Revista D'Art - Nº9

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Número especial novembro 2002

delineando nortesseminário

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Memória e crítica sobrefotografia brasileira no

limiar do século 21HELOUISE COSTA e

RUBENS FERNANDES JR.

Novos caminhos daliteraturabrasileira

contemporâneaÍTALO MORICONI eCECÍLIA ALMEIDA

SALLES

A complexidade do momentoartístico e o papel do processoinvestigativoNELSON BRISSAC PEIXOTO

Perspectivas das instituiçõesculturais públicasSONIA SALZSTEIN

O processo deautonomização nas Artes

e nas Ciências SociaisRENATO ORTIZ6

A importância do designpara o desenvolvimento

industrial brasileiroALEXANDRE WOLLNER

19As artes visuais e a crise

das instituiçõesSTELLA TEIXEIRA DE BARROS

28O registro da dançacomo pensamentoque dançaCHRISTINE GREINER

38

87

61

79

A atividade musical em São Paulo: dadivulgação à formação de acervos

LORENZO MAMMÌ e NELSON RUBENS KUNZE69

A ficção audiovisual francesano cinema e na televisãoJOSÉ MÁRIO ORTIZ RAMOS 94

12Instituições,profissionalismo epatrocínionas ArtesIVO MESQUITA 24

Documentando afugacidade da

Arte CênicaMARIÂNGELA ALVES DE LIMA

34

Arquitetura econtemporaneidadePAULO MENDES DA ROCHA

e RICARDO OHTAKE 45

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E

Editorial

m agosto de 2001, a Divisão de Pesquisas � Idartefetuou o primeiro movimento em direção a umanova fa se , p romovendo o seminár io Delineando

Nortes. Esse encontro marcou a retomada das atividades daDivisão, o retorno à vida produtiva, e teve como objetivopromover uma reflexão sobre os rumos das artes e da pesquisaem artes na contemporaneidade. Como dizia o próprio título doevento, nossa intenção era a de esclarecer, perscrutar, inventaresse horizonte em busca de motivos que acionassem nossotrabalho, que é o de registrar e pensar a produção artística ecultural da cidade de São Paulo.

Entendemos que a atividade de pesquisa deve combinar-se àprática do debate de idéias. Logo, é finalidade da Divisão arealização de projetos que, como esse, fomentem a discussão,o intercâmbio, a integração entre pesquisadores e estudiososem geral, em sintonia com a pesquisa universitária, masavançando além dos limites acadêmicos, favorecidos que somospela disposição de autonomia e pela possibilidade de visadamultidisciplinar sobre a realidade.

Achamos que artistas e pesquisadores têm em comum o fatode que são movidos pela curiosidade e pelas inquietações deordem intelectual e de natureza estética.

Atuamos, pois, para que a atividade de pesquisa também estejapróxima dos pólos de produção, para que haja entre eles umafertilização mútua.

Com todos esses propósitos no horizonte, organizamos o referidoseminário e, ao longo de quatro meses, assistimos a dezenove

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conferências e mesas de debates, envolvendo a presença de trintae nove profissionais e pesquisadores convidados.

A primeira etapa do encontro pretendeu fomentar uma reflexãosobre o panorama das artes e das comunicações na atualidade,compreendendo a perspectiva do registro e da prospecção analítica.A segunda etapa, a que chamamos Traçando Percursos, visouconstituir um panorama da produção cultural e artística daatual idade, demarcado por indicadores do que maissignif icativamente constituem suas principais incl inações etendências estéticas.

A presente edição de D´Art contém representantes de todos ossegmentos do Seminário e com ela buscamos dar continuidade aodiálogo, agora ampliado por um programa permanente de debates,que estamos levando a cabo como um dos principais programas daDivisão, além das atividades regulares de pesquisa e coleta de dados.

Agradeço efusivamente a generosidade de todos os participantesdo Seminário, cujas idéias e reflexões foram propulsores perfeitospara a ação que vimos desenvolvendo desde então. Agradeçoparticularmente às equipes da Divisão e do Arquivo Multimeios,que têm respondido com entusiasmo ao estímulo de ampliar efortalecer os fundamentos do nosso trabalho de pesquisa e produçãode pensamento. Finalmente, com especial carinho, em nome detodos, agradeço a Ricardo Ohtake, que muito nos honrou aceitandoo convite para criar a capa desta edição.

Si lvana GarciaDiretora da Divisão de Pesquisas

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Perspectivas dasinstituições culturais públicasUm depoimento sobre asituação brasileiraSONIA SALZSTEIN

Instituições,profissionalismoe patrocínio nas ArtesIVO MESQUITA

A Complexidade domomento artístico e o papel

do processo investigativoNELSON BRISSAC PEIXOTO

O Processo deautonomização nas

Artes e nas CiênciasSociais

RENATO ORTIZ

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o processo de autonomizaçãonas artes e nas ciências sociaisdepoimento de Renato Ortiz

omo todos sabem, as ciênciassociais, em particular a sociologia,nascem no final do século XIX. Esse

processo de institucionalização se dá emalguns países da Europa e tem a ver com aconstituição do que se chama deautonomização do conhecimento, no qualum determinado discurso ganhaindependência e particularidade em relaçãoa outros discursos.Isso ocorre com o discurso das ciênciassociais, com o qual podemos fazer umparalelo com o processo deautonomização do discurso da arte que,embora anterior, também ocorre noséculo XIX. Um autor que trabalhourecentemente a autonomização artísticafoi Bourdieu, no livro As Regras da Arte.Anterior a ele, Sartre investiu na mesmadireção, embora em outra perspectiva,quando pesquisou Flaubert.A constituição de uma esfera autônomado mundo da arte implica a arte pelaarte, um território delimitado que sesepara de outras injunções que são apolítica, a economia, a religião, ojornalismo, etc.As ciências sociais nascem desse mesmo

Fronteiras e territorialidade na p e s q u i s a ,n o m é t o d o e n o trabalho intelectual nasc iênc ia s soc ia i s são ana l i sados pe loprofessor Renato Ortiz.

contexto, e aqui eu quero enfatizar aidéia de fronteira. As ciências sociais,para existirem como tal, têm que criarum território e este se separa dosdiscursos de outros territórios existentes,sejam a filosofia, as ciências exatas, oua religião. O meu argumento é de queelas têm que construir uma lógica, umtipo de raciocínio, e esse raciocínio temque possuir uma metodologia própria,uma lógica própria de apreensão, depesquisa, para compreender a realidade.É importante entender esse aspecto quevai construir, digamos, as fronteiras dasciências sociais.Sem essa idéia inicial de fronteiras, nãohá ciências sociais, não há o pensamento.Essa fronteira portanto implica separaçãoem relação a outros discursos.Evidentemente, é uma fronteira criadapor meio de um discurso que não anulaos outros discursos, que não anulaportanto as outras interpretações. Nesseprocesso, uma coisa significativa é aconstrução do objeto que está sendopesquisado, e que vou nomear aquicomo construção do objeto sociológico,só por comodidade, porque, a rigor, issonão tem a ver com a sociologia,exclusivamente. É importante entenderque essa construção de um objeto é umartificio que implica distanciamentodaquele que pensa a realidade. Talvez amelhor metáfora para compreender otrabalho intelectual seja uma viagem:

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quando se viaja, se sai de um lugar e sevai para um outro lugar. Só que, nessaviagem, a gente sai e permanece. Esseesforço de saída, de distanciamento, tema ver com a perspectiva crítica. Nessesentido eu diria que a imagem dointelectual orgânico de Gramsci é ruimpara compreendermos o trabalhointelectual, porque o intelectual orgânicoestá vinculado à organicidade, seja deum partido, seja de uma instituição.Como trabalhei muito Gramsci, prefirodele uma outra maneira de ver as coisas,pouco conhecida, que é a idéia de queos intelectuais têm que ter uma ironiaapaixonada. A ironia os retira do mundo,a paixão os remete ao mundo. Oimportante da ironia, nesse caso, é esseprocesso de auto construção de umdistanciamento, artificial masfundamental para a construção dopensamento, para a construção dequalquer objeto de pesquisa, para acompreensão disso que nós chamamosde realidade.Vou dar um exemplo pessoal. No meulivro Mundialização e Cultura eu começodizendo o seguinte: quero escrever esselivro como se eu não pertencesse anenhum país, a nenhum lugar, a nenhumaclasse social, a nenhum sexo...Isso éverdade? Não. Porque eu sou brasileiro,escrevo em português, sou do sexomasculino e estou numa determinadaclasse social. Porém, ao colocar a coisa

desta forma, eu construo o meu textoprocurando respeitar a �ilusão�construída. Essa ilusão tem um sentidopositivo que me permite criar umdistanciamento grande deste mundo. Noprocesso da construção do objeto, aminha reflexão vai privilegiar um artifícioe esse artifício, na verdade, faz parte doprocesso de construção.Portanto, nas ciências sociais, a pesquisatem algumas implicações.A primeira é a luta constante contra osenso comum e este tem a ver com asvariadas crenças do cotidiano, quepossuímos individual ou coletivamente.A ruptura com o senso comum é muitoimportante. E um importante sensocomum na atualidade é a mídia. A mídiaconstituiu-se, hoje, numa instituição deconstrução de um senso comumplanetarizado.A segunda implicação é o senso comumuniversitário. As próprias universidadesde ciências sociais, ao se rotinizarem,construíram uma explicação do mundorotinizada, que já não é mais - para usaruma palavra que está na moda �reflexiva, ou seja, que duvida de simesma enquanto explicação.Porém, se este distanciamento éessencial para a construção daargumentação, do raciocínio sociológico,é importante entendermos que asciências sociais são bastante distintas doque nós chamamos de ciências exatas

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ou ciências duras. Ainda bem que noinício do século XXI já não temos maisa ilusão de tomá-las como paradigma.A própria idéia de paradigma seencaixa mal nas ciências sociais. Se nóspegarmos um l ivro conhecido emciências sociais, do autor Thomas Kuhn,sobre as revoluções cient í f icas, aperspectiva que ele nos dá é a seguinte:o que é um paradigma? Um paradigmaé uma explicação fechada e isso, naverdade, permite que eu tenhainteligibilidade do que está ocorrendolá fora. Porém, as revoluçõesparadigmáticas ocorrem quando asexplicações já não conseguem dar contado que está acontecendo lá fora. Nessemomento, no interior do paradigmacomeça a surgir uma tensão. Estatensão é que vai fazer explodirfuturamente um outro paradigma. Esseparadigma agora nasce da insuficiênciadas expl icações anter iores e danecessidade de se levar em conta osnovos fenômenos que surgem. Portanto,o novo paradigma envolve o anterior eé mais amplo que o anterior.Por que eu estou trazendo isto aqui?Porque as explicações em ciênciassociais estão sempre marcadas pelahistor ic idade. Os conceitos, asapreensões, as perspect ivas vêmmarcadas pela história, pelo momentoem que são trabalhadas. Nesse sentido,os conceitos não são universais como

são para as chamadas ciências exatas.Tomemos, por exemplo, o nossoconceito de trabalho: os antropólogossabem muito bem que ele não se aplicaàs sociedades indígenas. A mesma coisaacontece se nós formos pensar emtermos dos vários conceitos que existemem ciências sociais trasladados paraoutras sociedades: o rendimento doconceito é pequeno em função dasdiferenças históricas existentes entre associedades. Porém, isso também temuma implicação que é a transformaçãoda sociedade, a necessidade datransformação dos conceitos, do quepensa essa sociedade. Dito de umaoutra forma, se o intelectual tem queconstruir a sua distância, ele tem, aomesmo tempo, que estar vinculado aomundo. A distância é importante parao pensamento; porém, sem este vínculocom o mundo contemporâneo ele, naverdade, perde em substância, emmatéria de reflexão. Talvez nesse casoeu pudesse retomar a noção de ironiaapaixonada, porque aí o movimentoanterior de sair do mundo écontrabalançado por um outro, que opuxa ao mesmo tempo. Nestaperspectiva, para pensarmos hoje, eudiria que, no mundo contemporâneo, éimportante termos claro um conjuntode mudanças que estão ocorrendo e quesão mudanças profundas, que estãopresentes na organização das

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sociedades e têm implicações na própriaconceitualização do pensamento quequer entender essa contemporaneidade.

MUNDIALIZAÇÃO DA CULTURA:CONSTITUIÇÃO DO ESTADO-NAÇÃOUm tema que é central e que eu venhotrabalhando é o da globalização e damundialização da cultura. Astransformações são grandes no sentidode que certas noções fundamentais agorase modificam. Por exemplo, a noção deespaço. Vocês sabem que o espaço nãoé uma categoria universal, que vale paratodos os homens em qualquer época eem qualquer sociedade. O espaço é umaconstrução social, por isso os autores falam�o espaço na Idade Média�, �o espaçonas sociedades primitivas�, �o espaço namodernidade�, etc. Se nós pensarmosdesta forma, vamos perceber que acategoria de espaço está vinculada aoprocesso de formação da sociedade. Hojepor exemplo nós estamos vivendo umatransformação radical da categoria deespaço e de tempo.Uma transformação fundamental emrelação à categoria de espaço - e quenão foi claramente percebida pelasciências sociais ao longo do século XX,embora isso fosse mais claro nos autoresdo século XIX - diz respeito àconst i tuição do Estado-nação, àconstituição do que nós chamamos decidade moderna. As duas coisas podem

parecer separadas, mas vêm juntas. Oque é uma cidade moderna? A cidademoderna é uma cidade integrada emum todo, no qual os segmentos queexistiam anteriormente podem agorafazer parte deste conjunto. Por isso, otema dos meios de comunicação, queno século XIX concerniam aos meios detransporte, são fundamentais naconstituição da modernidade. É por issoque Walter Benjamin se interessa pelacidade de Paris na construção destamodernidade. Essa modernidade implicaque as pessoas são desenraizadas dosseus lugares - o camponês, da vida nointerior - , para se reenraizar na cidade.A cidade agora passa a ser um núcleo,um todo, e é nesse momento que a noçãode sistema, sistema viário, sistema detransporte, impõe-se com força. E seBenjamin escolhe Paris é porque épossível ler Paris nesse sistema.A mesma coisa acontece em escalanacional. Um país como a França nãoexiste enquanto França Estado-nação,como cultura nacional antes do séculoXIX, ou seja, antes da RevoluçãoIndustrial. É necessário que os estamentossejam rompidos, é necessário que aRevolução Francesa promova a noção deindivíduo como um direito fundamental,que a língua francesa seja ensinada paratodos os franceses - mais de um terço dapopulação não falava francês -, que asescolas promovam o ensino. Esse processo

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Este mundo cruza a cidade de São Paulo,cruza o país chamado Brasil, como cruzaoutras cidades e outros países. Dito deoutra forma: este mundo já não está maislá fora, como se fosse exterior; está aquidentro. A própria divisão entre aquilo queestá fora e o que está dentro se redefine.Não é casual, hoje, o fato de que ficadifícil falarmos em cultura estrangeira ecultura nacional, em cultura local�autêntica� e cultura estrangeira�inautêntica� - autêntica e inautênticacom aspas - porque nesse processo asespacialidades adquirem, agora, umaoutra dimensão: a noção de dentro e fora,a noção de perto e longe, a noção depróximo e distante se refazem nestecontexto. Isto tem implicações não apenaslá fora, no primeiro mundo; temimplicações nos diversos locais do planeta.Portanto, para se entender o mundocontemporâneo, é necessário pelo menosuma predisposição para compreender umprocesso que é mais amplo, um processoque ao mesmo tempo que se enraiza nasdiversas sociedades, se enraiza de formadiferenciada - e eu acrescentaria,desigual. Porém, o importante é entenderque, neste processo de transformação, oque está em causa são, primeiro, associedades, a organização dessassociedades; segundo, o pensamento quepensa essas sociedades, porque, semconceitos apropriados, não se conseguedar conta e aí quando se volta ao passado,

cria uma noção de espacialidade que édistinta do que os historiadores chamamde antigo regime. Ela é distinta no sentidoem que agora nós vamos ter umaterritorialidade nacional. Uma maneira deverificar isso é a emergência do sistemaferroviário na Europa. O sistema ferroviáriopermite uma comunicação daquilo queestava desligado, dentro das cidades e nopaís como um todo. Isso significa que nóstemos uma noção de espaço que serearticula no contexto nacional.O que nós estamos vivendo hoje com amodernidade é que esse contextonacional explode. Dito de uma outraforma: o processo que estamosnomeando hoje de desterritorializaçãoimplica colocar em causa esse centro queé o Estado-nação. A rigor, nóspoderíamos aplicar ao século XIX a noçãode desterritorialização. Nós poderíamosdizer: o camponês que vem do interiorse desterritorializa para se reterritorializarno processo dessa nova espacialidade.Hoje, esse elemento da nação, daconstrução da nação, se transforma. Nomundo contemporâneo é possível sermoderno sem sermos nacionais, o que écomplicadíssimo, traz problemaspolíticos, problemas os mais complexospossíveis. Porém, isto implica uma novaespacialidade, uma nova concepçãotambém de tempo, pelo qual os meiosde comunicação passam a ter um papelfundamental de articulação.

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ou melhor, ao legado das ciências sociais,nós vamos perceber que esse legado, sepor um lado ajuda num conjunto de coisas,por outro, não é totalmente suficiente,devido ao fato de os próprios conceitosnão terem ainda sido trabalhados eelaborados. Não é uma criseparadigmática, é uma crise no sentido dahistoricidade dos próprios conceitos quepensam esta realidade.O processo de mundialização, na verdade,coloca em causa um conjunto de questões.Porém o importante é entender que umacidade como São Paulo é uma cidade que,ao mesmo tempo, é única, masatravessada por esse processo demodernização. Aqui talvez possa ser umexcelente laboratório para pensarmos umconjunto de questões e de contradiçõespresentes. Mas como implementar isso? Édifícil, porém é um desafio. De fato,estamos vivendo um processo de mudançaradical. E esse processo é bom para opensamento, para quem faz pesquisa,porque, de alguma forma, se olharmos opassado, vamos perceber que o mundo dofinal do século XIX é de uma profundatransformação. Não é o mundo da primeiraRevolução Industrial, é o da segundaRevolução Industrial, da eletricidade, dopetróleo, das novas invenções, doautomóvel, do cinema, do avião. Nóstambém estamos vivendo um mundo detransformação. É importante dar-se contadisso. E isso é estimulante no sentido de

pensarmos o mundo, de sairmos um poucodas nossas crenças mineralizadas, para usaruma expressão do Sartre, porque oconhecimento também vai se mineralizando ede uma certa forma, num determinadomomento, ele se transforma em cultura popularno sentido que se torna inabalável, como crençanaquilo em que nós pensamos.Esse processo não ocorre apenas por causada queda do muro de Berlim - tem muitodo muro de Berlim nele, porém não vamosexagerar- mas por um conjunto detransformações que são extremamenteinstigantes, também do ponto de vistaartístico. Isso é animador. Agora,evidentemente, essas transformações ocorremsegundo orientações hierarquizadas, muitoclaras, de dominação no mundocontemporâneo. Como sou intelectual, nãosou político, posso pelo menos me encantarcom a perspectiva desse desafio, de umacerta forma construído um pouco àdistância em relação a este mundo, paracompreendê-lo mas também mevinculando a ele, me inspirando nele.Porque sem esse elemento, dificilmenteeu diria que nós poderíamos, nesse caso,aplicar a máxima gramsciana que eu estoutirando aqui da gaveta, a da ironiaapaixonada.Muito obrigado.

Palestra editada por Silvana Garcia.

Renato Ortiz é sociológo e antropólogo. Professortitular do Departamento de Sociologia da Unicamp,é autor de diversos livros.

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a complexidade do momentoartístico e o papel do processoinvestigativo

PESQUISA E PRODUÇÃOARTÍSTICAHouve uma profunda mutação no campoda percepção e produção da artecontemporânea. A relação pesquisa versusprodução artística ganhou um significadonovo, uma urgência outra, abrindo umcampo extraordinariamente instigantefrente às possibilidades e às demandas.

Esse binômio pesquisa/arte até poucotempo atrás foi pouco entendido.Pesquisa-se o que se fez na arte, deforma retrospectiva para que o acervoda produção seja mantido, conservado,analisado e criticado. Essa equaçãoganhou novos contornos na medida emque a lguns fenômenos a l teraramprofundamente o quadro no qual sedá a compreensão do mundo em quevivemos e as respostas que a produçãoar t í s t i ca pode fornecer. Nessatransformação, o papel da pesquisatornou-se muito importante.

elson Brissac Peixoto discute ar e l a ç ã o e n t r e p e s q u i s a eprodução contemporânea, analisa

como a supressão das fronteiras tradicionaise a compressão do espaço/tempo alterarama nossa percepção e ainda como o artistaampl iou seu espaço de e laboraçãoenfatizando o processo de criação e nãosomente o produto final.

PERCEPÇÃO E PROCESSOSCONTEMPORÂNEOSO que nós estamos vivendo nos últimosquinze anos é um fenômeno de profundareequação das dimensões de tempo eespaço. A globalização, com ocrescimento das trocas internacionais deinformação e comércio, fluxosrapidíssimos de produtos e, sobretudo,de conhecimento, levou a uma profundamudança na organização da produçãoeconômica, dos espaços urbanos e dasrelações entre as pessoas.

O impacto da globalização no nossocotidiano vai ser sentido de forma cadavez mais intensa. A supressão dasfronteiras tradicionais que ordenavam aprodução, a moradia e a experiência decada um de nós, provocou uma mudançana espacialidade e na temporalidade queexperimentamos no nosso dia-a-dia.

Nós estamos desaparelhados para apreenderos novos fenômenos profundamenteabstratos que condicionam diretamente anossa vida imediata e diária. A rapidez dastransformações e a abrangência territorialem que esses fenômenos ocorremcontribuíram para o que os teóricos chamamde compactação, compressão do espaço edo tempo. O mundo todo ficouextraordinariamente pequeno e rápido.

O que tradicionalmente entendíamos porcidade era um lugar passível de ser

depoimento de Nelson Brissac Peixoto

N

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equacionado e percebido a partir daexperiência diária de cada um de nós.Era uma cidade que estava ao alcanceda experiência, cujo traçado emonumentos eram referências legíveispara o passante, para o morador. A idéiade o monumento configurar o espaçourbano e ditar as possibilidades de sualeitura pertence a um momento históricodefinitivamente superado.Herdamos esse dispositivo de percepçãoe organização do espaço do quattrocento.Toda cultura ocidental é herdeira desseprocesso, que entrou em colapso com ocrescimento econômico caótico, adesigualdade social, a reconfiguraçãopermanente e cíclica da cidade por outrosinvestimentos desorganizados. A maiorparte de São Paulo, para cada um denós, é desconhecida. Perder-se na cidadehoje não é mais um exercício poéticobenjaminiano, mas uma imposição dacidade e uma experiência terrível; delanão resgatamos qualquer tipo deimaginário. A cidade se tornouextraordinariamente opaca, uma névoainacessível, principalmente porqueganhou uma configuração que não se dámais a esses dispositivos de percepção.

A visão, desde a perspectiva, foidestacada como sentido fundamental quenós, ocidentais, usamos para organizar,explicar e perceber o espaço. Osprocessos que configuram nossa vida nãosão mais concretos, não se dão mais a

ver, a visão não é mais capaz deequacionar essas situações.

O primeiro resultado desses processoscomplexos que escapam da nossacompreensão é o colapso da experiênciaindividual, o que vai resultar na crescenteintrodução de estratégias abrangentes deanálises e de mapeamento das situações.

O ESPAÇO RECONFIGURADOO colapso da sensibilidade imediata,do nosso dispositivo pessoal baseadona experiência de relacionamento como mundo, vai ter um impacto muitogrande na produção art íst ica. Osartistas não poderiam deixar de notara crescente inef icácia de suasestratégias convencionais elaboradas edesenvolvidas pela arte contemporâneado século passado.

A grande conquista da artecontemporânea � que foi compreendera arte para além do objeto artístico eque a produção artística resulta em algorelacionado com o entorno e esta relaçãopede uma nova atitude na percepção �exige um observador alerta e ativo quese desloque, investigue, procurecompreender a nova configuraçãoestabelecida pela arte e entenda anatureza ativa da arte no espaço. RichardSerra, Morris1 , e todo o minimalismo jásabiam disso. Toda arte � feita dos anos60 para cá � desenvolveu esse grande

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dispositivo criando um campo que hoje échamado de campo expandido, onde aarte, seu entorno e o observador estãoinseridos numa relação dinâmica. Hoje,toda essa riqueza é um dispositivo emsuspensão, um dispositivo em crise.

Na medida em que nós e, portanto osartistas, nos defrontamos com processos quenão são redutíveis a esses elementos, a artepassou a absorver uma idéia mais amplade espaço. O espaço é aquela configuraçãoterritorial demarcável pela experiência etambém uma série de elementos de ordempolítico-institucionais, econômicos, sociais ehistóricos. É impossível, e os artistaspassaram a se dar conta disso, nosrelacionarmos com essas situações semlevarmos em conta a multiplicidade deelementos que determinam aquele espaço,muitas vezes não imediatamente visíveis.Surgiram, por exemplo, artistas que aoexporem em museus, introduziram no seupróprio trabalho elementos referentes àestruturação daquela instituição. Quemfinancia? Como que isso influencia o meutrabalho? Essas inquietações passaram aser um repertório comum para uma sériede artistas que fazem das condições doseu trabalho o próprio trabalho, e ainstância propriamente formal é apenasum dos aspectos.Quando você convida um Muntadas2 ,por exemplo, ou qualquer artista dessetipo (conceitual), a primeira coisa queele quer saber é com que grupos de

investigação e pesquisa vai operar, ouseja, na verdade ele é um agenciadorde invest igação. Então há umacompleta inversão do papelconvencionalmente atr ibuído àpesquisa, ela não é mais uma coisa apriori ou a posteriori, ela é intrínseca ese dá no processo de criação. A criaçãoé um processo na sua melhor forma.

Há, portanto, uma ênfase cada vezmenor em resultados finais, o trabalhodo artista cada vez mais é entendido,não como uma corporificação finalexposta e petrificada, mas sim comouma mecânica em continuaçãoconstante, que se desdobra, seenriquece, assimila outros inputs e vaise fazendo pelo amálgama, pelaassimi lação de informações epossibilidades múltiplas e infinitas.

Nesse sentido, curiosamente, a fronteiraentre o artista e o pesquisador é muitomenor hoje do que antes e este ganhaperfil de pesquisador. O que de certaforma joga a bola de volta para vocês:descobrir qual é o papel que umainstituição de pesquisa tem na sociedadecontemporânea, particularmente quandoestá relacionada com arte.

O que eu antevejo é uma extraordináriaatualização do potencial de institutosde pesquisa como o IDART, porexemplo. No momento em que esses

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novos procedimentos cr iat ivos seconsol idam, a demanda porinterlocução investigativa é crescentee de outra natureza, ou seja, ela se dáem função de processos criativos e nãomais apenas para aval iação deprocessos já realizados. Ela se dá nocorpo-a-corpo na medida em que acriação é feita como parte do processocriativo. Como uma instituição depesquisa pode incentivar artistas queestão consol idando esse novorepertór io? De que maneira umainstituição como esta pode se alimentare se transformar ao tomar contato comesse novo repertório?

As formas mais recentes de organizaçõesinstitucionais estão procurando uma certaporosidade com relação ao que estáacontecendo em volta e uma agilidadeem criar mecanismos de cooperação comesses processos vivos de investigação ecriação. Antes de mais nada, uma espéciede mudança espiritual, cultural, umacapacidade de nos reposicionarmosmentalmente, de maneira a enfrentaresses novos desafios. Questões essas,difíceis de conduzir em todas as partes,o criador também tem essa inquietação.Nós estamos acostumados a lidar eproceder com formas já estruturadas pelaspráticas convencionais. O que o mundocontemporâneo acabou produzindo foium chacoalhar, uma dissolução dessasformas de produção convencionadas e

passou a exigir uma nova estruturação enovos procedimentos. Recriar essasestratégias é uma atividade que estácomeçando a acontecer.

CRÍTICA E RECEPÇÃOHá um crescente esvaziamento da crítica,cada vez menos a análise da produçãoartística é feita por alguém dotado deconhecimento da história da arte e dorepertório artístico. Cada vez menos issotem importância no destino e na recepçãoda obra de arte, ou seja, como a sociedadevai receber determinada produçãocultural, suas possibilidades e divulgação.O sucesso comercial ou da mídia édeterminante na maneira como nósrecebemos uma obra.

O artista não tem mais parâmetros paraavaliar o seu próprio trabalho. Não hámais diálogo com ninguém, então comoé que ele vai saber o que está fazendo,com relação a quem? Há uma espéciede esvaziamento daquilo que municiavaa percepção. Como é que a gente esperaque o público avalie o que está vendo, apartir do que? Nesse sentido, oespecialista está cada vez maisacantonado numa produção acadêmica,quantitativamente cada vez menor equalitativamente, fora algumas pessoasparticulares, incapaz de ter um papel namediação entre a produção e a recepção.Há um vazio entre o que é produzido e amaneira como as pessoas recebem essa

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produção. A relação é direta e não maismediada por qualquer outro discurso deaval iação cr i t ica, invest igação oudiscussão. O investigador tem que tercomo estratégia básica romper oslimites cada vez mais impostos por essasegregação e encontrar um lugar ondereadquira uma função criativa e voltea se articular e agir.

CRISE DA BIENALHouve uma grande mudança noparadigma do espaço museológico oudo espaço expositivo no momento emque passaram a ser entendidos comoespaços de gestão empresarial. O grandemodelo desse processo é obviamente oGuggenheim, foi o primeiro museuimportante no mundo a ser gerido comouma empresa. Essa mecânica implicounuma mudança em toda a conformaçãoda idéia e da função do museu. Emprimeiro lugar, os princípios defuncionamento do museu passaram aimportar mais do que os princípios daprodução e da critica. A arte nessesmuseus passou a ser entendidaexclusivamente como processo deexibição, como um espaço do espetáculo.Thomaz Krenz, diretor do Guggenheim,é formado em História da Arte mas éum especialista em mercado de ações,um homem da Bolsa de Valores de NovaYork. Implementou um critério degerenciamento próprio de uma empresaque está na Bolsa de Valores de Nova

York, ou seja, o acervo do museu sópode ser mantido na medida em quegerar valores proporcionais ao queestá investido. Daí o Guggenheim setornar uma franquia, tem que havermuitos guggenheins espalhados pelomundo para que os quadros nãofiquem parados.Essa máquina de administração é odomínio do gerente. O que aconteceuno campo das artes nos últimos cincoanos foi a substituição do domínio docurador pelo domínio do gerente, nãopor acaso , é emb lemát i co o queaconteceu na Bienal: a tomada depoder dos gerentes, administradores,que não hes i ta ram em demi t i rsumar iamente o curador, que j áestava preparando a próxima Bienal.Em seu lugar é colocado um sujeitoque não tem nem perfil de curador3 .São grandes operações comerciaisl i gadas ao marke t ing cu l tu ra l ed i ve r sas ou t ras imp l i cações ,sobretudo imobiliárias. É sintomáticoque o tema da XXV Bienal tenha sidoMetrópoles4 .

Todos os processos complexos, emgeral são mascarados, aparecem daforma ma i s ve r t ig inosamenteexp l í c i ta em São Pau lo , onde osgrandes promotores das ma ioresoperações urbanas ligadas ao capitalimobiliário internacional e financeirosão os detentores do poder direto das

a complexidade do momento artísticoe o papel do processo investigativo

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ins t i tu ições cu l tura i s e usam issoespantosamente para se legitimaremou alavancarem seus processos.

Estão surgindo novos centros culturaisinseridos nessas novas operações naavenida Faria Lima. Daqui para frentevamos ter museus de artecontemporânea localizados entre astorres corporativas, o próximo do MAC- Museu de Arte Contemporânea vaiser no espaço da Ricci Engenharia, naÁgua Branca onde aconteceu o 3º ArteCidade5 . Levar em consideração essesprocessos e perceber tudo o que estáem jogo se tornou hoje fundamental,para não ser manipulado.

Nós estamos vivendo um momentohistórico muito interessante, em que,se por um lado estamos cada vez maisexcluídos, por outro nosso papel écada vez mais importante.

A 25ª Bienal6 aconteceu em marçoe não houve nenhuma discussão maissistemática no país. Em nenhum outrolugar do mundo isso ocorreria assim.Eu acho que o mero levantamento, arecons t i tu i ção desse processo j áforneceria elementos para avaliar eacompanhar o desenrolar dessa crise.Esses processos t ranscendem aparticipação particular de cada ume, ao mesmo tempo, coloca questõesimportantes, por exemplo, como o

ar t i s ta conv idado para a B iena ldeveria agir? Ignorar a crise? A partirda atitude tomada e possível avaliarquem é artista e quem não é. Nãopor acaso a curador ia se lec ionouartistas super jovens e inexperientes,na sua maioria.

ARTE E CIDADEO 4º Arte Cidade7 na Zona Leste deSão Pau lo fo i um pro je to queabrangeu, in tenc iona lmente, umavas ta reg ião da c idade quecompreende a Avenida do Estado atéa Sa l im Farah Malu f , com vár iospontos de intervenção, envolvendo osbairros do Brás, Belenzinho, Tatuapée Moóca. O que tem de característiconesse processo é que foi preparadodurante quatro anos e pela primeiravez que consegu imos fazer umapesquisa relativamente abrangente,não só sobre a região, mas tambémsobre os processos de reorganizaçãourbana que estão acontecendo hoje.

Houve uma interação entre odesenvolvimento das propostas individuaise a investigação sobre as condições geraisdas situações. Por exemplo, os artistasao se dirigirem ao Largo do Glicério, oque em si já é um horror, receberam,para a lém desse impacto daexperiência imediata, informaçõessobre todos os processos quehistor icamente conf iguraram e

a complexidade do momento artísticoe o papel do processo investigativo

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reconfiguraram aquele espaço e olevaram a ser o que ele é, em todasas suas dimensões urbanas, sociais epolíticas.

Do ponto de vista da montagem deum pro je to como esse , fo i umaexperiência única. Nunca a cidadeconseguiu engendrar uma mecânicade desenvolv imento de propostasartísticas assentadas numa interaçãotão grande com o processo depesqu i sa . Houve um ganho del inguagem e reper tór io tan to docurador quanto dos artistas e demaisenvolvidos no projeto.

F icou c la ro que ho je em d ia éimpossível pensar projetos artísticosque não sejam antecedidos por umdestrinchamento dessa complexidade.Qualquer exposição, sobretudo sobrec idade ou mesmo sobre a r tecontemporânea , que não forprecedida de um longo processo deinvestigação e amadurecimento vaise l im i ta r a expor imagenssuperficiais, retratos instantâneos quenão vão trazer de maneira nenhumaa complexidade dos processos quees tão por de t rás . Só o processoinvestigativo pode fazer frente a essararefação da arte e sua redução auma apreensão super f i c i a l eep idérmica das co i sas , que éessencialmente publicitária.

Nelson Brissac Peixoto é doutor em Filosofia pelaUniversidade de Paris, Professor do Departamentode Comun icação e Semió t i ca da PUC/SP. Écurador do projeto Arte Cidade.

1 Richard Serra e Robert Morr is , art is tasminimalistas norte-americanos.2 Antoni Muntadas, artista catalão, multimídia3 Alfons Hug, curador da 25ª Bienal de SãoPaulo.4 O tema da 25ª B iena l é I conogra f i a sMetropolitanas.5 Arte Cidade: A Cidade e suas Histórias, 19976 25ª Bienal de São Paulo, 20027 artecidadezonaleste, 2002

Palestra organizada e texto editado por MárciaMarani, da Equipe Técnica de Pesquisas em ArtesGráficas e Desenho Industrial.

a complexidade do momento artísticoe o papel do processo investigativo

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m meu comentário,examinoo co l ap so d a e xpe r i ên c i ains t i tuc iona l bras i le i ra nas

duas ú l t imas décadas, na área dacul tura e especia lmente das ar tesvisuais.O quadro que tento delinearé fundamenta lmente baseado emminha própria atividade profissional,t em cará te r pre l im inar e nessestermos busca fornecer e lementosconcretos para um diagnóstico maisaprofundado sobre a situação culturalem curso no país, sob a égide daglobalização. A discussão tem comohorizonte a presente desagregação danoção clássica de �público� ou de�coisa pública�, no Brasil como emtoda parte, e em úl t ima instânciain te r roga a perspec t i va dasinst i tu ições públ icas no hor izontecontemporâneo.

Meu depoimento se enraíza, portanto,na exper iênc ia que t i ve cominstituições públicas no curso das duasúl t imas décadas, se ja t rabalhandodentro dessas inst i tu ições ou forade las , mas sempre em pro je tos�realizados� por elas. Tal experiênciatem me indicado que a desagregaçãodas po l í t i cas púb l i cas de cu l tu raapresenta, entre nós, aspectosinf in i tamente mais regress ivos enefastos do que nos países avançados.Se nestes o ambiente cul tura l ,justamente por ser a l tamente

institucionalizado e apoiado em fortestradições de uso do espaço público,conta com indivíduos ciosos de suasprerrogativas e poder de influênciasobre as instituições, a desagregaçãodas instituições públicas no Brasil temreve lado efe i tos devastadores, detabula rasa, porque demove formasalternativas de organização da vidacultural, vale dizer, formas capazesde es tabe lecer re lação de ma ioraltivez e independência perante osin teresses do marke t ing cu l tu ra l ,assim como de apoiar a longo prazoa produção artística.

Sem contar que a �agenda liberal�,com a redução da ação soc ia lgovernamental, não encontra entrenós qualquer resistência, defrontando-se a um meio cultural despolitizado ed i sperso , um me io , a lém d i s so ,h i s to r i camente de f i c i t á r io nade f in i ção do que se ja in te ressepúblico. Assim, um contexto como onosso, marcado por suas célebresdificuldades históricas na constituiçãode valores democráticos � dos quaisdepende, como ninguém discordaria,o amadurecimento de uma instânciapúb l i ca � va i p ress ionando suasfrágeis instituições ao descarte e àsuperação do paradigma �público�.

Por ou t ro l ado , a fo rmidáve lrepercussão internacional que a arte

Sonia Salzstein

perspectivas das instituições culturaispúblicas - um depoimento sobre asituação brasileira

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brasileira alcançou nesse período, deaproximadamente vinte anos, exigiriaa imensa tarefa de conso l idar,internamente, o lugar público da arteentre nós, o que implicaria, de saída,a const rução de uma perspect ivahistórica e crítica , uma vez que atéhoje tal �história da arte brasileira�surge entre nós como objeto um tantodifuso, permeado de lacunas. De fato,nos últimos anos não conseguimosavançar muito no que concerne a umaref lexão mais s i s temát ica eabrangente sobre a nossa arte, desdeo período colonial até a atualidade,embora uma produção consideráveltenha se verificado na área da críticade arte contemporânea.

Penso que só tal esforço de construçãoseria capaz de adensar o que designocomo lugar públ ico da produçãoart ís t ica no país, em face de umprocesso de circulação internacionalque é intenso e desgastante, e queevidentemente coloca qualquerprodução à mercê da banal izaçãomercadológica, de sorte que só as maisarticuladas e sólidas do ponto de vistade suas respect ivas exper iênciasregionais estarão aptas a sobreviver.Evidentemente, construir tal históriacrítica da arte brasileira pressuporiapriorizar ações de longo prazo e alcanceprofundo, em vez das in ic iat ivasclamorosas mas pontuais que têm

norteado os projetos ensejados pelasestratégias de marketing cultural entrenós. Essa his tór ia cr í t ica da artebrasi leira seria hoje, a meu ver, amelhor estratégia para fixar critérios eestabelecer hierarquias sobre tudo oque de fato importa como polít icacul tura l : quais as pr ior idades nasinic iat ivas edi tor ia is , quais aspr ior idades nos projetos dasinst i tu ições, quais as inst i tu içõesrealmente capazes de consolidar a artebrasileira ou o debate sobre a artecontemporânea � e assim merecedorasde incentivos fiscais em seus projetos...

O estabelecimento daquela história �estratégico para que logremos adensaresse lugar público da produção artística- a meu ver implicaria, entre outrascoisas, o refinamento dos instrumentosda crítica, o aperfeiçoamento de seurigor técnico, a conquista de uma maiorindependência intelectual frente àsmodas que pressionam a dinâmicainternacional das instituições, a fixaçãode procedimentos metodólogicosconsistentes na abordagem do trabalhode arte e, por fim, a generalizaçãodesses critérios na vida institucional.Aí estão, parece-me, algumas dascondições necessárias à explicitaçãodas diversas posições que constituemhoje o debate ar t í s t ico em nossomeio, posições que se encontramtremendamente repr imidas . A

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questão mais premente no país hojeé que carecemos, precisamente, deum projeto cu l tura l capaz de nosfortalecer internamente, e em últimains tânc ia nos s i tuar de mane i raemancipada, consistente e duradourano contexto internacional.

Contudo, não se pode negar o fato deque nosso meio de arte passou pormudanças profundas nessas últimasduas décadas, mudanças que, adespeito de se darem na esteira deum processo com fortes traçosregressivos, não deixaram de precipitarefeitos renovadores. Trata-se pois, defenômeno complexo, no qual essasduas l inhas de efe i tos opostos �transformação e readequaçãopuramente f is iológica a interessesestabelecidos � não cessaram de seentrelaçar e confundir, o que leva aconjecturar se, como em todos os surtosde modernização que moldaram atéaqui a vida cultural brasileira, o preçoda renovação não terá s ido,justamente, o punhado de arranjosregressivos que ela invariavelmente temproduzido entre nós.

De todo modo, cabe chamar aatenção para a internacionalizaçãoque a par t i r dos anos 80 mudouradicalmente a fisionomia do meiocultural brasileiro e pôs termo a todoum ciclo histórico de isolamento cultural

e de acesso retardatário à informação,fadado a reproduzir desigualdades.Com a internacionalização vimos a artebrasileira finalmente integrar-se aocircuito internacional da arte, e ésignificativo e promissor que tenha sidouma rubr ica �arte bras i le i ra� aingressar naquele circuito, e não esteou aquele artista, isoladamente. Coma internacionalização, enfim, pudemosf inalmente nos reconhecer comointerlocutores na cena internacional,compart i lhando o hor izonte deproblemas da cultura contemporânea,e em condições de propor respostaspróprias a esse horizonte de problemas.Houve também uma inegáve lprof i s s iona l i zação de nosso meioartístico, com a constituição de umpúb l i co para a a r te moderna econtemporânea bras i le i ra , de ummercado loca l para a produçãocontemporânea que despontavanaquelas duas décadas (produção,convém d i ze r, que j á v inha seformando no período precedente, masque precisaria aguardar a década dain te rnac iona l i zação para logrardespertar o interesse de instituiçõese do mercado), de uma geração decolecionadores com novo perfil, istoé, não mais buscando legitimidade nasobras consagradas do modernismobrasileiro das décadas de 1920-1930,mas disposta a acolher o novo, emobras vo l tadas ao efêmero e à

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precariedade da forma. Nos anos 90ainda f lorescer ia uma at iv idadeeditorial considerável, trazendo à tonauma produção crítica que, é bom quese diga, manifestava-se aí com o vigorde que era alijada nas instituições ena mídia especializada (mas esta éoutra questão).

Cabe reconhecer, afinal, que do finalda década de 1970 para cá vivemosum verdade i ro processo dedesprovincianização, emprestandoaqui a expressão do Roberto Schwarz.Parece-me, portanto, um equívococonsiderar que nessas duas décadasmarcantes na história recente da artebrasileira não fizemos mais do quenos deixar arrastar nas malhas daglobalização, parece-me um equívoconão levar em conta as fo rçaspropositivas e criadoras que � emboraminoritárias - estiveram envolvidasnesse processo, buscando resistir àsfacetas desagregadoras e alienantescarreadas na globalização dos anos90 mas j á esboçadas nainternacionalização dos 80. É sempreimportante lembrar que o interessedirigido do Exterior à arte brasileirafoi primeiro despertado por artistasl igados a gerações anteriores, porHélio Oiticica, Lygia Clark e tambémpor Sérgio Camargo e Mira Schendel,tendo sido graças a estes que pôdese ampl ia r e conso l ida r aque le

interesse, que depois se desdobrouàs gerações mais jovens.

Assim, se na década de 1990 a artebras i l e i ra pôde se a f i rmar comdesenvoltura e vitalidade no contextointernacional, tal fenômeno não podeser atr ibuído apenas à conjunturapermissiva do mundo globalizado ouàs demandas do multiculturalismo; elefrutificou, em sua maior parte, graçasao empenho cultural das duas ou trêsgerações precedentes, que haviamfincado as bases de uma experiênciaar t í s t i ca ex t remamente or ig ina l ,porquanto herde i ra e ao mesmotempo �demolidora implacável� datradição moderna.

Entretanto, se estivermos de acordode que houve mesmo um tremendosalto desprovincianizador no meio dear te bras i le i ro no curso dos do isúltimos decênios, se é verdade quedeixa de vigorar aí a dinâmica linearda subordinação da periferia a ummode lo cent ra l , nem por i s so sedissolve a tremenda assimetria nasre lações cu l tu ra i s no âmbi to docontexto internac iona l de ar te , oexerc íc io tota l i tár io do poder dasgrandes instituições e a imposição dosinteresses mercadológicos; além disso,temos s ido tes temunhas de quefenômenos como estes se fazem sentirde modo muito mais agudo em

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ambientes com fraca capacidadenormativa, isto é, ambientes de vidainstitucional rarefeita.

As dificuldades que se abrem agora parao meio artístico dizem respeito àextraordinária dependência dos trabalhosde arte, assim como da crítica, de espaçosde atuação fortemente impregnadospelos interesses das instituiçõesinternacionais e do marketing cultural emnível mundial. Como resultado,proliferam grandes exposições coletivas,no mesmo passo que minguam iniciativasdestinadas a focalizar os rumosindividuais dos trabalhos, a chamar aatenção para o desenvolvimento árduode carreiras individuais. O que se verificaentão é um processo de capilarizaçãosuperficial mas extensivo de influênciasrecíprocas entre uma multiplicidade detrabalhos incessantemente reagrupadossob novas rubricas de curadoria, de sorteque o desenvolvimento particularizadodeles resta obliterado sob o peso deconceitos genéricos e abstratos. Oecletismo marca o cenáriocontemporâneo, e isto não significa queeste cenário esteja incorporandodemocrat icamente uma gamadiversificada de tendências mas que,ao contrár io, o eclet ismo vai setornando um novo gênero culturaldominante, que esmaga toda tentativade diferenciação.

Sôn ia Sa l z s t e in , dou to ra em F i lo so f i a pe l aUniversidade de São Paulo, é professora de históriada arte na ECA/USP. Implanta o programa deexpos ições de jovens a r t i s tas e o pro je to deexposições especiais no Centro Cultural São Paulo[89/92 ] , pe r f a zendo ce rca de 50 mos t ra s .Curadora da expos ição Antôn io D ias , o pa í si n ven tado [MAM-SP, 2001 ] . Au to ra daspublicações: Volpi pela editora Campos Gerais, eFranz Weissmann pela Cosac & Naify.

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u penso que há uma cr i segeral nas instituições, al iás,não apenas nas instituições de

ar te , não apenas nas ins t i tu içõesculturais, mas em todos os setores. Ajus t i ça no pa í s es tá em cr i se . Aeconomia está em crise. São setoresinteiros em crise e que são indicativosde um outro tipo de momento históricoque estamos vivendo. Parece que aqueleprojeto que foi o chamado pacto socialdos anos 50, e que conhecemos comoperíodo do desenvolvimentismo,desapareceu totalmente. Hoje em dia,você começa a perceber que o governo,os poderes públicos, as instituiçõespúblicas não estão, de forma alguma,propondo uma nova articulação. Dessamaneira, a sociedade se mobiliza comorganizações independentes dos poderespúbl icos, que se ref letem noaparecimento das Ongs, das SociedadesAmigos de Bairro, dos trabalhosvoluntários, enfim, das milhares deorganizações que se ocupam dediferentes trabalhos, inclusive dentro daprópria atividade dos museus e dentroda própria atividade das coisas públicas.

instituições, profissionalismo epatrocínio nas artesIvo Mesquita

É interessante observar o aparecimentode diversos museus pelo Brasil afora,de caráter mais privado, de pequenoscolecionadores que estão abrindo suascoleções, deixando-as circular,publicando livros a respeito, etc. Asformas de participação e socialização,portanto, são novas, a despeito dosquadros institucionais existentes. Elasestão em paralelo. Um pouco, talvez,até confrontando-se com a ineficáciadesse quadro institucional existente.

Out ro ponto em ques tão é o dapro f i s s iona l i zação, que envo lveatualmente a atividade cultural e queteve uma mudança muito grande. Defato, ainda que se tenha visto cortese rec rudesc imento de papé i sfo rmadores , é mu i to d i fe ren te aprofissionalização hoje em dia. Todosconhecem esses esc r i tó r ios queproduzem as mostras, os projetos, ecom os qua i s , mu i tas vezes ,t raba lhamos . E les têm um ladopositivo, no sentido de que formarampessoas e também tensionaram, deforma produtiva, as instituições jáexistentes, as instituições públicasque tiveram que se aprimorar e seprofissionalizar. Particularmente nocampo dos museus , com oaparecimento dos departamentos deregistros, coleções, dos setores deconservação, de embalagem e coisasdesse tipo, houve uma qualificação,

A atividade cultural e suas relações com asinstituições governamentais, com o profissionalismoexistente e com o patrocínio cultural.

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i nc lus i ve do ponto de v i s ta dotrabalho, das relações. Toda vez quese pede um serviço hoje em dia, ele épago. Ainda que seja pouco, existe aatitude, há um princípio que sinalizauma mudança. I sso acontece,evidentemente, porque se trata deuma questão econômica, se trata deum segmento que ex is te comoeconomia. Quando a gente fala que aBienal custa US$ 12 milhões, que aMostra dos 500 anos custou US$ 25milhões, que os centros culturais, osmuseus têm orçamentos de 2, 3, 4 ,5 milhões, que as exposições custam500 mil, 600 mil... estamos falandode mui to d inhe i ro e de mui tosprofissionais envolvidos nisso. Umadiscussão importante ser ia aregu lar i zação dessas re lações, aregularização desses procedimentos, aquestão de normas e de formas decontrole também. Porque, quando asgrandes f iguras do debate culturalfalam dos recursos que conseguem,elas estão falando de recursos públicos.Deveria haver, então, uma discussãopública em torno deles. Pois é umaquestão de isenção fiscal, de incentivose isso tem que ser regularizado.

O assunto nos remete também paranovas considerações sobre o patrocínio.É importante observar que, dentrodessa questão da economia, há umaforma de perda de recursos destinados

ao patrocínio de eventos culturaiscausada pela global ização, pelosprocessos de privatização. No momentoem que se privatiza o Banespa ou aTelesp, que eram empresas públicas,aquele investimento que elas faziam,que seria, digamos, o lucro dessasempresas revertido para movimentos deteatro, música, de arte, agora estásendo transferido como ganho decapital. É preciso abrir uma discussãodeste ponto de vista em relação aocapital, sobre como isso está serefletindo nas artes.

Essa discussão, sobre o processo emtorno de uma normatização e de umaorganização de uma nova situação,de uma nova realidade econômica,me leva a pensar que a articulaçãodeve nascer de dentro. Como agora,nesta fase em que não há muito oque esperar que venha de cima, meparece que a questão do mercado temque ser encarada e confrontada. Nãohá como escapar disso.

Eu vejo no Museu (de Arte Moderna) �e isso não é uma reclamação, mas umaconstatação � um problema do qualestou compartilhando: lá nós temos quebrigar muito para poder preservar oespaço das galerias, dos eventos quesão promocionais, enfim, das atividadesde captação de recursos para o museu.É importante e o museu tem que fazer,

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mas me parece que compete a nós adefinição dos parâmetros e das normasdessa relação.

Por tan to , es se é o embate ma i sv io lento da ques tão de mercado,desse processo de normatização doevento que está sendo feito. Quandose fala em privatização, tudo isso émuito ambíguo, porque ainda é oEs tado que de tém todo oequ ipamento cu l tu ra l . É e le quedetém todos os quadros profissionais,e não há nenhuma d i scussão ouquestionamento sobre o fato de elepedir cada vez mais recursos privados,quando ele já recebe os impostos, porexemplo . Todos os empresár iospagam muitos impostos, qualquercidadão paga muito imposto. E serámuito mais complicado se não vier areforma tributária, mas isso já é umaoutra questão.

Texto transcrito e editado pelo autor, a partir dapalestra que proferiu no Seminário.

Ivo Mesquita é professor visitante desde 1996 noCentro de Estudos Curatoriais do Bardi College ,em Nova Iorque, o primeiro programa de mestradopara fo rmação de cu radores de a r t econtemporânea. Trabalhou em diversas instituiçõesculturais na realização de pesquisas, organização

de expos ições e consu l tor ia : Fundação Bienal[1980-2001], no MASP [80/88], Kunst Museumde Wolf fsburg, Alemanha [87/89], Insta l lat ionGallery, San Diego, California [96/2000], MACReina Sofia, Madrid [98/2000], National Gallerydo Canadá, Ottawa [98/2001]. Publica em 2001,com Adriano Pedrosa, Fricciones, resultante dacuradoria que juntos realizaram em Madrid.

instituições, profissionalismoe patrocínio nas artes

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as artes visuais e a crisedas instituições

STELLA TEIXEIRA DE BARROS

o registro da dançacomo o pensamento

que dançaCHRISTINE GREINER

documentando afugacidade da arte cênicaMARIÂNGELA ALVES DE LIMA

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ensar o papel de um instituiçãocu l tu ra l ho je nos obr iga arefletir sobre o momento histórico

que estamos presenciando. Temos algunssintomas perceptíveis daquilo que outrorase chamava �mudança de civilização� ou�novo período civilizatório�, termos quecaíram em desuso em parte por conta dacarga ideológica que os impregnava. Masos indícios dessas mutações ainda sãopoucos � ou talvez aparentementeexcessivos, dispersos e contraditórios � paradelinearmos de forma mais objetiva quaisseriam as linhas mestras do processo culturalem que estamos imersos.

Para alcançarmos uma compreensãoaprofundada do presente histórico, háperguntas fundamentais que ainda nãotemos capacidade de responder. Aindaque a palavra �globalização� tenha setornado usual e de uso indiscriminado� para não dizer banal �, não parecefácil responder a perguntas simples,tais como �o que é a globalização eaonde e la nos leva?�; �em quemedida a global ização afeta nossacondição de país periférico?�; �quaisas conseqüências da globalização paraa produção cultural?�.Apesar de o processo globalizante ser,ao que tudo indica, uma s i tuaçãoeconômica estabelecida, ele obviamentecarrega em si transformações socioculturaisainda imprevistas. No campo das novastecno log ias de in formação, por

Stella Teixeira de Barros

as artes visuais e a crise das instituiçõesquestões para uma política deconstrução cultural

exemplo, sabemos qual a verdadeirad imensão da in ternet na v ida emsociedade? Ela está apenas em seusprimórdios e pode ainda vir a tomarrumos até agora imprecisos, quemsabe até verdadeiramente didáticos,de mane i ra a adqu i r i r um pape lefetivamente democrático de difusãodo conhecimento? Ou, ao contrário,ela não teria a capacidade intrínsecade suplantar as diferenças de classee de acesso à in formação dasdiferentes camadas sociais e acabariapor se tornar mais um ingrediente nosempre c rescente processo dedesigualdade do país e do mundo?Nesse sen t ido , a i n te rne t nãoagravaria ainda mais nossa condiçãode dependência e fratura cultural?

A maneira de apreender o mundo mudouno decorrer do século XX e por certocontinuará mudando de modo cada vezmais acelerado. No espectro dasmudanças, as relações entre arte esociedade passaram - e passam ainda -por grandes reviravoltas; e nesse processocontinuado, as artes visuais, consumidaspela luta contra a obsolência tecnológica,são ininterruptamente postas em xeque.No universo da cultura e, maisespecificamente, no campo dasmanifestações artísticas, podemos nosperguntar se realmente estamos à procurade novos caminhos de inserção para aarte. Estamos sem dúvida fazendo

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grandes esforços à procura de outrospúblicos. Mas, em caso afirmativo �se realmente buscamos umalargamento do universo de pessoasinteressadas em arte �, queremosencontrar novos destinatários parapropor o quê? Na verdade, estas sãoquestões que permeiam não só o fazerartístico mas um tecido cultural maior.Não são questões tão novas assim,claro. Já estavam no ar antes aindaque se dissolvessem as basesideológicas da modernidade. Assimmesmo, são questões para as quais asrespostas ainda parecem muitas vezestemerárias e certamente insuficientes.

O problema colocado pelo advento damodern idade e ra iden t i f i ca r qua lprocedimento seria verdadeiramentetransgressor. Em outras palavras, qualordem era preciso ser contestada.Passados os pr ime i ros vendava i smodernistas, a própria noção de artee do fazer ar t í s t i co passou a serques t ionada . Ho je , depo i s deDuchamp e sobretudo depois que aPop Art apropriou-se diretamente docotidiano, não há mais nada que oart ista possa ou não fazer. A artedeixa de impor limites e o campo daprodução ar t í s t i ca se a la rgaindiscriminadamente. Essa liberdadeamplificada gera alguns problemas:como abalizar critérios, como atribuirva lores es té t i cos? Ainda es tamos

for temente in formados por umrac ioc ín io modern i s ta em que énecessár io t ransgred i r, chocar econtes ta r ou , s imp lesmente , nosrendemos à apat ia c r í t i ca de um�tudo vale� pós-moderno? É possíveloutro caminho, que equacione o fazere o pensar a produção enquanto novaforma de a t i v idade ar t í s t i ca? Emoutras palavras, somos hoje capazesde propor uma ética que organize arelação entre a arte e o mundo real esustente nossas reações estéticas?

A partir desse terreno movediço em queestamos caminhando, como pensaruma historiografia contemporânea e umponto de vista crítico que dêem contadas manifestações artísticas de hoje?Há ainda outra questão no ar: a obrade arte, hoje, é aceita se aceitarmosde antemão que é uma obra de arte.Só assim pode ser emissora desensibilidade e emotividade. Duchampsabia muito bem disso: deslocar umobjeto de suas atribuições cotidianaspara inseri-lo em um contexto diversoconfere a essa forma um novos igni f icado . É uma subversão quetransforma de maneira radical oprocesso cr iat ivo e que obriga aquestionar nossa compreensão da arte.Há no procedimento de Duchamp umadupla ironia. Transferir o valor artísticodo objeto em si para o processo decr iação permite que qualquer um

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possa se tornar art ista e qualquercoisa possa ascender à condição deobra de arte. Quando um �ready-made� é l evado ao museu , e leadqu i re a aura de obra de a r te .Paradoxalmente, o objeto adquire umstatus religioso, o que contradiz suacondição moderna � autônoma � deobjeto de arte. Nesse sentido, taisobras necessitam de um espaço e deum lugar sagrado que as acolha - oque as remete para um modo depensar anterior à modernidade, paraa Idade Média e antes mesmo, paraas chamadas �sociedades primitivas�- e que as diferenciem de antemãodos demais objetos.

Como dar conta dessa história da arteque se apropria de obras que exigem�ritos de passagem� como critério?Como compreender essa vocaçãoreligiosa, sagrada mesmo, da obra dearte contemporânea inserida em umaSOCIEDADE em estágio avançado docapitalismo financeiro globalizado.

NOVOS MUSEUS/MEGAEXPOSIÇÕESA atuação de uma instituição culturalnão está, naturalmente, desligada dasespinhosas questões que circundama produção artística contemporânea.Aprox imando-se do cent ro dadiscussão sobre o papel das nossasinstituições, há uma questão prementea ser abordada, pois, a pretexto de

levar a chamada al ta cul tura paratodos, as instituições tendem cada vezmais a promover megaexposições eeventos que se pautam pelagrandiosidade de público e de �apelo�.Para que isso seja possível, os museustransformam-se em negócios, tornam-se verdadeiros balcões de exposições,onde correm grandes somas dedinheiro. Para que a exposição seja um�sucesso�, é necessár io um al toinvest imento em mercadoria,divulgação, publicidade. É bastantes intomát ico que palavras como�produto�, �promoção� e �marketing�sejam usadas com tanta freqüênciaatualmente no universo das artesplásticas, em relação a exposições emque os quesitos didáticos nem sempresão priorizados. Os orçamentos e osrecursos financeiros são cada vez maispolpudos, v isando como retornoprioritário uma visitação em massa. Noano passado, nos Estados Unidos, pelaprimeira vez o número de visitantes amuseus e instituições culturais afinsultrapassou a casa de um bilhão. Emconseqüência, os museus passam a serv is tos como negócio de especia linteresse, um excelente veículo demarketing. A Nova Tate, em Londres,e o Guggenheim de Bilbao são apenaspontas-de- lança dessa eufor iainstitucional.Em muitos desses projetos deorçamento inchado vêm ocorrendo

as artes visuais e a crise das instituições

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impasses de toda ordem. Por exemplo,em Viena, o novo centro cultural dearte contemporânea, que exigiu umaimensa reforma das antigas cavalariçasimperiais gerenciada por arquitetos derenome, se propunha a ser �o maiorprojeto de arquitetura cultural que aÁustria jamais conheceu�, segundopropagandeava o convi te para ainauguração, no dia 28 de junho de2001. O centro é um imenso conjuntode 60.000 m2, no centro da cidade,ainda inacabado, que quer abrigar maisde 20 instituições culturais autônomas:museus, salas de exposição, salas deespetáculos de dança, laboratórios denovas mídias eletrônicas, teatro paracrianças, arquivos de artecontemporânea, estúdios de artistas.Um projeto grandioso, apto a competircom os grandes centros culturais domundo. No entanto, o conservadorismoparece ter vencido quase todas asbarreiras: o projeto foi refeito cincovezes, transformou-se num pastichearquitetônico, o que se deve em grandeparte à pressão orquestrada por umgrande jornal vienense. Como uma dasconseqüências, a coleção mais nova deartes plásticas ali instalada foi a deobras de Gustav Klimt e Egon Schiele.As concessões publicitárias direcionadasa um apelo maior ao grande públicofizeram com que o convívio e o debatesobre a produção contemporâneatenham sido descartados.

A discussão sobre essa tendência à�comerc ia l i zação� dos museus ecentros culturais levanta uma série deperguntas, tais como: qual a barganhacom o compromisso intelectual nessasinstituições? Ou seja, o que se ganhado ponto de v i s ta format ivo eeducacional com um projeto norteadopor interesses de marketing? Comoafeta o conteúdo cultural? A instituiçãoassim pautada cumpre sua promessade formar um público interessado emartes ou apenas promove grandeseventos episódicos destituídos de umpro je to duradouro, que requerempenho a longo prazo? A publicidadecomo or ientadora do espetácu locompromete i r remediave lmente acu l tura e o pensamento nessasinstituições? Até que ponto ocorre defato uma banalização da cultura? Ouapenas estamos diante de novos rumosculturais, diante de novos dados dosaber, que ainda não conseguimosdimensionar?Vale notar que muitas vezes é possívelaferir uma resistência ao predomínioda comerc ia l i zação nos c i r cu i tosinstitucionais de artes plásticas. Masessa res i s tênc ia nem sempre seman i fes ta de modo c la ro ou setransforma em ações efetivas. É ocaso da a tuação de Ph i l l ipe deMontebe l lo , curador -che fe doMetropolitan Museum de Nova York,que , em opos ição às inc l inações

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mercadológicas de Thomas Krens,diretor do Guggenheim, afirma �nãoser nosso propósito atrair multidões,D i sney faz i s so com mai scompetência� � frase que já f icoufamosa, mas que, no entanto, nãoexplica como o Metropolitan justificaconcessões recentes como a umaexpos ição sobre Jack ie Kennedy.Afinal, se Jackie é um mito do séculoXX, uma BMW (que mereceu umamegaexposição � paga pela empresa� no Guggenheim) também pode serava l iada da mesma forma, ta l vezcomo um mito até mais poderoso. Oataque de Montebe l lo a umaestratégia fácil de arregimentação depúb l i co to rna - se a lgo forma l i s taquando negada na prát ica com arealização de exposições sobre mitosda �sociedade do espetáculo�, domundo da moda e do design, ou demostras pautadas por critérios queescapem aos va lo res es té t i cos ehistóricos que conferem à arte suaimportância e permanência.

É preciso lembrar que tornar acessíveisas instituições é importante, mas éigualmente importante não eliminar opotencial didático e educativo delas. Ébom ter em mente que exposições deboa qualidade não podem prescindir dapreocupação com o atrativo visual damontagem nem da informação didáticaque contextualize a obra exposta. Esses

aspectos não são incompatíveis, aocontrário, devem andar juntos visando ummelhor resultado de investimento ecompetência. É necessário ter em menteque democratizar não é desinformar nemmassificar, mas educar, estimular opensamento e a reflexão � e parece queinfelizmente isso ocorre cada vez commenos e menos freqüência, pois os�investidores� querem apenas público emais público, não lhes importando nadaalém de uma afluência cada vez maior.

No Brasil, corremos o risco de sermostragados pela lógica do entretenimentoe do espetáculo já faz algum tempo.Com a Mostra do Redescobrimento,Brasi l 500 anos , o projeto demontagem da exposição comoespetáculo foi desvinculado de qualquerprojeto didático sério, o quede te rminou uma mane i ra fú t i l eleviana de apresentar a arte brasileirapara o grande público, assim comoproduziu uma falsa idéia do que sejauma grande e rica mostra de artesplásticas � um desastre sobre o qualainda não podemos avaliar de modopreciso a dimensão.

Há muitas ressalvas a serem feitas arespeito da maneira como a exposiçãofoi concebida. Por que no módulo doBarroco, por exemplo, não haviasequer um painel explicativo? Possoimaginar t rês bons mot ivos : 1 ) a

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cenar i s ta Bia Lessa não quer iainterferências � com razão, cenárionão é lugar de painel informativo;2) o conjunto vendia muito bem oshow, pois não se tratava de outraco isa (bas ta lembrar da mis turacronológica e da confusão de funçõesdas peças � imagens processionaistratadas da mesma maneira que asimagens de a l tar ) ; 3 ) não hav iaintenção de informar, educar, mas tãosomente �brilhar�, mesmo que issoimplicasse o sacrif ício de aspectosdidáticos fundamentais. Tal modo deconceber e realizar exposições traz emseu bojo um caráter duplamenteperverso: de um lado, sonegam-seinformações preciosas ao grandepúblico, prestando um desserviço àhistór ia da arte; por outro, aodespejarem um sem-número de ônibuscom cr ianças que recebem umlanchinho e percorrem às carreiras amostra com guias mal-preparados,produzem um arremedo patético doque deve ser um projeto educacionalligado às artes plásticas.

Por conta dessa rendição ao mercado, oespectador vem sendo tragado pelapuerilidade indisfarçada das montagensostentosas e pseudo-sofisticadas. Tudoleva a crer que os recursos técnicos, aexuberância e o deslumbramentochegaram às exposições com intuito dese estabelecer como regra. Muita coisa

parece ter chegado para ficar, e nemsempre permeada de boas intenções.Resta saber se não estamos todos sendocegados pela mentira, pelo vazio, pelodesserviço cultural que nos arrasta a umalúmpen-cultura. Um péssimo prenúncio,como lembra Eliot, pois �a desintegraçãocultural pode nascer da própriaespecialização cultural (...) e adesintegração da cultura é a mais séria ea mais difícil de ser reparada.�2

Stella Teixeira de Barros é professora de História da Artee de Estética, pesquisadora, curadora e crítica. Atualmente,dirige a Divisão de Artes Plásticas do Centro Cultural SãoPaulo.

1 Costa, Roberto Teixeira da. �Museus oucentros de entretenimento?�. In: O Estadode S .Pau lo , 10 ju l 2001. Apud: �WhenMerchan t s en te r the Temp le : . I n : TheEconomist. Londres, 27 abr. 2001.

²Eliot, T.S. Notes towards the definition ofculture. Londres, Faber and Faber, 1988. Pg. 26

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o fim e ao cabo, tudo o queresta da arte cênica são ostestemunhos. Mesmo o

esplêndido repertório legado pelosgregos não contém em si mais do queindícios do que foi o teatro naAntigüidade. Tragédias e comédias gregassão, examinadas sob a ótica da modernaconcepção de teatro, apenas elementosde uma complexa manifestação cênicacujo sentido é irrecuperável. O fato decompreendermos hoje a arte cênica comoum fenômeno que, para completar-se,clama pela presença do ator e do público,permite-nos reconhecer o teatro onde nãosabíamos que existia � nos ritos sagradose profanos das civilizações iletradas, nasformalizações espetaculares da sociedadede consumo. Amplia, nesse sentido, aidéia do teatro. E ao mesmo tempo nosdesilude sobre a nossa capacidade decapturar esse ato inscrito no espaço e notempo, inevitavelmente consubstanciadona presença. O fato de que queremosregistrar alguma coisa que, por suanatureza, não sobrevive em outro suporte,é, acredito, um dos dilemas que osdocumentalistas, historiadores e, de ummodo geral, teóricos da arte cênicaexperimentam de modo mais agudo queos artistas. A tarefa documental é coletarrestos. Também para esses males podemosinvocar a panacéia universal da herançagrega. Não saberemos jamais como aquelestextos zelosamente compilados por

documentando a fugacidadeda arte cênicaMariângela Alves de Lima

espectadores contemporâneos soavam emuma língua que não é mais falada,corporificavam-se em indivíduos,ressoavam, ampliados pelas máscaras ecoturnos, no espaço dos anfiteatrosmediterrâneos. Seu sentido espetacularperdeu-se, é para sempre irrecuperável.E, no entanto, de uns poucos textospreservados - vestígios, restos, sobras depeças e relatos parciais extraídos damemória dos espectadores � vejam só oque fez a imaginação dos pósteros!

O mote deste seminário, O olhar querecorta a paisagem, tem como subtexto,parece-me, a dúvida metódica a que ospesquisadores submetem a eficácia dosseus atos. A tarefa das instituições depesquisa que documentam as artescênicas é, aqui e em qualquer lugar domundo, permeada pela consciência infelizda fugacidade do seu objeto. Mas não sóisso. A potência fertilizadora dos �restos�é a única certeza, esteio do trabalho decoleta, tratamento e guarda dos acervosdocumentais. Quanto aos instrumentosde trabalho, não há certezas. Na medidaem que as teorias estéticas, a ciência ea tecnologia alargam a compreensão dofenômeno cênico, torna-se possívelidentificá-lo em outros contextoshistóricos e geográficos, em situações davida coletiva a que só se atribuía umcaráter lúdico ou utilitário. A perspectivado observador enriqueceu-se com essas

A

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contribuições. E a arte cênica fez o mesmomovimento, ou seja, apropriou-se daetnografia, da antropologia, da lingüísticae das mídias tecnológicas a fim de ampliara pluralidade das funções cênicas. Emresumo, aquilo que é, por natureza,irreprodutível, se repropõe de modo cadavez mais veloz.

Tanto a paisagem quanto o olhar que arecorta estão sujeitos a esse fluxocambiante. Essa é a um só tempo a afliçãoe prazer partilhados por documentalistas eartistas. Nada seria mais aborrecido do quepermanecer anos a fio registrando, sempredo mesmo jeito, um fenômeno cujocomportamento é possível prever. Quemobserva, com a intenção de registrar esseelusivo objeto, sabe agora que captura orasto de luz de uma estrela morta. Masprecisa ser esperto, porque isso é tudo oque dispõe para que possa entender asoperações fundamentais do universo. Pensoque a identidade de uma instituição quese propõe a documentar a arte cênica seconstitui a partir do reconhecimento desselimite e da renovação permanente não sódos métodos de trabalho, mas da crença,fundamentada na história, da importânciado vestígio. Render-se à insuficiência doinstrumental (seja ele teórico ou material)é uma tentação sempre presente eminstituições de pesquisa e documentação,lugares onde a flexibilidade essencial àrealização do trabalho bate de frente com

a rigidez do aparato burocrático.O espectro da paralisia - estou aquiinvocando uma exper iênc ia detrabalho de quinze anos � tem raízesb ipar t idas , emerg indo tan to dodesenho rígido das instituições quantoda nossa desconfiança nos métodose instrumentos de captação e registroda arte cênica. Mas é ele que nosimpele a esta d iscussão per iódicasobre a conf iguração da ar te e aadequação dos sistemas e métodosde documentação. Em meio a essaproliferação de variáveis o reexamecrítico das mutações do observador eda paisagem é uma constante.

Penso que os sistemas de documentaçãodevem ter, como dado constitutivo, aplasticidade para se ajustar àconformação do seu objeto. Esses ajustesconstituem, por si só, um indício dasmutações da arte e história da recepção.Por essa razão as revisões de critérios einstrumentos são documentos tãoimportantes quanto os registros damanifestação cênica. Para cada desafioapresentado pela arte do teatro é precisoum novo instrumento de captura, e nomodo como se registra o fenômenoafirma-se a sua especificidade. Ossistemas guardam assim, além dos�restos�, a história da percepção e, porinferência, a documentação de um doselementos essenciais da dinâmica da

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relação entre a obra cênica e oobservador. Como um valor agregadosoma-se o perfil da própria instituição,indício do modo como a sociedadetrata a produção simbólica. Por essarazão vou exempl i f i car com osprocedimentos do IDART, primeirainstituição pública com a tarefa deconceber e executar um sistema dedocumentação sobre a arte cênica nacidade de São Paulo.

Em l975, quando a instituição começoua trabalhar sobre a idéia de um sistemade documentação, a tendênciahegemônica da produção artísticadissolvera o modo de produção baseadona interpretação do texto teatral. O quese impunha à percepção era um conjuntode signos verbais, visuais e sonoros emuma relação cuja hierarquia o espetáculoproblematizava. Diante dessaconfiguração, certamente datada, aproposta do sistema documental,arquitetada sob a orientação de MariaThereza Vargas, centrava-se na linguagemdo espetáculo. As fichas técnicas eramzelosamente registradas porque, dentrodessa proposta artística, a autoriadissolvia-se entre todos os participantesda criação cênica. A ênfase nadocumentação fotográfica e sonorarelacionava-se também com essa feiçãoespetacular predominante. A partir dessaopção documental privilegiando o registro

sonoro e visual, moldada sobre amorfologia da manifestação cênica,organizavam-se fontes secundárias comodepoimentos de artistas, informaçõessobre o circuito das obras e sobre ascondições materiais de produção doespetáculo. É um sintoma desse partidodo sistema documental o fato de que aliteratura dramática não integre o acervodo IDART. Considerava-se a gravaçãosonora � ou seja, o texto pronunciadopelos atores � o elemento cênico de maiorrelevo para a caracterização dessasmanifestações. Ao mesmo tempopesquisas documentais recuperavam, pormeio de prospecção temporal,procedimentos artísticos anteriores aodesse sistema documental, investigandoos alicerces históricos da arte cênica doséculo vinte, desde o circo até os gruposde teatro político do início do século.

Os critérios sobre os quais se erigiuesse s i s tema, no entanto, foramsubmetidos a uma revisão periódicaem discussões fundadas na observaçãodo panorama teatral. No final dos anossetenta, por exemplo, o teatro tornou-se sensível ao sopro minimalista daar te conce i tua l e fo i prec isodocumentar, além da manifestaçãocênica, processos criativos onde obrae projeto eram uma só coisa. As falasdos artistas e os processos construtivos� e aí se incluem tanto os jovens

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�per formát icos� quanto ar t i s tasmaduros como Antunes Filho e JoséCelso Martinez Corrêa � assumiram(por diferentes motivos) o estatuto deobras de arte, por vezes sem chegarao palco. E é possível que, neste exatomomento, as novas articulações dalinguagem cênica estejam repropondoa inserção do texto na economia doespetáculo. Se assim for, o sistemade documentação deverá estar atentosobre o modo de registro adequado auma proposta textual que se desejasobrevivente ao espetáculo. Um novomodo de produção do texto (quearticula a totalidade da escrita cênica)nem sempre se dá sobre o papel. Aessas novas par t i turas mul t imíd iacorresponderão ins t rumentos deregis t ro adequados. Sem que nosesqueçamos, naturalmente, de que opanorama da ar te é a pa i sagemcontemplada pelas instituições, ouse ja , as poét icas renovadoras sedistinguem, por contraste, do pano defundo da continuidade.

Na verdade, se pensarmos em umtema central, é a ressonância da arteque se abr iga no aconchego dosarquivos. E a ressonância não é sópassado, é também o que poderia tersido e o que pode vir a ser. Acreditoque essa idéia, a da duração, a dafaísca do presente nos conjuntos

mnemônicos, é um alento para aconstituição de arquivos de qualquertipo. Sei que os documentalistas vivemno seu cotidiano a angústia de seremao mesmo tempo conservadores eatentos farejadores da novidade. Tantoa preservação quanto a prospecçãoexigem constante atual ização deinstrumentos. Mas o fato é que dessemovimento pendular resul ta, pelomenos no caso do IDART, uma massaviva sem a qual todos os que seinteressam pela arte cênica estariamcondenados ou à fruição do instanteou a uma lenta e penosa aventuraindiv idual em busca de restosarqueológicos dispersos.

Mariângela Alves de Lima é pesquisadora e críticade teatro do jornal O Estado de S.Paulo.

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á anos d i s cu te - se o que épos s í v e l r eg i s t r a r de umadança, uma vez que a dança

é uma arte efêmera, que deixa deexist ir no momento em que a suaapresentação finaliza; e que ela se fazapenas no momento em que é feita.Normalmente, a proposta de arquivardança significa documentar os resíduosdas obras : fo tograf ias , v ídeos,notações, programas, entrevistas comos criadores e assim por diante.

Nesse sentido, as técnicas paraaprimorar o processo de documentaçãotêm sido cada vez mais desenvolvidascom a realização de CD-ROMs, porexemplo, que algumas vezesapresentam simultaneamente imagensde espetáculos, biografias dosintérpretes, do coreógrafo e toda aequipe técnica, notações dosmovimentos, partituras das músicas,entrevistas com os artistas envolvidos emuitas outras possibilidades. Um modode organização das informações quese aprox ima das noções espaço-temporais propostas pela mídia digital

o registro da dança como opensamento que dançaChristine Greiner

desde exper iênc ias p ione i ras ,formatadas em maior esca la nadécada de 80 no Canadá.

A par t i r das nov idades dessepanorama diverso, há muitas escolhaspossíveis. A Universidade Keyô, emTóquio, por exemplo, implantou em2000 a proposta de Arquivo Genético,através da qual registra não apenasos espetáculos e obras finalizadas, maso processo criativo de artistas como ocriador do butô Tatsumi Hijikata e oescultor Isamu Noguchi. Tal iniciativaencontra respaldo na grade teórica quetem sido trabalhada, inclusive porprofessores brasileiros como CecíliaSalles, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação eSemiótica, sob a rubrica de CríticaGenét ica, encontrando paressobretudo na França.

Centros importantes de documentaçãode dança como a Dance Collection doLincoln Center, em Nova York, oCentre National de la Danse, em Paris,e o arquivo da Universidade Tsukuba,em Tóquio, partilham a concepção demidiateca. A idéia principal é trabalharcom uma quantidade cada vez maiorde informação em todos os níveis esuportes (papel, meio digital, película,v ídeo, f i tas de áudio e ass im pord iante ) . É c laro que toda acomunidade agradece e a fartura de

H

�Movement is a factory of the fact thatyou are actually evaporating�, Wil l iamForsythe (2000)

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material disponível nunca será umprob lema, e s im a so lução parainúmeros projetos.

CONCEITUANDO A FUGACIDADEMas, de cer ta forma, a perguntapermanece: o que pode ser registradode uma dança? Interessa o acúmulode informações? Como sistematizá-las?O que fazer com essas informaçõesrepresentadas em suportes distintos? Asua mera existência é suficiente? Equando se torna necessário realizarescolhas por limitações financeiras,espaciais, temporais? Há uma hierarquiade operações? O que parece maisimportante?

A princípio, quando se discute qualquertipo de arquivamento de informações, apalavra-chave que emerge é história. Ahistória e as suas conexões, ou seja:história, memória, temporalidade,resistência, permanência, estabilidade.Organizar um percurso histórico duranteum período relativamente longo sempresignificou ordenar fatos e eventos em umalinha temporal cronológica, de modo atornar possível o reconhecimento do seuencadeamento e, muitas vezes, dasrelações de causa e efeito. Operando-secom o que é ou tem como sersistematizado.

Desde o começo do século 20, algumasnoções filosófico-científicas que ainda

prevalecem, muitas vezes, no sensocomum, foram questionadas como anoção de prova, os princípios lógicosde causa e efeito, o determinismo emesmo algumas habilidades cognitivascomo a memória, que deixou de serexpl icada a part ir da metáfora doarquivo. Sabe-se que não é maispertinente descrever a memória comoum conjunto de gavetas onde sãoguardadas as informações que podemosou não acessar, e que operam poracúmulo de conhecimentos. A partir deinúmeros protocolos experimentais e desimulações de redes neurais, assimcomo estudos da etologia, genética epaleontologia, emergiram inúmerashipóteses para expl icar como umambiente como o corpo internalizainformações e por que algumas destasinformações ganham estabil idade eoutras desaparecem rapidamente,deixando apenas resíduos da suapassagem. Cientistas e filósofos comoGerald Edelman e Daniel Dennett, porexemplo, começaram a trabalhar coma idéia de rede de informações que sãoo tempo inteiro selecionadas no trânsitocorpo-ambiente. Não há uma direçãode mão única, ou seja, a memória nãoé o resultado de informações que vêmde fora e que são acumuladas nocérebro. Há operações complexas quepermeiam o processo de internalizaçãode uma informação indagando �comoalgo que está no mundo passa a fazer

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parte do ambiente in terno de umorganismo�. O neurologista AntonioDamás io também a juda acompreender essa relação. Quandopercebemos alguma informação quees tá no mundo, percebemos nãoapenas a informação externa tal qualé (uma imagem, um som, umatemperatura, etc.), mas, junto comela, já a transformação do nosso corpoao percebê-la. Portanto, são muitasmudanças de estado do corpo quepermi tem que a lgo de fo ra f i quedentro, de modo que dentro e forade ixem de se r ins tânc iasabsolutamente separadas, no sentidode que o que era fora e ficou dentro,desde o primeiro instante, era foramas também dent ro , j á que ta linformação conectava (logo de saída)a informação estrangeira (a imagemde um cachor ro , por exemplo ) ,contaminada pelo dentro (a imagemdo cachorro, e a mudança de estadodo meu corpo ao ver o cachorro), quepor sua vez se transformou em umterceiro. Que terceiro? Não mais ocachorro, nem tampouco só o meuestado corporal ao vê- lo, mas ummodo de organização de todas essasinformações a partir da conexão desuas ações sígnicas. O problema �oque resta do cachorro depois que foivisto� não é tão diferente do problema�o que resta da dança depois que foiapresentada�.

Nesse viés, o que insiste em permanecermeio à fugacidade da natureza da dançaé a sua ação sígnica, o seu pensamento,no sentido descrito pela semiótica doamericano Charles Sanders Peirce, ouseja, �pensamento como a ação movidapor um propósito�.Mas restam questões do tipo: o que movea ação? De quem é o propósito? Existeum dono da operação? Um chefe?

Durante sécu los , fo i impensáve lana l i sa r qua lquer fenômeno sematribuir a um gerente central o seucontrole. Assim como o computadortem a sua CPU, todas as atividadesda natureza deveriam ter um �chefe�.Dependendo da instância, o chefepoder ia se r nomeado de fo rmasdiferentes, Deus, o todo-poderoso,o homúncu lo dent ro de nós quecomandava tudo que acontec iaconosco, ou simplesmente o cérebroque direcionava todas as habilidadesdo corpo, e a cu l tura humana (alinguagem humana) que determinavaa nomeação e a ordenação de tudo oque existia no mundo. Pensar em ummorcego, por exemplo, ser iacompará- lo à nós: como ele fa la,como sorri, como sente medo.A semiótica peirceana, as teoriasevo lu t ivas da cu l tura e a lgumasver tentes das chamadas c iênc iascognitivas deslocaram essa noção dechefe, aparato central e CPU, para

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estudar os modos de organização dasinformações, as ações inteligentesdos s ignos e os processos demediação que rompem com aclausura das dualidades e oposições.O que move a ação é a conexãoentre corpo e ambiente, entendendo-se corpo como um continuum corpo-mente. O propósito não é apenas opropósito do sujeito, do seu self, maso da sua inclusão nos ambientes ondeinsiste em sobreviver.

Vol tando à imagem do cachorroantes de falar na imagem da dança.O cachorro que eu vejo é aquele quemeu aparato biológico permite queeu veja, em suas conexões com ouniverso s imból ico. Depende docampo de v isão, da ret ina e dasconexões neurais, da plast icidadeneuronal e das outras informaçõesque são acessadas simultaneamente,não apenas no cérebro mas no corpotodo, ou seja, no complexo aparatosensório-motor. Sem esse sistemasomatossensório sequer podemosconceituar o mundo. (ver Lakoff eJohnson, 1999). Sei que é umcachorro não apenas porque estouvendo o cachorro, mas porque sintoseu cheiro, ouço seu latido, porque oque vejo do cachorro é completadopela minha imaginação a partir deoutras informações referentes acachorro, que podem ser reconhecidas

naquele momento e que estabelecem,em momentos segu intes , ju í zospercept ivos acerca do que é es tarfrente a um cachorro. Ou seja, biologiae cultura não são universos separados,mas sim aliados, como propôs a duplaIlya Prigogine e Isabelle Stengers empubl icações diversas (ver 1984). Omovimento da dança que atravessa ocorpo, a imagem fotográfica, o filme,o meio digital, ganham existência namedida em que se al iam histór ia ereflexão na mesma escala temporal. Opresente é também passado e futuro.Ass im, a dança é o movimento docorpo, o que o move e o que move oambiente onde ele está. Uma conexãode informações.

A fugacidade, nesse sentido, não éapenas da dança e das artes cênicas,mas de tudo. Vale a pena expl icarporque isso não é apenas um relativismoabsoluto ou uma parca noção filosóficano estilo do �tudo é tudo�.Neste mundo provisório, onde não hápreservação, apenas estados mais oumenos estáveis, a pintura na tela ouna abóboda de uma catedral não émais preservada do que o movimentoem um corpo. Como disse MargaretWherteim (ver 1999), se ao entrar naca tedra l gó t i ca e observar asimultaneidade de imagens, a pinturade Goya pode ser reconhecida hojecomo um hipertexto, essa conexão

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muda tudo. A imagem na catedral, ocorpo de Margaret, de seus leitores,o reconhecimento do mundo, da artegótica e da arte contemporânea. Oque ficou preservado?

A N O Ç Ã O D E A R Q U I V O C O M OMATÉRIA VIVAEntender que o arqu ivo, como omuseu, não é algo que lá está, mastem vida própria, sugere a lgumaspossíveis mudanças:

1- Não é apenas um instrumento oubanco de dados passivo, consultadoe reorganizado conforme o usuáriodetermina. Seu modo de existênciajá possibilita algumas escolhas e nãotodas.

2 - Nunca se rá poss í ve l a rqu ivarqua lquer fenômeno de mododefinitivo, é sempre aos pedaços eem degradação. A esco lha dainformação que fica deve ser coerentecom o pensamento da obra.

3- Pensar nas ações e operaçõess ígn icas que cer tos modos deorganização possibilitam sintoniza ounão o arquivo aos pensamentos quea dança contemporânea propõe.

4- A d ig i ta l i zação de imagens , oarquivo virtual de informações é uminvestimento aparentemente grande,

mas que a cur to prazo mostra-seeconômico, no caso da fotografia, porexemplo , d i spensando f i lmes erevelação. Mais do que isso, aponta,na sua própria materialidade, paraoutras conexões.

5 - A produção de in formação éfundamental, no sentido de gravaçãode en t rev i s tas , documentár ios ,organização de discussões, workshopse assim por diante. É a produção deinformação que dá vida ao arquivo ea poss ib i l i dade de que e le se jarepensado a todo instante, ainda queaparentemente nada mude ( v ideexemplo da catedral gótica).

6- A escolha conceitual é importante.Quando a história deixa de ser umamontoado de informações dispostascronologicamente, a memória não émais descrita como um conjunto degavetas empoeiradas, e o corpo nãoé um mero instrumento do cérebro;o mundo ganha novas configurações.Reconhecê- las é o primeiro passopara se aproximar do entendimentoda a r te como um un iver so deconhecimentos.

7- Em muitas instâncias, a dançadeixou de ser, nas últimas décadas,a reprodução de modelos a priori. Osdançar inos são c r iadores queimp lementam pensamentos em

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corpos s ingu la res , o rgan i zamprotocolos experimentais e não serendem a fórmulas e prescrições jáestabelecidas, mesmo quando olhampara o passado e red i scu tem ah i s tó r ia . Para guardar essasexperiências é preciso repensar aidéia de arquivamento. Em muitoscasos, não existe mais coreografia,nem passo de dança, nem ensaio.Qual o sentido de registrar algo cujopropósito é acontecer uma única vez(em uma alusão evidente ao fazerperformático)? Se há um sentido (eprovavelmente há pelo menos umadezena de mot i vos para que e leexista), esta questão - que é apenasuma questão e não anuncia qualquerconclusão definida - anuncia-se comouma tarefa pouco palatável, mas quenão pode ser desprezada e precisaser estendida não apenas à discussãoda dança , mas àque la das a r tesv i sua i s , do tea t ro e da a r tecontemporânea em geral.

No final, é inevitável sugerir que o corpoe a natureza complexa da suaexistência sempre dominam a cena, adespeito da nossa vontade, dentro efora do palco. Por isso é tudo tão difícil,improvável e absolutamente fascinante.

BIBLIOGRAFIA

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o registro da dança como o pensamento que dança

Christine Greiner é jornalista, coordenadora docurso de graduação de Comunicação e Artes doCorpo e professora do programa de pós-graduaçãoem Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

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memória e crítica sobrefotografia brasileira nolimiar do século 21HELOUISE COSTA eRUBENS FERNANDES JR.

Arquitetura e ContemporaneidadePAULO MENDES DA ROCHA

e RICARDO OHTAKE

a atividade musical emSão Paulo: da divulgação

à formação de acervosLORENZO MAMMÌ e

NELSON RUBENS KUNZE

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ABERTURA PARA UM DEBATEPaulo Mendes da Rocha � Para abrir umareflexão aqui, na presença de RicardoOhtake e da idéia de V BienalInternacional de Arquitetura, as premissaspoderiam ser as preocupações atuaismais fundantes, capazes de originar todasas reflexões quanto à arquitetura. Ou seja,a consciência sobre a condição humana,a dimensão de desejos e vontades ligadaà idéia de uma vida ativa que se iniciaem cada um de nós, uma visão queenvolve toda nossa existência. E deerotismo, desejo de viver. Hoje se falamuito em qualidade de vida e nossoquerido Flávio Motta1 alertou que a vidanão pode ter qualidade: a vida é umaqualidade, e de tal maneira indizível, quequem nasce é uma suprema novidadeno universo. Principalmente como ohomem nasce, capaz de refletir e decidir.Seria bom considerar que o fundamentode nossas atividades, as atinentes aouniverso do indizível, da subjetividade, éa técnica, porque é impossível desejar o

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impossível: eis a condição humana, amaravilha da idéia da vida! Porque ela éfeita possível, digamos, quanto à questãoda arquitetura. A vida, não a minha, masa vida para todos deve ser inventada comoum atributo de fato humano. Daí surge aidéia de cidade para todos; o amparo àvida, construções, arquitetura... Oarquiteto tem que saber tudo e de umcerto modo peculiar, que é outra dimensãohumana. Não se pode conceber umescritor, literato, poeta que não imagineque saiba tudo: ele não pode falar de nada!Essa presunção exige do arquiteto omomento crítico de dizer: vou só fazeruma casa e tenho que pôr ali um discursoque diga de tudo que sabemos.

Há outra dimensão interessante na idéiade história, de conhecimento.Conhecimento enquanto supremoconhecimento, seja do psiquismohumano, da ciência, dos astros, dadimensão do universo. Conhecimento ehistória. O conceito histórico é umaresponsabilidade que exige a idéia detotalidade. Este prédio onde estamos, oCentro Cultural São Paulo, é um exemploextraordinário de uma sabedoria que nãoestá aqui nem ali, mas na sua totalidade:a beleza do jardim, do espaço e suarelação com a cidade. A questãofundamental da arquitetura e do mundohoje é a cidade. Vivemos em cidades e acondição da existência, a consciênciasobre ciência e técnica, teremos que fazer

depoimentos de Paulo Mendes da Rocha e Ricardo Ohtake

emas recorrentes na atualidade comoa cidade e a metrópole, espaçoarquitetônico urbano, transformação e

recuperação de prédios históricos têm lugarno debate ao qual a Equipe de Arquiteturaconvidou os arquitetos Paulo Mendes da Rochae Ricardo Ohtake para uma reflexão crítica.O Centro Cultural São Paulo e a Casa dasRetortas são destacados como referênciasarquitetônicas exemplares para discutir o quequeremos como Cultura.

T

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surgir daí, inclusive o universo das artes,concomitante na totalidade doconhecimento. Vou dar um exemplodessa reflexão. Este é um lugar quecultiva a cultura. Fica, como provocação,que não se pode pensar em proteger acultura, muito menos em conservá-la. Aidéia de cultura é um verbo. Cultura querdizer cultivar e não, conservar. Vi naHolanda um desenho extraordinário, dematriz ortogonal perfeita, cerca dequilômetro por quilômetro, cujas divisassão canais de água em áreas a perder devista onde se faz agricultura. Isso éromano, porque feito pelos romanos pelaprimeira vez. É interessante observar queessa cultura não é romana apenas porqueé romana, pois em outros lugares doImpério Romano não se vê esse desenho:isso é mecânica dos fluidos! Vi emPoxoréu, Mato Grosso, um canal de águade 40 quilômetros fluindo naturalmentede uma fonte que não é senão ofornecimento de água para um garimpo.O garimpo se faz assim, uma cultura.Um rego de 40 quilômetros permite essacondição: o dono quer levar a água a umgarimpo seco lá adiante e o único modode conduzi-la é através de curvas de nível,um labirinto. E o romano fez isso emlinha reta, porque a Holanda é horizontal!Isso é a técnica! Onde quero chegar: oconhecimento, a ciência e a técnica sãopatrimônios universais! Portanto, a misériada América Latina é um blefe político etemos que agir em relação à questão da

vida, da arquitetura, do desenho dacidade, de modo político, técnico,oportuno e inteligente quanto aosconceitos de arte, ciência, técnica, cultura,cultivar, defender ou progredir. Defendera liberdade de agir em nome da culturaque queremos! Isso para a arquitetura émuito interessante. Este prédio é umexemplo de abertura espacial inventadapor um arquiteto bem formado, o queenvolve a cultura paulista, até certo pontoa FAU, a Universidade de São Paulo, aconvivência. A cidade é uma escola só.

Ricardo Ohtake - Apesar de ter vindopouco aqui no Centro Cultural São Paulonesses últimos vinte anos, me sinto emcasa. Conheço, já trabalhei, com boaparte dos aqui presentes e vejo a casadirigida por Carlos Augusto Calil, meugrande amigo, pessoa que admiro muito.Calil foi extremamente importante naCinemateca Brasileira, Paulo Emílio2

também, e em breve diremos que o Calilé a pessoa mais importante que passouaqui! Conversando com Silvana Garcia,diretora da Divisão de Pesquisas, o velhoIDART, comentei que quando o CentroCultural foi criado, a Divisão de Pesquisasdeveria ser como um coração, um motorpara que coisas acontecessem movidaspor um pensamento. Decorrido certotempo, a Divisão de Pesquisas começa adar impulso a essa atividade. Naquelaépoca, tínhamos este prédio e a Casadas Retortas que continuamos ocupando

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para a formulação da política numprimeiro instante do Centro Cultural e,de modo amplo, da Secretaria Municipalde Cultura. Este é um belíssimo prédio eaquele, o antigo Gasômetro, do séculoXIX, foi restaurado segundo projeto dePaulo Mendes da Rocha, embora não otivesse obedecido totalmente. Mesmocom imperfeições, erros que cometeram,aquele espaço, retrato da fase deindustrialização pesada, foi transformadonum lugar onde outro tipo de atividadepôde ser desenvolvido. Lá trabalhamosde forma eficaz, num local muitoagradável que trazia para dentro dasRetortas o desejável para toda a cidade.Infelizmente o prédio foi transformadono que se chama de repartição, o ato derepartir. A cultura perdeu para aburocracia e foi lamentável em vista dalocalização, voltada para a zona leste dacidade, o que é interessante paraatividades culturais.

O espaço do Centro Cultural, na encostado vale do Itororó, que como implantaçãoé um pouco difícil, meio estreito, resultano entanto, num todo interligado:biblioteca, áreas de exposição, auditórios.Este lugar reflete nosso desejo em relaçãoà arquitetura, ou seja, reproduzir o espaçoque a cidade deveria proporcionar a seushabitantes. O Centro Cultural e o IDARTtiveram a felicidade de ter espaçossempre muito ricos. As dificuldades dosedifícios no correr do tempo são as que

acontecem comumente na cidade, e suaadaptação faz com que se vá melhorandoa habitabilidade desses espaços.

Quando na arquitetura temos prédioscomo a Casa das Retortas ou comoes te , não se pode ignorar o queocor re na c idade , na met rópo le ,me lhor d i zendo. A met rópo le sedesenvolve de um jeito tal que, seaté há algum tempo era possível falarde forma mais ou menos abstrata,idealizada, hoje não se pode ignorá-l a nem idea l i zá - l a . A ques tão dametrópole na mudança do século éuma das mais impor tantes que oplaneta v ive, das mais d i f íce is deresolver. São Paulo com quase 20milhões de habitantes, a cidade doMéxico, cidades da China, da Índiaforam se desenvolvendo sem que oequ i l í b r io c idade -campo, c idade -cidade fosse se compensando. Então,decorridos quase vinte anos da minhapassagem pe lo IDART, há essadiferença importante que a Equipede Arquitetura poderia discutir e fazeravançar. É um debate que está naUniversidade e em muitos setores dacidade. Extrapolou a Faculdade deArqu i te tura , os loca is de es tudosurbanos, para se espalhar por áreasque desconheciam esses problemas.

A CRÍTICA NA ARQUITETURAPMR - A crítica de modo geral é muito

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rudimentar, particularmente na AméricaLatina e entre nós brasi leiros. Háameaças de que se deteriore ainda maisquanto à idéia de representação, demídia que se f ixa na imagem enecessariamente isola os fatos. Mesmona arquitetura l igada à idéia deMovimento Moderno erra-se ao mirarexemplos isolados. Precisar iacompreender que o que moveu aarquitetura no momento extraordinárioda Arquitetura Moderna, final do séculoXIX, primeira parte do século XX, nãofoi esse ou aquele edif íc ioisoladamente. Eram exemplos de ummovimento que via justamente aquestão da espacial idade da vidahumana no planeta expressado commuita clareza na idéia de cidade, ohabitat humano quanto à questão datécnica, porque deve ser construído. Ouseja, a natureza é um desastre e suasvirtudes surgem pela mão do homem,como a geometria aplicada às pedrasfaz as catedrais. A crítica, de modogeral , por s impl i f icação e ta lvezacomodação no caráter massificadocom que aparece na mídia, apaziguou-se e trata tudo pela rama. A críticatinha que se basear em questões deFilosofia, Lingüística, Antropologia. Éum pouco mais sério. Não devemostemer a técnica, mas ter consciênciade que a cidade deve ser apreciadacomo fato central da questãoarquitetônica. Surgir ia então, um

campo vastíssimo e fértil no âmbitopolítico, de comentar a especulaçãoimobiliária, a questão do território, doseu parcelamento...

Um edifício em si como artefato, comoinvenção, o que chamamos construçãovertical, é uma maravilha do engenhohumano: elevadores, mecânica dosfluidos, as águas que estão lá em cima,canalizações, a espacialidade até abaixoda terra, no subterrâneo, garagens,teatros, metrôs. Esse artefato é possívelimaginar como virtude técnica pararesolver, ou enfrentar, a evolução da nossacultura. Cada edifício visto enquantoartefato autônomo, editado na matrizanterior que é o loteamento feito paracasinhas, pode perder suas virtudesfundantes, tornar-se um inimigo edegenerar a cidade desejada em desastre.

É muito agradável constatar que um dosmelhores prédios de São Paulo talvez sejao Conjunto Nacional, na Av. Paulista.Como o arquiteto dispunha da quadrainteira, atravessa-se de uma rua paraoutra pelas galerias; a garagem é oquarteirão inteiro, não é dividida emparcelas, e tem seu tráfego destinado àrua secundária, a Padre João Manuel.Cria um teto-jardim magnífico, quaseréplica de jardim suspenso, o blocovertical recuado 70 metros, com váriosusos, inicialmente habitação, escritório ehotel. Isso dá uma vivacidade ao prédio

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que se coaduna, e mais que isso, realizaa expectativa de uma avenida e umcentro de interesse urbano imprevisível.Seria, portanto, indispensável reformaro tecido urbano para adotar averticalização e concentração desejadas.A idéia de imprevisibilidade é a grandeatração da arquitetura, a expectativa deconstruir, de transformar a natureza,porque rigorosa tem que ser a providênciapara que fique em pé: cálculos deestruturas, tráfego de elevadores... O quea arquitetura pretende é aimprevisibilidade da vida e que depoistodos sejam livres para ver ali dentistas,estúdios e aulas, cinemas, teatros,livrarias. É isso que eu queria dizer:devemos confiar na técnica porque nósfraturamos de maneira esquizofrênica osuniversos da arte, da ciência, da técnica.

RO � Quanto à crítica, não só naarquitetura, mas na arte de forma geral,a transformação que vem acontecendonos últimos 30, 40 anos faz com quealgumas vertentes exijam que haja antesda obra de arte, ou de arquitetura, umdiscurso. Este é, em geral, de difícilcompreensão e às vezes só é entendidoquando exemplificado com uma obra dearte ou de arquitetura. Isso leva asexposições a terem como grandes figurasnão os artistas, mas os curadores, quenão têm o compromisso de fazer a obrade arte, e fazem grandes devaneios nodiscurso que têm de formular para

justificar uma certa posição, uma certaobra. Então, a crítica começa a se desligardo público, já que é um diálogo que setrava quando muito entre curador eartista. Seria necessário retomar para oteórico a posição que sempre teve, ouseja, ponte entre obra de arte e público.A questão é a da colocação correta dacrítica no sentido de que o teórico, quenão é o artista, se coloque comointermediário entre a obra de arte e opúblico que vai compreendê-la. Essapassagem muda a posição da crítica, quedeixa de ser o que puxa a obra, para sero que vem depois da obra de arte.

A respeito da atuação dos arquitetos,gostaria de dizer que estive conversandocom Arata Isozaki3 e Rem Koolhaas4

sobre questões de arquitetura. Ambos sãoarquitetos pensadores porque além defazerem projetos, formulam questões,teorizam, e deu para perceber a posturade liberdade que têm com a profissão.Koolhaas desenvolve projetos como oterminal de transporte na cidade de Lille,na França, complexo que envolve a cidadeinteira e o projeto em que o país Holandaé visto como uma cidade. Isozaki projetagrandes museus na Califórnia, na Flórida,na Espanha. Eles fazem também, comprazer e responsabilidade, projetos do dia-a-dia: pequenos prédios, residências. Sãoextremamente ativos. Resolvem questõesde um país, de uma cidade, de umaregião, mas também questões de

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moradia, de uma residência. É o que sevê, por exemplo, em grandes cineastasque acabam fazendo um curta de dezminutos, trabalho que também realizamcom a maior responsabilidade e maiorprazer. Na questão da crítica, temos atendência a pensar que arquitetura só seresolve nas grandes obras, um pedaçoda cidade que se transforma e,evidentemente, em determinadassituações os projetos não se tornamrealidade, se mantêm no papel. Essapostura da crítica faz com que arquiteturatambém tenha alguns desvios, que só agrande arquitetura vai dizer sobre oandamento da profissão e dessa vertentedo conhecimento. A metrópole trazquestões do dia-a-dia: habitação,transportes, serviços, e a arquiteturatambém é importante nessas escalas.Portanto, a pesquisa da Equipe deArquitetura aqui da Divisão de Pesquisaspoderia abranger não só grandes questões,mas também as aparentemente menores,da realidade dos profissionais quedesenvolvem esse tipo de trabalho.

SOBRE TRANSFORMAÇÃO DE PRÉDIOSHISTÓRICOS E A QUESTÃO DA CULTURAPMR � A cultura que nos interessa é acultura cultivada e demandada pornecessidades de transformação; avançarnos desejos que não se realizaram ainda.O espaço da Casa das Retortas, da antigaCompanhia de Gás, uma vez feito,resultou interessante porque é livre. Mas

quero dizer a vocês, por uma razão desolidariedade e mesmo afetiva, que eunão concordo com essas transformações.Porque aí está a realização da cidade, aidéia de cultura, arte: nada melhor queaquilo se modernizasse! O projeto que fizera para isso, existe maquete, é a sededa Comgás. Eis o gás para substituir ashidrelétricas, um gasoduto que nos ligacom a Bolívia, isso precisa seradministrado de algum modo. Entãofizemos aquele projeto para a sede daComgás! Um pavilhão com um pequenotransverso elevado que ia até o muro aolado, aparentemente inútil, mas queabrigava pontes rolantes para botar ocarvão lá dentro, um jardinzinho prisioneiroentre o edifício longo, é muito bonito. Nomezzanino estaria a presidência, abiblioteca, a parte representativa e umanexo-torre atrás � o terreno é enorme, esem gás não há cidade!

Mais um exemplo: o Centro CulturalBanco do Brasil. É uma estupidez quenão tem tamanho, tanto no Rio comoem São Paulo, porque há Banco do Brasil!E se está numa esquina exemplar paraque o povo veja como arquitetura de umacerta época, nada mais exemplar quecontinuasse sede do Banco. Porque eleexiste! Agora, constrange-se a cultura,convoca-se os artistas, os arquitetos, paratransformar aquilo num centro culturalenquanto impossível... E é no Rio comoaqui, o pior teatro da cidade, o mais

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miserável auditoriozinho, o espaçomais impróprio para exposições. OBanco com certeza está num prédionovo, de cristal, com ar condicionado,e nós obrigados a fazer um centrocultural! Estou convencido de que emgrande parte essa idéia de capitalprivado que subvenciona pode ser uminst rumento para const ranger,amargurar e desviar os altos interessesjustamente do que poderia ser cultura,porque as ar tes , as c iênc ias nãoexigem proteção, querem é liberdade!Encurralar, dar donativos e obrigarvocê a dizer: eis um centro cultural!Entretanto serviria muito bem paracomputadores e agência de banco!Estou começando a ver que énecessário discutir muito para criaruma pol í t i ca de regeneração etransformação da cidade, para que ocapital privado, de fato, colabore naconstrução de um futuro democrático.Se é patrimônio histórico, nada melhorque seja o que sempre foi, na medidado possível, é claro.

RO � Retomando o caso das Retortas,embora o Paulo tenha feito aqueleprojeto para sede da Comgás, quandoentramos lá parecia que o projeto derecuperação tinha sido feito para oIDART! O Valdir se lembra, a Elisa,a Dalva, muitos estavam lá naquelaépoca: era um prédio absolutamentefantástico. Dava a impressão que o

Paulo tinha feito especialmente parareceber o IDART. Era sede do IDARTe local de exposições.

SOBRE A ATUAÇÃO DOS ARQUITETOSNO SETOR PÚBLICOPMR - O Ricardo teve uma atuaçãoextraordinária na cidade de São Paulo,quando teve poder para isso, comoSecretário, no Parque Ibirapuera.

RO - O Ibirapuera é um belíssimo parque.Quatro pavilhões: Bienal, Pinacoteca,Oca e a Prodam unidos por umamarquise. É uma situação única. No IVCentenário, o Ibirapuera foi construídopara espaço de exposições: o Pavilhãoda Bienal era o Pavilhão das Indústrias, oPavilhão da Prodam era o Pavilhão dosEstados, o Pavilhão da Pinacoteca era oPavilhão das Nações e a Oca era oPavilhão das Artes. Na origem sãoedifícios para exposições e, por descuido,o Pavilhão das Nações virou Gabinete doPrefeito durante uns quinze, vinte anos.Quando eu era Secretário da Cultura doEstado recebi aquele Pavilhão que aPrefeitura tinha acabado de desocupar.O Governo do Estado ficou com ele emtroca do lugar onde é hoje o Gabinete doPrefeito, no Parque D. Pedro, e ogovernador passou o prédio para aSecretaria da Cultura. Na ocasião fizemosum restauro extremamente interessanteporque voltamos ao projeto original: haviauma entrada para um porão, meio piso

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aba ixo , onde ho je , descendo arampa, tem aquele espaço belíssimo!Nossa intenção era instalar o Museuda Imigração, mas quebrar a la jeprotendida levou quatro meses eperdemos a oportunidade de abrir oMuseu lá . Fo i uma dec isão quetomamos: fazer a reforma do prédio,o restauro, como deveria ser feito,conforme o projeto do Oscar Niemeyere, realmente, ficou belíssimo. Quandofu i secre tár io do Verde e MeioAmbiente, tínhamos a Oca que depoisdo IV Centenário nunca foi usadadevidamente. Havia dois museus, oda Aeronáut ica e do Fo lc lore,ocupando aquele espaço fechado hádoze, treze anos. Então, como é quevamos fazer? A Prefeitura estava namesma situação de hoje, ou seja, nãot inha d inhe i ro para esse t ipo deintervenção. Pedimos ao presidente daAssociação Brasil 500 Anos, EdemarCid Ferreira, para fazer a exposiçãonão só no prédio da Bienal mas naOca também, e aproveitamos parafazer um res tauro. Quem faz oprojeto? Paulo Mendes da Rocha. Oprédio foi recuperado, reaberto comuma exposição, como deveria ter sidonesses 50 anos. Agora fa l ta aProdam. É um próximo passo. AProdam ocupa aquele espaço porqueos computadores eram grandes; hojepodem i r para outro lugar. E oIbirapuera vai se recuperando como

espaço de exposições novamente.

RETOMANDO A CRÍTICA:QUAL CULTURA?PMR � Para retomar a crítica: oIbirapuera, uma obra límpida e clara!Nunca a crítica soube dizer nada disso.Há uma malignidade em relação aprogramas aparentemente excelentes.Porque entre outros absurdos feitos lá,instalou-se o MAM embaixo da marquise,como galinhas que correm da chuva e seabrigam no beiral... Embaixo damarquise, que é feita para sertransparente! E todo mundo elogia,porque afinal de contas, é o MAM...Então as comparações são interessantes.É melhor construir o novo, inventar acidade e não pretender transformaçõesgrotescas, mesmo em nome da cultura!Do ponto de vista da crítica, isso é o quequero levantar: estamos envolvidos numengodo, porque somos a cultura, sem umacrítica consistente! Lembro MonteiroLobato, muito inteligente. Vou contarporque gosto muito: num conto sobremitologia, baixaram no sítio do Pica-PauAmarelo figuras mitológicas. Entre elaso Cupido. Naturalmente, a Emília já ficoucupincha do Cupido. Tanto o encheu queele lhe emprestou a aljava e as flechinhas,e ela se divertiu produzindo casaisamorosos incríveis. Tanto fez que perdeuuma flecha e, mazinha como era, flechoude modo ímpar tia Anastácia, acozinheira, que assim, passou a amar em

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vão. E notou-se porque o feijão ficousalgado. Ela suspirava o dia inteiro...Levaram-na para ser consultada com oVisconde de Sabugosa, que era sábioporque numas férias mais demoradas oesqueceram atrás da EnciclopédiaBritânica. Ficou embolorado e sábio!Foram consultar o Visconde, que receitoupílulas. Iam saindo quando a Emília voltoue disse: �mas Visconde, que pílulas?��Quaisquer, desde que sejam pílulas!� Eisa questão da cultura como está posta nanossa crítica pequeno-burguesa: hajacentro cultural qualquer, desde que sejacentro cultural. Isso para nós não estácerto! Porque não existe essa vaguidãoespecífica: a cultura. Tem que voltar aoVisconde e dizer: Visconde, que cultura?A visão crítica tem que ser nítida, porqueas coisas têm que ser oportunas do pontode vista da técnica. São desejos queexigem, demandam a técnica. Nãoesquecer disso. Com técnica você resolvequalquer problema, se souber transformarem problema o desejo, para não ficarcomo a pobre da outra suspirando emvão, e queimando o feijão...

CRÍTICA, CULTURA, CIDADE E QUALIDADEDO PRÉDIO DO CCSPPMR � Não quero perder o fio da meadada crítica: se há uma política da cultura,ela deveria se estribar numa consistênciacrítica boa. Não há críticas; nósaceitamos tudo. Então, não há verba paraeste prédio, mas há verba para outra

coisa que neste momento pode estar seengendrando por cinqüenta milhões dedólares, por aí. É a inadequação da visãocrítica sobre nossa existência real nacidade e a urgência disso tudo. Tornou-se uma espécie de leitmotiv, ou de viapolítica, trabalhar com a cultura. Se ficarpronto já não interessa, é fazer outro.Quer dizer, é empreendimentoimobiliário! Especulação da cultura, comose especula tudo! Tenho impressão quepara nós a palavra seria resistir,estabelecer uma verdadeira resistência àessa onda.

Podíamos, por necessidade absoluta,particularmente nós latino-americanos ebrasileiros, não ter medo, desânimo,muito menos conformismo com o atraso.Ele é estimulante: vamos vencê-lo!Quanto à miséria, vamos extirpá-la,dominá-la. Tememos, com horror total,isso sim, a degenerescência. É umraciocínio do senhor Borges5 , inclusive.E para degenerar, não precisa estarpronto, acontece com muita gente, vocêdegenera antes!

O prédio do CCSP merece atenção. Estáservido pelo Metrô, numa área tradicionalde São Paulo, envolvido por quadros dacidade: um colégio famoso; aBeneficência Portuguesa; viadutos, ageografia enérgica de São Paulo muitobem enfrentada. Este é um lugarmaravilhoso da cidade! Não há que

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abandonar isto aqui. Outra questão é oprédio ser extenso, difícil de administrar.Mas foi desenhado no sentido daliberdade, para que, digamos, porabsurdo, fosse difícil administrar com oestritamente burocrático. Se é muito livre,que tenha quatro diretorias como aprópria cidade possui regionais. EsteCentro pode ser dividido: espaço deconferências, o jardim, várias partes.Estamos aqui para inventar, não paraexigir! É preciso cuidado com asidiossincrasias burguesas, pois podemoscair na esparrela de não conseguiradministrar justamente o monumental eo magnífico. Isto foi feito para ser abertoe tem que ser inventada suaadministração! É uma questão queaparece aqui: o diretor de um extremotalvez tenha que usar o metrô para ir aooutro... Mas não deixa de ter sua graçaa linearidade deste edifício. É belíssimo,inesperado, cheio de surpresas, o próprioideal da arquitetura está aqui: o pequenoque deságua no grande, eis a surpresa!É uma cidadela, não um edifíciohermético. É impossível gradear, pôr essascasinhas de plástico, com crachá. Jánasceu renegando a questão do exclusivo!Deveria possuir, portanto, sanitários paraquem precisasse, na rua, entrar e usar. Éum edifício absolutamente urbano na suapossibilidade de ser atravessado enquantosurpresa agradável, oportuna. O que maisse pretenderia aqui é uma conferêncialotada, onde só trinta, ou vinte por cento

dos presentes tivessem sido avisados.Como fazem os pregadores no mundodesde as origens, nas pequenas cidades:começam a falar na rua e provocam umajuntamento. Este prédio foi feito paraisso! Digo porque é o que pensa todoarquiteto ao inaugurar altos ideais dessepensamento chamado arquitetura. E nãoé um arquiteto, é a questão da arquiteturana história da humanidade, uma formapeculiar de conhecimento.

Arquitetura é isso. Uma totalidadepossível para o gênero humano nessacapacidade que temos de usar toda afantasia, toda a imaginação, que éinfinita. E aí a crítica é fundamentalporque engendra a ação, o desejo. Odesejo não é espontâneo, é fabricadona mente. A cidade existe antes queseja fei ta, é um desejo. Fazê- la,portanto, como? Mais ou menos,sempre ter íamos que dizer quesabemos. Porque é comum dizer quenós não podemos saber a cidade. Issoé um absurdo! Quem saberia? A cidadeestá condenada a ser um caos e umdesastre? É impossível! Imaginar que oempreendimento humano finalmenteseria o grande desastre! Vai destruir oplaneta? Pois estamos pensando emexpandir a vida humana além dabiosfera! Objetivamente, já possuímosuma repart ição públ ica lá, umlaboratório, há funcionários russos,chineses, japoneses. É verdade! Estão

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lá! Então, precisamos aprender aescarnecer dessa pompa toda que envolvede enganos os empreendimentos humanos.

Quero lembrar algo que pouco se deuatenção, até na mídia que gosta tantode escândalo: os russos deram outrogrande banho histórico nos americanos.Primeiro foi a tomada da Lua: osamericanos fizeram a besteira de botar abandeira como se fosse uma conquista,e os russos tinham abandonado o projetoporque é inútil como primeiro esforço,sabiam que não havia nada lá. Econstruíram a MIR, primeiro laboratórioespacial. Como uma vitória maravilhosa,a MIR ficou precisando de reforma, comoeste prédio, e fez-se um acordo porquenão precisava ser derrubada. Foi,digamos assim, o grande exemplo concisodo que se deu nesse século quanto aenganos e acertos para tomar decisõesno plano crítico. Recentemente, quandoisso foi retomado, há uma outra MIR jáassociada russa e americana, os russosagiram de novo contra a ideologia quediz que temos que ver tudo como algoimpossível, cheio de capacetes, super-homem: mandaram um turista para lá.Surpreenderam os americanos eganharam vinte milhões de dólares comum magnata que quis ir lá, uma coisaum tanto absurda, mas foi bom. Comose não bastasse, mandaram noutra nave,porque forjaram, telefonaram e eleconcordou, uma pizza! Ganharam mais

vinte milhões de dólares na pizza não seiquê, levada como se fosse por motoboy!Vocês sabem disso? Eu o vi na televisão,o pedaço de pizza flutuando... Ora,crítica! Crítica é interpretar essesepisódios como uma desmistificação doconhecimento. Aquilo tudo é muitosimples, há tempo queríamos e estamosfazendo, ou seja, navegar e explorar.Para mim, isso é que é crítica. Éinterpretar os fatos. É ver a Guernicanão só como mães, filhos e cabrasbombardeados, mas uma lâmpada.Pouca gente vê: há uma lâmpada noquadro da Guernica. Quer dizer o quê?�Mas os nazistas quebraram também aluz da minha casa, esse inventomaravilhoso, a lâmpadazinha�. Essascoisas precisavam ser ditas! Não sei oque a crítica está fazendo que fala sósuperficialidades! Há um raciocínio muitosábio para dizer de forma enérgica eimprevista através, no caso, de uma pintura,um mural. É a mesma coisa dita de modo adurar muito tempo, o discurso se repete eestamos aqui falando da lâmpada, daGuernica. Como Demoiselles d�Avignon seriauma abertura do movimento feminista: é omesmo lupanar que pintaram tantas vezes,agora com máscaras africanas. Estava sedescobrindo os mistérios da fecundidade quena África tinha outro sentido. Picasso eramuito inteligente, pintava para dizer:demorem quanto quiserem, quandodescobrirem vai valer mais!A crítica é muito frágil, superficial, e teria

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que ser profunda diante de problemascomo os da cidade de São Paulo:podemos ser envolvidos por conflitosimensos. Se houver uma crise deabastecimento, de energia, de água, istovira um caos! Qualquer cidade, mas estaem particular. Portanto, se temos quelutar, que seja em nome da cultura. Masnão a cultura do Visconde de Sabugosa,cuja metáfora é maravilhosa: o saberuniversal da Enciclopédia Britânicaembolorado num sítio da roça, numaespiga de milho!

Este prédio é muito bom. É fácil dizerque é ruim porque se chover, aqui vai teruma goteira. Mas é preciso um poucode pudor, só faltava achar graça nagoteira! O Louvre, por exemplo, é umalaje impermeabilizada: embaixo temtrezentos por oitenta metros com laje epirâmide de cristal em cima. Quem falouque não pode resolver qualquer telhado,qualquer impermeabilização? Isto é umabobagem! Como fazer um telhado quesem conservação não dê goteira? Isso nãoexiste! Portanto, são raciocíniosassociados à parcela conservadora,reacionária e pior da nossa sociedade. Nãoé por aí. Não deve ter goteira alguma.Em Barcelona, em frente à catedral, apraça toda é laje impermeabilizada, háali um estacionamento subterrâneo, maisde quatrocentos metros, e recompuseramo piso inteiro. Do que nós estamos falando?Tudo é laje impermeabilizada no mundo,

há muitos séculos inclusive! Este prédioé um Ibirapuera, se nós quisermos.Porque o bom, para quem é sábio nacrítica, é o que você diz que é bom!Porque se você disser que é ruim, podeser loteado, demolido. O que interessamais? É estabelecer a justa crítica paraque isto possa vir a ser o que sonhou ser:um espaço livre, aberto para a cidade.Que é muito difícil? Sei disso, mas éinteressante enfrentar as contradições quea prática da vida exige como argumento.E uma estação de metrô? Como policiar,obrigar as pessoas, o quê? É aberta, livre.E é interessante ver a reação dapopulação: você faz uma coisa pelintra,a população reage porque aquilo éindigno! O Metrô, ninguém estraga! Etambém dizer o povo, eles... Eles quem?Eles, somos nós! Temos que fazer a críticasobre nós mesmos para depois termos adignidade de saber usar. Este prédio nãofoi feito à toa.

SOBRE A V BIENAL DE ARQUITETURAA SER REALIZADA EM 2003RO � A Bienal terá como tema geral aMetrópole, numa certa relação com aBienal de Artes Plásticas de 2002. Serãolevantadas algumas questões a partir daleitura de onze cidades: suas condições,limites, formas de ligação, característicasdo centro histórico, etc. Serão apresentadosna exposição seus aspectos comuns paraver os significados numa e noutra. Istopossibilitará uma visão comparativa das

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propostas que estão sendoimplementadas sob o ponto de vistaeconômico-financeiro e cultural. Enfim,o que faz com que uma metrópole sejade um jeito ou de outro. Foram escolhidasmetrópoles da América Latina, Ásia,Estados Unidos e Europa que permitirãoobservar a questão cultural na relaçãoentre elas, porque é difícil fazer perguntasespecíficas.

Numa cidade como São Paulo é precisoentender seu desenvolvimento histórico,como chegou neste ponto. Estudar oúltimo século é muito importante, eexiste a questão fundamental damiséria e pobreza. Outro dia colocou-se esse dado: 30% da populaçãobrasileira vive em estado de miséria,ou seja, menos de oitenta reais pormês. Há até um debate entre duasentidades sobre nível de riqueza: umafala em dois mil e cem reais por mês,acima disso é nível de riqueza, e outra,acima de quinhentos e oitenta. Bem,acima de dois mil e cem, existe noBrasil 1% da população e acima dequinhentos e oitenta, 10% dapopulação. Portanto, abaixo dequinhentos e oitenta é 90% dapopulação. Então, para discut irqualquer problema nesse país tem quese considerar isso, porque é a questãopela qual a metrópole chega ao pontoem que está. Há questões queextrapolam a Metrópole e acabam

caindo sobre ela, mas tanto a históriacomo a miséria e a pobreza sãofundamentais para começar a entendera cidade de São Paulo.

PMR � Números são números. A questãoé construir o problema. Por exemplo, otransporte público. O Metrô reduz o gastode roupa, de sapato. Quem ganha tãopouco, ainda gasta o dobro do rico.Riqueza não é só salário, riquezamaterial, é também riqueza técnica:realizar a cidade. Mencionou-se oKoolhaas, um homem da Holanda, quediz: more than ever, the cities are all wehave. Para combater tudo isso, só temosa cidade como recurso! Vai fazer o quê?Então põe esse povo, justamente o queganha menos, na periferia. E dizer quepara resolver vai fazer auto-construção:ninguém vai fazer auto-construção naporta do Metrô, é impróprio! Tem queapelar para a técnica!

Portanto, a demanda podia ser primeiroa paz - principalmente diante da Europaque está ainda reconstruindo o que aguerra bombardeou, cidades como Berlim,Londres... A cidade é o alvo da felicidadeou do desastre: para destruir um povohoje, não há brigada, nada que vocêpossa bombardear: é a cidade. Construira paz significa aliança com a AméricaLatina, estabelecer projetos comuns, ligarAtlântico e Pacífico, Chile, Bolívia, Peru eBrasil, bacia do Prata, navegação de tudo

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isso, aliados da Argentina, do Uruguai. Nãodisputar essas coisas! É uma infâmia a idéiade competitividade entre os homens! Euseria ninguém se tivesse que competir! Nãotenho recurso nenhum, vou competir como quê? Com quem? Não faz sentido! Então,é a consciência sobre a cidade e a construçãoda paz transformando isso em problemasconcretos. Aproximarmo-nos por razõestécnicas, éticas, políticas e de espacialidade.

Abrir o espaço da arquitetura hoje, éconstru i r a paz e a idé ia de umacidade para todos, que este edifíciorepresenta, que o Metrô representacomo possibilidade objetiva de poucoa pouco i r reso lvendo a c idade .Restaurar o trem para Santos, que oavô pode pegar com dois netos e umaces ta com sandu íches , tomar umbanho de mar e voltar à tarde. Ainstrumentação mecânica e técnicaé fundamenta l para reso lve rproblemas que você diz quais são,para altos ideais. Unir as cidades domundo é isso: construir a paz e aidéia de uma cidade para todos. Éum tema belíssimo o da Bienal. É otema atual.

RECUPERAÇÃO URBANA ENOVOS PROJETOSRO � Na reg ião da Luz vár ia sedificações vêm sendo restauradas,algumas com mudança na utilização.O próprio Parque t inha uma vida

de te r io rada e sua rev i ta l i zaçãomostrou a possibilidade de termos umdesenho recuperado. Hav ia umpro je to pa i sag í s t i co de 1917,to ta lmente perd ido , mod i f i cado,porque se considerava que a naturezano Parque não se poderia desenhar.Então, desde 1917, ninguém maismexeu: as árvores iam crescendo semnenhum cont ro le . Percebeu - se ocrescimento indesejável e a falta danoção de que paisagismo se constrói,a natureza você constrói dentro dacidade. Foi possível então desenvolverum projeto retomando o de 1917.Algumas perspectivas puderam serrecuperadas e se começou a verárvores , a a lameda de pa lme i rasimperiais, diferentes situações nosdiversos lugares. Depois foi o coreto,que acho o mais bonito de São Paulo;restaurou-se a casa de chá, quepessoalmente nem acho uma peçainteressante, destoa naquele espaço.De qualquer modo, são questões aserem discut idas por órgãos dePatrimônio Histórico, estabelecendocr i tér ios mais inte l igentes pararecuperar e modif icar espaçoshistóricos. Naquele projeto percebemosque não havia absolutamente critériosque pudessem levar a uma recuperaçãodo Parque. Essa discussão dePatr imônio Histór ico tem que sercolocada. O Paulo fala da mudançade u t i l i zação que é mu i to

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in te ressante , e para o cent ro dacidade não temos propriamente umpro je to . A c idade carece que seentenda melhor seu espaço, que quemcircula consiga entendê-la também.Os habitantes não têm idéia do queacontece na cidade, como chegou aeste ponto e é importante que elatenha uma didát ica. O debate dedeterminadas unidades no centro dacidade deve ser amplo, de modo aestabelecer projetos que permitamcompreendê-la melhor.

Quanto ao Instituto Tomie Ohtake, oLaboratório Aché, único de ponta comcapital nacional e proprietário daqueleterreno, resolveu fazer um prédio deescritórios. Queria uma coisa voltada àcidade e um dos donos, colega decolégio do meu irmão, que estavafazendo o projeto arquitetônico, sugeriuum centro cultural com o nome de�dona� Tomie, como ele diz. É umcentro cultural privado que funcionacom patrocínios e atividades ligadas àsartes visuais, salas de exposições, artescênicas, dois teatros, um localinteressante.

PMR � Gostei que o Ricardoconcordasse comigo a respeito do uso.Porque mesmo fábricas e galpõesindustriais podem se transformar emescolas, habitação, outros destinos, nãoficar com esse panegírico da cultura.

Hoje há tecelagens onde nem se ouveo ruído: são máquinas suíçasmaravilhosas em teares circulares, e hámuitas tecelagens em sobrados, na 25de Março, nas ruas de comérciotradicionais, que podem ocupar galpõesde indústrias desativadas, voltando ater habitação nos sobrados. Há projetosmais intrigantes e interessantes quantoà experiência da cidade. Eu amparo,acho uma beleza a cidade comodiscurso de si mesma, ela contém essesdesejos. Portanto, entre atraso edegenerescência, precisa um tino paracontinuar contra a rota do desastre enão enveredar pelo descalabro.Continuar combatendo a miséria, apobreza, e avançar no desenho dacidade como quem diz: �nós sabemoscomo deve ser�. Porque se nãosoubermos... Somos obrigados a saber!

O projeto da Praça do Patr iarcaconsiste na recuperação de um piso dedesenho precioso em mosaicoportuguês, uma coisa linda perdida coma instalação de pontos de ônibus.Retiram-se os ônibus e o carrosselindevido que faziam. Aí desenhei umamarquise que imagino seja bonita, sóse pode saber vendo pronta. É umcontraponto à igrej inha, elegante,oportuno, claro, senão não ia fazer!Pouca gente sabe, mas há umaescultura de Ceschiatti lá, o Patriarca.Então, vindo pela rua de São Bento,

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como quem vem de São Franciscopara São Bento, surge o largo e, umpouquinho atrás, o Patriarca. Vindopela rua do Comérc io, lá es tá oPatriarca. Sua casaca é toda onduladacomo veste de santa barroca, muitol inda! A c idade não deve serdesmontada, mas estruturada a partirda fundação. Por exemplo, o caso daEscola Caetano de Campos: no diaem que o Metrô chegou à porta daesco la , se t i ra a esco la ! Nossasociedade, e não acredito em desleixos implesmente, é mal ignamenteantidemocrática. Uma escola que sefez modelar, demanda estudantes detoda parte que a desejam e é difícil,porque é longe. Com o Metrô... Nesseinstante se diz: não tem mais escola,fica lá o secretário e suas entouragesburocráticas, faz uma grade e põe oautomóvel do Secretário lá dentro. Éum escárnio! Mas podemos recomporisso. A Escola Caetano de Campospode vo l tar a ser esco la , háesperanças. Precisa é reagir com overbo, falar, ter paciência, arranjar umjeito e todo dia escrever nos jornais,senão não há resultado. É necessáriouma ação efetiva como no Ibirapuera:abriu o horizonte e aquilo não voltaatrás, o paulista já compreendeu. Éprec iso fazer esse d i scurso deesclarecimento com coragem. Não háoutra coisa a fazer. It�s all we have.A cidade é tudo que temos.

Paulo Mendes da Rocha é arquiteto, formado peloMackenzie em 1955, professor titular da FAUUSP,vencedor do Prêmio Mies van der Rohe em 2000,autor de inúmeros projetos, entre os quais o MuBE,Pinacoteca, Centro Cultural da FIESP, Terminal doParque D. Pedro, além de residências, escolas,conjuntos habitacionais e propostas urbanas.

Ricardo Ohtake é arquiteto, formado pela FAUUSPem 1968. Ocupou diversos cargos públicos: foidiretor do Idart e do CCSP; do Museu da Imagem edo Som; da Cinemateca Brasileira; secretário deEstado da Cultura e Secretário Municipal do Verdee Meio Ambiente. Atualmente é curador da VBienal Internacional de Arquitetura, a ser realizada

em 2003.

1 Crítico e professor de História da Arte naFAUUSP.2 Paulo Emílio Salles Gomes (Brasil, 1916-1977), professor e crítico de cinema, dirigiu aCinemateca Brasileira e também o Centro dePesquisas do IDART (1976-1977).3 Arquiteto (Japão, 1931), autor de projetoscomo Museu de Arte Contemporânea de LosAngeles e Palau Sant Jordi, em Barcelona,entre outros.4 Arquiteto (Holanda, 1944), autor de projetoscomo Educatorium da Universidade de Utrecht,Holanda, e o Grand Palais, em Lille, França,entre outros.5 Jorge Luís Borges (Argentina, 1899-1986),escritor e poeta.

Debate coordenado e editado pelos arquitetos DalvaThomaz, Monica Junqueira de Camargo e ValdirArruda, da Equipe Técnica de Pesquisas de Arquitetura.

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o início do século XXI, a fotografiano B r a s i l e n con t r a - s e n umasituação curiosa. Por um lado, os

campos da produção e difusão apresentamuma atividade intensa. Por outro, no campoda crítica e da memória, para não falar doensino, a ação tem lugar em ritmo mais lento,marcado ainda pela trajetória pessoal de seusrealizadores.

memória e crítica sobre fotografiabrasileira no limiar do século 21depoimentos de Helouise Costa e Rubens Fernandes Jr.

Apesar do intenso crescimento deiniciativas editoriais e acadêmicas nosúltimos anos, que efetivamente vãoconstruindo um primeiro blocoreferencial, a reflexão sobre fotografiaencontra-se em situação menor perantesetores como o do cinema, porexemplo. Com certeza, o carátermult id isc ipl inar representado peladiversidade de usos da fotografia, umadas suas caracter íst icas maisrevitalizadoras, é também o motivo quefaz com que o próprio campo dapesquisa seja em si mult i focado edisperso, tendo por �local� um grandeconjunto de setores do conhecimento,materializado em pólos de pesquisacom recortes e dinâmicas distintos comoas unidades de ensino em História,Arquitetura, Artes e Comunicação.Nesse contexto, o encontro dedicadoao tema da reflexão e memória sobrefotografia no Brasil permitiu ressaltaro fato de que as iniciativas são quasesempre marcadas pela trajetória pessoal

de seus realizadores. Cada olhar sobreesse campo vasto da(s) fotografia(s) éresultado da formação do pesquisador,das condições de trabalho a seu dispor,da continuidade e dedicação possível aeste trabalho. Os prof iss ionaisconvidados, Helouise Costa e RubensFernandes Junior, falam sobre suastrajetórias, únicas, mas igualmenteexemplares da condição deste fazerespecializado.

HELOUISE COSTAEu me formei pela Faculdade deArquitetura e Urbanismo da UFRJ e ládesenvolvi um grande interesse pelahistória da arte. Meu objet ivo eraestudá-la, não a partir de pressupostosteóricos já dados, mas encontrar umcaminho que fosse mais instigante, umreferencial com o qual eu meidentificasse. Imaginei que a fotografiapodia ser essa via de acesso à históriada arte. Inicialmente esse interesse erabastante difuso e só começou a tomarcorpo a partir de uma série de leituras,de oficinas, de cursos de que participei.A partir daí consegui identificar umaproblemática e formular um projeto depesquisa que era justamente investigara instauração da fotografia moderna noBrasil. Com esse projeto recebi, juntocom Renato Rodrigues, uma bolsa daFunarte e isso viabi l izou minhamudança de área de atuação. Eu era

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completamente autodidata. Essescaminhos foram sendo traçados ali nodia-a-dia, no embate com o materialprimário, na tentativa de construir umapossibilidade de leitura da fotografia.Em meados dos anos 80, adisponibilidade de títulos era pequena,tanto nacionais como estrangeiros, e opouco que havia sobre história dafotografia no Brasil era ligado ao séculoXIX. Nesse momento um marco muitoimportante em minha trajetória depesquisa foi a le i tura do l ivro doprofessor Arlindo Machado � A ilusãoespecular (Brasiliense/Funarte, 1984).Eu tive sorte também na escolha dotema da pesquisa: estudar a fotografiamoderna no Brasil. Foi a partir destetrabalho que me vinculei à pesquisaacadêmica e consegui a aprovação deum projeto de mestrado na ECA-USP,onde me propus a estudar a relação dofotojornalismo com a estética moderna.

Essa tentat iva de reconsti tuir meupercurso profissional busca mostrar quea minha perspectiva em relação àfotografia é de origem interdisciplinar.Houve vários fatores que contribuíramrealmente para conformar a minhaleitura da fotografia. A arquiteturapossibilitou uma leitura muito particularda imagem: a questão do espaço nafotografia e da perspectiva. Os estudosde mestrado na ECA e o doutorado naFAU me possibi l i taram abordar a

fotografia a partir de outras disciplinas,como a história, a sociologia, aantropologia, e, em especial, a históriada arte. A minha atividade no Arquivodo Estado de São Paulo, onde trabalheientre 1990 e 1993, como responsávelpelo arquivo fotográfico do jornal ÚltimaHora, possibilitou o contato com afotografia como documento histórico ecomo objeto de arquivo. E, por fim, noMuseu de Arte Contemporânea da USP,onde trabalho desde 1993, houve apossibilidade de pensar a fotografia emrelação ao sistema das artes plásticasno sentido mais amplo e, em particular,à arte contemporânea. Tenho meinteressado muito ult imamente ementender em que momento a fotografiaentrou no museu de arte, quais foramas condições que permitiram esseingresso e refletir sobre a curadoria deexposições museológicas de fotografia.

FOTOGRAFIA: UM CURTO-CIRCUITO NOSISTEMA DE ARTENa pesquisa que desenvolvo com apoioda Vitae, a minha hipótese é que afotografia passa a ser utilizada pelosartistas plásticos a partir dos anos 60e 70 como uma forma de questionar osistema de arte moderna. Ou seja,como uma forma de questionar osvalores artísticos instituídos, como, porexemplo, a prevalecência da pinturaenquanto forma hierarquicamente maisacabada de arte, os conceitos de

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autoria, a idéia da genial idade doart ista. Por f im, a noção daoriginalidade no sentido de obra única.Acredito que, quando os art istasincorporam a fotograf ia nos seustrabalhos, não estão nem um poucointeressados em questões relativas àlinguagem fotográfica da maneira comoela se instituiu no campo da assimchamada fotografia artística. Eles estãopreocupados em, através da fotografia,introduzir um ruído, um elementoprecário, que possui um estatuto umtanto quanto ambíguo e vai justamentedesestabilizar as certezas que a artemoderna colocou em relação à obra dearte. Hoje é lugar-comum afirmar quenão existe limite entre arte e fotografia.Mas, se fizermos uma retrospectivahistórica, o que se percebe, emboraexistam muitas aproximações formaisentre os trabalhos que são desenvolvidospor aqueles que têm uma formação emartes plásticas e por aqueles que vêmda área de fotograf ia, é que osquestionamentos que deram origem aostrabalhos do primeiro grupo sãoradicalmente diferentes. Assim, aquelesque têm uma formação na área defotografia se colocam contra a idéia defotografia artística moderna, contracertos aspectos que a constituem como,por exemplo, a concepção de fotografiapura, sem intervenção, a idéia deautoria e a de constituição de um olhar,de uma especificidade. Por outro lado,

os artistas que se utilizam da fotografiaestão se remetendo a outro universo.Discutem a possibilidade de aparecimentodos múltiplos, do questionamento mesmodos pressupostos da arte moderna, nãoestando preocupados com a história dafotografia ou com a idéia de linguagemfotográfica. Acho que a grande confusãoestaria justamente na proximidade formalentre esses trabalhos. O meu objetivo comessa pesquisa foi tentar perceber a partirde que pressupostos os artistas plásticosbrasileiros nos anos 60 começaram a seinteressar pela fotografia. Assim, acreditoque se possa entender um pouco melhora confusão que perpassa, ainda hoje, adiscussão sobre essa questão da fotografiacomo arte. Existe toda uma diferenciaçãode propostas entre os diversos artistas,mas o que eu poderia apontar de comumentre todos os trabalhos nesse momentoé que, quando a fotografia é trazida parao contexto das artes, ela provoca umcurto-circuito de valores e permite assimrepensar o sistema de arte tal qual ele seconstitui.

O LOCUS DA FOTOGRAFIAEsse é o leque de perspectivas queconforma o meu olhar em relação àfotografia. Posso dizer que, hoje, essaminha lei tura está cada vez maispróxima da área de estudos culturais,que tem por princípio, justamente,selecionar objetos de estudo que digamrespeito ao universo da cultura, sem

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distinção entre alta e baixa cultura,objetos que de alguma maneira permitemque se estude a relação entre cultura,representação e poder. Os estudosculturais se valem necessariamente deoutras disciplinas para abordar esseselementos de um ponto de vistaessencialmente crítico e com a ênfaseno viés interpretativo. Em seu livro TheBurden of Representation (University ofMinnesota Press, 1993), John Taggassim comenta essas questões: �Ochamado meio fotográfico não temexistência fora de suas especificaçõeshistóricas. A única coisa que une adiversidade de lugares em que afotografia opera é a formação social, afotografia em si não tem identidade. Oseu estatuto varia de acordo com asrelações de poder que nela estãoenvolvidas. A sua função como modo deprodução cultural está vinculada acondições de existência bem definidas,e seus produtos só são legíveis esignificativos dentro delas. A sua histórianão tem unidade. Trata-se de um trânsitoatravés dos espaços institucionais. Sãoesses espaços que devemos estudar enão a fotografia em si.�Isso é o que me interessa hoje: pensara fotografia como um artefato que mepermite investigar a constituição devalores dentro dos mais diferentessistemas. Os pontos mais relevantesdessas relações são exatamente aszonas de fronteiras entre esses

diferentes sistemas. Penso que essaabordagem possibilita que se percebamelhor quais as questões estão em jogoe quais as relações de poder investidasna legitimação desses valores.

RUBENS FERNANDES JUNIORO grande ponto de ruptura, o grandeparadigma da minha geração foi o filmedo Antonioni: Blow-up (1966). Aquilofascinou todos os garotos, por causada câmera Bronica, pelas garotas e porcausa do mistério inspirado num contodo Cortazar. Acho que a fotografia jáestava na minha vida há muito tempo,mas eu não havia me dado conta. Minhaformação sempre foi � e continua sendo� caótica por natureza: sou engenheiro,fiz física e jornalismo, e acabei indopara a área de comunicação esemiótica. Por volta de 1978, 1979,eu já estava l igado a grupos defotografia. Fiz parte de um movimentona universidade chamado Fotousp, queagrupava nomes como João Musa eMoracy de Oliveira.

ABRINDO NOVOS ESPAÇOSQuando o Fábio Magalhães assumiu adireção da Pinacoteca do Estado em1978, ele me convidou para abrir umespaço de fotografia. Sua intenção eracriar um espaço inovador dentro de ummuseu conservador. Fizemos assim oGabinete Fotográf ico, uma salamodesta. Al i , durante dois anos,

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lançamos uma geração de fotógrafos:Gal Oppido, Arnaldo Pappalardo,Antonio Saggese, Emidio Luisi, ClóvisLoureiro, Camila Butcher, etc; jovensfotógrafos que na época procuravam umespaço alternativo para fotografia, o quepraticamente não existia em São Paulo,principalmente em museus. Mais tarde,trabalhei como crítico de fotografia naFolha de S.Paulo entre 1986 e 1993;trabalhei também nas revistas Íris por10 anos e Guia das Artes outros 8 anos.Fui curador de fotografia do MASP nagestão do Fábio Magalhães em 1990-1997. Em 1991 participei da fundaçãodo grupo Nafoto � Núcleo dos Amigosda Fotografia, com Nair Benedicto,Fausto Chermont, Marcos Santi l l i ,Eduardo Castanho, Juvenal Pereira,Stefania Bril, Rosely Nakagawa, etc,cujo objetivo era a cada dois anosorganizar um mês internacional dafotografia. Terminamos agora em junhoa quinta edição do Mês. Acho que essaação de criar espaços para a fotografiasempre foi recorrente no meu trabalho,como forma de evidenciar que afotografia é uma manifestaçãoimportante no panorama das artesvisuais.Sobre a questão da memória, não sepode esquecer que a histór ia dafotograf ia no Brasi l foi inic iada esistematizada só no final dos anos 40por Gi lberto Ferrez, histor iador ecolecionador. Em 1946, Gi lberto

publ ica, na Revista do Patr imônioHistór ico e Art ís t ico Nacional , oprimeiro grande panorama dafotografia no Brasil no século XIX,chamado A fotografia no Brasil e umde seus mais dedicados servidores �Marc Ferrez. Acho que nesse momentoa fotografia começa a ganhar um corpoteórico e a dar os primeiros passos emdireção à construção de uma história.Outra inic iat iva que consideroimportante foi a const i tuição deacervos, a lém da própria coleçãoGilberto Ferrez, como a coleçãoTheresa Cristina, organizada por DomPedro I I , agora sob custódia daBibl ioteca Nacional, e a coleçãoorganizada pelo fotógrafo e cineastaBenedito Junqueira Duarte na décadade 1930 com a passagem de Mário deAndrade pela direção do Departamentode Cultura, que constitui hoje uma visãoinstitucional sobre a cidade de SãoPaulo, preservada pela Secretar iaMunicipal de Cultura.

A importância de se conservar essesacervos, sejam públicos ou privados, éuma questão recente no Brasil. O acessoa essas coleções é complicado ainda,pois às vezes os acervos se encontramem estado muito cr í t ico ou senãodesorganizados, sem identificação, semreferência, com poucos funcionários. Odesafio maior é portanto construir umamemória para as próximas gerações,

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e para isso é necessário trabalhar rápidoe intensamente.

MEMÓRIA VISUAL E AQUESTÃO DO AUTORUm aspecto da produção fotográficaque me fascina - e que é um horrorpara muitos pesquisadores - é afotografia de autoria desconhecida.Essa memória anônima, que venhocolecionando há algum tempo, vemganhando corpo e consistência. É oinício de um projeto que tenta entendera fotografia como talvez a mais incrívelmanifestação visual do século XX e queseguramente cria um objeto que ésedutor, tanto pela magia poética comopela infinidade de informações queaquela fotografia anônima e esquecidanos pode revelar. Tenho a impressãode que esse material fotográfico trazdentro dele uma perspectiva estéticaabsolutamente s ingular. Michel deCerteau, em A invenção do cotidiano(Vozes, 1994) insiste na tese segundoa qual temos de nos maravilhar diantede uma sensibilidade estética que nãose submete a nenhum tipo de regra,que é o caso do fotógrafo amador edas pessoas que se deixam fotografar.O dia-a-dia do cidadão também fazparte da história e acha-se semeado demaravilhas que surgem, desaparecem etornam a surgir. E a fotografia produzidapor esses anônimos cidadãos carrega umquê de inconformismo que aponta para

uma perplexidade ainda inexplicávelpara mim. Uma fotografia em que nadapode ser reconhecido é muitoperturbador. Esse desconhecimento totalé que faz emergir a fantasia darecriação, que busca entender a imagemcomo surpresa e animação, movimentoe energia latente. É o que RolandBarthes denominou em seu clássicoensaio A câmara clara (Nova Fronteira,1984) de �princípio da aventura�, quea fotografia estabelece e garante suaexistência e sobrevivência no tempo. Emparalelo, tenho trabalhado com osestúdios formais de fotografia queatuavam em São Paulo entre 1860 e1950, fotógrafos importantes queatendiam à classe dominante. Que tipode imagem esses fotógrafos produziam?E que tipo de imagem o fotógrafoamador e o fotógrafo lambe-lambeproduziam sem a perspectiva de ter umaestética, mas assim mesmo, olhando nosdias de hoje, com uma estética muitosingular, muito peculiar?

Desenvolvo ainda uma pesquisa dedoutorado na Comunicação e Semiótica(PUC-SP). Esse trabalho aponta paraoutra direção: a discussão das diferentestendências da fotografia contemporânea.Proponho verificar o quanto a nossafotografia dialoga com as característicasde mutação contínua e as tensõesfreqüentes dos movimentos artísticoscontemporâneos. O trabalho soma essas

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questões à reflexão sobre a linguagemfotográfica que - com o impulsotecnológico que teve nas últimas décadas- vem se desenvolvendo e se conjugandocom outras representações do visível.Interessa-me destacar nesse trabalho asrelações de determinados fotógrafos eartistas, seus processos de criação e suasrespectivas obras, que laços elesestabeleceram com outros conjuntos deobras e artistas de diferentes períodos.Interessa-me também perceber essamultiplicação de tendências que buscaampliar as probabilidades de instaurardiversas �realidades fotográficas�,expandindo os limites da fotografia ealargando suas fronteiras através deinúmeros e diferentes processos deconstrução da imagem.

NOVAS REFERÊNCIAS, NOVASMATERIAL IDADES: A PRODUÇÃOCONTEMPORÂNEAA fotografia está caminhando parauma abstração, o que não significa ofim da fotografia documental. O queestá valendo hoje é s imular porimagens, tentar apagar todas asdiferenças possíveis entre a fotografiae qualquer outro tipo de manifestação,buscar com liberdade e invenção oimponderável, assumindo os imprevistos,os ruídos, para abrir o campo daspossibi l idades para a leitura dadescoberta e da surpresa. Tenhoapontado que a ênfase não é mais tirar

fotografias, mas fazer fotografias - nosentido mais amplo da palavra �fazer�.Para essa nova produção fotográfica, oprodutor esquece que a fotografia foium dia um paradigma de veracidade etenta retirar todo o aspecto realista quecaracterizou a fotografia durantedécadas. Nessa direção pode-se perceberuma nova e emergente produçãofotográfica, extremamente atrativa.Mesmo a nova fotografia documentaltrabalha com conceitos próprios, muitodescolada daquela tradição purista deque a fotografia � entre aspas � é umacópia da realidade. Longe de serespelho, a fotografia, hoje, talvez sejauma das formas mais complexas derepresentação. A nova produçãoimagética deixa de ter relações com omundo visível, imediato, pois nãopertence mais à ordem das aparências,mas aponta para as diferentespossibilidades de suscitar oestranhamento em nossos sentidos.Trata-se de compreender a fotografia apartir de uma reflexão mais geral sobreas relações entre o inteligível e o sensível,buscadas nas suas dimensões figurativase plásticas. As variações formais etemáticas não se restringem mais a umaúnica tendência. Entre as experiênciasmais renovadoras destacam-se: asmanipulações diretas, seja no negativo,seja no positivo; aquelas sofisticadaselaborações de estúdio onde se cria ummaravilhoso e perfeito universo do qual

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a gente não faz parte; a saturaçãointencional das cores, trabalhando semfiltros de correção em situações limitesde luz; a proposta de uma novafotografia documental, utilizando-se dasdistorções e profundidade de campooferecidas pelas novas lentes; outrosfotógrafos, outros artistas, na direçãodos processos primitivos da fotografiatentando recuperar os processos decalot ipia, de ambrot ipia, dedaguerreot ipia, para produzir seumaterial sensível; outros procurandoconstruir suas câmeras, as pinholes, porexemplo, para destruir um pouco essaprecisão do registro fotográfico. Busca-se hoje a construção de novasreferências e novas materialidades nouniverso da fotografia.

Edição realizada por Ricardo Mendes, pesquisador em históriada fotografia. Equipe Técnica de Pesquisas de Fotografia.

Helouise Costa é docente e pesquisadora do MAC-USP. Desenvolve no momento pesquisa patrocinadapela Bolsa Vitae de Artes.

Rubens Fernandes Junior é pesquisador e crítico defotografia, membro fundador do NAFOTO, além de

professor da Faculdade de Comunicação da FAAP.

memória e crítica sobre fotografiabrasileira no limiar do século 21

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a atividade musical em são paulo:da divulgação à formação de acervosdepoimentos de Lorenzo Mammì e Nelson Rubens Kunze

NELSON RUBENS KUNZEEstudei no Conservatór io Musica lBrooklin Paulista, onde me formei emflauta transversal. Também estudeiestét ica e composição com Hans-Joach im Koe l l reu t te r e ou t rospro fessores aqu i de São Pau lo .Quando me formei engenheiro, eu jáa tuava como mús ico, dava au las ,tocava na Orquestra Sinfônica Jovemdo Teatro Municipal, compunha, demodo que nunca exerci a profissãode engenheiro. Em 1984 fui para aAlemanha, onde estudei por três anosna Escola Superior de Música e naUniversidade Técnica de Berlim. Láaprofundei os meus estudos de flautatransversa l , composição e músicacontemporânea, e também estudeimatérias relacionadas à comunicação.

A REVISTA Concerto E OS PRIMEIROSPASSOS PARA A PUBLICAÇÃO DE UM GUIAMUSICAL EM SÃO PAULOQuando eu voltei para o Brasil, em1987, v im com outros interesses,sabendo que não mais seria músico.Trabalhei como produtor e tambémdando apoio a projetos de instituiçõesdas mais diversas, como o InstitutoGoethe de São Paulo, e também juntoa ent idades promotoras , como oMozar teum Bras i l e i ro e a B iena lInternacional de São Paulo.

Naquela época comecei a trabalharpara o guia São Paulo Musical, do qualme tornei sócio em 1989. O São PauloMusical foi criado pelo sr. HerbertLandsberg e foi o pioneiro no Brasilna divulgação da música clássica emrevista mensal específ ica. De umaconcepção simples, a publicação eraconstituída de um grande roteiro quedivulgava os eventos de música eruditaem São Paulo. O São Paulo Musicaltinha uma tiragem impressionante!Nós chegamos a vinte mil exemplarespor mês, com distribuição gratuita nosteatros, e para interessados, tambémgratuitamente, através de um mailing.

Em 1994, o sr. Landsberg faleceu.Nós continuamos a fazer o São PauloMusical durante um ano e meio, mas apublicação estava muito associada àpessoa do sr. Landsberg, que tinha os

e s t e a r t i g o o l e i t o r pode r áconhecer um pouco do trabalho deduas importantes personalidades:

Nelson Rubens Kunze, editor da revista mensalConcerto e Lorenzo Mammì, diretor dolaboratório de musicologia do Departamentode Música da ECA/USP que atuam no cenárioda música em São Paulo, não diretamente naatividade musical de palco mas, na suadivulgação e no arquivamento de registros epartituras que possibilitam a formação de umacervo tão necessário para a preservação daprópria música que se faz por aqui.

N

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contatos no setor industrial, contatos essesque acabavam encontrando os anunciantesque mantinham a publicação. Com amorte dele chegamos a conclusão de quese a revista não se profissionalizasse,tornando-se comercial, ela não teriacontinuidade. Assim, em 1995 resolvemosparar com a sua publicação e criamos arevista Concerto. Reformulamos todo oprojeto e buscamos algumas inovações emrelação à proposta do primeiro periódico.Introduzimos uma parte editorial, comentrevistas, matérias assinadas pormaestros e outros especialistas, uma colunasobre músicos brasileiros e uma seçãodedicada a lançamentos de CDs, DVDs elivros. Tudo isso sem perder aquela linhamestra de roteiro musical, isto é, a revistapassou a ser um grande guia de serviçospara o amante da música, principalmenteda cidade de São Paulo. Hoje a Concertoé vendida por assinatura para onze ediçõesanuais, com uma tiragem de 10 milexemplares. Temos aproximadamente 5mil assinantes, o restante da tiragem édistribuído promocionalmente em concertose eventos musicais.

Nós, naturalmente, divulgamos comdes taque os g randes concer tosinternacionais, porque são concertosimpor tan tes . Buscamos e temosmuita satisfação em manter parceriasestreitas com as entidades promotorasdesses eventos, como a Sociedade deCultura Art ís t ica, o Mozarteum

Brasi le i ro, os Patronos do TeatroMunicipal e o Teatro Alfa.

Mas nós temos um compromissomuito forte com a música e com osmús icos b ras i l e i ros . Por i s so , àexceção de uma parte do panoramade eventos, dedicamos toda a nossaparte editorial à música e ao artistabras i l e i ro , sendo a seção ma i simpor tan te a da en t rev i s ta , quechamamos de Em Conversa . Nelatemos já, nesses seis anos de revista,completados em setembro de 2001,um acervo de mais de sessenta nomesde importantes artistas brasi leiros.Entre eles destaco de memória, porexemplo, o compositor Koellreutter,o p ian i s ta Ne l son Fre i re ou ocompositor Edmundo Villani-Côrtes etantos outros artistas, chegando atéaos mús icos das novas gerações ,tanto compositores como tambéminstrumentistas. A revista Concertotambém traz, a cada três ou quatromeses , um ca tá logo de CDsreal izados por músicos brasi leiros.Hoje, a revista é quase o único canalde divulgação e de distribuição regulardo trabalho dos nossos músicos.

Acho fundamenta l , para umaprodução cultural-musical saudável,te r uma ampla e bem-d i s t r ibu ídaprodução local, com boas atrações epreços acess íve i s . Acho que nos

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últimos 10 anos temos avançado nessadireção. Temos hoje algumas sériesde concertos regulares � por exemploa da Fundação Maria Luisa e OscarAmericano, Domingos da Hebraica,Centro de Música Brasileira, CentroUniversitário Maria Antonia, Museu daCasa Brasileira, Centro Cultural Bancodo Brasil, as próprias programaçõesdo Teatro Munic ipa l como asVesperais Líricas, Quarteto de Cordas,e outras . E temos a fantás t icatemporada da OSESP � OrquestraSinfônica do Estado de São Paulo.Acredito que, para o desenvolvimentodisso, a revis ta Concerto tem umpapel a cumprir.

A IMPORTÂNCIA DE AÇÕESQUE RECUPEREM O ENSINOMUSICAL NO BRASILAcho que é nesse espaço da produçãolocal que se dá o desenvolvimentoverdade i ramente fundamenta l damúsica erudi ta bras i le i ra. Aqui setoca, se experimenta, se faz música.Mal comparando com o futebol, quehoje está muito ruim, é preciso queo Brasil todo jogue bola, para quesurja um Ronaldinho, um Rivaldo,uma se leção de jogadoresexcepcionais. O Brasil, do jeito queé, já deu um Nelson Freire ou umAntonio Meneses. Vamos imaginaragora que houvesse um ensino demúsica amplo e bem-estruturado. O

país musical que somos, que tão bemse expressa na MPB, também teriacomo se expressar na música erudita.

Chegamos assim a questões básicas damaior importância, que são o fomentoà música clássica e ao ensino musical.O ensino musical é, especialmente,uma questão muito cara para mim.Talvez vocês saibam que não existemais ensino musica l dentro dalegis lação bras i le i ra do ensinofundamental. Existe, hoje em dia, oensino artístico que, embora seja bomque exista porque foi algo conquistadotambém com muita dificuldade, gerouuma série de problemas no ensinopropriamente musica l . O ensinoart ís t ico acabou tornando-se a lgogeneralizado e com isso o ensino damúsica, que exige um conhecimentomais específico e aprofundado, acabousofrendo um pouco.

Ainda assim, existem iniciativas muitoimportantes para revalorizar o ensinomusical no Brasil. A mais recente, daqual eu tenho notícia, é a iniciativada Orquestra Sinfônica do Estado deSão Paulo, a OSESP, que criou umacoordenador ia de programaseducacionais. Com isso ela pretende,em uma pr imeira etapa, dar umaformação específ ica de música deconcerto para os professores dasescolas estaduais, e depois, em etapas

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subseqüentes, levar grupos da própriaOSESP para tocar em esco laspúb l icas . A lém d isso, pretendemtrazer os alunos da rede estadual deens ino para part ic iparem de umaprogramação espec ia l de caráterd idát ico. É uma preocupaçãofundamenta l que a l ia , a t ravés daaudição da mús ica, a educaçãomus ica l à formação de púb l i co ,questão-chave, a meu ver, para ofuturo da nossa música e da produçãomusical no Brasil.

C I D I M � C O M I TATO N A Z I O N A L EITALIANO MUSICAEu gostaria de falar, ainda, de umaexperiência que tive, e que, acredito,pode ser bastante ilustrativa para otrabalho que vocês desenvolvem naEquipe de Música do Idart. Em 1998,eu fui convidado para conhecer umaentidade italiana, o CIDIM, que é umaespécie de conselho de música mantidocom verbas públicas e subordinado aogoverno italiano, que dá suporte àmúsica clássica e, sobretudo, à músicacontemporânea, que é a maispenal izada. Eu f iquei muito bemimpressionado e depois vim a saberque existem outros conselhos parecidosnos países da Europa.Nós fomos convidados � um grupode jornal istas e de promotores demús ica c lá s s i ca do Bras i l , daArgentina e do Chile � para conhecer

um dos programas desse CIDIM, queé o programa de fomento a jovensta len tos . F icamos a lguns d ias naSicí l ia, onde pudemos ouvir essesjovens mús icos i t a l i anos , que j át inham ganho a lgum prêmio deexpressão , mas que não t inhamconsegu ido ent rar no c i rcu i to deconcertos. O intuito do CIDIM eraapresentar esses músicos e sensibilizaros promotores que ali estavam, paraque convidassem esses músicos avirem tocar também no Brasi l , naArgent ina e no Ch i l e . Fo i umprograma mui to bem-e laborado eassistimos, em três dias, acerca deoito concertos diferentes, com todot ipo de formação mus ica l , desdesolista vocal até orquestra sinfônica.E conversamos com os músicos sobrea s i tuação de les no pa í s , suasdificuldades e tudo o mais. Depoisdesse encontro, o C ID IM ajudou asubvencionar turnês desses músicospe lo Bras i l , e a lguns de les es tãoviajando por aqui até hoje.Depois da Sicí l ia fomos a Roma epudemos conhecer o próprio escritóriocentral desse comitê de suporte àmús ica na I t á l i a . E les têm umprograma, que, acredi to, é muitoparecido com o que vocês fazem. Porexemplo, eles têm ali um setor, dealgumas pessoas especializadas , como objetivo de criar um banco de dadossobre as a t i v idades de mús ica

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contemporânea na I tá l ia . Al i temtudo, informações de compositores,intérpretes, salas de espetáculos eseus recursos, facilitando o contatocom as pessoas que produzem música.Paralelamente a isso, ainda é feitoum trabalho de publicações anuais deartigos e ensaios relacionados com aprodução da mús ica i t a l i anacontemporânea. Tudo informatizado,uma coisa bárbara!

CONCLUSÃOPensando em alguma idéia do quepudesse ser o ideal de uma entidadepública de fomento à música no Brasil,para que daí pudéssemos tirar umacontribuição para a reestruturação doIdart, imagino algo parecido com o quevi na Itália. Basicamente, três pontosfundamentais deveriam ser considerados:- educação e formação musical, com projetosdirecionados para crianças em escolas epara formação de público em geral.- fomento da produção musical comvisibilidade para jovens músicos, paraque eles tenham oportunidade de seapresentar, com atenção especial àmúsica contemporânea.- pesquisa e documentação da atividademusical no país, para valorização eresgate de nossa memória.

E especialmente nesse último ponto,c re io , o t raba lho de cen t ros dedocumentação como o Idart tem um

papel de relevância fundamental.

LORENZO MAMMÌEu quero comentar sobre a atividadeque es tamos desenvo lvendo noDepartamento de Música da ECA(Escola de Comunicações e Artes daUSP) , que penso te r a lgumasemelhança com o que vocês fazemaqui no Idart. No Departamento deMús ica temos uma sér ie delabora tór ios e eu d i r i jo o LAM -Laboratório de Musicologia. O alunojá na graduação tem contato comtodas as fases da produção musical,desde a coleta do manuscrito, acatalogação, a avaliação c r í t i ca , aorgan i zação do mater ia l eposs ive lmente como se edi ta. Hátambém o laboratório de interpretaçãode música de câmara, o laboratório decanto coral e um estúdio de gravação.A idéia é que a formação do alunodentro do Departamento tenha a vercom todas as fases da produção, desderecolher o manuscrito até gravar odisco. Isso porque nós achamos que,hoje em dia, a separação dascompetências nesse campo é cada vezmenor. O músico formado tem que terum domínio completo de todo oprocesso do produto musica l e auniversidade deve exercer a função deprepará- lo para isso. Atualmente,existem dois lugares em que se podeencontrar uma partitura em São Paulo,

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um é na ECA e o outro é aqui, naDiscoteca Oneyda Alvarenga desteCentro Cultural São Paulo.

Há outros dois lugares, mas comacesso limitado: o CDM, Centro deDocumentação Musical da OrquestraSinfônica do Estado de São Paulo, queestá apenas começando, e o CDMC/Unicamp (Centro de Documentação deMúsica Contemporânea), que estálocalizado em Campinas, onde não épermit ido fazer cópias, porque aspar t i turas são ed i tadas e , sendocontemporâneas, não es tão emdomínio público.

EDIÇÃO DE PARTITURASPar te da d i vu lgação e dain te rpre tação da mús ica e rud i tabras i l e i ra depende de nós e dasfamí l i a s dos compos i to res . Essaat iv idade parte da observação deuma característica própria da músicabras i l e i ra : e l a é pra t i camenteclandestina, quer dizer, totalmenteinédita. Cerca de 90, 95% da músicaerud i ta b ras i l e i ra é inéd i ta . Nãoexistem editoras musicais e uma dasatividades que a gente faz com esforçoé estimular a publicação de partituraspela Edusp.

Eu considero um absurdo que nãoexis ta uma in ic iat iva do governo,como há em outros países, para a

elaboração de uma edição completadas obras, por exemplo, de Villa-Lobose de Carlos Gomes. Ironicamente,batiza-se com o nome deles grandesedifícios públicos, aeroportos, mas nãose faz uma edição completa das suasobras e com a agravante de quase nãomais existir editoras e livrarias quevendem partituras.

Em geral, a música popular tem, nocontexto, forças de produção muito maispoderosas que a erudita. Por exemplo,Dorival Caymmi de quem aos poucosse publicou quase tudo, e agora tambémTom Jobim vêm recebendo edições dequase todas as suas partituras.A Edusp está publicando quatro partiturasem colaboração com o laboratório demusicologia. Embora não seja a atividadeprincipal da Edusp, poderemos chegarnum futuro distante a uma razoávelporcentagem de obras publicadas. Nóstemos vários manuscritos: de HenriqueOswald, Furio Franceschini, até o materialmoderno de Fructuoso Vianna, graças auma intermediação feita pelo compositorMarcos Câmara que está aqui presentena platéia.

SERVIÇO DE DISTRIBUIÇÃO DEPARTITURAS � UMA HERANÇARECEBIDATemos também um vasto material demúsica contemporânea que nos chegoude um serviço extinto da biblioteca da

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ECA, que era o Serviço de Distribuiçãode Partituras. O SDP existiu de 1978 a1989 e foi criado pelo professor debiblioteconomia, Luis Augusto Milanesi.

Esse serviço se baseava na entrega dapartitura para a biblioteca pelo autor,com autorização para a distribuiçãomediante o custo da cópia em xeroxda mesma. Não havia seleção de obrase dessa maneira o serviço conseguiurecolher cerca de 1.500 obras decompositores contemporâneos edistribuir cerca de 12 mil partituras,que é um número muito significativopara a música contemporâneabrasileira, com a vantagem de nãoacarretar despesas para a biblioteca.Foi extinto no momento em que seachou que essa at iv idade não erafunção da b ib l io teca . Então essemater ia l fo i co locado em umachar re te e descar regado noDepartamento de Música. Surgiu oprob lema do que fazer com essemater ia l : devo lver? Mas a í , parareunir de novo 1.500 partituras deautores bras i le i ros , demorar ia nomín imo outros 10 anos. A gentetentou inventar outra coisa.Criamos um banco de dados e comisso começou a chegar um outromater ia l manuscr i to , bar roco doséculo XIX, que estava na biblioteca.Aos poucos foi-se criando um acervoque tem ho je cerca de duas mi l

par t i tu ras e também out rosdocumentos como fotos, cartas... Docompositor Furio Franceschini há umdiár io inteiro de 15 volumes comtodas as aulas que ele deu, com todasas polêmicas da música moderna como Camargo Guarnieri. Muitas tesesforam de fend idas u t i l i zando-se omaterial conservado em nosso acervo,como por exemplo, uma recente, naSorbonne, feita pelo pianista EduardoMonte i ro , que u t i l i zou par te dosmanuscritos de Henrique Oswald. Osmusicólogos Paulo Castagna, SusannaIgayara, Luis de Aquino e RubensRicciardi também defenderam tesebaseadas, no todo ou em parte, emnosso material. Vários alunos estãodesenvolvendo trabalhos de iniciaçãocientífica no LAM. Na verdade 70%do material da SDP era de autoresimportantes como Gilberto Mendes,Willy Corrêa de Oliveira, CamargoGuarnieri, Ernst Widmer, Bruno Kiffer,Nes tor de Ho l l anda Cava lcan t i ,Alberto Victório e outros.

Agora, vocês do Idart têm um trunfoem relação a isso tudo, porque aEquipe de Música tem um banco dedados do que é tocado em São Paulo,que já permite cruzar as informaçõese saber o que realmente faz parte davida musical e o que está depositadonaque le acervo . Acho que essetrabalho de biblioteca evidentemente

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t em que se r fe i to jun to com ot raba lho de pesqu i sa , senão c r iadistorções, embora uma coisa nãoimpeça a ou t ra . Uma dessasdistorções, para dar um exemplo, éque vieram pessoas fazer pesquisassobre sonatas para violino produzidasno século XX no Brasil e temos vintesonatas de um compos i torprat icamente desconhec ido. E adistorção é que, pela quantidade, eleparec ia ser mais importante queCamargo Guarnieri que compôs setesonatas. Mas, com a possibilidade decruzar os dados para observar o queestá sendo executado, surgem novoscritérios que podem legitimar o autore a sua obra pela qualidade e não pelasua quantidade.

Gostei muito de ter sido convidadopara essa conversa, porque ela mepermite um contato maior com vocêse com a biblioteca musical aqui doCCSP, para troca de conhecimentose in formações . Acho que nóspoder íamos ho je reava l i a r aexper iência do SDP e ver de quemaneira poder ia ser retomada ourestabelecida uma at iv idade nessadireção como parceria. E, ampliandoa discussão para além dessa questão,há o problema hoje dramático da faltade acesso às part i turas não só damúsica contemporânea, ou de gentemenos conhecida, mas também de

compositores reconhecidos, como porexemplo a obra de Carlos Gomes, set i ra rmos aque las ed ições daFUNARTE.

O DESAFIO DE FORMAR UM PÚBLICODE MÚSICA ERUDITAUm outro assunto que poderia serl evantado nes ta conversa é emrelação à formação de público paraa música. Eu considero importanteestabelecer parcerias para dividir oscustos para poder chamar gente dealta expressão. Eu me lembro dosConcer tos do Meio-d ia do MASPcomo um projeto que funcionava,porque hav ia mu i ta gente quetrabalhava na região da Av. Paulistae estava livre no horário de almoçopara assistir eventos de música grátis.Mas projetos de música precisam deum mín imo de inves t imento . NoCentro Universitário Maria Antônia,do qual sou diretor, quando mudamoso teto e pusemos janelas anti-ruídona sala de concerto e a equipamoscom um bom p iano, houve umavalorização na qualidade dos recitaistambém. Uma programação bem-feita, com uma excelente divulgaçãomuitas vezes é suficiente para que omúsico aceite participar, ainda quecom um cachê simbólico. Um projetodedicado à música tem que investirnuma d i s seminação de pequenassa las de boa qual idade, com uma

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programação compatível, boa divulgaçãoe a publicação de um impresso, porquepara o músico é importante ter odocumento que, na falta de umagravação do espetáculo, é o que ficadepois do concerto ter acontecido.A Rádio Cultura FM (103,3 Mhz) faz umtrabalho magnífico ao gravar concertose recitais em algumas salas de São Paulo,porque o registro sonoro é umdocumento de extrema importância.

O caminho que eu estou vendo éo de não especial izar muito o t ipod e a t i v i d a d e e d i v e r s i f i c a r ap r o g r a m a ç ã o c o m c o n c e r t oc láss ico, a l te rnado com concer tod e m ú s i c a c o n t e m p o r â n e a p a r aque o públ ico se acostume a ouviruma coisa um pouco mais ousadat a m b é m . E u a c h o q u e p a r a am ú s i c a c o n t e m p o r â n e a h á d o i scam inhos : um é en tende r que éuma at iv idade de pesqu isa l igadaà univers idade para um públ ico depesqu i sadores , como no IRCAM,por exemp lo , uma prá t i ca d ignaq u e t e m a s u a r a z ã o d e s e ra t ing indo um púb l i co , a inda quepequeno, extremamente seleto. Ooutro caminho, a meu ver, é esseq u e t e n t o p ô r e m p r á t i c a n oC e n t r o U n i v e r s i t á r i o M a r i aAntônia: cr iar um diálogo entre orepertório c láss ico tradicional e orepertór io moderno.

Este texto é uma edição resumida e autor izadapelos palestrantes, realizada por Francisco Coelho

Equipe Técnica de Pesquisas de Música.

Nelson Rubens Kunze, engenheiro pela USP emús i co pe lo Conse rva tó r io Mus i ca l B rook l inPau l i s t a , com espec ia l i z ação em Mús i ca eComunicações na Universidade Técnica de Berlime na Escola Superior de Artes de Berlim, é fundadore editor da Revista Concerto.

Lorenzo Mammì, formado em Matérias Literáriaspela Universidade dos Estudos de Florença e Doutorem Filosofia pela USP, é professor de História daMúsica na ECA/USP. Crítico de música e de artee diretor do Centro Universitário Maria Antonia daUSP, organizou as edições brasileiras da Vida deRossini, de Stendhal e de Clássico Anticlássico, deGiulio Carlo Argan. É autor das monografias Volpi,São Paulo, da Editora Cosac & Naify, 1999 eCarlos Gomes, Folha Explica, no prelo.

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a importância do design para odesenvolvimento industrial

brasileiroALEXANDRE WOLLNER

novos caminhos da literarturabrasileira contemporâneaÍTALO MORICONI eCECÍLIA ALMEIDA SALLES

a ficção audiovisual francesa nocinema e na televisão

JOSÉ MÁRIO ORTIZ RAMOS

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novos caminhos da literaturabrasileira contemporânea

depoimentos de Ítalo Moriconi Jr. e Cecília Almeida Salles

TA L O M O R I C O N I E O SRESULTADOS DE UMA PESQUISACOMPARADA

Retomando um pouco a moldura básicado literário e do cultural nos anos80, nos reportamos a ela como umasituação complicada, embora umbalanço da literatura brasileira nosrevele que a década de 80 foi uma dasmais brilhantes em matéria de criaçãoliterária brasileira, tanto na área doromance quanto na área do conto.

Uma geração surge na área do contona década de 70 � o famoso boom doconto - mas quando olhamosdet idamente essa produção,constatamos que as melhores coisasproduzidas pela geração 70 só forampublicadas nos anos 80.

Esta década, que parecera uma décadade baixa definição e baixa intensidadeliterária, na verdade hoje, já com o olhararmado de histor iadores, a l iencontramos um momento de apogeuque chamo pós-modernista - porque jánão existe mais a geração dos mestresmodernistas, há um momento em queprecisamos estabelecer umadiferenciação, porque ocorre realmenteuma série de aberturas estéticas.

Apesar d i s so , os ba lançosrelacionados aos anos 80 apontampara um decl ínio do que podemos

chamar �relevância cultural da ficção�.Fiz uma pesquisa comparativa entre aslistas de best-sellers dos anos 70 comas listas de 80/90 e concluí que oconsumo de l i teratura brasi le iradeclinou. Observa-se uma tendênciapaulatina e progressiva das obras deficção ocuparem um percentual cadavez mais reduzido dentro da massa delivros que é vendida, malgrado o públicode ficção, um público que em númerosabsolutos talvez até tenha aumentado,mas a faixa dos livros de ficção nãoacompanhou isso. Então esta foi umacaracterística muito forte.

Lembro-me que Márcia Denserobservou há um ano atrás, usando umaimagem dramática, que retrata bem asituação, que �a literatura começou avender menos a partir do momento emque Paulo Coelho começou a vendermuito� 1 . Porque estou fa landoexatamente disso. Reporto-me a umademanda do leitor para um tipo detexto mais pragmático, ou seja, aliteratura de auto-ajuda. Não se tratade entrar no mérito da questão, atéporque é algo muito polêmico, porexemplo, discutir sobre qual seria ovalor literário de Paulo Coelho, se eletem ou não valor literário.

Tudo isso é a chamada relativização,não a morte nem mesmo o declínio daqualidade, mas a relativização do lugar

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da ficção escrita na definição de culturae também de educação, e esta é umacaracterística que marca a transiçãoentre os anos 70 e os anos 90.Nos anos 70 a literatura ainda é muitoforte. Na lista dos best-sellers de 1975temos Lygia Fagundes Telles, RubemFonseca, Osman Lins. É impressionantecomo nas listas da Revista Veja daquelaépoca só tínhamos feras, e hoje temosquem? Amyr Clink, auto-ajuda, HarryPotter na literatura infanto-juvenil. Istoé uma real idade, e esta mudançacomeçou a acontecer nos anos 80.

A DOMINAÇÃO DA ESCRITA PELALÓGICA DO MERCADOA outra questão é a da dominação dosprocessos criadores pela lógica domercado.Este é um fato que se aprofunda a partirdos anos 90, quando surge uma novageração de escritores bem típicos, comoPatrícia Melo e outros. Escritores cujalinguagem do texto literário éesquemática e se aproxima da linguagemdo roteiro cinematográfico, pois para alógica avassaladora do mercado este tipode texto é o que vende, sendo o livro umproduto que precisa ter uma resposta demercado e vender.

E isto é percebido como algo quemassacrou o ficcional, que aumentou oisolamento da literatura de qualidadedentro do contexto mais amplo da

educação, da cultura e do mercadocomo tal.

INFANTILIZAÇÃO DO PÚBLICOAinda vinculado a este universoapocal ípt ico dos anos 80, numaavaliação crítica da situação literáriaocorre a tragédia total da escola no nívelmédio, o que é o problema da literaturainfantil e infanto-juvenil. Aí é que vaientrar o caso de Paulo Coelho.

O problema com Paulo Coelho não éachá-lo ruim ou bom, nada tenho contraauto-ajuda, mas isto tem a ver com aestrutura midiática da nossa sociedade.

E o meu problema com Paulo Coelhoé a questão de que a auto-ajuda queele escreve destina-se a leitores comsete anos de idade mental, sem contara total falta de originalidade. É sóabr i r qua lquer compi lação dasreligiões e lendas populares para verde onde e le as ex t ra i . En tão sepercebe que e le não é um au tororiginal, copia coisas já escritas.Temos o problema do infanto-juvenil,que é muito sério, que vai reduzir oespaço da boa l i te ra tura para osnossos adolescentes. No Rio não hámais lei tura em escola, porque osprofessores dão apenas �l i teraturainfanto-juveni l�. Acho um absurdocons iderar que es te se ja o ún icomater ia l a se dar ao adolescente.

novos caminhos da literaturabrasileira contemporânea

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Devemos dar a eles os grandes clássicos.

Um dos problemas da banalidade damensagem da mídia é a infantilização dopúblico, porque a boa literatura é adulta.Isto não quer dizer que não se tenha bonstextos infantís contemporâneos, mas achoque a literatura interessa mesmo paratrazer questões que são da nossa vida enão uma coisa que não vai fundo emtodos os problemas.

O DECLÍNIO DA VIDA LITERÁRIAPrimeiro, temos uma relativização dolugar da ficção no contexto da culturae da leitura; segundo, esse mercadoque se torna avassalador e que moldaa produção textual.

A partir de um certo momento, umanova geração de escritores busca umaeficácia narrat iva e sobretudo apossibilidade de que seu livro possa seradaptado para cinema e televisão.Nada contra isso, mas comoapaixonado pela palavra verbal eescrita, neste momento estou muitointeressado em identificar o lugar daarte verbal e escrita.

Então, nessa moldura que cria arepresentação de declínio literário nos anos80, vamos ter um xeque-mate,instaurando-se o fim de uma vida literária.Porque não existem mais os espaços desocialização do escritor que havia até então.

Meu novo projeto será uma retrospectiva,um balanço da vida literária dos anos 70até agora. É um projeto que tenta contara história de uma morte, da morte davida literária, da morte dos espaços desocialização, dos periódicos, do jornalcomo um pólo aglutinador. Por um lado,o que vai acontecer nos anos 80 é que auniversidade toma conta do espaçoliterário, por outro, o espaço literárioboêmio, dos encontros em bares, ou daslivrarias, ou dos encontros pessoais e atésexuais entre os escritores - Ginsbergdizia que a poesia americana era umatransmissão de bastão de cama em cama� enfim, a questão da vida literária, dacrítica polêmica vai desaparecendo. Sehá um novo cenário se armando, comocrítico e como escritor vou me situar nestenovo cenário, então o que seriam osespaços deste novo cenário?

COMPUTADOR E ESCRITAEm primeiro lugar, mais uma vez asteorias apocalípticas fracassam. Ou seja,aquela idéia da civilização da imagem,da civilização midiática, da civilizaçãotécnico-industrial, uma civi l izaçãoprimeiramente cinematográfica, depoistelevisual e hoje capilar � a rede, acivilização virtual. São três momentoshistóricos daquilo que os apocalípticos� para usar uma expressão do UmbertoEco � disseram, que iria acabar a culturaalfabética, a cultura escrita, de onde nós,

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escritores e admiradores dosescritores, nos alimentamos. E se acultura escrita se torna secundária erelativizada, como ficou evidenciadonos anos 80, nós estamos perdidos.

Vamos ter que nos entregartotalmente à cultura da imagem? Nãosei. Este momento atual, que euchamo de momento capilarizado, seconcretiza como a era do computadorpessoal. Capilarizado porque ao ladode uma cultura de massa pasteurizadavemos cada indivíduo no seu terminalestabelecendo suas relações em rede.Estruturalmente falando, a cultura docomputador, a cul tura v ir tual , acul tura da rede é um momentoqual i tat ivamente (para usar adialética) diferente da era televisuale ambas são qual i tat ivamentediferentes da era cinematográfica.Agora, quando digo era cinematográfica,era televisual e era virtual, não estoudizendo que elas se superem umas àsoutras, mas que coexistem comocamadas arqueológicas, embora sempreexista uma que define a tendênciapreponderante, e atualmente é apresença capilarizada do computadorpessoal. Acho que as interações culturaisna rede favorecem a leitura e a escrita.Quer dizer, se o cinema era visto comoameaça à leitura e à escrita, se a televisãoera vista como ameaça à leitura e àescr i ta, acho que o computador

pessoal é um favorecimento à leiturae à escrita.

Prevejo que teremos uma crescentegeração de leitores se formando daquipara frente, o que significa que nósteremos o aumento da presença daficção e da poesia no mercado editorialbrasileiro, uma possibilidade criadoramaior para os escritores que estãocomeçando e também um estímulo paraos escritores já estabelecidos e que estãoencontrando um ambiente mais favorável.

O ESPAÇO DA CRÍTICAAcho que o debate intelectual estavameio morno e sinto uma demandacrescente por uma coisa mais polêmica,por colocar de maneira mais aberta naimprensa pontos de vista não apenaspolíticos, como também técnicos.

Se a efervescência é literária, entãodevemos discutir a questão técnica, e estaquestão técnica � se alguém escreve bemou escreve mal � não implica de maneiraalguma ter um catecismo el i t ista,classicizante, no sentido de �quemescreve bem é quem escreve de acordocom as regras de uma escritaantiquada�. Porque eu acho que todasas destruições da linguagem já foramfeitas � sou pós-modernista tambémneste sentido � acho que vanguardismonão tem mais um sentido de rupturade co i sa a lguma, nenhum

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vanguardismo rompe com mais nada;hoje em dia a palavra �vanguardista�pode se referir, no máximo, à pesquisae experimentação perfeitamentefuncionais dentro da ordem geral dascoisas. O anti-convencional tem quaseum papel convencional, este é o pontode vista cético-ativo, que é mais queum criticismo de tipo negativista oudialético. Eu registro aqui que há umanova vida literária que nasceu com essanova geração - uma vida literária virtual.

CECÍL IA SALLESENTRE CRÍTICA E CRIAÇÃOMinha pesquisa gera um tipo de críticasobre o processo de criação, daí o nomeCrítica Genética - uma crítica da gêneseda obra. A Crítica Genética nasceu, comeste nome, na França nos anos 60.Fazemos um acompanhamentointerpretativo do processo de construçãode obras a part ir dos documentosdeixados pelo artista. Nosso objeto depesquisa é todo registro que o artistafaz ao longo do percurso de criação:diários, anotações e rascunhos.

O ponto de partida destas pesquisasé a obra, na medida em que nos atraide algum modo. E por esse motivotemos o interesse de pesquisar comoo objeto estético é construído. Masesta visão põe em questão a perfeiçãoda versão entregue ao público, quepassa a ser um momento do processo.

É oferecida, assim, uma perspectivaprocessual para a obra.

Os críticos genéticos convivem com aintimidade da criação; deste modo, ojulgamento crítico ou estético é vistosob outra perspectiva. A questão dojulgamento passa a ser focalizada sobo ponto de vista do autor: como o autorvai tornando aquela obra em construçãopassível de ser entregue ao público.Acompanhando este percurso, nãoestamos valorando esteticamente aobra, nem cada momento do processo.Não são os nossos princípios estéticosque estão sendo explicitados, masaqueles que o artista busca naqueleobjeto em construção.

Vejo a crítica genética e a crítica de artecomo complementares. Temos objetose propósitos próprios. Nos aproximamosda obra de arte por caminhos diversos enos reencontramos na tentativa de suamelhor compreensão. Tenho percebidoque a poética contemporânea, emmuitas de suas manifestações, faz doprocesso a materialidade de suas obras;então esse instrumental teórico sobre omovimento oferece um modo de se olharpara esses modos de expressão.

A IMPORTÂNCIA DOS ARQUIVOSOs arquivos são extremamenteimportantes para a Crítica Genética,porque nossa pesquisa depende dos

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arquivos existentes e da formação denovos. Arquivistas e críticos genéticosprecisariam fazer um trabalho emconjunto. Teríamos que pensar em formasde organização de modo a refletir omovimento do processo criador � semsegmentar, por exemplo, a documentaçãode um percurso específico.

Venho percebendo que os documentosdesempenham duas funções básicas noprocesso criador: armazenamento eexperimentação. O artista encontra osmais diversos meios de armazenarinformações, que atuam como auxiliaresno percurso de concretização da obra,e que nutrem o artista e a obra emcriação. O ato de armazenar é geral; noentanto, aquilo que é guardado e comoé registrado varia de um processo paraoutro, até de um mesmo artista.

Há registros de armazenamento deinformações em diferentes linguagens.Percebe-se, portanto, que há umaintersemiose - uma mistura dediferentes l inguagens dentro dadocumentação. O armazenamentoaparece em diários, anotações, fichas,todo t ipo de registro de pesquisa,biblioteca do autor, anotações nos livros- vemos o que o artista destacou noslivros que junto com suas anotaçõesmostram os livros mediados por ele.

A outra função desempenhada pelos

documentos de processos é a de registrode experimentação, deixando transparecera natureza indutiva da criação. Sãodocumentos privados que acompanhamo movimento da produção de obras comoregistros da experimentação: tentativasde obra. Acompanhamos a experimentaçãoartística em rascunhos, estudos, croquis,plantas, esboços, roteiros, maquetes,copiões, projetos, ensaios, contatos, story-boards. A experimentação é tambémcomum, as singularidades surgem nosprincípios que direcionam as opções.Às vezes não é tão nítida essa diferença,existem tentativas de obra guardadas numdiário, por exemplo. Todo tipo de materialnos interessa. Quando fazemos a pesquisatemos que saber fazer as relações entreestes documentos. Ter essadocumentação em mãos significa quetemos índices do processo, não o processo.Há muita obra em construçãoindependente de registro. Mas é claro queestamos mais próximos do processo,do que nos casos de pesquisas sobre oato criador que não têm acesso a essesdocumentos.

DA LITERATURA PARA OUTRASARTESA crítica genética nasceu na literatura.Meu primeiro trabalho também foinessa área (o processo de criação deNão Verás País Nenhum, de Ignáciode Loyola). Como estou alocada emum programa de pós-graduação

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in terd i sc ip l inar, a pesqu isa fo i ,necessariamente, se ampliando paraa lém dos l imi tes da pa lavra . Namedida em que existe documentaçãoem todos os processos, a abordagemsemiót ica poss ib i l i tou anal isarmosprocessos cr ia t ivos de outrasmanifestações artísticas. Passamos adiscutir as artes em uma perspectivaprocessual, abrindo espaço para sepensar os fenômenos comunicativosem sentido amplo, assim como asrelações entre ciência e arte.

Nossas pesquisas têm chegado aresultados bastante interessantes, não sósobre autores específicos mas, também,no que diz respeito a aspectos gerais dacriação. Os estudos de caso geraram umapossível morfologia da criação expostano livro �O Gesto Inacabado � Processode criação artística�.

NA CRÍTICA GENÉTICA,AS MARCAS DO CONTEMPORÂNEOUma das marcas do Centro de Estudosque coordeno é trabalhar com autoresda arte contemporânea. Acompanharmuitos de seus processos de criaçãogera um respeito imenso pela buscados artistas - respeito pelas paixões,envolvimento, trabalho, crenças postasem dúvida, dif iculdades a superar.Aquilo que faz o artista deixar de fazertodas as outras coisas para ficar aliproduzindo em imersão total.

Percebo que há muitos projetos poéticosem processo, nos quais as pessoasacreditam passionalmente. Procuram,incansavelmente, modos de concretizá-los. Isso é algo que nos move comopesquisadores da arte contemporânea.Há uma grande divers idade demanifestações art ís t icas. Talvez adificuldade da crítica seja de nomeartudo isso e definir contornos a partirde parâmetros da história da arte.Outro fato observado em relação à artede nossos dias é que muitos artistas estãoatuando em mais de um meio, como oescritor que escreve livros, roteiros epeças de teatro. Não se trata de umacaracterística de um artista; no momentojá se poderia falar de uma tendência daúltima década. Nosso papel como críticosé entender o que está acontecendo, éabandonar muitas de nossas crenças ecertezas para poder compreender eexplicar a arte que estamos vendo nascerdiante dos nossos olhos.

Há muitos trabalhos cr í t icosinteressantes feitos na universidade; noentanto, sabemos também dasdificuldades que os textos acadêmicosoferecem por serem fechados nasteorias que os sustentam. Nós,pesquisadores, precisamos adequarnosso discurso para o público não-especializado (sem abrir mão do rigorcientífico) e assim encontrar meios dedivulgação de nossos trabalhos.

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Edição do texto por Márcia Denser, escritora epesquisadora da Equipe Técnica de Pesquisas deLiteratura.

Ítalo Moriconi é professor doutor do Departamento deLiteratura e Cultura Brasileira e Teoria da Literaturada UERJ, organizador das antologias Os Cem MelhoresContos Brasileiros do Século (Rio, Objetiva, 2000) eOs Cem Melhores Poemas Brasileiros (Rio, Objetiva,2001), sendo a primeira um best-seller nacional, eambas incluídas nas listas dos mais vendidos. Moriconitambém é autor de A Provocação Pós-Moderna �Razão Histórica e Polít ica da Teoria Hoje (Rio,Diadorim-EdUERJ, 1996) e Ana Cristina César, osangue de um poeta (S.Paulo, Relume-Dumará, 96).

Cecí l ia Almeida Sal les é professora doutora ecoordenadora do Centro de Estudos de Crít icaGenét ica do Programa de Pós-Graduação emComunicação e Semiótica da PUCSP, é editora darevista Manuscrítica, autora de Crítica Genética: uma(nova) Introdução (S.Paulo, Educ, 2000) O GestoInacabado (São Paulo, Anablume, 2001) e Umacriação em processo: Ignácio de Loyola Brandão e�Não Verás País Nenhum�.

1 Conforme pesquisa feita no Idart para o anode 1987, registra-se a vendagem recorde do livroDiário de um Mago, de Paulo Coelho, paraleloao desaparecimento das obras de ficção dequalidade das listas dos mais vendidos, verCronologia das Artes em São Paulo � 75/95,São Paulo, 1996.

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IDART - QUAIS SÃO AS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

PARA DISCUTIRMOS O DESIGN NO BRASIL HOJE?A L E X A N D R E W O L L N E R - O designbrasileiro existe predominantementecomo uma atividade colonial de produtosde alta tecnologia que vêm de fora esão assimilados rapidamente por nós.Não há um trabalho no sentido de obteruma tecnologia mais apropriada paraas condições humanas hoje.

O Renascimento estudou a relação dohomem com o espaço, com seu entorno.Nessa época as cidades eram muitopequenas e os espaços existentes nasaldeias eram ínfimos. Quando uma igrejaera projetada, por pequena que fosse,existia uma proporção dessa igreja emrelação à praça em que era construída.A nossa praça Roosevelt, por exemplo,não causa nenhuma sensação agradávelpara quem a freqüenta, parece que nãofoi construída para o homem, para queserve então? Nesse sentido oRenascimento ainda não chegou aqui.

Em 1972, o ministro Delfim Neto trouxe

um grupo de japoneses para visitar umaexposição industrial no Anhembi,especialmente voltada para o compradorestrangeiro. Vieram comitivasinternacionais inclusive da Alemanha e doJapão. O grupo japonês questionou: �Oliqüidificador é parecido com o daKenwood, a geladeira com a da Coldspot,tudo muito bem fabricado, mas e odesign?� Então, o Delfim Neto percebeuque para exportar precisava de algo alémda tecnologia, era necessário ter design,a parte analógica do produto.

A partir daí, foi organizado um grupo deestudos do qual participei, na época comopresidente da ABDI, AssociaçãoBrasileira de Desenho Industrial. Fui parao Japão juntamente com AlessandroVentura para participar do CongressoInternacional das Sociedades de DesenhoIndustrial com a finalidade de realizá-lono Brasil e assim, fomentar a profissão.Conhecemos muita gente e o Canadáme convidou oficialmente para visitar oMinistério da Indústria e Comércio assimcomo o Design Center. Fiz um curso degerenciamento de marcas em Torontocom Marshall McLuhan1 e Alvin Tofler2

e voltei para o Brasil. O governoterminou, o projeto foi engavetado e ogoverno seguinte não deu continuidade.

Em 2001, o pres idente FernandoHenrique Cardoso chegou a dizer queprecisávamos exportar produtos

a importância do design para odesenvolvimento industrial brasileiro

depoimento de Alexandre Wollner

lexandre Wollner esteve à frentede todas as atividades ligadas aodesign inclusive na implantação da

primeira Escola Superior de DesenhoIndustrial no Rio de Janeiro, ESDI. Emp lena a t i v i dade Wo l lne r é uma dasprincipais referências do design brasileiro.

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i ndus t r i a i s compat í ve i s com aconcorrência internacional em apenas16 meses. Mas isso demora no mínimode cinco a dez anos, depende de umasérie de coisas, inclusive de mudar asleis de incentivos.

Para se ter uma idéia, a castanha de caju,por exemplo, é um produto nosso. A Índiatem 1500 patentes de uso industrial sobrea castanha de caju. O Brasil não temnenhuma. Nós produzimos o café, masos italianos desenvolveram uma indústriaque faz desde xícara, até máquinas decafé expresso. Eles compram café baratoe exportam café caro. A Coréia do Sul,só no ano de 2000, entrou com 5000patentes nos Estados Unidos e o Brasilsomente com 100.

Isso acontece porque nós não temosuma cultura industrial de exportação,onde naturalmente o comércio e astrocas é que determinam o nível de vidadas pessoas. O processo industrial é aalavanca da cultura do design, seja elevisual ou industrial.

IDART - DENTRO DESSE PANORAMA, QUAL A

IMPORTÂNCIA DA DOCUMENTAÇÃO?AW - Não sei como o brasileiro fazhistória, não há documentação. Nós nãocultivamos uma memória. Eu não tenhoreferência sobre onde estão asmemórias e acredito que o brasileirocomum também não tenha. Nesse

sentido, os americanos sabem maissobre nós. Na biblioteca de Washingtoné possível conseguir praticamente tudode importante que está acontecendono Brasil. Estou escrevendo um livro eprecisava de uma fotografia que saiunum jornal do Rio de Janeiro que foifechado. É uma luta descobrir onde estáesse acervo.

Algumas sementes já foram lançadas noIDART, mas é preciso estruturá-las. Opesquisador deve estar preparadoculturalmente, ter critérios de análise esaber avaliar a produção do design hoje.No Brasil, a crítica não é muito difundidapor causa do corporativismo dasprofissões; se não houver uma troca, umdiálogo entre o que fazemos de erradoou certo, as coisas não saem do lugar.

IDART - DIANTE DA AUSÊNCIA DA CRÍTICA, QUE

PARÂMETROS DEVEMOS USAR PARA JULGAR UM

BOM TRABALHO?AW - Primeiro é necessário analisar osparâmetros de função, e função não serefere apenas à tecnologia, mastambém à estética. A estética faz parteda função. Em geral, quem pensaunicamente na forma não chega acompletar a função. O objet ivo édesenvolver um produto que o homempossa usar sem se sentir agredido eque faça parte da sua vida. É precisotambém ter uma formação culturalsólida para analisar o que realmente é

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válido. Às vezes, eu mesmo tenhodúvidas. Não se pode decidir por si só,é preciso discutir com as pessoas esaber o que está acontecendo de novo.

Hoje está na moda fazer �instalações�,isto é, simplesmente pendurar um fio deuma ponta a outra e colocar um bueiroembaixo. Então, que significado tem isso?O que me dá de informação e formação?É isso que tem que ser pensado.

Os italianos estão fazendo chaleiras numformato triangular que assobiam quandoa água ferve. Embora seja linda demorrer, não funciona porque possui umatampa com ponta muito pequena quecai em cima da xícara.

A Lina Bo Bardi mostrou, nos anos 70,uma exposição maravilhosa chamadaA Mão do Homem Brasileiro. Foi umaexposição pouco documentada, eencontrada em revistas antigas, comoa Habitat. Essa exposição mostrava acr iat iv idade do brasi le iro. Temoshabilidade e inteligência, só que nãosomos motivados a desenvolver isso,industr ia lmente fa lando. Tem umahistória de um grande empreendedoritaliano que foi para Finlândia e viu umfaqueiro com um desenho fabuloso.Perguntou quem é que fabricava e quiscomprar o direito de levá-lo para Itália.O faqueiro não obteve sucesso porqueo garfo t inha uma ponta curta e,

como o espaguete é o prato principaldo i t a l i ano e não o pe ixe , nãocumpria sua função na Itália, emborafuncionasse muito bem na Suécia ena Finlândia.

Voltando ao Renascimento, como amaioria da população era analfabeta,os a r t i s ta s , a ped ido da ig re ja ,pintavam a cruci f icação de Cristoquadro a quadro, para que as pessoaslessem essas cenas. Os quadros eramobras de arte que participavam docontexto, estavam visivelmente clarose func ionavam inc lus i ve no seucromatismo no interior de uma igreja.

Nós precisamos de todos os elementosde que dispomos para envolver aspessoas dentro do contexto de umafunção específica. Não se pode fazercoisas gratuitas e chamar isso de arte.Arte é uma coisa muito séria e difícilde fazer.

IDART - NESSES TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

É IMPORTANTE QUE O DESIGN BRASILEIRO

TENHA UMA IDENTIDADE?AW - O design visual brasileiro já temalgum reconhecimento internacional,mas o desenho industrial infelizmentenão existe no Brasil. Há milhares depessoas sendo formadas em designindustr ia l , mas para fazer o quê?Móvel de papelão, móvel para o rei,aquele que você fabrica um só,

a importância do design para odesenvolvimento industrial brasileiro

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artesanalmente? O design industrial não éartesanal, trabalha com a criação deequipamentos, de máquinas e de novastecnologias.

Eu sou conhecido como um designerbrasileiro, e não como designer da culturabrasileira, ou seja, do exótico. Tenho 73anos de idade e durante todo esse temposofri influência da minha formação escolar,dos livros que li, dos cartazes que vi e dosfilmes a que assisti. Toda a minha culturatem grandes influências européias eamericanas. Aloísio Magalhães, que todomundo conhece, viveu no Recife dentrode um contexto de cultura brasileira. Aquiem São Paulo não existia isso. Conheçoum designer alemão que mora em SãoPaulo e pediram para que fizesse umproduto brasileiro. Ele fez uma lumináriade mesa e pendurou uma pena de índio.Isso não quer dizer que é design brasileiro.

Já o italiano tem uma grande culturaartesanal e essa tradição continua até hoje,inclusive na indústria. Lá também temmuitos �Campanas�. São móveiscaríssimos que só o rei poderia comprar.A Revolução Industrial acabou com isso enós não devemos voltar a fazer objetos sópara pessoas com grande poder aquisitivo.

IDART - A UNIFORMIZAÇÃO DAS MARCAS É ALGO

QUE VEM ACONTECENDO COM CERTA CONSTÂNCIA

AQUI NO BRASIL, PRINCIPALMENTE NO CASO

DO BRADESCO, DA INTELIG, DA NIKE. O QUE

VOCÊ ACHA DESSA PADRONIZAÇÃO?AW - Todo processo é assim; copiamospraticamente tudo o que os americanosfazem. Somos colonizados hoje pelaCalifórnia. A Nike fez um elemento queé um bumerangue. Investiram tantonesta marca que basta olhar para elaque você a identifica. Eu até chamei aatenção da Antártica, porque na camisada seleção brasileira foi colocado orótulo da garrafa do Guaraná, sem aadequação de visibilidade necessáriajunto com a Nike , que também épatrocinadora. Nas imagens, a únicaque aparece é a Nike; o rótulo daAntártica ficou imperceptível.

Por outro lado, a Coca-Cola utiliza umaletra do século passado e atualiza suamarca constantemente e de maneirasutil. Ela não poderia ser feita comoantigamente, usando a tecnologia deimpressão que temos hoje. Precisamosatualizar a marca e adequá-la ao meio.

A tendência das indústrias com seusdesenhos originais é adequar suasmarcas para os novos veículos decomunicação e as novas mídias. Amarca da Natu ra , empresa decosmét icos , va i mudando sempreporque não é muito bem resolvida.Já a IBM não muda. Não que suamarca seja ótima, mas porque temuma consistência e representa umaqualidade.

a importância do design para odesenvolvimento industrial brasileiro

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IDART - COMO ESTÁ O ENSINO DO DESIGN HOJE

E ONDE É POSSÍVEL ENCONTRAR O NOVO?AW - A Indústria não se relaciona coma universidade. Então que t ipo det re inamento é poss íve l fornecer?Quem são os professores dessasescolas de design? Qual a tarimba queeles têm? Eu, talvez só depois de 50anos de profissão, pudesse ser umgrande professor.

A formação de um profissional dedesign é naturalmente art ís t ica etécnica, ou seja, analógica e digital.Usamos o lado direito e esquerdo docérebro com o mesmo equilíbrio, nãopodemos desenvolver só o lado artísticonem tampouco só o técnico. Se odesigner for artista, ele é um pintor,um gravador, um desenhista e exerceum tipo de função. Se não, então éum técnico, um engenheiro.

Na minha opinião não existe um esforçono sentido de melhorar o nível e acondição cultural do nosso país. OMinistério da Educação está planejandosegmentar a atividade do design. Comonão temos uma cultura industrial detecnologia avançada, de pesquisa, estãopropondo o seguinte: o aluno podecursar dois anos de des ign demaquiagem, dois anos de design dejóias, dois anos de design de padaria esair com o diploma de designer, ou seja,o design virou moda.

O design é uma atividade tão nova quecaminha mais rápido que as instituiçõesde ensino. Se o MEC hoje querfragmentar o design é porque primeironão o entendeu, segundo porque sabeque não há possibilidade nenhuma deassimilar os milhares de estudantes queestão se formando.

Não se pode fazer uma escola de designdentro da estrutura acadêmicatradicional, porque é uma profissão queainda tem um certo ideal ismo. ABauhaus foi construída assim, lutoucontra as instituições de Belas Artes eArtes e Ofícios que existiam naquelaépoca, inclusive contra o Van de Veldeque era diretor da Escola de ArteAplicada. A Bauhaus foi uma escolaque inovou o s istema pedagógicounindo artesãos e artistas, para juntosdesenvolverem produtos adequadospara o homem.O Ministério da Educação do Brasil nuncaaprovaria esse sistema pedagógico. Oartesão não tem curso científico, nãopode fazer uma escola dessas, queprofessor vai dar aula? O professor temque ter doutorado, imagina... doutor emdesign! Não existe no mundo nenhumdesigner doutor, a não ser filósofos eteóricos que estudam nossa atividade.Já fizeram até teses em tipografia, porémnenhum tipógrafo foi convidado parafazer parte da banca examinadora.Dentro desse contexto não dá para fazer

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um curso como a Bauhaus. É precisoreunir um grupo de 10, 20 ou 30idealistas, fazer um núcleo e não pensarem diploma. Aceitar as pessoas quetenham um grau de conhecimento ehabilidade para freqüentar esta escola.

O Zanine Caldas, por exemplo, foi umgrande arquiteto e não tinha diploma.Le Corbusier também não. Então, comoé que ele pode entrar dentro de umcontexto acadêmico? Não pode. NoBrasil, a primeira escola oficial dedesign foi a ESDI, no Rio, idealizadafora do sistema universitário; funcionoupor 10 anos aproximadamente, até aentrada dos vestibulares, quando foiincorporada pela UERJ. O objetivodessa escola era implantar o conceitode design para os empresários e paraa nossa cultura.Sobre a outra questão, o que estáacontecendo de novo é o processo deglobalização. Hoje, com as fusões deempresas ocorrendo de forma tãodinâmica, está se quest ionando avalidade de se fazer uma identidadevisual apropriada. Só para citar umexemplo, a indústr ia farmacêut icaGeigy se uniu com a Basf. Essa novaempresa é a Geigy ou a Basf. Qual arepresentação que ela vai ter?

No Brasil, a indústria Klabin se uniu aKimberly-Clark. Como essa marca devese desenvolver? É um comportamento

novo das indústrias cuja tendência éterminar com as marcas ilustradas. Nãopode ser a mesma marca que foidesenvolvida até hoje.Por isso, o estudante de design tem queconhecer ciência e tecnologia, além dainformação cultural. Tecnicamente, eleprecisa estar antenado com o que estáacontecendo no mundo porque, o meiode atuação do design se expandiu, nãoé mais papel e futuramente não serámais computador.

IDART - AS EXPOSIÇÕES LIGADAS A DESIGN ESTÃO

APRESENTANDO CADA VEZ MAIS A TENDÊNCIA PARA

A PEÇA ÚNICA, O QUE SE AFASTA DA IDÉIA DO

DESIGN COMO DESENHO INDUSTRIAL. COMO VOCÊ

VÊ ISSO?AW - Aqueles que enveredam pelocaminho do design, na sua maioria,fazem coisas efêmeras, caras. Aparecemem colunas sociais e em museus. Diantedesse quadro, o que é possível fazer?Quem compra e quem convive com issoé que deve avaliar. Tem que existir umaformação de público, e cabe aos museuse centros culturais proporcionar essaformação, fazer exposições de todo tipode design, porque é mostrando coisasruins que as boas aparecem.IDART - COMO ESTÁ A COMUNICAÇÃO DO

DESIGNER COM OS DIFERENTES SEGMENTOS

SOCIAIS?AW - O grande problema do designerquando sai da universidade é explicaraos empresários seu trabalho, porque a

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maioria deles ainda não sabe. Quandoele encomenda uma �logomarca�, queé uma palavra errada, está crente quevão ser apresentadas muitas propostas.Eu, quando mostro uma única idéia evários módulos de aplicação, ele nãoentende nada; então, primeiro é precisoexplicar o que é design e como eutrabalho. O mercado coloca à disposiçãotodo tipo de designer, inclusive aqueleque oferece marcas ao preço de cemreais e apresenta cinco soluções para ocliente escolher. E eu falo sempre quequanto mais designers ruins houver nomercado, mais o meu trabalho évalorizado. A própria ADG � Associaçãodos Designers Gráficos - tem dez, quinzedesigners bons e centenas que sabemmexer no computador.

O design se comunica erroneamenteno Brasil através de colunas sociais enos cadernos culturais, quando naverdade deveria ser divulgado nasrevistas destinadas a executivos. Osdesigners, ao invés de só fazeremconferências e palestras nas escolas deBelas Artes, deveriam também fazerna Fundação Getúlio Vargas e em outrasescolas desta área.

Entrevista coordenada e editada pelas pesquisadoras ClaudiaLameirinha Bianchi e Marcia Marani da Equipe Técnica dePesquisas em Artes Gráficas e Desenho Industrial.Edição final em colaboração com a pesquisadoraAna Lúcia Ribeiro Lupinacci.

Alexandre Wollner é pioneiro do design no Brasil emquase meio século de atuação. É responsável pelaidentidade visual de diversas empresas como MetalLeve e Banco Itaú, além de instituições culturais comoMAC e Cinemateca. Participou da criação do Idart efoi destaque da revista D�ART nº5.

1 Professor e teórico canadense dos meios decomunicação, autor dos livros O meio é a mensagem:oinventario dos efeitos e Guerra e Paz na Aldeia Global.2 Escritor norte-americano Alvin Tofler, autor deChoque do Futuro e A Política da Terceira Onda.

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No decorrer do ano 2000, realizamos umapesquisa sobre a produção da ficção nocinema e na televisão na França,contemplando inicialmente três aspectos:o econômico, o profissional e a perspectivahistórica. O material levantado revelou que,em todos esses níveis, a interligação entrecinema e televisão é uma característicada produção ficcional nos últimos vinteanos. Esta pesquisa foi beneficiada pelaextensa quantidade de trabalhos em tornodo tema, realizados no âmbito acadêmicopor sociólogos e economistas. Outro fatorimportante foi o grande número depesquisas institucionais encomendadaspelo governo francês, quase todasconduzidas por equipes de pesquisadoresacadêmicos que atuam na área � portantode alta qualidade �, a que tivemos acessopor consultas aos arquivos de LaDocumentation Française, do INA (InstitutNational de l�Audiovisuel), na BNF(Bibliothèque Nationale de France) e doCNC (Centre Nationale de Cinéma) na BIFI(Bibliothèque du Film).

A partir dessas fontes pudemos enfocar

a ficção audiovisual francesano cinema e na televisãoJosé Mário Ortiz Ramos

várias dimensões da produção, comoos custos envolvidos, a pol í t icafinanceira das empresas, os esquemasde parceria, os subsídios e osfinanciamentos. Na França, nas esferasdo cinema e da televisão, o Estadodesempenha um papel preponderante,atuando tanto no âmbito da produçãoquanto da circulação. Neste item, umaspecto central é a estreita ligação quese estabelece no campo econômicoentre o cinema e a TV, e que se constituino traço característico da indústria daficção audiovisual francesa.

No domínio dos aspectos profissionaisda produção conseguimos recuperara dinâmica do campo a partir da redede profissionais envolvidos, enfocandoos pr incipais setores e como elesoperam em conjunto. Nos detivemosparticularmente sobre a relação entreos roteir is tas, os real izadores e apolítica das cadeias de televisão oudas produtoras c inematográf icas .Nesta área reencontramos mais umavez a inter l igação entre c inema etelevisão no domínio da ficção, bemcaracterizada pelo modo de atuaçãodos prof i ss iona is , cada vez maisdes terr i tor ia l i zados entre os do isuniversos.

UMA PERSPECTIVA HISTÓRICADA PRODUÇÃONossa intenção foi recuperar como

televisão e o cinema internacionaisestão cada vez mais interligados. Aexemplo do que acontece na França,

uma parceria mais efetiva entre a televisão e ocinema no Brasil poderia melhorar o nívelde programação da nossa TV e fortalecer aindústria cinematográfica nacional.

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se const i tu iu um campo f icc iona lfrancês no cinema e na televisão,considerando que a trajetória destesuniversos e a história da formaçãodos campos como um e lementocent ra l para compreendermos ass ingu la r idades de sua presenteorgan ização, vêm a ser um dadofundamenta l numa aná l i secompara t i va . Um exemplo doresultado deste tipo de pesquisa podeser fo rnec ido por uma ráp idareconstrução da história da f icçãofrancesa na te levisão, extraída domaterial reunido para um estudo quees tamos desenvo lvendo, ondecomparamos a h i s tór ia da f i cçãotelevisiva na França com a históriada ficção televisiva no Brasil.

A primeira experiência de produçãono campo da f icção, em torno dofeuilleton, foi realizada em 1984 peloCanal + , primeira TV paga francesa,no mesmo ano em que a emissoraent rou no ar. Até en tão , aprogramação de ficção televisiva eraimportada. É importante sal ientarque a década de 1980 assinalou aexpansão da televisão na França, como crescimento dos canais privados, nummomento em que o processo deglobalização se tornava visível1 . Naquelaocasião, a indústria televisiva brasileirajá estava consolidada. O aparecimentotardio no contexto globalizado vai marcar

a singularidade da história da ficçãotelevisiva francesa.

O modelo escolhido para Rue Carnot, oprimeiro feuil leton, trazia algunsingredientes da soap opera americana,mas o seu formato final estava maispróximo da telenovela brasileira. Com200 capítulos, de 26 minutos cada,difundidos cotidianamente de segunda asexta, às 18h45, a produção não foi bem-sucedida. A segunda experiência doCanal +, com 26 episódios naprogramação matinal, também nãofuncionou. A equipe de produçãopercebeu que o telespectador francêsestava cada vez mais habituado a umsistema de multidifusão, cujos princípioseram totalmente opostos aos encontroscotidianos com hora marcada, que seestendiam por um longo período, quecaracterizavam o formato das soap operase da telenovela2 . Em conseqüência, apartir do final 1986, começa adesaparecer progressivamente da gradede programação das emissoras francesasa ficção em série com difusão diária,inclusive as telenovelas compradas doBrasil como A Escrava Isaura e Dancin�Days. Mesmo as minisséries, como assuperproduções norte-americanas daHBO, não conseguem alcançar uma boaaudiência3 .

A partir desses insucessos, a televisãofrancesa começa a encontrar, em 1986,

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o formato de sua ficção, através dostelefilmes e das séries, e a investir altassomas nessas produções, visando omercado mundial e obtendo um sucessoconsiderável no empreendimento. Omodelo são as séries americanas e osfilmes feitos para televisão desenvolvidospela TV inglesa e pela HBO norte-americana. Ainda no ano de 1986, af icção passa a ocupar 25% daprogramação total das emissoras,assinalando uma alta de 45 % comrelação ao ano anterior, com as sériese os telef i lmes aparecendo comoformato ascendente4 .

Os te lef i lmes desde então vêm seafirmando como o carro-chefe que,eventua lmente , no caso dassuperproduções , podem serapresentados em a té qua t roepisódios, num sistema de produçãointernacionalizado, de co-produçãodas emissoras f rancesas com aseuropéias, combinando o s i s temacinematográfico com o televisivo5 . Ocus to méd io de um te le f i lmeatualmente é de 1 milhão de dólares,e o de uma superprodução, como aLa Traviata (2000), é de 10 milhõesde dólares. Os grandes investimentossão vendidos antecipadamente nomercado global , funcionando comsistema de exibição exclusiva em pré-es t ré ia mundia l . La Trav ia ta , porexemplo , fo i comprada para

transmissão em avant-première por125 países.6

Na década de 1990, a França jácontava com uma indústria sólida deficção audiovisual televisiva, de altaqualidade, em razão de sua estreitaligação com o campo cinematográfico,de onde importa técnicos, roteiristas egrandes estre las como GerardDepardieu e Carole Bouquet, quegarantem a audiência internacional doste lef i lmes7 . Para dar uma noção daextensão desse mercado, mencionamosque, em 1996, foram realizadas 968

ficções televisivas e, em 1997, temosum registro de 1049 , que circulam cadavez mais no mercado europeu e nocircuito globalizado, mas ainda comsérias dificuldades de penetração nomercado americano10 .

UMA LEITURA DA PRODUÇÃO SOB APERSPECTIVA DOS GÊNEROSAtravés dos gêneros podemos enfocarespecificidades do produto audiovisual,que as abordagens fundadas inteiramentenos índices econômicos e nos númerosdas bilheterias e audiências nãoconseguem dar conta.

Os gêneros são globalizados, mas asespecificidades locais estão presentes eaparecem na forma como cada culturaaudiovisual os constrói a partir de seurepertório de tradições específicas (que

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é sempre híbrido). Existem gêneroshegemônicos, gêneros emergentes egêneros arcaicos. Outro aspectoimportante na produção e na recepçãoda ficção audiovisual é a questão doformato: série, telefilme, telenovela; outempo de duração/número de capítulos;(mais closeds, externas, estúdio, etc).

Um exemplo vem a ser o desempenhodas bilheterias do cinema francês nosú l t imos 30 anos . Graças aosinvestimentos, aos incentivos públicose às parcer ias com a te lev isão, aindústria cinematográfica francesa,desde o final da década de 1990,vem conseguindo boas performancesnum mercado até então dominadope las produções de Hol lywood 11 .Uma análise mais cuidadosa revelaque a par t i r do inves t imento emalguns gêneros tradicionalmente fortesé que es te c inema começa suaascensão12 . Em 1988, Luc Besson éo segundo co locado no mercadonaquele ano com a melhor bilheteriaaté então conseguida pelo cinemaf rancês : 9 .064.300 ent radasvendidas. A produção é Le grandbleu, em torno do mundo submarino,um gênero que já fazia sucesso nate lev i são com os programas deJacques Cousteau. Em 1986 e em1990, as adaptações literárias - umgênero tradicional francês - dirigidaspor Yves Robert, com desempenhos

menos espetaculares que Le grandb leu , consegu i ram as pr ime i rasl ideranças no mercado. Em 1986,Jean de F lo re t t e e Manon dessources , ambos de Yves Rober t ,ocupam o pr ime i ro e o segundolugares, conseguindo passar adiantede Rocky IV. Em 1990, La gloire demon pére e Le château de ma mére,de Yves Robert, ficam com o primeiroe o terceiro lugares. Em segundolugar, ou t ra adaptação l i t e rá r i afrancesa, Cyrano de Bergerac. Ostrês f i lmes conseguiram suplantarnaque le ano superproduções deHollywood como Pretty woman, Ghoste Gremlins I I. Mas o sucesso maisestrondoso ficou por conta de GerardOury, em 1993, com Les visiteurs,um fi lme cômico que encabeçou abilheteria com 13.664.100 ingressosvend idos , ba tendo produçõeshollywoodianas como Aladdin (2º lugarcom 7.278.876) e Jurassic Park (3ºlugar com 6.501.624). Também umcômico, As aventuras de Rabbi Jacob,liderou a bilheteria em 1973 e foi oúnico fi lme da década a conseguiressa façanha.

Se acompanharmos as audiências daprogramação de TV no mesmoperíodo, veremos que o cômico é ogênero que vem consegu indo osmelhores desempenhos. As pesquisasem torno das práticas culturais

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francesas financiadas pelo Ministérioda Cu l tu ra e da Comunicação epubl icadas por La documentat ionfrançaise13 apontam o cômico comoo gênero de ficção audiovisual favoritodos franceses em geral. No Brasil,apesar da quase ausênc ia depesquisas, mas tendo em vista ossucessos de bilheterias conseguidospe los f i lmes dos Trapa lhões �produzidos por Renato Aragão � , ocômico aparece provavelmente comoo gênero mais popular14 .

José Mário Ortiz Ramos é professor doutor doDepar tamento de Soc io log ia do In s t i t u to deF i lo so f i a e C iênc ia s Humanas da Un icamp.Pesquisador e estudioso de cinema, televisão epublicidade sob a ótica da Sociologia da Cultura,tem diversos livros publicados sobre o assunto.

1 Ver Chr i s t i an Brochand , Économie dela té l év i s ion f rança i se , Par i s , Na than -Univers i té, 1996 e Andre Lange e Jean-

Luc Renaud , L �aven i r de l � i ndus t r i eaud iov i sue l le européenne , Un ive r s i t é deManches te r/ In s t i t u t Eu ropéen de l aCommun ica t i on , 1998.2 Ver La fiction française télévisée, inventaire,mutat ions et perspect ives , INA/Carat-TV,1988 e Jacques W. Oppenhe im, �A l arecherche de solutions originales; la fictiontélévisée sur Canal Plus�, Cinémation, dossier:�Les feuilletons télévisés européens�, 1990.3 Ver Noel Nel, �Téléfilm, feuilleton, série,saga, sitcom, soap opera, telenovela: quelssont l e s é léments c lé s de l a sé r ia l i t é?� ,Cinémation , 1990, dossier: �Les feuilletonstélévisés européens�.4 Ver Feui l le ton e t sér ies à la té lév i s ionfrançaise: généalogies, INA/Carat-TV, 1989e �Feuilletons et séries�(dossier), Dossiers del�audiovisuel, no. 16, nov-dec. 1987.5

Ve r Rég ine Chan iac e Jean -P i e r r eJézéque l , Té lév i s ion e t c inéma - l edésenchantement , Pa r i s , Na than/ INA,1 9 9 8 .6 Ver Telerama no. 2629, maio de 2000.7 Jean Mar i e Don iak , Les f i c t i ons a l atélévision, Paris, Dixit, 1999.8 Ve r Cinémat ion , Doss i e r : �Té lév i s ionfrançaise: la saison 1996�, fevereiro de 1997.9 Ve r Cinémat ion , Doss i e r : �Té lév i s ionfrançaise: la saison 1997�, fevereiro de 1998.10 Ver Bernard Lecherbonnier, La télévisionc�est l�art nouveau - le telefilm européen facedu defi americain, Paris, La découverte, 1999.11 Ver Pierre-Jean Benghozi e C. Delage, Unehis to i re économique du c inéma f rança is .Regards croisés f ranco-america ins , Par is ,Harmattan, 1997.12 Ve r Rég ine Chan iac e Jean -P i e r r eJézéque l , Té l év i s i on e t c i néma . Ledésenchan temen t , op . c i t .13 Olivier Donnat, Les pratiques culturelles desfrançais (Enquête 1997), Paris, Ministerio daCultura e da Comunicação/La documentationfrançaise, 1998.14Sobre análise do gênero cômico através dosTrapalhões, ver J. M. Ortiz Ramos, Televisão,publicidade e cultura de massa, Petrópolis,Vozes, 1995.

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Diretora da Divisão de PesquisasSilvana Garcia

Jornalista responsávelEdgard Ribeiro de Amorim � mtb 16893

Conselho EditorialAna Maria Rebouças, Edgard Ribeiro de Amorim,Francisco Coelho, Hugo Malavolta, MônicaJunqueira de Camargo e Silvana Garcia.

Conselho ConsultivoAimar Labaki, Carlos Augusto Calil, EstherHamburguer, Ismail Xavier, Lorenzo Mammì,Nelson Brissac Peixoto, Rubens FernandesJr., Stella Teixeira de Barros, Silvana Garciae Vilma Areas.

ColaboradoresAlexandre Wollner, Cecília Almeida Salles,Christine Greiner, Helouise Costa, Ítalo Moriconi,Ivo Mesquita, José Mário Ortiz Ramos, LorenzoMammì, Mariângela Alves de Lima, NelsonBrissac Peixoto, Nelson Rubens Kunzer, PauloMendes da Rocha, Renato Ortiz, Ricardo Ohtake,Rubens Fernandes Junior, Sonia Salzstein, StellaTeixeira de Barros.

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