Revista de Direito Público USP. SONTAG, Kenny. Autonomia e Hierarquia na Federação Brasileira

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Este conteúdo está protegido pela lei de direitos autorais. É permitida a reprodução do conteúdo, desde que indicada a fonte, como “Conteúdo da Revista Digital de Direito Público”. A RDDP constitui veículo de excelência, criado pelo Departamento de Direito Público da FDRP/USP, para divulgar pesquisa em direito público em formato de artigos científicos, comentários a julgados, resenhas de livros e considerações sobre inovações normativas. REVISTA DIGITAL DE DIREITO PÚBLICO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Caderno de Direito Internacional e Constitucional Autonomia e hierarquia na federação brasileira: igualdade entre os entes federativos Kenny Sontag Resumo: o Federalismo implica em uma fragmentação política e organização que proporcione o convívio estável entre as diversas estruturas que o compõem. O presente ensaio propõe uma análise, fundada na doutrina constitucional e na jurisprudência, dos possíveis conflitos decorrentes da atuação conjunta dos entes federativos e as técnicas adotadas no Brasil para sua superação. Tal sobreposição poderia induzir à identificação de uma subordinação entre as esferas que formam o sistema. Desse modo, primeiramente, abordou-se as características elementares que configuram a repartição territorial do poder e sua implementação no modelo brasileiro. Explanou-se, portanto, sobre a autonomia, o dúplice papel da União e a repartição de competência. Posteriormente, investigou-se a existência de hierarquia entre atos normativos editados em âmbito federal, estadual, distrital e municipal. Concluiu-se, por conseguinte, que o constituinte originário estabeleceu capacidades e âmbitos distintos de atuação, o que evidencia a igualdade entre as unidades federativas. Palavras-chave: Federalismo, Constitucional, Autonomia, Hierarquia. Abstract: the Federalism implies in a politic fragmentation and in an organization which provide the stable coexistence between the various structures that compose. The article proposes an analysis, based on the constitutional doctrine and jurisprudence, about the possible conflicts arising from the joint efforts of federal entities and the techniques adopted in Brazil to overcome them. This overlap could lead to the identification of subordination between the spheres that make up the system. So first, the paper approaches the basic features that shape the territorial distribution of power and its implementation in the Brazilian model. It explained, therefore, about the autonomy, the dual role of Union and the division of competences. Subsequently, it investigated the existence of hierarchy between normative acts enacted at the federal, state, district and municipal levels. It was concluded, thereafter, that the “original constituent” established capabilities and separated areas of activity, what emphasizes the equality of the federated units. Keywords: Federalism, Constitutionalism, Autonomy, Hierarchy.

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Artigo elaborado sob orientação de Vivian Josete Pantaleão Caminha, Professora Adjunta vinculada ao Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito, Faculdade de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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considerações sobre inovações normativas.

REVISTA DIGITAL DE DIREITO PÚBLICO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Caderno de Direito Internacional e Constitucional

Autonomia e hierarquia na federação brasileira: igualdade entre

os entes federativos

Kenny Sontag

Resumo: o Federalismo implica em uma fragmentação política e organização que

proporcione o convívio estável entre as diversas estruturas que o compõem. O

presente ensaio propõe uma análise, fundada na doutrina constitucional e na

jurisprudência, dos possíveis conflitos decorrentes da atuação conjunta dos entes

federativos e as técnicas adotadas no Brasil para sua superação. Tal sobreposição

poderia induzir à identificação de uma subordinação entre as esferas que formam o

sistema. Desse modo, primeiramente, abordou-se as características elementares

que configuram a repartição territorial do poder e sua implementação no modelo

brasileiro. Explanou-se, portanto, sobre a autonomia, o dúplice papel da União e a

repartição de competência. Posteriormente, investigou-se a existência de

hierarquia entre atos normativos editados em âmbito federal, estadual, distrital e

municipal. Concluiu-se, por conseguinte, que o constituinte originário estabeleceu

capacidades e âmbitos distintos de atuação, o que evidencia a igualdade entre as

unidades federativas.

Palavras-chave: Federalismo, Constitucional, Autonomia, Hierarquia.

Abstract: the Federalism implies in a politic fragmentation and in an organization

which provide the stable coexistence between the various structures that

compose. The article proposes an analysis, based on the constitutional doctrine

and jurisprudence, about the possible conflicts arising from the joint efforts of

federal entities and the techniques adopted in Brazil to overcome them. This

overlap could lead to the identification of subordination between the spheres that

make up the system. So first, the paper approaches the basic features that shape

the territorial distribution of power and its implementation in the Brazilian model.

It explained, therefore, about the autonomy, the dual role of Union and the division

of competences. Subsequently, it investigated the existence of hierarchy between

normative acts enacted at the federal, state, district and municipal levels. It was

concluded, thereafter, that the “original constituent” established capabilities and

separated areas of activity, what emphasizes the equality of the federated units.

Keywords: Federalism, Constitutionalism, Autonomy, Hierarchy.

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Sugestão de referência: SONTAG, Kenny. Autonomia e hierarquia na federação

brasileira: igualdade entre os entes federativos. Revista Digital de Direito Público,

vol. 2, n. 1, 2013. Disponível no URL: www.direitorp.usp.br/periodicos

Artigo submetido em: 24/10/2012 Aprovado em: 11/01/2013

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AUTONOMIA E HIERARQUIA NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA:

igualdade entre os entes federativos

Kenny Sontag* Sumário: 1. Introdução 2. O modelo federativo 3. A autonomia dos entes federativos 4. A posição especial da União 5. Repartição de competências 6. A inexistência de hierarquia entre leis federal, estadual, distrital e municipal 7. Considerações Finais 8. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

O presente artigo tem por objeto uma análise do fenômeno federativo no Brasil a

partir da indagação sobre a existência de hierarquia entre os entes federativos. A

complexidade do tema é inequívoca, pois envolve aspectos relacionados aos

fundamentos do Estado federativo, às suas peculiaridades e ao complexo universo da

regulamentação referente à relação entre as unidades federativas. Em assim sendo,

sua abordagem é de suma importância para as coletividades que adotam essa forma

de organização política.

Tal questionamento reclama a compreensão da integralidade do ordenamento jurídico

nacional. A adoção de conceitos equivocados ou a interpretação errônea dos

dispositivos constitucionais, sobretudo os relacionados à estrutura fragmentada de

exercício do poder político, podem ensejar a aplicação de norma jurídica inadequada,

perpetuar conflitos entre os integrantes do pacto federativo ou criar óbices a sua

resolução, gerando insegurança jurídica. Destarte, faz-se necessária uma avaliação

doutrinal criteriosa, com o cotejo dos vários posicionamentos sobre a matéria, bem

como pesquisa jurisprudencial que revele o modo como essas questões vêm sendo

enfrentadas pelos tribunais.

Inicialmente, serão apontadas as características gerais do Federalismo, tais como a

descentralização do poder político, não se restringindo ao âmbito meramente

administrativo; a indissolubilidade do vínculo federativo; a necessidade de uma

Constituição de abrangência nacional; a existência de um órgão judiciário de cúpula

para defendê-la; a autonomia dos entes federativos e um sistema de repartição de

competências. Explanar-se-á, concomitantemente, sobre o modelo federativo adotado

pelo Brasil, com suas especificidades, como a atribuição de status de ente federativo

aos Municípios.

*Graduando em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador de Iniciação

Científica CAPES.

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A seguir, examinar-se-á a autonomia dos entes federados, indispensável ao

funcionamento adequado do Estado Federativo, por assegurar a igualdade entre as

suas unidades.

Outrossim, desenvolver-se-á uma análise da posição distinta da União, que, em

algumas ocasiões, representa a Federação como um todo, quando então exerce

soberania, e, em outras, atua como ente federativo, com autonomia.

Por fim, discorrer-se-á sobre o sistema constitucional de repartição de competências,

os modelos adotados pelo constituinte e respectivas implicações. Conclui-se com o

exame da questão atinente à existência ou não de hierarquia entre as leis produzidas

pelos entes federativos, tendo em vista o papel de cada um deles no contexto federal.

2. O modelo federativo

Federação, do latim foedus ou foederis, significa pacto, aliança, uma ordem concreta,

cuja essência é a descentralização política, que exige uma coesão entre as partes para

a formação do todo. É uma forma de organização do Estado, baseada na definição de

áreas específicas de atuação dos entes que o compõem. Consiste em um modelo de

repartição de atribuições e competências, segundo critérios geográficos

constitucionalmente definidos, do qual resulta uma limitação ao poder político1.

Segundo Dalmo de Abreu Dallari, trata-se de uma a “aliança ou união de Estados”, em

que “os Estados que ingressam na federação perdem sua soberania no momento

mesmo do ingresso, preservando, contudo, uma autonomia política limitada”2. Como

uma associação de unidades autônomas, pressupõe descentralização político-

administrativa, calcada em um pacto federativo, a constituição, figurando uma pessoa

jurídica de direito interno.

Uma concepção rudimentar dessa disposição de exercício do poder já existia na

Antiguidade. A partir de 493 a.C., surgiram os Foederatae Civitates, Foederati ou Socii,

unidades políticas italianas, principalmente praticadas entre os Latinos, com base em

uma série de tratados3, pelos quais se vinculavam a Roma. Essas unidades eram

1 O poder político é uno e indivisível, sendo o povo seu titular, que pode exercê-lo diretamente ou por

meio de representantes. A Constituição brasileira adotou, em seu art. 1º, parágrafo único, ambas as modalidades, direta e indireta, prevalecendo a modalidade da representação, realizada mais especificamente pela Câmara de Deputados, no Congresso Nacional. 2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 1985, p.

227. 3 “Depois da queda da supremacia dos etruscos, na Itália, as cidades latinas formaram uma liga contra

Roma. Em 493 a.C., trava-se a batalha do lago Regillus, da qual resultou um tratado (foedus Cassianum) entre Roma e essa liga, ficando ambas as partes em posição de igualdade. A pouco e pouco, no entanto, foi-se afirmando a supremacia de Roma, até que esta, em 338 a.C., derrota e dissolve a liga latina. O território de algumas das cidades que a integravam foi incorporado a Roma; já com outras foram firmados tratados (foedera), pelos quais, embora essas cidades conservassem sua autonomia administrativa, não tinham elas o direito de declarar guerra ou fazer paz (ius belli et pacis). (...) A partir

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independentes e não tinham o privilégio da cidadania romana (civitas), mas possuíam

diversos deveres, como fornecer contingente para o exército romano e contribuir para

a expansão de seu poder. Era uma espécie de condição, incompatível com a soberania

e um primeiro estágio à submissão incondicional4.

A configuração federativa contemporânea surgiu nos Estados Unidos da América após

a Revolução de 17765, como uma tentativa de estabelecer um vínculo mais sólido de

união entre os Estados-membros, tendo sido acolhida no Brasil, por meio do Decreto

nº 1, em 1889 e, posteriormente, pela Constituição de 18916.

O federalismo não se reduz a um único modelo, que pode variar conforme o grau de

atribuições das unidades federadas, com maior ou menor concentração7. A

de 326 a.C., Roma começou a aplicar o sistema federativo a outras cidades italianas que não latinas, a primeira das quais foi Nápoles” (ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 22). 4 Segundo George Long, o descontentamento entre esses “estados federados” e suas exigências de

expansão da cidadania romana levaram à guerra. Em 90 a.C., a Lex Julia expandiu a cidadania romana aos Latinos e aos Socii, com a condição de que estes estados aceitassem o populus fundus fieret, o que as Leges ofereciam (Cic. Pro Balbo, c. 8.), passando a serem denominados fundani. De acordo com o autor, o “estado federado” devia declarar, por ato público, seu consentimento com a Lex Julia, o que significava uma própria incorporação com o estado romano (SMITH, William; LONG, George e outros. Dictionary of Greek and Roman Antiquities. 2ª ed., Boston: Little, Brown, and Company, 1859, pp. 542-543). 5 As treze colônias inglesas na América, que atualmente compõem os Estados Unidos da América,

tornaram-se independentes com a Revolução de 1776, defendendo ideais republicanos. Como forma de garantir a independência, em 1777, os Estados constituíram uma Confederação, baseada em um tratado de direito internacional, que assegurava soberania às respectivas unidades políticas. Entretanto, esta mostrou-se, desde logo, frágil, pois permitia rupturas, inexistia uma ordem superior que uniformizasse a aplicação da lei e o financiamento dependia da vontade dos Estados-membros, havendo constantes conflitos. Desse modo, adotou-se a federação, com a edição da Constituição norte-americana de 1787, como uma tentativa de criar uma união mais perfeita, em que todos os Estados dispunham de uma parcela do exercício do poder, constituindo um único ente soberano, mantidas faculdades limitadas, que caracterizam a autonomia. “Los Estados Unidos de América, la primeira federación moderna, adoptó el modelo federal como principio organizativo para su gobierno en 1789 tras la Convención de Filadelfia de 1787. Fue el resultado del fracaso de la forma de gobierno confederal auspiciada por los artículos de la confederación de 1781. Originalmente estuvo integrada por 13 estados, evolucionando hacia una federación de 50 estados más 2 estados libre asociados, 3 entidades locales con autogobierno, 3 territorios no incorporados y unos 130 asentamientos de nativos americanos. Sobrevivió a una devastadora guerra civil durante el primer siglo de su existencia, pero acorde a su caracterización como la federación más estable del mundo se erige como un importante punto de referencia en cualquier estudio de las organizaciones federales” (WATTS, Ronald L. Sistemas Federales Comparados. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 117). Para a formação do Estado liberal pluralista nos Estados Unidos da América vide SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. Consenso e Tipos de Estado no Ocidente. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2002, cap III, p. 127 e ss. 6 “Na Constituição republicana de 1891, o federalismo eleva-se a princípio constitucional de

estruturação do Estado, juntamente com a democracia que, como regime político, melhor assegura os direitos fundamentais” (ATIQUE, Andraci Lucas Veltroni. Federação e Competência para Legislar: estudo de um caso. Bauru: Edite, 2006, pp. 84-85). 7 Sobre o tema, discorreu Geraldo Ataliba: “(...) não há uma forma ecumênica de Federação. Ninguém

pode fazer uma definição completa, miúda, de Federação, porque ela assume, em cada lugar, em cada época, e em cada momento, feição diversa. Entretanto, há traços essências que deverão estar presentes

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Constituição brasileira de 19888 optou por uma organização composta por União,

Estados, Distrito Federal e Municípios9, todos autônomos. Não há, por conseguinte,

qualquer tipo de hierarquia entre eles, mas, sim, igualdade jurídica10, sendo, inclusive,

vedado o tratamento desigual entre si11.

Cada parte constitui a completude do sistema e exerce um poder limitado em uma

determinada circunscrição geográfica ou região. Por isso, consagrou-se o princípio da

indissolubilidade do vínculo federativo12, com o intuito de garantir a integridade da

aliança entre os entes autônomos que compõem a Federação e permitir a

continuidade de um regime descentralizado. Conseqüentemente, é vedada qualquer

tentativa de separação de uma unidade federativa da Federação, sendo os conflitos

políticos solucionados pelo mecanismo da intervenção, que pode ser federal13 ou

estadual14.

A autonomia, conforme se verificará15, consubstancia o exercício de um poder limitado

pela ordem interna, que se traduz nas capacidades de auto-organização e

normatização própria, autogoverno e auto-administração. Significa, entre outros, a

faculdade de agir em nome próprio, conformar leis a sua realidade e dispor sem

interferência ou subordinação de mecanismos para gestão de seus recursos, seguindo-

se o disposto constitucionalmente.

Além disso, a ordem constitucional inadmite a modificação da forma de Estado

delineada pelo constituinte, não havendo mecanismos constitucionais para se alterar a

em todos os Estados, que se pretendam afirmar, federais” (ATALIBA, Geraldo. Regime Federativo in Constituição e Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 63). 8 Constituição Federal, art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil

compreende a União, os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. 9 Os territórios federais não são unidades federativas autônomas e integram a União (art. 18, § 2º, da

Constituição Federal). Em razão disso, não possuem representatividade no Senado Federal, Casa legislativa composta por representantes dos Estados e do Distrito Federal (art. 46 da Constituição Federal). Para José Afonso da Silva, os territórios têm “natureza de mera autarquia”, sendo “simples descentralização administrativo-territorial da União” (SILVA, José Afonso da. Curso Direito Constitucional Positivo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 473). 10

“Informa-se seu relacionamento (das unidades que compõem a Federação) pela ‘autonomia recíproca da União e dos Estados, sob égide da Constituição Federal’ (Sampaio Dória), caracterizadora dessa igualdade jurídica (Ruy Barbosa), dado que ambos extraem suas competências da mesma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera, tal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes)” (ATALIBA, op. cit., p. 10). 11

Constituição Federal, art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. 12

Constituição Federal, art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...). 13

Constituição Federal, art. 34. 14

Constituição Federal, art. 35. 15

A definição de autonomia é desenvolvida com maior propriedade no capítulo III.

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dispersão territorial na realização das atividades públicas no Estado brasileiro16. A

interpretação constitucional deve ser sempre consentânea com a organização político-

administrativa adotada, de modo a permitir equilíbrio e harmonia na relação entre os

diversos Poderes e estruturas autônomas.

Por inexistir a possibilidade de secessão e as unidades federativas exercerem

competências simultaneamente, foram criados mecanismos para a superação de

eventuais conflitos. Assim, atribuiu-se a um órgão de cúpula, integrante do Poder

Judiciário, a incumbência de resolver os dissídios de natureza federativa, garantindo a

supremacia da ordem constitucional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal

desempenha essa função17. Com isso, assegurou-se uma interpretação e aplicação

mais uniforme das normas constitucionais que definem o modelo adotado no país, a

permanência da ordem e a integridade do Estado.

Outro elemento do federalismo é a existência de uma Constituição, de caráter

nacional, que serve como referencial de validade para as demais normas integrantes

do ordenamento jurídico, estabelecendo a organização federativa, o poder de atuação

dos entes federativos, os poderes constituídos e os parâmetros para sua atuação. Em

outros termos, confere “unidade à ordem jurídica do Estado Federal, com o propósito

de traçar um compromisso entre as aspirações de cada região e os interesses comuns

às esferas locais em conjunto”18. A rigidez constitucional melhor garante a

continuidade do federalismo, pois assegura a perenização do modelo adotado pelo

constituinte, ao menos em seus aspectos estruturais.

O conceito de rigidez, consubstanciado na imutabilidade relativa da

constituição, é de fundamental importância na teoria do direito

constitucional contemporâneo. Funciona como pressuposto(s): a) do

próprio conceito de constituição em sentido formal; b) da distinção entre

normas constitucionais e normas complementares e ordinárias; c) da

supremacia formal das normas constitucionais. Constitui, também, suporte

da própria eficácia jurídica das normas constitucionais. Se estas pudessem

ser modificadas pela legislação ordinária, sua eficácia ficaria

irremediavelmente comprometida 19.

16 Constituição Federal, art. 60, §4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado. Além disso, o Ato das Disposições Transitórias prevê apenas a possibilidade de escolha da forma e do sistema de governo: Art. 2º. No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País. 17 Constituição Federal, art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originalmente: f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta. 18 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 931. 19

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 40.

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A ordem federal pressupõe a participação política, que “é manifestação de poder que

atua sobre outra manifestação política de poder, (...) um fenômeno do poder que se

projeta sobre os demais fenômenos do poder para, admitidamente, acrescê-los,

modificá-los, reduzi-los ou neutralizá-los”20, ou seja, a capacidade de influência no

processo de tomada de decisões que tenham repercussão nacional.

“Entendemos aqui, por participação política, a atuação formal e

informalmente admitida, dos indivíduos e dos grupos sociais secundários, na

ação juspolítica do Estado. Como este, nas organizações políticas

contemporâneas, se diversifica em grandes funções e órgãos específicos - os

Poderes do Estado -, a participação política se tripartirá em participação

legislativa, participação administrativa e participação judiciária (...) Com

efeito, tomar parte em qualquer manifestação do poder político, de direção

da sociedade, atribuído ao Estado, nada mais é que exercitar, também, um

poder, na medida em que essa atuação integre, reforce, altere, iniba ou

suprima a ação do poder estatal. Por isso, ainda, a participação política, seja

legislativa, administrativa ou judiciária, nada mais é que o desempenho de

uma faculdade ou de um direito de natureza política, sempre que admitidos,

expressa ou implicitamente, pela ordem jurídica. O importante, assim, é ter

em mente que tanto a condução política da sociedade exercida pelo Estado,

como a participação política, de indivíduos e de grupos, têm a mesma e

única natureza jurídica fundamental: são, ambas, modos de exercício do

poder” 21

.

Essa influência ocorre principalmente no Poder Legislativo Federal, no momento da

elaboração de leis. No Brasil, consolidou-se um sistema proporcional de participação

no Congresso Nacional: proporcional ao número de entes federados com influência

regional no Senado Federal22 e proporcional à população na Câmara de Deputados23.

É também característica do federalismo a nacionalidade única dos cidadãos das

diversas unidades federativas. A definição dos nacionais é um aspecto da soberania do

país, que transcende a autonomia reconhecida aos entes federativos, devendo ser

exercida pela Federação como um todo24.

20

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da Participação Política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 56. 21

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. op. cit., pp. 56-57. 22

Constituição Federal, art. 46. O Senado Federal compõem-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário. § 1º. Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três senadores, com mandato de oito anos (...). 23

Constituição Federal, art. 45. A Câmara de Deputados compõe-se de representantes do povo, eleito, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. 24

Constituição Federal, art. 1º. A República Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania (...). Constituição Federal, art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XIII - nacionalidade, cidadania e naturalização. Constituição Federal, art. 5º. LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

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A repartição de competências é a atribuição de certas faculdades a entes específicos,

sendo essencial ao bom funcionamento do modelo federativo. Com base em critérios

como a cooperação, a subsidiariedade e o interesse dominante, define-se o ente que

deve prestar determinado serviço público ou função estatal. Desse modo, evitam-se

atuações conflitantes, promovendo-se a ação conjunta dos entes federativos e

priorizando a iniciativa daquele que consegue atender com mais facilidade as

demandas de ordem fática ou que maior interesse possui sobre um âmbito normativo

ou material específico.

Todos esses aspectos do Estado Federativo evidenciam e reforçam a inexistência de

hierarquia entre as unidades federativas. A descentralização implica a existência de

entes com atribuições e poderes próprios, que atuam de modo equilibrado e

igualitário. Não há relação de subordinação, porque todos possuem uma parcela do

poder político, a ser exercido com observância ao estabelecido constitucionalmente.

3. A autonomia dos entes federativos

O Estado federal constitui-se pela união de Estados soberanos, que perdem a sua

soberania em favor de uma ordem única, que submete a todos, entretanto, mantêm

uma autonomia25. Segundo Giorgio Del Vecchio, a Federação surge de um “suicídio de

Estados”26. Porém, a estes é garantida a faculdade de exercer atribuições políticas em

nome próprio, de autodeterminar-se, de atuar em conformidade com a própria

vontade, embora restrita ao âmbito delineado pelo poder soberano27. Engloba

também a possibilidade de elaboração de uma Constituição própria, observado o

disposto na Constituição Federal28. Disso decorrem as capacidades de se auto-

organizarem, de se autogovernarem e auto-administrarem, dentro dos limites

constitucionais.

Constituição Federal, art. 5º. LXXVII - são gratuitas as ações de "habeas-corpus" e "habeas-data", e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania. 25

Não foi exatamente isso que ocorreu no Brasil e na Rússia, pois conformavam, inicialmente, Estados Unitários. João Camilo Oliveira Torres cita trecho esclarecedor de Rui Barbosa: “Tivemos União antes de ter Estados, tivemos o todo antes das partes, a reunião das coisas reunidas”. Adotou-se o federalismo, por ato discricionário do Poder central, sem grande relevância à participação das províncias. As partes já estavam unidas, mas não possuíam autonomia (OLIVEIRA TORRES, João Camilo. A Formação do Federalismo no Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1961, pp. 21-22). 26

DEL VECCHIO, Giorgio. Teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1957 apud. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 3º ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 25. 27

“Autonomia é faculdade de se governar a si mesmo, o direito ou a possibilidade de se reger por leis próprias. Eticamente, autonomia é a propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta” (ATIQUE, Andraci Lucas Veltroni. Op. cit., p.73). 28

No caso dos municípios, a Lei Orgânica deve observar ainda a Constituição Estadual. Constituição Federal, art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, (...) atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos (...); Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 11. parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

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A auto-organização e produção de normas próprias pressupõem a existência de

competências normativas à elaboração de atos que impõem certas condutas ou estado

de coisas, de caráter geral ou abstrato. É a possibilidade de definir a sua estrutura,

organizar o seu funcionamento por meio do exercício do poder constituinte derivado-

decorrente.

O poder constituinte, cuja titularidade é do povo, designa a faculdade de elaborar e

alterar a Constituição por meio de supressão, modificação ou acréscimo de norma

constitucional. Classifica-se em originário, derivado, difuso e supranacional. O poder

constituinte originário funda a ordem jurídica e instaura os poderes constituintes

devidados. Por poder constituinte derivado-decorrente, designa-se uma faculdade

jurídica limitada de conformação normativa-constitucional, manifestada nas

Constituições dos Estados-membros.

“O poder constituinte originário (...) é aquele que instaura uma nova ordem

jurídica, rompendo por completo com a ordem jurídica precedente. O

objetivo fundamental (...) é criar um novo Estado, diverso do que vigorava

em decorrência da manifestação do poder constituinte precedente”. “O

poder constituinte derivado é criado e instituído pelo originário. Assim, ao

contrário do seu ‘criador’, que é ilimitado, incondicionado, inicial, (...) deve

seguir às regras colocadas e impostas pelo originário, sendo, neste sentido,

limitado e condicionado aos parâmetros a ele impostos. (...) Derivam, pois,

do originário o reformador, o decorrente e o revisor”. “O poder constituinte

derivado reformador (...) tem capacidade de modificar a Constituição

Federal, por meio de um procedimento específico, estabelecido pelo

originário, sem que haja uma verdadeira revolução. (...) Verifica-se através

das emendas constitucionais (arts. 59, I, e 60 da CF/88)”. “O poder

constituinte derivado decorrente, assim como o reformador, (...) é também

jurídico e encontra os seus parâmetros de manifestação nas regras

estabelecidas pelo originário. Sua missão é estruturar a Constituição dos

Estados-membros. Tal competência decorre da capacidade de auto-

organização estabelecida pelo poder constituinte originário. (...) Foi

concedido às Assembléias Legislativas, conforme estabelece o art. 11, caput,

do ADCT, que diz: ‘Art 11. Cada Assembléia Legislativa, com poderes

constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano,

contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios

desta’”. “O poder constituinte derivado revisor (...) é (...) condicionado e

limitado às regras instituídas pelo originário, sendo assim, um poder

jurídico. (...) O art. 3º do ADCT determinou que a revisão constitucional seria

realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo

voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão

unicameral. (...) Foi o estabelecimento de uma competência de revisão para

‘atualizar’ e adequar a Constituição às realidades que a sociedade apontasse

como necessárias”. “O poder constituinte difuso pode ser caracterizado

como poder de fato e se manifesta por meio das mutações constitucionais.

(...) Trata-se de processo informal de mudança da Constituição”. “O poder

constituinte supranacional busca a sua fonte de validade na cidadania

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universal, no pluralismo de ordenamentos jurídicos, na vontade de

integração e em conceito remodelado de soberania”29 30

.

O autogoverno envolve a escolha dos representantes que exercerão o poder, realizada

sem a ingerência de outros entes federados.

A auto-administração é o exercício de competências materiais, a prática de atos

concretos no mundo dos fatos, a gestão da máquina pública. A unidade federativa, por

exemplo, pode prestar serviços à coletividade, realizar concursos e licitações, cobrar

tributos, promovendo o ingresso das receitas necessárias para o financiamento das

demais atividades.

No arranjo dessas competências, é assegurada a simetria entre os entes federativos31,

que exercem um poder delineado pela norma que define o modelo adotado pelo

constituinte. Todos possuem autonomia, porém com atribuições distintas,

determinadas de modo a não haver conflitos. A despeito disso, a União ocupa uma

posição singular nesse contexto, pois não atua apenas em nome próprio, mas também

de toda a Federação.

4. A posição especial da União

A União, enquanto ente federativo, iguala-se aos demais, possuindo apenas

autonomia. Contudo, em determinadas situações, representa toda a Federação,

exercendo soberania.

A soberania é um poder de autodeterminação que não pode ser restringido por outro

na ordem interna ou externa, sendo atribuído ao Estado Federal. A união dos Estados,

do Distrito Federal e dos Municípios forma o todo, que não se confunde com União,

unidade federativa32.

No plano externo, a soberania compreende as capacidades de celebrar acordos

internacionais, de declarar guerra e de legação, ou seja, de enviar e receber agentes

diplomáticos. A exigência de cumprimento de tratado internacional ou de decisão de

tribunais internacionais não caracteriza submissão a uma ordem externa, pois essas

instituições não detêm soberania, mas relativo poder político. Os países as aderem, de

forma voluntária e, segundo a concepção tradicional, não são obrigados a cumprir suas

resoluções. As organizações internacionais têm personalidade jurídica própria com

29

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.13ªed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 111-121.

30 Destaca-se que a mutação designa procedimento não formal que modifica a norma constitucional por

meio de sua interpretação e do costume, sobretudo devido à atividade jurisprudencial, porém, nos limites dos princípios que estruturam a Constituição.

31 Nesse sentido, o disposto nos art. 18, art. 25, art. 29 e art. 32 da Constituição Federal.

32 Arts. 1º, caput, e 18 da Constituição Federal. “Estado Federal é o todo, dotado de personalidade

jurídica de Direito Público internacional. (...) o Estado Federal, o todo, como pessoa reconhecida pelo Direito internacional, é o único titular da soberania, considerada poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação” (SILVA. op. cit., p. 100).

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atuação internacional, sendo composta por Estados soberanos, sem qualquer

transferência de parcela de soberania ou exercício de poder.

A Constituição Federal confere ao Presidente da República competência para firmar

compromissos internacionais, sujeitos a referendo no Congresso Nacional, manter

relações com Estados estrangeiros e reconhecer seus representantes diplomáticos,

declarar guerra, celebrar a paz, entre outras atividades33. Desse modo, o Chefe do

Executivo nacional cumula duas funções: representa a União como unidade federativa

e a Federação como um todo. Atuando em nome desta, de modo soberano, pode,

inclusive, pactuar acordos internacionais que tratem de matéria de competência de

outro poder constituído, sobretudo do Legislativo, ou de outro ente federativo.

No plano interno, a soberania consiste em uma supremacia sobre todos os poderes

interiores à sociedade civil, é a ordem mais elevada, que não deve sua validade a

outra, mas valida as ordens inferiores. Disso derivam as capacidades de definir os seus

nacionais e de exercer jurisdição sobre todos os bens e pessoas no seu território.

Atenta-se, porém, para o fato de que a União também é unidade federativa, e como

tal não se sobrepõe as demais. Entretanto, seus representantes podem exercer

funções de soberania, já não atuando em nome apenas dela, mas de toda a Federação.

Nesse sentido, apesar da inexistência de hierarquia entre os entes federativos, faz-se

necessário observar o âmbito de competências conferidas constitucionalmente a cada

unidade, para sua especificação.

5. Repartição de competências

Competência é a medida de poder garantida e delimitada, que toda unidade federativa

possui, sendo de caráter administrativo, legislativo e tributário. Segundo José Afonso

da Silva, “é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, órgão ou agente do

Poder Público para emitir decisões. (...) são as diversas modalidades de poder de que

se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções”34. O seu

exercício assegura a autonomia35 e o equilíbrio nas relações federativas.

A Constituição Federal estabelece, para cada espécie de ente federado, esferas

próprias de atuação.

As diferenças dos modelos federativos encontram-se, principalmente, na repartição

das competências reconhecidas as suas estruturas integrantes. Haverá maior

33

Constituição Federal, art. 84. 34

SILVA. op. cit., p. 479. 35

“[...]a autonomia do Estado-membro pressupõe a repartição constitucional de competências para o exercício e o desenvolvimento de sua atividade normativa” (HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Malheiros, 2003, p. 29).

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SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia... 11

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descentralização quanto mais atividades forem conferidas às unidades, e maior

concentração quanto mais competências conferidas ao poder central.

O Brasil formou um sistema concentrado, seguindo os critérios adotados pelo

constituinte, quais sejam a predominância do interesse, a subsidiariedade e a

cooperação36.

De acordo com o interesse envolvido, é definida a unidade federativa que deve agir. À

União, são conferidas competências nas matérias em que predomina o interesse

nacional ou geral. Aos Estados, cabem as matérias em que predomina o interesse

regional. Aos Municípios, são garantidas as matérias de interesse predominantemente

local. O Distrito Federal atua em assuntos em que o interesse é regional ou local37.

A subsidiariedade - termo que deriva do latim subsidium, significando socorro - é o

princípio segundo o qual a competência não será exercida por um ente de maior

abrangência, se puder sê-lo, de modo satisfatório, por ente de atuação menos

abrangente. Isso é levado em conta para se evitar dificuldades e proporcionar maior

agilidade e eficiência na atuação das unidades federativas, sobretudo em relação à

prestação de serviços essenciais à sociedade.

Quem está mais próximo da realidade concreta da vida é que melhor pode

desenvolver técnicas e utilizar-se dos melhores meios para a consecução dos

fins. Assim, entendemos como característica central da federação que a

repartição vertical das competências obedeça e tenha como pressuposto

lógico e teleológico o velho e sábio princípio da subsidiariedade, que

entregaria tudo que fosse possível a quem estivesse mais próximo da

pessoa. (...) Só se entregaria ao nível mais distante o que não pudesse ser

desenvolvido, e bem, pelo mais próximo à pessoa. Em síntese, é o Estado

que existe para servir a pessoa e não a pessoa que existe para servir o

Estado. A pessoa é o fundamento e a finalidade do Estado. A pessoa é

36

“Nos Estados Unidos, ainda hoje, o aspecto de ‘governação’ do Poder Executivo da União continua tão embrionário quanto no Século XVIII. A principal razão reside no self government radical que lá se pratica, nas duas dimensões possíveis. Territorialmente, pela técnica da federação, a função ‘governamental’ estritamente pública é atribuída, em primeiro lugar, ao nível local e, em segundo lugar, ao nível estadual: muito pouco chega ao nível nacional. Funcionalmente, aquilo que nós (na tradição francesa) chamamos de serviço público – a ação positiva do Estado para a sociedade - a tradição norteamericana, pela técnica das agências, deixa à própria iniciativa privada, que, por meio de uma rede de órgãos reguladores, cuida diretamente das exigências do bem comum, sem necessitar, como na Europa, sobrecarregar o Poder Executivo com mais encargos de governo” (SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. O Tribunal Constitucional como Poder. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2002, pp. 65-66). 37

O Distrito Federal tem posição especial, pois não pode se dividir em municípios, e não caracteriza, apesar de apresentar um status muito próximo, um estado. Por isso, cumula as funções municipais e estaduais no âmbito de sua atuação. A teor do disposto na Constituição Federal, em seu art. 32, §1º, Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios. Apesar de não expressas as competências materiais, entende-se que compete ao Distrito Federal as mesmas faculdades desses entes federativos, com exceção das delegadas a outros. Engloba, portanto, o interesse regional e o local.

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anterior e ulterior ao Estado. Não há, portanto, outro meio racional de ver a

federação senão pautando-se pelo princípio da subsidiariedade38

.

Os entes federados devem atuar em cooperação para o melhor funcionamento das

atividades estatais e atendimento das necessidades sociais. Esse princípio incide

principalmente quando as competências são comuns e concorrentes, porque permite

uma atuação conjunta das unidades, mediante a união de esforços para o atendimento

de determinado fim. Deve pautar-se pela complementaridade e auxílio, e não pela

divergência.

Existem diferentes espécies de competências, conforme o conteúdo das faculdades

atribuídas e a vinculação aos entes a que são dirigidas. Desse modo, elas podem ser

executivas ou legislativas. A primeira é o poder de materializar atos, modificar o

mundo dos fatos, prestar uma atividade concretamente. A segunda é capacidade de

agir que gera uma norma jurídica, geral e abstrata.

As competências materiais podem ser exclusivas ou comuns. Aquelas são exercidas por

um único ente federativo, com exclusão dos demais. É exemplo o poder da União em

desapropriar, por interesse social, imóvel rural que não esteja cumprindo função

social39. Estas, por sua vez, são exercidas por todos os entes federativos em nome

próprio. É exemplo de atribuição comum o zelar pela guarda da Constituição e a

conservação do patrimônio público40. Nestes casos, previu-se a edição de leis

complementares para proporcionar uma ação em cooperação e a estabilidade

nacional41.

As competências normativas subdividem-se em privativas e concorrentes. As primeiras

só podem ser exercidas por uma espécie de unidade federativa. Assim, a União

estabelece privativamente normas relativas a direito penal42. As segundas podem ser

38

SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha; AVILA, Marta (Coord.). Direito do Estado: estudos sobre o federalismo. Porto Alegre: Dora Luzzatto, 2007, pp. 55 – 56. 39

Constituição Federal, art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. 40

Constituição Federal, art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público. 41

Constituição Federal, art. 23. Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. 42

Constituição Federal, art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial, e do trabalho.

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exercidas por mais de uma unidade federativa, de forma simultânea ou sobreposta. É

exemplo a competência para legislar sobre meio-ambiente43.

Destaca-se que os Estados, e também o Distrito Federal, possuem competência

remanescente. Portanto, assumem as competências que não lhes são vedadas pela

Constituição, ou seja, que não foram atribuídas a outros entes, tanto as normativas

quanto as materiais44. Além disso, os Municípios podem legislar sobre qualquer

matéria de interesse local, suplementando a legislação federal e estadual45.

O regime de competência é concebido justamente com a finalidade de assegurar

harmonia na relação federal. Entretanto, mesmo assim podem ocorrer conflitos,

sobretudo no âmbito das competências comuns e concorrentes. Deve atentar-se,

portanto, para a existência desses conflitos e os mecanismos elaborados para sua

superação. Nesse contexto, uma das principais questões diz respeito aos atos

normativos: se há ou não hierarquia ente leis federal, estadual e municipal.

6. A inexistência de hierarquia entre leis federal, estadual,

distrital e municipal

De modo já reiterado, afirma-se que não há hierarquia entre as unidades federativas.

Consequentemente, também não o há entre os atos normativos elaborados por elas46.

Porém, como incidem em relação à mesma população, podem haver conflitos entre

leis federais, estaduais, distritais e municipais. Essas incompatibilidades ocorrerem em

dois planos distintos, observados a partir do sistema de repartição de competências

adotado: se horizontal, não há possibilidade de concorrência de atuações; se vertical,

essa possibilidade existe.

O Brasil estabeleceu um modelo de enumeração de competências normativas

privativas da União e dos Municípios47, reservando aos Estados as competências

remanescentes. Assim, no plano horizontal, os conflitos derivam da intromissão de um

ente federativo na esfera de competência do outro. A elaboração de lei sobre matéria

que não lhe compete configura vício de validade, podendo ser proposta ação direta de

inconstitucionalidade, julgada originalmente pelo Supremo Tribunal Federal48, salvo se

43

Constituição Federal, art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio-ambiente e controle da poluição. 44

Constituição Federal, art. 25. § 1º. São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. 45

Também pode ser incluído o Distrito Federal. Constituição Federal, art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e estadual no que couber. 46

Há apenas hierarquia entre Constituição Federal, Constituição Estadual e Lei Orgânica, como já afirmado. 47

Constituição Federal, Arts. 22 e 30. 48

Constituição Federal, art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar originariamente: a) a ação direta de

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14 SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia...

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envolver ato normativo municipal. Verifica-se, nessa modalidade de repartição de

competências, a inexistência de hierarquia, mas sim a distribuição de faculdades

distintas. Há um âmbito determinado para a atuação de cada espécie de unidade

federativa, nenhuma podendo sobrepor-se à outra.

A enumeração de competências privativas é mitigada pela doutrina dos poderes

implícitos. Entende-se que, mesmo não expresso pela norma constitucional, as

unidades federativas possuem as faculdades necessárias e condições para o exercício

das atividades que lhes foram conferidas. No entanto, não há prejuízo do sistema

federativo adotado49:

A força normativa da Constituição é incompatível com a existência de

competências não escritas salvo nos casos de a própria Constituição

autorizar o legislador a alargar o leque de competências normativo-

constitucionalmente especificado. No plano metódico, deve também afastar

a invocação de ‘poderes implícitos’, de ‘poderes resultantes’ ou de ‘poderes

inerentes’ como formas autônomas de competência. É admissível, porém,

uma complementação de competências constitucionais através do manejo

de instrumentos metódicos de interpretação (sobretudo de interpretação

sistemática ou teleológica). Por esta via, chegar-se-á a duas hipóteses de

competência complementares implícitas: (1) competências implícitas

complementares, enquadráveis no programa normativo-constitucional de

uma competência explicita e justificáveis porque não se trata tanto de

alargar competências mas de aprofundar competências (ex.: quem tem

competência para tomar uma decisão deve, em princípio, para a preparação

e formação de decisão); (2) competências implícitas complementares,

necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes através da

leitura sistemática e analógica de preceitos constitucionais50

.

Quando a competência normativa é concorrente, pode assumir uma espécie

cumulativa ou não cumulativa. Aquela existe quando não estão expressos limites ao

seu exercício, prevalecendo, em caso de conflitos, o disposto pela norma com maior

abrangência territorial, a lei federal.

Por outro lado, sem cumulatividade, há uma repartição vertical, significando que cabe

à União a edição de normas gerais, o estabelecimento de diretrizes e princípios51,

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Entende-se que poderia ser incluído também o Distrito Federal, devido possui status próximo a de Estado. 49

O Supremo Tribunal Federal adotou, no que se refere a atribuições implícitas, interpretação extensiva ou compreensiva do texto constitucional, em várias hipótese; vide HC 80.923/SC, Rel. Min. Néri da Silveira, Plenário, DJ 21.06.2002 e Questão de Ordem no HC 78.897/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, Plenário, sessão de 09.06.1999. 50

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 543. 51

Constituição Federal, Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; II - orçamento; III - juntas comerciais; IV - custas dos serviços forenses; V - produção e consumo; VI -

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possibilitando aos demais entes federativos uma conformação da lei federal às suas

particularidades regionais e locais. “A técnica da legislação concorrente estabelece um

verdadeiro condomínio legislativo entre União e Estados-membros”52. Os Municípios

integram esse modelo, pois podem legislar sobre qualquer assunto de interesse local e

suplementar a legislação federal e estadual53.

Cumpre notar que a competência concorrente pode ser de duas espécies: a

cumulativa e a não-cumulativa. A cumulativa existe sempre que não há

limites prévios para o exercício da competência, ou por parte de um ente,

seja União, seja o Estado-membro. Claro está que, por um princípio lógico,

havendo choque entre norma estadual e norma federal num campo de

competência cumulativa, prevalece a regra da União. É o que exprime o

brocado alemão: Bundesrecht bricht Landesrecht (...). A não-cumulativa é

que propriamente estabelece a chamada repartição ‘vertical’. Com efeito,

dentro de um mesmo campo material (concorrência ‘material’ de

competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo mais alto – a

União – que fixa os princípios e normas gerais, deixando-se ao ente

federativo que é o Estado-Membro a complementação (...). Diz-se, por isso,

que cabe ao Estado-Membro uma competência ‘complementar’. Admite-se

até que, à falta dessas normas gerias, o Estado-Membro possa suprir essa

ausência (competência ‘supletiva’)54

.

No plano vertical, identificam-se dois níveis distintos: um nível superior de normas

gerais e um nível inferior de normas suplementares, que não se podem contrapor. Os

conflitos surgem quando um ente federativo extrapola a sua competência, a União

estabelecendo normas específicas, e os Estados, Distrito Federal ou Municípios,

normas gerais. Por força de expressa disposição constitucional, os Estados podem,

eventualmente, elaborar normas gerais, no exercício de uma competência

suplementar supletiva, mas somente quando há omissão de lei federal55.

florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IX - educação, cultura, ensino e desporto; X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; XI - procedimentos em matéria processual; XII - previdência social, proteção e defesa da saúde; XIII - assistência jurídica e Defensoria pública; XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência; XV - proteção à infância e à juventude; XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis. § 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. 52

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, op. cit., p. 932. 53

Constituição Federal, Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. 54

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 189. 55

Constituição Federal, art. 24. § 3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão competência legislativa plena, para atender suas peculiaridades.

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Como se observa, nessa modalidade de repartição de competências, também não há

hierarquia, pois cada unidade federativa tem seu nível específico de atuação. Isso é

nítido quando surge lei federal posterior à lei estadual que supria sua omissão. Nesse

caso, aquela suspende esta, apenas na parte que dispõe sobre normas gerais, sem

revogá-la56. Entretanto, esta pode voltar a ter eficácia se revogada aquela, o que

denota não ser uma superior nem inferior a outra57.

No controle concentrado de constitucionalidade, resolvem-se os conflitos no Supremo

Tribunal Federal, pela ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de

constitucionalidade58.

As leis municipais podem ser avaliadas quanto à validade, quando não se restringem a

seu nível local de atuação, por meio do mecanismo difuso ou em sede de arguição de

descumprimento de preceito fundamental, julgada pelo Supremo Tribunal Federal59.

Em relação aos atos normativos federais e estaduais infraconstitucionais, havia

divergência quanto ao controle difuso de constitucionalidade, se o conflito deveria ser

resolvido pelo Supremo Tribunal Federal, por se tratar de questão que envolvia

princípios estabelecidos na Constituição, ou pelo Superior Tribunal de Justiça, juízo ao

qual a Constituição atribuiu competência para julgar, em recurso especial, a validade

de ato de governo local em face de lei federal60. Decidiu-se61, então, que cabia ao

Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial, apenas verificar a compatibilidade

entre as normas federais e locais, sem discutir a validade da lei federal, buscando

56

Constituição Federal, art. 24. § 4º. A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia de lei estadual, no que lhe for contrário. 57

Ou seja, “se não houver legislação federal sobre tais matérias, os Estados-membros poderão legislar livremente a respeito delas, mas, se houver, a legislação destes terá de se adstringir ao preenchimento dos vazios deixados pela lei federal. (...) a legislação do Estado, havendo lei federal a respeito, pode suprir vazio deixados por esta no tocante a princípios gerais, e tem competência exclusiva, respeitada a legislação federal de normas gerais, para disciplinar, dentro de seus territórios, tudo o que saia do âmbito de generalidade, já que isso recai na esfera da competência implícita dos Estados-membros. Quando, porém, a competência da União extravasa os limites dos princípios gerias (...) o Estado tem, a propósito, exclusivamente, competência supletiva, ou seja, a de legislar nos vazios da legislação federal” (STF, Repr. 1.153-4/RS, voto Min. Moreira Alves, apud STF, Plenário, ADI-MC 2.396-9/MS, voto Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 14.12.2001., p. 617. 58

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. 59

Constituição Federal, art. 102. § 1º. A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. 60

Constituição Federal, art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal. 61

Esse tipo de decisão é competência do Supremo Tribunal Federal. Constituição Federal, art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal (...): I – processar e julgar, originariamente: o) os conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal.

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sempre a interpretação normativa mais consentânea com a Constituição Federal. No

Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso extraordinário, discute-se a validade, a

invasão de competência constitucional, portanto, constitucionalidade desses atos

normativos.

Nem sempre a discussão de validade da lei ou ato de governo local em face

de lei federal se resolve numa questão constitucional de invasão de

competência, podendo reduzir-se à interpretação da lei federal e da lei ou

ato local para saber de sua recíproca compatibilidade.

Se, entre uma lei federal e uma lei estadual ou municipal, a decisão optar

pela aplicação da última por entender que a norma central regulou matéria

de competência local, é evidente que a terá considerado inconstitucional, o

que basta à admissão do recurso extraordinário pela letra b do art. 102, III,

da Constituição.

Ao recurso especial (art. 105, III, b), coerentemente com sua definição,

tocará a outra hipótese, a do cotejo entre lei federal e lei local, sem que se

questione a validade da primeira, mas apenas a compatibilidade material

com ela, a lei federal, de norma abstrata ou do ato concreto estadual ou

municipal.

(...) os textos constitucionais, ao aludir a ‘lei ou ato de governo local’, para

admitir, ontem, o recurso extraordinário e, hoje, o recurso especial,

quiseram compreender não apenas provimentos normativos,

constitucionais, legais ou infralegais, mas também atos concretos dos

poderes do Estado ou do Município (Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder

Judiciário, 1943, f. 368; Pontes de Miranda, Comentários, 1970, IV/157)”.

(STF, RE 117.809/PR, Rel. Min. Sepulveda Pertence, DJ 04.08.89, ementa e p.

299).

No mesmo voto do eminente Ministro Sepulveda Pertence, cita-se Moreira Alves, em

corroboração:

Criticando a inserção da alínea b do art. 105, III, da nova Constituição, entre

os casos de recurso especial, acentuou o em. Ministro Moreira Alves (O

Supremo Tribunal Federal em face da Nova Constituição - Questões e

Perspectivas, Arq. Ministério da Justiça, 173/35,49):

‘... as questões de validade de lei ou de ato normativo de governo local em

face de lei federal não são questões de natureza legal, mas, sim

constitucional pois se resolvem pelo exame da existência ou não, de invasão

de competência da União, ou, se for o caso, do Estado. Hipótese que

deveriam, portanto, dar margem, não a recurso especial, mas a recurso

extraordinário, pela sistemática adotada para divisão de competências entre

o Supremo tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Esse equivoco -

que também se acha no Anteprojeto Constitucional elaborado pela

Comissão Provisória de Estudos Constitucionais instituída pelo decreto nº

91.450, de 18 de julho de 1985 (artigo 282, III, b) - provavelmente se

originou da circunstância de que a questão de lei ou ato normativo

municipal ou estadual contestado em face de lei federal aparentemente (ou

melhor, literalmente) se circunscrevia ao campo da legislação não-

constitucional. Mas, graças a ele, criaram-se, em verdade, para a mesma

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18 SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia...

RDDP, vol. 2, n. 1, 2013.

questão constitucional, quatro graus de jurisdição sucessivos: dois

ordinários (o do Juiz singular e o do Tribunal local e regional) e dois

extraordinários (o do Superior Tribunal de Justiça, para julgar o recurso

especial que necessariamente terá de ser interposto, pois ainda não se trata

de decisão de única ou última instância a admitir recurso extraordinário; e o

do Supremo Tribunal Federal para apreciar o recurso extraordinário contra o

decidido, a propósito, no recurso especial, certo como é que se trata de

matéria constitucional, sobre a qual cabe à Corte Suprema a palavra final).

(STF, RE 117.809/PR, Rel. Min. Sepulveda Pertence, DJ 04.08.89, p. 297-298).

Em decisão mais recente, prevaleceu o mesmo entendimento, como se depreende do

voto do Redator para o acórdão, Ministro Dias Toffoli:

Sobreveio a emenda nº 45 que separou esse dispositivo (de julgar válida lei

ou ato do governo local em face de lei federal), em relação às competências

enquanto lei e ato de governo. Manteve no Superior (Tribunal de Justiça), o

julgamento válido de ato de governo local contestado em face de lei federal

e devolveu a este Supremo Tribunal Federal a competência para julgar o

conflito, a validade de lei local contestada em face da lei federal, que é o

texto da alínea ‘d’ do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal ora

vigente. (STF, AI 132.755/SP, Rel. originário Min. Moreira Alves, DJe

10.06.2010, p. 689).

Desse modo, os conflitos são avaliados pelos Tribunais, não havendo uma construção

já concebida de qual norma deve prevalecer. Em tais precedentes, caracteriza-se não a

existência de hierarquia, mas de âmbitos distintos de incidência das normas, pois, “(...)

uma comunidade jurídica descentralizada é, idealmente, aquela cujo ordenamento

consta de normas que apenas vigoram para domínios territoriais parcelares. Neste

último caso, a ordem jurídica que constitui a comunidade jurídica é integrada por

normas com diferentes âmbitos espaciais de validade”62. Ademais, no Agravo de

Instrumento já relatado, o voto do Ministro Moreira foi inequívoco e esclarecedor:

Em nosso sistema constitucional, não há hierarquia entre lei federal e lei

local. Aquela não é superior a esta, ou vice-versa. Ambas têm o seu campo

de competência devidamente delimitado pela Constituição Federal, de

modo que, se a lei federal invadir o terreno de competência da lei estadual,

aquela será inconstitucional, não por ser inferior a esta, mas por ter

ingressado no âmbito de competência que a Constituição reservou à última.

E o mesmo ocorre na situação inversa de a lei estadual invadir a esfera de

competência da lei federal.

A inexistência de hierarquia entre lei federal e lei local ocorre que no que diz

respeito à competência exclusiva, quer no que concerne à competência

concorrente supletiva ou complementar.

Quando se trata de competência exclusiva, não há necessidade de cotejo

entre lei local e a lei federal (ou vice-versa) para verificar compatibilidade ou

incompatibilidade entre elas, pois, nesse terreno, a questão não é de

62

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 419.

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SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia... 19

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compatibilidade ou não, mas de conteúdo aferível do exame do texto da lei

que se pretende tenha invadido competência exclusiva de lei de outra órbita

governamental. Se se alega, por exemplo, que uma lei estadual disciplinou

matéria de direito comercial, que é da competência legislativa exclusiva da

União, basta verificar que ela regula matéria de direito comercial, ainda que

não seja incompatível com a lei federal existente (como pode suceder se

uma lei local disciplinar um instituto de direito comercial novo, ainda não

disciplinado pela lei federal), para declarar-se a sua inconstitucionalidade.

Quando, porém, se trata de competência concorrente supletiva ou

complementar, o cotejo entre as leis é inevitável, não porque a lei federal

seja superior à local, mas porque a competência federal é superior à

competência estadual, já que a Constituição permite àquela fixar os seus

próprios limites em todo o campo da concorrência concorrente, ou em parte

dele, o que acarreta a inferioridade da competência local que, por isso

mesmo, é apenas complementar ou supletiva, ou seja, se reduz a preencher

os espaços vazios deixados pela legislação federal, sendo que, se esses

vazios vierem a ser preenchidos por esta, cessa a eficácia da legislação

estadual pré-existente e incompatível com a legislação federal

superveniente.

Por isso, Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a

Emenda nº 1, de 1969, tomo II, 2ª. ed., 2ª tiragem, pág. 168), depois de

salientar que, mesmo na Emenda Constitucional nº 1/69 (artigo 8º,

parágrafo único), não se admitiu, em nosso sistema constitucional,

competência concorrente com cumulatividade, mas, sim, competência

concorrente sem cumulatividade (e, portanto, supletiva e complementar),

observa:

‘Uma vez que não é cumulativa, a competência concorrente do art. 8º,

parágrafo único, permite que se conceitue a uma das competências como

superior à outra – não porque se lhe dê mais, e sim porque se lhe deixa, às

vezes, escolher os próprios limites’

E, mais adiante, aludindo ao princípio do direito constitucional alemão ‘o

direito federal corta o direito estadual’ (Reichsrecht bricht Landesrecht), que

parece traduzir a idéia de que a regra jurídica federal é superior à regra

jurídica estadual, se apressa em esclarecer o mesmo Pontes de Miranda (ob.

cit., pág. 178):

‘Tal hierarquia é menos das regras jurídicas do que das competências

legislativas, pois que, sendo concorrentes, haveríamos de encontrar solução

para se evitara cumulatividade’.

(...) como acentua Machado Horta (A Autonomia do Estado-Membro no

Direito Constitucional Brasileiro, pág. 53) – ‘a legislação federal é reveladora

das linhas essências, enquanto a legislação local buscará preencher o claro

que lhes ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais

às peculiariedades e às exigências estaduais’ (STF, AI 132.755/SP, voto Rel.

originário Min. Moreira Alves, Plenário 28.09.1989, p. 652-654).

Complementa-se o entendimento com o voto do ilustre Ministro Celso de Mello, que

realizou profunda análise doutrinária sobre o tema:

A Constituição da República uma vez mais consagrou o princípio federativo.

A Federação brasileira compõe-se de comunidades jurídicas parciais, todas

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20 SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia...

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dotadas de autonomia, residindo a soberania, apenas, no Estado Federal,

que é a expressão da comunidade jurídica total (Pinto Ferreira,

‘Comentários à Constituição Brasileira’, vol. 1/374, 1989, Saraiva; Michel

Temer, ‘Elementos de Direito Constitucional’, p. 55/59, 5ª ed., 1989, RT;

Celso Ribeiro Bastos/Ives Gandra Martins, ‘Comentários à Constituição do

Brasil’, vol. 1/216-221, 1988, Saraiva; José Cretella Júnior ‘Comentários à

Constituição Brasileira de 1988’, vol. I/131, item n. 38, 1989, Forense

Universitária).

O federalismo brasileiro é de equilíbrio. Pressupõe a absoluta igualdade

político-jurídica das unidades federadas. Por isso mesmo, elas mantêm,

entre si, relações de coordenação, que projetam os vínculos que as unem

num plano de estreita horizontalidade.

(...) Pontes de Miranda (Comentário à Constituição de 1967, com a Emenda

nº 1, de 1969, tomo I/291-292), ao abordas esse tema – o da hierarquização

das regras jurídicas estatais no âmbito do Estado Federal brasileiro –

expende magistério irrepreensível, assinalado a inexistência, entre leis

federais e atos legislativos locais, de qualquer relação de supremacia, na

exata medida em que essas espécies normativas se contenham nos limites

constitucionalmente preestabelecidos de competência legislativa das

entidades que editaram: ‘... Umas e outras vêm em seguida, dentro das

linhas demarcadoras das competências legislativas (federal, estaduais, de

acordo com o que se estatuiu na Constituição Federal.’

Esse, também, é o entendimento doutrinário inter plures, de Dalmo de

Abreu Dallari (‘Elementos de Teoria Geral do Estado’, p. 228, item 142, 11ª

ed., 1985, Saraiva), Marcelo Neves (‘Teoria da Inconstitucionalidade das

Leis’, p. 107/108, 1988, Saraiva), Antonio Gonçalves de Oliveira (‘Hierarquia

das Leis e Competência legislativa da União e dos Estados’, in Arquivos do

Ministério da Justiça e Negócios Interiores, vol. 3/42 e segs.), Geraldo

Ataliba (‘Sistema Constitucional Tributário Brasileiro’, p. 94/101, itens

186/201, RT) e Celso Ribeiro Bastos (‘Curso de Direito Constitucional’, p.

256/257, item n. 10, 11ª ed., 1989, Saraiva).

A questão das competências estatais, no plano da nossa organização

constitucional, representa um dos elementos nucleares e essenciais à

prática concreta do regime federativo. Eventuais conflitos de competência

normativa suscitarão, ordinariamente, discussão jurídica de natureza

constitucional, pois quando se invoca, com impropriedade, a supremacia da

lei federal, instaura-se, como conseqüência necessária, a verificação de

compatibilidade vertical dos atos legislativos postos em confronto - a lei

federal e a lei estadual - com o modelo jurídico positivado na própria

Constituição. Na realidade, o cotejo de leis estaduais com diplomas

legislativos federais induz, necessariamente, o contraste, em face do texto

constitucional, dos atos normativos questionados, pois inexiste entre eles,

especialmente no plano da competência concorrente, qualquer relação

hierárquico-normativa.

A única hierarquia que se pode vislumbrar na esfera das relações jurídico-

institucionais entre a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os

Municípios, é sempre de índole exclusivamente constitucional, e pertine às

fontes de legislação ou às competências para legislar.

O eminente Ministro Antonio Gonçalves de Oliveira (op. cit., p. 46) é

categórico ao acentuar que ‘Não existe, em princípio, uma supremacia da lei

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SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia... 21

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federal’, pois ‘... O problema é, antes, de constitucionalidade ou

inconstitucionalidade da leis’. (STF, AI 132.755/SP, voto Min. Celso de Mello,

Plenário 28.09.1989, pp. 668, 674 -676).

Diante da exposição de renomada compilação jurisprudencial e doutrinária, que

corroboram a explanação já incansável da inexistência de hierarquia entre os entes

federativos e respectivos atos normativos, ressalta-se a existência de áreas distintas de

atuação. No plano horizontal, cabe afastar a norma que incide em matéria na qual o

ente que a editou não possui competência para legislar. No plano vertical, verifica-se

se a norma se adéqua a seu nível de atuação, geral ou suplementar, e, por meio do

cotejamento entre as leis possivelmente em conflito, busca-se a compatibilidade

material entre ambas, por ser a interpretação mais condizente com a Constituição

Federal.

7. Considerações Finais

O Federalismo implica uma relação complexa entre as unidades federativas, cuja

atuação, mesmo que em níveis diferentes, pode ocasionar conflitos de difícil solução.

Como se verificou, a distribuição territorial de atribuições distingue um poder

irrestrito, a soberania, e um limitado, a autonomia. Todavia, este propõe uma

igualdade, como capacidade de se auto-organizar, autogovernar e auto-administrar.

Não há, portanto, neste âmbito, uma subordinação, mas equivalência.

Entretanto, apresentou-se, como elemento problemático, o caráter dúplice

empreendido pela União, agindo ora como representante de toda a Federação, ou

seja, soberanamente, e ora como ente federado, autonomamente.

Como forma de instrumentalizar a superação dessas possíveis altercações e

justaposições, a Constituição definiu competências, âmbitos delimitados de atividade.

Estas podem ser materiais ou normativas e serem conferidas de modo privativo ou

concorrente, mas garantidas de modo preciso.

O modelo horizontal de repartição de competências permite a utilização de critérios

bastante objetivos para afastar a norma em desconformidade. No entanto, o modelo

vertical dá margem para a discricionariedade do intérprete das normas na definição do

que é norma geral e do que é interesse local, ou quando aquela extrapola o seu

âmbito, discorrendo sobre questões especificas ou vice-versa.

Constata-se e reforça-se a idéia de que inexiste hierarquia entre as unidades

federativas e respectivos atos normativos, com exceção da estrutura de sobreposição

entre Constituição Federal, Constituição Estadual e Lei Orgânica. Contudo, isso não

basta à superação de eventuais conflitos. Cabe ao Poder Judiciário assegurar a

constitucionalidade dos atos normativos, adequando a sua interpretação aos

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22 SONTAG, K.. Autonomia e hierarquia...

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dispositivos constitucionais, permitindo maior equidade e segurança jurídica na

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