Revista da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo

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LEI “MARIA DA PENHA” E LEI DE DROGAS São Paulo, 2007 Ano 1 - Volume 1, nº 1, janeiro/junho 2007

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LEI “MARIA DA PENHA”

E

LEI DE DROGAS

São Paulo, 2007

Ano 1 - Volume 1, nº 1, janeiro/junho 2007

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ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIOPÚBLICO DE SÃO PAULO

Nélson Gonzaga de OliveiraAdriano Ricardo ClaroArthur Pinto FilhoMaria Amélia Nardy PereiraPatrícia Moraes AudeArthur Pinto FilhoRosana Sanches (MTb 17.993)Luís Antônio Alves dos Santos

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“Revista da ESMP”, co-edição ESMP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, é semestral, com tiragem de 3 mil exemplares.

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Revista da ESMP, São Paulo, v. 1, nº 1, 1-200, janeiro/junho 2007

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Escola Superior do MinistérioPúblico do Estado de São PauloR. Minas Gerais, 316 - Higienópolis01244-010 - São Paulo - SP - BrasilTel.: (0xx11) 3017-7776/3017-7777Fax: (0xx11) 3017-7754www.esmp.sp.gov.bre-mail: [email protected]

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Ficha catalográfica elaborada pelaBiblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, 2007

SemestralISBN: 85-7060-206-5 (Imprena Oficial do Estado de São Paulo)

1. Direito - periódicos I. Escola Superior do Ministério Público. de São Paulo

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Apresentação....................................................................................Nelson Gonzaga de Oliveira

I PARTE: Lei “Maria da Penha”

Lei Maria da Penha: Acertos e Erros........................................Camilo Pileggi

Aspectos Polêmicos sobre a Lei n° 11.340,de 7 de agosto de 2006.............................................................Luis Paulo Sirvinskas

Algumas Considerações sobre a Lei de ViolênciaDoméstica..................................................................................Cesar Dario Mariano da Silva

Violência Doméstica: Possibilidade Jurídica da Nova Hipótesede Prisão Preventiva à Luz do Princípio Constitucional daProporcionalidade...................................................................Rodrigo Silva Perez Araújo

O Casal de Militares perante a Lei Maria da Penha(Lei 11.340/06).............................................................................Murilo Salles Freua

II PARTE: Lei de Drogas

A Posse ou Porte de Droga para Uso Próprio Continuará a serCrime após a Vigência da Nova Lei Antitóxicos?....................Cesar Dario Mariano da Silva

Considerações sobre a Causa da Diminuição da Pena Previstano Art. 33, Parágrafo 4°, da Lei Antitóxicos..............................Cesar Dario Mariano da Silva e Pedro Ferreira Leite Neto

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Associação Ocasional (Art. 18, III, da Lei n° 6.368/06)...............Eloísa de Sousa Arruda e Cesar Dario Mariano da Silva

III PARTE: Temas Variados

República e Isonomia...................................................................Eduardo Martines Júnior e Orlando Bastos Filho

Roteiro para Investigação Criminal no Crime de Lavagem deDinheiro.....................................................................................Arthur Pinto Lemos Júnior

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Após dois anos de interrupção, estamos de volta com uma novapublicação da ESMP, agora no formato de uma revista semestral queengloba o antigo Caderno Jurídico (com temas específicos) e a RevistaJurídica (com temas variados), publicados até 2004. Uma vez vencidoo contrato com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, unir essasduas publicações em uma só foi a solução encontrada para baratearmoso custo e mantermos a divulgação de tão importantes artigos para osmembros do Ministério Público.

Nesta edição, dividida em três partes, o promotor de Justiçaencontrará artigos sobre a nova Lei de Violência Doméstica (na primeiraparte) e sobre a nova Lei de Drogas (na segunda parte), que entraramem vigor em 2006 e provocaram inúmeros debates e seminários naCapital e no Interior, promovidos pela Escola Superior do MinistérioPúblico, em parceria com o CAO à Execução e das Promotorias deJustiça Criminais e o CAO das Promotorias de Justiça Cíveis, deAcidentes do Trabalho, do Idoso e da Pessoa Portadora de Deficiência.

O interesse do público nesses encontros e seminários foi tãovultoso que percebemos a necessidade de se produzir material escritorelacionado às exposições, mercê da escassez de doutrina sobre ostemas abordados. Para atingirmos esse objetivo, contamos com acolaboração de Vicente Greco Filho, Luiz Roberto Cicogna Faggioni,Carmen Lúcia da Silva, Ana Luiza Schmidt Lourenço Rodrigues, PauloSergio Puerta dos Santos, Arnaldo Hossepian Salles Lima Júnior,Augusto Eduardo de Souza Rossini, Airton Buzzo Alves, EvelisePedroso Teixeira Prado Vieira, Jurandir José do Santos, Gilson SidneyAmâncio de Souza, Lindson Gimenes de Almeida, Paulo César CorreaBorges nos debates e, ainda mais valiosa, a atenção de Camilo Pileggi,César Dario Mariano, Eloísa de Sousa Arruda e Luis Paulo Sirvinskascomo participantes nos debates e autores do material impresso queagora apresentamos.

Na terceira e última parte da publicação, os promotores deJustiça Eduardo Martines Júnior e Orlando Bastos Filho, ambosprofessores de Direito Constitucional, dão uma verdadeira aula sobreo tema “República e isonomia – licitação e sua inexigibilidade nacontratação de serviços advocatícios pelo Poder Público” e Arthur PintoLemos Júnior, promotor do Gaeco, ensina o caminho para quempretende investigar a lavagem de dinheiro no Brasil.

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Nossos agradecimentos, ainda, aos autores dos demaisestudos que integram a presente publicação, cuja colaboraçãoespontânea mostrou-se essencial para o sucesso dos semináriospromovidos e sem a qual esta Revista Jurídica não existiria.

Finalmente, esperando que a presente publicação tenhautilidade para o desempenho funcional dos promotres e dos demaisprofissionais do Direito, encerro com a certeza de poder contar com acolaboração de todos os colegas em futuras edições de nossa revista.

Nelson Gonzaga de Oliveira, procurador de Justiça,

diretor da Escola Superior do Ministério Público

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Camilo Pileggi,

1º Promotor de JustiçaCriminal de Santana

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LEI MARIA DA PENHA:ACERTOS E ERROS

Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006

A lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, muitoantes de entrar em vigor, trouxe e continua a trazer inúmeras controvérsias e perple-xidades.

Muito se tem discorrido sobre a teoria das penas, sua evolução histórica e suafinalidade.

Iniciando pelas teorias absolutas ou retribucionistas (Escola Clássica), onde aomal do crime, o mal da pena; as teorias relativas ou ecléticas (alguns a denominandoutilitaristas), onde a pena tem que possuir caráter educacional, mas retributivo-educa-cional; e chegando no estágio atual, onde a ressocialização é parte intrínseca da pena.

Vivemos, ao mesmo tempo, o estágio do minimismo, com a mínima interven-ção estatal, quando as forças da sociedade podem resolver as questões criminais demenor complexidade. Vemos, assim, o surgimento dos juízos arbitrais, o envolvimentode organizações não governamentais na ajuda destes pontos conflitantes sociais.

Por tais aspectos, a Constituição Federal, sem seu artigo 98 estabeleceu que:

“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios,e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juízes togados, outogados e leigos, competentes para a conciliação, o julga-mento e a execução de causas cíveis de menor complexida-de e infrações penais de menor potencial ofensivo, median-te os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nashipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento derecursos por turmas de juízes de primeiro grau”

Visando à celeridade e a economia processual, adotando-se procedimento orale sumaríssimo, os juizados especiais cíveis e criminais foram criados para diminuir onúmero de causas e coibição de sentimento de impunidade.

Os juizados especiais cíveis e criminais foram criados com a finalidade de di-minuição do número de causas e coibição de sentimento de impunidade, semprevisando os princípios da celeridade e economia processual através de um procedi-mento oral e sumaríssimo.

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Registre-se o pioneirismo do Estado de Mato Grosso do Sul, através da LeiEstadual nº 1.071, de 1990, e do Estado de Mato Grosso, pela Lei nº 6176, de 1993,que regulamentaram o artigo 98 da Constituição Federal.

Com este espírito veio a Lei nº 9099/95, buscando a oralidade, informalidade,economia processual, celeridade e, pela primeira vez, dando-se atenção à vítima,com clara preferência pela aplicação de penas não privativas de liberdade.

Estes princípios vieram claramente realçados nos artigos 2º e 62 da apontadaLei.

A vítima nunca mereceu atenção do Estado na persecução criminal. Ela serviacomo “testemunha” privilegiada do evento criminoso, necessária para justa imposi-ção de pena. Jamais era ouvida e seus interesses e prejuízos eram ignorados. Bastaa simples análise da atual Constituição Federal para perceber quantas vezes se dis-põe sobre direitos e garantias dos presos e das vítimas.

Com pouco mais de 10 anos de vigência, a Lei 9099/95 não foi cumprida comodeveria ser.

No incio de sua vigência, as soluções encontradas foram simplistas ao extre-mo, adotando-se meros depósitos ao fundo penitenciário nacional como forma de seevitar um processo. Num segundo passo, viu-se uma torrencial onda de doações decestas básicas, homogeneizando as soluções quando os fatos que lhe deram origemnão são iguais. A banalização das cestas básicas, sem se ater aos necessários pro-cedimentos, medidas adequadas e encaminhamentos que os fatos sociais levadosao conhecimento do Estado exigiam, acabaram por provocar um “levante” contraesta generalização infundada e desproporcional.

Houve completa banalização das cestas básicas, sem se ater aos necessáriosprocedimentos, medidas adequadas e encaminhamentos que os fatos sociais leva-dos ao conhecimento do Estado exigiam, provocando um “levante” contra esta gene-ralização infundada e desproporcional.

Esqueceu-se que não se pode ver um processo criminal como um ato isolado,que pode ser resolvido com uma sentença, pois esta, às vezes, não resolve o litígio.

O processo nos traz o conhecimento de um fato, que necessita de soluçãomultidisciplinar.

Os operadores do Direito não vislumbraram esta particularidade, talvez por co-modismo, mas mais por falta de condições mínimas para sua aplicabilidade.

A Lei nº 9099/95 não é ruim como se fala e nem as medidas que propõe sãoinadequadas. O erro começa com a inadequação dos operadores do Direito ao nãoentenderem suas diretrizes ou não terem condições de cumpri-las.

Muitas vezes a transação penal se fazia em cartório ou em uma ampla salacom todos os autores presentes, ao lado de seus advogados, vítimas e familiares,

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onde se dizia simplesmente: “Vocês farão uma doação de cesta básica para nãoserem processados e ao final condenados. Alguém discorda ?”

Para o leigo, não há argumentos para se discordar.

Outras vezes, durante audiência preliminar, um conciliador ou um estudante deDireito, sem a necessária visão social do problema, induz a um acordo de efeitofictício, irreal, que termina no comprometimento vazio da “paz” no lar, que seria que-brado na primeira bebedeira.

Como conseqüência do acordo, extingue-se o processo. Extingue-se a possibi-lidade de encaminhamento para a solução do problema com visão da multi-disciplinariedade. Extingue-se a credibilidade do sistema.

Pior ainda, quando não se consegue o aparente acordo, o “processo se extin-gue” com a doação de uma cesta básica, que pode ser feita, por exemplo pela espo-sa, porque ela é a única que trabalha, pois o marido ou companheiro está desempre-gado e é alcoólatra. Assim, ela é vítima de lesão corporal e de desfalque financeiro emseu lar.

É esta miopia social que gerou uma revolta contra a cesta básica, preconizadapela Lei nº 9099/95.

Adequar uma medida socialmente justa e útil ao fato criminoso cometido é odiferencial que se põe ao operador do Direito.

Muitas vezes a sociedade civil organizada (nem tanto organizada assim) temvontade de integrar o sistema de recuperação social, mas não sabe qual o caminho aser adotado. Do mesmo modo, Juizes de Direito e Promotores de Justiça, angustia-dos pela falta de condições de trabalho, excesso no volume de feitos a sua aprecia-ção, não vislumbram que o trabalho harmônico e integrado com estas organizaçõespoderiam ser sua alternativa penal.

Como a Lei nº 9099/95 não mereceu a devida atenção dos operadores do Direi-to, a Lei 11.340/06 veio trazendo uma imposição contrária ao movimento mundial deressocialização, de menor intervenção estatal e de conciliação, para impor, atravésdo Direito Criminal ou Penal, um freio ou um temor para conter a violência domésticaou familiar.

Buscou o legislador, de maneira equivocada, impor a repressão para conter aviolência doméstica ou familiar, quando o caminho, com certeza, não é este.

Certo que motivos tinha o legislador para intervir nesta área, mas, como se diz:“matou-se o paciente com o excesso de remédio”.

Entre homens e mulheres temos uma igualdade formal, advinda da Constitui-ção Federal. A igualdade real está longe de retratar a realidade como pretende a LeiMagna. Neste e em outros aspectos, paremos pois de ter atitudes hipócritas ou sim-plesmente teóricas.

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Os direitos fundamentais foram assentados a partir da Revolução Francesa,estabelecendo-se os denominados direitos de primeira geração, dentre eles a igual-dade. Decorrem destes outros direitos humanos, denominados de segunda geração.

Passa-se a exigir, então, comportamento positivo do Estado, ou seja, presta-ção de serviços ou de deveres, como direito de trabalho, lazer, educação, dentreoutros. De nada adianta a proteção dos direitos de 1ª geração (liberdade, principal-mente), se o homem não possui as mínimas condições de uma existência digna.

Ninguém há de negar que a mulher, no mundo, sofre de violência de toda aespécie. No mais das vezes, o argumento correto de defesa de seus direitos sãosolapados pela força física e truculência.

Dentre os delitos de menor potencial ofensivo, a violência doméstica e familiardeve ser vista com melhor atenção. Destes comportamentos que ocorrem entre qua-tro paredes, decorrem nefastas conseqüências aos demais membros da família, emespecial aos filhos. Bem por isso devem ser vistos com outros olhos e tratados demaneira diferenciada.

“Somente através da ação integrada do Poder Publico, emtodas as suas instâncias e esferas, dos meios de comunica-ção e da sociedade, poderá ter inicio o tratamento e a preven-ção de um problema cuja resolução requer mudança de valo-res culturais, para que se efetive o direito das mulheres à nãoviolência.”

(exposição de motivos de encaminhamento do Projeto de Lei ao Presi-dente da República, pela Comissão de Trabalho Interministerial criado peloDecreto nº 5030, de 31 de março de 2004, publicado no Diário do SenadoFederal, em 4 de abril de 2006, página 10758).

Como já dito, optou o legislador em impor a mudança social pela coação doDireito Penal, em contra-fluxo da tendência mundial. É o Direito Penal o meio de“enforcement” da concretização ou realização de seus objetivos. A escolha é lógica ecomodista: o Direito Penal tem coação, seus custos são mínimos, pois toda a estru-tura está montada, necessitando de pequenos ajustes. O correto seria a adoção dosistema que a lei preconiza, mas que dificilmente será implantado a curto ou médioprazos. É evidente uma visão imediatista e até uso eleitoral da questão, tão grave eséria para a sociedade brasileira.

Entendemos que não é o meio mais adequado.

O sistema repressivo estatal clássico, complexo, com o seu moroso inquéritopolicial e uma extensa e burocrática produção de prova, onde não se permite ouvir aspessoas de maneira ampla, pois a fala deve ser centrada nos fatos narrados na de-núncia, onde as questões pessoais, de inter-relacionamento, são relegadas a segun-do plano, não atingirá os objetivos da lei.

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Pior ainda, teme-se a volta das “inevitáveis prescrições”, da perda de objetivida-de do sistema, pois o tempo esvairá a necessidade da intervenção do sistema protetivoimaginado pela lei.

A própria denominação popular da Lei (Lei Maria da Penha) originada de um fatocriminoso no qual o Brasil recebeu recomendação da Comissão Interamericana deDireitos Humanos da OEA, apontava o caminho a ser seguido quando alertou nosentido de intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o trata-mento discriminatório contra a mulher no Brasil e em especial recomendou “simplifi-car os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo pro-cessual sem afetar os direitos e garantias do devido processo” e “o estabelecimentode formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intra-familiares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqü-ências penais que gera.”

Como veremos, na esfera criminal, a lei aprovada vem na contra mão da dire-ção apontada.

Certo, porém, que a violência na família é o nascedouro da violência social.

O problema reside na desigualdade social entre homens, mulheres, brancos,índios e negros, todas geradoras de violência. Não surpreende a vinda de tantas ou-tras leis que visem à coibição destas violências.

Cada parcela da população terá sua lei especial, como especiais serão todas etodas serão comuns ao final.

Será novamente uma miopia social que estamos presenciando ?

A QUEM SE DESTINA A NOVA LEI

Ao se examinar o artigo 1º da referida lei, temos a primeira impressão que olegislador ordinário peca por inconstitucionalidade “ab initio”.

Informa que: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência do-méstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da ConstituiçãoFederal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contraa Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violênciacontra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Fede-rativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fami-liar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres emsituação de violência doméstica e familiar.”

Examinando-se o artigo 226 da Constituição Federal, temos em seu caput que“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, ampliando o concei-to para entidade familiar, “aquela comunidade formada por qualquer dos pais e seus

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descendentes (§ 4º) repartindo os direitos e deveres referentes à sociedade conjugalsão exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (§ 5º) para, culminar o artigo,impondo ao Estado o “dever de assegurar a assistência à família na pessoa de cadaum dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito desuas relações” (§ 8º).

Numa primeira leitura, podemos incidir no erro de pensar que a nova lei, ao sedirigir especificamente à mulher, estaria ferindo frontalmente a igualdade formal postana Constituição (artigo 5º e seus incisos).

A intenção do legislador foi forçar e provocar a mudança social (e da mentalida-de de seus membros) por meio de uma lei, que contém aspectos administrativos,civis, trabalhistas e especialmente penais.

É uma ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica, comotambém o é a reserva de vagas em universidade para negros e pobres, vagas desti-nadas a deficientes em concursos públicos, dentre outras.

Uma superficial leitura da Convenção Interamericana Para Prevenir e Erradicara Violência contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, realiza-da em 09 de Junho de 1994, pode-se ver que todas as alterações realizadas no pro-jeto de Lei original, que lhe desnaturaram e pioraram, tentaram introduzir os princípiosali contidos, que são programáticos, metas de longo prazo, que respeitam a peculia-ridade de cada país aderente.

Que a intenção do legislador vai provocar tratamentos desiguais, com certezateremos. Se estes tratamentos desiguais podem gerar inconstitucionalidade genéri-ca, com o efeito de estirpar a Lei do ordenamento jurídico, acredito que não. Eventualargüição de inconstitucionalidade no caso concreto é admissível.

A par desta intenção, continua a lei a discorrer dispositivos programáticos, quemais se aplicariam a todos e não somente às mulheres, os quais poderiam ser evitados.

É o que se vislumbra no artigo 2º: “Toda mulher, independentemente de classe, raça,etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitosfundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilida-des para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,intelectual e social.”

O mesmo se observa do artigo 6º (“A violência doméstica e familiar contra a mulherconstitui uma das formas de violação dos direitos humanos”), ou no artigo 3º (“Serão assegu-radas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, àsaúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, aolazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar ecomunitária.”) impondo obrigações ao Estado de criar um sistema, políticas públicas(de Estado e não de Governo) “que visem garantir os direitos humanos das mulheres noâmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma denegligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

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Esta parte final é o grande mote da Lei: a criação de política pública, de umsistema organizado e harmônico no trato da violência doméstica e familiar.

A redação original do projeto encaminhado à Câmara dos Deputados (PL nº4559, de 2004) dava a abrangência destas obrigações: “Art. 3º - É dever da família, dacomunidade, da sociedade e do Poder Público, em especial, assegurar à mulher...”. Na Câma-ra dos Deputados, a redação ainda continuava desta forma. Entretanto, a redaçãofinal perdeu a força da eloqüência de suas palavras, ao vagamente dizer que “serãoasseguradas às mulheres...”.

Este é o grande desafio da lei. Este é o grande desafio dos administradorespúblicos e dos operadores do Direito: ousarem fazer justiça. Não apenas a mecânicaaplicação da lei, como se tivéssemos balança de precisão ao medir componentesquímicos para um novo produto.

Só espero não assistir, novamente, a grita pela federalização (embasada noartigo 6º) de determinados crimes sob argumentos falsos, com inescondíveis inten-ções de atrair a mídia para casos certos e determinados. O Poder Judiciário Federal,o Ministério Público Federal e a Polícia Federal não possuem condições humanas emateriais de tratar destas questões em todo o País. A não ser que se pense ematuação específica em determinado evento, o que foge ao sistema criado e me impõea pensar em mera atração pelo holofote, em detrimento de tão grave questão social.

Os elementos postos nesta fórmula são diferentes e exigem tratamento dife-rente. Daí porque o artigo 4º da lei deve ser sempre lembrado:

“Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins so-ciais a que ela se destina e, especialmente, as condiçõespeculiares das mulheres em situação de violência domésti-ca e familiar.”

Assim, sujeito passivo é a mulher. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,desde que inserida no conceito de violência domestica ou familiar. Insere-se o filhoque agride a mãe; marido que agride a mulher; neto que agride a avó; empregadorque agride a empregada doméstica; companheiro que agride a companheira. O im-portante é que exista o requisito de existência previsto na lei: âmbito doméstico oufamiliar. O fato de vizinhas se agredirem em razão de desentendimento de vizinhançanão se enquadra na nova lei.

Vários incidentes processuais poderão ser resolvidos pelos institutos da cone-xão e continência. Assim, muito se tem falado em tratamento diferenciado se um pai,violentamente agride seus filhos, um casal de filhos, o que geraria tratamento diferen-ciado. Tais questões podem ser resolvidas por estes institutos e por outros.

Argumentam que determinadas mulheres já possuem atenção legislativa espe-cial, como a prevista no Estatuto do Idoso ou Estatuto da Criança e do Adolescente.Nada impede que este sistema protetivo seja apreciado sob estes dois enfoques.

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O CONCEITO E AMPLITUDE DA VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Em evidente interpretação autentica, o legislador definiu a “violência doméstica efamiliar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.”

Assim, para que se configure delito, necessário que a conduta ou omissão te-nha por base a relação de gênero, ou seja, o delito cometido sobrepondo-se à diferen-ça entre homem e mulher, onde se vislumbra violência intra-familiar, comcontraposição de poder e afeto, de subordinação e dominação.

O Projeto de Lei original (PL nº 4559, de 2004), em seu artigo 5º, ParágrafoÚnico, definia relações de gênero como “as relações desiguais e assimétricas de valor epoder atribuídas às pessoas segundo o sexo.”

Neste aspecto, a primeira impressão que fica é que se está falando apenas dorelacionamento afetivo que existe ou existiu entre homem e mulher. Na verdade a leideu amplitude de garantia à mulher, e não somente à esposa, companheira, namora-da ou noiva.

Tanto assim que prevê distinção entre violência doméstica e a familiar.

Definiu a “unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente depessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas” (inciso I doartigo 5º), donde se conclui ser possível enquadrar nesta lei eventual violência sofridapor empregada doméstica que tenha sido cometida por qualquer morador da residên-cia que preste seus serviços.

De igual modo, no inciso II do artigo 5º, a família foi definida como “a comunidadeformada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, porafinidade ou por vontade expressa”. Assim, eventual violência contra enteado se enqua-draria nestas hipóteses.

Alargando ainda mais o campo de incidência da nova lei, o inciso III do artigo 5ºimpõe que a novel norma se aplicará “em qualquer relação íntima de afeto, na qual oagressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. As-sim, homem, separado judicialmente de sua ex-esposa há mais de 10 anos, pode tersua conduta analisada sob o aspecto desta lei.

Por fim, pela primeira vez, as disposições desta lei não se restringem apenasno aspecto formal homem e mulher, mas alcança as relações homossexuais (Pará-grafo Único do artigo 5º).

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DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

E FAMILIAR CONTRA A MULHER

A lei, além de dar o conceito e o alcance da violência, estipulou as formas daviolência contra a mulher.

A definição e a conceituação de violência como sendo física, sexual, psicológi-ca, moral e patrimonial não é aleatória. Seguiu orientação da “Convenção de Belémdo Pará”, de 1994, que repetiu orientação contida no “Modelo de Leyes y Políticassobre Violência Intra-familiar contra las Mujeres”, publicado em abril de 2004 pelaUnidad,Género y Salud da Organização Mundial de Saúde – OPS/OMS, que reco-mendou que toda legislação política e pública deve incluir estas definições.

Quanto aos incisos I, III e IV do artigo 7º, não se vê qualquer dificuldade em seuentendimento:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta queofenda sua integridade ou saúde corporal;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta quea constranja a presenciar, a manter ou a participar de relaçãosexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coaçãoou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, dequalquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qual-quer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, àgravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chan-tagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule oexercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer condu-ta que configure retenção, subtração, destruição parcial outotal de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentospessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

O problema começa a exigir maiores cuidados na interpretação quando se ana-lisa o inciso II:

II - a violência psicológica, entendida como qualquer con-duta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvol-vimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, com-portamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vi-gilância constante, perseguição contumaz, insulto, chanta-gem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ire vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saú-de psicológica e à autodeterminação;

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A análise desta conduta deve ser cercada de sua seriedade, de sua constânciaou sua intenção. Nos conflitos familiares, invariavelmente, ofensas são proferidas.Algumas são fruto de intempestividade verbal, outras de tanta insistência e reitera-ção, podem incutir este dano emocional. Assim, a ponderação e o bom senso é ocaminho do operador do Direito neste campo.

Por fim, o inciso V, que define a violência moral, “como qualquer conduta que confi-gure calúnia, difamação ou injúria.” Evidente que tal enumeração é apenas uma disposi-ção sem qualquer utilidade, posto que o Código Penal já tipifica tais condutas.

Alguns podem considerar inútil a enumeração destas definições, mas a idéiasubjacente é o de cumprir as recomendações da Organização Mundial da Saúde.Como se vê é mera enumeração exemplificativa e não “numerus clausus”.

DO SISTEMA DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À MULHER

EM FACE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR.

DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO.

O que não pode estar esquecido de todos é a dificuldade de se implantar oesperado sistema de assistência e proteção, que deve se compor por ações integra-das e harmônicas, envolvendo todos os órgãos governamentais (União, Estado, Mu-nicípios, Distrito Federal, não apenas o Poder Executivo, mas o Poder Judiciário tam-bém), atingindo ações não governamentais.

Estas medidas ou orientações programáticas estão previstas no artigo 8º.

A primeira medida ou diretriz preconiza a integração operacional de todos osórgãos apontados no inciso I, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Públi-ca com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, traba-lho e habitação.

A segunda diretriz é o necessário estudo científico da questão, que certamenteorientará futuras decisões (II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outrasinformações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes àscausas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher,para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dosresultados das medidas adotadas).

A terceira diretriz é uma primeira incursão nos meios de comunicação social, quedevem ter como papel fundamental a solidificação de princípios básicos e salutarespara a sociedade. Os meios de comunicação, além de serem importantíssimos nadifusão da cultura e diversão, tem papel fundamental na educação do cidadão, emtodos os seus aspectos. Não se trata de indevida intromissão no domínio privado, pois

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a operação de meios de comunicação é uma concessão estatal. Para tanto, estaorientação ou diretriz deveria ser estendida a diversas áreas e não somente a esta.

O inciso III faz expressa menção a dispositivos constitucionais que abrangem adignidade da pessoa humana, promoção do bem de todos, sem preconceitos de ori-gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e ao respeitoaos valores éticos e sociais da pessoa e da família. (III - o respeito, nos meios de comu-nicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéisestereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com oestabelecido no inciso III do art. 1º, no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Consti-tuição Federal).

A quarta diretriz consiste na “implementação de atendimento policial especializadopara as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher” (inciso IV). O quese espera é que esta Delegacia de Atendimento à Mulher, que em São Paulo sãochamadas de Delegacias de Defesa da Mulher, sejam dotadas de infra-estrutura mí-nima, com apoio profissional multidisciplinar ou integrada em um Centro Integrado deAtendimento à Mulher.

A quinta diretriz (inciso V) preconiza “a promoção e a realização de campanhaseducativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao públicoescolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aosdireitos humanos das mulheres.”

A sexta diretriz (inciso VI) prevê a “a celebração de convênios, protocolos, ajustes,termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entreestes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas deerradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher.”

A sétima diretriz (inciso VII), determina “a capacitação permanente das Polícias Civile Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aosórgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia”, aíestando incluídos o Poder Judiciário e o Ministério Público.

Indispensável que estes órgãos realizem cursos de capacitação visando alémda melhoria qualitativa e quantitativa do conhecimento, a sensibilização sobre esteproblema social.

A oitava orientação programática (inciso VIII) prevê “a promoção de programas edu-cacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humanacom a perspectiva de gênero e de raça ou etnia”.

Por fim, a nona orientação (inciso IX), recomenda “o destaque, nos currículos esco-lares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidadede gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Como se vê, a lei determina uma série de ações conjugadas, em vários níveis,visando a prevenção e a proteção da mulher em situação de violência doméstica efamiliar.

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Esta atenção, num primeiro momento, seria dada pela EQUIPE DE ATENDI-MENTO MULTIDISCIPLINAR, integrada por profissionais especializados nas áreaspsicossocial, jurídica e de saúde, prevista nos artigos 29 a 32.

A equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe foremreservadas pela legislação local, deve “fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao MinistérioPúblico e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolvertrabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendi-da, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes”.

O que mais nos chama a atenção na atual disposição sobre a equipemultidisciplinar é que atualmente os Juizados PODERÃO constituí-las, enquanto naproposta original a sua existência era prevista e obrigatória (artigo 14 a 17).

O mesmo se observa com outras medidas que integrariam o sistema de aten-dimento especial à mulher, como se vê dos artigos 34/36:

“Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica eFamiliar contra a Mulher poderá ser acompanhada pela im-plantação das curadorias necessárias e do serviço de as-sistência judiciária.”

“Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municí-pios poderão criar e promover, no limite das respectivascompetências:

I - centros de atendimento integral e multidisciplinar paramulheres e respectivos dependentes em situação de vio-lência doméstica e familiar;

II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependen-tes menores em situação de violência doméstica e familiar;

III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços desaúde e centros de perícia médico-legal especializados noatendimento à mulher em situação de violência doméstica efamiliar;

IV - programas e campanhas de enfrentamento da violênciadoméstica e familiar;

V - centros de educação e de reabilitação para osagressores.”

“Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municí-pios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus pro-gramas às diretrizes e aos princípios desta Lei.”

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Não há obrigatoriedade na criação e nem o estabelecimento de um prazo paraa conclusão destes órgãos, programas e adaptação. Tal permissividade gerará a nãorealização destas metas, inviabilizando o sistema protetivo imaginado pelo legislador.

Pior ainda, quando a própria lei estabelece saídas políticas e jurídicas pelo nãocumprimento, ao dispor:

Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípi-os, no limite de suas competências e nos termos das res-pectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabe-lecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercí-cio financeiro, para a implementação das medidasestabelecidas nesta Lei.

Como todos os entes federativos e seus poderes estão premidos pela Lei deResponsabilidade Fiscal, a não ser que haja uma vontade política ou uma fortemobilização social, estas diretrizes não serão colocadas em prática em curto oumédio tempo.

Argumenta-se que o legislador não poderia obrigar o Administrador Público aimplementar esta rede de atendimento, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade,violando a discricionariedade administrativa dos entes federados.

Se assim é, somente a mobilização social poderá promover este quadro dedescaso com esta questão.

Mesmo o Ministério Público, que pode intentar uma ação civil pública para adefesa destes interesses, se verá frustrado diante de decisão judicial que lhe negueesta pretensão. Assim, o Ministério Público, mais do que nunca, deverá se aliar e agirconjuntamente com diversas entidades de defesa dos direitos da mulher ou da soci-edade civil de uma maneira ampla.

Infelizmente, foi suprimida uma importante diretriz.

No projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2006 (encaminhado ao Senado), que emseu inciso IV, do artigo 8º, previa:

“a implementação de centros de atendimento integral emultidisciplinar para as mulheres vítimas de violência do-méstica e familiar, bem como assistência especial para crian-ças e adolescentes que convivam com tal violência nos res-pectivos serviços especializados.”

Esta previsão seria de muita valia no atendimento multidisciplinar da violênciade gênero, como preconizado pela lei. As experiências no tratamento de delitos demenor potencial ofensivo sob esta ótica demonstraram excelentes resultados, comoos vistos na Promotoria de Justiça Criminal de Santana, em São Paulo.

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DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO

DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

A lei 11.340/06, em seu artigo 9º, prevê a coordenação de atendimento de áreasdistintas, o que exigirá uma rápida regulamentação, pois mescla atividades de JuizCriminal Especializado com área da Previdência Social, do Sistema Único de Saúdee Segurança Pública.

Nem sempre o preconizado em uma lei pode ser facilmente cumprido, até porfalta de canais de comunicação e de previsão administrativa.

O artigo 9º diz que “a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiarserá prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgâni-ca da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública,entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso”.

A Lei 8742/93 dispõe sobre a organização da Assistência Social. Os seus prin-cípios estão enumerados nos artigos 1º a 4º. A lei nº 8.080, de 19 de Setembro de1990, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saú-de, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes – SUS, cujosprincípios básicos norteadores estão nos artigos 2º a 4º. São disposições genéricas,que podem ser aplicadas às relações de gênero.

Com isto, o regulamento destas leis tem que sofrer alterações para que possao Juiz de Direito determinar, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação deviolência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governofederal, estadual e municipal. (§ 1º do artigo 9º).

De outro lado, certas medidas que são possíveis de serem adotadas pelo Po-der Judiciário podem colocar em choque prerrogativas de poderes ou de princípiosconstitucionais.

Quando o § 2º do artigo 9º permite que o “juiz assegurará à mulher em situação deviolência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: (I) - acessoprioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; oua (II) - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de traba-lho, por até seis meses” tais poderes necessitarão de regulamentação específica edetalhada.

Por primeiro, o acesso prioritário à remoção, quando servidora pública, inte-grante da administração direta, pode provocar colidência de interesses pessoais tam-bém protegidos por supremacia legal. Imaginemos a hipótese de marido agressor desua esposa, Promotora de Justiça. Acaso haja esta determinação, alguns princípiosprotegidos constitucionalmente poderão ser vulnerados. Problemática será a situa-ção de servidora municipal, onde sua remoção não implicará necessariamente afas-tamento territorial do problema.

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Quanto ao segundo aspecto, a imposição de manutenção de vinculo trabalhis-ta, decorre de imposição de medida a estranhos do contexto fático. O empregadornão guarda qualquer relação com a violência doméstica, por exemplo. Determinar oJuiz Criminal que ele mantenha o vinculo trabalhista por até seis meses entendemoshaver impropriedade técnica (de competência).

A hipótese seria do Juiz de Direito Estadual comunicar ao empregador sua de-cisão? Se o empregador não cumprir, qual medida de coerção (na esfera trabalhista)que poderia ser imposta? Caberia uma reclamação trabalhista para, ai sim, um JuizFederal da Justiça do Trabalho determinar medidas atinentes? Se acatada a decisão,qual a natureza da paralisação da jornada de trabalho: interrupção ou suspensão? Seinterrupção, os serviços não são prestados, mas o empregador permanece com asobrigações acessórias decorrentes (férias, 13º salário, etc). Se suspensão, não con-ta tempo de serviço, FGTS, recolhimento de contribuições ao INSS. Quem arcarácom o pagamento de todo o salário? Somente o INSS ou o empregador arcará comos 15 primeiros dias? Qual o valor a ser pago, pois as leis acima indicadas apenasprevêem o pagamento de um salário mínimo de forma continuada?

São questões de área jurídica específica, que demandam estudo e regulamen-tação, que ainda não existem. Melhor explicando.

O artigo 9º remete aos princípios e diretrizes da LOAS, SUS e SUSP, comodisse, quanto a assistência da mulher em situação de violência.

Por outro lado, o § 2º, inciso II, do citado artigo, prevê a manutenção do vínculotrabalhista quando houver necessidade de afastamento do local de trabalho, direitoeste assegurado e declarado por um juiz de competência estadual.

Inicialmente há clara e direta intromissão de competência estadual na Justiçado Trabalho, de natureza de competência federal, isto porque a declaração de manu-tenção do vinculo viria de jurisdição diversa da trabalhista, o que poderia ensejar ainsurgência de sua eficácia por ausência de competência em razão da matéria.

Referida Lei interfere em matéria de direito material de ordem trabalhista, asse-gurando uma garantia provisória de emprego por até 06 meses em casos de violên-cia doméstica declarada pela jurisdição criminal.

Ademais, há previsão legal de competência do Poder Judiciário, cuja iniciativade lei não partiu do Presidente de Tribunal específico, o que poderia ensejar a argüi-ção de inconstitucionalidade.

Ainda é nítido que a quantificação do período de manutenção é de caráter sub-jetivo do Juízo Criminal.

Em que pese toda a interferência, é inegável que Lei Federal de natureza espe-cífica previu manutenção de emprego, devendo ser admitida pelo ordenamento jurídi-co, notadamente o Juízo Trabalhista, a quem produz os efeitos em todos os tipos decontrato de trabalho subordinado.

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Tratando-se de benefício pecuniário prestado pelas diretrizes do LOAS, restaclaro que cabe ao Juiz Criminal comunicar a empresa, bem como o órgãoprevidenciário, a quem cabe arcar com o valor salarial do período, sendo consideradosuspensão do contrato de trabalho.

Outrossim, a Lei não igualou a proteção da mulher em situação de violência coma proteção da gestante, elevada a nível constitucional inserida no ADCT, art. 10, inciso II,letra “b” , motivo pelo qual não receberia o valor integral salarial, mas o benefício doLOAS, aplicando o art. 22 da Lei 8742/1993, ainda pendente de regulamentação.

O raciocínio encontra guarida na inserção da manutenção do emprego no art.9º que remete à prestação pelo LOAS (Lei 8742/1993).

Não se pode onerar o empregador com o pagamento de salários e depósitos doFGTS, além da ausência de prestação de serviços, a evento que não deu causa, sobpena de discriminação contra a mulher no trabalho.

O máximo que se pode admitir é o pagamento, pelo empregador, do valor máxi-mo previsto no LOAS, e compensação direta com as contribuições previdenciáriasdevidas por este, igualando aos casos das prestações a título de salário-maternidade.

Em que pese todas as lacunas da Lei, temos que admitir a vigência da garantiaprovisória de emprego fora de Lei de natureza trabalhista.

De qualquer forma, se houver a oneração do empregador em mais este aspec-to, a mulher ficará sujeita a mais uma causa de discriminação. Como já ocorre coma licença maternidade, em eventual desentendimento familiar que chegue ao conhe-cimento do empregador, poderá ensejar sua demissão sem justa causa, antes queeste receba determinação judicial de manutenção do vinculo empregatício. Tal situa-ção merece cuidado e reflexão.

DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL

Prevê a lei um capítulo especial destinado ao atendimento pela autoridade policial.

Quando tomar conhecimento da iminência ou da prática de violência domésticae familiar, bem como o descumprimento de medida protetiva de urgência já deferida,deve a autoridade policial adotar as providências já disciplinadas pelo Código de Pro-cesso Penal, especialmente em seu artigo 6º. (artigo 10º da Lei).

O projeto original (PL 4559, de 2004) previa a ida da autoridade policial ao local:“Art. 10 Nas hipóteses de violência familiar ou na iminência de serem praticadas contra mulhe-res deverá ser imediatamente notificada a autoridade ou o agente policial para que possa com-parecer ao local.”

Esta ida ao local decorreu da observação de que a informalidade no trato daquestão criminal, levada a escrito no termo circunstanciado impede uma visão maisabrangente da situação fática posta em um plantão da autoridade policial.

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Atendendo as peculiaridades tratadas na Lei, a autoridade policial tem algumasoutras providências a serem adotadas, sempre sob critério da necessidade, conveniên-cia, bom senso e prudência.

Assim, é possível a proteção policial, o fornecimento de transporte para a ofen-dida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; oseu acompanhamento para assegurar a retirada de seus pertences (pessoais) dolocal da ocorrência ou do domicílio familiar. Todas as medidas, como já dito, ante anecessidade e conveniência, escoltadas pela prudência e bom senso (artigo 11).

Quanto às demais providências, como o encaminhamento da ofendida ao hos-pital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal (inciso II do artigo 11), sua oitiva,colheita de provas, requisições de exame, oitiva do apontado agressor e testemu-nhas, prazos para conclusão e remessa dos autos de Inquérito Policial, são as nor-mais e previstas no Código de Processo Penal (artigo 12 da Lei).

Uma destas providências consiste na oitiva do agressor e sua identificação.Obviamente que esta identificação deve seguir os requisitos da Lei n. 10.054/00. Nãose justifica a identificação obrigatória se não paira dúvida sobre a identidade do agressore este for civilmente identificado.

Uma outra série de providências cabe à autoridade policial, que se não for bementendida ou mal executada, graves conseqüências poderão advir.

Trata-se de “informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviçosdisponíveis” (inciso V do artigo 11) e “remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expedi-ente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas deurgência” (inciso III do artigo 12 da Lei).

Este pedido será tomado a termo pela autoridade policial, com a qualificaçãodas partes, dos dependentes e a “descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solici-tadas pela ofendida.” (§§ 1º e 2º do artigo 12), anexando cópia do BO e de todos osdocumentos disponíveis em posse da ofendida. Atente-se que um documento de na-tureza administrativa da polícia veio realçado pela lei, o boletim de ocorrência.

Há uma tendência de generalização deste pedido de medidas protetivas, comdistritos policiais elaborando uma planilha com várias medidas elencadas, bastandoapenas a marcação com um “X” em quadro adequado.

Como veremos a seguir, certas medidas protetivas são muito graves e nãopodem ser solicitadas de maneira inadequada, sob pena de serem indeferidas e sechegar a uma banalização e perda de credibilidade.

Há casos em que a mulher solicita todas as medidas protetivas previstas na lei,como veremos a seguir, mas não “oferece” representação, outro tema tormentosoque será também analisado. Ou seja, deseja as medidas protetivas de natureza civil,mas nenhuma medida “protetiva” de natureza penal.

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De qualquer forma, estas incompatibilidades ou falhas poderão ser sanadas secumprido o disposto no artigo no art. 28, possibilitando à mulher, o acesso aos servi-ços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita em sede judicial,mediante atendimento específico e humanizado. Para tanto, estes serviços deverãoser adequados para o rápido atendimento principalmente quando em sede policial,que ainda não funciona.

É chegado o momento do Ministério Público manter contato com os Delegadosde Polícia para que sejam estabelecidos procedimentos conjuntos de colheita desteselementos de prova, possibilitando a apreciação destes pedidos com maiores funda-mentos fáticos e jurídicos. (artigo 8º, inciso I).

Poderia, por exemplo, a mulher receber devida orientação de quais documen-tos e provas ela deve fornecer antes de comparecer em juízo, se necessário; pode-ria, acaso necessário, ela ser imediatamente encaminhada ao Promotor de Justiçapara ser orientada quanto às medidas pleiteadas.

É indispensável que o sistema protetivo, preconizado pela lei, seja implementadojunto às Delegacias de Polícia. Por mais meritória que seja a atuação de algumasPromotorias de Justiça e Fóruns, temos que entender que a Polícia é a porta deentrada do sistema para estas questões. Este é o desejo programático do legislador(artigo 8º, inciso IV).

Normalmente, as agressões ocorrem à noite, quando há o retorno ao lar depoisde um dia de trabalho. Para onde se dirigirá a mulher vítima às 22:00 horas de umaquarta feira, por exemplo? Certamente será atendida pela polícia.

Por isto, o Ministério Público deve harmonizar suas ações e condutas com aPolícia Civil, visando a criação da rede de proteção neste órgão público.

Mais ainda, deve envidar todos os esforços para que a Delegacia de Políciaintegre um Centro Integrado de Atenção à Mulher, onde esta será atendida pela Auto-ridade Policial, mas também por Psicólogos, Assistentes Sociais, dentre outros. Queneste centro, se possibilite seu acolhimento em casas abrigo (e não depósitos demulheres), com atenção aos seus filhos igualmente.

Certamente trata-se de um sonho, possível de ser alcançado por que não éutópico. Basta percorrer, por exemplo, as faculdades que formam os profissionaisacima e verão as portas se abrirem, com alunos do último ano de formação sepredispondo a realizarem estágio supervisionado pelos Professores, sob fiscaliza-ção dos respectivos Conselhos Regionais. Ao que se percebe, diversas entidadesbuscam atender certas demandas, mas desconhecem a existência uma das ou-tras ou se são conhecidas, parece que uma vai concorrer com a congênere. Inte-ressante é a busca da união de esforços de todas as entidades e a sede da Promo-toria de Justiça poderia ser o espaço adequado para a formação destas PARCERI-AS (em letras maiúsculas propositadamente).

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DAS MEDIDAS DE NATUREZA CIVIL

Esta situação de colidência de interesses que deveriam andar umbilicalmenteatrelados, faz com que certas posturas da Lei sejam incongruentes.

Se o Juizado especial, que pode apreciar medidas cíveis e criminais, somentepode ser acionado quando houver violência de gênero, portanto crime, inimaginávelsolicitar-se estas medidas protetivas cíveis sem a existência de crime ou sem o inte-resse em contribuir para que estes sejam apurados.

Por isto, a Lei, nos seus artigos 13 e 14, prevê a criação de Juizados de Violên-cia Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com compe-tência cível e criminal, para o processo, o julgamento e a execução das causas de-correntes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Pode-se argumentar que não há incompatibilidade ao se desejar apenas medi-das de natureza cível. Há sim, pois o crime nas relações de gênero é que deu compe-tência a este novo Juizado. Se isto não for considerado, suprime-se juízo competentepara a questão: o Juízo da Família.

A regra geral de competência no Direito Penal é o local da infração. (Art. 70 doCPP: A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou,no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.)

Entretanto, o artigo 15 da norma nova dá à ofendida, a escolha do juízo compe-tente para os processos cíveis, como se eles pudessem ser dissociados do fatocriminoso principal.

Assim está disposto o artigo :

Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os pro-cessos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:

I - do seu domicílio ou de sua residência;

II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;

III - do domicílio do agressor.

Esta possibilidade pode trazer infindáveis problemas. Imaginemos que um ca-sal, num fim de semana prolongado, na cidade de Praia Grande/SP, tenham acirradadiscussão, em meio a qual o marido agride a mulher. A polícia é acionada, a vítima ésocorrida e todos são levados ao Distrito Policial da cidade. De retorno à cidade deSão Paulo, que dista 100 quilômetros aproximadamente, poderia a mulher solicitar asmedidas protetivas perante o juizado especial de que trata esta lei situado nas proxi-midades de sua residência. Pelos termos literais do dispositivo, sim, mas a apuraçãodo fato delituoso está sendo levado em outro município, o que torna difícil a apuraçãoconjunta de todo o contexto.

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Ademais, viola-se princípio constitucional do Juiz Natural e não se pode alterarregra consagrada de fixação de competência criminal.

Para se delimitar o alcance destas medidas protetivas e até que ponto elaspodem ter influência ou não, necessário um pequeno esboço sobre as mesmas.

A lei dividiu estas medidas em duas espécies ou destinadas a dois atores: dis-ciplinou as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e as medidasprotetivas de urgência à ofendida

Qual a natureza destas medidas, sua eficácia, duração e alcance ?

O projeto original (PL 4559, de 2004) previu estas medidas dos artigos 22 a 29denominando-as de MEDIDAS CAUTELARES.

Assim, corretamente se imaginou que estas providências são urgentes, gra-ves, que colocam em riscos direitos da vítima, que se não houver imediata atuaçãoestatal, poderá sofrer danos irreparáveis, todas decorrentes de violência domésticae/ou familiar.

Há quem entenda que estas medidas, apesar de parecerem medidas cautelares,são uma nova espécie, sui generis, que devem ser apreciadas com maior elasticida-de e sem os rigorismos processuais impostos pelas cautelares já conhecidas.

Apesar de respeitar esta posição, não consigo vislumbrar característica próprianestas medidas que exigiriam conduta diferente das já normalmente adotadas nascautelares.

Em todos os conflitos familiares ou domésticos se vislumbra o cometimento deameaças verbais, agressões ou a prática de vias de fato.

Na análise destas questões, o operador do Direito deve sopesar todos os ele-mentos que implicam no pedido de uma medida de natureza cautelar. Deve sopesarse estes elementos podem conduzir ao pedido de prisão preventiva, como se verámais adiante. Se tal análise não for realizada, inexoravelmente, perde sentido a exis-tência de Varas de Família. Se assim se pensar, todos os processos de separação edivórcio devem ser imediatamente remetidos a este novo Juizado, o que nos pareceum contrasenso e nem isto desejou a lei.

É esta a natureza primordial destas medidas protetivas de urgência, de cautelares,onde se deve analisar o “fumus bonis iuris” e o “periculum in mora”. É dado ao juiz criminalexercer o poder geral de cautela nas causas de natureza cível, limitadas por certo.

De resto e de maneira geral, as disposições não sofreram alteração.

O legislador apenas mudou o nome do instituto, devendo ser entendida suaessência como cautelar.

Apesar de ser medida cautelar de natureza cível, ela guarda intima relação como fato criminoso, tanto que o caput do artigo 22 condiciona a constatação da prática

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de violência doméstica e familiar contra a mulher, daí porque se estranha a possibili-dade da mulher optar por requerer medidas protetivas em juízo diferente do juízocriminal que apura a infração penal.

O artigo 22. elenca as medidas protetivas de urgência (cautelares) que obrigamo agressor, as quais podem ser acumuladas ou substituídas por outras (§ 1º do arti-go), garantida sua efetividade até com o auxilio de força policial (§ 3º). Portanto, é umaenumeração exemplificativa.

Algumas de razoável, lógica e imperiosa aplicação. Outras, nem tanto. Por exem-plo, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação aoórgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, estabe-lecendo ainda condições restritivas quando se tratar de policial ou militar; a outramedida é o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida,parece-nos serem medidas plausíveis, reunidas as condições gerais de concessãode uma medida cautelar, estremada, “inaudita et altera pars.”

Outras, entretanto, são discriminadas mas de duvidosa eficácia ou de difícilfiscalização. O dispositivo discrimina a proibição de aproximação da ofendida, deseus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes eo agressor. Até se compreende a restrição quanto à ofendida, mas fixar uma distân-cia torna-se impensável. Quanto aos familiares e testemunhas, acaso haja qualquercoação, teríamos a incidência do artigo 344 do Código Penal, o que ensejaria suaprisão preventiva (artigo 22, inciso III, letra “a”).

Quanto à distância, muitas vezes podemos nos deparar com a situação serprovocada, pois não nos esqueçamos que estamos diante de conflitos familiares,onde a emoção suplanta e sufoca a razão, o bom senso e a ponderação.

O mesmo raciocínio deve ser usado quanto à proibição de contato com a ofen-dida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação (artigo 22,inciso III, letra “b”).

A proibição de freqüentar determinados lugares a fim de preservar a integridadefísica e psicológica da ofendida (artigo 22, inciso III, letra “c”) deve ser muito bemanalisada sob os requisitos necessários de uma cautelar. Imaginemos que durante atramitação de um procedimento desta natureza, haja a necessidade de se afastar omarido de sua igreja.

A medida protetiva prevista no inciso IV, consistente na restrição ou suspensãode visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinarou serviço similar, é salutar, mas melhor seria se a lei tivesse sido aprovada obrigan-do e não possibilitando a instituição de equipes multidisciplinares, como o era noprojeto original. De outra parte, mesmo que exista a equipe, acaso seja necessáriasua prévia oitiva, deixa de ter a natureza urgente e necessária a medida pleiteada,ensejadora de uma cautelar.

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Por fim, o inciso V prevê a prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Como bem expôs Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, existem duas tutelasjurisdicionais estruturalmente distintas, mas com a mesma função de proverliminarmente a subsistência do alimentando. Regidos pela Lei nº 5.478/68 estão osalimentos provisórios, que podem ser postulados quando se achem provadas a rela-ção parental e a obrigação alimentar. Já os alimentos provisionais defluem da tutelacautelar prevista no art. 852 e ss. do Código de Processo Civil e dependem dos pres-supostos normais da tutela assecurativa, do fumus boni juris e do periculum in mora.Interessante observar que os alimentos cautelares ou provisionais não clamam aprova imediata do vínculo parental, embora também não signifique dizer que a suapostulação judicial esteja restrita aos que não possuem prova antecipada de relaçãode parentesco. (OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A Tutela Cautelar Antecipatória e osAlimentos Initio Litis. Revista de Processo, n. 49, São Paulo: RT, p. 99.)

Muita confusão existe a cerca destas duas modalidades de alimentos. Reina aimprecisa idéia de que são sinônimos, mas como visto não o são.

Atento a esta precisão técnica e terminológica, há uma tendência em se fixarsomente os alimentos provisórios (regidos pela Lei 5.478/68 = art. 4º. Ao despachar opedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se ocredor expressamente declarar que deles não necessita.) e não os provisionais (regidospelo artigo 852 do CPC – “É lícito pedir alimentos provisionais: I - nas ações de desquite e deanulação de casamento, desde que estejam separados os cônjuges; II - nas ações de alimen-tos, desde o despacho da petição inicial; III - nos demais casos expressos em lei.”) Tal secompreende pois os alimentos provisionais visam atendimento da necessidade bási-ca e não o fornecimento de condições para processar alguém.

De qualquer forma, reina imensa confusão neste ponto, que pode ser suplanta-do pelo artigo 4º da nova lei.

O parágrafo 4º do artigo 22 vem confirmar a natureza cautelar das medidasprotetivas de urgência.

Diz o referido parágrafo:

§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que cou-ber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).

Este artigo se situa no Capítulo VIII, que trata Da Sentença e da Coisa Julgada,na Seção I - Dos Requisitos e dos Efeitos da Sentença.

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(Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obriga-ção de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica daobrigação ou, se procedente o pedido, determinará providênciasque assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do re-sultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requeri-mento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposi-ção de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoçãode pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento deatividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade damulta, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.)

Há, ainda, um conjunto de Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida, previstono artigo 23, onde o juiz poderá, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programaoficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus depen-dentes ao respectivo domicílio, após afastamento doagressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem preju-ízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e ali-mentos;

IV - determinar a separação de corpos.

Importante, assim, salientar que a Lei prevê um sistema, uma rede de atendi-mento. Com isto, todas as instituições e órgãos da Administração Pública devemcumprir imediatamente o papel que lhe caiba, sob pena de se frustrar a intenção dolegislador.

Ainda visando a proteção da mulher, especialmente o seu patrimônio, a lei con-fere ao Juiz poderes cautelares amplos, com reflexo em terceiros, o que, mais umavez, demanda cuidado e bom senso.

O art. 24 determina que para a proteção patrimonial dos bens da sociedadeconjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar,liminarmente a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendi-da (inciso I). Subentende-se que se tratam de bens particulares (pessoais) da vitima.Mesmo aqueles que pertençam à sociedade conjugal, no momento em que se ultra-passou a quota parte do agressor.

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Poderá o juiz proibir temporariamente a celebração de atos e contratos de com-pra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial(inciso II). No caso em estudo, a propriedade em comum é a imóvel. Por esta possibili-dade, a mulher estaria sendo considerada incapaz, sem ter sido interditada e ter sidonomeado um curador.

Poderá, ainda, suspender as procurações conferidas pela ofendida ao agressor(inciso III). Neste aspecto, não há motivo do juiz se substituir à apontada vítima, sendoesta novamente tratada como incapaz. Poderá a vítima revogar os poderes concedi-dos, pois à evidência a procuração será pública. Ademais, direitos de terceiros poderãoser atingidos acaso não haja a mais ampla e rápida publicidade do ato judicial. Daí aprovidência ditada pelo parágrafo único, que obriga o juiz oficiar ao cartório competente.

No inciso IV, permite-se ao Juiz exigir a prestação de caução provisória, medi-ante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violên-cia doméstica e familiar contra a ofendida. À Evidência que se trata de violência do-méstica ou familiar, de natureza patrimonial, como vimos no início desta exposição.Esta medida tem natureza eminentemente cautelar. O Código de Processo Civil jádisciplina a questão, quando trata das Disposições Gerais das medidas cautelaresno processo cautelar.

“Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, queeste Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz deter-minar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando hou-ver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento dalide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação.

Art. 799. No caso do artigo anterior, poderá o juiz, para evitar odano, autorizar ou vedar a prática de determinados atos, ordenara guarda judicial de pessoas e depósito de bens e impor a pres-tação de caução.

Art. 800. As medidas cautelares serão requeridas ao juiz da cau-sa; e, quando preparatórias, ao juiz competente para conhecerda ação principal.”

A lei prevê ainda mais uma medida protetiva, prevista no artigo 21, pois “a ofendi-da deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos perti-nentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído oudo defensor público.” Trata-se de medida protetiva processual, com a intenção de alertara mulher para que se prepare e se previna de eventuais percalços que podem advirda liberdade do agressor.

Por fim, a lei criou mais uma medida protetiva a mulher, prevista no artigo 9º,quando prevê sua assistência no sistema previdenciário, bem como lhe garante pre-ferência (quando em igualdade de condições) em eventual necessidade de remoçãono serviço público ou garantia de emprego quando na iniciativa privada, tema já abor-dado anteriormente.

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DO PROCEDIMENTO NOS PEDIDOS

DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA

Como vimos, a autoridade policial, assim que registrar o fato em boletim de ocor-rência, deve tomar a termo o pedido de providências, juntar cópia do BO e todos osdocumentos pertinentes que estão na posse da ofendida e imediatamente encaminharo expediente em apartado ao Juiz no prazo de 48 horas (artigo 12, inciso III e seu § 1º).

Insisto que este encaminhamento é crucial para a perfeita análise do requeri-mento em sede Judicial. Daí porque o entendimento do Promotor de Justiça com oDelegado de Polícia estabelecendo-se os requisitos que devem ser buscados paraaparelhar este pedido é primordial. Nada impede que a mulher seja orientada queprocure imediatamente o Promotor de Justiça, se se entender necessário.

Em igual prazo, deve o Juiz decidir o pedido sem a necessidade de se ouvir aspartes ou o Ministério Público (artigo 19, §1º), como se vê do artigo 18, além de adotaroutras medidas de caráter emergencial, como o encaminhamento da ofendida aoórgão de assistência judiciária (vide artigo 27), quando for o caso e comunicar aoMinistério Público para que adote as providências cabíveis, dando-lhe ciência dasmedidas já adotadas. Além do réu e seu defensor, a ofendida deverá ser intimada detodo ato processual, inclusive os atos processuais relativos ao agressor, especial-mente os pertinentes ao ingresso e à saída da prisão.

Salutar seria a designação de audiência de justificação prevista no art. 804 doCPC, para que a vítima, ou o Ministério Publico se requereu a medida, produzamprovas de sua pretensão. Esta audiência será necessária, pois a vítima normalmenteestá procurando a Delegacia de Polícia, relata os fatos e o Delegado de Polícia ape-nas reduz a termo a sua pretensão, encaminhando o pedido em 48 horas para oFórum. Este pedido não vem aparelhado com qualquer prova e mesmo a narrativados fatos ainda é precária e sucinta.

Há quem argumente que se deve restringir a atuação preliminar judicial poranalogia ou nos moldes do artigo 130 do ECA (lei 8069/90 - Art. 130. Verificada a hipótesede maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridadejudiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradiacomum.). Tal postura não se compatibiliza com todos os poderes postos nas mãos doMagistrado, com sua finalidade e abrangência, a qual pode ser vista nos artigos 22 a24 da Lei.

Não se permite mais que a ofendida entregue a intimação ou notificação aoagressor.

O Ministério Público tem legitimidade ativa para requerer medidas, mesmo quenão pleiteadas pela vítima diretamente, desde que estas sejam urgentes e necessá-rias (artigo 19). A amplitude desta atuação deve ser muito bem balizada pela capaci-dade e vontade da mulher. Ela não pode ser considerada incapaz porque a lei assim

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o diz. A incapacidade não se presume dos termos da lei e sim dos fatos postos àanálise do Promotor de Justiça, o qual deve verificar a sua vontade e a necessidadede sua proteção. Esta substituição processual não pode acarretar a mulher maisuma forma de subjugação e sim de proteção.

Nestes casos, a lei deixou mais do que evidente o poder geral de cautela doJuiz, além de permitir que ele, de ofício, vele pela efetividade de suas decisões. Os §§2º e 3º deixam claro que as medidas protetivas de urgência serão aplicadas isoladasou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de mai-or eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou vio-lados, podendo atingir não só a ofendida, mas seus familiares e seu patrimônio.

O Projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2006, previa na fase inicial, após a deci-são sobre as medidas protetivas pleiteadas, a designação de uma audiência prelimi-nar (art. 18, inciso I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidasprotetivas, no prazo máximo de 48 h (quarenta e oito horas), designando, em segui-da, audiência preliminar;)

Observe-se que a lei não estipulou prazo de duração ou eficácia da medidacautelar deferida.

Há quem entenda tratar-se de medida cautelar própria, satisfativa, que perderásua eficácia ou sua validade quando decisão de juiz competente verter sobre a matéria.Seus efeitos durarão enquanto estiverem presentes os seus requisitos de existência evalidade ou até a sobrevinda de provimento jurisdicional cível/família competente.

O grande cerne da questão é se esta medida for concedida “inaudita et alterapars”, o agressor ficará tolhido de produzir sua defesa até que se intente medidaapropriada e definitiva no juízo civil ou de família competente.

Outra corrente entende que a eficácia da medida durará enquanto estiver emtramitação a ação penal, já que esta vincula todo o Juizado.

Entretanto, não podemos esquecer que a medida tem caráter e efeitos civis,vinculando-se a procedimento criminal que possui outra dimensão e outra objetivida-de. Algumas medidas poderão afetar terceiros, alheios ao procedimento criminal, comoa revogação de procuração que interferirá em negócios jurídicos realizados, não sepermitindo, em princípio, o ingresso no processo criminal como um prejudicado ouafetado. A questão criminal lhe é alheia. Certamente, o terceiro terá que se valer dasvias próprias para defender seus interesses.

Um ponto parece ser unânime: se o inquérito policial for arquivado, entende-seque a medida deverá ser revogada dependendo da fundamentação do arquivamento.Outros entendem que a medida perderá automaticamente sua vigência com o arqui-vamento dos autos.

Por fim, à similitude com o processo civil, entende-se que a medida protetivaterá eficácia por 30 dias, obrigando-se a vinda de uma ação principal.

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Tal postura também não se coaduna. A fixação do prazo de trinta dias não podeser aceito, pois, por exemplo, a finalização do inquérito ou o trâmite da ação penal nãoestá colocada nas mãos da vítima. Daí se entende a posição que esta medida protetivaseria sui generis e não meramente cautelar.

Toda medida cautelar, garantista ou protetiva, deve ser analisada de per si. A aná-lise dos artigos 22 a 24 conduz ao raciocínio amplo, num pensar em rede de proteção.Estamos diante de uma questão histórica e cultural, que exige o repensar de todos osOperadores do Direito. Esta reavaliação, que passa por cursos de capacitação esensibilização pela questão de fundo, dará uma justa e ponderada decisão.

Fica evidente que o juizado especial tratará a matéria num primeiro momentode urgência, preventivamente, visando evitar o perecimento de direito ou a ocorrênciade danos irreparáveis, evitando novos delitos.

Não se deu ao Juizado competência plena na área de família, podendo-se pro-mover a separação, divórcio, regular alimentos e a guarda e a visita de filhos. Asmedidas judiciais concedidas são provisórias, satisfativas por si mesmas, queindependem de uma ação principal naquele juízo (o criminal). A matéria de fundo deveser buscada e discutida em ação própria no juízo competente. Com isto, triste verifi-car certas posturas de se remeter aos Juizados Criminais todo o acervo das Varasde Família, ficando esta somente com as questões que não contenham litigiosidade.

A opção do legislador na criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fami-liar contra a Mulher, acometendo aos Juizados especiais provisoriamente estas fun-ção, possui uma razão muito simples.

Os juizados especiais criminais, com o advento da Lei nº 9099/95, estão maisafeitos a estas questões do que as Varas Criminais comuns, que sempre relegarama segundo ou terceiro plano, os delitos de menor potencial ofensivo, o que é umgrande erro, até Institucional, que permite que se desdenhe fatos sociais que ocor-rem em mais de 95% das ocorrências infracionais. Os juizados especiais sempreatentaram para estas questões, buscando soluções conciliadoras, mediadoras erestaurativas das relações. É a sua vocação de origem.

Utilizou-se do argumento do menor volume de trabalho nos Juizados Especiaisem comparação ao realizado nas Varas Criminais o que não se justifica, pois o volu-me de trabalho nos Juizados Especiais, quando executado no espírito norteador daLei 9099/95 acarreta volume expressivo.

Interessante observar que cada um procura esconder os seus, mas aponta osdefeitos dos outros. Faça-se uma auto-crítica e veja-se quem cumpre fielmente e namedida de suas possibilidades, as suas funções profissionais.

Nesta quadra histórica, principalmente do Ministério Público, não é o momentode empurrar o problema para o colega vizinho, mas meditar sobre suas funções cons-titucionais, duramente conquistadas após décadas de intenso trabalho de geraçõesde valorosos Promotores e Procuradores de Justiça que tiveram a visão de um Minis-tério Público do futuro. Cabe às novas gerações não acreditarem que estas conquis-tas são “cláusulas pétreas” constitucionais.

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Quanto ao prazo de duração destas medidas, não se concebe estabelecer 30dias de prazo se a medida protetiva visa “suspensão da posse ou restrição do portede armas; o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas”, poisnecessária a atuação da equipe multidisciplinar em alguns casos.

Também não pode ser indeterminada sua duração, pois a questão pode ficarpendente de solução. Imagine-se a decisão judicial que determine a separação decorpos (artigo 23, inciso IV).

De outro lado, efeitos prejudiciais poderão advir se não se fixar prazo quando amedida protetiva versar sobre as possibilidades previstas no artigo 24.

Assim, a natureza do fato, a sua complexidade e a prudência de todos deverãoser colocados à prova neste momento. Daí, talvez, o legislador não tenha se atrevido afixar prazo, pois impossível prever-se a necessidade em cada conflito deste gênero.

DAS MEDIDAS DE NATUREZA CRIMINAL

Antes da apreciação de todas as questões tormentosas que a lei traz para aesfera criminal, uma tem que ser atacada em primeira mão, pois conduz oequacionamento das demais.

Trata-se do artigo 41 da nova Lei, que assim está formulado:

“Aos crimes praticados com violência doméstica e familiarcontra a mulher, independentemente da pena prevista, nãose aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.”

A repugnância do legislador à Lei 9099/95 já veio manifestada anteriormente,quando enunciou o artigo 17 da lei:

“É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica efamiliar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outrasde prestação pecuniária, bem como a substituição de penaque implique o pagamento isolado de multa.”

Consideramos que esta foi a intenção do legislador: vedar o tratamento dasquestões oriundas de relações de gênero com a aplicação banalizada de cestas bási-cas. É um recado direto ao Ministério Público, que tinha a prerrogativa de oferecertransação penal, e ao Poder Judiciário, quando da prolação de suas sentenças.

O próprio legislador permitiu a interpretação da lei conquanto se respeite seusfins ou intenção, daí porque o artigo 4º da lei deve ser sempre lembrado:

“Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociaisa que ela se destina e, especialmente, as condições peculiaresdas mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”

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Nos últimos tempos tenho ouvido que se o legislador foi tão claro no artigo 41, quenão cabe qualquer discussão, por qual razão insisto em dizer que a lei Maria da Penhatem que ser salva, se foi exatamente a Lei 9099/95 que a colocou neste patamar?

Ledo engano, até histórico.

A mulher sempre foi vítima nas relações domésticas ou familiares.

Quando procurava a Delegacia de Polícia, registrava-se, se tanto, o fato em umBoletim de Ocorrência e não se instaurava Inquérito Policial.

Sabia-se dos números da violência de gênero pela estatística paralela das enti-dades que se debruçam sobre a questão.

Mesmo hoje não se faz o registro específico nas infrações penais desta nature-za. Talvez iniciemos a tabulação destes dados, posto que a lei assim determinou,como veremos adiante.

Com o advento da Lei 9099/95, não tendo mais que instaurar Inquéritos Polici-ais, registrava-se o fato em um termo circunstanciado, parente próximo do boletimde ocorrência, e se encaminhava as partes para o Fórum. Para a polícia, foi umagrande solução.

Infelizmente, como já disse, o Ministério Público não soube aplicar a transaçãopenal (instituto que lhe é próprio), que deve ser adequada para cada fato social, indu-zindo a aceitação de “cestas básicas”, apanágio das soluções de problemas e íconepara a limpeza das pilhas de termos circunstanciados, inquéritos policiais e proces-sos, pois temos a “síndrome do pilhismo”, síndrome da pilha de processos. Peçovênia pela generalização.

Pior ainda quando a transação penal é realizada em um grande salão, anunci-ando-se a doação de cesta básica para não se ver processar. Muito pior quando atransação penal é realizada por estudante de último ano de direito ou conciliador semserem habilitados para tanto ou possuírem a sensibilização para o problema. Se temalgo pior, temos quando não é o Ministério Público, (que não comparece às audiênci-as), que formula a proposta de transação penal, ficando esta a cargo do conciliador.

São falhas na interpretação da lei. É descumprimento de atribuições funcionaispor comodismo, falta de condições para aplicabilidade ou de visão.

Daí porque houve a repugnância das entidades que defendem os interesses damulher em relação à lei 9099/95 e não sem razão. Mas não toda a razão.

Os Juizados especiais criminais lidam com a totalidade dos casos de violência degênero que lhe chegam ao conhecimento. Por óbvio que muitos não devem ser levadosao seu conhecimento, daí a importância do controle externo da atividade policial.

Deste universo, uma pequena parcela resultou em uma desgraça, com a morteda mulher depois de tanto apanhar ou com alguma necessidade de atendimentoespecial.

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Sobre esta pequena parcela que se mobilizou a sociedade, mais especifica-mente as entidades de defesa da mulher, lutando pela Lei Maria da Penha, cujo proje-to original era de excepcional qualidade. O que foi aprovado pelo Congresso Nacionale sancionado com pompa pela Presidência da República nem tanto.

Esta pequena parcela de casos que geraram desgraças pessoais serviram deícone ou de modelo para a adoção de medidas que pretendiam serem protetivas,mas de longe está afastada deste desiderato.

Para a mulher que constantemente sofria agressões, a legislação existente erasuficiente, mas infelizmente não aplicada.

A própria lei 9099/95 previa a retirada do autor do lar (art. 69, Parágrafo único. Aoautor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ouassumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigiráfiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seuafastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Redação dada pela Lei nº10.455, de 13.5.2002)). Nunca soube da aplicação deste dispositivo.

Diversas vezes presenciamos a mulher relatar que já havia sofrido com agres-sões anteriormente, mas não promoveu o registro dos fatos em Boletim de Ocorrência.Fazia-o naquele momento, por não suportar mais aquela situação, mas não ofereciarepresentação. Ante a ausência de representação, os autos ou não eram encaminha-dos ao Fórum, sendo arquivados na Delegacia de Policia, ou se encaminhados, eram,igualmente, sumariamente arquivados.

Faltava sensibilidade ou falta de condições aos Operadores do Direito em pro-mover o adequado encaminhamento do problema, até com posterior arquivamento,mas antes por uma prévia análise do ambiente familiar.

Daí insista-se e insistirei sempre, da necessidade da presença da equipe de aten-dimento multidisciplinar em um Centro Integrado de Atenção ou Atendimento à Mulher.

Importante que esta indagação seja sempre feita: já foi agredida anteriormente?Em que condições? Qual o histórico familiar, que de maneira sintética deve ser narrado.

Daí a necessidade de cursos de capacitação dos Operadores do Direito, pre-vistos pela nova lei.

Assim, tendo como norte inspirador esta pequena parcela de violência de gêne-ro é que a Lei Maria da Penha foi idealizada.

Entretanto, longe está a sua capacidade de proteger o universo das mulheresem situação de violência de gênero.

Para a grande maioria (e sem medo de errar, 95% ou mais das mulheres) a Lei9099/95, quando corretamente aplicada, atendia suas expectativas (grifos meus).

O que a mulher deseja é ser amparada, orientada e respeitada nesta fase. Nãodeseja que o marido seja preso, processado e condenado. Sentença condenatórianão lhe resolverá o problema. Ao contrário, agravará o relacionamento. Ainda maisuma sentença penal condenatória tardia.

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Muitas vezes, a mulher procura socorro dizendo: “olha doutor, ele é um bommarido, mas quando bebe vira um diabo.”

Ou seja, a questão de fundo não é a lesão corporal, mas o alcoolismo, a depen-dência a drogas ou até a necessidade de atendimento especializado por um psicólo-go ou psiquiatra.

No mínimo, bastaria a interferência benéfica da equipe multidisciplinar paramostrar ao agressor que a mulher deve ser respeitada como ser humano e que elanão é um objeto que lhe pertence e dele pode fazer o que quiser. Que, daquele mo-mento em diante, as suas ações seriam acompanhadas.

Insisto, trata-se de questão cultural que uma lei mal aplicada ou uma sentençapenal condenatória não resolverá. A mudança da mentalidade se fará paulatinamente.

Mas ainda assim, alguém poderá argüir: mas a lei foi clara ao banir a lei 9099/95para estes casos.

Respondo que há inúmeros casos em que a lei foi descumprida, por ótimosargumentos ou por construção jurisprudencial e mesmo assim estava escrito na lei(representação para vias de fato, por exemplo; delito de menor potencial ofensivoprevisto na lei 9099/95, cujo parâmetro foi alterado e adotado costumeiramente, anteo limite fixado pela lei dos Juizados Especiais Federais, quando esta dizia claramenteque se aplicada somente aos fatos de sua competência).

Os Operadores do Direito devem seguir a lei, que é um texto, mas dentro de umcontexto (histórico e cultural). Não sejam escravos de texto legal, como rábulas mo-dernos. Não utilizem a simplista e cômoda interpretação literal do texto para negar ouimpedir eficácia ao contexto. A História não nos perdoará se perdermos este momen-to impulsionado pelo debate evocado, de iniciarmos a mudança de mentalidade, deconceitos, de comportamento e de atitudes.

As mulheres não estão mais se dirigindo aos Distritos Policiais com medo daeventual prisão dos maridos e companheiros. Em alguns locais, os registros policiaisestão diminuindo. Em outros casos, presenciamos mulheres fazerem uma enormeperegrinação para soltarem os maridos presos em flagrante, arbitrando-se enormefiança, a qual não poderia ser paga.

A mulher e seus filhos necessitam de amparo, que pode ser propiciado pelosistema ou pela rede de proteção previsto pela Lei 11.340/06.

Para os casos patológicos, com os quais tanto se batem, e com muita razão,as entidades de defesa das mulheres, todos os rigores da lei, cujos mecanismos jáexistem.

Basta a capacitação de todos os agentes envolvidos na questão, que poderãoministrar adequados mecanismos a cada caso concreto.

Como já disse, está se matando o paciente com o excesso de remédio.

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Em nenhum momento do processo legislativo se debateu com a necessáriaprofundidade a aplicação ou não da Lei nº 9099/95.

O projeto de lei encaminhado pelo Presidente da República ao Congresso Naci-onal foi fruto do Grupo de Trabalho Interministerial criado pelo Decreto no. 5030, de 31de março de 2004, integrado pela Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheresda Presidência da Republica; pela Casa Civil da Presidência da República, pela Advo-cacia Geral da União, pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Especial dos DireitosHumanos da Presidência da Republica, Secretaria Especial de Políticas de Promo-ção da Igualdade Racial da Presidência da Republica, Ministério da Justiça e Secreta-ria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.

Para subsidiar as discussões, o grupo de trabalho contou com proposta deanteprojeto de lei elaborado pelo Consórcio de Organizações Não GovernamentaisFeministas.

Em diversos momentos, o Projeto de Lei nº 4559, de 2004, faz referência ex-pressa a lei 9099/95:

“Artigo 12 – Em todos os casos de violência doméstica e familiarcontra a mulher, feito o registro do fato, deverá a autoridade poli-cial adotar, de imediato, o seguinte procedimento, alem daquelesjá previstos no Código de Processo Penal e na Lei 9099, de 26de setembro de 1995:”

“Artigo 13 – Ao processo, julgamento e execução das causa cíveise criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica efamiliar contra a mulher, aplicar-se-ão os Códigos de ProcessoPenal e Civil e a Lei 9099, de 28 de Setembro de 1995, no quenão conflitarem com o procedimento estabelecido nesta lei.”

“Artigo 29 – Ao processo, julgamento e execução dos crimes decompetência dos Juizados Especiais Criminais em que estejacaracterizada violência domestica e familiar contra a mulher,aplica-se a Lei 9099, de 26 de Setembro de 1995, no que nãoconflitar com o estabelecido nesta lei.”

Evidente que, por exemplo, pela nova pena adotada nos delitos de lesão corpo-ral dolosa leve (artigo 44 – detenção de 3 meses a 3 anos), modificando o artigo 129,§ 9º do Código Penal, não se permite a transação penal.

Por conseqüência, não se permite a temida cesta básica, nem por via indireta.

Entretanto, proibindo-se a aplicação da lei nº 9099/95, algumas conseqüênciasserão em curto prazo sentidas.

Deverão ser instaurados inquéritos policiais em todas as questões de relaçãode gênero. Sabemos que num passado não muito distante não se instaurava inquéri-to policial para estes delitos de “bagatela”. Somente com a adoção do termo circuns-tanciado estas infrações chegaram ao conhecimento do Estado.

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Por outro lado, o inquérito policial será moroso, como sempre se caracterizoude maneira geral, onde o tempo faz perder sentido a apuração dos fatos desta natu-reza. Que importa para a mulher a apuração de uma agressão física quando o inqué-rito é concluído após um ano? Podem argumentar que a medida cautelar adotadaanteriormente tem este efeito de bloquear a ação do tempo. Alerta-se, porém, que amedida cautelar não tem a finalidade de resolver o conflito, apenas de evitar um malmaior ou o acontecimento de novos delitos.

Voltaremos a verificar que inquéritos policiais nestes “crimes de bagatela” (?)não serão instaurados, pois estas “bobagens” atrapalham a apuração de crimes maisimportantes. Teremos, assim, a volta de estatísticas oficiais e extra-oficiais (divulgadaspor associações ou ONG), pois não se registravam todos os fatos.

As ações penais serão públicas incondicionadas, remanescendo poucas con-dicionadas á representação, o que será abordado mais a frente.

Assim, o juiz só poderá impor alguma medida restaurativa ou mediadora nasentença, pelo que se depreende do artigo 17 da referida lei.

Para tanto, a mulher deverá manter a firme disposição de ver seu marido, com-panheiro, filho, neto ou noivo processado, ao final condenado.

Não é isto que a realidade nos mostra.

A mulher que comparece ao Distrito Policial e ao Fórum, normalmente é pobre,com mais de 3 filhos, que veio para os grandes centros por falta de opção. Algumasresidem num mesmo quintal com os demais “primos” ou parentes por afinidade. Oprimeiro que chega, providencia acomodação para os demais que virão.

Uma constante se presenciava nas audiências de instrução antes do adventoda Lei nº 9099/95: negativa de existência da agressão; negativa de autoria ou até aadmissão de fato inverídico como a vítima lesionou-se porque bateu a cabeça namesa, pois escorregara quando lavava a cozinha, dentre outras “histórias”. Acabavao Magistrado absolvendo por falta de provas ou por “política criminal”.

Na Promotoria de Justiça Criminal de Santana (zona norte da capital paulista)demorou-se vários anos para convencer as mulheres que o oferecimento de repre-sentação não acarretaria a prisão do marido ou companheiro, mas somente comesta manifestação se poderia aplicar medidas restaurativas ou mediadoras.

Na atual quadra econômica do País, se está muito difícil conseguir um empre-go, estando com “ficha limpa”, que dirá com uma condenação?

Que condições pessoais terá a mulher para manter a disposição de ver seucompanheiro processado e, ao final condenado? Somente aquelas que efetivamentenecessitam de atendimento de urgência preconizado por esta lei.

As demais, que é a grande maioria, necessitam de amparo de equipemultidisciplinar e não de sentença condenatória, que pode agravar a situação de seurelacionamento doméstico ou familiar.

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Assim, a interpretação literal do artigo 41 não se compatibiliza com o seu artigo4º. A vontade do legislador é a exposta no artigo 17, que recomenda que as condiçõespenais fixadas devem ser suficientes e eficientes, dirigidas ao cerne do problema.

Uma outra ótica pode ser levantada quanto a esta questão, a da inconstitucio-nalidade. Como dito no início desta exposição, a Constituição Federal determinou acriação de Juizados Especiais para delitos de menor potencial ofensivo, visando aceleridade, a coibição de sentimento de impunidade e a adoção de medidas queamparem a vítima.

É esta a intenção do legislador originário.

A nova lei, ao restringir a adoção de medidas despenalizadoras, mas tambémas restaurativas e mediadoras da lei nº 9099/95, fere frontalmente o mandamentoconstitucional.

Certo que nas lesões corporais dolosas leves não se permite mais a transaçãopenal, mas nada impede que se promova a suspensão processual (artigo 89 da lei9099/95), estabelecendo-se requisitos de cumprimento, inclusive com o apoio daequipe multidisciplinar.

Assim, a lei 9099/95 não pode ser aplicada naquilo que não conflitar com avontade do legislador específico.

Aqueles que interpretarem literalmente o artigo 41 poderão dizer que a lei foiclara quanto à não aplicação da Lei nº 9099/95. Eu indago, sob o prisma do artigo 4ºe também da clara intenção do legislador: com o atual formato de persecução crimi-nal, com os seus órgãos que não se comunicam, com inquéritos policiais morosos esem objetividade, sem qualquer possibilidade de atendimento a vitima, a não aplica-ção das medidas restaurativas da Lei nº 9099/95 veremos a resolução de problemasdesta natureza com a prolação de sentenças condenatórias pelos Juizes de Direito?

Mais ainda, mesmo que o agressor seja condenado, sendo primário e de bonsantecedentes, quando muito o Magistrado fixará a pena em 6 meses de detenção.Poderá impor-lhe como condição alternativa a freqüência a cursos, tratamentos, den-tre outros, como pode ser feito pela adequação dos artigos 60, Par.xxx 2º. e 44 doCódigo Penal e até artigo 45 da Lei 11340.06. Se o réu não cumprir esta condiçãoalternativa, ou qualquer outra condição imposta em suspensão condicional da pena(sursis) resta-lhe cumprir a pena de 6 meses de detenção, em regime aberto. Ouseja, nada. Não se esquecendo que ele já se encontra condenado.

Já o artigo 89 da Lei 9099/95, possibilita a imposição de medidas restaurativasou mediadoras, evitando-se o processo e a condenação. Esta será a conseqüênciada falta de cooperação e boa vontade do agressor.

Outra questão tormentosa, decorrente deste artigo, é a relativa à representação.

A Lei nº 9099/95 transformou em ação penal pública condicionada à representa-ção as lesões corporais dolosas leves (artigo 88). Com a não aplicação da Lei nº9099/95, como informa a lei número 11.340/06, somente através de inquérito policial

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se poderá apurar lesão corporal dolosa leve decorrente de relações de gênero. Porconstrução doutrinária e jurisprudencial, exigia-se representação para as contraven-ções penais de vias de fato (art. 21 da LCP).

Para estas também se acabou esta exigência? Entendemos que não. E aindase deve oferecer representação ao delito de ameaça (art. 147 do CP), não atingidopela nova Lei.

Mais ainda, nos crimes de ameaça é possível audiência para tentativa de tran-sação penal, respeitada a vedação do artigo 17. Para as contravenções penais, omencionado dispositivo legal não as alcança, pois a lei determinou a inaplicabilidadeda Lei 9099/95 quando se trata de crime. Idêntico raciocínio, ou seja, de proteção àmulher, deve ser feito quanto aos delitos contra a honra (art. 138/140 do CP), invasãode domicilio (art. 150 do CP), dano (art. 163 do CP), atentado ao pudor mediantefraude (art. 216 do CP) e assédio sexual (art. 216 A do CP).

A confusão parece crescer com os termos do artigo 16:

“Nas ações penais públicas condicionadas à representaçãoda ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renún-cia à representação perante o juiz, em audiência especial-mente designada com tal finalidade, antes do recebimentoda denúncia e ouvido o Ministério Público.”

A representação possibilita a conciliação civil, atendendo aos interesses da viti-ma que podem estar na esfera da reparação civil por danos materiais e morais.

A própria lei admite a existência de representação, quando elenca as provi-dências policiais que devem ser tomadas, em seu artigo 12. No inciso I especifica:“ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo,se apresentada.”

O projeto original (PL 4559, de 2004) era mais claro quanto à necessidade derepresentação em todos os delitos decorrentes de relações de gênero:

“Art. 30 – nos casos de violência domestica e familiar contra amulher a ação penal será publica condicionada a representação.”

No caso do artigo 16, ocorreu, mais uma vez, uma impropriedade técnica.

A renúncia só pode ser exercida antes do oferecimento da representação. Quan-do esta é oferecida, só é cabível a retratação da representação.

Pode ser entendido que interpretar renúncia como retratação seria “in malampartem”, ante os reflexos penais imediatos, o que me parece sem fundamento.

Explica-se: o artigo 16 disciplina que a renúncia (ato unilateral sem condiciona-mentos) ao direito de representação só poderia ser dada em Juízo antes do recebi-mento da denúncia. A renúncia à representação só é cabível quando esta não foioferecida. Acaso esta já tenha sido oferecida, só cabe retratação. Se renúncia só

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existe antes da representação. Portanto, o Ministério Público não poderia ter ofereci-do denúncia sem a antecedente representação, como claro está o artigo 25 do CPP(“A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia”).

Não se entende conclusão diversa, pois se obrigaria o Promotor de Justiçaoferecer denúncia que fica condicionada o seu recebimento a eventual manifestaçãoda vítima, em uma produção inútil de trabalho deste Órgão Estatal.

Em suma, deve-se entender que o artigo 16 da nova lei refere-se à retratação enão à renúncia, seguindo-se as regras do artigo 25 do CPP. Críticas podem surgir aoformalismo exigido para esta retratação, com a designação de uma audiência so-mente para esta finalidade, quando para o oferecimento de representação não serequer qualquer documento especial, bastando a mera manifestação de vontade davítima em ver seu ofensor processado, perante o Delegado de Polícia, Promotor deJustiça ou Juiz de Direito. Este formalismo deve ser entendido como uma forma deproteção à mulher que perante um magistrado, consciente dos objetivos da nova lei,vai questioná-la sobre a sua livre vontade em se retratar ou se está sendo coagida ouaté enganada quanto às conseqüências de seu ato. Se depois de devidamenteesclarecida, a mulher continuar a desejar a retratação, nada poderá ser feito, maspelo menos foi devida, correta e tecnicamente esclarecida. Entendo que esta é aintenção do legislador.

Fica claro que o legislador não aboliu a representação. Esta continua a serexigida nos demais casos não abrangidos pela Lei 9099/95, especialmente aos deli-tos de ameaça (artigo 147 do Código Penal) e na contravenção penal de vias de fato(artigo 21 da LCP).

Nestes casos, entendemos ser possível a elaboração de termos circunstancia-dos e a designação de audiência preliminar, inclusive com proposta de transaçãopenal, respeitada a vedação constante no artigo 17 da lei.

Saliente-se que não se deve aplicar a lei 9099/95 naquilo que ela conflitar com apresente lei.

Tem que ser entendido que representação é uma das formas que propicia oacordo. É instituto de natureza processual, privativo do ofendido, que se não ofereci-do, impede a persecução criminal. Esta prerrogativa é forte aliada para a mediação econciliação quando bem e corretamente utilizada.

Designada audiência preliminar, comparecendo as partes, tenta-se a concilia-ção civil. Se esta for bem sucedida, homologa-se o acordo e há renuncia ao direito deoferecer representação (artigo 74, Parágrafo Único da Lei nº 9099/95), cumprindo-se,assim, o disposto no artigo 16 da citada lei.

Em muitas destas audiências se consegue atender os reclamos das vítimas,atentando-se ao seu norte balizado no artigo 4º já comentado.

Infrutífero o acordo, a transação penal pode ser oferecida, com a proposta deprestação de serviços à comunidade e, principalmente e por analogia, a limitação de

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fim de semana, consistente “na obrigação de permanecer, aos sábados e domin-gos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimen-to adequado, podendo ser ministrados ao condenado cursos e palestras ouatribuídas atividades educativas” (art. 48 do Código Penal).

Tal atividade em nada se diferencia do proposto pela nova lei, em seu artigo 45,que alterou a lei de execução penal ao possibilitar a imposição de comparecimentoobrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Acaso for infrutífera a conciliação civil e o autor não faça jus ao benefício pro-cessual, só caberá o oferecimento de denúncia. Antes de seu oferecimento, a vítimaserá consultada quanto ao oferecimento de representação.

Por fim, deve-se esclarecer que a representação deve ser exigida ainda emfase de Inquérito Policial, pois é condição de procedibilidade (artigo 5º, § 4º do CPP =O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação,não poderá sem ela ser iniciado).

Apesar de a representação não ser condição de procedibilidade em casos quese pode registrar o fato mediante termo circunstanciado, que só será tomada apóstentativa de acordo entre as partes, (Art. 75 da Lei nº 9099/95 = Não obtida a compo-sição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade deexercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo), nadaimpede que a autoridade policial colha esta manifestação de vontade, mesmo porqueserve para balizar a adoção de medidas futuras, até a designação de audiência pre-vista no artigo 16.

O Projeto Original (PL 4559, de 2004) adotava um procedimento extremamentesimples e salutar, previsto em seus artigos 35 a 37. Recebido o expediente, o Juizdecidiria de plano as medidas cautelares pleiteadas e designava audiência de apre-sentação. As partes eram regularmente intimadas e compareciam acompanhadasde seus advogados. Acaso não comparecessem tecnicamente assistidas, a assis-tência judiciária gratuita era designada. Iniciava-se a mediação, ouvindo-se primeiro avítima, conduzida por juiz ou mediador devidamente habilitado. Sob pena deresponsabilização, a mulher não poderia ser coagida direta ou indiretamente paraaceitar a conciliação. Se a medida obtiver sucesso, reduz-se a termo, sendo homolo-gada. Acaso não se obtenha a conciliação, é dada a vitima a oportunidade de oferecerrepresentação. Se não desejar oferecer representação naquele momento, este direi-to poderá ser exercido no prazo legal. Este prazo se inicia desta audiência de apre-sentação. A retratação ou a renuncia são serão válidas após ratificação em audiên-cia. Oferecendo representação, o juiz colhe o depoimento da ofendida e do agressor,separadamente, encaminhando o caso à equipe de atendimento multidisciplinar ounúcleo de atendimento congênere, podendo requisitar outros exames periciais.

Na seqüência, é designada uma nova audiência, agora denominada Audiênciade Instrução e julgamento, onde o Ministério Público, atento aos mesmos parâmetrosfixados pela Lei nº 9099/95, em seu artigo 76, acrescido de mais uma condição

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impeditiva consistente no descumprimento de medida cautelar aplicada, proporá aaplicação imediata de pena restritiva de direitos, sendo vedada a prestação pecuniária,cesta básica e multa. Poderá o Ministério Publico se valer dos subsídios apresenta-dos pela equipe de atendimento multidisciplinar.

Não sendo possível a transação penal, denuncia oral será oferecida, prosse-guindo-se em audiência de instrução e julgamento. Para tanto, o autor, no mandadode citação para esta audiência deverá ser alertado da necessidade de arrolar suastestemunhas até cinco dias antes da audiência acaso pretenda ouvi-las.

Nova audiência seria designada, com a oitiva de testemunhas de acusação edefesa, debates e julgamento.

Era este o procedimento previsto no projeto de lei encaminhado ao CongressoNacional, que obrigava o Juiz de Direito encaminhar o caso à equipe multi-disciplinarou de atendimento, antes da audiência de transação penal.

Em resumo: deve ser exigida a representação para os delitos que antes eraexigida, como a ameaça, que mais comumente ocorre nestes casos.

Quanto às lesões corporais dolosas leves, impossível a transação penal e aelaboração de termo circunstanciado. Há que se pensado um novo procedimentoadministrativo, mais célere que o Inquérito Policial e mais aparelhado que o singelotermo circunstanciado. Nada impede a suspensão processual prevista no art. 89 daLei nº 9099/95.

Quanto à contravenção penal de vias de fato, a representação continuará a serexigida, conforme construção doutrinária e jurisprudencial.

Quanto às lesões corporais dolosas graves (§ 1º, do art. 129 do CP), ante oaumento de 1/3 da pena, previsto no artigo 129, § 10, do CP, que não foi alterado pelaLei, não é permitida a suspensão processual.

Se a mulher, vítima de lesão corporal dolosa leve decorrente de violência degênero for portadora de deficiência, a pena será aumentada em 1/3 o que não retira apossibilidade de suspensão processual, por si só. Se a lesão for de natureza graveou gravíssima, já não se podia conceder qualquer benefício processual previsto naLei nº 9099/95. Como se trata de duas causas de aumento de pena (uma por sermulher, outra por ser portadora de deficiência), uma funcionará como causa de au-mento de pena e a outra como agravante, devendo o magistrado explicitar esta con-dição quando da prolação da sentença.

Quanto aos demais delitos (principalmente ameaça e vias de fato) nada impedea elaboração de termo circunstanciado e a designação de audiência preliminar, res-peitada a restrição imposta no artigo 17 da lei.

O procedimento sumaríssimo previsto no artigo 77 da Lei 9099/95 é aplicável,respeitando-se o limite da pena prevista. Caso não seja possível sua aplicação,subsidiariamente subsiste o procedimento do CPP.

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Em caso de continuidade delitiva, aplica-se a nova lei, mesmo que mais grave,ante a súmula 711 do STF: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuadoou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continui-dade ou da permanência”.

Há, agora, uma nova possibilidade de decretação de prisão preventiva.

O artigo 20, copiando os mesmos termos do Código de Processo Penal, dis-põe que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberáa prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimentodo Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.”

O parágrafo único informa que a medida pode ser revogada se esta não maisseja necessária, bem como pode ser novamente decretada se novas razões justifi-carem o ato, numa cópia do artigo 316 do CPP.

As condições para a decretação da prisão preventiva são as preconizadas noCódigo de Processo Penal, em qualquer fase do inquérito policial ou do processo,para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instruçãocriminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existên-cia do crime e indício suficiente de autoria. Ademais, o Código impunha outras condi-ções, que não se encontravam nos delitos cometidos nas relações de gênero.

Esta inovação alarga as possibilidades desta medida processual restritiva daliberdade, pois o Código de Processo Penal só a admite nos crimes dolosos, punidoscom reclusão ou punidos com detenção desde que haja indício que o indiciado sejavadio ou paire dúvida sobre sua identidade e não se fornecer elementos para seuesclarecimento, bem como houver sido condenado por crime doloso anteriormente(art. 313 do CPP).

Por isso, apenas os termos do artigo 20 trariam incompatibilidade, ante a penadeterminada para os delitos cometidos nas relações de gênero.

O legislador, então, acrescentou o inciso IV ao artigo 313 do Código de Proces-so Penal:

“IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar con-tra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir aexecução das medidas protetivas de urgência.”

Como em todas as outras hipóteses, em sendo necessário, decreta-se a medi-da restritiva. Acaso esta não mais seja necessária, deve ser revogada.

Entretanto, esta medida restritiva de liberdade foi adotada para “garantir a exe-cução das medidas protetivas de urgência.”

Como as medidas protetivas são de natureza civil e cautelares, seria uma prisãode natureza civil e não penal, em que pese estar inserida no Código de Processo Penal.

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DAS ALTERAÇOES DOS TIPOS PENAIS E AGRAVANTES

O art. 43 alterou a alínea f do inciso II do art. 61 Código Penal, que possuía aseguinte redação:

“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quan-do não constituem ou qualificam o crime:

II - ter o agente cometido o crime:

f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações do-mésticas, de coabitação ou de hospitalidade;”

A nova redação está assim disposta:

“f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de rela-ções domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, oucom violência contra a mulher na forma da lei específica;”(grifos nossos)

Parece-me que a alteração é supérflua, pois o dispositivo anterior já permitiaesta agravante.

O art. 44 alterou a redação do § 9º do art. 129 do Código Penal, alterado pela Leinº 10.886, de 2004, com a seguinte alteração do limite da pena:

“§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente,irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenhaconvivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações do-mésticas, de coabitação ou de hospitalidade:”

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

A nova redação assim dispôs:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

A primeira observação incide na redução da pena mínima cominada ao tipo.Sabemos que na fixação da pena, o patamar que dá base a todo o cálculo é a penamínima. Se a vontade do legislador era uma maior severidade, a diminuição da penamínima gerará o efeito oposto.

Talvez a alteração seja para uma adequação, pois o tipo se destina às lesõescorporais dolosas leves, que prevê esta pena mínima de 3 meses de detenção em suaforma simples, no caput. Não haveria motivo para se manter duplicada a pena mínima.Com isto, pode-se entender que a nova lei corrigiu uma impropriedade anterior.

Mais ainda, uma lei destinada exclusivamente a mulher como sujeito passivoaltera dispositivo penal que se aplica a todos, indistintamente. Bem provável que seobjete que referida alteração se aplica somente à mulher, o que não é possível seestender, mesmo por esforço de interpretação.

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Com o aumento da pena máxima, não se permite a transação penal. Se nãofosse esta alteração, a transação penal seria possível, principalmente a condiçãoprevista no artigo 45, consistente no comparecimento obrigatório do agressor a pro-gramas de recuperação e reeducação.

Esta condição poderá ser inserida no rol das condições da suspensão condici-onal do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9099/95.

O mesmo artigo 44 acrescentou um parágrafo ao artigo 129 do Código Penal:

§ 11º Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumenta-da de um terço se o crime for cometido contra pessoa por-tadora de deficiência.

Esta causa de aumento de pena não impede a suspensão processual previstano artigo 89 da Lei nº 9099/95.

Por fim, o art. 45 acrescentou um parágrafo ao art. 152 da Lei no 7.210, de 11 dejulho de 1984 (Lei de Execução Penal), que possui a seguinte redação:

“Art. 152. Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempode permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividadeseducativas.”

Com o novo parágrafo:

“Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra amulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigató-rio do agressor a programas de recuperação e reeducação.”

DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Lei cuidou da atuação do Ministério Público em um capítulo, obrigando suaintervenção em todas as causas, sejam elas de natureza cível ou criminal, quandonão for parte (artigo 25), podendo requisitar força policial e serviços públicos de saú-de, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros. Poderá, ainda,fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher emsituação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas adminis-trativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas.

Por fim, atribuiu ao Ministério Público a incumbência de “cadastrar os casosde violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Estranha-se esta atribuição ao Ministério Publico, pois inicialmente estava afetaas Varas Criminais e Juizados Especiais Criminais (artigo 43 do PL 4559, de 2004).Este cadastro era de conhecimento reservado aos Juizes e Ministério Público.

Após, estes dados deveriam integrar as bases de dados dos órgãos oficiais doSistema de Justiça e Segurança, a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e

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informações relativo às mulheres. Para tanto, as Secretarias de Segurança Públicados Estados deveriam repassar esta base de dados ao Ministério da Justiça (artigo39 do Projeto de Lei da Câmara número 37, de 2006) ou como dispôs a Lei:

“Art. 38- As estatísticas sobre a violência doméstica e familiarcontra a mulher serão incluídas nas bases de dados dos ór-gãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de sub-sidiar o sistema nacional de dados e informações relativo àsmulheres.

Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dosEstados e do Distrito Federal poderão remeter suas informa-ções criminais para a base de dados do Ministério da Justiça.”

Esta atribuição gerará graves problemas administrativos para sua implantação,pois o Ministério Público não faz parte e nem participa de nenhum banco de dadosdesta espécie.

O banco de dados da Secretaria de Segurança Publica são alimentados espe-cialmente pela Polícia Civil. O do Poder Judiciário pelo próprio Poder.

Há que se ressaltar que os bancos de dados não se comunicam, não interageme há extrema dificuldade em se obter acesso a alguns dados, que dirá integrar osistema.

De outro lado, não se compreende que um fato social criminoso receba trata-mento estatístico pela Polícia Militar, integrando sua base de dados. Ao ser encami-nhado à Polícia Civil sofra outro procedimento de cadastramento. Remetidos os au-tos de inquérito policial ou termo circunstanciado ao Poder judiciário, novamente ésubmetido a um outro sistema de cadastramento e inserção de dados. Ao mesmotempo, quando remetidos ao Ministério Público, é submetido a um novo cadastramento.É o que se observa em São Paulo.

Uma pequena observação, mesmo de um leigo, não pode deixar de ser feita: osistema ou banco de dados não obriga re-tarefas, em enorme dispêndio de esforçohumano e gastos financeiros? Não seria possível integrá-los?

Voltando ao tema: agora, o Ministério Público, depois fato criminoso ser subme-tido a dois procedimentos de registro e estatística da Secretaria de Segurança Públi-ca, na seqüência passar pelo mesmo tratamento no Poder Judiciário, terá que sersubmetido a um novo cadastramento?

Será uma medida contraproducente, que gerará difíceis entraves administrati-vos para sua realização.

De outro lado, em que momento o Ministério Público faria este cadastramento.Seria conveniente se pensar na remessa dos autos pela Polícia ao Ministério Públicoantes de encaminhá-los ao Poder Judiciário ou promover a alteração ou adequaçãodeste artigo.

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Uma outra tarefa é cometida ao Ministério Público, no art. 37, qual seja, a defesados interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei, atuando concorrentementecom associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano,nos termos da legislação civil (em similitude à Lei nº 7347/85 - Ação Civil Pública, emseu artigo 5º), cujo lapso temporal poderá ser dispensado pelo juiz quando entenderque não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento dademanda coletiva.

A lei previu em suas Disposições Transitórias a acumulação de competênciacivil e criminal das varas criminais para o processo e julgamento das causas decor-rentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto nãoestruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, garan-tindo o direito de preferência destas causas (artigo 33).

Nem é necessário ressaltar que estes Juizados de Violência Doméstica e Fa-miliar contra a Mulher não serão criados de maneira genérica. O que acontecerá,como já se fez no Estado de São Paulo, é alterar a competência das Varas Criminais,com adequação da denominação, evitando-se gastos.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu Órgão Especial, no dia04 de Outubro de 2006, editou a resolução nº 286/06, ante a necessidade deredistribuição das competências nas Varas Criminais dos Foros Regionais, com acriação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força dodisposto na Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, alterando a competência destasvaras e alterando sua denominação, passando a chamar-se Vara Criminal e doJuizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Foro Regional.

Urge que tenhamos a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiarcontra a Mulher, devidamente integrados por profissionais de diversas áreas (equipemultidisciplinar), pois enquanto houver a acumulação de competência com as VarasCriminais ou com os Juizados Especiais Criminais, sem sua integração ao sistemaou rede de proteção, nada de mais concreto visualizaremos, a não ser experiênciasisoladas mas que não traduzem a realidade (Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizadosde Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as compe-tências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violênciadoméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiadapela legislação processual pertinente.).

Quanto ao direito de preferência para o processo e o julgamento que estascausas possuem, por força do Parágrafo Único do artigo 33, nas varas criminais, teráque ser adequado ante a existência de outras preferências legais, como os proces-sos dos Idosos, além dos processos de réus presos.

À evidência que este texto não encerra verdades absolutas, mas pretende quea violência nas relações de gênero seja discutida com amplitude e profundidade.

Não pode encerrar debate circunscrito a apenas uma parcela do universo esco-lhido pelo legislador, mas deve abranger-lhe o seu máximo possível.

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Não pode considerar que apenas um setor da sociedade pode manietar as va-riáveis da questão para resolvê-las com mecanismos ultrapassados e desfocadosde seu cerne. O inquérito policial da Polícia Judiciária, a denúncia do Ministério Públi-co e a sentença penal condenatória do Poder Judiciário não guardam o poder alquímicoalmejado. Eles têm sua importância, que é grande, quando coordenados com outrosmecanismos e quando utilizados no momento oportuno. Em certos casos, somenteestes mecanismos devam ser utilizados, mas não de maneira generalizante.

A violência nas relações de gênero é histórica, cultural e mundial. No Brasil,alie-se o gravame da desigualdade social, em todos os sentidos. O Direito Penal, emque pese aparecer no natural movimento pendular que envolve o debate, não podeser utilizado como meio de pressão e terror para mudanças desta magnitude.

A questão atinge a todos da sociedade e nos obriga.

Camilo Pileggi,

1º Promotor de Justiça Criminal de Santana

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ASPECTASPECTASPECTASPECTASPECTOSOSOSOSOSPOLÊMICOSPOLÊMICOSPOLÊMICOSPOLÊMICOSPOLÊMICOS

Luis Paulo Sirvinskas,

4º Promotor de JustiçaCriminal da Penha de França

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ASPECTOS POLÊMICOSSOBRE A LEI N. 11.340,

DE 7 DE AGOSTO DE 2006

(que cria mecanismos para coibir a

violência doméstica e familiar contra a mulher)

Sumário: 1. Fundamento internacional e constitucional da prote-ção da mulher. 2. Formas de violência doméstica e familiar. 3.Programa de assistência à mulher. 4. Procedimentos cíveis ecriminais. 4.1. Competência. 4.2. Representação da ofendida. 4.3.Medidas Protetivas de Urgência. 4.4. Prisão Preventiva. 5. O Mi-nistério Público e a violência doméstica. 6. A Assistência Judiciá-ria e a violência doméstica. 7. Juizados de Violência Doméstica eFamiliar contra a Mulher. 8. Agravamento do delito de lesões cor-porais. 9. Inaplicabilidade da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de1995. 10. Conclusão. 11. Referências bibliográficas.

1. FUNDAMENTO INTERNACIONAL E CONSTITUCIONAL

DA PROTEÇÃO DA MULHER

As normas são criadas para estabelecer regras com a finalidade de disciplinar,via de regra, as condutas humanas conflituosas. Só quando surge o conflito é quePoder Público intervém na sociedade com a finalidade de regulamentar condutassocialmente reprováveis. As pessoas precisam aprender a viver em sociedade e res-peitar tais regras sob pena de se impor algum tipo de sanção. Assim, norma semsanção é ineficaz e sanção sem regra é abuso. É através da educação que a criançacresce com esse sentimento de que a lei é importante e deve ser respeitada para seprocurar viver em harmonia na sociedade.

As pessoas nascem com características genéticas diferentes uma das outrase apesar de serem igualmente educadas, respeitadas suas peculiaridades, elas cres-cem com personalidades completamente diversas. A mulher passa a ser a primeiraeducadora dos filhos. E esse instinto maternal faz com que a mulher se torne cadavez mais submissa ao amor fraternal, dedicando-se completamente a família.

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Historicamente, a mulher sempre esteve numa situação de inferioridade emrelação ao homem. Até pouco tempo atrás ele era o chefe familiar e possuía o contro-le do lar. A luta da mulher foi longa e sua conquista foi reconhecida internacionalmentepelos inúmeros tratados, convenções e declarações que foram sendo inseridos nalegislação interna de cada País.

Um dos princípios mais importante foi o da igualdade, ou seja, todos são iguaisperante a lei (art. 5º, caput), tanto os homens como as mulheres são iguais em direi-tos e obrigações (art. 5º, I, da CF). Essa igualmente não é absoluta. É uma igualdadeformal – legal. Pretende-se, com isso, transformá-la numa igualdade material – real,na exata medida de sua desigualdade.

A proteção da mulher é um dos objetivos a ser alcançado pelo Poder Público.Pretende-se criar um subsistema jurídico para sua proteção, à semelhança do Esta-tuto do Idoso, dos Portadores de Necessidades Especiais e da Criança e do Adoles-cente, devido sua situação de inferioridade na sociedade, pois nem todas as mulhe-res possuem ainda uma situação de independência em relação ao homem. No Bra-sil, a maioria absoluta das mulheres depende do homem e, às vezes, são obrigadasa se submeter à situação de toda ordem para poder manter a relação familiar.

Respaldado na Declaração dos Direitos Humanos (1948), na Convenção sobre aEliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (1980 e 1984), na Con-venção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1995)e no art. 226, § 8º, da Constituição Federal, o legislador instituiu a Lei n. 11.340, de 7 deagosto de 2006, visando combater a violência doméstica e familiar contra a mulher.Trouxe, citada lei, um conjunto de regras penais e extrapenais, princípios, objetivos ediretrizes com vistas à prevenção de eventuais violências no seio doméstico e familiar,protegendo-se especialmente a mulher - vítima das mais diversas formas de violência.Trata-se de um programa que deverá ser gradativamente implantado pelos PoderesPúblicos constituídos ao longo do tempo sob pena de torná-la ineficaz.

Houve, além disso, um movimento muito forte surgido na sociedade por causa dasituação de Maria da Penha Maia que sofreu todo tipo de violência durante muito temponas mãos de seu marido, ficando, por causa disso, paraplégica. Foi, por essa razão, quese criou a lei, denominando-a simplesmente de Lei Maria da Penha, eis que a legislaçãoaté então não era suficiente para coibir a violência doméstica, pois a Lei. 9.099/95, quetrata dos Juizados Especial Criminais, não mais atendia aos anseios da mulher. Esta leipretendia facilitar o acesso da população à justiça e desafogar o judiciário que estavaabarrotado de processos de infração de menor potencial ofensivo. Com isso pretendia-seainda: a) reduzir a morosidade judicial; b) propor medidas despenalizadoras; e c) diminuira impunidade. A lei, como se vê, objetivava assegurar, fundamentado no Direito PenalMínimo, a mínima intervenção estatal com máximas garantias.

A finalidade da Lei n. 9.099/95 foi alcançada, pois a justiça tornou-se mais rápi-da apesar de a pena ser mais branda. Mas, no que tange a proteção da mulher contraa violência doméstica, as medidas adotadas (pagamentos de multa e entregas decestas básicas de alimentos destinadas às entidades de caridade, por exemplo) não

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eram suficientes para punir o agressor adequadamente e nem servia como efeitopedagógico, razão pela qual se criou a presente lei com o fim de aumentar a pena eafastar a aplicabilidade da Lei n. 9.099/95.

Com o advento desta lei, não mais prevalece à velha máxima: “Em briga demarido e mulher não se mete a colher”.

2. FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Os documentos internacionais protetivos da mulher procura estabelecer meca-nismos efetivos para a sua proteção contra a violência doméstica no seio familiar. Essanecessidade se dá por ser um problema mundial e não só brasileiro. A lei brasileira, noentanto, delimitou as formas de violência doméstica e familiar, como sendo “qualqueração ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (art. 5º). Gênero é a diferença entrehomem e mulher. É a relação de gênero - diferença sexual, cujo dispositivo (art. 5º.)deverá ser interpretado conjuntamente com o art. 4º da citada Lei. Denomina-se tam-bém de Direito Penal de Gênero1. A unidade doméstica é o espaço de convívio perma-nente ou esporádico de pessoas, com ou sem vínculo familiar (art. 5º, I). A família, porsua vez, é a união de pessoas constituídas por laços naturais, por afinidade ou porvontade expressa (art. 5º, II). A união íntima de afeto entre pessoas do mesmo sexo ounão com quem conviva ou tenha convivido, independente da coabitação (art. 5º. III).

Não há dúvida que a violência doméstica e familiar abrange, não somente aque-les que vivem sob o mesmo teto, mas também aqueles que coabitavam antes daseparação, os quais continuam a manter o vínculo familiar ou doméstico, especial-mente se dessa coabitação advieram filhos. Essa proteção abrange somente a mu-lher, na qualidade de esposa, amásia, filha, sogra, avó, neta, nora, namorada, inclusi-ve relações homosexuais afetivas feminina.

Vê-se, pois, que o bem jurídico protegido é a mulher que sofre todo e qualquertipo de violência doméstica ou familiar.

São cinco as formas de violência contra a mulher: a) física – quando o agressorofende a integridade ou a saúde corporal da mulher; b) psicológica – quando o agressorcausa dano emocional e diminuição da auto-estima ou que vise prejudicar e perturbar opleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,

1. Renato de Mello Jorge Silveira ensina que o “cuidado específico é, sempre, no sentido de se evitar um DireitoPenal orientado pelo gênero, mostrando-se, indistintamente, válido a homens e mulheres. Ainda que estas venhama ser as principais destinatárias de proteções específicas, não podem ser as únicas, sob pena odiosa de umadiscriminação que só pode vir a reforçar, nunca combater, anos e séculos de segregação social e de tolerânciade violência em ambientes internos. Aspectos morais desse jaez nunca contribuíram, senão só reforçaram o que, hoje, se pretende combater, justificando, dessa forma, todo o cuidado emreformas legislativas atuais e futuras” (Direito penal simbólico e lei de combate à violência doméstica e familiarcontra a mulher, Boletim do IBCCRIM n. 167, ano 14, outubro/2006, p. 8).

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isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio quelhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; c) sexual – quando oagressor constrange a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexu-al não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; induza acomercialização ou a utilização, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeçade usar qualquer método contraceptivo ou que a force a matrimônio, à gravidez aoaborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ouque limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; d) patrimonial– quando o agressor retém, subtrai, destrói parcial ou total seus objetos, instrumen-tos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômi-cos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; e e) moral – quando oagressor ofende a honra da mulher (calúnia, difamação ou injúria).

Nem todas as condutas descritas constituem crime tipificado no Código Penalou em legislação penal especial. Há a necessidade de se amoldar tais condutas emtipos penais existentes.

Ressalte-se, além disso, que nem todas as condutas tipificadas penalmente sãocondicionadas a representação, afastando, portanto, a competência do Juizado de Vio-lência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Nesses casos, não pode ser objeto derenúncia (art. 16), cujas condutas delituosas serão processadas na Vara Comum.

3. PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA À MULHER

A lei instituiu um programa de assistência à mulher, abrangendo a participaçãoarticulada dos Poderes Públicos (Poder Judiciário, Ministério Público, DefensoriaPública, Equipe Multidisciplinar etc), da família, da sociedade e da OGN(s). Ao PoderPúblico (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) compete a implantação efetivada política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar, facilitando a integraçãooperacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com asáreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habita-ção, celebrando-se convênios, protocolos ajustes termos ou outros instrumentos depromoção de parceria entre eles e também com entidades não-governamentais.

Essa integração deve proporcionar condições para promoção de estudos e pes-quisas, estatísticas e outras informações sociológicas sobre as várias etnias com afinalidade de analisar a violência doméstica para sistematização de dados, divulgando-os pelos meios de comunicação os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Deve ainda o Poder Público capacitar pessoas voluntárias para a divulgação nasescolas de campanha educativas de prevenção da violência doméstica e familiar con-tra a mulher, bem como funcionários públicos, policiais civis e militares, guarda munici-pal e corpo de bombeiros que tenham a responsabilidade no atendimento da mulher.

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Há a necessidade de se inserir nos currículos escolares de todos os níveis deensino conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ouetnia e os problemas da violência doméstica e familiar contra a mulher.

É também de competência do Poder Público proporcionar assistência à mu-lher, devendo dar prioridade ao seu atendimento, quando o juiz assim determinar,fixando prazo certo, para a inclusão da mulher em situação de violência doméstica nocadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal, visan-do à proteção de sua integridade física e psicológica.

Cabe, deste modo, não só ao Poder Público, mas também a família e a socie-dade criar condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos contidos na lei(art. 1º, § 2º).

4. PROCEDIMENTOS CÍVEIS E CRIMINAIS

Havendo a ocorrência de um crime proveniente de violência doméstica e fa-miliar contra a mulher, a notitia criminis deverá ser levada ao conhecimento da au-toridade policial pela mulher para a lavratura do Boletim de Ocorrência, adotando-se as seguintes providências: a) garantir a integridade física da mulher, no tempoque for necessário para que não venha a ser novamente agredida; b) encaminhar amulher para tratamento médico, se o caso; c) em havendo risco de vida, deverá serproporcionado transporte à mulher e aos seus familiares a abrigo ou local seguro;d) proporcionar segurança policial para a mulher retirar seus pertences da residên-cia, garantindo-lhe segurança inclusive dentro da residência; e e) informar a mulherdos seus direitos contidos na lei.

Esclareça-se que recentemente foi criada, na esfera estadual paulista, a Lei n.12.256/2006, que instituiu Programa de Prevenção à Violência Doméstica contra Cri-anças e Adolescentes, bem como o seu atendimento quanto vítimas desta violência.E a Lei Complementar n. 119/2005, incluiu no art. 3º da Lei Complementar n. 79/94, amanutenção de casas de abrigo para vítimas de violência doméstica, podendo serutilizada para a mulher vítima dessa violência.

A autoridade policial, após colher o depoimento da mulher, deverá também to-mar sua representação. Após a produção das provas necessárias, o delegado depolícia remeterá, no prazo de quarenta e oito horas, o expediente ao juiz com o pedidoda ofendida, para a concessão das medidas protetivas de urgência.

Trata-se, como se vê, de um procedimento administrativo preliminar que deveráser remetido ao juiz para a concessão ou não das medidas de urgência. Tal expedientedeverá vir com todos os documentos e provas produzidas até aquele momento. Emsendo o caso, o juiz, ouvido o órgão ministerial, deferirá ou não a concessão das medi-das de urgência. Concedidas tais medidas, os autos permanecerão em cartório até avinda do inquérito policial concluído, apensando-os em seguida. Caso contrário, o juiz

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poderá designar audiência preliminar de justificação para a oitiva das partes e, eventu-almente, colher a desistência ou a retratação da representação colhida na delegacia depolícia ou a renúncia caso não tenha sido apresentada na época (art. 12, I).

As medidas protetivas de urgência têm caráter provisório e não definitivo. Euma vez deferidas as medidas solicitadas, os autos permanecerão em apartados aoinquérito policial, podendo a ofendida propor a ação principal no seu domicílio ou desua residência, no lugar do fato em que se baseou a demanda ou do domicílio doagressor (art. 15). É importante ressaltar que a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006,não transformou o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher emVara de Família. Ao revés, permitiu que o juiz criminal pudesse conceder certas me-didas, em caráter de urgência, de natureza cível, tão somente. Caso não fosse as-sim, não haveria possibilidade de se proteger a mulher eficazmente, pois tais medi-das só poderiam ser concedidas através do devido processo de separação judicial,nos termos do Código Civil (Título IV – Do Direito de Família, tais como, alimentosdefinitivos, separações judiciais, divórcios, anulação de atos jurídicos etc.).

De observar-se que a lei ampliou a competência do Juizado de Violência Do-méstica e Familiar contra a Mulher somente para a concessão das medidas de ur-gência. Aliás, cessadas tais medidas, prossegue-se o inquérito policial, o qual pode-rá, inclusive, ser arquivado. Nesse caso, perdem-se os efeitos das medidas eventu-almente concedidas.

Somente a Lei de Organização Judiciária poderia, ad argumentantum tantum,ampliar a competência ratione materiae das Varas Criminais. Acredito que dificilmen-te o Tribunal de Justiça manteria a Vara da Família e o Juizado de Violência Familiarcontra a Mulher com competência para processar, julgar e executar o mesmo tipo dematéria. Caso isso ocorresse as Varas de Família perderiam a razão de ser peloesvaziamento dos processos, eis que a maioria das ações decorre de violência do-méstica. Suponha-se que a vítima comunique a violência doméstica sofrida à autori-dade policial, dando-se início ao investigatório. Na audiência preliminar, ela afirma quenão quer processar criminalmente o agressor e desiste ou se retrata da representa-ção. O Juizado ficará prevento para apreciar a ação civil de separação judicial? E sehouver litígio, o Juizado deverá produzir as provas e, ao final, decretar a separaçãonos termos da legislação específica civil, servindo a decisão como título executivopassível de averbação no cartório competente? Isso significa em transformar o Juizadoem Vara de Família. Não foi este o objetivo da lei.

A título ilustrativo, trouxemos decisão prolatada no dia 25 de outubro de 2006,em que o MM. Juiz da 2ª. Vara Criminal e do Juizado de Violência Doméstica e Fami-liar contra a Mulher do Foro Regional de Penha de França, Dr. Jorge Carlos deAraújo, suscitou conflito de competência porque o MM. Juiz da 1ª. Vara da Família eSucessões deste Foro Regional, havia remetido os autos de uma Ação Cautelar deSeparação de Corpos para nova distribuição a 2ª. Vara Criminal, por entender inci-dente o art. 33 da Lei n. 11.340/06. Em sua decisão, o Juiz da 1ª. Vara Criminal alegaque: “com todo o respeito que este Juízo tem pelo r. Juízo da 1ª Vara da Família e

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Sucessões deste Foro Regional, não se vê lógica e amparo jurídico, para que o R.JUÍZO CONSTITUCIONALMENTE NATURAL, que é o citado JUÍZO DA FAMÍLIA ESUCESSÕES, a quem, diga-se de passagem, originalmente foi distribuído o feito,JUÍZO A QUEM INCUMBIRÁ DECIDIR AS CAUSAS PRINCIPAIS, SE DÊ POR IN-COMPETENTE, com determinação de remessa a este Juízo Criminal, que detém,como já sobejamente referido acima, mera competência, emergencial e supletiva”(Autos de processo n. 006.06.4127-2, controle 535, 2ª. Vara Criminal e do Juizado deViolência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Foro Regional Penha de França.

De observar-se que essa lei procura apenas viabilizar as necessidades imedi-atas da mulher - vítima de violência doméstica e familiar -, dando-se prioridade nocumprimento das medidas de urgência e permitir a aplicação eficaz das penalidadessócio-educativas ao agressor. Vê-se, ainda, que a lei garante o direito de preferência,nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas decorrentes deviolência doméstica e familiar contra a mulher (art. 33, parágrafo único).

Os arts. 13 e 14, da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, foram redigidos demaneira confusa, podendo levar o interprete a erro insanável. A interpretação dos dispo-sitivos não pode ser feita isoladamente, mas de maneira sistemática, ou seja, deve serconjugado com outros artigos da lei e do ordenamento jurídico vigente com vistas aosfins sociais e as condições peculiares da mulher (art. 4º). Referida lei procura conciliaras medidas de natureza civil com as de caráter criminal, tão somente, para atender asnecessidades imediatas da mulher – vítima dessa violência. Uma vez cessados osmotivos que levaram a concessão dessas medidas de urgência, encerra-se também acompetência civil, cuja questão deverá se deslocar para o foro competente.

4.1. Competência

A competência para processar, julgar e executar as causas cíveis e criminaisrelacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher fica a critério da ofendi-da. Ela poderá escolher qual juízo pretende propor a ação cível: a) no seu domicilio oude sua residência; b) do lugar do fato em que se baseou a demanda; e d) do domicíliodo agressor (art. 15).

Este artigo não altera a competência prevista no Código de Processo Penal,pois se eventualmente a violência ocorrer em Comarca diversa da residência da ofen-dida, por exemplo, na Cidade de Bertioga, ela poderá optar em propor a ação cível emsua residência situada na Capital de São Paulo, por exemplo, enquanto o inquéritopolicial prosseguirá no Juízo de Comarca da Bertioga.

No nosso entender, aplicam-se as regras do Código de Processo Penal, no quetange ao inquérito policial e do Código de Processo Civil, no que tange ao processo civil.

Tudo isso depende do devido processo civil ou penal. Cada Juízo tem suaspeculiaridades que devem ser observadas dentro da competência da Vara Criminal(Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher) ou da Vara Cível (Vara de

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Família e Sucessões), a qual está bem mais estruturada para apreciar as questõescíveis. Caso contrário, poderá causar uma confusão na aplicação da legislação semprecedentes, podendo haver, por via de conseqüência, uma enxurrada de recursosora com fundamento na legislação penal ora na cível.

Como já afirmamos anteriormente, somente a Lei de Organização Judiciáriapoderia estabelecer critérios objetivos de competência (ou distribuição de proces-sos) para a atuação do Juizado que acumularão atribuições na esfera cível e criminalsem ferir as regras da legislação pertinente.

4.2. Representação da ofendida

Outra questão também controvertida é a renúncia da ofendida à representaçãoque só poderá ser feita na audiência e perante o juiz (art. 16).

Essa exigência se deu por causa da “banalização da violência doméstica efamiliar e a falta de credibilidade à palavra da vítima, que se via forçada a desistir darepresentação e fazer acordo, revelava a absoluta falta de consciência de que a vio-lência intrafamiliar merece um tratamento diferenciado. A vítima, ao veicular a queixa,nem sempre quer separar-se do agressor”2. Para se evitar a impunidade, a lei deter-minou que a desistência ou retratação fosse feita pela vítima perante o juiz em audi-ência previamente marcada para essa finalidade.

Registre-se, além disso, que nem todas as condutas descritas no art. 7º da leiencontram supedâneo na legislação penal, mas aquelas que tiverem previsão na normapenal (e condicionadas a representação), deverão ser colhidas à manifestação daofendida por ocasião da lavratura do Boletim de Ocorrência.

Aplicam-se, in casu, as regras do Código de Processo Penal. E o prazo pararepresentação é de seis meses (art. 38 do CPP) e a desistência ou retratação sópoderá ocorrer dentro desse prazo, caso contrário poderá ocorrer à decadência dodireito da ofendida.

Colhida a representação da ofendida, a desistência ou retratação só poderá ocor-rer em audiência previamente designada para essa providência após ouvir o MinistérioPúblico. A renúncia, por sua vez, só ocorrerá caso não tenha sido colhida sua represen-tação na delegacia de polícia (art. 12, I). Trata-se de uma causa extintiva de punibilidade.

O Promotor de Justiça deverá ofertar denúncia antes da audiência especialmen-te designada para eventual desistência ou retratação? Tal medida não será possívelcaso não tenha sido colhida à representação. Caso a ofendida, depois de se conciliarcom o agressor, resolva desistir da representação, qual seria o destino da eventualdenúncia ofertada? Seria simplesmente rejeitada ou esquecida? E as medidas protetivas

2. Maria Berenice Dias, Nova lei coíbe violência doméstica e familiar contra mulher, Consultor Jurídico, 8 deagosto de 2006.

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de urgência seriam revogadas? Quais seriam os efeitos dessa revogação? Há pra-zos preestabelecidos para a duração das medidas?

A Promotoria de Justiça, no nosso entender, não deverá ofertar denúncia antesda audiência designada, sabendo-se que a ofendida poderia desistir ou se retratar darepresentação. Somente após a realização da audiência de ratificação da represen-tação é que a Promotoria de Justiça poderá ofertar denúncia. Esta não pode servir debarganha entre a ofendida e o agressor.

Vê-se, por outro lado, que haverá praticamente duas audiências, caso ocorra àratificação da representação, ou seja, uma nos autos do expediente para constatarna audiência preliminar de justificação a eventual pertinência das medidas solicitadaspela ofendida e outra nos autos principais por ocasião do oferecimento da denúncia.Isso poderá abarrotar a pauta do Juizado.

4.4. Medidas protetivas de urgência

Constatada a violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá conce-der, em conjunto ou separadamente, as seguintes Medidas Protetivas de Urgência queObrigam o Agressor previamente arroladas no art. 22 da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de2006, quais sejam: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, como comu-nicação ao órgão competente, nos termos da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003;II – afastar do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida (esta medida havia sidoinserida no art. 69, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95, com redação dada pela Lei n.10.455/2002); III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação daofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distânciaentre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas porqualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de pre-servar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitasaos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviçosimilar; e V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Há também as Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida que estão arroladasno art. 23 da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2005, que também poderão ser conce-didas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitá-rio de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a deseus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III – deter-minar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens,guarda dos filhos e alimentos; e IV – determinar a separação de corpos.

Ainda para proteger o patrimônio dos bens da sociedade conjugal ou daquelesde propriedade particular da ofendida, poderão ser concedidas as seguintes medi-das: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II –proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e loca-ção de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial, oficiando-se o

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cartório competente; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida aoagressor, oficiando-se o cartório competente; e IV – prestação de caução provisória,mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática deviolência doméstica e familiar contra a ofendida.

O Juiz deverá, no nosso entender, fixar prazo para a duração das medidaspreventivas de urgência, as quais não poderão ser, no nosso entender, superior aseis meses ou, ao menos, até o térmico do inquérito policial. A ofendida deverá aindapropor ação cível o mais rápido possível sob pena de serem revogadas as medidasque não poderão durar eternamente.

Visando a proteção da ofendida, o juiz poderá, sempre que necessário, requisi-tar força policial para dar cumprimento às medidas de urgência, além de concedernovas medidas previstas na legislação em vigor ou rever aquelas já concedidas, ou-vido sempre o Ministério Público.

Dificilmente o juiz concederá tais medidas de imediato à ofendida sem antesrealizar audiência preliminar de justificação, pois são medidas graves que devem seradredememnte comprovadas, sob pena de cometer injustiça contra o supostoagressor. Nesta audiência, o juiz poderá colher a desistência ou retratação da repre-sentação ou a renúncia, caso não haja representação.

Por fim, recebido o expediente, o juiz deverá, no prazo de quarenta e oito horas,decidir sobre as medidas protetivas de urgência requerida pela ofendida, sem ouvir oagressor, ou designar audiência de justificação, caso não esteja convencido da ne-cessidade das medidas.

4.5. Prisão preventiva

A prisão preventiva segue as regras do Código de Processo Penal e seus requi-sitos estão contidos no art. 312, quais sejam: a) para garantir a ordem pública; b) porconveniência da instrução criminal; e c) para assegurar a aplicação da lei penal.

Além das hipóteses contidas no art. 313, a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de2006, acrescentou mais um requisito para a prisão preventiva no inciso IV que diz: “seo crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da leiespecífica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.

A prisão preventiva, como se vê, é para garantir a execução das medidasprotetivas de urgência, podendo o juiz requisitar, inclusive, força policial para tanto. Talinciso deveria ter sido inserido no art. 312, como mais um requisito para a prisãopreventiva e não no art. 313, que trata das hipóteses de prisão.

Assim, a prisão do agressor poderá ser decretara a qualquer momento do inqué-rito policial ou na instrução criminal, de ofício, a requerimento do Ministério Público oumediante representação da autoridade policial (art. 20).

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Essa medida drástica será decretada para garantir a execução de uma ou devárias medidas de urgência descritas na lei, podendo ainda ser revogada no curso doprocesso, se não mais persistir as causas que levaram a prisão do agressor, oudecretá-la novamente se sobrevier razões que a justifiquem.

A ofendida deverá ser intimada ou notificada, sem prejuízo da intimação do seuadvogado, de todos os atos processuais, especialmente da prisão do agressor ou desua saída. Isso é necessário para que a ofendida possa se precaver de eventuaisatos violentos do agressor. Trata-se de uma exigência da vítima que comumente temreclamado da falta de informações sobre o andamento do processo.

Não será mais possível permitir que a ofendida entregue pessoalmenteintimações ou notificações ao agressor. Era muito comum o cartório ou o Promotorde Justiça solicitar à ofendida que entregasse tais intimações e notificações aoagressor, pois, muitas vezes, ela tornava a ser agredida.

5. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O Ministério Público é sempre parte nas causas criminais e, com mais razão, na-quelas relacionadas com a violência doméstica e familiar contra a mulher. Na esfera civil,o Ministério Público atua como mero fiscal da lei, ou seja, como custos legis (art. 25).

Esta lei trouxe maior responsabilidade ao órgão ministerial, atribuindo-lhe asseguintes incumbências: a) requisitar força policial e serviços públicos de saúde, eeducação, de assistência social e de segurança, entre outros; b) fiscalizar os estabe-lecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violênciadoméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciaiscabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; e c) cadastrar os casosde violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 26).

Este dispositivo realmente ampliou as atribuições do Ministério Público na esfe-ra administrativa. Assim, ao atender a ofendida em seu gabinete, o Promotor de Jus-tiça poderá também requisitar força policial para fazer cumprir as medidas, alémdaquelas arroladas na lei, ou quaisquer outras que reputar importante para atender asnecessidades da ofendida.

Deverá também fiscalizar as entidades criadas para o atendimento à mulherem situação de violência, que deverá ser criadas pelo Poder Público. Para isso seránecessário ter na Promotoria de Justiça livro próprio para registrar as visitas e, cons-tatadas irregularidades, deverá propor as medidas administrativas ou ações cabíveis.

Por fim, o Ministério Público deverá manter um arquivo e nele registrar todos oscasos, cadastrando-os para posterior análise e pesquisa ou medidas que poderãoser adotadas na órbita externa como políticas públicas a serem implementadas peloPoder Público.

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6. A ASSISTÊNCIA JUDICÁRIA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Com exceção das hipóteses previstas no art. 19, o advogado deverá estar pre-sente em todos os atos processuais cíveis ou criminais relacionados à violência do-méstica ou familiar contra a mulher (art. 27).

A mulher deverá, nesta lei, ter um tratamento diferenciado (humanizado) por partede todos aqueles que atuarem em seu favor, especialmente os funcionários públicos.Será ainda garantida a mulher, vítima dessa violência, o acesso aos serviços da DefensoriaPública e de Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial ou judicial (art. 28).

Não se discute mais sobre a situação econômica da mulher, pois esta violên-cia, via de regra, ocorre em todos os níveis e classes sociais. E se a separaçãoocorrer, será, via de regra, litigiosa.

7. JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através da Resolução n. 286, de04 de outubro de 2006, transformou as Varas Criminais dos Foros Regionais da Ca-pital em Varas Criminais e dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contraMulher e a 39ª Vara Criminal do Foro Central em Vara do Juizado de Violência Domés-tica e Familiar contra Mulher do Foro Central com atribuições nas esferas cível ecriminal decorrentes de práticas de violência doméstica e familiar contra a mulher,nos termos do Título IV e da legislação pertinente (art. 33). Esta Resolução entraráem vigor trinta dias depois de sua publicação.

O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá criar equi-pe de atendimento multidisciplinar a ser integrada por profissionais especializadosnas áreas psicossocial, jurídica e de saúde com o objetivo de dar assistência à ofen-dida e seus familiares e fornecer subsídios, por escrito, ao juiz, ao Ministério Públicoe a Defensoria Pública por meio de pareceres e laudos (art. 29).

O Poder Judiciário, além disso, deverá se apressar em criar a equipe multidis-ciplinar com a finalidade de atender os objetivos desta lei, reservando recursos ne-cessários em seu orçamento para a manutenção dessa equipe sob pena de se tor-nar letra morta (art. 32).

8. AGRAVAMENTO DO DELITO DE LESÕES CORPORAIS

O art. 44, da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, alterou novamente o art. 129,§ 9º, do CP, agravando a pena que era de 6 (seis) meses a 1 (um) ano para 3 (três)meses a 3 (três) anos, com a finalidade de se evitar a aplicabilidade de transação

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penal. Assim ficou a nova redação: “Se a lesão for praticada contra ascendente, des-cendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido,ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou dehospitalidade: Pena – detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos”. Citado dispositivoacrescentou também o § 11, com a seguinte redação: “Na hipótese do § 9º desteartigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoaportadora de deficiência” (art. 44).

Registre-se que citado artigo havia sido alterado anteriormente através da Lei n.10.866, de 17 de junho de 2004, que teve curta duração.

Referido dispositivo acrescentou ainda uma modalidade de agravante contidana parte geral do CP, em seu art. 61, com a seguinte redação, caso o delito tenha sidocometido: “f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas,de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da leiespecífica” (art. 44).

A questão que fica é: por que o legislador diminuiu a pena mínima e aumentou amáxima se o objetivo da lei visava o seu endurecimento? É sabido que o juiz costumaaplicar a pena no seu mínimo legal? Em tese, retornou a pena mínima prevista nocaput do art. 129 do CP de 1940.

A Lei também alterou o art. 152, parágrafo único, da Lei de Execução Penal (Lein. 7.210, de 11 de julho de 1984), com a seguinte redação: “Parágrafo único. Noscasos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o compareci-mento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação” (art. 44).

Todas estas alterações tiveram por objetivo agravar a tipificação penal quandose tratar de violência doméstica e familiar cometido contra a mulher.

Não há, como se vê, qualquer dúvida na sua aplicabilidade.

9. INAPLICABILIDADE DA LEI N. 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995

Questão de difícil resolução é a proibição da aplicação da Lei n. 9.099, de 26 desetembro de 1995, que impediu a possibilidade de composição civil (art. 76), transa-ção penal (art. 76) e suspensão do processo (art. 89).

Assim, independente da pena fixada no tipo penal é inadmissível aplicação dacitada lei na hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41).

Esta proibição fere, no nosso entender, o princípio da igualdade. Imagine-se que omarido pratique violência contra a mulher. Em tal hipótese, não se aplicará a Lei n. 9.099/95, mas se, ao contrário, for à mulher quem tenha cometido o crime contra o marido, elaserá beneficiada pela Lei n. 9.099/95 (composição civil, transação penal e eventual sus-pensão do processo). Dois fatos praticados no seio familiar haverá duas regras jurídicasdistintas aplicáveis (art. 129, caput, do CP, para a ofendida – pena de três meses a umano e art. 129, § 9º, do CP, para o agressor – pena de três meses a três anos).

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Isso faz-nos reportar a controvérsia que surgiu com o advento da Lei n. 10.259/2001, que ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para abrangera pena máxima não superior a dois anos, cuja aplicação estava restrita somente naesfera federal. Já a Lei n. 9.099/95, permitia a transação penal desde que a penamáxima não fosse superior a um ano, aplicando-se somente na esfera estadual. A Lein. 10.259/01 também impedia sua aplicação na esfera estadual, razão pelas quaismuitas ações foram propostas pelo Ministério Público, pois alguns membros erammanifestamente favoráveis à aplicação da Lei n. 10.259/2001 na esfera estadual eoutros entendiam que não se aplicavam por expressa determinação legal. Prevale-cendo, ao final, o entendimento jurisprudencial no sentido da aplicação da lei federalna esfera estadual pelos Tribunais de todo o Brasil. Nesse meio tempo, adveio Lei n.11.313, de 28 de junho de 2006, restabelecendo a normalidade jurídica.

Não podemos permitir tamanha injustiça, mesmo porque seria inconcebível quea interpretação da lei fosse feita de maneira isolada. A interpretação da lei deve sersistemática, observando-se os fins sociais pelas quais ela foi criada e as peculiarida-des das condições da mulher.

Partindo-se do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, entendemosque seria admissível, ao menos, a aplicação da suspensão do processo, pois mes-mo que se consiga a punição do agressor, a pena não seria diferente daquela contidana Lei n. 9.099/95, aplicando-se os benefícios do sursis - suspensão condicional dapena (art. 77 do CP).

Trata-se de uma medida perfeitamente admissível e conforme com os objetivosda lei. Não se admitiria, no entanto, a transação penal consistente na concessão decestas básicas – prestação pecuniária – ou a substituição de pena que implique opagamento isolado de multa (art. 17).

10. CONCLUSÃO

A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem por escopo coibir a violência domésticae familiar contra a mulher. No entanto, muitos dispositivos foram redigidos de maneiraconfusa e assistemática, contrariando vários princípios e algumas normas específicas.

No entanto, a lei procurou dar cumprimento aos documentos internacionais enormas constitucionais. A sociedade ansiava pela sua criação. Comprovou-se, nosdias de hoje, que a mulher continua sendo vítima dentro da sua casa e também foradela. A mulher, além disso, ainda hoje sofre discriminação no trabalho e na sociedade.

A lei não vai resolver outros problemas de cunho social e cultural, mas poderáser o primeiro passo para o convívio harmonioso da mulher com seus familiares,dando-lhe a segurança de que o poder público lhe atenderá quando forem solicitadasas medidas nela contidas.

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Nesse sentido, esclarece Fernando Vernice dos Anjos que o combate à violênciacontra a mulher depende, fundamentalmente, de amplas medidas sociais e profundasmudanças estruturais da sociedade (sobretudo extrapenais). Como afirmamos, a novalei acena nesta direção, o que já é um bom começo. Esperamos que o poder público ea própria sociedade concretizem as almejadas mudanças necessárias para que pos-samos edificar uma sociedade mais justa para todos, independentemente do gênero.Desta forma, o caráter simbólico das novas medidas penais da Lei n. 11.340/06 nãoterá sido em vão, e sim terá incentivado ideologicamente medidas efetivas para solu-cionamos o grave problema da discriminação contra a mulher”3.

As questões levantadas neste trabalho estão longe de serem resolvidas. Hámuitos pontos polêmicos que só serão solucionados pelo Poder Judiciário. No entan-to, deixamos aqui um canal aberto, dando-se início aos debates.

Luis Paulo Sirvinskas

4º Promotor de Justiça Criminalda Penha de França,

mestre em Direito Penal e doutor emDireito Ambiental pela PUC-SP

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, Fernando Vernice dos. Direito penal simbólico e lei de combate à violência domésticae familiar contra a mulher. Boletim do IBCCRIM n. 167, ano 14, outubro/2006, p. 10.

BARROS, Marco Antonio de. A nova lei que coíbe a violência doméstica e familiar contra amulher: um novo retrocesso. Biblioteca LEX – Legislação e Jurisprudência Consolidada 20/10/2006, site: http://www.lex.com.br/noticias/artigos/default.asp?artigo_id=258

DIAS, Maria Berenice. Nova lei coíbe violência doméstica e familiar contra mulher, ConsultorJurídico, 8 de agosto de 2006

PASINATO, Wânia. Justiça para todos: os Juizados Especiais Criminais e a violência de gêne-ro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 53, mar-abr/2005, p.201/239.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Tipificação criminal da violência de gênero: paternalismolegal ou moralismo penal? Boletim do IBCCRIM n. 166, ano 14, setembro/2006.

3. Direito Penal simbólico e lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, IBCCRIM n. 167,ano 14,outubro/2006, p. 10).

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ALALALALALGUMASGUMASGUMASGUMASGUMASCONSIDERAÇÕESCONSIDERAÇÕESCONSIDERAÇÕESCONSIDERAÇÕESCONSIDERAÇÕES

Cesar Dario Mariano da Silva,

8° Promotor de Justiça doII Tribunal do Júri

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕESSOBRE A LEI DE

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Não é de hoje que leis inaplicáveis em sua integralidade vêm sendo elaboradas.

Em 1.995 foi publicada a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), que emmuitos de seus aspectos não vingou, como se fosse da natureza da lei “pegar” ounão. No entanto, a figura do Juiz investigador certamente não poderia ser aceita pelacomunidade jurídica.

Mais recentemente foi sancionada a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2.006,que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher.

O artigo 5º da Lei diz que configura violência doméstica e familiar contra a mu-lher qualquer ação ou omissão que propicie a morte, lesão, sofrimento físico, sexualou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espa-ço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo fa-miliar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade for-mada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, uni-dos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor con-viva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente decoabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigoindependem de orientação sexual.

O artigo 7º, por sua vez, diz que são formas de violência doméstica e familiarcontra a mulher, dentre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofen-da sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta quelhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou quelhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que visedegradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças edecisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,

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manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contu-maz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitaçãodo direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízoà saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que aconstranja a presenciar, a manter ou a participar de relação se-xual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ouuso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qual-quer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquermétodo contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez,ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, su-borno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seusdireitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta queconfigure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seusobjetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destina-dos a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que con-figure calúnia, difamação ou injúria.

Depreende-se do texto legal que são várias as formas de violência doméstica oufamiliar contra a mulher. E a norma diz expressamente que essas formas são meramen-te exemplificativas, haja vista que podem existir outras não previstas na lei especial.

Com efeito, da conjugação dos artigos 5º e 7º, podemos chegar a algumasconclusões:

1) a violência doméstica e familiar somente pode ter como vítima a mulher,independente de sua condição pessoal ou preferência sexual;

2) pode ocorrer em qualquer local em que a ofendida resida, ou mesmo foradele, desde que praticada por pessoa que consigo conviva ou conviveu, com ou semvínculo familiar, por familiares, por pessoas unidas por laços naturais, de afinidade oupor vontade expressa, ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual oagressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação ede orientação sexual;

3) as formas de agressão podem ser de índole corporal, psicológica, moral,patrimonial ou sexual em qualquer situação retratada no item 2 tendo como vítimaapenas a mulher.

Dessa forma, o crime pode ser praticado pelo marido ou companheiro contra aesposa ou companheira, pelo namorado contra a namorada, pela mãe ou pai contra afilha, ou mesmo por pessoas que apenas convivam sob mesmo teto sem qualquer

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laço de parentesco, desde que a vítima seja mulher. Disso decorre que até a mulherpode ser sujeito ativo, mas a vítima será sempre a mulher.

Os crimes podem ser desde uma simples lesão corporal leve ou ameaça atéum estupro ou homicídio, além de delitos patrimoniais como o furto.

Constatada a violência doméstica ou familiar, o juiz, sem a necessidade deouvir o Ministério Público, no prazo de até 48 horas, poderá aplicar, dentre outras,liminarmente, qualquer das medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 daLei, conjunta ou separadamente. São elas:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, comcomunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826,de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com aofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das tes-temunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estese o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhaspor qualquer meio de comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preser-var a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores,ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicaçãode outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segu-rança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo aprovidência ser comunicada ao Ministério Público.

Para fazer valer as referidas medidas poderá o Magistrado requisitar auxíliopolicial (art. 22, § 3º) e, em qualquer fase do inquérito ou processo, decretar a prisãopreventiva do agressor (art. 20 c.c. o art. 313, IV, do CPP com a nova redação dadapelo artigo 42 da Lei nº 11.340/2006).

O legislador criou uma espécie de prisão preventiva satisfativa, ou seja, que nãovisa assegurar a eficácia de um provimento jurisdicional. A prisão preventiva tem e sempreterá caráter cautelar e tem por função o bom andamento do processo e a aplicação deuma sentença penal condenatória. Ela visa apenas garantir a ordem pública ou econô-mica, assegurar a aplicação da lei penal ou para a conveniência da instrução criminal.

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Não pode ser criada uma espécie de prisão preventiva que tenha por finalidadenão o processo em si, mas a garantia da execução das medidas protetivas de urgên-cia, que poderão não interferir no normal andamento processual.

Somente a título de argumentação, suponhamos que o marido agressor nãoaceite parar de freqüentar um clube em comum com a ofendida. A Lei, no caso, pos-sibilita ao Magistrado decretar a prisão preventiva do marido. Além de o maridoestar sendo tolhido de freqüentar um lugar público ou privado, violando sua liberdadede ir e vir, está sendo preso por não cumprir uma ordem judicial sem que tenha sidoprocessado e condenado por crime de desobediência, que é de pequeno potencialofensivo e dificilmente redundaria em condenação à pena privativa de liberdade.

Além disso, não é possível ao agressor ser beneficiado pelos institutosdespenalizadores do Juizado Especial Criminal, ou seja, responderá a processo cri-minal que poderá levar a uma condenação com todas as suas conseqüências penais(art. 41). E na mesma situação, caso o agressor fosse a mulher, e a vítima homem,poderia ser beneficiada pela transação penal ou suspensão condicional do processo.

A lei penal, que sempre foi genérica e impessoal, está sendo empregada parabeneficiar uma classe de pessoas (mulheres) e prejudicar outra (homens).

A nova Lei viola fragrantemente o princípio da isonomia, uma vez que homens emulheres estão sendo tratados de maneira totalmente diferente em situações iguais.Embora não seja comum, há casos em que as agressões domésticas ou familiarestêm como vítimas homens e agressores mulheres.

Suponhamos o seguinte caso: o marido ameaça a esposa. Ela se dirige aoDistrito Policial e narra os fatos ao Delegado, que representa ao Juiz solicitando aadoção de medidas protetivas. O Juiz as defere, determinando o afastamento domarido do lar conjugal e fixa alimentos provisórios. Determina, ainda, que o maridonão se aproxime da esposa e nem dos filhos, ficando proibido qualquer tipo de comu-nicação com sua família e a freqüência a lugares em que esposa costuma ir, sobpena de decretação da prisão preventiva. Além disso, embora o crime seja punidocom pena inferior a dois anos, o agressor deverá ser julgado de acordo com o proce-dimento comum, não se lhe aplicando os dispositivos da Lei nº 9.099/95. Por outrolado, se a ameaça partisse da mulher, o máximo que poderia ocorrer é ela ser sub-metida ao procedimento previsto na Lei nº 9.099/95.

Além das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22), aLei prevê medidas de proteção à pessoa da ofendida que poderão ser aplicadas peloMagistrado sem prejuízo de outras (art. 23). São elas:

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficialou comunitário de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependen-tes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

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III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízodos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV - determinar a separação de corpos.

Para a proteção dos bens da sociedade conjugal ou de propriedade particularda mulher, o Juiz poderá determinar liminarmente as medidas seguintes, além deoutras (art. 24):

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor àofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos decompra, venda e locação de propriedade em comum, salvo ex-pressa autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida aoagressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial,por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violênciadoméstica e familiar contra a ofendida.

Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competentepara os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

Os artigos 23 e 24 trazem medidas cautelares de natureza civil, que serãodeterminadas por juiz com competência criminal, ao menos até a criação dos Juizadosde Violência Doméstica e Familiar. Esses juízes, nos casos de violência doméstica efamiliar contra a mulher, acumularão as competências cível e criminal. Aliás, serágarantido o direito de preferência nas varas criminais para o processo e julgamentodessas causas (art. 33). O dispositivo causa espécie, uma vez que será dada prefe-rência de julgamento até sobre processos que envolvam réus presos em que sediscute o direito à liberdade de alguém.

Trata-se de medidas que serão extremamente úteis para a proteção pessoal edo patrimônio da mulher, que muitas vezes acaba sendo dilapidado por seu maridoou companheiro.

Não há como negar que houve boa intenção por parte do Legislador. Entretanto,perdeu uma grande oportunidade de criar uma lei que protegesse todos os compo-nentes de uma unidade familiar, sejam homens ou mulheres.

Várias das medidas protetivas violam bens jurídicos extremamente importantese temos sérias dúvidas acerca de sua constitucionalidade. Não vemos como alguémpossa ser proibido de freqüentar determinados lugares a pretexto de proteger a inte-gridade física ou mental da mulher. Como será medida a distância que o agressornão poderá se aproximar da ofendida?

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Essas situações e outras análogas, embora interessantes do ponto de vistateórico, são de difícil aplicação e fiscalização na prática.

Para que a Lei possa subsistir caberá ao Magistrado ter bom senso ao decidir ecercar-se de todos os cuidados para não ser enganado. Somente em situações gra-ves e devidamente comprovadas poderá ser concedida uma medida protetivaliminamente, como já ocorre com as medidas cautelares, que exigem o “fumus boniiuris” e o “periculum in mora”.

Não vemos, também, como negar os benefícios da Lei nº 9.099/95 aos homense possibilita-los para as mulheres na mesma situação fática. Assim, tanto para oagressor quanto para a agressora deverão ser possibilitados os institutosdespenalizadores previstos na Lei nº 9.099/95. É uma forma de contornar a graveviolação ao princípio da isonomia.

Acreditamos que a nova Lei não será aplicada em sua integralidade ou acabarásendo interpretada de modo a não ser considerada inconstitucional em vários pontos.

O agressor da mulher terá direito a ser julgado pelo Juizado Especial Criminalem homenagem ao princípio da isonomia.

A prisão preventiva somente será decretada quando presentes os requisitosprevistos nos artigos 311 a 313 do CPP, e não para simplesmente garantir a eficáciadas medidas protetivas de urgência.

Além disso, caberá ao Magistrado cercar-se de cautelas para não ferir desne-cessariamente bens jurídicos de extrema valia no intuito de proteger a mulher. Certa-mente existirão situações montadas e fantasiosas criadas para beneficiar a parteque, em regra, é a mais fraca fisicamente, em detrimento do agressor, que, como jádito, pode ser homem ou mulher.

O melhor, na realidade, é que o Legislador reveja a lei e a modifique para prote-ger qualquer forma de violência doméstica ou familiar que tenha como vítima o ho-mem ou a mulher.

Cesar Dario Mariano da Silva,

8º PJ do II Tribunal do Júri

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VVVVViolênciaiolênciaiolênciaiolênciaiolênciadomésticadomésticadomésticadomésticadoméstica

Rodrigo da Silva Perez Araújo,

assessor jurídico do MinistérioPúblico do Distrito Federal eTerritórios

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:POSSIBILIDADE JURÍDICA DANOVA HIPÓTESE DE PRISÃO

PREVENTIVA À LUZ DOPRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

DA PROPORCIONALIDADE

RESUMO

A nova hipótese de prisão preventiva estabelecida pela Lei 11.340/06 não en-contra reprovação no arcabouço legal capitaneado pelo artigo 312 do Código de Pro-cesso Penal, nem na Constituição Federal.

Houve adequação sistemática da prisão ante tempus.

O estágio técnico-jurídico e social atuais indicam a adequação da prisão – con-dicionada temporalmente ao tempo mínimo de prisão cominada à conduta optada –como medida idônea a garantir efetividade às medidas de proteção instituídas pelaLei Maria da Penha.

Ademais, não há em nosso ordenamento outro meio idôneo a garantir a digni-dade da mulher em situação de violência doméstica, de modo que se deve atribuirmaior peso a seu direito à integridade, à vida mesmo, em detrimento da episódicarestrição da liberdade do agressor.

Palavras-chave: violência doméstica. Prisão preventiva. Possibilidade jurídica.Princípio constitucional da proporcionalidade: adequação dos meios aos fins e menorrestrição possível.

1. INTRODUÇÃO

A Lei 11.340/06 introduziu nova possibilidade de prisão preventiva – para asse-gurar a efetividade das medidas de proteção nela previstas –, oportunidade em queacrescentou o inciso IV ao art. 313 do Código de Processo Penal. Compatibilizaçãorelevante porque a lesão corporal leve é, estatisticamente, a violência doméstica maissignificativa contra a mulher.

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Entretanto, permanece a controvérsia acerca da constitucionalidade desta pri-são cautelar, pois o princípio da proporcionalidade indica a que a prisão ante tempusnão poderia ser mais severa que a pena ao final aplicada ao acusado.

2. COLOCAÇÃO E DEBATE

Antes de nos posicionarmos propriamente a respeito da possibilidade constitu-cional e legal, em tese e conforme art. 20 da Lei 11.340/06 1, da prisão preventiva noscasos de violência doméstica, faz-se pertinente considerar a sede adequada para adiscussão da questão, o resultado admissível da ponderação entre os valores e prin-cípios envolvidos, (sem vírgula) e a inexistência de incompatibilidade dessa nova pos-sibilidade com as disposições legais pertinentes à prisão ante tempus.

(A) O Direito tem pretensões sistemáticas, pois impõe ao Legislador e ao intér-prete, por lógica, ainda que não a formal – própria das ciências naturais -, mas a dorazoável 2, calcada nos valores eleitos e na adesão do auditório 3, o princípio da não-contradição, ou melhor, um dever de coerência.

Esse sistema pode ser lido, como fez KELSEN, de um ponto de vista estático,dando ênfase à Constituição, fundamento de validade das normas, ou de um pontode vista dinâmico, assim entendido como aquele que, por indução, procura fazerprevalecer o valor eleito como parâmetro deôntico, do dever-ser. Essa é a lição deNORBERTO BOBBIO 4.

O Mestre, após assentar que o sistema jurídico seria um tertius genus resultan-te dessas duas modalidades de sistema, aduz que:

”... confrontando com um sistema dedutivo, o sistema jurídico éalguma coisa menos; confrontando com o sistema dinâmico do qualfalamos no parágrafo anterior, é algo de mais: de fato, se se admitir oprincípio de compatibilidade, para se considerar o enquadramento deuma norma no sistema não bastará mostrar a sua derivação de uma

1 Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor,decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridadepolicial.

Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivopara que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.2 Recasens Siches foi haurir no Iluminismo do século XVIII, no racionalismo de Kant, a expressão hoje tãodifundida: “A lógica do Direito é a lógica do razoável”: in Razoabilidade versus proporcionalidade. Disponível em:. Acesso em: 11 dez. 2006.3 Como leciona CHAIM PERELMAN. 4 Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/74.

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das fontes autorizadas, mas será necessário também mostrar que elanão é incompatível com outras normas. Nesse sentido, nem todas asnormas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas,mas somente aquelas compatíveis com as outras”.

Mais adiante, após apresentar com clareza impar as antinomias jurídicas, sali-enta a insuficiência dos critérios tradicionais de interpretação: verificação dacontemporaneidade das normas, bem como de sua hierarquia e de se tratar de nor-mas gerais ou especiais, pois são possíveis, sem prejuízo de qualquer natureza,contradições valorativas intestinas.

Acrescenta, em lição pertinente, que o dever de coerência, portanto, não é con-dição de validade, mas de justiça do ordenamento 5.

Justiça é daquelas definições altamente controvertidas em Direito. Entretanto,sem maiores digressões, por exemplo, a respeito de sua coincidência com a moral,como quis KELSEN 6, é possível entendê-la, ao menos de um ponto de vista prático,como atenção aos princípios gerais do Direito. Essa é a lição de OTFRIED HÖFFE,professor honoris causa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul:

Em estilo claro e sintetizado de modo aforístico, como que talhado empedra, eles declaram: ‘As prescrições do direito são estas: viver ho-nestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é seu’.

(...)

De acordo com entendimento convencional, os três princípios afirmamessencialmente a mesma coisa. O primeiro, ‘vive honestamente’ (honestevive), ordena uma probidade que consiste, em sua determinação nega-tiva, na proibição ‘não leses ninguém” (neminem laede) e, positivamen-te, no imperativo ‘dá a cada um o que é seu’ (suum cuique tribue)” 7.

Sabe-se que a Constituição é o primeiro fato jurídico do fenômeno político –evidência próxima disso é nossa Carta Constitucional e os embates que se deram naAssembléia Constituinte.

5 Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/114, notadamente p. 113.6 Teoria pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo: 2000, p. 71.7 O que é Justiça?, tradução de Peter Naumann, Coleção Filosofia, nº 155, Editora EDIPUCRS, Porto Alegre: 2003, p. 57.

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Logo, podemos dizer que:

... o legislador [inclusive o infraconstitucional] se põe em conflito comas suas próprias valorações, e que, portanto, a contradição valorativaé uma contradição imanente. (...) Diferentemente das contradiçõesnormativas, que de forma alguma podemos deixar subsistir, as contra-dições valorativas têm em geral que ser aceitas 8.

Tal confronto, que se dúvida também se dá em sede infraconstitucional, é solvi-do pelo princípio da proporcionalidade, com sede no princípio do devido processolegal substantivo, e seus conhecidos subprincípios da adequação do meio-fim, danecessidade e da menor restrição possível. Adensa o princípio da razoabilidade, peloqual “...o intérprete/aplicador avalia a lógica do razoável (...) tenta compatibilizar inte-resses com razões e não a causa com o efeito. (...) Enquanto a lógica formal buscareferenciar causa e efeito, a lógica do razoável define a decisão que melhorcompatibiliza interesses e razões que são apenas experimentalmente referenciáveis,sujeitos a valorações subjetivas. (...) Essa lógica do razoável se caracteriza, resumi-damente, por estar: a) condicionada à realidade concreta do mundo histórico-socialpara o qual estão voltadas as normas jurídicas; b) repleta de postulados axiológicos,valores que devem se relacionar com as possibilidades e limitações do mundo real eque constituem o objetivo que define as escolhas dos fins almejados pelo intérprete.(...) CHAIM PERELMAN... leciona que os direitos concedidos a um indivíduo não po-dem ser exercidos de forma desarrazoada, ou seja, de forma abusiva, inaceitávelpela comunidade num dado momento. Assim, o desarrazoado ocorreria quando, daaplicação concreta de determinada lei, decorressem conseqüências injustas, ridícu-las ou opostas ao normal funcionamento do Estado” 9.

A razoabilidade diz respeito, portanto, aos anseios da sociedade.

Oportuno é o esclarecimento de FÁBIO ULHOA COELHO:

O aplicador do direito, para fazer uso da lógica do razoável, deveinvestigar algumas relações de congruência. Especificamente, ele devese indagar: quais são os valores apropriados à disciplina de determi-nada realidade (congruência entre realidade social e os valores)? Quaissão os propósitos concretamente factíveis com os valores prestigiados(congruência entre os fins e a realidade social)? Quais são os meiosconvenientes, eticamente admissíveis e eficazes, para a realizaçãodos fins (congruência entre meios e fins)? 10

8 ENGISH, Karl; Introdução ao pensamento jurídico. Edição Fundação Calouste Gulbenkian, tradução do originalem alemão. Lisboa: 2001; p. 316.9 BRAGA, Valeska e Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 49 e 55/57.10 Roteiro de lógica jurídica, 4ª ed., Saraiva: São Paulo, 2001, p. 85.

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Pois bem, exemplo legislado no Código Penal da convivência de proteçõesconflitantes dispensadas a valores significativos e da aplicação da lógica do razoá-vel é, para mencionar apenas um, o seguinte: estatui o art. 128, inc. II, dessacodificação que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta deestupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz,de seu representante legal.

É o que se convencionou chamar de aborto sentimental.

Não vemos como deixar de perceber aí uma ponderação do legislador – emnorma cuja constitucionalidade jamais foi questionada – entre o direito à vida daqueleser em formação – cujos interesses são resguardados na esfera cível (Código Civil,art. 2º, in fine) – e o direito da gestante a uma sobrevida digna, sem os percalçospsicológicos que aquela vida, produto de conjunção carnal não consentida, obvia-mente, lhe traria.

Tema atual, aliás, haja vista a ainda não pacificada possibilidade ou não de abortode anencéfalo, tendo havido inclusive medida liminar no Supremo Tribunal Federaladmitindo essa possibilidade, apesar de digladiarem diversos setores sociais, cadaum buscando ver preponderar seu ponto de vista.

O Ministro Marco Aurélio afirmou, quando da análise da questão, que “A vida éum bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, nãoé justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero” 11.

Avulta, nessa quadra, a significação que se deve dar ao interesse preponderan-te, ou de maior peso, no confronto do direito à liberdade do agressor em face dodireito, em última análise, à vida da mulher vitimada; o que se deve fazer pela lente dainsuficiência dos meios e métodos postos pelo ramo meta-penal do Direito para asolução da violência doméstica.

Seguindo esta linha de raciocínio, a família é a menor unidade social – célulamater –, hoje funcionalizada, ou melhor, concebida não mais como um fim em simesma 12, mas reconhecida como locus privilegiado para o mais amplo e completopossível desenvolvimento da personalidade, núcleo 13 do princípio da dignidade dapessoa humana 14.

11 A liminar do Ministro Marco Aurélio que permitiu o aborto de fetos anencefálicos. Jus Navigandi, Teresina, ano8, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.12 Mirava-se a proteção do patrimônio – motivo que animou a vedação à separação judicial e ao divórcio, bem comoera o móvel das classificações discriminatórias dos filhos.13 Elemento que não pode ser suprimido sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e em sua estrutura.Ou melhor, razão de ser da previsão do direito.14 Constituição Federal, art. 1º, inc. III (Fundamento da República) e art. 226, caput e respectivo §7º

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Ao resguardar expressamente a dignidade humana no contexto da proteçãodispensada à família, a Constituição Federal está a impor o respeito a “todos os valo-res e direitos que podem ser reconhecidos à pessoa humana, englobando a afirma-ção de sua integridade física, psíquica e intelectual, além de garantia a sua autonomiae livre desenvolvimento da personalidade [veja a semelhança entre estes aspectos eas formas de violência contra a mulher, tipificadas no capítulo II do título II, art. 7º daLei Maria da Penha].

”A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola propul-sora da intangibilidade da vida humana, dela defluindo comoconsectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica daspessoas; ii) a admissão da existência de pressupostos materiais(patrimoniais inclusive) mínimos para que se possa viver; e iii) o res-peito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.

”A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, quese manifesta singularmente na autodeterminação consciente e res-ponsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeitopor parte dos demais” 15.

Essas considerações são lugares comuns, mas nem por isso desinfluentes,na interpretação e cotidiana aplicação do direito. É o que nos revela a consulta àjurisprudência deste E. TJDFT.

(B) Nesta senda, ambos os atores do tristemente afamado episódio de violên-cia doméstica e familiar são dotados dessa intrínseca qualidade de ser, de modoque aqui se revela (i) a insuficiência dos métodos ortodoxos de compreensão eaplicação do Direito legislado e (ii) campo fértil para a ponderação dos confrontantesvalores: (ii.i) necessidade contrafática de afastar o agressor da mulher –hipossuficiente no aspecto físico, no mais das vezes 16 –, assim compreendido nostermos da Lei 11.340/06, respeitando, portanto, a dignidade da mulher e, em conse-qüência, de seus filhos, cujos modelos (a serem seguidos ou jamais o ser) paratoda a vida são ambos os pais – merecedores de proteção integral (ConstituiçãoFederal, art. 227); (ii.ii) necessidade de resguardar a dignidade do agressor, quenão pode ter sua liberdade cerceada senão nas excepcionais hipóteses legais, haja

15 CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: LúmenJúris; 2006; pp. 91/93. No mesmo sentido, LUIZ RÉGIS PRAZO, que leciona que a dignidade da pessoa humana“não se trata de simples criação legislativa, porquanto apenas se reconhece no texto constitucional a eminênciada dignidade como valor (ou princípio) básico, cuja existência, bem como o próprio conceito de pessoa humana,são dados anteriormente, aferidos de modo prévio à normação jurídica. Como postulado fundamental, peculiar aoEstado de Direito democrático, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo– como dado imanente e limite mínimo vital à intervenção jurídica. Trata-se de um princípio de justiça substancial,de validade a priori, positivado jurídico-constitucionalmente” (Curso de direito penal brasileiro. 3ª ed., São Paulo:RT; 2002, pp. 115/116).16 Única razão possível para admitir-se a desequiparação feita pela lei entre mulher vítima e o homem eventualmen-te na mesma situação.

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vista o direito/garantia constitucional da presunção de não-culpabilidade (Constitui-ção Federal, art. 5º, inc. LVII) a impor, por critério de justiça procedimental, que a elenão seja dispensado tratamento de culpado, senão após o trânsito em julgado desentença penal condenatória.

A questão, portanto, que subjaz à possibilidade jurídica de decretação da prisãopreventiva para os casos de violência doméstica (Lei 11.340/06, art. 20), se apresen-ta mais em termos principiológicos do que de conformidade infraconstitucional oucoerência legal. Não é decorrência de eventual conflituosidade entre a nova possibili-dade de prisão ante tempus, com o arcabouço normativo capitaneado pelo art. 312 doCódigo de Processo Penal.

Trata-se de antinomia apenas aparente, pois a novatio legis é lei especial poste-rior e da mesma hierarquia do Código de Processo Penal (Lei de Introdução ao Códi-go Civil, art. 2º), reformando-o, inclusive, ao acrescentar mais um inciso ao art. 313dessa codificação.

Assim é que, apesar do respeito que temos às opiniões em contrário e daslimitações intrínsecas a uma primeira aproximação do tema, não há incompatibilida-de entre a nova possibilidade de prisão preventiva e os artigos do Código de Proces-so Penal sobre o tema.

Pertinente é considerar que há Súmula do Superior Tribunal de Justiçacompatibilizando, em tese, entre (tirar) o teor do inciso LVII do art. 5º da ConstituiçãoFederal e a prisão cautelar. Calha, assim, tendo em vista a relevância e repercussãodo tema, a leitura do precendente mais moderno desse consagrado Enunciado 17,desde já pedindo vênia pela extensão do excerto:

Com o devido respeito ao Professor Frederico Marques, entendo que seu pare-cer está equivocado. Isto porque, quando a Constituição Federal estabelece que ‘nin-guém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penalcondenatória’ nada mais está fazendo do que elevar, a nível constitucional, velho econhecido princípio geral de direito penal. Neste sentido foi o julgamento do HC...

Em verdade, como tem sido reiteradamente decidido pelo Tribunal recorrido[TJSP], o dispositivo constitucional deve ser interpretado em consonância com osdemais textos que disciplinam a prisão, não sendo correto sustentar somente serpossível, depois da vigência da nova Constituição da República, a prisão de quem játenha sido definitivamente condenado.

Com efeito, como salientou o Desembargador Canguçu de Almeida, acolhendoparecer deste Procurador de Justiça, ‘o preceito constitucional obsta a conceituaçãocomo culpado, mas não veda a imposição provisória da prisão, quando decorra estade determinação legal (como no caso do art. 35 da Lei 6.368/76) ou o prudente arbítrio

17 Súmula 09: exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção deinocência.

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do juiz (como em casos de prisão preventiva); proíbe, como ressaltado no parecer defls. 47/49, a reprovação social, mas não impede que, em nome da garantia da ordempública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da leipenal, se imponha a prisão cautelar do agente’...

Assim é que ‘não há novidade neste preceito e nem possui qualquer influênciasobre as formas de prisão preventiva, que continuam existentes... “ 18 (destaquesnossos).

Tais ponderações são atuais, pois é recorrente o brado pela presunção de inocência.

(C) A sistemática legal da prisão cautelar indica que são óbices a suaadmissibilidade: (i) tratar-se de crime culposo ou não punido com reclusão (CPP, art.313); (ii) que a pena de reclusão cominada seja de tal monta que, tendo em vista oregime prisional a ser aplicado, a prisão cautelar seja mais grave que a sanção eleitapelo legislador, o que faz incidir a reprovação do princípio da proporcionalidade, pois omeio empregado – prisão – é inadequado aos fins da Jurisdição, uma vez que oconvívio social do agente não foi considerado pernicioso, em abstrato.

Pois bem, não vemos incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisãocautelar para assegurar o cumprimento e efetividade das medidas de proteção descri-tas na Lei Maria da Penha e a sistemática legal e constitucional da prisão ante tempus.

Veja-se a redação do art. 42 da citada Lei:

Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do se-guinte inciso IV:

”Art. 313.... . .............................................

................................................................

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra amulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução dasmedidas protetivas de urgência.” (NR)

Decorre da subordinação do teor das partes do artigo ao contido em sua cabe-ça, como impõe o art. 10 da Lei Complementar 95/98, que nos crimes dolosos puni-dos com detenção, como, v.g., a lesão corporal leve perpetrada em situação de vio-lência doméstica – hipótese estatisticamente mais relevante – a sistemáticainfraconstitucional foi adaptada às pertinentes críticas da doutrina quanto à improprie-dade das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 no caso 19, e que o rito ainda

18 RHC 202/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 18.09.1989, DJ 21.05.1990 p. 4435.19 GOMES, Luiz Flávio. Violência Doméstica: mais uma lei puramente simbólica, Revista Síntese de Direito Penale Processual Penal, ano V, nº 27 – ago-set 2004, pp. 7/8. No mesmo sentido EVANGELISTA DE JESUS, Damásio.Violência contra a mulher, Suplemento Direito & Justiça do Jornal Correio Brasiliense de 08 de maio de 2006.

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teria aplicação, haja vista a celeridade que propicia, sem prejuízo da correção daprestação jurisdicional e da garantia constitucional ampla defesa.

Apesar de aviltante e comprometedora da integridade deste caro ser que é amulher (mãe, esposa, irmã etc.), a realidade da violência doméstica, apesar dos di-versos Tratados e Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, somente emtempos recentes tem merecido atenção.

(D) A evolução legal do tema revela, com o devido respeito, certo descompro-misso e assistematicidade legislativa: (i) primeiramente a pena mínima cominadafoi aumentada, o que foi desinfluente, pois continuava a incidir a Lei 9.099/95 e amalsinada pena de pagamento de cesta-básica que, além de não servir como pre-venção, seja geral ou especial, incentivava o desrespeito, haja vista a impunidadedecorrente do tratamento da questão como infração de menor potencial ofensivo 20;(ii) a Lei 11.340/06 afasta, de modo ambíguo e questionável em certos aspectos aaplicação da Lei 9.099/95 21.

Pesquisa realizada pelo Senado Federal 22 transparece a violência domésticacomo agir tradicional que tem como âmbito comum a família, e que não é incomum areiterada prática dessa modalidade de desrespeito – a pesquisa revelou que 50% dasmulheres inquiridas já tinham sido violentadas por 04 ou mais vezes.

Há mais.

Outra pesquisa, dessa vez realizada pelo IBOPE neste ano de 2006, estarreceao constatar que “Em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas apli-cadas nos casos de violência contra a mulher são irrelevantes e que a justiça trataeste drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante” 23.

A interpretação sistemático-teleológica do marco legal da prisão cautelar nãodeixa dúvidas sobre o cabimento, em tese e conforme as vicissitudes do caso con-creto, da prisão em testilha:

20 Reflexão pessoal do tema faz ver o desvio de perspectiva com que tratamos relevantes fatos sociais. Não nosdamos conta de que neste caso e em muitos outros a lesão extrapola a subjetividade da vítima. Fato semelhanteocorre com os crimes que lesam bens jurídicos transindividuais, como o crime contra o meio ambiente e contra asfinanças do Estado, para citar apenas dois exemplos. Neste último caso, a admissão inclusive pela FazendaPública – que admite não ajuizar procedimentos judiciais tendo em vista o reduzido valor sonegado, por exemplo– da incidência do princípio da insignificância revela a percepção equivocada dos custos da tutela do diretolesado e da repercussão desta mesma tutela.21 Ambíguo e questionável porque suscita uma série infindável de debates, por exemplo: (a) sobre se o crime delesões corporais leves continua sendo de ação penal pública condicionada à representação, ou se aindisponibilidade da dignidade humana imporia tratar-se de ação incondicionada; (b) sobre o procedimento a seraplicado, notadamente neste E. TJDFT, que por ato normativo regular determinou ao Juizados Especiais Criminaisa competência para processar e julgar aqueles casos submetidos às disposições da Lei 11.340/06; etc.22 , acesso em 11 de dezembro de 2006.23 , acesso em 11 de dezembro de 2006.

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Da interpretação sistemática do dispositivo acima transcrito, po-dem-se extrair as seguintes conclusões: 1 – a prisão preventiva cogita-da na Lei “Maria da Penha” continua cabendo apenas diante de crimesdolosos, a uma porque o novel inciso IV do art. 313 do Código de Pro-cesso Penal se subordina ao seu caput, onde, na parte final, se estabe-lece que a medida excepcional só cabe em crimes dolosos, estando,por conseguinte, excluídas de sua incidência as contravenções e os cri-mes culposos. A duas porque em sede de crime culposo não se cogitade “violência” doméstica e familiar contra a mulher; 2 – o inciso IV podeabranger qualquer crime doloso, independente da pena ou das condi-ções pessoais do criminoso, desde que praticado com violência domés-tica e familiar contra a mulher, com a identificação conceitual estabelecidanos arts. 5o e 7o da Lei em exame; 3 – neste caso específico de prisãopreventiva do inciso IV, a medida será ainda mais excepcional e, neces-sariamente, subsidiária às outras medidas cautelares, definidas comoprotetivas de urgência, estabelecidas nos arts. 22, 23 e 24 da Lei “Mariada Penha”. Só caberá a prisão preventiva, nas hipóteses de violênciadoméstica e familiar contra a mulher aventadas exclusivamente no incisoIV do art. 313 para assegurar a eficácia daquelas medidas protetivas deurgência, se as mesmas, por si só, se revelarem ineficazes para a tute-la da mulher; 4 – tal restrição, no entanto, se torna desimportante nahipótese do caso se enquadrar nas demais situações estabelecidas nosarts. 313, I, II e III do Código de Processo Penal, os pressupostos clássi-cos da prisão preventiva, ou seja, crime doloso punido com reclusão,punido com detenção quando o réu é vadio ou há dúvidas sobre suaidentificação, ou, independente da pena cominada, se o réu já foi conde-nado por outro crime doloso. Presentes algum dos outros três pressu-postos da prisão preventiva, ainda que o crime seja resultado de violên-cia doméstica e familiar contra a mulher, não se precisará recorrer aoinciso IV, cabendo a prisão preventiva, independente da eficácia ou nãodas outras medidas protetivas de urgência, pelas simples hipótesesestabelecidas nos incisos I, II e III.

O inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal, como visto,alarga sobremaneira as hipóteses de cabimento de prisão preventiva,passando a comportá-la, em tese, qualquer crime doloso, independenteda pena cominada (injúria, ameaça, lesão corporal etc.), desde que re-sultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, em sua con-cepção conceitual, e que as medidas protetivas de urgência previstasna Lei “Maria da Penha” não sejam suficientes para a tutela da vítima. Épreciso, portanto, principalmente nos crimes ditos de menor potencialofensivo, como os acima mencionados, em virtude da pequena quanti-dade de pena privativa de liberdade cominada, que o Juiz aja com bas-tante prudência na hora de decidir pela prisão do agressor, medida quesó pode ser reservada a ultima ratio e, em nenhuma hipótese, pode

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exceder, em tempo de duração, à projeção de aplicação da pena pri-vativa de liberdade cominada, em caso de condenação, o que fariacom que perdesse o contorno de cautelaridade que se deve exigir daprisão preventiva 24.

(E) Esta última observação é extremamente importante, pois a Constituiçãoreprova, no inciso XLVII do art. 5º, as penas de caráter perpétuo.

(F) Noutro giro, não há lesão ao princípio da proporcionalidade, apesar de serinegável a mora legislativa em dar correto tratamento ao tema, tanto em seus aspec-tos meta-penais – talvez os mais pertinentes – quanto em relação às penas cominadas.E isso mesmo em face do princípio da intervenção mínima.

Este princípio – valor condensado, se preferirmos uma imagem – determina,nas palavras de LUIZ RÉGIS PRADO que o Direito Penal “só deve atuar na esfera dosbens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podemser eficazmente protegidos de forma menos gravosa” 25.

Pois bem, é induvidoso que nosso ordenamento está equipado com outros meiostendentes a dar cobro à violência doméstica.

Todos ineficazes, entretanto.

Há a medida cautelar de separação de corpos; de afastamento do cônjuge dolar conjugal; de alimentos provisionais; a punibilidade da ameaça; já havia a lesãocorporal, independentemente de quem seja a vítima e de seu relacionamento com oagressor; etc.

Mas a realidade nos informa que nenhuma dessas medidas foi ou têm sidoeficazes para evitar ou fazer cessar a violência doméstica e familiar baseada no gê-nero – incluindo-se mesmo a violência contra a criança ou contra o idoso. Lembre-mos que, nos termos do art. 5º da Lei 11.340/06, os bens jurídicos tutelados são: aintegridade física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. É materialmente típico atémesmo o sofrimento relevante decorrente da mácula a tais bens.

Talvez a seara penal não seja a mais adequada ao tratamento do tema 26.

24 MARCELO LESSA BASTOS. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”. Algunscomentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.25 Curso de direito penal brasileiro, 3ª ed., RT: São Paulo, 2002, p. 118, com destaques nossos.26 Políticas públicas de educação e construção da ética necessária à fruição da moderna família plural e democrá-tica, afastado que tem sido o patriarcado e o casamento como único escol da família legítima.

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Mas é urgente a adoção de alguma postura idônea, tal como a fuga da presaque sente seu predador a rondá-la. Ou, em outra imagem, da mulher que, dadas ascircunstâncias, se vê dormindo com o inimigo.

(G) O direito comparado nos apresenta significativos exemplos no sentido deque a via extrema deva ser empregada na falência dos demais mecanismos à dispo-sição do julgador.

MARIA ELISABETE FERREIRA 27, dissertando sobre o ordenamento jurídicoportuguês, informa que apesar de a solução penal não ser suficiente para erradicar oproblema da violência conjugal, tem sido adotada diante da insuficiência dos outrosinstrumentos disponibilizados por aquele ordenamento jurídico – situação em tudosemelhante ao que ocorre entre nós.

O fato concreto, que sangra aos olhos, é vivermos em um Estado de Direitodemocrático que tem na legislação – assim entendida como fruto do processolegislativo constitucional e, portanto, veiculadora do interesse público 28 – o limite daatividade do aplicador do Direito 29 cotejado com a urgência de livrarmos nossas mu-lheres desta odiosa faceta da violência: a perpetrada em casa e pelo ente amado – oque foi amado em outros tempos.

A realidade demonstra não haver meio menos gravoso de limitar a ação doagressor em favor da integridade – do direito à vida mesmo 30 – da mulher vítima,forçoso convir que a prisão preventiva, revelada no caso concreto como necessária,meio idôneo à garantia de não reiteração da violência e da efetividade das medidasintegradas de prevenção e proteção é a medida cautelar que se impõe.

(H) Oportuna é a lição de DANIEL SARMENTO, indicativa da relevância do pro-blema e das soluções possíveis para o caso concreto:

A partir do caso concreto, o operador do direito deve buscar a solução maisjusta, através de um procedimento circular, por intermédio do qual são testados osdiversos topoi (pontos de vista), para verificar qual deles acena com a melhor respos-ta para o problema enfrentado 31.

27 Da intervenção do Estado na questão da violência conjugal em Portugal. Coimbra: Almedina; 2005; pp. 61/136.28 “Aliás, do aspecto substantivo do devido processo legal, decorre a obrigatoriedade de que as leis reflitam oconsenso público, significando, essa satisfação, a obediência ao princípio da razoabilidade” (BRAGA, Valeska eSilva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 44).29 Ainda que a atividade interpretativa consista fundamentalmente em atribuir significado aos significantes consi-derados, sendo por esta operação que a lei se amolda ao fato social e sua constante evolução.30 A Constituição Federal não assegura a integridade física como direito fundamental, mas é lógico estar implícitana proteção dispensada à vida. 31 A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000; p. 128.

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Nesta esteira, também não há incompatibilidade com a nova previsão de prisãopreventiva com os expressos termos do art. 312 do CPP que em seu primeiro incisopermite a prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Este conceito – ordem pública – é dos mais controvertidos em Direito, mas nãohá dúvidas em definir a prisão preventiva para garantia da ordem pública como aquela“decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinqüir”,como sintetiza FERNANDO CAPEZ, haja vista o “evidente perigo social decorrentena demora em se aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgadoda decisão condenatória o sujeito terá cometido inúmeros delitos. Os maus antece-dentes ou a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável prática denovos delitos e, portanto, autorizam a decretação da prisão preventiva com basenesta hipótese” 32.

O mesmo entendimento, acolhido sem divergência significativa pela Jurispru-dência, é exarado pelo garantista PAULO RANGEL, ao lecionar que “Por ordem públi-ca, deve-se entender a paz e tranqüilidade social, que deve existir no seio da comuni-dade, com todas as pessoas vivendo em perfeita harmonia, sem que haja qualquercomportamento divorciado do modus vivendi em sociedade” 33.

Mesmo o advogado FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO atesta idênticoentendimento em sua doutrina:

A lei fala em ‘garantia da ordem pública’. Segundo De Plácido eSilva, entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalida-de normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuiçõese os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou pro-testo (Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro, Forense, v. 3, p. 1101). Or-dem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social 34.

Logo, a prática de crimes contra a mulher em situação de violência doméstica ésuporte fático suficiente à incidência do inc. I do art. 312 do CPP 35.

(I) Noutro giro, não há equivalência material entre as situações de quem optepor lesar o patrimônio mediante violência ou grave ameaça superiores ao necessárioà incidência da norma penal incriminadora, ou em relação àquele já imerso no mundodos crimes graves, e o homem que, abusando da relação de amor, hospitalidade ou

32 Curso de Processo Penal, 8ª ed. São Paulo: Saraiva; 2002; p. 239.33 Direito Processual Penal. 9ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris; 2005; p. 628.34 Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. São Paulo: Saraiva; 1999; p. 543.35 Mas veja que o caso concreto pode revelar um dano moral como fato concreto ensejador de uma medida deproteção, haja vista a abrangência da definição legal de ato de violência doméstica.

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afetividade, enfim, da intimidade com a mulher vítima, lesione sua personalidade nosmais diversos aspectos, tal como disciplinado na Lei Maria da Penha.

Apesar disso e ainda assim, há diferenciado juízo de reprovação da condutaque, cada exemplo a seu modo e consoante as possibilidades legais, importa emelevada desaprovação da conduta e de seu resultado.

Em sede de criminalização primária já foi prevista pena maior para a lesão corporalleve praticada em situação de violência doméstica, de modo que, no mais das vezes, nãose poderá bradar a periculosidade do agente como móvel da prisão preventiva.

Mas a lei, atenta, talvez, a isso e à disciplina da proteção dosdireitos humanos, elegeu paradigma diferente para a aferição da ne-cessidade da prisão cautelar: a efetividade das medidas de proteção.

(J) A ponderação entre a sanção eleita para a conduta optada e os rigores damedida cautelar – por obra do princípio da proporcionalidade ou, na visão de PAULORANGEL, também do princípio da homogeneidade – deve ser mitigada à vista daponderação entre a dignidade da mulher (e seus filhos 36) – expressamente referidana Lei 11.340/06, na Constituição Federal e em diversos diplomas de Direito Interna-cional ratificados pelo Brasil –, a dignidade do agressor eventualmente levado à pri-são e o efetivo acesso à Jurisdição.

Pois bem, a “nova lei fundamenta-se em normas diretivas consagradas na Cons-tituição Federal (art. 226, § 8º), na Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas asFormas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Punir eErradicar a Violência contra a Mulher (Preâmbulo e art. 1º). Seu fundamento político-jurídico, portanto, é admirável e difícil de ser contestado” 37.

Fato que avulta em pertinência e relevância quando se observa que é direitofundamental até então implícito 38 a integridade físico-psíquica da mulher. Tal integrida-de, elemento do fundamento da República positivado no inciso III do art. 1º da Consti-tuição Federal, é direito fundamental no aspecto formal e material também, conformelição de INGO WOLFGANG SARLET 39.

Consoante esse entendimento é a lição de LUIZ VICENTE CERNICCHIARO:

A Constituição de 1988, a exemplo das anteriores, relacionou di-reitos e garantias. A atual faz questão de arrolar direitos individuais esociais. Em seguida, acrescentou que a especificação não excluía ou-tros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados.

36 Sim porque não há dúvidas de que a personalidade é formada a partir do exemplo do masculino e do feminino queé dado, ainda que no mais das vezes de modo inconsciente, por pai e mãe.37 LEAL, João José. Violência doméstica contra a mulher: breves comentários à Lei nº 11.340/2006. Jus Navigandi,Teresina, ano 10, n. 1214, 28 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.38 Hoje determinado pelo artigo 6º da Lei 11.340/06.39 A eficácia dos direitos fundamentais, 2ª ed., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2001, pp. 80 e seguintes.

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A doutrina classifica-os, respectivamente, direitos ou poderes explícitose direitos ou poderes implícitos. Melhor chamar os últimos de ‘inonimados’.

Pontes de Miranda noticia que a inspiração foi a Emenda IX à Constituição dosEstados Unidos da América, fonte também do art. 33 da Constituição da RepúblicaArgentina e, através da Constituição brasileira de 1891, da Constituição de Portugal.O que se diz é que – os termos são os da Constituição americana – a enumeração dealguns direitos na Constituição não pode ser interpretada no sentido de excluir ouenfraquecer outros direitos que tem o povo.

A Constituição garante o direito à vida (art. 5º). Não menciona, expressamente, odireito à integridade corporal [e moral, pois o que se assegura, para além da vida, e umavida digna]. Todavia, o resguardo é o mesmo. A vida é preservada em atenção ao homem.Não se pode pensar o homem sem integridade anatômica e funcionamento fisiológico 40.

Assim é que, ao consagrar a tutela dos direitos humanos da mulher em situa-ção de violência doméstica e ao prever a prisão cautelar do agressor como medidaapta a possibilitar a efetividade das medidas de proteção, a Lei 11.340/06 positivouação afirmativa absolutamente necessária ante a insuficiência dos instrumentosdisponibilizados pelos demais ramos do Direito.

A experiência nazista revelou a insuficiência da previsão de direitos, evidencian-do, a um só tempo, a necessidade de garantias e a conveniência, necessidade mes-mo, de uma liga de nações e de um instrumental internacional apto a por termo àspretensões totalitárias dos Estados Nacionais e aos desrespeitos à vida humana,única, por isso, digna.

Mas de nada vale as amarras postas ao Poder Legislativo e a percepção datranscendência do princípio da razoabilidade, se o julgador, o intérprete de uma formageral, pautar sua atuação, nas palavras de MOREIRA ALVES, por uma percepção einterpretação fantasmagórica do Direito, pela qual:

Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as dife-renças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplinada matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou.É um tipo de interpretação (...) em que o olhar do intérprete dirige-seantes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menosa representação da realidade que uma sombra fantasmagórica 41.

40 Direito penal na Constituição, 3ª ed. São Paulo: RT; 1995; pp. 213/215.41 O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152.

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É de se considerar, portanto, existir “garantia sempre em face de um interesseque demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar”, como leciona PAULOBONAVIDES.

A garantia não se confunde com o direito subjetivo, pois, em relação ao sujeito,consiste em “estabelecer uma proteção direta e imediata aos direitos fundamentais,por meio de remédios jurisdicionais próprios e eficazes” 42.

Disso entendemos possível concluir não haver óbice lógico-jurídico em asse-gurar direito subjetivo a um determinado grupo de indivíduos garantido pela restriçãode direito correlato, atribuído a outro grupamento de sujeitos.

Pois bem, a prisão cautelar do agressor é, sem dúvida, garantia do direito funda-mental da mulher vitimada em sua integridade – implícita ao direito fundamental à vida.

E não há reprovação que se possa fazer por se estar a comprimir o direito aliberdade do agente. A opção do Legislador é voz legítima do interesse público e dopovo, de que emana o Poder, e, portanto, deve preponderar.

Nesse sentido é a abalizada lição de DANIEL SARMENTO 43, que nos indica queao Poder Judiciário – deficitário em legitimidade, como sabemos – somente é permi-tido ponderar valores caso perceba eventual inconstitucionalidade ou vazio legislativo:

O uso do método de ponderação pressupõe a inexistência deregra legislativa específica, resolvendo o conflito entre princípios cons-titucionais. A presença de norma infraconstitucional deste teor ini-be o juiz de efetuar a ponderação, uma vez que ele terá de acataraquela realizada de antemão pelo legislador, a não se quer a considereinconstitucional 44.

No caso, não há vazio legal, a norma está ai clamando, assim como a realida-de, as vítimas da violência e suas famílias, por aplicação.

E não há inconstitucionalidade. Caso assim fosse, incidiria o art. 481 do CPC adeterminar a análise da questão, no caso desse E. TJDFT, pelo Órgão Especial, pois nãohá precedente a informar ser inconstitucional a nova possibilidade de prisão preventiva:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO NÃO EMBARGADA.HONORÁRIOS. ART. 1º-D DA LEI 9.994/97. MP Nº 2.180-35.INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO NÃO SUBMETIDA ÀAPRECIAÇÃO DO ÓRGÃO ESPECIAL. NULIDADE DO ACÓRDÃO.

42 Curso de direito constitucional, 16ª ed. São Paulo: Malheiros; 2005; p. 531.43 A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000.44 P. 148.

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1. Os Tribunais, no exercício do controle difuso de constitucio-nalidade, devem observar a norma dos arts. 97 da Constituição e 480-482 do CPC, que determinam a remessa da questão constitucional àapreciação do Órgão Especial, salvo se a respeito dela já houver pro-nunciamento deste órgão ou do Supremo Tribunal Federal.

2. (...)

3. Recurso especial a que se dá provimento.

(REsp 676.725/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI,PRIMEIRA TURMA, julgado em 19.09.2006, DJ 28.09.2006 p. 198).

(L) De outra parte, a Emenda Constitucional 45, concessa venia, afastou a re-levância da lição de FLÁVIA PIOVESAN 45 a respeito de que a Constituição Federalteria adotado sistema misto de integração dos Tratados Internacionais ao ordenamentointerno: em se tratando de tratados sobre direitos humanos teríamos adotado teoriamonista, segundo a qual a internalização seria automática; quanto às demais avençasinternacionais ter-se-ia adotado a teoria dualista.

Fez-se opção por essa última construção teórica, pois mesmo os tratados queversem sobre direitos humanos não têm aplicabilidade imediata, como entendia aquelaautora ser decorrência dos §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal, haja vistatratar-se de direitos fundamentais, pois devem submeter-se a procedimento legislativopróprio das emendas constitucionais para, após isso, adquirirem tal status.

Entretanto, o tema não perdeu sua relevância, haja vista julgamento ainda emandamento perante o Supremo Tribunal Federal da possibilidade jurídica – que, junta-mente com o STJ, não admitimos – de prisão civil do depositário infiel 46, em que oMinistro Gilmar Mendes, não meramente à guisa de obter dictum, mas como ratiodecidendi, salientou não se equiparar à legislação ordinária aquela proveniente detratados e convenções internacionais, tais como os compromissos assumidos peloBrasil perante a ordem internacional:

Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator,acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionaisde direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativosupralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional comeles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação eque, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do PactoInternacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção

45 Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad; 1998; pp. 34/47; e O sistema interamericano de proteçãodos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT; 2000; pp. 159/179. 46 Informativo 449, de dezembro de 2006.

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Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da CostaRica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositá-rio infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor-fiduciante viola oprincípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevêoutros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão de o DL 911/69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficçãojurídica ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário, em ofensa aoprincípio da reserva legal proporcional. Após os votos dos MinistrosCármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Brittoe Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediuvista dos autos o Min. Celso de Mello. RE 466343/SP, rel. Min. CezarPeluso, 22.11.2006. (RE-466343).

Disso emana a extrema relevância, no âmbito do sistema global de proteçãodos direitos humanos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, aassegurar a dignidade de todos, inclusive da mulher.

Na seara do sistema especial de proteção – a partir do qual se debruça sobreas particularidades e vicissitudes de grupos especialmente afligidos –, da Convençãosobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovadapelas Nações Unidas em 1979.

Destaca-se, ainda, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicara Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”).

Todos esses instrumentos foram ratificados pelo Brasil e denotam a necessi-dade de um olhar atualizado acerca da violência contra a mulher, bem como dasmedidas cautelares previstas para assegurar sua integridade e efetividade das medi-das positivas de proteção.

(M) Mais do que isso, a Lei 11.340/06 está inserida no consagrado e almejadocontexto de valorização da vítima.

(N) Os direitos humanos são um construído ético-social necessário à convivên-cia. Quem seria capaz de negar que o fenômeno da violência hoje infelizmente tão emvoga não tem seu embrião na vivência familiar, no exemplo que damos ou recebemos.

Os direitos humanos:

Compõem um construído axiológico, fruto de nossa história, denosso pensamento, de nosso presente, a partir de um espaço simbó-lico de luta e ação social. (...) os direitos humanos compõem a nossa

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racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processosque abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana 47.

Ficam expostos (i) a espinha dorsal da questão e o caráter prospectivo do Di-reito, que, como se sabe, para além de ser ordem regulatória do agir em sociedade,legitimando o emprego da força, procura imprimir pauta valorativa e de condutas prá-ticas, tudo a fim de que tenhamos vida, e vida em abundância; (ii) que não há ilegali-dade ou inconstitucionalidade da nova modalidade de prisão cautelar instituída pelaLei 11.340/06.

Rodrigo da Silva Perez Araújo,

assessor jurídico do Ministério Públicodo Distrito Federal e Territórios,

pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do TJDFTe pela Fundação Escola do MPDFT

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O casal de militarO casal de militarO casal de militarO casal de militarO casal de militaresesesesesperperperperperante a Leiante a Leiante a Leiante a Leiante a Lei

Maria da PMaria da PMaria da PMaria da PMaria da Penhaenhaenhaenhaenha

Murilo Salles Freua,

policial civil do Estado de SãoPaulo, bacharel em Direito

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O CASAL DE MILITARESPERANTE A LEI MARIA

DA PENHA (LEI 11.340/06)

1 – INTRODUÇÃO

A Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que trata da violên-cia doméstica contra a mulher, recentemente vigorando em nosso ordenamento jurí-dico, vem gerando muitas discussões na esfera jurídica. Muitos entendem ser umalei inconstitucional, pois fere o princípio da isonomia e há invasão de competência,além de outras imperfeições legais. Mas enquanto não há solução legislativa,jurisprudencial e doutrinária, a Lei Maria da Penha está vigorando e tendo que seraplicada no caso concreto quando do cometimento de violência doméstica. Não sóaumentou a pena para tal tipo de crime, como também trouxe medidas de urgênciade proteção à mulher.

É conhecida como Lei Maria da Penha por homenagear uma mulher que foivítima de violência doméstica, muito conhecida na mídia pela constante luta por Jus-tiça, ainda que condenada a uma cadeira de rodas devido a um tiro dado por seucompanheiro – que ficou impune por mais de uma década, resultando repúdio deorganizações nacionais e internacionais.

O artigo 1º da Lei Maria da Penha deixa bem nítida a intenção do legislador deproteger a mulher na esfera familiar, seja qual for o nível social, econômico, racial,religioso, ou mesmo profissional: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir aviolência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 daConstituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas deViolência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir eErradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificadospela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violên-cia Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência eproteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (artigo 1º da Lei11.340/06).

Já o Código Penal Militar considera crime militar o praticado por militar em situ-ação de atividade contra militar na mesma situação (art. 9º, inc. II, alínea “a” CPM).

Como o CPM dita que certos atos de violência contra a mulher militar sejamconsiderados como crime militar, e a Lei Maria da Penha preceitua sua aplicação

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quando da violência doméstica, surge então a dúvida de qual legislação a ser aplica-da no caso concreto de uma mulher militar ser vítima de violência doméstica perpe-trada por seu companheiro também militar.

2 – A MULHER MILITAR

A história demonstra que a mulher vem ocupando cada vez mais espaço nasforças militares. A mulher no universo militar, atualmente, além de fazer serviços an-tes exercidos apenas por homem, já pode até comandá-lo. Futuramente encontrare-mos a mulher com maior freqüência nos mais altos graus da hierarquia militar. A títulode exemplo, na esfera estadual, o Coronel Feminino PM Angelina Ramirez chegou aComandante Geral da Polícia Militar de Rondônia, e em São Paulo o Coronel Femini-no PM Fátima Ramos Dutra chegou ao comando da Casa Militar do Governo do Esta-do. Na esfera federal a mulher já pode até chegar a oficial-general.

As conquistas perante a legislação e a sociedade e as mudanças na filosofia detrabalho das forças militares garantiram à mulher ocupar postos inimagináveis nopassado.

3 – O CASAL DE MILITARES

Com a inclusão da mulher nas instituições militares criou-se a figura do casalde militares, já que é no círculo do trabalho onde começam muitas relações amoro-sas, desde um simples romance até um casamento. É muito comum encontrarmoscasais de militares, seja de militares estaduais ou de militares federais, e até mesmode militar estadual com militar federal, apesar de ser menos comum.

Ao citar casal, não podemos nos ater apenas ao instituto do casamento, já quenossa Lei Máxima, no artigo 226, parágrafo 3º, reconhece o instituto da união estávelcomo entidade familiar. Também não podemos esquecer a existência do casal ho-mossexual, pois devido a uma evidente liberdade sexual – ainda que exista muitopreconceito –, o Brasil caminha para reconhecer a união homossexual. Basta acom-panharmos as notícias de vitórias judiciais referentes a direitos entre casal homosse-xual ou mesmo de projetos de leis visando reconhecer esse tipo de união.

4 – O CASAL DE MILITARES E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Com a existência do casal de militares, surgiu um novo fenômeno social, que éa mulher militar como vítima de violência doméstica por parte de seu companheiro

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também militar. Seria inocência demasiada acreditarmos que a mulher militar nãosofre violência dentro do seio familiar, já que a sua qualidade de militar não influenciana violência do seu companheiro quando do cometimento de violência doméstica.

Caso a intimidade do casal de militares não seja levada em consideração, osmais variados crimes militares poderiam ocorrer entre um casal de militares. Serianecessário analisar a qual força pertencem os militares, que fato ocorreu, qual a gradu-ação ou posto dos envolvidos, o lugar, o motivo, entre outros. Para isso seria necessá-rio fazer uma construção jurídica fundamentada na legislação, na jurisprudência e nadoutrina, analisando caso a caso para se chegar à conclusão da existência de crime,qual crime ocorreu e se é ou não crime militar. Havendo entendimento que a Justiçacastrense não tem competência para julgar a violência doméstica envolvendo casalde militares, descartando a aplicação do CPM e do CPPM, pouco vai importar quesejam militares estaduais, federais, ou mesmo um estadual e outro federal, tampoucose é um casal militar heterossexual ou homossexual, já que a Justiça comum seriacompetente para processar e julgar crimes de violência doméstica envolvendo milita-res na liberdade conjugal. Caso contrário haveria violação à Constituição Federal,como prescreve Fernando Capez: “A casa, como asilo inviolável, compreende o di-reito de vida doméstica livre de intromissão alheia (liberdade das relações familia-res, intimidade sexual etc.)” (CAPEZ, 2005: 246) (grifo nosso).

5 – O CASAL DE MILITARES FRENTE À LEGISLAÇÃO

As inovações na legislação penal ocorreram com mais freqüência na comum emenos na militar. A Lei 9.099/95 visou menor intervenção penal em certas infraçõesintituladas “de menor potencial ofensivo”, havendo ainda mais benevolência com aLei 10.259/01.

No caso concreto, salvo raríssimas exceções, estas leis geraram mais impuni-dade do que Justiça. A não aplicação da Lei 9.099/95 na Justiça Militar, prevista noartigo 90-A foi acertada pelo legislador, pois seria incoerente transacionar penalmentee beneficiar aquele que descumpre preceitos fundamentais das forças militares (adisciplina e a hierarquia), evitando assim instabilidade na caserna. Os doutrinadoresCícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger, de forma sábia, ensinam: “Nãohá como transacionar a disciplina e a hierarquia, valores supremos no militarismo, oque depõe em favor da não-aplicabilidade das Leis dos Juizados Especiais Crimi-nais” (NEVES; STREIFINGER, 2005: 269).

A Lei Maria da Penha no artigo 41 proibiu também o emprego da Lei 9.099/95nos crimes de violência doméstica contra a mulher, demonstrando que o legisladorconcordou que a Lei 9.099/95 gera mais impunidade do que Justiça, pois o “paga-mento de cestas básicas” para instituições de caridade, ao invés de pena, só sanamomentaneamente a fome de alguns coitados, mas não coíbe a violência.

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A Lei 9.099/95 visou também diminuir os problemas do Poder Judiciário, que aoinvés de investimentos necessários e urgentes, recebeu um instrumento para dimi-nuir a intervenção penal na tão conturbada sociedade. Afastando a aplicação da Lei9.099/95 na Justiça Militar e recentemente na Lei Maria da Penha, o legislador garantiumaior reprimenda ao criminoso.

A simples leitura do artigo 9º, inciso II, alínea “a” do CPM, poderia levar à conclu-são precipitada de que quando um militar da ativa comete contra outro militar na mes-ma situação algum ato passível de ser tipificado como crime no CPM, ainda que numarelação íntima, estaríamos diante de um crime militar. Nesse sentido, os acontecimen-tos da vida privada e da intimidade do casal de militares seriam resolvidos com fulcrona legislação militar, afastando outras leis, inclusive as medidas protetivas e inovadorasda Lei Maria da Penha. Demonstrando que a intimidade familiar é protegida pela CartaMagna, afirma o ilustre Alexandre de Moraes: “No restrito âmbito familiar, os direitos àintimidade e vida privada devem ser interpretados de uma forma mais ampla, levando-se em conta as delicadas, sentimentais e importantes relações familiares, devendohaver maior cuidado em qualquer intromissão externa” (MORAES, 2001:74).

O Código Penal Militar, ainda que proteja outros bens, sempre protegerá diretaou indiretamente a disciplina e a hierarquia, ou seja, visa proteger a regularidade dasforças militares. Nesse sentido, seguem as palavras do admirável Jorge César deAssis: “Vale trazer a lume, que a vida militar é repleta de situações peculiares. ÀJustiça Militar cabe não só o processar e julgar os crimes militares mas tambémvelar pela integridade das instituições militares, cujas vigas mestras são a disciplinae a hierarquia” (ASSIS, 2006: 271).

Aceitar que o CPM e o CPPM devem ser aplicados para resolver problemas daintimidade e da vida privada do militar, sem nenhuma relação com a regularidade militar,pode gerar danos irreparáveis à regularidade da instituição familiar. Além de certoscrimes militares, estaria o militar também sujeito às transgressões disciplinares, quesão bem rígidas, pois também visam à regularidade militar. Sendo assim, seria impos-sível viver um relacionamento íntimo ou mesmo familiar, caso levássemos a legislaçãomilitar para dentro da intimidade do militar, sem dar ao menos certa liberdade na suavida pessoal. Como os crimes militares são em regra de ação pública incondicionada,por qualquer deslize dentro da relação pessoal o militar seria preso e levado a julga-mento, mesmo se o ofendido não quisesse a ação. Como exemplo: um homem, Capi-tão PM, casado com uma mulher, Coronel Feminino PM, teria que tratá-la sempre comoseu superior mesmo na intimidade do casal, pois caso contrário poderia ter inúmerascomplicações perante a Justiça Militar, inclusive problemas administrativos perante asua instituição no caso de transgressões disciplinares. Com a aplicação da legislaçãocomum, a vítima tem a faculdade de não representar ou de renunciar à representação,dando maior liberdade à intimidade do casal de militares.

O Código Penal Militar não pode invadir a intimidade do casal de militares apretexto de garantir a regularidade das forças militares, pois estaria ultrapassando os

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limites impostos pela Constituição Federal, violando direitos fundamentais à intimida-de e à vida privada (inciso X, do artigo 5º da C.F.), bem como o direito de formar umafamília com a especial proteção do Estado (artigo 226 da C.F.), demonstrando assimque o legislador constituinte não permitiu intromissões no instituto família sem a devi-da legalidade, salvo para coibir a violência contra a própria estrutura familiar, confor-me o parágrafo 8º, do artigo 226 da Lei Maior: “O Estado assegurará a assistência àfamília na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibira violência no âmbito de suas relações” (grifo nosso).

Fundamentado na Lei Máxima e em tratados internacionais de que o Brasil foisignatário, o legislador atual criou a Lei Maria da Penha como instrumento para coibir aviolência doméstica contra a mulher. Além de maior punição, a lei Maria da Penha prevêtambém atendimento multidisciplinar a vítima, parentes e até mesmo para o agressor.Apesar de discutíveis, a Lei Maria da Penha trouxe inovações para o Direito pátrio, jáque abrange os campos penal, cível, trabalhista, administrativo e processual.

Cria inclusive os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,que enquanto não existirem, serão acumulados pelas varas criminais, conforme arti-go 33 da Lei 11.340/06. A referida Lei combate a violência doméstica contra a mulherutilizando-se de meios jurídicos, médicos e educacionais.

Não pode a legislação castrense tirar da mulher militar e de sua família as ino-vações e garantias trazidas pela Lei Maria da Penha, instrumento este que veio paraatender à instituição familiar, seja ela formada ou não por militares, mesmo porque talintromissão viola preceitos constitucionais.

Muito antes do advento da Lei Maria da Penha, o notável Célio Lobão já doutrinavaque a Justiça castrense não deveria interferir na esfera pessoal do casal de militares:“Com a incorporação de mulheres às Forças Armadas, à Polícia Militar e ao Corpo deBombeiros Militares, surge o problema relativo à competência da Justiça Militar paraconhecer do delito cometido por um cônjuge ou companheiro contra outro. Se a ocor-rência diz respeito à vida em comum, permanecendo nos limites da relação conjugal oude companheiros, sem reflexos na disciplina e na hierarquia militar, permanecerá noâmbito da jurisdição comum. Tem pertinência com a matéria a decisão da Corte Supre-ma, segundo a qual a administração militar ‘não interfere na privacidade do lar conjugal,máxime no relacionamento do casal’. É questão a ser decidida pelo juiz diante do fatoconcreto” (LOBÃO, 2006: 121,122). Tal ensinamento reforça a tese da importância daprivacidade dos militares no convívio íntimo e familiar.

6 – CONCLUSÃO

A Carta Magna recepcionou o Código Penal Militar e o Código de ProcessoPenal Militar, dando-lhes roupagem de legalidade, coibindo os abusos contidos quan-

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do de suas decretações, dando ao militar direitos que não detinha na plenitude.Enaltecendo a democracia o sábio José Afonso da Silva ensina: “Quanto mais o pro-cesso de democratização avança, mais o homem se vai libertando dos obstáculosque o constrangem, mais liberdade conquista” (SILVA, 2004: 233).

Seguindo o avanço democrático, o militar adquiriu mais liberdade diante do rígi-do ordenamento jurídico militar – tal rigidez faz-se necessária apenas para manter aregularidade das forças militares, mas desnecessária na intimidade e na vida privadado militar. Caso o militar desrespeite essa liberdade e venha a cometer violência do-méstica contra sua companheira também militar, e esta requerer intervenção estatal,deverá então ser aplicada a Lei Maria da Penha, sendo o caso processado e julgadopela Justiça comum que, além de punição, proporciona outras restrições ao agressor,bem como garante à mulher militar vítima e a seus familiares um conjunto de atendi-mentos e medidas protetivas indispensáveis para coibir a violência doméstica.

A violência doméstica envolvendo casal de militares deve ser processada ejulgada pela Justiça comum, conforme a Constituição Federal e a Lei Maria da Penha,já que atinge a regularidade da instituição familiar – que tem como base os senti-mentos e os atos mais íntimos do ser humano, tais como o amor, o carinho e o sexo.Já a Justiça Militar detém o mister constitucional de processar e julgar os crimes milita-res, ou seja, aqueles que afrontam a regularidade das instituições militares – quetem como base a hierarquia e a disciplina. Temos também de considerar que na rela-ção íntima dos militares quando um agride fisicamente ou verbalmente o outro, preten-de o agressor tão somente agredir seu familiar e não um militar ou sua instituição.

Sendo aplicada a Lei Maria da Penha no caso de violência doméstica envolven-do casal de militares, a mulher militar estará sendo protegida como qualquer outramulher, pois o status de militar não lhe retira a qualidade de mulher, do contrárioestaríamos diante de uma inconstitucionalidade gritante, já que a mulher militar esta-ria sendo segregada por um entendimento jurídico limitador de direitos conquistadosao longo do tempo em prol da entidade familiar e da sociedade como um todo.

Por tudo que foi visto até aqui, somente nos resta afirmar que a mulher militardeve ser amplamente amparada pela Lei Maria da Penha quando for vítima deviolência doméstica por parte de seu companheiro também militar.

Murillo Salles Freua,

policial civil do Estado de São Paulo,bacharel em Direito,

pós-graduando lato sensu em Direito Militar

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BIBLIOGRAFIA

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CAPEZ, Fernando. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.

LAZZARINI, Álvaro (Organizador). Constituição Federal, Estatuto dos Militares, Código PenalMilitar, Código de Processo Penal Militar, 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dosTribunais, 2005.

LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. 3. ed. atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2001.

NEVES, Cícero Robson Coimbra, STREIFINGER, Marcello. Apontamentos de Direito PenalMilitar, volume 1: (parte geral). São Paulo: Saraiva, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. rev. e atual. São Paulo:Malheiros, 2004.

*Artigo apresentado em novembro de 2006 ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu emDireito Militar da Universidade Cruzeiro do Sul, como avaliação final do módulo 2, onde obtevenota máxima. Foi publicado no site jurídico Jus Militaris (www.jusmilitaris.com.br) em 19 de abrilde 2007, em doutrina, Direito Penal Militar.

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LEI DELEI DELEI DELEI DELEI DEDRDRDRDRDROGASOGASOGASOGASOGAS

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USO PRÓPRIO USO PRÓPRIO USO PRÓPRIO USO PRÓPRIO USO PRÓPRIO

Cesar Dario Mariano da Silva,

8° Promotor de Justiça doII Tribunal do Júri

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A POSSE OU PORTE DE DROGAPARA USO PRÓPRIO CONTINUARÁ

A SER CRIME APÓS A VIGÊNCIADA NOVA LEI ANTITÓXICOS?

A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2.006, mais conhecida como Lei Antitóxicos,trouxe significativas modificações no que é pertinente a crimes relacionados a dro-gas. A nova lei entrará em vigor quarenta e cinco dias após sua publicação, ou seja,em 08 de outubro de 2.006.

Uma das principais mudanças é que ao usuário de drogas será dado tratamen-to especial. Inovando nosso ordenamento jurídico, a essa pessoa poderão ser impos-tas penas restritivas de direitos cominadas abstratamente no tipo penal (art. 28). Nãomais será possível a aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário de dro-gas, mas a conduta de possuir ou portar droga para seu próprio uso continua sendotipificada como crime.

As penas restritivas de direitos elencadas no Código Penal são aplicadas autono-mamente, não possuindo qualquer relação com as penas privativas de liberdade. Elasnão são cominadas abstratamente no tipo penal. Há a substituição das penas privativasde liberdade pelas restritivas de direitos, desde que preenchidos os requisitos previstosno art. 44 do Código Penal. Essa substituição dar-se-á quando da imposição da penapelo Juiz na sentença, que fará uma análise da viabilidade da substituição.

Todavia, nada obstante o caráter substitutivo das penas restritivas de direitosdescritas no Código Penal, já podemos encontrar no Código de Trânsito Brasileiroalgumas restrições de direitos que serão aplicadas cumulativamente com a penaprivativa de liberdade. Exemplos: arts. 302 e 303 do CTB.

O artigo 28, “caput”, e § 1º da nova Lei Antitóxicos diz que:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar outrouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autoriza-ção ou em desacordo com determinação legal ou regulamentarserá submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa oucurso educativo.

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§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumopessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à prepara-ção de pequena quantidade de substância ou produto capaz decausar dependência física ou psíquica.

Não nos convence o argumento defendido por alguns doutrinadores de que aposse ou porte de drogas para uso próprio, bem como a semeadura, cultivo ou colheitade plantas destinadas à preparação de drogas para uso do agente (art. 28, “caput”, e §1º), não mais são consideradas crimes, mas infrações “sui generis”, haja vista que aLei de Introdução ao Código Penal – Decreto-lei nº 3.914/1941 - considera como crimea infração penal a que a lei comine pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamen-te, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (art. 1º).

A Lei de Introdução ao Código Penal, como o próprio nome já diz, traz conside-rações acerca do Código Penal de 1.940. Sabemos que a parte geral do Código Pe-nal foi totalmente modificada pela reforma de 1.984. A antiga parte geral do CódigoPenal sequer previa penas restritivas de direitos. Eram consideradas penas princi-pais apenas a reclusão, a detenção e a multa (art. 28). Havia penas acessóriaselencadas no artigo 67, mas não existia previsão de penas restritivas de direitos comoconhecemos hoje.

Por esse motivo, a Lei de Introdução ao Código Penal não fez menção às penasrestritivas de direitos, que são consideradas espécies de penas pelo artigo 32 doatual Código Penal.

O artigo 28 está inserido no capítulo III, do Título III da lei. E esse capítulo tratados crimes e das penas. Ou seja, a própria lei diz que essas condutas são crimes.Aliás, o artigo 12 do Código Penal reza expressamente que as suas regras geraisserão aplicadas à legislação penal especial quando esta não dispuser de modo diver-so. E isso não ocorre com a nova Lei Antitóxicos, que traz tipos penais específicos einova ao definir crimes em que há cominação isolada de penas restritivas de direitos.Dessa forma, como as condutas são tipificadas como crime e a lei é especial, não hácomo aceitar que houve descriminalização.

E saber se essas condutas são, ou não, crime é extremamente importante,pois traz conseqüências penais quanto à reincidência. O artigo 63 do Código Penaldiz que será considerado reincidente aquele que cometer novo crime, depois do trân-sito em julgado da sentença que o houver condenado, no Brasil ou no exterior, pelaprática de crime anterior. Assim, como essas condutas são consideradas como cri-mes, poderão gerar a reincidência.

Também é importante ressaltar que o cultivo, semeadura ou colheita de plantasdestinadas à preparação de droga, em pequena quantidade e para uso próprio doagente, é crime específico previsto no artigo 28, § 1º. A pena é a mesma do delito deposse ou porte de droga para uso próprio. Acabou-se, portanto, a discussão até entãoexistente sobre a natureza do crime praticado, ou seja, se o agente seria traficante ou

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mero usuário, ou, como defendiam alguns, de ser o fato atípico. A nova lei, por outrolado, traz dispositivo específico que pune a aludida conduta quando o objeto materialfor destinado ao tráfico (art. 33, § 1º, II).

Caso o condenado por um desses delitos (art. 28, “caput” e § 1º) se negue acumprir a pena restritiva de direitos, o Juiz poderá adverti-lo ou aplicar-lhe multa, cujaquantidade e valor são fixados pelo artigo 29. Não existe possibilidade da conversãodas penas restritivas de direitos em privativa de liberdade por falta de previsão legal.

As penas previstas para os delitos do artigo 28, “caput” e § 1º (imposição eexecução) prescrevem em dois anos, observando-se os prazos interruptivos do lap-so prescricional previstos no art. 107 e seguintes do Código Penal (art. 30). O julga-mento desses delitos é de competência do Juizado Especial Criminal, salvo se hou-ver concurso com qualquer dos crimes previstos nos artigos 33 a 37, quando seguiráo procedimento previsto nos artigos 54 e seguintes (art. 48, § 1º).

Com efeito, a nova lei traz salutares modificações, mas também preocupa-ções. Uma delas é que o usuário de drogas não poderá ser obrigado a cumprir aspenas restritivas de direitos. O máximo que o Juiz poderá fazer é aplicar-lhe umamulta, que acreditamos não ser suficiente para obrigar alguém a cumprir as restri-ções de direitos. Aliás, quem não puder pagar a multa e quem quiser quitá-la nãocumprirá a restrição de direitos.

Cesar Dario Mariano da Silva,

8º PJ do II Tribunal do Júri

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ARTIGO 33,ARTIGO 33,ARTIGO 33,ARTIGO 33,ARTIGO 33,PPPPPARÁGRAFO 4ARÁGRAFO 4ARÁGRAFO 4ARÁGRAFO 4ARÁGRAFO 4

Cesar Dario Mariano da Silva,

8° Promotor de Justiça doII Tribunal do Júri

Pedro Ferreira Leite Neto,

26° Promotor de Justiça da Capital

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CONSIDERAÇÕES SOBREA CAUSA DE DIMINUIÇÃO

DE PENA PREVISTA NOART. 33, § 4º, DA LEI ANTITÓXICOS

Logo após a publicação da nova lei antitóxicos algumas questões controvertidascomeçaram a surgir. Uma delas é sobre os parâmetros que devem ser observadospor ocasião da aplicação da nova causa de diminuição de pena.

O § 4º do artigo 33 prevê a redução da pena dos crimes previstos no seu“caput” e § 1º quando o agente for primário, possuir bons antecedentes, não sededicar às atividades criminosas e nem integrar organização criminosa. Faltandoqualquer um desses requisitos, a diminuição da pena, que pode ser de um sexto adois terços, não deverá ser aplicada. Cuida-se de dispositivo que visa beneficiar opequeno e eventual traficante. O profissional do tráfico e o que teima em delinqüirnão merece atenuação da pena.

Presentes os requisitos previstos na norma a diminuição da pena é obrigatória,não ficando ao alvedrio do Juiz operar a redução ou não. Embora a norma empreguea expressão “as penas poderão ser reduzidas”, não se trata de atividade discricionáriado Juízo, mas de direito subjetivo do acusado.

Aliás, a primariedade e bons antecedentes deverão ser demonstrados peloacusado, ao passo que caberá ao Ministério Público o ônus de provar que o réu sededica à atividade criminosa ou que pertença à organização criminosa. Não cabe aoréu a prova de fatos negativos, mas a quem alega, no caso, o Ministério Público.

A grande celeuma quanto a esse dispositivo é saber qual o critério que seráempregado pelo juiz para a maior ou menor diminuição da pena. Não nos parece corretodefender que as circunstâncias judiciais (art. 59 do CP) poderão ser aplicadas paramensurar a maior ou menor diminuição. Isso porque elas são analisadas na primeirafase de fixação da pena e as causas de diminuição na terceira fase, em obediência aocritério trifásico (art. 68 do CP). Isso levaria o juiz à quase sempre diminuir a pena nomáximo (dois terços), uma vez que a primariedade e bons antecedentes são elementosindispensáveis para o reconhecimento da minorante. Além disso, não é cabível diminuirou aumentar a pena duas vezes pelo mesmo fato (princípio da proibição da duplavaloração – no bis in idem). Assim, apenas outros elementos, que não incidirem na

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fixação da pena base ou de alguma forma a diminuírem por outro motivo, é que poderãoser considerados para a maior ou menor diminuição da pena.

Observamos, ainda, que o artigo 42 traz circunstâncias que preponderarão sobreas judiciais do artigo 59 do Código Penal, ou seja, a natureza e a quantidade dasubstância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente. No que épertinente às duas últimas, já se encontram descritas no art. 59 do Código Penal,mas passarão a preponderar sobre as demais lá constantes.

Porém, parece-nos que não haverá dupla valoração quando ocorrer o aumentoe depois a diminuição da pena pelo mesmo fundamento. Isto é, resultando o aumentoda pena em virtude das circunstâncias descritas no artigo 42, a pena poderá serdiminuída com fundamento no § 4º do art. 33 por esses mesmos fatos, haja vista adiversidade de incidência (aumento e depois diminuição).

Com efeito, pensamos que as circunstâncias descritas no artigo 42 da LeiAntitóxicos poderão servir de parâmetro para o Julgador quando da diminuição dapena (art. 33, § 4). Assim, v.g., quanto mais potente a droga ou maior a sua quantidade,menor será a diminuição da pena e vice-versa. O que não se faz possível é a dupladiminuição pelo mesmo fato. Destarte, nada impede que o Juiz, a fim de que não hajadupla valoração, deixe de aplicar essas causas por ocasião da fixação da pena basee as faça incidir na terceira fase da dosimetria para a maior diminuição da pena,sempre verificando o que será melhor para o acusado.

Como a norma penal em estudo é mais benéfica para o acusado, retroagirá ealcançará os processos em andamento e os já definitivamente julgados (art. 5º, incisoXL, da CF, e art. 2º, parágrafo único, do CP). A diminuição da pena poderá ser pleiteadaao juiz da instrução, no caso de processos em andamento, ou ao juiz da execução,no que é pertinente aos processos com sentença condenatória transitada em julgado.Estando o processo em grau de recurso, o benefício deverá ser pleiteado ao relator.

A questão que surge é a seguinte: sobre qual norma incidirá a diminuição dapena no caso de retroatividade? A da lei revogada (nº 6.368/1976) ou da lei em vigor?

Não nos parece correto que a diminuição se opere sobre a pena fixada comfulcro na Lei nº 6.368/1976, que tinha como patamar mínimo três anos de reclusão. Odispositivo determina a diminuição da pena dos delitos previstos no art. 33, “caput”, e§ 1º, da nova lei, cuja pena mínima cominada é de cinco anos de reclusão, ou seja,superior ao mínimo legal cominado na legislação anterior.

Embora haja controvérsia sobre o assunto, não entendemos possível aplicaresse dispositivo sobre tipos penais já revogados, ou seja, conjugando normas deuma lei revogada com normas de uma lei em vigor. Isso porque não cabe ao Judiciárioa função de legislar e criar uma terceira lei, que conjugue dispositivos de lei revogadacom lei em vigor. Nelson Hungria, com a sapiência que lhe era peculiar, assim aduziu:

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“[...] preliminarmente, cumpre advertir que não podem ser entrosadosos dispositivos mais favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, deoutro modo, estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma terceira lei,dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Trata-se de umprincípio prevalente em doutrina: não pode haver aplicação combinada dasduas leis” (Comentários ao Código Penal, v.1, p. 112).

Compartilha desse mesmo entendimento Aníbal Bruno:

“Mas não é lícito tomarem-se na decisão elementos de leis diversas.Não se pode fazer uma combinação de leis de modo a tomar de cada umadelas o que pareça mais benigno. A lei considerada mais benévola será aplicadaem sua totalidade. Note-se que se trata exclusivamente de aplicar uma ououtra das leis existentes, no seu integral conteúdo, não sendo lícito ao juizcompor, por assim dizer, uma lei nova com os elementos mais favoráveisdas que realmente existem”. (Direito Penal, v.1, tomo 1, p. 263-264).

Como a norma mais benévola deve necessariamente retroagir para beneficiaro acusado, que seja por inteiro, i.e., a causa de diminuição de pena deverá incidirsobre a pena mínima cominada aos delitos previstos nos artigos 33, “caput”, e § 1º.

Com efeito, caso a pena fixada com base na lei anterior seja inferior ao mínimocominado no tipo penal em vigor (cinco anos de reclusão), será sobre esse montante(cinco anos) que deverá incidir a diminuição. Por outro lado, superado o limite mínimode cinco anos, será sobre a maior pena que deverá incidir a diminuição, haja vistaestar dentro dos limites estabelecidos pela lei nova.

No caso de ser procedida a diminuição com fulcro na lei nova e a pena superara fixada com base na lei revogada, esta última é que deverá prevalecer, deixando-se de aplicar a lei nova, que passou a ser prejudicial ao acusado. Assim, a leirevogada, mais benéfica, é que será aplicada em sua integralidade aos fatosocorridos durante a sua vigência.

Antes do advento da nova Lei Antitóxicos havia divergência doutrinária ejurisprudencial sobre a possibilidade, ou não, da substituição da pena privativa deliberdade por restritivas de direitos para o condenado por tráfico de drogas, haja vistanão haver norma proibitiva expressa. Com a nova lei essa questão restou superada,uma vez que o dispositivo em estudo veda expressamente a substituição quandoocorrer a diminuição da pena.

Observamos, ainda, que o artigo 44, “caput”, da nova lei igualmente veda asubstituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ao condenado por

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um dos delitos previstos nos arts. 33, “caput”, e § 1º, e 34 a 37, independentementeda pena aplicada. Com efeito, mesmo que preenchidos os requisitos objetivos esubjetivos previstos no artigo 44 do Código Penal, a substituição não será possível.

Cesar Dario Mariano da Silva, 8º PJ do II Tribunal do Júri

Pedro Ferreira Leite Neto, 26º PJ da Capital

BIBLIOGRAFIA

Bruno, Aníbal, Direito Penal, v.1, tomo 1, Editora Nacional de Direito, 1956.

Filho, Vicente Greco, Tóxicos, Saraiva, 1992.

Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. I, 4ª ed., Forense, 1958.

Mariano da Silva, César Dario, Manual de Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, 4ª ed.,Forense, 2006.

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ASSOCIAÇÃOASSOCIAÇÃOASSOCIAÇÃOASSOCIAÇÃOASSOCIAÇÃOOCASIONALOCASIONALOCASIONALOCASIONALOCASIONAL

Eloísa de Sousa Arruda,

Procuradora de Justiça

Cesar Dario Mariano da Silva,

8° Promotor de Justiça doII Tribunal do Júri

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ASSOCIAÇÃO OCASIONAL(ART. 18, III, DA LEI Nº. 6.368/06)

Com o advento da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06) uma questão interessanteestá sendo levantada no mundo jurídico: a causa de aumento de pena da associaçãoocasional que era prevista no artigo 18, III, da Lei nº. 6.368/76 ainda pode ser aplicadaaos fatos ocorridos sob a égide desta última?

Antes de adentrar o tema é necessário fazer uma análise do artigo 35, “caput”,da atual Lei de Drogas, que era tipificado de maneira semelhante no artigo 14 darevogada Lei Antitóxicos.

A conduta típica consiste em associarem-se duas ou mais pessoas com oobjetivo de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos33, “caput” e § 1o, e 34 da Lei de Drogas.

O verbo “associarem-se” significa a reunião com vínculo estável e permanente(tempo indeterminado), no caso, de duas ou mais pessoas.

Como já ocorria no regime anterior, há necessidade de vínculo psicológico paraa prática dos delitos por tempo indeterminado. Faltando esse elemento, o crime nãoestará caracterizado.

A expressão “reiteradamente” significa repetidamente, ou seja, com continuidade.Na associação para o tráfico pode existir, ou não, o propósito de praticar os delitos(artigos 33, ”caput”, § 1º ou 34) reiteradamente. No entanto, não há necessidade deque os crimes sejam cometidos, mas que a associação se dê com esse propósito.

Com efeito, são elementos desse crime:

1) reunião de duas ou mais pessoas;

2) vínculo psicológico para o tráfico de drogas (artigos 33, “caput”, § 1º,ou 34) por tempo indeterminado.

Como ocorria na legislação anterior (artigo 14), não basta simplesmente o dolode agir em concurso para a prática de tráfico de drogas, mas a especial intençãoassociativa de forma estável por tempo indeterminado. Assim, não configura essedelito a associação ocasional para o tráfico de drogas, mesmo que um ou mais crimessejam cometidos, mas sem o animus associativo. Se na traficância houver oenvolvimento de duas ou mais pessoas, mas sem o vínculo associativo, ocorrerámero concurso de agentes.

O crime de associação para o tráfico, do mesmo modo que o de quadrilha oubando, é autônomo em relação aos demais delitos praticados. Dessa forma, havendo

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o cometimento dos crimes para o qual houve a associação, ocorrerá concurso materialde delitos, haja vista nova violação à objetividade jurídica.

Como já visto, o delito em questão exige vínculo psicológico para o tráfico dedrogas (artigos 33, “caput”, § 1º, ou 34) por tempo indeterminado. A reunião ocasionale esporádica, sem o vínculo associativo, não o enseja. Pela Lei nº. 6.368/76, havendoa mera associação ocasional, justificava a aplicação da causa de aumento de penaprevista no artigo 18, III. No entanto, a lei nova não mais contempla essa majorante,ocorrendo o fenômeno da novatio legis in mellius.

Surge, portanto, a seguinte indagação: é possível aplicar o artigo 383 do Códigode Processo Penal e reconhecer o crime autônomo (artigo 14) hoje previsto noartigo 35, “caput”, da Lei nº. 11.343/06 para aquela pessoa que está sendo processadaou já foi condenada em primeiro grau por tráfico de drogas com a majorante daassociação ocasional?

Poder-se-ia argumentar que, como a associação está descrita na denúncia, oMagistrado estaria autorizado a condenar o agente por tráfico de drogas em concursocom a associação para o tráfico de drogas (artigo 14, da Lei nº. 6.368/76).

Não nos parece correto esse entendimento. É certo que o Juiz analisa os fatosdescritos na inicial acusatória e não a classificação jurídica a eles dada. Isso porque oacusado se defende da conduta a ele imputada e não da tipificação legal. O Juiz, porforça do artigo 383 do Código de Processo Penal, poderá dar ao fato definição jurídicadiversa da capitulada na denúncia, mesmo que tenha de aplicar pena mais grave.

Contudo, o réu foi acusado de delito com uma causa de aumento de pena. Nãohouve imputação de dois crimes, mas de apenas um agravado. Assim, haveria violaçãodo contraditório e da ampla defesa caso fosse o réu condenado por uma infração daqual não foi formalmente acusado.

E se não bastasse esse argumento, quando há imputação da causa de aumentode pena e não do crime de associação para o tráfico de drogas, é porque orepresentante do Ministério Público entendeu não estar presente o vínculo psicológicopara o tráfico por tempo indeterminado, ou seja, que ocorreu apenas uma associaçãoocasional, que se confunde com o concurso de pessoas.

Com efeito, o acusado não se defendeu do crime de associação para o tráfico,mas da imputação de delito com uma causa de aumento de pena, que não possui osmesmos requisitos do crime autônomo, que era previsto no artigo 14 da revogada Leide Tóxicos e no artigo 35 da atual. Inadmissível, desse modo, que se utilizando dachamada emendatio libelli, o juiz termine condenando o réu por um fato do qual nãofoi denunciado.

E nem seria o caso de aplicação do disposto no artigo 384, parágrafo único doCódigo de Processo Penal, utilizável quando o mesmo fato ganha contornos jurídicosmais graves do que aqueles constantes da inicial acusatória. Surgindo circunstânciaelementar capaz de alterar a modalidade delituosa, a fim de que se cumpra o princípio

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da correlação entre a imputação e a sentença, o Ministério Público é chamado aaditar a denúncia e a defesa a produzir provas se quiser. Mas aqui estamos falandode um mesmo fato que, por força de novas circunstâncias surgidas no curso dainstrução e até então desconhecidas, tornou-se mais grave, podendo resultar para oréu uma condenação mais severa do que a inicialmente pretendida pelo acusador.Inviável, todavia, se proceda mutatio libelli objetivando condenar o réu pela condutados artigos 12 ou 13 e também do art.14 da revogada Lei de Tóxicos, pois desseúltimo crime, o réu nem ao menos foi acusado.

Estando o processo em grau de recurso, maiores as restrições, haja vista nãoser viável o aditamento da denúncia e a aplicação do artigo 384 do Código de ProcessoPenal em segundo grau (Súmula 453 do STF).

É outra a solução caso tenha sido ofertada denúncia com base na revogada Lei6368/76, imputando a alguém a conduta prevista nos artigos 12 ou 13 com a causade aumento de pena do artigo 18, III, e surjam, no curso da instrução, indicativos deque os agentes mantinham especial intenção associativa de forma estável por tempoindeterminado para a prática de tráfico de drogas. Nessa hipótese, a denúncia poderáser aditada para inclusão do crime do qual agora se apurou indícios. Dependendo doandamento da ação penal original, nada obsta que, aplicada a regra do artigo 80 doCódigo de Processo Penal, proceda-se a separação dos processos, passando atramitar contra o réu ou os réus, duas ações penais, uma pela acusação de tráfico eoutra pela acusação de associação para o tráfico. É importante salientar que, a fim deevitar dupla valoração (bis in idem), havendo aditamento da denúncia para inclusãodo artigo 14 da revogada Lei de Tóxicos, por fato ocorrido durante sua vigência, deveráser afastada a causa de aumento de pena da associação ocasional (artigo 18, III).

No caso de ação penal na qual o Promotor de Justiça ofertou denúncia imputandoao agente as condutas dos artigos 12 ou 13 e 14 da Lei 6368/76, tendo sido proferidasentença condenatória afastando esta última figura, mas reconhecendo a causa deaumento do artigo 18, III da Lei 6368/76, ainda é possível que o acusado restecondenado pela acusação inicial. Se houve recurso do Ministério Público se insurgindocontra a desclassificação, nada impede que o Tribunal, no julgamento da apelação,reconheça sua procedência condenando o apelado pelas condutas descritas na inicialacusatória. Mas, se o recurso é exclusivo da defesa, não restará ao Tribunal outrasolução que não seja afastar a figura do artigo 18, III da Lei 6368/76, mesmo no casode julgar improcedente o apelo. Como a nova lei não mais contempla a figura daassociação ocasional para o tráfico de drogas, essa deverá ser afastada dacondenação, com a conseqüente redução da pena.

Eloísa de Sousa Arruda, Procuradora de Justiça

Cesar Dario Mariano da Silva,8° Promotor de Justiça do II Tribunal do Júri

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TEMASTEMASTEMASTEMASTEMASVVVVVARIADOSARIADOSARIADOSARIADOSARIADOS

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REPÚBLICAREPÚBLICAREPÚBLICAREPÚBLICAREPÚBLICAEEEEE

ISONOMIAISONOMIAISONOMIAISONOMIAISONOMIA

Eduardo Martines Júnior,

Promotor de Justiça da 4° Procuradoria

Orlando Bastos Filho,15° Promotor de Justiçade Sorocaba

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REPÚBLICA E ISONOMIA

– licitação e sua inexigibilidade na contratação

de serviços advocatícios pelo Poder Público.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Princípios: 2.1 Princípios político-consti-tucionais; 2.2. Princípios jurídico-constitucionais – 3. Princípio repu-blicano e isonomia: 3.1 A República; 3.2. Isonomia: 3.2.1. Igualdadena lei e perante a lei; 3.2.2. O critério de Celso Antônio; 3.3 Princípio daimpessoalidade na Administração Pública e licitação; 3.3.1. Licitação- 4. Normas de ordem pública - 5. Dispensa e inexigibilidade delicitação: 5.1. Serviços técnicos profissionais especializados; 5.2. Sin-gularidade do objeto; 5.3. Notória especialização; 5.4. Providênciasformais posteriores - 6. A contratação direta de serviços advocatíciose precedentes - 7. A desobediência à Lei de Licitações. 8. Improbidadeadministrativa: definição, natureza, caracterização, elemento subjeti-vo, dano e legitimidade. 9. Conclusão - Referências bibliográficas.

1. Introdução

A primeira palavra do artigo 1º da Constituição Federal, não por acaso, é Repúbli-ca, abrindo o Título I que trata dos Princípios Fundamentais ou, por outra, os alicercessobre os quais edificou-se o Estado brasileiro. O significado jurídico da República vaimuito além do que aparenta, pois, muito mais que dar a forma do Estado, contrapondo-o à monarquia, implica no reconhecimento de que as diferenças existentes entre osindivíduos não pode traduzir castas, privilégios ou tratamentos diferenciados.

A adoção da res publica leva ao princípio da isonomia, expressamente adotadocomo direito fundamental do ser humano, preconizado no caput do artigo 5º da Cons-tituição Federal, também não sem uma razão. Esse relevante princípio por nós adota-do, está reafirmado em distintas passagens do texto constitucional, como se houves-se necessidade de insistir de outras maneiras e por distintos institutos, que os iguaisdevem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente, na medida em que sedesigualam. A leitura atenta da Constituição Federal leva à conclusão, segundo a qualo constituinte parecia imbuído do propósito de marcar indelevelmente que todos sãoiguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, como se a adoção do princí-pio republicano já não fosse o bastante.

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De toda forma, é disposição expressa do artigo 37 da Constituição Federal aimpessoalidade na Administração Pública, direta e indireta, e de qualquer dos Pode-res das pessoas políticas, restando ainda fixado o princípio da acessibilidade a car-gos, empregos e funções públicas a todos os brasileiros que preencham os requisi-tos da lei, princípio da investidura em cargo ou emprego público apenas medianteconcurso e princípio da licitação. Em relação a este, o inciso XXI do artigo 37 da LeiMaior estabelece a obrigatoriedade de realização de certame licitatório, realizado detal modo que assegure igualdade de condições a todos os participantes, ressalva-dos, todavia, os casos especificados na legislação.

Uma leitura menos profunda, ou isolada do conjunto constitucional, poderia levar aoequivocado entendimento segundo o qual a legislação ordinária poderia excepcionar aseu bem prazer o princípio da licitação, tão cuidadosamente traçado pelo constituinte,chegando ao preciosismo de afirmar ser o próprio texto do inciso XXI, que inicia com“ressalvados os casos especificados na legislação...”. Óbvio, nos parece, que essa leitu-ra levada ao extremo, implicaria em negar o princípio da impessoalidade determinado nocaput do artigo 37, o princípio da isonomia inscrito no artigo 5º e, por fim, e mais relevante,negaria o próprio princípio republicano fixado no artigo 1º do Texto Maior.

A legislação ordinária atinente às licitações e contratos administrativos – Lei Fede-ral nº 8.666/93 – de fato, estabelece a dispensa e a inexigibilidade de licitação em algunscasos. O exame dos artigos 24 e 25, dentre outros, não deixa margem a dúvida, tudorevelando que as ressalvas mencionadas no Texto Maior foram efetivamente feitas. Ocor-re que o legislador não excepcionou as situações que livremente escolheu, senão apenase tão-somente aqueles casos em que a licitação se mostra desnecessária ou logicamenteinviável. Na realidade, o constituinte não deu ao legislador ordinário uma “carta-branca” alhe permitir escolha aleatória. Antes, as ressalvas mencionadas no inciso XXI do artigo 37da Constituição Federal só podem ser compreendidas como aquelas que respeitem osprincípios da impessoalidade, da isonomia e o republicano.

Pois bem. Se nem mesmo o legislador poderia excepcionar o princípio da licita-ção, exceto, é óbvio, nas hipóteses mencionadas, menos ainda o administrador públicoo pode, obrigado que é a aplicar a lei por força da própria Constituição. Nesse contextoé que inserimos o tema de fundo deste trabalho, nos propondo a enfrentar a espinhosaquestão da contratação direta de serviços de advogados pelo Poder Público, é dizer,com base na inexigibilidade de licitação, calcada, sobretudo, na notória especialização.Sobre esse tema a jurisprudência e a doutrina não encontraram pacificação, encon-trando-se decisões e lições em ambos os sentidos, no que, de certo modo, estariamrealmente corretas, na medida em que, adiantamos, não é possível concluir no sentidoda possibilidade ou da negativa dela, sem o exame do caso concreto.

Essa a razão pela qual procuramos partir do estudo da significação da Repúbli-ca, passando pela isonomia, impessoalidade e licitação, para somente depois in-gressarmos no exame da Lei de Licitações (nos tópicos ligados ao tema), procuran-do desenvolver uma base jurídica mínima, necessária ao estudo de qualquer casoconcreto que se apresente. Notamos, todavia, que a despeito de não ser possível

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concluir pela possibilidade ou impossibilidade das contratações referidas, julgadorese doutrinadores tem adotado soluções apriorísticas, num ou noutro sentido, indepen-dentemente da hipótese examinada, nos parecendo isso bastante equivocado.

Por outra parte, a advocacia1 não se pode deixar levar pelo caminho fácil doprivilégio, tão combatido pela classe dos advogados, máxime agora que elevada àrelevante condição de função essencial à Justiça e indispensável à administraçãodela, por obra do mesmo constituinte que exigiu respeito à igualdade e estabeleceucomo um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construçãode uma sociedade livre, justa e solidária. Com o devido respeito, não vislumbramosnenhuma razão para que o Poder Público deixe de observar o princípio republicano, oprincípio da isonomia, o princípio da impessoalidade na Administração Pública e, fi-nalmente, o princípio da obrigatoriedade da licitação, na contratação de serviços deadvocacia, porquanto está rigidamente jungido a eles (princípios), seja qual for a natu-reza dos serviços, exceto se, presentes os requisitos da lei, ressalva normativa de-terminada na própria Constituição Federal e não no desejo de alguns. Os serviços deadvocacia (e os advogados) devem ser iguais a todos, na lei e perante a lei.

2. Princípios

A compreensão do conteúdo jurídico dos princípios é condição sine qua non parao entendimento do Direito, pois este é constituído na forma de sistema, “um conjuntobem estruturado de disposições que, interligando-se por coordenação e subordinação,ocupam, cada qual, um lugar próprio no ordenamento jurídico. É precisamente sob esteimenso arcabouço, onde sobrelevam os princípios, que as normas jurídicas devem serconsideradas.”2 Os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão senti-do lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se.3 Não se pode falar em princípios sem referência ao conceito de Celso Antônio,segundo o qual: “Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes nor-mas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão einteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, noque lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muitomais grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se asvigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.4

1 A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo teve indeferido pedido de admissão nos autos da AC nº070.764.5/1-00 – 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, mantida pelo desprovimento doAgravo Regimental interposto, ficando assentado que não há interesse jurídico da Instituição em hipótese na qualsociedade de advogados foi contratada diretamente por Prefeitura Municipal, com inexigibilidade de licitação, eque está sendo por isso demandada em sede de ação civil pública.2 Carrazza. R.A., Curso de direito constitucional tributário, p. 33.3 Sundfeld, C.A., Fundamentos de direito público, p. 143.4 Mello, C.A.B., Elementos de direito administrativo, p.230.

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Os princípios não se encontram apenas na Constituição Federal, estando por todaa pirâmide jurídica, por isso se podendo falar em princípios constitucionais, legais einfralegais.5 Parece-nos claro, todavia, que os princípios constitucionais têm maior rele-vância sobre os demais, pairando acima deles e ditando o norte da boa interpretação.

A distinção não pára aí, porque mesmo entre os princípios constitucionais encon-tramos uns mais relevantes que outros,6 ainda que tenham berço na mesma Lei Maior.Não se trata dos chamados princípios explícitos e implícitos, pois em relação a estes, oimportante é saber se estão ou não presentes na Constituição. Isso verificado, o juristautilizar-se-á do “instrumental teórico que a Ciência do Direito coloca à sua disposição”7

para discerni-lo, dependendo da abrangência de cada um. Dessa maneira, pouco im-porta se estão explicitados ou apenas decorrem do todo representado pela Constitui-ção. Retomando, falávamos sim, sobre os princípios político-constitucionais vis-à-visos princípios jurídico-constitucionais, na dicção de Canotilho, como se verá.

2.1 Princípios político-constitucionais

José Afonso da Silva,8 com base nas lições de Canotilho, divide os princípiosconstitucionais em duas categorias: os político-constitucionais e os jurídico-constituci-onais. Diz ele que os princípios político-constitucionais são fundamentais decisões po-líticas da nação ou, no dizer de Canotilho: “Nestes princípios se condensam as opçõespolíticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição. Expressandoas concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembléia constituinte, osprincípios político-constitucionais são o cerne político de uma constituição política (...).”9

É nessa categoria de princípios que se encontram os princípios republicano, dafederação, do Estado democrático de direito, da separação de poderes, o princípio dadignidade da pessoa humana, do pluralismo político, dentre outros estabelecidos nosartigos 1° a 4° da Constituição Federal, sob o título de Princípios Fundamentais. Muitoembora não possa servir como critério de identificação, a simples colocação dessesprincípios já nos primeiros artigos, abrindo o Texto, indica a importância que o consti-tuinte a eles atribuiu, dedicando o Título I à fixação das decisões políticas fundamen-tais da República Federativa do Brasil. Os princípios fundamentais ali dispostossobrepairam por todo o ordenamento jurídico, direcionando a interpretação das de-mais normas constitucionais e infraconstitucionais.

5 Carrazza, R.A., op. cit., p. 33.6 Não se trata de hierarquizar normas constitucionais, conscientes da advertência de Thomas Cooley (In: Ocontrole da constitucionalidade das leis, p. 58). Todavia, é certo que algumas disposições, embora constitucio-nais, certamente encerram menor relevância que outras. Tome-se o exemplo do § 2º do Art. 242 em comparaçãocom a norma do inciso III do Art. 1º da Constituição Federal.7 Carrazza, R.A., op. cit. p. 32.8 Silva, J.A. Curso de direito constitucional positivo, p. 94.

9 Canotilho, J.J.G., Direito constitucional, p. 172.

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2.2. Princípios jurídico-constitucionais

Uma segunda categoria é referida por José Afonso, a dos princípios jurídico-constitucionais, possuidores de caráter geral, informando toda a ordem jurídica pá-tria. Ainda segundo ele, não raro decorrem dos princípios fundamentais acima referi-dos.10 Na precisa lição de Canotilho, esses “princípios constitucionais impositivossubsumem-se todos os princípios que, sobretudo no âmbito da constituição dirigente,impõem aos órgãos do estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a exe-cução de tarefas. São, portanto, princípios dinâmicos, prospectivamente orientados.”11

Em relação à nossa Carta Política, poderiam ser citados como exemplos osprincípios da legalidade, da isonomia, da proteção social aos trabalhadores, proteçãoà família, da autonomia municipal, do devido processo legal, do juiz natural, dentreoutros, explícitos ou implícitos.

Com isso, possível afirmar que os princípios político-constitucionais, encerrammaior importância no mundo jurídico que os princípios jurídico-constitucionais. O prin-cípio republicano ou o federativo ou o da separação dos poderes, dos artigos 1° e 2°,respectivamente, têm maior relevância que o princípio da proteção à família, por exem-plo, embora todos tenham assento constitucional. Os primeiros, todavia, revelamdecisões políticas fundamentais do Estado, impondo observância mais acurada naaplicação.

Afirmado isso, podemos avançar considerando os princípios fundamentais es-tabelecidos na Constituição Federal e que se relacionam com o tema proposto.

3. Princípio republicano e isonomia

3.1 A República

Falamos da importância dos princípios e, fundados em Roque Carrazza,12 afir-mamos serem eles a pedra angular da juntura de um sistema ou, no dizer de CelsoAntônio, princípio, por definição, é o mandamento nuclear de um sistema ou seu ali-cerce.13 Um verdadeiro alicerce ou pedra angular do sistema jurídico por nós adotado,é o princípio republicano, pois, “como princípio fundamental e básico, informador detodo o nosso sistema jurídico, a idéia de república domina não só a legislação, comoo próprio Texto Magno, de modo inexorável, penetrando todos os seus institutos e

10 Silva, J.A., op. cit., p. 95.11 Canotilho, J.J.G., op. cit. p. 173.12 Carrazza. R.A. Curso de direito constitucional tributário, p. 30.13 Bandeira de Mello. C.A. Elementos de direito administrativo, p. 230.

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esparramando seus efeitos sobre seus mais modestos escaninhos ou recônditosmeandros.”14 Estabelecido no artigo 1º da Constituição Federal, o princípio republica-no informa todo o sistema, decorrendo dele, dentre outros, o princípio da igualdade ouda isonomia, conforme ensina Roque Carrazza, para enfatizarmos desde logo, ocaminho que pretendemos trilhar.

Regime republicano é tipo de governo, fundado na igualdade formal das pesso-as, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, represen-tativo (de regra), transitório e com responsabilidade.15 Diferentemente das monarqui-as, nas quais o poder político é exercido em nome próprio e, via de regra, é detido poralguém que o conquista com base na hereditariedade, ou as ditaduras, nas quais ouso da força das armas permite a alguém ou um grupo exercer o poder, na repúblicao exercício é conferido a alguém ou um grupo, que o faz em nome daquele que oelegeu, tratando-se, pois, de mera representação político-jurídica. Esse é o manda-mento do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal.16

Ainda a respeito dos elementos da definição de República, avulta a responsabi-lidade do governante. É que eles respondem pessoalmente pelas decisões que to-marem, quer no campo político – pelo instituto do impeachment17 – quer sob o pontode vista civil.18 Aliás, república é essencialmente ligada à responsabilidade, como en-sina Ataliba: “A simples menção ao termo república já evoca um universo de concei-tos, intimamente relacionados entre si, sugerindo a noção do princípio jurídico que aexpressão quer designar. Dentre tais conceitos, o de responsabilidade é essencial.Regime republicano é regime de responsabilidade. Os agentes públicos respondempelos seus atos. Todos são, assim, responsáveis. Michel Temer afirma: ‘Aquele queexerce função política responde pelos seus atos. É responsável perante o povo, por-que o agente público está cuidando da res publica. A responsabilidade é corolário doregime republicano’ (Elementos de Direito Constitucional, p. 184).”19

A responsabilização do governante (e também de seus agentes), está ligado aoexercício do poder por representação do verdadeiro detentor dele – o povo – nostermos da Constituição Federal (parágrafo único do artigo 1º). O governante nadamais é que mandatário do povo e por isso deve exercer seu mister estritamente den-tro daquilo que estabelecido, no caso, pela própria Constituição e pelas leis.

14 Ataliba. G. República e Constituição, p. 32.15 Carrazza. R.A. Curso de direito constitucional tributário, p. 44.16 Art. 1º (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos oudiretamente, nos termos desta Constituição.17 Art. 86 da Constituição Federal em relação ao Presidente da República18 Art. 37, parágrafo 6º, in fine, da Constituição Federal.19 Ataliba. G. República e constituição, p. 38.

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3.2. Isonomia

República vem de res publica, ou coisa do povo, de todos igualmente e paratodos da mesma forma. Daí se afirmar que do princípio republicano nasce a isonomiae a igualdade de todos perante o Estado, desdobrando-se esta em outros princípios.O princípio republicano, ainda com base nas lições de Carrazza, impede distinçõesentre nobres e plebeus, ricos e pobres, poderosos e humildes.

A isonomia está na expressão “fundado na igualdade formal das pessoas”, por-que todos são iguais perante a lei e na lei, sem distinção de qualquer natureza. Quan-to à Lei Maior brasileira, está esse princípio estabelecido expressamente no caput doartigo 5º, mas não só, pois, na realidade, a isonomia vem desdobrada em outraspassagens, como se se estivesse enfatizando a importância do princípio. Assim éque, além da disposição mencionada, encontramos logo no inciso I daquele artigo,norma segundo a qual homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações; ouque ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicçãopolítica. Também está proibida, a título de exemplos, a diferenciação de salários, deexercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ouestado civil, proibição de discriminação de salários e critérios de admissão do traba-lhador portador de deficiência, igualdade de tratamento entre o trabalhador com vín-culo empregatício permanente e o trabalhador avulso,20 dentre outros.

Ainda, igualdade como princípio vem repetida no artigo 150, inciso II, da Consti-tuição Federal, vedando tratamento desigual de contribuintes em situação equivalen-te.21 Note-se que, a rigor, tais disposições são até redundantes, na medida em que oprincípio republicano e depois, o próprio princípio da igualdade enunciado expressamenteno caput do artigo 5º da Constituição Federal, bastariam. Todavia, essa ênfase deixaainda mais claro o norte que o constituinte pretendeu dar ao legislador e ao aplicador dalei, no que pertine ao tratamento isonômico a ser dispensado a todos os indivíduos.

Além dessas disposições, outras existem com o mesmo caráter, como o princípioda impessoalidade do caput do artigo 37, se referindo à isonomia aplicada à Administra-ção Pública. Depois, no mesmo artigo encontraremos o princípio da acessibilidade acargos ou funções públicas mediante concurso (inc. II) e o princípio da licitação, expres-samente fixado no inciso XXI, sobre o qual trataremos de forma mais detalhada.

20 Art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXIV da Constituição Federal.21 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, aoDistrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem emsituação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

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3.2.1. Igualdade na lei e perante a lei

Tratar do princípio da isonomia leva à distinção entre a igualdade perante a lei e aigualdade na lei. A doutrina brasileira faz essa distinção, como em Celso de Mello, aoafirmar que a igualdade perante a lei traduz exigência endereçada aos Poderes Execu-tivo e Judiciário, relativamente à lei já elaborada, e que na sua aplicação não poderáutilizar critérios discriminatórios. Por outro lado, a igualdade na lei é exigência destinadaao legislador, pois em sua elaboração, não poderá nela incluir qualquer fator de discri-minação.22 Trataram do tema Ataliba,23 Dallari,24 Ferreira Filho25 e Celso Bastos.26 JoséAfonso critica a distinção dizendo que a igualdade perante a lei “corresponde à obriga-ção de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade como que elas estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação... ”.27 Segue di-zendo que a igualdade perante a lei é uma exigência feita somente àqueles que aplicamas normas aos casos concretos. Relativamente à igualdade na lei “exige que, nas nor-mas jurídicas, não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria constitui-ção”.28 Finalizando, afirma que essa exigência é dirigida tanto aos que criam as normasjurídicas, como àqueles que as aplicam nos casos concretos.

Na verdade, diz José Afonso, essa distinção é desnecessária entre nós, porquetanto a doutrina como a jurisprudência já firmaram, há muito, a orientação de que aigualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade nalei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadoresda lei.29 Essa doutrina estrangeira referida por José Afonso realmente distingue a igual-dade perante a lei e na lei. Kelsen, depois de afirmar que a regra segundo a qual osiguais devem ser tratados de maneira igual, e os que são desiguais devem ter trata-mento desigual, diz que isso decorre menos de uma exigência da justiça, mas muitomais em face da lógica;30 conclui ser esta a igualdade perante a lei, distinta da igualda-de na lei. Diz: “a igualdade perante a lei pode existir mesmo quando não exista qualquerigualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescreva qualquer tratamento igualitá-rio”.31 E, arrematando continua: “Com efeito, a chamada ‘igualdade’ perante a lei nãosignifica qualquer outra coisa que não seja a aplicação legal, isto é, correcta, da lei,mesmo que ela não prescreva um tratamento igualitário mas um tratamento desigual”.32

22 Mello Filho. J.C. Constituição federal anotada, p. 427.23 Ataliba. G. República e constituição, p. 136.24 Dallari. D.A. Elementos de teoria geral do Estado, p. 267.25 Ferreira Filho. M.G. Curso de direito constitucional, p. 242 e seguintes.26 Bastos. C.R. Curso de direito constitucional, p. 166.27 Silva. J.A. Curso de direito constitucional positivo, p.210.28 Ibidem, mesma página.29 Ibidem, mesma página.30 Kelsen. H. A Justiça e o direito natural, p. 73.31 Ibidem, p. 78.32 Ibidem, p. 79.

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Para Kelsen, a igualdade na lei somente pode ser garantida se a Constituição,relativamente às diferenças entre os indivíduos, determinar que diploma legal al-gum poderá fazer acepção a tais distinções, sob pena de inconstitucionalidade,“quer dizer: que as leis em que forem feitas tais distinções poderão ser anuladascomo inconstitucionais”.33

Rivero, na obra Les libertés publiques, dedica uma seção ao estudo dos te-mas maiores da Declaração dos Direitos do Homem, tratando nela da igualdade(parágrafo 4 da Seção III, Capítulo Primeiro da Primeira Parte). Afirma que esseprincípio embasa o direito público francês, dando a tônica de seu significado, se-gundo ele, traduzindo-se em igualdade diante da lei e diante dos cargos públicos,com igual possibilidade de acesso a eles.34 Em nosso direito, essa tradução estariana igualdade perante a lei e no princípio previsto no artigo 37, inciso II da Constitui-ção Federal. Ainda entre os franceses,35 Duguit ensina que a igualdade é regra dedireito público positivo, impositiva ao legislador no sentido de ser inconstitucionaltoda lei que violentar tal princípio. Diz que esse princípio significa que todos os ho-mens são igualmente protegidos pela lei, não numa perspectiva aritmética mas simproporcionalmente, jamais pretendendo estabelecer uma igualdade matemática entreos homens, que em realidade significaria desigualdade.36

Por seu turno, Canotilho37 se refere à igualdade na aplicação do direito e igual-dade quanto à criação do direito, de forma muito próxima às expressões consagra-das na doutrina nacional, assemelhando-se à igualdade perante e na lei, respectiva-mente. O mais importante na lição de Canotilho, contudo, são as respostas que elemesmo oferece para a pergunta: “Mas o que significa ‘criação de direito igual’?”.38 Édizer: qual o significado da igualdade perante a lei? Afirma que a resposta desdobra-se na compreensão da criação de direito igual como princípio da universalidade ouprincípio da justiça pessoal. O significado é de igualdade em sentido formal, acaban-do por “se traduzir num simples princípio de prevalência da lei em face da jurisdição eda administração”.39 Referindo-se ao artigo 13º, 1. da Constituição Portuguesa,40 con-tinua o raciocínio ao tratar da criação de direito igual como exigência de igualdadematerial através da lei, devendo tratar-se por “igual o que é igual e desigualmente oque é desigual”.41 Segue dizendo que essa afirmativa, todavia, não resolve a questãoporquanto a igualdade justa pressupõe um juízo e um critério de valoração.

33 Idem, Teoria pura do direito, p. 154.34 Rivero. J. Les libertés publiques, p. 41.35 Também trataram do tema igualdade Emmanuel Joseph Sieyès. In: A constituinte burguesa – Que é o TerceiroEstado?, p. 80 e seguintes e, Montesquieu. In: O espírito das leis, nos Livros quinto e sexto.36 Duguit. L. Traité de droit constitutionnel, v. III, p. 593.37 Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 563.38 Ibidem, mesma página.39 Ibidem, p. 564.40 Artigo 13. (Princípio da igualdade) 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquerdever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideoló-gicas, instrução, situação econômica ou condição social.41 Ibidem, mesma página.

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Essa, em verdade, é a grande questão que se coloca em relação à isonomia,pois é necessário encontrar um critério jurídico que permita identificar, em cada espe-cífica situação, se o princípio da igualdade está ou não preservado.

3.2.2. O critério de Celso Antônio

Essa questão tem sido estudada por grandes juristas e todos confessam asdificuldades encontradas. Como falávamos no item anterior, Canotilho pergunta oque nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de maneira igualmente justa?E mais: qual o critério de valoração para a relação de igualdade? Sugere que paraalguns a resposta estaria na proibição do arbítrio, é dizer, verifica-se a observância doprincípio da igualdade na hipótese em que indivíduos ou situações não são arbitraria-mente tratados como desiguais. Por outra: a igualdade é violada quando a desigual-dade de tratamento surge como arbitrária. Todavia, entende insuficiente a utilizaçãodesse princípio limite, se não se utilizar critérios permitidores da valoração das rela-ções de igualdade ou desigualdade. Esse critério material objetivo pode ser assimsintetizado: “existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplinajurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii)estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável”.42

Com base nessas lições podemos dizer que o importante para compreender osignificado da isonomia é verificar a relatividade de conceitos de igualdade e desigual-dade, devendo-se aferi-las em cada caso concreto. É possível, v.g., que alguém sejaigual ao outro em relação ao sexo, mas absolutamente diferente em relação à rique-za. Por outro lado, dois indivíduos abastados podem ter iguais patrimônios, mas se-rem desiguais quanto ao sexo. Assim, por exemplo, não seria possível dizer que umaregra de concurso que só admita candidatas mulheres afronta o princípio da isonomia,se o intuito é preencher vagas de carcereiras em presídio feminino. Em outro caso, “aigualdade formal deve ser quebrada diante de situações que, logicamente, autorizemtal ruptura. Assim, é razoável entender-se que a pessoa portadora de deficiência tem,pela sua própria condição, direito à quebra da igualdade, em situações das quaisparticipe com pessoas sem deficiência.”43

Todavia, como afirma Celso Bastos “...o cerne do problema remanesceirresolvido, qual seja, saber quem são os iguais e quem são os desiguais”,44 fazendonecessário o uso de um critério de diferenciação. Também fizeram essa pergunta

42 Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 565.43 Araújo. L.A.D. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência, p. 52.44 Bastos. C.R. Curso de direito constitucional, p. 167.

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Canotilho45 e, entre nós, Celso Antônio,46 que estabeleceu um critério para reconhe-cer as situações em que se verifique a quebra da isonomia, apresentando-o sob aforma de três questões: “a) a primeira diz com o elemento tomado como fator dedesigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre ofator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento ju-rídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com osinteresses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.”47

A primeira questão do critério, segundo Celso Antônio, diz respeito com o ele-mento tomado como fator de desigualação, impondo à norma dois requisitos a saber:“...a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularizeno presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regimepeculiar;...” além de “...o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir napessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exis-ta nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes.”48

A segunda questão, por outro lado, é considerada como o ponto nodular paraa verificação do atendimento ao princípio da isonomia por determinada regra. Esseponto está na “existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critériode discrímen e a discriminação legal decidida em função dele”.49 De fato, ao homemmédio soa fácil e de certa forma, até independentemente de aprofundados conheci-mentos da Ciência do Direito, o reconhecimento da necessária correlação lógica en-tre o fator de discrímen e a própria discriminação. Para se saber se há ofensa àisonomia, basta perquirir se o fator diferencial eleito para discriminar, guarda relaçãode pertinência lógica com a inclusão ou exclusão com o benefício ou, com a inserçãoou afastamento do ônus impingido. Para melhor compreensão, Celso Antônio traz oexemplo de hipotética lei que autorizasse servidores gordos a afastarem-se sem pre-juízo da remuneração, para assistir congresso religioso, vedando aos magros o mes-mo tratamento. Continua dizendo que superficial exame revela que a compleição físi-ca não poderia ser eleita como critério diferenciador, para o tratamento jurídico adota-do em razão da utilização dele. Isso porque é inadmissível que a obesidade, ou aesbeltez, seja tomado como critério discriminatório a tratar diferentemente os servi-dores, com o fim de ser autorizada a participação, ou não, em congresso religioso.

45 Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 564.46 Bandeira de Mello. C.A. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 11.47 Ibidem, p. 21. Ressaltamos que na página 41 dessa obra, o mesmo tema é tratado de forma mais explicativa peloautor, que desdobrou a primeira questão, restando quatro elementos a saber: “(a) que a desequiparação nãoatinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra dedireito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes,diferençados; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e adistinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica; d) que, in concreto, o vínculo decorrelação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é,resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – parao bem público”.48 Ibidem, p. 23.49 Bandeira de Mello. C.A. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 38.

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Todavia, segue ele dizendo, seria esse critério tolerável se somente os esbeltos pu-dessem exercer, no serviço militar, “funções que reclamem presença imponente”.50

Para rematar a idéia, Celso Antônio resume essa fundamental questão dizendo: “éagredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidospela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão nobenefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto.”51

Por fim, relativamente à terceira questão Celso Antônio afirma que “... as van-tagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiandosituações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interes-ses acolhidos no sistema constitucional”.52 Por outras palavras, deve estar de acordocom aquilo que prestigia o aparato normativo, sobretudo a Constituição Federal.

Esse critério é reconhecidamente o mais apropriado para verificação da pre-sença – ou não – da isonomia em determinado caso concreto. Faremos o exame daquestão proposta – inexigibilidade de licitação para contratação de advogados peloEstado – mais adiante.

3.3 Princípio da impessoalidade na Administração Pública e licitação

O princípio republicano, fundamental decisão política do constituinte, a imporregime de não diferenciação entre indivíduos, de exercício do poder por representa-ção e com responsabilização dos governantes, induz desdobramentos vários comovimos e, inclusive, especificamente à própria Administração Pública. A igualdade for-mal entre os indivíduos leva à isonomia, princípio que se espraia por todo o textoconstitucional não se limitando ao caput do artigo 5º, pois, desta, partem outras dis-posições. A impessoalidade é uma dessas formas, embora possa ser consideradadesnecessária sua menção na Lei Maior, chegando a causar espécie a Celso Bas-tos: “É de certa forma surpreendente a inclusão da impessoalidade no rol dos princí-pios informadores da Administração. Isso porque é difícil configurar a sua autonomiaem face de outros princípios, tais como o da finalidade, o da igualdade e mesmo daprópria legalidade.”53

Sem embargo e entendendo-o como relevante desdobramento do princípiorepublicano e da isonomia, a impessoalidade está prevista como princípio expressoda administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, Esta-dos, Distrito Federal e Municípios, como afirmado no caput do artigo 37 da Constitui-ção Federal. “Nele se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os

50 Ibidem, mesma página.51 Ibidem, mesma página.52 Ibidem, p. 42.53 Bastos. C. R. Curso de direito administrativo, p. 55.

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administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismosnem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ouideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interessessectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não ésenão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.”54

Segundo José Afonso, o princípio da impessoalidade significa que os atos eprovimentos administrativos devem ser imputáveis ao órgão ou entidade administra-tiva a que pertence o servidor que o praticou, e nunca ao próprio agente da Adminis-tração, pois ele apenas manifesta formalmente a vontade estatal. Os atos, pois, sãoda entidade em nome de quem ele as produziu.55 A partir disso podemos afirmar quea Administração Pública, e de resto, o Estado como um todo, deve ser tomada comoum ente sem vontade pessoal, tendo aqueles que ocupam cargos ou funções, sepautar em condutas desprovidas de interesses, que não apenas os públicos. Nin-guém pode ocupar cargos ou funções na Administração e gerir a res, que é pública,como se sua fosse. Ensina Benoit: “Com esse regime, todos os indivíduos são trata-dos da mesma maneira aos olhos dos serviços públicos. Existe igualdade diante dosserviços públicos como existe igualdade diante da lei, sendo que a primeira não énada além do que um aspecto da segunda, visto que é a lei que rege os serviçospúblicos. Não existe então nenhum favor ou vantagens possíveis. O regime de pres-tação de serviços públicos é o mesmo para todos.”56(tradução livre nossa)

Em lição sempre atualizada, Hely afirma que o princípio da impessoalidade“...nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administradorpúblico que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aqueleque a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, deforma impessoal.”57 No mesmo sentido de Hely está Morais,58 merecendo ser ressal-tada a advertência de Celso Bastos: “o campo por excelência em que medra o aten-tado à impessoalidade é o da discricionariedade. Aqui, ao moldar o seu comporta-mento, cabe a prática da escolha de um ato que melhor atenda à finalidade legal.Nesta ocasião é que o administrador pode ser tentado a substituir o interesse coletivopor considerações de ordem pessoal (favorecimento ou perseguição) (...) O primadoda lei cede diante da conveniência do administrador.”59

O princípio da impessoalidade, em resumo, veda o tratamento desigual deadministrados em semelhante situação. Ainda, impede o administrador – seja de quenível hierárquico for e de qualquer dos Poderes – utilizar critérios pessoais para con-ceder qualquer benefício, privilégio, concessão, proibição ou discriminação.

54 Bandeira de Mello. C.A. Curso de direito administrativo, p. 58.55 Silva. J.A. Curso de direito constitucional positivo, p. 615.56 Benoit. F.P. Le droit administratif français, p. 837.57 Meirelles. H.L. Direito administrativo brasileiro, p. 85.58 Morais. A. Direito constitucional administrativo, p. 100.59 Bastos. C.R. Curso de direito administrativo, p. 56.

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3.3.1. Licitação

O princípio da licitação, igualmente, é desdobramento da impessoalidade, sendoeste, por sua vez, decorrente da isonomia60 e do princípio republicano. A impessoalidadetambém se desdobra no princípio da acessibilidade a cargos e funções públicas porconcurso ou na proibição da publicidade estatal caracterizadora de promoção pessoalda autoridade. Esse o ensinamento de Carlos Ary: “Além de, como se viu, o princípio daisonomia interditar ao legislador a enunciação de discriminações específicas, está nabase de inúmeros institutos e regras de direito público. São exemplos a exigência delicitação para contratação, pelo Estado, de particulares (CF, art. 37, XXI); a obrigatoriedadedo concurso público (...).”61 A licitação, dada sua relevância, vem expressamenteestabelecida no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, revelando a preocupa-ção do constituinte em mostrar que a regra é a realização de licitação pública queassegure igualdade de condições a todos os concorrentes, para todas as contrataçõesda Administração Pública, podendo, contudo, haver exceções, nos termos da lei, quedeve dar execução e estar adequada ao prescrito na norma superior. Ensina Canotilho:“O ‘pensamento de execução’ considera que, em termos gerais, a posição da lei relati-vamente à constituição não é diferente da relação hierárquico-normativa entre a lei e oacto administrativo, executor da mesma. Conseqüentemente, tal como adiscricionariedade administrativa é a execução de uma norma legal, também adiscricionariedade legislativa se circunscreve a um problema de execução, pelo legis-lador, dos preceitos mais ou menos detalhados da lei constitucional.”62

A norma referida é a Lei de Licitações – nº 8.666/93 – substituidora do Decreto-lei nº 2.300/86. Esse texto foi severamente criticado por Carlos Ary no prefácio de seu“Licitação e contrato administrativo” – não sem razão – mas, de toda forma, é essa alei que temos. Nessa obra a licitação é conceituada como “o procedimento adminis-trativo destinado à escolha de pessoa a ser contratada pela Administração ou a serbeneficiada por ato administrativo singular, no qual são assegurados tanto o direitodos interessados à disputa como a seleção do beneficiário mais adequado ao inte-resse público.”63 Bielsa conceitua a licitação como sendo “...un procedimiento legal ytécnico que permite a la Administración pública conocer quiénes pueden – en mejorescondiciones de idoneidad y conveniencia – prestar servicios públicos o realizar obras.”64

Semelhante é o conceito de Hely,65 para quem a licitação “é o procedimento adminis-trativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa

60 Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 40.61 Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 171.62 Canotilho. J.J.G. Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 216.63 Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 15.64 Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 167.65 Meirelles. H.L. Direito administrativo brasileiro, p. 247 e Licitação e contrato administrativo, p. 17.

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para o contrato de seu interesse.” Pode-se dizer também que a licitação “...é umcertame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputaentre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdopatrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas.Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que pre-encham os atributos e aptidões necessárias ao bom cumprimento das obrigaçõesque se propõem assumir.”66 Outros autores trataram de conceituar a licitação, a exem-plo de Celso Bastos,67 Moraes,68 Justen Filho,69 Figueiredo,70 todos em sentido bas-tante parecido. “En suma: la licitación es un requisito legal respecto de los contratosadministrativos, instituido por motivos de conveniencia y de moralidad administrati-va. La falta de licitación, si ella es obligatoria, determina la nulidad del acto, pues lalicitación es esencial. En tal caso - es decir, de omisión – la Administración pública notiene que demandar la anulación de contratos realizados sin licitación previa, puestoque se parte del supuesto de que no hay contrato.”71

A obrigação de licitar está determinada na Constituição Federal e a Lei 8.666/93estabelece no artigo 1º que os três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Fede-ral e dos Municípios estão submetidos ao seu regime, incluindo ainda os órgãos daadministração indireta, como os fundos especiais, autarquias, fundações públicas,empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas.Em seguida, a Lei de Licitações expressa a finalidade do instituto, deixando claro quea obediência ao princípio da isonomia e a vantajosidade da proposta estão no seuâmago, além da obrigação de se adequar aos princípios da legalidade, impessoalidade,moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumentoconvocatório, do julgamento objetivo e dos demais que lhes são correlatos. Essasdisposições poderiam ser consideradas desnecessárias, já que a observância aosprincípios mencionados advém do regime constitucional por nós adotado. Todavia,estamos com Justen Filho72 que enxerga excepcional relevância ao dispositivo, poisconsagra – expressamente – os princípios norteadores da licitação, devendo os agen-tes públicos, se por mais não fosse, se pautarem por eles na atividade administrativaespecífica. Desse modo, não basta o mero cumprimento burocrático das normasimpostas pela Lei nº 8.666/93, devendo o agente buscar o atendimento aos princípiosnorteadores da licitação.

À expressa determinação de observância dos princípios mencionados, adereo fato da Lei de Licitações ser norma de direito público, não tolerando desvios aoalvitre de quem quer que seja, devendo ser aplicada de modo que o interesse público

66 Bandeira de Mello. C.A., op. cit. P. 265.67 Curso de direito administrativo, p. 173.68 Direito constitucional administrativo, p. 164.69 Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 18.70 Direitos dos licitantes, p. 15 e Curso de direito administrativo, p. 301.71 Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 171.72 Op. cit. p. 24.

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de ter um procedimento licitatório de acordo com o previamente estabelecido, sejasempre resguardado. Desse modo, mesmo que em um ou outro caso, fosse possí-vel contratar diretamente a preço mais vantajoso, imprescindível realizar o processolicitatório, pois assegurar a isonomia, impessoalidade ou a moralidade administrativa,é, sem nenhuma dúvida, o interesse público maior a ser resguardado. Essa observa-ção se torna necessária porque alguns críticos da licitação (via de regra, agentespolíticos ou servidores provenientes da chamada iniciativa privada), enxergam nelaum obstáculo à melhor condução da Administração. A natureza da Lei de Licitações,todavia, impede o afastamento de sua aplicação, por se tratar de norma de ordempública, como veremos.

4. Normas de ordem pública

É muito comum vermos e ouvirmos a afirmação segundo a qual, as disposi-ções legais de ordem pública, sejam elas atinentes ao processo (legislativo, admi-nistrativo ou judicial) ou relativas à Administração Pública de forma mais ampla, de-vem ser rigorosamente obedecidas. Todavia, o contrário também é verdadeiro, seencontrando aqui ou acolá um burocrata ou mesmo um operador do Direito, defendera inaplicabilidade em um ou outro caso, porque naquela específica situação, signifi-caria caminho mais tormentoso para alcançar o objetivo.

A exata compreensão da natureza das normas de ordem pública exige volta àdiscussão sobre a atividade estatal e seu regime, claramente ligados ao direito públi-co. Antes, porém, necessário lembrar a advertência de Carlos Ary: “...o que define aincidência de um ou outro ramo jurídico é a atividade, não a pessoa envolvida. Odireito público não é o direito do Estado, aplicável exclusivamente às relações dasquais participem as entidades governamentais. Também o direito privado não é oconjunto de normas incidentes apenas e sempre nos vínculos travados entre parti-culares. O público é o direito das atividades estatais, enquanto o privado é o direitodas atividades dos particulares.”73

Com seu reconhecido poder de síntese, diz Carlos Ary74 que a vida social –conjunto de atividades desenvolvidas em uma sociedade – vem formada pelos doissetores mencionados, perfeitamente delimitados pela Constituição Federal, a saber:o estatal e o privado, acrescentando que este é o reservado aos particulares: “asatribuídas a eles pela Constituição como um direito subjetivo e as que, não tendo sidoreservadas ao Estado, lhes são facultadas.”

Daí a assertiva de todos conhecida, segundo a qual, pelo menos em tese, osparticulares podem realizar todas as ações cuja exclusividade não tenha sido dada

73 Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 76.74 Ibidem, p. 77.

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ao Estado, significando esta uma proibição da atuação privada. Isso, todavia, nãoesgota o rol de possibilidades de ação dos indivíduos, cabendo lembrar dos direitosfundamentais fixados no artigo 5º da Constituição Federal (direitos de locomoção, detrabalho, de manifestação de pensamento, etc).

E, se o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não veda, de forma contráriase desenvolve a atividade estatal, pois ele – o Estado – só pode fazer aquilo que aordem jurídica lhe atribui e da forma como atribuída, ficando vedado fazer aquilo quea Constituição Federal ou as leis não lhe autorizem expressamente. Esse o valo quesepara as atividades estatais das privadas.

Dentre o rol de atividades estatais, como dissemos, determinadas na Constitui-ção Federal ou em leis, estão aquelas atinentes à tutela social, objetivando o controleda vida em sociedade, inclusive utilizando o poder de coerção para impor um com-portamento ao indivíduo de modo que não prejudique os interesses da coletivida-de. A mais importante atividade estatal é, sem dúvida, a edição de leis, de molde aregular o exercício de direitos e o cumprimento de deveres, tanto pelos particularesquanto pelo próprio Estado, que a elas se sujeita, caracterizando-se assim o Estadode Direito. Também a tarefa de executar as leis se reveste de fundamental importân-cia, pois é aí que o Estado, pelo Poder Executivo, acaba por gerir o dia-a-dia dosindivíduos. Na execução das leis aprovados no Parlamento, o governante não o fazem nome próprio, senão por delegação ou como mandatário do povo, como já afirma-mos. Na aplicação dessas leis deve haver rigor quanto ao que foi prescrito, a forma eos limites. Assim, “cuando una ley dispone que las concesiones, por ejemplo, debenrealizarse previa licitación y ésta no se cumple hay exceso de poder o de mandato, yen cualquier momento puede demandarse su nulidad. Se trata de grandes princípiosaplicados también em el derecho público por nuestros más altos tribunales.”75 A Lei nº8.666/93, se por mais não fosse, traz expressa disposição quanto à natureza doscontratos administrativos dela decorrentes, inclusive com preceito separado paraaqueles decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação.76

Seguindo a linha de raciocínio estabelecida, a atividade jurisdicional é outra es-pécie do gênero atividade estatal, compreendendo a atuação do Judiciário na solu-ção de conflitos, na defesa de direitos, controle da constitucionalidade das leis, impo-sição de sanções, seja com privação da liberdade ou da propriedade e, finalmente,execução de suas próprias decisões. Importa é que a atividade judicial “é desenvolvi-da sempre para aplicação de normas jurídicas superiores, no que se assemelha àadministrativa.”77

75 Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 168.76 Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos dedireito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições dedireito privado. (...) § 2º Os contratos decorrentes de dispensa ou de inexigibilidade de licitação devem atenderaos termos do ato que os autorizou e da respectiva proposta.77 Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 77.

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A atividade legislativa, administrativa ou judicial se faz por fatos ou atos jurídicos,caracterizando-se este como uma prescrição, uma norma destinada a regular com-portamentos humanos. Releva é que o ato jurídico (lei, ato administrativo ou sentença)reflete sempre uma declaração destinada a reger comportamentos, se regulando porum cabedal de princípios e regras próprias desse ramo do direito – o público – e quediferem de maneira aguda daqueles que delineiam a produção de atos privados (con-tratos, v.g.). É em Carlos Ary, uma vez mais, que nos apoiamos: “Os atos jurídicosdevem ser produzidos com observância da norma superior. Isso não impede, contudo,o surgimento de atos inválidos (leis inconstitucionais, sentenças e atos administrativosilegais). Embora inválidos, acabam sendo aplicados e produzindo efeitos. Para retira-los do mundo jurídico, desfazendo os efeitos produzidos, o Ordenamento prevê formasadequadas para sua invalidação (também chamada de anulação).”78

Repisando a diferenciação entre a produção de atos jurídicos regidos pelo direi-to privado e público, possível afirmar que a lei – de modo geral – não determina omodo, o procedimento pelo qual os atos privados são produzidos, permitindo aosindivíduos que contratem livremente. Esse afastamento da lei quanto ao proceder sóvigora, contudo, enquanto as vontades estão se formando, podendo cada um esco-lher, por exemplo, o que comprar, onde comprar, de que forma comprar; cada umpodendo escolher livremente o caminho a percorrer. No que diz respeito ao direitopúblico, exatamente o contrário se verifica.

No Estado de Direito, como se disse, tanto os particulares quanto o próprioEstado ficam obrigados às normas produzidas, impondo que as funções estatais(legislativa, administrativa e judicial) sejam exercidas com observância a um proces-so detalhadamente regulado a priori. O processo é o modo pelo qual o Estado cum-pre suas funções, em qualquer de suas espécies. É curial que a produção de leis sefaça em estrita obediência ao processo legislativo, cabendo eventual mandado desegurança caso isso não se verifique (MS 22.972-DF, rel. Min. Néri da Silveira, Diárioda Justiça de 02/02/98; MS 23.914-DF, rel. Min. Maurício Correa, Diário da Justiça de24/08/01; AGRMS 22.629-DF, rel. Min. Ilmar Galvão, Diário da Justiça de 26/09/97).

Relativamente ao processo administrativo, igualmente se afirma que deve obede-cer ao devido processo legal, sob pena de nulidade. São, por outro lado, inúmeros osexemplos de decisões judiciais, tanto dos Tribunais regionais quanto no Superior Tribunalde Justiça e no Supremo, enfatizando a necessidade de obediência ao processo. Nocaso do processo administrativo, por ser demasiadamente conhecida a posiçãojurisprudencial, deixamos de citar algum julgado em especial, enfatizando, contudo, que alicitação – ou inexigibilidade dela – se resume num processo, por tudo devendo ser obser-vado o prescrito na lei de regência, não só quanto à subsunção dos fatos (presença dasingularidade e notória especialização), quanto às providências de ordem formal.

No âmbito da função judicial, não é diferente. Com efeito, a título exemplificativo,o processo – inserido no contexto do direito público – deve obedecer aos princípios

78 Op. cit. p. 88.

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próprios, à Constituição Federal e se realizar dentro daquilo que prescrito em lei,justamente como determinado, é dizer, sem espaço para inovações ou supressõesde mandamentos. Uma vez que a decisão política de estabelecer a regra já foi toma-da por quem de direito – o Legislativo – cabendo ao Judiciário a tarefa de aplicar anorma por ocasião do exercício da sua função.

“Importante perceber a razão da exigência de que os atos estatais sejam fruto deprocesso. Os agentes públicos exercitam poderes em nome de finalidade que lhes éestranha; desempenham função. Função é o poder outorgado a alguém para o obriga-tório atingimento de bem jurídico disposto na norma. (...) O legislador, o juiz, o adminis-trador, não dispõem de poderes para realizar seus próprios interesses ou vontades.”79

Em conclusão, mister afirmar que a formação da vontade do Estado é distintada formação do querer dos particulares. A do Estado é submetida à normas e se dápelo processo, pouco importando a vontade do agente, mas sim a vontade da lei,obrigando à estrita obediência daquilo que foi previamente definido como o caminho atrilhar, na busca da realização da função jurisdicional.

Sabido, ainda, que os princípios fixados na Constituição Federal relativos à Admi-nistração Pública, não se limitam ao Executivo, mas se aplicam a todo o Estado. Noartigo 37 está claramente estabelecido o princípio da legalidade, devendo qualqueragente do Estado pautar-se pela estrita observância dos comandos normativos, sobpena de infringir tão importante princípio. Esse o corolário de tudo quanto foi afirmadoacima: na formação da vontade do Estado, não pode o agente fazer da maneira comoentender mais correta, mas somente obedecer àquilo que disposto na lei, pressupon-do-se que o legislador, ao editar a norma, já previu a melhor forma de atuação e aadotou. Ainda que em determinado caso concreto, face às suas peculiaridades, umamelhor solução tenha sido aventada, não pode o agente estatal deixar de cumprir alei, pois ele (agente) atua em nome da sociedade e por expressa autorização daConstituição Federal e das leis, que não lhe autorizam a procurar um melhor caminhoque não o da própria norma, mas tão somente se pautar pelo comando legal.

5. Dispensa e inexigibilidade de licitação

A realização de licitação é obrigatória e está determinada pela Constituição Fe-deral80 e Lei nº 8.666/93. 81 Todavia, há hipóteses nas quais o procedimento licitatório

79 Ibidem, p. 92.80 Art. 37. (...) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienaçõesserão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos osconcorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas daproposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispen-sáveis à garantia do cumprimento das obrigações.81 Art. 2º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locaçõesda Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação,ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.

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é dispensável e, em outras, inexigível. O artigo 24 da lei de regência elenca as hipóte-ses nas quais a licitação é dispensável, exigindo apenas a comunicação à autoridadesuperior, assim mesmo ressalvando os casos nos quais os valores são inferiores a umpatamar e nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem, para os quais não háobrigatoriedade de comunicação imediata. De todo modo, a providência é exigida justa-mente porque a regra geral da realização de licitação foi excepcionada, impondo maiorcontrole. As hipóteses descritas no artigo 24 da Lei nº 8.666/93 são exaustivas e estãoem função da economicidade, em função da pessoa, da ineficácia ou desnecessidadedo próprio certame ou de acordo internacional, impondo a dispensa.

Já a inexigibilidade tem fundamento diverso – a inviabilidade da licitação – con-forme reza o artigo 25 da Lei de Licitações,82 cabendo ressaltar que nos fixaremosnaquilo que ligado – diretamente – com o tema proposto. Assim, a licitação é inexigívelpara a contração de serviços técnicos, desde que estejam entre os enumerados noartigo 13 do mesmo diploma,83 condicionando-o, todavia, à dois outros requisitos: anatureza singular e a notória especialização. Até aqui, possível dizer que a inexigibilidadede licitação não fica ao talante do administrador, somente sendo aplicável naquelescasos em que o certame é impossível ou quando não, desnecessário, por razões deordem lógica. Esse o significado da lei: “quando houver inviabilidade de competição.”Por outro lado, viu-se que a lei também exige, naquilo que relacionado ao tema pro-posto, a presença de três requisitos a saber: I) os serviços técnicos sejam os enume-rados no artigo 13; II) que tenham natureza singular e; III) que o contratado detenhanotória especialização.

82 Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

(...)

II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissi-onais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo,desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.

§ 1º.. Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especi-alidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento,equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho éessencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

§ 2º.. Na hipótese deste artigo e em qualquer dos casos de dispensa, se comprovado superfaturamento, respon-dem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agentepúblico responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.83 Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhosrelativos a:

(...)

II – pareceres, perícias e avaliações em geral;

III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;

(...)

V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

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Um outro aspecto a ser explora em relação à dispensa ou inexigibilidade delicitação, é a eventual afronta ao princípio da isonomia, tendo em conta que, de todaforma, o contratado está recebendo um tratamento diferenciado por parte do Estado-contratante. Necessário verificar, em primeiro lugar, se a própria Lei de Licitações,nesse particular, é inconstitucional por não se adequar ao caput do artigo 5º e aoartigo 37, ambos da Constituição Federal, relativamente à igualdade na lei. Para exa-minarmos essa questão, cabível e recomendável a utilização do critério de CelsoAntônio, já mencionado neste trabalho. Realizado o exercício, será verificado que oelemento tomado como fator de desigualação – a inviabilidade ou desnecessariedadeda realização da licitação – está perfeitamente adequado à desigualação determina-da na lei, estando sim em consonância com os interesses absorvidos no sistemaconstitucional, permitindo concluir que não há ofensa à Constituição Federal, antes,pelo contrário, a lei confere tratamento desigual aos que desiguais são, na medida desuas desigualdades. Pensamos, todavia, que o problema não reside na igualdade nalei, mas sim, perante a lei. A eventual ofensa ao princípio da isonomia ocorrerá nomomento da escolha do profissional a ser contratado, obviamente se não atendidosos requisitos legais, como se verá.

5.1. Serviços técnicos profissionais especializados

É relevante ressaltar desde logo, que o conceito de “serviços técnicos profissi-onais especializados” pode gerar dúvida quanto ao seu alcance. Todavia, o tema pro-posto se encerra na contratação de advogados, quer para exarar parecer quer parapatrocínio de defesas, judicial ou administrativa, ou ainda prestar assessoria ouconsultoria técnicas, conforme rezam os incisos II, III e V do artigo 13, limitando adiscussão, pois, nos termos do artigo 1º e seus incisos da Lei nº 8.906/94 (Estatutoda OAB), as atividades mencionadas são privativas de advocacia. Daí não ingressar-mos, deliberadamente, na discussão sobre o significado da expressão “serviços téc-nicos profissionais especializados” em relação aos demais itens referidos nos incisosdo artigo 13 da Lei de Licitações. Todavia, mesmo no que diz respeito às atividadesprivativas de advogados, mister relacioná-las com os serviços técnicos profissionaisespecializados de que fala a lei. Para Hely, referindo-se ao artigo 12 do Decreto-lei nº2.300/86, então lei de regência das licitações e contratos, os “serviços técnicos pro-fissionais especializados, no consenso doutrinário, são os prestados por quem, alémda habilitação técnica e profissional – exigida para os serviços técnicos profissionaisem geral – aprofundou-se nos estudos, no exercício da profissão, na pesquisa cien-tífica, ou através de cursos de pós-graduação ou de estágios de aperfeiçoamento.”84

Justem Filho expressa posicionamento um tanto diverso, já sobre o artigo 13 da Leinº 8.666/93: “O art. 13 não conceituou ‘serviços técnico profissional especializado’,

84 Meirelles. H.L. Licitação e contrato administrativo, p. 105.

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optando por fornecer um elenco de situações. A conceituação de um certo serviçocomo técnico importa investigação extranormativa. A lei não pode (nem o quis, nocaso) definir o que seria ‘técnico’, pois somente as ciências poderiam fazê-lo. Seriaimprofícua e inconveniente a opção legislativa de substituir-se ao conhecimentocientífico, pretendendo definir exaustivamente a natureza dos serviços técnicos.”85

A par dessa afirmação, adverte o autor em seguida, que não se trata, todavia, delivre escolha do administrador sobre o que seria ou não um serviço técnico, deven-do ele examinar a sua natureza e contemplá-lo com aquilo que diz as ciências,aquilatando se se configura como tal.

Pois bem. Partindo da conceituação legal de serviço como sendo toda atividadedestinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como:demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adap-tação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhostécnico-profissionais, nos exatos termos do inciso II do artigo 6º da Lei nº 8.666/93(grifamos), necessário buscar o significado de serviços técnicos profissionaisespecializados, à evidência distintos daqueles referidos na conceituação geral men-cionada, por conta da deliberada inclusão do vocábulo especializados. Uma vezmais nos socorremos de Justen Filho,86 que conceitua “serviço técnico” para acres-centar o vocábulo “profissional” e depois o “especializado”. Diz o autor que serviçotécnico é aquele assim qualificável segundo o conhecimento técnico-científico, ca-racterizando-se por envolverem a aplicação de rigorosa metodologia ou formal pro-cedimento para atingir determinado fim. Segue dizendo que essa técnica permiteaplicações práticas para uma teoria, obtendo-se alteração no universo circundante,atingindo o resultado preordenado que perseguia. Afirma ainda que as ciências é quedirão se um serviço é técnico.

Num passo seguinte, diz que serviço técnico profissional é aquele constituidordo objeto de uma determinada profissão, caracterizando-se quando uma atividadeapresentar um objeto próprio e se desenvolver segundo regras inconfundíveis. E mais,diz que “há profissionalidade quando o serviço adquire uma identidade própria que otorna distinto frente outras espécies de atuação humana, exigindo uma habilitaçãoespecífica para sua prestação.”87 Finalmente, como exige a lei, os serviços técnicosprofissionais precisam ser especializados, entendida esta como a capacitação paraexercício de uma atividade com habilidades não disponíveis para qualquer profissio-nal, senão para aquele que possui capacitação mais elevada que a comum ou usual;ou aquela produzida pelo domínio de uma restrita área, com aprofundamento que vaialém do conhecimento médio.88 Anotamos que ao conceito esposado, deve ser acres-centado que o “especializado” denota ser serviço, cujo nível de complexidade é mais

85 Justen Filho. M. Comentários á lei de licitações e contratos administrativos, p. 75.86 Ibidem, p. 76.87 Ibidem, mesma página.88 Justen Filho. M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 76.

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elevado que o normal, pelas dificuldades que apresenta, razão pela qual se exigeprofissional gabaritado para enfrentá-lo e solucioná-lo a contento. Mas uma observa-ção é fundamental: o serviço técnico profissional especializado é que é mais comple-xo, nenhuma relação guardando com o prestador desse mesmo serviço. Uma coisaé o serviço técnico profissional especializado e sua complexidade; outra, bem distin-ta, é o prestador do serviço e sua capacidade para executá-lo.

Com se afirmou, a própria Lei de Licitações tratou de elencar um rol que conside-ra serviços técnicos profissionais especializados, incluindo assessorias ou consultoriastécnicas, auditorias financeiras ou tributárias (inciso III) e patrocínio ou defesa de cau-sas judiciais ou administrativas (inciso V). Portanto, a lei afirmou que esses serviçosenvolvem a aplicação de rigorosa metodologia (técnicos); possuem identidade própriaque os torna distintos em relação a outras espécies de atuação humana, exigindo habi-litação específica para sua prestação (profissional); e exigem capacitação para o exer-cício com habilidades não disponíveis para a média dos profissionais, exigindo o domí-nio de uma área restrita do conhecimento, com aprofundamento que ultrapassa o co-nhecimento normal. O artigo 13 da Lei nº 8.666/93 é expresso ao considerar comoserviços técnicos profissionais especializados aqueles constantes do seu rol, que, comJusten Filho,89 é exemplificativo, pese embora entendermos que a norma não definiu oque vem a ser os tais serviços, mas simplesmente considerou para os seus própriosfins os trabalhos a eles relativos. Importa é que esses serviços, por presunção legal,são considerados técnicos – profissionais – especializados, denotando complexidadeab initio, é dizer, neles residentes.

De toda forma, esses são serviços (em sentido lato) passíveis de, em tese,contratação direta ou para os quais é inexigível a licitação, isso não bastando, todavia,porque esse dispositivo somente pode ser lido com toda a norma do artigo 25 damesma Lei de Licitações, é dizer, dele (serviço) se exige a natureza singular e doprestador contratado a notória especialização, indissociavelmente. Com isso, muitoembora a lei fale em patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, v.g.,mister que tenham a característica da singularidade, ou seja, devem ser diferencia-das, além de o prestador do serviço deter notória especialização.

Convém notar que as conseqüências jurídicas da consideração legal não pa-ram na possibilidade, ao menos em tese, de contratação direta. O parágrafo 1º doartigo 13 já traz importante determinação ao agente público, no sentido de haver pre-ferência para realização de certame na modalidade concurso, com estipulação pré-via de prêmio ou remuneração, nos casos de contratação de prestação dos serviçostécnicos profissionais especializados. Nos parece que o legislador previu a dificulda-de de confrontação de preços de honorários, v.g., caso fosse a contratação de patro-cínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas antecedida de licitação, p. ex.,na modalidade concorrência. Além disso, aplicável no que couber, é necessário que o

89 Ibidem, p. 77.

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autor intelectual do serviço técnico profissional especializado ceda os direitospatrimoniais a ele relativo, nos termos do parágrafo 2º do mesmo artigo 13, combina-do com o artigo 111 da Lei de Licitações. Por fim, obrigação imposta às empresasque se disponham a contratar a prestação desses especiais serviços, descrita noparágrafo 3º, será posteriormente examinada. De toda forma, importante ressaltarque tais empresas podem ser, à evidência, a sociedade civil de prestação de serviçode advocacia, disciplinada no artigo 15 da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 – Esta-tuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

5.2. Singularidade do objeto

Segundo o inciso II do artigo 25 da Lei de Licitações, é inexigível a licitaçãoquando houver inviabilidade de competição e, em especial, para a contratação deserviços técnicos enumerados no artigo 13 do diploma legal, desde que sejam denatureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização. Por ora,examinemos a expressão “de natureza singular”, somando-o à inviabilidade de com-petição e aos serviços técnicos enumerados no artigo 13, em continuidade na buscade solução para o problema colocado.

Segundo o Aurélio90 singularidade é qualidade do que é singular e, por seu turno,singular é o pertencente ou relativo a um; único, particular, individual; que não é vulgar;especial, raro, extraordinário; diferente, distinto, notável. Diz-se do número que se apli-ca a um só sujeito. A palavra singularidade é ligada a particular ou individual; algo raro ouextraordinário. Para o direito singular “não somente traduz a idéia do que é simples,unitário; mas, conduz a idéia de tudo que se distingue ou se individualiza de per si,mesmo que seja resultante de uma composição. (...) Em distinguindo ou qualificando aLei, ou o Direito, possui sentido de especial, ou particular. Direito singular é o que éespecial, ou particular a certa classe, ou a certas coisas.”91 Também aqui, a singulari-dade diz respeito àquilo que é especial ou que se distingue.

Rigolin assim se posiciona: “Natureza singular de um serviço, um trabalho,uma obra autoral, uma qualquer produção, é a característica de personalismo incon-fundível que possua; é a qualidade autoral que a distingue de qualquer outra; é a suafeição própria, particular, peculiar, dada por uma e apenas uma pessoa – física oujurídica -, impossível de substituição pelo serviço de outra pessoa. É o serviço assi-nalado pelo cunho ou a chancela pessoal de alguém, marcado pelo seu timbre incon-fundível, dotado, por isso, de características que lhe emprestem natureza de singula-ridade, de inconfundibilidade com outro serviço de quem quer que seja.”92 De outro

90 Ferreira. A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1591.91 Silva. D.P. Vocabulário jurídico, vol. IV, p. 240.92 Rigolin. I.B. Manual prático das licitações: Lei n. 8.666/93, p. 120.

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lado, Lúcia Valle Figueiredo93 explica a singularidade do objeto com exemplos, situan-do-a, primeiramente, como relacionada ao fator pessoal, de modo a impedir a con-frontação entre o trabalho de um artista e de outro. Segue se reportando à singularida-de do objeto na hipótese de se ligar às suas próprias peculiaridades e não as de seuexecutor, caso típico, diz a autora, de um imóvel destinado ao serviço público. Termi-na exemplificando com um parecer de Direito, em relação ao qual, igualmente, have-ria impossibilidade de confrontação dos trabalhos de juristas.

Carlos Ary,94 fundado em Celso Antônio, em relação aos serviços diz que sãosingulares, tornando inviável a licitação nas seguintes hipóteses: “a) sua prestação émonopolizada, seja por determinação normativa (ex.: o serviço público de Correios eTelégrafos), seja por razões de fato (ex.: serviço cuja prestação depende da titularidadede direito autoral); b) caracterizando-se como serviço técnico profissional especializa-do (produções intelectuais, científicas, etc.) ou como produção artística, deva, neces-sariamente, trazer a marca pessoal de seu executor.”95 Seguindo, no que diz respeitoaos serviços técnicos afirma: “Porém, não basta dado serviço enquadrar-se no concei-to de técnico profissional especializado para ensejar a inexigibilidade de licitação. Ne-cessário tratar-se, diz o art. 25-II, de ‘serviço de natureza singular’. Se o serviço, embo-ra encaixando-se entre os mencionados no art. 13, não for singular (é dizer: não de-mandar um cunho pessoal, que o individualize absolutamente) deverá ser contratadopor licitação...”96 Celso Antônio ensina a respeito dos serviços singulares (aqueles quenos interessam), que são os que “se revestem de análogas características. De modogeral são singulares todas as produções intelectuais isolada ou conjuntamente – porequipe – sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (oucoletiva), expressada em características científicas, técnicas ou artísticas importantespara o preenchimento da necessidade administrativa a ser suportada.”97

Para nós, a singularidade do objeto mencionada no inciso II do artigo 25 da Leinº 8.666/93, não pode ser vista senão pelo ângulo intrínseco, é dizer, pelas caracterís-ticas e qualidades que lhe são próprias – do objeto – afastando da análise as qualida-des pessoais do prestador do serviço, estas consideradas em outras circunstâncias,conforme se demonstrará.

O artigo 25 declara ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de com-petição e, em especial, menciona três ordens de circunstâncias, tratando de bens,serviços e pessoas. A primeira delas (inc. I) diz respeito à aquisição de bens (materi-ais, equipamentos ou gêneros) que só possam ser fornecidos por produtor, empresaou representante comercial exclusivo. É evidente que a licitação é inviável nesse caso,

93 Figueiredo. L.V. Direitos dos licitantes, p. 26.94 Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 44.95 Ibidem, p. 45.96 Ibidem, mesma página.97 Mello. C.A.B. Curso de direito administrativo, p. 276.

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ante a ausência de qualquer possibilidade de confrontação de ofertas. Todavia, a leiimpõe o modo como se faz o reconhecimento da exclusividade, vedando a preferên-cia por uma marca.

Depois de tratar da aquisição de bens, o inciso II fala na contratação de servi-ços técnicos – não todos, só os enumerados no art. 13 – impondo ainda que possu-am uma qualificação: a natureza singular. Esse vocábulo está intimamente ligado aoserviço técnico, ou seja, ele que precisa ter natureza singular, pouco importando nes-se momento, quem seja o prestador do serviço. A colocação gramatical na forma deaposto leva a essa interpretação, dado que é essa a sua função na oração. O apostoacrescenta algo ou explica aquilo que vem imediatamente antes. Não há sentido, datavenia, na afirmação segundo a qual o qualificativo “natureza singular” guarda relaçãocom o prestador do serviço, cujas qualidades serão exigidas em seguida pela letra dalei. A natureza singular é o requisito objetivo imposto pela lei e a subjetividade está emrelação ao prestador dos serviços, de quem se exige, seja qual for o serviço técnicode natureza singular, a notória especialização (que será examinada no tópico seguin-te). A natureza singular do serviço técnico, e não do prestador, insistimos, é que éexigida pela lei, isso podendo ser afirmado pela simples leitura do inciso II do artigo25. E nem poderia ser diferente, pois, como afirmamos, outra importante exigênciase faz, de natureza subjetiva ou relativa às qualidades do prestador dos serviços, ade que tenha notória especialização.

Além dessas, e como terceira situação a ensejar a inexigibilidade de licitação,trata o inciso III do artigo 25 da lei de regência, reportando-se às contratações de profis-sionais de qualquer setor artístico, desde que consagrado pela crítica especializada oupela opinião pública. Nesse caso, a qualidade pessoal do contratado é que é fundamen-tal, pois é ela que autoriza a inexigibilidade de licitação. Note-se, e isso é fundamental, alei exige apenas que o profissional do setor artístico seja consagrado pela crítica espe-cializada ou pela opinião pública, nada falando sobre a natureza do trabalho que fará.Nem poderia ser diferente, pois a contratação de um pintor famoso, um cantor, umbailarino, um comediante, enfim, esses sim valem por suas próprias características(pessoais), bem por isso inviabilizando o certame. Como comparar o trabalho de doispintores famosos? Ou dois cantores para animação de festa popular?

Diferente; bem diferente, é a contratação de serviços técnicos profissionaisespecializados com inexigibilidade de licitação, pois o fundamento somente poderáser o do inciso II do artigo 25 e nunca o inciso III. Infelizmente, têm ocorrido equívocosna interpretação do dispositivo, levando à conclusão de que a singularidade do objetoestaria na qualidade da pessoa do prestador do serviço. Entendemos inadmissívelisso, porquanto não encontramos nenhuma função para o vocábulo “de natureza sin-gular” se não em relação ao próprio serviço técnico. Note-se que se fosse o prestadordo serviço que, por suas qualidades intelectuais, desse a conotação de singularidadeao objeto, todo e qualquer serviço técnico por ele prestado seria singular. E chegaría-mos ao absurdo de estarmos frente à singularidade determinada por mais de umprestador do serviço e, via de conseqüência, duas ou mais “singularidades”, o que

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contraria o próprio sentido do termo. Singular é o exclusivo, extraordinário, o diferente,o único. Poderíamos estar frente à situação igualmente absurda, na qual existente asingularidade do objeto se o prestador do serviço for um famoso e competente inte-lectual detentor de notória especialização, mas não existir se o prestador do serviçofor um profissional habilitado, mas que não detenha a qualidade de notória especiali-zação. Isso encontra óbice na lógica porque um mesmo serviço técnico não pode sersingular para um profissional e não ser para outro! O serviço técnico tem ou nãonatureza singular; é ou não individual, único, particular; não podendo ser para um enão sê-lo para outro profissional. Daí afirmarmos que a natureza singular referidapela lei está ligada ao próprio serviço técnico, independentemente de quem o preste.Todavia, se o serviço é técnico e está dentre os enumerados no artigo 13, além depossuir a natureza singular, inexigível será a licitação, se o prestador possuir notóriaespecialização. Seria possível afirmar que defesa judicial da administração pública,numa ação de reparação de danos causados por um seu motorista, condutor deveículo em serviço, possui natureza singular? A resposta é negativa, dado que açõescomo essa fazem parte do dia-a-dia de qualquer procuradoria da menor Prefeitura. Ea defesa da administração numa ação na qual servidor cobra diferença de pagamen-to de vencimentos? E a cobrança de obrigações tributárias não adimplidas, com ousem possibilidade de propositura da ação de execução fiscal? Em nenhum dessescasos, igualmente, nos parece que a resposta deva ser negativa, pela razão dessetipo de ações ou atividades fazer parte do conjunto corriqueiro referido, e para asquais um procurador sem grande experiência poderia patrocinar a contento o interes-se público envolvido. Algo mudaria se fosse contratado grande jurista de renome na-cional para defender essa Prefeitura? Ou para propor uma simples ação de execu-ção fiscal? Nada mudaria na natureza do serviço, que não tinha e nem passou a ternatureza singular, pelo fato do ilustre profissional ter assumido o patrocínio.

Por outro lado, e se dois Estados da Federação estivessem litigando peladivisa entre eles, com repercussões sobre a exata localização de uma plataformade extração de petróleo no mar, com as sabidas conseqüências econômico-finan-ceiras? Nesse caso, difícil dizer que situação como essa seria corriqueira. Talvez,nunca tenha ocorrido e não mais ocorra entre aquelas pessoas. Essa individualida-de, excepcionalidade ou exclusividade, é que permite dizer que presente está anatureza singular. Outros exemplos poderiam ser dados, como na área da enge-nharia: o gerenciamento da construção de uma pequena ponte, serviço técnico enu-merado no inciso IV do artigo 13 da Lei de Licitações, é tarefa comezinha em qual-quer Prefeitura, fazendo parte do dia-a-dia do setor de engenharia por não deman-dar maiores conhecimentos para tanto. Certamente ninguém ousaria dizer que esseserviço técnico, embora constante do artigo 13, possui natureza singular. Mas, e ogerenciamento da construção da Ponte Rio-Niterói? À evidência que ambos os ser-viços são técnicos, o último possuindo natureza singular e o primeiro não, indepen-dentemente de quem seja contratado para executá-lo. Aliás, em nenhum dos doiscasos há impedimento dos serviços serem prestados por engenheiros pertencen-tes ao quadro próprio de servidores de Prefeitura, Secretaria ou Ministério, ou ainda

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de autarquias ou empresas públicas encarregadas legalmente dessa função, aindaque houvesse a necessidade de contratação de novos profissionais, à evidência, porconcurso público. A diferença é que o primeiro dos serviços é corriqueiro, enquanto osegundo é único. Desse modo, a discussão sobre a natureza singular do serviçotécnico, se coloca muito antes de ser aventada a possibilidade de contratação deprofissional não pertencente aos quadros do serviço público para realizá-lo. Há umhiato entre o momento de constatação da natureza singular do serviço técnico e a –eventual – contratação de profissional para executá-lo. São, portanto, distintos e in-confundíveis, podendo ou não ocorrer a contratação de profissional, dependendo dascircunstâncias. Somente depois de vencida essa etapa é que se pode falar na notóriaespecialização, essa sim sempre atinente ao prestador (ou prestadores) do serviço.Desse tema passaremos a tratar.

5.3. Notória especialização

Vimos que o artigo 25, inciso II da Lei nº 8.666/93, prevê a inexigibilidade delicitação para a contratação de serviços técnicos (do artigo 13), de natureza singular,desde que com profissionais ou empresas de notória especialização, vedando, con-tudo, para os serviços de publicidade e divulgação, assim afastando - expressamen-te - a inexigibilidade para a sua contratação. Também é a própria Lei de Licitações, noparágrafo 1º do mesmo artigo 25, que diz aquilo que deve ser considerado comonotória especialização, impedindo o agente público, seja quem for, de criar suas pró-prias exigências, para mais ou para menos. O rol de requisitos é meramenteexemplificativo, podendo isso se afirmar pois fechado com a usual fórmula do “...oude outros requisitos...”, impondo ao aplicador da lei, no campo administrativo oujurisdicional, mais a observância do sentido da norma, que a fria letra da lei. Issocontudo, como veremos, não permite ao aplicador afastar-se da disposição, que porsua relevância, merece ser transcrito, in verbis: § 1º. Considera-se de notória especia-lização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, de-corrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organiza-ção, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suasatividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o maisadequado à plena satisfação do objeto do contrato.

A lei adjetivou a especialização com a notória, exigindo assim, um plus do pro-fissional contratado (ou da empresa, inclusive pelos profissionais que a compõe).Note-se que ao tratarmos do serviço profissional técnico especializado, afirmamosque, de maneira geral, especializado é aquele complexo serviço, dentre outras consi-derações. Segundo o artigo 25 da lei, exige-se que o contratado seja especializado, édizer, tenha gabarito para enfrentar e solucionar a contento o desafio colocado. Espe-cialista, segundo o Aurélio, é a pessoa que se consagra com particular interesse ecuidado a certo estudo ou ainda, pessoa que se dedica a um ramo de sua profissão;

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pessoa que tem habilidade ou prática especial em determinada coisa, ou, conhece-dor, perito.98

Exige-se, na dicção da lei, que o profissional especialista seja notoriamenteespecializado, trazendo a norma, de forma expressa e em interpretação autêntica,aquilo que considera notoriamente especializado. Releva notar que a lei parte daquiloque é do conhecimento geral, de todos, pelo menos no campo de sua especializa-ção, não se exigindo, contudo, que o seja do público de maneira generalizada. Defato, o conhecimento exigido em relação a um determinado profissional do Direito,v.g., deve ser, no mínimo, nesse campo do saber, nenhuma relevância tendo o fato denão ser ele conhecido entre os engenheiros ou médicos.

Fala a lei em notória, impondo ao intérprete a tarefa de atribuir um significado aovocábulo. Notório, segundo o Aurélio, é o conhecido de todos, público, manifesto.Exemplifica: professor de notório saber.99 Sob o aspecto jurídico, notório, que vem dolatim notorius, de noscere (saber, conhecer), “...é o que é sabido ou conhecido pelopúblico. É o que é do conhecimento de todos ou de conhecimento generalizado. E porser de conhecimento público, de conhecimento geral, exprime sempre o que se temcomo certo e verdadeiro, não precisando de ser provado, porque já preexistente porsi mesmo.”100 A lei processual também tratou do que é notório, eximindo as partes dodever de provar os fatos notórios, conforme determina o inciso I do artigo 334 doCódigo de Processo Civil, justamente porque de todos conhecido. Nessa seara, ensi-na Carnelli, contudo, que “a notoriedade, adverte-o CALAMANDREI, é um ‘conceitoessencialmente relativo’. O fato notório não tem que sê-lo, forçosamente, a todos oshomens ‘sem limitação de tempo e espaço’. A sua importância qualitativa não depen-de, também, do maior ou menor número de pessoas que compõe o núcleo social. Oque define e caracteriza o fato notório e, qual se tem repisado, o valor demonstrativode ‘pacífica e desinteressada certeza’ que o conhecimento adquire em seu meio...”101

Mas a lei não se contenta com o conceito102 detido pelo profissional ou empresa,de todos conhecido; exige que esse conceito seja decorrente de desempenho anterior,afastando desde logo os iniciantes ou aprendizes, e exigindo experiências passadas.Continua o exemplificativo rol falando de estudos, experiências, publicações, organiza-ção, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suasatividades, tudo de modo a permitir inferência que o seu trabalho é essencial e indiscu-tivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

É possível afirmar, então, que a lei exige do profissional contratado (ou empre-sa), seja não só especializado, mas que essa especialização seja notória, de todos

98 Ferreira. A. B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 701.99 Ferreira. A. B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1201.100 Silva. D.P. Vocabulário jurídico, p. 254.101 Carnelli. L. O fato notório, p. 211.102 Conceito, segundo o Aurélio (op. cit. p. 445), é pensamento, idéia, opinião; é apreciação, julgamento, avaliaçãoou opinião; ou ainda, pode ser reputação ou fama.

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conhecida, exigindo, ainda, a norma, que essa notória especialização seja decorren-te de seu conceito no campo de sua especialidade, este em função de desempenhoanterior, estudos, publicações, organização, etc, tudo de molde a permitir umainferência: a de que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado áplena satisfação do objeto do contrato. Por outras palavras, a lei exige que para oreconhecimento da notória especialização, é mister que o conceito do profissional noseu campo de especialidade seja tão patente, em função das atividades (lato sensu)desenvolvidas, que permita concluir ser o seu trabalho essencial, indispensável oufundamental, e além disso, indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação doobjeto do contrato. Quer a lei que sobre a capacidade do contratado, a julgar pelo seupassado profissional, seja fundamental e indiscutivelmente a mais adequada paraaquele determinado objeto contratual.

Portanto, parece-nos claro que essa é uma discussão que se coloca antes dacontratação e independe do efetivo resultado do trabalho, caso seja ele contratado.As qualidades exigidas do profissional, para que se possa dizer que detém notóriaespecialização, devem ser colocadas a priori, de modo que dúvida alguma paire so-bre a superior capacidade do contratado, naquela certa especialidade. Não fala a leiem profissional que amealhou conhecimentos substanciosos, mas gerais sobre umcampo do saber. Refere-se sim à especialização conseguida ao longo do tempo ecomprovada da forma que ela própria determina. Essa exigência afasta, logicamente,aqueles que não atuaram (ou pouco atuaram) na área para a qual se pretende acontração sem licitação, sendo possível afirmar que a tal especialização diz respeitoà especialidade profissional, como por exemplo nas Ciências Médicas, cuja regula-mentação se faz pela Lei nº 6.932/81. Essa norma regulamenta a chamada residên-cia médica, uma das espécies de pós-graduação (anteriormente denominada latosensu), conferindo o título de especialista. A anterior lei que tratava da residênciamédica havia sido regulamentada pelo Decreto nº 80.281, de 05 de setembro de 1977e este, modificado por sucessivos decretos posteriores, continua regulamentado otema, trazendo em seu primeiro artigo as preferenciais áreas de especialização naMedicina, mencionando a Clínica Médica, Cirurgia Geral, Pediatria, Obstetrícia e Gi-necologia, e Medicina Preventiva e Social. Hoje, outras áreas são oferecidas, como aAnestesiologia, Cirurgia Plástica, a Reumatologia, a Cardiologia, chegando à Medici-na Nuclear. Em relação à Engenharia, pode-se exemplificar com a Civil, Elétrica, deProdução, Eletrônica, Engenharia Naval, havendo inclusive obrigatoriedade do profis-sional anotar a responsabilidade técnica formalmente, aceita apenas no campo desua especialidade.103 A Engenharia de Segurança no Trabalho, por sua vez, é especia-lidade regida pela Lei nº 7.410/85.

No campo do Direito, embora não exista lei expressa, se fala na especialidadeem Tributário, Civil, Constitucional, Penal, Processual Civil Processual Penal, Admi-nistrativo, Internacional, dentre outros, correspondendo aos ramos do Direito e às

103 Conforme a Lei nº 5.194/66, a qual prevê inclusive a possibilidade de registro temporário de engenheiros estran-geiros, no caso de “escassez de profissionais de determinada especialidade...”, conforme a alínea “c” do Art. 2º.

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disciplinas profissionalizantes que estão expressas no inciso II do artigo 6º da Porta-ria MEC nº 1886/94, de 30 de dezembro de 1994, publicada no DO de 04 de janeiro de1995, até hoje a norma regulamentadora dos cursos de Direito no Brasil.

A lei processual civil em vigor também fala na especialidade do perito na maté-ria sobre a qual opinará, cuja comprovação se dará mediante certidão do órgão pro-fissional em que estiverem inscritos, nos termos do § 2º do artigo 145 do Código deProcesso Civil.

Por tudo isso, nos parece claro que a lei permite a inexigibilidade de licitaçãoem determinado caso, mas o conjunto de requisitos indica ser absoluta exceção, deresto, de maneira consentânea com os princípios antes mencionados. O atendimen-to às exigências legais é fundamental, pois essa norma excepciona a regra geral,impondo interpretação sempre restritiva, como sói acontecer em todos os demaiscasos excepcionais. Com efeito. A inexigibilidade de licitação destoa de mandamen-tos constitucionais e legais, fazendo com que o aplicador da lei evite sua utilização aomáximo, reservando-a àquelas excepcionais situações nas quais a licitação se reve-la inviável mesmo. As contratações diretas, pela natureza excepcional de que se re-vestem, impõe ainda outras providências que veremos.

5.4. Providências formais posteriores

É incontestável o caráter excepcional da inexigibilidade de licitação, como vi-mos. Isso também se comprova por disposições legais complementares aos artigos24 e 25, além dos parágrafos 2º e 4º do artigo 17 da Lei de Licitações, se tratando demedidas justificadoras das exceções. Já o artigo 26 da lei de regência impõe aobrigatoriedade de comunicação da dispensa ou inexigibilidade de licitação, em trêsdias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, esta emcinco dias, ditando isso tudo ser condição para eficácia dos atos. O legislador, atentoà excepcionalidade da situação, determinou que o superior hierárquico da autoridadeque decidiu pela dispensa ou inexigibilidade de licitação, deva ser comunicado do atoe o ratifique, publicando tudo na imprensa oficial.

Tal comunicação deverá ser instruída com elementos que caracterizem a situ-ação emergencial, a razão da escolha de determinado fornecedor ou executante e ajustificativa do preço, tudo conforme os incisos I a III do parágrafo único do artigo 26da Lei de Licitações. Esses elementos são, em verdade, a motivação do ato adminis-trativo, como, de resto, devem ser todos os atos da administração e também doJudiciário, inclusive ao decidir matéria administrativa, em atendimento ao artigo 93,incisos IX e X da Constituição Federal.

Importa é que essa comunicação é condição para eficácia dos atos administra-tivos praticados, é dizer, sem que tenha sido realizada, com a ratificação pela autori-dade superior e publicação na imprensa oficial, nenhum ato subseqüente poderá ser

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realizado. Essa disposição, por outro lado, acaba por imputar responsabilidade diretaà autoridade superior, fazendo-o igualmente responsável pela estrita observância dalei. Essa condição de eficácia do ato administrativo que dispensou ou inexigiu a licita-ção não é única no Direito, bastando lembrar que até mesmo na atividade jurisdicionalo agente político é obrigado a submeter sua decisão ao superior, no caso o Tribunalcompetente, como no duplo grau de jurisdição previsto no artigo 475, incisos I e II doCódigo de Processo Civil, aplicáveis às hipóteses nas quais a sentença tenha sidoproferida contra os entes federados ou que tenha julgado procedentes os embargos àexecução de dívida ativa da Fazenda Pública. O chamado reexame necessário visa,grosso modo, resguardar o interesse público, não se contentado a lei com apenas asentença judicial. Também podem ser citados os casos de sentença concessiva dehabeas corpus e da que absolver sumariamente o réu no rito do júri, como determinaos incisos I e II do artigo 574 do Código de Processo Penal.

Pensamos que, se na hipótese de uma sentença contrária à União, Estados,Distrito Federal ou Municípios, a título de exemplo, o juiz está obrigado a submetersua decisão à superior instância, como condição de validade da decisão, muito maisrelevância tem a comunicação à autoridade superior prevista no artigo 26 da Lei nº8.666/93, porquanto indisputável que o servidor público responsável pela decisão, nomais das vezes, sequer agente político é, sendo mero executor de ordens superiores.As contratações diretas, via de regra, ficam a cargo dos servidores subalternos e,insistimos, o caráter de absoluta excepcionalidade da dispensa ou inexigibilidade delicitação, impõe efetivo controle por parte da administração superior, inclusive comnecessidade de ratificação do ato por esta, e a conseqüente co-responsabilidade.

Por fim, uma palavra sobre o contrato administrativo. Embora até desnecessário,o legislador expressamente dispôs no parágrafo 2º do artigo 54 da lei de regência queos contratos decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação devem atender aostermos do ato que os autorizou e da respectiva proposta. À evidência que nesses ca-sos não se fala em licitação – propriamente dita – e muito menos em edital, todavia, osprincípios elencados no artigo 3º da Lei nº 8.666/93 encontram aplicação na hipótese,sobretudo a finalidade da licitação e o modo como será processada e julgada. O princí-pio da motivação do ato administrativo, dentre outros, igualmente, tem obrigatória apli-cação. Por derradeiro, o inciso XI do artigo 55 da norma referida, manda inserir cláusulaestabelecendo a vinculação ao termo que dispensou ou inexigiu a licitação.

6. A contratação direta de serviços advocatícios e precedentes

Sem descurar que engenheiros, médicos, ou consultorias técnico-contábeisou administrativas, em tese poderiam ser diretamente contratados para prestar servi-ços ao Estado, com base na inexigibilidade de licitação, nos propusemos a examinara específica hipótese de contratação de advogados (ou sociedades deles), para pres-tação de serviços próprios. Essas contratações vem sendo objeto de questionamentos

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nas Cortes de Contas e no Judiciário, tanto pelo Ministério Público (por ações civispúblicas por ato de improbidade administrativa), como também por cidadãos utilizan-do a ação popular. Todavia, a jurisprudência não se firmou num ou noutro sentido,inclusive a administrativa, pois decisões existem de Tribunais de Contas, de Estadosou da União, em ambos os sentidos.

Pensamos ser compreensível essa dissonância por inerente à natureza da ques-tão tratada. É que, conquanto não se possa afirmar, a priori, ser ilegal a contrataçãodireta de advogados pelo Estado, com inexigibilidade de licitação, não se pode, damesma forma, dizer que sejam sempre possíveis. Explicamos.

Os serviços advocatícios são passíveis, em tese, de contratação direta masdesde que a hipótese se amolde aos requisitos da Lei nº 8.666/93 – à evidência – emtudo aquilo que por ela exigido. Coerente com o defendido neste trabalho, já tivemosoportunidade de sustentar a possibilidade, atuando pelo Ministério Público de 2ª ins-tância, nos autos da AC nº 207.349.5/0-00, da 6ª Câmara de Direito Público do Tribu-nal de Justiça do Estado de São Paulo, dentre outros. Tratava-se da contratação desociedade de advogados notoriamente especializados em Direito Bancário, paraajuizamento de ações de repetição de indébito por pagamento de juros excessivosem operações de antecipação de receita orçamentária (ARO), providência adotadapor recomendação do Egrégio Tribunal de Contas. Bem examinada a hipótese, verifi-cou-se a presença da singularidade do objeto e a notória especialização da socieda-de de advogados contratada. Assim, como nesse, em outro seria possível acontratação direta, desde que o Poder Público envolvido possa verificar que os servi-ços enfocados são técnico-profissional-especializados, igualmente presente a sin-gularidade do objeto. Isso verificado, possível passar à etapa seguinte, de identifica-ção de profissional que detenha notória especialização, a tudo se seguindo a comuni-cação da autoridade superior que, em ratificando o processo, dará publicidade,permitindo a eficácia desejada, máxime a própria contratação, obviamente observan-do-se o § 2º do artigo 54 e o inciso XI do artigo 55, ambos da lei de regência. Comodissemos, para nós, a comunicação e ratificação têm o efeito da homologação eadjudicação previstas no inciso VI do artigo 43 da mesma lei. Não há possibilidade decontratação antes da adjudicação, igualmente não se podendo falar em contrataçãosem a ratificação e publicação, no caso de inexigibilidade de licitação.

É necessário enfatizar a relevância da singularidade do objeto, sobretudo por-que em se tratando de serviços de advocacia, nem sempre ela estará presente, sen-do comumente desprezada. Em parecer de Mirto Fraga, datado de 26.06.95, publica-do na RDA 201/283, a Consultoria da União assim se posicionou: “Empresa Estatal -Advogado – Licitação. Admissível a contratação de serviços particulares de advoca-cia com inexigibilidade de licitação quando o serviço for de natureza singular. Se oserviço não for singular, a contratação deve ser precedida de pré-qualificação comadjudicação equalitária entre os advogados pré-selecionados.”

Nem poderia ser outro o entendimento, pois, se ausente a singularidade doobjeto, vedada está a contratação direta, sem licitação. Também Geraldo Ataliba teve

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oportunidade de responder consulta sobre o tema específico, exarando parecer quefoi juntado aos autos da Apelação Cível nº 165.432.5/4-00, da Colenda 3ª Câmara deDireito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual sãocitadas lições de eméritos juristas sobre a possibilidade de contratação de advoga-dos sob o pálio da inexigibilidade de licitação. Citou-se Maria Sylvia Zanella Di Pietro,Celso Antonio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles e Lúcia Valle Figueiredo, ex-pondo seu pensamento: “Assim, consultoria jurídica e auditorias contábeis poderiam,em princípio, ser contratadas sem licitação, caso tratassem de serviços singulares,desempenhados por profissionais de notória especialização. O mesmo não se podedizer, todavia, de consultorias jurídicas e auditorias contábeis de caráter permanente.De fato, na contratação de um jurista, ou de um auditor contábil para tais serviços,ainda que profissionais de notória especialização, descaracterizado estaria o pressu-posto do serviço singular (único). Em uma consultoria jurídica permanente, o serviçoa ser realizado conteria também serviços não singulares, serviços esses comuns,rotineiros. Serviços permanentes excluem a conotação de serviço singular. Exige-se, pois, licitação para a contratação de tais serviços.”

Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dentre outros julgados, pode-secitar a AC 156.748.5/5-00, julgado na 3ª Câmara de Direito Público, relatado peloDesembargador Laerte Sampaio. Por maioria de votos foi reconhecida a ilegalidadeda contratação de serviços advocatícios com base na inexigibilidade de licitação. Emseguida, tanto o Ministério Público quanto os requeridos na ação civil pública, impug-naram o acórdão pela via dos embargos infringentes, ambos rejeitados.

A questão da singularidade do objeto (além da notória especialização) comoautorizador da inexigibilidade de licitação, foi apreciada na Apelação Cível APC 38.192/95-DF, julgado em 13/05/96, relatado pela Desembargadora Lia Fanuck, da 5ª Tur-ma Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, publicado no Diário daJustiça da União de 07 de agosto de 1996, página 13.118, Seção 3, cuja ementaestá assim redigida:

“Ação popular – Contrato advocatício celebrado sem prévia licitação. Ausênciade pressupostos autorizadores da sua dispensa ou inexigibilidade – Natureza dosserviços contratados não marcada pela singularidade ou notória especialização. De-mandas trabalhistas rotineiras – Relativas a reposições salariais decorrentes dossucessivos planos econômicos – Temática de domínio comum. Configurada lesãoaos cofres públicos e à moralidade administrativa. Recurso provido – Condenaçõesdos responsáveis e beneficiários do ato anulado ao pagamento das perdas e danos.”

O v.Acórdão afirma: “A atuação profissional requisitada não se revestia denatureza singular, nem considerados os serviços, em si, nem considerados osprestadores, de quem não se requeria notória especialização, visto tratar-se de de-mandas plúrimas, com temática rotineira, ou seja, cobrança de reposição salarial,em face das perdas sofridas pelos servidores públicos, a cada e sucessivo planoeconômico.”

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Nos parece que a questão foi bem examinada e apreendido o ponto fulcral, édizer, as defesas nas demandas judiciais para as quais foi contratado advogado, semlicitação, não se revestia da singularidade necessária. Também o Superior Tribunal deJustiça debateu o tema, no RMS 5.532/PR, relatado pelo Min. Peçanha Martins, publica-do no DJ de 23 de abril de 2001, p. 123, do qual se extrai: “por outro lado, não conven-cem os argumentos expendidos pelo recorrente quanto à singularidade dos serviçosprofissionais a serem executados, nem que não pudessem ser atendidos pelos inte-grantes do serviço jurídico da APPA.” Nesse caso, o Tribunal de Contas do Paranáimpugnou a contratação de advogado trabalhista por órgão público, para acompanharprocessos em curso no Tribunal Regional do Trabalho. O administrador público cujo atofoi impugnado, impetrou mandado de segurança junto ao Tribunal de Justiça do Paraná,tendo sido denegada a ordem. Recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e teve improvidoseu Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Desse aresto se extrai: “Sem qual-quer demérito para os ilustres advogados que militam na Justiça do Trabalho, não exi-ge o requisito da ‘singularidade’, capaz de justificar a dispensa da licitação, o acompa-nhamento de processos na segunda instância cujo avultado número denuncia disputascorriqueiras da relação de emprego. É certo que naquela Corte ocorrem casosintrincados a demandar um serviço mais aprimorado e por quem posso desenvolve-locom ‘singularidade’ não me parecendo, porém, que sejam na quantidade afirmada peloimpetrante.” Conquanto se note posição diversa da nossa em relação à singularidade,é certo que os serviços, para os quais contratado o advogado, não se revestiam dacaracterística autorizadora da inexigibilidade de licitação.

Na realidade, difícil sustentar que defesas rotineiras, em processos judiciaisou administrativos, possam se caracterizar como singulares, ainda que traduzamgrandes dificuldades para o profissional, pois não é esta (a dificuldade) que dá nota àsingularidade como já dissemos. Singular, para lembrarmos, é o que não se repete.

À evidência que a dificuldade da demanda pode indicar ser prudente acontratação de profissional mais qualificado. A Administração Pública, concluindo pornão dispor de profissionais do Direito à altura que se faz necessário, sem dúvidapode decidir pela contratação de profissional gabaritado, ao menos em princípio. Nãopode, todavia, deixar de promover a necessária licitação. O mesmo ocorre em rela-ção às chamadas consultorias, pelas quais determinado advogado, ou sociedadedeles, é contratado para se manifestar em relação aos mais variados temas jurídicos,presentes ou futuros. Óbvio, nos parece, que jamais se poderá detectar aí a singula-ridade do objeto, simplesmente porque não se sabe qual ou quais temas serão apre-ciados pelo consultor. Nesses casos, da mesma forma, não está vedada, em princí-pio, a contratação de profissionais gabaritados para fazer frente à demanda; proibidaestá, por imperativo constitucional e legal, a contratação direta, com base nainexigibilidade de licitação.

Por outro lado, a presença do requisito da singularidade do objeto não autori-za, por si só, a inexigibilidade de licitação na contratação. É mister, como se viu, anotória especialização do contratado, podendo ser chamado de requisito subjetivo,

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trazendo dificuldades de toda ordem, a começar pela resistência dos próprios profis-sionais advogados em se exporem às licitações. Essa dificuldade (pelo menos essa)não existe entre os engenheiros ou arquitetos, habituados a participarem de licita-ções públicas, expondo sua qualificação, seus projetos e trabalhos anteriores ao co-tejo da Administração. A notória especialização, como se viu, tem na lei de regência ocaminho a ser trilhado e dele não pode se desviar, sob pena de arbítrio não tolerado.Com efeito, o § 1º do Art. 25 da Lei nº 8.666/93 elenca uma série de requisitos, acomeçar pelo conceito do prestador do serviço, passando pelo histórico profissional,tudo devendo desaguar na inferência de ser aquele trabalho essencial e indiscutivel-mente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Bem verdade que orol justificador do conceito é meramente exemplificativo, contudo, suficiente para ex-cluir o reconhecimento da notória especialização de profissionais ou sociedade deadvogados que, efetivamente, não possam encerrar eventuais especulações sobre aessencialidade e indiscutibilidade da adequação mencionada pela norma. Importa queesse tipo de contratação deve, sempre, ser excepcional, como adverte Lúcia ValleFigueiredo: “Ao abordarmos o segundo problema, verificamos, de logo, que a notóriaespecialização deve servir, apenas, às contratações excepcionais, como exceção auma regra e, mais do que isto, como exceção a um princípio.”104

Pensamos que contratar profissional do Direito que não preencha os requisitosda notória especialização, como exige a lei, ou profissional que detenha essa qualida-de, mas que seja contratado para prestação de serviços cujo objeto não atende àexigência da singularidade, por certo estaria em desacordo não só com a lei de re-gência, como também a própria Constituição Federal, que determina a realização delicitação, além de obrigar à observância dos princípios da impessoalidade e da igual-dade. Também aqui, presente se mostra ao aplicador da lei concretizar o critérioproduzido por Celso Antônio, permitindo aquilatar, no caso concreto, se o elementotomado como fator de desigualação daquele profissional vis-à-vis os demais advoga-dos ou sociedade deles, guarda uma correlação lógica com o tratamento jurídicodiferenciado. Por fim, deve ser verificado se o tratamento diferenciado está em con-sonância com os interesses absorvidos no sistema constitucional. Merece ainda serrelembrada a lição de Canotilho mencionada no item 3.2.2: “existe uma violação arbi-trária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) funda-mento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídicasem um fundamento razoável.” Se mostra prudente realizar a análise em cada casoconcreto, de modo a aferir se há ou não ofensa ao princípio da igualdade.

Em vista da dificuldade de caracterização, tanto da singularidade do objeto quantoda notória especialização do prestador, a lei tratou de indicar ao administrador públicoa providência que atende aos ditames constitucionais, sendo ainda a mais razoávelsob o aspecto prático. Trata-se da realização da licitação na modalidade de concur-so, na forma do § 4º e inc. IV do Art. 22 da Lei nº 8.666/93, indicada no § 1º do Art. 13.

104 In RDP nºs. 43-44, p. 110.

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Com efeito, estabelecendo-se a remuneração a priori, venceria aquele que oferecer amelhor proposta de trabalho técnico, bem assim a melhor qualificação profissional.No conjunto oferecido, a título meramente exemplificativo, poderiam figurar, dentreoutros, a titulação do profissional (ou profissionais componentes da sociedade deadvogados), inclusive pós-graduação, trabalhos acadêmicos, publicações, anterio-res trabalhos técnicos correlatos, experiência anterior na área, permitindo ao admi-nistrador escolher aquele que melhor se amolda às necessidades. Essa solução tra-ria, ainda, o benefício de não expor os advogados à possibilidade de aviltamento dehonorários, tão combatida pela Ordem dos Advogados do Brasil, embora deva serressaltado, data venia, que o Art. 41 do Código de Ética e Disciplina da OAB de modoalgum, impede a participação desses profissionais em licitação. De resto, não pode-ria mesmo uma regulamentação interna da OAB, que sequer lei é, sobrepor-se àConstituição Federal determinadora da realização de licitação.

Não obstante tudo isso, não se pode deixar de enfatizar que a contratação dire-ta de advogados, baseada na inexigibilidade de licitação, em tese será possível, des-de que presentes – todas – as exigências da lei de regência. Tudo verificado e justifi-cado (sempre a priori, como determina o Art. 26), deve o administrador comunicar aautoridade superior em três dias, para ratificação e publicação na imprensa oficial,como condição para eficácia dos atos, é dizer, possibilidade de continuidade do pro-cesso, se observando, ademais, as exigências contidas nos incisos I a III do parágra-fo único do artigo 26 da Lei nº 8.666/93. Como se vê, a inexigibilidade de licitação nacontração de advogados pelo Poder Público é, certamente, exceção à regra, exigindoespecial cuidado por parte do administrador.

7. A desobediência à Lei de Licitações

Depois de fixados os conceitos de trabalho técnico especializado, singularida-de do objeto e notória especialização, partiremos para um tópico que tem geradotanta controvérsia quanto os primeiros. Trata-se da desobediência aos comandoslegais da Lei de Licitações relativas à contratação direta, caso não estejam presentesos requisitos legais. Poderíamos falar da atuação das Cortes de Contas, do MinistérioPúblico e também do cidadão, estes últimos levando a questão à apreciação do Po-der Judiciário, quer pela ação civil pública por ato de improbidade administrativa, querpela ação popular. Todavia, focalizaremos apenas naquilo que disciplinado na Lei nº8.666/93, coerente com a proposta inicial do trabalho.

Em primeiro lugar, está a regra fixada no artigo 49 e seus parágrafos da Lei deLicitação. Diz a lei que a autoridade competente para a aprovação do procedimento,de ofício ou por provocação de terceiros, deverá anulá-lo por ilegalidade, medianteparecer escrito e fundamentado. Por outro lado, o parágrafo 3º assegura o contraditó-rio e a ampla defesa, dizendo ainda o parágrafo seguinte que o estabelecido nesteartigo (o 49) e seus parágrafos, se aplica aos atos do procedimento de dispensa e de

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inexigibilidade de licitação. Todas essas regras devem ser interpretadas em conjuntocom o artigo 26 caput, in fine, pois ali está determinada a comunicação à autoridadesuperior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, em cinco dias, tudo comocondição para eficácia dos atos. Ora, se a ratificação é exigida como condição deeficácia dos atos (dispensa ou inexigibilidade de licitação), óbvio, nos parece, que ocontrato não poderá ser firmado antes da ratificação, não se exigindo nesse momento,o contraditório e a ampla defesa, pois não há contrato administrativo firmado, comoafirmamos em tópico anterior. Todavia, se firmado o contrato, permanece aobrigatoriedade de anulação, no caso de constatada ilegalidade, respeitando o contra-ditório e ampla defesa, como quer a lei no parágrafo 3º do artigo 49 da Lei nº 8.666/93.

De toda forma, importa é que a autoridade administrativa tem o dever de anulara licitação, de ofício ou por provocação, não só em razão do determinado na lei, mastambém porque as Súmulas 346105 e 473,106 ambas do Supremo Tribunal Federal,assim determinam. Além disso, a própria Constituição Federal impõe essa providên-cia, na medida em que prevê a aplicação do princípio da legalidade a toda Administra-ção Pública, direta e indireta, e dos três Poderes. Também vimos que a Lei nº 8.666/93, norma de ordem pública que é, exige integral e obrigatória aplicação, não podendoa agente se desviar de seus comandos, sob pena de nulidade do ato praticado emdesacordo com a regra prescrita.

De elevada importância para o tema, é o disposto no parágrafo 1º do artigo 49da Lei de Licitações, prescrevendo que a anulação do procedimento licitatório pormotivo de ilegalidade não gera obrigação de indenizar, mas, de toda forma, ressalvan-do o disposto no parágrafo único do artigo 59 da mesma lei, cabendo ressaltar que nocaso de anulação da licitação, induzida estará a do contrato administrativo, comoquer o parágrafo 2º do mesmo artigo. Bielsa vai além: “La falta de licitación, si ella esobligatoria, determina la nulidad del acto, pues la licitación es esencial. En tal caso -es decir, de omisión – la Administración pública no tiene que demandar la anulaciónde contratos realizados sin licitación previa, puesto que se parte del supuesto de queno hay contrato.”107

Além de tudo isso, como se o legislador necessitasse enfatizar o que já erasuficientemente claro, dispôs no artigo 59 da lei de regência que a declaração denulidade do contrato administrativo, opera retroativamente, impedindo os efeitos jurí-dicos que ele, de ordinário, deveria produzir, além de desconstituir os já praticados.Com isso, parece-nos que em nenhuma hipótese poderá ser realizado qualquer pa-gamento por serviços prestados, caso a licitação tenha sido anulada por ilegalidade,ou ainda, caso o contrato venha ser declarado nulo. Tal disposição, nas hipóteses de

105 STF – Súmula 346: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.106 STF – Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornamilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação judicial.107 Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 171.

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contratação direta de serviços de advogados, com base na inexigibilidade de licita-ção, é mera ênfase ao estabelecido no artigo 49 da Lei nº 8.666/93. Todavia, caso osserviços tenham sido prestados e não seja imputada co-responsabilidade pela ilega-lidade, deverá a Administração indenizar o contratado, promovendo-se a responsabi-lidade de quem lhe deu causa. Tal hipótese, contudo, se nos afigura de difícil ocorrên-cia, na medida em que tanto a Lei de Ação Popular108 quanto a Lei do EnriquecimentoIlícito109 prevêem que o beneficiário ou aqueles que concorram para a prática do atoilegal, serão responsabilizados. Dessa maneira, por força da lei, será o contratadoresponsabilizado, ao menos como beneficiário, impossibilitando qualquer pagamentopelos serviços prestados, obviamente, na hipótese da contratação direta não ter obe-decido aos requisitos da lei.

Cabe ressaltar que a jurisprudência corrobora esse entendimento. Do Supre-mo Tribunal Federal, podemos citar o RE 160381-3 e seus embargos de declaração,tratando-se de caso no qual houve contratação direta de empresa de consultoria,inexigindo-se a licitação. Alegou-se que não haveria lesividade porquanto os serviçosforam efetivamente prestados, mas o v.Acórdão aponta: “Assim, os Embargantes,data venia, postulam ‘a superação da contradição existente neste acórdão embargadopara declarar a inexistência de prova da lesividade, ou então que a lesividade poderáocorrer futuramente’(folha 2.195). Conforme depreende-se da ementa do acórdãoembargado, na maioria das vezes a lesividade ao erário público decorre da própriailegalidade do ato praticado. Assim o é quando dá-se a contratação, por município, deserviços que poderiam ser prestados por servidores sem a feitura de licitação e semque o ato administrativo tenha sido procedido da necessária justificativa. Embora aTurma não tenha conhecido do extraordinário, deixou assentada a referida tese, ouseja, a que admite a lesividade tendo em conta a própria ilegalidade...”

Outro julgado aborda o tema, tratando-se do CRLC nº 70003832169-2002/Cível doTribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. É desse aresto: “Não se pode, portanto, comotem sido sustentado em alguns processos, dizer que não havendo prejuízo algum aoerário municipal, não há o que indenizar, e isso descaracteriza a própria ilicitude. Primeiro,se à exclusão da improbidade basta a inexistência de prejuízo ao erário, consagradaestará a fórmula de como fazer para as contratações diretas, pondo-se de lado a Lei e aConstituição, transformando as obras públicas numa ‘ação entre amigos’. Dizer que ainexistência de prejuízo ao erário descaracteriza a improbidade, é tese que serve àquelesque na teoria combatem a impunidade, mas só para fins de prosa, uma vez que naprática vivem abraçados a ela, com a farsa de que corrupto é sempre o outro.” Tratava-sede caso de contratação direta com dispensa de licitação, ainda, sem observância doprocedimento previsto no artigo 26 e seu parágrafo único da Lei nº 8.666/93.

108 Lei nº 4.717/65 - Art. 6º. A ação será proposta contra as pessoas (...), e contra os beneficiários diretos domesmo.109 Lei nº 8.429/92 – Art. 3º - As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendoagente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer formadireta ou indireta.

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Por fim, mas não menos importante, é a sanção penal expressa para o caso dedispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais, ou ainda, a inobser-vância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade, atingindo aindaaquele que, comprovadamente, tenha concorrido para a consumação da ilegalidadeou tenha se beneficiado, conforme reza o artigo 89 e seu parágrafo único da Lei nº8.666/93, prevendo penas de detenção, de 3 a 5 anos e multa, muito graves, semdúvida, mas que demonstram o cuidado do legislador no tratamento da dispensa einexigibilidade de licitação.

Essas disposições não afastam as sanções próprias previstas na Lei nº 8.429/92, igualmente graves, mas de natureza civil, por tudo se podendo afirmar que arealização de licitação é a regra, sendo a dispensa e a inexigibilidade absoluta exce-ção, devendo assim ser focalizada pelo prudente administrador público.

8. Improbidade administrativa: definição, natureza,caracterização, elemento subjetivo, dano e legitimidade.

Conforme o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,110 improbidadesignifica “falta de probidade; mau caráter; maldade”. Ensina Fazzio Júnior111 que“Improbidade é palavra derivada do latim improbitate, significando falta de probidade,desonestidade e desonradez”. Para a definição de improbidade administrativa a idéiacentral não é alterada.

Assim a definem Pazzaglini, Rosa e Fazzio Júnior112: “Numa primeira aproxi-mação, improbidade administrativa é o designativo técnico para a chamada corrupçãoadministrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administra-ção Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito,Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniaisindevida às expensas do erário, pelo exercício nocivo de funções e empregos públi-co, pelo “tráfico de influência” nas esferas da Administração Pública e pelofavorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante aconcessão de obséquios e privilégios ilícitos”.

Fazzio Júnior113, agora em obra individual, com propriedade assevera que: “Aimprobidade administrativa significa o exercício de função, cargo, mandato ou em-prego público sem observância dos princípios administrativos da legalidade, daimpessoalidade, da publicidade, da moralidade e da eficiência. É o desvirtuamento doexercício público, que tem como fonte a má-fé”. Célebre é a definição de José Afonso

110 Lima. H, Barroso, G. Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.111 Fazzio Júnior. W. Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeitos, p. 50.112 Pazzaglini Filho, M.; Rosa, M.R.E.; Fazzio Júnior, W. Improbidade Administrativa, p. 39.113 Fazzio Júnior, W. op. cit. p. 50.

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da Silva114 para quem a improbidade administrativa é “...uma moralidade administrati-va qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo danoao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem”.

Figueiredo115 também vê na improbidade uma forma de imoralidade administrati-va: “Entendemos que a probidade é espécie do gênero “moralidade administrativa” aque alude, v.g., o art. 37, caput, e seu § 4º, da CF. O núcleo da improbidade está asso-ciado (deflui) ao princípio maior da moralidade administrativa; verdadeiro norte à Admi-nistração em todas as suas manifestações. Se correta estiver a análise, podemosassociar, como faz a moderna doutrina do direito administrativo, os atos atentatórios àprobidade como também atentatórios à moralidade administrativa. Não estamos a afir-mar que ambos os conceitos são idênticos. Ao contrário, a probidade é peculiar e espe-cífico aspecto da moralidade administrativa. Assim, ofensas aos princípios da lealdade,da boa-fé, da boa administração, estão igualmente contidas na lei, ao lado das situa-ções lá descritas como ensejadoras de punição. É dizer, a lei, quando alude à “probida-de”, determina ao intérprete sacar seu conteúdo da Constituição e da lei”.

Nesta compreensão não pode existir dúvida: a probidade é corolário do princí-pio da moralidade administrativa, tendo sido a Constituição Federal de 1988 a primei-ra a diretamente referir-se à improbidade administrativa, e o fez nos seguintes ter-mos, no § 4º de seu art. 37, in verbis: (...) § 4º. Os atos de improbidade administrativaimportarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, aindisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previs-tas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Resta nítida do dispositivo a natureza jurídica que pretendeu o legisladorfundante outorgar aos atos de improbidade administrativa, sendo intuitiva, tendo emvista a locução “sem prejuízo da ação penal cabível”, ao menos uma conclusão: nãoapresenta natureza penal. O regramento constitucional pune os atos de improbidadecom sanções civis (indisponibilidade de bens e reparação ao erário), políticas (perdada função e suspensão dos direitos políticos), sendo que, sua regulamentaçãoinfraconstitucional, prevê também sanções administrativas (Lei 8.429/92), de ondese retira que a natureza jurídica da responsabilidade pelos atos de improbidade admi-nistrativa não é puramente civil. Parece-nos possível afirmar a natureza jurídica daresponsabilidade por ato de improbidade administrativa como sendo civil político-ad-ministrativa. Sobre o tema vale destacar a lição de Fazzio Júnior116: “Primeiro, faz-senecessário trazer à luz que a Constituição Federal, art. 37, § 4º, afasta, expressa ecompletamente, qualquer conotação penal que se pretenda atribuir aos atos deimprobidade administrativa. Sem prejuízo da ação penal cabível, essa é a locuçãofinal daquele mandamento maior, demonstrando, meridianamente, que as cominações

114 Silva. J..A. Curso de direito constitucional positivo, p. 646.115 Figueiredo. M. Probidade Administrativa, p. 23.116 Fazzio Júnior. W. op. cit. p. 46.

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nele declaradas não são substitutivas do conjunto de sanções penais fixado na legis-lação para os crimes funcionais e contra a administração pública. Concorrem comeles, sem substituí-los, nem excluí-los. Ou seja, o dispositivo remete à legislaçãomenor matéria não penal. Daí por que as sanções que a LIA, como norma regulado-ra, estabelece são desprovidas de substrato criminal. As condutas descritas na LIApodem, também, configurar ilícitos penais, mas estes serão apurados na ação penalcabível, com sanções peculiares”.

A improbidade administrativa, assim, conduta humana comissiva ou omissivaque produz efeitos jurídicos involuntários (fato jurídico), foi concebida como uma ilicitudeque acarreta sanções civis, políticas e administrativas, independentemente da res-ponsabilidade penal, tratando-se de ilícito plurisubjetivo, por ofender a vários bensjurídicos tutelados pelo Direito.

Em obediência ao comando constitucional, foi a improbidade administrativa re-gulamentada pela Lei 8.429/92. Pela definição dessa lei é possível identificar trêscategorias nas quais agrupados os atos considerados como sendo de improbidadeadministrativa: os que importam enriquecimento ilícito ao agente público, indepen-dentemente de eventual lesão ao erário (art. 9ª); os efetivamente lesivos ao erário(art. 10); e aqueles que, mesmo não acarretando enriquecimento ilícito ou lesão aoerário, atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Para cadauma dessas situações, a penalidade respectiva (art. 12, incs. I, II e III).

Importa, neste momento, destacar a figura do ato de improbidade administrati-va que redunda em lesão ao erário colocada no inciso VIII do art. 10 da lei de regência,in verbis: Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, qual-quer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apro-priação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referi-das no art. 1º desta Lei, e notadamente: ...VIII – frustrar a licitude de processo licitatórioou dispensá-lo indevidamente.

A previsão abrange duas modalidades de atos de improbidade com lesão ao erá-rio relacionadas a procedimentos licitatórios: frustrar a licitude do procedimento; oudispensa indevida de licitação. Frustrar a licitude de processo licitatório é frauda-lo.“Fraudar licitação é distrair o procedimento licitatório. O ato fraudulento é o que intentaburlar a lei, frustrando sua execução. Consiste em subtrair ao domínio da lei o que lhedeveria estar sujeito.117 Dispensar indevidamente licitação, “em qualquer de suas mo-dalidades, é extrapolar os casos legais de dispensa, contratando diretamente obra ouserviço, quando a lei exige a competição em busca do melhor negócio. É não promovê-la, sem justa causa legal que derrogue a regrar geral de sua obrigatoriedade”.118

117 Ibidem, p. 132.118 Ibidem, mesma página.

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O elemento subjetivo, como previsto na caput do dispositivo, tanto pode ser odolo quanto a culpa. Assim, responde por improbidade administrativa, desde aqueleque, intencionalmente, movido pela má-fé, com a direta intenção de ensejar perdapatrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação, indevidamente dis-pensa licitação, até aquele que o faz por negligência ou imprudência.

Não se esqueceu, pois, do agente que se entrega ao descaso, olvidando dosprincípios da moralidade, da eficiência, e da boa administração, e que, por desatenção,por fala de zelo, de dedicação, não prevê o que lhe era previsível e promove dano aoerário com a não observância do dever de licitar. Deixou claro, portanto, o legislador,que os elementos subjetivos dolo e culpa são importantes e juridicamente relevantes,tendo-se buscado alcançar tanto o administrador mal intencionado quanto o desidioso.Contido, se para a caracterização do ato de improbidade dolo e culpa se encontramno mesmo patamar, poderá existir tratamento diferenciado, no entanto, quando dafixação e gradação das penas.

Para a figura da dispensa indevida de licitação, por outro lado, o dano ao erário,indicado no caput do art. 10, é presumido. Ocorre que, a ausência de licitação, o fatode se ter deixado de comparar preços, de promover o embate entre fornecedores,por si só já será considerado danoso, até porque, com a ilegalidade, jamais se saberáqual efetivamente teria sido o melhor negócio para a administração pública. Além domais, necessário destacar, que embora as figuras do art. 10 da Lei de Improbidade serefiram a perda patrimonial, temos que compreender que aí também se encontrainserida a questão da moralidade administrativa. A moralidade integra o “patrimôniopúblico”, e a sua ofensa o afeta, mesmo em situação onde inviável a mensuraçãoeconômica da lesão. É também o pensar de Marcelo Figueiredo,119 para quem:”Odispositivo alude a lesão que enseje perda patrimonial. Nele, por certo, está engloba-da a noção de lesão moral, porque no conceito de perda patrimonial, cremos, estáenglobada a idéia de prejuízo moral, dano moral. Ademais, a lesão ao patrimôniomoral sempre será dimensionada sob o aspecto econômico. Em suma, não existe“perda patrimonial” apenas sob a ótica econômica, ainda que recomposta a partirdesse critério.” Por fim, sobre o dano, não se pode deixar de mencionar o que dispõeso art. 21 da Lei nº 8.429/92, in verbis: A aplicação das sanções previstas nesta Leiindepende: I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público (...).

A Lei 8.429/92, regulamentadora da disposição constitucional instituidora noordenamento da improbidade administrativa, indicou, também, os legitimados parasua persecução. O fez em seu art. 17, in verbis: A ação principal, que terá o ritoordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada,dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. As pessoas jurídicas interessa-das, por sua vez, por certo, são aquelas que podem figurar como sujeitos passivos,

119 Figueiredo. M. Probidade Administrativa., p. 81.

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como vítimas dos atos de improbidade, que são aquelas elencadas no art. 1º da Leide Improbidade: União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios; autarquias,empresas públicas, sociedades de economia mista; fundações instituídas pelo Po-der público; empresas incorporadas ao patrimônio público; empresas com participa-ção do erário; empresas subvencionadas ou incentivadas pelos cofres públicos. As-sim, a par do Ministério Público, as pessoas jurídicas lesadas pela prática de ato deimprobidade administrativa também são legitimadas para a propositura da ação paraa imposição das penas respectivas.

A legitimidade do Ministério Público, por seu turno, independentemente da ex-pressa previsão da lei mencionada já que anteriormente a ela, já havia manifestorespaldo constitucional. Assim os termos dos incisos II e III do art. 129 da CF: Sãofunções institucionais do Ministério Público: ...II – zelar pelo efetivo respeito dos Po-deres Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nestaConstituição, promovendo as medidas necessárias para sua garantia; III – promovero inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social,do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 o campo de atuação do Minis-tério Público foi alargado, com a inclusão sob sua tutela de qualquer interesse difusoou coletivo. Mais recentemente, o Código de Defesa do Consumidor, em seus artigos81 a 110, além de disciplinar os conceitos de interesses difusos e coletivos, incluiu osinteresses individuais homogêneos no rol daqueles protegidos pela ação civil públicae, acrescentando um inciso ao art. 1º da Lei 7.347/85, colocou sob o manto do institu-to a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Como se percebe, por-tanto, é o Ministério Público legitimado para a propositura de medidas para a tutela detodos os interesses transindividuais, divisíveis ou não, previstos em lei. E, como nãopoderia deixar de ser, estratificou o E. Superior Tribunal de Justiça entendimento nes-se mesmo sentido: “Com a Constituição de 1988, o Ministério Público teve distendidoseu campo de atuação – art. 129, III – cabendo-lhe a promoção do inquérito civil e daação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente ede outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei7.347/85. (REsp. 137.101-MA, DJU, 14-9-98, p. 44, rel. Min. Adhemar Maciel, j. 4-6-98, 2ª Turma STJ). Ao Ministério Público é reconhecida legitimação ativa para, por viada ação civil pública, proteger danos cometidos contra o patrimônio público por meiode ações ilícitas dos agentes públicos. Interpretação do art. 1º, IV, da Lei n. 7.347/85,em combinação com o art. 25, IV, b, da Lei n. 8.625/93 e art. 129, III da CF. (REsp166.848-MG, rel. Min. José Delgado, DJU, 3-8-98, p. 133, j. 12-5-98, 1ª T. STJ).

Possível neste momento, pois, afirmar, que a improbidade administrativa, ilicitudede natureza não penal, pode ser caracteriza pela indevida dispensa de procedimentolicitatório, inclusive para contratação direta de advogado, que tenha se dado por doloou culpa, independentemente de comprovação de efetiva lesão ao erário, cabendosua persecução à pessoa jurídica pública interessada ou ao Ministério Público.

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9. Conclusão

Ao final das considerações a que nos propusemos, sem nenhuma pretensãode esgotar o tema, possível elencar alguns pontos julgados relevantes, a começarpelos princípios e sua relevância na pirâmide normativa. São as idéias centrais de umsistema, dando-lhe sentido lógico, harmonioso, racional e permitindo a compreensãode seu particular modo de organização. Na esteira de Canotilho, pode-se falar emprincípios político-constitucionais, traduzindo-se nas fundamentais decisões políti-cas da nação, ou ainda, opções políticas nucleares, refletindo a ideologia inspiradorada Constituição. Fala-se, ainda, em princípios jurídico-constitucionais, possuindo ca-ráter geral e informador de toda a ordem jurídica pátria, decorrendo dos princípiospolítico-constitucionais.

Dentre os princípios político-constitucionais de nossa Lei Maior está o republi-cano. A República é tipo de governo fundado na igualdade formal das pessoas, emque os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo,transitório e com responsabilidade. República vem de res publica ou coisa do povo:de todos e igualmente para todos. Dela decorre a isonomia, segundo a qual todos sãoiguais perante a lei e na lei, sem distinção de qualquer natureza. Esse princípio não selimita ao caput do artigo 5º, estando repetida em outras disposições da ConstituiçãoFederal, a exemplo do Art. 150, inciso II, além do artigo 37, ao se referir aos princípiosda legalidade, impessoalidade e licitação, dentre outros.

As normas de ordem públicas impõem à Administração Pública o dever de rigoro-sa obediência às suas prescrições. Tais normas se aplicam aos processos de forma-ção da vontade do Estado, não podendo o agente impor a sua vontade, senão a da lei,em estrita obediência, pressupondo-se que o legislador, por ocasião da elaboração dalei, já previu a melhor forma de atuação e a adotou. A Lei nº 8.666/93, de regência daslicitações e contratos administrativos, é norma de ordem pública, tanto pelo conteúdode suas disposições, quanto por sua própria letra, conforme dispõe o artigo 54.

O princípio da licitação é cogente, devendo o certame ser realizado sempre,como determina a Constituição Federal e a própria lei de regência. Todavia, comoprevê a Lei Maior, há casos em que a licitação pode/deve ser dispensada e outros emque ela é inviável, se tratando das hipóteses de inexigibilidade de licitação, previstosnos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93.

Os serviços de advocacia são considerados pela lei como “serviços técnicosprofissionais especializados”, constituindo-se este no primeiro requisito para acontratação direta, com base na inexigibilidade de licitação. Segundo a lei, tais servi-ços envolvem a aplicação de rigorosa metodologia e, via de conseqüência, podemser chamados de técnicos; possuem identidade própria que os torna distintos emrelação a outras espécies de atuação do ser humano, exigindo habilitação específica

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para a sua prestação, advindo daí o qualificativo de profissional; além disso, exigemcapacitação para o exercício com habilidades não disponíveis para a média das pes-soas, exigindo o domínio de uma área restrita do conhecimento, com aprofundamentoque ultrapassa o conhecimento mediano. A presunção legal implica reconhecer quehá uma complexidade neles residentes, isso ocorrendo com qualquer serviço de ad-vocacia, independentemente do caso concreto.

No que diz respeito à singularidade do objeto, é possível afirmar que se trata deum dos requisitos da inexigibilidade de licitação. Singularidade quer dizer particular ouindividual, algo raro ou extraordinário. Traduz a idéia daquilo que se distingue ou seindividualiza de per si, é o especial ou o particular a certa classe ou a certas coisas. Asingularidade de que trata a lei, somente pode ser vista por seu ângulo intrínseco, oupor outras palavras, pelas características e qualidades que lhe são próprias (do objeto),de imediato afastando as qualidades pessoais do prestador de serviço. Na verdade,singular é o objeto, jamais o prestador do serviço. As qualidades pessoais – tão somen-te – são consideradas pelo legislador, apenas no caso de contratação de profissionaisde qualquer setor artístico, dos quais se exige apenas que sejam consagrados pelacrítica especializada ou pelo público, como dispõe o inciso III do artigo 25. Já o inciso IIdo mesmo artigo 25 declara ser inexigível a licitação para a contratação dos serviçostécnicos enumerados no artigo 13 da Lei de Licitações, mas exige que o objeto tenhanatureza singular, pouco importando, até esse momento, quem será o prestador doserviço. Assim, enfatizamos, não há se falar em “singularidade do prestador do servi-ço”, senão na singularidade do objeto. Nesse sentido, a singularidade constitui-se emrequisito objetivo da inexigibilidade de licitação, ao lado dos serviços técnicos enumera-dos no artigo 13, nos quais se subsumem os serviços advocatícios.

A notória especialização, por seu turno, é o requisito subjetivo da inexigibilidadede licitação, é dizer, se liga ao prestador do serviço. É prevista como exigência no incisoII do artigo 25 da Lei de Licitações, trazendo aquilo que deve ser considerado comonotória especialização, em rol exemplificativo, no parágrafo 1º do mesmo artigo. Espe-cialista é a pessoa que se dedica a um ramo de sua profissão; ou pessoa que temhabilidade ou prática especial em determinada coisa, ou ainda, conhecedor ou perito.Notório, por outro lado, é o de conhecimento de todos, o público ou o manifesto. Emrazão de notório ser tomado como aquilo que é do conhecimento público ou de todos,traduz o que se tem como certo e verdadeiro, prescindindo de ser provado. A lei proces-sual também trata do fato notório, eximindo as partes do dever de provar. Na Lei deLicitações, a notória especialização encontra um limite à conclusão do aplicador danorma, na medida em que relaciona o conceito detido pelo profissional ou empresa, àinferência de que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plenasatisfação do objeto do contrato. Com isso, o fato do profissional possuir um ótimoconceito no campo de sua especialidade, por si só, não implica dizer que possua notó-ria especialização de que fala a lei, pois essa é apenas a primeira parte da exigêncialegal, devendo isso resultar na essencialidade e indiscutibilidade referidas.

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Cumpre ressaltar que ao teor do diploma legal de regência, não se pode falarem reconhecimento da notória especialização, em função da probabilidade de su-cesso na realização do trabalho ou, muito menos, confiança do agente contratadorno contratado. A notória especialização é requisito subjetivo que se coloca a priori,como essencial para a satisfação do objeto contratado, de modo que nenhuma dúvi-da deva pairar quanto à capacidade do profissional levar a bom termo a incumbência.A especialização mencionada na lei diz respeito à especialidade profissional, obser-vada nas Ciências Médicas, nas Jurídicas e nas Engenharias, a título exemplificativo.Também a lei processual trata da especialidade do perito na matéria sobre a qualopinará, tudo comprovado por certidão ou documento hábil.

Enfatizando o caráter excepcional da dispensa e da inexigibilidade de licitação, olegislador determinou providências administrativas próprias, como a obrigatoriedade dacomunicação à autoridade superior, ratificação e publicação na imprensa oficial, comocondição de eficácia dos atos anteriores, a exemplo do reexame necessário das “sen-tenças contra a Fazenda Pública”. Assim, se esta depende de reexame para ter eficá-cia, mais ainda se exige da decisão administrativa que inexigiu a licitação na contrataçãode serviços de advocacia, parecendo um contra-senso impor mais rigor ao processojudicial que ao administrativo. Depois da ratificação e publicação – não antes – poder-se-ia contratar, com cláusula de vinculação ao termo que inexigiu a licitação.

Na realidade, a conclusão mais importante é que a contratação direta de servi-ços advocatícios, é dizer, inexigindo-se a licitação, é possível, ao menos em tese,desde que o caso concreto assim o permita. Para tanto, mister a verificação da pre-sença da singularidade do objeto e a notória especialização do escolhido, sempre deacordo com as graves exigências da Lei de Licitações, por tudo mostrando que aregra é a realização de certame, sendo absoluta exceção a dispensa ou inexigibilidadeda licitação. No caso de contratação de serviços de advocacia, conforme recomendaa Lei nº 8.666/93, deve ser realizada licitação na modalidade de concurso, com avantagem de não causar o aviltamento de honorários combatido pela Ordem dosAdvogados do Brasil.

Por fim, no que diz respeito às conseqüências do desatendimento das prescri-ções específicas da Lei nº 8.666/93, afirma-se que a Administração Pública tem odever de anular o contrato e os atos anteriores, operando-se retroativamente de modoa impedir os efeitos jurídicos que ele, de ordinário, deveria produzir, desconstituindoos já produzidos, inclusive o pagamento do contratado, podendo haver indenizaçãopelos serviços até então prestados, se não existir culpa deste. A previsão de figurapenal específica para a indevida dispensa ou inexigibilidade de licitação, com penasgraves, inclusive, associada ao disposto na Lei nº 8.429/92 sobre o assunto, uma vezmais ressalta o caráter de exceção da dispensa e da inexigibilidade de licitação, po-dendo ser utilizados, mas sempre dentro dos estreitos limites legais. Tratando-se deato de improbidade administrativa o Ministério Público é órgão constitucional e legal-mente legitimado para buscar em juízo o reconhecimento da prática ímproba, com

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condenação dos responsáveis nos termos da lei de regência. O Parquet deve darespecial atenção e atuar nesses casos, impedindo o locupletamento de alguns àscustas do combalido erário público.

Eduardo Martines Júnior,

promotor de Justiça designado na 4ª Procuradoria de Justiça do Ministé-rio Público do Estado de São Paulo,

bacharel em Ciências Econômicas e em Ciências Jurídicas,mestre e doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP,

conselheiro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo,professor de Direito Constitucional e Fundamentos do Direito Público na

PUC/SP e da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.

Orlando Bastos Filho,

15º promotor de Justiça de Sorocaba/SP,curador dos Direitos Constitucionais do Cidadão e dos Consumidores,

pós-graduado em Direito Constitucional pelo IBDC/UNISO,mestrando em Direito do Estado pela PUC/SP,

professor de Direito Constitucional na UNIP Sorocaba.

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RRRRROOOOOTEIRTEIRTEIRTEIRTEIRO PO PO PO PO PARAARAARAARAARA O COMB O COMB O COMB O COMB O COMBAAAAATETETETETEÀ LAÀ LAÀ LAÀ LAÀ LAVVVVVAAAAAGEMGEMGEMGEMGEM

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Arthur Pinto Lemos Júnior,

promotor de Justiça, designado para o Gaeco

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ROTEIRO PARA INVESTIGAÇÃOCRIMINAL NO CRIME

DE LAVAGEM DE DINHEIRO

“O comércio ilícito rompeu as fronteiras e invadiunossas vidas. Nunca mais saberemos com certezaa quem nossa compra beneficia, o que nossosinvestimentos apóiam, que conexões materiais oufinanceiras podem ligar nosso próprio trabalho econsumo a objetivos e práticas que abominamos”.(Moisés Naím)

Durante as reuniões do Grupo de Trabalho sobre Lavagem de Dinheiro, ocorridasno âmbito de GNCOC – Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas,surgiu a necessidade de se estabelecer um roteiro orientador para a investigaçãocriminal em torno do fenômeno da lavagem ou ocultação de bens, direito e valores.Nos referidos encontros consideramos como pífios os índices de investigações e deações penais noticiando tal fenomenologia 1, enquanto “o dinheiro sujo é partefundamental da economia mundial” 2. De acordo com os dados do FMI, de 1996, ocapital lavado tem oscilado entre 2 e 5 % do produto mundial e estimativas maisrecentes “colocam os fluxos de lavagem de dinheiro próximos a 10% do PIB global” 3.

Às dificuldades encontradas na investigação criminal correspondem aspeculiares características do delito, sem uma vítima pontual, jamais praticado por umúnico agente, de difícil visualização, por força de uma atuação opaca e resistente aqualquer observação despretensiosa, que não é fruto de uma programação “artesanal,mas antes de um projeto racionalmente elaborado” 4. As organizações criam perfeitas“condições para a utilização lícita de bens ou produtos obtidos através de fatos ilícitos”5.

1 É comum a Polícia Judiciária investigar o crime, elucidar a autoria, a materialidade dos fatos e relegar para aMagistratura deliberar sobre os bens auferidos com o delito, e ao Ministério Público a decisão de prosseguir, ounão, na investigação sobre o destino dado ao capital obtido com os delitos.2 NAÍM, Moisés, Ilícito,trad. Sérgio Lopes, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 20.3 Ibidem.4 COSTA, José de Faria, “O fenómeno da globalização e o Direito Penal Económico”, in Boletim da Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra n° 61, 2001, p. 540.5 CANAS, Vitalino, O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão, Coimbra: Livraria Almedina,2004, p. 21.

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Convém ainda reconhecer que o fenômeno da reciclagem de bens e valoresauferidos com o produto do crime costuma estar enraizado em fatores criminológicosde altíssima rentabilidade, equiparadas ao modelo ou estrutura empresarial, bemajustadas à produtividade capitalista. Neste contexto integram-se organizaçõescriminosas complexas, caracterizadas pela sofisticada circulação do dinheiro ou bens,num espaço extraterritorial, proveniente de crimes e pela infiltração de agentescriminosos no aparelho do Estado.

Não será raro encontrarmos empresas economicamente sadias, cumpridorasde seus deveres fiscais e, inclusive, que contam com a chancela de auditores fiscais.Entretanto, o capital ali investido tem origem ilícita e seu lucro serve para alimentar eincrementar a atividade criminosa da organização. “Os muitos caminhos seguidospela criminalidade organizada, no reinvestimento dos lucros ilicitamente obtidos, tornamparticularmente difícil um completo controle do fenômeno ‘reciclagem’” 6.

Em outras palavras, conquanto seja conhecida a prática do crime e oenriquecimento auferido, não se sabe onde tal lucro foi integrado no sistema econômico,porquanto sempre será possível realizar nova operação de ocultação, que permite odistanciamento dos bens de sua origem criminosa 7 – contexto este que bem poderiaser ilustrado pelas bonecas de madeiras russas, as matriushkas, que se encaixamumas dentro das outras.

Tudo é favorável ao lavador de dinheiro. Não há grande dificuldade para se abriruma empresa fantasma, muitas vezes com um objeto social genérico e, uma vezregistrada a pessoa jurídica na Junta Comercial, autorizada pelo Estado estará paragerir bens e atividades lícitas, não obstante o capital investido possa ser ilícito. A partirde então, a empresa de fachada pode reciclar fundos conforme o bom desempenhodo contador contratado por ela: através de registros de elevados custos de transportes,ou do subfaturamento, ou falsas ordens de compras junto a outras empresas defachadas e por meio da emissão de outros documentos legais.

Qualquer bem que possa ser adquirido à vista, normalmente em grandesquantidades, com alto capital de giro e possa ser vendido com lucro, ou com umpequeno prejuízo, pode ser alvo da reciclagem de bens e valores. Portanto,determinados negócios têm sido eleitos como preferidos pelos especialistas emlavagem de dinheiro, por movimentarem altos valores em dinheiro vivo. Vejamos alguns:hotéis, bares, casas noturnas, postos de combustíveis, locadoras de vídeo, parquesde diversões, lojas de carros, estacionamento de veículos, lavanderias (atividade queexplica a origem da expressão lavagem de dinheiro), cavalos, bilhetes premiados deloteria, dentre outros.

6 PELLEGRINI, Angiolo e JÚNIOR, Paulo José da Costa, Criminalidade organizada, São Paulo: Jurídica Brasileira,1999, p. 55.7 CAPARRÓS, Fabián, El delito de blanqueo de capitales, Madrid: Ed. Colex, 1998, p. 412.

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Como forma de melhor entender como funciona esse esquema criminosoestabeleceu o GAFI três diferentes fases para o processo de lavagem de dinheiro:colocação, ocultação e integração. A experiência, no entanto, exige uma profundareflexão desse modelo descritivo. Isto porque a lavagem de dinheiro “é hoje umaatividade que pode atingir um grau de sofisticação que só artificialmente se podereconduzir a um esquema único e mais ou menos linear” 8. Existe, de fato, umavariedade de atividades e procedimentos difusos que poderão ser utilizados peloslavadores de dinheiro.

Impossível, daí, fixar um roteiro único a ser sempre seguido durante asinvestigações criminais. Possível, porém, sugerir órgãos importantes para seremconsultados na busca do patrimônio ou atividade ilícita da organização criminosa, osquais deverão ser priorizados de acordo com o perfil da organização criminosainvestigada e, sobretudo, de seu chefe ou líder. Poderíamos denominar esteslevantamentos como uma investigação criminal de gabinete ou burocrática, mas comoo crime de lavagem de dinheiro é derivado e sempre dependente de um delitoantecedente, não podemos prescindir das providências tradicionais de investigaçãode campo, tradicionalmente executadas pela Polícia Judiciária.

Não se pretende, pois, nesta apresentação discorrer sobre seus aspectosdoutrinários, mas sim sugerir fontes de pesquisa que deverão auxiliar na investigaçãocriminal e revelar a existência de patrimônio ilícito, com aparência de lícito.

Fontes de pesquisas para investigação de patrimônio ilícito:

a) Cartórios de Registro de Imóveis da Comarca relacionada com oInvestigado, observando as estâncias turísticas mais procuradas no Estado; porexemplo, em São Paulo, Guarujá (litoral) e Campos de Jordão (montanha). Não existeconcentração dos dados a nível nacional.

ANOREG – Associação dos Notários e Registradores do Brasil. Disponibilizaconsulta através do CPF de imóveis no Estado de São Paulo para saber em queCartório o investigado possui imóvel. Consultas mediante credenciamento:www.anoreg.org.br .

b) COAF – Conselho de Controle de Operações Financeiras – Fornecimentode Informações sobre Operações Suspeitas – Viável o cadastro de senha para consultaon line: www.fazenda.gov.br/coaf. - Pesquisa banco de dados do CVM – Bolsa deValores. Endereço: SAS – quadra 3 – bloco O – 7° andar, Ed. Órgãos Regionais – M.F.– Brasília/DF – CEP 70.070-100 – fones: (61) 3412.4755 e (fax) 3226.0641.

8 CANAS, Vitalino, O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão, ob. cit., p. 22.

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c) Banco Central do Brasil – Acesso a movimentação financeira medianteordem judicial, além da possibilidade de acesso a gastos com cartões de créditosnacionais e internacionais.

Departamento de Combate a Ilícitos Financeiros e de Supervisão de Câmbio eCapitais Internacionais – Setor Bancário Sul, Quadra 3, Bloco “b”, Edifício Sede, Brasília– DF, CEP 70074-900. Fone (61) 3414.1570, 3414.2410 (fax). Chefe do Departamento: Dr. Fernando Celso Gomes de Souza

d) Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC - Aeroporto Internacional deBrasília - Setor de Concessionárias, Lote 5, Brasília – DF – CEP 71608-900; EndereçoEletrônico: www.anac.gov.br; Telefones: 61 3905 2679 / 3905 2649; Diretor-Presidente:Dr. Milton Zuanazzi; Procurador-Geral: Dr. João Ilídio de Lima Filho.

e) DRCI – Departamento de Recuperação de Ativos e CooperaçãoInternacional - Negocia acordos e coordenar a execução da cooperação jurídicainternacional. Exerce a função de autoridade central para a tramitação de pedidos decooperação jurídica internacional. E desenvolve e aperfeiçoa instrumentos normativosde combate à lavagem de dinheiro, de recuperação de ativos e de cooperação jurídicainternacional, dentre outras atribuições.

Endereço: SCN Qd. 1 Bl. A Sala 101, Ed. Number One – Brasília.DF – 70.711-900; Telefone: 55 .61.3310-7240; Fax: 61 3429-8910; Internet: www.mj.gov.br/drci;Diretora: Dra. Maria Rosa Guimarães Loula.

f) Capitania dos Portos – Informações regionalizadas obtidas em cada Estado.Informa dados sobre embarcações e seus proprietários.

g) Detran – Infoseg - Informações sobre propriedade de veículos, dadoscadastrais registrados para fins de Carteira Nacional de Habilitação e multasrelacionadas com os veículos.

h) Registro de Armas – Infoseg – Dispõe de cadastros dos proprietários dearmas de fogo informações do SINARM – Sistema Nacional de Armas.

i) Receita Federal. Através de autorização judicial, obtenção de dados daevolução patrimonial e movimentação financeira, mediante análise do recolhimentodo CPMF.

j) Receita Estadual. Dados do recolhimento de Impostos Estaduais e do registroda Inscrição Estadual. Possibilita o confronto entre a contribuição a título de ICMScom a Declaração de Rendimentos à Receita Federal, bem como com os dadosconstantes em contas correntes, como forma de verificar a existência de empresasfantasmas.

k) Empresas de telefonia móvel e fixa. Obtenção de dados cadastrais evalores dos gastos mensais com telefone das pessoas investigadas, além dabilhetagem das ligações recebidas e efetuadas, mediante quebra de sigilo judicial.

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Algumas empresas negam o fornecimento dos dados cadastrais ao Ministério Público,por força de interpretação de decisão da Justiça Federal.

l) Junta Comercial – Disponibiliza dados sobre empresas e a evolução deseus quadros societários.

m) Associações de Criadores de Cavalos. Cada associação abaixo citadadetém o registro de cavalos, com os dados de seus proprietários e característicasdos animais. Trata-se de um registro que se assemelha aos Registros Gerais depessoas físicas mantidos por órgãos de segurança pública nos Estados.

- Associação Brasileira dos Criadores e Proprietários de Cavalos de Corrida(ABCPCC). Presidente: Antônio Carlos Coutinho Nogueira. Avenida Lineu de PaulaMachado, 875. Jardim Everest – CEP 05601-001 - São Paulo-SP. Fone: (11) 3813-5699 / 3813.5772 Fax: (11) 3814.3410. E-mail: [email protected] - Site:www.studbook.com.br.

- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Árabe (ABCCA). Presidente:Luciano Cury; Avenida Francisco Matarazzo 455, Parque Água Branca, Fone: (11)3674-1744 Fax: (11) 3674.1749, CEP 050010-900 - São Paulo-SP. E-mail:[email protected]; Site: www.abcca.com.br.

- Associação Brasileira do Cavalos da Raça Anglo-Árabe. Presidente: JoséSampaio Meirelles; Rua dos Arouche, 23 5º andar; Fone: (11) 3674.1744; CEP 01219-001 - São Paulo - SP; E-mail: [email protected].

- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador(ABCCMM). Presidente: Eduardo Costa Simões; Avenida Amazonas, 6020 - Parquede Exposição Bolívar de Andrade - Gameleira; Fone: (31) 3379-6100 Fax: (31)3379.6122; 30510-000 - Belo Horizonte - MG; E-mail: [email protected]; Site:www.abccmm.org.br.

- Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC). Presidente:Henrique José Marim Teixeira; Avenida Fernando Osório, 1754 - A; Fone: (53) 3223.2122Fax: (53) 3223.4774; Caixa Postal 571 - Três Vendas - 96055-000 - Pelotas - RS; E-mail: [email protected]; Site: www.abccc.com.br.

- Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha (ABQM).Presidente: Ovídio Vieira Ferreira; Avenida Francisco Matarazzo, 455, Parque ÁguaBranca - Pavilhão 11; Fone: (11) 3875-2617/ 3864.0800 Fax: (11) 3673.1087; CEP05050-900 - São Paulo-SP; E-mail: [email protected]; Site:www.quartodemilha.com.br

- Associação Brasileira de Criadores de Cavalos da Raça Mangalarga(ABCCRM). Presidente: Mário Alves Brabosa; Avenida Francisco Matarazzo,455,Parque Água Branca Pavilhão 04; Fone: (11) 3673-9400 (11) 3862.1864; CEP05001-900 - São Paulo - SP; E-mail: [email protected]; Site:www.cavalomangalarga.com.br.

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- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Campolina (ABCCC).Presidente: Francisco de Azevedo Neto; Avenida Amazonas, 6020, Parque deExposição Bolívar de Andrade - Gameleira; Fone: (31) 3372-7478 Fax: (31) 3372.7479;CEP 30510-000 - Belo Horizonte - MG; E-mail: [email protected]; Site:www.campolina.org.br.

- Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Appaloosa. Presidente: FranciscoLopes; Avenida Francisco Matarazzo, 455, Parque Água Branca; Fone: (11) 3672-7800; CEP 050031-900 - São Paulo - SP; E-mail: [email protected]; Site:www.appaloosa.com.br.

- Associação Brasileira de Cavalo Pampa (ABCPAMPA). Presidente: EduardoAparecido; Avenida Amazonas, 6020, Parque de Exposição Bolívar de Andrade -Gameleira; Fone: (31) 3272-2415 Fax: (31) 3372-5460; CEP 30510-000 - Belo Horizonte- MG; E-mail: [email protected]; Site: www.abcpampa.org.br.

- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Paint (ABCPAINT). Presidente:Orlando Lamônica Júnior; Av. Comendador José da Silva Martha, 36-01 - Jd. Shangrilla,CEP 17053-340 - Bauru - SP; Fone: (14) 3236-3000; E-mail: [email protected];Site: www.abcpaint.com.br.

- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Puro Sangue Lusitano (ABPSL).Presidente: Luís Ermírio de Moraes; Rua General Jardim, 618 Cj. 62 - Vila Buarque -São Paulo; Fone: (11) 3259.5335 Fax: (11) 3257.6297; CEP 01.223-010; E-mail:[email protected]; Site: www.associacaolusitano.com.br.

- Associação Brasileira dos Criadores de Cavalos de Hipismo (ABCCH).Presidente: Ênio Monte; Avenida Francisco Matarazzo, 455, Parque Água Branca;Fone: (11) 3672.2866 Fax: (11)3865.8190; CEP 05001-900 - São Paulo - SP; E-mail:[email protected]; Site: www.brasileirodehipismo.com.br.

- Associação Nacional de Criadores de “Herd Book Collares”. Presidente: JoséRoberto Pires Weber; Rua Anchieta, 2043 - Centro; Caixa Postal 490; Fone: (53)3222.4576/ 3225.2773 Fax: (53) 3225.2773; CEP 96015-420 - Pelotas - RS; E-mail:[email protected]; Site: www.herdbook.org.br.

- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Pura Raça Espanhola (ABPRE).Presidente: José Roberto Viviane; Rua Pascal, 882 ap. 151 Campo Belo; Fone:(11) 3744.5252; CEP 04616-002 - São Paulo – SP.

- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Pônei (ABCCPONEI).Presidente: Fabrício Borges Santos; Avenida Amazonas, 6020 - Parque Bolívar deAndrade - Gameleira; Fone: (31) 3371-3797; CEP 30510-000 - Belo Horizonte - MG;E-mail: [email protected]; Site: www.ponei.org.br.

- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Pantaneiro (ABCCP). Presidente:Gilson Gonçalo de Arruda; Avenida Joaquim Murtinho 1070 - Centro; Fone: (65)3345.1436; CEP 78175-000 - Poconé - MT; E-mail: [email protected]; Site:www.abccp.com.br.

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- Associação Nacional do Cavalo de Rédeas (ANCR). Presidente: Mauro EduardoDias; Avenida Comendador José da Silva Marta - Quadra 36; Fone: (11) 3236.1244;CEP 17053-340 - Bauru - SP; E-mail: [email protected]; Site: www.ancr.org.br.

- Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Bretão. Presidente: CláudioMarcelo Borja de Almeida; Rua Oswaldo Cruz, 267; CEP: 13900-010 - Amparo - SP;Fone (11) 3807.7974 Fax: (11) 3849-9061; E-mail: [email protected];Site: www.cavalo-bretao.com.br.

- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Trotador (ABCCT). Presidente:Valter da Silva Loureiro; Praça dos Trotadores, 01 - Vila Guilherme; Fone: (11) 6631-7263; CEP 02000-000 - São Paulo - SP; E-mail: [email protected].

- Associação Brasileira de Criadores de Puruca (ARPP). Presidente: Zinda NunesGouveia; Avenida Almirante Barroso, 5386, Parque de Exposições Presidente Médici,Fone: (91) 3231.0339 / 3231.6917; CEP 66610-000 - Belém - PA; E-mail:[email protected].

- Associação Brasileira dos Criadores da Raça Marajoara. Presidente: MárioAntônio Martins; Avenida Almirante Barroso, 5386, Parque de Exposições PresidenteMédici, Fone: (91) 3231-6917; CEP 66600-000 - Belém - PA.

- Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Campeiro. Presidente:Urmerindo Fernandes de Oliveira; Rua Marechal Floriano, 217; Fone: (49) 3241.0268;CEP 89520-000 - Curitibanos - SC.

n) Aconselha-se ao Promotor de Justiça que provoque a nomeação deAdministrador Judicial para os bens eventualmente seqüestrados, como, porexemplo, um Advogado com experiência em administrar massa falida perante aVara de Falências.

Principais dados internacionais disponíveis:

a) ENCCLA - Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem deDinheiro (Enccla) – Metas estabelecidas para o ano de 2007: www.mj.gov.br/drci/pdf/Metas_e_recomendaçoes_ENCCLA

b) 40 Recomendações do GAFI (Grupo de Ação Financeira sobre a Lavagemde Dinheiro) constantes do site: www.mj.gov.br/drci -

c) Lista dos países membros do GAFI: www.fatf-gafi.org?Membrs_en.htm

d) GAFISUD: países envolvidos Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil. Dadossobre o Grupo e seu funcionamento podem ser obtidos junto ao DRCI e ao COAF jácitados.

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e) Acordos de Cooperação Internacional entre Brasil e outros países – principaiscontatos – disponíveis em www.mj.gov.br/drci/default.asp :

· Estados Unidos: Decreto nº 3.810, de 2 de maio de 2001: Promulga o Acordode Assistência Judiciária em Matéria Penal;

· França: Decreto nº 3.324, de 30 de dezembro de 1999: Promulga o Acordo deCooperação Judiciárias em Matéria Penal;

· Itália: Decreto nº 2.649, de 01 de julho de 1998: Promulga o Acordo deCooperação na Luta Contra o Crime Organizado e o Tráfico de Entorpecentes eSubstâncias Psicotrópicas, celebrado entre o Governo da República Federativa doBrasil e o Governo da República Italiana, em Roma, em 12 de fevereiro de 1997;Decreto nº 862, de 09 de julho de 1993: Promulga o Tratado sobre Cooperação Judiciáriaem Matéria Penal;

· Portugal: Decreto nº 1.320, de 30 de novembro de 1994: Promulga o Tratadode Auxílio Mútuo em Matéria Penal;

· Colômbia – Decreto nº 3.895, de 23 de agosto de 2001: Promulga o Acordo deCooperação Judiciária e Assistência mútua em Matéria Penal;

f) A Rede Hemisférica de Intercâmbio de Informações para o Auxílio JurídicoMútuo em Matéria Penal e de Extradição, criada no âmbito da OEA, é a maisdesenvolvida dentre as redes de cooperação jurídica de que o Brasil faz parte, e foiadotada pela Vª Reunião de Ministros da Justiça daquela Organização, realizada noano de 2004 em Washington: www.oas.org/juridico/mla;

g) Página de acesso ao Direito da União Européia: http://eur-lex.europa.eu.Existem na página diversas Resoluções legislativas do Parlamento Europeu ePareceres do Comitê Econômico e Social Europeu sobre lavagem de dinheiro, asquais abordam os principais temas e assuntos a serem observados pelos Estadosmembros daquela Comunidade. Também diversas Decisões-Quadro do ConselhoEuropeu, que tratam da mesma questão;

h) Recomendações especiais do GAFI/FATF sobre financiamento do terrorismo:www.mj.gov.br/drci;

i) Instrução Normativa SRF nº 188, de 6 de agosto de 2002 - Relaciona paísesou dependências com tributação favorecida ou oponha sigilo relativo à composiçãosocietária de pessoas jurídicas: www.receita.fazenda.gov.br/coaf.

j) COAF – já referido - detém acesso à rede internacional das Unidades deInteligência Financeira – UIF (sigla em inglês: FIU) – e ao Grupo Egmont. Auxilia,portanto, na obtenção de dados sobre contas correntes e movimentações financeirasno exterior. Maiores informações: www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/i_sobreocoaf.htm .

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k) Site internacional completo com várias informações sobre “Lavagem deDinheiro”, com citação sobre casos concretos, doutrina e legislação:www.proximalconsulting.com (em inglês).

Arthur Pinto Lemos Júnior,

Promotor de Justiça designado para o Gaeco

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Rodrigo César Rebello PinhoAntonio de Pádua Bertone PereiraDavid Cury JúniorMarco Antonio Zanellato

Procurador-geral de JustiçaRodrigo César Rebello Pinho

Membros Natos

José Roberto Garcia DurandLuiz Cesar Gama PellegriniHerberto Magalhães da Silveira JúniorRené Pereira de CarvalhoFrancisco Morais SampaioJosé Ricardo Peirão RodriguesJosé Roberto Dealis TucunduvaOswaldo Hamilton TavaresFernando José MarquesIrineu Roberto da Costa LopesRegina Helena da Silva SimõesRoberto João EliasClaus PaioneJosé de Arruda Silveira FilhoÁlvaro Augusto Fonseca de ArrudaPedro Franco de CamposGabriel Eduardo ScottiJosé Luiz AbrantesAntonio ViscontiArnaldo Gonçalves

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça

Corregedor-geral do Ministério PúblicoAntonio de Pádua Bertone Pereira

Conselho do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional

Marcos Tadeu Gonçalves Teixeiramarianí AtchabahianAugusto Soares de Arruda NetoNelson Gonzaga de Oliveira

Conselho Superior do Ministério Público

Rodrigo César Rebello Pinho(presidente)Antonio de Pádua Bertone PereiraAntonio Augusto Mello de Camargo FerrazDaniel Roberto FinkDráusio Lúcio Barreto

Fernando José MarquesJosé Benedito TarifaJosé Oswaldo MolineiroMarco Antonio ZanellatoPaulo Afonso Garrido de PaulaWalter Paulo Sabella

Congregação da ESMPAdriano Ricardo ClaroAntonio Carlos da PonteArthur Pinto FilhoCarolina Maria Matheus MarcovecchioCélio ParisiEduardo Martines JúniorEliana PassarelliJosé Carlos Mascari BonilhaJosé Marcelo Menezes VigliarLídia Helena Ferreira da Costa PassosLuiz Antonio de SouzaLuiz Roberto Cicogna FaggioniMaria Amélia Nardy Pereira

Maria Cristina Barreira de OliveiraMotauri Ciocchetti de SouzaNelson Gonzaga de OliveiraOswaldo Henrique Duek MarquesOswaldo Luiz PaluRita de Cássia Souza Barbosa de BarrosRonaldo Porto Macedo JúniorSérgio Seiji ShimuraSuely Amici PereiraTânia Soraya Rodrigues SouzaVidal Serrano Nunes JúniorWallace Paiva Martins Júnior

Membros Eleitos

Airton Florentino de BarrosOswaldo Luiz PaluPaulo Mário SpinaAgenor NakazoneMário Pedro PaesAdelina Bitelli Dias CamposJosé Reynaldo de AlmeidaTiago Cintra ZarifJosé Luis AlickePaulo do Amaral SouzaGilberto Martins LopesAna Margarida Machado Junqueira BeneducePaulo Marcos Eduardo Reali Fernandes NunesDavid Cury JúniorSonia Etuko OdaNewton Silveira SimõesJosé Eduardo Diniz RosaCarlos Eduardo Fonseca da MattaMário Antonio de Campos TebetAparecida Maria Valadares Costa Gonçalves