queo controle das questões políticas também é possí-vel em controle concentrado.

13 Some-se a isso a doutrina que defende que oprocesso de cassação de mandato por quebra dedecoro parlamentar é, mutatis mutandis, uma for-ma de impeachment (REALE, 1969, p. 10).

14 Thomas Cooley (2002, p. 55), em lição per-feitamente aplicável à Constituição brasileira,doutrinou: “Qualquer membro pode ser expul-so pelo seu mau comportamento, bastando re-velar-se a má conduta, quer durante as sessões,quer fora delas.”

15 Como dizia o STF, na pena do Min. NelsonHungria (BRASIL, 1954), em 1954: “... o procedi-mento que pode ser reputado incompatível com odecoro parlamentar não é só aquele que o acusadotenha tido no seio da corporação legislativa a quepertence, senão também fora dele, mas com evi-dente ricochete sobre a dignidade da corporação”.

16 “O constituinte deixou ao regimento interno aincumbência de definir os casos de conduta incom-patível com o decoro parlamentar, considerando,entretanto, o abuso das prerrogativas e a percep-ção de vantagens indevidas como incompatíveiscom o decoro parlamentar.” (FERREIRA FILHO,1999, p. 176).

17 Em nível federal, o Código de Ética e DecoroParlamentar da Câmara dos Deputados prevê al-gumas condutas em seus artigos 4o e 5o; no Senado,há uma mera repetição da Constituição em seuartigo 32, § 1o, eximindo o seu regimento interno dedefinir alguma conduta que caracterize o decoro, oque pode impossibilitar a cassação de algum man-dato por quebra de decoro por faltar a necessáriatipicidade constitucional (indireta nesse caso).

18 “Não configura também ofensa ao decoroparlamentar a crítica forte, revestida de linguagematé desmesurada contra o auto-aumento dos sub-sídios dos edis, veiculada por jornal local, mor-mente quando desvestida de dolo” (TJRS, 1a Câm.

Cível, AC 592029367, rel. Des. Celeste Vicente Ro-vani, j. em 8/9/1992).

19 Os julgadores devem ter em mente que a li-berdade de expressão do parlamentar é um deverde expressão deste, é um dever de fiscalização edenúncia no trato das questões que envolvem a respublica. Deve, por isso, ser interpretado de formagenerosa em relação à liberdade de expressão docidadão.

20 Cunhador dessa expressão, José Carlos Bar-bosa Moreira (1998, p. 152), estigmatizando a equi-vocidade dessa postura hermenêutica, aduziu:“Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véusobre as diferenças e conclui-se que, à luz daque-las, e a despeito dessas, a disciplina da matéria,afinal das contas, mudou pouco, se é que na verda-de mudou. É um tipo de interpretação a quenão ficaria mal chamar ‘retrospectiva’: o olhardo intérprete dirige-se antes ao passado que aopresente, e a imagem que ele capta é menos arepresentação da realidade que uma sombra fan-tasmagórica.”

21 “... é inquestionável que não existem poderesilimitados em qualquer estrutura institucional fun-dada em bases democráticas” (BRASIL, 2000b, p.3).

22 Propugnando pela inquirição judicial da realexistência dos motivos autorizadores da cassação,bem como se estes se enquadram na falta de éticaparlamentar, cf. Geraldo Ferreira Lanfredi (1989, p.164).

23 “Em matéria de questões de natureza políti-ca, a apreciação destas pelo poder Judiciário seimpõe independentemente de tal natureza, toda vezque envolvam a lesão de um direito subjetivo indi-vidual. Nem mais se controverte a respeito, nota-damente em face do nosso vigente Direito Consti-tucional, que já não repete, por ocioso ou propicia-dor de confusões, o princípio da inacessibilidadedas ‘questões exclusivamente políticas’ à órbita decompetência do Poder Judiciário. Na espécie, a pró-pria exigência legal do ‘motivo’ de incompatibili-dade do procedimento do senador, deputado ouvereador com o decoro parlamentar está a eviden-ciar que não se trata de ato puramente arbitrário,nem mesmo apenas discricionário” (BRASIL, 1954,p. 891).

24 “Cassação de mandato de parlamentar (art.55, II, da Constituição Federal). Ato disciplinar dacompetência privativa da Câmara respectiva, situ-ado em instância distinta da judiciária e dotado denatureza diversa da sanção penal, mesmo quandoa conduta imputada ao deputado coincida comtipo estabelecido no Código Penal. Pedido indeferi-do” (BRASIL, 1992b, p. 791).

25 “RESPONSABILIDADES ADMINISTRATI-VA E PENAL – INDEPENDÊNCIA. A jurispru-dência sedimentada do Supremo Tribunal Federal

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é no sentido da independência das responsabilida-des administrativa e penal. A exceção corre à contade situação concreta em que, no campo penal, ha-jam ficado patenteadas a inexistência da materiali-dade ou a negativa de autoria” (BRASIL, 1997, p.49230).

26 “MANDADO DE SEGURANÇA. VEREA-DOR CASSADO POR INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA (ART. 7o, I, DO DECRETO No

201/67). ACUSAÇÃO DE PRÁTICA DE IRRE-GULARIDADES NA LEGISLATURA AN-TERIOR. INCOMUNICABILIDADE. MANDA-TOS ELETIVOS ESTANQUES. DECRETO LEGIS-LATIVO DECLARADO NULO. RESTABELECI-MENTO DO MANDATO CASSADO. ORDEMCONCEDIDA SEM PREJUÍZO DA APURAÇÃODO TIPO PENAL – RECURSO IMPROVIDO. En-cerrado o mandato legislativo em que ocorreram osfatos ensejadores do processo político-administra-tivo, a punição pela cassação da investidura políti-ca tornou-se inaplicável. Ao fazê-lo, a CâmaraMunicipal julgou politicamente quem não podiajulgar e aplicou punição que já não comportavacabimento” (BRASIL, 1998b).

27 No mesmo sentido: Brasil (2003, p. 58).28 Embora nos EUA a nomeação do Presidente

precise de aprovação do Senado, não é essa apro-vação que faz com que o processo seja influenciadopelos diversos setores da sociedade norte-america-na, mas a constatação de que não se governa sozi-nho em um sistema democrático.

29 Imagine o caso em que o Congresso se recu-sasse a aprovar alguma medida provisória. Nãohaveria interferência nos planos do Executivo? Cer-tamente que sim, mas interferência afinada com aseparação de poderes.

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Eneida Desiree Salgado

1. IntroduçãoA adoção do regime político democráti-

co é quase uma unanimidade nos Estadoscontemporâneos. Mesmo os regimes compráticas flagrantemente autoritárias se afir-mam democracias e adotam mecanismosformais para a sua caracterização. Não bas-ta, no entanto, a adoção do direito de sufrá-gio estendido universalmente (com as res-trições razoáveis de idade mínima e de ca-pacidade) e do voto direto, secreto e periódi-co para que um Estado receba o adjetivo “de-mocrático”.

A idéia de democracia vai além do depo-sitar o voto na urna1. E, mesmo nesse caso,não se pode garantir um mínimo de demo-cracia formal apenas a partir da confiabili-dade do sistema de votação e apuração (ouseja, do “voto dado é voto contado”). Aindaque sua adoção tenha significado a supera-ção de fraudes históricas – como o voto decorrentinha e o mapismo –, faz-se indispen-sável a existência de garantias também naformação dessa escolha política. A influên-cia dos meios de comunicação social, o po-der econômico, o poder político e as práti-cas ilícitas para a conquista do voto macu-lam a frágil democracia formal.

Iniciativa popular de leisAs proposições, o positivado e o possível

Eneida Desiree Salgado é Mestre em Direi-to do Estado pela Universidade Federal do Pa-raná, professora de Direito Constitucional e deDireito Eleitoral no Centro Universitário Po-sitivo.

Sumário1. Introdução. 2. Desenho constituinte da

iniciativa popular. 3. Normatização do institu-to. 4. A prática esvaziada e as possibilidadesapresentadas. 5. Propostas.

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Este estudo, no entanto, não vai deter-senesses aspectos. É outra configuração dedemocracia que será discutida aqui. A de-mocracia esboçada pelos trabalhos consti-tuintes e inserida no texto constitucional: ademocracia participativa, que impõe o exer-cício direto da soberania popular além daescolha de representantes. E dentro dessaconfiguração, um instituto em particular –a iniciativa popular de leis, que permite aosoberano e destinatário das normas jurídi-cas apresentar ao filtro da representaçãopolítica o conteúdo normativo que conside-ra relevante.

2. Desenho constituinteda iniciativa popular

A Constituição de 1988 traz em seu textoos contornos do regime democrático brasi-leiro. A realidade política anterior, de des-respeito à ordem constitucional e pouca par-ticipação política, provoca uma nova deli-mitação do poder político e a criação de ins-trumentos que permitam ao cidadão influ-enciar de modo direto a tomada de decisõespolíticas.

Os textos doutrinários que reclamamuma nova ordem constitucional sublinhamo necessário “adensamento das diferentesformas de representação política”2 (FARIA,1985, p. 11). Fávila Ribeiro (1986, p. 29) afir-ma que a democracia exige mais do que aexistência de eleições: impõe “eficazes ins-trumentos de controle”.

Quando se instaura a Assembléia Nacio-nal Constituinte, as propostas a ela apresen-tadas tendem a uma democracia participati-va mais aguda, com ênfase na representaçãopolítica, mas com formas institucionais deexercício direto do poder político pelo povo.

Alguns intelectuais se debruçam sobre apossibilidade de autolegislação. TércioSampaio Ferraz Junior (1985, p. 67-69) pro-põe a possibilidade de iniciativa popularde lei para a integração legislativa das nor-mas programáticas da Constituição, com aexigência de apoio de setenta mil eleitores.

Para Fábio Konder Comparato (1986, p. 13,55), dez mil cidadãos poderiam apresentarprojeto de lei e trinta mil cidadãos poderi-am propor emenda à Constituição e JoséAfonso da Silva [2005?] traz a exigência decinqüenta mil assinaturas para a apresen-tação de projeto de lei.

Durante a construção da Constituição,há previsão de emendas populares (enca-minhadas por pelo menos três entidades ecom trinta mil assinaturas). Cento e vinte eduas são apresentadas, algumas contradi-tórias. Essa possibilidade de participaçãopopular acolhida pelo Regimento Internoenfrenta a má vontade da maioria dos cons-tituintes.

A Assembléia Nacional Constituinte di-vide-se em vinte e quatro subcomissões, oitocomissões temáticas e uma comissão de sis-tematização. Com a confusa divisão de ma-térias, repetem-se discussões sobre o mes-mo assunto.

Cabe à Comissão da Soberania e dos Di-reitos e Garantias do Homem e da Mulher adelimitação da cidadania. Na sua Subco-missão dos Direitos Políticos, dos DireitosColetivos e Garantias, há intensa discussãoentre os constituintes quanto à adoção dainiciativa popular de leis: os argumentosconcentram-se, de um lado, na necessáriaparticipação democrática da sociedade e, deoutro lado, no “desrespeito ao parlamento”3.

No relatório de Lysâneas Maciel, umadas tarefas do Estado é “assegurar a parti-cipação organizada do povo na formaçãodas decisões nacionais” e é prevista inicia-tiva popular legislativa (sendo necessáriasquinze mil assinaturas) e de emenda à Cons-tituição (com exigência de trinta mil assina-turas)4. Com essa redação, a proposta é apro-vada pela Comissão da Soberania e dos Di-reitos e Garantias do Homem e da Mulher.

Ao defender seu relatório na Comissãode Sistematização, Lysâneas Maciel ouve deAfonso Arinos uma defesa da representa-ção5, reiterada nas reuniões seguintes. Oprimeiro anteprojeto do relator BernardoCabral, no entanto, dedica um capítulo in-

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teiro à soberania popular e prevê a iniciativapopular de leis e de emendas à Constituição.Mas a exigência de apoiamento é superior àproposta anterior: três décimos por cento doeleitorado, divididos em pelo menos cincoEstados, com não menos de um décimo porcento do eleitorado de cada um deles.

O anteprojeto recebe 20.790 emendas eBernardo Cabral apresenta um primeirosubstitutivo, sem o capítulo dedicado à so-berania popular, mas mantendo as regrasde participação do cidadão na elaboração deleis e emendas. Após 14.320 emendas, o rela-tor apresenta um segundo substitutivo semalterar as exigências de iniciativa legislativa6.

Na votação desse segundo substitutivo,os constituintes Antonio Mariz e NeltonFriedrich propõem a adoção da seguinte re-dação para o princípio da soberania popu-lar: “Todo o poder pertence ao povo, que oexerce por intermédio de representantes elei-tos ou diretamente, nos casos previstos nes-ta Constituição”. A emenda é aprovada naComissão de Sistematização7.

O texto da Sistematização é levado a ple-nário. Contra ele, o “Centrão”8 propõe umsubstitutivo. Como parte de um acordo delideranças, o princípio da soberania popu-lar assim se apresenta: “Todo o poder ema-na do povo, que o exerce por representanteseleitos, ou diretamente, nos termos destaConstituição”9, redação infinitamente infe-rior à da Comissão da Sistematização. A ini-ciativa popular de leis é vedada na propos-ta do Centrão e não é feita referência à inici-ativa de emendas. Nelton Friedrich, MyriamPortella e Ronaldo Cezar Coelho apresentamdestaque para incluir os cidadãos entre oslegitimados para a propositura de projeto delei, que é aprovado na terceira votação10.

Em seguida, modifica-se a proposta ini-cial da Comissão de Sistematização, elevan-do o número necessário de assinaturas paraa apresentação de projeto de lei de iniciati-va popular: um por cento do eleitorado, di-vidido em cinco Estados, com não menos detrês décimos por cento do eleitorado de cadaum. Na defesa dessa proposta, Ronaldo

Cezar Coelho afirma que ela impede a vul-garização do instituto, afasta interesses me-ramente locais e valoriza o Poder Legislati-vo11. Essa é a regulamentação que passapara a Carta Constitucional.

3. Normatização do institutoNão obstante o conteúdo das propostas

e dos anseios sociais por maior participa-ção na esfera de decisões políticas, a inici-ativa popular constitucionalizada mos-tra-se mais uma resposta retórica que uminstrumento efetivo de autodeterminação.

Sua previsão está no terceiro e últimoinciso do artigo 14 da Constituição comoforma de exercício da soberania popular, noartigo 60 (ao silenciar, não permitindo ini-ciativa popular de emenda à Constituição12)e no artigo 61. Este último artigo prevê inici-ativa aos cidadãos de leis ordinárias e com-plementares, excetua as leis de iniciativaprivativa do Presidente da República e, emseu segundo parágrafo, impõe as condi-ções para o seu exercício: “apresentaçãoà Câmara dos Deputados de projeto de leisubscrito por, no mínimo, um por centodo eleitorado nacional, distribuído pelomenos por cinco Estados, com não menosde três décimos por cento dos eleitores decada um deles”.

O instituto é regulamentado pela Lei9.709/98, mais de dez anos após a promul-gação da Constituição. Essa lei trata dos trêsinstitutos de participação direta previstosno artigo 14, mas não facilita sua aplicação.Quanto à iniciativa popular de leis, repete osrequisitos constitucionais, exige que o proje-to se circunscreva a um só assunto, afasta suarejeição por vício de forma e impõe o mesmotrâmite que os demais projetos de lei13.

4. A prática esvaziada e aspossibilidades apresentadas

Os requisitos para a apresentação de umprojeto de lei de iniciativa popular, confor-me se pode pressentir, são de difícil preen-chimento pela cidadania.

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Em âmbito nacional, são necessárias1.221.027 assinaturas14 – devidamente iden-tificadas e acompanhadas do número do tí-tulo de eleitor – para a propositura de umprojeto de lei, a ser analisado e discutidopela Câmara dos Deputados e posteriormen-te pelo Senado Federal como outro projetoqualquer.

Em face da absurda configuração do ins-tituto, nenhum projeto de lei apresentadona Câmara dos Deputados efetivamente secaracterizou como de iniciativa popular.Três projetos que recolheram assinaturasforam transformados em lei, mas tramita-ram graças a co-autoria15.

Ciente dessa dificuldade, a Câmara dosDeputados criou a Comissão Permanente deLegislação Participativa, que recebe “suges-tões de iniciativa legislativa apresentadaspor associações e órgãos de classe, sindica-tos e entidades organizadas da sociedadecivil, exceto partidos políticos”. Essas pro-postas passam a tramitar como projeto delei da Comissão16.

Ainda que seja louvável tal alternativa,a Comissão Permanente de Legislação Par-ticipativa é um filtro para o exercício da so-berania popular. A idéia construída pelo po-der constituinte é permitir a participaçãodireta na tomada de decisões do Estado.Deve-se insistir na viabilidade da iniciativapopular legislativa.

A redução do despropositado número deassinaturas é objeto de projetos de emendaconstitucional. A deputada Luiza Erundi-na propõe a exigência de apoio de meio porcento do eleitorado nacional para a apre-sentação de projeto de lei de iniciativa po-pular17. José Eduardo Cardozo indica o quo-ciente eleitoral de deputado federal, depu-tado estadual e vereador para a apresenta-ção de proposta de lei de iniciativa popular.No caso de lei federal, deve-se levar em con-sideração o quociente do Estado em que ti-ver domicílio a maioria dos subscritores18.Jamil Murad apresenta como número ade-quado a resultante da divisão do eleitoradopelo número de representantes eleitos19.

5. Propostas

A exigência de assinaturas não deve sersuperior ao quociente eleitoral para a elei-ção da Câmara dos Deputados. Se o projetode lei de iniciativa popular passa pelas mes-mas fases de apreciação e debate que umaproposição apresentada por apenas um re-presentante, não há por que condicionar oapoio ao projeto por um número de eleitoressuperior ao necessário para a sua eleição deum deputado federal.

Não se deve adotar, no entanto, as solu-ções propostas pelos deputados José Eduar-do Cardozo e Jamil Murad. No primeiro caso,mantém-se a desproporção entre a forçapolítica dos cidadãos dos Estados Federa-dos, pois a diferença de quociente eleitoralentre eles é bastante acentuada. A emendado deputado Jamil Murad eleva o númerode eleitores necessários ao levar em consi-deração todo o eleitorado, e não apenas osque efetivamente participam da escolha derepresentantes20.

O cálculo do quociente eleitoral aqui pro-posto poderia ser feito de duas formas: con-siderando-se a média entre o quociente elei-toral de todos os estados ou levando em con-ta o país todo, dividindo o número de votosválidos pelo número de cadeiras na Câma-ra (denominado aqui quociente eleitoral glo-bal). Tomando-se os números da eleição de2002, o primeiro cálculo traria a exigênciade 141.323 assinaturas e o segundo, 170.629.Ambos muito inferiores a um por cento doeleitorado: a exigência constitucional supe-ra em 8,15 vezes o quociente eleitoral médioe 6,75 vezes o quociente eleitoral global. Ain-da assim, os quocientes são superiores aos21.122 votos exigidos para eleger um depu-tado federal por Roraima em 2002.

Para afastar a dificuldade de verificaçãodas assinaturas, com a distribuição dos for-mulários para as zonas eleitorais, poderi-am ser adotadas urnas eletrônicas. Isso nãogeraria custos para o poder público, agili-zaria o processo de coleta de assinaturas,evitaria o processo de averiguação de sua

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conformidade e possibilitaria uma somarápida e precisa do número de cidadãos queapóiam a iniciativa.

Após solicitação por associação ou porum conjunto de eleitores (em número nãosuperior a mil eleitores), modelos antigos dasurnas, não mais utilizadas para votação21,ficariam nos cartórios eleitorais, à disposi-ção do eleitor que desejasse apresentar seuapoio ao projeto. A digitação do número dotítulo seria feita pelo próprio eleitor, após iden-tificado pelo servidor da Justiça Eleitoral22.

A verificação do total de assinaturas (e aexclusão de eventuais duplicidades), pelosimples processamento dos disquetes dasurnas, depois do término da coleta das “as-sinaturas”, seria realizada pelo CartórioEleitoral (no caso de iniciativa popular delei municipal), pelo Tribunal Regional Elei-toral (se lei estadual) ou pelo Tribunal Su-perior Eleitoral (se a proposta fosse de leifederal).

Esse procedimento, além de facilitar oexercício direto da democracia e a reali-zação do desígnio constitucional, empres-ta à Justiça Eleitoral maior credibilidadeno cumprimento de sua missão de garan-tir a democracia e contribuir para o seuaperfeiçoamento.

Essas duas propostas – a diminuição daexigência de apoio e a utilização das urnaseletrônicas para a coleta das manifestações– permitem a realização do desígnio consti-tucional expresso no parágrafo único doartigo primeiro. A utilização efetiva da ini-ciativa popular de leis permite a concretiza-ção democrática, em seu conteúdo normati-vo e em seu sentido filosófico, de autodeter-minação. Resta resgatá-la.

Notas1 Para usar uma imagem que não mais

corresponde à realidade do sistema eletrônico devotação, mas que é muito mais interessante do queo “digitar o número do candidato escolhido”.

2 Citação completa: “Isto porque o efetivoexercício da democracia exige algo mais do que sua

mera regulamentação formal. Requer, por exemplo,ao lado da correção das desigualdades sociais, ofortalecimento das instituições legislativas e oadensamento das diferentes formas de participaçãopolítica, em condições de propiciar aos grupos,categorias e classes economicamente desfavorecidosmais representatividade nos círculos do poder”.

3 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília, a. I. Suplemento ao número 62. 20 de maiode 1987. Sessão do dia 22 de abril de 1987. p. 3-10.

4 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília, a. I. Suplemento ao número 90. 08 de julhode 1987. Sessões do dia 13 e 14 de maio de 1987.p. 17-32.

5 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília, a. I. Suplemento ao número 62. 20 de maiode 1988. Sessão do dia 07 de maio de 1988. p. 218-235.

6 Os anteprojetos são publicados em suplementoespecial do Diário da Assembléia NacionalConstituinte.

7 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília. (Suplemento C). 27 de janeiro de 1988. p.900-904.

8 Denominação dada pela mídia e por seuspróprios integrantes ao Centro Democrático, gruposuprapartidário de tendência conservadora. Duasanálises contrapostas do papel do Centrão naAssembléia Nacional Constituinte podem serencontradas em Miguel Reale (1992) e em obra dePaulo Bonavides e Paes de Andrade (2004).

9 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília, a. II, n. 172. 28 de janeiro de 1988. p. 6674-6680.

10 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília, a. II, n. 211. 23 de março de 1988. p. 8726-8730.

11 Diário da Assembléia Nacional Constituinte,Brasília, a. II, n. 211. 23 de março de 1988. p. 8730-8733.

12 Esta não é a opinião unânime da doutrina.Dalton José Borba (2002) e Fábio Konder Comparato(1990) defendem que o silêncio do legisladorconstitucional não afasta a regra geral do parágrafoúnico do artigo primeiro da Constituição.

13 Ao tratar dos projetos de iniciativa popular,o Regimento Interno da Câmara dos Deputadosveda a dispensa de votação em plenário, os excluido arquivamento no fim da legislatura e os insereentre os projetos de tramitação com prioridade.

14 Segundo dados oficiais de setembro 2005, oBrasil possui 122.102.746 eleitores. Dado disponívelna página do Tribunal Superior Eleitoral na internet– www.tse.gov.br – em Eleitorado. Acesso em: 23set. 2005.

15 O Projeto de Lei 4.146/1993, que teve o PoderExecutivo como co-autor, tornou-se a Lei 8.930/94e alterou a Lei 8.072/90, adicionando o homicídio

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quando praticado em atividade típica de grupo deextermínio no rol dos crimes hediondos. O Projetode Lei 1.517/99, com a co-autoria do DeputadoAlbérico Cordeiro (e a assinatura de todos os líderespartidários), transforma-se na Lei 9.840/99 e incluina Lei 9.504/97 o artigo 41A, permitindo a cassaçãodo registro do candidato que incidir em captaçãoilícita de sufrágio. Finalmente o Projeto de Lei 2.710/92 torna-se, com muitas modificações, a Lei 11.124e cria o Sistema Nacional de Habitação de InteresseSocial. Teve o Deputado Nilmário Miranda comoco-autor.

16 Em relatório disponível na internet, a Comissãode Legislação Participativa informa haver recebido140 sugestões no período de 2001 a 2003 e 58 foramaprovadas. Em 2004, foram apresentadas 56sugestões e 4 proposições e 18 foram aprovadas.Relatórios disponíveis em <www.camara.gov.br/clp>. Acesso em: [2005].

17 Trata-se da PEC 002/1999. A proposta,apresentada em 02 de março de 1999 e desarquivadaem março de 2003, aguarda constituição deComissão Especial para proferir parecer.

18 PEC 194/2003. Segundo informações na páginada Câmara de Deputados (www.camara.gov.br), oúltimo trâmite data de 17/06/2004, com amanifestação da Comissão de Constituição e Justiçae de Cidadania pela admissibilidade.

19 PEC 201/2003, tramitando em apenso à PEC194/2003. No Senado Federal, dois projetos de leireferem-se à iniciativa popular, mas sem tratar donúmero de assinaturas. O PL 267/2002, da (então)senadora Marina Silva, propõe a possibilidade deconvocação de referendo e plebiscito por iniciativapopular e o PL 185/2005 do senador MarceloCrivella propõe que não haja restrição quanto àmatéria aos projetos de lei de iniciativa popular.Ambos os projetos estão na Comissão deConstituição e Justiça.

20 Com essa proposta, o número de assinaturasnecessárias chega a 238.017.

ReferênciasBORBA, Dalton José. Iniciativa popular de emendaconstitucional no Brasil. Dissertação (Mestrado) –Faculdade de Direito da Universidade Federal doParaná, Curitiba, 2002.

COMPARATO, Fábio Konder. Emenda e revisãona Constituição de 1988. Revista de Direito Público,São Paulo, n. 93, p. 125-128, jan./mar. 1990.

______. Muda Brasil: uma constituição para o de-senvolvimento democrático. São Paulo: Brasilien-se, 1986.

FARIA, José Eduardo. A crise constitucional e arestauração da legitimidade. Porto Alegre: Fabris,1985.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Constituinte:regras para a eficácia constitucional. Revista de Direi-to Público, São Paulo, n. 76, p. 67-69, out./dez. 1985.

RIBEIRO, Fávila. Constituinte e participação popular.São Paulo: Saraiva, 1986.

SILVA, José Afonso. Uma proposta de constituição.[S.l.:s.n., 2005?].

21 A Justiça Eleitoral mantém essas urnas e asempresta para a realização de eleições de escolas,universidades, órgãos de classe, etc. Essas eleiçõessão chamadas de “parametrizadas”. A própriaJustiça Eleitoral desenvolve o programa e define oconteúdo da tela de votação. Facilmente poderiaser desenvolvido um programa para o registro donúmero do título de eleitor do cidadão que emprestao seu apoio a determinado projeto.

22 Se adotado o modelo de título de eleitorproposto pelo Tribunal Superior Eleitoral, comfotografia, e com o acompanhamento do servidorda Justiça Eleitoral, afasta-se a possibilidade defraudes na declaração de apoio a um projeto de lei.

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IntroduçãoO tema relativo aos direitos fundamen-

tais tem recebido grande destaque e aten-ção, modernamente, por parte dos estudio-sos do Direito. À análise da origem, da evo-lução histórica, da natureza, dos fundamen-tos e da concretização de tais direitos – tidoscomo elementos fundantes das ordens jurí-dicas nacionais, da ordem jurídica interna-cional e, no caso da Europa, também da or-dem jurídica comunitária – têm sido dedi-cadas inúmeras monografias e páginas dedoutrina, o que põe em evidência a circuns-tância de que é no respeito à dignidade dapessoa humana que reside o fundamentoúltimo das mais variadas formas de organi-zação social.

Na realidade, a grande atenção que hojese confere à garantia de tais direitos pren-de-se à percepção de que os direitos funda-mentais mantêm com o próprio conceito dedemocracia uma relação de recíproca inte-ração, pois o efetivo respeito aos direitosfundamentais dos indivíduos representa

A Constituição de Weimar e os direitosfundamentais sociaisA preponderância da Constituição da República Alemãde 1919 na inauguração do constitucionalismo social àluz da Constituição Mexicana de 1917

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro é Ba-charela em Direito e em Relações Internacio-nais, Mestranda em Direito e Estado pela Fa-culdade de Direito da Universidade de SãoPaulo – USP, Professora de Teoria Geral do Es-tado e de Direito Constitucional no Institutode Ensino Superior de Brasília – IESB, Assesso-ra de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

SumárioIntrodução. 1. A Constituição Mexicana de

31 de janeiro de 1917. 1.1. Antecedentes históri-cos. 1.2. Os debates da Constituinte. 1.3. O textoda Constituição Mexicana de 1917. 2. A consti-tuição da República de Weimar (1919). 2.1. An-tecedentes históricos. 2.2. O texto da Constitui-ção de Weimar de 1919. 3. Uma análise compa-rativa dos textos da Constituição Mexicana eda Constituição de Weimar. 4. Conclusão.

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um dos principais parâmetros de aferiçãodo grau de democracia de uma sociedade,ao mesmo tempo em que a concreta e realexistência de uma sociedade democráticarevela-se como pressuposto indissociável àplena eficácia dos direitos fundamentais(BRANCO, 2002, p. 104).

Essa é a razão pela qual os conceitos dedemocracia e de direitos fundamentais ca-minham sempre juntos1, valendo referir quea origem dos direitos fundamentais remon-ta à resistência dos povos contra governosopressores e que a evolução histórica de taisdireitos coincide, em seus pontos essenci-ais, com a própria criação e evolução doEstado e com o advento do constituciona-lismo moderno2.

Cumpre referir, nesse ponto, que as ex-pressões direitos do homem, direitos huma-nos e direitos fundamentais serão utiliza-das, no presente trabalho, com noções con-ceituais próprias e diversas, razão pela qualse impõe, na presente introdução, e até mes-mo para que se mantenha um mínimo derigor terminológico, proceder a uma brevedefinição de cada um desses termos3.

Na linha do magistério doutrinário deIngo Sarlet (1998, p. 32), os três termos aci-ma mencionados devem ser diferenciadosde acordo com um critério de concreção po-sitiva ou de concretização normativa.

Partindo dessa linha de classificação, aexpressão direitos do homem é utilizadapara designar, de maneira mais abstrata e“com contornos mais amplos e imprecisos”4,aqueles direitos naturais ainda não positi-vados. O termo direitos humanos, por suavez, representaria aqueles direitos já posi-tivados na esfera internacional, enquanto otermo direitos fundamentais abrangeria aque-les direitos cujo reconhecimento e proteçãoestão assegurados em sede constitucional5.

Essa distinção6, longe de possuir utili-dade unicamente acadêmica, assume vitalimportância quando se analisa, por exem-plo, questão relativa aos elementos caracte-rizadores dos direitos fundamentais. Dessemodo, por exemplo, pode-se falar na univer-

salidade dos direitos do homem (vez que ine-rentes ao indivíduo enquanto tal) e na pre-tendida universalização dos direitos humanos(tenta-se implementar, em toda a comuni-dade internacional, a garantia dos direitosassegurados nas Declarações, embora sesaiba que tal concretização global, na práti-ca, ainda resta incompleta, permanecendono campo das legítimas expectativas). Aocontrário disso tudo, não se pode pretender auniversalidade dos direitos fundamentais,eis que, enquanto valores reconhecidos epositivados por cada ordenamento constitu-cional, os direitos fundamentais necessari-amente variarão, em termos de sua abran-gência e do grau de sua proteção, conformea cultura predominante em cada uma dasnações7.

Daí por que se pode afirmar, como pre-cedentemente referido, que a evolução his-tórica ou (parafraseando o Prof. FabioKonder Comparato, 2001) que a “afirmaçãohistórica” dos direitos fundamentais se con-funde, em suas linhas mestras, com a evolu-ção do conceito e da função do Estado e,também – já que o instrumento formal daConstituição consubstancia o núcleo essen-cial das decisões políticas tomadas peloEstado –, mistura-se com o próprio adventodo constitucionalismo moderno e, posteri-ormente, com o início do constitucionalis-mo social.

Todas essas considerações se fazem re-levantes eis que o presente trabalho temcomo pretensão discutir, por uma análisedos textos constitucionais de Weimar (1919)e do México (1917) e dos direitos fundamen-tais sociais neles positivados, a inicialida-de do constitucionalismo social. Não se fa-lará, portanto, no presente trabalho, de di-reitos do homem ou de direitos naturais.Também não serão abordados – não obs-tante sua importância – os inúmeros e ex-pressivos documentos internacionais de re-conhecimento e proteção dos direitos huma-nos, limitando-se, desse modo, o objeto dopresente estudo, à análise de direitos e valo-res revestidos da nota da fundamentalida-

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de, por efeito de sua positivação em sedeconstitucional.

Com efeito, o início da idéia de direitosfundamentais – repita-se, de direitos e valo-res reconhecidos em sede constitucional –remonta ao advento do Estado e das teoriascontratualistas dos séculos XVII e XVIII, que,com o objetivo específico de justificar e legi-timar a criação da figura estatal, acentua-vam que o soberano deveria exercer sua au-toridade com submissão aos direitos de cadahomem, o que simbolizava o advento daimportantíssima idéia da supremacia doindivíduo sobre o Estado.

Nesse contexto, surgiram os Estado libe-rais8 – modernos –, que, no contexto de pro-teção do cidadão contra indevidas ingerên-cias do poder estatal, asseguraram uma es-fera indevassável de proteção ao indivíduo,com a criação dos chamados direitos fun-damentais de primeira dimensão (ou direi-tos da liberdade ou liberdades públicas),que, por isso mesmo, representam direitos eprerrogativas a serem exercidos contra oEstado.

Incluem-se, entre outros, no rol das li-berdades públicas, os direitos à proprieda-de privada, à intimidade, à privacidade, àliberdade de reunião, de associação e à livremanifestação do pensamento, ou seja, direi-tos que têm como elemento central a relação– essencialmente desigual – entre soberanoe indivíduo e como princípios norteadoreso liberalismo (quaisquer intervenções esta-tais são tidas como nocivas), o individua-lismo, a liberdade e a segurança.

Ocorre, no entanto, que o passar do tem-po e a alteração da realidade social fizeramcom que a mera garantia de direitos a seremexercidos contra o Estado não fosse maissuficiente para permitir a plena realizaçãodo indivíduo em seu ambiente social.

Na realidade, muitos dos direitos à li-berdade então previstos nos ordenamentosconstitucionais – tal como ocorria, por exem-plo, com o direito à propriedade – somenteeram exercidos por alguns membros da co-letividade eis que, para os outros, faltavam

meios que permitissem adquirir tais prerro-gativas.

A incipiente industrialização da socie-dade (decorrente da Revolução Industrial,que teve início na Inglaterra do século XVIII,mas que posteriormente produziu efeitos –em maior ou menor grau – em todo o mun-do) e a conseqüente ampliação e mudançade perfil do mercado de trabalho (antes emi-nentemente agrário e, agora, marcadamen-te industrial e urbano) trouxeram novas de-mandas que restavam desatendidas pelasCartas Constitucionais de modelo clássico.

A antecipada falência do modelo doconstitucionalismo clássico começou a tor-nar-se mais evidente a partir do fim da pri-meira guerra e, notadamente, a partir de1917, quando o sucesso da Revolução Russae o modo de produção socialista passarama inspirar e motivar a classe trabalhadorade todo o mundo.

E é exatamente nesse período que sesituam os dois diplomas constitucionaisque, por suas disposições de conteúdo emi-nentemente social, são tidos como marcosdo constitucionalismo social (ConstituiçãoMexicana de 1917 e Constituição de Weimarde 1919).

Na realidade, grande parte da doutrina,ao se referir ao advento do constitucionalis-mo social, menciona, de maneira genérica,como momentos iniciais dessa nova faseconstitucional tanto o advento da Consti-tuição do México como a promulgação daConstituição de Weimar, deixando de fazerqualquer menção individualizadora àquiloque cada um desses textos, per se, trouxe deoriginal e inovador ao corpo das concernen-tes Cartas Políticas.

Busca-se, portanto, com este breve estu-do, trazer alguns questionamentos sobreessa fase inicial do Estado Providência, pre-tendendo-se responder à indagação sobrese a Constituição de Weimar de 1919, ape-sar de cronologicamente posterior à CartaConstitucional Mexicana de 1917, poderia,ou não, ser considerada como decisivamen-te precursora do constitucionalismo social.

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Frise-se, neste ponto, por oportuno, quenão se desconhece que disposições tópicas,relativas a um ou outro direito social, já cons-tavam de textos constitucionais anteriorestanto à Constituição Mexicana quanto àConstituição de Weimar9.

Tal, no entanto, não assume relevânciaquando se tratar, como no presente caso, deestudo relativo ao início do constituciona-lismo social, entendido este não apenascomo a inserção isolada, em Cartas de índo-le eminentemente liberal, de dispositivos deíndole social, mas, sim, como o reconheci-mento pelo Estado – e através da inserção,nos respectivos textos constitucionais, deinúmeros artigos, posicionados de formasistematizada e relativos às inúmeras di-mensões em que se projeta a vida do indiví-duo em sociedade – de que, além de umaconduta negativa a ser assumida em temade liberdades públicas, deve o Poder Públi-co intervir no seio da coletividade para,mediante ação positiva, promover a igual-dade material e permitir que todos exerçam,em iguais oportunidades, todos os direitosprevistos em sede constitucional.

Irretocável, sob tal aspecto, a advertên-cia de Floriano Corrêa Vaz da Silva (1977,p. 35), que, ao versar o tema relativo ao ad-vento do constitucionalismo social, assimse pronunciou:

“... seria uma esquematização simplis-ta a afirmação de que as Constituiçõesdo século XIX foram todas puramenteliberais e as Constituições do séculoXX marcadamente sociais. Em quais-quer Constituições, nas mais diversasépocas, podem ser encontrados e pes-quisados dispositivos concernentes àordem social e econômica, cláusulasque explícita ou implicitamente defi-nem o regime econômico-social pre-tendido pelos constituintes. A própriaausência de cláusulas sociais numaConstituição traduz a opção por de-terminado sistema. E esta ausência, éclaro, não impede uma lenta constru-ção jurisprudencial, nem emendas

constitucionais, nem legislação ordi-nária – que irão, pouco a pouco, deli-near, dentro do sistema constitucio-nal, uma série de direitos sociais e tra-balhistas, que passam a integrar o ar-cabouço econômico-social do país. Dequalquer modo, o fato é que as Consti-tuições do século XIX foram, de ummodo geral, Constituições liberais (...)pouco ou nada diziam explicitamen-te quanto aos direitos sociais, limitan-do-se, quase sempre, apenas à orga-nização política. Apenas em algumasConstituições surgem normas que serelacionam com o chamado problemasocial...”.

No presente trabalho, portanto, tomar-se-á como premissa a circunstância de quea previsão pontual, em sede constitucional,de específico ou específicos dispositivos,isolado(s), relativo(s) a um determinado di-reito de índole social não basta, por si só,para conferir à referida Constituição a na-tureza de Texto Constitucional Social.

A contrario senso, a mera previsão, em sedeconstitucional, das chamadas liberdadespúblicas também não confere, ipso facto, àCarta Política a qualidade de Texto Consti-tucional Liberal – mesmo porque o adventodo constitucionalismo social não se deumediante substituição das liberdades negati-vas pelos direitos prestacionais, mas, sim, me-diante complementação (somatório) dos di-reitos de liberdade (indivíduo contra o Esta-do) com os direitos de natureza social (indi-víduo enquanto membro de uma coletivida-de, exercendo direitos por meio do Estado).

Vê-se, portanto, que o que confere natu-reza social a determinado ordenamentoconstitucional é o reconhecimento manifes-tado pelo Estado – e expresso no texto desua Lei Fundamental – no sentido de que,além de garantir, aos cidadãos, o respeitoàs liberdades clássicas de que são titulares,a sua intervenção no seio da sociedade édesejada e necessária para que os indivídu-os possam melhor desfrutar de seus direi-tos e de suas garantias10.

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Daí por que comumente se tem entendi-do que a fase do Constitucionalismo Socialtem seu início marcado pelas ConstituiçõesMexicana e de Weimar.

Cumpre advertir, neste ponto, que nãoserão consideradas, no presente trabalho epara efeito comparatório, a Declaração So-viética dos Direitos do Povo Trabalhador eExplorado (1918) e a posterior Lei Funda-mental Soviética (10/7/1918).

É que, apesar da forte inspiração socialde tais diplomas (eis que consubstanciavamos ideais motivadores da Revolução Socia-lista de 1917), eles, a pretexto de concretiza-rem avanços em tema de direitos sociais,culminaram por aniquilar os direitos de li-berdade, cuja conquista levou séculos paraefetivar-se11.

Na realidade, os avanços obtidos emtema de direitos sociais – se houve – culmi-naram por ser ofuscados diante das opres-sões manipuladas por uma auto-reconheci-da ditadura (ditadura do proletariado), que,nas linhas defendidas por Schmitt (1982),buscava a fusão entre Estado e sociedademediante a supressão das liberdades públi-cas.

Não se pode atribuir, pois, o caráter devanguarda em tema de proteção a direitosfundamentais a uma Carta que, além de tersignificado um retrocesso no que se refere àliberdade pública de seus cidadãos, simbo-lizou típico instrumento de tratamento dis-criminatório e excludente entre o proletari-ado e as “classes possuidoras”12.

No sentido do caráter excludente dasdeclarações soviéticas, a manifestação deFabio Konder Comparato (2001, p. 189-186),para quem:

“Entre a Constituição mexicana ea Weimarer Verfassung, eclode a Re-volução Russa, um acontecimentodecisivo na evolução da humanidadedo século XX. O III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de DeputadosOperários, Soldados e Camponeses,reunidos em Moscou, adotou, em 4 dejaneiro de 1918, portanto antes do

término da 1a Guerra Mundial, aDeclaração dos Direitos do Povo Tra-balhador e Explorado. Nesse docu-mento são afirmadas e levadas àssuas conseqüências, agora com apoioda doutrina marxista, várias medidasconstantes da Constituição mexicana,tanto no campo sócio-econômicoquanto no político (...).

Mas aí, como se vê, já se está forado quadro dos direitos humanos, fun-dados no princípio da igualdade es-sencial entre todos, de qualquer gru-po ou classe social. Desde o seu en-saio juvenil sobre a Questão Judiciá-ria, publicado em 1843, Marx criticoua concepção francesa de Direitos dosHomens, separados dos direitos do ci-dadão, como consagradora da gran-de separação burguesa entre socieda-de política e sociedade civil, dicoto-mia essa fundada na propriedade pri-vada. Os direitos do homem não pas-sariam de barreiras ou marcos divisó-rios entre os indivíduos, em tudo e portudo semelhante aos limites da pro-priedade territorial. E os direitos docidadão, sobretudo numa época desufrágio censitário, nada mais seriamdo que autênticos privilégios dos bur-gueses, em exclusão da classe operá-ria. Na sociedade comunista, cujas li-nhas-mestras foram esboçadas no Ma-nifesto do Partido Comunista, cincoanos mais tarde, só os trabalhadorestêm direitos e só eles constituem opovo, titular da soberania política.

Sem dúvida, na Constituição Me-xicana de 1917 não se fazem as exclu-sões sociais próprias do marxismo: opovo mexicano não é reduzido unica-mente à classe trabalhadora...”.

Também irretocáveis, nesse ponto, aspalavras de Vieira de Andrade (1987, p. 53),que coloca em destaque o caráter “subversi-vo” de algumas doutrinas do “movimentosocializante”, no que concerne ao conceitode direitos fundamentais:

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“O movimento socializante modi-ficou profundamente o sistema dosdireitos fundamentais, mas, para alémdisso, alterou a própria ‘filosofia’ quelhes estava subjacente.

Este movimento trouxe consigodoutrinas e teorias que, por modosdiversos, representam um entendi-mento ‘subversivo’ da concepção li-beral dos direitos fundamentais: a es-tatização fascista, que corporativizouos direitos; a massificação e o racismonacional-socialista, que os destruírampor completo; a funcionalização mar-xista-leninista, que os expropriou epôs a serviço de um projecto de socie-dade.

Apesar disso, pode afirmar-se quea tradição liberal ocidental não foi dis-solvida. Ela ‘passa de uma maneiranatural e perfeitamente coerente dosdireitos de liberdade aos direitos po-líticos e depois aos direitos econômi-cos e sociais’ (...)”.

Na realidade, a percepção que se buscaem tema de concretização dos direitos fun-damentais deve colocar em evidência não umaspecto de mera sucessividade, mas, sim, umaspecto revelador da complementaridade 13.

Em atenção ao viés substitutivo que foiconferido às várias espécies de direitosfundamentais pelas ditaduras socialistas,no sentido de que os direitos sociais sobre-põem-se e substituem-se às liberdades clás-sicas, muitos autores têm preferido utilizaro termo “dimensão”, em vez do termo “ge-ração”, para efeito de classificação dos di-reitos de liberdade (primeira dimensão), di-reitos sociais (segunda dimensão), direitosde solidariedade (terceira dimensão) e, atémesmo, dos direitos à democracia (quartadimensão).

Paulo Bonavides (2002, p. 525), um dosprimeiros a sustentar, entre nós, a impro-priedade da expressão “geração de direitos”,assim manifestou seu entendimento:

“Força é dirimir, a esta algura, umeventual equívoco de linguagem: o

vocábulo ‘dimensão’ substitui, comvantagem lógica e qualitativa, o ter-mo ‘geração’, caso este último venhaa induzir apenas sucessão cronológi-ca e, portanto, suposta caducidadedos direitos das gerações anteceden-tes, o que não é verdade. Ao contrário,os direitos da primeira geração, direi-tos individuais, os da segunda, direi-tos sociais, e os da terceira, direitos aodesenvolvimento, ao meio ambiente,à paz e à fraternidade, permanecemeficazes, são infra-estruturas, formama pirâmide cujo ápice é o direito à de-mocracia...”.

A crítica ao termo “gerações” de direitosfundamentais também é feita por JorgeMiranda (2000, p. 32), que, ao enfatizar afalsa impressão de alternância que ele podegerar, profere o seguinte magistério:

“Conquanto esta maneira de verpossa ajudar a apreender os diferen-tes momentos históricos de apareci-mento dos direitos, o termo geração,geração de direitos, afigura-se enga-nador por sugerir uma sucessão decategorias de direitos, umas substitu-indo-se às outras – quando, pelo con-trário, o que se verifica em Estado so-cial de direito é o enriquecimento cres-cente em resposta às novas exigênci-as das pessoas e das sociedades. Nemse trata de um mero somatório, massim de uma interpretação mútua, coma conseqüente necessidade de harmo-nia e concordância prática”.

De fato, revela-se efetivamente mais ade-quada a utilização da expressão “dimen-sões” de direitos fundamentais14, pois, namedida em que novas prerrogativas são re-conhecidas aos indivíduos, estas, longe deexcluírem, devem sempre vir a complemen-tar as demais prerrogativas já conquistadas.Mais do que isso, as dimensões mais recen-tes e os direitos fundamentais já tradicio-nalmente assegurados não só coexistem,como mantêm entre si uma relação de recí-proca interação, influenciando-se mutua-

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mente e fazendo com que o entendimentode cada um dos direitos fundamentais sejasempre interpretado (ou reinterpretado) emconformidade com o contexto global da to-talidade das dimensões de direitos já reco-nhecidas.

O novo entendimento que foi dado às li-berdades clássicas, em função do adventodos direitos sociais, é um bom exemplo dereinterpretação de direitos em face do ad-vento de uma nova dimensão de direitosfundamentais.

Hoje, e em face do advento do constituci-onalismo social, é extraído dos direitos deprimeira dimensão (tradicionalmente con-cebidos como direitos de índole negativa)um viés positivo que impõe ao Poder Públi-co não apenas o dever de abstenção, mas,também, uma obrigação de fazer. Do direitoà vida (direito de primeira dimensão), por-tanto, derivam, hoje, interpretando-se o di-reito à vida como o direito a uma existênciadigna, o direito à saúde, à assistência sociale ao lazer (direitos de segunda dimensão) e,também, o direito a um meio ambiente eco-logicamente equilibrado (terceira dimen-são)15.

É por essa razão que não se pode incluir,sob a denominação de constitucionalismosocial, a Declaração de Direitos do Povo Tra-balhador e Explorado e a Lei FundamentalSoviética de 1918 (10/07/1918), pois, paraque se possa falar, propriamente, em consti-tucionalismo social, é preciso que se tenha,sob a égide de um Estado Democrático deDireito, a expressa positivação, em textoconstitucional, da solene intenção estatal deconsagrar, para além da igualdade formal eda liberdade individual, também a igualda-de material e os demais direitos sociais deladecorrentes16.

Daí, portanto, o presente trabalho, que,ao perquirir sobre a inicialidade do consti-tucionalismo social, pretende, mediante co-tejo analítico da Constituição Mexicana de1917 e da Constituição de Weimar de 1919(excluída, pois, pelas razões acima expos-tas, a Constituição Soviética17), revelar quais

foram as inovações de cada um desses tex-tos, buscando responder à indagação sobrese seria possível atribuir a um desses diplo-mas a qualidade de documento precursordo constitucionalismo social.

1. A Constituição Mexicanade 31 de janeiro de 19171.1. Antecedentes históricos

A Constituição do México configura oreconhecimento e a positivação, em sedeconstitucional, das reivindicações e dosprincípios inspiradores da Revolução Me-xicana, iniciada em 1910. Por essa razão,tornar-se-ia despida de sentido qualqueranálise do texto constitucional mexicano(ainda em vigor, não obstante objeto deemendas) que deixasse de examinar, mes-mo que em linhas gerais, os antecedenteshistóricos que culminaram com a promul-gação, em 31/01/1917, da Constituição deQuerétaro.

Essa estrita correspondência do textoconstitucional mexicano com os pleitosconstantes da Revolução Mexicana foi en-fatizada pelo constitucionalista e ex-presi-dente da Corte Constitucional Fix-Zamudio(2001, p. 89-90), para quem “Nuestra Consti-tución actual entronca directamente con la Re-volución mexicana. Cierto que en un principioeste movimiento no llevó como objetivo haceruna nueva Constitución. Se encabezó inicialmen-te por Madero contra la dictadura de Díaz, ydespués por Carranza para restaurar el ordenconstitucional quebrantado por Huerta, pero eldesarrollo mismo de los acontecimientos condu-jo finalmente a la expedición de una nueva leyfundamental”18.

Também nesse sentido, irretocáveis aspalavras de Daniel Moreno (1973, p. 227),que, ao referir-se à Assembléia Constituinteconvocada para elaboração da ConstituiçãoMexicana de 1917, assim se manifestou:

“Poucas vezes o pensamento jurí-dico foi devedor de forma tão determi-nante da realidade social e das idéiaspostas em jogo, como no caso da men-

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cionada Assembléia. Foram assinala-das como causas fundamentais algu-mas de tipo econômico, sobretudo adura exploração que sofriam os cam-poneses e as paupérrimas condiçõesem que viviam os operários”.

Na realidade, apesar de a elaboração deum novo texto constitucional não ter sido,de fato, um dos objetivos da Revolução Me-xicana, não é menos exato afirmar que o tex-to constitucional que sobreveio à dita revo-lução deu expressão máxima às aspiraçõespor ela reivindicadas.

Com efeito, a Revolução Mexicana ini-ciou-se em 1910, e o período de agitaçõessociais e políticas no México estendeu-sepor quase vinte e três anos após a promul-gação da Carta Política de 191719.

A Revolução Mexicana mobilizou, emseu processo, milhões de camponeses e ín-dios (estes, despojados que foram dos “eji-dos”20) e se insurgia, essencialmente, con-tra a ditadura do Presidente Porfírio Díaz,que perdurou de 1876 a 1911 e ficou conhe-cida como “porfiriato”.

Porfírio Diaz era apoiado, em seu gover-no, pelo exército, que possuía o poder depolícia do Estado, pela Igreja Católica, quetinha ampla liberdade de ação, por grandesempresas privadas (inclusive de origem es-trangeira) e pelos grandes proprietários deterra, que haviam sido beneficiados com apolítica de extinção dos “ejidos”.

Torna-se claro perceber, portanto, desdelogo, que as principais reivindicações revo-lucionárias consistiam na proibição da ree-leição do Presidente da República21, no re-torno dos “ejidos” e devolução das respec-tivas terras às comunidades indígenas, nanacionalização das grandes empresas e ban-cos, na consolidação de direitos trabalhis-tas à classe média emergente e na separa-ção radical entre Igreja e Estado.

O crescente autoritarismo de PorfírioDíaz passa à insustentabilidade, marcan-do o início do processo revolucionário quecanalizou as insatisfações nacionais, naseleições presidenciais de 1910, quando o

latifundiário liberal Francisco Madero, líderdo movimento que se opunha à reeleição doditador, é preso. Candidato único, Díaz éconsiderado eleito uma vez mais.

Francisco Madero, ao fugir da prisão,exila-se nos Estados Unidos, lança uma con-clamação à rebelião armada destinada aderrubar Díaz e promete que, em havendoum novo governo, seria elaborada uma re-forma eleitoral e seriam distribuídas terrasaos camponeses.

A resposta mexicana à proposta deMadero é entusiástica e rapidamente a re-volta se alastra pelo país. Ao sul, o chefecamponês de maior relevância é EmilianoZapata, que comanda vinte mil homens na“Legião da Morte”, armados com fuzis e fa-cões utilizados para o corte de cana-de-açú-car. Ao norte, por sua vez, destacam-se comolíderes Pancho Villa e Pascual Orozco.

Com o recrudescimento do levante cam-ponês, Porfírio Díaz renuncia e foge em 1911e Madero é eleito novo Presidente.

Ao contrário do esperado, no entanto,Madero não promove as prometidas altera-ções no aparelho estatal, o que gera profun-da insatisfação dos líderes camponeses queo apoiaram, notadamente de EmilianoZapata, que se recusa a desarmar seus ho-mens e exige a reforma agrária negada pelonovo Presidente.

Desatendido, Zapata promove, agoracom o apoio de Pancho Villa, uma rebeliãocontra Madero e lança, em novembro de1911, o célebre Plano Ayala, que dispunhasobre a distribuição de terra dos latifúndiospara os camponeses.

O Presidente Madero, em reação, envia ogeneral Victoriano Huerta para derrotarZapata, que repele a ofensiva do exército epassa a ser tido como um prestigiado líderdas camadas mais pobres22.

Em fevereiro de 1913, enquanto a lutaprossegue no Norte e no Sul, o generalHuerta assassina Madero e se torna o novoPresidente, o que levou à instauração de umapassageira frente da oposição, com partici-pação de Zapata e Villa, chefiada pelo libe-

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ral Venustiano Carranza, que proclama oPlano de Reconstrução Constitucional.

Sob pressão das forças revolucionárias,em julho de 1914 o general Huerta renun-cia, passando o poder para Carranza que,depois de três anos de rebelião, dá início aoprocesso de construção das novas institui-ções mexicanas, o que apenas se consolida-rá mais de cinco anos depois.

Vitoriosos, os revolucionários dividem-se, agora, em constitucionalistas (Carranzae Álvaro Obregón), que propõem, simples-mente, a reforma da Constituição Liberal de1857, e em convencionistas (EmilianoZapata e Pancho Villa), que desejam imple-mentar as propostas de transformações ra-dicais da convenção de Aguascalientes(1914)23.

Nas regiões controladas por Zapata, co-meçam a ser colocadas em prática as refor-mas do Plano Ayala, que prevê a devoluçãoda terra às comunidades indígenas, expro-priação de um terço das terras dos grandesproprietários para distribuição aos campo-neses sem terra, fundação de um Banco Agrí-cola Nacional e de um Partido Agrário econfisco total das terras de quem se opuses-se às reformas.

As medidas colocadas em prática porEmiliano Zapata, no entanto, são mais ra-dicais e vão além daquilo que foi propostono texto original do Plano Ayala. Além dareforma agrária, formam-se escolas técnicas,fábricas de ferramentas e um banco de cré-dito rural.

Venustiano Carranza, insatisfeito com asconcretizações promovidas por Zapata, de-seja institucionalizar e regulamentar as rei-vindicações revolucionárias e, em 1917, pro-mulga a nova Constituição Mexicana, ins-pirada pela doutrina anarcossindicalista deBakunin24.

Dois anos mais tarde, a nova Constitui-ção ainda era completamente ignorada peloGoverno, Zapata era assassinado a mandode Carranza (1919) e o país prossegue emguerra civil até que, em 1920, Carranza édeposto e assassinado, e assume a Presidên-

cia o general Álvaro Obregón, que, enfim,consolida a revolução.

Pancho Villa abandona a luta em 1920 eé assassinado três anos depois.

Em 1929 é fundado o Partido Revolucio-nário Nacional (PRN), rebatizado, em 1938,de Partido Revolucionário do México e, em1946, de Partido Revolucionário Institu-cional (PRI), que se torna, por décadas, ovirtual partido único no país25.

1.2. Os debates da Constituinte

Apesar de desnecessárias, algumas ano-tações referentes à Assembléia Constituinteou aos debates nela travados serão, por suapeculiaridade, registradas no presente tra-balho.

Cabe referir, neste ponto, que todas asreferências que ora se faz à ConstituinteMexicana foram extraídas da magnífica obra– já mencionada neste estudo na nota derodapé no 19 – El Constitucionalismo SocialMexicano – La integración constitucional deMéxico (1808-1988), de Jorge Sayeg Helú.

A primeira curiosidade que se gostariade enfatizar refere-se ao fato de que os mili-tares não só formavam a maioria da consti-tuinte, mas também eram os portadores dasidéias mais radicais ali suscitadas (HELÚ,1991, p. 600).

Outro dado interessante refere-se ao cur-tíssimo espaço de tempo utilizado na dis-cussão e aprovação do novo texto constitu-cional, já que a Assembléia Constituinte foiaberta em 01/12/1916 e a Constituição pro-mulgada em 31/01/1917, ou seja, apenasdois meses depois (HELÚ, 1991, p. 604).

De fato, tal como já se enfatizou quandoda análise dos antecedentes históricos daConstituição Mexicana, não havia, entre ospróprios revolucionários, posição uniformesobre a necessidade de proceder-se a umamera revisão do texto constitucional liberalde 1857 ou de confeccionar-se um novo tex-to constitucional.

Tanto é assim que, no dia da abertura daConstituinte, o Presidente Carranza (quedepois viria a matar Emiliano Zapata) apre-

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sentou ao Congresso seu projeto de “Cons-titución Reformada” (HELÚ, 1991, p. 604).

Apesar de se auto-reconhecer animadopelo melhor espírito de implementar as rei-vindicações revolucionárias, o projeto apre-sentado por Carranza foi tido como defici-ente (HELÚ, 1991, p. 605), tendo se expres-sado, no que toca “a las reformas sociales (...)en fórmulas amplias, casi abstractas, y reserva-ba su reglamentación efectiva a la ley secunda-ria” (HELÚ, 1991, p. 606).

No que se refere às freqüentes remessas,ao legislador ordinário, muito ocorrentes naConstituição Brasileira de 1988, e constan-tes do projeto de Constituição Reformadapor Carranza, assim se pronunciou Helú(1991, p. 607):

“Mucho confió Carranza en el aciertode los legisladores ordinários, al preten-der dejar a su cuidado el dictar las leyesreclamadas por el pueblo en los campos debatalla; por fortuna, empero, quienes acer-taron fueron los legisladores constituyen-tes, al haber dado el paso decisivo, logran-do romper aquel tabú que les impedia darcabida dentro de la Constitución a las fór-mulas sociales que una depurada técnicaconstitucional les aconsejaba a no incor-porar a ella”.

Feitos esses breves registros sobre algunsaspectos interessantes, relativos à Assem-bléia Constituinte Mexicana, deve-se, ago-ra, analisar em que medida os direitos cons-titucionais por ela consagrados efetivamenteinovaram em tema de concretização de di-reitos fundamentais sociais, examinando-se, também, se, em face das prescrições cons-tantes da Constituição Mexicana de 1917,pode esse documento ser tido como o pre-cursor do constitucionalismo social, que iriainfluenciar grande parte das Constituiçõesdo pós-segunda guerra.

1.3. O texto da ConstituiçãoMexicana de 1917

A Constituição Mexicana promulgadaem 31/1/1917 – e que entraria em vigor em1/5/1917 – compunha-se de 136 artigos (a

maioria deles longos e com vários incisos),além das disposições transitórias.

Esses 136 artigos foram sistematizadosem nove Títulos, que podiam, por sua vez,dividir-se em capítulos e seções.

O Título I da Constituição Mexicana de1917 era formado por quatro Capítulos,quais sejam: Das Garantias Individuais(Cap. I), Dos Mexicanos (Cap. II), Dos Es-trangeiros (Cap. III) e Dos Cidadãos Mexi-canos (Cap. IV).

O Título II possuía apenas dois Capítu-los: Da Soberania Nacional e da Forma deGoverno (Cap. I) e Das Partes Integrantes daFederação e do Território Nacional (Cap. II).

O Título III organizava-se em quatro Ca-pítulos: Da Divisão dos Poderes (Cap. I), DoPoder Legislativo (Cap. II) – este último ca-pítulo dividia-se em quatro Seções: Da elei-ção e da instalação do Congresso; Da inici-ativa e da formação das leis; Da competên-cia do Congresso e Da Comissão Permanen-te –, Do Poder Executivo (Cap. III) e Do Po-der Judicial (Cap. IV).

O Título IV tratava, unicamente, DasResponsabilidades dos Funcionários Públi-cos, o Título V, Dos Estados e da Federação,o Título VI (composto exclusivamente pelocélebre artigo 123), Do Trabalho e da Previ-dência Social. O Título VII tratava Das Dis-posições Gerais, O Título VIII, Das Refor-mas da Constituição e, finalmente, o TítuloIX cuidava Da Inviolabilidade da Consti-tuição.

Da análise de cada um dos dispositivosconstantes do texto constitucional mexica-no, observa-se que a Constituição de 1917não se limitou a consagrar, em seu corpo, asaspirações e reivindicações veiculadas pelaRevolução, garantindo, também, ao lado dasdeterminações de índole social, em seu Ca-pítulo I (Das Garantias Individuais), inú-meros direitos clássicos à liberdade.

Entre o extenso rol de direitos de primei-ra dimensão constantes do Capítulo I doTítulo I da Constituição Mexicana, desta-cam-se os seguintes: proibição da escravi-dão (art. 2o); igualdade entre os sexos (art.

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4o); liberdade de expressão e de informação(art. 6o); vedação à censura prévia (art. 7o);direito de petição (art. 8o); liberdade de reu-nião e de associação (art. 9o); direito à livrecirculação (art. 11); princípio do juiz natu-ral e proibição de juízo de exceção (art. 13);irretroatividade das leis prejudiciais aos ci-dadãos (art. 14); devido processo (art. 14, §1o); legalidade em matéria penal (art. 14, §2o); vedação à extradição por crimes políti-cos (art. 15); inviolabilidade de domicílio(art. 16); sigilo de correspondências (art. 16,§ 2o); vedação ao exercício arbitrário daspróprias razões (art. 17); acesso gratuito aoPoder Judiciário (art. 17, § 1o); vedação deprisão por dívida (art. 17, § 3o); garantias doacusado (art. 20 – frise-se, no ponto, que osistema penal mexicano funda-se sobre a“base do trabalho”); vedação de penas cru-éis (art. 22); princípio do non bis in idem (art.23); liberdade religiosa (art. 24); mandato deseis anos conferido ao Presidente da Repú-blica, “que por nenhum motivo poderá vol-tar a desempenhar este posto”26 (art. 83 –direito à alternância política), e separaçãoEstado/Igreja (art. 130).

Ao lado dos direitos de liberdade acimareferidos, a Constituição Mexicana de 1917previu, também, direitos e garantias de se-gunda dimensão. Estes – apesar de cons-tantes, em sua essencialidade, nos arts. 27 e123 – não se concentram em um único Capí-tulo da Constituição, apresentando-se, aocontrário, dispersos ao longo de todo o tex-to da Carta Política.

Sob tal aspecto, deve-se destacar as se-guintes previsões: proteção à família (art.4o)27, direito à saúde, de incumbência da Fe-deração e das entidades federativas (art. 4o,§ 2o), direito à moradia digna, a ser concreti-zado por meio de apoio Estatal (art. 4o, § 3o),proteção pública dos menores (art. 4o, § 4o),direito ao trabalho e ao produto que deleresulta (art. 5o), proibição de contratos queimportem na perda de liberdade do indiví-duo (art. 5o, § 4o)28 e a vedação à constituiçãode monopólios (art. 28 – direito esse de na-tureza eminentemente econômica).

Além de tais direitos de segunda dimen-são, a Constituição Mexicana previu, em li-nhas gerais, em seu artigo 27 (pertinente àquestão agrária no México e tido como umdos pilares da consagração, no texto consti-tucional, das idéias fulcrais da Revolução),a propriedade da nação relativamente àsterras e águas (que podiam, ou não, ser trans-mitidas a particulares, mediante proprieda-de privada), a possibilidade de desapropri-ação de terras por utilidade pública, medi-ante indenização, a proteção da pequenapropriedade (art. 27, XV) e a função socialda propriedade.

Ao lado da questão agrária, tratada noart. 27 da Constituição, o artigo 123 (quecompunha o Título VI: Del Trabajo e de Previ-sion Social) consubstanciava o outro pilarsustentador da consagração das aspiraçõesrevolucionárias em sede constitucional.

Destacam-se, nesse dispositivo – tido poralguns doutrinadores como inaugurador doDireito Constitucional do Trabalho –, as se-guintes prescrições: direito ao emprego ecorrelata obrigação do Estado de promovera criação de postos de trabalho (art. 123,“caput”); jornada de trabalho máxima deoito horas (I); jornada noturna de seis horas(II); proibição do trabalho aos menores de14 e jornada máxima de seis horas aos mai-ores de 14 e menores de 16 (III); um dia dedescanso para cada 6 dias trabalhados (IV);direitos das gestantes (V); salário mínimodigno (VI), a ser estabelecido por uma co-missão nacional formada de representan-tes dos trabalhadores, patrões e do governo;direito a salários iguais aos que exercemiguais funções, sem discriminação de gêne-ro ou nacionalidade (VII); participação dostrabalhadores nos lucros das empresas (IX);horas extras limitadas a três diárias, reali-zadas no máximo três dias consecutivos, eacrescidas de 100% (XI); criação de um fun-do nacional de habitação, a ser administra-do pelo Governo Federal, pelos trabalhado-res e pelos patrões (XII, § 1o); direito à capa-citação ao trabalho (XIII); responsabilidadedo empregador por acidente de trabalho

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(XIV); direito à formação de sindicatos (XVI);direito de greve, reconhecido inclusive emfavor dos patrões e em favor dos funcionári-os públicos (art. XVII); criação das juntas deconciliação, formadas por igual número derepresentantes dos trabalhadores e dos pa-trões e por um representante do governo(XX); direito à indenização em caso de de-missão sem justa causa (XXII) e reconheci-mento da utilidade pública da Lei de Segu-ro Social, que compreenderá “seguros porinvalidez, por velhice, seguros de vida, deinterrupção involuntária do trabalho, de en-fermidades e acidentes de trabalho e qual-quer outro seguro destinado à proteção e aobem-estar dos trabalhadores, dos campone-ses, dos não-assalariados e de outros seto-res sociais e respectivos familiares” (XXIX –traduzi).

Interessante notar que, não obstante o rolde direitos conferidos ao trabalhador sejade notável abrangência e extensão (deixan-do de observar, por isso mesmo, a melhortécnica constitucional29 ao estabelecer, emsede constitucional, prescrições de índoleeminentemente infraconstitucional30), nãofoi a classe trabalhadora relevante no pro-cesso revolucionário mexicano, pois, con-soante já assinalado, a população mexica-na que, em 1910, deu início ao movimentocontrário ao ditador Porfírio Díaz era emi-nentemente composta por camponeses jáque o México ainda não tinha experimenta-do um processo de industrialização que opermitisse contar com uma numerosa clas-se operária.

Daí por que parece ser o artigo 27 – per-tinente à questão agrária mexicana – aqueleque incorporou, de uma maneira mais fiel,as legítimas reivindicações constantes darevolução e aquele que atendeu, de maneiramais imediata, os pedidos que mais afeta-vam, diretamente, a vida dos mexicanos.

Nesse sentido, manifesta-se Ary Brandãode Oliveira (1991, p. 66), que, citando Nestorde Buen (1977, p. 232) e ao colocar em desta-que o viés eminentemente camponês da re-volução mexicana, afirma que “a questão

operária ainda não se fazia sentir em umpaís que apenas iniciava seu processo deindustrialização. Por outro lado, a sensibi-lidade dos jovens generais e chefes revolu-cionários orientava-se no sentido da ado-ção de soluções enérgicas na ordem jurídi-ca laboral”.

Mário de la Cueva (1960), ao enfatizar aimportância do art. 123 da ConstituiçãoMexicana e ao investigar as origens do mo-vimento em prol de uma legislação traba-lhista no México, adverte que a ingerênciano desenvolvimento do direito do trabalhomexicano deve-se, unicamente, ao governopresidencialista, não tendo assumido a clas-se operária nenhuma participação nesseprocesso.

Registre-se, finalmente, um aspecto pou-co referido da Constituição Mexicana de1917: a sua nítida integração, ao lado dosdireitos de primeira e de segunda dimen-são, de direitos fundamentais de terceira di-mensão.

Com efeito, como se sabe, os direitos deterceira geração são aqueles que protegemnão o homem, considerado isoladamente,mas, sim, a coletividade como um todo, ra-zão pela qual trata-se de direitos de titulari-dade difusa, fundados nos princípios dafraternidade ou da solidariedade. No rol dosdireitos fundamentais de terceira dimensão,incluem-se, por exemplo, o direito a um meioambiente equilibrado, o direito à paz, à au-todeterminação dos povos e à preservaçãodo patrimônio histórico e cultural31.

O artigo 3o da Constituição Mexicana,ao versar sobre o sistema público de educa-ção, afirma que este deverá promover, alémde todas as faculdades do ser humano, “aconsciência da solidariedade internacio-nal”, em claro beneplácito ao princípio ins-pirador dos direitos de terceira dimensão ecom nítida percepção de que determinadosvalores devem ser protegidos não apenasem relação ao indivíduo (primeira dimen-são) ou a uma coletividade nacional (segun-da dimensão), mas, sobretudo, em face detoda a comunidade (terceira dimensão).

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No artigo 25, que trata sobre a interven-ção do Estado no domínio econômico, afir-ma-se que os setores sociais e privados daeconomia sujeitam-se aos interesses públi-cos e ao uso, em benefício geral, dos recur-sos produtivos, devendo-se cuidar, portan-to, de “su conservación y el médio ambiente”(art. 25, § 4o).

No artigo 27, por sua vez, ao serem dis-ciplinados a reforma agrária e o modo deorganização dos assentamentos, reconhece-se a necessidade de se editar medidas para“preservar y restaurar el equilibrio ecológico”e, também, para “evitar la destrucción de loselementos naturales”.

Da análise dessas três passagens cons-tantes do texto constitucional mexicano,pode-se concluir que tal diploma não ape-nas reconheceu e positivou direitos de ter-ceira dimensão, mas também – ao colocá-losem relação de recíproca interação e mútuainfluência com outros direitos fundamentais,como, por exemplo, o direito à propriedade(1a dimensão) e a função social da proprieda-de (2a dimensão) – teve nítida percepção docaráter complementar que lhes é inerente.

2. A Constituição daRepública de Weimar (1919)

2.1. Antecedentes históricos

Assim como a Constituição Mexicanaque cronologicamente lhe antecedeu, tam-bém a Constituição de Weimar nasceu numperíodo de profundas perturbações sociais.

Para analisar o contexto histórico em quese deu o advento da Constituição deWeimar, deve-se remeter à vitória alemã,liderada por Bismarck, na Guerra Franco-Prussiana (1870) e ao estímulo que essa vi-tória representou para o início da luta deunificação federalizada dos principados edas cidades livres de língua alemã na Con-federação Germânica.

Concretizada, sob o reinado do KaiserGuilherme II, a criação do Primeiro Reich, aAlemanha experimentou um notável cres-cimento urbano-industrial, o que gerou um

aumento em sua classe operária militante e,conseqüentemente, nas reivindicações porela manifestadas.

Essa realidade de prosperidade internarepresentou, também, um dos fatores queimpulsionaram a Alemanha a tomar partena acirrada disputa européia por fatias demercado consumidor e, conseqüentemente,a participar da Primeira Grande Guerra, daqual saiu como grande derrotada.

A entrada da Alemanha na PrimeiraGuerra, no entanto, trouxe profundas con-seqüências internas, causadas pelo eleva-do número de mortos e feridos32 e, também,pela profunda crise econômica que se aba-teu sobre um país totalmente voltado a ati-vidades bélicas33.

Marco Aurélio Peri Guedes (1998, p. 35),em sua dissertação de mestrado, afirma que“a guerra começou em 4 de agosto de 1914,sem que a Alemanha estivesse economica-mente preparada. Na verdade – prossegueele – os militares e os políticos esperavamque a guerra fosse vencida em poucas se-manas. Não houve qualquer preocupaçãogovernamental em estocar alimentos parauma guerra em longo prazo, até porque tudoestava concentrado no esforço de guerra”.

Nos últimos anos de guerra, a situaçãointerna na Alemanha é de profundo caos, oque também foi agravado pelo intenso blo-queio naval inglês, que trouxe escassez dealimentos à população e conseqüente infla-ção de preços (GUEDES, 1998, p. 37).

Nesse contexto, levantes começam a eclo-dir em toda a Alemanha, levantes esses que,agora, além de decorrerem da miséria e dacrise social internas, eram também inspira-dos pelo recente e próximo exemplo daUnião Soviética34.

Iniciou-se uma verdadeira revoluçãobolchevista no seio do Reich. Os partidos deextrema esquerda – espartaquistas e socia-listas independentes – exigiam a dissolu-ção das instituições parlamentares alemãs(SILVA, F., 1991, p. 42).

Em novembro de 1918, eclodiu na Ale-manha uma rebelião naval que culminou

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por transformar-se numa guerra civil(COMPARATO, 2001, p. 196).

Lionel Richard (1988, p. 29-31) assimdescreveu a revolta que se iniciou, em 1918,no porto de Kiel:

“Os marinheiros se haviam recu-sado a seguir os oficiais que queriamcontinuar a guerra no mar. As máscondições de vida fizeram o resto: abandeira vermelha foi hasteada nosnavios e 20.000 marujos armados ocu-param o porto. Desarmaram oficiais,libertaram os prisioneiros nos quar-téis, elegeram um conselho de solda-dos. Com esse exemplo, interrompe-ram o trabalho nas fábricas. Os gre-vistas formaram um conselho de ope-rários. Após Kiel, o processo se repe-tiu em Stuttgart e Hamburgo. As esta-ções foram ocupadas, as tropas levan-taram contra os oficiais, os comandan-tes militares foram substituídos, osmeios de transporte requisitados porsoldados em revolta. Símbolos de sé-culos de opressão, as insígnias forampor toda parte destruídas; bandeirasvermelhas foram hasteadas; organi-zaram-se conselhos de operários e desoldados...”.

A reforma constitucional do texto ale-mão, de 3/11/1918, que determinou a par-lamentarização da Alemanha e que passouo poder ao Príncipe Max von Baden35 (quetambém estava incumbido de celebrar o ar-mistício com os Estados Unidos), foi, por-tanto, tardia e não conteve o fluxo das agita-ções sociais (BRUNET, 1921, p. 32-33).

Na linha do relato histórico feito porComparato (2001, p. 196-198), tem-se que,logo após a reforma constitucional de 03/11/1918, em 8/11/1918, uma República“Democrática e Socialista” era proclamadana Baviera.

Sentindo que a esquerda mais radical –especialmente o grupo Spartak, liderado porKarl Liebknecht – ganhava o apoio das li-deranças populares, os sociais democratas(integrantes do partido socialista majoritá-

rio) abandonam definitivamente o governoe convocam uma greve geral.

O Príncipe Marx, então, anuncia a abdi-cação do Imperador, designa FriederichEbert (líder dos social-democratas) paraexercer as funções de chanceler, propondo,ainda, a convocação de uma AssembléiaNacional Constituinte. Precipitando-se, noentanto, Philip Scheidemann, ministro in-tegrante da social-democracia, anuncia, nomesmo dia, no balcão da chancelaria emBerlim, a proclamação da República36.

Formou-se, então, um governo provisó-rio (Conselho dos Delegados do Povo), che-fiado por Ebert e que compreendia três inte-grantes da social-democracia (SPD) e outrostrês integrantes do Partido Social Democrá-tico Independente (USPD)37. Esse governoprovisório, no entanto, tinha objetivos di-vergentes38, pretendendo o SPD a convoca-ção de assembléia constituinte e o estabele-cimento de uma democracia parlamentar,enquanto o USPD buscava o imediato esta-belecimento de uma ditadura do proletaria-do, com a completa socialização da econo-mia nos moldes soviéticos.

Essa divergência foi solucionada medi-ante a convocação de um congresso de re-presentantes das diferentes províncias in-tegrantes do Reich, que, reunido em Berlim,em 20/01/1919, deliberou, por ampla mai-oria, no sentido da convocação de uma as-sembléia constituinte.

O local escolhido para sediar a Assem-bléia Constituinte foi Weimar, eis que, alémde trazer a inspiração de Goethe, que ali vi-vera, ficava afastada das lutas travadas emBerlim em função do levante spartakista39.

É que dias antes (entre 6 e 15 de janeiro)as forças militares alemãs travaram violen-tos conflitos em Berlim contra os militantesSpartak, do que resultou o assassinato de seuslíderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

Convocadas as eleições para a Assem-bléia Constituinte, antecipava-se aquilo queseria uma das causas da ruptura de Weimar:a absoluta fragmentação política e ausênciade maioria positiva no Parlamento40.

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Sob tal aspecto, irretocáveis as palavrasde Bourthoumieux (1950, p. 28):

“Cette dissociation du pouvoir réelet du pouvouir legal caractérise dês lêdébut la période nouvelle et marquece qui em será la loi constante: neces-site de réaliser et de maintenir umcompromis entre dês forces naturelle-ment divergentes. Ce compromis, uni-quement imposé par la crainte com-mune de la Révolution n’est qu’unetréve momentanée pour les adversai-res de la République. Il ne supposeaucun accord sur les questions politi-ques et sociales. Cet accord n’existmême pas dans la coalition républi-caine des socialistes, des democratset du centre. Dés les premières séan-ces de l’Assemblée nationale, il fut vi-sible que seuls les discourses qui exal-taient l’heroisme des armées et repous-saient toute responsabilité du Reichdans la guerre étaient capable de fairel’unnanimité”.

Os membros do SPD obtiveram a maio-ria das cadeiras41, mas não sua maioria ab-soluta (163, num total de 414). As demaiscadeiras restaram pulverizadas entre parti-dos de tendências diversas, ficando o USPD,com apenas 22 representantes. Os spartak42

não participaram da Assembléia Constitu-inte43.

O projeto da Constituição de Weimar foiredigido por Hugo Preuss, professor de ori-gem judaica adepto do comunitarismo, atéentão alijado do centro acadêmico alemão44,discípulo de Otto v. Gierke e influenciadopor Weber, que era considerado um dos pou-cos juristas de tendências de esquerda45.

Em 9 de julho de 1919, a Assembléia ra-tificaria o Tratado de Versalhes (verdadeiroDiktat) – que, pelas duras penalidades eindenizações econômicas que impôs àAlemanha, representaria um outro fator de-terminante do colapso de Weimar em 1933(após o golpe final desferido pela Crise de1929) – e, em 11 de agosto de 1919, restavapromulgado o novo texto constitucional da

república alemã (agora, uma República Fe-derativa, formada por 17 Länder).

2.2. O texto da Constituiçãode Weimar de 1919

A Constituição Alemã de 1919 era com-posta por 165 artigos (excetuando-se as dis-posições transitórias), divididos em dois li-vros: Livro I, relativo à “Estrutura e Fins daRepública”, e Livro II, pertinente aos “Di-reitos e Deveres Fundamentais do CidadãoAlemão”.

O Livro I, por sua vez, ao dispor sobre aestrutura e as finalidades da República, di-vidia-se em sete capítulos, quais sejam: Ca-pítulo I (A República e os estados); CapítuloII (O Parlamento); Capítulo III (O Presidenteda República e o Governo Federal); Capítu-lo IV (O Conselho da República); CapítuloV (A Legislação da República), Capítulo VI(A Administração da República) e CapítuloVII (A Administração da Justiça).

O Livro II do texto constitucional deWeimar, que estabelecia os direitos e os de-veres fundamentais do cidadão alemão,possuía os seguintes capítulos: Capítulo I(A pessoa individual); Capítulo II (A vidasocial); Capítulo III (Religião e agrupamen-tos religiosos); Capítulo IV (Educação e es-cola) e Capítulo V (A vida econômica).

O Livro I, enquanto veiculador da orga-nização do Estado, da estruturação de seusórgãos e dos limites de atuação dos Länderem face do Reich e de cada um dos PoderesPolíticos em relação aos demais, não trazmaiores inovações, eis que, em regra, os tex-tos políticos destinam-se a estabelecer pres-crições de tal natureza46.

Foi sobre o Livro II, no entanto (que com-preende os artigos 109 a 165), que incidiumaior parte da atenção dos estudiosos. Nãofaltaram críticas aos direitos e garantias neleconstantes. Técnicas de hermenêutica foramaprimoradas para permitir que os direitosfundamentais conferidos por esses disposi-tivos ao povo alemão pudessem alcançarnível mais elevado de concretização. Che-gou-se também a sustentar que a Constitui-

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ção Alemã possuía uma contradição abso-luta entre seus dois livros, que estabeleciamuma organização liberal de Estado, de umlado, e conferiam direitos de natureza soci-alista, de outro (SCHMITT, 1982).

O fato, no entanto, é que o rol sistemati-zado de direitos constante do Livro II daConstituição de Weimar, ao garantir tantoliberdades públicas como prerrogativas deíndole social, notabilizou e celebrizou aConstituição Alemã de 1919, que, não obs-tante suas imperfeições – inerentes a todaobra humana –, inspirou textos constitucio-nais por todo o mundo, inclusive no Brasil(Constituição de 1934).

Não obstante seja o Livro II dividido emcinco capítulos temáticos (A pessoa indivi-dual; A vida social; Religião e agrupamen-tos religiosos; Educação e escola e A vidaeconômica), revela-se incompleto o estudoque, partindo apenas da análise dos respec-tivos títulos, pretenda classificar, a priori,quais dimensões de direitos fundamentaisforam contempladas em cada um desses ca-pítulos.

É que o Capítulo II, por exemplo – quetem como tema central “A vida social” – ,não apenas dispõe, ao contrário do que podeparecer, sobre direitos fundamentais de ín-dole social, possuindo, também, prescriçõesde natureza eminentemente liberal, consa-gradoras das chamadas liberdades públi-cas, tal como aquela referente ao direito depetição (Capítulo II, art. 126).

Desse modo, apesar de a Constituiçãode Weimar possuir, como característica, aorganização e sistematização de seus pre-ceitos (ao contrário do que se verifica naConstituição Mexicana), ainda assim as di-versas espécies de direitos fundamentaisencontram-se dispersas no corpo do textoconstitucional, devendo-se, portanto, paraidentificá-las, proceder a um exame de cadaum dos 165 artigos da referida Carta Política.

Desse modo, entre o extenso rol de direi-tos fundamentais de primeira geração cons-tantes da Constituição de Weimar, desta-cam-se os seguintes: direito à igualdade (art.

109); igualdade cívica entre homens e mu-lheres (art. 109, § 1o); direito à nacionalida-de (art. 110); liberdade de circulação no ter-ritório e para fora dele (art. 111 e 112); direi-to das minorias de língua estrangeira (art.113); inviolabilidade de domicílio (art. 115);irretroatividade da lei penal (art. 116); sigi-lo de correspondência e de dados telegráfi-cos ou telefônicos (art. 117); liberdade demanifestação do pensamento (art. 118); ve-dação à censura, exceto para proteger a ju-ventude e para combater a pornografia e aobscenidade47 (art. 118, § 1o); proteção aomatrimônio e à família (art. 119)48; igualda-de jurídica entre os cônjuges (art. 119); igual-dade entre filhos havidos na constância oufora do matrimônio (art. 121); liberdade dereunião (art. 123); liberdade de associação(art. 124); direito ao voto secreto (art. 125);direito de petição ao Poder Público (art. 126);igualdade de acesso aos cargos públicos(art. 128); direito adquirido e reivindicáveisperante o Poder Judiciário, em tema aspira-ções patrimoniais de servidores públicos esoldados de carreira (art. 129, “caput” e § 3o);liberdade de consciência e crença religiosa(art. 135); separação Estado/Igreja (art. 137);liberdade de associação religiosa (art. 137, §1o) e liberdade de sindicalização (art. 159).

Entre os direitos de segunda dimensão –que conferem o caráter social à Constitui-ção de Weimar –, devem-se destacar as se-guintes garantias: proteção e assistência àmaternidade (art. 119, § 2o e 161); direito àeducação da prole (art. 120); proteção mo-ral, espiritual e corporal à juventude (art.122); direito à pensão para família em casode falecimento e direito à aposentadoria, emtema de servidor público (art. 129); direitoao ensino de arte e ciência (art. 142); ensinoobrigatório, público e gratuito (art. 145); gra-tuidade do material escolar (art. 145); direi-to a “bolsa estudos”, ou seja, à “adequadasubvenção aos pais dos alunos considera-dos aptos para seguir os estudos secundá-rios e superiores, a fim de que possam co-brir a despesa, especialmente de educação,até o término de seus estudos” (art. 146, §

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2o); função social da propriedade49; desapro-priação de terras, mediante indenização,para satisfação do bem comum (art. 153, §1o); direito a uma habitação sadia (art. 155);direito ao trabalho (art. 157 e art. 162); pro-teção ao direito autoral do inventor e do ar-tista (art. 158); proteção à maternidade, àvelhice, às debilidades e aos acasos da vida,mediante sistema de seguros, com a diretacolaboração dos segurados (art. 161 – pre-vidência social); direito da classe operária a“um mínimo geral de direitos sociais” (art.162); seguro-desemprego (art. 163, § 1o) edireito à participação, mediante Conselhos– Conselhos Operários e Conselhos Econô-micos –, no ajuste das condições de trabalhoe do salário e no total desenvolvimento eco-nômico das forças produtivas, inclusive me-diante apresentação de projeto de lei (art. 165).

Registre-se, por oportuno, que, tal comoocorre com a Constituição Mexicana de 1917,também um aspecto da Constituição deWeimar costuma ser desconsiderado peladoutrina: a existência, no corpo de seu tex-

to, de dispositivo destinado unicamente acontemplar direitos fundamentais de tercei-ra dimensão.

Com efeito, o art. 150 da Constituição daRepública Alemã de 1919, ao dispor que “osmonumentos de arte, históricos e naturais,bem como a paisagem, gozam da proteção eincentivo estatais”, positivou, em sede cons-titucional, típicos direitos de terceira dimen-são, titularizados por toda a coletividade econsistentes na garantia de preservação domeio ambiente (“monumentos naturais” e“paisagem”) e de conservação dos patrimô-nios históricos e culturais (“monumentoshistóricos” e “monumentos de arte”).

3. Uma análise comparativa dostextos da Constituição Mexicana e

da Constituição de Weimar

Inicialmente, procederemos a um cotejodas disposições constantes de cada uma des-sas Cartas Políticas, relativamente aos direi-tos fundamentais de primeira dimensão:

Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão.

Constituição Mexicana de 1917 Constituição de Weimar de 1919

Direito à igualdade Art. 4o Art. 109 Liberdade de circulação no território nacional e para fora dele Art. 11 Arts. 111 e 112

Direitos das minorias – Art. 113 Inviolabilidade de domicílio Art. 16 Art. 115 Irretroatividade da lei penal Art.14 Art. 116

Sigilo de correspondências Art. 16 § 2o Art. 117 (incluídos os sigilos aos dados telegráficos e telefônicos)

Liberdade de manifestação do pensamento Art. 6o Art. 118

Vedação à censura Art. 7o Art. 118, § 2o (exceto na proteção à juventude e no combate à pornografia)

Proteção ao matrimônio e à família (garantias institucionais) – Art. 119

Igualdade jurídica entre cônjuges – Art. 119 Igualdade jurídica entre filhos havidos na constância ou fora do matrimônio

– Art. 121

Liberdade de reunião e associação Art. 9o Arts. 123 e 124 Direito de petição ao Poder Público Art. 8o Art. 126 Igualdade de acesso aos cargos públicos – Art. 128

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Do exame do quadro acima, pode-se per-ceber que as duas Constituições tiverampercepção semelhante no que se refere ànecessidade de não apenas abranger-se aproteção constitucional aos direitos de índo-le social, mas, também, de se preservar o con-teúdo das liberdades públicas já alcançadas.

Não há nada de discrepante entre os doistextos constitucionais em exame (Constitui-ção Mexicana de 1917 e Constituição deWeimar de 1919) que indique que qualquerum desses diplomas (frutos, respectivamen-te, de uma revolução camponesa e de umaassembléia constituinte convocada em meioa profunda crise econômica e a perturba-ções sociais também imputáveis à ameaçasocialista) tendesse, desde seu início, à ins-tituição de regimes autoritários.

Pelo contrário, o quadro acima reflete queo rol das liberdades públicas foi ampliadonos textos Mexicanos e de Weimar, caben-do destacar, por sua vanguarda, dispositi-vo da Constituição de Weimar que assegu-rava a igualdade entre filhos havidos naconstância do matrimônio ou não.

Chama a atenção, no entanto, a ausên-cia, no texto de Weimar, de dispositivos in-tegrantes do chamado “direito processualconstitucional”, consistentes nos princípi-os básicos do devido processo legal e do juiz

natural. Nada há, no entanto, como já acen-tuado, que indique o caráter proposital des-sa “lacuna”.

No que se refere aos direitos de segundadimensão, pode-se perceber uma nítida di-ferenciação entre os dois textos quanto aostemas sociais prioritários, eleitos pelos di-plomas constitucionais para os fins de ou-torgar-se especial proteção.

Com efeito, pode-se observar que a Cons-tituição Mexicana – apesar de ter reconhe-cido outros direitos, como o direito à educa-ção (art. 3o), à saúde (art. 4o, § 2o) e o direito àmoradia (art. 4o, § 3o) – concentrou-se, demaneira sensível – e até mesmo em razão desua origem –, na solução das questões agrá-rias (art. 27) e dos direitos trabalhistas (art.123).

Os direitos sociais fulcrais no ordena-mento jurídico mexicano são o reconheci-mento da função social da propriedade e dapossibilidade de esta ser distribuída pordesapropriação, de um lado, e a outorga deespecial proteção ao trabalhador, inclusivemediante a instalação de um regime de pre-vidência social, de outro.

Na realidade, uma análise dos textosconstantes dos arts. 27 e 123 revela que to-dos os demais direitos ali elencados decor-rem, materialmente, do direito de proteção

Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão.

Constituição Mexicana de 1917 Constituição de Weimar de 1919

Direitos adquiridos – Art. 129, “caput” e § 3o (relativamente a

pretensões pecuniárias relativas a servidores públicos e soldados de carreia

Liberdade de consciência e crença religiosa Art. 24 Art. 135

Separação Estado/Igreja Art.130 Art. 137 Proibição à escravidão Art 2o – Princípio do juiz natural e proibição de juízo de exceção Art. 13 –

Devido processo Art. 14 § 1o – Vedação ao exercício arbitrário das próprias razões Art. 17 –

Acesso gratuito ao Poder Judiciário Art. 17 § 1o – Vedação de prisão por dívida Art. 17, § 3o – Princípio do “non bis in idem” em matéria criminal Art. 23 –

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ao trabalho, de um lado, e da função socialda propriedade, de outro.

Esse aspecto, por óbvio, não pode, demaneira alguma (e nem aqui se pretendeisso), desqualificar o texto constitucionalmexicano, indubitavelmente a Constituiçãoque, cronologicamente, instaurou a fase doconstitucionalismo social ao prever, em seucorpo, ao lado das liberdades clássicas, di-reitos fundados na essencial igualdadematerial dos indivíduos, garantindo aoscamponeses a possibilidade de obtenção deterra mediante sua redistribuição pelo Go-verno e o respeito à pequena propriedaderural e assegurando aos trabalhadores di-reitos mínimos, como aqueles relativos à jor-nada de trabalho, à fixação de um saláriomínimo, à especial proteção conferida aosambientes de trabalho periculosos ou insa-lubres, à participação nos lucros das em-presas, à proteção à trabalhadora gestante eà possibilidade de se submeter as contro-vérsias decorrentes do contrato de trabalhoa um órgão de julgamento neutro, compostopor igual número de representantes de tra-balhadores e patrões e por um membro dogoverno.

Os avanços alcançados pela Constitui-ção Mexicana de 1917 em tema de direitoagrário e de direito do trabalhador são, por-tanto, irrecusavelmente notáveis.

Deve-se destacar, no entanto, que, ape-sar da histórica primazia cronológica mexi-cana em tema de positivação constitucionalde direitos de natureza social, a abrangên-cia e a extensão nas quais esses direitos fo-ram consagrados (com enfoque nas ques-tões agrárias e trabalhistas) fizeram com queo exemplo Mexicano, não obstante inspira-dor, culminasse por configurar um modelode referência quase que regional, muito ade-quado à realidade daquele país, mas poucouniversalizante.

Com efeito, as reivindicações concernen-tes à necessidade de se conferir especial pro-teção aos trabalhadores em geral, consoan-te se observou do breve relato do contextohistórico do pós-guerra, eram praticamente

globais, ao menos em tema de mundo oci-dental (até mesmo em face do exemplo e daameaça soviéticos).

O advento de uma nova classe operária,mais organizada em função de seus interes-ses, foi conseqüência de um processo de in-dustrialização da produção que, em uma ououtra medida e em graus diversos de inten-sidade, atingiu a quase totalidade dos paí-ses europeus e americanos, o que fez comque reivindicações de direitos trabalhistasfossem uma constante na época.

Sob tal aspecto, a Constituição Mexica-na desempenhou papel de vital importân-cia, pois não apenas reconheceu direitos,mas, também, conferiu-lhes estatura consti-tucional, tudo a significar a especial prote-ção de que seriam titulares.

Irretocáveis, no ponto, as palavras deKarl Loewenstein (1970, p. 401):

“Como postulados expressamen-te formulados, os Direitos Fundamen-tais socioeconômicos não são absolu-tamente novos: alguns deles, como odireito ao trabalho, foram inscritos nasConstituições Francesas de 1793 e1848. Mas foi apenas em nosso sécu-lo, depois da primeira e, em maior grauainda, depois da segunda guerramundial, que se converteram no equi-pamento-padrão do constitucionalis-mo. Foram proclamados pela primei-ra vez na Constituição Mexicana de1917, que, com um salto, se poupoutodo o caminho para realizá-los: to-das as riquezas naturais foram naci-onalizadas e o Estado assumiu com-pletamente, pelo menos no papel, aresponsabilidade social para garan-tir uma existência digna a cada um deseus cidadãos”.

Deve-se registrar, no entanto, a advertên-cia de Mario de la Cueva (1960), que, ao co-locar em destaque a falta de originalidadedo art. 123 da Constituição Mexicana, afir-ma que a maioria das disposições ali conti-das já eram conhecidas de outros povos. Olegislador mexicano, segundo ele, inspira-

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va-se visivelmente nas experiências de paí-ses como França, Bélgica, Itália, EstadosUnidos, Austrália e Nova Zelândia.

A circunstância de que o conteúdo ma-terial das prescrições trabalhistas veicula-das pela Constituição Mexicana já haviasido contemplado em outros textos legaiseuropeus associada, ainda, ao fato de que,na Europa, a questão agrária, de longe, nãoassumia as feições com que ela se registravano México culminaram por fazer com que aConstituição Mexicana tivesse, ela própria,pouca influência na confecção das outrasconstituições que aderiram ao modelo doconstitucionalismo social.

Utilizando-se de expressão constante dotexto de Loewenstein, pode-se afirmar que aConstituição Mexicana, apesar de cronolo-gicamente pioneira, culminou por não as-sumir a condição de “equipamento-pa-drão”, inspirador e conformador dos textosconstitucionais posteriores.

A questão dos direitos trabalhistas, degrande relevância na época, não era novanos países europeus (não obstante tais pres-crições não estivessem contidas, tão deta-lhadamente, em textos constitucionais).Também o tratamento dado à questão agrá-ria mexicana, por peculiar, não poderia serestendido, de maneira irrestrita, às futurasConstituições.

Adicione-se a isso, ainda, a existência, àépoca, de poucos doutrinadores mexicanosque, ao analisarem a Constituição de 1917,difundissem, por suas obras, as conquistassociais alcançadas em continente america-no. Como resultado, tem-se a pouca reper-cussão, fora daquele país, do texto constitu-cional mexicano.

Ao contrário disso tudo, a Constituiçãode Weimar, que nascia dois anos após, pre-via, ao lado dos direitos dos trabalhadorese do estabelecimento da função social dapropriedade, um rol sistematizado de ou-tros direitos, do qual se destacam, por exem-plo, o avançado sistema de educação públi-ca, obrigatória e gratuita, que previa, inclu-sive, a gratuidade do material escolar e a

subvenção de famílias carentes para queseus filhos pudessem ir à escola (arts. 145 e146). O sistema de previdência social, porsua vez, foi estabelecido de maneira maisorganizada e explícita, com previsão de par-ticipação do segurado (art. 161), sendo, ain-da, dividido em regime de previdência dosetor público – para funcionários públicos(art. 129) – e regime geral de previdência (art.161). Estabeleceu-se, também, como meio deincentivo à pesquisa, o direito à proteçãoautoral do inventor e do artista (art. 158).

O Capítulo V da Constituição de Weimar,por sua vez, ao tratar sobre “A vida econô-mica”, estabeleceu, ao lado de prescriçõescomo a pertinente à função social da pro-priedade (art. 153) e à criação de um re-gime previdenciário (art. 161), um sistemade participação de empregados (“de todosos grupos profissionais importantes”) na con-dução das políticas de “desenvolvimento eco-nômico das forças produtivas” (art. 165).

Essa participação era concretizada pormeio dos celebrizados Conselhos Operári-os (que se organizavam, em termos de abran-gência, da seguinte maneira: conselho ope-rário de empresa, conselho operário de cir-cunscrição e Conselho Supremo do Trabalho,além dos Conselhos Econômicos de circuns-crição e do Conselho Supremo de Economia).

Nos termos da Constituição Alemã, “to-dos os projetos de lei político-sociais ou po-lítico-econômicos, de importância funda-mental, devem passar pelo conhecimento doConselho Supremo de Economia, antes deserem apresentados” (art. 165, § 2o). O Con-selho Supremo de Economia, ele próprio,também tinha poderes para apresentar pro-jetos de lei de sua iniciativa.

Com a instituição dos Conselhos, a Cons-tituição de Weimar reconheceu não apenasa necessidade de intervenção estatal em de-terminadas esferas, para os fins de viabili-zar a fruição, por um maior número de pes-soas, dos direitos fundamentais por ela pre-vistos, mas estabeleceu, também, que os ter-mos, as medidas e os modos com os quaisessa intervenção se efetivaria deveriam con-

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tar com o apoio, o respaldo e a opinião dascategorias econômicas envolvidas.

As prescrições de direitos fundamentaissociais constantes da Constituição deWeimar, desse modo, parecem concretizarpreocupações de caráter menos regional emais abstratas e universalizantes50, maisadaptáveis, portanto, à realidade de outrospaíses e, por isso mesmo, mais inspiradoras.

Adicione-se a isso tudo o fato de a Cons-tituição de Weimar vir acompanhada e en-riquecida por um intenso debate, travadoentre nomes de peso (como, por exemplo,Schmitt, Kelsen, Heller, Anschütz, Smend,entre outros tantos), que, seja criticando, sejapreservando, culminou por dar expressão edivulgar a experiência alemã para o restan-te do mundo.

Parecem irretocáveis, desse modo, aspalavras de Ary Brandão de Oliveira (1991,p. 67), que, ao referir-se à Constituição Me-xicana de 1917, assim se pronunciou:

“Efetivamente, seria faltar à verda-de afirmar uma repercussão que ine-xistiu. Em termos genéricos, a Europadesconheceu a legislação mexicana.As atenções do mundo jurídico se vol-taram para a Constituição alemã deWeimar, a cuja promulgação seguiu-se vigorosa literatura. Nesse particu-lar, a avançada posição mexicana viu-se prejudicada pela escassez de estu-dos doutrinários a seu respeito”.

Também nessa linha é o entendimentode Dario José Kist (2000, p. 95-96), paraquem, embora seja a Constituição Mexica-na “um dos primeiros marcos da legislaçãosocial”, a “principal das legislações consti-tucionais de cunho social que apareceramfoi a Constituição Alemã de 1919”, eis que oadvento do diploma constitucional mexica-no se deu “sem maiores expressões e influ-ências fora do México”.

4. Conclusão

De todo o exposto, conclui-se que a Cons-tituição Mexicana de 1917 e a Constituição

de Weimar de 1919 devem sempre ser lem-bradas, ambas, como os primeiros textosconstitucionais que efetivamente concreti-zaram, ao lado das liberdades públicas, dis-positivos expressos impositivos de umaconduta ativa por parte do Estado para queeste viabilize a plena fruição, por todos oscidadãos, dos direitos fundamentais de quesão titulares.

Um outro aspecto importante e poucolembrado das Constituições Mexicana e Ale-mã (1919) é a expressa referência, delas cons-tante, à garantia de direitos fundamentaisde terceira dimensão, como aqueles perti-nentes à proteção ao meio ambiente e aopatrimônio histórico e cultural.

A importância desses dois textos consti-tucionais, portanto, é notável, vez que dãoinício a uma nova fase do constitucionalis-mo (fase essa ainda em discussão e nova-mente posta em questionamento), que é afase do constitucionalismo social.

Advirta-se, por oportuno, que nenhumdesses textos deve ser analisado pelos re-sultados que efetivamente gerou, eis que,como se sabe, a Constituição de Weimar tevevida breve (até 1933), tendo assistido aoadvento do regime nazista, e o diplomaMexicano, embora em regime de plena vi-gência, tenha questionados, por alguns dou-trinadores, seus atributos de identidade erigidez constitucional, ante a numerosaquantidade de reformas a que já foi sub-metido.

Feitas essas considerações, e não deixan-do de colocar em destaque a importânciahistórica e política dessas duas notáveisConstituições, não se pode deixar de atri-buir à Weimar a qualidade de texto consti-tucional preponderante em tema de inaugu-ração da fase do constitucionalismo social.

Na realidade, coube a Weimar ser o“equipamento-padrão” (LOEWENSTEIN,1970, p. 401) que motivou, influenciou econformou a elaboração de Constituições,que, por todo o mundo, passaram agora asistematizar, em seus textos, disposiçõespertinentes aos direitos econômicos e soci-

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Notas1 Na realidade, tal como enfatizaremos no cor-

po do presente trabalho, e até mesmo em função dacomplementaridade inerente às diversas categoriasde direitos fundamentais, tais direitos – para quesejam reais e efetivos, e não apenas abstratos –sempre devem vir acompanhados da noção de Es-tado Democrático. É por tal razão que não se con-siderarão, no presente estudo, e em tema de consti-tucionalismo social, as diversas Constituições ou-torgadas no âmbito da União Soviética, nas quais,a pretexto de se proteger direitos de índole social,aniquilaram-se todas as liberdades públicas doscidadãos.

2 Cf. Miranda, 2000, p. 22. Nesse mesmo senti-do: Moraes (2003). Segundo Afonso Arinos de MelloFranco, 1958, p. 188, “não se pode separar o reco-nhecimento dos direitos individuais da verdadeirademocracia...”.

3 Deve-se destacar que nem todos os autoresdistinguem o conceito desses três termos. PauloGustavo Gonet Branco (2002, p. 125), p. ex., distin-gue apenas os direitos humanos dos direitos fun-damentais, aqueles primeiros sendo sinônimos dosdireitos do homem. Alexandre de Moraes (2003) eManoel Gonçalves Ferreira Filho (1996), por sua vez,preferem, como bem o dizem os títulos de suasrespectivas obras, a expressão direitos humanosfundamentais. Canotilho (1996, p. 528) fala em“direitos fundamentais formalmente constitucio-nais” e “direitos materialmente fundamentais”, re-presentando, aqueles, os direitos reconhecidos econsagrados por normas de estatura constitucio-nal e, estes últimos, os outros direitos fundamen-tais, constantes de outras leis ou de atos internaci-onais. José Afonso da Silva (1996, p. 176), por sua

vez, entende que a expressão ideal seria “direitosfundamentais do homem”.

4 Após uma análise sobre as diversas posiçõesno tema, Bruno Galindo (2003, p. 47-49) culminaapenas por distinguir direitos humanos (ou direi-tos do homem) e direitos fundamentais, estes últi-mos representando todos os direitos e garantiaspositivados, seja em sede constitucional domésti-ca, seja no âmbito internacional.

5 Cf. também, sobre o assunto, Jorge Miranda(2000, p. 51-52): “... a locução ‘direitos fundamen-tais’ remonta principalmente à Constituição deWeimar e tende agora a generalizar-se. Usam-naentre tantas, Constituições como a alemã (...), amoçambicana (...), a angolana (...), a espanhola (...)ou a búlgara (...) – assim como a portuguesa (...).Explicam esse fenômeno o ultrapassar da concep-ção oitocentista dos direitos e liberdades individu-ais e, sobretudo, o enlace entre direitos e Constitui-ção. Porque constantes da Lei Fundamental, são osdireitos fundamentais aqueles direitos que assu-mem também a específica função que a Constitui-ção vem adquirindo na Europa e no resto do mun-do, ao longo dos últimos cinqüenta anos – em re-sultado de preceitos expressos, do papel proveni-ente da justiça constitucional e de uma crescenteconsciência difundida na comunidade jurídica”.

6 Em sentido contrário ao do texto, o ProfessorSérgio Resende de Barros (2003, p. 37-38) expres-samente rejeita a distinção terminológica ora pro-posta.

7 Frise-se, por relevante, que essa distinção nãofaz com que os três referidos conceitos sejam estan-ques. Há interação. Os direitos humanos internaci-onais muitas vezes encontram matizes nos direitosconsagrados pelos Estados e estes, por sua vez,muitas vezes positivam em suas constituições nor-mas de direitos relativos à pessoa humana cons-tantes de diplomas internacionais. Daí a importân-cia, por exemplo, da Declaração Universal de 1948,que inspirou muitas constituições do pós-guerra.

8 Constituição Norte-Americana de 1787 e Cons-tituição Francesa de 1791. Não se ignora a impor-tância de documentos como Magna Carta (1215), aPetition Right (1628), a Habeas Corpus Act (1679) e aBill of Rights (1689). Repita-se, no entanto, que osobjetivos – limitados, é certo – do presente traba-lho centram-se na análise de textos constitucionais,para, a partir deles, estudar-se a passagem do cons-titucionalismo liberal para o constitucionalismosocial.

9 Basta apenas lembrar, para tanto, por exem-plo, que a Constituição Imperial do Brasil, de 1824,já previa o direito à educação, típico direito denatureza social.

10 Alguns exemplos de Constituições Liberaisque continham dipositivos sociais: Constituição da

ais dos indivíduos, bem assim relativas àmaneira como deve atuar o Estado na im-plementação de tais garantias.

Essa preponderância de Weimar sobre aConstituição Mexicana, cronologicamenteanterior, deve-se não apenas à circunstân-cia de se tratar de uma constituição promul-gada em solo europeu (e não em longínquasterras americanas), mas, também, à nature-za mais abstrata e menos “local” de suasprescrições e à força, autoridade e vivacida-de da doutrina constitucional alemã da épo-ca, que fez correr pelo mundo as vitórias eas vicissitudes do novo texto republicanode 1919.

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Venezuela de 1812 (Constituição da Província deBarcelona), art. 23 (proteção ao trabalho e “seguro-desemprego”), Constituição Francesa de 1848, art.13 (assegurou o direito ao trabalho e a garantia aotrabalho), Constituição Suíça de 1874, art. 34 (pre-via o direito da Confederação, e não dos Cantões,de editar normas uniformes sobre o trabalho dascrianças nas fábricas, jornada de trabalho dos adul-tos e proteção ao trabalhador nas hipóteses de exer-cício de atividade perigosa ou insalubre). Cf., sobreo direito ao trabalho na Constituição Francesa de1848: Lavigne (1939); Moraes (2003, p. 29).

11 Alexandre de Moraes (2003, p. 31), ao anali-sar a Lei Fundamental Soviética, afirma que, “ape-sar desses direitos, a citada Lei FundamentalSoviética, em determinadas normas, avança emsentido oposto à evolução dos direitos e garantiasfundamentais da pessoa humana...”.

12 Declaração dos Direitos do Povo Trabalha-dor e Explorado, art. 5o.

13 Cf., sobre o atributo da complementaridadedos direitos fundamentais: Moraes (2003, p. 41);Ferreira Filho (1978, p. 80).

14 No sentido do texto: Sarlet (1998, p. 47);Galindo (2003, p. 58); Guerra Filho (1998, p. 14).

15 Outro bom exemplo da recíproca interaçãoverificada entre as sucessivas gerações de direito édada por Willis Santiago Guerra Filho (1999, p.40). Segundo ele, o direito de propriedade, hoje (di-reito de primeira dimensão), deve exercer sua fun-ção social (interpretação segundo os direitos de se-gunda dimensão), cuidando-se, ainda, de atenderà preservação do meio ambiente (interpretação con-forme os direitos de terceira dimensão).

16 Nesse sentido, irretocáveis as palavras deVieira de Andrade (1987, p. 54): “(...) as idéias deigualdade e de fraternidade, em parte significativaintroduzidas na luta histórica pela crítica marxistae socialista do regime económico e social do capita-lismo e pelo pensamento social cristão, desenvolve-ram-se, impuseram-se e, harmonizadas com a liber-dade fundamental, deram origem a uma ‘concepçãoliberal moderna’ ou concepção social dos direitosfundamentais, que corresponde à realidade vigentena generalidade dos países da Europa Ocidental, aque se convencionou chamar ‘Estado-de-DireitoSocial’”. (grifo nosso).

17 Interessante observar que o Professor JorgeMiranda (1990, p. 247-293, 295-317), em obra porele organizada, incluiu, no capítulo destinado à“Transição para o Estado Social de Direito” (Capí-tulo VI), unicamente, as Constituições Mexicana ede Weimar, tendo sido dedicado à Declaração dosDireitos do Povo Trabalhador e Explorado e à pri-meira Constituição Soviética um capítulo à parte(Capítulo VII), intitulado “A Revolução Soviética”.

18 Cf., também, Néstor de Buen (1977, p. 232),que afirma não poder a Constituição Mexicana

ser dissociada da “filosofia da Revolução quelhe deu vida”.

19 Para breve relato histórico da Revolução Me-xicana, Cf. COMPARATO, 2001, p. 183-184. Paraaprofundado relato sobre os antecedentes históri-cos de todas as Constituições Mexicanas: HELÚ,Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano: Laintegración constitucional de México (1808-1988).México: Fondo de Cultura Económica, 1991.

20 Propriedades coletivas de origem indígena.21 Não obstante a luta revolucionária tenha se

insurgido contra a ditadura presidencial de Díaz, aConstituição Mexicana de 1917 culminou por con-ferir amplíssimos poderes à figura do Presidenteda República. Miguel Carbonell (2003, p. 88) afir-ma que o Presidente Mexicano dispõe de poderesque “en otro país serían propias de un cuasi-dictador”, ecita o seguinte trecho de discurso, proferido na tri-buna da Assembléia Constituinte: “en España, seño-res, a pesar de que hay un rey, yo creo sinceramente queaquel rey había de querer ser presidente de la RepúblicaMexicana, porque aquí tiene más poder el presidente queun rey, que un emperador”.

22 Tornou-se célebre o lance ousado de Zapata,que vai disfarçado à Cidade do México para umaaudiência com o Presidente, na busca de obter a lega-lização de seu Exército de Libertação do Sul. O Presi-dente Madero, no entanto, recusou-se a negociar.

23 Cf. FIX-ZAMUDIO; VALENCIA CARMO-NA, 2001, p. 91.

24 Sobre a influência anarcossindicalista da Cons-tituição Mexicana de 1917 (Cf. COMPARATO,2001, p. 183; KIST, 2000, p. 95).

25 “A transformação desse ideário em normasconstitucionais, no entanto, produziu um efeito po-lítico exatamente contrário ao objetivo visado, pelaprimeira vez, na movimentada história do caudi-lhismo mexicano, criou-se uma sólida estrutura es-tatal, independente da figura do chefe de Estado,ainda que a Constituição o tenha dotado de pode-res incomensuravelmente maiores do que o textoconstitucional norte-americano atribuiu ao presi-dente da república. O ideário anarquista de des-truição de todos os centros de poder engendroucontraditoriamente, a partir da fundação do Parti-do Revolucionário Institucional em 1929, umaestrutura monocrática nacional em substituição àmultiplicidade de caudilhos locais” (COMPARA-TO, 2001, p. 183-184)”.

26 A questão relativa não apenas à proibição dereeleição (que pressupõe a recondução no cargo semsolução de continuidade), mas referente, também,à impossibilidade de que aquele que foi Presidentevolte a desempenhar este mesmo cargo reflete, comojá analisado, as angústias revolucionárias contra o“porfiriato”.

27 Garantia institucional, na linha de Schmitt(1982), eis que não protege o indivíduo enquanto

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tal, mas, unicamente, enquanto membro de deter-minada instituição, esta, sim, protegida imediata-mente. Sobre o pensamento de Schmitt sobre asgarantias institucionais: Teoria de la Constitutión.Madrid: Alianza Editorial, 1982. O tema também éanalisado, entre outros, por Gilberto Bercovici (2003,p. 18-19) e Paulo Bonavides (2002, p. 494-496).

28 O dispositivo mencionado possui a seguinteredação (traduzi): “O Estado não pode permitirque se leve a efeito nenhum contrato, pacto ou con-vênio que tenha por objeto o menoscabo, a perdaou o irrevogável sacrifício da liberdade da pessoa(...)”. Esse artigo, e também as hipóteses de nulida-des contratuais absolutas, previstas no incisoXXVII, do art. 123, s.m.j., possuem caráter pioneiroem tema de positivação, em sede constitucional,do princípio da aplicação horizontal dos direitosfundamentais, até hoje ainda muito discutido nadoutrina e muito questionado em alguns países,como aqueles que possuem larga tradição em temade liberdade de contratar (os Estados Unidos, p.ex.). Cf., sobre aplicação horizontal dos direitosfundamentais: Gonet (2002, p. 169-180); Abrantes(1990); Bilbao Ubillos (1997); Andrade (1987, p.278); Hesse (1995); Sarlet, (2002).

29 Cf. Comparato, 2001, p. 186 (“nem todos osdireitos trabalhistas lá consagrados podem ser con-siderados, objetivamente, como direitos humanos”).

30 Mario de la Cueva (1960) põe em destaque afalta de originalidade do art. 123 da ConstituiçãoMexicana, afirmando que a maioria das disposi-ções ali contidas já eram conhecidas de outros po-vos. Enfatiza, no entanto, referido doutrinador, queo caráter inovador da Constituição Mexicana con-siste em que pela primeira vez os direitos do traba-lhador já reconhecidos receberam a estatura de nor-ma constitucional.

31 Sobre direitos fundamentais de terceira di-mensão, inclusive sobre os questionamentos relati-vos à fundamentalidade, ou não, de tais direitos:Branco (2002, p. 111-112); Luño (1993, p. 215);Moraes (2003, p. 45-46); Ferreira Filho, (1996, p.57); Lafer (1988); Sarlet (2002, p 51); Bobbio (1992,p. 9); Bonavides (2002, p. 522-524).

32 Segundo Comparato (2001, p. 195), 10% dapopulação masculina da Alemanha faleceu (oudesapareceu) durante a Primeira Guerra.

33 Sobre as condições de vida na Alemanha du-rante a Primeira Guerra, Cf. Bessel, 1995, cap. I.

34 Cf., também, sobre o contexto social da Ale-manha durante a Primeira Guerra: Carr (1991).

35 Segundo Comparato (2001, p. 196), a abdi-cação do Kaiser Guilherme II e a nomeação de seufilho, Max de Baden, foram tentativas de “abrirmão tão-só da coroa imperial, permanecendo comorei da Prússia”.

36 Para Dietrich Orlow (1995, p. 121-122 apudGUEDES, 1998, p. 42, nota n. 80), tanto a nomea-

ção de Ebert quanto a proclamação da Repúblicaforam inconstitucionais.

37 Marco Aurélio Peri Guedes (1998, p. 43) es-clarece que o USPD (Partido Social Democrata In-dependente da Alemanha) foi uma dissidência doSPD (Partido Social Democrata da Alemanha),ocorrida em 1917. O USPD representava a ala mar-xista mais sectária do partido social democrata,este último também conhecido como socialistamajoritário ou moderado.

38 Nesse sentido: Comparato (2001, p. 197);Thalmann (1988, p. 11).

39 Sobre a escolha de Weimar para sediar a Cons-tituinte: Guedes (1998, p. 52-53); Cury (1998, p.86); Kist (2000, p. 96).

40 Nesse sentido, Gilberto Bercovici (2003, p. 11),segundo o qual “a Constituição de Weimar foi ela-borada em um contexto político cujo equilíbrio eraprecário e instável”.

41 Sobre o mau desempenho da esquerda naseleições para a Constituinte: Mises, ([200-?])“ Atthe begining of 1919 the communists were already muchless numerous than their leaders believed…”.

42 Sobre a liga spartakista, Holborn (1981, p.523 apud GUEDES, 1998, p. 51). Marco AurelioPeri Guedes (1998, p. 51) afirma que a liga Spar-takus ou Spartakista foi uma dissidência do Parti-do Comunista Alemão (KPD). Tal dissidência foipromovida sob a liderança de Karl Liebknecht eRosa Luxemburgo e buscava uma maior fidelida-de ao marxismo. O movimento spartakus semprefoi um grupo político marginal, que só se tornouconhecido com o levante spartakista em Berlim, doqual resultou a morte de ambos os líderes, ordena-da por Gustav Noske.

43 Para participação na Assembléia Constituin-te, elegeram-se 421 representantes de 6 partidos:44 membros da direita conservadora, 19 membrosda direita populista, 91 membros do partido cató-lico, 75 membros do partido centrista, 165 mem-bros da social-democracia e 22 membros da social-democracia independente. Constata-se, pois, a ab-soluta fragmentação política da Assembléia, bemassim a derrota dos partidos de esquerda. Nessesentido: Silva, F. (1991, p. 43); Thalmann, (1998, p.15); Brunet (1921, p. 47). Carlos Roberto Jamil Cury(1998, p. 86) prefere a menção a percentuais, afir-mando que as esquerdas moderadas (o partidocomunista não participou das eleições) obtiveram45% das cadeiras, a centro-direita 33,3% e a direita14,7%. Trinta e sete mulheres foram eleitas para aConstituinte.

44 Nesse sentido: Jacobson; Schlink (2002, p. 110-111): “During the Empire, Preuss had been an outsideramong fellow scholars of the law of the state – unlike, forexample, Gerhard Anschütz, one of his generation’s fewother pro-republican scholars of state of law. Preuss wasnever offered a professorship at a German university;

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political and scholarly reservations as well as anti-Semi-tic prejudice kept him from the centers of scholarly life inthe Empire. It was not an accident that he taught at thefar less respected Berlin College of Commerce, a privateschool founded by the Berlin business community...”.

45 A questão de a escolha de Preuss ter se fun-dado em sua suposta proximidade com a esquer-da da época foi enfatizada por Walter Jellinek (apudBERCOVICI, 2003, p. 14).

46 Não se ignora que algumas instituições játradicionais possam ter recebido tratamento inova-dor por parte da Constituição de Weimar. Ao Par-lamento, por exemplo, foi concedido o direito deinstalação de Comissões de Investigação (comouma CPI, hoje), tendo sido previsto, ainda, o funci-onamento de Comissões Permanentes destinadasao estudo de específicas matérias (arts. 34 e 35). Ofoco do presente estudo, no entanto, situa-se naidentificação das novas instituições que, somenteapós a Constituição Alemã de 1919, passaram aconstar das Cartas Políticas modernas.

47 Interessante observar que esse dispositivo daConstituição de Weimar já prevê uma situação decolisão entre direitos fundamentais, tal como ocor-re nas hipóteses em que se opõem a liberdade demanifestação do pensamento, de um lado, e a dig-nidade da pessoa humana, de outro (muitas vezesofendida nas hipóteses de pornografia). Admite-se, pois, que não há direitos fundamentais absolu-tos, devendo-se, na hipótese de confronto entre eles,estabelecer restrições que conciliem os dois valoresem situação de conflituosidade. Ou seja, fixa-se aregra no sentido da impossibilidade da censura (oque põe em destaque a liberdade de expressão),admitindo-se, excepcionalmente, que, nas hipóte-ses de combate à pornografia, tal instrumentopossa ser utilizado. Cf., sobre o conflito entreliberdade de expressão e o combate à pornogra-fia e ao “hate speach” (discursos de ódio racial):Fiss (1996).

48 Cf., sobre “garantias institucionais” idealiza-das por Carl Schmitt, nota de rodapé n. 26.

49 Art. 153, § 2o: “A propriedade impõe obriga-ções. Seu uso deve constituir, ao mesmo tempo,um serviço para o mais alto interesse comum”.

50 Como já referido, Carl Schmitt (1982) chega,inclusive, partindo de uma distinção entre Consti-tuição e lei constitucional, a afirmar que os direitosconstantes do Livro II da Constituição de Weimar,por sua abstração e generalidade (e, segundo ele,pela ausência do elemento “decisão”), não fariamparte do que ele convencionou definir como Consti-tuição, atribuindo-lhes o caráter de meros compro-missos dilatórios. Foi também Carl Schmitt quemafirmou que a Constituição de Weimar possuíauma profunda contradição material entre seus doislivros: o primeiro consagrando instituições liberaise o segundo positivando ideais socialistas.

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Ana Letícia Queiroga de Mattos

1. IntroduçãoO artigo em questão tem por objetivo

apresentar uma visão geral da República Fe-deral da Alemanha, passando por uma aná-lise histórica até suas implicações no paíshoje, bem como, também, visa apreciar osprocessos de reforma ali presentes, numatentativa de averiguar se a Constituição e,como conseqüência, o Direito Constitucionaldaquele país acompanham e compartilhamda verdadeira “realidade constitucional”.

Nesse sentido, o trabalho segue dividi-do em seis capítulos que demandam, paramelhor compreendermos os processos deReforma da Constituição Federal da Alema-nha, a análise de questões como a Históriada Alemanha desde os primórdios da Pri-meira Guerra Mundial até os resquícios dei-xados pela Segunda Guerra Mundial naque-le país, com o intuito de se situar o objeto deestudo. Dando continuidade, abordar-se-ãoos dados gerais sobre a República Federal

A realidade constitucional da RepúblicaFederal da Alemanha

Ana Letícia Queiroga de Mattos é Gradua-da em Direito e Mestranda em Direito Públicopela Faculdade Mineira de Direito da Pontifí-cia Universidade Católica de Minas Gerais.Professora de Direito Constitucional de cursopreparatório para concurso público em BeloHorizonte e professora de Hermenêutica e Te-oria da Argumentação Jurídica e de DireitoConstitucional da Pontifícia Universidade Ca-tólica de Minas Gerais.

Sumário1. Introdução. 2. História da Alemanha: dos

bastidores da I Guerra Mundial às conseqüên-cias advindas da II Guerra Mundial. 3. O paíshoje: dados gerais. 3.1. A geografia. 3.2. A lín-gua. 3.3. Os Estados Federais – Länder. 3.4. Re-lações da Alemanha com o exterior. 4. Estado,Constituição e Direito. 4.1. Os Órgãos Consti-tucionais. 4.2. A Lei Fundamental de BONN. 5.Reforma da Constituição da Alemanha. 6. Con-clusão.

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da Alemanha, descrevendo-se o país quan-to à sua geografia, língua, divisão política elinhas gerais da política exterior alemã.Além disso, será feita uma abordagem dasituação da Alemanha no campo jurídico/político, ou seja, estrutura e funcionamentodo regime político da Lei Fundamental de1949, ocasião em que serão explicitados osÓrgãos Constitucionais atuantes no país,bem como a Lei Fundamental de BONNde 1949, desde sua promulgação, passan-do pelos princípios-base da Ordem Naci-onal da Lei Fundamental, até as implica-ções da Lei Fundamental nos temposatuais.

Somente após a tomada de conhecimen-to de todos esses elementos é que se mostrapossível, pois, passar-se à análise da Refor-ma da Constituição da Alemanha, de umaforma mais específica e detalhada.

2. História da Alemanha – dosbastidores da I Guerra Mundialàs conseqüências advindas da II

Guerra MundialFazer uma pontuação da História da

Alemanha no início da 1a Guerra Mundialmostra-se mais didático/objetivo para seproceder a uma reconstrução dos aconteci-mentos.

A I Guerra Mundial foi desencadeada,entre outros fatores, pelo assassinato dosucessor do trono austríaco, em 28 de junhode 1914. Naquela época (e até mesmo hoje),não se soube quem havia sido o culpado,mas, na verdade, a Alemanha e a Áustria,de um lado, e a França, a Rússia e a Inglater-ra, de outro, não queriam necessariamenteuma guerra, estando, no entanto, dispostosa correr aquele risco devido a seus objetivosbélicos.

Após a derrota da Alemanha na batalhado Marne, a luta permaneceu no oeste, numaguerra de trincheiras que deu lugar a gran-des batalhas e, conseqüentemente, a muitasperdas, tanto de material, quanto de vidas.Desde o começo da guerra, os primeiros-

ministros, homens sem maiores representa-tividades, iam, cada vez mais, cedendo àpressão do alto comando militar. Os Esta-dos Unidos entraram na guerra em 1917.Embora a Alemanha já se encontrasse com-pletamente debilitada, o general ErichLudendorff, desconhecendo a situação, in-sistia numa paz vitoriosa até setembro de1918 e, após isso, passou a exigir, repenti-namente, uma trégua imediata. A derrotapolítica acompanhou a derrota militar e, semnenhuma resistência ou oposição, impera-dor e príncipes abandonaram seus tronos,em novembro de 1918, tornando-se a Ale-manha, portanto, uma república.

A partir de então, o poder passou aossocial-democratas, que consideravam comosua principal incumbência a garantia datransição ordenada da velha para a novaforma de Estado. Continuou da mesma for-ma a propriedade privada na indústria e naagricultura. Além disso, os magistrados eos funcionários públicos, quase todos deperfil anti-republicano, permaneceram emsuas funções e os oficiais do império con-servaram o comando das tropas. A maioriana Assembléia Nacional, órgão eleito em ja-neiro de 1919 e que se reunira em Weimarpara deliberar uma nova Constituição parao “Reich”, estava nas mãos dos três parti-dos exclusivamente republicanos:

– o Partido Social Democrata;– o Partido Democrata Alemão;– e o Partido do Centro.

Durante o curso da década de 20, torna-ram-se fortes, no âmbito da sociedade, dopovo e do parlamento, as forças que tinhamuma postura um tanto quanto reservada erestrita em relação ao Estado Democrático.A República de Weimar chegou até a ser cha-mada de “República sem republicanos” porter sido fortemente combatida por seus ad-versários e defendida com pouco empenhopelos seus partidários. Contributos para talefeito foram as dificuldades econômicas dopós-guerra e as condições da paz impostaspelo Tratado de Versalhes, que a Alemanhafoi obrigada a assinar em 1919. Tudo isso

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fez crescer uma descrença profunda em re-lação à República, gerando, conseqüente-mente, uma enorme instabilidade políticainterna.

A comoção e os percalços do pós-guerraalcançaram seu ponto máximo em 1923, coma inflação, com a ocupação da região do rioRuhr, com o intento de golpe de estado porHitler, bem como com as tentativas dos co-munistas de tomar o poder, entre outros.Posteriormente veio uma onda de calmariacom a recuperação econômica. No entanto,o declínio da República de Weimar iniciou-se com a crise econômica que o mundo esta-va vivendo no ano de 1929. Situações comoo desemprego e a miséria geral foram apro-veitadas por radicalismos de esquerda e dedireita. No Parlamento, não eram capazesde constituir maiorias aptas a governar e,nesse sentido, o movimento nazista de AdolfHitler, até então dotado de grande insignifi-cância, começou a ganhar relevo, a partir de1930, tornando-se, em 1932, o partido maisforte no momento. Assim, em 30 de janeirode 1933, Hitler é eleito chanceler.

Na ditadura nazista, Hitler rompeu comseus aliados, assegurando a si mesmo com-petências praticamente sem limites com aaprovação de uma “Lei Plenipotenciária”,proibindo a existência de todos os partidos,excluindo o seu, por óbvio. Os sindicatosforam desfeitos, os direitos fundamentais fo-ram revogados e extinguiu-se a liberdadede imprensa. O regime agiu com crueldadee terrorismo sobre as pessoas que não lheagradavam e milhares dessas pessoas de-sapareceram em meio aos campos de con-centração instalados. Em 1934, quandoHindenburg faleceu, Hitler assumiu tambéma função de presidente (acumulando com ade chanceler), apossando-se do comandosupremo das forças armadas, que aindagozavam de certa autonomia.

Tão logo tomou o poder, Hitler, median-te seu regime nazista, iniciou a concretiza-ção de seu programa anti-semita e, pouco apouco, os judeus foram sendo privados deseus direitos individuais e cívicos, até se

chegar a uma situação de total ausência dedireitos. Aqueles que tinham condições ten-tavam fugir para o exterior. A perseguiçãodos adversários políticos, bem como a re-pressão da liberdade de expressão e infor-mação, levou milhares de pessoas a aban-donar o país. Em meio a isso, muitos inte-lectuais, artistas e cientistas alemães emi-graram – o que por si só é suficiente para severificar o tamanho e a extensão da perda(irreparável) para a vida cultural e intelec-tual daquele país.

Hitler, porém, ainda estava insatisfeito.Tão logo deu início às suas atividades, pla-nejou uma guerra que lhe asseguraria o do-mínio de toda a Europa. Em março de 1939,demonstrou e confirmou sua intenção aomandar suas tropas invadirem a Tchecos-lováquia. No dia 10 de outubro de 1939,após invasão da Polônia, foi dado lugar à IIGuerra Mundial, que durou cinco anos e meio,período de maior devastação que se temnotícia na Europa, e custou a vida de maisde cinqüenta e cinco milhões de pessoas.

Os horrores do sistema (“solução finalda questão judaica”) e os insucessos milita-res contribuíram para o crescimento da re-sistência interna contra Hitler. Em troca deinúmeras vítimas, Hitler deu prosseguimen-to à luta, até que todo território do “Reich”estivesse tomado pelos aliados. Em 30 deabril de 1945, o ditador cometeu o suicídio eo seu sucessor, designado por ele em seutestamento, o almirante-mor Karl Dönitz, as-sinou, oito dias depois, a rendição incondi-cional.

A Alemanha sofrera a maior derrota detoda sua história. A maioria das cidades en-contrava-se em ruínas, 25% das casas fo-ram destruídas ou vigorosamente danifica-das, a economia e o transporte paralisados,etc.

Em 5 de junho de 1945, as potências vi-toriosas, quais sejam, os Estados Unidos daAmérica, a Inglaterra, a França e a UniãoSoviética, assumiram o poder no territóriodo “Reich”. O objetivo principal era estabe-lecer o pleno poder de disposição sobre a

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Alemanha, em conformidade com o proto-colo de Londres (que havia sido assinadoem 12 de setembro de 1944). A meta dessapolítica girava em torno da intenção de sedividir o país em três zonas de ocupação,com a capital Berlim dividida em três (tripar-tida) e administrada por um conselho con-trolador integrado pelos três comandantes-chefes.

Em fevereiro de 1945, procedeu-se à Con-ferência de Ialta e, nesse sentido, a Françafoi admitida no círculo dos Três Grandes,sendo acolhida como a quarta potência con-troladora, ocasião em que lhe foi destinadauma zona específica de ocupação.

Apesar de a intenção dos Aliados tersido a supressão da existência da Alema-nha como Estado, sem parcelar demais oterritório, Stalin estava interessado em con-servar a unidade econômica da Alemanhae, assim, como reparação pelos danos sofri-dos pela URSS em decorrência da inva-são alemã, exigiu pagamentos exorbitan-tes, extrapolando a possibilidade de umazona.

O país foi dividido em:– Zona de ocupação ocidental e setores

ocidentais de Berlim (a partir de 1949, Re-pública Federal da Alemanha);

– Zona de ocupação soviética e setor ori-ental de Berlim (a partir de 1949, RepúblicaDemocrática da Alemanha);

– Territórios orientais sob administraçãopolonesa e soviética.

Após desentendimentos e desencontrosacerca das políticas de ocupação, principal-mente no que tange a questões econômicas,administrativas e políticas, no dia 3 de agos-to de 1948, Stalin reivindica o reconhecimen-to de Berlim Oriental como capital da RDA,que, mais tarde, em 7 de outubro de 1949,ganhou um governo próprio.

Os Estados Unidos da América passa-ram a ajudar a Alemanha Ocidental a partirde 1946, mas só com o Plano Marshall deluta contra a fome, a pobreza, o desespero eo caos a Alemanha Ocidental recebeu o su-porte decisivo de largada para sua recons-

trução. Assim, no momento em que na ZonaSoviética se realizava a socialização da in-dústria, exigia-se na Alemanha Ocidentalum modelo de economia social de mercado,e essa meta econômica foi integralizada pelaLei Fundamental de BONN, por meio de seusprincípios do Estado de Direito e EstadoSocial, bem como com a estruturaçãofederativa da República Federal da Alema-nha. Nesse sentido, foi proposital a utiliza-ção do termo Lei Fundamental, em vez deConstituição, denotando seu caráter provi-sório. Afinal, a Constituição definitiva sódeveria ser ratificada posteriormente, tãologo o país readquirisse sua unidade. A LeiFundamental de BONN entrou em vigor em23/05/1949, após sua promulgação peloConselho Parlamentar em BONN.

As grandes potências de ocupação oci-dentais inseriram na Lei Fundamental vári-os de seus conceitos e crenças e, em 1o dejulho de 1948 (Documentos de Frankfurt),encarregaram os governadores dos estadosocidentais da Alemanha da elaboração dotexto constitucional.

De acordo com Juan Fernando Badía(1995, p. 311), a Lei Fundamental da RFAestabelecia dois caminhos para se procederà reunificação da Alemanha:

– artigo 23: dizia ser a RFA um Estadofederal aberto, na medida em que mantémuma possibilidade de incorporação à RFAde outras partes da Alemanha. Conseqüen-temente, as ampliações territoriais da RFAefetuadas pelo procedimento previsto noartigo 23 não exigiriam nenhuma reformada Lei Fundamental;

– artigo 146: previa uma assembléia cons-tituinte de toda Alemanha, surgida de elei-ções gerais livres em todo território alemão. Aexpressão “povo alemão” prevista no arti-go 146, quer dizer a totalidade do povo ale-mão, ou seja, tanto a parte oriental, quanto aparte ocidental.

O autor supra menciona ainda que taisartigos (23 e 146) não se excluem pelo fatode estarem previstos para situações dife-rentes.

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Por outro lado, a RDA previa no artigo8.2 de sua Constituição o princípio de apro-ximação gradual dos Estados alemães, atéuma unificação, sobre as bases da democra-cia e do socialismo.

O marco inicial do processo de reunifi-cação alemã se deu em setembro de 1989,ocasião em que a Hungria abriu suas fron-teiras para o oeste da Alemanha e mais de15 mil alemães da parte oriental escaparam,pela Áustria, para a Alemanha Ocidental.Posteriormente, Cláudia Maria Toledo daSilveira (2000, p. 73) menciona o fato de que,após uma série de manifestações pacíficasna Berlim Oriental, o muro de Berlim (quehavia sido construído em agosto de 1961)caiu e o portão de Brandemburgo foi reaber-to1. Dias depois, o então chanceler federalHelmut Kohl (1982 – 1998) apresentou o Pro-grama de Reunificação, tendo sido mais tar-de elaborado o Tratado da Unificação, con-solidando-se como a base da integração daRepública Democrática da Alemanha à Re-pública Federal da Alemanha. E, em 3 de ou-tubro de 1949, é formalizada a unificação daAlemanha, tornando-se a Lei Fundamentalde BONN de 1949 válida para toda a nação.

Nesse sentido, a via utilizada para o pro-cesso reunificador foi aquela prevista noantigo artigo 23, da incorporação territori-al. Aplicou-se, portanto, a ampliação doâmbito de validade da Lei Fundamental aosLänder da ex-RDA.

Como conseqüência da unificação, a LeiFundamental de 1949 teve seu preâmbulo ealguns artigos emendados mediante o Tra-tado da Unificação acima citado.

3. O país hoje – dados gerais2

3.1. Geografia

Atualmente a República Federal da Ale-manha está situada no centro da Europa,fazendo fronteira com nove países, quais se-jam: Dinamarca, Holanda, Bélgica, Luxem-burgo, França, Suíça, Áustria, RepúblicaTcheca e a Polônia.

O território da República Federal da Ale-manha conta com 357.000 km2 de superfíciee as fronteiras da República Federal da Ale-manha têm uma extensão total de 3.754 km.Sua população gira em torno de 82,1 milhõesde habitantes, sendo, depois da FederaçãoRussa, o país mais populoso da Europa,seguido pelo Reino Unido, com 58,9, a Fran-ça, com 58,5 e a Itália, com 57,5 milhões dehabitantes.

3.2. A língua

O alemão é pertencente ao grupo das lín-guas indo-germânicas, mais especificamen-te ao grupo das línguas germânicas e apre-senta grande semelhança com o dinamar-quês, o norueguês, o sueco, o holandês, oflamengo e com o inglês. A tradução da Bí-blia por Martinho Lutero foi um dos princi-pais motivos que levaram à formação da lín-gua culta comum a todos os alemães.

Não obstante a língua ser o alemão, aAlemanha é rica em dialetos e, segundo odialeto e a pronúncia, pode-se reconhecer,na maioria das situações, seu lugar de ori-gem. Tais dialetos chegam a ser muito dife-rentes entre si e, dessa forma, muitas vezes,habitantes de diferentes estados, ao conver-sarem exclusivamente por dialetos, chegama não entender o que o outro diz.

O alemão é língua materna de mais de100 milhões de pessoas no mundo. De cadadez livros publicados no mundo, pelo me-nos um está escrito na língua alemã; o ale-mão ocupa o terceiro lugar entre as línguasdas quais mais se fazem traduções, perden-do somente para o inglês e o francês.

3.3. Os Estados Federais – Länder

São dezesseis os Estados que compõema República Federal da Alemanha. NaAlemanha, Estados federais são chamadosde Länder e são os seguintes: Baden-Württemberg (Stuttgart), Baviera (Munique),Berlim (capital federal), Brandemburgo(Potsdam), Bremen, Hamburgo, Hessen (Wi-esbaden), Mecklemburgo-Pomerânia Oci-dental (Schwerin), Baixa Saxônia (Hano-

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ver), Renânia do Norte-Vestfália (Düssel-dorf), Renânia-Palatinado (Mogúncia), Sarre(Saarbrücken), Saxônia (Dresden), Saxônia-Anhalt (Magdeburg), Schleswig-Holstein(Kiel) e Turíngia (Erfurt). Tanto Berlim, quan-to Bremen e Hamburgo são cidades-estados.

Até a unificação da Alemanha em 1990,a República Federal da Alemanha contavacom onze Estados, constituídos nas antigaszonas de ocupação ocidentais e cujas cons-tituições democráticas foram promulgadasentre 1946 e 1957.

Na zona de ocupação soviética, foramformados cinco Estados no território que setornou, mais tarde, a República Democráti-ca da Alemanha, mas, no dia 3 de outubrode 1990, foi consumada a adesão da RDA àRFA.

Berlim é a atual capital alemã e sua trans-formação em capital da República Federalda Alemanha já está concluída. Segundo ocronograma estabelecido anteriormentepara a mudança do governo federal, do Par-lamento federal e do Conselho federal deBONN para Berlim, estão praticamente con-cluídas as obras de modernização. Em se-tembro de 1999, o Parlamento federal ini-ciou seus trabalhos e, desde então, a Alema-nha voltou a ser governada por sua antigacapital, Berlim.

3.4. Relações da Alemanha com o exterior

Em razão até mesmo de sua posição es-tratégica (a Alemanha encontra-se situadano coração da Europa) e por estar bastantecorrelata à economia mundial como naçãoexportadora, a globalização é evento certo epresente no país.

Por terem as experiências históricascomprometido a Alemanha de maneira es-pecial com o Estado de Direito e com os Di-reitos Humanos, a nova política alemã ori-enta-se mundialmente pelos princípios dosdireitos humanos e da dignidade humana;pretende, com isso, servir-se à estabilidade,à paz e ao desenvolvimento.

A assunção de uma maior responsabili-dade no mundo em mudança é um dos prin-

cipais objetivos perseguidos pela Alema-nha. Assim, a atual política alemã está vol-tada aos objetivos de manutenção da paz eda prosperidade, promoção da democraciae do avanço dos direitos humanos em todoo mundo e, nesse sentido, o país estabele-ceu alguns pontos para sua atuação na po-lítica externa, como se descreve a seguir(ALEMANHA..., 2000, p. 192-193):

– dar prosseguimento à ampliação daUnião Européia, para que ela desenvolva asua capacidade de ação em todos os setorese no plano global;

– fortalecimento da cooperação de toda aEuropa, no âmbito da OSCE (Organizaçãopara Segurança e Cooperação na Europa);

– continuar aprimorando a OTAN (Or-ganização do Tratado do Atlântico Norte);

– fortalecer as organizações internacio-nais, sobretudo a ONU (Organização dasNações Unidas);

– a promoção e a observância dos direi-tos humanos em todo o mundo;

– manter o planeta habitável e digno deviver para as futuras gerações;

– ampliação das relações de parceria comas regiões limítrofes à União Européia, emnome do desenvolvimento e da estabilidade;

– a cooperação intensificada com os pa-íses do Sul do Saara e da África, como re-gião prioritária da política alemã de desen-volvimento.

Não obstante, a política exterior alemãpermanece comprometida com a meta de umdesenvolvimento global. A República Fede-ral da Alemanha mantém relações diplomá-ticas com praticamente todos os países domundo, possuindo mais de duzentas mis-sões diplomáticas no exterior.

4. Estado, Constituição e Direito

4.1. Os Órgãos Constitucionais

O Presidente Federal é o chefe de Estadoda República Federal da Alemanha. Ele nãoé eleito por sufrágio universal, mas, sim, poruma Assembléia Nacional, que é um órgão

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constitucional que se forma e reúne exclusi-vamente para esse fim. O artigo 54 da LeiFundamental de BONN atribui a eleição doPresidente Federal à Assembléia Nacional,que é um órgão composto pelos membrosintegrantes da Dieta Federal e um númeroigual de deputados dos Parlamentos dosEstados (Länder), eleitos segundo critériosde proporcionalidade (artigo 54.1.2 da LeiFundamental de BONN), exigindo-se a mai-oria absoluta dos votos da Assembléia Na-cional (FERNANDO BADÍA, 1995, p. 264).O Presidente federal é eleito para um perío-do de cinco anos, podendo ser reeleito umaúnica vez.

O Presidente Federal representa a Repú-blica Federal da Alemanha no plano do di-reito internacional. Em nome da Federação,ele celebra tratados e acordos com outrospaíses: credencia e recebe embaixadores. Masa política exterior é da competência do gover-no federal (ALEMANHA..., 2000, p. 150).

Além disso, o Presidente Federal temcomo função a incumbência de nomear e exo-nerar os juízes federais, os funcionários pú-blicos da Federação, os oficiais e suboficiaisdas Forças Armadas, bem como também é oPresidente que concede indulto a delinqüen-tes e verifica a constitucionalidade de umalei antes mesmo de ser publicada no DiárioOficial da República.

De acordo com as maiorias parlamenta-res, é o Presidente Federal que propõe aoParlamento federal um candidato ao cargode Chanceler federal e é ele também que no-meia e exonera os Ministros e Ministros Fe-derais, por indicação do Chanceler.

Desde a promulgação da lei Funda-mental de BONN em 1949, estiveram no car-go de Presidente Federal os seguintes no-mes: Theodor Heuss (FDP3) 1949-1959;Heinrich Lübke (CDU4) 1959-1969; GustavHeinemann (SPD5) 1969-1974; WalterScheel (FDP) 1974-1979; Karl Carstens(CDU) 1979-1984; Richard v. Weizsäcker(CDU) 1984-1994; Roman Herzog (CDU)1994-1999; Johannes Rau (SPD) 1999-2004;Horst Köhler (CDU) desde 23 de maio de 2004.

O Parlamento Federal (Bundestag) da Ale-manha constitui a representação do povoda República Federal da Alemanha. Ele seforma por eleição do povo a cada quatroanos e suas principais tarefas (definidas)são o controle do governo federal, a legisla-ção e a eleição do Chanceler federal.

Ao Parlamento Federal cumpre a tarefade “votar leis, eleger o Chanceler Federal eexercer outras competências positivadas ju-rídico-constitucionalmente” (HESSE, 1998,p. 428). Hesse (1998, p. 428), menciona tam-bém que “não menos importante é, todavia,sua participação na configuração de políti-ca interna e externa por representação e for-mulação de aspirações políticas diferentes,por desenvolvimento de iniciativas própri-as, por exercício de influência e por controledo governo e administração”.

A eleição dos deputados do ParlamentoFederal se dá de forma geral, em pleito dire-to, livre, igualitário e secreto. Os deputadosdo Parlamento Federal são tidos como re-presentantes do povo em seu conjunto, nãoestando ligados a mandatos nem instruções,estando unicamente sujeitos a suas consci-ências.

O Conselho Federal (Bundesrat) represen-ta os dezesseis Estados federais (Länder).Apresenta ele uma enorme contribuição pormeio da participação na legislação e na ad-ministração da Federação. Konrad Hesse(1998, p. 452) afirma que “as tarefas do Con-selho Federal estão menos em determinaçãoe direção autônoma do que em cooperação eexercício de influência controlador e corre-tor”. Mas aqui, diferentemente do Parlamen-to Federal (Bundestag), os membros do Conse-lho Federal não são representantes eleitos di-retamente pelo voto popular, pois o Conse-lho Federal é formado por membros dos go-vernos estaduais ou por seus representantes.

O presidente do Conselho Federal é elei-to pelo próprio Conselho pelo período deum ano, segundo um sistema rotativo já pre-viamente definido; quando o Presidente Fe-deral se encontrar impedido, é o presidentedo Conselho Federal que o representará.

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O Governo Federal, também conhecidocomo gabinete ministerial, é composto peloChanceler Federal e pelos MinistrosFederais. O Chanceler Federal se encontranuma função de destaque dentro do Gover-no Federal, assumindo uma posição autô-noma dentro do governo, bem como peranteos Ministros federais.

Os três princípios que regem a estru-tura de funcionamento de um Governosão, de acordo com Fernando Badía (1995,p. 288):

“1) Princípio de ‘colegialidad’ pura,segundo o qual toda decisão há queser manifestação da vontade comum.É o Conselho de Ministros que, comoórgão coletivo, atua;

2) Princípio monocrático absolu-to, por ele que se dá a completa subor-dinação dos ministros ao Presidentedo Conselho. Os ministros são merosauxiliares do Presidente do Conselhoou Chefe de Governo;

3) Princípio ministerial individu-al, que supõe a total autonomia decada Ministro nos assuntos de seu de-partamento.”

O Chanceler Federal (kanzler) possui oprivilégio de estabelecer as diretrizes dapolítica do governo e é exatamente aí que seencontra a razão/motivo da forte posiçãodo Chanceler no Governo Federal.

“O Chanceler federal é o únicomembro do gabinete ministerial eleitopelo Parlamento federal e é o único aprestar contas ao mesmo. Esta respon-sabilidade pode manifestar-se na ‘mo-ção construtiva de confiança’, intro-duzida pela Lei Fundamental para sediferenciar conscientemente da Cons-tituição da República de Weimar. Seuobjetivo é evitar que os grupos de opo-sição – que estejam de acordo entre siquanto à rejeição do governo, mas nãoquanto a um programa governamen-tal alternativo – possam derrubar ogabinete. Ao negar a confiança aoChanceler federal, o Parlamento

federal tem de eleger simultaneamen-te um sucessor, com maioria de votos”(ALEMANHA..., 2000, p. 156).

A derrubada do Chanceler Federal pormeio da utilização da mencionada “moçãoconstrutiva de desconfiança” foi tentadaapenas duas vezes até os dias de hoje, massomente uma vez essa tentativa logrou êxi-to, quando em outubro de 1982 foi eleitoHelmut Kohl para o cargo após a utilizaçãodo voto de desconfiança contra o ChancelerHelmut Schmidt. Mas o instituto da “mo-ção de desconfiança” só recai sobre Chan-celeres e em hipótese alguma sobre Minis-tros federais.

Desde a promulgação da lei Fundamen-tal de BONN em 1949, estiveram no cargode Chanceler Federal os seguintes nomes:Konrad Adenauer (CDU) 1949-1963; Lu-dwig Erhard (CDU) 1963-1966; Kurt GeorgKiesinger (CDU) 1966-1969; Willy Brandt(SPD) 1969-1974; Helmut Schmidt (SPD)1974-1982; Helmut Kohl (CDU) 1982-1998;Gerhard Schröder (SPD) desde 1998.

O Tribunal Constitucional Federal possuisede na cidade de Karlsruhe e tem como ta-refa principal velar pela observância e com-prometimento com a Lei Fundamental. OTCF somente atua mediante provocação.Quanto à natureza do TCF, podemos dizerque o “reconhecimento da jurisdição cons-titucional como uma atividade eminente-mente judicial é algo que decorre paralela-mente à implantação do TC como um au-têntico Tribunal de Direito, e não como umórgão político que atua por via jurídica”(FERNANDO BADÍA, 1995, p. 294).

“O Tribunal Constitucional Federal é, di-ante de todos os órgãos constitucionais res-tantes, um tribunal da federação, autônomoe independente (§ 1o da Lei sobre o TribunalConstitucional)” (HESSE, 1998, p. 488). Issopode ser ilustrado pelo fato de que a admi-nistração do Tribunal é independente, nãopossuindo subordinação com relação a ne-nhum ministério, bem como também porpossuir o órgão um plano autônomo no pla-no orçamentário da federação; além disso,

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seus membros (juízes) possuem uma regu-lação diferente daquela dos demais juízesde outros tribunais.

O Tribunal Constitucional Alemão é umórgão constitucional bastante aberto, na me-dida em que todo cidadão tem direito de in-terpor um recurso constitucional junto a elequando se sentir lesado em seus direitosfundamentais pelo Estado. Antes, porém, oscidadãos têm, em geral, de tentar todos osrecursos nos tribunais competentes. Daí,portanto, um certo caráter subsidiário/su-pletivo.

A título de ilustração, o Tribunal Consti-tucional Alemão decidiu até os dias atuaiscerca de 130.000 processos, dos quais125.000 casos tratavam de recursos consti-tucionais. E desses 125.000 casos, somentecerca de 3.500 foram deferidos6.

A composição do Tribunal Constituci-onal Federal Alemão se dá da seguinte for-ma: o Tribunal é composto por dois “Se-nados” que possuem oito juízes cada um,sendo que a metade dos juízes é designa-da pelo Parlamento federal e a outra meta-de pelo Conselho federal. O mandato dosjuízes membros do TCF é de doze anos, sen-do, no entanto, vedada a possibilidade dereeleição.

A Capital Federal da Alemanha foi esco-lhida pelo Conselho Parlamentar (apenasprovisoriamente), em 10 de maio de 1949,como sendo a cidade universitária de

BONN, que, naquela época, contava comuma população girando em torno de 100.000habitantes (naquele período, houve umadisputa acirrada com a cidade de Frankfurt,para ser a Capital Federal).

No entanto, posteriormente à reunifica-ção da Alemanha, foi decidido pelo Parla-mento Federal, em 20 de junho de 1991, com337 contra 320 votos, que se deveria transfe-rir o Parlamento e o governo da cidade deBonn para a cidade de Berlim7. Adicional-mente, em 27 de setembro de 1996, tambémfoi aprovada pelo Conselho Federal sua mu-dança para a cidade de Berlim, decisão essaque foi integralmente realizada em 1999.

4.2. A Lei Fundamental

A seguir, um quadro comparativo dasConstituições alemãs até se chegar à LeiFundamental de BONN (Constituiçãoatualmente vigente):

Em julho de 1948, reúnem-se os Minis-tros-Presidentes da zona de ocupação oci-dental (Trizona) em Rittersturtz, para deci-direm acerca da elaboração de uma normafundamental para os Estados alemães sobocupação das potências ocidentais(FERNANDO BADÍA, 1995, p. 264). Os ór-gãos constituintes de 1948 foram as Assem-bléias Legislativas dos Estados que foramcriados nas zonas de ocupação ocidentais eo Conselho Parlamentar, que foi eleito pelasAssembléias Legislativas. E foi o Conselho

APROVAÇÃO VIGÊNCIA REGIME POLÍTICO

FORMA DE ESTADO

SISTEMA DE GOVERNO

1849

_______8 Monarquia Limitada

Confederação Parlamentar

1871

Até 1918 Monarquia Imperial

Confederação Semiparlamentar

1919

Até 19339 República Federação10 Semipresidencialista

1949

Em vigor República Federação Parlamentarismo de chanceler

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Revista de Informação Legislativa136

Parlamentar, presidido pelo ChancelerKonrad Adenauer, que aprovou a Lei Fun-damental, promulgada no dia 23 de maiode 1949 pelo Conselho Parlamentar, apósaprovação pelas Assembléias Legislati-vas.

Assim, já em 2004, os alemães contamcom a celebração de mais de meio século(exatamente 55 anos) de experiência comessa “nova” Constituição. A aceitação/le-gitimação da Lei Fundamental de BONN foia maior ocorrida perante os cidadãos, comoantes nenhuma outra Constituição haviasido. Um Estado de Direito como hoje o é aRepública Federal da Alemanha, país esselivre de maiores crises constitucionais, sófoi possível após a promulgação da Lei Fun-damental em 1949.

Conforme dito anteriormente, a LeiFundamental não foi feita para ser umaConstituição definitiva, possuindo, des-de sua entrada em vigor, um carátertransitório.

A Lei Fundamental de BONN enumeraos direitos fundamentais dos cidadãos logono início do seu corpo de texto, o que deno-ta, para muitos, a preocupação em se evitar(e mesmo prevenir) os erros cometidos nopassado, erros esses que deram ensejo aoocaso da República de Weimar, e, ao fazê-lo, a Constituição alemã, por meio do Esta-do (e vice-versa), compromete-se a respeitare proteger os cidadãos, tendo como suporteessencial o princípio da dignidade da pes-soa humana.

De acordo com a Lei Fundamental, “a maioria dos direitos fundamentaispode ser restringida numa certa me-dida, diretamente, através de lei pró-pria, ou indiretamente, em decorrên-cia de uma lei. Jamais, porém, a leipode afetar a substância de um direi-to fundamental. Os direitos funda-mentais são direitos de vigência ime-diata e esta é uma das principais ino-vações da Lei Fundamental em rela-ção às Constituições anteriores, cujoelenco de direitos fundamentais ti-

nha propriamente um caráter de de-claração programática, sem compro-misso” (ALEMANHA..., 2000, p. 145).

A Ordem Nacional da Lei Fundamental ématizada por cinco princípios-base: a Ale-manha é uma república, uma democracia,um Estado federativo, um Estado de direi-to e um Estado social.

O nome dado ao país de República Fe-deral da Alemanha no texto constitucionaldenota expressamente a forma republicanado Estado. E a principal característica des-se princípio está no fato de o Presidente fe-deral (eleito por voto) ser o chefe de Estado.

O regime democrático foi escolhido pelaAlemanha mediante a LF tendo em vista asexperiências vividas na República deWeimar, em que os partidos radicais, “osinimigos”11 da Constituição, destruíramqualquer noção que se tinha de democracia.O alicerce da forma democrática do Estadoestá no princípio da soberania popular.

A escolha pelo Estado Federativo signi-fica que não só a Federação, mas tambémos dezesseis Estados federais se encon-tram na qualidade de Estados autônomos.

O cerne do Estado de Direito é a idéiado domínio do direito e um elemento es-sencial para sua visualização é o princí-pio da separação dos poderes.

Finalmente, o princípio do Estado So-cial é o último princípio-base da OrdemNacional da Lei Fundamental e é ele umacomplementação à idéia do Estado de Di-reito. O Estado Social se concretiza para opovo com a seguridade social, a assistên-cia social, os subsídios habitacionais, osauxílios prestados às famílias, o direitotrabalhista, entre vários outros.

5. Reforma da Constituiçãoda Alemanha

A Lei Fundamental ou a “Grundgesetzfür die Bundesrepublik Deutschland, de 23de maio de 1949, no seu artigo 79, § 1o, esta-tui que ‘a Lei Fundamental só pode ser alte-rada por uma lei que expressamente com-

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plete ou modifique o seu texto’” (FIÚZA,1997, p. 330). Percebe-se, portanto, comosalienta o autor mencionado, que se trata deemendas aditivas ou modificativas, encon-trando-se aí incluídas as supressivas.

Prosseguindo, e talvez até mesmo ematenção ao momento em que a Constituiçãofoi promulgada – ou seja, logo após os hor-rores da Segunda Guerra Mundial, com to-das as suas perdas, o genocídio dos cam-pos de concentração, etc. –, o mesmo artigoestabelece que, em se tratando de tratadosinternacionais relativos à regulamentaçãoda paz, à preparação de uma regulamenta-ção da paz, ou à extinção de uma ordemjurídica criada pela ocupação, ou que sejamdestinados a servir à defesa da RepúblicaFederal da Alemanha (RFA), será suficien-te, para esclarecer que as disposições daConstituição não se opõem à conclusão e àentrada em vigor de tais tratados, incluir notexto da Lei Fundamental uma complemen-tação ou um adendo que se limite a esse es-clarecimento.

O artigo 79 (2), por sua vez, determina oquorum para aprovação das leis de revisãoconstitucional, e esse quorum requer dois ter-ços dos membros do Parlamento Federal(Bundestag) e um mínimo de dois terços dosvotos12 do Conselho Federal (Bundesrat).

No entanto, e de acordo com o artigo79 (3), certas disposições da Lei Funda-mental são imutáveis/intocáveis, as cha-madas cláusulas de “eternidade” ou clá-usulas “intangíveis”. Entre esses princí-pios constitucionais, enumeram-se:

– a Federação em Länder;– o princípio da participação dos Länder

na legislação;– os princípios consignados nos arti-

gos 1o e 20 da própria Lei Fundamental.No artigo 1o, tem-se uma preocupação

com a proteção da dignidade do homem, bemcomo com a vinculação do Poder Estatal aosdireitos fundamentais, e o artigo 20 trata dosfundamentos de ordem estatal e do direitode resistência, como sendo a última alterna-tiva no caso de os órgãos dos Poderes Legis-

lativo, Executivo e Judiciário subverterem aordem constitucional.

Com isso, verifica-se, pois, que qualqueralteração constitucional que atinja o núcleomaterial ou núcleo essencial/permanente(núcleo “duro”) da Constituição está abso-lutamente proibida.

Para Konrad Hesse (1998, p. 511), em suaobra “Elementos de Direito Constitucionalda República Federal da Alemanha”,

“nenhuma Constituição pode, poruma proibição de determinadas mo-dificações constitucionais, ser manti-da viva se ela perdeu sua força nor-mativa. De outro lado, tampouco ela écapaz de cumprir sua tarefa quandoela, em sua totalidade, é posta à dis-posição de uma maioria de dois ter-ços: nesse caso, o artigo da modifica-ção converte-se em núcleo da Consti-tuição: a única coisa que está estabe-lecida é que tudo pode ser alterado oueliminado”.

Para o mesmo autor, a Constituição deveprever uma abertura para que se produza aconservação da continuidade na transfor-mação histórica, isso porque somente a his-tória pode se sobrepor ao estabelecimentotido como definitivo por (e em) uma Consti-tuição. Assim, prossegue o autor afirmandoque, quando a Constituição não mais apre-senta essa abertura, possibilitando “umaadaptação na transformação das situaçõeshistóricas, a autorização do legislador mo-dificador da Constituição” (HESSE, 1998,p. 511) deve abrolhar para suprir essa defi-ciência. Nesse sentido, é facilmente verifi-cável que a Lei Fundamental autoriza o le-gislador modificador da Constituição so-mente no quesito modificação, não, po-rém, para abolição ou eliminação da es-sência ou integridade da Constituição. Eo que ocorre é o seguinte: a Constituiçãopermanece porque há possibilidade dereforma (seja por mutação constitucionalinterpretativa, seja por reforma formal). AConstituição permanece exatamente por-que não permanece.

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Revista de Informação Legislativa138

A Lei Fundamental de BONN possuium texto com cento e quarenta e seis arti-gos e cerca de cinqüenta e duas Revisões/Emendas à Lei Fundamental.

Fazendo uma breve avaliação das revi-sões constitucionais até então realizadas, po-demos citar aqui algumas delas, considera-das as mais expressivas.

A revisão constitucional de no 17, data-da de 24 de junho de 1968, entre outras coi-sas, deu poderes ao Parlamento Federal(Bundestag) para autorizar, por meio de lei,a vigilância sobre comunicações, sem avisoao vigiado. Além disso, o controle dasações dos órgãos criados para supervisi-onar essas atividades (de vigilância) foiretirado do Poder Judiciário, tendo sidoentregue às autoridades administrativas.

A emenda no 36, aprovada em 31 de agos-to de 1990, que teve como base o Tratado deUnificação, reformou13 o preâmbulo, os arti-gos 23, 51 (2), 135 (2), 143 e 146. Visando jáa abertura dos mercados, bem como a har-monização de toda a Europa, foram feitasemendas constitucionais de amplo efeitoprático para as privatizações da FerroviaFederal Alemã – emenda no 40 (art. 87e, de20 de dezembro de 1993) – e do Correio Fe-deral Alemão – emenda no 41 (art. 87f, de 30de dezembro de 1994).

Foram aprovadas novas revisões consti-tucionais tratando das metas estatais de pro-teção ao meio ambiente, de implementaçãoreal da igualdade de direitos entre o homeme a mulher, bem como da proteção dos defi-cientes. Além disso, foram feitos acréscimosmodificadores na matéria atinente à distri-buição das competências legislativas entrea Federação e os Länder.

Considerando a nova situação do Trata-do de Maastricht, foi aprovada outra emen-da constitucional, estatuindo no sentido deque a Lei Fundamental agora deve preverum esforço da República Federal da Alema-nha em buscar e se empenhar sempre ematingir uma Europa que seja unida, solidá-ria e democrática. Após a reforma constitu-cional, o novo artigo 23 regula também o

papel a ser desempenhado pelo Parlamen-to Federal (Bundestag) e pelos Länder no pro-cesso de desenvolvimento da integraçãoeuropéia, mediante a afirmação de umaUnião Européia.

Em novembro de 1995, entrou em vi-gor a emenda no 43, alterando o artigo 106(3) e (4), estabelecendo a política de dis-tribuição da entrada de tributos, como oimposto de renda. Já em 1997, a emendano 44 tratou da garantia da autonomiamunicipal.

A emenda no 45, aprovada em 26 de mar-ço de 1998, cuida da inviolabilidade de do-micílio e a emenda no 46 reforma questõessobre a Legislatura, constituição e convoca-ção do Parlamento Federal (Bundestag).

Por fim, uma das mais recentes emen-das, a de no 50, cuidou da proteção aos ani-mais.

A título de ilustração, dois casos questi-onando a constitucionalidade de emendasà Lei Fundamental serão aqui (sucintamen-te) avaliados, casos esses aventados porOscar Vilhena Vieira (1999, p. 148-159), emsua obra A Constituição e sua Reserva de Justi-ça. Cabe salientar, porém, que, até os dias dehoje, o Tribunal Constitucional Federal(TCF) jamais julgou inconstitucional umaemenda em face da Lei Fundamental de1949 por ter sido violadora das cláusulasconstitucionais “intangíveis” ou das cha-madas cláusulas constitucionais de “eter-nidade”. No entanto, conforme ponderaçãodo autor supra, a argumentação utilizadapelo Tribunal Constitucional Federal nãoafasta a possibilidade dessa função vir a serexercida.

a) “Privacidade de Comunicação” –“BverfGE” (decisão de 1970)

Conforme já adiantado anteriormente, aemenda no 17 cuidou da questão da privaci-dade de comunicação. Com o intuito de ve-rificar/vigiar atos de espionagem e sabota-gem, Grã-Bretanha, França e Estados Uni-dos mantiveram o sistema de comunicaçõesalemão sob sua supervisão até que acordas-

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sem acerca da transferência desse poder aoGoverno alemão. Para tanto, foi aprovadauma emenda ao art. 10 da Lei Fundamental,emenda essa que dava poderes ao Parlamen-to para autorizar, por intermédio de lei, avigilância sobre comunicações sem que apessoa sob vigilância tivesse que ser infor-mada, bem como, retirava da esfera judicialo controle das ações dos órgãos criados parasupervisionar as comunicações, deixandoa cargo das autoridades administrativas. OsLänder Hessen e Bremen, juntamente com umgrupo de advogados e juízes, ajuizaram al-gumas ações de inconstitucionalidade jun-to ao TCF, argüindo que a emenda violavaos artigos 1o e 20 da Lei Fundamental.

O Tribunal, em sua maioria, considerouconstitucional tanto a emenda quanto a leique a regulamentava, alegando que, desdeque respaldadas pela lei, restrições a direi-tos em função da proteção da integridadeda República Federal e de seu sistema de-mocrático eram tidas como válidas. Medi-ante a utilização da doutrina da “democra-cia militante” (Streitbare Demokratie), “o Tri-bunal declarou que ataques à democracialiberal não podem ser tolerados em nome deum uso abusivo dos direitos fundamentais”(VIEIRA, 1999, p. 150).

Para o Tribunal, o escopo do artigo 79(3) da LF está em proteger os valores incor-porados pelos artigos 1o e 20 apenas em re-lação à sua completa eliminação. Além dis-so, para a maioria, nem o princípio da “dig-nidade humana” nem o do “Estado de Di-reito” foram violados, já que somente os prin-cípios da “separação de poderes”, “submis-são da legislação à Constituição” e “sub-missão dos poderes ao Direito e à Justiça”estão assegurados pelo artigo 20. O que ex-cede tais princípios não está protegido peloartigo 20.

Quanto ao princípio da “dignidade dapessoa humana”, o Tribunal, em sua maio-ria, afirmou que a

“exclusão da possibilidade de revisãodos atos do Executivo pelo Judiciáriotambém não violava o princípio da

‘dignidade humana’, uma vez que osindivíduos não seriam deixados aoarbítrio das autoridades públicas, masdeveriam ser protegidos por alguma‘função equivalente ao controlejurisdicional’”(VIEIRA, 1999, p. 151).

Concordando com os votos dissidentesno caso em questão, entende-se que o artigo79 (3) da LF protege não só os valores preco-nizados nos artigos 1o e 20 de sua total abo-lição, mas também, e especialmente, de qual-quer alteração que afete sua essência ou suaintegridade. Afinal, conforme afirmou a mi-noria no Tribunal, “direitos só devem serrestringidos em situações de emergência,não em situações legais cotidianas: ‘é con-traditório abandonar princípios constituci-onais inalienáveis para proteger a Consti-tuição’” (VIEIRA, 1999, p. 152).

b) “O Tratado da União Européia” –“BverfGE” (decisão de 1993)

A chamada “cláusula européia” é resul-tado de uma Emenda feita ao artigo 23 daLei Fundamental com vistas a torná-la com-patível com o processo de unificação daUnião Européia, ou seja, para tornar a rati-ficação do Tratado de Maastricht compatí-vel com a LF.

A alegação objeto de questionamento daconstitucionalidade de tal revisão peranteo Tribunal Constitucional Federal se deupelo fato de que tanto o Tratado deMaastricht quanto a própria emenda viola-vam diretamente o princípio da democra-cia. “Para os requerentes, a transferência depoderes soberanos para uma instituição queexercita este poder sem legitimação popu-lar é incompatível com a Lei Fundamental”(VIEIRA, 1999, p. 157); além disso, a trans-ferência de poderes do Bundesbank para oBanco Central Europeu demonstraria ain-da mais uma infração do princípio demo-crático.

Quanto à transferência de poderes sobe-ranos para uma organização supranacio-nal, o Tribunal declarou que não houvetransgressão ao princípio da democracia em

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razão de o Parlamento (por ser um órgãoeleito pelo povo) continuar sendo o cernedo poder. Por outro lado, quanto à alegaçãode transferência de poderes do Bundesbankpara o Banco Central Europeu, o Tribu-nal declarou que

“Esta alteração no princípio demo-crático, com o propósito de protegera confiança depositada no valor damoeda, é aceitável porque leva emconta as características especiais(testadas e aprovadas – também emtermos científicos – no sistema jurí-dico alemão), que um Banco Centralindependente é uma melhor garan-tia do valor da moeda, e assim deuma sadia base econômica para aspolíticas orçamentárias consisten-tes e para o planejamento privado ecomercial, no exercício de direitosde liberdade econômica, do que ins-tituições estatais (...) que se apóiamno consenso – no curto prazo – dasforças políticas” (VIEIRA, 1999, p.158).

6. Conclusão

Numa tentativa de traçar um perfil para(e da) República Federal da Alemanha,torna-se tarefa fácil verificar o quão sóli-do é o constitucionalismo ali presente. AConstituição da Alemanha foi, como LeiFundamental, a Lei Fundamental deBONN, e essa denominação se deu de for-ma propositada, já que os alemães nãoadmitiam chamar de Constituição aquelanorma constitucional que havia sido im-posta pelos vencedores da 2o grande Guer-ra Mundial, em especial os Estados Uni-dos da América.

Não obstante isso, e por ocasião da come-moração de 20 anos da República Federal daAlemanha, “em 1969, a Lei Fundamental foicelebrada como sendo a melhor e mais liberalConstituição que vigorou em território ale-mão, em qualquer época. A Lei Fundamen-tal foi aceita pelos cidadãos como nenhuma

outra Constituição anterior” (ALEMA-NHA..., 2000, p. 143).

Verifica-se, portanto, que o respeito e oreconhecimento que se tem na Lei Funda-mental ultrapassam obstáculos, como, v.g.,a imposição da Constituição, o período deturbulência característico do momento emque precedeu ou que foi aprovada – na se-qüência dos horrores da 2a Guerra –, quepoderiam facilmente ter enfraquecido e de-sacreditado aquela nova proposta. Mas poroutro lado, e de uma maneira até admirável,o povo daquele país, já marcado pelo sofri-mento e desgaste do período, preferiu darum voto de confiança àquela perspectiva quese apresentara.

É sabido que a Lei Fundamental deBONN não foi aprovada para ser uma Cons-tituição definitiva, categórica. Desde o iní-cio, foi-lhe reconhecido um caráter efêmero.Mas, a despeito disso, a identificação cons-titucional foi tão grande que, mesmo tendoa Alemanha recuperado sua autonomia epoder, ainda assim, o povo alemão decidiupela permanência da Lei Fundamental emsua essência.

É claro que, para que isso fosse possível,ou seja, para que a Lei Fundamental perma-necesse no tempo, era necessário promoversua adaptação às distintas situações e evo-luções que estavam emergindo.

Nesse sentido, e conforme ventilado nodecorrer deste trabalho, o Estado FederalAlemão, algumas vezes corretamente e ou-tras, porém, deixando margem a questiona-mentos, mas de uma maneira geral dentrodas regras impostas pelo Estado Democrá-tico de Direito, tentou buscar soluções parao problema das gerações futuras e, dessaforma, procurou encontrar adaptações aoque estava preconizado, por meio de rein-terpretações, e, quando isso não foi possí-vel, abriu-se espaço para reconstruções poremendas ou revisões constitucionais.

Assim, conforme já salientado, em meioà aprovação de várias emendas, houve a pre-ocupação em alinhar o país aos ditames doTratado de Unificação, na busca de uma

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solidariedade em toda a Europa. Preocu-pou-se com a abertura de mercados, com aproteção ao meio ambiente, questão da maisextrema importância nos dias de hoje, coma proteção dos deficientes, mediante umapostura cada vez mais saliente, a do cuida-do com a inclusão do outro, do diferente.Além disso, buscou, ainda que tardiamen-te, estabelecer a igualdade de direitos entreo homem e a mulher. Eminentemente, apro-priou sua política às novas definições esta-belecidas no Tratado de Maastricht, comvistas a superar a divisão do continente e,com isso, simbolizando o fortalecimento dademocracia e do potencial econômico daEuropa como um todo.

Portanto, é imperioso reconhecer o em-penho da República Federal da Alemanhaem se promover, sempre de uma maneirafundamentada e evolucionista. A Lei Fun-damental de BONN demonstra corretamen-te saber coordenar a “rigidez” e a “mobili-dade” da Constituição. Afinal, ambas as ca-racterísticas são

“por causa da tarefa da Constituição,necessárias a abertura e amplitude,porque somente elas possibilitam sa-tisfazer a transformação histórica e adiferenciabilidade das condições devida, as determinações obrigatórias,porque elas, em seu efeito estabiliza-dor, criam aquela constância relativa,que somente é capaz de preservar avida da coletividade de uma dissolu-ção em mudanças permanentes, imen-sas e que não mais podem ser venci-das. É necessária a coordenação des-ses elementos para que ambos possamcumprir sua tarefa. O persistente nãodeve converter-se em impedimentoonde movimento e progresso são da-dos: senão o desenvolvimento passapor cima da normalização jurídica. Omovente não deve abolir o efeito esta-bilizador das fixações obrigatórias:senão a tarefa da ordem fundamentaljurídica da coletividade permaneceinvencível”(HESSE, 1998, p. 45).

Notas

1 “Com respeito à queda do Muro, em novem-bro de 1983, e à consumação da unidade alemã em3 de outubro de 1990, muitos alemães ainda conti-nuaram admirados com a rapidez com que esseinesperado desenvolvimento histórico se processou.A obrigação da reunificação já estava prescrita naLei Fundamental da República Federal da Alema-nha, mas a maioria das pessoas já tinha perdido aesperança de que algum dia ambas as partes daAlemanha pudessem se reunificar. O objetivo daRDA era o socialismo, que só poderia ser alcança-do contra o oeste, lado a lado com a nação irmã, aUnião Soviética. Os cidadãos não podiam nemmesmo entoar o texto do seu hino nacional, poisnele havia a frase ‘Alemanha, pátria unida’. Foiexatamente esta sentença que se tornou o fanal dosmanifestantes nas cidades da Alemanha orientalem 1989. Sim, é verdade: o fim do Estado comunis-ta de trabalhadores e camponeses foi a primeirarevolução alemã bem-sucedida e, além do mais,pacífica e democrática. Aquele que, naqueles dias,participou pessoalmente ou acompanhou pela tevêa festa de alegria na Porta de Brandemburgo, quefinalmente estava novamente aberta, se recordarásempre dessa data com grande emoção e com asensação de ter presenciado um dos momentosdecisivos da história mundial”. (SCHMID, 2003,p. 6-7).

2 Dados/informações retirados da obra Perfilda Alemanha publicada pelo Departamento de Im-prensa e Informação do Governo Federal alemãoem 2000, da Revista Deutschland, Frankfurt, no 4ago./set. 2003 e de página na Internet. Disponívelem: <www.government.de. (BundesregierungDeutschland).

3 Partido Liberal Democrata (FDP).4 União Democrata Cristã da Alemanha (CDU).5 Partido Social Democrático da Alemanha

(SPD).6 Dados/informações retirados da obra Perfil

da Alemanha publicada pelo Departamento de Im-prensa e Informação do Governo Federal alemãoem 2000.

7 “Berlim é ao mesmo tempo um Estado e umacidade e também a capital da República Federal daAlemanha. Com 3,4 milhões de habitantes – dosquais 440.000 são estrangeiros provenientes de 182nações –, Berlim é a maior cidade entre Paris e Mos-cou. Abrangendo uma área de 892 quilômetrosquadrados – o tamanho de Munique, Stuttgart eFrankfurt do Meno juntas –, a mais nova metrópolereúne em si os mais diversos centros, bairros e dis-tritos”. (KARASEK, 2003, p. 30).

8 Em 1849, o imperador austríaco recusou acoroa da Alemanha unida alegando que sua auto-

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ridade sobre a Hungria ficaria enfraquecida e o reida Prússia à época, Frederico Guilherme IV, tam-bém recusou a coroa, mas por considerá-la extre-mamente liberal. Nesse sentido, não se conside-ra uma Constituição para o período que vai de1848 a 1871, exatamente porque não havia umaconsolidação/solidificação constitucional sufi-ciente para se falar em uma Norma Constitu-cional.

9 Não obstante nunca ter havido um ato formalde revogação expressa, a “Lei de Habilitação” ado-tada pelo Estado Nacional-socialista suspendeumaterialmente a vigência da Constituição da Re-pública de Weimar.

10 Para muitos doutrinadores, não se pode falarem um Federalismo weimariano, por afirmarem quea República se aproxima muito mais de um mode-lo de Estado unitário descentralizado sob formaregional.

11 Para Carl Schmitt (considerado um conserva-dor revolucionário que teve seu apogeu entre asduas grandes guerras, ou seja, nas décadas de 20 e30, portanto, contemporâneo à República deWeimar), a dualidade amigo/inimigo constitui es-tritamente a Política. Para Schmitt (apud DINIZ,1998, p. 155) é importante identificar claramentequem pode representar a ameaça à sobrevivênciado que ele considera como o “meu grupo”. “O ini-migo político, pois, é o permanente inimigo públi-co. A relação política, isto é, a relação amigo/ini-migo, é concreta e existencial, além disso, é deter-minada em virtude de uma decisão da autoridadepolítica”.

12 “A expressão votos do Conselho Federal seexplica pelo fato de que tal órgão é formado pormembros dos governos dos Estados federados, sen-do que cada Estado tem, pelo menos, três votos,podendo ter mais, conforme o seu número de habi-tantes”. (FIÚZA, 1997, p. 330).

13 Salienta-se que as reformas ocorridas podemser dos seguintes tipos: reforma, derrogação e agre-gação, dependendo de cada caso.

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Elísio Augusto Velloso Bastos

O presente estudo versa sobre a funçãosocial do tributo. Sustenta que o chamadopoder tributário, em face de ter seu objetovinculado aos objetivos fundamentais daRepública Federativa do Brasil, é, em verda-de, um poder-dever ou uma função. A legiti-midade do tributo, portanto, apenas podeser aferida na proporção em que o mesmofor utilizado para tais objetivos.

Assim é que, se a sociedade deve ser des-tinatária dos tributos, ela deve fazer parte,de igual modo, da relação tributária, deven-do obter meios e instrumentos que facilitem,incentivem e viabilizem sua participação.

A função tributáriaPor uma efetiva função social do tributo

Elísio Augusto Velloso Bastos é Procura-dor do Estado do Pará; Doutorando em Direitodo Estado pela Universidade de São Paulo(USP); Especialista em Direito Processual Civile Direito Civil (Universidade Estácio de Sá);Especialista em Direito Tributário e Legisla-ção Tributária Federal (Universidade Estáciode Sá); Advogado em Belém.

SumárioIntrodução. 1. Necessidades públicas – ati-

vidade financeira do Estado e o poder/deverde tributar. 2. A função tributária: o poder-de-ver tributário. 3. Alguns aspectos históricos.Os fatores legitimadores da função tributáriaao longo da história. 3.1. A propriedade: sínte-se evolutiva e função social. 4. A força norma-tiva do direito sobre os fatos. 5. A quem com-pete efetivar a utilização dos tributos como fa-tor redutor da pobreza e desigualdades sociais?6. A utilização dos atributos como fator redu-tor da pobreza e desigualdades sociais: dificul-dades e idéias para efetivá-la. 6.1. A primeiragrande dificuldade: a mundialização da econo-mia. 6.2. A segunda grande dificuldade: a mo-bilidade patrimonial. 6.3. A terceira grande di-ficuldade: o tratamento constitucional da pro-priedade. Conclusão.

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Introdução

O Poder é um fenômeno sócio-cultural,um fato da vida social1. Pertencer a um gru-po social é constatar que o mesmo possuideterminado poder sobre os indivíduos queo compõem, capaz de impor-lhes condutas,omissivas ou comissivas, ora por mecanis-mos visíveis como prêmios ou sanções2, orapor mecanismos em regra invisíveis queimplicam persuasão, obediência voluntá-ria por entendimento de que o poder re-presenta ideais coletivos que devem serobservados3.

Em verdade, podemos notar a existên-cia de vários grupos sociais que se inter-relacionam, razão pela qual urge a presen-ça de um Poder maior, capaz de regular, deuma forma bem mais ampla, tal inter-relaci-onamento, visando evitar conflitos entre taisgrupos, bem como desenvolvendo a formamais eficaz de solução dos conflitos que nãose possa evitar. Essa a tarefa do Poder Polí-tico4. Sucede que o Poder Político exercidopelo Estado tem um preço, um custo, envol-ve a atuação em diversos ramos e frentes;quer fiscalizando quem age ou propriamenteagindo, o Estado necessita estar presente navida de todos.

Pois bem, para desenvolver essas ativida-des que regulam a vida humana em socieda-de, o Estado precisa, além do dinheiro pro-priamente dito, planejar seus gastos e despe-sas para fazer menor o percurso até a almeja-da realização do bem comum. Essas tarefas aserem realizadas pelo Estado são o que sedenomina Atividade Financeira do Estado.

Inserido nessa atividade está o Poder/Dever de Tributar ou função tributária, con-forme veremos, com o desiderato precípuode conseguir os meios financeiros necessá-rios para viabilizar o atuar do Estado, queno caso brasileiro tem seus objetivos funda-mentais expressos no art. 3o da CF/88, entreos quais a construção de uma sociedade justae solidária, a erradicação da pobreza e damarginalização e a redução das desigual-dades sociais e regionais.

Procurar-se-á demonstrar que não éapenas a previsão normativa que legitimaa cobrança de tributos, nem apenas a obser-vância das garantias constitucionais doscontribuintes, mas também, e, sobretudo,sua efetiva utilização para alcance dos ob-jetivos supra referidos. Possui, dessa feita, otributo uma função social da qual não sepode desviar. A legalidade, a universalida-de, a vedação ao confisco, a observância dacapacidade contributiva, assim como outrasgarantias aos contribuintes, não devem servistas como ponto de chegada, mas pontode partida rumo ao alcance de tais objetivosfundamentais.

Afinal, o Estado Social deve deixar deser um mero garantidor de liberdades e dapropriedade para assumir um papel ativo,de fomento à redução das desigualdades,pretendendo atuar, inclusive, sobre o regi-me da propriedade, que deve ter seu uso le-gitimado pelo bem-estar causado à comuni-dade, e não apenas a seu titular.

A relação tributária não pode, portanto,ser pensada como relação bipolar, em quefisco e contribuinte travam luta acirradapara garantir seu espaço. Urge constatarque a relação tributária, no contexto doEstado Social de Direito, como ainda é o Bra-sil, em que pese as Emendas Constitucio-nais predatórias e as castrações jurispru-denciais, é tripolar, ou seja, ao lado de fis-co e contribuinte, deve atuar a sociedade,destinatária final do produto da exaçãotributária.

1. Necessidades públicas –atividade financeira do Estado

e o poder/dever de tributar

Como salientam Regis Fernandes de Oli-veira e Estevão Horvath (2000, p. 16-17), parao desempenho de toda a atividade que se en-contra sob o seu mister, tais como a realiza-ção dos serviços públicos, o exercício dopoder de polícia, a intervenção no e sobre odomínio econômico, entrega de subvençõeseconômicas e sociais, desenvolvimento da

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pessoa humana, o Estado deve possuir umafonte de renda, meios materiais para atingirtais objetivos.

É com a receita, em especial as receitasderivadas, e, dentro dessas, os tributos queo Estado obtém os recursos patrimoniais queserão empregados nas despesas públicas,todas vinculadas, no caso do Brasil, comojá ressaltamos, aos objetivos fundamentaisdescritos na Constituição.

Mas o poder/dever de tributar não nascecom o Estado Moderno5, sendo, antes, nãoreflexo da soberania, mas reflexo do poderde se exigir de outrem um sacrifício pessoal,atualmente de cunho patrimonial, em facede um benefício maior6. Tal poder nasce epor um bom período da história das civili-zações ocidentais tem como único fator delegitimação a manutenção da segurança aosindivíduos. E, se é assim, não se pode identi-ficar a existência de tais contribuições com oEstado Moderno7.

Ocorre que a crescente situação de desi-gualdade social fomentada pelos ideais doliberalismo econômico exigiu uma maiorparticipação do Estado, que passa a ter comosuas as necessidades de grande parcelade seus cidadãos, os quais, carentes derecursos, vivem desprovidos de qualquercritério de pertencimento a uma sociedade,à qual estão incluídos formalmente, masexcluídos substancialmente.

Nossa Constituição atual reflete e fomen-ta a chamada economia social de mercadoe, como tal, seu ponto de partida “é a idéiade que o ser humano deve ser o fim últimoda ordem econômica e social”8, aqui incluí-do o poder/dever de tributar. Desse modo,além de carregar em seu bojo a necessidadede prover as receitas públicas, o poder/deverde tributar assume importante papel na re-dução das desigualdades sociais.

2. A função tributária: opoder-dever tributário

Em verdade, merece ficar assentado des-de já neste trabalho que temos por infrutífe-

ra a discussão acerca da natureza do tribu-to, se um direito ou um dever. Trata-se, emverdade, de um falso problema se colocadoà luz da evolução histórica dos direitos, afi-nal, como bem lembra Sérgio Resende deBarros (2003, p. 3):

“A necessidade gera o dever quegera o poder. (...) Não há poder de co-mandar, sem dever de obedecer. (...)Não há direito de exigir, sem obriga-ção de cumprir. (...) Dessa maneira, naorigem primária, seja na geração atu-al e singular de um direito, seja na ge-ração histórica e geral dos direitos, odireito nasce da obrigação, o podernasce do dever.”

Os direitos têm por fundamento ético-jurídico os deveres e como fundamento his-tórico-social as necessidades9. Desse modo,da necessidade em se alcançar os objetivosfundamentais de uma sociedade, que nocaso da brasileira se encontram fixados noaludido art. 3o da CF/88, nasce o dever docidadão em contribuir com os recursos dis-poníveis e proporcionais para criar os mei-os necessários ao alcance de tais objetivos,e desse dever nasce não só o direito doEstado de “manejar poderes indispensá-veis à satisfação do interesse alheio queestá a seu cargo prover”10, mas o direito decada cidadão em exigir tal contribuição efiscalizar sua aplicação no sentido de que,uma vez arrecadada, possa ser utilizada noprocesso de concretização de tais objetivos.Valioso, uma vez mais, citarmos SérgioResende de Barros (2003):

“Refletindo as necessidades e so-bre as necessidades que os afligem nocurso da sua história, os seres huma-nos se fixam fins, que se tornam valo-res, que enformam deveres, que sus-tentam poderes. Estes nascem, assim,com o dever de atender às necessida-des que lhes deram origem, por forçae na medida das quais eles são pode-res-deveres; e não poderes arbitrários”.

Desse modo, o chamado “poder” tri-butário apenas pode ser entendido como um

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poder-dever, ou função11, em que seu exercí-cio se encontra condicionado a um fim, peloque “na função o exercício do poder não élivre, mas pela impossibilidade de separá-lo de um fim, apresenta-se inevitavelmentecondicionado a requisitos que justificam aatuação e orientam seu concreto desen-volvimento” (MEDAUAR, 1999, p. 120-121).

Conclui-se, assim, que a atividadetributária concentra um poder-dever em queparticipam o Estado, o contribuinte e a soci-edade, sendo que tal atividade possui umfim específico que passa pela obtenção dosmeios materiais, mas apenas enquantotais meios servirem para alcançar os obje-tivos fundamentais refletidos no art. 3o daCF/8812.

Não se pode acatar, pois, a tese segundo aqual o indivíduo, na relação jurídica tributá-ria, ocupa, tão-somente seu pólo passivo nacondição de sujeito de dever jurídico. Por essateoria, o cidadão apenas teria direitos na re-lação jurídica de administração, ou seja, osdeveres tributários teriam como correlatos osdireitos administrativos13.

Tal teoria, fundada na teoria clássica dodireito tributário, acarreta, entre outros ma-les, como veremos adiante, a exclusão dasociedade do campo do direito tributário.

3. Alguns aspectos históricos. Osfatores legitimadores da funçãotributária ao longo da história

Uma das melhores formas de conhecer-mos determinado instituto jurídico é bus-carmos, no transcurso da história, suas vá-rias manifestações. Em sua origem, o tribu-to estava ligado à cobertura de gastos comguerras, resgates e custeio do aparato buro-crático, laico ou religioso. Seu primeiro ele-mento de imposição foi, certamente, a força,razão pela qual a unilateralidade e a vio-lência foram características da relação tri-butária. Não é por outro motivo que, paracombater os excessos na cobrança, desdecedo movimentos populares reivindicaramlimites ao exercício de tal poder.

Todavia, a força é, por si só, um frágilelemento legitimador, desprovida que é dequalquer justificativa ética. Sim, porque “omais forte não é nunca assaz forte para sersempre o senhor, se não transforma essa for-ça em direito e a obediência em dever”14.Buscou-se, assim, ao então poder de tribu-tar, ao longo dos tempos, uma série de fato-res legitimadores que justificassem sua co-brança: ora era fruto do contrato social, oracumprimento de um dever inerente à ordemsocial, ora instrumento de troca visandoobter a segurança necessária à vida social,ora resultado, simples, de uma relação eimposição legais, sem a necessidade de qual-quer contrapartida por parte do Estado15.

Todavia, em que pese tais discursos le-gitimadores, o fato é que ao longo da histó-ria os tributos serviram, e servem em muitasoportunidades até hoje, para fomentar pri-vilégios e dominações, servindo como umaespécie de totem16, um instrumento que, aopasso que protege, possibilitando a segu-rança, domina, pelo que pensamos que aluta a ser travada agora é no sentido de uti-lizar o tributo como libertador, como redu-tor das desigualdades sociais e da pobrezacrescente em nossa sociedade.

Tal tarefa não é fácil, eis que, como jádito, desde o passado remoto encontramosuma tendência para se utilizar o tributocomo forma de garantir privilégios de umadeterminada classe social, variante na his-tória humana, em detrimento de uma gran-de massa de desfavorecidos. Nesse aspecto,a plebe, na República Romana, sustentavaos privilégios dos cidadãos romanos17. As-sim foi, também, durante a Idade Média, narelação suserano e vassalos e durante o Es-tado Moderno.

Não é sem razão, pois, que já em 1215 ahistória nos apresenta um dos primeiros tex-tos normativos a tentar opor limites ao en-tão poder de tributar do soberano. Trata-seda Magna Carta18, que, em seus itens 1219 e4120, ofertava um esboço de garantias de viéstributário. A mesma linha, aliás, é travadapelo Bill of Rights inglês de 1689. Em tal do-

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cumento, fica vedada, no artigo 10, a cobran-ça de tributos excessivos, bem como se obs-ta a cobrança de tributos pelo Monarca sem anecessária intervenção do Parlamento (art. 4).

Não é sem razão, também, que entre asreinvidicações da Revolução Francesa, e dasdemais revoluções burguesas em geral, estáa universalidade da contribuição e o conse-qüente fim dos privilégios tributários do cle-ro e da nobreza e da sobrecarga dos demaismembros da sociedade (camponeses, ope-rários, artesãos, comerciantes, banqueiros,proprietários de manufaturas...)21. Tambémse constata que um dos motivos claramentefirmados na Declaração de Independênciados Estados Unidos, de 4 de julho de 1776,foi o que se denominou “lançamento de ta-xas” sem o consentimento dos colonos.

Portanto, a oposição de direitos e garan-tias tributárias ao suserano e ao Estado écorolário da oposição de direitos, de ummodo geral, dos administrados ao PoderPúblico, o qual passa a ter suas atividadesigualmente reguladas e vinculadas pelo di-reito, e tal limite é tão mais verdadeiro e efe-tivo à medida que são criados instrumen-tos, à disposição dos cidadãos, capazes detornar a norma jurídica realidade.

Veja-se, todavia, que é dessa época quesurgem as garantias, até hoje vigentes, doscontribuintes em face do fisco, intrínsecas àproteção ao direito de propriedade; afinal,como o tributo invadia a esfera patrimonialdo cidadão, devia ser limitado para que apropriedade fosse respeitada.

O que assusta, em verdade, é constatar-se que a relação tributária se encontra atéhoje com o pé no século XVIII, marcada eprotegida pelos direitos humanos da cha-mada primeira geração voltados à proprie-dade (que, na prática, vai fazer de certoshomens capazes de exercitar direitos políti-cos); à liberdade (que possibilitará o livreexercício do comércio sem a intervenção es-tatal, visando alcançar ou aumentar as pro-priedades individuais, e assim ganhar ouaumentar o poder político); e à segurança(indispensável ao regime cujos direitos po-

líticos advêm da propriedade, e, portanto,impensável nos regimes absolutistas de en-tão, capazes de tornar o Estado como titularde direitos e, sobretudo, obrigações).

Desde o século XVIII, a preocupação coma finalidade do tributo ocupou o segundoplano. Afinal, em primeiro estavam os limi-tes à exação, tais como a legalidade, a uni-versalidade, a isonomia, o não confisco, en-tre outros, fixados previamente e que legiti-mavam a exação desde que observados. Alegitimidade do tributo era fixada a priori.Tais limites serviam, insista-se, para obstareventual desvario estatal na cobrança dostributos, o que, a história demonstra, ocorreucom desconcertante força e habitualidade.

No final dos oitocentos, durante os no-vecentos e especialmente durante o momentoatual, todavia, tal concepção merecerá alte-ração, eis que a própria concepção de pro-priedade sofrerá profundas modificaçõescom a passagem do Estado Liberal de Direi-to para Estado Social de Direito. Muda-se asubstância do Estado, muito embora a for-ma (“de direito”) permaneça. É certo que osefeitos de tal alteração ainda não foram bementendidos, percebidos e efetivados, mas ofato é que o Estado social de direito vai tra-zer, em seu bojo, uma nova concepção aodireito de propriedade e, assim, uma novaconcepção à relação tributária. Vejamos:

3.1. A propriedade: sínteseevolutiva e função social

Dentro do tema ora em análise, impor-tante traçarmos as linhas gerais da evolu-ção do conceito de propriedade, eis que ésobre este que irá recair, direta ou indireta-mente, o tributo. Assim, como bem salientaHannah Arendt (1997, p. 71-74):

“A propriedade e a riqueza sãohistoricamente de maior relevânciapara a esfera pública que qualqueroutra questão ou preocupação priva-da, e desempenharam (...) o mesmopapel como principal condição paraa admissão do indivíduo à esfera pú-blica e à plena cidadania (...).

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Antes da era moderna (...), todasas civilizações tiveram por base o ca-ráter sagrado da propriedade priva-da. A riqueza, ao contrário (...), nuncaantes fora sagrada (...).

(...)Assim, não é realmente exato di-

zer que a propriedade privada, antesda era moderna, era vista como con-dição axiomática para admissão à es-fera pública; ela era muito mais do queisso (...); ser político significava atin-gir a mais alta possibilidade da exis-tência humana; mas não possuir umlugar próprio e privado (como no casodo escravo) significava deixar de serhumano”.

Para os antigos, assim, a propriedadeestava ligada essencialmente à terra, a algoimóvel. A propriedade possuía, então, umconceito extremamente restrito. Tal fato, ali-ado a sua efetiva importância até mesmopara caracterizar a humanidade de seu ti-tular, e todas os direitos advindos de tal re-conhecimento, consagra a sacralização dapropriedade imóvel.

Na Idade Moderna, a riqueza surge comofruto essencialmente individualista22, des-tinado, em sua essência, ao uso e ao consu-mo. Tal característica levaria, certamente, aodesaparecimento, cedo ou tarde, da riqueza.Surge, daí, a idéia de se transformar a riquezaem mais riqueza, em capital, portanto, pormeio do processo de acumulação.

“Somente quando a riqueza setransformou em capital, cuja funçãoúnica era gerar mais capital, é que apropriedade privada igualou ou emu-lou a permanência inerente ao mun-do compartilhado por todos. Essa per-manência, contudo, é de outra natu-reza: é a permanência de um pro-cesso e não a permanência de umaestrutura estável. Sem o processo deacumulação, a riqueza recairia ime-diatamente no processo oposto dedesintegração através do uso e doconsumo.

A riqueza comum, portanto, ja-mais pode tornar-se comum no senti-do que atribuímos ao mundo comum;permaneceu – ou, antes, destinava-sea permanecer – estritamente privada.Comum era somente o governo, nome-ado para proteger uns dos outros osproprietários privados na luta compe-titiva por mais riqueza.” (ARENDT,1997, p. 79).

Desse modo, sempre que a proprieda-de estiver travestida das vestes de capi-tal, merecerá especial proteção do orde-namento jurídico.

O auge desse novo pensamento acercada propriedade e da riqueza encontraremosno final dos setecentos e nos oitocentos, osquais, seguramente, foram marcados, nãopor outro motivo, por um período de: 1. vi-vência máxima do capitalismo moderno; 2.valorização sem limites da propriedade pri-vada e do individualismo; 3. da espoliaçãode uma classe trabalhadora, cuja venda dotrabalho era sua única forma de participa-ção no mercado; 4. de lutas sociais sangren-tas; 5. subserviência acentuada do Estado à“mão invisível” do mercado, entre outrosaspectos.

Tais circunstâncias certamente levarama mudanças de concepção no regime capi-talista. Tornava-se impossível conter os jápor demais contidos movimentos de socia-lização do capital23. Surgem os movimentossocialistas24 e comunistas visando a supe-ração do sistema capitalista. Porém, comouma espécie de contra-reforma25, surgem osmovimentos de socialização do capitalismo,pretendendo, ao instaurar uma ordem capi-talista social, ao instaurar um Estado soci-al, preservar a ordem capitalista26.

Aliás, é exatamente esse raciocínio queencontramos já na encíclica rerum novarum27,de 15 de maio de 1891, um marco da doutri-na social da igreja católica, que, visandoreparar as eventuais falhas do mercado, or-ganizar e proteger a sociedade, oferta umaalternativa às teorias socialistas pelo reco-nhecimento do que chamou de “questão

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social”, no sentido de que a regência do con-junto da vida social não poderá ser feita ex-clusivamente pelo mercado, devendo o Es-tado humanizar os rigores do capitalismochamado liberal.

Tal mudança de certa forma cristaliza-se em textos constitucionais, primeiramen-te na Carta Mexicana de 191728, passandopela de Weimar de 191929 e pelas diversasConstituições dos mais diversos países quevieram em período posterior, passando pornossa atual Constituição.

O Estado social, assim, deixa de ser ape-nas o mero government by law e pretende setransformar no complexo government by po-licies, na medida em que se pretende preo-cupar com certos fins a serem alcançados,metas sociais e não apenas econômicas e namedida em que transcende a importânciaindividualista da propriedade, que doravan-te faz emanar deveres sociais. Mister, pois,um planejamento cada vez mais firme e ver-dadeiramente dirigente, instrumentalizadopor políticas públicas que visam coordenaros diversos interesses presentes na socieda-de para atingir certos objetivos sociais decaráter nacional.

As constituições, como a brasileira emvigência, passam a desejar a direção não sódos fins do Estado, mas dos fins de algu-mas instituições de relevo, tais como a pro-priedade, a empresa, o mercado, entre ou-tras, para que nas mesmas seja introduzidauma “dimensão política no cálculo econô-mico, buscando a constituição de um siste-ma econômico social, ... ou seja, a prevalên-cia de critérios políticos que permitem su-perar a rigidez da lógica econômica na bus-ca do bem-estar coletivo” 30.

As liberdades, inclusive as de comércio eindústria, passam a ter por finalidade o bem-estar social, a verdadeira igualdade de opor-tunidades, cabendo ao Estado garantir a li-berdade igual a todos, bem como assegurar aconstante busca pela redução das desigual-dades sociais. Ora, e um dos principais me-canismos de que o Estado poderá utilizarpara promover a redução das desigualdades

sociais é o tributo, o qual passa a ter essa rele-vante função “extrafiscal”31 a ser alcançada.

Evidente que a noção de tributo e de sualegitimação sofrerá profunda alteração.Mais do que nunca o tributo precisa ser vis-to e tratado como uma instituição social, enão apenas como um fato econômico ou fi-nanceiro32. Todavia, em que pese tal trans-formação, o fato é que a relação jurídica tri-butária ainda é vista, até hoje, com os olhossetecentistas ou oitocentistas, ora sob a óti-ca do fisco, ora, esta com mais freqüência,sob a ótica do contribuinte.

Os manuais e tratados de direito tributá-rio se esforçam em abordar as garantias doscontribuintes, não sem razão, eis que asmesmas, vez por outra, cedem lugar a equí-vocos e abusos indevidos por parte do po-der público.Todavia, poucas linhas são es-critas em prol das garantias para o terceiroelemento da relação tributária: a sociedade,ou a parcela da mesma que vive carente derecursos e à margem dos principais proces-sos econômicos e políticos, (sobre)vivendo,em um número cada vez maior, abaixo dalinha de pobreza. São, em última análise,ou deveriam ser por força constitucional, osdestinatários de grande parte dos tributos ecomo tais têm absoluto interesse em partici-par ativamente daquela relação.

Tal inanição não é por desatenção, cer-tamente. Ela é promovida, em boa parte, porviúvos e viúvas do liberalismo econômicoque criticam a participação ativa do Estadona economia, que chamam de democraciaesse regime aristocrático e mantenedor dostatus quo e que, dóceis ao poder, desprezamo povo, já que este não detém, de fato, o po-der. Sustentam ser inaceitável a transforma-ção do Estado em uma “enorme máquinade redistribuição que se converte, segundoFrederic Bastiat, em: uma grande farsa naqual todo mundo se esforça em viver a ex-pensas de todo mundo”33.

Uma vez mais merece ressalva que, con-siderada a realidade histórica do períodoem que foi proferida bem como a boca pelaqual foi exprimida, nada há de preocupan-

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te na frase de Frederic Bastiat, filósofo fran-cês do século dezenove e membro da As-sembléia Nacional da Revolução de 1848,na França, ferrenho defensor do Estado mí-nimo para o qual os recursos extraídos dasociedade acabariam nas mãos dos buro-cratas, e, como tal, melhor deixá-los nasmãos de seus donos, que fariam melhorproveito.

Preocupante é tal idéia ainda ser apro-vada dois séculos depois. Afinal, em nossoPaís, cerca de 21 milhões de pessoas podemser considerados indigentes e 50 milhõescomo pobres. Sucede que, em que pese talíndice, a causa principal da exclusão socialbrasileira não é a falta de recursos no País,eis que a nossa renda per capita é compará-vel à de nações mais ricas do mundo. Vive-mos hoje no Brasil com uma das maioresconcentrações de renda do mundo. Não hácomo pensarmos no Estado e no próprioDireito sem pensar no papel de distribuiçãode riquezas e redução da pobreza que de-vam exercer, inclusive por força de nossaConstituição.

Assim, a grande farsa é pensar que omercado irá solucionar os problemas de quese alimenta. Urge a intervenção do Estado e,como em sua forma ainda permanece “dedireito”, deverá fazê-lo a partir do direito,em especial do direito tributário, “que peloimpacto de seus tributos” poderá destruir“a antiga ordem social” e, simultaneamen-te, financiar “a reconstrução, esta últimadisciplinada pelos demais ramos do Direi-to Positivo”34.

Não há como deixar de constatar, deigual modo, que os objetivos fundamentaisda República Federativa do Brasil estão sen-do negligenciados. Tal constatação, todavia,gera algumas questões: terá o direito, emespecial o tributário, a força normativa ne-cessária para promover tal novo e nobredesiderato aos tributos, os quais, tradicio-nalmente, são utilizados para manutençãode privilégios? A quem cabe promover e fis-calizar a promoção desse novo papel? É oque tentaremos responder, doravante.

4. A força normativa dodireito sobre os fatos

Nenhum cientista talvez seja capaz denegar a efetiva influência da realidade oudos valores sobre as normas. Esse, talvez, omérito considerável de Ferdinand Lassalle(2000)35, que, ao expor tal influência, gritou,a todos pulmões, que a Constituição estavanua, e em muitos aspectos está mesmo. Nãohá como negar que a Constituição, e o direi-to que ela tão bem expressa como ápice nor-mativo, foi criada para proteger e garantiruma certa ordem vigente, e não para legiti-mar ou possibilitar revoluções. Tanto isso éverdade que os ideais revolucionários sem-pre estão alicerçados em direitos naturais,quase nunca positivados pela ordem jurídi-ca que se deseja substituir.

Não há como negar que tal função, emregra, vem sendo meticulosamente exerci-da, mesmo, alguns dizem, mediante a figu-ra do Estado do bem-estar social. Nesse sen-tido, as Constituições dirigentes e suas nor-mas programáticas são usadas, com descon-certante habitualidade, para negar os valo-res constitucionalizados.

Ocorre que, sob a vontade de deitarmosfora a água da bacia, não poderemos jogarjunto a criança que está lá dentro.

Se, por um lado, as Constituições devemrefletir os valores de seu tempo, por outro,tais valores devem ser revestidos de norma-tividade jurídica para serem eficazes. Ouseja, a Constituição possui a importantemissão de qualificar a realidade como reali-dade jurídica e, a partir daí, destacar, emação inversa, sua eficácia para impor con-dutas. A Constituição, portanto, deve serconsiderada como a verdadeira “criadorado Estado de Direito, pois, se antes dela opoder é um mero fato, resultado das circuns-tâncias, produto de um equilíbrio frágil en-tre as diversas forças políticas, com a LeiFundamental ele... converte-se a Poder dedireito, desencarnado e despersonalizado”36.

Ocorre que a criatura, no momento desua concepção e, posteriormente, de seu iní-

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cio de vida, por trazer a essência de seu cri-ador, modifica-o, passa a ter vida e destinoautônomos. Afinal, como salientou Engels(1987, p. 42) “um fator histórico, por ter sidoengendrado por outros fatos, em última ins-tância econômicos, reage também por suavez e pode reagir sobre aquilo que o cerca,inclusive sobre suas próprias causas”.

Parece-nos, portanto, assistir razão aosque, como Konrad Hesse (1991, p. 24-25),acreditam que a Constituição, ao passo quenão pode estar desvinculada das condiçõeseconômicas, sociais e políticas presentes emuma sociedade em um certo período de tem-po, não pode ser entendida apenas comoreflexo opaco dessas condições.

O mesmo se diga dos tributos que, pen-sados e criados como forma de manter ostatus quo, devem ter vida independente eposterior. É certo, pois, que se acredita naidéia de que tanto a Constituição, o direito,os tributos e outras instituições criadas ourecriadas pelo Estado Moderno certamentecontinham tal desejo de manutenção, o mes-mo que tende a prevalecer se não tomarmosconsciência de tal armadilha perigosa e senão tomarmos consciência de que o cami-nho para alcançar a força normativa daConstituição, especialmente a social, é ár-duo e cheio de desvios perigosos, como ár-duo e perigoso será o caminho para fazerdo tributo um mecanismo de redução progres-siva das desigualdades sociais e da pobreza.

5. A quem compete efetivar a utilizaçãodos tributos como fator redutor dapobreza e desigualdades sociais?

Evidente que o direito per se não podemudar as estruturas, ou resolver graves pro-blemas sociais; poderá fazê-lo, isto sim, opovo, os administrados, os cidadãos emuma luta constante e infindável, tendo porbase as políticas criadas pela Constituição,na procura da concretização de certos ide-ais, sobretudo de redução das desigualda-des, solidariedade e reconhecimento, que seencontram em seu alicerce.

Assim é que o processo de concretizaçãoda Constituição deverá ser compartilhadopor todos os membros de uma sociedade,que devem ser, e, sobretudo sentirem-se, res-ponsáveis por seu destino. A chamada so-ciedade aberta dos intérpretes da Constitui-ção, de que trata Peter Haberle (1997), pro-duz uma exegese mais realista e mais de-mocrática. Afinal, não só o processo de cria-ção, mas o de desenvolvimento posterior dodireito constitucional, deverá ser pluralista.

Consoante Haberle (1997), vivenciar anorma é interpretá-la, razão pela qual, pornão serem os Juízes os únicos a vivenciar odireito, certamente não seriam apenas elesos legitimados a interpretar a norma jurídica.

A ampliação do círculo dos agentes in-terpretativos seria apenas conseqüência danecessidade, de integração da realidade noprocesso de interpretação. Afinal, quemmais estaria legitimado a transformar aConstituição em realidade constitucionalsenão todos os que a vivenciam?

Desse modo, conclui que o povo “é tam-bém um elemento pluralista para a interpre-tação que se faz presente de forma legitima-dora no processo constitucional: como par-tido político, como opinião científica, comogrupo de interesse, como cidadão. A suacompetência objetiva para a interpretaçãoconstitucional é um direito da cidadania”(HABERLE, 1997, p. 37).

No mesmo sentido John Rawls (2002, p.432-433):

“Não pode haver nenhuma inter-pretação legal ou socialmente aprova-da desses princípios que moralmentetenhamos sempre de aceitar, nem mes-mo quando a interpretação é da cortesuprema de justiça ou do legislativo.De fato, cada função constitucional, olegislativo, o executivo e o judiciário,apresenta a sua interpretação da cons-tituição e dos ideais políticos que ainformam. Embora o judiciário possater a última palavra na solução dequalquer caso particular, ele não estáimune a poderosas influências políti-

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cas que podem forçar a revisão de suainterpretação da constituição. (...). Otribunal de última instância não é ojudiciário, nem o executivo, nem o le-gislativo, mas sim o eleitorado comoum todo... Não há perigo de anarquiadesde que haja uma harmonia ade-quada nas concepções de justiça doscidadãos e se respeitem as condiçõesdo recurso à desobediência civil”.

Importante uma ampliação e aperfeiço-amento nas formas de participação no pro-cesso constitucional das “potências públi-cas pluralistas enquanto intérpretes em sen-tido amplo da Constituição”, para que o di-reito processual constitucional possa “tor-nar-se parte do direito de participação de-mocrática” (RAWLS, 2002, p. 48).

Dessa forma, a força normativa da Cons-tituição certamente está contida, ainda queparcialmente, em sua desmistificação, nosentido de que não deve ser temido um de-bate franco, aberto e constante acerca de suajustificação37, acerca de sua efetiva compa-tibilidade com os princípios de justiça pre-sentes em uma determinada sociedade eacerca de seu efetivo cumprimento.

O cidadão deve, como isso, deixar de serum mero admirador do Estado espetáculo,ganhando a consciência de que o Estado,longe de ser superior, é meramente servidordo cidadão, cabendo a este lembrar que o“Estado lhe pertence, que os eleitos são seuseleitos e os ministros seus ministros. Elesestão onde estão graças a ele, e para ele.Compete-lhe, portanto, controlar ativamen-te este poder. Tendo sempre em mente estaverdade evidente: O Estado, somos nós”.38

Importante lembrar, todavia, que o ci-dadão apenas estará apto a exercer esserelevante papel na medida em que lhe sejagarantida a sensibilidade e a acessibilida-de em relação às alternativas de conduta ede resultado postas à sua escolha39. Nessesentido, aliás, Schwartzenberg (1978, p. 335-350) fornece-nos preciosos ensinamentosacerca dos caminhos a serem seguidos embusca de uma sociedade mais igualitária.

Em primeiro lugar, alerta que deve serassegurado ao cidadão não apenas o direi-to à informação, mas o direito ao conheci-mento40, ao saber. Ainda, há que ser assegu-rada uma melhor distribuição do tempo des-tinado ao trabalho (a ser reduzido), à vidaprivada (tempo destinado à amizade, amor,vida familiar) e tempo de vida pública (aser aumentado consideravelmente), de formaque o cidadão deixe de ser, tão-somente,mero espectador de uma minoria de ato-res sociais.

Mister, ainda, que haja a organizaçãoda sociedade civil contra excesso, e,complementamos, a inércia do poder esta-tal, de forma a possibilitar uma maior des-centralização da autoridade, regionalizan-do os espaços. Por fim, salienta Schwartzen-berg (1978) serem importantes, do mesmomodo, algumas medidas junto ao processoeleitoral, como a publicidade das despesaseleitorais, sua limitação e seu financiamen-to pelo Estado, além do necessário compro-misso público, ou, como menciona, contra-to de opinião pública, entre o candidato e opovo, por meio do qual este possa exercerum maior controle.

Podemos certamente incluir nessas me-didas a criação e desmistificação de ummaior número de instrumentos que possibi-litem a participação direta do cidadão noestabelecimento, execução e fiscalização depolíticas públicas, como o recall, o referen-do, o plebiscito, atuação em conselhos deeducação, movimentos sociais, audiênciaspúblicas, reuniões acerca do orçamento par-ticipativo, entre outras medidas.

No campo tributário, mister a criação deinstrumentos para que o cidadão, ainda quenão contribuinte, possa sentir-se responsá-vel pela fiscalização dos tributos, conces-sões de isenções e demais benefícios fiscais,aplicação dos recursos para gradual alcan-ce das finalidades constitucionais, recolhi-mento devido da carga tributária, entre ou-tros aspectos.

Recente pesquisa realizada pelo Ibope apedido da ONG Ação Educativa41 ratifica a

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importância de tais caminhos para o alcan-ce de uma sociedade mais igualitária. Talpesquisa revela que cerca de 56% dos brasi-leiros não desejam participar de práticascapazes de influenciar as políticas públi-cas; entre essas pessoas, 35% informamcomo motivo para essa apatia a falta de in-formação; outros 25%, a falta de tempo; ou-tros 21% informam que tais práticas sãochatas; 9% acreditam que tais práticas nãosão importantes, sendo que 9% não soube-ram revelar o motivo.

Não há dúvida, portanto, que tais cami-nhos são de vital importância para que oEstado possa fixar e atingir suas metas. Afi-nal, a maior característica do Estado Socialé a fixação de metas, finalidades a serematingidas. Tal finalidade-mor, cujo alcancedepende não só de ação do Estado, mas dasociedade civil, é, certamente, uma melhordistribuição, não só produção, mas, sobre-tudo, na apropriação das riquezas.

O alcance de tal finalidade, ainda que nãototalmente, significa a própria razão legiti-madora do Estado, equivalendo “à sua pró-pria existência, no sentido de que o poder es-tatal vive de sua justificação”42. Aliás, não sóo poder estatal vive de sua justificação, mastodo e qualquer poder, inclusive o econômi-co, adquire sua legitimidade a posteriori, ouseja, na medida em que efetivamente alcança,num buscar constante, as finalidades que lhesão atribuídas.

Pelo exposto, conclui-se que a Constitui-ção pode ter com a realidade, com os demaiselementos que forma a superestrutura deuma sociedade, uma relação de influênciae condicionamentos recíprocos. Ademais,não há como negar que “o direito, ainda maisque outras ciências sociais, tem a capacidadede valorizar o elemento humano no conheci-mento social. Não são leis econômicas, demercado ou deterministas que influenciam oconhecimento social, mas sim o indivíduo”43.

Nesse aspecto, a pretensão da Constitui-ção em estabelecer uma certa disciplina ju-rídica da economia e do mercado, definin-do os pontos fulcrais da organização eco-

nômica, estabelecendo critérios legitimado-res para o exercício da livre iniciativa, não éapenas uma utopia ou engodo, apesar deexercer tal papel com certa freqüência.

O caminho a trilhar, todavia, não é fácil,sendo repleto de dificuldades das quais três,em especial, merecem ressalva em face desua importância. Passaremos a analisá-las,tentando, ao final, expor idéias para efeti-var a função social do tributo. Vejamos:

6. A utilização dos tributos comofator redutor da pobreza e desi-gualdades sociais: dificuldades e

idéias para efetivá-laA efetivação da finalidade maior dos tri-

butos no Estado brasileiro é tarefa extrema-mente árdua. Frise-se, primeiramente, que éárdua toda e qualquer concretização do Es-tado social se não percebermos que o idealde individualismo exacerbado ou mesmo deutilitarismo é completamente contrário aoEstado Social. Mister identificarmos, ainda,as seguintes dificuldades:

6.1. A primeira grande dificuldade:a mundialização da economia

A primeira dificuldade de relevo que me-rece destaque nasce em face da chamada glo-balização, em especial da sujeição dos Esta-dos às políticas econômicas44 de organis-mos internacionais como a OMC, BID, FMI,bem como aos interesses de grandes gruposeconômicos45, eis que o poder de impor polí-ticas públicas internas se encontra certa-mente mitigado, sendo que muitos já apon-tam para o fato de ela restringir-se, atual-mente, apenas no regime das compras go-vernamentais. Tal situação é especialmentesentida no Brasil, onde jazem instrumentosanacrônicos e ineficientes de efetivação detais políticas.

Ademais, considerando-se que no Bra-sil a população dos consumidores efetivosé reduzida, a exportação é o caminho paraescoar uma boa parte de nossa produção,pelo que deveremos ter preços competitivos

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para o mercado internacional. Mas como sercompetitivo com países que trabalham pra-ticamente com o sistema capitalista clássi-co, com condições subumanas de trabalho eremuneração?

Tal fato, inclusive, possibilita aos gran-des grupos econômicos a escolha do locale condições que desejam trabalhar, amea-çando partir ou se instalar em outro para-íso (que pode ser tanto interno ao País, quan-to externo) caso suas condições (via de re-gra repletas de renúncia fiscal, financiamen-to público e baixo valor da mão-de-obra) nãosejam acatadas pelo Poder Público local.

Aqui um paradoxo: apesar da mundi-alização dos mercados, a riqueza e a po-breza são sentidas, a pequeno e médio pra-zos, no interior das fronteiras dos Estados46,mas a saída passa, também, por ações glo-bais, externas à soberania dos Estados.

Ainda no que concerne às condições im-postas pelos grandes grupos econômicos,lembre-se que, pelo menos em nível federal,a renúncia fiscal é cada vez maior, como sedepreende dos dados constantes dos ane-xos à lei orçamentária para o ano de 200647,que prevêem a renúncia de R$42,5 bilhõespara o ano de 2006, superior em 35,7% emrelação ao ano de 2005. Aqui três informa-ções merecem destaque: 1. O tributo cuja re-núncia terá maior elevação é a contribuiçãopara financiamento da seguridade social(COFINS), seguida pelo Programa de Inte-gração Social (PIS), ambas contribuiçõespara a seguridade social; 2. em números,todavia, serão as reduções no campo doImposto de Renda que importarão na maiorparte da desoneração aos contribuintes, che-gando em R$14,7 bilhões previstos para oano em estudo.

Jonh Kenneth Galbraith (1988, p. 306-307) identifica a tendência pela “dependên-cia generalizada na utilização da reduçãode impostos, em lugar do aumento dos gas-tos públicos”, a qual, conforme ensina, temprivilegiado, na grande maioria dos casos,“as faixas de renda mais altas da tecnoes-trutura”, afirmando, ainda, que tais redu-

ções de impostos “têm elevado a desigual-dade na distribuição da renda. Tambémconstituem um método ineficiente de expan-são da procura, pois a renda é devolvidaaos contribuintes mais ricos, os quais, emgrande parte, a poupam”.

Assim, mister a participação direta docidadão na apreciação de certas renúnciastributárias que importem em valor consi-derável de receita pública. Mister, ainda, adivulgação em grande escala de tais renún-cias, as quais deverão envolver discussãoprévia e ampla acerca de seus efeitos. Re-núncias fiscais têm-se mostrado um péssi-mo fomentador de redução de pobreza e de-sigualdades, pelo que urge um controle rí-gido acerca das mesmas.

6.2. A segunda grande dificuldade:a mobilidade patrimonial

Cientistas já apontam para as inúmerase consideráveis conseqüências na proprie-dade privada causadas pelo fortalecimentodas relações virtuais, na medida em que atu-almente se torna impossível prever a vidado atual capitalismo sem os atuais sistemasde comunicação, em especial da rede mun-dial de computadores (internet).

Ademais, o acentuado desenvolvimentotecnológico, com a velocidade jamais vistana história da humanidade, tem a capaci-dade de gerar uma quantidade inimaginá-vel de “novidades obsoletas”. Processo deprodução, bens e serviços tornam-se ultra-passados pela mais recente inovação tecno-lógica do momento48. Nesse mundo, a pro-priedade passa a ser

“uma instituição lenta demais para seajustar à nova velocidade de uma cul-tura veloz. A propriedade baseia-se naidéia de que possuir um ativo fixo ouuma propriedade em um período ex-tenso de tempo é valioso. ‘Ter’, ‘guar-dar’ e ‘acumular’ são conceitos pre-zados (...). Ter, guardar e acumular,em uma economia em que a mudançaem si é a única constante, faz cada vezmenos sentido” (RIFKIN, 2001, p. 5).

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Assim é que cada vez mais, no mundoem que vivemos, o que se destaca não é aqualidade ou raridade do produto ou servi-ço, mas sua mobilidade49. Tal fato gera refle-xos imediatos e profundos na estrutura dasempresas. É marcante a redução progressi-va de seus ativos fixos, quer imóveis, quermaquinários, quer de estoque. Tal mudan-ça certamente trará alterações não só nasrelações inter-humanas, mas em nossasinstituições políticas, jurídicas, sociais e eco-nômicas, eis que estas estão e sempre estive-ram interligadas a nossas relações com a pro-priedade e riqueza.

Tal constatação da flexibilização histó-rica do conceito de propriedade é fundamen-tal para defendermos: 1. a exação tributáriadeverá estar atenta a essa mudança, paraque passe a incidir sobre essas novas for-mas de riqueza; 2. a flexibilização do con-ceito de função social. Dessa forma, nem atributação nem a função social deverão fi-car atreladas a um conceito de propriedadedos antigos ou dos modernos.

Assim, fundamental que a tributação sejaalicerçada em uma “estrutura tributária for-temente progressiva”50 cobrada, sobretudo,sobre o enriquecimento, sobre o capital fi-nanceiro, especialmente na saída do territó-rio brasileiro. Fundamental, ainda, que a tri-butação esteja atenta à referida mudança doperfil da propriedade para que possa inse-rir, verdadeiramente, nas grandes riquezas.

6.3. A terceira grande dificuldade: otratamento constitucional da propriedade

Nosso ordenamento constitucional pa-rece não caracterizar a função social comoum elemento necessário ao reconhecimentoda propriedade, na medida em que, uma vezausente, a propriedade deixaria de ser pro-tegida pelo ordenamento jurídico, passível,inclusive, de desapropriação sem indeniza-ção, quer posterior, quer, muito menos, pré-via e justa.

Em verdade, o art. 182, § 4o, e 184 e seusparágrafos impossibilitam essa conclusão,extraindo boa parte da coerência do princí-

pio, obrigando a indenização por desapro-priação, mesmo em caso de descumprimen-to da função social, o que, em alguns casos,poderá servir como um prêmio aos que nãoexercerem tal função. Não há dúvidas, as-sim, que o sancionamento pelo mau uso dosbens, inclusive os produtivos, poderia sercelebrado de forma mais enérgica por nossoordenamento jurídico.

De outra banda, a previsão constante doart. 174, de que o planejamento, ou seja, aprevisão de comportamentos futuros, cria-ção de método para aferição de seu cumpri-mento, e meios sancionadores para que omesmo possa ser realizado, vital para umaConstituição Dirigente, é apenas indicativopara o setor privado, parece contribuir ain-da mais para o esvaziamento do princípioda função social.

Nesse sentido, seria fundamental umaemenda constitucional que identificasse afunção social como um elemento fundamen-tal à caracterização jurídica da proprieda-de, na medida em que sua ausência retira-ria qualquer possibilidade de proteção porparte do ordenamento jurídico.

Conclusão

Certamente não vemos dúvidas acer-ca do relevante papel exercido pela fun-ção tributária na consecução dos meiosfinanceiros para que o Estado possa man-ter-se.

Todavia, não se pode aceitar a idéia deum Poder/Dever de Tributar hedonista, de-satrelado de ideologia. Não há como negar,também, que o tributo, antes de qualquercoisa, é um grande veículo de transferênciade riqueza, com o agravante de, historica-mente, possibilitar a transferência de rique-za (poder) dos menos dotados para os maisaquinhoados de patrimônio.

Urge assim, de forma imediata, que ooposto tenha lugar.

O Poder Tributário, para ter legitimida-de, não basta estar disposto ou efetivado emtextos normativos. Necessário é que o mes-

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mo seja exercido dentro de limites firmadospelo soberano (o povo) e, precipuamente, embenefício deste.

Trata-se de exigir que a ação do Estado,financiada pelos tributos, esteja voltada paraa valorização da produção, do trabalho,do meio ambiente, das crianças, da arte,da cultura, dos idosos, enfim, voltada para aprática de atos socialmente responsáveis.

Nesse aspecto, seguindo a linha da ne-cessidade de uma cidadania procedimen-talmente ativa, é importante salientar,uma vez mais, que a sociedade civil, comopartícipe que é da relação jurídica tribu-tária, possui importante papel a cumprir,eis que a esta também é fundamental a von-tade de Constituição de que falava Hesse(1991, p. 19). Exige-se, portanto, um novotipo de consumidor, de contribuinte e decidadão.

Mister, assim, que o Estado exerça umpapel ativo no exercício de sua função maisrelevante nos tempos atuais, a função deplanejar, de conduzir ao futuro, de criarpadrões sólidos de comportamento para asociedade, e, em especial, para os agenteseconômicos. Fundamental medir os gas-tos pelas necessidades públicas e nãopelas necessidades da política fiscal oumonetária.

Urge, ainda, destacar o importante pa-pel a ser exercido pelo direito como ele-mento controlador e limitador do podereconômico.

Não se pode esperar que a redução dasdesigualdades sociais seja concretizada sema redução necessária e proporcional do po-der econômico e da livre iniciativa. Afinal, oque se pretende com tal objetivo é, “simples-mente”, modificar radicalmente a finalida-de da atividade econômica, da acumulaçãoindividualista e, assim, o bem-estar de nin-guém51 para o bem-estar de um número cadavez maior de pessoas.

Mister, ainda, o papel igualmente ativoda sociedade civil, no controle dos atos pra-ticados pelo Estado e contribuintes, no sen-tido de uma gradual efetivação dos objeti-

vos fundamentais da República Federativado Brasil. Afinal, as comunidades são os ve-ículos mais eficazes para produção de trans-formações sociais.

Importante, ainda, a reflexão dos agen-tes econômicos acerca de que “cálculo im-becil e míope fazem (...) que os leva a supor-tar, para se protegerem, os mesmos sacrifí-cios que, aceitos de outra forma, evitari-am o aumento deste oceano de miséria queameaça engolfá-los um dia?” (PASSET,2003, p. 157).

Afinal, não há estratégias de desenvol-vimento da sociedade como um todo que nãoexijam um rompimento com o individualis-mo marcante nas sociedades inspiradas nosideais burguês-liberais. Tal rompimento nãoserá feito sem conflitos, mas, lembre-se, éconflito que redistribui.

Notas1 Na medida em que sua finalidade e exercício

apenas podem ser avaliados tendo a coletividadepor referência. Nesse sentido, ver Thomas RansomGiles (1885, p. VII).

2 Nesse sentido, ver José Afonso da Silva (1997,p. 110).

3 Idéia desenvolvida pela teoria sociológica dalegitimação, que poderá englobar outros fatores,como a identidade ideológica com a autoridade,docilidade, entre outros.

4 Ver Norberto Bobbio (1999, p. 110-114), queidentifica três formas de poder: o econômico (indu-ção comportamental àqueles que não possuem cer-tos bens escassos e valiosos por parte daqueles queos possuem), o ideológico (indução comportamen-tal daqueles que possuem certas formas de saber) eo político (indução pelo uso legítimo da força).

5 Usa-se o adjetivo moderno, qualificando osubstantivo Estado, para fixar uma instituiçãopolítica que nasce da ruína do sistema feudal, ca-racterizada não apenas pelo uso legítimo e exclusi-vo da força, mas por ser planejada, teleológica, fun-cionalmente específica e internamente estruturadacomo uma organização formal e complexa, comosalienta Gianfranco Poggi (1981, p. 106).

6 É verdade que tal sacrifício pode ser exigidopela força, mas a força, como veremos, é fator frá-gil e temerário de legitimação.

7 Urge esclarecer que, muito embora hoje o con-ceito de tributo esteja atrelado, de forma grandio-sa, à noção de Estado, em face, talvez, do monopó-

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lio da tributação por parte deste, urge destacar queo Estado é criação social bem posterior àquele. Nessesentido, ver Alberto Nogueira (1999, p. 131).

8 Consoante lição de Paul Bernd Spahn (2001,p. 70).

9 Conforme Sérgio Resende de Barros (2003, p.3).

10 Ver Celso Antônio Bandeira de Mello (2000,p. 13), ao tratar, com precisão, sobre a função (po-der-função) no direito.

11 Aliás, é nesses precisos termos que devemosentender a própria função social da propriedade,como lembra Fábio Konder Comparato (1986, p.75).

12 Evidentemente que há tributos com destina-ção específica, mas não é dessa destinação que nosocuparemos neste trabalho. Tratar-se-á, pois, tão-somente, da finalidade extrafiscal que deverá nor-tear todo tributo, prevista no art. 3o da CF/88.

13 Nesse sentido, ver Alfredo Augusto Becker(1998, p. 237-244).

14 Como bem alertou Jean-Jaques Rousseau(1987 p. 24).

15 Como nos quer fazer sugerir a redação do art.3o do CTN.

16 Algo com espírito guardião e auxiliar, que,embora perigoso para os outros, reconhece e poupaos seus próprios filhos, mas, em compensação, estesficam na obrigação sagrada de não destruir seu to-tem, como explica-nos Sigmund Freud (1999, p. 13).

17 Ver indispensável obra de Sílvio Meira (1978).18 Trata-se do mais importante dos “pactos”

ingleses, em que figuravam, formalmente, conces-sões do Monarca aos Súditos, mas que, não raro,como é o caso da própria Magna Carta, eram obti-das por reinvidicações destes. Editada em 1215, foiimposta a João Sem Terra, mas ratificada, posteri-ormente, em 37 oportunidades distintas. Continhaa afirmação de direitos imemoriais corporativos daaristocracia e clero ingleses, estabelecendo um mo-dus vivendi com o monarca. Sobre a Magna ChartaLibertatum Angliae Terrae, ver Ivor Jennings (1965, p.44-47) e Sérgio Resende de Barros (2003, p. 327-362).

19 “Nenhuma ‘ajuda’ ou ‘tributo de isenção mi-litar’ será estabelecida em nosso reino sem o con-sentimento geral, a não ser para o resgate de nossapessoa, para fazer cavaleiro nosso filho primogêni-to, e para casar nossa filha primogênita. Para estespropósitos, somente poderá ser estabelecida umaajuda razoável. De igual maneiro se procederá quan-to às ajudas da cidade de Londres”.

20 “Todos os mercadores poderão entrar ou dei-xar a Inglaterra, livremente e com toda a seguran-ça, e poderão permanecer ou viajar em seu interior,por terra ou água, com propósitos de comércio,sem quaisquer restrições ilegais, de acordo com osantigos e legítimos costumes (...)”.

21 Como espelho das reivindicações burguesasdo final dos setecentos, ver o clássico opúsculo deEmmanuel Joseph Sieyès (2001), que conclama oTerceiro Estado a lutar para que a nobreza carre-gue também o peso de um tributo que era, inclusi-ve, mais útil a ela.

22 Surge a idéia de riqueza e propriedade perfei-tas, em oposição à propriedade imperfeita do feu-dalismo, já que doravante nenhuma pessoa poderáser o proprietário dela “como eu e ao mesmo tem-po”. Essa a natureza excludente da propriedadeburguesa de que nos fala Mercier de La Rivière (apudNUNES, 2003, p. 29).

23 Conhecida por muitos a história dos movi-mentos do operariado na Inglaterra já no início dosoitocentos sob o comando de Robert Owen, com abusca pela implementação do cooperativismo re-volucionário, associações de ofícios, oficinas coo-perativas, entre outras instituições do gênero. Édesse período o Factory Act inglês de 1833, que es-tabelece uma tímida proteção aos trabalhadoresingleses. Lembre-se, ainda, o trabalho de CharlesFourier na França de 1825, ambos citados por PaulSinger (2002, p. 24-35).

24 Ver Manifesto do Partido Comunista de 1848.25 Salutar e lúcida a lição de Raimundo Faoro

(1985, p. 7-8), citando Macaulay, para o qual “asreformas não são outra coisa do que melhoramen-tos numa estrutura consagrada pelo tempo. O re-formismo assenta sobre descontentamentos que po-dem, se não pacificados, pôr em risco o sistemaconstitucional. O papel dos conservadores não é,como se supõe, resistir ao que se fará, ainda quepor meios não previstos, mas, isolados os insur-gentes, manter e assegurar a continuidade do es-quema básico de poder”.

26 Veja-se Eros Roberto Grau (2003, p. 25-26),acerca do fato de que a Constituição é criada eutilizada como instrumento de dominação ideoló-gico.

27 Destaque-se a passagem que trata especial-mente dos tributos: “É por isso que entre os gravese numerosos deveres dos governantes que queremprover, como convém, ao público, o principal de-ver, que domina todos os outros, consiste em cui-dar igualmente de todas as classes de cidadãos,observando rigorosamente as leis da justiça, cha-mada distributiva. Mas, ainda que todos os cida-dãos, sem exceção, devam contribuir para a massados bens comuns, os quais, aliás por um giro natu-ral, se repartem de novo entre os indivíduos, toda-via, as constituições respectivas não podem ser nemas mesmas, nem de igual medida”.

28 Em especial de seus arts. 25 e 27.29 Em especial cito seu art. 153, in fine, que esta-

belece que “a propriedade obriga. Seu uso consti-tuirá, também, um serviço para o bem comum”.

30 Ver Gilberto Bercovici (2002, p. 121).

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31 Nesse sentido se questiona, inclusive, o termoextrafiscal, que oferta a falsa idéia de que o alcancedas finalidades previstas no art. 3o da CF/88, querpela arrecadação quer com outras intervenções es-tatais, estaria fora do campo rotineiro dos tributos.Em outras palavras, em cada tributo deverá estarínsito o alcance de tais finalidades, pelo que não setrata de extrafiscalidade, mas da fiscalidade pro-priamente dita.

32 No dizer de Lucien Mehl e Pierre Beltrame(apud NOGUEIRA, 1999, p. 165).

33 Pascal Salin (apud NOGUEIRA, 1999, p. 186).34 No dizer feliz de Alfredo Augusto Becker

(1998, p. 597).35 Considerado por muitos o pai do sociologis-

mo jurídico, o qual afirma que a força ativa quecausa influência em todas as normas, vinculandoseu conteúdo, até certo ponto, é formada por deter-minados “fatores reais de poder” que atuam no interiorde cada sociedade e informam todos os atos norma-tivos vigentes. Tais fatores reais de poder é que for-mariam a essência de toda e qualquer Constituição.

36 Conforme ressalta Georges Burdeau (apudCOELHO, 1994, p. 9).

37 Afinal, o direito constitucional é um direitode compromisso e conflito, no preciso dizer de Gil-berto Bercovici (2002, p. 128).

38 Na lição de Schwartzenberg (1978, p. 334).39 No preciso dizer de Eros Grau (2003, p. 181),

em consonância com os ideais de John Rawls (2002)já aludidos.

40 Afinal, poder e conhecimento se realimentamem um processo circular, como salienta GilbertoDupas (2003, p. 54).

41 Divulgada pelo Jornal Folha de São Paulo de26/11/2003, p. A9, realizada entre 29/10 e 2/11,que entrevistou cerca de 2000 brasileiros e cujamargem de erro chega aos 2,2 pontos percentuais.

42 Conforme salienta Gilberto Bercovici (2002,p. 126), que cita Hermann Heller.

43 Como bem assevera Calixto Salomão Filho([199-], p. 268).

44 Os Estados estão cada vez mais subordina-dos a metas monetárias rígidas com pouquíssimaflexibilidade para voltarem à prática das políticaskeynesianas. Nesse sentido, ver, entre outros, Gil-berto Dupas (2003, p. 73).

45 Que não cansam de reivindicar como públi-cos interesses particulares.

46 Ver Dupas (2003, p. 70).47 Divulgados pelo Ministério do Planejamento

e noticiados pelo jornal Folha de São Paulo, cader-no Dinheiro, p. B7, de 17/9/2005, por matéria inti-tulada “Renúncia Fiscal aumenta 35,7% em 2006”,de Julianna Sofia.

48 Nesse sentido, fundamental citar a previsão,hoje concreta, firmada por Gordon Moore (apudRIFKIN, 2001, p. 16), fundador da Intel, de que o

“poder de processamento de chips de computadorcontinuaria a dobrar a cada 18 meses, enquanto ocusto da produção de chips se manteria constanteou diminuiria”. Todavia, tal realidade, apesar deser mais facilmente sentida no campo dos eletrôni-cos, não ocorre apenas com estes, mas com toda asorte de outros produtos.

49 Ver Dupas (2003, p. 53-55).50 No preciso dizer de Galbraith (1988, p. 307).51 Afinal, como bem assevera Renè Passet (2003,

p. 154), como os agentes econômicos “gostam dese enganar. Tantas vidas dedicadas à acumulaçãode algo que, para os outros, constitui apenas o meiode Ter acesso a uma vida minimamente decente.Escravos de um instrumento. Na hora do últimosuspiro, um deles teria constatado – com desespe-ro, mas já era tarde – que nunca passara de umabomba de aspirar dinheiro... Pobres coitados!

O poder, dirão. O poder, realmente: poderioirrisório de ínfimos micróbios, deliciando-se – numátimo de segundo – em esmagar populações deoutros ínfimos micróbios, perdidos num grão deareia que gira no infinito do universo”.

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1. Introdução

A discussão causada pelos alimentosgeneticamente modificados ou transgênicosé de longa data, seja no Brasil, seja em âmbi-to internacional. A intensa polêmica que seobserva abarca componentes de saúde pú-blica, de proteção ao meio ambiente e de se-gurança alimentar, além de relevantes as-pectos econômicos.

Até a aprovação da nova Lei de Biosse-gurança (Lei no 11.105, de 24 de março de

Atuação de grupos de pressão na tramitaçãodo Projeto de Lei de Biossegurança

Gustavo Henrique Fideles TaglialegnaPaulo Afonso Francisco de Carvalho

Gustavo Henrique Fideles Taglialegna éConsultor Legislativo do Senado Federal naárea de agricultura, Mestre em Agronegóciospela UnB/UFMS/UFG e Engenheiro Agrôno-mo pela ESALQ-USP.

Paulo Afonso Francisco de Carvalho é Pro-fessor do Instituto de Ciência Política da Uni-versidade de Brasília, Doutor em Economiapelo Moscow State Institute of InternationalRelations.

Sumário1. Introdução. 2. Fases do processo de polí-

ticas públicas. 3. Participação de grupos de pres-são na formulação de políticas públicas. 4. Asteorias de políticas públicas e os grupos de pres-são. 4.1. O pluralismo. 4.2. O elitismo. 4.3. Oneocorporativismo. 4.4. O neo-institucionalis-mo. 5. Aspectos legais anteriores à aprovaçãoda nova Lei de Biossegurança. 5.1. A CTNBio esuas competências. 5.2. Os órgãos de registro efiscalização e suas competências. 5.3. A ques-tão das células-tronco. 5.4. O imbróglio jurídi-co. 6. A nova Lei de Biossegurança. 6.1. O pro-cesso de autorização do uso OGM. 6.2. As célu-las-tronco. 7. Tramitação do Projeto de Lei deBiossegurança. 7.1. Projeto apresentado peloPoder Executivo. 7.2. Tramitação na Câmarados Deputados. 7.3. Tramitação no Senado Fe-deral. 7.4. Tramitação final na Câmara dos De-putados. 8. Definição sobre o processo de auto-rização do uso de OGM. 9. Estratégias utiliza-das pelos grupos de pressão. 10. Conclusão.

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2005), as atividades que envolvem o uso deOrganismos Geneticamente Modificados(OGM) e seus derivados estavam discipli-nadas pela Lei no 8.974, de 5 de janeiro de1995 – com as alterações decorrentes daMedida Provisória no 2.191-9, de 23 de agos-to de 2001 – e pela Lei no 6.938, de 31 deagosto de 1981 (Lei da Política Nacional doMeio Ambiente).

A Lei de Política Nacional do Meio Am-biente regulamenta o art. 225, sobre o meioambiente, da Constituição Federal, inclusi-ve no que tange à exigência de estudo pré-vio de impacto ambiental para atividadespotencialmente causadoras de significativadegradação do meio ambiente, como condi-ção para a obtenção de licenciamento ambi-ental, a ser emitido pelo Ministério do MeioAmbiente.

Contudo, a Lei no 8.974, de 1995, conce-dia à CTNBio competência para autorizar aliberação, no meio ambiente, de organismosgeneticamente modificados, sem a necessi-dade de estudo prévio de impacto ambien-tal. Essa divergência entre uma lei geral euma lei específica era, segundo Victorino(2004), a fonte do impasse com os ambienta-listas. Para Custódio (2001), a Lei no 8.974,de 1995, não obstante tratar de atividadepotencialmente causadora de significativadegradação do meio ambiente, omitia, semjustificativa, a exigência do estudo préviode impacto ambiental, o que, em sua opi-nião, ofendia flagrantemente as normasconstitucionais.

Durante os anos de vigência da Lei no

8.974, de 1995, travou-se uma batalha jurí-dica entre os atores da sociedade favoráveise os contrários à adoção dos OGM no Bra-sil. A confusão jurídica que se estabeleceunos tribunais brasileiros tinha como foco afalta de clareza da legislação então em vi-gor com respeito às competências da Comis-são Técnica Nacional de Biossegurança(CTNBio) e do Ministério do Meio Ambien-te para emitir a decisão final sobre a autori-zação do plantio e da comercialização deOrganismos Geneticamente Modificados.

Concretamente, a disputa jurídica ini-ciou-se quando, em 1998, a CTNBio emitiuparecer técnico conclusivo favorável ao usocomercial da soja Roundup Ready, da Mon-santo. Segundo o parecer, não há risco am-biental no cultivo, nem risco para a segu-rança alimentar no consumo da soja geneti-camente modificada. Em seguida, o Institu-to de Defesa do Consumidor (IDEC) e a or-ganização não governamental Greenpeaceingressaram com ação civil pública e obti-veram liminar que proibia a União de auto-rizar o plantio da soja transgênica sem olicenciamento ambiental emitido pelo Mi-nistério do Meio Ambiente, o que dependiada elaboração, pela Monsanto, de estudo erelatório prévio de impacto ambiental (EIA-RIMA).

Para Dolabella, Araújo e Faria (2005), aLei no 8.974, de 1995, não foi capaz de esta-belecer um processo normativo adequadopara a regulação do uso de OrganismosGeneticamente Modificados. Os autoresconsideram que “conflitos a partir de suaregulamentação desembocaram em conten-ciosos judiciais, com o deferimento de limi-nar que suspendeu a liberação da soja re-sistente ao herbicida glifosato”, o que gerou“inúmeros impasses administrativos, polí-ticos e legais, assim como um processo deletargia nas instituições brasileiras de pes-quisa e desenvolvimento em biotecnologia”.

Em paralelo a toda essa discussão jurí-dica, os agricultores brasileiros, ao percebe-rem os benefícios econômicos da soja gene-ticamente modificada, passaram a plantar,ilegalmente, sementes clandestinas da sojaRoundup Ready. Os primeiros plantios seiniciaram no Estado do Rio Grande do Sul,ainda no final da década de 90, sendo que aprimeira apreensão de soja transgênica ocor-reu naquele Estado em 1998. Na safra 2002/2003, a soja geneticamente modificada re-presentava cerca de 70% da produção desoja do Rio Grande do Sul (EMBRAPA,2003). Segundo Buainain & Silveira (2003),a adoção da soja Roundup Ready pelos agri-cultores do Rio Grande do Sul deve-se à fa-

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cilitação do processo produtivo, o que favo-rece a gestão da propriedade e a redução decustos.

Com efeito, essa era uma situação de fatoque colocou na agenda nacional a necessi-dade de reformulação da legislação sobreos organismos geneticamente modificados.Porém, enquanto a reforma da legislaçãoainda estava em discussão, o Governo Fe-deral se viu obrigado a editar, nos anos de2002, 2003 e 2004, medidas provisórias parapermitir, excepcionalmente, o plantio e acomercialização da soja transgênica.

Faria (2003) destaca a divergência deopiniões entre organizações ambientalistas,de defesa do consumidor, institutos de pes-quisa, associações de classe, comunidadecientífica, sindicatos rurais, agricultores,cooperativas agropecuárias e empresas debiotecnologia. A autora cita como exemplode entidades contrárias à liberação dostransgênicos as organizações integrantes domovimento “Por um Brasil Livre de Trâns-gênicos” e o Instituto de Defesa do Consu-midor (IDEC). Entre as entidades que atu-am favoravelmente à liberação do plantio eda comercialização de OGM, a autora cita aAssociação Brasileira de Agribusiness, alémdas empresas de biotecnologia, apoiadaspor entidades de classe do setor agropecuá-rio. Segundo Faria (2003), há, dentro do pró-prio Governo Federal, divergências frontaisentre os Ministérios do Meio Ambiente e daAgricultura, Pecuária e Abastecimento a res-peito da pertinência da produção de alimen-tos geneticamente modificados.

Também no Congresso Nacional, as dis-cussões sobre o tema fizeram parte da agen-da política nos últimos anos. Desde 1996,foram realizadas onze audiências públicasno Senado Federal e sete na Câmara dosDeputados. Nessas audiências públicas, tra-taram-se de assuntos polêmicos, como a ro-tulagem de alimentos geneticamente modi-ficados, os possíveis danos ao ambiente e àsaúde humana, além dos impactos socioe-conômicos que poderiam resultar da libera-lização do plantio e da comercialização de

organismos geneticamente modificados. Noperíodo de 1997 a 2003, conforme levanta-mento feito por Faria (2003), diversos proje-tos de lei com propostas de alteração na le-gislação sobre biossegurança foram apre-sentados no Congresso Nacional.

A tramitação do Projeto de Lei de Biosse-gurança é um exemplo concreto de formula-ção de política pública – no caso a PolíticaNacional de Biossegurança – em que diver-sos atores, com opiniões divergentes, atua-ram diretamente no Congresso Nacional,com o objetivo de moldar o Projeto de Lei deBiossegurança de acordo com suas opini-ões e interesses. De acordo com o que pro-põe a teoria neo-institucionalista, a atuaçãodos grupos de pressão depende do ambien-te institucional do Congresso Nacional, tan-to no que se refere às suas instituições inter-nas – normas que regulamentam o processolegislativo – quanto no que tange às insti-tuições externas, relativas principalmente aosistema eleitoral e ao apoio da opinião pú-blica.

Nesse sentido, surge como problema depesquisa o estudo da forma como o caso datramitação do Projeto de Lei de Biossegu-rança, a participação de grupos de pressãono processo e sua interação com o ambienteinstitucional, pode ser explicada pelas teo-rias que tratam do processo de formulaçãode políticas públicas.

2. Fases do processo depolíticas públicas

A construção de políticas públicas é umprocesso contínuo, que se inicia com a colo-cação de um determinado tema na agendade discussões do país, passa pela formula-ção das normas que instituem a nova políti-ca pública e por sua implementação propri-amente dita, e se completa com a avaliaçãode sua eficiência. Segundo Pedone (1986),“nenhuma dessas atividades internas doprocesso de políticas públicas é indepen-dente das outras, e menos ainda indepen-dente do ambiente da cultura política e dos

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grupos ao redor da política específica”. Nãoobstante a interdependência dessas etapas,o processo de políticas públicas é didatica-mente dividido nas fases de construção daagenda, formulação, implementação e ava-liação.

Cobb e Elder (1971) consideram que oestudo da construção da agenda é impor-tante porque mostra a natureza da relaçãoentre o meio social e o processo governa-mental. A fase de construção da agenda é aetapa do processo de políticas públicas emque um determinado tema adquire certograu de importância, de forma que passa adespertar o interesse da sociedade, da mí-dia, dos legisladores e de grupos privadosespecíficos, além do próprio governo.

Kingdon (1984 apud VIANA, 1996) de-fine agenda como “o espaço de constituiçãoda lista de problemas ou assuntos que cha-mam a atenção do governo e dos cidadãos”.Segundo o autor, há três tipos de agenda, asistêmica, a governamental e a de decisão.A primeira é composta pelos temas que sãopreocupação da sociedade há anos, mas semmerecer a atenção do governo. A segunda éformada pelas questões que merecem a aten-ção do governo e a terceira contém as maté-rias a serem decididas. Segundo Cobb eElder (1971), para que um tema adquira ostatus de agenda, é necessário que “seja alvode atenções, o que está relacionado com amobilização de tendências e com as influ-ências e reações das comunidades políticas,referendadas por um consenso geral daselites”.

A formulação de políticas públicas é afase em que, no âmbito dos poderes Executi-vo e Legislativo, são discutidas as alternati-vas e uma delas é escolhida para compor apolítica pública. Para Hoppe e Dijk (1985apud VIANA, 1996), a fase de formulaçãode políticas públicas ocorre em um espaçopolítico de trocas, indeterminações, conflitoe poder, enquanto a fase de implementaçãose define em um espaço administrativo, con-cebido como um processo racionalizado deprocedimentos e rotinas.

A formulação de políticas públicas é afase em que, sob intensa politização, se ana-lisam inúmeras alternativas para o proble-ma, levando-se em conta diversos fatores econtextos. Nessa fase, ouvem-se opiniõesdiversas e contraditórias e há disputa deinteresses para avançar ou bloquear a pro-posta (PIOVESAN, 2002).

A fase de implementação é a etapa emque o Poder Executivo literalmente executaas políticas públicas. Segundo Pedone(1986), a implementação é o momento emque a administração pública age a fim deatender diretrizes estabelecidas pelo Legis-lativo ou pelo próprio Executivo. Kiviniemi(1985 apud VIANA, 1996) define a imple-mentação como sendo a fase em que se im-plantam intenções para se obter impactos econseqüências, sendo que o sujeito das açõesé o governo e o objeto são os cidadãos e osgrupos privados. Dessa forma, a implemen-tação é vista como ação social, manifestadano encontro de diferentes intenções e de di-ferentes atores.

A avaliação, outra fase do processo depolíticas públicas, tem por objetivo a com-paração das situações verificadas antes e apósa implementação de um projeto. A Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) define avalia-ção de políticas públicas da seguinte forma:

“(...) processo orientado a determinarsistemática e objetivamente a perti-nência, eficiência, eficácia e impactode todas as atividades à luz de seusobjetivos. Trata-se de um processo or-ganizativo para melhorar as ativida-des ainda em marcha e ajudar a ad-ministração no planejamento, progra-mação e futuras tomadas de decisão”(COHEN; FRANCO, 1994).

3. Participação de grupos de pressãona formulação de políticas públicas

Aragão (1994) define grupos de pressãocomo sendo aqueles que “atuam junto aopoder público com o objetivo de obter van-tagens, benefícios, resguardar interesses ou

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impor determinados pontos de vista, envol-vendo procedimentos de esclarecimento,informação e doutrinamento”. O autor con-sidera que as ações dos grupos de pressãopodem incluir tanto ações legítimas, taiscomo relações públicas, propaganda, forne-cimento de informações, quanto ilegais,como coação, constrangimento, corrupçãoe advocacia administrativa.

Cavalcanti ([198-]) conceitua grupos depressão como sendo aqueles grupos orga-nizados para a defesa de interesses própri-os, de natureza diversa, que atuam sobre osórgãos responsáveis do estado para obteros benefícios de seu interesse.

Os representantes dos grupos de pres-são no Congresso Nacional, chamados delobistas, atuam, segundo Graziano (1994),mediante pressão ou persuasão; utilizando-se de argumentos técnicos, buscam o acesso ea influência sobre os tomadores de decisão.

Na obra A lógica da ação coletiva, origi-nalmente publicada em 1965, Mancur Ol-son (1999) teoriza sobre o processo de for-mação dos grupos e demonstra a falta derepresentatividade do sistema de grupos.Segundo o autor, a racionalidade individu-al não se traduz, necessariamente, em raci-onalidade coletiva. Dessa forma, a atuaçãodos grupos se dá em defesa de interessespróprios, e não em benefício da sociedadecomo um todo.

Segundo Piosevan (2002), os grupos depressão atuam nas várias fases de decisãode uma política pública, e os regimes demo-cráticos proporcionam alguma transparên-cia ao definirem as arenas públicas e as re-gras formais que viabilizam essas pressões.Entretanto, a autora afirma que os gruposde pressão que participam da arena decisó-ria representam apenas uma pequena partedas demandas da sociedade, o que acentuaa possibilidade de conflito entre interessesrepresentados e não representados.

Lobato (1997) considera que a participa-ção de atores sociais contribui para o avan-ço do processo político, tendo constatadoque:

“O processo político é tanto mais am-plo, quanto mais atores sociais delefizerem parte, sejam institucionaliza-dos ou não, estejam ou não represen-tados em grupos formais de interesse.(...) Das relações estabelecidas entreesses atores resultará a política públi-ca em si, sendo esta apenas uma dasetapas do processo”.

Ao analisar a influência dos grupos depressão sobre o Poder Legislativo, Caval-canti ([198-]) conclui que a atuação dessesgrupos permeia as diversas fases do pro-cesso legislativo, desde a apresentação dosprojetos de lei até o próprio trabalho das Co-missões. Durante a fase de votação, a pres-são pode se dar tanto coletivamente, sobre oPlenário, como individualmente, por inter-médio de pressões pessoais.

As bancadas suprapartidárias tambémsão um canal de acesso dos grupos de pres-são. Elas reúnem parlamentares com inte-resses comuns, muitas vezes não coinciden-tes com os interesses dos partidos. Por esta-rem intimamente ligadas a interesses espe-cíficos de determinados grupos, as banca-das são, em muitos casos, a porta de entra-da desses grupos no parlamento. No casoda tramitação do Projeto de Lei de Biosse-gurança, por exemplo, a bancada ruralistateve papel preponderante na defesa da libe-ração do transgênicos, enquanto a bancadaevangélica atuou pela proibição das pesqui-sas com células-tronco embrionárias e daclonagem terapêutica.

Como os parlamentares possuem comoobjetivo primordial a reeleição, uma estraté-gia freqüente dos grupos de pressão é a ten-tativa de conquistar o apoio da opinião pú-blica. Se o grupo consegue demonstrar aocongressista que seus pontos de interessesão bem vistos pela opinião pública, o aces-so à formulação da política torna-se maisfácil. Para conquistar o apoio da opiniãopública, os grupos de pressão utilizam-sede instrumentos como a propaganda. Se-gundo Ramos (2005), conquistar o apoio daopinião pública pode ser mais fácil em al-

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gumas questões do que em outras. Em ques-tões tecnicamente complexas, como no casoda Reforma da Previdência, é mais difícildespertar o interesse público. Porém, emquestões em que é possível embutir um cer-to grau de emoção, como no caso das células-tronco, é mais fácil cativar a opinião pú-blica.

Por meio dos poderes constitucionaispara interferir diretamente no processo le-gislativo, propor moções e emendas, fa-zer recomendações a ministros, entre ou-tras, os parlamentares são capazes de pro-mover a defesa dos interesses ou causasdos grupos de pressão (CAVALCANTI,[198-]).

Aragão (1994) desenvolve um raciocíniopara demonstrar que fatores influenciam noacolhimento, pelos parlamentares, das rei-vindicações dos grupos de pressão. Nessesentido, o autor considera o parlamentarcomo indivíduo que tem como principalobjetivo a manutenção ou o fortalecimentode seu poder político, ou seja, a garantia dareeleição, ou sua indicação para algum car-go público no Executivo ou no Judiciário.Nesse sentido, ao apoiar as posições de umdeterminado grupo de pressão, a primeiraavaliação que o parlamentar faz é se há ris-co ou benefício para o seu poder político. Oautor afirma, ainda, que a credibilidade e alegitimidade da entidade demandante tam-bém são analisadas pelo parlamentar.

4. As teorias de políticaspúblicas e os grupos de pressão

Há diversas teorias em Ciência Políticaque tentam explicar o processo de formula-ção de políticas Públicas. O presente capí-tulo fará uma revisão das principais teori-as, quais sejam: o pluralismo, o elitismo, oneocorporativismo e o neo-institucionalis-mo. Posteriormente, a revisão dessas teori-as servirá de base para a avaliação da atua-ção dos grupos de pressão no processo deformulação da Política Nacional de Biosse-gurança.

4.1. O pluralismo

A teoria pluralista propugna que os di-versos grupos de pressão têm acesso às agên-cias governamentais e ao Congresso Nacio-nal, podendo influenciar diretamente noprocesso decisório. Segundo Ramos (2005),para os pluralistas, a atuação dos gruposde pressão na formulação de políticas pú-blicas se aproxima do liberalismo econômi-co clássico, dos mercados em concorrênciaperfeita. No caso do pluralismo, o acesso denovos grupos dispostos a exercer seus di-reitos políticos é livre, assim como é livre aentrada de novos concorrentes nos merca-dos perfeitamente competitivos.

Robert Dahl (1956 apud MIGUEL, 2003),representante pioneiro do pluralismo, lan-çou, em 1956, a obra Um prefácio à teoria de-mocrática, na qual apresenta, segundo Mi-guel (2003), a primeira síntese da teoria plu-ralista. Para Dahl (1956 apud MIGUEL,2003), se não é possível contar com o gover-no do povo, ou mesmo com o governo damaioria, pode-se ao menos ter um sistemapolítico que distribua a capacidade de in-fluência entre muitas minorias.

Segundo Labra (2000), os pluralistasclássicos enfatizam elementos como a dis-persão do poder, o livre acesso de grupos depressão concorrentes às arenas de decisão econcedem escassa importância tanto ao go-verno e à burocracia, quanto à ideologia.Nesse sentido, atribui-se ao Estado um pa-pel apenas residual, pois os próprios gru-pos geram uma divisão mais ou menos equi-librada do poder.

Lobato (1997) considera que o pluralis-mo está calcado principalmente na experi-ência americana e entende que a formula-ção de políticas públicas é dada segundo ojogo de forças empreendido por diferentesgrupos de interesses que, atuando com ogoverno, procuram maximizar benefícios ereduzir custos, e que a conquista desses in-teresses depende da capacidade dos gruposde serem mais fortes politicamente que ou-tros grupos com interesses contrários, ou

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seja, a aptidão dos grupos para influenciarna formulação de políticas públicas depen-de de sua competência para competir.

4.2. O elitismo

Miguel (2003) relata que C. Wright Mills,ao publicar A Elite do Poder, em 1956, umadas obras precursoras do elitismo, analisoua história política dos Estados Unidos, che-gando à conclusão de que, por trás da fa-chada democrática e dos reclamos rituaisde obediência à vontade popular, cristali-zara-se o domínio de uma minoria, que mo-nopolizava todas as decisões-chave. Millsconstatou que os líderes capitalistas, as li-deranças políticas e a cúpula militar for-mavam uma única elite, dividida em trêssetores, ligados por mecanismos de integra-ção que geravam uma visão de mundo uni-ficada e interesses compartilhados.

Segundo Miguel (2003), Wright Millsdemonstra que os direitos liberais e os me-canismos eleitorais de participação apenasesconderiam o fato de que a esmagadoramaioria da população estava excluída dasdecisões mais importantes.

O elitismo, ao contrário do pluralismo,propõe a existência de uma “elite”, que con-centra o poder nas esferas política, militar eeconômica. Segundo Ramos (2005), para osautores elitistas, a elite concentra o poderpolítico, exerce-o de maneira autocrática ecria mecanismos que visam a sua perpetua-ção no poder, impedindo que qualquer ou-tro segmento social se aproxime do centrodecisório.

Mills (1981) afirma que a elite “formauma entidade social mais ou menos com-pacta, seus componentes tornam-se mem-bros conscientes de uma classe social (...).Aceitam-se, compreendem-se, casam-se en-tre si, e procuram trabalhar e pensar, se nãojuntos, pelo menos de forma semelhante(...)”. Ainda sobre o comportamento das eli-tes, Mills (1981) avalia que “as pessoas dasaltas rodas também podem ser considera-das como membros de um estrato social ele-vado, como um conjunto de grupos cujos

membros se conhecem, se vêem socialmentenos negócios, e por isso, ao tomarem decisões,levam-se mutuamente em consideração”.

4.3. O neocorporativismo

O neocorporativismo surgiu da crítica aomodelo pluralista, por considerar que estecarece de capacidade para explicar o pro-cesso de intermediação entre sociedade eEstado, pois, além da atuação de grupos deinteresse, há características intrínsecas aopróprio Estado, que também interferem nodirecionamento e na atuação dos própriosgrupos de pressão. No neocorporativismo,o Estado é um ator importante, quer sua atu-ação possa ser caracterizada como demo-crática ou autoritária (RAMOS, 2005).

Dessa forma, Lobato (1997) consideraque a contribuição do neocorporativismoestá no reconhecimento de que o processode formulação de políticas públicas não sereduz à pressão de grupos perante o gover-no, como no pluralismo. Ainda sobre o neo-corporativismo, o autor afirma que essemodelo teórico:

“(...) propugna um novo ‘contrato’ en-tre Estado e sociedade como forma deresolução dos conflitos. Através dainstitucionalização de grupos, sindi-catos, corporações, partidos, estes tor-nam-se co-responsáveis pela elabora-ção da política, possibilitando agre-gar demandas difusas, e permitindouma visão intersetorial das mesmas”.

Segundo Ramos (2005), nos arranjos ne-ocorporativistas, representantes de empre-sários, trabalhadores e do Estado negociamem fóruns institucionalizados e, portanto,reconhecem-se como sujeitos portadores dedireitos. Para Teixeira (2002), os teóricosneocorporativistas propugnam que as soci-edades modernas criaram vínculos entregrupos de interesses e setores do Estado, deforma que sua organização e competição sefazem dentro do próprio Estado. Essas re-des políticas indicariam, segundo o autor,relações de dependência entre o governo eos grupos de interesse.

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O neocorporativismo pode, segundo Or-tega (1998), ser definido como a presençahegemônica de corporações que monopoli-zam ou oligopolizam a representação dosdiferentes grupos de interesse. O autor con-sidera que, atualmente, há uma tendênciade a sociedade organizar-se em corporações,cujas cúpulas passam a ser as responsáveispela intermediação social. Nesse contexto,o Estado mantém sua autonomia relativa,mas também se submete às pautas das cor-porações.

A respeito da representação de interes-ses, Ribeiro (1993) considera que ela se dánão apenas pela vontade dos indivíduosrepresentados, mas atende a um complexomecanismo que vai desde a definição dequais demandas são relevantes e plausíveis,passando pela capacidade de tais deman-das homogeneizarem os indivíduos em tor-no de seus representantes, até chegar aopapel que as instituições públicas desem-penham no sentido de torná-las aceitáveisou não, ou mesmo de reconhecerem seusinterlocutores. Segundo o autor, o status pú-blico atribuído pelo Estado aos grupos deinteresses é um item crucial na intermedia-ção de interesses na sociedade.

4.4. O neo-institucionalismo

A teoria neo-institucionalista, ou neo-institucionalismo, explica o papel das ins-tituições – regras ou práticas que regulamas tomadas de decisão – no processo de for-mulação de políticas públicas.

Segundo Ramos (2005), a vertente deno-minada neo-institucionalismo históricoconsidera que a competição entre os gruposé influenciada pela estrutura institucional,sendo que o Estado tem papel fundamental,pois atua como agente definidor das pró-prias instituições.

Para Hall e Taylor (2003), o institucio-nalismo histórico desenvolveu-se como re-ação contra a análise da vida política combase na teoria de grupos, comum nas déca-das de 60 e 70. O autor mostra que os teóri-cos do institucionalismo histórico não pon-

tuam as instituições como único fator queinfluencia a vida política, mas procuramsituar as instituições numa cadeia causalque deixe espaço para outros fatores.

Outra vertente, denominada neo-institu-cionalismo da escolha racional, reconheceque há assimetria de informação entre osagentes. Como a informação perfeita não éum bem disponível, a racionalidade é tam-bém limitada (RAMOS, 2005). A autoramostra que os teóricos neo-institucionalis-tas consideram as instituições como instru-mentos estabilizadores do processo políti-co no ambiente do Poder Legislativo. Nessesentido, a formulação de políticas públicasocorre em um contexto institucional em quehá interação entre diversos atores com inte-resses distintos.

Hall e Taylor (2003) relatam que o insti-tucionalismo da escolha racional surgiu nocontexto do estudo de comportamentos nointerior do Congresso dos Estados Unidos,onde a notável estabilidade das decisões nãopoderia ser explicada pelos postulados clás-sicos da escolha racional. Em geral, os estu-dos dos institucionalistas racionais a res-peito do funcionamento do Congresso Ame-ricano buscam explicar como os regulamen-tos do Congresso afetam o comportamentodos legisladores e por que foram adotados,com especial atenção ao sistema de comis-sões do Congresso e às relações entre o Con-gresso e as autoridades administrativas in-dependentes.

Com relação aos limites impostos pelasinstituições à atuação dos grupos de pres-são, Ramos (2005) considera que, por maiorque seja a organização e a coesão do grupo,e por mais influentes que sejam as suas li-deranças, o seu grau de acesso é condicio-nado às aberturas proporcionadas peloarcabouço institucional do CongressoNacional.

Truman (1971 apud RAMOS, 2005) re-conhece que a estrutura institucional doprocesso decisório é que molda os pontosde acesso abertos aos grupos, e que as polí-ticas são influenciadas não apenas pelas

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instituições externas (sistema eleitoral e par-tidário), mas também pelas instituições in-ternas do Congresso Nacional. É o caso dasnormas que regulam o processo legislativo,emanadas pela Constituição Federal, emprimeira instância, e pelos Regimentos In-ternos da Câmara dos Deputados e do Se-nado Federal, em nível mais detalhado. Parao autor, fatores como as regras de seleçãodas lideranças e dos detentores do poder deestabelecer a pauta do dia, o cronograma e aduração do debate, entre outras especifici-dades do processo legislativo, são funda-mentais em termos de estruturar o acesso aoprocesso decisório. Dessa forma, o autorconsidera que os grupos que conhecem bemo regimento interno e possuem relações pes-soais com os ocupantes de postos-chave noCongresso são certamente favorecidos.

Segundo Ramos (2005), uma vantagemimportante é conquistada por aqueles gru-pos que conseguem prover os parlamenta-res de informações técnicas associadas àassessoria política. São instituições infor-mais que também têm um peso determinan-te no processo decisório. Nesse sentido, so-bretudo quando a agenda parlamentar tra-ta de temas técnicos e complexos, abrem-seoportunidades para a atuação dos gruposde pressão.

Truman (1971 apud RAMOS, 2005) res-salta que legisladores têm seus próprios“grupos de interesse”, os quais podem co-incidir ou não com as posições partidárias.Os parlamentares com determinados inte-resses passam a formar as chamadas ban-cadas suprapartidárias. No caso do Projetode Lei de Biossegurança, foi significativa aparticipação da bancada ruralista no pro-cesso decisório.

Segundo Frade (1996 apud RAMOS,2005), as bancadas suprapartidárias exer-cem as funções de: “defender interesses le-vados ao Congresso por grupos externos,agrupando parlamentares dos diversospartidos com envolvimento nos temas; au-xiliar os grupos de pressão no processo dearticulação com os parlamentares dos di-

versos partidos; atender demandas ordiná-rias dos grupos de pressão oriundas dasbases dos parlamentares”.

5. Aspectos legaisanteriores à aprovação danova Lei de Biossegurança

5.1. A CTNBio e suas competências

O Projeto de Lei que deu origem à Lei no

8.974, de 1995, em seu art. 5o, autorizava oPoder Executivo a criar a Comissão TécnicaNacional de Biossegurança (CTNBio), esta-belecia sua composição e os critérios para aescolha de seus membros, enquanto o art.6o, por seu turno, definia suas competênci-as. Porém, os arts. 5o e 6o foram vetados peloPresidente da República, sob alegação de in-constitucionalidade por vício de iniciativa1.

Com os vetos aos artigos que criavam eestabeleciam as competências da CTNBio,a Lei no 8.974, de maneira excêntrica, refe-ria-se por diversas vezes à CTNBio, um ór-gão inexistente do ponto de vista legal, in-clusive imputando-lhe atribuições relativasao processo de autorização da liberação deuso de organismos geneticamente modifi-cados.

No final de 1995, foi editado e Decreto no

1.752, de 20 de dezembro de 1995, que dis-põe sobre a vinculação, as competências e acomposição da CTNBio. Note-se que, dian-te do vácuo legal proporcionado pelos ve-tos aos artigos 5o e 6o da Lei no 8.974, de1995, o governo se viu obrigado a estabele-cer, mediante decreto, as competências daCTNBio. Permanecia, no entanto, a falha dea CTNBio não ter sido criada por lei.

O Decreto no 1.752, de 1995, estabelecia,entre outras, as seguintes competências paraa CTNBio:

a) propor a Política Nacional de Biosse-gurança;

b) emitir parecer técnico prévio conclu-sivo sobre qualquer liberação de OGM nomeio ambiente, encaminhando-o ao órgãocompetente;

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c) emitir parecer técnico prévio conclusi-vo sobre registro, uso, transporte, armaze-namento, comercialização, consumo, libera-ção e descarte de produto contendo OGMou derivados, encaminhando-o ao órgão defiscalização competente;

d) exigir como documentação adicional,se entender necessário, Estudo de ImpactoAmbiental (EIA) e o respectivo Relatório deImpacto no Meio Ambiente (RIMA) de pro-jetos que envolvam a liberação de OGM nomeio ambiente, além das exigências especí-ficas para o nível de risco aplicável;

De acordo com a Constituição Federal, acriação de órgãos públicos, bem como a de-finição de suas competências, deve ser feitapor lei. Dessa forma, a validade da cria-ção da CTNBio por meio de decreto eraquestionável juridicamente, bem como osatos praticados pelo órgão supostamenteinexistente.

Ademais, a determinação do decreto re-gulamentador de que compete à CTNBioexigir, se entender necessário, o Estudo deImpacto Ambiental e o Relatório de ImpactoAmbiental (EIA/RIMA) para os projetos queenvolvam a liberação de OGM no meio am-biente colide com a Lei no 6.938, de 31 deagosto de 1981, que dispõe sobre a PolíticaNacional de Meio Ambiente.

O art. 10 da Lei no 6.938, de 1981, deter-mina que as atividades efetiva ou potenci-almente poluidoras, ou capazes de causardegradação do meio ambiente, dependerãode prévio licenciamento ambiental do Insti-tuto Brasileiro do Meio Ambiente e Recur-sos Naturais Renováveis (IBAMA). A Cons-tituição Federal, por sua vez, determina, noart. 225, que incumbe ao Poder Público “exi-gir, na forma da Lei, para instalação de obraou atividade potencialmente causadora designificativa degradação do meio ambiente,estudo prévio de impacto ambiental”.

Nesse sentido, nota-se que a exigênciade EIA/RIMA para atividades potencial-mente causadoras de significativa degrada-ção do meio ambiente é determinação cons-titucional. A definição do órgão competente

para indicar se a atividade é potencialmen-te causadora de significativa degradação domeio ambiente é dada por lei, no caso a Leino 6.938, de 1981, que dispõe sobre a Políti-ca Nacional de Meio Ambiente. Dessa for-ma, não poderia um decreto revogar a Lei.Por isso, não obstante o Decreto no 1.752, de1995, estabelecer que a CTNBio tem compe-tência para exigir, ou não, o EIA/RIMA, issonão prejudica a atribuição conferida aoIBAMA pela Lei no 6.938, de 1981.

Para sanar a questão da legitimidade daCTNBio, o Presidente da República editoua Medida Provisória no 2.137, de 28 de de-zembro de 20002. A Medida Provisória alte-ra a Lei no 8.974, de 1995, para criar, efetiva-mente, a CTNBio, vinculada ao Ministérioda Ciência e Tecnologia, tendo como finali-dade o “apoio técnico consultivo e de asses-soramento ao Governo Federal na formula-ção, atualização e implementação da Políti-ca Nacional de Biossegurança relativa aOGM, bem como no estabelecimento de nor-mas técnicas de segurança e pareceres téc-nicos conclusivos referentes à proteção dasaúde humana, dos organismos vivos e domeio ambiente, para atividades que envol-vam a construção, experimentação, cultivo,manipulação, transporte, comercialização,consumo, armazenamento, liberação e des-carte de OGM e derivados”3.

Entre as competências da CTNBio esta-tuídas pela Medida Provisória no 2.137, de2000, estão a de emitir parecer técnico pré-vio conclusivo, caso a caso, sobre ativida-des, consumo ou qualquer liberação no meioambiente de OGM e a de identificar as ativi-dades decorrentes do uso de OGM e deriva-dos potencialmente causadoras de signifi-cativa degradação do meio ambiente e dasaúde humana.

5.2. Os órgãos de registro efiscalização e suas competências

O art. 7o da Lei no 8.974, de 1995, comredação dada pela Medida Provisória no

2.191-9, de 23 de agosto de 2001, estabeleceas competências, relativas à regulamenta-

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ção do uso de OGM, dos órgãos de Fiscali-zação dos Ministérios da Saúde (AgênciaNacional de Vigilância Sanitária – ANVISA),da Agricultura (Secretaria de Defesa Agrope-cuária) e do Meio Ambiente (IBAMA).

O caput do art. 7o determina que, no exer-cício de suas competências, os órgãos de fis-calização devem observar o parecer técnicoprévio conclusivo da CTNBio. O parágrafoprimeiro do mesmo artigo dispõe que pare-cer técnico prévio conclusivo da CTNBiovincula os demais órgãos da administraçãoquanto aos aspectos de biossegurança doOGM por ela analisados, preservadas ascompetências dos órgãos de fiscalização deestabelecer exigências e procedimentos adi-cionais específicos às suas respectivas áre-as de competência legal.

Entre as competências dos órgãos de fis-calização, destacam-se:

a) fiscalização e monitoramento das ati-vidades e projetos relacionados a OGM;

b) emissão do registro de produtos con-tendo OGM ou derivados de OGM a seremcomercializados para uso humano, animalou em plantas, ou para a liberação no meioambiente;

c) expedição de autorização para o fun-cionamento de laboratório, instituição ouempresa que desenvolverá atividades rela-cionadas a OGM;

d) emissão de autorização para a entra-da no País de qualquer produto contendoOGM ou derivado de OGM;

e) expedição de autorização temporáriade experimento de campo com OGM.

Em síntese, a legislação anterior à apro-vação da nova Lei de Biossegurança, porum lado, estabelecia que a CTNBio teriapoder de emitir parecer vinculante sobre osriscos ambientais e à saúde do OGM, po-rém, por outro lado, estabelecia que a pala-vra final, ou seja, a emissão dos registros edas autorizações, ficava a cargo dos órgãosde fiscalização dos Ministérios envolvidos,tanto para as atividades de plantio e comer-cialização, quanto para a importação e aspesquisas com organismos transgênicos.

5.3. A questão das células-tronco

A legislação brasileira sobre biossegu-rança trata, em um mesmo diploma legal,de dois temas distintos: a relação das ativi-dades que envolvam o uso de organismosgeneticamente modificados e das atividadesque utilizam células-tronco embrionárias.

Apesar de não ser o tema foco deste tra-balho, por estar disposta na mesma Lei, aregulação das atividades de engenharia ge-nética afeta diretamente as discussões so-bre transgênicos. Por esse motivo, a questãodas células-tronco deve ser tratada em pa-ralelo ao tema dos transgênicos.

As células-tronco são células indiferen-ciadas, que possuem a capacidade de dife-renciar-se em outros tipos de células, poden-do formar vários tipos de tecidos, como teci-do nervoso, epitelial e conjuntivo. Essa ca-pacidade de diferenciação é a razão do po-tencial do uso das células-tronco no trata-mento de doenças, principalmente as dege-nerativas. As células-tronco são de dois ti-pos: células-tronco adultas e células-troncoembrionárias.

As células tronco-adultas são extraídasa partir de células adultas de tecidos poucodiferenciados, como é o caso das células docordão umbilical, da medula óssea e de al-guns tipos de células sangüíneas. Esse tipode pesquisa não é proibido por lei e vemsendo realizado há anos, inclusive no Bra-sil (FARIA; ROMERO, 2003).

Já as células tronco-embrionárias sãoobtidas a partir de embriões de até cincodias. Segundo Faria & Romero (2003), ascélulas-tronco embrionárias são capazes deoriginar todos os tipos de células que com-põem o organismo de um indivíduo, possu-indo, segundo especialistas, imenso poten-cial terapêutico. As células-tronco embrio-nárias podem ser obtidas de duas formas.Uma delas é a sua extração a partir de em-briões excedentes dos processos de fertili-zação in vitro, armazenados em clínicas defertilização. Outra forma de obtenção de cé-lulas-tronco embrionárias seria a produção

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de embriões específicos, por meio da técni-ca da clonagem.

Com relação às pesquisas e tratamentoscom células tronco embrionárias, a Lei no

8.974, de 1995, proíbe a manipulação gené-tica de células germinais humanas, ou seja,veda qualquer interferência no material ge-nético dos gametas (óvulo e espermatozói-de) humanos. O objetivo dessa vedação éimpedir todo o tipo de clonagem humanarealizada a partir de gametas. Dessa for-ma, é proibida a obtenção de células-tronco embrionárias a partir da clonagemhumana.

A mesma Lei proíbe, também, o armaze-namento e a manipulação de embriões hu-manos destinados a servir como materialbiológico disponível. Isso significa que évedada a utilização de embriões humanospara produção de células-tronco embrioná-rias, mesmo que seja para fins terapêuticos.Ressalte-se que a Lei não proíbe a pesquisaou os tratamentos com o uso de células-tron-co adultas, como as do cordão umbilical ouda medula óssea.

5.4. O imbróglio jurídico

Em setembro de 1998, a CTNBio emitiuparecer favorável à liberação do plantio eda comercialização da soja transgênicaRoundup Ready. Logo em seguida, o Institu-to Brasileiro de Defesa do Consumidor(IDEC) e a ONG ambientalista Greenpeaceingressaram na Justiça Federal com açãocautelar, com o objetivo de impedir a libera-ção comercial da soja transgênica.

A cautelar era acessória de ação civilpública, que questionava a competência daCTNBio para emitir pareceres favoráveis àliberação de organismos geneticamentemodificados, sem a realização de estudo deimpacto ambiental e respectivo relatório deimpacto ambiental (EIA/RIMA). O argu-mento utilizado era que a Lei no 6.938, de1981, estabelece que compete ao IBAMA adefinição da necessidade de EIA/RIMApara fins de licenciamento ambiental. AsAções foram distribuídas à 6a Vara da Justi-

ça Federal, em Brasília, sob responsabilida-de do Juiz Antônio de Souza Prudente.

Ainda em setembro de 1998, a JustiçaFederal concedeu liminar à medida caute-lar impetrada por Greenpeace e Idec, proi-bindo a União de autorizar o plantio co-mercial de soja transgênica enquanto não re-gulamentar a comercialização de produtosgeneticamente modificados e realizar estudoprévio de impacto ambiental (EIA/RIMA).

Em agosto de 1999, o juiz da 6a Vara Fe-deral de Brasília, Antônio Souza Prudente,confirmou, por sentença, medida cautelarque suspende o plantio da soja transgênicano País até que seja realizado o EIA/RIMA.Em agosto do ano seguinte, a 2a Turma doTRF (Tribunal Regional Federal) da 1a Re-gião apreciou e rejeitou, por unanimidade,os recursos da Monsanto e da União.

Em junho de 2000, o mesmo juiz profe-riu sentença sobre a ação civil pública, exi-gindo o EIA/RIMA não apenas para a sojatransgênica, mas para qualquer organismogeneticamente modificado a ser introduzi-do no Brasil. A União e a Monsanto recorre-ram da sentença ao TRF. O julgamento pela5a Turma do TRF da 1a Região foi iniciadoem fevereiro de 2002. A decisão final foi pro-ferida em junho de 2004, época em que oProjeto de Lei de Biossegurança tramitavano Senado Federal.

A sentença do TRF, favorável aos ape-lantes, reconhece a competência da CTN-Bio para decidir sobre a necessidade ou nãode EIA/RIMA. O Tribunal interpretou quenão há conflito entre a Lei 8.974, de 1995,que concede à CTNBio competência paraidentificar a necessidade de EIA/RIMA paraa liberação de OGM, e a Lei 6.938, de 1981,que trata da Política Nacional de Meio Am-biente. Segundo a sentença, como se tratamde duas leis ordinárias, não há hierarquiaentre elas, podendo a Lei no 8.974, de 1995,dispor especificamente sobre a exigência deEIA/RIMA para a liberação de OGM. Res-salte-se, no entanto, que o parecer específi-co da CTNBio sobre a soja Roundup Readypermanece suspenso.

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6. A nova Lei de Biossegurança6.1. O processo de autorização do uso de OGM

A nova Lei de Biossegurança criou pro-cessos distintos para a liberação da pesqui-sa com OGM e para a liberação do uso co-mercial desses organismos geneticamentemodificados. No caso dos processos quesolicitam autorização para a realização depesquisas com OGM, a decisão final cabe àCTNBio, que deve encaminhar o processode liberação aos “órgãos e entidades de re-gistro e fiscalização”4, para o exercício desuas atribuições de fiscalização.

No caso de processos que visam a libe-ração do uso comercial de OGM, compete àCTNBio a emissão de decisão técnica sobresua biossegurança, inclusive para identifi-car se o OGM em questão é potencialmentecausador de significativa degradação domeio ambiente, caso em que seria necessá-ria a realização de EIA/RIMA e a emissão,pelo IBAMA, de licenciamento ambiental.

Entre as competências da CTNBio, des-tacam-se:

a) estabelecer normas para as pesquisascom OGM e derivados de OGM;

b) estabelecer, no âmbito de suas compe-tências, critérios de avaliação e monitora-mento de risco de OGM e seus derivados;

c) proceder à análise da avaliação de ris-co, caso a caso, relativamente a atividades eprojetos que envolvam OGM e seus deriva-dos;

d) estabelecer requisitos relativos à bios-segurança para autorização de funciona-mento de laboratório, instituição ou empre-sa que desenvolverá atividades relaciona-das a OGM e seus derivados;

e) autorizar, cadastrar e acompanhar asatividades de pesquisa com OGM ou deri-vado de OGM;

f) autorizar a importação de OGM e seusderivados para atividade de pesquisa;

g) emitir decisão técnica, caso a caso,sobre a biossegurança de OGM e seus deri-vados no âmbito das atividades de pesqui-sa e de uso comercial de OGM e seus deriva-

dos, inclusive a classificação quanto ao graude risco e nível de biossegurança exigido,bem como medidas de segurança exigidas erestrições ao uso;

h) identificar atividades e produtos de-correntes do uso de OGM e seus derivadospotencialmente causadores de degradaçãodo meio ambiente ou que possam causar ris-cos à saúde humana.

A nova Lei de Biossegurança criou a fi-gura do Conselho Nacional de Biosseguran-ça (CNBS), formado por onze Ministros deEstado, que tem competência para, após adecisão da CTNBio, avocar e decidir, emúltima e definitiva instância, sobre os pro-cessos relativos a atividades que envolvamo uso comercial de OGM e seus derivados.Cabe, também, ao CNBS julgar os eventu-ais recursos dos órgãos de registro e fis-calização contra a decisão da CTNBionos processos de liberação comercial deOGM.

A nova Lei de Biossegurança tenta diri-mir a controvérsia jurídica que anteriormen-te existia quanto à necessidade de EIA/RIMA para a liberação comercial de OGM.A nova Lei atribui à CTNBio a competênciapara identificar os OGM que são “potenci-almente causadores de significativa degra-dação do meio ambiente”. Caso sejam as-sim considerados pela CTNBio, a liberaçãodependerá de licenciamento ambiental emi-tido pelo IBAMA, o qual exigirá, conformedetermina o art. 225, §1o, IV, a realização deEIA/RIMA.

Entre as competências dos órgãos de re-gistro e fiscalização, destacam-se:

a) fiscalizar as atividades de pesquisade OGM e seus derivados;

b) registrar e fiscalizar a liberação comer-cial de OGM e seus derivados;

c) emitir autorização para a importa-ção de OGM e seus derivados para usocomercial;

d) manter atualizado no SIB o cadastrodas instituições e responsáveis técnicos querealizam atividades e projetos relacionadosa OGM e seus derivados;

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e) subsidiar a CTNBio na definição dequesitos de avaliação de biossegurança deOGM e seus derivados.

No caso de parecer favorável da CTN-Bio, ou aprovação pelo CNBS, em caso deavocação ou recurso, a Lei de Biosseguran-ça estabelece atribuições específicas para osórgãos de registro e fiscalização.

Ao Ministério da Agricultura Pecuária eAbastecimento cabe emitir as autorizaçõese registros e fiscalizar produtos e ativida-des que utilizem OGM e seus derivados des-tinados a uso animal, na agricultura, pecu-ária, agroindústria e áreas afins.

À ANVISA cabe emitir as autorizações eregistros e fiscalizar produtos e atividadescom OGM e seus derivados destinados a usohumano, farmacológico, domissanitário eáreas afins.

À Secretaria Especial de Aqüicultura ePesca da Presidência da República compe-te emitir as autorizações e registros de pro-dutos e atividades com OGM e seus deriva-dos destinados ao uso na pesca e aqüicul-tura.

O IBAMA, por sua vez, tem competênciapara emitir as autorizações e registros e fis-calizar produtos e atividades que envolvamOGM e seus derivados a serem liberados nosecossistemas naturais, bem como para emi-tir o licenciamento ambiental, nos casos emque a CTNBio identificar que o OGM é po-tencialmente causador de significativa de-gradação do meio ambiente.

6.2. As células-tronco

Com relação ao caso das células-tronco,a nova Lei de Biossegurança permite, parafins de pesquisa e terapia, a utilização decélulas-tronco embrionárias obtidas de em-briões humanos produzidos por fertilizaçãoin vitro. Segundo a Lei de Biossegurança, osembriões considerados inviáveis e os em-briões congelados três anos ou mais, na datada publicação da Lei, e os já congelados nadata da publicação da Lei, quando comple-tarem três anos, contados a partir da datade congelamento. A Lei estabelece que, em

qualquer caso, para a utilização dos embri-ões, é necessária a autorização dos genito-res. Ademais, a Lei de Biossegurança vedaexplicitamente a comercialização do mate-rial biológico proveniente dos embriões, sen-do sua prática tipificada como crime de con-trabando de órgão e tecidos.

Com relação à clonagem humana, a Leide Biossegurança proíbe tanto a clonagemreprodutiva como aquela realizada com finsterapêuticos para a obtenção de embriões, apartir dos quais poder-se-ia extrair células-tronco embrionárias.

7. Tramitação do Projeto deLei de Biossegurança

7.1. Projeto apresentado pelo Poder Executivo

Antes de ser apresentado à Câmara dosDeputados, na forma de Projeto de Lei, oanteprojeto de Lei de Biossegurança foi dis-cutido no âmbito da Casa Civil da Presidên-cia da República, com a participação dosMinistérios do Meio Ambiente, da Agricul-tura, Pecuária e Abastecimento, do Desen-volvimento Agrário, da Saúde e de Ciênciae Tecnologia.

Durante a fase de discussão do antepro-jeto, eram claras as divergências internas dopróprio governo. Enquanto os Ministériosda Agricultura e de Ciência e Tecnologiadefendiam a concessão de poderes conclu-sivos à CTNBio para a liberação dos OGM,os Ministérios do Meio Ambiente, doDesenvolvimento Agrário e da Saúdedefendiam que a liberação deveria depen-der de prévio licenciamento ambiental, peloIbama, e de análise de riscos à saúde, pelaAgência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa).

Ao final das discussões, o projeto enca-minhado ao Poder Legislativo concedia po-deres restritos à CTNBio, sendo estes seusprincipais pontos:

a) exigência, para a liberação de OGM,de parecer favorável da CTNBio e de licen-ciamento ambiental emitido pelo Ibama;

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b) o parecer da CTNBio, se negativo, vin-cula os demais órgãos e entidades da admi-nistração quanto aos aspectos de biossegu-rança de OGM e derivados;

c) criação do Conselho Nacional de Bi-ossegurança, órgão composto por 12 Minis-tros de Estado e que tem competência paraapreciar, “se entender necessário, em últi-ma e definitiva instância, os aspectos deconveniência e oportunidade, os pedidos deautorização para atividades que envolvama construção, cultivo, produção, manipula-ção, transporte, transferência, comercializa-ção, importação, exportação, armazenamen-to, pesquisa, consumo, liberação e descartede OGM e seus derivados5.

d) rotulagem dos alimentos e ingredien-tes alimentares destinados ao consumo hu-mano ou animal que contenham ou sejamproduzidos a partir de organismos geneti-camente modificados;

e) manutenção da proibição à clonagemhumana e à manipulação de embriões hu-manos com vistas à produção de células-tronco.

Assim que foi apresentado pelo PoderExecutivo, o Projeto de Lei no 2.401, de 2005,recebeu o apoio de entidades resistentes àliberação dos transgênicos, mas tambémmanifestações contrárias de entidades eempresas favoráveis aos OGM.

Um manifesto (Cf. ISA, 2004) assinadopor 67 entidades ambientalistas, enviado aoPresidente da República, expressa o apoioao Projeto de Lei de Biossegurança “enca-minhado pelo Poder Executivo ao Congres-so Nacional em 31/10/2003, e sua preocu-pação quanto ao risco de (...) ser descaracte-rizado em sua tramitação”. Ainda no mes-mo manifesto, as entidades signatárias pe-dem ao “Governo Federal e aos Parlamenta-res Federais todo o empenho necessário à suaaprovação no Congresso sem alterações”.

Por outro lado, mais de cem cientistas eentidades ligadas à área de biotecnologiaassinaram o “Manifesto de brasileiros so-bre o Projeto de Lei de Biossegurança 2401/2003” (Cf. MANIFESTO..., 2003), segundo o

qual o “projeto de lei encaminhado peloExecutivo ao Legislativo não distingue ava-liação técnica da nova tecnologia de ques-tões sociais, políticas e econômicas”. O ma-nifesto apresenta, ainda, uma série de su-gestões de alterações ao projeto de lei de bi-ossegurança com vistas a simplificar o trâ-mite necessário para a liberação de OGM.

7.2. Tramitação na Câmara dos Deputados

Logo após a apresentação do Projeto deLei de Biossegurança à Câmara dos Depu-tados, foi criada a Comissão Especial desti-nada a proferir parecer ao PL no 2.401, de2003. Foi escolhido como relator o Deputa-do Aldo Rebelo, então líder do governo naCâmara dos Deputados.

O Deputado Aldo Rebelo apresentou seuparecer à comissão especial em 20 de janei-ro de 2003. Porém, o parecer não chegou aser votado, pois o relator foi nomeado Mi-nistro da recém-criada Secretaria Especialde Coordenação Política e Relações Institu-cionais, pelo Presidente da República, em23 de janeiro do mesmo ano. Por esse moti-vo, foi designado como novo relator o De-putado Renildo Calheiros.

O parecer do Deputado Aldo Rebelo con-tinha substitutivo bastante favorável aosinteresses da bancada ruralista e das enti-dades favoráveis aos OGM. O substitutivodo Deputado Aldo Rebelo ampliava o po-der da CTNBio. Entre as principais medi-das sugeridas pelo relator, destacam-se:

a) Estabelece competência à CTNBiopara emitir parecer prévio conclusivo, quevincula os demais órgãos da administração;

b) a CTNBio teria, também, competênciapara identificar se a atividade relacionadaà biotecnologia é potencialmente causado-ra de significativa degradação do meio am-biente, caso em que seria necessário o licen-ciamento ambiental, emitido pelo Ibama;

c) o CNBS teria competência para anali-sar, exclusivamente quanto aos aspectos daconveniência e oportunidade socioeconômi-cas e do interesse nacional, os pedidos deliberação para uso comercial de OGM e seus

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derivados, dirimir conflitos entre a CTNBioe os órgãos de registro e fiscalização, alémde ser responsável pela autorização, em úl-tima e definitiva instância, das atividadesque envolvam o uso comercial de OGM eseus derivados;

d) no caso da autorização para reali-zação de atividades de pesquisa com OGMou derivados, a competência é exclusivada CTNBio, em última e definitiva instân-cia;

e) rotulagem obrigatória dos alimentos eingredientes alimentares destinados ao con-sumo humano ou animal que contenhamou sejam produzidos a partir de organis-mos geneticamente modificados;

f) manutenção da proibição à clonagemhumana e fim da vedação à manipulaçãode embriões humanos com vistas à produ-ção de células-tronco.

Após o licenciamento do Deputado AldoRebelo, o novo relator do Projeto de Lei deBiossegurança, Deputado Renildo Calhei-ros, apresentou novo parecer; desta vez osubstitutivo era favorável à posição das en-tidades ambientalistas e contrário aos inte-resses da bancada ruralista. A súbita mu-dança de rumo na tramitação ocorreu gra-ças à ação mais enérgica da Ministra doMeio Ambiente, Marina Silva, que, com orespaldo do Presidente da República, con-seguiu mudar o teor do relatório.

A pressão exercida pelos grupos ambi-entalistas e pelo Ministério do Meio Ambi-ente nesse momento foi eficiente, inclusive,para conseguir aprovar requerimento deurgência para a matéria, o que permitiu oenvio do parecer do Deputado Renildo Ca-lheiros diretamente ao Plenário, sem quefosse votado pela Comissão Especial. Osgrupos ambientalistas sabiam que, se sub-metido à Comissão Especial, provavelmen-te o parecer seria derrotado pela bancadaruralista, que detinha maioria naquela Co-missão.

Os principais pontos do substitutivo doDeputado Renildo Calheiros, que constituiuo texto aprovado pela Câmara dos Deputa-

dos e foi encaminhado ao Senado Federal,são os seguintes:

a) no caso da autorização para realiza-ção de atividades de pesquisa com OGM ouderivados, a competência é exclusiva daCTNBio, em última e definitiva instância;

b) o CNBS seria a última e definitiva ins-tância competente para autorizar o uso co-mercial de OGM e derivados, após a apro-vação pela CTNBio e pelos órgãos de regis-tro e fiscalização;

c) o Ibama seria o órgão responsável poravaliar a necessidade de licenciamento am-biental e de EIA/RIMA;

d) proibição do uso de embriões para aprodução de células-tronco e autorizaçãopara a realização de clonagem com fins te-rapêuticos;

e) rotulagem dos alimentos e ingredien-tes alimentares destinados ao consumo hu-mano ou animal que contenham ou sejamproduzidos a partir de organismos geneti-camente modificados.

Durante a tramitação do Projeto de Leide Biossegurança na Câmara dos Deputa-dos, foram apresentadas 304 emendas, sen-do 278 na Comissão Especial e 26 no Plená-rio. A sugestão de emendas foi uma das prin-cipais formas de participação dos gruposde pressão na tramitação dos projetos. Aspropostas de emendas eram enviadas pelosgrupos de pressão aos parlamentares liga-dos a seus interesses. Esses parlamentaresassumiam a autoria das emendas e as apre-sentavam formalmente para tramitação.

A bancada ruralista foi o canal para re-cebimento de emendas dos grupos de inte-resse favoráveis à liberação dos OGM. Osprincipais grupos que encaminharam emen-das aos parlamentares da bancada ruralis-ta foram: Confederação Nacional da Agri-cultura (CNA), Organização das Coopera-tivas Brasileiras (OCB), Associação Nacio-nal de Biossegurança (ANBIO) e a empresaMonsanto.

Por sua vez, as propostas de emendaselaboradas pelos grupos de pressão contrá-rios à liberação dos transgênicos – entre os

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quais se destacam o Greenpeace, o Institutode Defesa do Consumidor (IDEC) e a orga-nização não-governamental “Por um BrasilLivre de Transgênicos” – eram encaminha-das a parlamentares da bancada ambienta-lista e a deputados do Partido dos Traba-lhadores ligados à Ministra do Meio Ambi-ente Marina Silva.

Segundo Dolabella, Araújo e Faria(2005), o texto aprovado pela Câmara dosDeputados era “dúbio e tecnicamente im-preciso”. As imperfeições do texto podemser creditadas às “negociações e modifica-ções de última hora, conduzidas pelo rela-tor de forma a atender aos diversos setoresenvolvidos”. Os autores relatam, ainda, al-guns detalhes dos bastidores da votação doprojeto na Câmara dos Deputados:

“Horas antes da votação em Plenário,em reunião sob o comando do Presi-dente João Paulo Cunha, com a parti-cipação das várias lideranças parti-dárias e de grupos parlamentares in-teressados, de representantes do Mi-nistério do Meio Ambiente e do Mi-nistro Aldo Rebelo, fechou-se o acor-do político para a aprovação do Subs-titutivo Renildo Calheiros, contraria-mente ao desejado pelo Ministro daAgricultura Roberto Rodrigues, tam-bém presente à Reunião”.

Após a aprovação da redação final doProjeto de Lei de Biossegurança pela Câma-ra dos Deputados, o texto foi encaminhadoao Senado Federal, onde recebeu a denomi-nação de Projeto de Lei da Câmara (PLC) no

9, de 2004.

7.3. Tramitação no Senado Federal

No Senado Federal, o Projeto de Lei deBiossegurança foi inicialmente distribuídoàs Comissões de Constituição, Justiça e Ci-dadania (CCJ), de Assuntos Econômicos(CAE) e de Assuntos Sociais (CAS). Em se-guida, foi apresentado, e aprovado, requeri-mento assinado pelo Senador Osmar Dias,então presidente da Comissão de Educação,para que o projeto fosse, também, apreciado

por aquela Comissão. O próprio SenadorOsmar Dias viria a ser relator da matéria naComissão de Educação.

Por força de requerimentos aprovados,CCJ, CAE e CAS passaram a analisar con-juntamente o Projeto de Lei, tendo sido de-signado relator o Senador Ney Suassuna.

No início da tramitação do Projeto de Leide Biossegurança no Senado Federal, umgrupo de 13 organizações científicas favo-ráveis aos transgênicos enviou carta a to-dos os senadores, a qual pede mudanças notexto aprovado pela Câmara dos Deputa-dos6. Entre as mudanças sugeridas pelosgrupos signatários da carta, destacam-se:

a) concessão de competência à CTNBiopara julgar, em última e definitiva instân-cia, sobre os pedidos de liberação de OGM;

b) parecer vinculante da CTNBio, tantopara atividades comerciais, quanto para ati-vidades de pesquisa com OGM;

c) que estudos de impacto ambiental se-jam exigidos somente quando a CTNBio con-siderar que a atividade é potencialmente cau-sadora de degradação do meio ambiente;

d) convalidação dos atos praticados pelaCTNBio desde 1995 até a presente data;

e) fim da proibição do uso de embriõespara a produção de células-tronco embrio-nárias.

Durante a tramitação do projeto no Se-nado, foram realizadas seis audiências pú-blicas, organizadas pela Comissão de Edu-cação e pela Comissão de Assuntos Sociais.

Em 25 de maio de 2004, em audiênciapública realizada pela Comissão de Educa-ção, a Presidente da ANBio, Leila MacedoOda, defendeu a mudança no Projeto de Leiaprovado pela Câmara dos Deputados. Se-gundo a cientista, apenas um órgão – nocaso a CTNBio – deve decidir sobre a bios-segurança, e o conselho político (CNBS) devedecidir sobre a pertinência socioeconômicae política da comercialização. Essa posiçãofoi corroborada pelo representante da CNA,Getúlio Pernambuco, para quem a decisãoda CTNBio deve ser terminativa, tanto paraa pesquisa quanto para a comercialização.

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Na mesma audiência pública, o repre-sentante do Ministério da Agricultura dei-xou claro que a Pasta defende que a CTN-Bio seja o “órgão competente, efetivamente,para fazer esgotar a análise dos eventos queenvolvam OGM”, inclusive na definição dasatividades potencialmente causadoras designificativa degradação do meio ambiente,de forma a atender o requisito constitucio-nal, que exige, nesses casos, o licenciamen-to ambiental e a realização de estudo deimpacto ambiental. O Ministério do MeioAmbiente, por sua vez, possui entendimen-to diverso. Segundo seu representante, JoãoPaulo Capobianco, a diferenciação dos pro-cessos de liberação da pesquisa e da comer-cialização dá maior agilidade à pesquisa,pois sobre esta haveria decisão terminativada CTNBio.

No dia seguinte, 26 de maio de 2004,houve nova audiência pública. O vice-pre-sidente da Organização das CooperativasBrasileiras (OCB), Luís Roberto Baggio, apre-sentou as seguintes sugestões de alteraçãodo Projeto de Lei de Biossegurança: conce-der competência à CTNBio para a liberaçãocomercial de OGM; conceder ao CNBS com-petência para decidir, em última e definiti-va instância, sobre a liberação comercial deOGM; exigência de licenciamento ambien-tal apenas quando a CTNBio considerar quea atividade é potencialmente poluidora; con-validação dos pareceres já emitidos pelaCTNBio. A OCB considera, ainda, que o subs-titutivo do Deputado Aldo Rebelo – apresen-tado, mas não votado pela Câmara dos De-putados – contempla a contento os interessesdo cooperativismo e do agronegócio do país.

O substitutivo do Senador Osmar Dias,aprovado pela Comissão de Educação, aco-lhe a maior parte dessas reivindicações, alémde pontos do parecer do Deputado AldoRebelo. Entre os principais pontos do subs-titutivo, destacam-se:

a) o parecer da CTNBio vincularia osdemais órgãos da administração;

b) a CTNBio seria responsável pela iden-tificação das atividades com OGM que se-

jam potencialmente causadoras de signifi-cativa degradação do meio ambiente, o que,na prática, lhe daria a competência paradecidir sobre a necessidade de licenciamentoambiental e de EIA/RIMA;

c) o CNBS analisaria apenas os pro-cessos de liberação comercial por ele avo-cados;

d) a CTNBio seria a única e definitivainstância com competência para autorizaratividades de pesquisa com OGM;

e) criou mecanismo de recurso contra oparecer da CTNBio. O recurso seria impe-trado pelos órgãos de registro e fiscalizaçãoe decidido pela própria CTNBio;

f) rotulagem obrigatória dos alimentos eingredientes alimentares destinados ao con-sumo humano ou animal que contenhamou sejam produzidos a partir de organis-mos geneticamente modificados;

g) estabelecia a não aplicação da Lei deAgrotóxicos (7.802, de 11 de julho de 1989)às plantas geneticamente modificadas comfunção biocida7;

Com relação às células-tronco, o parecerdo Senador Osmar Dias demonstrava o in-teresse do parlamentar em autorizar o usode embriões humanos para a produção decélulas-tronco. Porém, o texto do substituti-vo ficou ambíguo e tecnicamente impreciso,de forma que, no substitutivo, não fica claroo fim das proibições ao uso de embriõeshumanos para a produção de células-tron-co embrionárias e à clonagem humana comfins terapêuticos.

Após a aprovação do parecer do Sena-dor Osmar Dias pela Comissão de Educa-ção, o projeto passou a tramitar conjunta-mente na CCJ, CAE e CAS, sob relatoria doSenador Ney Suassuna. Foram realizadasreuniões com a participação de representan-tes de organizações favoráveis e contráriasaos transgênicos, e também com represen-tantes dos Ministérios do Meio Ambiente,da Saúde e da Agricultura, Pecuária e Abas-tecimento. Como resultado dessas negocia-ções, surgiu novo substitutivo, que faziamodificações pontuais no substitutivo do

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Senador Osmar Dias, entre as quais desta-cam-se:

a) criou mecanismo de recurso ao CNBS,a ser impetrado pelos órgãos de registro efiscalização contra o parecer da CTNBio.Dessa forma, caso, por exemplo, o Ministé-rio do Meio ambiente não concorde com oposicionamento da CTNBio a respeito danecessidade de licenciamento ambiental ede EIA/RIMA, o Ministério poderá recorrerao CNBS;

b) O CNBS passaria a analisar apenasos processos de liberação de OGM por eleavocados, ou aqueles que forem objeto derecursos por parte dos órgãos de registro efiscalização;

c) modificação da redação do artigo quepermite a produção de células-tronco em-brionárias, autorizando o uso de embriõeshumanos que estivessem congelados hámais de três anos, e sempre com o consenti-mento dos genitores;

d) proibição da clonagem humana, tan-to para fins reprodutivos quanto para finsterapêuticos.

O mecanismo de recurso contra a deci-são da CTNBio, a ser decidido pelo CNBS,foi sugerido ao relator Ney Suassuna pelaConsultoria Legislativa, órgão de staff doSenado Federal. Os consultores legislativosdesignados para assessorar o relator na tra-mitação da matéria, ao analisarem o pare-cer do Senador Osmar Dias, constataramque o mecanismo de recurso constante dosubstitutivo da Comissão de Educação erainócuo, pois remetia a decisão sobre o re-curso à CTNBio. Ou seja, o recurso seriaavaliado pelo próprio órgão autor do pare-cer questionado. A proposta, acatada pelorelator, determina que o recurso contra oparecer da CTNBio seja apreciado peloCNBS, que seria a instância política res-ponsável por dirimir os eventuais confli-tos entre os órgãos técnicos envolvidos noprocesso.

Após a tramitação pelas Comissões, oProjeto de Lei de Biossegurança foi encami-nhado ao Plenário do Senado Federal para

a votação final. Antes, porém, da votaçãono Plenário, houve reunião de líderes, coma participação dos dois relatores, para adefinição dos detalhes do texto que seriavotado. Nessa reunião, foi fechado acordoem torno do texto do substitutivo Ney Suas-suna; foram, ainda, acolhidas sugestõespontuais oferecidas pelo Senador OsmarDias e foi, também, definida a aprovação douso de embriões humanos para a produçãode células-tronco embrionárias.

Em seu parecer de plenário, o SenadorNey Suassuna acolheu emenda da Senado-ra Heloisa Helena, que proibia a utilização,a comercialização, o registro, o patenteamen-to e o licenciamento de tecnologias genéti-cas de restrição do uso. Tecnologia genéticade restrição de uso é a introdução de genescom o objetivo de produzir estruturas repro-dutivas estéreis nas plantas8. Esse item nãoconstava do acordo firmado na reuniãode líderes, motivo que ensejou grandesdiscussões durante a aprovação. Porém,logo que a bancada ruralista compreen-deu que a emenda lhe era favorável, o itemfoi aprovado.

Durante a tramitação do Projeto de Leide Biossegurança no Senado, foram apre-sentadas 20 emendas em Plenário. O Sena-do Federal aprovou o Projeto de Lei de Bios-segurança com alterações. Por esse motivo,a proposição teve que retornar à Câmara dosDeputados para apreciação das modifica-ções introduzidas pelo Senado.

7.4. Tramitação final naCâmara dos Deputados

Com o retorno do projeto à Câmara, foireinstalada a Comissão Especial destinadaa proferir parecer ao PL no 2.401, de 2003.De acordo com as regras do processo legis-lativo, a Câmara dos Deputados teria pode-res para manter o substitutivo do SenadoFederal, para retornar ao projeto inicialmen-te aprovado pela Câmara ou para construirum novo texto a partir de trechos de uma ede outra versão. Não poderia, no entanto,elaborar uma nova redação.

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Inicialmente o Deputado Renildo Calhei-ros foi novamente designado para ser o re-lator da matéria. O Deputado solicitou pra-zo para a elaboração do parecer. O prazosolicitado não foi concedido, e o relator foisubstituído pelo Deputado DarcísioPerondi. Dolabella, Araújo e Faria (2005)assim relatam o episódio:

“Designado novamente relator, oDeputado Renildo Calheiros, na reu-nião convocada para apreciar a maté-ria, solicitou mais prazo para elabo-rar parecer que atendesse às diferen-tes demandas políticas que se apre-sentavam ao tema. A Comissão, no en-tanto, majoritariamente formada pormembros favoráveis ao texto aprova-do no Senado Federal, não concedeua dilatação do prazo, destituindo-o dafunção. O Presidente da Comissãonomeou relator substituto o Deputa-do Darcísio Perondi, um dos princi-pais defensores da liberação dos pro-dutos transgênicos no Parlamento.Quinze minutos após, o novo relatorapresentou seu voto favorável ao Subs-titutivo do Senado Federal, o qual foiaprovado por ampla maioria da Co-missão.”

Um fato interessante sobre a segunda tra-mitação do Projeto de Lei de Biossegurançana Câmara dos Deputados precisa ser des-tacado. Todo o debate sobre o projeto foipolarizado para a questão liberação do usode embriões humanos para a produção decélulas-tronco embrionárias. A atenção damídia, passando pela atuação dos gruposde pressão e pelos discursos dos parlamen-tares, estavam todos voltados para a impor-tância das células-tronco no tratamento dedoenças degenerativas. As discussões so-bre os transgênicos ficaram em segundo pla-no, conforme relatam Dolabella, Araújo eFaria (2005):

“A votação se deu em clima emo-cional, com a presença orquestrada dedezenas de cidadãos, inclusive crian-ças, acometidos de doenças degene-

rativas, a pressionar, visualmente oupela palavra, os parlamentares queestavam a apreciar a matéria. Agricul-tores, naquela noite, deram lugar aoutra categoria de demandantes, pre-sentes como massa de manobra capazde pressionar a opinião pública e osparlamentares em torno de legítimasesperanças, que lhes foram estimula-das pelas lideranças dos setores soci-ais interessados na aprovação do pro-jeto de lei. Assim, em realidade, osOGM ‘pegaram carona’ no tema ‘cé-lulas-tronco’.”

No Plenário da Câmara, a matéria foivotada em 2 de março da 2005, tendo sidoaprovado de forma integral o substitutivodo Senado Federal. Em seguida, o projetofoi encaminhado ao Presidente da Repúbli-ca, para sanção.

A nova Lei de Biossegurança foi sancio-nada pelo Presidente da República em 24de março de 2005, sob o no 11.105, de 2005,com sete vetos parciais, os quais, contudo,não alteraram a essência do projeto.

8. Definição sobre o processo deautorização do uso de OGM

O estudo da tramitação do Projeto de Leide Biossegurança demonstra que houve in-tensa participação dos grupos de pressãono processo, desde a elaboração do antepro-jeto até a discussão dos vetos ao projeto apro-vado pelo Congresso Nacional. Grosso modo,os grupos que atuaram nas discussões e natramitação do projeto podem ser classifica-dos em favoráveis e em contrários à libera-ção imediata dos organismos geneticamen-te modificados.

Note-se que essa classificação simplistaadotada nesta pesquisa tem por objetivo fa-cilitar o entendimento das formas de atua-ção dos diferentes grupos de pressão queparticiparam da formulação da nova políti-ca de biossegurança. Em verdade, os gru-pos classificados como “contrários” devemser entendidos como aqueles que defendem

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que o processo de liberação de OGM deveser mais restritivo, com a aplicação do cha-mado “princípio da precaução”. Já os gru-pos de pressão classificados como “favorá-veis” são aqueles que defendem a simplifi-cação do processo de liberação dos produ-tos transgênicos.

Ao longo do processo de formação daagenda, e durante a tramitação propriamen-te dita do Projeto de Lei de Biossegurança,as discussões e a atuação dos grupos depressão se deram de forma mais intensa emtorno de alguns temas mais polêmicos. En-tre esses temas, o que gerou mais polêmicafoi, sem dúvida, a definição sobre o proces-so de autorização para o uso de organismosgeneticamente modificados. Essa definiçãoenvolve a demarcação dos papéis da CTN-Bio, do CNBS e dos órgãos ministeriais noprocesso de autorização. A posição dos gru-pos de pressão com relação a esse tema, bemcomo sua influência no texto final aprova-do serão apresentadas a seguir.

A definição do papel da CTNBio no pro-cesso de liberação do uso de OGM foi o pon-to nevrálgico das discussões em torno dapolítica nacional de biossegurança. O estu-do das posições dos grupos de pressão so-bre esse tema passa pela definição do “Prin-cípio da Precaução”. A Declaração do Riode Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvol-vimento, proclamada durante a Conferên-cia da Nações Unidas sobre Meio Ambientee Desenvolvimento, em 1992, consagra, emseu item no 15, o princípio da precaução:

“De modo a proteger o meio ambi-ente, o princípio da precaução deveser amplamente observado pelos Es-tados, de acordo com suas capacida-des. Quando houver ameaça de da-nos sérios ou irreversíveis, a ausênciade absoluta certeza científica não deveser utilizada como razão para poster-gar medidas eficazes e economica-mente viáveis para prevenir a degra-dação ambiental.”

Em atendimento ao princípio da precau-ção, a Constituição Brasileira exige a reali-

zação de estudo prévio de impacto ambien-tal para atividades ou obras potencialmen-te causadoras de significativa degradaçãodo meio ambiente. Em complementação, alegislação ambiental infraconstitucionaldetermina que o IBAMA, órgão vinculadoao Ministério do Meio Ambiente, é respon-sável pelo licenciamento e pela exigência dosEstudos de Impacto Ambiental e respecti-vos Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).

Nesse sentido, os grupos de pressão li-gados a entidades ambientalistas defendi-am que a nova Lei de Biossegurança conce-desse ao Ministério do Meio Ambiente acompetência para avaliar a necessidade derealização do EIA/RIMA tanto para as ati-vidades de pesquisa quanto para o uso co-mercial dos organismos geneticamente mo-dificados.

Por sua vez, os grupos ligados a entida-des ruralistas e às empresas de biotecnolo-gia defendiam que a CTNBio, como órgãotécnico responsável pela biossegurança,deveria ter a competência para avaliar, casoa caso, se a atividade que envolve o uso dabiotecnologia é potencialmente causadorade significativa degradação do meio ambi-ente, caso em que seria necessária a realiza-ção de EIA/RIMA. Esses grupos de pressãodefendiam, ainda, que o parecer da CTNBiovinculasse os demais órgãos da adminis-tração. Nesse caso, os órgãos ministeriais,como o Ibama e a Anvisa, teriam apenaspapel burocrático de registrar as varieda-des geneticamente modificadas já autoriza-das pela CTNBio.

Teoricamente, as duas posições resguar-dam o princípio da precaução, haja vistaque seria uma lei ordinária que determina-ria que órgão da administração federal teriaa competência para avaliar se o caso con-creto exige ou não a aplicação do institutoconstitucional do EIA/RIMA. No entanto,as entidades ambientalistas acreditam queconceder essa competência à CTNBio seriatornar letra morta o princípio da precaução,pois consideram que o órgão não o aplicou

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por ocasião da emissão do parecer que libe-rou o uso comercial da soja Round up Ready(PARANHOS, 2005).

O texto final da Lei de Biossegurançaestabelece, para os casos de liberação comer-cial, um procedimento intermediário entreas posições defendidas pelos grupos de pres-são favoráveis e contrários aos transgêni-cos. A nova lei cria a possibilidade de recur-so contra a decisão da CTNBio, que podeser impetrado pelos Ministérios do MeioAmbiente, da Saúde, da Agricultura Pecuá-ria e Abastecimento, e pela Secretaria Espe-cial de Aqüicultura e Pesca. Esse recursodeve ser analisado pelo CNBS, conselhocomposto por Ministros de Estado, que te-ria o poder para liberar, em última e defini-tiva instância, o uso comercial de OGM oupara determinar a realização de EIA/RIMA.

No caso das pesquisas com OGM, o tex-to final é favorável aos grupos que defende-ram a menor burocratização do processo deliberação. Assim, os pedidos de autoriza-ção para a realização de pesquisas comorganismos transgênicos serão decididospela CTNBio, em última e definitiva ins-tância.

9. Estratégias utilizadaspelos grupos de pressão

O papel desempenhado pelo governo doPresidente Lula no processo de tramitaçãodo Projeto de Lei de Biossegurança difereem vários aspectos da atuação em outrosprojetos de interesse do governo. No casoda reforma da previdência, por exemplo, ogoverno assumiu papel de líder do proces-so em contraposição aos grupos de pressão,que agiam como veto players (RAMOS, 2005).

No caso do Projeto de Lei de Biossegu-rança, o próprio governo estava dividido.De um lado o Ministério do Meio Ambiente,chefiado pela Ministra Marina Silva, ambi-entalista e militante do partido do Presidenteda República, o PT. De outro, o Ministro daAgricultura, sem vinculação partidária, po-rém histórico líder do cooperativismo rural

e ardoroso defensor dos organismos geneti-camente modificados.

O Partido dos Trabalhadores, durantetoda a fase de construção da agenda sobreos transgênicos – iniciada em torno de 1995,sob o Governo Fernando Henrique Cardoso–, assumiu posição contrária à liberação dosorganismos geneticamente modificados. Umdos parlamentares líderes da frente contraos transgênicos era justamente a então Se-nadora Marina Silva, que chegou a apresen-tar Projeto de Lei propondo moratória decinco anos para os transgênicos. Diversosoutros parlamentares do PT apresentaramprojetos tendentes a retardar a liberação dosOGM no Brasil.

A Ministra do Meio Ambiente do gover-no do presidente Lula é internacionalmentereconhecida como defensora das questõesambientais. Suas estreitas relações com oPartido dos Trabalhadores e com o próprioPresidente Lula impediam que o governoassumisse uma posição aberta em favor dostransgênicos.

Por outro lado, o Ministério da Agricul-tura também era uma pasta forte dentro dogoverno Lula. As sucessivas safras recor-des obtidas nos primeiros anos do governoLula e o amplo apoio obtido pelo Ministrocom os parlamentares da bancada ruralistaeram as principais razões da força políticadaquela pasta dentro do governo.

Nesse sentido, o governo passou a ado-tar uma postura aparentemente ambígua.Ao mesmo tempo em que a Casa Civil apoi-ava as propostas da Ministra Marina Silva– pelo menos na primeira fase da tramita-ção na Câmara dos Deputados9–, o governoconcedia autonomia ao Ministério da Agri-cultura para negociar suas propostas dire-tamente no Congresso.

Dessa forma, tanto os grupos de pressãofavoráveis aos transgênicos quanto os con-trários passaram a contar com o apoio go-vernamental no Congresso. Os grupos fa-voráveis eram apoiados pelo Ministério daAgricultura, Pecuária e Abastecimento, e osgrupos contrários trabalhavam ao lado dos

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representantes do Ministério do Meio Am-biente. Essa dualidade de interesses dentrodo próprio governo tem explicação na teo-ria neocorporativista, haja vista que os gru-pos de interesses estabelecem vínculos comsetores do Estado, os quais passam a com-petir internamente, conforme demonstrouTeixeira (2002).

Os grupos de pressão dispunham decanais de acesso ao processo legislativo for-mais e informais. Os canais formais são, porexemplo, a participação dos grupos de inte-resse em audiências públicas. Os canais in-formais estão relacionados ao contato dire-to com os parlamentares, a sugestão deemendas e o trabalho de lobby exercido jun-to aos relatores. A cientista Leila Oda, presi-dente da ANBio, por exemplo, afirmou ementrevista à Agência Brasil que a Associa-ção havia enviado 57 emendas ao Projetode Lei para diversos parlamentares (Cf.CRISTINA, 2004).

A Comissão Especial da Câmara dosDeputados, responsável pela análise do Pro-jeto de Lei de Biossegurança, era formada,em sua maioria, por parlamentares da ban-cada ruralista, portanto, favoráveis à libe-ração dos transgênicos. Por esse motivo, oparecer do Deputado Aldo Rebelo, se sub-metido a voto, deveria ser aprovado pelaComissão. Em um primeiro momento, apósser indicado como novo relator, o DeputadoRenildo Calheiros estava propenso a aco-lher o parecer Aldo Rebelo. No entanto, na-quele momento, o Governo sugeriu a ado-ção de novo parecer, contemplando as pro-postas do Ministério do Meio ambiente.Para que o novo parecer não fosse rejeitado,adotou-se a estratégia procedimental deaprovar requerimento de urgência, paraque a matéria deixasse a Comissão Espe-cial e fosse apreciada diretamente peloPlenário.

O acordo em torno da aprovação do pa-recer Renildo Calheiros foi possível graçasao apoio da bancada evangélica. Como onovo relator decidiu manter a proibição aouso de embriões humanos na produção de

células-tronco embrionárias, os evangélicosconcordaram em votar a favor do substituti-vo Renildo Calheiros.

Após a derrota dos grupos favoráveis aostransgênicos na Câmara dos Deputados, osgrupos de pressão favoráveis aos transgê-nicos concentraram forças no lobby junto aossenadores. Logo depois da aprovação dosubstitutivo Renildo Calheiros pela Câma-ra dos Deputados, um grupo de cientistas,capitaneados pela ANBio, iniciou uma sé-rie de visitas aos gabinetes dos senadores.Durante as visitas, foi entregue carta aossenadores contendo as reivindicações dasorganizações científicas.

Uma importante estratégia utilizadanesse momento foi a união de esforços entreos grupos favoráveis aos transgênicos e oscientistas que defendiam a autorização parao uso de embriões humanos na produçãode células-tronco embrionárias. Como ascélulas-tronco possuem grande apelo soci-al, graças à possibilidade de cura de doen-ças degenerativas, tinham amplo apoio daopinião pública. Houve, também, grandeapoio da mídia, por meio da veiculação dediversas reportagens a respeito dos poten-ciais benefícios das pesquisas com células-tronco embrionárias. Essa estratégia se in-tensificou ainda mais na segunda fase detramitação na Câmara dos Deputados, quan-do toda a atenção da mídia, e também dosdiscursos em plenário, estava voltada paraa questão das células-tronco. Naquele mo-mento, os transgênicos tornaram-se um temasecundário, e as modificações introduzidaspelo Senado foram aprovadas com certa fa-cilidade.

Um bom relacionamento com o relatorda matéria é fundamental para que os gru-pos de pressão possam exercer influênciasobre o processo legislativo. Ciente disso, abancada ruralista do Senado adotou a es-tratégia procedimental de aprovar requeri-mento para que o Projeto de Lei de Biosse-gurança fosse apreciado pela Comissão deEducação10. Naquela Comissão, a relatoriafoi avocada por seu presidente, o Senador

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Osmar Dias, integrante da bancada ruralis-ta. Dessa forma, foi aberto um canal de in-fluência direto entre os grupos de pressãofavoráveis aos transgênicos e o processo le-gislativo no Senado Federal. Por meio dessecanal, grupos de pressão favoráveis aostransgênicos, tais como ANBio, CNA e OCB,passaram a enviar propostas de emendas –e até mesmo de substitutivos – diretamenteao gabinete do relator.

Durante tramitação final na Câmara dosDeputados, outra estratégia procedimentalfoi utilizada pela bancada ruralista. O rela-tor do projeto, Renildo Calheiros, foi desti-tuído da função e, em seu lugar, foi nomea-do o Deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS),integrante da bancada ruralista e defensordos transgênicos. Segundo matéria veicula-da no jornal O Estado de São Paulo (Cf. PLA-NALTO..., 2004), a Secretaria de Coordena-ção Política do Palácio do Planalto teriaapoiado a estratégia regimental.

10. Conclusão

O imbróglio jurídico em torno do proces-so de liberação dos organismos genetica-mente modificados e a situação de fato ge-rada pelo plantio ilegal de soja transgênicaem algumas regiões do País trouxeram asdiscussões sobre os transgênicos para aagenda governamental, entre os temas con-siderados prioritários. O Governo viu-seobrigado a editar três medidas provisóriaspara permitir o plantio da soja transgênica,até então considerada ilegal pelo Poder Ju-diciário. Ante o clima de incerteza jurídica ea situação de fato criada pelos agricultores,tornou-se consenso, na sociedade e no Go-verno, a necessidade de se formular umanova Lei de Biossegurança. Nessa fase deconstrução da agenda, o Congresso Nacio-nal exerceu papel de centralizador de deba-tes. Diversas audiências públicas foram re-alizadas, nas quais os grupos de interesse,tanto os favoráveis quanto os contrários, pu-deram expressar sua opinião a respeito damatéria.

Cabe destacar que a fase de construçãoda agenda se estendeu ao longo dos Gover-nos FHC e Lula, enquanto a fase de formu-lação propriamente dita concentrou-se noGoverno Lula. O Governo FHC apoiavaabertamente a liberação dos transgênicos,tanto que a União figurou, ao lado da Mon-santo, como parte na ação judicial movidapelo Greenpeace e pelo IDEC contra o pare-cer da CTNBio que autorizava o plantio desoja geneticamente modificada.

O Partido dos Trabalhadores, que, du-rante a maior parte da fase de construçãoda agente, fez oposição incondicional aogoverno, tinha posição contrária aos OGM.Assim, após a vitória do PT nas eleições pre-sidenciais de 2002, seria natural que o Go-verno Lula da Silva mantivesse a posiçãopartidária contrária aos organismos geneti-camente modificados. Assim, ao compor oseu Ministério, o Presidente escalou para aPasta do Meio Ambiente a ambientalistaMarina Silva, reconhecida por sua atuaçãocontrária aos OGM. No entanto, para a Pas-ta da Agricultura foi indicado o líder rura-lista Roberto Rodrigues, tradicional defen-sor dos transgênicos. Estava iniciada a di-vergência interna no governo, que se esten-deria por toda a fase de formulação da Polí-tica Nacional de Meio Ambiente.

Essa divergência entre diferentes áreasdo governo ao longo do processo de formu-lação de políticas públicas encontra respal-do na teoria neocorporativista. Aliás, os te-óricos neocorporativistas consideram queos grupos de interesses estabelecem víncu-los com setores do Estado, de forma que suaorganização e competição se fazem dentrodo próprio Estado. No caso da formulaçãoda Política Nacional de Biossegurança, fi-cam claros os vínculos dos grupos de pres-são contrários aos transgênicos com o Mi-nistério do Meio ambiente e dos grupos deruralistas e das empresas de biotecnologiacom o Ministério da Agricultura, Pecuária eAbastecimento.

A análise do processo de tramitação doProjeto de Lei de Biossegurança mostra que

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os grupos de pressão atuaram condiciona-dos pelas instituições internas do Congres-so Nacional. Escolha e substituição de rela-tores, apresentação de emendas, apresenta-ção de requerimentos de urgência, são to-das estratégias permitidas pelos regimen-tos internos da Câmara dos Deputados e doSenado Federal, e largamente utilizadaspelos grupos de pressão. Nesse sentido, ve-rificam-se características da teoria neo-ins-titucionalista na formulação da Lei de Bios-segurança.

De acordo com os teóricos do neo-insti-tucionalismo, a eficiência dos grupos depressão aumenta quando estes conhecembem o arcabouço institucional que regula oprocesso legislativo. No caso estudado, sãoencontrados exemplos de estratégicas ado-tadas pelos grupos de pressão baseadasnessas instituições internas. Entre essasestratégias, podem-se destacar: a aprovaçãode requerimento de urgência para retirar oProjeto de Lei de Biossegurança da Comis-são Especial e enviá-lo diretamente ao Ple-nário da Câmara; a aprovação de requeri-mento, no Senado, para que fosse ouvida aComissão de Educação, e a conseqüente in-dicação do Senador ruralista Osmar Diaspara a relatoria; e a destituição do Deputa-do Renildo Calheiros da relatoria do proje-to, na segunda fase de tramitação na Câma-ra dos Deputados.

A atuação dos grupos de pressão ocor-reu tanto por meio do uso de instituiçõesformais quanto por meio de instituições in-formais. As instituições formais permitem,por exemplo, a participação direta dos gru-pos de pressão em audiências públicaspromovidas pelas Comissões do Congres-so. As instituições informais, por sua vez,envolvem relações pessoais dos grupos depressão com os parlamentares, que lhespermitem participar diretamente do pro-cesso legislativo.

Há grupos que já possuem relações es-treitas e regulares com determinados parla-mentares. É o caso, por exemplo, de entida-des como CNA e OCB, favoráveis aos trans-

gênicos, que normalmente são representa-das pelos parlamentares da bancada rura-lista, quaisquer que sejam os projetos em tra-mitação no Congresso Nacional. Por outrolado, grupos como os que defendiam a libe-ração do uso de embriões humanos na pro-dução de células-tronco embrionárias nãoexercem a atividade lobista de forma fre-qüente. Esses grupos de pressão, formadosbasicamente por cientistas, tiveram que cri-ar seu próprio espaço de negociação entreos parlamentares.

São instituições informais os acordosentre os diferentes segmentos de represen-tação dentro do Congresso. Um bom exem-plo de aliança informal ocorreu no final datramitação do Projeto de Lei de Biossegu-rança na Câmara dos Deputados, quandoos grupos contrários aos transgênicos ado-taram a estratégia de apoiar proibição damanipulação de embriões para produção decélulas-tronco em troca do apoio da banca-da evangélica ao texto do parecer RenildoCalheiros. A estratégia utilizada possibili-tou a cooptação de votos suficientes para aaprovação, pelo Plenário da Câmara, dosubstitutivo que restringia os poderes daCTNBio e concedia ao Ibama a competênciapara decidir sobre a necessidade de licenci-amento ambiental, e, conseqüentemente,para exigir a realização de EIA/RIMA, nosprocessos de autorização do uso comercialde OGM.

As instituições eleitorais também influ-enciam diretamente no processo decisóriodos parlamentares. Nesse sentido, a união,no Senado Federal, entre os grupos defen-sores dos transgênicos e os grupos defenso-res das células-tronco foi bastante eficienteem mostrar aos parlamentares o apoio daopinião pública, que, em última análise, setraduz em votos. Quando o debate, no Con-gresso e na mídia, deslocou-se para a ques-tão das células-tronco, com todo apelo emo-cional proporcionado pela possibilidade decura de doenças degenerativas, o apoio daopinião pública ao projeto como um todofoi maciço e a discussão sobre o processo

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de liberação dos transgênicos ficou em se-gundo plano.

O texto final aprovado da nova Lei debiossegurança mostra que os grupos de pres-são favoráveis aos transgênicos tiveram amaior parte de suas reivindicações atendi-das. A norma aprovada concede poderesplenos à CTNBio para decidir sobre os pe-didos de autorização referentes a projetosde pesquisa com OGM, além de dar-lhe acompetência para decidir se será, ou não,necessário o licenciamento ambiental peloIbama no caso de pedidos de uso comercialde OGM.

No entanto, os grupos de pressão favo-ráveis tiveram que ceder com relação à pos-sibilidade de recurso contra as decisões daCTNBio, que poderá ser impetrado pelosórgãos de registro e fiscalização, e aprecia-do pelo Conselho de Ministros. A aprova-ção desse dispositivo foi crucial para redu-zir a resistência de parlamentares tradicio-nalmente contrários aos transgênicos, sobre-tudo dentro do partido do Governo, o PT.

Os grupos de pressão favoráveis aostransgênicos mostraram-se mais eficientesem moldar a nova Lei de Biossegurança.Essa eficiência pode ser creditada a algunsfatores, como, por exemplo, o poderio eco-nômico e político das organizações envol-vidas – empresas de biotecnologia e entida-des ruralistas, respectivamente.

Os grupos de pressão contrários aostransgênicos, formados majoritariamentepor entidades ambientalistas e de defesa doconsumidor, possuíam uma linha de argu-mentação mais abstrata e complexa, tal comoa necessidade de aplicação do princípio daprecaução em vista de possíveis riscos am-bientais e à saúde humana. Os grupos favo-ráveis à liberação dos organismos genetica-mente modificados possuíam linha de ar-gumentação mais concreta, baseada em da-dos que indicam as vantagens econômicas– para os próprios grupos interessados – douso dos produtos transgênicos.

Em outras palavras, os grupos que de-fendem interesses próprios de segmentos

específicos da sociedade mostraram-se maisinfluentes no processo decisório que os gru-pos que se propunham a defender interes-ses da sociedade como um todo. Essa obser-vação encontra respaldo na teoria de Olsonsobre a falta de representatividade do siste-ma de grupos. As entidades ambientalistas,por exemplo, tinham dificuldade em legiti-mar sua representatividade, pois, dada acomplexidade técnica do tema, a própriasociedade não tinha uma clara opinião for-mada sobre a conveniência, ou não, da libe-ração do uso dos organismos geneticamen-te modificados no Brasil.

A influência dos grupos de pressão con-trários aos transgênicos, embora menor,também aparece na nova Lei de Biossegu-rança. Pontos como o já mencionado recur-so ao Conselho de Ministros e a obrigatorie-dade da rotulagem de alimentos que conte-nham organismos geneticamente modifica-dos foram bandeiras defendidas por essesgrupos durante a tramitação do Projeto deLei de Biossegurança no Congresso Nacio-nal. Pode-se afirmar que a presença de umMinistério do Meio Ambiente forte, atuan-do ao lado dos grupos de pressão contrári-os aos transgênicos, permitiu a aprovaçãode uma Lei de Biossegurança mais equili-brada e menos radical do que pretendiam,inicialmente, os grupos de pressão favorá-veis aos transgênicos, pretensões essas re-veladas nos substitutivos do Deputado AldoRebelo e do Senador Osmar Dias.

Notas1 O Projeto de Lei de Biossegurança que resul-

tou na aprovação da Lei no 8.974, de 1995, era deautoria do Senador Marco Maciel. O art. 61, §1o, II,e, da Constituição Federal determina que as leisque disponham sobre a criação de Ministérios e ór-gãos da administração pública são de iniciativaprivativa do Presidente da República. Esse foi omotivo dos vetos aos art. 5o e 6o.

2 A Medida Provisória no 2.137, de 28 de de-zembro de 2000, foi sucessivamente reeditada, atéque a Emenda Constitucional no 32, de 2001, man-teve em vigor a Medida Provisória no 2.191-9, de 23

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de agosto de 2001, até sua revogação total pela Leino 11.105, de 2005, a nova Lei de Biossegurança.

3 Art. 1o da Medida Provisória no 2.137, de 28 dedezembro de 2000.

4 Entenda-se como “órgãos e entidades de re-gistro e fiscalização” aqueles de que trata o art. 16da Lei no 10.105, de 2005 (Lei de Biossegurança),quais sejam: a Secretaria de Defesa Agropecuária,do Ministério da Agricultura; o IBAMA, vinculadoao Ministério do Meio Ambiente; a ANVISA, vin-culada ao Ministério da Saúde; e a Secretaria Espe-cial de Aqüicultura e Pesca.

5 O Parágrafo único do art. 7o do PL 2.104, de2003, determinava, ainda, que pronunciamento doCNBS em última e definitiva instância quanto aosaspectos de conveniência e oportunidade requere-ria a manifestação favorável da CTNBio e dos ór-gãos e entidades de registro e fiscalização. Em suma,de acordo com o projeto de lei original, o CNBSseria a instância política com poderes para impe-dir, por razões de “conveniência e oportunidade”,a liberação de OGM, após a sua aprovação pelaCTNBio e pelos órgãos de registro e fiscalização.

6 Os signatários da carta aos senadores são osseguintes: Associação Nacional de Biossegurança(ANBio), Academia Brasileira de Ciências (ABC),Associação Brasileira de Biotecnologia (Abrabi),Associação Brasileira de Distrofia Muscular, Asso-ciação Brasileira para a Proteção dos Alimentos(Abrapa), Centro Brasileiro de Estocagem de Ge-nes, Centro de Estudos do Genoma Humano, Soci-edade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN),Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Ali-mentos (SBCTA), Sociedade Brasileira de Genética(SBG), Sociedade Brasileira de Melhoramento dePlantas (SBMP), Sociedade Brasileira de Microbio-logia (SBM) e o Programa de Pós-Graduação emBiotecnologia Vegetal – UFRJ.

7 Entende-se por plantas geneticamente modifi-cadas com função biocida aquelas nas quais sãointroduzidos genes para a produção de inseticidas,ou de fungicidas, visando o controle de pragas edoenças. Um exemplo de planta biocida é o milhobt.

8 Um exemplo de tecnologia de restrição de usoé o “gene terminator”, criado pela empresa Mon-santo, com o objetivo de impedir que os agriculto-res multipliquem as sementes por ela produzidas.O uso de tal tecnologia foi rejeitado em todo omundo por questões de bioética.

9 O Projeto de Lei original encaminhado peloPoder Executivo à Câmara dos Deputados con-templava a maior parte das propostas do Ministé-rio do Meio Ambiente. A Casa Civil apoiou, ainda,o substitutivo do Deputado Renildo Calheiros, fa-vorável aos ambientalistas.

10 O projeto foi inicialmente distribuído para asComissões de Assuntos Sociais, de Assuntos Eco-

nômicos e de Constituição, Justiça e Cidadania.Posteriormente foi aprovado em Plenário o Reque-rimento no 41, de 2005, de autoria do Senador Os-mar Dias, para que o projeto fosse, também, apre-ciado pela Comissão de Educação.

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Daniel Rocha Corrêa

ApresentaçãoEste trabalho resultou da pesquisa A Cer-

tificação Ambiental no Brasil: um instrumentona promoção do desenvolvimento sustentável,desenvolvida a partir de apoio do Fundo deIncentivo à Pesquisa (FIP) da PUC Minas.

Nosso ponto de partida foi a constata-ção de que, na esfera da economia, os recur-sos naturais são necessários para a satisfa-ção das necessidades humanas e tambémsofrem os custos decorrentes de uma sériede atos de produção ou de consumo, suaescassez leva à busca de meios mais racio-nais de aproveitamento; uma preocupaçãoque se justifica pela possibilidade extremade extinção da vida, inclusive humana, naTerra – problema que foi destacado pelaDivisão de Assuntos de Ciência e Tecnolo-gia da Escola Superior de Guerra (1989, p.130).

Na busca de uma mudança, a preocupa-ção ambiental passou a constituir fonte dequestionamento dos modelos tradicionaisde desenvolvimento (BERGEL, 1992). Uma

Certificação ambiental, desenvolvimentosustentável e barreiras à entrada

Daniel Rocha Corrêa é Advogado, Profes-sor da PUC Minas e Mestre em Direito Econô-mico pela UFMG.

SumárioApresentação. 1. Desenvolvimento e meio

ambiente. 1.1. Crescimento e desenvolvimen-to. 1.2. Propostas transformadoras. 2. O desen-volvimento sustentável no direito internacio-nal e no direito brasileiro. 3. A certificaçãoambiental como um meio para o desenvolvi-mento sustentável. 4. Certificação ambiental ebarreiras à entrada. 5. Conclusões.

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das propostas que surgiu nessa tentativa decompatibilizar as preocupações ambientaiscom o desenvolvimento econômico foi o de-senvolvimento sustentável. Ela reflete um de-sejo de harmonização das iniciativas atu-ais com a expectativas em relação ao futuroe mostrou-se um referencial muito impor-tante numa série de normas jurídicas querinternacionais, quer internas, como a pró-pria Constituição da República Federativado Brasil que está em vigor.

O Brasil é reconhecido como um dos pa-íses com uma das legislações mais avança-das em relação à necessidade de proteçãodo meio ambiente, porém é preciso buscarnovos meios para colocá-la em prática e in-tensificar os já existentes. Por isso, procura-mos compreender como o Estado pode utili-zar a certificação ambiental, ou seja, a im-plantação de sistemas de gestão ambiental pe-las empresas, para atingir o desenvolvimen-to sustentável. Destacamos a adequação dacertificação ambiental como um meio paraimplantação de uma política de proteçãoambiental situada no contexto maior de umapolítica econômica. Nessa perspectiva, sa-lientamos a necessidade do estímulo esta-tal à busca da certificação pelas empresas,especialmente as pequenas e médias, paraatingir uma tripla finalidade: a redução doimpacto ambiental, a defesa da concorrên-cia no plano interno e para manter e aumen-tar o mercado internacional dos produtos eserviços brasileiros.

1. Desenvolvimento e meio ambiente

1.1. Crescimento e desenvolvimento

Nesse esforço de reflexão sobre meiospara implementação de uma política de de-senvolvimento que seja ambientalmente po-sitiva, devemos primeiro compreender o queé o desenvolvimento, pois não há uma úni-ca definição para o fenômeno nem um úni-co meio para chegarmos aos resultados pre-vistos, para depois estabelecermos as rela-ções entre desenvolvimento e meio ambien-

te, em especial o sentido que se dá ao desen-volvimento sustentável.

Um dos primeiros teóricos a se ocuparcom o tema do desenvolvimento econômicofoi Joseph A. Shumpeter. Para o autor, o de-senvolvimento representa o processo de mu-dança espontânea e descontínua que se baseiano estágio precedente e cria as bases paraulteriores estágios de desenvolvimento(SHUMPETER, 1957, p. 75).

Uma observação que podemos fazer emrelação a essa definição é quanto ao seu fun-damento liberal, pois, quando o autor qua-lifica o desenvolvimento como um processode mudança espontânea, afasta a ação dealguma força que não aquelas que levariama um equilíbrio natural do mercado. O mo-delo liberal não é satisfatório nesse ponto,pois alguns agentes econômicos podem atu-ar de modo a influenciar conscientementeos resultados do mercado, assim como opróprio Estado, mesmo quando não sejaagente econômico, pode intervir para esti-mular ou conter a economia. Nesse ponto,podemos ampliar a definição para dizer queo desenvolvimento é um processo de mu-dança passível de ser provocado tambémpela política econômica privada das empre-sas e pela política econômica do Estado.

Além dessa visão do desenvolvimentocomo um processo, podemos dizer que odesenvolvimento econômico é também umobjetivo a ser perseguido (Cf. STREETEN,1979, p. 30).

O próximo passo, nessa tarefa de com-preendermos o que é o desenvolvimento, édizermos que ele difere da idéia de cresci-mento. O próprio Shumpeter (1957) afirmouque o desenvolvimento difere do mero cres-cimento da economia, pois é um processoqualitativamente diferente deste. Segundoo autor, o desenvolvimento dá-se a partirdo emprego diferente dos meios produtivosexistentes, ou seja, do emprego de inovações,enquanto o crescimento é uma mera mudan-ça de dados, como a riqueza.

Embora o crescimento seja um dos mei-os para propiciar aprimoramentos qualita-

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tivos que fazem parte do desenvolvimento,Paul Streeten (1979, p. 31) destaca que umpode ocorrer sem que haja o outro, pois asatisfação de necessidades qualitativas nãoestá diretamente atrelada à satisfação demetas quantitativas. Mesmo sendo funda-mentalmente diferentes, não podemosdesprezar as metas quantitativas do cres-cimento, pois, como Amartya Sen (2000,p. 57) destaca, o crescimento pode propor-cionar uma infra-estrutura necessáriapara a satisfação de necessidades maio-res. No mesmo sentido, Richard Posner(1998, p. 23) também salienta os benefíci-os indiretos que o aumento da riquezapode proporcionar.

Entendemos que, como o desenvolvi-mento expressa-se por mudanças mais am-plas e profundas do que quando lidamoscom o crescimento, limitá-lo ao aumento dariqueza não é saudável quando pensamosa realidade brasileira, marcada por severasdesigualdades, que são próprias do subde-senvolvimento. Posner (1984, p. 133) afirmaque a maximização da riqueza é um impor-tante objetivo na América e em outros Esta-dos ricos, mas não cremos que seja o maisimportante em um país como o nosso.

Sobretudo após a II Guerra Mundial,conforme Magalhães (1978), o desenvolvi-mento passou a figurar como um objetivo cons-titucionalmente estabelecido pelos Estados.

No entanto, muitas das políticas condu-zidas a partir da difusão da crença na legi-timidade do objetivo eram embasadas naconcepção de que, para desenvolver, era ne-cessário crescer. De acordo com essa lógica,Meier e Baldwin (1968, p. 12) definiram odesenvolvimento econômico como “[...] umprocesso pelo qual a renda nacional de umaeconomia aumenta durante um longo perí-odo de tempo”.

Apesar desse esforço, ainda no séculoXX, intensificou-se o debate a respeito dofenômeno do desenvolvimento, pois, no pla-no econômico, verificou-se o aumento da di-ferença entre os países ricos (em geral donorte) e os países pobres (em geral do sul), o

superendividamento destes, o aumento dadevastação ambiental e da poluição. Taisefeitos fomentaram o surgimento de novasconcepções sobre o desenvolvimento.

Enquanto as concepções tradicionais dodesenvolvimento são incapazes de consi-derar os custos decorrentes do desenvolvi-mento, por exemplo, em relação ao meioambiente, e não alcançam toda a amplitudedos resultados que se espera seja caracterís-tico do desenvolvimento, um resultado deuma mudança qualitativa, por enfatizaremapenas aspectos quantitativos do processo,as novas concepções, que nomearemostransformadoras, levam em conta essa du-pla problemática.

1.2. Propostas transformadoras

Entre as propostas transformadoras, des-tacaremos os trabalhos de Celso Furtado,François Perroux, Amartya Sen, o desenvol-vimento humano e também a perspectiva dodesenvolvimento sustentável.

O brasileiro Celso Furtado (1974), refe-rência mundial no pensamento econômicorelativo ao desenvolvimento, chamou a aten-ção para a impossibilidade de reproduçãonos países pobres dos mesmos padrões devida dos países ricos.

Mesmo assim, entendemos que os pa-drões de vida atuais dos países pobres po-dem ser aprimorados. A referência paraapuração do grau de desenvolvimento deveser a realidade interna, embora os padrõesexternos, em especial de um país com níveismais avançados de qualidade de vida, pos-sam ser tomados como exemplo de até ondese pode chegar.

François Perroux (1987, p. 98), ao dis-correr sobre o Novo Desenvolvimento, é cla-ro ao advertir que a teoria geral da econo-mia surgiu a partir da experiência dos paí-ses desenvolvidos e que ela atende apenasaos interesses peculiares daquelas realida-des. Segundo ele, a aplicação desta teoriaaos países em desenvolvimento depende deuma crítica prévia com vistas a sua adequa-ção às diferenças.

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Amartya Sen (2000) afirma que o desen-volvimento tem na expansão das liberda-des seu objetivo e meio. Sua tese é tão im-portante que lhe rendeu o prêmio Nobel deeconomia. Para o autor, a amplitude do con-ceito de desenvolvimento vai muito além daexpansão da renda e da riqueza, que sãocritérios limitados para a aferição do seunível.

Outra proposta que destacamos é a dodesenvolvimento humano, cujo primeiro méri-to está na própria terminologia que colocaênfase na própria pessoa humana, mesmoque não seja capaz de retratar uma medidacompleta da realidade analisada. Comodestaca Amartya Sen (2000, p. 58), o desen-volvimento humano é um processo de expan-são da educação, serviços de saúde e outrascondições da vida humana.

Nessa perspectiva transformadora, a úl-tima concepção a que nos referimos é a dodesenvolvimento sustentável. Como não pode-mos universalizar o modelo de desenvolvi-mento sem atentar para o impacto negativocausado ao meio ambiente, o conceito dedesenvolvimento sustentável foi criado apartir da idéia de sustentabilidade, conceitoda biologia e da ecologia que, segundoLeonardo Boff (1995, p. 106), revela “[...] atendência dos ecossistemas ao equilíbrio di-nâmico, sustentados na teia de interdepen-dências e complementariedades que vigoranos ecossistemas”.

A partir da sistematização feita porSalvador Darío Bergel (1992), podemos res-saltar quatro dimensões do desenvolvimentosustentável: uma dimensão econômica, queprocura demonstrar a insuficiência dos cri-térios tradicionais de mensuração do graude aperfeiçoamento que desprezam as con-seqüências negativas dos modelos adotados;a segunda dimensão, a social, procura de-monstrar a essencialidade da posição do serhumano no processo, que não pode ser es-quecido como destinatário das políticas eco-nômicas voltadas ao desenvolvimento; adimensão cultural, que implica no respeitoàs diversidades culturais; e, por fim, a di-

mensão ambiental, que procura fazer comque sejam evitados danos aos ecossistemase impedir o esgotamento de recursos essen-ciais.

Para nós, uma importante vantagem adestacar em relação à noção de desenvolvi-mento sustentável é que ela impõe que seatente para os efeitos negativos da buscapelo desenvolvimento, entre os quais des-tacamos o impacto ambiental. Quando dis-cutimos meios para implementarmos o de-senvolvimento sustentável, discutimos formasde melhorar a qualidade de vida humanaque estejam em harmonia com a necessida-de de preservação do meio ambiente.

Um primeiro problema em relação a esseassunto é estabelecer qual será o ponto deequilíbrio entre o impulso para a melhoriada qualidade de vida e a necessidade deevitar efeitos negativos. Entendemos que édifícil conceber um desenvolvimento não-danoso, por isso, reconhecemos a importân-cia do trabalho teórico de Ronald Coase(1994), que, ao definir eficiência, busca a in-ternalização das externalidades, inclusivedos custos ambientais, e afirma a necessidadede se evitar o dano mais grave. Consideramosque essa busca por um mínimo de custos é umcaminho razoável para a implementação do de-senvolvimento sustentável.

No entanto, para Patrícia Bianchi (2003), ainternalização dos custos ambientais não é umcritério adequado, porque se centra apenas nosresultados e não na captação dos recursosem si.

Compreendemos que os custos a serem in-ternalizados, quando buscamos o desenvol-vimento sustentável e nos valemos, por exem-plo, do trabalho de Coase (1994) a respeitoda eficiência para implementá-lo, são de na-tureza mais ampla do que aqueles pondera-dos pela autora. O desenvolvimento sustentá-vel pode ser visto como um fenômeno deconteúdo mais amplo do que apenas a re-dução da poluição. Além disso, é lógico queo critério não pode ser limitado a um dosmomentos da atividade econômica, atentan-do apenas para os seus efeitos, pois, quan-

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do falamos de eficiência, não podemos esque-cer que, conforme demonstra João BoscoLeopoldino da Fonseca (2004), a eficiência tra-duz-se por eficiência produtiva, eficiência aloca-tiva, eficiência distributiva e eficiência dinâmica.

Fundamentadas na noção de desenvolvi-mento sustentável, as políticas econômicas depromoção do desenvolvimento devem estarmotivadas não só pela satisfação das neces-sidades das gerações presentes, mas tambéme em especial pelas necessidades das gera-ções futuras. Não é mais admissível que se-jam sacrificadas as expectativas de existên-cia do futuro pela racionalidade imediatistado modelo de desenvolvimento tradicional.

Amartya Sen (2004) apresenta as basespara o segundo problema decorrente dessavisão prospectiva da noção de desenvolvimen-to sustentável, que reside na necessidade de sepossibilitar às gerações futuras a liberdadede gozar de um patamar de equilíbrio ambi-ental de que gozavam gerações passadas. Asidéias apresentadas pelo autor combinamcom as de Salvador Darío Bergel (1992, p. 305),que diz:

[...] devemos entender por desenvolvi-mento um processo que leve a potenci-alizar os recursos de um país ou de umaregião e que, de modo paralelo, satisfa-ça os objetivos de incrementar a econo-mia, aumentar a qualidade de vida dapopulação e respeite o equilíbrio dosecossistemas, contribuindo, na medidado possível, a reparar os danos já cau-sados.” (tradução nossa).

Como tornar compatíveis as necessida-des das gerações presentes com as geraçõesfuturas? Entendemos que a resposta só podeser dada a partir do humanismo e da democra-cia. A escolha não pode ser subtraída ao ho-mem dentro do processo democrático.

2. O desenvolvimento sustentávelno direito internacional e no

direito brasileiro

As preocupações ambientais desencade-aram mudanças no sistema jurídico que,

conforme Paolo Maddalena (1992), se expres-sam por duas tendências: o reconhecimentode um direito humano do ambiente e a for-mação de um direito comum do ambiente.

Ao analisar os resultados dessa mudan-ça, Marcelo Dias Varella (2004) verificouque os países do Norte, países ricos e quemais contribuíram negativamente com oequilíbrio ambiental, são os responsáveispor fomentar a introdução da questão am-biental nas discussões relacionadas ao de-senvolvimento.

Segundo essa lógica, essa força do Nortepara o Sul que leva à mudança do conteúdodas normas jurídicas tem um campo impor-tante de repercussão na ordem jurídica in-ternacional.

Uma primeira referência de manifes-tação dessa nova ordem jurídica interna-cional, que se reproduz nos ordenamentosjurídicos internos dos Estados, foi a Con-ferência das Nações Unidas sobre MeioAmbiente, realizada em 1972, em Estocol-mo, que reconheceu o direito ao meio ambi-ente saudável.

Logo em seguida, em 1974, a ONU – Or-ganização das Nações Unidas – instituiu aNova Ordem Econômica Internacional, pe-las Resoluções 3201 (S-VI) e 3202 (S-VI), ereconheceu expressamente a tensão entre umdireito ao desenvolvimento e um dever depreservar o meio ambiente.

Em 1982, a Comissão Mundial sobreMeio Ambiente e Desenvolvimento (1991, p.67) reconheceu expressamente o desenvolvi-mento sustentável como uma necessidade. NoRelatório intitulado Nosso Futuro Comum etambém conhecido por Informe Brundtland,a Sociedade Internacional demonstra a ne-cessidade de compatibilizar-se as preocu-pações econômicas com as ecológicas, que“[...] não se opõem necessariamente.”

Outro importante momento foi a Confe-rência das Nações Unidas sobre Meio Am-biente e Desenvolvimento, a Rio-92, realiza-da em 1992 na cidade do Rio de Janeiro, naqual foram produzidas duas Convenções,uma sobre diversidade biológica e outra so-

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bre poluição, além de estabelecer-se a Agen-da 21, um programa minucioso cujo objeti-vo é a melhoria do equilíbrio ambiental parao século XXI, na qual os incentivos à melho-ria da qualidade ambiental, como a certifica-ção ambiental, foram reconhecidos como ins-trumentos adequados ao desenvolvimentosustentável.

Uma última referência que faremos, ape-sar de haver outras, é o Protocolo de Quiotoà Convenção-Quadro das Nações Unidassobre Mudança de Clima, feito em Quioto,em 11 de dezembro de 1997, que visa à im-plementação de reduções nos níveis mun-diais de emissões poluentes.

Dentro desse contexto de expansão, é in-dispensável, para a efetividade das normasvoltadas ao problema, que haja um adequa-do aparelhamento para colocá-las em práti-ca, que não prescindirá da conjugação deesforços dos Governos, empresas e cida-dãos. Além disso, a relevância das preocu-pações ambientais que compõem a noçãode desenvolvimento sustentável não pode sererigida a ponto de obstar a melhoria da qua-lidade de vida dos países pobres. Afinal, odesenvolvimento impõe a solidariedade. Aprópria Comissão Mundial do Meio Ambi-ente e Desenvolvimento (1991, p. 392) de-fendeu a necessidade de aceleração do cres-cimento econômico mundial e declarou aobrigação geral dos Estados de cooperarem,estabelecendo expressamente: “Os Estadosdevem cooperar mutuamente de boa-fé naimplementação dos direitos e obrigaçõesprecedentes. [...]”.

No plano interno, as bases da política eco-nômica brasileira estão inseridas num con-texto de proteção da liberdade de mercado,de reconhecimento do direito ao desenvolvi-mento e da necessidade de preservação domeio ambiente. Contexto que é coerente coma necessidade de imprimir compatibilidadeàs racionalidades econômica e ambiental.

A Constituição do Brasil consagra o de-senvolvimento como um dos objetivos da Re-pública e reconhece a necessidade de prote-ção do meio ambiente, como princípio da

Ordem Econômica. Nessa perspectiva, o or-denamento jurídico brasileiro valoriza asatividades produtivas que causem menoresefeitos negativos no meio ambiente e reconhe-ce que a qualidade ambiental é um dos mo-dos para garantir-se o equilíbrio ambiental.

O princípio da defesa do meio ambiente,segundo a redação que lhe foi dada pelaEmenda Constitucional no 43 de 2003 aoartigo 170, VI, da CR/88, impõe “[...] trata-mento diferenciado conforme o impactoambiental dos produtos e serviços e de seusprocessos de elaboração e prestação.” (BRA-SIL, 2005, p. 130).

Em seu artigo 225, a Constituição da Re-pública consagra o direito de todos ao meioambiente ecologicamente equilibrado e impõeao Poder Público e à coletividade a meta dodesenvolvimento sustentável, ao fixar-lheso dever de defender e preservar o meio am-biente (BRASIL, 2005, p. 156).

No plano dos diplomas legais, merecemdestaque tanto a Lei 9.795/1999, que tratada educação ambiental e institui a PolíticaNacional de Educação Ambiental, quanto aLei 6.938/1981, que reconhece o estabeleci-mento de padrões de qualidade ambientalcomo um dos instrumentos da Política Na-cional do Meio Ambiente, entre os quaispodemos incluir a certificação ambiental.

3. A certificação ambientalcomo um meio para o

desenvolvimento sustentável

A certificação ambiental é um processo deverificação por uma terceira parte emissorado certificado de que determinada empresaatua de acordo com certos critérios unifor-mes em relação ao meio ambiente, estabele-cidos numa norma técnica. Quando há con-formidade entre o sistema de gestão ambientalpraticado pela empresa e os critérios esta-belecidos na norma técnica, a entidade cer-tificadora confere a certificação à empresa.Uma vez obtida a certificação, sua manu-tenção depende de resultados a serem veri-ficados por auditorias periódicas.

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No estabelecimento desses critérios uni-formes, em âmbito internacional, uma enti-dade que detém um papel central é a ISO –International Organization for Standardzation,da qual o Brasil participa. Ela foi constituídaem 1946, tem sede em Genebra, Suíça, e é umaorganização não-governamental que congre-ga entes públicos e privados na área de pa-dronização (BIANCHI, 2003, p. 104-105).

A certificação ambiental desenvolve-se pelos critérios das normas ISO série14000. Como Clarissa D’Isep (2004, p.151-152) ressalta, a certificação é uminstrumento de comunicação, embasadonuma linguagem internacional pela pa-dronização, que dá acesso aos consu-midores e empresas à política e ao desem-penho ambiental da empresa certificada.

A autora destaca também as etapasdo processo de certificação:

“O caminho a ser percorrido, reve-lando os seus requisitos, resume-se:1) na elaboração da política ambien-tal; 2) no planejamento; 3) na imple-mentação e operação; 4) na verifica-ção e ação corretiva; 5) na análise crí-tica pela administração – que não ces-sa, devendo retornar ao (1) no sentidode uma espiral em constante movi-mento, sendo a obrigatoriedade quan-to à melhoria contínua o seu propul-sor/movimentador” (D’ISEP, 2004, p.162).

A uniformidade decorrente da adoção detais critérios é importante, pois reduz custosde transação, na acepção empregada por Coa-se (1994), e pode facilitar o comércio e contri-buir para o desenvolvimento sustentável.

Porém a visão de Patrícia Bianchi (2003,p. 18) é outra. Para a autora, o comércio in-ternacional se mostra incompatível com asustentabilidade ecológica. Segundo suaperspectiva, a sustentabilidade ecológica “[...]requer um redirecionamento das economi-as nacionais para o âmbito local ou regio-nal, com vistas à satisfação das necessida-des locais, processo inverso ao da globali-zação da economia.”

Não acreditamos que essa ruptura sejapossível nem viável no momento atual, afi-nal “[...] a economia está imersa num meiocultural em que cada um participa dos usos,dos costumes, dos reflexos sociais dos seusgrupos” (PERROUX, 1987, p. 277). Nessecontexto, a mudança proposta dependeráde uma mudança do próprio homem e tal-vez da sua essência. Em relação a isso, épreciso lembrarmos que Platão (1996), aoconstruir as bases de sua cidade, já destacouas particularidades que levam a uma espe-cialização das profissões e demonstrou aincapacidade de um povo ser auto-suficienteem relação à satisfação de suas necessida-des, o que faz indispensável o comércio in-ternacional.

A atenção à realidade local é importantee desejável na perspectiva da correta elei-ção de metas e meios, mas não na perspecti-va de um fechamento da economia. Alémdisso, como Richard Whish (2001) salienta,a concorrência pode gerar eficiência dinâmi-ca, pois impulsiona as empresas a inova-rem. Então, a partir da visão de Shumpeter(1957), para quem o desenvolvimento pres-supõe inovação, podemos afirmar que ocomércio internacional, por ampliar aconcorrência, é positivo em relação ao de-senvolvimento, quando embasado naigualdade.

No Brasil, a atividade de normaliza-ção, e em especial de procedimentos rela-cionados à gestão ambiental, é uma tare-fa compartilhada por organismos públicose privados. Entre os quais destacamos oCONMETRO (Conselho Nacional de Metro-logia, Normalização e Qualidade Industri-al), o INMETRO (Instituto Nacional de Me-trologia, Normalização e Qualidade In-dustrial) e a ABNT (Associação Brasilei-ra de Normas Técnicas), entidade priva-da reconhecida como foro nacional únicoem normalização e representante brasi-leira na ISO.

A certificação ambiental no Brasil pode-rá se desenrolar dentro do SBAC (SistemaBrasileiro de Avaliação da Conformidade)

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por uma entidade certificadora reconheci-da pelo INMETRO, ou então ser efetuadapor outra entidade certificadora não inte-grante do sistema, mas que aplicará os mes-mos critérios da norma técnica. Em relaçãoàs certificações pelos critérios ISO série14000 obtidas dentro do SBAC, elaboramosa Tabela I abaixo, que mostra o pequenonúmero de certificações no Brasil.

Enquanto a iniciativa privada, organi-zando-se em regime de empresa, exerce seudireito de atuar na esfera econômica, o Esta-do brasileiro, por força do que estabelecemos artigos 173 e 174 da CR/88, só atuarádiretamente na esfera econômica em situa-ções excepcionais, sendo-lhe reservado opapel principal de exercer uma intervençãoindireta, pela fiscalização, incentivo e pla-nejamento da atividade econômica (BRA-SIL, 2005, p. 131).

Assim, podemos dizer que os papéis dasempresas privadas e do Estado são comple-mentares em relação à materialização dodesenvolvimento. O Estado, que é um agen-te normativo e regulador da atividade eco-nômica, no exercício desse seu papel prin-cipal, atuará para estimular o comportamen-to da iniciativa privada em certa direção etambém para reprimir comportamentos in-desejáveis.

A busca da certificação ambiental pelainiciativa privada pode ser um dos cami-nhos estimulados pelo Estado, pois a ado-ção de um sistema de gestão ambiental e suaprogressiva implementação é uma medidapositiva quando analisamos os impactossobre o meio ambiente em razão do exercí-cio da atividade econômica; um estímuloque se poderá verificar, por exemplo, poruma política do crédito, por uma políticatributária, ou pela possibilidade de con-tratar com os poderes públicos, direcio-nado àquelas empresas que buscarem acertificação.

Um estímulo que precisamos de acentu-ar, pois, como vimos na Tabela I acima, nãoé grande o número de certificados válidosdentro do Sistema Brasileiro de Avalia-ção da Conformidade. Só não podemosnos esquecer de que o objetivo da certifi-cação é “[...] promover a otimização doimpacto ambiental da organização que oadota, não significando nunca que esse im-pacto não exista”. (D’ISEP, 2004, p. 152).Então, essa não pode ser vista como a únicafrente de batalha da política ambiental,mas como um dos seus focos.

Uma característica a destacar em rela-ção às normas ISO série 14000 é que elassão de cumprimento voluntário. Mas suaadoção é importante até mesmo para levarao cumprimento do direito, pois o atendi-mento, pela entidade certificada ou que pre-tende a certificação, da legislação do país éum requisito de política ambiental dentrodo sistema de gestão ambiental, como a nor-ma ISO 14001 (1996, p. 4) prevê em seuitem 4.2, letra c. Sobre essa característica,Clarissa D’Isep (2004, p. 173) diz que anorma ISO é “[...] propulsora e otimizadorade ‘aspectos legais’ dentro de uma orga-nização.”

Como salientamos acima, as bases da po-lítica econômica brasileira se assentam sobreos pilares da economia de mercado, o que sig-nifica que, entre outras características, a titu-laridade do exercício da atividade econômi-ca está com a iniciativa privada, pois é reco-nhecida a liberdade de iniciativa.

Tabela ICertificados ISO 14001 no Brasil

válidos dentro do SBAC

Fonte: Inmetro (www.inmetro.gov.br).

Padrão Normativo Número de Certificados

ISO 14001:1996 609

ISO 14001:2004 8

TOTAL 617

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cas internacionais; o que, como dissemosanteriormente, pode contribuir para o de-senvolvimento, pois faz com que as empre-sas e os Estados queiram melhorar seus de-sempenhos para manterem e ampliaremseus mercados.

O livre comércio faz com que o direito in-ternacional busque, de um lado, o tratamen-to homogêneo de questões relativas ao co-mércio pelos diversos sistemas jurídicos in-ternos dos Estados e, de outro lado, a redu-ção e eliminação de obstáculos criados pe-los Estados ao comércio internacional.

Nessa perspectiva, a Organização Mun-dial do Comércio reconhece que, se foremrespeitados os objetivos fixados no item 2.2do Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Co-mércio e se for mantido o paralelismo com

Pela Tabela II acima, podemos observarque a certificação ambiental é uma práticaque se concentra mais no contexto dos paí-ses mais ricos, em geral do norte. O Brasil,por exemplo, embora detenha o maior nú-mero de certificações da América do Sul, se-gundo dados de 2003, ainda não participado volume total mundial de certificaçõesnuma proporção equivalente à de outrospaíses desenvolvidos, mesmo sendo um dospaíses com uma das maiores diversidadesbiológicas do planeta. Isso nos leva a cogi-tar inclusive que pode haver a falta de reco-nhecimento na legitimidade da proteção aomeio ambiente no contexto social brasileiro.

Existe uma tendência atual de ressaltara liberdade comercial como um importantevalor a fundamentar as relações econômi-

Fonte: Dados extraídos do site da ISO e reproduzidos pelo Inmetro (www.inmetro.gov.br).

4. Certificação ambiental e barreiras à entradaTabela II – Certificados ISO 14001 emitidos até 31/12/2003 no mundo

Continente Certificados ISO 14001 emitidos até 31/12/2003

Países mais representativos

dentro do continente

Número de Certificados do País

até 31/12/2003

% do País em relação ao total do Continente

% do País em relação ao total

no mundo

América do Norte 2.700 EUA 1.645 60,93 4,47

América Central 36 - - - - - - - - - - - 0,10

América do Sul 645 Brasil 350 54,26 0,95

Alemanha 3.380 18,53 9,19

Reino Unido 2.722 14,92 7,40

Espanha 2.064 11,31 5,61

Suécia 2.070 11,35 5,63

Europa 18.243

França 1.092 5,99 2,97

África 309 - - - - - - - - - - - 0,84

Ásia 13.410 Japão 8.123 60,57 22,09

Oceania 1.422 Austrália 1.370 96,34 3,73

Total 36.765 Países mais representativos 22.816 Participação

mundial 62,06

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as normas internacionais, presume-se que oregulamento técnico adotado ou aplicado porum de seus membros, até contestação, nãoconstitui uma barreira não tarifária ao comér-cio internacional. Eis o item 2.2 do acordo:

“2.2 – Os Membros assegurarão queos regulamentos técnicos não sejamelaborados, adotados ou aplicadoscom a finalidade ou o efeito de criarobstáculos técnicos ao comércio inter-nacional. Para este fim, os regulamen-tos técnicos não serão mais restritivosao comércio do que o necessário pararealizar um objetivo legítimo, tendo emconta os riscos que a não realizaçãocriaria. Tais objetivos legítimos são,inter alia: imperativos de segurançanacional; a prevenção de práticas en-ganosas; a proteção da saúde ou se-gurança humana, da saúde ou vidaanimal ou vegetal, ou do meio ambien-te. Ao avaliar tais riscos, os elementospertinentes a serem levados em consi-deração são, inter alia: a informação téc-nica e científica disponível, a tecnologiade processamento conexa ou os usosfinais a que se destinam os produtos.”

Mesmo assim, pela desproporção entrea quantidade de certificados entre paísesricos e pobres, parece adequada a percep-ção de Patrícia Bianchi (2003, p. 269) de quea certificação é um instrumento de conser-vação da hegemonia comercial dos paísesdesenvolvidos. A autora chega a afirmarque “[...] a forte representação dos países‘desenvolvidos’ influencia no resultado dostrabalhos da ISO, colocando em dúvida ocaráter democrático do sistema de padroni-zação.” Nesse sentido, Armindo Teodósio eAndréia de Souza (2001) concebem acertificação pelos critérios ISO 14001 comobarreiras de processo.

Então, a certificação ambiental, seja nomercado interno, seja no mercado interna-cional, poderá servir também como uma bar-reira à entrada, ou seja, um obstáculo à liber-dade de movimentação que os sujeitos de-veriam ter na esfera econômica.

Conforme Posner (1976, p. 59), num sen-tido literal, a expressão barreira à entrada sig-nifica algum obstáculo que precisa de sersuperado por um novo entrante, para adqui-rir uma fatia de determinado mercado, comoo custo de levantar o capital necessário paraestabelecer-se de maneira eficiente, em rela-ção à concorrência.

Uma barreira à entrada pode decorrer doconteúdo de determinadas normas, de ins-tituições ou de práticas que fazem difícil ouimpossível a entrada de algum novo com-petidor no mercado, conforme Whish (2001).O autor apresenta uma classificação dasbarreiras em três espécies: barreiras absolu-tas, como as determinações legais que ge-ram exclusividade, não acessíveis a poten-ciais entrantes, por exemplo, as patentes; van-tagens estratégicas, que colocam determina-dos sujeitos um passo à frente de novosentrantes ou de outros concorrentes e impõema estes um custo que não receberão de volta,caso resolvam sair do mercado; e as práticasexcludentes, como a recusa de contratar.

A partir de sua análise do direito da con-corrência europeu, a questão da existênciade barreiras à entrada é vista por Whish (2001)como um fator importante a se observar nadelimitação do poder de mercado potencialou efetivo de algum sujeito.

Em geral, dependendo do contexto con-creto, uma política de certificação ambientalpoderá erigir uma barreira à entrada sob aforma de vantagem estratégica, sobretudopara as pequenas e médias empresas. Deoutro lado, quando uma empresa com poderde mercado estabelece, como elemento de suapolítica comercial, a certificação ambientalcomo requisito para relacionar-se com ou-tras empresas, ela poderá estabelecer umabarreira à entrada qualificada acima comoprática excludente, que pode, sim, ser anticon-correncial. Um meio para a superação des-ses obstáculos é a adoção de uma políticade estímulo à certificação ambiental daspequenas e médias empresas; outro, o esfor-ço estatal voltado à repressão ao abuso depoder econômico.

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Por outro lado, no plano internacional,nada impede que, sob argumentos legítimos,um mercado de um Estado fique inacessívelpara os produtos e serviços de empresas nãocertificadas. Em conseqüência, esse merca-do poderá ficar inacessível aos produtos eserviços dos países menos desenvolvidos,que têm menor volume de empresas certifi-cadas, convertendo-se, sim, numa barreiracomercial não tarifária. É muito tênue a li-nha divisória entre os objetivos legítimos doitem 2.2 do acordo sobre barreiras técnicasao comércio e o protecionismo.

Necessário investimento pelos paísesem desenvolvimento para caminhar rumoà diminuição da distância entre os hemis-férios em matéria de implementação dacertificação ambiental, também é necessá-ria uma atuação conjunta para impedir oprotecionismo.

5. Conclusões

O desenvolvimento significa uma mudan-ça que acarreta melhorias qualitativas navida dos seres humanos. Entre as diversasformas de entender o que é o desenvolvi-mento, a noção de desenvolvimento sustentá-vel é importante por nos remeter aos efeitosnegativos decorrentes da busca pelo desen-volvimento, entre os quais destacamos oimpacto ambiental. Assim, falar em desen-volvimento sustentável significa discutir for-mas de melhorar a qualidade de vida hu-mana que estejam em harmonia com a ne-cessidade de preservação do meio ambientee com a necessidade de continuidade davida no planeta.

Na implementação do desenvolvimentosustentável, consideramos importante que asescolhas em relação aos meios e metas se-jam fruto do processo democrático, já que asgerações futuras não podem escolher por si,e estejam embasadas num referencial huma-nista.

Há uma crescente preocupação interna-cional com o problema da preservação domeio ambiente e também no âmbito interno

que necessita de um adequado aparelha-mento para dar-lhe efetividade e que depen-de de uma atuação conjunta de governos,empresas e cidadãos.

A ordem jurídico-econômica brasileirabusca compatibilizar economia e meio am-biente e estrutura-se a partir do reconheci-mento de uma tendência liberal, centradanum contexto de liberdade de mercado,acompanhada do reconhecimento do direi-to ao desenvolvimento e da necessidade depreservação do meio ambiente.

Enfatizamos a importância do estímuloestatal no Brasil à certificação ambiental comoum dos meios que permitirá caminhar emdireção ao desenvolvimento sustentável.

Observamos uma quantidade pequenade certificados ISO 14000 emitidos no Bra-sil, o que pode ser resultado da ausência dereconhecimento da legitimidade da prote-ção ambiental no país.

Além disso, observamos que uma políticaeconômica, pública ou privada, de estímulo àcertificação ambiental poderá servir como umabarreira à entrada, ou seja no mercado inter-no ou internacional, ou seja, poderá imporum obstáculo à liberdade de movimentaçãoque os sujeitos deveriam ter na esfera eco-nômica. Dessa forma, afirmamos que ummeio para a superação desses obstáculos éo estímulo à implementação da certificaçãoambiental no âmbito das pequenas e médi-as empresas, estímulo que deve ser acom-panhado do esforço estatal voltado à defesada concorrência.

Via de regra, no âmbito internacional, aadoção de um padrão técnico como o dasnormas ISO série 14000 não constitui umaofensa à liberdade de comércio. No entanto,é muito tênue a linha divisória que separa ouso legítimo do padrão do protecionismoeconômico. Então, é preciso investimento nospaíses em desenvolvimento para caminharrumo à diminuição da distância entre oshemisférios em matéria de implementaçãoda certificação ambiental, também é neces-sária uma atuação política conjunta paraimpedir o protecionismo.

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Marcela Harumi Takahashi Pereira

De acordo com os arts. 458 do Código deProcesso Civil e 26 da Lei de Arbitragem, aredação das sentenças deve obedecer a cer-ta estrutura, consistente no resumo doprocesso (relatório), na resolução justifi-cada de todas as questões de fato e de di-reito (fundamentação) e na declaração ex-plícita do julgamento do pedido (disposi-tivo).

O relatório “deve descrever o pedido comas suas razões e especificações, as defesasapresentadas, as soluções de eventuais in-cidentes do processo e os pontos controver-tidos” (FUX, 2004, p. 790). A fundamenta-ção, por seu turno, deve demonstrar a ido-neidade do dispositivo tanto à luz do direi-to vigente quanto dos fatos provados no pro-cesso. O juiz justifica-se nessa parte da sen-tença, cuja ressonância é intraprocessual.Os motivos “[n]ão fazem coisa julgada” (art.469, I, do CPC), portanto o que neles se hou-ver acertado poderá ser rediscutido em ou-tros processos. O dispositivo, por sua vez, éa conclusão, ao qual “se prendem os efeitosque a decisão vai projetar no mundo exteri-or. É à sua luz que se determinam os limitesde incidência da coisa julgada” (MOREIRA,2004, p. 187).

A sentença estrangeira sem fundamentaçãopode ser homologada?

Marcela Harumi Takahashi Pereira é Dou-toranda e Mestre em Direito Internacional/UERJ. Intercambista na Universidade de Estu-dos Estrangeiros de Tóquio (2003).

Sumário1. Noções iniciais. 2. Direito brasileiro. 3.

Jurisprudência estrangeira. 4. Jurisprudênciabrasileira. 5. Doutrina. 6. Desfundamentaçãoda sentença estrangeira e ordem pública inter-nacional. 7. Conclusão.

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Como se pôde notar, a fundamentação éum dos elementos da sentença (judicial ouarbitral) no Brasil. Na verdade, ela não sóestá prevista na lei ordinária, como, desde1988, na própria Constituição: “todos osjulgamentos dos órgãos do Poder Judici-ário serão públicos, e fundamentadas to-das as decisões, sob pena de nulidade”(art. 93, IX).

Também a Itália, a Espanha, Portugale, segundo Taruffo, a Grécia e alguns paí-ses da América Latina constitucionali-zaram o dever de motivar1. Aliás, aindaque sem previsão constitucional, “[a]sdecisões judiciárias nos países da fa-mília romano-germânica assemelham-se pelo fato de terem de ser todas moti-vadas” (DAVID, 2002, p. 157)2 ou, naverdade, quase todas.

Em Quebec, a única porção do Cana-dá filiada ao sistema romano-germânico, afundamentação judicial somente é requeridaquando há controvérsia (BROCK; BOU-CHARD; CAMERON, 2003, p. 137-154).

Na Espanha, a obrigação de motivarlaudos arbitrais cinge-se “aos casos emque ‘los árbitros decidan la cuestión con sujeci-ón a Derecho’ (Lei no 36/1988, de 5-12-1988,art. 32, no 2)” (MOREIRA, 2004, p. 187). Acontrario sensu, eles não precisam fundamen-tar a decisão por eqüidade.

Na Alemanha, relata Tucci (1987, p. 82-83), não se exige a fundamentação da sen-tença “quando as partes, após o encerramen-to da instrução, mas antes da sentença, de-sistirem da interposição de recurso, excetose a matéria controvertida versar sobre ques-tões de casamento, de interdição, ou for deinteresse de menores”. Havendo desistên-cia, as custas judiciais são reduzidas (SEC5.157-6 – Alemanha, rel. Néri da Silveira, j.em 19.6.96). Outrossim, a fundamentação édesnecessária “nos casos em que ocorrerrevelia, desistência da ação ou reconheci-mento jurídico do pedido” (TUCCI, 1987, p.82-83).

Além da Alemanha, a Bélgica muitasvezes não fundamenta as decisões de pri-

meira instância (GAUDEMET-TALLON,1993, p. 247)3.

Nada obstante, os regimes mais surpre-endentes podem ser encontrados nos orde-namentos do common law4. Nos EstadosUnidos, inexiste norma que determine a fun-damentação das decisões judiciais. Taruffo(1975, p. 368-369, tradução nossa) descrevea realidade estadunidense do seguintemodo:

“Enquanto a motivação é freqüen-te nas cortes superiores, não pareceque se possa falar de uma praxe aná-loga nos órgãos de primeiro grau. Emprimeiro lugar, a motivação está com-pletamente ausente em todas as hipó-teses de trial by jury; nos casos de non-jury trial, a praxe dos procedimentosin equity prevê que o juiz exponha osfindings of fact e as conclusions of lawnos quais se embasa a decisão, mas omesmo não ocorre nos trials at commonlaw, nos quais o juiz pode também pro-nunciar apenas um veredicto imoti-vado, semelhante àquele do júri. Domesmo modo, nas Courts of Appeal apronúncia limita-se freqüentemente adeclarar o apelo affirmed ou reversed.”

Sobre a realidade inglesa, informa-nosDavid (2002, p. 429-430):

“A decisão inglesa, rigorosamen-te falando, está reduzida a um sim-ples dispositivo que dá a conhecer asolução dada, pelo juiz, ao litígio: Xdeve pagar a Y uma determinadasoma, o contrato realizado entre X e Yfoi anulado, a sucessão de X à pessoade Y. Os juízes ingleses não têm demotivar as suas decisões; talvez fosseum atentado à sua dignidade impor-lhes essa obrigação: eles ordenam enão têm de se justificar.”

Na Irlanda, a maioria das decisões de tri-bunais inferiores não é escrita (GILVARRY,2003, p. 317) e, portanto, não tem funda-mentação.

Na Malásia, não se espera que o juiz ex-plique os motivos da decisão alcançada no

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final do processo e, na prática, a funda-mentação somente é preparada quandointerposto o recurso (ABRAHAM; SINGH,2003, p. 427).

Na Inglaterra e em Nova Iorque, a lei dis-pensa os laudos arbitrais de fundamenta-ção (MOTULSKY, 1967, p. 107).

Afora as normas estatais, muitos regula-mentos de cortes arbitrais especializadas emcomércio internacional dispensam a funda-mentação, mediante requerimento das par-tes. Conforme as Regras de Arbitragem daUnited Nations Commission on Internatio-nal Trade Law (UNCITRAL – 1976): “O tri-bunal arbitral dará as razões em que a deci-são se baseia, a não ser que as partes tenhamconcordado que nenhum fundamento devaser explicitado” (Cf. DOLINGER; TIBUR-CIO, 2003, p. 935, tradução nossa). Disposi-tivos com igual redação constam do art. 27das Regras de Arbitragem Internacional daAmerican Arbitration Association (Cf.DOLINGER; TIBURCIO, 2003, p. 1001), doart. 29 das Regras de Processo da Inter-Ame-rican Commercial Arbitration Commission(Cf. DOLINGER; TIBURCIO, 2003, p. 1013)e, com redação semelhante, do item 26.1 dasRegras de Arbitragem da London Court ofInternational Arbitration (Cf. DOLINGER;TIBURCIO, 2003, p. 990).

Os exemplos autorizam a seguinte con-clusão: há grande heterogeneidade no regi-me da fundamentação das sentenças.

Ademais, até quando ela é imposta porlei, esta pode ser – e às vezes é – desres-peitada.

Tanto pela diversidade na disciplina damotivação judicial quanto por haver juízesque não cumprem as normas processuais, oBrasil pode ser instado a reconhecer umasentença estrangeira desmotivada. Refletirsobre essa possibilidade é o objetivo destetrabalho. “O ponto”, assevera Gaudemet-Tallon (1993, p. 247, tradução nossa), “émuito importante, porque nós sabemos que,freqüentemente, as decisões de primeira ins-tância, em particular as decisões belgas ealemãs, não são fundamentadas”.

1. Noções iniciais

Para dizer se a sentença estrangeira podeser reconhecida no Brasil, é convenienteantes fixar algumas noções iniciais: 1) o queé uma “sentença estrangeira”?; 2) o que é o“reconhecimento”?; 3) quando ele é possí-vel? ; 4) o que é a “fundamentação”?

No direito internacional privado, senten-ça estrangeira é toda decisão cuja validadederiva de uma soberania estrangeira e cujoconteúdo, no Brasil, seria próprio de umadecisão judicial. Como evidente na defini-ção, o relevante é a substância do ato, quali-ficando-se como sentença estrangeira, interalia, o divórcio decretado pelo rei da Dina-marca ou os alimentos fixados por uma au-toridade administrativa alienígena5.

O reconhecimento é a permissão para quea sentença estrangeira produza seus efeitostípicos localmente, ou seja, para que trans-borde tais efeitos do foro de origem ao fororeceptor. O reconhecimento não acresce efei-to algum à sentença estrangeira; somentepermite a extensão territorial dos efeitos ori-ginais6. Em conseqüência, se dado país es-trangeiro impusesse a fundamentação sobpena de ineficácia da sentença ou, a fortiori,de inexistência, seria ilógico pretender re-conhecer as sentenças desmotivadas deleoriundas. Sem embargo, até onde sabemosnenhum país comina a inexistência ou aineficácia à falta de motivos da sentença (Cf.TUCCI, 1989, p. 227-228).

No Brasil, o reconhecimento somente épossível mediante a homologação da senten-ça estrangeira, por força do art. 483 do Có-digo de Processo Civil: “A sentença proferi-da por tribunal estrangeiro não terá eficáciano Brasil senão depois de homologada [...]”.Como ensina Chiovenda (1945, p. 73-74), ahomologação é “a verificação solene, porparte da própria autoridade judiciária, daefetiva observância de certos requisitos mí-nimos da legalidade no desenvolvimento doprocesso que se realizou no estrangeiro e docaráter definitivo da sentença que foi profe-rida”. De acordo com os arts. 15 e 17 da Lei

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de Introdução, os requisitos mínimos dahomologação são: competência internacio-nal, citação, trânsito em julgado, exeqüibili-dade, tradução e ordem pública.

A fundamentação, que não está expressa-mente incluída no rol, são as razões escritasno corpo da sentença, como indicamos aoiniciar o artigo. É, portanto, um documento,não se confundindo com o direito dos liti-gantes de conhecerem as razões judiciaisnem com a garantia da legalidade, pela qualtoda decisão do poder público deve basear-se na lei. Vale lembrar que a fundamenta-ção é um requisito de sentenças judiciais earbitrais no Brasil (arts. 458 do Código deProcesso Civil, 26 da Lei de Arbitragem, 93,IX, da Constituição).

Enfim, a sentença estrangeira sem fun-damentação pode ser homologada? Nesteartigo, investigaremos a legislação brasilei-ra, a jurisprudência (nacional e estrangei-ra), a doutrina (nacional e estrangeira) e di-remos qual seria, em nossa opinião, a me-lhor resposta.

Todavia, enunciar que investigaremos se“a sentença estrangeira sem fundamenta-ção pode ser homologada” não oferece se-não uma noção aproximada daquilo queserá feito. Há limites, escolhidos ou não, ànossa pesquisa. Desse modo, optamos pornos restringir ao ordenamento jurídico bra-sileiro atual. Não nos interessará dizer se asentença estrangeira sem fundamentaçãodeveria ser reconhecida em outros países ouno Brasil de antanho. Sempre que nos dedi-carmos ao direito comparado, será com ointuito de obter parâmetros para o examecrítico da realidade brasileira.

Igualmente, escolhemos limitar-nos àmatéria cível. Dizer se a sentença penal es-trangeira sem fundamentação pode ou nãoproduzir eficácia no Brasil é questão comcomplexidades próprias, que não serão dis-cutidas nesta oportunidade. No processocivil, autor e réu têm em jogo interesses as-semelhados. Se se demanda o pagamentode uma dívida de mil reais, a “aposta” é demil reais para ambos. Em conseqüência, as

garantias processuais de um e de outro têmo mesmo peso e a exigência de uma ótimaoportunidade de defesa para aquele que nãotiver razão deve ser contrabalançada com odireito de obter a tutela em tempo hábil deseu adversário. Nessas circunstâncias, se-ria injusto mimar a parte sucumbente comgarantias processuais extravagantes, que,conquanto eliminassem qualquer possibili-dade de erro, acarretassem uma tutela tar-dia ao titular do direito.

No processo penal, a equação é diferen-te. O interesse do réu, direito fundamentalde liberdade, não está no mesmo plano dodireito estatal de punir. A primazia do pri-meiro fica patente no adágio in dubio pro reo.Diante da situação peculiar do acusado,suas garantias devem ser maiores que as doréu no processo civil. Nada justifica que seobtenha celeridade à custa da certeza de nãocondenar um inocente. Como decidiu o Tri-bunal Europeu de Direitos Humanos: “asexigências inerentes ao conceito de ‘audi-ência justa’ não são necessariamente asmesmas em casos concernentes à determi-nação de direitos e obrigações civis e em ca-sos concernentes ao julgamento de uma acu-sação criminal” (FRANÇA, [2005?], tradu-ção nossa).

Quem, ao contrário de nós, examinassea homologabilidade de sentenças penaisdesmotivadas deveria refletir se esses con-trastes interferem na eficácia extraterritori-al seja da reparação civil decorrente de con-denação penal, seja da medida de seguran-ça (art. 9o do CP)7.

A par dos limites eleitos, existem algunsinerentes ao debate. O principal deles é quenão faz sentido reclamar das sentenças es-trangeiras maior fundamentação do que areclamada das locais. Diferentemente doque se dá em relação às sentenças que res-tringem direitos fundamentais, notadamen-te as penais, as sentenças civis vêm sendotidas como suficientemente motivadas noBrasil, qualquer que seja a motivação exis-tente. No que tange às sentenças não restri-tivas de direitos fundamentais, o norte da

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jurisprudência do Supremo Tribunal Federaltem sido “a motivação defeituosa basta”8.Havendo na esfera interna grande liberali-dade com a motivação civil, na internacio-nal a tolerância não pode ser menor: as res-trições impostas pela ordem pública sãomais brandas no plano internacional queno interno.

Logo, é preciso reduzir nosso problemaàs devidas proporções: existem julgadoscíveis anulados pelo Supremo TribunalFederal em decorrência da fundamentaçãoinsuficiente – os que decretam a prisão civilsem a fundamentação devida (cuja homolo-gação, até onde sabemos, nunca foi preten-dida no Brasil), ou mesmo alguns que ver-sam sobre outras matérias “em casos extre-mos”, segundo apurou Grinover (1990-1991, p. 20). Fossem eles estrangeiros, deve-riam ser homologados?

2. Direito brasileiro

O objetivo deste item é apresentar os tex-tos legais pertinentes ao reconhecimento desentenças estrangeiras no Brasil, os quaisincitam argumentos pró e contra a homolo-gação de sentenças estrangeiras desmoti-vadas, geralmente sem fornecer a respos-ta do nosso problema – a ela chegaremosmais tarde9.

Entre os tratados celebrados pelo País,somente o Protocolo de Medidas Cautelaresde Ouro Preto requer textualmente a “ordemfundamentada que determine a medida cau-telar” (grifamos, art. 21, d)10. O motivo dissoé que o protocolo, diferentemente do de LasLeñas, não acolhe o sistema da delibação,estatuindo, no art. 8o, que a absoluta impro-cedência da medida cautelar justifica a recu-sa em cumpri-la. Diante da revisão de fun-do, i.e., revisão do direito aplicado e dos fa-tos apurados no exterior, a fundamentaçãoadquire valor operacional, pois comumenteé ela, não o dispositivo, que denuncia a im-procedência manifesta da decisão.

No mais, os tratados celebrados peloPaís contêm requisitos semelhantes aos da

nossa lei interna11, que, como vimos, estãoprevistos nos arts. 15 e 17 da Lei de Introdu-ção do Código Civil, sem menção expressaà fundamentação do julgado estrangeiro. Nagrande maioria dos casos, então, caberá aointérprete dizer se ela seria necessária ounão.

Nessa tarefa, será útil destacar dois dosrequisitos mencionados na lei: a compatibi-lidade com a ordem pública brasileira e asatisfação das formalidades necessárias, àluz da lex fori, para que a sentença estran-geira seja exeqüível. Cada um deles podeser invocado para embasar respostas dife-rentes à pergunta: pode ser homologada asentença estrangeira sem fundamentação?À vista da prevalência da lex fori, a senten-ça sem fundamentação deveria valer tantoquanto o dissesse a lei do lugar onde hou-vesse sido prolatada e seria descabido in-vocar o art. 458, II, do Código de ProcessoCivil ou o art. 93, IX, da Constituição daRepública Federativa do Brasil para repu-diá-la.

Mas a regra da lex fori tem uma exceção:a ordem pública do Brasil. Em particular,poder-se-ia lembrar que a fundamentaçãodas decisões judiciais é uma imposição cons-titucional (art. 93, IX, CR). Ela preserva adimensão democrática do exercício do po-der judiciário e é garantia das garantias pro-cessuais. Será, assim, que o papel constitu-cional da motivação impede a homologa-ção da sentença alienígena sem funda-mentação, sob pena de afronta à nossaordem pública? Na verdade, esse é o cer-ne do problema.

Ainda que se conclua pela negativa, serápreciso considerar se a falta de motivos com-promete a inteligência da sentença. Semfiscalizar as razões judiciais, é possívelverificar se a sentença estrangeira respei-ta os requisitos legais e, em especial, aordem pública? Ou será que o juízo deli-batório tornar-se-ia inviável na hipótese?Vejamos como essas questões vêm sendorespondidas na jurisprudência estran-geira.

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3. Jurisprudência estrangeira

A possibilidade de reconhecer sentençasestrangeiras desmotivadas vem sendo dis-cutida em vários países do mundo. Na Fran-ça, “a ausência de motivação da decisãoestrangeira não é em si um obstáculo ao exe-quatur” (LOUSSOUARN; BOUREL, 1999, p.598, tradução nossa). O mesmo vale para assentenças arbitrais (BATIFFOL; LAGARDE,1983, p. 582). Na Bélgica, a Corte de Cassa-ção requer que a motivação da sentença es-trangeira permita a conferência do requisi-to da ordem pública e, na Grécia, é adotadauma “solução análoga à solução francesa”(BATIFFOL; LAGARDE, 1983, p. 581, tra-dução nossa). Na Suíça, “[a] ausência demotivos […] foi muitas vezes invocada emoposição à execução de decisões estrangei-ras, mas em vão” (BUCHER; BONOMI, 2004,p. 76, tradução nossa). De fato, o TribunalFederal já decidiu que a falta de motivos dasentença estrangeira não agride a ordempública12. Tampouco na Alemanha a faltade motivos em si justifica a recusa da sen-tença estrangeira (LOWENFELD, 1994, p.183). Na Romênia, a falta de motivos somen-te impede o reconhecimento quando veda-da pelo ordenamento do Estado de origem(ZILBERSTEIN; BACANU apud MOREIRA,1989, p. 264, tradução nossa). Na Itália(2003, p. 491-496, tradução nossa):

“Durante a vigência do art. 797 doCódigo de Processo Civil, era pacíficoque eventuais vícios e a própria faltade motivação não fossem de impedira declaração de eficácia da sentençaestrangeira (Cass., 22 de março de2000, n. 3365; 13 de março de 1993, n.3029). Essa orientação deve ser consi-derada firme mesmo na vigência danova disciplina, introduzida pelosarts. 64 e ss. da Lei 218/95, que, quan-to ao ponto de vista considerado, nãoapresenta novidade de relevo em re-lação àquela ab-rogada.”

Na Itália e na França, onde a jurispru-dência é especialmente bem documentada,

já foram considerados variados ângulos doproblema das sentenças estrangeiras des-motivadas. Em resumo, há consenso em quea fundamentação seja alheia à ordem públi-ca internacional. Nas palavras da Corte deCassação italiana, “[c]omo a motivação dasentença estrangeira não está compreendi-da entre os requisitos postos pelo art. 797do Código de Processo Civil, a falta da moti-vação mesma não constitui um motivo obs-tativo da delibação da aludida sentença”(ITÁLIA, 1994, p. 124)13. Dito de outra for-ma, a Itália deve abster-se de censurar a des-motivação da sentença estrangeira, pois ojuízo de delibação adstringe-se aos requisi-tos especificamente listados na lei, entre osquais não está incluída a fundamentação.

Quanto à relação entre fundamentaçãoe ordem pública, a decisão abaixo é repre-sentativa da jurisprudência reiterada daCorte de Cassação italiana (ITÁLIA, 2001,p. 393, tradução nossa)14:

“pode ser declarada eficaz na Repú-blica uma sentença estrangeira, mes-mo se desprovida de motivação [...],porque, quando o contraditório tenhasido assegurado e a sentença tenhatransitado em julgado [...], é de acredi-tar-se que a obrigação de motivaçãodos provimentos jurisdicionais nãose inclua entre os princípios invio-láveis fixados no nosso sistema nor-mativo para garantia do direito dedefesa.”

De mais a mais, a Corte de Cassaçãoitaliana já rechaçou o parecer segundo oqual o art. 111, § 1o, da Constituição italiana– “[t]odos os provimentos jurisdicionais de-vem ser motivados” (traduzimos) – obsta-ria o reconhecimento de sentenças desmoti-vadas. Essa norma, decidiu o tribunal, “pre-vê um comando organizador da jurisdiçãoque se refere exclusivamente ao ordenamen-to interno” (ITÁLIA, 2001, p. 393)15.

Bem interpretada, a jurisprudência fran-cesa também considera a desmotivação dasentença compatível com a ordem pública.Textualmente, algumas decisões sugerem

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coisa diversa (FRANÇA, 1992b, p. 516-527,tradução nossa)16:

“É contrário à concepção francesade ordem pública internacional o re-conhecimento de uma decisão estran-geira não motivada quando não se-jam produzidos documentos de natu-reza a servir de equivalentes à moti-vação faltante.”

Ao pé da letra, a sentença estrangeiradesmotivada seria contrária à ordem públi-ca francesa, a não ser que fossem apresenta-dos equivalentes da motivação faltante.

Entretanto as palavras enganam e, porisso, a jurisprudência francesa mereceu aaguda crítica de Mayer e Heuzé (2001, p.260, tradução nossa):

“Essa posição carece singularmen-te de lógica. Se a exigência de motiva-ção fosse verdadeiramente de ordempública, um elemento extrínseco aojulgamento não motivado não seriaapto a salvá-lo. A verdade é que não éordem pública, e que a recusa do exe-quatur é unicamente fundada na im-possibilidade para o demandante decomprovar a reunião das condiçõesde regularidade.”

Assim, a exigência de uma motivaçãonão é por si mesma de ordem pública naFrança (ANCEL; LEQUETTE, 2001, p. 419)17.O ponto crucial é a comprovação dos requi-sitos do reconhecimento, a qual pode ser efe-tuada não só pela exibição da fundamenta-ção da decisão, que às vezes não existe, comotambém pela exibição do contrato cujoinadimplemento tenha ensejado a condena-ção estrangeira, certidão da citação etc.18

Aliás, é aí que reside a divergência entrefranceses e italianos: diferentemente destesúltimos, os franceses enfatizam que, na au-sência de fundamentação – texto escrito nocorpo da sentença estatal19 –, deve haver ele-mentos que lhe façam as vezes, sob pena deinviabilizar-se o controle da sentença estran-geira. A jurisprudência francesa pressupõea impossibilidade de controlar os requisi-tos do reconhecimento quando inexista a

fundamentação ou seu sucedâneo (Cf.KESSEDJIAN, 1992, p. 522).

Na Itália (1980, tradução nossa), ao con-trário, a Corte de Cassação considera que afundamentação a princípio não é necessá-ria para controlar os requisitos do reconhe-cimento, porque20:

“segundo a constante jurisprudênciadeste Supremo Colégio, em tema deeficácia das sentenças estrangeiras noEstado, o ordenamento jurídico itali-ano recepciona apenas a parte dispo-sitiva da sentença delibanda, na qualestá contido o decisum [...]. Nessa pers-pectiva, então, foi estatuído que a con-formidade da sentença estrangeiracom a ordem pública interna deve sercontrolada com referência às disposi-ções que consubstanciam o decisum dasentença mesma, e não também à mo-tivação [...]”.

A causa da diferença parece ser o amplocontrole da ordem pública processual naFrança, onde a regra geral é a seguinte: “[a]regularidade do desenvolvimento do pro-cesso perante a jurisdição estrangeira apre-cia-se unicamente em relação à ordem pú-blica internacional e ao respeito dos direitosde defesa” (LOUSSOUARN; BOUREL, 1999,p. 413, grifo e tradução nossos). Na Itália,por contraste, a Corte Constitucional enten-deu não serem devidas “intrincadas inves-tigações sobre todo o desenvolvimento doprocesso a quo”, porém a fiscalização do res-peito aos “elementos essenciais da ação e dadefesa” (VIGORITI, 1988, p. 75, grifo nosso)21.Destarte, estaria incluído na cláusula geralda ordem pública “[a]penas o princípio docontraditório e não outras garantias proces-suais, ainda que constitucionalmente pre-vistas” (VIGORITI, 1988, p. 83).

Essa maior liberalidade italiana ultra-passa as palavras e produz significativasrepercussões na prática, uma delas a diver-sidade na disciplina da desfundamentação.Mas há outras, entre as quais esta ofereceuma explicação paralela sobre por que afundamentação é exigida na França, não na

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Itália: a legislação alemã (Cf. KARST, 2003,p. 250-251), a brasileira (art. 319 do CPC), aestadunidense (Cf. ITÁLIA, 2001) e outrasconsagram a presunção de veracidade dosfatos alegados pelo autor em caso de reve-lia, os quais, embora devam ser congruen-tes com o pedido, são reputados verdadei-ros independentemente de qualquer ativi-dade probatória. A lei italiana e a francesa,diversamente, não prescrevem a confissãoficta na mesma hipótese. Mais liberais, ositalianos reconhecem a sentença proferidaà revelia, ainda que inexistam provas apoi-ando as alegações do autor, enquanto osfranceses a recusam.

Como destacam Campeis e De Pauli(1996, p. 465-466), com estribo na jurispru-dência, não contrasta com a ordem públicaitaliana que os fatos afirmados pelo deman-dante tenham sido considerados verdadei-ros no exterior, em decorrência da mera re-velia do réu22. A Corte de Cassação france-sa, por sua vez, tem rejeitado decisões ale-mãs que, revel o réu, julgam procedente ademanda com base na presunção de veraci-dade das alegações autorais. Na perspecti-va francesa, seria necessário que o juiz es-trangeiro insistisse na instrução da causa ebuscasse outros elementos de convicção(FRANÇA, 1981, p. 116; 2002, p. 354-361;2004a; 2004b)23.

O fato de a França, ao revés da Itália, fis-calizar até as provas produzidas no exteri-or ajuda a explicar por que a fundamenta-ção (ou seu equivalente) tem sido lá consi-derada imprescindível para o controle daordem pública, notadamente a processual.Sem o registro das fontes de convencimentodo juiz estrangeiro, é difícil averiguar se arevelia do réu foi considerada uma confis-são, em desconformidade com a ordem pú-blica francesa, ou não. Por isso, Kessedjian(1992, p. 523) opinou mesmo que a únicacircunstância em que a fundamentação ouseu sucedâneo se faz realmente indispen-sável é na verificação das provas admitidasno juízo estrangeiro24. Igualmente, Regan(1981, p. 181) parece considerar a exigência

de fundamentação um consectário do con-trole das provas produzidas no exterior.

Na Itália, contudo, dispensa-se o examedas provas admitidas pelo juiz estrangeiroe, de modo geral, é bastante restrito o âm-bito da ordem pública processual. Em con-seqüência, prevalece o entendimento deque o dispositivo é, em regra, o único ob-jeto da delibação. Pouco importa a funda-mentação25.

Em suma, a jurisprudência italiana émais aberta aos valores internacionais doque a francesa. Na Itália, o controle da or-dem pública restringe-se ao mínimo, o quepermite a dispensa, em regra, da fundamen-tação. Na França, realiza-se uma fiscaliza-ção mais abrangente da regularidade doprocesso na origem, tornando necessário oregistro escrito das razões judiciais ou umdocumento equivalente que descreva o iterdo processo.

Uma pergunta importante é: o Brasil de-veria seguir uma linha semelhante à da Itá-lia ou à da França? Deveria ser internacio-nalista ou nacionalista?

Sem dúvida, o ordenamento brasileiroguarda maior afinidade com o italiano. Bas-ta confrontar os requisitos do reconhecimen-to brasileiros e os italianos para verificar asimilitude entre eles:

“Art. 15 [da Lei de Introdução ao Có-digo Civil no Brasil]. Será executadano Brasil a sentença proferida no es-trangeiro, que reúna os seguintes re-quisitos:a) haver sido proferida por juiz com-petente;b) terem sido as partes citadas ou ha-ver-se legalmente verificado a revelia;c) ter passado em julgado e estar revesti-da das formalidades necessárias paraa execução no lugar em que foi profe-rida; [...].” [Grifamos.]“Art. 17. As [...] sentenças de outropaís [...] não terão eficácia no Brasil,quando ofenderem a soberania naci-onal, a ordem pública e os bons costu-mes.” [Grifamos.]

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“Art. 64 [da Lei 218/95 na Itália]. Reco-nhecimento de sentenças estrangeiras1. A sentença estrangeira é reconheci-da na Itália sem que seja necessário orecurso a qualquer procedimentoquando:a) o juiz que a houver pronunciadopudesse conhecer da causa segundoos princípios sobre a competência ju-risdicional próprios do ordenamentoitaliano;b) o introdutório do processo tenhasido levado ao conhecimento do réu, emconformidade com o previsto na lei dolugar onde correu o processo e nãotenham sido violados os direitos es-senciais da defesa;c) as partes tenham sido representa-das em juízo de acordo com a lei dolugar onde correu o processo ou a con-tumácia tenha sido declarada em con-formidade com tal lei;d) ela tenha transitado em julgado se-gundo a lei do lugar em que foi pro-nunciada; [...]g) as suas disposições não produzamefeitos contrários à ordem pública.”[Grifamos e traduzimos.]

Na França, a situação é outra. Não há leisobre os requisitos do reconhecimento e ajurisprudência, como vimos, tem-nos exigi-do sem grande condescendência. Embora arevisão de fundo do julgado estrangeiro te-nha sido abolida pelo Acórdão Munzer26, oatual controle da regularidade internacio-nal das sentenças continua mais rigorosodo que a mera delibação, realizada pelo Bra-sil e pela Itália. Há duas peculiaridades nosistema francês: 1) “[a] lei aplicada [pelo juizestrangeiro] deve ser aquela que é competen-te segundo as regras francesas de direito inter-nacional privado” (DERRUPPÉ, 1988, p. 128,tradução nossa) – o que não interessa exa-minar agora –; 2) a ordem pública processu-al assume uma dimensão dilatada.

A razão dessa dilatação é a tradição fran-cesa e a ausência de texto legal que aponteindividualmente os requisitos da ordem

pública processual. “Historicamente […] odireito francês tem sido hostil ao reconheci-mento de sentenças estrangeiras”, sendoque “[a] prática francesa atual ainda refletealguma medida de, aparentemente naciona-lístico, desdém das sentenças estrangeiras”(REGAN, 1981, p. 152, tradução nossa). Poroutro lado, se houvesse lei que especificas-se serem requisitos a citação, a competênciainternacional e a oportunidade efetiva dedefesa, como nos sistemas da delibação emgeral e, em particular, no Regulamento 44/2001 da União Européia (art. 34), então atradição francesa talvez fosse superada.Tanto assim que a maioria dos doutrinado-res locais rejeita a possibilidade de a Françacontrolar a ordem pública processual, noâmbito comunitário, com a mesma larguezacom que o faz internamente, restringindo ocontrole da ordem pública processual aosrequisitos precisados na legislação comu-nitária (Cf. GAUDEMET-TALLON, 1993, p.257-258)27. Mas falta lei interna, e os france-ses continuam nacionalistas.

Não bastasse nossa tradição jurídicaassemelhar-se mais à italiana, há outro ar-gumento para nos mantermos longe dasidéias dos tribunais franceses na controvér-sia. É que elas são rechaçadas por parte daprópria doutrina local. Veja-se, a propósito,a avaliação de Kessedjian (1992, p. 527, tra-dução nossa) sobre a concepção francesa daordem pública processual28:

“nos parece lamentável multiplicar osobstáculos contra os efeitos na Fran-ça de decisões estrangeiras [...]. Essaatitude incita inegavelmente o réu àpassividade e ao desprezo dos pro-cessos intentados no estrangeiro, sa-bendo que retardará desse modo ain-da mais o dia quando deverá final-mente pagar.”

Por último, a principal razão de os fran-ceses insistirem na fundamentação dos jul-gados estrangeiros parece ser o repúdio aossistemas processuais que prevêem a confis-são ficta em caso de revelia, com o qual nãopodemos compartilhar porque nós mesmos

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somos um desses sistemas. Seria incoerentebuscarmos inspiração em uma jurisprudên-cia que exige a fundamentação justamentepara facilitar a identificação e a recusa desentenças que, como muitas das nossas,basearam-se na presunção de veracidadedos fatos alegados pelo autor contra o réurevel.

Em nossa opinião, o Brasil deve abrir-seaos valores estrangeiros e seguir uma linhasemelhante à da jurisprudência italiana. Nopróximo item —“Jurisprudência brasilei-ra”—, ficará evidente que, em larga medida,isso já está acontecendo.

4. Jurisprudência brasileira

Enquanto era competente para homolo-gar sentenças estrangeiras, o Supremo Tri-bunal Federal decidiu várias vezes se a fal-ta de fundamentação seria (ou não) um óbi-ce ao reconhecimento. Neste tópico, essasdecisões serão examinadas no conjunto.Vale notar que, embora o Supremo TribunalFederal não mais seja competente para ho-mologar sentenças estrangeiras (art. 105, I,i, CR), sua jurisprudência na matéria per-manece um referencial importante, pois oSuperior Tribunal de Justiça ainda não teveoportunidade de debater a matéria29.

Até a década de 80, a jurisprudência doSupremo Tribunal Federal oscilou. No pri-meiro caso de que temos notícia, em 1974, afalta de fundamentação da sentença estran-geira não sensibilizou os julgadores, que sódeixaram de homologá-la em face da ausên-cia de citação e de competência internacio-nal (SE 2.114 – Estados Unidos, rel. Rodri-gues Alckmin, Plenário, j. em 04.04.74 – RTJ87/384). Em 1980, o presidente Neder ne-gou homologação a uma sentença estran-geira sem fundamentação (SE 2.521 – Ale-manha, pres. Antônio Neder, decisão mo-nocrática, j. em 12.08.80 – RTJ 95/3430), maslogo depois, interposto agravo regimental,reconsiderou, entendendo que ela poderiaser homologada desde que conforme a lexfori (Ag. Reg. na SE 2.521 – Alemanha, pres.

Antônio Neder, decisão monocrática, j. em07.11.8031). Após, seguiram-se várias senten-ças estrangeiras repudiadas, inter alia, porfaltar-lhes a fundamentação (SE 2.766 – Rei-no Unido, rel. Oscar Corrêa, Plenário, j. em01.07.8332; SE 3.262 – Estados Unidos, rel.Djaci Falcão, Plenário, j. em 03.09.86 – RTJ119/59733; SE 3.977 – França, rel. FranciscoRezek, Plenário, j. em 01.07.8834; SE 3.976 –França, rel. Paulo Brossard, Plenário, j. em14.06.8935).

Para rejeitar as sentenças desmotivadas,argumentava-se ora que seriam ofensivas auma ordem pública de contornos nebulo-sos, abrangente tanto da ordem pública in-terna quanto da internacional, ora que seri-am ofensivas à Constituição ou à ordempública em sentido próprio, ora ainda queinviabilizariam o juízo delibatório. Essasconsiderações serão rebatidas no próximotópico – “Doutrina”.

Nada obstante, na década de 90 a juris-prudência do Supremo Tribunal Federalsuperou as oscilações iniciais e firmou-seno sentido de que a sentença estrangeira nãodeixa de ser homologável porque carente defundamentação. Desde 1992, todas as sen-tenças cuja falta de motivação foi questio-nada terminaram, apesar disso, homologa-das e, desde dezembro de 1993, por unani-midade de votos36.

As razões da jurisprudência, contudo,não são cristalinas. Às vezes, o SupremoTribunal Federal teceu considerações casu-ísticas para conceder a homologação à sen-tença desmotivada (v.g., SE 3.397 – ReinoUnido, rel. Francisco Rezek, Plenário, j. em11.11.93 – RTJ 155/10337; SE 3.897 – ReinoUnido, rel. Néri da Silveira, Plenário, j. em09.03.9538). Mas a tese favorita foi esta: deveser homologada a sentença estrangeira imo-tivada, desde que a fundamentação não con-figure formalidade necessária à execução naorigem39 (Cf. SE 2.114 – Estados Unidos, rel.Rodrigues Alckmin, Plenário, j. em 04.04.7440;Ag. Reg. na SE 2.521 – Alemanha, pres.Antônio Neder, decisão monocrática, j. em07.11.80; SE 4.469 – Reino Unido, rel. Marco

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Aurélio, Plenário, j. em 10.12.9341; SE 5.157– Alemanha, rel. Néri da Silveira, Plenário,j. em 19.06.9642; SE 5.720 – Áustria, rel. Mar-co Aurélio, Plenário, j. em 22.10.9843; SE 5.661– Reino Unido, rel. Marco Aurélio, Plenário,j. em 19.05.99 – RTJ 175/10444). Esta ementaé representativa: “A sentença estrangeiradeve estar revestida das formalidades im-postas pela legislação do país em que pro-latada. Descabe cogitar da estrutura de talpeça considerados o Código de ProcessoCivil e a Constituição nacionais” (SE 4.590– Estados Unidos, rel. Marco Aurélio, Ple-nário, j. em 05.06.92 – RTJ 142/428).

Comparando a jurisprudência brasilei-ra com a francesa e a italiana, notaremosque todas consideram que a fundamenta-ção, em si, não é uma exigência da ordempública. Todavia, a jurisprudência brasilei-ra e, certamente, a italiana são mais liberaisna medida em que, de ordinário, conside-ram a fundamentação desnecessária ao juí-zo de delibação. A francesa, ao contrário,considera sempre necessária a fundamen-tação ou seu substituto, pois, de outro modo,seria inviável controlar o respeito à ordempública local, particularmente à ordem pú-blica processual no que tange às provas pro-duzidas no exterior. A causa da diversida-de de regimes, em nossa opinião, é a con-cepção francesa da ordem pública proces-sual, que é excessivamente ampla, malgra-do a crítica de alguns estudiosos locais.

Concluída a análise da jurisprudência,o próximo tópico será dedicado às teses dou-trinárias acerca das sentenças estrangeirasdesmotivadas.

5. Doutrina

O nosso problema ainda não foi consi-derado detidamente pela doutrina brasilei-ra. Barbosa Moreira (1994, p. 159) e Araújo(2003, p. 278) fazem-lhe simples alusão,sem assumirem uma posição inequívoca.Rechsteiner (1985, p. 162) é dúbio45. Ape-nas Dolinger (2003) e Aragão (1988) exami-nam-no com alguma profundidade. Por isso,

a doutrina estrangeira merecerá especialatenção. Em particular, a relativa similari-dade entre o ordenamento brasileiro e o ita-liano no que nos interessa justifica anali-sarmos as razões convincentes com que, naItália, tem-se pugnado pelo reconhecimen-to de sentenças desmotivadas46.

Até o momento, os autores que sustenta-ram a não-homologabilidade da sentençadesmotivada trataram do ponto superficial-mente. A opinião de Ernane Fidélis (SANTOS,1986, p. 323, grifo nosso), por exemplo, estátoda contida neste parágrafo:

“A inteligência da sentença podeser discutida para se chegar às con-clusões referentes à soberania nacio-nal, ordem pública e bons costumes.Daí ser de perfeito entendimento jurí-dico a decisão que nega a homologa-ção, quando a sentença estrangeiranão estiver devidamente fundamen-tada, pois os fundamentos são essenciaisà observância dos preceitos de interessepúblico nacional.”

Guimarães (2002, p. 147-148) e Tucci(1987, p. 119) invocam a primeira decisãomonocrática na Sentença Estrangeira 2.521(pres. Antônio Neder, decisão monocrática,j. em 12.08.80 – RTJ 95/34) – posteriormentereconsiderada – para negar que a sentençadesmotivada seja homologável. Entre as ra-zões – inicialmente – usadas pelo ministroNeder no precedente, uma é ratificada porambos os autores: nas palavras de Tucci(1987, p. 119), “se a nossa Suprema Corteestá impedida de reconhecer os efeitos deuma decisão que não teria validade se tives-se sido proferida pela jurisdição brasileira,‘não é homologável a sentença estrangeiradesmotivada’”47.

No entanto, a doutrina majoritária cer-tamente defende a homologabilidade da sen-tença desmotivada. Magnani (1959, p. 729,tradução nossa), quanto a isso, é sintético:“[p]odem [...] ser delibadas as sentenças es-trangeiras não motivadas, se o ordenamen-to de origem não reclama a motivação”.Igualmente breve, embora não tão liberal, é

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a manifestação de Derruppé (1988, p. 128,tradução nossa): “a ausência de motivaçãoda sentença não é necessariamente contrá-ria à ordem pública”. No mesmo sentido, ecom base na jurisprudência francesa, Batiffole Lagarde (1983, p. 581, tradução nossa)ponderam: “A ausência de motivos não pode,‘por ela mesma’, criar obstáculo ao exequa-tur. O que importa é que o juiz francês possaverificar, pelas provas produzidas, que adecisão não seja contrária à ordem públicae que as outras condições do exequatur se-jam satisfeitas”. Por fim, Campeis e De Pauli(1996, p. 466, tradução nossa) entendem queausência de motivação é “abstratamentenão contrastante com a ordem pública”,embora possa impedir, no caso concreto, areconstrução do iter procedimental e lógicoda decisão, inviabilizando o controle dosrequisitos do reconhecimento, ao menos nahipótese de reconhecimento de sentença queponha fim ao matrimônio. Um exemplo des-sa situação é o dos danos punitivos, supra-citado na nota 25.

Em seguida, iremos sintetizar os princi-pais argumentos pró-reconhecimento dasentença estrangeira desmotivada, os quaissão acertadamente defendidos – com maiorou menor veemência – pela grande maioriada doutrina.

Como lembrado por Mattirolo (1906),Chiovenda (1965, p. 933), Mortara ([200-?],p. 47)48, Dolinger (1985, p. 869)49 e Magnani(1959, p. 729), a sentença estrangeira deveatender à lei processual do foro onde prola-tada, descabendo cogitar de sua regulari-dade formal à luz do ordenamento vigenteno Estado receptor50. Para aquele primeiroautor, seria realmente absurdo negar “o exe-quatur a uma decisão estrangeira, somenteporque se apresentasse elaborada em con-formidade com a lei que o magistrado aosentenciar deveria observar” (MATTIROLO,1906, p. 970, tradução nossa). Isso é assimporque a regra geral é a territorialidade dodireito processual ou, dito de outro modo, alex fori (VITTA; MOSCONI, 1995, p. 65, tra-dução nossa):

“O princípio da territorialidade do di-reito processual civil é acolhido ondequer que seja, com base na considera-ção de que a atividade processualderiva da soberania do Estado, o qualnão pode admitir que os seus tribunaisexercitem a própria jurisdição recorren-do a normas processuais estrangeiras.”

Entretanto, o princípio sofre uma impor-tante exceção: a ordem pública internacio-nal processual, que obsta o reconhecimentoda sentença estrangeira produzida ao arre-pio das garantias da defesa. Daí a dúvida: afundamentação seria um dos componentesda ordem pública processual?

Chiovenda (1965, p. 933) e Morelli (1953,p. 338-339)51 responderam negativamente,porque a lógica da delibação implicaria cir-cunscrever ao essencial o controle dos di-reitos de defesa (nessa medida, suas liçõespermanecem atuais). No mesmo sentido,Dolinger (1985, p. 869-870, tradução nossa)exclui a fundamentação da sentença estran-geira do âmbito da ordem pública, com es-tas palavras:

“Parece bastante claro ter a Lei deIntrodução indicado que o único as-pecto de uma sentença estrangeira po-tencialmente contrário à ordem públi-ca brasileira é a falta de citação do de-mandado ou um processo estrangei-ro que lhe tenha tornado impossívelapresentar sua defesa.”

Também Kerameus (1997, p. 353, tradu-ção nossa), sem tratar especificamente dafundamentação, prega a tolerância aos sis-temas processuais estrangeiros:

“Projetar as regras processuais dopróprio tribunal receptor sobre as sen-tenças estrangeiras que busquem re-conhecimento, de modo que elas sir-vam como standards quase gerais deprocesso justo, seria promover umaexpansão irrazoável do devido domí-nio da lex fori e seria quase um impe-rialismo processual doméstico.”

Mas, ainda que a desmotivação possaser apreciada à luz da lex fori, resta uma

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incerteza: e se a própria lex fori impuser a fun-damentação e tiver sido infringida? A ques-tão foi primeiramente posta por Mattirolo(1906)52. A hipótese é improvável, já que nor-malmente os juízes conhecem bem as leisprocessuais de seu país, contudo é possí-vel. Dever-se-á, então, ter em conta a sançãoque a lei estrangeira comina para o defeitoprocessual. Até onde sabemos, todas as le-gislações que preceituam as razões escritasreputam nula a sentença desmotivada e,sem embargo, tem-na como existente e efi-caz53. Em conseqüência, a princípio nadaobsta sua homologação alhures. A exceçãoserá se a sentença for anulada no foro emis-sor. Mas aí o problema não será a desfunda-mentação, mas a insubsistência da sentençana origem, o que, em qualquer caso, obsta ahomologação e, homologada a sentença, põefim à sua eficácia, mesmo a extraterritorial.

Em poucas palavras, a falta do compo-nente fundamentação na estrutura da sen-tença estrangeira não obsta o reconhecimen-to desta, ainda quando a lei processual dopaís emissor, como a nossa, erija a funda-mentação em requisito de validade da sen-tença local54.

Muitos estudiosos discutem, ainda, se afundamentação enquanto documento serianecessária para o controle dos requisitos doreconhecimento – ordem pública, citação etc.A respeito, há certo dissenso doutrinário.Mattirolo (1906, p. 971), por exemplo, dizque a fundamentação é despicienda, por-que o dispositivo é que merece controle e,além disso, há outros documentos que po-dem suprir a falta de motivos – ponto final.Aragão (1988, p. 209), por sua vez, ressalvaque, para a sentença ser reconhecida, a des-motivação não pode “dificultar” o exameda citação, competência etc. O mais sensatoparece ser Morelli (1953, p. 338-340): há hi-póteses em que o controle da ordem públicapressupõe o conhecimento das razões quelevaram o juiz a decidir – como na condena-ção a pagar dinheiro. Se em uma delas fal-tar a fundamentação, pode-se recorrer aosdemais atos do processo ou, acrescentamos

nós, aos esclarecimentos das partes. Se, ain-da assim, a dúvida sobre o respeito à ordempública mantiver-se insuperável, então asentença estrangeira não poderá ser reco-nhecida55. Realmente, nosso ordenamento,como o italiano, repudia o cheque em bran-co: se é necessário o controle de todas assentenças estrangeiras para que produzamefeitos localmente, é evidentemente neces-sário que tais sentenças sejam ao menospassíveis de controle.

Embora já tenhamos apresentado nossoentendimento acerca do reconhecimento desentenças desmotivadas, em seguida iremosdedicar mais atenção a um aspecto que vemsendo negligenciado na doutrina: por que afundamentação, embora seja uma exigênciaconstitucional no Brasil, resta alheia à nos-sa ordem pública?

6. Desfundamentação da sentençaestrangeira e ordem pública

internacional

Tradicionalmente, a motivação esteveprevista na legislação infraconstitucional efoi um instrumento da operacionalidade doprocesso, com estas funções: facilitar a in-terposição de recurso pelas partes e a revi-são da decisão pelo tribunal superior, esta-belecer precedentes para os juízes inferio-res (TARUFFO, 1988, p. 40-41), bem como,em alguns casos, tornar claro o alcance dodispositivo. A conveniência da fundamen-tação na impugnação do recurso, esclareça-se, não a torna uma garantia fundamental,inter alia porque “[n]ão há, no ordenamentojurídico-constitucional brasileiro, a garan-tia constitucional do duplo grau de jurisdi-ção” (Ag. Reg. no AI 513044 – São Paulo,rel. Carlos Velloso, Segunda Turma, j. em22.02.05)56.

Dessa forma, a obrigação de motivar se-ria uma norma processual como outra qual-quer e, portanto, sujeita à lex fori. É assenteque os juízes não devem obedecer senão àsleis processuais de seus países e que os pa-íses, por sua vez, não têm interesse em co-

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brar a aplicação de suas leis processuais dosjuízes estrangeiros57. Se a lei de origem dasentença dispensa a fundamentação, pou-co importa a sua ausência.

Mas, a par da dimensão tradicional ouendoprocessual, desde 1988 pode-se indi-car, com propriedade, uma dimensão cons-titucional da fundamentação, na qual rele-variam suas funções como garantia políticae processual58. Em seguida, mostraremos quea simples inclusão da obrigação de moti-var no texto constitucional não faz delauma imposição da ordem pública brasi-leira e, após, que tampouco o faz sua con-figuração como garantia política ou pro-cessual.

À luz do art. 4o do Código Bustamante59

(1928) – “os preceitos constitucionais sãode ordem pública internacional” –, a ausên-cia de fundamentação da sentença estran-geira conduziria à não-homologação. Há,contudo, três objeções à idéia de que “todasas disposições formalmente integradas àConstituição brasileira são tidas como deordem pública internacional”60 (grifamos).

A primeira é: há normas que estão naConstituição, mas são apenas formalmenteconstitucionais e não consubstanciam va-lores-base de nosso País, como a que admiteo divórcio após a separação por mais de umano nos casos legais (art. 226, § 6o). Será queesse prazo mínimo é um valor cardeal emnosso ordenamento? Será que uma senten-ça estrangeira que houvesse, nos termos dalei do foro, concedido o divórcio após, diga-mos, onze meses de separação contrariariaa nossa ordem pública? Não cremos61. (Semembargo, essas considerações não dizemrespeito ao art. 93, IX, que é materialmenteconstitucional.)

Em segundo lugar, a Constituição con-tém normas que, evidentemente, não têmnada a ver com o reconhecimento de valo-res jurídicos estrangeiros (lei ou sentença).São assim as que versam sobre a estrutura-ção do Estado, a forma de governo e a repar-tição de poderes, todas tipicamente consti-tucionais – v.g., “Brasília é a Capital Federal”

(art. 18, § 1o) – e completamente estranhas àordem pública internacional, i.e., aos valo-res essenciais do País, fora dos quais não sepodem tolerar a lei ou a sentença estrangei-ra. Quando se trata da aplicação dessasnormas, chamadas territoriais, nem sequerse pensa em lançar mão do direito interna-cional privado. Com efeito, é descabido sus-tentar que a lei ou a sentença estrangeiradevam ser repelidas se transferirem a capi-tal do Brasil para Natal por causa da exceçãode ordem pública. A razão, na verdade, é ou-tra: é que somente ao Brasil compete legislarnessa matéria.

O art. 93, IX, da Constituição: “todos osjulgamentos dos órgãos do Poder Judiciárioserão públicos, e fundamentadas todas asdecisões, sob pena de nulidade”, não deixade ser uma norma territorial, como se notana leitura do caput: “Lei complementar, deiniciativa do Supremo Tribunal Federal, dis-porá sobre o Estatuto da Magistratura, ob-servando os seguintes princípios: [...]”. O art.93, portanto, traça diretrizes para a organi-zação do Judiciário nacional e nada diz, atéporque não poderia fazê-lo, sobre como de-vem ser organizados os judiciários estran-geiros. Na medida em que se voltam à orga-nização do Judiciário nacional, tanto o inc.IX quanto qualquer outro “princípio” po-dem ser afastados da ordem pública inter-nacional.

Em terceiro lugar, há normas que até re-fletem opções de como promover um valoressencial, e nem assim devem ser inseridasna ordem pública internacional. Diferente-mente das anteriores, essas normas sãomaterialmente constitucionais e os valoresque subjazem a elas integram a nossa or-dem pública internacional. Todavia, elas emsi representam apenas um entre vários ca-minhos idôneos para a obtenção do valoralmejado. Por exemplo, as normas que pre-vêem o “décimo terceiro salário com basena remuneração integral ou no valor da apo-sentadoria” (art. 7o, VIII) ou a “licença à ges-tante [...] com a duração de cento e vintedias” (art. 7o, XVIII) realmente promovem a

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dignidade dos trabalhadores, mas não sãoa única forma de fazê-lo. Se, a despeito deignorar o décimo terceiro salário, a lei es-trangeira garantir ao trabalhador benefíci-os desconhecidos pela lei brasileira, poderáser compatível com a nossa ordem pública.Se, não obstante limite a licença-maternidadea três meses, a lei estrangeira previr, dife-rentemente da Constituição da República,licença-paternidade pelos mesmos três me-ses, não há que reputá-la chocante à nossaordem pública.

Esse é também, de certa forma, o caso dasentença estrangeira desmotivada, pois ajustificação escrita, que correntemente se crêimposta pelo art. 93, IX, da Constituição, nãoé o único meio para realizar o direito funda-mental de o litigante conhecer as razões dadecisão. Para tanto, pouco importa que afundamentação seja datilografada no mes-mo documento em que conste o dispositivoou anunciada oralmente em audiência pú-blica, com a presença das partes e dos advo-gados. Sob a perspectiva do litigante, comtexto escrito ou não, o juiz terá “posto parafora” os fundamentos62. Mais tarde empre-garemos a abordagem comparativa paraelucidar esse ponto.

De qualquer forma, nada disso significaque o reconhecimento de sentenças estran-geiras se faça à margem da Constituição.Pensamos é que seria despropositado e, naverdade, contrário aos valores constitucio-nais transpor para o âmbito da ordem pú-blica todo o texto constitucional, de modoacrítico e literal, pois a “cooperação entre ospovos para o progresso da humanidade” éum princípio reitor das relações internacio-nais do País (art. 4o, IX), o acesso à justiçaum direito fundamental, e os dispositivosconstitucionais devem ser interpretados emseu contexto.

Em poucas palavras, a melhor forma deconcretizar a Constituição da República étolerarmos as culturas dos diferentes povos,cooperando com eles na promoção do aces-so à justiça apesar das fronteiras, ressalva-das apenas as aberrações. Esse parecer é

incompatível com a transposição simplistade todos os dispositivos constitucionaispara a ordem pública internacional. Por isso,entendemos ser indiferente no debate sobrea homologação de sentenças desmotivadasa dicção do art. 93, IX, da Constituição: “to-dos os julgamentos dos órgãos do Poder Ju-diciário serão públicos, e fundamentadastodas as decisões, sob pena de nulidade”.

Adiante, partiremos das funções consti-tucionais da fundamentação para insistirque uma e outra não compõem a nossa or-dem pública internacional. A primeira des-sas funções, diz Taruffo (1998, p. 41-42, tra-dução nossa), seria resguardar o estado de-mocrático de direito, permitindo que “o juizpreste conta do modo pelo qual exercita opoder que lhe foi delegado pelo povo, que éo primeiro e verdadeiro titular da sobera-nia”, e que o povo exerça o “controle exter-no e difuso sobre o exercício do poder juris-dicional”. A segunda função da motivaçãoseria viabilizar o “controle sobre a atuaçãoefetiva das outras garantias concernentes aoexercício da jurisdição”. A essas duas fun-ções apontadas por Taruffo e amplamenteaceitas pela doutrina podemos acrescentaroutra: a fundamentação permite tratar raci-onalmente os litigantes, informando-lhespor que seus direitos foram decididos numou noutro sentido. A preservação do estadodemocrático de direito seria uma finalidadepolítica, enquanto a garantia do devido pro-cesso legal e a informação dos litigantes pro-moveriam precipuamente o interesse dosindivíduos63.

Como garantia política na origem, cons-tata-se facilmente que a fundamentação dasentença estrangeira é impertinente à nossaordem pública. Garantia do estado demo-crático de direito, a fundamentação das de-cisões judiciais tem seus efeitos restritos aoEstado em que a sentença haja sido prolata-da. Na homologação da sentença estrangei-ra desmotivada, o que está em jogo é o esta-do democrático de direito alhures, fato que,alheio à ordem pública brasileira, não im-pede a homologação.

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Nem se alegue que, agindo assim, estarí-amos sendo pouco solidários com os outrospovos. Seria perverso recusarmos a senten-ça estrangeira sem fundamentação a fim deproteger o estado de direito no país de ori-gem: não há nada mais nefasto para o impé-rio da lei do que a lacuna de exercício juris-dicional. Seria, além disso, um argumentopaternalista: não cabe ao Brasil ditar aosoutros países como devem organizar suasinstituições políticas. Seja como for, a fun-damentação não é o único meio de garantiro “controle democrático difuso” de que tra-ta Taruffo (1988, p. 38), embora tenha sidoacolhida por nós. Nos Estados Unidos, porexemplo, muitas vezes as sentenças não sãofundamentadas, mas há outras formas deassegurar a participação popular no exercí-cio jurisdicional: o júri, que atua em mais decem mil processos por ano, e “a eleição dosjuízes por sufrágio universal”, admitida emquarenta estados (DAVID, 2002, p. 482-489).

Afastada da seara da ordem pública agarantia política da fundamentação, o quedizer da garantia processual? Integra a or-dem pública?

A doutrina costuma diferenciar a ordempública material e a processual, essa últimarelativa ao modo de produção da sentençaestrangeira e, por isso, concernente ao nos-so estudo. Em ambos os casos, contudo, osistema da delibação não se compraz com arevisão extensa do processo estrangeiro eapenas a ofensa grave à ordem pública au-toriza recusar a sentença64. Alguns tratadossão didáticos a respeito, entre os quais aConvenção Interamericana sobre ObrigaçãoAlimentar (1989): “Poderá recusar-se o cum-primento de sentenças estrangeiras [...]quando o Estado Parte do cumprimento [...]o considerar manifestamente contrário aosprincípios fundamentais da sua ordem pú-blica” (grifamos, art. 22).

Nessa linha de raciocínio, a ordem pú-blica processual consistiria nisto: o réu deveser julgado por um judiciário independentee imparcial, deve receber uma citação cominformação suficiente sobre a demanda,

deve ter um prazo adequado para a defesa,deve ser ouvido sobre todas as questões edeve contar com meios razoáveis para im-pugnar a decisão (AUDIT, 2003, p. 468). Ouseja, somente garantias sem as quais é in-concebível um processo justo estariam in-cluídas no conceito de ordem pública inter-nacional processual. Kerameus (1997, p.355-356, tradução nossa), a propósito, é ca-tegórico:

“Toda divergência processual nãoexcessiva ou irrazoável entre o siste-ma processual estrangeiro e o localnão pode, enquanto tal, ser um empe-cilho ao reconhecimento da sentençaestrangeira; em outras palavras, temque ser tolerada. Como dizem os co-mentários do Uniform Foreign Judg-ments Recognition Act dos EstadosUnidos, ‘[uma] mera diferença no sis-tema processual não é base suficientepara o não-reconhecimento. Um casode injustiça séria deve estar configu-rado.’ Tal ‘injustiça séria’ será rara-mente identificada em um sistema pro-cessual estrangeiro no mundo atual.Em todos os outros casos, ou seja, navasta maioria deles, deve-se admitirque os standards mínimos, em umaampla perspectiva comparativa, te-nham sido satisfeitos e, portanto, asentença estrangeira deve ser consi-derada portadora daquilo que às ve-zes se chama ‘regularidade internaci-onal’”.

Há vantagens em restringir ao mínimo aordem pública processual. A prática promo-ve a cooperação e a tolerância entre os po-vos e, além disso, permite equacionar comjustiça os interesses das partes envolvidas,porque respeita os direitos acertados no ex-terior sempre que resguardado, em essên-cia, o processo justo. Com efeito, o não-reco-nhecimento de uma sentença é extremamen-te danoso ao litigante vitorioso no exterior,pois equivale a recusar-lhe um direito cujacerteza já foi estabelecida em processo es-trangeiro. Portanto, somente a negação do

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direito de acesso à justiça do litigante su-cumbente pode justificar tamanha violaçãoao direito do vitorioso. Somente quando aosucumbente não tiver sido minimamenteassegurada uma oportunidade efetiva dedefesa é que poderá ser invocada a ordempública internacional processual do Brasil.

Por esse motivo, o Tribunal Europeu deDireitos Humanos decidiu que, na homolo-gação de sentenças estrangeiras, o controledo devido processo legal no exterior deveser feito com muita tolerância, sob pena de“frustrar a atual tendência a fortalecer a co-operação internacional na administração dajustiça, uma tendência que é essencialmen-te do interesse das pessoas envolvidas”65.Sem que haja uma flagrante violação do de-vido processo legal, deve prevalecer a coo-peração.

Será que a falta de motivação consubs-tancia uma flagrante violação do devidoprocesso legal?

A motivação é muito importante, poisesclarece aos litigantes as razões que leva-ram o poder público a decidir de certo modoseus direitos, conferindo-lhes tratamentoracional. Além disso, garantia das garanti-as, ela assegura a efetividade do contraditó-rio, da ampla defesa, da imparcialidade dojuiz, da legalidade, enfim, do devido pro-cesso legal. Muito importante, mas não éessencial.

Para compreendê-lo, devemos conside-rar o processo como um todo. Não se podeperder de vista – especialmente no controleda ordem pública internacional processual– que a individualização das várias garan-tias se faz somente com fim didático e parafacilitar-lhes o controle. A rigor, o processojusto é o produto da interação de todas elas,entre as quais há algumas, como o contradi-tório, cuja ausência implica inexoravelmen-te a injustiça de qualquer processo e outras,como a fundamentação, cuja ausência podeser ou não gravíssima, de acordo com o con-texto. Uma anedota ilustrará o tema.

Contam que as canetas esferográficascomuns dependem da gravidade para fun-

cionar e, por isso, não funcionam no espaçosideral. Para resolver o problema, os ameri-canos teriam se esforçado, com êxito, paradesenvolver uma “caneta espacial”, quepudesse ser usada mesmo em um ambientede gravidade zero. Também desejosos deescrever durante suas viagens, os astronau-tas russos teriam buscado o conceito maisamplo e, em vez de inventar uma “canetaespacial”, pensaram em “algo que escreves-se sem o auxílio da gravidade” – e passa-ram a usar o lápis (DE BONO, 2000, p. 80).

Examinemos primeiro o papel desempe-nhado pela fundamentação na informaçãodas partes. A “caneta espacial” está para“algo que escreva sem o auxílio da gravida-de” como a fundamentação escrita no cor-po da sentença (contextual) está para a ex-teriorização das razões de decidir pelo juiz.Na verdade, tanto faz que a fundamentaçãoseja datilografada no mesmo documento emque conste o dispositivo ou que seja anunci-ada oralmente em audiência pública, com apresença das partes e dos advogados. Oimportante é que, com texto escrito ou não, ojuiz “ponha para fora” os fundamentos dadecisão.

Além disso, mesmo a exteriorização dasrazões de decidir pode ser dispensada se,por outro meio, os litigantes puderem apre-endê-las. Isso acontece não apenas quandoo juiz explicita por que julgou desta ou da-quela forma, facultando-lhes o conhecimen-to passivo das razões, mas também quandoos litigantes podem compreendê-las por asterem criado eles próprios, isto é, quandoparticipam muito ativamente no processodecisório. A situação extrema é a do acordo.Quanta fundamentação será vital a umasentença homologatória de acordo para quea decisão não seja arbitrária?

Considerações semelhantes podem serfeitas sobre a fundamentação como garan-tia das garantais. O fato de a fundamenta-ção ser considerada, no Brasil, uma garan-tia fundamental do processo não exclui apossibilidade de que outros sistemas pro-cessuais se valham de meios alternativos

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para promover o devido processo legal. Épossível que outras culturas jurídicas asse-gurem o contraditório e a ampla defesa porcaminhos próprios. Uma sentença nata emuma dessas culturas poderia não ser moti-vada, mas ser consentânea com a ordempública brasileira.

Poderia ser lembrado, v.g., o caso do júricivil americano, que não dá as razões de suadecisão, porém goza de maior legitimidadedemocrática do que o juiz de carreira no Bra-sil. Poderia ser, ainda, que um país estran-geiro não exigisse a motivação das decisõesjudiciais, mas proporcionasse maior opor-tunidade de diálogo entre partes e juízes doque o Brasil. Nesse caso, ganha-se por umlado, perde-se por outro, e a equação finalmantém-se em harmonia com a nossa or-dem pública. Consoante o magistério deMehren (1980, p. 33, tradução nossa), aotratar da recusa do reconhecimento pormotivo processual: “Em essência, todosos sistemas processuais devem ser vistoscomo um todo; debilidade em um depar-tamento pode ser compensada por forçaem outro”.

Analisar alguns sistemas processuaisestrangeiros tornará nossa tese mais cla-ra. Como pôde ser observado no item “Ju-risprudência brasileira”, as sentenças quechegaram sem fundamentação ao Brasileram provenientes da Alemanha, dos Esta-dos Unidos, da Inglaterra e, uma delas, daÁustria. Se examinarmos o contexto globaldo processo nesses países, repararemos que,apesar da falta de motivação, não se podecogitar de violação ao devido processo legal.

Na Áustria, “[a]s sentenças podem serprolatadas oralmente ou por escrito”(FRAD; SCHIMKA, 2003, p. 66, traduçãonossa). Mas, ainda que a sentença seja pro-latada oralmente, as partes recebem um “re-gistro escrito da audiência em que a senten-ça foi pronunciada” (FRAD; SCHIMKA,2003, p. 66, tradução nossa). Sob o prismado direito de defesa, então, a situação é subs-tancialmente igual àquela em que a senten-ça contém fundamentos escritos.

No processo civil alemão, a fundamen-tação é dispensada: “nos casos em que ocor-rer revelia, desistência da ação ou reconhe-cimento jurídico do pedido” (TUCCI, 1987,p. 82-83); e “quando as partes, após o encer-ramento da instrução, mas antes da senten-ça, desistirem da interposição de recurso”(TUCCI, 1987, p. 82-83)66, caso em que ascustas judiciais serão reduzidas (SEC 5.157-6 – Alemanha, rel. Néri da Silveira, j. em19.06.96). Na hipótese de desistência da açãoou reconhecimento do pedido, a atuação dolitigante é que determina o desfecho do pro-cesso, enquanto o juiz apenas fiscaliza seela ocorreu na forma da lei. A fundamenta-ção, se fosse obrigatória, seria uma mera for-malidade.

A dispensa da fundamentação tambémse dá diante da revelia, a qual acarreta, na-quele país como no nosso, a presunçãode veracidade dos fatos alegados na ini-cial (SIDOU, 1997, p. 244). Nesse caso, afundamentação resta implícita, porque sepode deduzir que o juiz tenha acolhido oafirmado na inicial sem a contestação doréu, conforme entendeu Neder ao reconsi-derar sua decisão na Sentença Estrangeira2.521. Mas, certamente, não haverá dispen-sa se, apesar da revelia, julgar-se improce-dente a demanda.

Por fim, a lei alemã permite, em se tra-tando de direitos disponíveis, que as partesabram mão do recurso e da fundamentação,o que aligeira o processo e diminuiu o valora ser cobrado do sucumbente a título de cus-tas judiciais. A política incentiva a partevencida a aceitar prontamente a sentença,em vez de interpor recursos infundadospara atrasar a execução. Vale frisar que adispensa da fundamentação é possível ape-nas quando estão em jogo direitos disponí-veis. Se a parte pode renunciar até mesmoao direito em si, por que não poderia fazê-loem relação à fundamentação da decisão ju-dicial que lho negou ou conferiu?

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, deonde às vezes nos vêm sentenças desmoti-vadas, não existe lei que obrigue os juízes a

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fundamentarem suas decisões67. Mas, nes-ses países, o julgador desempenha um pa-pel passivo, e os protagonistas do processosão as partes. Enquanto o civil law – tradi-ção à qual nos filiamos – tende ao processoinquisitivo68, o common law – que inclui osEstados Unidos e a Inglaterra – tende aoadversarial. Sobre as diferenças entre os sis-temas, explica Damaska (apud CHASE,2003, p. 122):

“O modo adversarial de processartoma a forma de uma competição oudisputa: desenvolve-se como um con-fronto entre dois adversários diantede julgador relativamente passivo,cujo principal dever é chegar a umadecisão. O modo não adversarial estru-tura-se como uma pesquisa oficial. Noprimeiro sistema, os dois adversáriosencarregam-se da maior parte da ati-vidade processual; no segundo, amaioria da atividade é realizada porórgãos oficiais.”

A preponderância da atuação das par-tes fica evidente em vários momentos doprocesso anglo-saxão. Na audiência, dife-rentemente do que ocorre no processo docivil law, o juiz permanece passivo. Segun-do Chase (2003, p. 135): “No julgamentoamericano são os advogados, não juiz, quedecidem quais as provas necessárias, e queas produzem, por meio da inquirição de tes-temunhas e a apresentação de documentos”.Antes mesmo da audiência, a discovery reve-la o poder das partes (CHASE, 2003, p. 131):

“Consoante as típicas regras ame-ricanas, cada parte tem o poder de exi-gir do adversário (ou de testemunhaspotenciais) que se submeta a pergun-tas orais sob juramento sem a presen-ça do juiz (deposition), que respondasob juramento a perguntas escritas(interrogatories), que abra seus arqui-vos à inspeção, ou, quando se põeem questão a condição física oumental, que se sujeite a exame médi-co por um profissional escolhidopelo adversário.”

Na Inglaterra, a situação é semelhante,embora as “solicitações de documentos nopre-trial [tenham] se limitado àqueles que serelacionam com fatos alegados nos pleadin-gs” (CHASE, 2003, p. 131).

O contexto do processo anglo-saxãomostra por que a desfundamentação é acei-ta. É que, nos Estados Unidos e na Inglater-ra, o juiz exerce menor poder de fato69. Noprocesso do civil law, “entre o juiz e os liti-gantes, aquele é mais poderoso”, frisouChase (2003, p. 138); o juiz americano, poroutro lado, dizem que “é investido no cargopara sentar-se, calar e ouvir” (CHASE, 2003,p. 122). Quanto mais o juiz é atuante, mais énecessário que existam mecanismos paracontrolar como exerce o poder, tal qual afundamentação das decisões. Inversamen-te, quanto menor o seu poder, menos elesserão necessários. O juiz-espectador, útilapenas para marcar os pontos de cada joga-dor, precisa justificar-se menos porque man-da menos.

Além disso, é preciso ter em conta quehá sistemas processuais que valorizam aescritura, enquanto outros têm nítida prefe-rência pela oralidade. Comparado ao pro-cesso na Inglaterra, por exemplo, onde àsvezes não há fundamentação a não ser queo interessado a requeira (SPENCER, 1998,p. 823), o processo brasileiro é escritural70.Lá, com exceção da demanda, “quase tudoé apresentado oralmente” (ROTH, 1998, p.774, tradução nossa). Nesse caso, a formafalada favorece a participação efetiva doslitigantes no processo, permite um intensointercâmbio de idéias e propicia a fiscaliza-ção recíproca e constante de todos os atoresprocessuais, porque a oralidade pressupõeatos realizados em conjunto. Comparandoo sistema inglês com o brasileiro, cremos quea falta de fundamentação das sentenças in-glesas – uma “debilidade” – seria compen-sada por uma “força” no departamento dosdebates diretos e, no todo, o sistema inglêsseria justo. Considerações semelhantes po-deriam ser tecidas sobre o processo na Ale-manha e nos Estados Unidos, países onde

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nem sempre as sentenças precisam ser fun-damentadas.

Quando examinamos a falta de funda-mentação no contexto do processo de ori-gem, percebemos que ela não é um ato depuro arbítrio, chocante aos valores essenci-ais do País71.

E se o direito processual alienígena nãoconsagrasse o contraditório e a ampla defe-sa? E se, em certo país, o réu fosse processa-do sem que tivesse ciência dos acontecimen-tos processuais nem oportunidade de influ-enciar a formação do convencimento judici-al, como no romance de Kafka? Nesse caso,obviamente haveria ofensa à ordem públicabrasileira e a sentença assim proferida nãoseria homologável. Aí, porém, não seria afalta de motivação o problema, mas a faltade contraditório e ampla defesa.

Em nossa opinião, a ordem pública pro-cessual somente deve ser invocada nas hi-póteses de agressão grave ao contraditórioou à ampla defesa. Motivação não. Aindaque tão importante, no sistema processualbrasileiro, quanto as demais garantias, essaimportância é contextualizada. Boa partedas decisões resta sem motivação nos Esta-dos Unidos, e ninguém diria que o processoamericano é mais injusto que o brasileiro,ou, quando menos, que agasalha uma in-justiça intolerável. O mesmo vale para a le-gislação processual alemã, austríaca ou in-glesa. Tanto assim, que as sentenças des-motivadas da Alemanha, da Áustria e daInglaterra, países sob a jurisdição do Tribu-nal Europeu de Direitos Humanos, nuncaforam – tanto quanto sabemos – alvo de recla-mação. Os jurisdicionados parecem satisfei-tos com a forma da decisão em seus países.

7. Conclusão

1. A disciplina da fundamentação dasdecisões judiciais varia no mundo. Brasil,Itália, França, Japão e, em geral, os paísesfiliados à tradição romano-germânica con-sagram a obrigação de motivar. Sem embar-go, Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda,

Malásia, vários regulamentos de cortes ar-bitrais não o fazem. Em conseqüência dessadiversidade e, ainda, da possibilidade deos julgadores estrangeiros descumprirem aobrigação de motivar acaso existente, o Ju-diciário brasileiro pode deparar-se com pe-didos de homologação de sentenças estran-geiras desmotivadas.

2. Nesse caso, caberá à doutrina e à ju-risprudência definir se a sentença estran-geira sem fundamentação pode ser reconhe-cida no Brasil, pois a lei interna e os trata-dos celebrados pelo País são de ordinárioinconcludentes.

3. Nessa tarefa, o estudo comparativofornece subsídios úteis. Em especial, os ita-lianos e os franceses examinaram muitasvezes o caso das sentenças estrangeiras des-motivadas. Embora eles concordem que afundamentação não é, em si, uma exigênciada ordem pública, apenas os primeiros re-conhecem sem mais as sentenças estrangei-ras desmotivadas. Para os franceses, serásempre necessário um substituto da funda-mentação, sob pena de inviabilizar-se o con-trole dos requisitos do reconhecimento. Acausa da diferença parece ser o amplo con-trole da ordem pública processual realiza-do na França, não na Itália.

Vez que a tradição jurídica brasileira seaproxima mais da italiana, seria natural quenós também fôssemos tolerantes com as sen-tenças estrangeiras desmotivadas. Além dis-so, a jurisprudência francesa vem sendo cri-ticada até por doutrinadores locais, comoKessedjian (1992, p. 527).

4. Quanto à jurisprudência brasileira, elasuperou certa hesitação inicial e, a partir de1992, firmou-se no sentido de reconhecer assentenças estrangeiras desmotivadas. Ade-mais, o Supremo Tribunal Federal inclinou-se a admitir, como os italianos, o reconheci-mento de sentenças desmotivadas sem aexigência de substituto.

5. Essa orientação jurisprudencial, queesperamos seja mantida pelo Superior Tri-bunal de Justiça, encontra apoio em boadoutrina. De acordo com a opinião majori-

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tária, a forma da sentença estrangeira deveseguir a lex fori e, portanto, pouco importaque o juiz estrangeiro, em obediência à sualei processual, tenha deixado de motivar.Nem se pode alegar, a propósito, que a fun-damentação seria um componente da ordempública processual, porque esta, no sistemada delibação, resume-se nos aspectos essen-ciais do direito de defesa. Por fim, ainda quea lex fori imponha a fundamentação da sen-tença estrangeira, o desrespeito a tal normanão obsta o reconhecimento, já que em lu-gar algum acarreta a inexistência ou a inefi-cácia da sentença.

Além de debaterem a falta de fundamen-tação enquanto requisito estrutural da sen-tença, muitos estudiosos preocuparam-seem dizer se a não-documentação das razõesde decidir tornaria impraticável o controledelibatório. Nesse ponto, o mais sensato éMorelli (1953, p. 338-340): existem hipóte-ses, como na condenação a pagar dinheiro,em que as razões da sentença estrangeiradevem ser consideradas na fiscalização dosrequisitos do reconhecimento, notadamen-te da ordem pública; se em tal hipótese fal-tar a fundamentação, o tribunal receptorpoderá buscar outros elementos que suprama ausência; mas, se a pesquisa for infrutífe-ra e instalar-se a dúvida insuperável, entãoa sentença não poderá ser reconhecida.

6. Em todo caso, o cerne do problema édizer se a fundamentação seria uma impo-sição da ordem pública processual. Pararesponder, é conveniente diferenciar a di-mensão infraconstitucional e a constitucio-nal da motivação. Na primeira, posto queútil para a operacionalidade do processo, aobrigação de motivar seria uma norma pro-cessual comum e, desse modo, de aplicaçãoterritorial.

A dimensão constitucional, por sua vez,suscita questões mais sérias. De início, épreciso descartar a teoria de que a sede cons-titucional, por si só, faça da obrigação demotivar uma imposição da ordem públicainternacional. Na verdade, muitas normasconstitucionais não traduzem valores da

ordem pública internacional, entre as quaisa que condiciona o divórcio à prévia sepa-ração por um ano (art. 226, § 6o).

Em particular, o art. 93, IX, condensauma garantia política – de funcionamentodemocrático do Judiciário – e uma garantiaprocessual. Como garantia política, a obri-gação de motivar é dirigida apenas ao Judi-ciário brasileiro, logo não pode ser desres-peitada por uma sentença estrangeira semfundamentação. Como garantia processu-al, a fundamentação não é essencial ao de-vido processo legal, porque o estudo com-parativo comprova que há formas diferen-tes e igualmente eficazes de permitir que oslitigantes apreendam as razões judiciais ede garantir a efetividade das demais garan-tias processuais.

Finalmente, vale destacar que a nossaproposta se afina com a lição de internacio-nalistas modernos, que está bem retratadanesta passagem de Audit (2003, p. 466-467,tradução nossa):

“a maneira de conceber o processo ci-vil [...] constitui sem dúvida um dosdomínios do direito onde as diferen-ças de um sistema ao outro são maispronunciadas e também aquele ondeelas são mais mal compreendidas: oque parece, aqui, de boa justiça podefacilmente parecer, lá, como uma faltaséria contra a eqüidade. Um corte exis-te em particular, ainda, entre sistemas‘civilistas’ e de common law: processoacusatório ou inquisitivo, oral ou es-crito, regime das provas [...]. É, então,especialmente importante não perderde vista, nesse domínio, as linhas sis-têmicas no seio de dado direito inter-no (assim entre o grau de motivaçãodas decisões e o caráter escrito ou ju-risprudencial do direito); e que as nor-mas processuais, mais que todas asoutras, não consubstanciam senãomeios de alcançar um fim (por isso,considera-se universalmente que oprocesso seja regido pela lei do foro).Em conseqüência, deve-se deixar de

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rejeitar com facilidade excessiva umadecisão em razão de diferenças entreo processo estrangeiro e o processolocal.”

Notas1 Consultem-se o art. 120, 3o, da Constituição

espanhola; o art. 205/1 da Constituição portugue-sa; o art. 111, par. 1o, da Constituição italiana. So-bre a Grécia e outros países da América Latina:Taruffo (1975, p. 356).

2 Outros países em que as decisões devem serfundamentadas: Argentina, Coréia, França, PaísesBaixos, Japão, Peru, Portugal e Taiwan. No Japão,o art. 253 do Código de Processo Civil preconizaque a sentença escrita contenha, entre outros ele-mentos, a fundamentação. Na França, uma normasemelhante pode ser encontrada no art. 455 do Có-digo de Processo Civil e, quanto aos laudos arbi-trais, no art. 1.471. Sobre os demais países citados:Grubbs (2003).

3 Mas Lefebvre (2003, p. 88, tradução nossa)informa que, na Bélgica, “[t]oda sentença deve con-ter as razões para a decisão e uma parte na qual aprópria decisão é posta”.

4 Sem embargo, na Austrália e na Índia, paísesonde se adota o sistema do common law, as decisõesdevem ser motivadas (Cf. CHESTERMAN, 2003,p. 29-45; VAISH; SRIPATI; LAMBA, 2003, p. 289,298-299).

5 A ementa deste acórdão resume a jurispru-dência – uníssona: “SENTENÇA ESTRANGEIRA– HOMOLOGAÇÃO – DIVÓRCIO – ATO ADMI-NISTRATIVO – EXTENSÃO. A norma inserta naalínea ‘h’ do inciso I do artigo 102 da ConstituiçãoFederal, segundo a qual compete ao Supremo Tri-bunal Federal processar e julgar, originariamente, ahomologação das sentenças estrangeiras, há de sertomada respeitando-se a soberania do país em quepraticado o ato. Prevendo a respectiva legislação odivórcio mediante simples ato administrativo, comoocorre, por exemplo, no Japão, cabível é a homo-logação para que surta efeitos no território brasilei-ro. Precedentes: Sentença Estrangeira no 1.282/No-ruega, Relator Ministro Mário Guimarães; SentençaEstrangeira no 1.312/Japão, Relator Ministro MárioGuimarães; Sentença Estrangeira no 1.943/Dinamar-ca, Relator Ministro Adaucto Cardoso; Sentença Es-trangeira no 2.251/Japão, Relator Ministro MoreiraAlves; Sentença Estrangeira no 2.626/Bélgica, Pre-sidente Ministro Antonio Neder; Sentença Estran-geira no 2.891/Japão, Presidente Ministro Xavier deAlbuquerque; Sentenças Estrangeiras nos 3.298,3.371 e 3.372, todas do Japão, Presidente Ministro

Cordeiro Guerra; e Sentença Estrangeira no 3.724/Japão, Presidente Moreira Alves.” Cf. SEC 6.399 –Japão, rel. Marco Aurélio, Plenário, j. em 21.06.00.Esse entendimento vem sendo mantido no SuperiorTribunal de Justiça: SE 975 – Japão, Presidente Ed-son Vidigal, decisão monocrática, j. em 25.07.05.

6 O tema é controvertido, porém tendem a pre-valecer, ao menos na Europa, opiniões semelhantesà de Kerameus (1997, p. 340, tradução nossa): “Oexequatur é certamente um ato de criação, ou seja,uma decisão judicial constitutiva, em vez de mera-mente declaratória. Mas a criação aqui não consisteem prover a sentença estrangeira com nova subs-tância, em implantar algo novo que não existissepreviamente no país de origem. A criação é aquientendida em termos de expansão geográfica ape-nas; ela implica transcendência da moldura jurídi-ca originária”.

7 A título de ilustração, registre-se que a Cortede Cassação italiana já decidiu a favor do reconhe-cimento de sentença penal estrangeira desmotiva-da. Em 18 de março de 1977, no Caso Romano, otribunal anotou: “mesmo no ordenamento jurídicoitaliano, a falta de motivação é apenas causa denulidade da sentença penal, que, existindo comoato processual, tem aptidão para transitar em jul-gado”, e “a obrigação de motivar os provimentosjudiciais, embora constitua um princípio constitu-cional, não se refere à ordem pública ou aos bonscostumes do nosso Estado” (Cf. ROTTOLA, 1981,p. 450, tradução nossa). A decisão, todavia, sofreua crítica de Rottola (1981, p. 462-463, traduçãonossa): “Não parece, na verdade, compatível como nosso ordenamento público um sistema proces-sual que não contenha um princípio segundo o qualos provimentos jurisdicionais devam ser motiva-dos, princípio que, por outro lado, contrariamenteao que entende a Corte Suprema, é de considerar-seatinente à ordem pública do nosso Estado, tam-bém porque sancionado por uma norma constitu-cional”. Após citar o parecer de Morelli – para quem,malgrado a falta de motivação, em si, não contrariea ordem pública italiana, ela pode obstar a deliba-ção quando impedir o escrutínio da compatibilida-de entre o julgado civil estrangeiro e a ordem públi-ca local –, Rottola (1981, tradução nossa) ressalvaque, no processo penal, a desmotivação, em si e porsi, configura “um caso de incompatibilidade com aordem pública sempre que seja legítima à luz doordenamento de procedência da sentença penal es-trangeira”. Segundo ele, somente seria possível reco-nhecer uma sentença penal estrangeira na Itália quan-do o direito estrangeiro previsse meios para impug-nar a falta de fundamentação da sentença e, apesardisso, o condenado tivesse sido negligente. Aí, aliás,valeria a advertência feita por Morelli: a falta de ra-zões escritas não poderia inviabilizar o controle dacompatibilidade entre a sentença e a ordem pública.

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8 Cf., a propósito, estas decisões do SupremoTribunal Federal: 1) “atenta-se contra o art. 93, IX,da Constituição, quando o decisum não é funda-mentado; tal não sucede, se a fundamentação, exis-tente, for mais ou menos completa. Mesmo se defi-ciente, não há ver, desde logo, ofensa direta ao art.93, IX, da Lei Maior.” (Ag. Reg. no RE 234.372-SP,rel. Néri da Silveira, Segunda Turma, j. em 31.08.99);2) “declinadas no julgado as premissas, correta-mente assentadas ou não, mas coerentes com odispositivo do acórdão, está satisfeita a exigênciaconstitucional” (RE 140.370-MT, rel. Sepúlveda Per-tence, Primeira Turma, j. em 20.04.93); 3) “a exi-gência constitucional não reclama sejam corretasas razões de decidir, mas apenas que existam esejam deduzidas na decisão” (RE 209.903-DF, rel.Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, j. em21.03.00). Para uma análise aprofundada da juris-prudência do Supremo Tribunal Federal, cf. nossoartigo: Pereira (2005, p. 169-189).

9 Não faremos referência às leis e tratados deoutros países, porque – até onde sabemos – ne-nhum deles trata explicitamente das decisões es-trangeiras desmotivadas e, em todo caso, o objeti-vo deste estudo é investigar a homologabilidadedessas decisões no Brasil. É verdade que, quandoestudarmos a jurisprudência e a doutrina, conside-raremos o debate no exterior, mas o faremos ape-nas para agregar pontos de vista úteis ao nossotema central. No que concerne à legislação, o estu-do comparativo não teria o mesmo valor.

10 Embora o dispositivo aluda a cartas rogatóri-as, ele é pertinente ao nosso estudo porque, emessência, disciplina o reconhecimento de decisõescautelares estrangeiras.

11 Cf., por exemplo, o art. 20 do Protocolo deCooperação e Assistência Jurisdicional em MatériaCivil, Comercial, Trabalhista e Administrativa deLas Leñas.

12 Trata-se de decisão de 19 de dezembro de1990, noticiada em: Journal du droit international,Paris, 123e année, n. 3, p. 698-699, juill./sept. 1996.

13 No mesmo sentido: Itália (2001, p. 389-394;2002, p. 1021-1030, tradução nossa).

14 No mesmo sentido: Itália (1975, p. 801-802;1976, p. 583-584; 1991, p. 766-770; 1992, p. 309-311; 1993, p. 114-119; 2002, tradução nossa).

15 No mesmo sentido: Itália (2002, traduçãonossa).

16 No mesmo sentido: França (1981, p. 113-117;1992a, p. 516-527).

17 Está desatualizada esta observação de Maury([1949], p. 393, tradução nossa) acerca da juris-prudência francesa: “o exequatur é negado quandoa sentença não está motivada. Estima-se que a sen-tença neste caso não satisfaça às condições de jus-tiça que o direito francês considera essenciais, quesão de ordem pública internacional”. Com efeito, a

lição de Maury é anterior ao Acórdão Elmassian,de 14 de junho de 1960, quando a Corte de Cassa-ção (1a Câm. Cív.) “decidiu pela primeira vez [...]que a falta de motivos da sentença contenciosa nãoé em si mesma contrária à ordem pública processu-al francesa” (Cf. LOUSSOUARN; BOUREL, 1999,p. 598, tradução nossa).

18 Os exemplos foram inspirados neste caso con-creto, comentado por Holleaux: Julgado da Cortede Apelo de Paris (1a Câm. Cív.), de 18 de janeirode 1980, citado, nota 16.

19 O regime das sentenças arbitrais desmotiva-das é outro. No parecer de Motulsky (1967, p. 107,111-112), a natureza contratual da arbitragem e anecessidade do comércio internacional levaram aCorte de Cassação francesa a admitir o reconheci-mento de laudos estrangeiros desmotivados, aindaque inexistentes documentos que façam as vezesda fundamentação. Na arbitragem, argumenta oautor, a falta de motivos é sempre resultado davontade dos litigantes, que optam pela justiça pri-vada. Além disso, há leis importantes, como a daInglaterra e a do Estado de Nova Iorque, que nãopreceituam a motivação dos laudos e seria muitoinconveniente que a França deixasse de reconhecertodos os laudos ingleses ou nova-iorquinos.

20 No mesmo sentido: Itália (1993, p. 117, tra-dução nossa).

21 Como esclarece Vigoriti (1988, p. 75), quer-se“apenas que o juiz da delibação possa verificar se oprocesso, encerrando com o provimento a ser ho-mologado, ofereceu às partes uma possibilidadeconcreta e efetiva de conhecer e participar”.

22 Nesse sentido: Itália (1975; 1980, p. 420; 2001,p. 394). Na Suíça (1996, p. 698-699), o TribunalFederal inclina-se no sentido da jurisprudência ita-liana. Na doutrina, vale mencionar a posição deChiovenda (1945, p. 81): “se a lei estrangeira esta-túe que, no caso de revelia de uma das partes, sehajam por admitidos, sem mais nada, os fatos ale-gados pela outra, não se pode recusar exequatur ásentença contumacial proferida em tais condições,salvo o reexame do mérito, de que cogitaremos den-tro em pouco (tanto mais que esse preceito é só-mente mais extensa aplicação do princípio embebi-do na base da nossa ficta confessio).”

23 Todavia, Holleaux (1981, p. 116) relata que ajurisprudência não é unânime.

24 No mesmo sentido: Holleaux (1981, p. 116).25 Sem embargo, há exceções: a documentação

das razões judiciais é dispensável, a não ser que pe-culiaridades do processo gerem a dúvida intransponívelsobre a compatibilidade da sentença estrangeira com aordem pública. Por isso, após enunciar que a motiva-ção não é especialmente relevante, porque a deliba-ção se volta ao dispositivo, a Corte de Apelo deVeneza obtemperou: “Todavia não se pode excluirque a carência de motivação ou a sua insuficiência

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possam representar um obstáculo à delibação dasentença, impedindo afirmar-se a conformidadecom a ordem pública” (ITÁLIA, 2002, p. 1027,tradução nossa). No caso concreto, pretendia-se re-conhecer na Itália uma condenação americana novalor de um milhão de dólares. Inexistia funda-mentação e os litigantes controvertiam acerca danatureza da condenação: o devedor asseverava tra-tar-se de danos punitivos, enquanto o credor nega-va. Por fim, o tribunal italiano decidiu rejeitar asentença americana, pois a não-documentação dasrazões judiciais, o alto valor da condenação e aqualidade de “produtor” do réu fariam suspeitardo caráter punitivo da condenação, em desacordocom a ordem pública italiana. Segue a ementa: “Porcausa da insuficiente motivação sobre a matéria,não pode ser declarada eficaz na Itália uma senten-ça estadunidense da qual não se possa inferir se acondenação ao ressarcimento dos danos configurauma hipótese de punitive damages, enquanto taiscontrários à ordem pública” (ITÁLIA, 2002, p. 1021,tradução nossa).

26 A decisão foi publicada, com comentários,em: Loussouarn; Bourel (1999, p. 367-383).

27 Mas a Corte de Cassação afastou-se da dou-trina majoritária, em caso no qual, a propósito, dis-cutia-se a falta de motivos de uma sentença comu-nitária, e por isso mereceu a crítica de Kessedjian(1992, p. 527).

28 Deve-se, contudo, notar que a autora se refe-ria, principalmente, à circulação de sentenças noâmbito comunitário.

29 Mas, em outras matérias referentes à homolo-gação de sentenças estrangeiras, o Superior Tribu-nal de Justiça tem mantido a orientação do Supre-mo Tribunal Federal e é provável que o mesmo ocor-ra quanto às sentenças estrangeiras desmotivadas.Acompanhamos a jurisprudência até setembro de2005.

30 Veja a ementa: “1. Não é homologável a sen-tença estrangeira desmotivada. O art. 458, II, doCódigo de Processo Civil brasileiro, é norma de or-dem pública, e com ela deve harmonizar-se o julga-do estrangeiro para que tenha eficácia no Brasil. 2.Ação homologatória improcedente.”

31 Segue a ementa: “1. Sentença estrangeira for-malizada, inclusive no tocante a sua fundamenta-ção, nos termos da ‘lex fori’. 2. Ação homologatóriaprocedente”.

32 Ao decidir, o relator considerou invencível “oobstáculo da ausência de motivação da sentença, sali-entado no parecer do então ilustre SubprocuradorProf. José Francisco Rezek” (fl. 11). Era esta a ementado parecer de Rezek: “SENTENÇA ESTRANGEI-RA. Decisão arbitral convalidada por órgão judici-ário. Absoluta ausência de motivação, querno pronunciamento do árbitro, quer naqueledo juízo estatal. Rejeição, pela ordem pública,

do decisório imotivado. Precedente do SupremoTribunal Federal.”

33 Eis a ementa: “Homologação de sentença es-trangeira. Sua inviabilidade por falta de requisitoprocessual básico, ou seja, a citação da ré para queresponda na origem, a ação [...]; bem assim, por seapresentar sem motivação a sentença homologan-da (art. 458, inc. II, do Código de Processo Civil).Indeferimento do pedido.”

34 Constava da ementa: “Decisão que se limitaa revelar a sanção aplicada à ré, sem dizer dasrazões que orientaram o árbitro, não se qualificacomo hábil à homologação.”

35 No julgamento, o Plenário do Supremo Tribu-nal Federal, unânime, cingiu-se a ratificar as razõesexpostas por Rezek na Sentença Estrangeira n. 3.977.

36 Com certeza, está desatualizada esta obser-vação de Rechsteiner (1985, p. 162): “o STF estabe-leceu como regra geral que não é homologável asentença estrangeira desmotivada”. Igualmente,pode conduzir ao erro esta observação de Bar-bosa Moreira (1989, p. 264): “o Supremo Tribu-nal Federal, em mais de uma decisão (v.g., SE no

3.262, de 3-9-1986), esposou a tese de que a faltade motivação constitui obstáculo suficiente, à luzdo ordenamento brasileiro, independentemente dadisciplina da matéria no país de origem”.

37 Capitaneando o voto vencedor, Rezek, apóssugerir que mudara o entendimento defendido naSE 2.766, vide supra, nota 32, arrematou que, nocaso concreto, o laudo arbitral a ser homologadoera “um primor em matéria de densidade de moti-vação” (RTJ 155/152).

38 O acórdão prestigiou o parecer ministerial,favorável à homologação: “[a] sentença homolo-ganda acha-se fundamentada pelas conclusões dolaudo arbitral” (fl. 88).

39 Ou seja, sempre. Até os países que, como oBrasil, exigem a fundamentação das decisões judi-ciais prevêem, em caso de desobediência, a nulida-de da decisão, não sua inexeqüibilidade (vide infra,nota 53).

40 Lê-se no voto do ministro Bilac Pinto – RTJ87/387: “O segundo argumento dos requeridos dizrespeito ao próprio teor da sentença estrangeira que,a seu ver, repugnaria à ordem pública por carênciade relatório, motivação, e fundamentos de fato e dedireito, com razoável amplitude. Não encontro,porém, um único precedente no qual se tenhaexigido que a sentença estrangeira possuísse aestrutura disciplinada por nossa lei processualcivil, sob risco de ser havida como contrária àordem pública.”

41 Nas palavras de Marco Aurélio, que con-duziu a votação unânime: “Relativamente à es-trutura da sentença, descabe pretender aplicara legislação pátria. Rege-a o Direito inglês e, re-lativamente a este, nada se afirmou sobre a co-

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locação em plano secundário de qualquer formali-dade legal” (fl. 224).

42 Veja este trecho do voto condutor: “A funda-mentação na espécie é a que decorre da previsãolegislativa do Estado onde se proferiu a decisão,que não ofende [...] a ordem pública brasileira, nemos bons costumes” (fl. 346).

43 Eis a ementa do acórdão: “As formalidadesalusivas à prolação da sentença estrangeira sãoaquelas previstas no país em que prolatada, desca-bendo cogitar da estrutura dos provimentos judici-ais pátrios” (fl. 43).

44 Veja um trecho do voto do relator (RTJ 175/106): “não cabe examinar a problemática da estru-tura à luz da nossa legislação, sendo que, conside-rado o Direito inglês, nada se afirmou sobre a colo-cação, em plano secundário, de qualquer formali-dade legal. Está-se diante de uma situação concre-ta em que o Judiciário inglês atua de forma desbu-rocratizada, expedindo, em se tratando de divór-cio, simples extrato de sentença. Por tais razões,homologo-a para que produza os efeitos legais”.

45 O autor invoca a Sentença Estrangeira 2.521,para comprovar que “o STF estabeleceu como re-gra geral que não é homologável a sentença estran-geira desmotivada”. Mas, logo depois, defende quea regra deveria ser excepcionada em matéria dedivórcio, porque as partes podem ter renunciado àmotivação ou ter acordado o divórcio. Rechsteiner,no entanto, não esclarece se tais argumentos pode-riam ser generalizados e aplicados a matérias di-versas do divórcio.

46 Mas também os estrangeiros não são sempreassertivos. Couture (1977, p. 286-287) limitou-se aconsignar uma decisão francesa, anterior ao acór-dão Munzer, na qual uma sentença estrangeira ca-rente de fundamentação fora invalidada, sem ava-liar se os tribunais franceses teriam agido bem ounão.

47 Posição semelhante foi adotada por Guima-rães (2002, p. 148). A dúvida de Tucci (1987) eGuimarães (2002) parece ter origem na má com-preensão da doutrina de Chiovenda (1965, p. 933,tradução nossa), para quem a recepção da senten-ça estrangeira pressupõe “uma idéia comum desentença; mas essa idéia comum deve extrair-se daidéia mesma de jurisdição [...]; e não se devem con-fundir com o conceito de sentença aquelas garantiasque a nossa lei entende necessárias e quer observa-das sob pena de nulidade [...], ao passo que a leiestrangeira, por razões suas, pode exigir menos”.Ou seja, embora, para Chiovenda (1965), a senten-ça estrangeira seja “nacionalizada”, não o são seusaspectos formais nem as garantias processuais con-soante as quais ela tenha sido elaborada no exteri-or. Então, é indiferente que o julgado estrangeiroostente uma forma tal que, fosse ele nacional, re-dundaria na sua nulidade.

48 Segundo Mortara ([200-?], tradução nossa):“seria absurdo pretender que a redação da senten-ça estrangeira deva uniformizar-se com as normasestabelecidas para os juízes nacionais no código deprocesso”.

49 Segundo o autor: “Isso [dizer que não se podereconhecer uma sentença estrangeira quando ela,fosse brasileira, seria inválida] é o mesmo que dizerque uma sentença estrangeira somente pode serhomologada no Brasil se os atos processuais nostribunais estrangeiros obedecerem às regras do pro-cesso brasileiro. Certamente, esse não é o espíritodo direito internacional privado no Brasil, que reco-nhece diferentes sistemas de direito e diferentesmétodos de exercer jurisdição” (DOLINGER, 1985,p. 869).

50 No mesmo sentido, embora sem menção es-pecífica à fundamentação, diz Pontes de Miranda(1998, p. 102): “A forma que se tem de exigir àssentenças estrangeiras, para que possam ser homo-logadas, é a da lei do juiz ou tribunal estrangeiroque a proferiu.”

51 Nas palavras de Morelli (1953. p. 338-339,tradução nossa): “O limite [da não-contrariedadeà ordem pública] atine unicamente ao conteúdo dadecisão [...]. Não atine ao processo que tenha leva-do à decisão, com relação ao qual o art. 941 fixadireta e taxativamente os requisitos que consideraindispensáveis para a justiça intrínseca da senten-ça. O limite não atine tampouco ao modo como ojuiz tenha exercitado a própria atividade lógica.Tanto a determinação da norma que se há de usarcomo base do pronunciamento, em particular adeterminação do ordenamento de onde deve to-mar-se a norma, quanto a comprovação do fatoescapam ao controle do juiz do reconhecimento,mesmo sob a perspectiva de um eventual contrastecom a ordem pública. Não se pode negar, pois, reco-nhecimento, por pretensa contrariedade à ordempública, [...] à sentença que careça de motivação”.

52 Segundo Mattirolo (1906, p. 970-971), se ojuiz estrangeiro tiver descumprido seu ordenamen-to ao deixar de motivar, ter-se-á uma nulidade deforma – puramente relativa – da sentença, um vícioirrelevante ao juízo de delibação e que, ademais,terá sido sanado em razão da não-impugnação nomodo e tempo devidos no exterior. Em linhas ge-rais, Mattirolo continua certo. O porém é que atual-mente muitos consideram a falta de fundamenta-ção uma causa de nulidade absoluta da sentença,que desafiaria, mesmo após o trânsito em julgado,a rescisória. Seja como for, essa observação não inu-tiliza o argumento de Mattirolo. Eis que, enquantonão desconstituída, a sentença nula é eficaz e podeser reconhecida em países como a Itália ou o Brasil.

53 É assim em Portugal, na França, na Bélgica,na Alemanha, na Argentina, na Itália. Cf. Tucci(1989, p. 227-228). Lefebvre (2003, p. 88) confirma

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que, na Bélgica, a sentença desmotivada vale atéque seja anulada. Não seria mesmo sensato sanci-onar com a inexistência ou ineficácia uma decisãojudicial à qual faltasse a fundamentação. Essa se-ria uma má política legislativa, geradora de inse-gurança. Haveria decisões proferidas por autori-dade competente, em processo oficial, com toda aaparência de decisão judicial escorreita, mas que,na verdade, não teriam nenhuma eficácia em razãoda falta de fundamentação. Não acreditamos quepaís algum tenha cometido algo assim.

54 Aparentemente contra: Aragão, Rosas (1988,p. 208).

55 Para um exemplo de dúvida insuperável, videsupra, nota 25.

56 Ainda que houvesse, Dolinger (1985, p. 869,tradução nossa) argumenta, com razão, que a ga-rantia da fundamentação é fungível: “Os sistemasjurídicos de países desenvolvidos que não deman-dam que os tribunais exponham as razões de suasdecisões têm outros meios de preservar o direito e apossibilidade do sucumbente de recorrer a um tri-bunal superior”. Ou, com palavras diferentes: “todopaís civilizado tem as suas formas de garantir osdireitos e oportunidades das partes de apelarempara um tribunal revisor”.

57 Uma exceção é a ordem pública processual,mas ela pode ora ser abstraída porque será consi-derada posteriormente, ao examinarmos a dimen-são constitucional da motivação.

58 A Constituição de 1988 foi a primeira a con-sagrar a obrigação de motivar (art. 93, IX). Cf.Moreira (1994, p. 45).

59 Ratificado pelo Brasil e promulgado, entrenós, pelo Decreto no 18.871, de 1929.

60 Essa idéia é defendida em: Barroso (1998,p. 47).

61 Contra: SE 1.165, pres. Edson Vidigal, deci-são monocrática, j. em 23.08.05; SE 975, rel. EdsonVidigal, decisão monocrática, j. em 05.08.05; SEC7.782 – Estados Unidos, rel. Marco Aurélio, Plená-rio, j. em 18.11.04.

62 Sem nos mantermos fiel à fonte, buscamosinspiração para nosso raciocínio em Andrade (1992,p. 64, 192-204), que tratava da fundamentação deatos administrativos.

63 A distinção é teórica, porque, na prática, difi-cilmente haverá processo justo em meio a institui-ções políticas autoritárias e antidemocráticas. Ain-da assim, iremos acolhê-la porque ela facilitará aexposição de nosso pensamento, sem prejuízo paranossas conclusões.

64 Kerameus (1997, p. 359) assevera que a ordempública está se tornando uma salvaguarda cada vezmais excepcional contra as sentenças estrangeiras.

65 Caso Drozd e Janousek v. França e Espanha,número de inscrição 21/1991/273/344, julgado em27.05.92, par. 110. Disponível em: <www.echr.coe.

int>. Tratava-se de homologação de sentença penalestrangeira, mas as conclusões alcançadas, em fa-vor da cooperação, parecem valer com maior razãono processo civil.

66 O autor esclarece que a revelia não autoriza adesfundamentação quando “a matéria controver-tida versar sobre questões de casamento, de inter-dição, ou for de interesse de menores”.

67 Sobre a realidade na Inglaterra: David (2002,p. 429-430). Nos Estados Unidos: Taruffo (1975,p. 368-369).

68 Segundo Taruffo (2003, p. 145), “inquisiti-vo” pode significar, na acepção “fundada na histó-ria, [...] que as partes não podem defender-se” ou,às vezes, “que o juiz desempenha papel ativo nadireção do procedimento e tem poderes autôno-mos de iniciativa instrutória”. Em nosso texto, otermo é usado na segunda acepção.

69 Em comparação com as partes, mas não emcomparação com os legisladores, como notório.

70 A partir da lição de René David (2002), Enri-que Vescovi (1995, p. 29-30) dividiu o mundo emquatro partes: anglo-saxã, soviética, do civil law con-tinental e do civil law hispano-americano (a nomen-clatura não era claríssima – foi a empregada por umuruguaio –, mas certamente o processo brasileiro seidentifica mais com a descrição do sistema hispano-americano do que com qualquer outra). Nos trêsprimeiros, prevaleceria a oralidade. O último, deprocesso escrito, foi retratado destarte: “Sin inmedi-ación, con predominio de funcionarios y burocrático.Basado, al decir de Cappelletti en el sistema de ac-tas. (Quod non est in actis non est in mundo)”.

71 Aliás, o papel da fundamentação tem sidoreavaliado mesmo em países que tradicionalmentea consagram. Na opinião de Kessedjian (1992, p.521, tradução nossa), escritora francesa: “podemser percebidos, ao longo do tempo, muitos tempe-ramentos notadamente devidos à necessidade deadaptar os métodos de redação das sentenças aoprogresso da técnica e ao congestionamento da jus-tiça”, como evidenciado, na França, pela “Circulardo Ministro da Justiça de 24 de fev. 1985 convidan-do os juízes a ‘reduzir’ a fundamentação de suassentenças”.

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A cooperação entre Venezuela e IrãUm conceito socialmente construído na sociedadeinternacional ou uma alternativa ao desenvolvimento?

Rogério Duarte Fernandes dos Passos

Rogério Duarte Fernandes dos Passos éAdvogado. Mestre em Direito Internacionalpela Universidade Metodista de Piracicaba(UNIMEP). Professor do Centro Estadual deEducação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS)e do Centro Universitário Nove de Julho deSão Paulo (UNINOVE). Secretário do InstitutoHugo Grotius de Direito e Relações Internaci-onais (IHG).

Sumário

1. Introdução

Na perspectiva de analisar se o conheci-mento e a tentativa de seu compartilhamen-to são socialmente construídos, e até mes-mo se os conhecimentos científico e tecno-lógico são produtos sociais, historicamen-te localizados, é preciso, em primeiro lu-gar, identificar e localizar os atores en-volvidos na sociedade internacional, e,depois, a arena das ações em que se dãoos fatos.

Nas relações internacionais, os fenôme-nos são compreendidos a partir de metáfo-ras. Assim, temos que a sociedade interna-cional é uma grande arena, um grande pal-co, no qual encena uma peça permanente,consubstanciada no desenrolar da históriae no desenvolvimento permanente das pró-prias relações internacionais. Outrossim, osseus atores são os partícipes dessa grandepeça, notadamente aqueles capazes de mo-vimentar a cena, isto é, tradicionalmente osEstados e as organizações internacionais,capazes de ser sujeitos de direito na sua con-figuração legal.

1. Introdução. 2. Atores envolvidos na ten-tativa de cooperação entre Venezuela e Irã. 2.1.Venezuela. 2.2. Irã. 3. A sinalização política deuma proposta de acordo nuclear entre Vene-zuela e Irã. 4. A busca da cooperação como umconceito socialmente construído e seus atores.5. Conclusão.

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Essa peça mostra a sociedade internaci-onal viva, e toda sociedade, ainda que anár-quica como a internacional – visto, inclusi-ve, pela ausência de um poder central coer-citivo que esteja organizado e que esteja aci-ma da soberania dos Estados –, busca umaconformação legal, uma configuração jurí-dica, em que Estados e organizações inter-nacionais, além de atores, seriam qualifica-dos como sujeitos e portadores do status dedireito internacional público.

Outros mencionam uma visão mais am-pla dos atores da sociedade internacional –cujo cenário seria freqüentado por um nú-mero maior deles –, mais adequada às reali-dades dos séculos XX e XXI, em que, alémdo Estado e das “organizações”, teríamosas “corporações”, estas classificadas emintergovernamentais e não-governamentais,sendo as primeiras pertencentes a institui-ções como a Organização das Nações Uni-das (ONU) e a Organização dos EstadosAmericanos (OEA), e as segundas seriam aAnistia Internacional e os próprios partidospolíticos1.

2. Atores envolvidos na tentativa decooperação entre Venezuela e Irã

2.1. Venezuela

Tendo-se tornado independente da Es-panha em 1811, a Venezuela registra umimportante histórico de agressões estrangei-ras, exemplificadas nos bombardeios ítalo-anglo-germânicos, em virtude do não-paga-mento de juros de dívidas com banqueirosinternacionais, ocorridos em 1902 e 1903.

Na atualidade, há um conturbado con-texto político interno a ser levado em consi-deração, em que o componente externo éigualmente perturbador.

Governa atualmente o país o mestre emciência política e tenente-coronel reforma-do do Exército Hugo Rafael Chávez Frias,ou simplesmente Hugo Chávez. Eleito pre-sidente em 1998 com votação esmagadora,a exemplo do presidente Fernando Henri-

que Cardoso, no Brasil, patrocinou mudan-ças na Constituição para permitir a sua ree-leição, que ocorreu em 2000, com 59% dosvotos. O mandato presidencial terminaráem 2007.

Prometendo combater o que freqüente-mente classifica de “capitalismo neoliberalselvagem”, prometeu realizar um governoque efetivamente atendesse as camadasmais pobres da população, que atingem cer-ca de 80% dos 24 milhões de venezuelanos.Alguns de seus programas sociais desagra-daram profundamente as elites. Outros fa-tores contribuíram para o acirramento doquadro político interno, a relatar: 1) Os con-flitos com a Suprema Corte do país; 2) Umestilo autoritário e neopopulista de gover-no; 3) Uma agenda e um discurso à esquer-da; 4) A dificuldade no combate da pobre-za, da criminalidade e da corrupção; 5) Aqueda nos preços internacionais do barrilde petróleo no início dos anos 2000, e, final-mente; 6) A edição de 49 leis que permitirama expropriação de terras para exploraçãode petróleo. Ademais, freqüentemente acu-sa-se Chávez de mandar oficiais das ForçasArmadas opositores para a reserva ou paraa prisão, de fechar jornais e cercear a liber-dade de imprensa, além de abrigar em seuterritório guerrilheiros ou terroristas colom-bianos.

Após grande clamor popular e greve ge-ral, Chávez chegou a ser deposto por milita-res descontentes com seu governo, assumin-do em seu lugar o empresário Pedro Carmo-na, presidente da mais importante associa-ção empresarial do país, a FEDECÁMARAS.Congresso destituído, foram convocadasnovas eleições para ocorrer em um ano, masdentro do golpe, houve o golpe: o golpe dogolpe. Ou o contragolpe. Militares descon-tentes com ele (o golpe) e leais a Chávez,respaldados pela parcela da população epor setores da sociedade que o apóiam, arti-cularam a posse do vice (de Chávez) Dios-dado Cabello, que forçou a renúncia de Car-mona. Cabello pronunciou que ficaria napresidência até Chávez reaparecer ou for-

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malmente renunciar: Chávez reapareceu ereassumiu suas funções, menos de 72 horasapós ser derrubado, num dos golpes maisrápidos e efêmeros da história. O fato nãodeixa de ser bastante peculiar, pois ele mes-mo esteve preso por 2 anos por liderar umfracassado golpe de estado contra o presi-dente Carlos Andrés Perez (1974-1979 e1989-1993), em 1992.

Em 2003, em mecanismo introduzidopelo próprio Chávez na Constituição dopaís, houve a coleta de assinaturas pelosseus opositores para a efetivação de um re-ferendo popular que votaria a sua continui-dade ou não no cargo. Caso o presidentefosse rejeitado, haveria novas eleições, emque o próprio Chávez poderia concorrer.Após muita resistência do governo e do Con-selho Eleitoral do país, as assinaturas fo-ram consideradas válidas e o pleito realiza-do, no qual Chávez venceu com relativa fol-ga, apesar das acusações da oposição defraude eleitoral.

Superada, ainda que temporiamente, aquestão interna, Chávez enfrenta a questãoexterna, especialmente ante os Estados Uni-dos da América (EUA), que desaprovam suapolítica e vêem com descontentamento aaproximação da Venezuela com Cuba. Numdiscurso que remete à Revolução Bolivaria-na2, Chávez – após muitos entreveros e de-clarações públicas contra o presidentenorte-americano Geoge Bush, nas quaisafirmou que, se fosse assassinado, a culpaseria dos EUA – tenta equilibrar o país numadifícil engenharia nas suas relações inter-nas e internacionais: ao mesmo tempo emque paulatinamente se vê com muitos ini-migos, sofrendo até mesmo de relativo iso-lamento, não pode negar que o maior com-prador de seu principal produto de expor-tação, o petróleo – a Venezuela tem as maio-res reservas da América Latina –, são justa-mente os estadunidenses.

O período inaugura na história – com aexceção óbvia de Cuba – um foco de tensãoinédito no continente entre os EUA e umadas nações latino-americanas após o perío-

do de redemocratização e liberalização po-lítica destas últimas, a ponto de Caracasameaçar romper relações diplomáticas comWashington.

2.2. Irã

Ainda que encravado no Oriente Médio,o Irã é formado de etnias não-árabes. Mo-dernamente, o marco histórico na trajetóriado país é a Revolução Islâmica, deflagradaem 1978, por diversas correntes de oposi-ção ao xá (título do soberano), entre elas aesquerda, os liberais e os muçulmanos fun-damentalistas, sob a liderança do aiatoláRuhollah Khomeini – então exilado na Fran-ça –, ao promoverem uma insurreição.

O poder é transferido ao primeiro-minis-tro Shapur Bakhtiar, que não consegue es-tancar a rebelião, a qual aderiu às ForçasArmadas do país. Bakhtiar foge do país eKhomeini adentra Teerã, a capital, em feve-reiro de 1979, vitorioso, assumindo o gover-no com características teocráticas. O Irã tor-na-se uma república islâmica.

Após a invasão da embaixada dos EUAem Teerã, em 1979, quando militantes islâ-micos apoiados pelo governo fizeram deze-nas de reféns norte-americanos, as relaçõescom os EUA tornaram-se delicadas. Houveuma fracassada incursão pelo serviço secre-to estadunidense no território iraniano paratentar a libertação dos reféns, que só ocorreem 1981, após a devolução dos bens do go-verno do Irã que estavam congelados nosEUA. Em virtude de disputas fronteiriçasaté hoje inalteradas, houve a guerra com oIraque (1980-1988), com milhares de mor-tos. Se do lado iraquiano houve a ajudanorte-americana, do lado iraniano, em tí-pica manifestação do período da Guerra Fria,houve o apoio da então existente União So-viética.

O aiatolá Khomeini morre em 1989, cri-ando a expectativa de mudanças. Um reli-gioso moderado, Hashemi Rafsanjani, é elei-to presidente, em oposição ao indicado peloaiatolá radical Ali Khamenei, indicado porKhomeini, que, em 1990, no uso de sua au-

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toridade religiosa, condena à morte o escri-tor anglo-iraniano Salman Rushdie, em vir-tude da publicação do livro “Versos Satâni-cos”. Em função disso, Rushdie vive até hojeescondido na Grã-Bretanha. Inobstante essaatitude hostil ao Ocidente, Rafsanjani cele-brou contratos de investimento com alemães,franceses e britânicos.

Verificados os atentados terroristas emWashington e New York em 11 de setembrode 2001, o presidente norte-americano GeorgeW. Bush encontrou o misto de oportunida-de e pretensa legitimidade para o pleno de-senvolvimento de sua política intervencio-nista. No mesmo ano, houve a invasão doAfeganistão, derrubando o governo talibã –outrora aliado na guerra contra os soviéti-cos –, acusado de abrigar e treinar os terro-ristas que realizaram o ataque, e ocupandoo país. A seguir, em 2003, inaugurando umasegunda guerra no Golfo Pérsico (a primei-ra data de 1991), aludindo a justificativassemelhantes e outras sabidamente falsas(como a existência de armas de destruiçãoem massa), houve a invasão do Iraque, der-rubando o governo de Saddam Houssein eculminando com nova ocupação. Estavainaugurada, como classificou o presidenteBush, a “cruzada” contra o terrorismo e con-tra o “eixo do mal”, isto é, aqueles paísesque treinam e apóiam, logística e politica-mente, o terrorismo. Entre esses países, osque ainda não sofreram intervenção militar,estão a Coréia do Norte, a Síria e o Irã, que, apartir daí, vêm sofrendo forte pressão do Oci-dente – leia-se EUA e União Européia – paradesmantelar seu programa nuclear.

3. A sinalização política deuma proposta de acordo

nuclear entre Venezuela e Irã

Em 12 de março de 2005, o presidenteHugo Chávez recebeu em Caracas o presi-dente iraniano Mohammad Khatami. Napauta do encontro, discussões acerca doaumento da cooperação econômica entre os

dois países. Foi a terceira visita de Khatamià Venezuela, que, em comum ao Irã, ostentaa condição de um dos maiores produtoresmundiais de petróleo. Na ocasião, foramassinados mais de 20 acordos nas áreas deindústria petroquímica, de energia e cons-trução civil. Num momento em que essesgovernos estão com suas relações diplomá-ticas com os EUA abaladas – Chávez che-gou a se pronunciar acerca da viabilidadeprática de se ter uma embaixada aberta emWashington –, o encontro demonstra umatentativa de ambos os países de romper umcerto isolamento em face delas, não obstan-te afirmar-se no encontro, antes de tudo epreliminarmente, que se quer paz, mas queestão preparados para a resposta a ataquesexternos.

Chávez, outrossim, declarou apoio aoprograma nuclear iraniano, sinalizando ointeresse em um futuro acordo em matériade energia nuclear, aduzindo que a Vene-zuela e outros países latino-americanos, es-pecialmente Argentina e Brasil, têm o direi-to do desenvolvimento de energia nuclearpara fins civis e pacíficos. Chávez declarou,outrossim, que seu governo estaria interes-sado em energia nuclear e solar e que pode-ria procurar uma parceria com o Irã.

Às declarações de Chávez sobrevieramnovas críticas da diplomacia dos EUA, qua-lificando-o de “a parte negativa da AméricaLatina”.

A declaração preocupou o Brasil, vistoque os EUA acusam o Irã de tentar desen-volver a sua bomba nuclear. Apesar de Teerãdesmentir veementemente essa assertiva, adiplomacia brasileira antecipou-se em de-clarar que não tinha interesse em estabele-cer uma cooperação com países que porven-tura não estivessem sob rigorosa fiscaliza-ção e não obedecessem regras internacio-nais, especialmente aquelas atinentes àAgência Internacional de Energia Atômica(AIEA), organismo presente na estrutura daOrganização das Nações Unidas (ONU),visto que o país, a partir de 2004, lançou seuplano de enriquecimento de urânio – o com-

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bustível para os reatores nucleares – que oinseriu no seleto grupo de nações que, des-de a mineração até a fabricação do combus-tível, dominam esse ciclo. Ademais, paratanto, além do intensivo esforço tecnológi-co, o Brasil enfrentou fortes pressões inter-nacionais e uma rigorosa inspeção da AIEAem seu programa, que, operando com 2 rea-tores, demandou grande esforço para a pro-teção do conhecimento tecnológico desen-volvido3. É de se salientar, inclusive, que aConstituição da República Federativa doBrasil, promulgada em 05-10-1988, ao tra-tar da energia nuclear, dispõe que a mesmasomente poderá ser utilizada com fins pací-ficos, consoante disposição contida em seuartigo 21, inciso XXII, alínea a.

4. A busca da cooperaçãocomo um conceito socialmente

construído e seus atoresCom relação à busca e à construção do

conhecimento científico, faz-se necessário oestabelecimento de critérios sociais paraauxiliar o analista no intuito de compreen-dê-lo como fenômeno, no máximo possívelde sua amplitude. Esses critérios, em diver-sas abordagens, formas e contextos, falan-do sobre ciência e tecnologia, expõem diver-sas premissas para a sua compreensãocomo fenômeno, atingindo diversas perspec-tivas, heterogêneas e disciplinares.

Nos estudos sociais sobre ciência e tec-nologia, Dominique Pestre (1996, p. 13) res-salta que

“A questão não é mais tanto sabercomo as proposições dos cientistas setornam epistemologicamente verda-deiras (...), mas precisar como sua le-gitimidade é negociada na comunida-de especialista (...), mas descrevercomo os enunciados, através dos ob-jetos e das práticas, se impõem na com-petição pela sobrevivência (social ecognitiva)”.

Num viés menos natural, relativo à legi-timidade negociada de conceitos a que se

refere Pestre, e mais sociológico, como justi-ficar a legitimidade ou ilegitimidade de pa-íses como a Venezuela e o Irã no intuito derealizar uma cooperação nuclear?

Em que pese o fenômeno internacionalser deveras amplo – conhecer a sua realida-de e o fenômeno na sua totalidade é pratica-mente impossível –, essa análise tem que serfeita a partir dos atores envolvidos. E aqui,se reconhecemos que existem atores a serconsiderados, reconhece-se a existência deuma sociedade internacional, cuja mobili-dade e história se realiza por ação deles.

Com relação à cooperação econômica, écerto que não há maiores problemas em sechegar ao consenso de legitimidade. Nocaso nuclear, porém, existem outros atores– que não exclusivamente Venezuela e Irã –que têm papel determinante nessa legitimi-dade.

Primeiramente, cumpre assinalar que,em âmbito regional, o país é signatário doTratado para a Proscrição das Armas Nuclearesna América Latina (Tratado para la Proscripciónde las Armas Nucleares en América Latina), fir-mado em Tratelolco, México, em 1967 (Tra-tado de Tratelolco), que criou, em 1969, aOrganização para a Proscrição das Armas Nu-cleares na América Latina (OPANAL)4, paragarantir e vigiar as obrigações ditadas pelotratado5. Todos os 33 Estados da AméricaLatina e Caribe o firmaram. Deles, 32 firma-ram e ratificaram o Tratado de Tratelolco,nos moldes do artigo 28 do documento, se-gundo o qual o mesmo não poderá ser obje-to de reservas. Cuba – que, em virtude dacrise dos mísseis soviéticos de 1962, foi oestopim da criação da OPANAL – firmou oTratado de Tratelolco em março de 1995,assim como suas emendas em dezembro de1995, mas ainda não o ratificou. Assim, parafins não-pacíficos, juridicamente a Venezue-la está impedida de desenvolver ou manterprogramas que envolvam energia nuclear.

No mesmo esteio, em âmbito multilate-ral, a Venezuela é estado integrante da Agên-cia Internacional de Energia Atômica (AIEA,International Atomic Energy Agency, IAEA)6,

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como membro fundador, desde 1957. Comsede em Viena, na Áustria, e contando aténovembro de 2004 com 138 países membros,essa organização internacional dedica-se acontrolar o uso pacífico da energia nuclearpor meio da cooperação internacional esta-belecida com a aplicação do mecanismo dassalvaguardas (safeguard), pelo qual os ma-teriais nucleares ficam sob a supervisão daagência, não podendo ser desviados para aprodução de armamentos. O artigo IV doEstatuto da AIEA garante a soberania dosEstados membros, mas exige o cumprimen-to de boa-fé das obrigações assumidas noâmbito da organização, de forma que a atu-ação desta se dê, pacificamente, em três áre-as. A primeira delas, pela cooperação técnica,promovendo reuniões e conferências com odesenvolvimento de projetos para a aplica-ção de energia nuclear na medicina, indús-tria e meio ambiente. Na segunda, eminen-temente jurídica, na negociação de acordose convenções internacionais obrigatóriaspara os países signatários, e na terceira,como corolário lógico, na aplicação do me-canismo das salvaguardas, fiscalizandoe controlando o material nuclear de seusmembros7.

Com relação ao Irã, o país é estado mem-bro da AIEA desde 1958, assinando o acor-do de salvaguarda (safeguard), que lhe ga-rante o uso da energia nuclear para finspacíficos. Já foram registradas inspeções emsuas instalações, em especial na usina deBuchehr e nas instalações de Natanz e Arak.Se, de um lado, acusa-se o Irã de tentar odesenvolvimento de armas nucleares, o paísas rebate afirmando que o Ocidente nãocumpriu a promessa de efetivação do inter-câmbio de equipamentos e tecnologia8. Nomesmo esteio, o país é signatário do Trata-do de Não-Proliferação de Armas Nuclea-res (TNP), também no âmbito da AIEA, inte-grando-se ao seu texto em 1971, nos mes-mos moldes do mecanismo de salvaguarda.

Dessa forma, podemos identificar os ato-res que estão envolvidos na construção –como conceito socialmente construído – de

um possível acordo nuclear entre Venezue-la e Irã. Do lado da tentativa Venezuelana,os atores envolvidos, além da própria Vene-zuela, são os EUA, que, não concordes como governo de Hugo Chávez, constituem-senum forte opositor à sua política, causandosignificativo isolamento do país no cenáriode relacionamento da comunidade interna-cional. São atores significativos também aAIEA e a OPANAL, as quais mantêm vín-culos e obrigações jurídicas internacionaiscom o país no intuito do uso da energia nu-clear para fins pacíficos. E, em menor esca-la, o Brasil, cujo governo do presidente LuísInácio Lula da Silva tem sido um aliado,como demonstram as iniciativas brasileirasde aproximação e inserção da Venezuelapromovidas no MERCOSUL (Mercado Co-mum do Sul) – acordo econômico mantidocom os parceiros Argentina, Paraguai eUruguai – e a liberação de recursos de insti-tuição financeira estatal do país, o BancoNacional de Desenvolvimento Econômico eSocial (BNDES), para o financiamento daconstrução do metrô de Caracas. O Brasilconstitui-se num importante, porém limita-do, ator e aliado: ao mesmo tempo que o paísnão se orientou por Washington para man-ter suas relações externas com a Venezuela,demonstrando grande aproximação com ovizinho, não quer pôr em risco as suas rela-ções de maior parceiro comercial individu-al com os EUA e nem o seu programa nucle-ar pacífico e sua tecnologia na área, quepassou por desgastante e rigorosa inspeçãoda AIEA, não apoiando deliberadamente aspretensões venezuelanas num possível acor-do com o Irã e mantendo uma posição quemescla pela eqüidistância, pelo não-apoio epela neutralidade9.

Do lado iraniano, são atores a AIEA, pe-las obrigações jurídicas assumidas com aorganização no intuito da não-proliferaçãode energia nuclear com fins não-pacíficos;os EUA, pela sua oposição ao programanuclear iraniano – chegando a incluir o paísno chamado “eixo do mal” –; e, por estarmuito próximo, o Iraque, país vizinho, sob a

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justificativa inverídica de possuir armasnucleares e de destruição em massa. De for-ma semelhante, é ator nesse processo aUnião Européia, que, além de vários de seuspaíses membros manterem soldados na co-alizão liderada pelos EUA que invadiu oIraque, juntamente com o Paquistão – quepossui armas nucleares e vê um possíveldesequilíbrio de poder na região –, faz for-tes pressões diplomáticas para o início denegociações que venham a possivelmenteinspecionar e mesmo supostamente desar-mar o Irã.

É inevitável questionar o “por quê” depaíses terem direito a ter armas nucleares eoutros não. Da mesma forma, qual seria arazão para alguns países que têm um longohistórico de guerras e agressões em seu cur-rículo poderem ter e desenvolver tais armas,em detrimento de outros que nunca partici-param de morticínios em massa.

Para se compreender o contexto dessaquestão, é necessário fazermos menção no-vamente ao Tratado de Não-Proliferação deArmas Nucleares (TNP). Quando o tratadofoi ratificado em 1970, além de o seu texto –cuja revisão se dá a cada cinco anos – obje-tivar a utilização da energia nuclear parafins pacíficos, ele se constituía na obrigaçãojurídica de limitação de armas nucleares daspotências que o reconheciam, EUA, a entãoUnião Soviética, China, Grã-Bretanha eFrança, por sinal, os membros permanentesdo Conselho de Segurança da ONU10. E nes-sa contextualização, a resposta nos é dadapelo embaixador brasileiro Sérgio Duarte,quando da preparação da delegação brasi-leira para a conferência de 2005 da Organi-zação das Nações Unidas (ONU) que o re-visou, a primeira após os atentados terro-ristas de 11 de setembro de 2001, que atingi-ram Washington e New York, nos EUA. Se-gundo ele,

“Quando o tratado foi firmado em197011, os países concordaram em fa-zer parte do tratado na qualidade depotências nuclearmente armadas –que o tratado reconhecia como sendo

apenas os cinco países do Conselhode Segurança – ou como potênciasnão-nuclearmente armadas – que é orestante dos países que assinaram otratado.

Por isso que eles (os cinco mem-bros permanentes do Conselho de Se-gurança) podem e os outros não po-dem. Todos concordaram que deveriaser assim.

O tratado também estabelece queaqueles que possuem armas nuclea-res deveriam tomar medidas de boa-fé para se desarmar. E justamente umdos problemas desta conferência é quemuitos países não-nucleares acredi-tam que os nucleares não estariamcumprindo isso” (SAIBA MAIS...,2005).

Ainda, segundo ele, não há puniçõesexpressas para o descumprimento do trata-do. Nessa hipótese, o caso é levado ao Con-selho de Segurança da ONU que decidiaquais sanções deveriam ser aplicadas. Atéo momento, nenhum país foi sancionado,estando em análise o caso da Coréia doNorte, que do tratado se retirou, cuja situa-ção é atualmente objeto de análise da AIEA(SAIBA MAIS..., 2005).

Assim, busca-se justificar a existência deuma espécie de legitimidade construída,ainda que juridicamente, para que algunspaíses tenham, e outros não, armas nuclea-res. Essa suposta legitimidade, refletindooutros paradigmas das relações internacio-nais – à guisa de exemplo a divisão interna-cional do trabalho – tem sido estendida, emvirtude da desconfiança dos países que do-minam a energia nuclear bélica, para ou-tros setores de uso da energia nuclear, que,possivelmente, possam ser estendidos parafins pacíficos. E aqui se questiona até queponto se aceita que os países periféricos te-nham acesso à tecnologia e se aceita que estestenham o direito ao desenvolvimento de co-nhecimento para o uso de energia nuclear.

Outrossim, busca-se localizar e compre-ender a tentativa de busca da legitimidade

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entre Venezuela e Irã para o desenvolvimen-to econômico e para a busca de uma coope-ração em matéria de energia nuclear, bemcomo quais são os atores envolvidos nesseprocesso.

Os atores principais dessa realidade são,exatamente, os governos da Venezuela e doIrã, considerados em conjunto e também sin-gular e juridicamente tomados. O Irã, enqua-drado na política externa norte-americanacomo país integrante do “eixo do mal”, vê-se relativamente isolado perante o Ociden-te, principalmente após a Revolução Islâ-mica de 1979, que o vê com desconfiança. Oterrorismo e o fundamentalismo islâmicoaumentam a hostilidade do país para com oOcidente e vive-versa. Por derradeiro, a pro-ximidade do exército dos EUA de seu terri-tório, com a intervenção deste país no Ira-que (país vizinho), inimigo até então recen-te, além das pressões de outras potênciasnucleares – como já dito, o Paquistão, quevê com desconfiança o desenvolvimento datecnologia nuclear iraniana, e também aUnião Européia e os próprios EUA contra oseu programa nuclear – criam focos de ten-são entre esses atores no campo diplomáti-co e na própria sociedade internacional, quetêm em sua agenda de forma permanente aoposição Ocidente-Oriente e o terrorismo,mostrando que esses países também são in-fluentes atores dessa contextura.

Restou ao Irã o apoio da Venezuela, mo-ralmente interessante, mas politicamentepouco garantidor dessa almejada legitimi-dade, em virtude da posição periférica quea Venezuela ocupa na sociedade internaci-onal. À Venezuela, assim, reconhece-se orelativo isolamento que o país experimentaa partir do governo de Hugo Chávez; sendoeste classificado de “força negativa” da Amé-rica Latina, faz que a diplomacia das demaisnações latino-americanas venha a agir comcautela e reticência em relação a Caracas.

Cumpre lembrar que é ainda ator impor-tante a AIEA, que tem em seus membros jus-tamente a Venezuela, desde 1957, e o Irã,desde 1958. Ambos assumiram obrigações

jurídicas internacionais consoantes ao Es-tatuto da entidade no intuito da não-utili-zação de energia nuclear para fins não-pa-cíficos. À Venezuela, somam-se, ainda, asobrigações assumidas com outro ator, aOPANAL, com objetivos semelhantes. Deseu turno, o presidente Hugo Chávez decla-rou que seu país, além de vários outroslatino-americanos, como a Argentina e oBrasil, têm o direito de desenvolver a ener-gia nuclear para fins pacíficos. A declara-ção mostra o Brasil igualmente como ator,visto que, além de Cuba, é o país com o qualmantém fortes laços de governo e que detémalgum conhecimento nesse ramo energético.

5. Conclusão

Muito se discute acerca da diferença en-tre ciência e tecnologia. Numa abordagemquase que unanimemente aceita, é possívelconceber que a ciência é o conhecimento, abusca pela verdade, e a tecnologia, a aplica-ção prática dessa verdade. Assim, ciência etecnologia são concebidas como conceitosantagônicos, de sorte que a sua compreen-são exige a aceitação dessa premissa. Ade-mais, para uma compreensão mais exata, e,especialmente quanto à legitimidade, con-solidação, aceitação e obtenção desse conhe-cimento, propõe-se que a formulação dosconceitos de ciência e tecnologia seja social-mente construída, além de historicamentelocalizada.

A legitimidade pela busca do conheci-mento por países como a Venezuela e o Irãpassa por esse critério, ainda que o conceitosocialmente construído seja arquitetado nasociedade internacional, cujos atores prin-cipais são os próprios Estados e as organi-zações internacionais.

A não-aceitação de atores estatais, comoos EUA e a União Européia (ainda que tam-bém entenda-se ser a União Européia umaorganização Internacional), e dos atores quesão as organizações internacionais, como aAgência Internacional de Energia Atômica(em nível global) e a Organização para a

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Proscrição de Armas Nucleares (esta últi-ma em âmbito regional, na América Latina),a busca e o desenvolvimento de conhecimen-to em matéria de energia nuclear se mos-tram como pauta de desenvolvimento paraos países periféricos do capitalismo12. Essanão-aceitação – não somente à energia nu-clear, mas ao conhecimento tecnológicocomo um todo – refere-se a inúmeros fato-res, entre os quais se destaca o desejo dospaíses industrializados de manter uma or-dem internacional desequilibrada e injusta,concentrando riqueza e poder, e, por conse-guinte, mantendo a dependência política eeconômica dos demais. É nessa perspectivaque se aduz que, na sociedade internacio-nal, o poder não se dá apenas pelo viés dopeso político, militar e econômico, mas igual-mente pela posse do conhecimento, comoinstrumento para enfrentar as demandas dasociedade globalizada, suas adversidadesestruturais e suas crises. O conhecimento, aciência e a tecnologia são o novo capital dospaíses. E a fragmentação, democratização,acesso e difusão desse conhecimento impli-caria a reinvenção dessa ordem, com o con-seqüente estabelecimento de novas relaçõesde poder, fundadas não apenas na depen-dência, mas na colaboração e no comparti-lhamento de ideais e iniciativas comuns àhumanidade.

Ocorre, porém, que, como o período daGuerra Fria demonstrou, se as superpotên-cias nucleares, os EUA e a então União So-viética demonstraram o risco que a energianuclear representava, especialmente nocampo bélico, questiona-se se, dominando-a, os países em desenvolvimento não em-preenderiam lutas verdadeiramente desas-trosas para galgarem postos de poder e as-censão. No entanto, a concentração desseconhecimento e, conseqüentemente, da ri-queza mundial por poucas nações, somadaà hostilidade e egoísmo do mundo desen-volvido – que em nome de seu bem-estar eda manutenção do status quo impõe uma or-dem internacional injusta e autoritária –contribuem para fomentar tais previsões,

visto que os fundamentalismos e radicalis-mos encontram forte eco e ressonância napobreza e na ignorância. Por fim, argumen-tar-se-ia contra o acesso e o desenvolvimen-to de energia nuclear pelos países periféri-cos que o seu domínio ocasionaria um peri-goso desequilíbrio de poder entre eles, igual-mente aguçando rivalidades locais e dese-quilíbrios regionais.

Dessa forma, a busca e a manutenção dapaz são paradigmas e valores a serem sope-sados em todas as relações humanas, poróbvio, também nas relações internacionais. Eo histórico da energia nuclear inclui fins béli-cos, o que não colima com esses paradigmas.

Dito isso, a pergunta que dá título a esteartigo: a cooperação entre Venezuela e Irã éum conceito socialmente construído na so-ciedade internacional ou uma alternativa aodesenvolvimento? Como já dito, não parecehaver maiores dificuldades em encontraressa legitimidade no que tange ao desen-volvimento econômico, apesar de os meiosbuscados para esse intento terem que se aterao sistema multilateral de comércio negoci-ado no seio da Organização Mundial doComércio (OMC). No que tange à coopera-ção em matéria de energia nuclear, essa le-gitimidade que se busca, sendo fruto de umcontexto historicamente localizado em queinteragem atores sociais, e igualmente per-meado por um sistema legal (verbi gratia, ostratados internacionais), permite que se res-ponda à questão afirmativamente em suasduas possibilidades. Assim, essa almejadacooperação é um conceito socialmente cons-truído, em virtude do não-alinhamento des-ses países com a legitimidade legal arquite-tada na sociedade internacional (ora nego-ciada, ora praticamente imposta), que lhesimpôs isolamento e hostilidade por parte domundo desenvolvido, além de alternativaao desenvolvimento, pois, diante da concen-tração de poder, há também concentraçãode renda, de conhecimento e de tecnologiano mundo desenvolvido, não-compartilha-da com os países periféricos, obviamentenão fomentando o desenvolvimento.

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Não se pode olvidar, porém, que, comolembra Ricardo Arnt (1985, p. 12), para ospaíses em desenvolvimento, a manutençãode programa nuclear implica um endivida-mento súbito e drástico, o que deve ser sope-sado pelos governos e pela sociedade civil.

Notas1 Cf. GONÇALVES, 2002, p. 12-13.2 E quando Chávez menciona a Revolução Boli-

variana, parece querer apoiar seu discurso nos an-tecedentes históricos do libertador e herói nacionalSimon Bolívar. Quando este visitou os EUA, emviagens internacionais que realizou a partir de 1806,posteriormente observou: “... con respecto a la Na-ción Americana, debo decir, que ni remotamente haentrado en mi idea assimilar la situación y natura-leza de los Estados tan distintos como el InglésAmericano y el Americano Español”. Finalizando,¿ No sería muy difícil a España el Código de Liber-tad política, civil y religiosa de Inglaterra? Puesaún es más difícil adoptar en Venezuela las Leyesdel Norte de América”. Cf. CALDERAS, 1983, p.18-19.p. 18-19.

3 Na oportunidade, o presidente da Associa-ção Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), EdsonKuramoto, afirmou que qualquer decisão sobre co-operação dependeria do governo brasileiro, e nãoda indústria, e que a proposta, nos termos que rea-lizada, era muito vaga. Ademais, segundo ele, aVenezuela estaria bastante atrasada em relação aoBrasil na pesquisa de energia nuclear, o que pode-ria significar que o país estaria mais interessado emcomprar tecnologia em vez de uma cooperação pro-priamente dita, visto que seriam necessários anosou talvez décadas para que a Venezuela desenvol-vesse a sua própria tecnologia. Ainda, segundo ele,Brasil e Argentina têm investido na área por apro-ximadamente 30 anos, estando, portanto, mais de-senvolvidos que a Venezuela, pelo que se supõe.Por fim e porém, há a possibilidade de existiremreservas de urânio – o combustível das usinas nu-cleares – naquele país, visto que o Brasil descobriureservas do mineral no estado do Pará, não muitolonge da fronteira com o vizinho ao norte (BRASILMOSTRA..., 2005).

4 Sítio oficial: http://www.opanal.org. Orga-nismo para la Proscripción de las Armas Nuclearesen la América Latina y el Caribe (OPANAL). Schi-ller 326 - 5o piso. Col. Chapultepec Morales, MéxicoD. F. 11570. México. Tel: (52-55) 5255-2914, 5255-4198, 5545-9251. Fax: (52-55) 5255-3748.

5 O tratado internacional pode ser entendidocomo o negócio jurídico capaz de criar direitos e

obrigações entre sujeitos de direito internacionalpúblico, isto é, entre aqueles que têm capacidadepara atuar com independência e por moto própriona sociedade internacional, que, numa perspectivatradicional e conservadora, é apenas os Estados eas organizações internacionais. Resumidamente, suacriação pode ser vislumbrada nas seguintes fases:1) Negociações entre os países, onde se discute otema a ser debatido e acordado; 2) A aceitação eadesão dos representantes dos países ao seu textofinal; 3) A aprovação pelos respectivos parlamen-tos nacionais deste texto; 4) A ratificação, em que opaís declara e dá publicidade dele perante a comu-nidade internacional; 5) A promulgação do textopelos poderes executivos – o que, para muitos, podeser uma redundância, visto que em muitos casos éo próprio chefe do executivo que negocia o tra-tado; 6) O seu registro em órgãos ou organiza-ções internacionais, como a Organização dasNações Unidas (ONU), dando-lhe publicidadeinternacional.

6 Sítio oficial: http://www.iaea.org. Endereço:International Atomic Energy Agency, P.O. Box 100,Wagramer Strasse 5, A-1400 Vienna, Austria. Tele-phone (+431) 2600-0; Facsimile (+431) 2600-7; E-mail: [email protected]

7 Cf. o Estatuto da AIEA. Disponível em: <http://www.iaea.org>. Acesso em: [2005?]

8 A própria Constituição da República Islâmicado Irã, ratificada em 15 de novembro de 1979, noano da Revolução Islâmica que depôs o XáMuhammad Reza Pahlavi, que governou o país entresetembro de 1941 e janeiro de 1979, dispõe, no no 13de seu artigo 3o, que o governo buscará assegurar aauto-suficiência na ciência, tecnologia, indústria, agri-cultura e questões militares, tal como nos demais campos.Cf. IRÃ, 1986, 102 p.

9 Letícia Pinheiro (2004, p. 40-41) destaca a opçãode desenvolvimento feita pelo país a partir da ori-entação de sua política externa, realizada a partirdo governo militar do presidente Gal. Costa e Silva,(1967-1969), reincorporando teses nacionalistas deoutrora, que, entre outras medidas, culminarampela não-assinatura do Brasil ao Tratado de Não-Proliferação: “... a reincorporação de teses maisnacionalistas ao modelo de desenvolvimento dariaà agenda diplomática uma conotação mais auto-nomista, embora não colocasse em xeque o alinha-mento político e militar ao Ocidente. Em decorrên-cia, a política externa do regime militar sofreria se-não uma ruptura, certamente uma importante in-flexão, ao incorporar o eixo Norte-Sul como umelemento de definição de políticas. A título de exem-plo, o Brasil teve papel destacado na 2a Conferênciada UNCTAD (1968) em defesa de tratamentos não-discriminatórios e preferenciais aos produtos ma-nufaturados dos países subdesenvolvidos. Deve-se registrar também a rejeição do argumento da

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irresponsabilidade dos países do Sul como razãopara lhes negar acesso à tecnologia de ponta,levando a que o Brasil se recusasse, em 1968, aassinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear(TNP).”

10 Dentro da estrutura organizacional e políticada ONU, destaca-se o Conselho de Segurança. Oórgão é formado por quinze estados membros, sen-do que, diferentemente de dez que são indicadospara um mandato de dois anos pela AssembléiaGeral (órgão de natureza mais democrática, vistoque nele há a igualdade jurídica das nações, isto é,para cada país, um voto, independentemente deseu peso político, econômico ou militar), os outroscinco membros são os estados vencedores da Se-gunda Guerra Mundial, EUA, então União Soviéti-ca (cujo assento atual é ocupado pela Rússia), Grã-Bretanha, França e China (cujo assento inicial foraocupado pela ilha de Taiwan). Esses cinco mem-bros erigiram-se em tal condição a partir da Cartade San Francisco (1945), criadora da ONU, e detêmo poder de veto, ou seja, as decisões do Conselhode Segurança somente podem ser tomadas por una-nimidade dos membros permanentes. As interven-ções militares com a formação de forças de paz e asrelativas à segurança internacional cabem ao Con-selho de Segurança.

11 Outras fontes apontam como data o ano de1968.

12 Shozo Motoyama (1992, p. XIX) lembra que“os estudos e as investigações históricas das políti-cas nucleares implantadas em nível nacional e in-ternacional são de grande relevância. Acima de tudopara aqueles que vivem nos países da periferia, oestudo da política nuclear de sua própria naçãotem um significado valioso e peculiar. Isto porqueas pesquisas desta natureza são capazes de revelaruma série de características inerentes ao desen-volvimento do país em estudo. E claro está quesem verdadeira compreensão da realidade naci-onal não se pode intentar, com um mínimo desucesso, a caminhada rumo ao desenvolvimen-to pleno”.

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PESTRE, Dominique. Por uma nova história sociale cultural das ciências: novas definições, novos ob-jetos, novas abordagens. Cadernos IG/UNICAMP,São Paulo, v. 6, n. 1, p. 5-56, 1996.

PINHEIRO, Letícia. Política externa brasileira. Rio deJaneiro: Zahar, 2004. 81 p.

SAIBA mais sobre o Tratado de Não-Prolifera-ção. Entrevista com o embaixador Sérgio Duarte.BBC Brasil , [S.l . ] . Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/05/050429_interatividadeaw.shtml>. Acessoem: 31 maio 2005.

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O Brasil das últimas décadas não foi con-templado com um desejo político e os gover-nantes não apresentaram reformas sólidaspara diminuir os patamares da fome e damiséria. Essas políticas incorretas afetaramas mulheres e impediram seu desenvolvi-mento social, privando-as de educação, deuma renda adequada, de igualdade de gê-nero, justiça social e acesso a políticas pú-blicas. O desenvolvimento não somente geracrescimento, mas também distribui benefí-cios justos e de forma imparcial. Ele empode-ra as pessoas, especialmente as mulheres, eprioriza benefícios para os pobres, ampli-ando suas oportunidades, eliminando a dis-criminação de gênero, inserindo-as no mer-cado de trabalho, para que iniciem um ne-gócio, às vezes um micronegócio no setorinformal. O desenvolvimento proporcionaa inserção das mulheres numa sociedademasculina, na qual certas formas de racis-mo e sexismo estão sempre presentes.

Há, na atualidade, uma nova divisão detrabalho que põe o peso das políticas soci-ais nas mulheres, nos negros e nos pobres.As mulheres estão buscando o empodera-mento e a liberdade. Nas mais remotas regi-ões, uniram-se, partilharam informações,mobilizaram-se e reivindicaram mudanças,

Promessas de empoderamento paramulheres

Leila Bijos

Leila Bijos é Bolsista CAPES/FULBRIGHT,Doutora em Sociologia pelo CEPPAC, Univer-sidade de Brasília (UnB), e professora da Uni-versidade Católica de Brasília.

Sumário1. Família, trabalho e gênero. 2. Atividades sin-gulares. 3. Transformações políticas e sociais.4. Mudança de cenário.

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insistiram e persuadiram. Citando Smith(2004), “elas fizeram seus lobbies junto àsautoridades, ingressaram em carreiras po-líticas, levantaram suas vozes até as autori-dades econômicas. Escreveram, falaram,proclamaram. Criaram organizações, ex-pandiram seus canais de comunicação, for-maram redes transnacionais e organizaramcongressos”. Conscientemente engajaram-se em novas oportunidades, ações políticas,projetos de desenvolvimento comunitário,para atingirem seus objetivos e suas metas.Imiscuiram-se no mundo masculino, sendoem muitos sentidos obstruídas pelos ho-mens, a fim de apresentarem suas reivindi-cações e mostrarem a sua capacidade. Asmulheres aprenderam a seguir e a usar suaspercepções imediatas, baseadas em experi-ências passadas, e suas duras condições devida para imporem novas metas e novos te-mas para as suas vidas, especialmente noTerceiro Mundo.

Lamentavelmente, as populações daAmérica Latina não foram contempladascom políticas sociais abrangentes. No Bra-sil, durante anos, os governos limitaram oacesso aos pobres a uma cultura formal,negando-lhes o direito a uma alfabetizaçãobásica, seguindo uma política adotada sis-tematicamente e durante um longo períodopelas famílias poderosas dos “coronéis” doNordeste, que controlavam não só a econo-mia, mas a política na região1. Empodera-mento, num sentido formal, inclui a provi-são de oportunidades, entre elas o voto, oacesso aberto aos sistemas jurídicos legais eaos sistemas adequados de informações(CRASKE,1999, p. 23).

1. Família, trabalho e gênero

O Brasil possui uma grande parcela desua população vivendo com uma renda quenão é suficiente para cobrir suas necessida-des básicas. O principal determinante dacontinuidade da pobreza no Brasil pareceser, nas palavras de Sônia Draibe (2002), “deque os governos sob a forte pressão interna-

cional teriam optado radicalmente por umlado da balança – o do ajustamento econô-mico e fiscal. Ao fazê-lo, teriam dado signi-ficativos passos em direção ao desmantela-mento do antigo Estado de Bem-Estar Soci-al. No caso latinoamericano, do antigo e ain-da embrionário Estado de Bem-Estar Socialgestado em alguns poucos países da região”.Contudo, Draibe mostra que o “desmante-lamento” do Estado, tal como esperado poralguns, não se está dando nos seus progra-mas sociais, está ocorrendo “um movimen-to de inflexão gradual do padrão pretérito deproteção social, verificado sobretudo no pla-no das instituições das políticas e progra-mas, através da introdução ou reforço depelo menos três características: a descentra-lização, os novos parâmetros para a aloca-ção de recursos e a redefinição das relaçõespúblico-privado no financiamento e na pro-visão de bens e serviços sociais”.

Diante dessa política de ajustamento eco-nômico, tornou-se necessário cada vez maiso contraponto de uma política de combate àpobreza em que uma de suas faces é o crédi-to popular para os excluídos. Em todo o pe-ríodo das últimas décadas, foi crescente aincorporação das mulheres no mercado detrabalho tanto urbano quanto rural, e nosmais diferentes níveis de qualificação e es-colaridade. A entrada na esfera pública ex-terna, ocupada anteriormente pelos homensem proporções mais altas, permite que asmulheres vislumbrem novas oportunidadesremuneradas, um negócio só seu, como aabertura de uma banca de vendas de águade coco, de bijouterias, ou de roupas, trans-pondo as riscas de giz anteriormente deli-mitadas pelos homens. O gerenciamento deum micronegócio, a comprovação de suacapacidade laboral e administrativa, o su-cesso e o lucro farão com que busquem umamaior emancipação econômica, ensejandoa consolidação de seu negócio. A partir daí,torna-se possível que procurem os órgãospúblicos e privados do sistema financeiropara regulamentar o seu microempreendi-mento, confiantes no sucesso, ampliando

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seu espaço no mercado e buscando linhasde crédito. O sucesso dependerá do modocomo conseguirão articular seus negócios eseu modo de inserção na rede familiar ou deparentesco.

Na busca de um trabalho extralar, asmulheres potencializarão sua gestão empre-sarial e melhorarão sua auto-estima. Essenovo modo de vida impõe uma reorganiza-ção social, uma reestruturação “formal” nocentro urbano, em que seu cotidiano insere-se em exclusões e em objeto de estratégiasde recusa. É se desenraizar, modelar-se aum novo ambiente regido por uma determi-nada lógica atribuída à nova condição decamelô, sendo por isso chamadas de traba-lhadoras em domicílio ou externas. O traba-lho remunerado externo é visto pelas mu-lheres como uma estratégia possível deemancipação de seu papel subserviente nafamília (BRUSCHINI et al., 1998, p. 277). Jáque essa população considerada “inativa”encontra-se efetivamente ocupada, ou seja,trabalhando na produção doméstica nãoremunerada, trabalhando muito mais doque o homem, cumprindo uma dupla jorna-da de trabalho. Além disso, ela participa deatividades produtivas, costurando, bordan-do, cozinhando, até conseguir inserir-se, namaioria dos casos, no setor secundário.Elisabeth Lobo (1992, p. 257) compreendeque “estudos que associam família e traba-lho e que se tornaram correntes no Brasildos anos setenta e oitenta trazem uma con-tribuição fundamental, mas alerta para operigo de que esta reflexão tende a privilegi-ar o orçamento familiar e seu projeto estra-tégico, subsumindo integralmente as mulhe-res como atores sociais (...). O problema con-siste na visão estrutural sobre a naturezado trabalho feminino, o que impede a pro-blematização das formas históricas e cultu-rais da divisão sexual do trabalho e as fixaem termos de reprodução dos papéis sociais”.

Entendemos que a análise dos “papéissociais” tradicionais entre homens e mulhe-res, e o de suas transformações, deve ser fei-ta à luz da utilização da perspectiva teórica

de gênero (MACHADO, 1994), permiteapontar que toda e qualquer divisão sexualdo trabalho e configurações de papéis sexu-ais não é a atribuição de papéis a sexos pré-determinados, mas é decorrência de umaprévia relação social-simbólica que instituisignificados de gênero: feminino e masculi-no, “sem estabelecer uma mecânica de deter-minação” e que, “neste sentido, a divisão se-xual do trabalho é um dos muitos locus dasrelações de gênero” (LOBO, 1992, p. 260).

Como salienta Bruschini (1998, p. 277),a idéia de que a raiz da subordinação damulher está na sua exclusão do mundo pro-dutivo era o fundamento do feminismo, tantoem sua versão liberal como naquela de ins-piração marxista, constituindo uma referên-cia importante para transformar o trabalhofeminino em problema teórico. Lavinas(1992, p. 226) enfatiza que, no primeiro caso,a força de trabalho feminino estaria perden-do sua “especificidade” no modo capitalis-ta de produção, conquistando maior mobi-lidade, o que parece invalidar o paradigmaexplicativo da sobredeterminação da inser-ção familiar sobre a inserção profissional.Por isso mesmo, o ciclo vital da família es-tar-se-ia tornando inadequado como instru-mental teórico para se pensarem as desi-gualdades entre sexos na família e explicar,por extensão, a participação diferenciada dehomens e mulheres no mercado de traba-lho. As mulheres cada vez mais se constitu-em em população ocupada e seus níveis deescolaridade superam os masculinos.

Contudo, se a exclusão das mulheres domercado de trabalho em função de sua in-serção no trabalho doméstico parece decres-cer, em grande parte, sendo superada pelaentrada de mulheres no mercado do traba-lho e pela sua crescente inserção no mundoescolar, as diferenças salariais entre homense mulheres é que parecem concentrar os sin-tomas mais visíveis da permanência dasquestões diferenciais de gênero na inserçãono mercado de trabalho e na divisão de tra-balho doméstico. No Brasil, o rendimentomédio mensal de homens com 4 a 7 anos de

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estudos é igual a R$ 445,10, enquanto asmulheres percebem um salário de R$ 245,20,que corresponde a 55,1% do salário dos ho-mens. É importante apontar que as diferen-ças de salários por sexo no Brasil vai de61,15%, que o salário feminino representaem relação ao masculino da população deaté 3 anos de escolaridade, a 55,08% (de 4 a7 anos), 56,26% (de 8 a 10 anos) e 56,26%(de 11 anos ou mais). Na Região Metropoli-tana de Salvador, foco de nossa análise, asvariações são mais desfavoráveis às mulhe-res: 55,3% (até 3 anos), 54,38% (de 4 a 7 anos),55,82% (de 8 a 10 anos) e 56,02% (de 11 anose mais)2. Além disso, demonstra um hiatona remuneração da demanda por trabalho,o que faz certamente prevalecer a hegemo-nia da oferta de trabalho para os homens, alar-gando disfunções sociais, que conseqüente-mente aumentam o preconceito entre os ho-mens e as mulheres no mercado de trabalho.

O trabalho feminino não representoutendencialmente a saída do mundo domés-tico ou uma nova divisão de trabalho noespaço doméstico, mas passou a focalizar aarticulação entre o espaço produtivo e a fa-mília. Para a mulher, a vivência do trabalhoimplica sempre a combinação dessas duasesferas, seja pelo entrosamento seja pelasuperposição (BRUSCHINI, 1998, p. 278).Essa diferença salarial entre homens e mu-lheres parece indicar a exposição de que ouo gênero feminino é representado pelo mer-cado de trabalho como capaz de desvalori-zar, por si mesmo, a qualidade mesma dotrabalho, ou que a representação sobre ogênero feminino é que o escopo do mercadode trabalho é secundário em relação às fun-ções domésticas, podendo, por isso, ser me-nos remunerado.

2. Atividades singulares

Apesar do considerável volume de ativi-dades que se esconde sob a rubrica afazeresdomésticos e que mantém ocupadas mulhe-res de todas as camadas sociais, o trabalhodoméstico não é contabilizado nesse tipo de

coleta como atividade econômica. Existempreconceitos em relação ao papel da mulherna sociedade, que tende a classificá-la prio-ritariamente na sua função de dona-de-casa.Atividades singulares como criar filhos, co-zinhar, cuidar da casa e outras começarama ser valorizadas por pesquisadores, porsuas contribuições econômicas interna-cionais, conforme apresentadas por ana-listas internacionais (ALVAREZ, 1990;BRUSCHINI, 1992; CASTRO, 1992;CRASKE, 1999; LAVINAS, 1992; LOBO,1992; MACHADO, 1994), mostrando umacontribuição invisível das mulheres à ren-da nacional, por meio de uma pesquisa so-bre o tempo gasto por homens e mulheresem atividades mercantis e não-mercantis,em 31 países industrializados e não-indus-trializados.

Os resultados mostram que 53% do totaldo tempo de trabalho nos países em desen-volvimento e 51% nos industrializados sãogastos pelas mulheres. Mostram tambémque, nos países industrializados, 66% dototal do tempo do trabalho são gastos peloshomens em atividades remuneradas e 34%em não pagas, enquanto nos países em de-senvolvimento essa relação é de 76% em ati-vidades remuneradas e 24% em trabalho nãopago. Enquanto isso, as mulheres, tanto nospaíses em desenvolvimento como nos indus-trializados, consomem 34% do tempo de tra-balho em atividades remuneradas e 66% emtrabalho não pago. Craske (1999, p. 37) apon-ta para as novas mudanças nas estruturasdomiciliares, refletidas a partir das novasoportunidades de trabalho que surgem paraas mulheres, resultando em maiores possi-bilidades de uma vida independente, o quepredomina no crescimento de mulheres pro-vedoras do lar.

3. Transformações políticas e sociais

O Brasil, como outros países da AméricaLatina, viveu duas décadas de regime auto-ritário, marcado pela repressão, disfarçadode uma democracia progressiva, mas evi-

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denciando o corporativismo estatal. O au-toritarismo permitiu um acesso mínimo dapopulação à arena de decisão política, o quetornou as lutas das mulheres por uma sub-jetividade política mais difícil. O legado docolonialismo mostra uma sociedade alta-mente estratificada por hierarquias de clas-se, raça e gênero. Uma elite social de “gentedecente” emergiu, atuando como modeloscentrais para os pobres e as comunidadesafro-brasileiras. Esse legado deu à regiãouma série de características, que foram re-forçadas pela exclusão política: caudilhismo,um sistema peculiar no Nordeste, sistemaspersonificados pelo clientelismo e centralis-mo. A campanha para eleições diretas, queteve início no dia 25 de janeiro de 1984 como 1o Comício Diretas Já, realizado na Praçada Sé em São Paulo, marcou um ponto críti-co na transição para um regime civil demo-crático. Com a morte de Tancredo Neves,vencedor, por via indireta, do pleito de 15de janeiro de 1985, a Presidência é assumi-da pelo vice, José Sarney (1985-1988).

O clientelismo e o sistema patrimonia-lista na administração da política socialaumentaram a distância entre cidadãos ha-bilitados e serviços sociais, resultado deuma modernização neoliberal incompleta eincompetente de Fernando Collor (1990-1993). No escopo de implementação de re-formas institucionais, que integraram o eixodo programa do primeiro Governo do Presi-dente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), pretendeu-se reestruturar os conteú-dos sociais da democracia e do Estado deBem-Estar, pautada por objetivos de eqüi-dade e melhora da estrutura de oportunida-des, incluindo-se a defesa da estabilidademacroeconômica, a reforma do Estado e aretomada do crescimento econômico, masfalhou na sua meta final.

O fundamento teórico para uma análisedo desemprego e da exclusão social deveser feito por meio de um exame não só docontingente de trabalhadores e trabalhado-ras, mas das políticas sociais, questionan-do se estas foram estabelecidas num ambi-

ente macroeconômico estável, com a promo-ção de crescimento contínuo e eqüitativo ese houve geração de emprego. Durante aúltima década, a formulação de políticaspúblicas para o combate ao desemprego temsido uma prioridade nas agendas gover-namentais, tanto nas economias industri-alizadas, quanto nas economias em de-senvolvimento. Entre essas políticas in-cluem-se as dinâmicas de oferta e de de-manda de trabalho.

A partir da “oferta” e da “demanda”, sãodeterminados a taxa de desemprego, os sa-lários e a produtividade do trabalho. Se ocontexto global é negativo, afeta a economiaem desenvolvimento, colimando em impac-tos mais complexos e profundos, gerando odesemprego crônico. O desemprego crôniconão é um problema de subdesenvolvimen-to, nem uma questão exclusiva dos paísesem desenvolvimento, mas se traduz por de-safios institucionais e sociais, que são so-brepostos a ajustes econômicos e tecnológi-cos, que não podem ser facilmente enfrenta-dos da mesma forma que os países industri-alizados (POSTHUMA, 1999, p. 12).

O número de pessoas que a cada anoentra e sai do mercado de trabalho dependede dois grupos de fatores. O primeiro é atendência demográfica do país. O segundoé o desempenho da própria economia. A ele-vada taxa de crescimento da população bra-sileira do passado tem refletido profunda-mente no presente, apesar de que atualmen-te essa taxa vem decaindo, mas tem dificul-tado o crescimento da oferta de novos traba-lhadores. No futuro, com a diminuição dapressão sobre o mercado de trabalho, não sesentirá o quanto o crescimento demográficoprejudica a oferta de trabalho.

Em segundo lugar, discute-se o efeito daglobalização, com os seus sistemas de pro-dução e distribuição, as mudanças tecnoló-gicas e a intensificação da competição, quetêm desencadeado transformações profun-das no mundo do trabalho e aumentado aexclusão social3. Amadeo (1999, p. 36) res-salta que “antes o trabalho era visto como

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homogêneo e estático; o capital como a fon-te do progresso tecnológico. Hoje, o dina-mismo econômico está cada vez mais noconhecimento, nas habilidades e na experi-ência dos trabalhadores e não no capital fí-sico ou nas empresas”. A geração de postosde trabalho não está na falta de dinamismoda economia, mas, sim, em fatores ligadosao funcionamento do mercado de trabalho,que estão associados ao rápido crescimentoda produtividade do trabalho.

O crescimento da produtividade do tra-balho depende de uma melhor qualificaçãodos trabalhadores, permitindo a produçãode bens de melhor qualidade, utilizandomenos esforço por parte desses mesmos tra-balhadores. Somente com ganhos substan-ciais de produtividade e aumento de salári-os reais é que se desenvolverão os grandesmercados de massa no mundo. Nogueira eMachado Neto (1999, p. 169) argumentamque o desenho de estratégias antipobrezacomeça com a percepção de que a renda dopobre consiste no valor dos bens e/ou ser-viços gerados pelo patrimônio (capital) queele/ela possui, bens e/ou serviços esses quesão vendidos em um determinado mercado.Afirmam que o problema da pobreza é de-corrente de disponibilidade de um patrimô-nio muito limitado, incapaz de permitir avenda de um volume significativo de bens eserviços no mercado, e, quando essa vendaefetivamente ocorre, o preço recebido pelopobre é muito baixo

Em que circunstâncias o pobre vai po-der vender seu trabalho? Desigualdade de“renda” e desigualdade de “oportunida-des”, especialmente no Brasil, têm sido hámuito tempo associadas a diferentes aná-lises no que concerne à justiça social.Bourguignon (2003, p. 2) especifica que “osprimeiros desses conceitos referem-se à dis-tribuição desse produto conjunto de esfor-ços desempenhados por uma pessoa e àscircunstâncias particulares sob as quaisesses esforços são feitos. Na maioria doscasos, estão ligados à desigualdade de‘renda’”.

Como controlar essa situação se existeuma heterogeneidade de circunstâncias vi-vidas por todos os cidadãos, e imbuídas defatos como catástrofes naturais, desgraçasinesperadas, que cortam o destino de cadaum, atingindo-o na sua totalidade? Comoseparar essas “circunstâncias” dos “esfor-ços”?

Os patamares de pobreza no Brasil es-tão atrelados ao desemprego, que é mais ele-vado entre as mulheres do que entre os ho-mens. Especialmente, no que concerne aotrabalho envolvido em unidades de sobre-vivência, nas quais as tarefas das mulheres– sejam domésticas, sejam no setor públicoda economia – inserem-se de formas varia-das, segundo o estrato social. Há uma evi-dência clara de uma massa de desempregomaior entre os filhos do que entre os chefesde família e os cônjuges, como em 1997, quan-do, de acordo com o Relatório do IBGE, ataxa de desemprego dos chefes de famíliafoi de 4%; enquanto entre os filhos, superouos 10%. Da mesma forma que a taxa de de-semprego dos trabalhadores com mais de40 anos de idade foi de 3%, enquanto a taxade desemprego dos jovens atingiu mais de11%.

O ajuste liberal aumentou o grau de in-formalidade do mercado de trabalho no Bra-sil dos anos 90, e uma de suas causas refere-se às novas formas de produção e de rela-ções de trabalho, que aumenta o número detrabalhadores autônomos pelo processo deterceirização. São múltiplas as causas dainformalidade no Brasil, uma delas desta-ca-se pelos incentivos gerados pelo sistemade seguridade social, outra pela legislaçãotrabalhista, finalizando-se pelas peculiari-dades das pequenas e microempresas, queconcentram um grande número de trabalha-dores informais. Nogueira e Machado Neto(1999, p. 172) concordam com a tese da in-formalidade como resposta da sociedade àineficiência do Estado, e, sob essa ótica, suasorigens estão na manutenção dos elevadosencargos sociais do trabalho formal e dosexcessivos encargos fiscais, na presença de

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excessiva regulamentação burocrática, naparticipação do Estado em atividades eco-nômicas competitivas e no descrédito oudesconfiança quanto à alocação de recur-sos públicos. Fatores que favorecem a sone-gação e as práticas anárquicas e, ainda, aelevação dos níveis de incertezas.

Não nos surpreende o porquê de a po-pulação exigir políticas alternativas. De-manda-se uma resposta imediata às ques-tões de gênero e à segregação, que procu-ram modificar o processo de ajustes com umalto grau de seletividade, procurando bene-ficiar as mulheres pobres, oferecendo-lhesmais prioridade em termos de saúde e edu-cação, do que em termos de projetos urba-nos de larga escala. Novas oportunidadesdeveriam ser oferecidas aos pobres, às cri-anças, para que eles se tornem menos de-pendentes de seus pais. Ao enfocarmos otema da educação, uma maneira natural deresponder a essa questão consiste em estu-dar a “demanda para uma educação for-mal” ou, em outras palavras, perguntando-nos qual é o investimento feito pelos paisem seus filhos, condicionando-os às suaspróprias características? Quando nos refe-rimos às desigualdades existentes na edu-cação formal, que é explicada pelas caracte-rísticas dos pais e, em seguida, quantifica-das pela desigualdade de oportunidades,veremos que o resultado final será atribuí-do aos esforços heterogêneos de cada indi-víduo (BOURGUIGNON et. al., 2003, p. 3).O desafio maior é, como especifica Castro(2003, p. 13), ao mesmo tempo, combateruma e todas as iniqüidades sociais, combi-nando, portanto, políticas focalizadas euniversais, fazendo o nexo entre distintosmovimentos sociais e não perdendo a pers-pectiva político-crítica sobre a sociedadeestruturada em classes sociais.

A análise anterior nos direciona à se-guinte questão: “como suprir serviços finan-ceiros formais a uma população pobre ba-nida pelos bancos, cujas economias são ir-relevantes, sua demanda por crédito é pe-quena, e eles não oferecem garantia de pa-

gamento”? Os pobres têm medo de entrarnuma instituição financeira para pediremalgum empréstimo, porque sabem da buro-cracia das instituições bancárias oficiais.

O Brasil, diferentemente de outros paí-ses da Ásia e da América Latina, não parti-cipou das primeiras experiências de micro-crédito. O investimento na indústria de mi-crofinanças, o apoio para seu crescimento efortalecimento, por parte do Estado, nãoocorreu. O sistema financeiro funcionavatradicionalmente num contexto de altas ta-xas inflacionárias, crédito governamental esubsidiado, diferentes modalidades de cré-dito ao consumidor e um marco legal nãopropício que são apontados como principaiscausas desse atraso (BARONE, 2002, p. 9).Somente no fim da década de 70 é que foramcriadas as primeiras instituições de micro-finanças, em decorrência de uma estabili-zação econômica, quando cresceu o interes-se dos governos municipais e estaduais emapoiar a criação de ONGs especializadasem microcrédito.

A partir do modelo de criação das redesde serviços bancários para as pequenas co-munidades, como em Bangladesh, Bolívia,Indonésia e, finalmente, no Brasil, novasONGs foram evoluindo para bancos ofici-ais especializados no oferecimento de ser-viços bancários para os pobres, apresentan-do inovações institucionais, que crescerame se transformaram em instituições finan-ceiras sustentáveis de escala. Parte dessesonho visionário foi alcançado, mas a reali-dade nos mostra que ainda há muito a serrealizado, antes que possamos declarar queos desafios de uma demanda por serviçosfinanceiros direcionados aos pobres tenhasido alcançada, principalmente nas zonasrurais. A maioria dos programas de micro-finanças é pequena e mostra-se vulnerável,apresentando um certo constrangimento derecursos financeiros, operando em poucaslocalidades, servindo a um específico nichode clientes, demonstrando que se encontramexpostos a riscos sistemáticos e a uma car-teira de empréstimos não diversificada,

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como se vê em algumas cidades do Nor-deste, Sul e Centro-Oeste.

Como a população miserável não tem umemprego formal ou um endereço residenci-al fixo, essas instituições de microfinançascorrem o risco de não alcançarem taxas ade-quadas de pagamento, tanto pelos juros co-brados, como pelos empréstimos totais. Umaoutra deficiência apontada pelos especia-listas (MOSLEY, 2001; NAVAJAS et al.,2000; ZELLER; MEYER, 2002; HOLT; RIBE,1991; SEN, 1999) é que os pobres, simples-mente por que são pobres, não poupam –essa é uma das causas por que somente al-guns poucos programas efetivamente ofere-cem condições para depósitos. Alguns au-tores, no entanto, enfatizam que há evidên-cia de que os pobres poupam, especialmen-te para o consumo financeiro informal, como acúmulo de estoques de cereais sazonal-mente, interrompendo o processo quando aestação da colheita termina. Eles tambémpossuem bens duráveis, tais como ferramen-tas, jóias, maquinário, carroças, que podemser vendidos em tempos de crises, e que po-derão ser recomprados quando a situaçãofinanceira melhora. As pesquisas recentesindicam que os pobres, a partir do momentoque se lhes dêem oportunidades e incenti-vos, poupam, podem poupar mais do quepodemos imaginar.

Outros programas de microfinanças res-tringem o crédito às mulheres, mostrandoindiretamente que as mulheres constituemum segmento em que o retorno dos emprés-timos fica muito aquém das expectativasbancárias, especialmente nos países em de-senvolvimento. Existem evidências de pro-gramas de microfinanças com a participa-ção maciça de mulheres, que provaram queessa assertiva não é verdadeira, como de-monstra o programa de crédito para as mu-lheres em Bangladesh, BancoSol na Bolívia,em que os programas centrados nas mulhe-res tiveram taxas muito mais altas de paga-mento do que os esquemas de crédito tradi-cionais, que excluem as mulheres de suascarteiras.

4. Mudança de cenário

O universo das mulheres no setor infor-mal urbano, beneficiárias ou não do micro-crédito, faz parte de uma questão de dife-rença e da desigualdade social, da univer-salidade e da particularidade; resgatar e si-tuar as mulheres num lugar único é a nossatarefa. Tarefa essa que inclui ouvi-las nassuas solicitações, nas suas inquietações, que,na maioria das vezes, incide em discussõessobre a pobreza, o preconceito, a carênciade oportunidades, para que possam viveruma vida com padrões mínimos de confor-to e segurança. As mulheres reclamam quesempre lhes foram oferecidos os menorespercentuais salariais, nenhuma chance paramudarem suas vidas, ou mesmo a menoroportunidade para que pudessem abrir umpequeno negócio. Questionam sobre as pri-vações a que estão sujeitas e dizem que, ape-sar de trabalharem arduamente dentro efora do lar, não visualizam uma melhor pers-pectiva de vida em seu futuro. As mulheresdesejam mudar esse cenário pessimista paraum futuro de chances visíveis e enriquece-doras.

As mulheres estão descobrindo novoscaminhos, traçando novos propósitos,abrindo novas possibilidades; no entanto,ainda não existem parâmetros igualitárioscom os homens na esfera econômica (salá-rio e status), na esfera política (nas represen-tações partidárias), na esfera cultural (asimagens das mulheres como seres capazes,como seres inteligentes), ou na esfera domés-tica (compartilhando tarefas domésticas).Mas, elas estão-se expressando, definindoseus alvos, reduzindo as diferenças que asseparam dos patamares de poder ocupadospelos homens. Numa frase, estão-se empo-derando.

Ao enfocarmos a esfera econômica (sa-lário e status), reflexionamos sobre níveisatuais de pobreza em que se insere o Brasil,e suas perspectivas futuras. Um Brasil comuma transição democrática real, direcio-nada à políticas sociais, que se revistam

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de um amplo investimento em seus habi-tantes (capital social).

Basicamente, há um papel fundamentalque o Estado deve assumir para equiparcada geração de cidadãos com uma compe-tência comunicativa compartilhada, e combase no respeito mútuo. No Brasil, essa com-petência comunicativa faz-se necessária,começando com as crianças na escola, tan-to na área pública, quanto na privada, paraque tenham a oportunidade de demonstraro alto padrão de educação, que será ofereci-do a esses cidadãos, para transformar suasvidas num curto espaço de tempo.

A história nos mostra uma América La-tina onde os líderes políticos sempre foramhomens que conquistaram e reconsquitaramo poder, gerações masculinas que fecharamas portas às mulheres. Contrariando as res-trições sociais que lhes foram impostas, asmulheres estão ganhando mais autoconfi-ança, mais controle direto sobre suas pró-prias “opções de vida”.

As mulheres na América Latina aindanão conseguiram alcançar uma autoridadepolítica de power over – para mudarem ascoisas. Em vez disso, registraram ganhosespecíficos em esferas restritas, que foramrotuladas de power to. As mulheres foramcapazes de promover uma consciência in-dividual, tanto entre os homens, quanto en-tre as mulheres, e promoverem algumasmodestas reformas. Conseguiram alcançaresse sucesso principalmente por meio daparticipação coletiva e da mobilização, com-binando o power with, com o power within.Apesar das conquistas evidenciadas, háuma desconexão entre o ativismo femininocom suas conquistas práticas. Em síntese,os valores sociais patriarcais enrustidos nasociedade brasileira impediram de formainequívoca a participação feminina.

Notas1 Ver Josué de Castro (1983), Celso Furtado,

(1979), com sua economia do desenvolvimento,Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, que traz à

tona a questão da divisão social; e Paulo Freire(1972, 1974), porque advogava uma mudança“consciente” na sociedade. Ele era um ativista paraos pobres, um precursor, sempre ensinando as clas-ses mais excluídas a ler e a escrever. Desde o prin-cípio, ele demonstrou solidariedade em relação aoser humano e uma aproximação política defensiva.Paulo Freire criou os círculos culturais em Recife,Estado de Pernambuco, voltados para os trabalha-dores das classes mais pobres, que se encontravameventualmente para discutirem temas específicos ede interesse para eles. As discussões eram coorde-nadas por um professor, que também definia a ma-neira como aquele tópico, que havia sido escolhidopelos trabalhadores, deveria ser enfocado. Ver Frei-re-Dowbor (2000), Sonia A. Alvarez (1990).

2 Ver Pesquisa nacional para amostra de domi-cílios 2001: “Rendimento médio da população ocu-pada, em reais, por grupos de anos de estudo esexo, segundo as Grandes Regiões, Unidades daFederação e Regiões Metropolitanas – 2001. Rio deJaneiro: IBGE, 2002.

3 As conseqüências do neoliberalismo na Amé-rica Latina já estão bem demonstradas pelas crisesbrasileira e argentina; neste sentido, a autoridadedo Fundo Monetário Internacional, principal ins-trumento da consolidação de políticas neoliberais,viu-se abalada pela sua inépcia em solucionar asucessão de crises internacionais iniciadas na Ásiaem 1997, e essas mesmas crises abalaram a cren-ça dogmática na globalização como panacéiapara o desenvolvimento econômico. Para maio-res detalhes a esse respeito, ver Alex JobimFarias, Pedro Quaresma e Júlio Miragaya (2003,p. 28-34).

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Dirce Mendes da Fonseca

1. IntroduçãoEste texto toma como foco a apresenta-

ção da discussão ética no campo da políticae da esfera pública, e a atualidade desse temana vida social e política. Os conceitos ética,esfera pública e publicidade do poder estãointerconectados no texto. Este artigo não tema pretensão de aprofundar questões filosó-ficas relativas à ética, mas trazer à luz ques-tões que, na vida política, corroem as insti-tuições, a política, a sociedade e empobre-cem a cidadania. Apresenta a visão de éticae política de diferentes autores. Reforça anecessidade da ética como componente in-dispensável da moralidade pública.

As doutrinas éticas nascem e desenvol-vem-se como respostas aos problemas bási-cos apresentados pelas relações entre os ho-mens e têm um caráter histórico e social.Mudanças substanciais na vida social pro-vocam mudanças também na vida moral.Surge a necessidade de novas reflexões, oude uma nova teoria moral para fundamen-tar a relação entre os homens e as institui-ções políticas e sociais. Assim, “toda cultu-ra e cada sociedade institui uma moral, istoé, valores relacionados ao bem e ao mal, aopermitido e ao proibido, ou seja, institui umsistema de valores, cria uma filosofia mo-ral” (CHAUÍ, 1994).

O campo da ética, seu lugar na política

Dirce Mendes da Fonseca é Professora ad-junta aposentada da Universidade de Brasília.Professora do curso de Mestrado em Direitodo UniCEUB.

Sumário1. Introdução. 2. Esfera pedagógica da polí-

tica. 3. Estado democrático, ético e de cultura.

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O objeto da ética é o estudo do mundomoral dos homens, estes considerados comoseres sociais e históricos. Assim, os valoresmorais modificam-se na História e, por isso,são também construídos historicamente. Astransformações histórico-sociais exigem,igualmente, reformulações nas doutrinastradicionais éticas sobre vários aspectos.

Desde a Antigüidade, os problemas éti-cos ocupam uma parte especial na filosofiagrega, sobretudo no pensamento de Sócra-tes, Platão e Aristóteles. Para Sócrates, o sa-ber fundamental é o saber da natureza hu-mana, daí a sua máxima: “Conhece-te a timesmo”. Dessa forma, o homem que conhe-ce o bem não pratica o mal. Define o sujeitoético e moral como aquele que tem consciên-cia de sua ação.

Platão relaciona a ética com a filosofiapolítica, ou seja, a pólis – o terreno próprioda vida moral. A ética desemboca e relacio-na-se necessariamente com a política. “O ho-mem é bom enquanto bom cidadão”. Na éti-ca de Platão, encontra-se a unidade moral eda política, uma vez que, para ele, “o ho-mem se forma espiritualmente somente noEstado e mediante a subordinação do indi-víduo à comunidade”.

Existe um elo entre a ética aristotélica e ade Platão no que se refere à filosofia políti-ca. Para ambos, a comunidade social e polí-tica é o meio necessário da moral. Aristóte-les acrescenta à consciência moral, trazidapor Sócrates, a vontade guiada pela razão.As virtudes aristotélicas inserem-se numasociedade que valoriza as relações sociopo-líticas.

Três aspectos poder-se-iam mencionarcomo sintetizando a ética dos antigos: o ra-cionalismo, o naturalismo e a inseparabili-dade entre ética e política – relação entre aconduta ética do indivíduo e os valores dasociedade.

A ética iluminista rejeita as concepçõesmorais da filosofia grega e cristã e formula oimperativo categórico, procedimento peloqual o indivíduo testa a máxima de sua açãopara saber em que medida ela é generalizá-

vel. “Age de tal maneira que a máxima desua ação possa sempre valer como princí-pio universal de conduta”. “Age tendo ahumanidade como um fim e jamais comoum meio”. A universalidade da razão ga-rante a universalidade do sentido da ação.Kant rompe a normatividade fundada emconteúdos empíricos. Em Kant, o agir mo-ralmente se funda na razão. A ética kantia-na é uma ética formal e autônoma. A essaperspectiva ética, Dilthey (1994, p. 26) cha-ma experiência interior. O ético está contidono indivíduo e o indivíduo é a razão pró-pria da ética. Assim, para Dilthey, a “éticado presente precisa ser uma ética social” *.

Hegel, procurando superar o ponto devista kantiano, segundo o qual a norma seenraíza na própria natureza da razão, noindivíduo isolado, instituiu uma esfera quese chamou esfera da eticidade ou vida ética.Nessa esfera, a liberdade se realiza etica-mente dentro das instituições históricas esociais, tais como a família, a sociedade ci-vil e o Estado. Por isso a liberdade só podeefetivar-se no Estado, realização da razãona História, momento objetivo da liberda-de. A eticidade significa aquela esfera da

* A ética social parece ser, todavia, apenas umnome diferente para designar o mesmo mododiltheyano de conceber a vida. Vejamos de quemodo, de fato, isso acontece, ou seja, de que modose verifica uma mudança de rótulo apenas, perma-necendo o conteúdo o mesmo e velho nosso conhe-cido. Como sabemos, a ética diltheyana, em suaestrutura constitucional, encontra-se subjugada aoconceito de vida do autor, uma vez que ela deveextrair do fim da vida o fim da educação. Comessa tarefa, a ética se transforma em verdadeiraserva da pedagogia, que, como sabemos, é o maiselevado destino da ciência e da filosofia e, como tal,o ponto central da desembocadura de todo o cau-dal das investigações filosóficas do autor sobre avida. Isso porque o fim de todo o navegar do autorpelos mares muitas vezes indóceis, revoltos e, prin-cipalmente, traiçoeiros da compreensão da vida, énecessariamente a pedagogia. Temos, então, maisuma vez captado nessas relações de subordinaçãoou de finalidade entre filosofia e pedagogia o senti-do fundamental de nossa tese, sentido esse formal-mente expresso no título de nosso trabalho.(DILTHEY, 1987, p. 133).

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sociedade em que a consciência moral seconcretizou não na consciência do indiví-duo, mas em normas, usos, instituições eorganizações. A ética adquire um carátersocial e todo o processo ético se desenvolvena convivência social e histórica, o que con-substanciaria o ideal da ética social. O ho-mem é um ser histórico e cultural. Além davontade individual subjetiva, existe umaoutra vontade – a vontade objetiva, circuns-crita às instituições ou à cultura. Essa von-tade objetiva – impessoal, coletiva, social,pública – cria as instituições e a moralidadecomo sistema regulador da vida coletiva, istoé, dos valores de uma sociedade, numa épo-ca determinada (CHAUÍ, 1994). Os valoresde uma sociedade são determinados e con-formados pelos sistemas culturais, morais epolíticos e representam a consciência moralde uma dada sociedade, a expressão da éti-ca social. A política representa o espaçopositivo de realização da ética.

Diferente dessa perspectiva, Maquiavelvê a política como instrumento para a con-solidação de um novo poder e, assim, deixade ser obra de Deus, da natureza e da razãopara tornar-se obra social e trabalho histó-rico dos próprios homens, em que os “finsjustificam os meios” (o príncipe deve aca-bar com a anarquia feudal).

O divórcio entre ética e política está emtratar a ética como esfera da vida privada ea política como esfera da vida pública. Noentanto, para Maquiavel, ética e política têmuma intencionalidade absoluta. Tal inten-cionalidade deduz as regras para um esta-do forte e livre de qualquer critério ético esobrepuja todo e qualquer critério. No cam-po da ética, há duas dimensões que poderi-am ser chamadas de “ética restritiva” e “éti-ca ampliada”. Esta última, consubstancia-da na junção do público e do privado.

2. Esfera pedagógica da política

O conceito e a prática de ética social en-contram na política e na esfera pública oespaço de realização de uma ética “positi-

va”, que instrui o indivíduo e a sociedade, asociedade e o indivíduo, para o exercício daatividade pública. Se a política é o espaçopúblico da práxis e a ética o seu conteúdomoral, exigem-se, em nome da dignidadepública e da cidadania, sujeitos éticos emorais na condução da “coisa pública” eno exercício da atividade política e pública.Para reforçar essa idéia, Kant é categóricoao defender a tese da publicidade dos atosde governo como remédio contra a imorali-dade política. Afirma que “todas ações rela-tivas ao direito de outros homens cuja má-xima não é conciliável com a publicidadesão injustas”. Esse princípio busca trazer adiscussão da ética na política e da necessi-dade de se transformar o “poder invisível”em “poder visível”. O caráter público dopoder – aberto ao público – fortalece a afir-mação de Bobbio (1986, p. 30) sobre a neces-sidade de governo do poder público, empúblico:

“(...) a exigência da publicidade dosatos de governo é importante não ape-nas, como se costuma dizer, para per-mitir ao cidadão conhecer os atos dequem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicida-de é, por si, uma forma de controle,um expediente que permite distinguiro que é lícito do que não é”.

A publicidade dos atos de governo é umaexigência da vida democrática e representao fortalecimento democrático das institui-ções, da vida pública, da democracia con-solidada nas regras que possibilitam a livree pacífica convivência dos cidadãos em so-ciedade. Democracia entendida como orde-namento jurídico, político e social que per-mite a concretude dessa convivência social.É no estado democrático que se realiza apráxis democrática. Bobbio (1998) concei-tua o Estado democrático “como aquele noqual se efetua com maior adequação o mo-delo ideal, a liberdade na coexistência, valedizer, a coexistência dos seres livres, por-tanto a mais próxima efetivação, entre to-das de que se tem notícia na história con-

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temporânea, da comunhão pessoal e defini-tiva do ideal de justiça”. Reforçando a tesedo caráter público do poder com uma ne-cessidade ética e democrática, Kelsen, aoconceituar a democracia por uma visão demundo no respeito pelo outro e pelo princí-pio de legalidade, de controle e de respon-sabilidade do poder, que exigem que os go-vernantes estejam à luz pública para os efei-tos específicos das avaliações dos governa-dos, reforça o princípio da publicidade dosatos de governo. Assim, a visibilidade dopoder permite o controle do Estado pela so-ciedade civil. O público, como esfera visí-vel, estabelece uma nova relação de trans-parência do poder e da publicidade dos atosde governo. A crise ética e de governabilida-de aparece no momento em que os cidadãose a sociedade tomam conhecimento da apro-priação do público pelo privado, no momen-to em que o ilícito e o não ético vêm à tona eo rei se desnuda. A sociedade civil e políticase enfraquece.

No Brasil, a Constituição de 1988 avan-çou ao estabelecer a publicidade da admi-nistração pública, em todos os níveis e mo-dalidades. “A administração pública dire-ta, indireta ou fundacional de qualquer dospoderes da União, dos Estados, do DistritoFederal e dos Municípios obedecerá aosprincípios de legalidade, impessoalidade,moralidade e publicidade” (art. 37). A Cons-tituição brasileira avança por seu conteúdoético democrático. Vale dizer que uma cons-tituição é democrática “quando não apenasconsolida as liberdades civis, mas cria ór-gãos e leis que ajudem no sentido de queessas liberdades tenham realidades e sejamsalvaguardadas, e que ali, onde os bastiõeserguidos contra os abusos de poder desmo-ronem ou estejam ameaçados de ruir, passarapidamente a mobilizar-se para erguer no-vos redutos” (BOBBIO, 1998).

A Constituição brasileira fixou para aadministração pública os princípios da mo-ralidade e da publicidade. Como desenvol-ver uma pedagogia para a afirmação dosvalores éticos na sociedade e na vida públi-

ca e para o exercício do poder de forma de-mocrática e transparente? Como tornar o po-der “visível” e reforçar a esfera de eticidadeno nível do Estado e dos governos? ParaHannah Arendt (1989, p. 517), é no corpopolítico que se estabelecem as leis, chama-das por leis positivas:

“No governo constitucional, as leispositivas destinam-se a erigir frontei-ras e a estabelecer canais de comuni-cação entre os homens, cuja comuni-dade é continuamente posta em peri-go pelos novos homens que nela nas-cem. A cada nascimento, um novo co-meço surge para o mundo, um novomundo em potencial passa a existir.A estabilidade das leis correspondeao constante movimento de todas ascoisas humanas, um movimento quejamais pode cessar enquanto os ho-mens nasçam e morram. As leis cir-cunscrevem cada novo começo e, aomesmo tempo, asseguram a sua liber-dade de movimento, a potencialidadede algo inteiramente novo e imprevisí-vel; os limites das leis positivas são paraa existência política do homem o que amemória é para a sua existência histó-rica: garantem a preexistência de mun-do comum, a realidade de certa conti-nuidade que transcende a duração in-dividual de cada geração, absorve to-das as origens e delas se alimenta.”

Arendt chama atenção para o risco deisolamento na esfera política e o perigo dadestruição da esfera da vida pública, o quesignificaria destruir as capacidades políti-cas dos homens. Será que tal risco não seaplica, também, à destruição da esfera éticado Estado, governo e sociedade?

Hegel, ao afirmar que o “Estado é a reali-dade efetiva da idéia ética”, reforça a dis-cussão da ética no nível das estruturas ins-titucionalizadas, e da função do Estadocomo instância do interesse comum e uni-versal. No entanto, tal concepção idealistade Estado não dá conta de abarcar as con-tradições e a correlação de forças que emer-

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gem no interior do Estado. Dessa forma, paramelhor compreender o Estado, há que situá-lo como instância determinada pelo conjun-to das relações de produção. Logo, os inte-resses do Estado não estão relacionadossomente ao interesse público e ao controlepúblico. Há outros interesses ligados e me-diados pelas relações capitalistas.

3. Estado democrático,ético e de cultura

O Estado tem, na obra de Gramsci (1989),uma perspectiva político-estratégica de seconstruir um espaço hegemônico do conjun-to dos meios de direção intelectual e moralresultante do esforço conjunto do aparelhogovernamental e sociedade civil – instânci-as interligadas e dialeticamente constituí-das, no reforço da idéia do “estado ético ede cultura”. Cada Estado é ético quando umade suas funções mais importantes for a deelevar a grande massa da população a umdeterminado nível cultural e moral de suascondições objetivas, em nível social, políti-co e econômico. Pode-se, pois, conceber umEstado ético que também se torna educadorpela cultura que cria e se desenvolve, no ní-vel da práxis política e de suas instânciaspúblicas, visando à emergência de uma cul-tura que reforce as condições concretas decidadania. Tais condições significam am-pliar a democracia, dando representação po-lítica às classes excluídas e condições paraque os sujeitos lutem pelos seus direitos.

Essas condições traduzem-se na ampli-ação dos direitos sociais, civis e políticos edos deveres de cidadão. Pensar cidadaniasignifica ampliar direitos, criar espaços paravaler os direitos. Cidadania abrange umconceito ampliado de direitos e deveres.Deveres no sentido de os sujeitos serem co-participantes da vida pública. Conformepropõe Aristóteles, a cidadania é, pois, aparticipação ativa nos assuntos da cidade.É o fato de não ser meramente governado,mas também governante. Nesse sentido, acidadania não consiste apenas em gozar de

certos direitos; consiste, essencialmente, nofato de ser co-participante no governo, su-jeito e agente de cidadania no reforço devalores culturais, sociais, políticos e moraisde uma sociedade (ARENDT, 1967).

Desse modo, poder-se-ia aprofundar oconceito de cidadania ativa e ampliada –aquela que coloca os sujeitos no centro desua própria história, com possibilidade dereforçar e recriar os valores culturais, soci-ais, políticos e morais da sociedade e da vidapública; estabelecer o consenso de ordemmais alta da convivência democrática. O que,no entendimento de Agnes Heller (1998),significa que as leis de um corpo políticosão legitimadas por seus cidadãos (todosos cidadãos participam no discurso de va-lor), e é por isso que tais leis se aplicam atodos os cidadãos daquele corpo político.Uma comunidade em particular (dentro des-se corpo político) legitima certas normas eregras como pertencendo àquela comunida-de, e elas são válidas para tal, e aplicadas aosmembros daquela comunidade legitimada.

A ampliação da cidadania está intima-mente ligada à função do Estado e das insti-tuições sociais na formação dos cidadãosativos co-participantes no governo. Dessemodo, todos os cidadãos são consideradoscomo governantes em potencial; tornam-se,na forma aristotélica, “bons cidadãos” edesenvolvem o que Agnes Heller chama devirtude dos cidadãos, ou seja, aquela virtu-de que todos os cidadãos precisam parti-lhar na construção do melhor mundo socio-político e, na visão gramsciniana, de umEstado educador. Nesse sentido, o bom ci-dadão é comprometido com o discurso devalor como procedimento justo. Entende queas normas e regras devem ser validadas pelaautorização dos sujeitos envolvidos por con-senso. Dessa forma, o cidadão prepara-separa a vida pública e social tendo o com-promisso ético além dos interesses particu-lares.

O fortalecimento da esfera pública, queeduca pela práxis e excelência política, re-força a ampliação da cidadania, exige um

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estado democrático de fato, que avance daforma para o fato, ou seja, que não se esteri-lize apenas na forma (democracia formal quediz respeito precisamente à forma de gover-no), mas, fundamentalmente, que aja con-teudisticamente pelo exercício concreto dademocracia substancial que diz respeito aoconteúdo dessa forma (BOBBIO, 1987). Umdos conteúdos essenciais da democracia é aconstituição da cidadania. Democracia ecidadania são categorias relacionadas –uma não existe sem a outra. São interliga-das. A existência da democracia pressupõea existência de cidadãos livres, criativos etransformadores, que ajam e lutem por seusdireitos e exerçam de forma consciente seusdeveres de cidadania e da eticidade da esfe-ra pública.

Nesse sentido, tomo essas categorias re-ferenciais para seguir a análise da demo-cracia como um “processo inacabado”, e dacidadania como um “processo em constru-ção”. Logo, as instâncias de concretizaçãoda cidadania também se situam em dois ní-veis relacionais: Estado e sociedade civil. Ajunção dessas esferas representa o espaçoético e educativo de construção de uma so-ciedade melhor, mais justa, igualitária e de-mocrática.

Constitui tarefa política e educativa dasociedade contemporânea reedificar a cida-dania real – uma cidadania que contempledireitos civis, políticos, sociais e culturais.Não se pode pensar numa cidadania presasomente ao Estado, mas numa que dependada ação dos sujeitos coletivos e da ação epráxis de cidadania, que deve ocorrer napolítica, no Estado, nos sindicatos, partidos,escolas, enfim, em todas as esferas da socie-dade. Os sujeitos passam a atuar como ci-dadãos ativos e co-participantes no gover-no e na sociedade, pelas relações que criame desenvolvem. O exercício da cidadaniaconsciente e responsável, e de uma práxisindividual e coletiva, no nível da política ede instituições da sociedade civil e do Esta-do, fortalece a esfera da eticidade da socie-dade civil e do Estado.

A democracia, como governo do “podervisível”, e a ética, como categoria de regula-ção da atividade pública e política, funcio-nam como constitutivos de uma forma su-perior de sociedade. A ética como categoriade regulamentação da atividade públicapermite desenvolver novas relações sociais,sustentadas por uma cidadania ativa emtodos os níveis.

No entanto, há que considerar que, numasociedade baseada na prática política comoesfera privada, na exploração do trabalho,na desigualdade social e política e na ex-clusão dos sujeitos dos direitos políticos eculturais, a realização ética e moral encon-tra-se definitivamente comprometida. Avan-çar na construção da ética e da cidadaniasignifica, objetivamente, desenvolver políti-cas que contemplem a melhoria das condi-ções de educação política e cidadã, e na ne-cessidade de reinventar o que todos os ho-mens têm em comum: a dignidade humanae a dignidade da política como instrumentode transformação social.

A educação é um dos elementos essenci-ais da cidadania e da vida política. Há quese educar para a cidadania. Uma educaçãoque priorize a formação da consciência crí-tica e reflexiva, formando sujeitos ativos queatuem na vida social e política do país. Damesma forma, é tarefa educativa do Estado,da sociedade, da escola e da família a for-mação de sujeitos éticos e morais que pos-sam construir uma sociedade mais justa eigualitária, tendo a ética como referencialde promoção da cidadania para o exercícioda política, o que, na visão de Weber, con-substanciaria a “política como vocação”.

A sociedade brasileira assiste, por umlado, aos escândalos na política, marcadospor interesses escusos à vida política e de-mocrática e, por outro lado, à retomada dasdiscussões sobre a ética em todas as áreasdo conhecimento, na sociedade, na políticae na ciência. Tais fatos revelam – no campoda produção intelectual e do comportamen-to social – um incontestável retorno às exi-gências éticas e uma reação da sociedade

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na luta por espaços sociais mais qualifica-dos e formativos.

A sociedade brasileira tem exigido e lu-tado pela ética na política e por uma morali-dade pública. Gianotti traz a contribuiçãode procurar definir este conceito – o da mo-ralidade pública: consiste numa esfera emque todos os seres humanos participam, namedida em que cada sistema moral, a fim derevelar sua unilateralidade, precisa ser con-frontado por outros. Segue-se a necessida-de de que todos os seres humanos sejam in-cluídos no seu âmbito. Sob esse aspecto, éuma moral cosmopolita, estabelecendo re-gras de convivência e direitos que assegu-rem que os homens possam ser morais. Énesse sentido que os direitos dos homens,tais como em geral têm sido enunciados apartir do século XVIII, estipularam condi-ções mínimas do exercício da moralidade.Por certo, cada um não se deixará afetar nasua moral; entretanto, aprenderá a convivercom outros, a reconhecer a unilateralidadedo seu ponto de vista. E, com isso, estaráobedecendo à sua própria moral de umamaneira especial, tornando-a imperativa ecategórica, dela se utilizando como um mo-mento particular do exercício humano de jul-gar moralmente. Desse modo, a moral do ban-dido e a do ladrão tornam-se repreensíveisdo ponto de vista da moralidade pública, poisviolam o princípio da tolerância e atingem osdireitos humanos fundamentais, agridem acidadania e empobrecem a política.

Considerando as discussões sobre a éti-ca e a política, bem como sobre política ecidadania, constituem desafios contempo-râneos ações e práxis do Estado e sociedadeque contemplem:

• fortalecer a ética na política, a morali-dade e a transparência na gestão pública;

• criar a cultura da transparência nos“negócios” econômicos do Estado;

• fortalecer políticas do espaço públicoque priorizem as ações de cidadania;

• procurar estabelecer, na esfera públi-ca, as virtudes cívicas dos princípios políti-cos da democracia;

• recriar a ética da solidariedade, rea-firmando os valores coletivos e a luta contratodo tipo de desigualdade e exclusão social;

• fortalecer a “democracia como valoruniversal” e o Estado publicizado como con-quistas democráticas;

• fortalecer a sociedade civil e a participa-ção social em todas as instâncias para o exer-cício de uma cidadania ativa e consciente;

• universalizar a educação como direitode todos e incentivar práticas pedagógicasque reforcem a participação dos sujeitos naprodução de novas relações sociais, políti-cas, econômicas e culturais;

• fortalecer as esferas coletivas de decisãoe de construção de políticas públicas que pri-orizem as necessidades de cidadania;

• educar cidadãos para o exercício pú-blico.

A discussão da ética força, necessaria-mente, o pensar em novas formas de convi-vência social e política, nas quais a “huma-nidade seja tratada como um fim e nuncacomo um meio”, e na necessidade de, coti-dianamente, reinventar o nosso tempo, paraque, a cada novo momento histórico, garan-ta a humanidade e a humanização, e quecada um de nós esteja representado numavida política que qualifique o político comoesfera e estratégia de transformação da so-ciedade e do espaço público.

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1. Introdução

O Brasil possui um patrimônio florestalbastante rico, representado por diferentesformações vegetais que originam os biomas.Esse patrimônio, de uma maneira geral,pode ser caracterizado pela floresta amazô-nica, no Norte; pela caatinga, no Nordeste;pelo cerrado, no Sudeste e no Centro-Oeste;pela floresta atlântica, em todo o litoral bra-sileiro; pelos campos sulinos, no Sul, pelosistema costeiro no Norte e no Nordeste; epelas zonas de reflorestamento, distribuídasem quase todas as regiões do Brasil. Ao suldo país, temos ainda um outro bioma típico,a floresta de araucárias. Esse patrimônio estádistribuído em todo o território brasileiro,sendo que aproximadamente 63% de flores-tas (cerca de 300 milhões de hectares) estãoconcentrados na região Norte, conferindoao país uma vocação florestal.

Contribuição da legislação florestalfrancesa para a legislação florestalbrasileira

Nara Maria Esteves Fonseca GonçalezChristian Dugas de la BoissonnyJoaquim Carlos Gonçalez

Nara Maria Esteves Fonseca Gonçalez éMestra em História da Ciência Jurídica Euro-péia e doutora em História do Direito pelaUniversidade de Nancy II (França). Servidorapública federal no Senado Federal.

Christian Dugas de la Boissonny é Profes-sor, Doutor da Universidade de Nancy II. Fa-culdade de Direito, Ciências Econômicas e Ges-tão. Nancy, França.

Joaquim Carlos Gonçalez é Professor Dou-tor da Universidade de Brasília, Departamentode Engenharia Florestal.

Sumário1. Introdução. 2. Caracterização da floresta

francesa. 2.1. A floresta francesa e a sua diversi-dade. 2.2. Principais essências florestais. 2.3. Agestão das florestas na França. 2.4. Administra-ção sustentável da floresta. 3. As florestas naFrança. 3.1. As florestas públicas. 3.2. As flores-tas do Estado. 3.3. As florestas de coletividadespúblicas. 3.4. As florestas particulares. 4. A pro-dução florestal francesa. 5. Contribuição da le-gislação francesa para a legislação brasileirareferente ao desmatamento e incêndios flores-tais. 6. Considerações finais.

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A Constituição Federal outorgou aosEstados a competência para fomentar ativi-dades, preservar as florestas e proteger omeio ambiente (art. 23, incisos VI e VII). Asatividades ligadas à gestão dos recursos flo-restais sempre estiveram confiadas à admi-nistração federal, que as exercia, em carátersupletivo, por intermédio do IBAMA. Obje-tivando tornar efetivo esse controle, umamplo conjunto de normas foi elaborado.Contudo, é patente a ineficácia dos meca-nismos e instrumentos de comando e con-trole no contexto atual.

O bioma Amazônico coloca o Brasil emuma posição de destaque no contexto mun-dial, não só pelo seu desempenho ecológi-co, mas também pela sua grande importân-cia econômica e social. No entanto, é na flo-resta Amazônica que se registra um grandenúmero de agressões à natureza. Os doisfatores mais importantes que causam des-truição de nossas florestas, sobretudo daAmazônia, são os desmatamentos e os in-cêndios florestais. Para a expansão das ati-vidades econômicas e mesmo para a extra-ção de produtos florestais, grande parte dasempresas e de pessoas recorre ao desmata-mento de áreas florestais. Atualmente amaioria das áreas desflorestadas naAmazônia é feita de forma ilegal. Para faci-litar a eliminação da floresta e diminuir ocusto, normalmente se usa o fogo numa eta-pa subseqüente à derrubada.

As leis existem, mas são difíceis de se-rem aplicadas, seja por falta de fiscalizaçãoadequada, seja pela dúbia interpretação dalegislação, ou ainda pela carência de pesso-al e de material. Algumas vezes, depara-secom o problema da grande extensão do paísque faz com que as leis sejam boas para umbioma, mas não aplicáveis a outro.

Faz-se necessário espelhar-se em legis-lações de outros países para melhorar a le-gislação em vigor no Brasil e/ou elaborarleis mais específicas para cada bioma aten-dendo a suas peculiaridades, visando àconstrução de uma política florestal, de queo Brasil tanto necessita.

A França, após quase dizimar suas flo-restas, criou leis e políticas que podem sertomadas como um exemplo na gestão flo-restal, pois mostra uma política florestal bemconsolidada, embasada em uma legislaçãoque atende a todos os segmentos da ativida-de florestal. O Código Florestal Francês apre-senta dispositivos datados de 1827 e, na suamaior parte, reúne todas as disposições ju-rídicas e regulamentares aplicáveis à florestae se enriquece constantemente com novosdispositivos. A política florestal francesa,que acaba de ser reformulada, é uma impor-tante fonte de inspiração para mudanças nalegislação florestal brasileira que vai subsi-diar políticas públicas no país.

Apesar da criação do Programa Nacionalde Florestas (PNF) pelo governo brasileiro noano de 2000, o país tem urgência de uma po-lítica florestal efetiva, mais abrangente, comlegislação específica para cada bioma, de for-ma a torná-los sustentáveis, sob os pontos devista social, econômico e ambiental.

2. Caracterização da floresta francesa

A apresentação dos diferentes aspectosda floresta francesa pode ser conhecida pe-las características que fazem dela, graças asua natureza bastante variada, à qualidadede sua administração pelas leis, à sua ges-tão e à sua exploração, um exemplo de sécu-los para os gestores de florestas européias edo mundo inteiro.

2.1. A floresta francesa e a sua diversidade

A floresta francesa metropolitana apre-senta uma diversidade que cobre aproxima-damente 15 milhões de hectares, o que cor-responde a mais do que um quarto do país.Dessa diversidade nasce a riqueza da flo-resta francesa: florestas de planície, de lito-ral ou de montanha, floresta mediterrânea eflorestas urbanas.

2.2. Principais essências florestais

A França possui grande parte da biodi-versidade das florestas européias. Ela soma

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126 espécies de árvores e possui 27 dos 50tipos de ecossistemas florestais catalogadospelos cientistas europeus.

Dos 13,6 milhões de hectares plantados,inventariados no solo francês, 8,6 milhõesde hectares são de folhosas e 5 milhões dehectares são de resinosas. Assim, as fo-lhosas constituem mais da metade dos re-florestamentos, destacando-se o gêneroQuercus, representado pela sua principalespécie, o chêne (carvalho), vindo a seguiroutros gêneros que representam espécies di-versificadas como o hêtre, o érable, o frêne, omerisier, o alisier, entre outras. As resinosas(coníferas) complementam as florestas fran-cesas, destacando-se as espécies pinho ma-rítimo, pinho silvestre, douglas, epicéa e osdemais pinus.

A floresta francesa é a que mais proliferana Europa. A cada ano, a biomassa das ár-vores cresce 85 milhões de metros cúbicos.Com uma média de 138 metros cúbicos demadeira em pé por hectare, o país se situaacima da média européia (88 metros cúbi-cos/ha). A colheita anual atinge em tornode 47 milhões de metros cúbicos, dos quais35 milhões são comercializados.

2.3. A gestão das florestas na França

As florestas francesas pertencem aoEstado (forêts domaniales), ou à coletividadepública (forêts départementales ou communa-les), ou a proprietários particulares (forêtsprivées). Do início do século XIX até hoje, afloresta francesa dobrou a sua área planta-da. As florestas do Estado correspondem a12% do total e as das coletividades públi-cas, a aproximadamente 18%. Ambas estãosubordinadas ao regime florestal do Estado.Os 70% restantes correspondem às flores-tas particulares.

A média européia é de 12 hectares de flo-restas por habitante, porém, na França me-tropolitana, há 30 hectares de floresta porhabitante. A superfície florestal francesaaumenta a cada ano, em razão de uma polí-tica intensa de reflorestamento conduzidadesde a última guerra e da progressão natu-

ral das florestas nas zonas abandonadaspela agricultura, incentivada pelo modelode gestão francês.

Dos 13.600.000 hectares de florestas queexistem atualmente, quase um terço (apro-ximadamente 4.200.000 hectares) é subor-dinado ao regime florestal. As florestas per-tencentes ao Estado somam 1.704.934 hec-tares, aos quais é necessário acrescentar17.157 hectares pertencentes a administra-ções públicas. As florestas do Estado sãoconstituídas por 2.500 unidades de flores-tas. As florestas das coletividades públicascobrem um total de 2.400.064 hectares.

2.4. Administração sustentável da floresta

Gestão sustentável de florestas significausufruir da floresta, sem prejudicá-la. A ges-tão sustentável da floresta francesa conser-va o máximo de possibilidades de evolução.Uma atenção particular é dada aos solos, àdiversidade biológica dos ecossistemas e àspaisagens. Para colocar em prática essa ges-tão sustentável, é estabelecido, para cadafloresta, um projeto de manejo, que fixa osobjetivos a atingir (produção de madeira,proteção dos solos, das plantas e dos ani-mais, do respeito às paisagens e ao lazer) eos trabalhos a serem feitos por um períodode 10 a 20 anos.

A diversidade biológica da floresta fran-cesa é resultado da ação do Estado e dosprofissionais que agem continuamente paramelhor preservar as florestas de amanhã.

O organismo oficial que faz a gestão dasflorestas na França é o Serviço Nacional deFlorestas (ONF). O Estado atribuiu a essainstituição quatro grandes missões: a) a pro-teção (proteger o território pela gestão dosriscos naturais e proteger a floresta pela cri-ação de reservas naturais e biológicas); b) aprodução (considerar as exigências econô-micas, ecológicas e sociais); c) o acolhimen-to do público (a partir do manejo, da infor-mação e da sensibilização sob o ponto devista ambiental); e d) a atividade sob o pon-to de vista natural (a serviço de todos os res-ponsáveis do meio natural, no plano nacio-

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nal e internacional). O ONF é responsáveldiretamente pela conta do Estado e das co-letividades locais, somando mais de 12 mi-lhões de hectares de florestas e de espaçosnaturais de uma grande diversidade.

O Serviço Nacional de Florestas assegu-ra a preservação da natureza e o conjuntode florestas francesas. De acordo com a qua-lidade biológica, algumas florestas necessi-tam de medidas de proteção e de gestão par-ticular. Nesse caso, elas são classificadascomo florestas de proteção em reservas bio-lógicas. O ONF planta 25 milhões de árvo-res por ano.

A área classificada como de florestas deproteção corresponde a 800.000 hectares. AFrança possui 146 reservas biológicas.

A administração das florestas francesasé o conjunto de serviços do Estado e de or-ganismos subordinados que intervém nocontrole, na gestão e no desenvolvimentodas florestas.

Na França, essa administração é chama-da de administração de águas e florestas. Aexpressão “águas e florestas” apareceu pelaprimeira vez na França em 1291, segundoas regras criadas por Philippe le Bel, quedefiniam o papel dos mestres das Águas edas Florestas. Desde 1881, a administraçãodas florestas está subordinada ao Ministé-rio da Agricultura. Ela compreende:

– a direção de florestas, que abrange oServiço de Inventário Florestal Nacional e oFundo Florestal Nacional, destinado a finan-ciar as operações de reflorestamento;

– os Serviços Regionais de Manejo Flo-restal (SRMF);

– o Serviço Nacional de Florestas (ONF),que é um estabelecimento público de cará-ter industrial e comercial, criado em 1964 eencarregado da gestão de florestas do Estadoe das coletividades públicas. Ele compreen-de 19 diretorias regionais na França metro-politana e 4 em além-mar;

– os Centros Regionais de PropriedadeFlorestal (CRPF), encarregados de orientara produção florestal e de controlar a gestãodas florestas particulares;

– o Instituto para o Desenvolvimento Flo-restal (IDF), encarregado da formação pro-fissional dos proprietários de florestas par-ticulares.

Os serviços de caça e pesca, bem comoas atividades de proteção da natureza (par-ques nacionais e parques naturais regionais)estão subordinados ao Ministério do MeioAmbiente.

A administração de águas e florestas temcomo principal função a conservação e ex-ploração das florestas pertencentes aoEstado e às comunidades locais. A Lei fran-cesa, datada de 30 de outubro de 1919, alte-rada pelo artigo 46 da Lei de Finanças, de29 de abril de 1926, encarregou o Estado defiscalizar as florestas das comunidades e es-tabelecimentos públicos.

Com o intuito de evitar o corte abusivonas florestas de particulares, a Lei francesade 22 de abril de 1922 considerou como flo-restas de proteção todas aquelas cuja con-servação é essencial para proteção dos so-los, em montanhas, encostas e para a defesade avalanches. A lei de 25 de março de 1924e o decreto de 20 de agosto de 1924 instituí-ram medidas contra os incêndios florestaise para a reconstituição de florestas queima-das.

3. As florestas na França

3.1. As florestas públicas

Essa modalidade de floresta cobre 4,2milhões de hectares, o que corresponde a28% da superfície da França. Essa percen-tagem é relativamente modesta, justifican-do as políticas de aquisição de florestas peloEstado. As florestas públicas são incontes-tavelmente melhores quando se trata de as-segurar funções de interesse geral, como aproteção contra a erosão, conservação dedunas nos litorais e lazer nas florestas.

Essas florestas estão subordinadas a umestatuto particular, bastante protetor da flo-resta, e por um conjunto de regras de gestãoe de exploração florestal, que constituem o

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regime florestal. Esse regime estabelece re-gras de manejo para um período de 15 a 20anos. Ele fixa objetivos e programas de ação(cortes e trabalhos), garantindo a indispen-sável continuidade da gestão florestal.

Desde 1965, após a reforma administra-tiva francesa, a gestão das florestas públi-cas passou a ser de responsabilidade doServiço Nacional de Florestas (ONF).

3.2. As florestas do Estado

O Estado é proprietário de 2.500 unida-des florestais somando uma área de 1,7 mi-lhões de hectares. Aproximadamente 40%desse patrimônio provém de antigas terrasde reis, 20% de terras confiscadas pelo esta-do durante a revolução, 22% foram adquiri-das e plantadas no fim do século XIX com ointuito de recuperar áreas degradadas emmontanhas e 18% foram compradas de par-ticulares.

Essas florestas são as mais bem admi-nistradas e as mais produtivas tendo objeti-vos de interesses gerais.

3.3. As florestas de coletividades públicas

No início do período feudal, as florestaspertenciam ao rei, aos senhores feudais e àscomunidades religiosas. A propriedade dascomunidades apareceu durante o períodofeudal, quando passaram a ser dadas car-tas de franquia. Essas florestas são de tama-nhos variados. As comunidades possuemextensas florestas, que apresentam um im-portante papel no orçamento do povoado.Existem também florestas menores, cujoagrupamento facilita a gestão e os trabalhose permite aos grupamentos obterem umarenda anual. O regime florestal pelo qualessas florestas são regidas é definido peloONF.

Os prefeitos das comunidades florestaispodem ter uma influência determinante paraa promoção do conjunto do patrimônio flo-restal de sua região. Encarregados de zelarpor 2,5 milhões de hectares do patrimônioflorestal das comunidades, auxiliados pormilhares de conselheiros municipais influ-

entes, que escutam milhões de cidadãos, re-presentam uma força florestal importante,mas ainda insuficientemente mobilizadospara tirar proveito máximo das florestas.

3.4. As florestas particulares

As florestas pertencentes a proprietáriosparticulares representam 72% do patrimô-nio florestal francês. Na Europa, esse nú-mero é ultrapassado somente por Portugal,que apresenta 81% de florestas particula-res.

Na França, mais de 3 milhões de propri-etários florestais dividem, aproximadamen-te, 10 milhões de hectares, o que significaque uma família em cinco possui uma áreaflorestal.

Considerando as florestas particulares:– 28% pertencem a aproximadamente 37

mil proprietários e são constituídos de flo-restas com menos de 25 hectares, pertencen-tes a um só proprietário. Esses 2,7 milhõesde hectares seguem o plano de gestão, deacordo com a lei de 6 de agosto de 1963.

– ¼ dessas florestas está incluso nas ex-plorações agrícolas.

– O restante pertence a outros pequenosproprietários que não usufruem da floresta.

Segundo a natureza jurídica dos propri-etários particulares, a repartição de flores-tas é a seguinte:

– 96% das florestas, representando 80%da área, pertencem a pessoas físicas, de to-das as categorias sócio-profissionais.

– 4% pertencem a grupos florestais ousociedades diversas, possuindo 20% da área.

4. A produção florestal francesa

Com o objetivo de melhor conhecer asfontes de madeira do território francês, oinventário permanente de recursos flores-tais nacionais, conhecido como InventárioFlorestal Nacional (IFN), foi instituído pelaordem de 24 de setembro de 1958. O CódigoFlorestal Francês, em seu artigo L. 521, de-clara que o INF tem como objetivo forneceraos departamentos (municípios) dados do

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potencial da produção das florestas: super-fícies plantadas, volume em pé por espéciee crescimento anual.

A evolução da colheita de madeira co-mercializada ao longo dos últimos quaren-ta anos na França teve um aumento globalde 25% e um crescimento da mesma pro-porção de madeira de construção e indus-trial, em detrimento da madeira paracarvão.

Dar maior atenção à produção de ma-deira para construção é o objetivo dos flo-restais franceses. Os silvicultores francesessabem bem que essa madeira tem importan-te contribuição no somatório de sua renda.

As empresas de exploração na Françarealizam a exploração e o transporte damadeira, abastecendo as indústrias de pri-meira transformação: serrarias, painéis, ce-lulose e lâminas de madeira. Elas possuemuma função às vezes técnica e de prestaçãode serviços e às vezes comercial.

Essas empresas apresentam três papéiseconômicos importantes na mobilização daprodução de madeira:

– fazem a prospecção da fonte disponí-vel em uma zona geográfica que conhecembem, e incentivam os pequenos proprietári-os particulares a venderem as árvores empequeno volume;

– realizam uma triagem e a valorizaçãoda matéria-prima destinada a usuários di-ferentes;

– constituem-se num intermediário in-dispensável entre a produção de madeirade uma propriedade heterogênea e as ne-cessidades industriais bastante diversifica-das.

A produção florestal é bastante concen-trada, pois mais de 75% dessa produção éassegurada por não mais que 30 empresas.

A comercialização das sementes e mu-das florestais obedece a regras de qualida-de genética. O Código Florestal Francês apli-ca a regra de que a colheita de sementes so-mente pode ser efetuada em povoamentosselecionados e classificados, observando-seas normas de idade e dimensões.

5. Contribuição da legislação francesapara a legislação brasileira referente ao

desmatamento e incêndios florestais

Em tese, o desmatamento no Brasil re-sulta de uma série de fatores econômicos,sociais e da fragilidade institucional de sefazer cumprir a norma legal. Entre esses fa-tores, destacam-se: a) a distribuição fundiá-ria, em que as pequenas propriedades commenos de 10 hectares representam menosde 3% das terras produtivas e as grandespropriedades com mais de 10 mil hectaresrepresentam mais de 40%; b) a distribuiçãoda renda nacional, também altamente con-centrada, com 66,1% da renda total sendopercebidos pelas famílias mais ricas, quecorrespondem a 20% do total de famílias; c)um sistema fiscal e de crédito para as ativi-dades agrícolas que desconsidera as carac-terísticas agroecológicas e o emprego de prá-ticas de sustentabilidade da floresta; d) atitularidade da propriedade rural condicio-nada ao desmatamento nas regiões de fron-teiras; e) o conflito da administração públi-ca: enquanto o IBAMA objetiva preservar abase florestal, o INCRA e outros órgãos degoverno promovem assentamentos e práti-cas contrárias ao princípio da conservação,contribuindo para enfraquecer, ainda mais,os ecossistemas; f) o valor da madeira dedeterminadas espécies permite o financia-mento da atividade madeireira, a qual ob-tém licença legal para fins de desmatamen-to; e g) os programas setoriais de desenvol-vimento, que, muitas vezes, estimulam aação antrópica não- sustentável sobre osrecursos florestais.

Há, ainda, outros fatores que contribu-em para o desmatamento na região amazô-nica. Entre esses, sobressaem as políticasgovernamentais, as quais implementaramum dinamismo na fronteira amazônica, osinvestimentos na abertura de estradas e de-mais componentes infra-estruturais estabe-lecendo eixos de desenvolvimento, aliadosa outras iniciativas governamentais impor-tantes, tais como: programas de coloniza-

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ção, incentivos fiscais e de créditos destina-dos aos investimentos setoriais, projetos hi-droelétricos e de extração mineral.

A concessão de autorização de desma-tamento deve obedecer ao disposto na legis-lação vigente com relação aos limites máxi-mos permitidos de desmatamento, localiza-ção da Área de Reserva Legal e das Áreasde Preservação Permanente, verificando seas áreas anteriormente convertidas estãoabandonadas, subutilizadas ou utilizadasde forma inadequada, e existência de áreasque abriguem espécies ameaçadas de extin-ção conforme legislação brasileira (Lei 4771,de 1965, artigo 15; Decreto no 1.282; Instru-ção Normativa no 3, do Governo Federal, de4 de março de 2002; além da Portaria do IBA-MA no 113, de dezembro de 1995, e Resolu-ções do CONAMA nos 11 e 18). Nesse senti-do, o livro preliminar, artigo L.1ER, o artigoL.4, o artigo L.6 e o artigo L.8 e o Livro III,Título Primeiro (artigos L.311-1 a L.311-5),além do capítulo III – Punições, do CódigoFlorestal Francês podem contribuir para amelhoria da legislação florestal brasileira.

O livro terceiro desse código trata daspenalidades que objetivam a proteção dasmadeiras e florestas. As extrações não auto-rizadas em solo de florestas são punidas commultas proporcionais ao volume de materi-al extraído. Conforme esse livro, título pri-meiro, artigo L.311-1, nenhuma pessoa parti-cular tem o direito de desmatar ou pôr fim aodestino florestal de suas terras sem obter, pre-viamente, uma autorização administrativa.

Na Lei no 85-1273, de 4/12/84, artigo44, as operações voluntárias que provocama destruição de uma área florestal francesaou de seus recursos florestais são subordi-nadas à autorização, salvo se elas são feitasem aplicação de um serviço de utilidadepública. Após o reconhecimento da área,essa autorização é dada por um período decinco anos.

Na Lei no 93-3, de 4/01/93, a duraçãoda autorização pode ser elevada para 15anos quando o desmatamento tem comoobjetivo a exploração de lotes definidos au-

torizados em aplicação à Lei no 76-663, de10/7/76, relativa às instalações classifica-das para a proteção do meio ambiente. Todaautorização para desmatamento dada sobesse título deve conter um contrato definin-do as áreas a desmatar. Os termos desse con-trato são fixados em função do ritmo previs-to para a exploração. A autorização de des-matamento pode ser suspensa depois deiniciados os trabalhos, caso não haja cum-primento desse contrato.

A autorização administrativa somentepoderá ser recusada com o aval da seçãocompetente do Conselho de Estado. No casoda falta de resposta da administração den-tro de um prazo determinado, o desmata-mento pode ser efetuado.

As exceções das disposições do artigoL.311-1 do livro terceiro, título primeiro doCódigo Florestal Francês estão no artigoL.311-2. São elas:

1o – as madeiras plantadas com menosde 20 anos, exceto se elas são madeiras deáreas de reflorestamento;

2o – os parques com área inferior a 10 ha;3o – as florestas com menos de 4 ha, sal-

vo se elas fazem parte de outra floresta quea complete em 4 ha, ou se elas estão situa-das sobre o pico ou encosta de montanhasou se são provenientes de reflorestamentoexecutado em aplicação do livro IV, títulosII e III, e do livro V;

4o – as florestas situadas em uma zonaagrícola delimitada, em aplicação ao artigo52-4 do Código Rural, se o desmatamentotem como objetivo uma aplicação agrícolaou pastoril (Lei no 85-1273 de 4/12/85 –art.34).

As sanções aplicadas, no caso de infra-ção a esse artigo L.311-1, estão contidas noartigo L.313-1 (Lei no 90-85, de 23/1/90) docapítulo III do Código Florestal Francês.

Pelo artigo L.311-3 (lei no 90-85 de 23/01/90) do terceiro livro do Código FlorestalFrancês, a autorização de desmatamentopode ser recusada quando a conservaçãoda área plantada ou dos maciços que con-tém é reconhecida de utilidade para:

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1o – manutenção de terras sobre as mon-tanhas ou encostas;

2o – proteção do solo contra erosões eassoreamento de rios;

3o – existência de fontes e cursos d’água;4o – proteção de dunas e encostas, con-

tra as erosões do mar e o assoreamento deareia;

5o – defesa nacional;6o – salubridade pública;7o – necessidade de assegurar a revitali-

zação nacional em madeira e produtos va-riados, no que se refere à madeira proveni-ente de reflorestamentos executados em apli-cação ao livro IV, títulos II e III, e do livro V;

8o – equilíbrio biológico de uma regiãoou ao bem-estar da população;

9o – manejo de perímetros de ações flo-restais e de zonas degradadas menciona-das no artigo 52-1 do Código Rural Francês;

10o – proteção contra incêndios de áreasflorestais, na qual está inclusa a parcela emcausa.

No artigo L.311-4 do mesmo livro, a au-toridade administrativa pode subordinarsua autorização de desmatamento à conser-vação do terreno, no caso de reservas plan-tadas suficientemente importantes para pre-encher o papel de utilidade definido no ar-tigo L.311-3 ou para a execução de traba-lhos de reflorestamento sobre outras áreas.

Na França, previamente a todo pedidode autorização de loteamento em uma áreaflorestal, o interessado é obrigado a obteruma autorização de desmatamento (art.L.311-5).

O capítulo III do Código Florestal Francêsversa sobre sanções referentes a atividadesflorestais. No caso de infração às disposi-ções do artigo L.311-1, o proprietário é mul-tado por hectare desmatado. A pena previs-ta pode ser aplicada contra os utilizadoresdo solo, os beneficiários das operações dedesflorestamento, os empreendedores, ououtras pessoas responsáveis pela execuçãodessas operações.

No Brasil, as queimadas e os incêndiossão problemas antigos, ligados principal-

mente à cultura do uso do fogo como práti-ca agrícola no processo de ocupação e lim-peza de área para eliminação de restos decultura e de pragas e do manejo de pasta-gens.

Assim, o uso do fogo como prática agrí-cola é feito geralmente de forma aleatória,sem qualquer mecanismo de controle, o queresulta em áreas de queimadas significati-vamente maiores do que o necessário e,muitas vezes, em incêndios de grandes pro-porções.

As florestas “em pé” têm sido alvo deincêndios principalmente como resultadoda intervenção humana (corte seletivo), pormeio do “fogo de chão de florestas”, quedestrói parcialmente o dossel e raramente écaptado pelo satélite LANDSAT como des-matamento, ou pelo satélite NOAA comoqueimada.

Os incêndios florestais ganharam impor-tância nas últimas décadas, pois foram res-ponsáveis por uma média de 19.000km² deflorestas perdidas por ano. Enquanto al-guns incêndios são usados para converteras florestas em outras atividades de uso daterra, a maioria do prejuízo parece ser cau-sada por incêndios acidentais e por incên-dios destinados ao rejuvenescimento daspastagens. Entre 1997-98, esses fatores fo-ram agravados pela ocorrência de anos ex-cepcionalmente secos, devido aos efeitos doEl Niño. Uma conseqüência disso é que gran-des áreas da Amazônia brasileira, que apa-rentemente sofreram desmatamento, podemnão ter sido desmatadas propositadamen-te. Tais áreas podem, simplesmente, ter sido“acidentalmente” queimadas muitas vezes.Essa pode ser uma das principais causasdo aumento das taxas de desmatamento nosúltimos anos.

Os incêndios florestais aumentam o ris-co de investimento do setor privado no ma-nejo florestal sustentável. Os incêndios au-mentam a mortalidade das árvores, dimi-nuindo a produtividade da floresta e a qua-lidade do talhão florestal. Caso a tendênciaatual de aumento da freqüência de incêndi-

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os florestais persista, isso poderá tornar-seuma séria barreira ao manejo florestal sus-tentável, especialmente em regiões com umaestação seca pronunciada.

Recomendam-se algumas medidas paracontribuir na prevenção dos incêndios flo-restais: a) Campanha educativa. Deverá serrealizada com a finalidade de orientar e aler-tar a população para os riscos de ocorrên-cia de incêndios e para os prejuízos provo-cados pelo uso indiscriminado do fogo. b)Fiscalização do uso do fogo. Deverá ser rea-lizada para garantir que as determinações eos procedimentos exigidos para o uso dofogo sejam cumpridos. c) Monitoramento.Deverá ser realizado com a finalidade demanter sob constante observação as regiõesonde o uso do fogo é um aspecto de riscodiretamente ligado à atividade agropecuá-ria e madeireira.

A legislação florestal brasileira em vigorpara esse assunto (Código Florestal, Lei4.771, artigos 11, 26 e 27; Decretos no 84.107/79, no 97.635/89, no 2.959/99 e no 3.179/99;Constituição de 1988, capítulo 6, artigo 225;Portarias no 231-P, de 8/8/88, no 254/88-P,de 25/8/88, e no 94-N, de 9/9/98) deveriaser respeitada e cumprida, aplicando-se assanções previstas. As falhas na legislaçãoexistente e a falta de pessoal na prática deextensão e monitoramento e também na fis-calização contribuem para agravar os in-cêndios e queimadas no país.

A legislação francesa pode em muitocontribuir para aperfeiçoamento da legisla-ção florestal brasileira sobre incêndios, so-bretudo o Código Florestal, Livro III, TítuloII, Capítulo 1er, artigos L.321-6 a L.321-12;Capítulo II, artigos L.322-1 a L.322-13, eCapítulo III, artigos L.323-1 a L.323-2. Tam-bém o Livro 1er, Título V, Capítulo II, artigoL.152-1 a L.152-8.

Pela Lei no 92-613, de 6/7/92, os traba-lhos de manejo e equipamentos para preve-nir os incêndios florestais franceses são de-clarados de utilidade pública a pedido doministro encarregado das florestas, ou deuma coletividade pública. A declaração de

utilidade pública é pronunciada após con-sulta às coletividades locais interessadas epesquisa pública, conduzida dentro das for-mas previstas pelo Código, de expropriaçãopor causa de utilidade pública. Quandouma das coletividades locais consultadasou o comissário pesquisador emite um pa-recer desfavorável, a declaração de utilida-de pública é feita por meio de decreto doConselho de Estado. O ato declaratório deutilidade pública determina o perímetro deproteção e de reconstituição florestal, no in-terior do qual os trabalhos de proteção sãoexecutados.

Conforme o Livro II, Capítulo II, artigoL.322-1, a autoridade superior pode, inde-pendentemente dos poderes dos prefeitosmunicipais, editar medidas que assegurema prevenção de incêndios de florestas e deluta contra os incêndios.

Os prefeitos devem tomar todas as medi-das para afastar os perigos de incêndios (ar-tigo L.322-2).

As infrações às disposições legislativase regulamentares relativas à proteção, à de-fesa e à luta contra os incêndios florestaissão constatadas pelos:

– oficiais e agentes de polícia judiciária;– engenheiros rurais e engenheiros de

águas e florestas;– técnicos e agentes do Estado encarre-

gados das florestas;– agentes do ofício nacional de florestas;– guardas de caça e pesca comissiona-

dos por decisão ministerial;– agentes de direção departamental de

proteção civil e oficiais e profissionais deserviços de incêndios e de socorro (artigoL.323-1).

Os processos verbais feitos pelos enge-nheiros rurais, engenheiros de águas e flo-restas e técnicos e agentes de Estado encar-regados das florestas têm fé, até que se pro-ve o contrário, e são transmitidos ao procu-rador da República encarregado das acusa-ções (artigo L.323-2).

O artigo L.321-1 assegura que as flores-tas situadas em regiões com probabilidade

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de incêndios podem fazer parte de uma clas-sificação nos conselhos municipais interes-sados e no conselho geral. A classificação éfeita por decisão administrativa. Se houveralguma oposição, a decisão é tomada apósjulgamento do Conselho de Estado. Parapermitir essa classificação, o diretor do De-partamento de Agricultura, estabelece pro-posições de classificação por comunidadeem função de riscos particulares que podempropiciar os incêndios, tais como clima seco,violência dos ventos e predominância deespécies resinosas (artigo R.321-1 do LivroIII, Título II, Capítulo Primeiro). Como me-dida de prevenção, o artigo R.322-1 do Li-vro III, Título II, Capítulo Segundo proíbe ouso do fogo até uma distância mínima de200 metros de qualquer tipo de vegetaçãoou florestas.

Esses artigos poderiam contribuir parao aperfeiçoamento de nossa legislação, re-comendando-se políticas mais eficazes paracombate a incêndios e queimadas no Brasil.

6. Considerações finais

Nos últimos anos, diversos eventos in-ternacionais ressaltaram a importância dasflorestas tropicais, principalmente devido asua diversidade biológica, sua função am-biental, seu valor cultural e social, reafir-mando explicitamente a importância de seumanejo e, ao mesmo tempo, estabelecendoque este precisa obedecer a padrões míni-mos que sejam compatíveis com a sustenta-bilidade e a facilidade de monitoramento.

Responsável por mais de 4% do ProdutoInterno Bruto (PIB) e por 8% das exporta-ções brasileiras, a atividade florestal é es-sencial para o crescimento econômico doBrasil. Somente isso bastaria para explicara necessidade de tornar a atividade flores-tal sustentável, conciliando a exploraçãocom a proteção dos ecossistemas.

Soma-se a esse argumento outro de di-mensões tipicamente brasileiras: 5,5 milhõesde quilômetros quadrados do território bra-sileiro são cobertos por florestas nativas,

sendo que dois terços disso equivalem à Flo-resta Amazônica. Não apenas a economia,mas a própria vida dos brasileiros está pro-fundamente associada à conservação e aouso sustentável dos recursos florestais.

Sob o ponto de vista da economia, a ati-vidade florestal fornece alguns importantesitens da pauta de exportações brasileira. Osegmento de papel e celulose de fibra curtaé o maior destaque, mas há também móveis,painéis de madeira, madeira serrada e be-neficiada. O setor é responsável por mais de2 milhões de empregos diretos.

Mas, o histórico da exploração econômi-ca das florestas brasileiras não oferece mui-tos exemplos de condutas ambientalmenteideais. O uso de tecnologias inadequadas efalhas nos processos de gestão das ativida-des florestais ocasiona a degradação dosecossistemas brasileiros. A maneira comoos recursos naturais vêm sendo utilizadosno Brasil provocou um drástico comprome-timento do bioma Mata Atlântica, reduzidaa 7% de sua área original, e ameaça tambémos biomas Caatinga, Cerrado e o da FlorestaAmazônica.

É preciso investir em atividades de im-plantação e manejo de florestas nativas eplantadas, na regulação do regime hidroló-gico e na conservação do solo e proteção dabiodiversidade, e efetivar a legislação perti-nente a cada bioma.

O Brasil é o maior produtor e também omaior consumidor de madeira tropical domundo. A Amazônia concentra a produçãode florestas nativas, enquanto as plantaçõesestão localizadas nas regiões Sul e Sudeste.Essas plantações têm garantido o suprimen-to de matéria-prima florestal para a indús-tria de móveis, siderúrgica e de processa-mento de madeira e de papel de celulose.

Em alguns casos, como na Amazônia, ocusto dessa produção para o meio ambienteé nefasto, repetindo o modelo de uso preda-tório das florestas de Araucária e da MataAtlântica. Responsável por mais de 30 mi-lhões de metros cúbicos de madeira em tora,correspondendo a 85% da produção anual

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de florestas nativas, a exploração madeirei-ra na Amazônia responde também por umíndice inaceitável de desperdício, devido aoineficiente modelo adotado para o proces-samento e beneficiamento das toras, quepermite o aproveitamento de apenas 35%do estoque removido.

Na Caatinga, a produção de lenha res-ponde por 35% da matriz energética doNordeste e é um importante fator geradorde empregos, sobretudo durante os perío-dos de estiagem. Mas a maior parte da pro-dução lenheira é feita sem o manejo adequa-do, mesmo havendo registros de experiên-cias bem-sucedidas de manejo sustentável,revelando que o sistema é capaz de mantero uso das florestas continuamente, além decontribuir para a melhoria da qualidade devida e para a conservação dos recursos hí-dricos.

É nesse contexto que este estudo trazsuporte para possíveis modificações na le-gislação florestal brasileira, visando contri-buir com o uso sustentável de florestas nati-vas e plantadas, incentivando o fomentodas atividades de reflorestamento, buscan-do meios de recuperar áreas de preservaçãopermanente, de reserva legal e alteradas,buscando também apoiar iniciativas econô-micas e sociais das populações tradicionaise indígenas que vivem nas florestas, ofere-cendo meios para reprimir desmatamentosilegais e extração predatória de produtos esubprodutos florestais e demonstrandocomo o Estado pode prevenir e conter quei-madas e incêndios florestais no país.

As alterações na legislação florestal bra-sileira podem dar amparo legal para o Pro-grama Nacional de Florestas, promover ouso sustentável das florestas de produção,apoiar o desenvolvimento das indústrias debase florestal, ampliar os mercados internoe externo de produtos e subprodutos, valo-rizar os aspectos ambientais, sociais e eco-nômicos dos serviços e benefícios proporci-onados pelas florestas públicas e privadase estimular a proteção da biodiversidade edos ecossistemas.

A legislação é um dos principais instru-mentos de políticas públicas. É a legislaçãoque começa a estruturar o arcabouço insti-tucional e jurídico para a concretização deintenções antes informais e difusas. É fato queo Código Florestal atualmente em vigor estádesatualizado e precisa de reformas. A diver-gência entre os diversos segmentos da socie-dade que têm interesse no setor florestal estána forma de proceder a essas reformulações.

O Código Florestal sempre foi um assun-to muito polêmico, principalmente por in-terferir diretamente na restrição ao direitoda propriedade. Numa sociedade capitalis-ta, em que a propriedade privada é um di-reito sagrado, falar-se em interesse coletivotorna-se quase uma heresia e sempre repre-sentou uma ameaça aos setores mais con-servadores. A condução desse assunto, por-tanto, coloca em dúvida o processo demo-crático brasileiro, que acaba por privilegiardeterminados setores da sociedade, setoresesses que possuem interesses muito especí-ficos. A vigilância da sociedade civil orga-nizada é de suma importância para esseprocesso, sobretudo para evitar que os inte-resses de grupos conservadores sejam via-bilizados às pressas, em prejuízo de umadiscussão mais ampla do Código Florestal,para buscar o interesse da sociedade comoum todo e a defesa da qualidade de vidadas presentes e futuras gerações.

O Código Florestal de 1965, estabelecidopela Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965,pressupunha um decreto de regulamenta-ção, que deveria ter sido emitido em seguidaà promulgação dessa lei, o que não ocorreuaté os dias de hoje, ou seja, 40 anos depois.

O Código Florestal Francês, sobretudo olivro preliminar “Princípios fundamentaisda política florestal”, em seus artigos L.1er aL.14, bem como a lei de orientação sobre asflorestas, pode servir de base para uma re-formulação da legislação florestal brasilei-ra no que concerne à construção de umapolítica florestal eficaz para o Brasil, consi-derando os diferentes biomas. Em particu-lar, o bioma amazônico merece uma legisla-

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ção específica, considerando o seu papelecológico, econômico e social.

Existem diversos pontos críticos a ven-cer, para se fazer aplicar uma política flo-restal que coincida com a importância flores-tal do Brasil em nível mundial. Por outro lado,percebe-se uma mobilização de diversos se-tores da sociedade engajados nesse desafio.

Um exame aprofundado dos princípiosfundamentais da política florestal apresen-tada no Código Florestal Francês nos leva apensar que eles podem ser consideradoscomo uma base para a reformulação do Có-digo Florestal Brasileiro, tendo em vista aexperiência de muitos séculos da adminis-tração das florestas francesas.

Considerando as dimensões florestaisbrasileiras, a importância social, econômi-ca e ambiental do setor, o Programa Nacio-nal de Florestas (PNF), atual instrumentode política florestal pública, é tímido, mere-cendo evoluir, criando-se uma política flo-restal para o país, quem sabe sediada emum Ministério próprio.

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