Revista da Escola de Guerra Naval

173
Brasil e Portugal: Sociedade e Estado nas Relações Bilaterais Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX Por que Revolução nos Assuntos Militares? Estratégias do Brasil e dos EUA: Uma Reflexão Pirataria Marítima Moderna: História, Situação Atual e Desafios A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul A Revista da Escola de Guerra Naval é um periódico especializado que tem como objetivo publicar, disseminar e promover o intercâmbio, em níveis nacional e internacional, de informações nas seguintes áreas de concentração: Ciência Política; Geopolítica; Defesa; Estratégia; Relações Internacionais; Direito Internacional e Gestão. Este periódico visa a proporcionar uma maior integração entre a Marinha do Brasil e a sociedade acadêmica, publicando textos científicos e acadêmicos. Revista da Escola de Guerra Naval Número 14 Dezembro 2009 ISSN 1809-3191

Transcript of Revista da Escola de Guerra Naval

Page 1: Revista da Escola de Guerra Naval

Brasil e Portugal: Sociedade eEstado nas Relações Bilaterais

Política Externa e Defesa naPrimeira Metade do Século XX

Por que Revolução nosAssuntos Militares? Estratégias do Brasil e dosEUA: Uma Reflexão Pirataria Marítima Moderna:História, Situação Atual eDesafios

A Competição no OceanoÍndico à Luz do EmergenteTriângulo Estratégico Integração das Indústrias deDefesa na América do Sul

A Revista da Escola de Guerra Naval é umperiódico especializado que tem como objetivopublicar, disseminar e promover o intercâmbio,em níveis nacional e internacional, de informaçõesnas seguintes áreas de concentração: CiênciaPolítica; Geopolítica; Defesa; Estratégia; RelaçõesInternacionais; Direito Internacional e Gestão. Esteperiódico visa a proporcionar uma maiorintegração entre a Marinha do Brasil e a sociedadeacadêmica, publicando textos científicos eacadêmicos.

Rev

ista

da

Esco

la d

e G

uerr

a N

aval

Núm

ero

14

D

ezem

bro

2

00

9

I

SS

N 1

80

9-3

19

1

Page 2: Revista da Escola de Guerra Naval

1

Revista da Escola de Guerra Naval

Escola de Guerra NavalAv. Pasteur, no 480 – Praia Vermelha

Urca – Rio de Janeiro, RJBrasil - 22290-240

Revista da Escola de Guerra Naval Rio de Janeiro no 14 p. 1-180 dezembro de 2009

ISSN-1809-3191

Page 3: Revista da Escola de Guerra Naval

2

CONSELHO CONSULTIVO

COMANDANTE DA MARINHAAlmirante-de-Esquadra Julio Soares de Moura Neto

CHEFE DO ESTADO-MAIOR DA ARMADAAlmirante-de-Esquadra Aurélio Ribeiro da Silva Filho

DIRETOR DA ESCOLA DE GUERRA NAVALContra-Almirante Walter Carrara Loureiro

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE ENSINOContra-Almirante Reginaldo Gomes Garcia dos Reis

VICE-DIRETOR DA ESCOLA DE GUERRANAVALCapitão-de-Mar-e-Guerra José Cláudio Cruz

CONSELHO EDITORIALEditor ChefeCapitão-de-Mar-e-Guerra Francisco José de MatosEditores AdjuntosCapitão-de-Mar-e-Guerra Luiz Carlos de CarvalhoRothCapitão-de-Mar-e-Guerra Francisco E. Alves deAlmeidaCapitão-de-Mar-e-Guerra William de Souza MoreiraCapitão-de-Fragata André Panno BeirãoProfessora Dra. Sabrina Evangelista MedeirosProfessor Dr. Renato PetrocchiProfessor Dr. Nival Nunes de AlmeidaDiagramação e Programação VisualCapitão-de-Fragata Osvaldo Peçanha CaninasLúcia MoreiraRevisora BibliográficaPrimeiro-Tenente (RM2-T) Renata Louredo FerreiraGestor FinanceiroCapitão-de-Corveta (IM) Sergio de Oliveira Ligeiro

Revista da Escola de Guerra Naval. – n. 14 (dez. 2009) - . – Rio de Janeiro: Escola deGuerra Naval, 1968 -v. ; 27 cm.SemestralISSN 1809-3191

1. Brasil. Marinha – Periódicos. I. Brasil. Marinha. Escola de Guerra Naval. II. Título.CDD 359.00981

Almirante-de-Esquadra Mario Cesar FloresVice-Almirante Armando A. Ferreira VidigalVice-Almirante Fernando Manoel Fontes DiéguesVice-Almirante Afonso BarbosaContra-Almirante Antonio Rui de Almeida SilvaContra-Almirante Reginaldo Gomes Garcia dosReisProfessor Dr. Alcides Costa Vaz - UNBProfessor Dr. Antônio Celso Alves Pereira - UFRJProfessor Dr. Michael Pavkovic - USNWC

Professor Dr. Eurico Figueiredo - UFFProfessor Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva -UFRJProfessor Dr. José Murilo de Carvalho - UFRJProfessor Dr. Manfred Nitsch - LAI/FUBProfessor Dr. Marcio Scarlecio - PUC/RJ/UCAMProfessor Dr. Williams Gonçalves - UERJ/UFFProfessora Dra. Angela da Rocha - UFRJProfessora Dra. Mônica Herz - PUC/RJ

REVISTA DA ESCOLA DE GUERRANAVALDireitos desta edição reservados à EGNAv Pasteur, 480, Praia Vermelha, Rio deJaneiro, RJ. CEP 22.290-240 Tel (21)2295-7882Publicação semestral, editada emportuguês, inglês e espanhol, de naturezaacadêmica, sem fins lucrativos.Os artigos publicados pela Revista sãode exclusiva responsabilidade de seusautores, não expressando, necessa-riamente, o pensamento da Escola deGuerra Naval nem o da Marinha doBrasil, podendo ser reproduzidos desdeque citados a fonte e informado à Escolade Guerra Naval.Os trabalhos poderão ser apresentadospor civis e militares, conforme asNormas para Publicação citadas naúltima página de cada volume econstante do site www.egn.mar.mil.br.

Revista da Escola de Guerra NavalDezembro de 2009ISSN 1809-3191 Número 14

Nossa Capa:

Brasil no centro do mundo:reprodução da Carta Náutica10001 – Carta do Mundo –Projeção Azimutal Equi-distante, Centro em Brasília,DF; Escala 1:65 000 000, pro-duzida em 1960 pela Diretoriade Hidrografia e Navegaçãoda Marinha do Brasil.

Page 4: Revista da Escola de Guerra Naval

3

Palavras do DiretorÉ com grande satisfação que novamente venho a me dirigir aos leitores

da nossa Revista da Escola de Guerra Naval, periódico que tem o propósitode ser um instrumento fomentador de novos debates, em torno dos assuntosrelacionados à Defesa Nacional, com ênfase na Política e Estratégia Marítimas.

Nesta edição estaremos tratando das relações bilaterais entre Brasil ePortugal, por meio do artigo elaborado pelo Professor Doutor WilliamsGonçalves, colaborador atuante de nosso Centro de Estudos Político-Estratégicos. Por que a Revolução nos Assuntos Militares? Este é oquestionamento que o Capitão-de-Mar-e-Guerra Teixeira procura responderem seu artigo.

Apresentamos, também, o texto do Capitão-de-Mar-e-Guerra daMarinha da Índia Dupak Kumar, que concluiu o Curso de Estado-Maiorpara Oficiais Superiores de nossa Escola, que relata a competição pelo OceanoÍndico pelas potências lá existentes. A integração das indústrias de defesada América do Sul é o tema discutido pelo Capitão-de-Fragata FernandoVilela.

O Contra-Almirante Guilherme nos oferece um estudo sobre as PolíticasExterna e de Defesa na primeira metade do século XX. Da mesma forma, umaavaliação sobre a pirataria marítima moderna nos é propiciada pelo Capitão-de-Fragata Caninas. Encerrando os artigos que compõem este número,veremos as reflexões que foram feitas pelo Capitão-de-Mar-e-Guerra Rogériosobre as estratégias do Brasil e dos Estados Unidos.

A Revista contém ainda as resenhas feitas pelo Professor Doutor AndréRodrigues e pelo Contra-Almirante Reis sobre os livros “A Guerra no Mar”,organizado pelo nosso saudoso Almirante Vidigal, e “War made new”, deMax Boot, respectivamente.

Esta diversidade temática está coerente com a nossa vocação que é a depromover o intercâmbio de informações e idéias, em nível nacional einternacional, nas seguintes áreas: Ciência Política; Geopolítica; Defesa;Estratégia; Relações Internacionais; Direito Internacional; e Gestão.

Nossa meta de ser um importante canal de aproximação e integraçãoentre a Marinha do Brasil e a sociedade acadêmica está perfeitamente inseridana visão da Escola de Guerra Naval de “ser reconhecida como um Centro deExcelência em ensino e pesquisa no campo da Defesa Nacional, até 2014”.

Assim sendo, convido a todos a navegar pelas páginas de nossa 14ªEdição.

WALTER CARRARA LOUREIROContra-Almirante

Diretor

Page 5: Revista da Escola de Guerra Naval

5

Sumário

Brasil e Portugal: Sociedade e Estado nas Relações Bilaterais ................ 7Williams Gonçalves

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX ................... 25Guilherme Mattos de Abreu

Por que Revolução nos Assuntos Militares? .............................................. 50Márcio Leite Teixeira Estratégias do Brasil e dos EUA: Uma Reflexão ........................................ 83Cláudio Rogério de Andrade Flôr Pirataria Marítima Moderna: História, Situação Atual e Desafios ......... 101Osvaldo Peçanha Caninas A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico123Deepak Kumar Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul .......................... 155Fernando de Sousa Vilela

Resenha

War Made New: Technology, Warfare, and the Course of History .. 173Reginaldo Gomes Garcia dos Reis

Guerra no Mar: Batalhas e Campanhas Navaisque Mudaram a História ....................................................................... 174André Figueiredo Rodrigues

Normas para Publicação de Artigos ........................................................... 178

Page 6: Revista da Escola de Guerra Naval

7Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 7-23.

Brasil e Portugal: Sociedade e Estadonas Relações Bilaterais

Williams Gonçalves*

Resumo

O presente estudo tem o propósito de discutir sobre o que fazcom que as relações luso-brasileiras fiquem sempre limitadasem termos de potencialidades. O estudo procura explicar as razõesda recorrente insatisfação dos pesquisadores das relações Brasil-Portugal por considerá-las sempre insuficientes, apesar daintensidade com que elas se verificam. Apresenta-se inicialmenteuma breve discussão teórica sobre o tema, para em seguidacomentar-se sobre as relações bilaterais, transnacionais e o sistemainternacional. Conclui-se que para o entendimento da questão énecessário que se tenha em vista fatores existentes nas dimensõestransnacionais e do sistema internacional nas relações bilaterais,tendo os dois Estados pesos específicos diferentes no sistemainternacional em função das dimensões de população,desenvolvimento econômico e geopolítica.Palavras-chave: Relações Exteriores - DesenvolvimentoEconômico.

Abstract

The present study has the purpose of discussing the limitations ofportuguese-brazilian relations. It tries to explain the reasons whythe current researchers are not satisfied with the actual Brasil-Portugal relations although these relations are strong in someaspects. Firstly one discusses the theory involved in the matter,following a broad discussion on the bilateral and transnationalrelations with the international system. One concludes that inorder to understand the problem it is necessary to have in mindother factors involved on transnational dimension and thebilateral talks in the international system, having both countriesspecific weights in this system concerning population, economicgrowth and geopolitics.Keywords: Foreign Affairs - Economic Development

* Graduado em História pela UFF, mestre em Filosofia pela PUC-RJ e Doutor emSociologia pela USP. Professor de Relações Internacionais da UFF e UERJ. Membro doCentro de Estudos Político-Estratégicos da Escola de Guerra Naval.

Page 7: Revista da Escola de Guerra Naval

8 Brasil e Portugal

Introdução

Em primoroso ensaio intitulado Brasil, Portugal e África dedicado àsrelações Brasil-Portugal, o diplomata/historiador brasileiro Alberto da Costae Silva ao afirmar que as relações entre Brasil e Portugal são “de umaconstância e intensidade raras”, logo a seguir chama a atenção para o fato deque “em todos os momentos de nosso convívio, e até nos mais eufóricos, hásempre (...) um travo de insuficiente e de incompleto”. Segundo ele, a razãodesses senões “é porque aspiramos a uma intimidade cujo limite está sempremais além”. (SILVA, 2003, p. 52)

Parece-nos que Costa e Silva soube localizar com muita precisão umaspecto das relações brasileiro-lusitanas que está sempre presente em todosos momentos nos quais a relação entre os dois países é objeto de reflexão. Emtodos os muitos encontros reunindo estudiosos das diversas especialidadesdo mundo cultural a necessidade de se intensificar os contatos constituitema obrigatório de debate. E esta preocupação revela-se particularmentemaior quando os que se reúnem dedicam-se ao estudo das relaçõesinternacionais e à política externa dos dois países.

Sem pretender negar a validade da razão apontada por Costa e Silva paraesse estado de coisas, por considerá-la inteiramente pertinente, mas buscandouma resposta numa outra dimensão, diríamos na dimensão das próprias relaçõesinternacionais, estabelecemos como objetivo de nosso estudo refletir sobre o quefaz com que as relações brasileiro-lusitanas fiquem sempre aquém daquilo quetodos consideram que poderia ser. Por outras palavras, buscaremos explicar arazão da recorrente insatisfação dos estudiosos das relações Brasil-Portugalpara com essas relações, por considerá-las sempre muito insuficientes, nãoobstante a reconhecida intensidade com que elas se verificam.

Considerações Teóricas

A discussão sobre a questão exige algumas considerações teóricaspreliminares. Para tanto, recorremos a Paz e Guerra entre as Nações e também aOs Últimos Anos do Século, obras em que Raymond Aron dedica-se à elaboraçãode conceitos como sistema internacional, relações interestatais, sociedadetransnacional e sociedade internacional. Acreditamos que a maneira comoAron concebe esses conceitos, ao enfrentar a difícil questão da definição doobjeto específico das Relações Internacionais, contribui decisivamente paraesclarecer-nos acerca de nosso tema.

Em Os Últimos Anos do Século, obra publicada em 1984, vinte e dois anosdepois da publicação de Paz e Guerra entre as Nações, Aron questiona se osconceitos usados na primeira obra ainda podiam servir como instrumento

Page 8: Revista da Escola de Guerra Naval

9Williams Gonçalves

de produção de conhecimento das relações internacionais. Trata-se, assim,de uma obra em que procura prestar contas com suas próprias reflexões, bemcomo se defender das críticas que lhe foram dirigidas ao longo de todos essesanos.

A principal mudança que Aron opera em seu aparato é a introdução doconceito sociedade internacional. Embora atribua pouca importância a essamudança, pretendendo dar a entender que essa é uma questão lateral, quenão interfere no que é fundamental, não há como deixar de se observar esseponto, uma vez que a fundamentação hobbesiana que dá à sua abordagemteórica torna a idéia de sociedade internacional uma idéia discrepante. Comose sabe, a teoria filosófica contratualista assimila a situação em que seencontram os Estados uns em relação aos outros à idéia de estado de natureza,por isso, já que não existe um pacto entre eles, que erga uma autoridade como monopólio da violência legítima, os estudiosos de orientação filosóficahobbesiana tomam o meio internacional como um meio anárquico. Ou seja, amenos que se aborde a questão como Hedley Bull, que considera a sociedadeinternacional semelhante a sociedades primitivas, sociedades sem Estado;ou como a aborda Norberto Bobbio, que considera que o pacto social se realizaem três tempos: no primeiro, há o pacto negativo, ou implícito, pelo qual osindivíduos comprometem-se a não mais se agredir; no segundo, há o pactopositivo, ou explícito, pelo qual os indivíduos comprometem-se a elaborar asleis que irão reger seu relacionamento, e; no terceiro tempo, é a fase em que,por imposição ou consentimento, surge o “terceiro ativo”, aquele que servirácomo árbitro final. Para Bobbio, portanto, o pacto entre os Estados é um pactoincompleto, dado que só se realiza no primeiro tempo. Todavia, Bobbioconsidera que o primeiro é o tempo fundamental, suficientemente capaz decriar uma sociedade, isto é, de tirar os Estados do estado de natureza em quese encontravam (BOBBIO, 1991, p.63). Independentemente dessasconsiderações de Bull e Bobbio, o fato é que a concepção contratualista seja elahobbesiana, lockeana ou rousseauneana, não comporta a idéia de sociedadeinternacional. Todavia, seja como for, nas palavras de Aron sociedadeinternacional constitui “o conjunto de todas as relações entre países e entrepessoas que permitem sonhar com a unidade da espécie humana. (...) Estafórmula designa, sem descrevê-la, uma totalidade que incluiria ao mesmo tempoo sistema interestatal, o sistema econômico, os movimentos transnacionais eas diversas formas de troca (de comércio, no sentido lato do século XVIII) entreas sociedades civis, as instituições supranacionais (ARON, 1984, p. 27)”.

A revisão a que submete seu aparato conceitual merece registro porquena primeira obra Aron limita-se a distinguir os conceitos sociedadetransnacional e sistema internacional. Sendo que, sistema internacional -”conjunto constituído pelas unidades políticas que mantém relações regulares

Page 9: Revista da Escola de Guerra Naval

10

entre si e que são suscetíveis de entrar numa guerra geral (ARON, 1979, p.121)”- é o conceito chave, pois é aquele que se refere ao objeto efetivo dasRelações Internacionais. Já o conceito sociedade transnacional é aquele quese manifesta:

(...) pelo intercâmbio comercial, pelosmovimentos de pessoas, pelas crenças comuns, pelasorganizações que ultrapassam as fronteiras nacionais,pelas cerimônias e competições abertas aos membrosde todas as unidades políticas. Ela é tanto mais vivaquanto maior é a liberdade de comércio, demovimentação e de comunicação; e, quanto mais fortesforem as crenças comuns, mais numerosas serão asorganizações não nacionais, mais solenes ascerimônias coletivas (ARON, 1979, p. 130).

Na revisão conceitual que realiza, como pensamos ter deixado claro,Aron passa a considerar que a sociedade transnacional é parte da sociedadeinternacional, assim como o é o sistema internacional de Estados.

Em vista de nossos objetivos, o que realmente interessa é marcar aseparação entre sistema internacional de Estados e sociedade transnacional,nos termos que são apresentados por Raymond Aron. Convém sublinharque essa separação se refere a duas dimensões das relações internacionais. Aprimeira diz respeito às relações políticas entre os Estados, enquanto asegunda diz respeito às múltiplas relações que os diferentes agentes sociaisestabelecem com seus congêneres de outras unidades políticas. A primeirase faz á sombra da guerra, sendo determinada pelo cálculo das relações deforça por parte dos responsáveis pelos órgãos de soberania, enquanto asegunda se processa no campo da cultura e dos valores, exprimindo ainiciativa de grupos sociais e instituições que, pelas mais diversas razões, ede modo desconexo procuram dar vazão aos seus interesses setoriais. Paranosso autor, conquanto as relações transnacionais sejam cada vez maisdinâmicas e ricas de possibilidades, o conhecimento das relaçõesinternacionais provém da análise do sistema internacional, que é aquele,enfim, que exprime o aspecto interestatal dessas relações.

As Relações Brasil-Portugal

A distinção entre sistema internacional e relações transnacionaisefetuada por Aron é de extremo valor como instrumento teórico na análise doobjeto relações brasileiro-lusitanas. Essa diferenciação das duas dimensõesdas relações internacionais permite distinguir nas relações bilaterais Brasil-Portugal o que é do domínio das relações transnacionais, isto é, o que é do

Brasil e Portugal

Page 10: Revista da Escola de Guerra Naval

11

domínio das múltiplas relações que os mais diversificados agentes sociaisdos dois países têm entretido com as mais diversas motivações, e o que é dodomínio do sistema internacional, isto é, o que é do domínio das relaçõesmantidas pelos dois Estados através de seus respectivos canais institucionais.

Evidentemente que essa distinção não deve ser considerada comorecurso capaz de garantir completa nitidez da análise. Muito embora formemdomínios diferentes das relações internacionais, as relações transnacionaise as relações na esfera do sistema internacional muitas vezes se embaraçam.O fato de as relações transnacionais se processarem em círculos sociais queaparentemente estão muito distantes de qualquer preocupação com questõesque dizem respeito às relações pertinentes ao domínio do sistemainternacional não significa que essas relações não exerçam influência nooutro domínio. Em se tratando de relações brasileiro-lusitanas, acreditamosmesmo que não seria nada surpreendente concluir que, em alguns momentosimportantes da vida política dos dois países, as relações transnacionaisconcorreram muito mais decisivamente para a tomada de posição das chefiasde Estado em face de importantes questões internacionais do que aquelaslevadas a efeito pelos canais institucionais competentes. Ou mais ainda, emalgumas ocasiões as chefias de Estado confiaram mais efetividade das relaçõestransnacionais para obter satisfação de seus interesses do que nos seuspróprios instrumentos institucionais.

As Relações Transnacionais

As relações envolvendo indivíduos e instituições, privadas e públicas,de Brasil e Portugal têm sido constantes ao longo do tempo. Inúmeros são osencontros reunindo nacionais dos dois países sob os mais diversos pretextos.Conferências, congressos e seminários, dos quais participam elementos dasmais variadas especializações do campo do saber, realizam-se em todos ospontos dos dois países. É verdade que uma afirmação dessa natureza deviavir acompanhada de números. Mas sabemos também que a simplesobservação empírica nos possibilita afirmar que determinadas áreas domundo acadêmico, como História, Lingüística e Literatura, especialmente,nunca deixaram de estar em contato. A língua comum e a origem colonial doBrasil são razões suficientes para prevermos que esses contatos entreestudiosos continuarão a existir, embora possam variar de intensidade aosabor de conjunturas mais ou menos favoráveis.

Além desses encontros com motivação científica, reunindopesquisadores e intelectuais das mais variadas especialidades, as relaçõestransnacionais brasileiro-lusitanas alimentam-se também dos contatos

Williams Gonçalves

Page 11: Revista da Escola de Guerra Naval

12

promovidos por empresas dedicadas à produção e comercialização de bensculturais. O idioma comum faz com que Brasil, Portugal e os países africanoscolonizados por Portugal formem mercados para as empresas dedicadas aesse ramo do setor produtivo desses países.

Dentro dessa classificação, a venda e a transmissão das telenovelasbrasileiras em Portugal é fenômeno que merece imediata menção. O êxitocomercial desse produto cultural dura anos e as repercussões são deconhecimento geral. Por se tratar de bens culturais produzidos com muitoesmero e competência técnica, as telenovelas são exportadas para países detodas as partes do mundo, inclusive para o Extremo Oriente. Razão suficientepara que não seja nenhuma surpresa o sucesso alcançado em Portugal, emboraos portugueses tenham debatido exaustivamente a influência que têm exercidosobre sua linguagem coloquial, levando alguns críticos a concluir ser essainfluência inoportuna. E não se deve esquecer também, que o envolvimentodos telespectadores com os enredos e a conseqüente popularidade obtidapelos atores, tem aberto o mercado de trabalho para esses profissionais emPortugal. Ao mesmo tempo em que a seleção de roteiros que sejam do agradodo público português, levam os produtores de telenovelas a incluir atoresportugueses em seus elencos, criando também, embora em menor número,mercado de trabalho para atores portugueses no Brasil.

Na área conexa da música popular as relações transnacionais sãoigualmente intensas. As trilhas sonoras das telenovelas dão a conhecer aopúblico português novas composições e novos artistas, como reforçam aadmiração pela música popular brasileira. Alguns compositores e cantoresbrasileiros tornaram-se ícones em Portugal, sendo que alguns, inclusive, quenão são muito conhecidos no Brasil, conseguiram construir carreira de sucessojunto às platéias portuguesas. Em quantidade menor a de brasileiros,obedecendo à lógica da proporção, artistas portugueses também são apreciadosno Brasil, especialmente aqueles dedicados às formas mais típicas de Portugal.

E não se podem tecer observações sobre as relações transnacionais entreBrasil e Portugal sem se levar em consideração a literatura, pois em qualquerbalanço dessas relações sempre se haverá de concluir pela importância maiorque exerce nesse domínio. Muito embora os especialistas vivam a discutirpermanentemente sobre a necessidade da criação de meios para ampliaçãodo conhecimento da produção literária de cada país, o fato objetivo é que,apesar de todos os problemas e empecilhos de natureza empresarial, o públicoleitor dos dois países nunca deixou de conhecer as obras mais importantes einovadoras produzidas pelos escritores dos dois países. Basta que algumcrítico dê o sinal, indicando o surgimento de uma obra ou de um autor quemereça especial atenção, para que o público comprador de livros se atiresobre a obra e sobre o escritor indicado. Exemplo vivo desse movimento é o

Brasil e Portugal

Page 12: Revista da Escola de Guerra Naval

13

escritor português José Saramago que, quando agraciado com o Prêmio Nobelde Literatura, recebeu homenagens no Brasil como se brasileiro fosse.

Os imigrantes, tanto numa sociedade como noutra, também têmdesempenhado papel muito importante na trama das relações transnacionais.Conquanto possa, vez por outra, surgir alguma resistência contra suapresença, esse tipo de problema é pontual e sempre é resolvido, justamenteporque a maioria custa a crer que brasileiros e portugueses não consigamconviver no mesmo espaço. Caso como esse de rejeição ocorreu no início dosanos 1990, quando as associações de dentistas portugueses manifestaramdescontentamento com a numerosa presença de dentistas brasileiros que seestabeleceram em Portugal, por terem tido boa acolhida pelos pacientesdentários portugueses. Coisa parecida havia acontecido no Brasil, no finaldo século XIX, quando os jacobinos brasileiros hostilizaram imigrantesportugueses por ver neles agentes da Monarquia recém extinta (CERVO;MAGALHÃES, 2000, p. 334). Por outro lado, os exilados políticos, sejam elesos brasileiros em Portugal, na década de 1970, sejam eles os portuguesesperseguidos pela ditadura salazarista ou aqueles derrotados pela Revoluçãodos Cravos, sempre foram bem acolhidos, independentemente de suaorientação ideológica.

A existência de Casas Regionais Portuguesas, ainda hoje, a despeito detodas as mudanças que ocorreram nos dois países determinando redução radicaldo fluxo migratório de Portugal para o Brasil desde há cerca de quarenta anos,mantendo vivas as tradições de seus locais de origem, constitui inequívocademonstração de força das relações transnacionais entre os dois países.

A partir da abertura desse pequeno painel, que não leva em consideraçãocertos setores, como o dos esportes, é possível perceber que há um grau bastanteelevado de relações transnacionais unindo Brasil e Portugal. Tanto na esferacientífico-universitária, como na esfera popular-comercial as relações entre associedades dos dois países têm-se mantido extremamente ativa. E é naturalque todos aqueles envolvidos nesse processo desejem que ele se dê em maiorintensidade, quer para se beneficiar dos conhecimentos dele derivados, querpara aumentar seus prestígio e seu lucro. A sensação de insuficiência dasrelações de que nos fala Alberto da Costa e Silva é, nesse sentido, perfeitamentecompreensível. Ela decorre não da inexistência, mas sim da percepção dasinesgotáveis potencialidades que as relações brasileiro-lusitanas contêm.

O Sistema Internacional

O passado colonial e o uso do mesmo idioma são fatores inegavelmenteimportantes no domínio das relações entre os Estados. E quanto mais densassão as relações transnacionais, mais influem na formulação e na execução

Williams Gonçalves

Page 13: Revista da Escola de Guerra Naval

14

da política externa. Contudo, esses fatores não são suficientes para determinara intensidade das relações bilaterais. Para que essas relações tenhamimportância, faz-se necessário a existência de laços econômicos e a inclusãode cada um dos Estados nos cálculos estratégicos do outro.

As relações entre Inglaterra e Estados Unidos são exemplo de relaçãocolonial que evoluiu para forte ligação político-estratégica entre os doisEstados. Depois da independência dos Estados Unidos os dois paísesmantiveram intenso comércio, da mesma forma que as relações políticascontinuaram tendo grande importância para ambos. Chegaram a entrar emguerra, devido a insistência dos Estados Unidos em declarar-se neutro noconflito que opunha a Inglaterra à França de Napoleão Bonaparte, mas tãologo terminou a guerra estreitaram os laços e desempenharam papel políticoimportante na América Latina, ao desencorajar qualquer iniciativa de caráterrecolonizador por parte da Espanha, na década de 1820. E daí por diante, aolongo do restante do século XIX, permaneceram cooperando, assim como noséculo XX, quando os Estados Unidos apoiaram o esforço de guerra dosingleses nas duas guerras mundiais. A seguir à Segunda Guerra Mundial aaliança sofre uma alteração, passando a Inglaterra a desempenhar papelsubordinado. Desde que solicitou aos Estados Unidos que impedissem que aesquerda grega chegasse ao poder, em 1946, a Inglaterra passou a submeter-se á orientação estratégica dos Estados Unidos, sendo a política de TonyBlair de apoio ao governo George Bush na luta contra o terrorismointernacional e na decisão de invadir militarmente o Iraque a mais recentedemonstração dessa submissão política.

As relações entre Brasil e Portugal não são desse mesmo tipo. Há que seconsiderar é verdade, que a Inglaterra foi potência hegemônica no séculoXIX, e quando perdeu essa condição, o fez justamente para os Estados Unidos,que passou a ser a potência hegemônica no mundo capitalista ocidental emoposição à União Soviética, potência líder do mundo comunista. Em vistadessa condição de ambos Estados, é natural que sempre se levassemmutuamente em consideração em seus cálculos estratégicos. No caso de Brasile Portugal as condições políticas são bem diferentes. Nesse caso, o queassistimos é que o Brasil foi importante para Portugal durante algum tempo,mas Portugal teve muito pouca importância para o Brasil desde queformalizou sua independência.

Depois que o Brasil se tornou independente de Portugal, suas ligaçõeseconômicas tornaram-se muito tênues. Assim como já acontecia antes comPortugal, o Brasil ao proclamar sua independência caiu nas malhas dainfluência econômica da Inglaterra. Com uma organização econômicabaseada no trabalho escravo, dedicada à exportação de produtos primários,

Brasil e Portugal

Page 14: Revista da Escola de Guerra Naval

15

pouca conexão comercial podia ter o Brasil com a economia portuguesa, elatambém submetida à lógica da exportação de produtos primários para aseconomias industrializadas desenvolvidas.

Esse fraco laço econômico entre os dois Estados afrouxou-se ainda maiscom a irrupção da crise de 1929. Com a crise que abalou os alicerces docapitalismo, as empresas portuguesas perderam as posições que aindaconservavam no mercado financeiro brasileiro. A partir de então as trocascomerciais entre os dois países limitaram-se a uns poucos insumos industriaise, principalmente, os produtos denominados “de Natal” no mercadobrasileiro. Apesar das promessas e dos esforços realizados, as relações decomércio nunca se tornaram expressivas para qualquer um dos dois países.Ademais, sob o impacto da crise, os dois países fizeram escolhas bem distintas.No Brasil, a crise obrigou as oligarquias a realizar uma fuga para adianteinvestindo na industrialização: formou-se um consenso industrialista que,na segunda metade dos anos cinqüenta, evoluiu para um consensodesenvolvimentista que promoveu o desenvolvimento até a interrupção deinício dos anos 1980. Em Portugal, fez-se uma escolha puramente defensiva.Sob a ditadura de Oliveira Salazar, o país fechou-se, pondo-se à margem dovigoroso processo de desenvolvimento por qual passou toda a EuropaOcidental. Sua integração nesse processo só veio a ocorrer nos anos 1980,depois da definitiva supressão das estruturas político-econômicas herdadasdo salazarismo e do conseqüente ingresso no bloco econômico europeu.

No domínio político, os dois Estados chegaram a romper as relaçõesdiplomáticas. Pelo fato de duas corvetas portuguesas terem concedido asiloa revoltosos que haviam mobilizado a Marinha contra o Governo de FlorianoPeixoto, em 1894, no episódio conhecido como a Revolta da Armada, o governobrasileiro declarou rompidas as relações diplomáticas entre os dois países,que acabaram sendo restabelecidas no ano seguinte, graças à mediaçãoinglesa (COSTA, 1979, p. 66). Desde então os dois Estados permaneceramdistantes um do outro.

As relações políticas somente passaram a ganhar relevância após aSegunda Guerra Mundial. As estruturas político-econômicas e os projetosnacionais eram muito diferentes um do outro, assim como suas respectivasinserções no sistema internacional. Enquanto o Brasil experimentavasignificativo desenvolvimento industrial e procurava se integrar ao aparatoinstitucional que se foi formando a partir da ONU e de Bretton Woods,Portugal permanecia no mesmo patamar. Além disso, a conservação doEstado Novo fez de Portugal um corpo estranho na Europa, que, traumatizadapelas conseqüências do fascismo e do nazismo, passou a considerar asinstituições democráticas como um imperativo categórico. Por essa razão,

Williams Gonçalves

Page 15: Revista da Escola de Guerra Naval

16

Portugal teve negado seu pedido de ingresso na ONU, sendo integrado, porém,à OTAN, em virtude da soberania sobre os Açores, de grande valor estratégicopara a aliança militar comandada pelos Estados Unidos.

O Brasil passou a ter importância política para Portugal devido aoproblema criado pela descolonização. O compromisso assumido pela ONUde trabalhar no sentido de proporcionar autonomia política aos povossubmetidos ao domínio colonial e a negociação iniciada pelos ingleses paradar independência aos indianos foram fatores que levaram Portugal a buscaraproximação junto ao Brasil. Isolado politicamente, por não pertencer aosquadros da ONU, e atento para o fato que a saída dos ingleses da Índialevaria os indianos a desejarem integrar as possessões portuguesas Goa,Damão e Diu ao Estado que começavam a formar, assim como estavaconsciente que o problema indiano constituía apenas o início de um processoque mais tempo menos tempo atingiria a África, o governo português passaa ver o Brasil como um apoio indispensável para qualquer estratégia dedefesa do Império Colonial.

Na Índia, o apoio brasileiro é entusiástico e imediato. Quando as relaçõesdiplomáticas entre portugueses e indianos se rompem, pela recusa de Portugala negociar a questão, a diplomacia brasileira assume a representação dePortugal na União Indiana, ao mesmo tempo em que se desencadeia intensacampanha junto à opinião pública brasileira no sentido de prestar todo oapoio ao governo português. A imprensa brasileira se junta à imprensaportuguesa da colônia de imigrantes no Brasil, numa vigorosa interaçãotransnacional, cujo objetivo era defender a tese portuguesa segundo a qual ademanda indiana era absurda, uma vez que Goa, Damão e Diu eram territóriosportugueses.

A integração dos três encraves ao território da União Indiana erainevitável, pois Portugal simplesmente não tinha como impedir, de modoque os indianos depois de terem sua reivindicação rejeitada pelo TribunalInternacional de Haia decidiram resolver a pendência pela força das armas,em 1961. O episódio serviu, porém, para mostrar ao governo português que oBrasil era aliado inteiramente confiável, com o qual podia contar para a lutacontra as pretensões dos colonizados africanos de obterem sua independênciapolítica.

A partir da formação desse contexto, conjugaram-se esforços nos doispaíses para a formalização do Tratado de Amizade e Consulta. Assinado nogoverno de Getúlio Vargas (1953), ratificado no de Café Filho (1954) eregulamentado no de Juscelino Kubitschek (1960), o tratado tinha a finalidadede harmonizar as políticas externas dos dois países pelo mecanismo dasconsultas mútuas (GONÇALVES, 2003, p. 99). Na verdade, o tratado existiu

Brasil e Portugal

Page 16: Revista da Escola de Guerra Naval

17

como uma via de mão única, mediante o qual Portugal teve assegurado oapoio brasileiro para sua política de manutenção da soberania sobre ascolônias africanas. Apoio fortíssimo que não cessou nem mesmo quando osgovernos Jânio Quadros e João Goulart realizaram expressiva mudança nosrumos da política externa brasileira, pondo em execução a Política ExternaIndependente (1961-1964). De fato, enquanto o Estado Novo português existiuo Brasil seguiu apoiando-o em África. A posição brasileira só sofreu mudançaapós a Revolução dos Cravos, quando os próprios portugueses decidiramnegociar a independência de suas colônias.

Com a independência dos povos africanos deixava de existir a razãodo envolvimento entre Brasil e Portugal. Os assuntos políticos internospassavam a reclamar a atenção dos governos portugueses que, assim,mantiveram-se afastados das ex-colônias. Enquanto isso, o Brasil procuravaestabelecer boas relações com os governos recém instalados nos paísesafricanos, como parte importante da nova política internacional que o governodo Gal. Ernesto Geisel inaugurava. No plano das relações bilateraispraticamente nada havia a tratar, pois não existia qualquer compatibilidadeentre os governos revolucionários portugueses e a ditadura militar brasileira,sobretudo porque Portugal revolucionário tornou-se ponto de concentraçãode grande número de exilados políticos brasileiros.

Segundo a perspectiva nacionalista que passava a nortear a políticainternacional do Brasil, a aproximação junto à África revestia-se de especialimportância. Constituía, em face do vazio que Portugal repentinamentedeixava, oportunidade de o Brasil compensar todos os anos de apoio à políticacolonizadora de Portugal. Por meio da cooperação estatal e dos investimentosprivados, a diplomacia brasileira acreditava poder destacar-se na ajuda àconstrução dos novos Estados. Em segundo lugar, essa aproximaçãopermitiria que o Brasil continuasse a ter papel fundamental na segurança doAtlântico Sul, questão sempre considerada indispensável em se tratando depolítica de defesa brasileira. E em terceiro lugar, mas não por isso menosimportante, estava em jogo o desejo da diplomacia brasileira de ter o seuauxílio a esses países recompensado com o devido apoio às causas em queestivesse empenhada nos fóruns diplomáticos multilaterais.

A década que se seguiu à mudança de orientação da política externabrasileira e ao reconhecimento dos novos Estados africanos foi período dereestruturação do Estado português, o que determinou certo afastamento doBrasil. Por outro lado, a diplomacia brasileira não logrou os objetivos quehavia fixado. Isso se deveu tanto às lutas políticas internas nos Estadosafricanos, como também há falta de consenso entre os setores diretamenteresponsáveis pela elaboração e execução da política externa. Diplomatas,

Williams Gonçalves

Page 17: Revista da Escola de Guerra Naval

18

militares e empresários nunca conseguem se por a favor de uma política paraa África simultaneamente. O único segmento que se mantémpermanentemente favorável é o militar, especialmente a Marinha, em virtudede seu compromisso de zelar pela segurança do litoral do país.

Do processo de reestruturação econômica, social e política de Portugalresultou a opção pelo capitalismo, pela liberal democracia e pelo ingresso naComunidade Européia, em 1986. Essa opção proporcionou a Portugalmodernização econômico-social e fortalecimento político internacional, umavez que os portugueses passavam a contar com respaldo europeu em suasnegociações internacionais.

Com as credenciais de partícipe do bloco europeu e embalado pelocrescimento econômico, Portugal volta a se interessar pela África. O retornoportuguês coincide com a retomada da política africana do Brasil realizadapelo Governo José Sarney que, em meio à séria crise econômica, era responsávelem restabelecer a democracia no Brasil.

Dessa conjunção de interesses renasce a antiga idéia de criação de umacomunidade de língua portuguesa. A primeira etapa de execução desseprojeto acontece em novembro de 1989, quando os sete chefes de Estado(Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomée Príncipe) e seus representantes reunidos em São Luiz, capital do Maranhão,decidem criar o Instituto Internacional de Língua Portuguesa. A segundaetapa ocorre em dezembro de 1990, quando é assinado o Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa. A finalidade desse Acordo é unificar a ortografia dalíngua portuguesa que, era o único idioma ocidental a apresentar duas grafiasoficiais, a do Brasil e a de Portugal, o que causa grandes dificuldades nãoapenas no domínio da difusão cultural como também no domínio econômico-comercial.

A etapa final acontece em julho de 1996 com a criação da Comunidadedos Países de Língua Portuguesa, reunindo os sete anteriores mais TimorLeste. No Brasil, a CPLP é criada pelo governo Fernando Henrique Cardoso,embora todo o trabalho diplomático tenha sido realizado no governo ItamarFranco, especialmente pelo Emb. José Aparecido, que já havia trabalhadoanteriormente na criação do Instituto Internacional de Língua Portuguesa ehavia sido secretário de Jânio Quadros no período da Política ExternaIndependente. Em Portugal, a criação da CPLP deu-se sob a presidência deMário Soares, que também muito se empenhara no sentido da criação daentidade (GONÇALVES, 2005, p. 17-20).

A despeito dos grandes esforços diplomáticos despendidos para suaformalização, a Comunidade está muito longe de desempenhar o papelinternacional que seus idealizadores sonhavam. Na verdade, a CPLP tem

Brasil e Portugal

Page 18: Revista da Escola de Guerra Naval

19

atuação discretíssima. Dela pouco se ouve falar no Brasil, mesmo quando adiplomacia demonstra estar interessada em estreitar laços, em comerciar eem cooperar mais com as nações africanas.

Uma breve análise dos atores e de seus projetos permite-nos vislumbraras razões pelas quais as relações entre Brasil e Portugal no âmbito do sistemainternacional, não obstante as já observadas intensas relações transnacionais,situam-se em patamar muito inferior ao desejado por todos aqueles queentendem ser possível uma ligação mais orgânica entre os dois Estados, comvistas a proporcionar mais vigor em suas respectivas inserções internacionais,sobretudo dispondo desse mecanismo privilegiado de concertação que é aCPLP.

O primeiro aspecto a ser levado em consideração nas relações políticasque envolvem Brasil e Portugal é que se inaugura um novo período a partirdo momento em que se processa a independência das colônias africanas dePortugal. As independências retiram de Portugal a condição de interessadodireto na segurança do Atlântico Sul. Até então, a política de segurança doAtlântico do Sul formulada pelo Brasil sempre levara em consideração essacondição de Portugal. Embora, evidentemente, não se possa atribuir essaquestão como determinante para explicar o incondicional apoio brasileiroao colonialismo português, não há a menor dúvida que ela teve grandeimportância. Para o Brasil, as condições para manter bom diálogo com ospaíses que ocupam a margem oriental do Atlântico Sul sempre serãoconsideradas muito importantes na formulação da sua política de defesa e,conseguintemente, na sua política externa.

O segundo aspecto da problemática é a inexistência de unanimidade arespeito da África entre os formuladores de política externa do Brasil. Entreeles, grosso modo, podemos dizer que digladiam duas posições básicas, quedenominamos liberais e nacionalistas. Liberais são aqueles que entendemque política externa consiste, substancialmente, em relações econômicas. Paraeles, tudo se resume a comércio, investimentos e empréstimos. Nacionalistas,por outro lado, são aqueles que entendem que política externa, além deconsistir em relações econômicas, é formada também por relações culturais ecálculos geopolíticos. Para esses, portanto, o país deve se posicionar no meiointernacional não apenas em função dos mecanismos do mercado, mastambém pelas possibilidades de cooperação e pelas necessidades desegurança e defesa.

O terceiro aspecto importante que não pode ser ignorado é o relativo àdivisão entre os formuladores de política externa de Portugal. Atendo-nosexclusivamente à questão em pauta, os classificaremos como atlantistas eeuropeístas. Alantistas são aqueles que entendem que Portugal deve ocupar

Williams Gonçalves

Page 19: Revista da Escola de Guerra Naval

20

o ponto central desse “encontro de culturas” que é o mundo de línguaportuguesa, que está espalhado por Europa, América, África e Ásia. Europeístassão aqueles que consideram que o lugar de Portugal é a União Européia e queo relacionamento com os países de língua portuguesa devem obedecerexclusivamente à lógica dos mercados. Curiosamente, são os que representama esquerda democrática que se voltam para a estratégia atlântica, reconstruindoa idéia de “herança cultural comum”, típica da época do salazarismo, ao passoque os liberais destituem de importância os valores culturais na condução dapolítica externa de Portugal (FREIXO, 2003, p. 404).

Tendo em vista o perfil dos principais atores que participam desse jogode aproximação e afastamento, fica evidenciado que quando são os liberaisbrasileiros e portugueses que se acham no comando de suas respectivaspolíticas externas não há qualquer movimento no sentido da aproximaçãopolítica e do fortalecimento da cooperação no universo dos países de línguaportuguesa. Pelo entendimento que têm das relações internacionais, os liberaisde ambos os países interessam-se exclusivamente pela possibilidade de criaroportunidades de negócios e estabelecem como prioridade as relações comos demais países da União Européia, no caso de Portugal, e com os EstadosUnidos e os demais países desenvolvidos, no caso do Brasil. Os formuladoresliberais brasileiros, em particular, repetem mecanicamente o discurso daimportância da África na formação da sociedade e da cultura brasileiras,mas desconsideram as relações políticas com Portugal e, sobretudo, com aÁfrica, dado que partem do princípio que os países africanos não formammercado para os produtos brasileiros, nem tampouco esses países dispõemde capitais para investir produtivamente no Brasil.

A cooperação só se torna promissora quando são os nacionalistas dosdois países que estão à frente da política externa. Porquanto haja sido nogoverno de Fernando Henrique Cardoso que se formalizou a criação da CPLP,foram os governos brasileiros de orientação nacionalista na política externaque conduziram o processo de construção, em convergência com a açãodiplomática portuguesa dos atlantistas. Por uma questão burocrática deagenda presidencial coube ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, noentanto, cuja política externa seguiu o caminho apontado pelos liberais, enão ao nacionalista Itamar Franco implementar a participação do Brasil nafase inicial da CPLP. Por essa razão, a participação brasileira ficou no nívelda mera formalidade, a ponto de renunciar à Secretaria de instalação dainstituição sob o argumento que esse lugar cabia a Angola pela força docritério da ordem alfabética.

Além disso, deve ser considerada também nessa análise geral dadistância que Brasil e Portugal mantém entre si no contexto do sistema

Brasil e Portugal

Page 20: Revista da Escola de Guerra Naval

21

internacional a tensão que há em relação aos objetivos prioritários fixadospelos nacionalistas dos dois países na CPLP.

A imensa importância que a diplomacia portuguesa atribui à liderançada CPLP é um dos principais fatores, senão mesmo o principal, que temdeterminado o baixo perfil do Brasil na Comunidade. Os formuladores depolítica externa de Portugal consideram que o país tem o direito histórico deexercer a liderança da Comunidade, e que a liderança constitui instrumentoimprescindível para a projeção internacional do país. Esse direito históricose deve, segundo os portugueses, ao fato de Portugal ser a matriz cultural efonte do idioma falado pelos povos da Comunidade. Na equação queformulam, a projeção sobre a Comunidade aumenta o peso específico do paísna União Européia, e o prestígio que a União Européia confere aumenta suaprojeção nas áreas onde o idioma português é falado.

Segundo editorial da Revista Proelium, órgão da Academia Militar:Portugal procura salvaguardar os seus

interesses nacionais pelo impulsionamento de valoresculturais e lingüísticos, obtendo assim maior peso naUnião Européia e aumentando substancialmente a suaárea de influência. Os mais de 5 milhões deportugueses e luso-descendentes que constituem hojeoficialmente a diáspora portuguesa estão espalhadospor cerca de 40 países dos vários continentes,formando Comunidades especialmente relevantes naÁfrica do Sul, Alemanha, Brasil, Canadá, França eVenezuela, materializando-se como veículosfundamentais de divulgação da língua portuguesa. AoEstado português compete o desenvolvimento depolíticas de cooperação com os países acolhedores, deforma a criar incentivos na área cultural e econômica,e a desenvolver sinergias daí resultantes. Os interessesnacionais poderão ir até onde houver cidadãosnacionais, assim Portugal os saiba utilizar comoinstrumentos de projeção e afirmação da Lusofonia(LEAL, 2008, p.8).

Pelo fato de nunca ter tido uma política de difusão da língua comoparte de sua política externa, o Estado brasileiro atribui à Comunidaderelevância econômica e estratégica. Sendo que, por essas razões, a prioridadebrasileira são as relações com Angola. Essa prioridade se justifica, do pontode vista da defesa, por Angola ser parte integrante da Comunidade de paísesribeirinhos ao Atlântico Sul e, do ponto de vista da economia, se justifica porAngola ser dentre todos o mais promissor, em virtude das riquezas que possui.

Nos marcos da política externa executada pelo Presidente Lula da

Williams Gonçalves

Page 21: Revista da Escola de Guerra Naval

22

Silva, de orientação nacionalista, segundo a classificação aqui adotada, adiplomacia brasileira tem atuado no sentido de fazer sentir sua presença naCPLP, de uma maneira geral, e em Angola, de uma maneira muito especial.Em decorrência da pacificação do país, depois de longo período de guerracivil, o crescimento econômico tem sido notável, o que abre inúmerasoportunidades de negócios. Entre 2007 e 2008 as exportações brasileirascresceram 62%, sendo mais de 80% de produtos industrializados, o que colocaAngola numa destacada posição de parceiro comercial do Brasil (ANGOLA,2008). Nesse sentido, o Brasil tem buscado competir diretamente com aquelespaíses que ali têm atuado, incluindo Portugal. E, em virtude de seu maiorpeso econômico, o Brasil tem sido parceiro importante na reconstrução deAngola. Segundo o presidente da Agência Brasileira de Promoção deExportações Alessandro Teixeira: “O Brasil trabalha para ser o principalfornecedor de infraestrutura de Angola, posicionando-se como parceiroestratégico ideal para o desenvolvimento do país, mesmo porque o nossorelacionamento não envolve apenas negócios, mas também entretenimento,turismo, cultura e educação” (EMPRESAS..., 2009).

A nova disposição da diplomacia brasileira de apoiar decididamenteas ações dos empresários brasileiros que buscam bons negócios em Angolacombina-se com a decisão de regulamentar o Acordo Ortográfico, em 2008, eoperar as mudanças na ortografia, a partir de janeiro de 2009, para unificara grafia do idioma, o que, enfim, deve acirrar a disputa pela projeção entreBrasil e Portugal no mundo de língua portuguesa.

Considerações Finais

Ao chegar ao fim de nossa análise, julgamos ter contribuído de algumaforma para esclarecer a questão do sentimento de insuficiência das relaçõesBrasil-Portugal.

Como vimos, para o entendimento dessa questão é necessário que setenha em vista a existência das dimensões transnacionais e do sistemainternacional nas relações bilaterais.

As relações transnacionais são intensas. Elas se alimentam da matrizcultural comum e do grande interesse que as coisas de cada país despertamna sociedade do outro.

As relações entre os Estados apresentam características muito diferentesdas relações transnacionais. Os dois Estados têm peso específico muitodiferente no sistema internacional, em função das dimensões, da populaçãoe do nível de desenvolvimento econômico. Além disso, operam em contextosgeoestratégicos diferentes. Enquanto o Brasil assume cada vez mais

Brasil e Portugal

Page 22: Revista da Escola de Guerra Naval

23

decididamente a liderança política da América do Sul e se torna interlocutorválido no círculo das grandes potências, Portugal encontra-se cada vez maisintegrado à União Européia. E a África, que era área de exclusiva projeção dePortugal, torna-se, por sua vez, em função do crescimento econômico daprópria África e do Brasil, área de projeção brasileira.

Referências

ANGOLA, 2008. Disponível em: <http://www.apexbrasil.com.br/portal_apex/publicacao/ engine.wsp?tmp.area=27&tmp.texto=4001>. Acesso em: 13 jul. 2009.

ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília, DF: UNB, 1979.

______. Os últimos anos do século. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

BOBBIO, Norberto. Três ensaios sobre a democracia. São Paulo: Cardim-Alario,1991.

CERVO, Amado; MAGALHÃES, José Calvet. Depois das caravelas: as relaçõesentre Portugal e Brasil 1808-2000. Brasília, DF:UNB, 2000.

COSTA, Sergio Corrêa da. A diplomacia do general: intervenção estrangeira narevolta da armada. Brasília, DF:UNB, 1979.

EMPRESAS brasileiras buscam novos negócios em Angola durante feirainternacional. Disponível em: < http://www.brasilportugal.org.br/sc/content.php?sec=17&ctg=noticias>. Acesso em: 14 jul. 2009.

FREIXO, Adriano de. De volta ao Atlântico: Portugal e a construção do “espaço dalusofonia”. In: Anais do Museu Histórico Nacional, v. 35, Rio de Janeiro: [s.n],2003. p. 397-406

GONÇALVES, Williams da Silva. O realismo da fraternidade: Brasil-Portugal.Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003.

GONÇALVES, Williams; SILVA, Guilherme A. Dicionário de relaçõesinternacionais. São Paulo: Manole, 2005.

LEAL, João Luís Rodrigues. Editorial. Revista Proelium: revista da academia militar,Lisboa, série 4, n. 9, p. 7-10, 2008.

SILVA, Alberto da Costa e. Brasil, Portugal e África. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin(Org.). Incertas Relações: Brasil-Portugal no século XX. São Paulo: Senac, 2003.

Williams Gonçalves

Page 23: Revista da Escola de Guerra Naval

25

Política Externa e Defesa na PrimeiraMetade do Século XX

Guilherme Mattos de Abreu*

Resumo

O foco do presente artigo é despertar o interesse dos pesquisadoresem relação ao tema Diplomacia da Defesa aplicada à História doBrasil.Constata-se que alguns autores apontam que a diplomaciabrasileira prescindiu do braço armado como instrumento depolítica externa, em maior parte do século XX. Na verdade, noBrasil, é pouco percebida a abrangência de atuação do segmentoDefesa como instrumento de poder de uma nação no exercício desua política externa.Especificamente na primeira metade do século XX, ocorreramsituações em que os denominados “Instrumentos Militares” foramempregados em sua versão extrema: a guerra. Tais eventosencerram lições relevantes e merecem ser estudados sob aperspectiva da política externa, o que é proposto neste artigo.Palavras-chave: Brasil - Defesa - Diplomacia - Forças Armadas.

Abstract

The focus of the present article is to foster the interest ofresearchers in the Defense Diplomacy in Brazilian recent history.Some writers have mentioned that the Brazilian diplomacy didnot employ the armed forces as a tool in its foreign policiesduring most of the twentieth century. In fact, the scope of thework of the Defense as an instrument of power for a nation in theexercise of its foreign policies is little perceived in Brazil.Specifically in the case of the first half of the 20th century therewere certain occasions in which the so called “MilitaryInstruments” were deployed in their extreme version, i.e., thewar. Such events contain very important lessons which, therefore,deserve being investigated under the aforementioned perspectiveof the foreign policies, and this is the purpose of the presentarticle.Keywords: Armed Forces - Brazil - Defense - Diplomacy.

* Contra-Almirante - Escola Naval, Chefe do Departamento de Ensino

Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 25-50.

Page 24: Revista da Escola de Guerra Naval

26

….. la historia, … , depósito de las acciones, testigode lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia delo por venir.

Miguel de Cervantes

A História sempre foi, em todos os tempos, amaior fonte de ensinamentos de que dispõe aHumanidade.

Vice-Almirante João do Prado Maia (1961)

Alguns escritos apontam que a diplomacia brasileira prescindiu dobraço armado como instrumento de política externa, em maior parte do séculoXX. Esse posicionamento minimiza a importância de eventos que encerramlições significativas, ainda que possam ser avaliados como em pequenonúmero, comparativamente a outras nações, considerando a estatura de nossopaís. O fato de o Brasil sempre ter primado pela busca de soluções pacíficaspara as controvérsias não é justificava para se olvidar experiências passadase, ao confinar o foco ao emprego clássico do Poder Militar, ignorar o vulto doque a Diplomacia da Defesa realiza no presente; bem como dificultar oaproveitamento de todo o seu potencial, por imaginá-la pouco relevante.

Em nosso país, é relativamente pouco percebida a abrangência deatuação do segmento Defesa como instrumento de poder de uma nação noexercício de sua política externa. O segmento está presente, até mesmo, emmeio àqueles instrumentos classificados como não-militares, pois atua emapoio à diplomacia tradicional, conduz parcela significativa da diplomaciaparalela e contribui para a viabilização de instrumentos econômicos.

A leitura frequente de publicações e artigos relacionados à políticaexterna e à Defesa permitiu-nos também constatar que, em nosso país, é poucocomum o estudo desses dois temas integrados, consoante uma perspectivahistórica.

Entretanto, especificamente na primeira metade do século XX, ocorreramsituações em que os denominados “Instrumentos Militares” foram empregadosem sua versão extrema: a guerra.

Tais eventos encerram lições relevantes, e que, portanto, mereceriamser estudados sob a perspectiva da política externa. Trata-se de assuntomuito amplo para ser desenvolvido com abrangência no limitado espaçodisponível nesta revista. Em verdade, despertar o interesse dos pesquisadorespara essas ações, para as suas consequências e de como o Brasil portou-secaso a caso, transformou-se em nosso principal objetivo.

No período abrangido por este breve estudo, o uso das Forças Armadas(FA) como instrumento de política externa, embora significativo, não pareceter ocorrido de maneira planejada, articulada e com visão de longo prazo.

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

Page 25: Revista da Escola de Guerra Naval

27

Oportunidades foram desperdiçadas. Não se levou na devida conta,inclusive, que estas se configuraram em função de esforços e sacrifíciosdesenvolvidos em etapa anterior.

Por oportuno, ainda que, em um posicionamento extremo, se possaconsiderar que “a diplomacia brasileira não encara o Poder Militar como ferramentaessencial de projeção dos interesses nacionais”; e que, “ao longo do século XX, oItamaraty jamais pode contar com um aparato militar que lhe permitisse maior latitudede atuação”, como aponta João Paulo Soares Alsina Jr 1 (ALSINA JR, 2008, p.68), torna-se importante salientar que, no ambiente complexo em que sãoconduzidas as decisões de governo, múltiplos atores, de formação e bagagemde conhecimentos diferentes, como políticos e militares, foram relevantes nosprocessos decisórios que levaram ao emprego das Forças Armadas no exteriorna época em análise.

Nos tempos do Barão

A revolta dos “dreadnoughts”, em 1910, foi, paraRio Branco, um abalo tremendo. Sonhara ele um Brasilforte e capaz de, pela sua união e tranqüila robustez,dominar os destinos desta parte sul do Continente.Circunvagando os olhos pela baía ameaçada e pelacapital prestes a padecer os horrores do fratricídio, ogrande brasileiro teria talvez compreendido quãolonge nos achávamos do seu ideal ...

Carlos de Laet 2

O Brasil era um país relativamente pobre ao ingressar no século XX.Possuía, aproximadamente, as mesmas dimensões continentais de hoje, sendoque as fronteiras não estavam perfeitamente delineadas em muitas regiões (oAcre foi a única aquisição territorial relevante desde então). A população,cerca de 17,5 milhões de habitantes, era constituída por 65,3 % de analfabetos,entre os maiores de quinze anos. Desde a proclamação da República, em1889, vivia em crises e revoluções sucessivas, inclusive com confrontossangrentos, até mesmo na Capital.

No campo externo, dava continuidade aoisolamento político e cultural em que viveu ao longodo século anterior. Os fatos da política interna eregional se sobrepunham a qualquer outro tema

Guilherme Mattos de Abreu

1 João Paulo Soares Alsina Jr é Diplomata.2 Carlos de Laet in Rio Branco, Revista Americana, abril de 1913, página 20, conformereproduzido em LINS, 1996, p. 438.

Page 26: Revista da Escola de Guerra Naval

28

internacional. Um bom exemplo é argumentaçãoapresentada pelo nosso governo ao governo russo,justificando-se por recusar o convite para participarda Primeira Conferência de Paz de Haia (1899): “.... oBrasil se recolhe para refazer suas forças, e procuraafastar-se o mais possível de questões que lhe nãoafetem diretamente, .....” 3

As nossas atenções estavam voltadas para a América do Sul, ondeexistiam temas relevantes como a crise acreana – um dos mais sérios problemasdiplomáticos enfrentados pelo Brasil em sua história; buscando aproximaçãoe boa vizinhança com as demais repúblicas.

No final do século XIX, as relações comArgentina pareciam evoluir positivamente. Ummarco importante deste relacionamento seria aprimeira troca de visitas entre os Presidentes dos doispaíses (1899 e 1900). Uma situação efêmera – mais umepisódio dos avanços e recuos que caracterizam asrelações entre os dois países ao longo da história. 4

Ao norte, os Estados Unidos, sob a liderança de Roosevelt, nasciamcomo potência mundial, moldando o que os norteamericanos denominariamde “American Century”.

É neste cenário que José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do RioBranco, assume a pasta das Relações Exteriores, em 1902. Em sua gestão,para apoiar a política externa, Rio Branco procurou obter o respaldo do PoderMilitar, que então era insuficiente e que, portanto, necessitava ser ajustadopara um nível que conferisse credibilidade. No longo período em que exerceuo cargo de Ministro, reestruturou-se o Exército e modernizou-se a Marinha,por sinal, então muito deteriorada, em função dos conflitos internos queocorreram no início da República. Nessa época, em boa parte por influênciade Rio Branco, o tema Defesa virou motivo de discussão nacional, sendodebatido na mídia e no Congresso. O Barão defendia a tese de que eranecessário ser forte para ser pacífico. 5

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

3 Trecho da resposta oficial do governo brasileiro ao convite russo para participar da 1ªConferência de Haia, conforme publicado em CARDIM, 2007, p. 61.4 Ainda que os dois países sejam vocacionados à parceria, esta é a realidade histórica. Amaré positiva iria refluir alguns anos depois, no governo de José Figueroa Alcorta (1906-1910), particularmente em função de seu Chanceler, Estanislau Severo Zeballos, que, mesmoantes de ser ministro, protagonizava uma agressiva postura antibrasileira.5 Mas não se pode ser pacífico sem ser forte, como não se pode, senão em intenção, ser valente sem serbravo. Discurso de agradecimento do Barão do Rio Branco, por ocasião de homenagem noClube Militar, sem data indicada (ANTUNES, 1942. p.102.)

Page 27: Revista da Escola de Guerra Naval

29

Em sua gestão, Rio Branco teve algumas frustrações com relação aoPoder Militar. O Exército, basicamente por falta de estrutura logística,mostrou-se lento para atender a solicitação do Chanceler para que deslocassetropas para a fronteira com o Peru, enquanto se processavam as negociaçõescom aquele país (o Peru, antecipando-se, ocupara extensas áreas litigiosasno Alto Purus e no Alto Juruá (1904)). Ocorrência que mereceria do Barão umdesanimado registro, em 27 de maio de 1904:

Estamos a perder tempo e a dar tempo ao Perupara que se reforce e fortifique em Iquitos, no Juruá eno Purus. Qualquer das republiquetas da AméricaCentral poria de 6 a 8.000 homens prontos para operarem poucos dias. Fui ter com o Presidente para lhemanifestar a minha contrariedade diante de tantosadiamentos, quando desde tanto tempo, no interesseda paz, eu peço e insto que nos mostremos fortes eprontos .... 6

A Revolta dos Marinheiros de 1910, ao demonstrar que a modernizaçãodo material não fora acompanhada da evolução da capacitaçãoorganizacional, tecnológica e das tripulações, exporia as fragilidades de umaEsquadra aparentemente poderosa, mas que consistia “uma exteriorização depoder em bases frágeis”, como apontou o Almirante Joaquim Marques Baptistade Leão, Ministro da Marinha à época. Esquadra que tinha sido modernizadapara respaldar a política externa e que tivera como um de seus incentivadoreso próprio Chanceler.

Estes parágrafos destacam como o preparo e o emprego das ForçasArmadas demandam tempo de maturação e recursos de naturezadiversificada, bem como são dependentes dos demais segmentos do PoderNacional.

O Século Americano8

Eu juro fidelidade à bandeira dos EstadosUnidos da América e à República que ela representa:uma Nação sob Deus, indivisível, com liberdade ejustiça para todos.

Juramento à bandeira proferido rotineiramentepelos alunos das escolas de nível elementar nos EUA.

Guilherme Mattos de Abreu

6 A avaliação de Luiz Viana Filho é que o Barão, devido à sua ansiedade, teria descrito asituação pior do que realmente era, visto que as Chancelarias se entenderiam algumtempo depois (VIANA FILHO, p. 392 e 393).

Page 28: Revista da Escola de Guerra Naval

30

Se fosse possível a um viajante deslocar-se no tempo e visitar os EstadosUnidos nas primeiras décadas do século XX, em função de seus referenciais,espantar-se-ia ao encontrar desemprego acentuado, trabalho infantil, pobrezae um número expressivo de famílias vivendo em habitações precárias ou emcortiços, em locais que hoje são imagens de cartão postal.

Como então os Estados Unidos transformar-se-iam na maior potênciado mundial, ao longo do século, o qual, orgulhosamente, os norteamericanosdenominam de “O Século Americano”? É fato que existiam condicionantesgeopolíticas e conjunturais favoráveis (localização geográfica, dimensãoterritorial, população, abundância de recursos naturais, o advento da era dopetróleo, ...). Independente de qualquer crítica negativa que possa serapresentada, existem peculiaridades que indicam que esse desenvolvimentofoi um processo de construção, tornado possível em função de algumascaracterísticas positivas da idiossincrasia daquele povo, as quais contrastam,em maior ou menor grau, com o que se observa na América do Sul.

O povo norteamericano destaca-se por cultuar os valores nacionais,pela valorização dos construtores da nação e por aqueles que se sacrificarampelo país, bem como pelas frequentes manifestações de patriotismo –características geradoras de coesão, a qual facilita o enfrentamento desituações complexas e relevantes. A sociedade estimula o trabalho, acompetição e o desenvolvimento de talentos, os quais, mais tarde, irãodespontar nos vários ramos da atividade humana. Chama a atenção opragmatismo de se capitalizar os ganhos obtidos nas etapas anteriores, ao seiniciar uma nova fase (mesmo quando, por divergência de proceder, osmétodos sejam reformulados), e, principalmente, o exercício do aprendizadocontinuado a partir das experiências vividas, sejam intencionais ou

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

7 Ilustrações de autoria do Capitão-de-Corveta (T-RM2) Rogério Domingos dos Santos.

Page 29: Revista da Escola de Guerra Naval

31

imprevistas. Especificamente em relação ao nosso tema, foram selecionadosdois exemplos:

A Grande Esquadra Branca 8 – Uma das mais impressionantesdemonstrações de força realizadas na história foi a viagem de circunavegaçãoempreendida por dezesseis encouraçados norteamericanos e navios menorespor ordem do Presidente Theodore Roosevelt, entre 16 de dezembro de 1907a 22 de fevereiro de 1909. Essa Esquadra passaria à história com o nome dea “Grande Esquadra Branca”.

Roosevelt tinha consciência da importância de uma Marinha forte comoinstrumento de prestígio e de poder na seara internacional. Impressionara-se com o drama da Esquadra russa derrotada pelos japoneses na Batalha deTsushima 9 (1905). Via o Japão como uma ameaça potencial.

Para Roosevelt, o deslocamento em massa da Esquadra era puradiplomacia, um treinamento inigualável, um espetáculo de poder e,principalmente, uma oportunidade para que as limitações logísticas, as falhase os erros surgissem em tempo de paz. De fato, as mais diversas limitações edeficiências apareceriam ou seriam ressaltadas (e solucionadas,posteriormente): desde a sistemática de promoções, que fazia com que osoficiais chegassem aos mais altos postos muito velhos e sem resistência física,à inadequabilidade dos uniformes em climas quentes; da conveniência em semodificar a pintura dos navios (passariam à cor cinza), à necessidade debases de apoio no exterior e de navios abastecedores em qualidade equantidade adequadas (a fim de reduzir a dependência de navios mercantesestrangeiros contratados); entre outras.

O Exército dos EUA na I Guerra Mundial

O Exército Norteamericano em campanha na Europa muito se ressentiudo apoio deficiente que recebeu do sistema de mobilização industrial dos EUA.O Alto Comando e alguns elementos da Força Expedicionária norteamericanachegaram a Paris no início de junho de 1917, em pleno verão, mas atrasos norecrutamento e no treinamento e dificuldades de transporte fizeram com a quea Força só estivesse em condições de combate na primavera (hemisfério norte)

Guilherme Mattos de Abreu

8 ABREU, Diplomacia Naval (Caderno de Estudos Estratégicos no 6, Escola Superior deGuerra) 2007, p. 163.9 A batalha de Tsushima ocorreu entre 27 e 28 maio de 1905. Foi a última e decisivabatalha naval da Guerra Russo-Japonesa (1904–1905). Nesta batalha, a esquadrajaponesa, sob o comando do Almirante Heihachiro Togo, destruiu dois terços da esquadrarussa, comandada pelo Almirante Zinov Rozhestvenky. Para enfrentar os japoneses, osrussos realizaram uma épica e longa viagem de 18.000 milhas náuticas (33.000 km), doMar Báltico ao Extremo Oriente.

Page 30: Revista da Escola de Guerra Naval

32

do ano seguinte. Despreparados, os militares dos EUA passaram a utilizarmaterial britânico e francês para suprir as suas deficiências.

Após a guerra, tal desempenho provocaria uma série dequestionamentos no âmbito do Congresso e do Departamento da Guerra, osquais tinham como foco a necessidade de se criar sistemas logísticosadequados e de formar líderes militares capazes de responderapropriadamente a qualquer contingência no futuro.

O Colégio Industrial do Exército (Army Industrial College) foi criado emfunção desses questionamentos (1924). Mais tarde, com a extinção dosDepartamentos da Marinha e da Guerra e a criação do Departamento deDefesa, o Colégio passaria a denominar-se Colégio Industrial das Forças Armadas(Industrial College of the Armed Forces – ICAF) (1946). Posteriormente, seriaintegrado à Universidade Nacional de Defesa (National Defense University –Washington D. C.) (1976). Em seu corpo discente, o ICAF possui militares ecivis, inclusive alunos oriundos do setor privado.

A I Guerra Mundial (I GM)

Em presença da insurreição armada contra odireito positivo, a neutralidade não pode ser aabstenção, não pode ser a indiferença, não pode serinsensibilidade, não pode ser o silêncio.

Ruy Barbosa (1916) 10

Consinta o glorioso precursor de nossa políticaexterna na conflagração européia que lhe enviefelicitações muito amigas pela assinatura da paz. (...)Parece exato o que acabo de ler numa revista do norte,que o Brasil tem três grandes datas externas: aIndependência, a Abolição e a sua internacionalizaçãoque é sua entrada na guerra da Europa.

Nilo Peçanha, em carta a Ruy Barbosa (29 dejunho de 1919) 10

O nosso país foi o único país latino-americano a declarar guerra àsPotências Centrais, por ocasião da Primeira Guerra Mundial.

O Brasil declarara-se neutro em 4 de agosto de 1914, mas fricções com a

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

10 Conferência na Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires (14/07/ 1916).O debate ideológico entre anglófilos e germanófilos foi intenso, no Brasil, no período de1914 a 1918. Rui Barbosa participou ativamente dessa discussão, criticava duramente apolítica alemã e defendia a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados. (CARDIM,2007, p. 241).11 CARDIM, 2007, p. 52.

Page 31: Revista da Escola de Guerra Naval

33

Alemanha tornar-se-iam inevitáveis. O país possuía a maior frota mercante (377navios) da América Latina, sendo respeitável para os padrões internacionais deentão. Com a carência de embarcações no exterior, navios brasileiros estenderamas suas rotas para portos antes dominados pelos britânicos e tornaram-se alvosde submarinos alemães, a despeito de nossa neutralidade.

Em 5 de abril de 1917, o Navio Mercante (NM) Paraná foi torpedeado eafundado nas costas da França, ocorrendo três óbitos. Em 20 de maio, doisoutros navios foram afundados em águas européias. Em 1º de junho, oBrasil revoga a sua neutralidade.

Em decorrência desses ataques, o povo foi às ruas, clamando por umareação mais forte do Governo. A causa era apoiada ou insuflada por políticosde oposição, como Rui Barbosa, que, em discurso declarara que o mero abandonoda neutralidade não seria suficiente e que nada além da entrada na guerrasatisfaria a nação. Por fim, o afundamento do NM Macau, ao largo da Espanha,em 18 de outubro, levou o nosso país a reconhecer e proclamar “o estado deguerra iniciado pelo Império Alemão contra o Brasil” (26 de outubro de 1917).Outros três NM brasileiros ainda seriam atacados antes de findar o ano.

O plano brasileiro, inicialmente, limitava-se à proteção do tráfegomercante contra submarinos e unidades de superfície alemães, em águascosteiras. Em águas internacionais e no exterior era dependente da proteçãoaliada. A Alemanha pouco poderia ameaçar o nosso país, ainda que tenhamocorrido combates navais no Atlântico Sul.

Mas, respondendo às pressões internas, o governo brasileiro, por ocasiãoda Conferência Interaliada que se reunira em Paris (20 de novembro a 3 dedezembro de 1917), colocou três contribuições à disposição das potênciasaliadas: uma Divisão Naval, uma missão médica e um grupo de aviadoresnavais. Em 21 de dezembro, o governo britânico solicitou ao Brasil o envio decruzadores e contratorpedeiros para a zona de guerra, sob o controleoperacional e apoio logístico do Almirantado britânico, recebendo respostapositiva em 31 de dezembro. 12

Com esforço acentuado, a Marinha preparou uma força naval,denominada “Divisão Naval em Operações de Guerra” – DNOG (formalmentecriada em 30 de janeiro de 1918), constituída por dois cruzadores, quatrocontratorpedeiros, um tênder (navio de apoio logístico) e um rebocador de

Guilherme Mattos de Abreu

12 A proposta brasileira seria materializada com alguns ajustes. A Divisão Naval foiconstituída; a missão médica, composta por civis e militares, se estabeleceria na França; ogrupo de aviadores, acrescido de um oficial do Exército, foi incorporado à Real Força ÁreaBritânica; além disso, alguns oficiais da Marinha e do Exército foram destacados naMarinha Real Britânica e no Exército Francês.

Page 32: Revista da Escola de Guerra Naval

34

alto mar. Embora relativamente novos, a verdadeira revolução que ocorrerana construção naval militar desde que foram encomendados tornara essescruzadores e contratorpedeiros obsoletos em curto espaço de tempo. A quasetotalidade desses navios apresentava algum problema técnico relevante,decorrente da precariedade das instalações de manutenção no Brasil. Alémdisso, o combustível utilizado era o carvão importado.

Somente em 31 de julho, a DNOG partiu de Fernando de Noronha(ponto de reunião) para a África, onde enfrentaria um inimigo traiçoeiro – agripe espanhola – que, no seu ápice, incapacitaria a quase totalidade dastripulações. Em Dakar, foram 150 óbitos; 250 enfermos foram enviados devolta ao Brasil, onde muitos morreram. Algumas poucas missões foramcumpridas. A Guerra chegava a seu final. Em 11 de novembro de 1918assinou-se o armistício.

A atuação brasileira na I GM foi militarmente inexpressiva. Isto nãosignifica ignorar os esforços custosos e admiráveis realizados, considerando aslimitações de um país agrário como era o Brasil à época. Tais deficiências fizeramcom que a prontificação de uma força naval nas dimensões da DNOG tardassecerca de seis meses. Isso requereria poucas semanas em qualquer das grandespotências! Apesar disso tudo, a Divisão materializou-se e foi útil naquele cenário.

A DNOG, com suas dificuldades e limitações, representou um alertapara necessidade de que as Forças Armadas estejam sempre prontas eadestradas. Alerta que cairia no esquecimento, considerando as condiçõesem que ingressamos na Segunda Guerra Mundial.

Apesar de modesta, a contribuição teve significado político: Emconsequência da participação militar, o país ganhou o direito de se fazerrepresentar na Conferência de Paz de Versalhes e, mais tarde, a ocupar papelde relevo na Liga ou Sociedade das Nações, fazendo parte de seu Conselho,o qual é o antecedente jurídico do Conselho de Segurança da ONU.

No período entre Guerras

E hoje, quando a humanidade estua de paixões,de interesses feridos, de transformações sociaisintensas; em que o espectro da guerra ergue-se,tremendo, por cima dos cinco continentes; ..... o Brasil,espapado na calma de um colosso confiante, vê-seenfraquecer dia a dia, e dia a dia recua na escala dasnações fortes. E o Brasil precisa reagir!

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

13 Vice-Almirante (Ref) Hélio Leôncio Martins. Publicado originalmente no editorial darevista A Galera, dos Aspirantes da Escola Naval, em dezembro de 1934.

Page 33: Revista da Escola de Guerra Naval

35

O então Aspirante Hélio Leôncio Martins (1934) 13

A situação atual do material flutuante e dosserviços auxiliares não satisfaz aos respectivosobjetivos. Velhos navios de quase trinta anos de vida,não mais suportando as reparações que a cada instantese fazem necessárias; ausência completa de meios paraa fabricação dos elementos bélicos, obrigando àdependência da indústria estrangeira, onde nemsempre é possível obtê-los, principalmente nosperíodos agitados da política européia; .....

Vice-Almirante Henrique Aristides Guilhem,Ministro da Marinha (1940) 14

No campo interno, o período entre Guerras é conflituoso e de profundastransformações: Revolta da Escola Militar do Realengo e do Forte deCopacabana (1922); Revolução de 1923 (Rio Grande do Sul); Revoluções emSão Paulo (1924 e Constitucionalista de 1932); Coluna Prestes (1925 a 1927);Revolução de 1930, que culminou com a deposição do Presidente daRepública, Washington Luís, impedimento da posse do presidente eleito,Júlio Prestes, e pôs fim à República Velha; Intentona Comunista (1935); golpede estado de 1937 (instituiu o Estado Novo); Levante Integralista (1938);movimento anarquista; etc. As consequências internas da crise de 1929 (aGrande Depressão) acrescentaram novos complicadores ao período. Com talgama de problemas internos, a atenção à política externa seria afetada eperderia prioridade.

Ainda assim, o pós-guerra registra um movimento das Forças Armadasna busca do aperfeiçoamento e atualização, com a instalação da MissãoMilitar Francesa, em 1920; e da Missão Naval Americana, em 1922. Entretanto,os resultados materiais seriam insatisfatórios, considerando o estado em queas FA permaneceram ao longo do período, como assinala o jovem AspiranteLeôncio, em 1934, e afirma, em relação à Marinha, o seu Ministro, em relatórioencaminhado ao Presidente da República, em 12 de maio de 1940.

Especificamente com relação à política externa, uma ocorrência chamaa atenção: a saída do Brasil da Liga das Nações, em 1926.

Com a ativação da Liga das Nações (1919), o Brasil - incluído no rol de“países com interesses limitados” - foi indicado como Membro Temporário deseu Conselho (que é o antecedente jurídico do Conselho de Segurança daONU, como já mencionado), sendo sucessivamente reconduzido. Ao longoda presidência de Epitácio Pessoa (1919-1922), o Brasil, satisfeito com o status

Guilherme Mattos de Abreu

14 Relatório do Ministro da Marinha ao Presidente da República, referente ao triênio de1937 a 1939, datado de 12 de maio de 1940. Disponível no Arquivo da Marinha.

Page 34: Revista da Escola de Guerra Naval

36

alcançado, teria uma presença ativa na Liga. A ausência dos EUA conferiumaior peso relativo ao nosso país, moldando uma conjuntura favorável que,por algum tempo, seria bem aproveitada, pois o Brasil esforçou-se por terbom desempenho e manter a posição no Conselho.

No Governo Artur Bernardes (1922-1926), as diretrizes para a políticaexterna passaram a carecer de consenso. Pode-se dizer que era provinciana,formulada de dentro para fora, visualizando os fatos internacionais segundouma perspectiva unilateral ou nacional (GARCIA, 2005, p. 73). Nessecontexto, o Governo, irrealisticamente, passou a ambicionar mais do quepodia - o status de membro permanente para o Brasil -, baseado, entre outrascoisas, no fato de tratar-se do representante das Américas (sem se concertaradequadamente com os “representados”, correndo o risco de não obter apoio,como de fato aconteceu). Em suma: um objetivo que carecia de realismo.15, 16

O Conselho da Liga adotava a regra de unanimidade para as decisões,o que conferia o poder de veto a todos os membros. Portanto, qualquer país,fosse membro transitório ou permanente do Conselho, tinha condições debloquear o sistema.

Em 1926, o Brasil se retiraria da Liga, por não ter obtido status de membropermanente. O fez ruidosamente, antes vetando o ingresso da Alemanha, aqual teria status de grande potência - ou seja, seria membro permanente 17.Em 12 de junho de 1928, oficializou a sua saída definitiva. Em sua nota, ogoverno brasileiro argumentou que não era apenas ocupando uma cadeirana Assembléia ou no Conselho que um país poderia colaborar com a Liga;dispôs-se a participar, quando convidado, das conferências internacionais etrabalhos promovidos por ela, que julgasse de seu interesse; e informou quecontinuaria a colaborar com a organização, quando convidado e assimjulgasse conveniente. Argumentos que mereceriam um ácido comentário darevista norteamericana Time:

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

15 Segundo José Honório Rodrigues (1913-1987; foi docente do Instituto Rio Branco), nãohavia unidade de ação na condução da política externa brasileira à época. Aponta que oGoverno Bernardes, envolvido em uma série de problemas internos, buscaria encontraruma válvula de escape na política externa. (RODRIGUES, SEITENFUS, 1955. p. 288 e299).16 Nessa fase, em sua busca por status, o Brasil seria o primeiro país a instalar uma missãopermanente em Genebra, a qual, segundo Rodrigues, possuiria “meios funcionais e materiaiscom os quais as grandes potências da época não poderiam contar.” (ibidem, p. 291).17 Em decorrência dos Tratados de Locarno, negociados entre as potências européias, aAlemanha seria admitida na Liga das Nações com status de grande potência. A admissãoda Alemanha na Liga era uma condição sine qua non para a vigência dos acordos (ibidem,p.309). Entretanto, o fato do veto ter sido manifestado por país não-europeu e nãoparticipe dos acordos permitiu que os mesmos fossem consolidados, a despeito doadiamento do ingresso da Alemanha à Liga (ibidem, p.345).

Page 35: Revista da Escola de Guerra Naval

37

Claramente, a afirmativa brasileira é um puro casode “as uvas estão verdes”. Mas a sua conclusão veiculauma doutrina perniciosa. Ela sugere que os Estados daLiga podem evitar responsabilidades indesejadasdesligando-se dela, e esperar continuar obtendo muitasdas vantagens dos membros da Liga, mediante“colaboração”, à maneira dos Estados Unidos.18

Nesse episódio temos um caso de descompasso entre os finsperseguidos pela diplomacia e os meios nacionais disponíveis. Ao mesmotempo, o não-aproveitamento de um êxito por parte de nosso país.

Rodrigues aponta que essa crise inspiraria os redatores da Carta deSão Francisco, que criaria a ONU, pois, o direito de veto não seria generalizadoe comporia unicamente o poder dos membros permanentes do Conselho deSegurança. (RODRIGUES; SEITENFUS, 1955. p. 345).

Nesse período, observa-se um contraste entre as posturas do Brasil e daArgentina. A rivalidade regional se estendera ao cenário europeu, obviamente,tendo a Liga como um dos cenários (GARCIA, 2005, p.133.). Mas, ainda assim,o país vizinho, em uma primeira fase, mostrou-se relativamente pouco ativo nocenário internacional. Com a deposição do Presidente Juan Hipólito Iriguyene o início do governo General José Félix Uriburu (setembro de 1930), a Argentinarompeu com este padrão. O novo Presidente, rapidamente, recoloca o país nocenário internacional e oferece os serviços da Nação para solucionar os conflitosentre seus vizinhos (PETERSON, 1964, p. 367 - 393), a ponto de seu Chanceler,Saavedra Lamas, ser agraciado com o Prêmio Nobel da Paz (1936). Osargentinos manteriam um navio de guerra (Cruzador “25 de Mayo”, depoissubstituído pelo Torpedeiro “Tucumán”) na Espanha, com o propósito deproteger cidadãos argentinos residentes naquele país, então em guerra civil. No período em que lá estiveram (1936/1937), esses navios transladaram cercade 1500 refugiados espanhóis e de outras nacionalidades (inclusive brasileiros)para a França, Itália e Portugal. Dr Robert Scheina chama a atenção quanto aeste episódio único: navios de guerra de uma nação latino-americana sendoenviados para a Europa para exercer influência, na ordem inversa do queocorria há séculos (SCHEINA, 1987, p. 144).

A II Guerra Mundial (II GM) (1939-1945)

“O brasileiro é um bom soldado. Lamento ouvirque querem voltar para casa e não ir para a Áustria.”

Guilherme Mattos de Abreu

18 A expressão “as uvas estão verdes” alude à fábula “A Raposa e as Uvas”, atribuída a Esopo,reescrita por Jean de La Fontaine (The League Of Nations: Brazil Out, Time Magazine, 21/05/1928).

Page 36: Revista da Escola de Guerra Naval

38

Marechal-de-Campo Sir Harold Alexander,Exército Britânico, Comandante Supremo das Forças

Aliadas no Mediterrâneo (1945) 19

É sobejamente conhecido que os ataques dos submarinos do Eixo,particularmente os alemães, levaram o Brasil a ingressar na Segunda GuerraMundial. O país praticamente parou ao se restringir o tráfego marítimo, poisimportava a quase totalidade do que era necessário para a vida moderna.Além disso, éramos, na prática, um arquipélago, pois não possuíamos viasterrestres adequadas e de qualidade.

O primeiro navio atacado foi o Taubaté, no Mediterrâneo, metralhadopor um navio de guerra alemão, em 22 de março de 1941, quando faleceu umtripulante. De fevereiro a julho de 1942, treze navios seriam afundados.Finalmente, entre 15 e 19 de agosto, um único submarino alemão – U-507 –afundaria, na costa da Bahia e Sergipe, cinco navios mercantes, matando 607pessoas, entre passageiros e tripulantes.

Foi a atuação do U-507 que levou o Brasil à Guerra. Em 22 de agosto, ogoverno brasileiro reconheceu o estado de beligerância com a Alemanha eItália, que passou para Estado de Guerra, em 31 de agosto de 1942.

Quando a II GM irrompeu na Europa, o Brasil buscava evoluir de umasociedade basicamente agrária para os estágios iniciais de industrialização.As ameaças tradicionais representadas por seus vizinhos haviamdesvanecido com a fixação das fronteiras terrestres. Entre 1935 e 1940, oBrasil oscilava entre os interesses norteamericanos e germânicos. Por voltade 1940, a balança passou a pender para o lado norteamericano, por motivostanto pragmáticos quanto idealistas.

O recurso brasileiro mais valioso no conflito era a sua posiçãoestratégica, próxima ao saliente africano, permitindo que os aviões de então,de reduzido alcance, pudessem chegar à África voando. Além disso, todosos navios em trânsito entre o Atlântico Norte e o Atlântico Sul tinham quepassar por esse gargalo, o que o transformava em campo de caça para ossubmarinos do Eixo. Para os Aliados, também configurava a única regiãoem que podiam, com praticidade, confrontar as eventuais unidades desuperfície e os navios mercantes inimigos procedendo de e para o AtlânticoSul, Índico e Pacífico. Outro bem precioso era a marinha mercante brasileira,a quarta maior do mundo, à época. Para o esforço de guerra aliado, tambémera relevante manter o suprimento de matérias primas provenientes do Brasil.

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

19 “The Brazilian is a fine soldier. I’m sorry to hear they want to go home and not go toAustria.” (CUNHA, 2003. p.105.)

Page 37: Revista da Escola de Guerra Naval

39

As FA brasileiras estavam desatualizadas. Os indicadores do Brasiltambém eram muito precários. Em 1940, éramos pouco mais de 41 milhõesde habitantes, dos quais 69% residiam na zona rural; 56% dos indivíduoscom mais de quinze anos eram analfabetos.

A Marinha encontrava-se em situação material muito deficiente, devidoao abandono a que fora relegada pelos governos.

O Exército era relativamente fraco, a despeito do programa demodernização que iniciara, mas que seguia com dificuldade, por falta derecursos. A modernização, acordada com a Alemanha, estava sendo efetivadaà base de troca por produtos agrícolas e matérias primas – negociação que setornara, obviamente, difícil de concretizar com a Guerra.

O inventário da Força Aérea, recentemente criada, era despadronizado,composto por um grande número de marcas e modelos distintos, herdadosda Marinha e do Exército.

Foi com enorme esforço e com auxílio norteamericano que as ForçasArmadas se atualizaram e se reequiparam.

Guilherme Mattos de Abreu

No início da Guerra, a possibilidade de que forças do Eixo atacassem o NordesteBrasileiro esteve entre as preocupações das autoridades brasileiras, como sinalizao Memorando do General Cordeiro de Farias. O bilhete, oriundo do Comando da2ª Zona Aérea, dá conta de que o tráfego marítimo fora interrompido no salientenordestino por conta da presença de submarino, pouco mais de dois meses após acarnificina promovida pelo U-507. (documentos existentes no Arquivo da Marinha)

Page 38: Revista da Escola de Guerra Naval

40

O processo decisório que levou o Brasil a lutar na Itália

As preocupações iniciais do Brasil com relação à II GM limitavam-se àproteção do próprio território e ao tráfego mercante, o que motivaria oremanejamento de unidades e meios militares das três Forças.

Logo surgiriam propostas norteamericanas para que tropas brasileirasguarnecessem as ilhas dos Açores e de Cabo Verde (com o propósito de liberartropas portuguesas para a metrópole no Continente; ao que se opôs o ForeignOffice britânico) e atuassem na África. No fim de 1942, chegaram a sercogitadas ações independentes contra a Guiana Francesa, Guiana Holandesa(Suriname) e África Ocidental Francesa (Senegal), que não prosperaram,particularmente por carência de meios (SCHEINA, 2003. p. 166).

Mas, em dezembro de 1942, o Presidente Vargas assinalou que astropas brasileiras poderiam lutar ativamente na guerra e não apenas atuarmeramente como um contingente simbólico. No encontro de Vargas comRoosevelt em Natal (28 de janeiro de 1943), ocorreram entendimentos paraque o Brasil tivesse efetiva participação em combate. Roosevelt concordouem ajudar a reequipar e treinar as tropas brasileiras para lutar no exterior.

Scheina aponta que, considerando a experiência na Primeira Guerra,os brasileiros entendiam que apenas a participação em combate traria para anação, no pós-guerra, a influência no cenário internacional que buscavamobter (SCHEINA, 2003. p. 166).

Os registros do Marechal Dutra, então Ministro da Guerra, em relatórioao Presidente Vargas, no qual narrava viagem que fizera aos EUA,corroboram esta linha de pensamento: “Houve ainda quem, pessoa de altarepresentação, afirmasse que o Brasil iria buscar no próprio teatro da luta o seuprestigioso lugar na Conferência de Paz e, consequentemente, no convívio definitivodas potências, no pós-guerra .”20

Assim, o Exército Brasileiro passou a planejar o envio para o exteriorde uma força expedicionária composta por quatro divisões (totalizandoum efetivo de 100.000 homens), sendo que apenas uma divisão seriarealmente organizada e combateria na Itália. Sua prontificação foidemorada. O 1º escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB) partiupara a Itália somente em 2 de julho de 1944. 21

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

20 Relatório do Ministro da Guerra, Marechal Dutra, de 12 de outubro de 1942 (LEITE,NOVELLI JUNIOR, 1983, p. 613).21 Em 1944, a situação dos Aliados evoluíra e não havia mais uma demanda premente porreforços inexperientes em combate. O Alto Comando do Exército Norte-Americano não semostrava favorável ao envio de forças latino-americanas ao front, argumentando que oesforço para equipá-las, treiná-las e transportá-las não compensaria os ganhos políticosesperados. (ALVES, 2007, p. 77).

Page 39: Revista da Escola de Guerra Naval

41

A despeito das dificuldades iniciais, cessada a guerra, o Brasilencontrava-se prestigiado. Alguns registros da época indicam que a nossaparticipação era motivo de reconhecimento entre os Aliados, enquanto sedesenrolava o conflito. Mas a situação já assumia os novos contornos do queseria a Guerra Fria, mesmo antes de a II GM encerrar-se. O Brasil não seriabrindado com o reconhecimento que esperava no pós-guerra.

No entanto, é importante frisar que o Governo brasileiro não acolheu aproposta de que nossas tropas permanecessem na Europa, integrando asforças de ocupação 22, o que possibilitaria à FEB continuar mostrando a nossabandeira no exterior.

Trata-se de uma contradição: menos de um ano após a partida da FEB, emdecorrência de uma decisão que tem entre os seus fundamentos a busca pormaior inserção internacional, o Brasil recusou-se a continuar na Europa comoparte das forças de ocupação – vale dizer, da estrutura organizacional que serviriade base para a reconstrução da Europa.

Em suas memórias, o Embaixador Vasco Leitão da Cunha (que registrou adeclaração do Marechal Alexander que abre este tópico) lamentou a recusa,citando que nós, brasileiros, abdicamos das vantagens conquistadas e nãosabemos aproveitar as coisas que fazemos bem feitas. (CUNHA, 2003, p. 106.)

Em síntese, fez-se o difícil e rejeitou-se o mais simples, que era colher osresultados da vitória, mostrando a nossa bandeira. E o Brasil ficaria esperandopor um reconhecimento que não viria!

É oportuno registrar que a política norteamericana para América Latinadesarranjara-se no governo Truman (Democrata), que se confrontava com umCongresso de maioria republicana, conforme aponta Scheina (2003, p. 171.).Adicionalmente, o Presidente Truman não tinha conhecimento pleno doscompromissos entabulados por Roosevelt em seu longo governo. O fato é quemuito das informações se perderam. Franklin Roosevelt as levara para o túmulo!23

A frustração do Brasil ver-se-ia demonstrada em suas atitudes, quandoo país foi instado a participar no conflito que encerra esta narrativa: a Guerrada Coréia.

O último ato: A não-participação na Guerra da Coréia

A Guerra Fria trouxe alterações significativasnos alinhamentos da política externa americana, umavez que antigos aliados tornaram-se adversários e

Guilherme Mattos de Abreu

22 O Exército na História do Brasil - República (volume 3), 1998, p. 162.23 O Presidente Roosevelt faleceu em decorrência de uma hemorragia cerebral, em 12 deabril de 1945.

Page 40: Revista da Escola de Guerra Naval

42

inimigos recentes viraram parceiros. ... De uma formamenos dramática, mas com resultados igualmentenegativos, Washington também “perdeu” o Brasil, ....Ao fazê-lo, praticamente assegurou o declínio, emlongo prazo, de sua influência na América Latina.

Stanley E. Hilton 24

Lutamos a guerra passada e fomos inteiramenteesquecidos e recusados na partilha dos despojos.

Getúlio Vargas para Lourival Fontes, Chefeda Casa Civil (1951) 25

Chegamos ao fim deste meio século!No imediato pós-guerra, gerou-se no Brasil um otimismo considerável

em relação à possibilidade de se obter status internacional sem o necessárioPoder Militar, aponta Stanley Hilton. Também se acreditava na iminência deum influxo de capitais norteamericanos para impulsionar o desenvolvimentodo país. Essas expectativas não seriam atenuadas com a decepção surgidanas negociações finais da Carta da ONU, quando a aspiração brasileira deocupar um assento permanente no Conselho de Segurança viu-se frustrada.

O Embaixador Mário Gibson Barbosa, em suas memórias, registrou odesconhecimento vigente quanto ao realismo que imperava (e impera) napolítica externa norte-americana, exemplificando com um trecho de umamensagem do Presidente Richard Nixon ao Congresso dos EUA, que espelhaa postura típica: “Não estamos envolvidos no mundo porque temos compromissos.Temos compromissos porque estamos envolvidos. Nossos interesses devem dar formaaos nossos compromissos e não o contrário.” (BARBOSA, 1992. p. 202).

Mais adiante, o Embaixador argumenta:Quantas vezes me entristeci, como jovem

secretário de nossa Embaixada em Washington, noimediato pós-guerra, em 1946, 1947, 1948, 1949, ao verchegarem àquela capital sucessivas missões denegociadores brasileiros romanticamentedespreparados, que tudo o que traziam comoargumento para negociarem um empréstimo era aalegação, em uma página de papel, do esforço deguerra realizado pelo Brasil e do sacrifício das vidasde jovens nos campos de batalha da Itália. Eenfrentavam-se com experientes tecnocratas que,friamente, como é de praxe em negociações

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

24 HILTON, 1981, p. 599.25 GARCIA, O Brasil na Liga das Nações (1919-1926), 2005, p. 190.

Page 41: Revista da Escola de Guerra Naval

43

internacionais, exigiam números, estatísticas, PIBs, etc.(BARBOSA, 1992. p. 203). 26

É nesse contexto que, em maio de 1949, o Presidente Dutra viajaria aosEUA, realizando a primeira visita de um Chefe de Estado brasileiro a aquelepaís 27, com poucos resultados.

No ano seguinte, em junho, a Coréia do Norte invade a Coréia do Sul. OConselho de Segurança da ONU condena a agressão e conclama os seusmembros a assistirem à Coréia do Sul. Os EUA, imediatamente, enviamforças para aquele país, a fim de repelir os invasores. Em 14 de julho, oSecretario Geral da ONU alerta o governo brasileiro de que necessitavaurgentemente de tropas.

Os norteamericanos obtêm alguns sucessos iniciais, mas logo se vêemem dificuldade com a escalada do conflito. A administração Truman passaa esforçar-se em obter a participação de outros países, inclusive na AméricaLatina. O Brasil tornar-se-ia visado nessa busca. 28

O Presidente Dutra, em seus últimos meses de governo,compreensivelmente, recusou-se a ir além do apoio diplomático,argumentando que não poderia comprometer o próximo presidente comdecisão tão importante (ALVES, 2007. p. 139). Na ONU, em setembro, orepresentante brasileiro, ao abrir a V Sessão Ordinária da Assembléia Geraldas Nações Unidas, proferiu um discurso de tomada de posição 29 (CORRÊA,2007, p. 69).

No governo seguinte, o Presidente Getúlio Vargas, ante a situação,imaginou poder negociar a cooperação com o governo norte-americano. Comocondição, o governo apresentou uma extensa lista de reivindicações de auxíliomilitar e econômico, sendo que “tal ajuda deveria ser fornecida antes de o governo

Guilherme Mattos de Abreu

26 Há que se considerar, ainda, que existiam diferentes concepções quanto à forma comodeveriam chegar os recursos pleiteados. Washington tinha convicção de que odesenvolvimento seria mais bem obtido mediante capital privado e reivindicava legislaçãomais liberal, de modo a atrair os investidores estrangeiros (HILTON, 1981, p. 603)27 A viagem de D. Pedro II (1876) teve caráter privado. (GARCIA. Cronologia das RelaçõesInternacionais do Brasil. 2005, p. 167.)28 Na América Latina, somente a Colômbia enviaria Forças à Coréia.29 Extrato do Discurso do Embaixador Cyro de Freitas-Valle (19/09/1950): “Os eventos naCoréia do Sul, suscitados pela agressão lançada pelo norte, motivou (sic) ação imediata e efetiva porparte do Conselho de Segurança. No entanto, esses eventos também demonstram - e parece não havermais nenhuma dúvida a esse respeito – que é necessário equipar melhor a nossa Organização, tendosempre em vista o estabelecimento de uma força internacional e a criação de um sistema para amobilização imediata de todos os recursos comuns. Os estados-membros não deixaram de demonstrarsolidariedade com as Nações Unidas. Porém, quase todo o fardo da luta caiu sobre uma Nação, cujaação em defesa da democracia exige o respeito dos homens livre. Alguns se somam nesse esforço. Muitosoutros ainda não foram capazes de transformar as suas boas intenções em verdadeira ajuda material.”

Page 42: Revista da Escola de Guerra Naval

44

brasileiro decidir se iria ou não enviar tropas e a magnitude dos pedidos punha emcheque a própria sinceridade brasileira em cooperar” (ALVES, 2007, p. 143).

Com o tempo, ficou bem claro que o Brasil não enviaria tropas para aPenínsula Coreana.

Vale destacar que, ao contrário do que ocorrera na II GM, o contextoinstitucional era diferente – Vargas era um presidente eleito e não um ditador- e a decisão de se enviar tropas para o exterior teria que ser precedida de ampladiscussão. Segundo os registros de Alves (2007, p. 179), ao longo do processodecisório, o Itamaraty era favorável ao envio de tropas; o Alto Comando doExército estava dividido e Presidente era contra. O assunto não chegou a serlevado ao Congresso Nacional, mas aquele autor aponta que haveriadificuldades para a aprovação no Legislativo, caso a decisão de Getúlio fossepor acatar o pedido. Conjeturou, também, quanto ao peso da opinião públicaque seria mobilizada pela mídia, majoritariamente de oposição. Assinala queesses aspectos devem ter pesado na decisão do Presidente.

De qualquer modo, independentemente dos objetivos do Presidente, aliteratura parece sinalizar que ocorreram falhas de avaliação: O custo decooptação de um país da dimensão do Brasil, nos moldes propostos, seriamuito elevado, em comparação com outras opções que estariam disponíveispara os EUA no cenário internacional; os norteamericanos tinham concepçãodiversa dos brasileiros quanto à forma como os recursos pleiteados deveriamser disponibilizados; e passavam por uma situação muito difícil ecomplicada em termos financeiros, em função dos elevados investimentosem Defesa e em outras áreas, pois, na época, alguns segmentos imaginavamque se estava às vésperas da III Guerra Mundial.

Síntese

Há uma ampla gama de ensinamentos a ser colhida ao longo dessemeio século. A gestão do Barão do Rio Branco destaca o esforço em moldarum Poder Militar com uma capacidade de dissuasão compatível com asnecessidades da política externa; bem como os acontecimentos do períododemonstram que este Poder é dependente dos demais segmentos do PoderNacional. Aspectos que nos levam a apontar que é necessário manter as FAno nível de aprestamento apropriado, não só para a defesa da pátria, mastambém para aquilo que se deseja empreender; e que o tema envolve a Naçãocomo um todo.

Tanto na I GM quanto na II GM, observaram-se atrasos no processodecisório - decisões difíceis de implementar na realidade brasileira, quandoexistia baixa prontidão operacional das Forças Armadas, particularmente

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

Page 43: Revista da Escola de Guerra Naval

45

para o tipo de missão pretendida. Entretanto, a despeito das dificuldades, asFA cumpriram as missões que lhes foram atribuídas.

Nas duas guerras, ocorreram problemas significativos de ordem materiale de pessoal. A amostragem indicou que não é prudente acreditar que arepercussão das manifestações públicas será traduzida em disponibilizaçãode recursos tempestivos e na quantidade adequada. A propósito desseassunto, o Marechal Dutra, referindo-se à I GM, declarou que a “.... nossaparticipação se limitou a uma contribuição platônica de manifestos, passeatas edeclarações ferventes de votos, exclusa a contribuição real de uma divisão naval e dealguns poucos e espontâneos voluntários .....” (LEITE, 1983, p. 361). Por ocasiãoda mobilização na II GM, o Marechal registrou que somente se apresentavamos humildes e os desempregados, mas que os jovens atuantes nos comíciosnão se voluntariavam para a luta. 30

De ordinário, a literatura ressalta mudanças internas comoconsequência da II GM. Poucas obras destacam que tais conflitos, bem comoas convulsões sociais deste meio século, tiveram reflexos acentuados na psiquedo militar brasileiro, em um processo cumulativo de longa maturação, comintensidade variável em cada Força Singular no contexto temporal, cujasconsequências manifestaram-se de diversas maneiras.

Percebeu-se a necessidade de aperfeiçoar o material humano, o queredundou em melhorias na formação de oficiais e praças. De modo geral,adquiriu-se uma mentalidade estratégica. Foi percebida a necessidade de opaís ser submetido a reformas estruturais, de modo a desenvolver o seupotencial. Identificou-se, claramente, que a segurança da Nação era funçãodo todo e não apenas do Poder Militar; que o Brasil possuía os requisitosbásicos indispensáveis para se tornar uma grande potência; e que o seudesenvolvimento vinha sendo retardado por motivos susceptíveis de remoção.Não é coincidência que a Escola Superior de Guerra, que sempre esteve focadaem estudar o Brasil e na integração entre militares e civis, tenha sido criadaem 1949.

Especificamente no caso da I GM e II GM, verifica-se que osconhecimentos profissionais militares estavam acentuadamente defasadosem relação ao estado da arte. Esta constatação fez com que se investisse emcapacitação logística e no desenvolvimento em Ciência & Tecnologia, parase diminuir a dependência das FA. É possível associar os nomes dos jovens

Guilherme Mattos de Abreu

30 Correspondência ao Presidente, datada de 4 de agosto de 1942: “O General Silva Júnior,Comandante da 1ª RM, mostrou-me uma relação dos voluntários reservistas que desejavam alistar-se no Exército. Lamentável! Apenas se apresentaram os humildes desempregados e alguns de idadeque já ultrapassou a do serviço militar; estudantes e outras pessoas que tanto pregavam a guerra nasruas e os comícios, nenhum apareceu.” (LEITE, NOVELLI JUNIOR, 1983, p. 179.)

Page 44: Revista da Escola de Guerra Naval

46

oficiais que viveram os momentos críticos desse meio século, aos nomesdos líderes que, mais tarde, impulsionariam os programas de reaparelhamentoe o desenvolvimento da indústria voltada às necessidades militares (com reflexosna indústria nacional como um todo), o qual, infelizmente, não manteve o ímpeto.

Outras ocorrências relevantes do período podem ser vinculadas aosseguintes aspectos:

• Condução provinciana da política externa, visualizando os fatosinternacionais segundo uma perspectiva unilateral ou nacional, o queconduz a uma percepção incorreta em relação aos demais países e docenário internacional; bem como acarreta a dificuldade em conhecer ascapacidades, limitações e vulnerabilidades do nosso país por ocasiãodas diversas interações.• Dificuldade em compreender como o país é percebido no cenáriointernacional. Trata-se, de certo modo, de corolário do registro anterior.É necessário conhecer o próprio país, mas também compreender que émandatório saber vê-lo a partir do ponto de vista dos estrangeiros.• Em política externa não existem vazios. O espaço deixado por umpaís será rapidamente ocupado por outro.• As participações, no exterior, nas duas Guerras Mundiais foramdecisões legítimas de um país agredido. Tiveram resultados positivos.No entanto, não houve aproveitamento do êxito obtido. Situação emque se enquadram a renúncia à Liga das Nações e o regresso apressadoda FEB.

Conclusão

O Brasil não tem a minima vocação para ser umapotência regional..... Liderar custa dinheiro, algumasvezes, a força é necessária …. Não está interessadonisto. Não quer isso. Não é capaz. Não tem garra.

Carlos Alberto Montaner (2009)

Quando nossos estadistas se convencerem de que noconceito exterior do Brasil, na sua boa nomeada entreas nações, está o mais seguro critério dos seusinteresses, a influência dessa preocupação terá sobreo nosso desenvolvimento efeitos incomparáveis. ....Bem menores ainda somos do que nos presume opatriotismo fátuo; mas somos maiores do que nosfigura o patriotismo cético, pessimista ou negligente.

Rui Barbosa (1907) 31

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

31 Discurso proferido em Paris, em 31 de outubro de 1907, por ocasião de homenagem dosbrasileiros ali residentes, após a Conferência de Haia (CARDIM, 2007, p. 310).

Page 45: Revista da Escola de Guerra Naval

47

Para se tomar decisões temos que ter coragem. Temque se ter, exatamente, a perspectiva do futuro e não asrestrições do passado.... O Brasil precisa fazer um grandeacerto de contas com o seu futuro. .... A humildade é umacaracterística individual, não é uma característica de umanação.

Ministro Nelson Jobim (2009) 32

Do início do século XX até hoje o Brasil muito evoluiu. A populaçãomais que decuplicou e é mais educada, ainda que em níveis insuficientes. Opaís está entre as dez maiores economias do mundo e, ao longo do século, foium dos que mais cresceu, mesmo se dando ao luxo de desperdiçar algumasdécadas. Assume uma nova estatura geopolítica, considerando os recursosque dispõe, em um mundo ávido por água, energia, alimentos e espaço.Aspectos que encerram uma ampla gama de oportunidades, mas tambémvulnerabilidades, que não podem ser desprezadas. Trata-se de uma situaçãodiferente da que vivenciou até o século passado, por estar distante do eixodos grandes acontecimentos. O avançar do tempo suprimiu distâncias etornou este afastamento desprezível.

Por oportuno, vale lembrar, que há um efeito contraditório nodesenvolvimento tecnológico: a sociedade, à medida que evolui, torna-se maissensível a ataques, mesmo que oriundos de oponentes pouco poderosos, osquais possuem um amplo leque de opções. O que acentua as nossasvulnerabilidades.

A história e o acompanhamento do que ocorre no dia-a-dia indicamque a probabilidade de que ocorram atrições entre Estados, a demandar usode força ou ameaça de uso de força, continuará a existir. Isto é particularmenterelevante em nossa época, em que o país vem realizando uma ofensiva emvários ambientes, com o propósito de aumentar a sua inserção no cenáriointernacional. A mudança de situação estratégica e tal postura aumentarãoa possibilidade de que ocorram eventos em que seja necessário empregar asForças Armadas em proveito da política externa ou para atender interessesbrasileiros no exterior.

Ao longo desta trajetória de um século, da qual pinçamos parcela, asperdas de oportunidade parecem dar razão à perspectiva negativa de que ocubano Montaner tornou-se porta-voz recente. Entretanto, preferimos mirarRui Barbosa, quando aponta a relevância de se ter bom conceito no exterior(que necessita ser construído); e sinaliza que temos que conhecer as

Guilherme Mattos de Abreu

32 Discurso proferido por ocasião do 60º aniversário da Escola Superior de Guerra. Rio deJaneiro, em 20 de agosto de 2009.

Page 46: Revista da Escola de Guerra Naval

48

capacidades, limitações e vulnerabilidades de nosso país. Já o Ministro Jobim,em seu discurso, assinala que “é fundamental assumir as oportunidades demudanças e de crescimento” e aparenta, positivamente, querer reeditar osconceitos de Rio Branco.

O fato é que o tema Defesa, em tempo de paz, entrou na agenda nacional,passando a ser debatido na mídia, no Congresso e em diversos círculos, oque não acontecia desde a primeira década do século XX.

Mas, para que este interesse se traduza em sucesso, será necessáriodesenvolver, no Brasil, uma cultura compatível com uma potência de portemédio, consciente de seus deveres e responsabilidades; com capacidade depensar estrategicamente e em longo prazo e de compreender as questõesconcernentes à Segurança e à Defesa.

Para isto, será necessário não apenas a conscientização da população,investimentos, o aumento de efetivo e a redistribuição das Forças Armadas.Também será preciso disseminação de conhecimento, muito estudo, testes,avaliações, treinamento e persistência, de modo que se possa fundamentarapropriadamente as decisões a serem implementadas. Nestes aspectos, oexemplo norteamericano merece ser reproduzido.

Cabe registrar que o que se despende em Forças Armadas é função dasameaças existentes e do valor daquilo que se tem a proteger e o que se querempreender. E que este investimento pode ser feito com ganhos colateraisem diversos campos, se realizado em bases apropriadas, maximizando osefeitos positivos de sua existência e atuação, em benefício de nosso povo e,portanto, contribuindo para a construção de um possível e viável “SéculoBrasileiro”.

O nosso Brasil merece!

Referências

ABREU, Guilherme. Defesa e Diplomacia: uma visão geral. In: SEMINÁRIO ASFORÇAS ARMADAS NA DEFESA DA AMAZÔNIA, 2007, Rio de Janeiro: FUNAG,2007. Texto de apoio ao seminário.

ABREU, Guilherme. Diplomacia Naval. Caderno de Estudo Estratégicos, Rio deJaneiro, n. 6, 2007. Edição Especial.

ALSINA JR. João. Dez Mitos sobre Defesa Nacional no Brasil. Revista InteresseNacional, São Paulo, ano 1, out./ dez. 2008.

ALVES, Vagner. Da Itália à Coréia: decisões sobre ir ou não ir à guerra. BeloHorizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

Page 47: Revista da Escola de Guerra Naval

49

ANTUNES, P. História do grande chanceler. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar,1942.(Ministério da Guerra).

BARBOSA, Mário Gibson. Na diplomacia o traço de todo da vida. Rio de Janeiro:Record, 1992.

BRASIL. Ministério da Marinha. Relatório do Ministro da Marinha (1935-1945) aoPresidente da República, referente ao triênio de 1937 a 1939. 12 de maio de 1940.

CARDIM, Carlos Henrique. A raiz das coisas- Rui Barbosa: o Brasil no mundo.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CORRÊA, Luiz Felipe (Org.). O Brasil nas Nações Unidas 1946-2006. Brasília:FUNAG, 2007.

CUNHA, Vasco. Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC. 2ª ed. Rio deJaneiro: FGV; Brasília: FUNAG, 2003.

FLORES, Mario Cesar. Parâmetros internacionais e problemas internos. RevistaInteresse Nacional, São Paulo, ano 1, 1. trim. 2008.

GARCIA, Eugênio. Cronologia das relações internacionais do Brasil. 2. ed. Rio deJaneiro: Contraponto; Brasília: FUNAG. 2005.

GARCIA, Eugênio. O Brasil na Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder.Porto Alegre: UFRGS, 2005.

HILTON, Stanley. The United States, Brazil and Cold War, 1945-60: end of thespecial relationship. The Journal of American History, Indiana, v. 68, n. 3, dez.1981.

JOBIM, Nelson. [Discurso proferido por ocasião do 60º aniversário da EscolaSuperior de Guerra]. Rio de Janeiro, ago. 2009. 1 CD.

LEITE, Mauro Renault. NOVELLI JUNIOR, Luiz Gonzaga. Marechal Eurico GasparDutra: o dever da verdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

LINS, Álvaro. Rio Branco- o Barão do Rio Branco: biografia pessoal e históriapolítica. 3. ed. São Paulo: Ômega; Brasília: FUNAG ,1996.

MARTINS, Hélio. Ultima Ratio. Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v.129 n. 04/06, p. 218, abr./jun. 2009.

MONTANER, Carlos Alberto. Brazil can’t be leader in region, 2009. Disponívelem: < http://www.miamiherald.com/opinion/other-views/story/1234006.html>. Acesso em 16 de out. de 2009.

O EXÉRCITO na história do Brasil: República. Rio de Janeiro: Bibliex, 1998. v. 3.

PETERSON, Harold. Argentina and the United States, 1810-1960, 1964. Disponível:<http://books.google.com.br/books?>. Acesso em 29 de outubro de 2009.

RODRIGUES, José Honório, SEITENFUS, Ricardo. Uma história diplomática doBrasil: 1531-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1955.

SCHEINA, Robert. Latin America- a naval history: 1810-1987. [s.l]: Naval InstitutePress, 1987.

SCHEINA, Robert L. Latin America´s wars. Virgínia, EUA: Brassey´ Inc. Dulles,2003. v.2.

Guilherme Mattos de Abreu

Page 48: Revista da Escola de Guerra Naval

50

THE LEAGUE of nations: Brazil out. Time Magazine, 1928. Acesso em: 27 out.2009. Disponível em: <http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,731754,00.html.

VIANA FILHO, Luiz. A vida do Barão do Rio Branco 2.ed. Fragmento de arquivopessoal.

Política Externa e Defesa na Primeira Metade do Século XX

Page 49: Revista da Escola de Guerra Naval

51

Por Que Revolução nos Assuntos Militares?

Márcio Leite Teixeira*

RESUMO

Um processo revolucionário requer significativa e inequívocaalteração de processos, pensamentos e doutrinas. A história militaroferece exemplos que poderiam caracterizar mudançasrevolucionárias, algumas de cunho tecnológico, algumas de cunhoorganizacional ou de ambos, que introduziram completa egeneralizada transformação da forma de combater que os seguiu.A assim chamada Revolução dos Assuntos Militares (RAM), quesurgiu no final do século XX, pretende desenvolver meios econdições para obter vantagem militar decisiva, a partir deintenso desenvolvimento tecnológico e de forte base deinformatização, mas para entender tais mudanças é necessárioperceber onde elas ocorrem e como se processam. Desta forma, apartir do irromper da Era da Informação e dos três conceitosbásicos da atual RAM, veremos como se transforma superioridadede informações em poder de combate e outras aplicações militarespara a tecnologia hoje disponível.Palavras chave: Revolução - Comando - Informação.

ABSTRACT

A revolutionary process requires significant and unmistakenmodification on processes, thinking and doctrines. MilitaryHistory offers examples that could characterize revolutionarychanges, some of technologic scope, some of organizational scopeor both, that introduced a complete and generalizedtransformation on the following warfare methods of their time.The so called Revolution on Military Affairs (RMA) that has arisenat the end of the 20th Century, intends to develop the means andthe conditions to achieve decisive military advantage from intensetechnologic advancements and a heavy informational basis, butto understand such changes it is necessary to perceive where theyhappen and how they come to fruition. In this way, from thedawning of the Information Era and the three basic concepts ofthe ongoing RMA, we will see how to transform informationsuperiority in combat power and other military uses for thetechnology already existent.Key words: Revolution - Command - Intelligence.

* Capitão-de-Mar-e-Guerra, comandante do Centro de Sinalização Náutica e ReparosAlmirante Moraes Rego. Ex-instrutor da área de Direito da Escola de Guerra Naval.

Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 51-81

Page 50: Revista da Escola de Guerra Naval

52

Introdução

Revolução, no sentido que interessa a este trabalho, significa mudançatotal ou radical de conceitos e pensamentos. Neste sentido, uma Revoluçãonos Assuntos Militares (RAM) deve apresentar características que permitamtal classificação, de forma a propiciar um entendimento inequívoco dasmudanças, como se processam e onde ocorrem.

Ao longo da história militar encontramos vários episódios que poderiamcaracterizar mudanças revolucionárias, algumas de cunho tecnológico,algumas de cunho organizacional, outras de ambos, com eventual vantagempara quem as implantou. Produto de inventividade incomum, motivada pelabusca da superioridade inconteste sobre os meios adversários, tais processos,de uma forma geral, trouxeram surpresa para os níveis operacional ou tático,com conseqüente vitória militar fruto do choque e da inapropriada respostapor parte do inimigo.

Mas nem todos os processos revolucionários foram caracterizados pormarcantes vitórias militares. Nos casos em que houve desenvolvimentosimultâneo por dois ou mais contendores, qualquer eventual vantagemperdeu-se com a equiparação das novas forças. Tal foi o caso do naviocouraçado, cujo embate Monitor versus Merrimack, na memorável batalha de“Hampton Roads”, constitui um magnífico exemplo, além do avião, entreoutros. Nesses casos o sucesso adversário foi obstado pelo desenvolvimentotempestivo de técnicas equivalentes, o que não desmerece, todavia, a tentativade superação que os motivou.

Desta forma, é razoável considerar que a principal característica dosprocessos revolucionários históricos é a completa e generalizadatransformação da forma de combater que os seguiu, e não os resultados quealcançaram, apesar de sua óbvia importância. Somente a título de exemplo,para o caso tecnológico citado acima se apresenta o desenvolvimento dasarmas de fogo (principalmente o mosquete e o rifle), com a supremacia dasnações européias nos confrontos colonialistas; para o caso organizacional aestruturação da máquina militar francesa sob Napoleão, que permitiu aexpansão do Império e o domínio de grande parte da Europa; e, para o casocombinado, a estruturação da máquina militar nazista, que igualmentepermitiu a expansão do “Reich” e o domínio de grande parte da Europa.

Assim, podemos considerar que qualquer revolução dita militar, e aatual RAM em questão, visa desenvolver meios e condições para obtervantagem militar decisiva, por meio de significativa alteração na forma decombater. O escopo deste trabalho é apresentar as origens de tal processorevolucionário e analisar a evolução do pensamento estratégico-militar que,aliada a um maciço desenvolvimento tecnológico, principalmente no campo

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 51: Revista da Escola de Guerra Naval

53

da informação, desencadeia as mudanças nas doutrinas, nas missões, noemprego dos meios e no redimensionamento de forças que caracterizam aRAM e fundamentam a presente supremacia militar norte-americana.

Origens

A Era Napoleônica

A era napoleônica foi e continua sendo uma referência militar. Fonte deestudos profícua é razoável considerá-la como origem do militarismomoderno, não somente por seu impacto estratégico-militar e as modificaçõesque introduziu nos níveis operacional e tático, mas pelo estímulo que geroupara os pensadores militares de seu tempo, ávidos em entender como umsucesso militar tão grande pôde ser obtido de um confronto entre exércitosfundamentalmente semelhantes. Tal esforço acabou por produzir os clássicosque ainda hoje fundamentam a teoria militar contemporânea, como DaGuerra e Sumário da Arte da Guerra, respectivamente de Clausewitz e Jomini.

Apesar de Jomini, a bem da verdade, estar quase esquecido nos diasatuais, é justo lembrar a enorme influência que exerceu no pensamento militar,de meados do século XIX a início do século XX, e da influência dos termosque cunhou na formulação de um linguajar militar universal (jargão), queainda persiste. Ao propiciar uma teoria para o estudo da guerra, baseada noperíodo napoleônico, Jomini acabou por se tomar o mentor daprofissionalização dos serviços militares nacionais, e esse é um grande mérito.“Uma verdadeira escola, com Jomini no centro de uma ampla rede de acólitos,oferecia simplicidade e entendimento onde antes só parecia havercomplexidade e confusão” (PROENÇA, 1999, p.63). Ao identificar a estratégiae separá-la da tática, Jomini deu início a um ordenamento analítico daatividade militar, com enfoque na manobra e na concentração de forças sobreum ponto decisivo. Entre outras coisas, Jomini, na qualidade de ex-generaldo exército imperial, teve a pretensão de ser um interpretador de Napoleão e,a partir daí, oferecer a receita do Exército Perfeito.

Contudo, foi nesse ponto que o trabalho de Jomini atraiu mais críticas,visto que, apesar de dizer ser seu método científico, suas regras eram pordemais generalistas e deixavam muito por conta da interpretação do leitor.As doze condições que propôs podiam, ao mesmo tempo, servir deargumento tanto para os que pretendiam mudar uma estrutura militar comopara os que tencionavam mantê-la, visto não haver como mensurar ou testarseus ensinamentos. Infelizmente, a teoria do Exército Perfeito “jominiana”falhou ao tentar ordenar as razões do sucesso de Napoleão, mas devemosconsiderar que, ao seu tempo, não fora ainda formulado o conceito de

Márcio Leite Teixeira

Page 52: Revista da Escola de Guerra Naval

54

Comando e Controle (C2) como hoje o conhecemos, e tanto Jomini como seuscontemporâneos não tiveram a percepção de seu valor nem da grandemudança que se processou no período napoleônico.

Louis Alexander Berthier, nascido em Versalhes, em 1753, ingressouem tenra idade para o exército francês, onde se especializou como engenheiro-geógrafo. Oficial bastante talentoso, Berthier foi indicado, já no posto deCapitão, para compor o Estado-Maior do Regimento de Soissons, empenhadona guerra de libertação da América, onde aprendeu o serviço e familiarizou-se com as idéias de Pierre de Bourcet, renomado oficial de estado- maior quepregava o valor do reconhecimento e dos planos de operações e abastecimento(MELLO, 1998, p. 2). Desde então, de uma forma ou de outra, Berthier nãomais se afastaria desse serviço, compondo ou chefiando variados Estados-Maiores e fortalecendo sua imagem de administrador dedicado, leal e ativo.

Transferido em 1795 para o exército dos Alpes e da Itália, Berthier pelaprimeira vez assumiu a chefia de um estado-maior sob Napoleão. Iniciava-se, então, um inter- relacionamento profícuo que duraria por dezenove anos,marcado pela admiração e pelo respeito mútuos. Além de grandedisciplinador e colaborador compenetrado, Berthier conseguia, comoninguém, captar a essência do pensamento de seu Comandante e transcrevê-los em planos e ordens claros e precisos. Seu maior mérito estava nacompreensão da importância que a distribuição tempestiva das ordens tinhapara o sucesso em combate, e na estrutura de estado maior que concebeupara propiciar isto. “Velocidade é a coisa mais importante para o trabalho doEstado-Maior Geral” (LANNING, 1999, p.85).

Apesar do conceito de Comando ser intrínseco a aplicação de qualquerpoder militar, em qualquer tempo, o efetivo controle de um general sobre suasforças era, por assim dizer, circunscrito ao campo visual, até onde alcançasseas comunicações por sinais. Desta forma, o controle no nível operacional erapraticamente inexistente e os exércitos se comportavam de forma monolítica,na busca por um embate decisivo no nível tático. Foi Berthier, por meio daestrutura de Estado-Maior que desenvolveu, que colocou a disposição deNapoleão aquilo que qualquer Comandante, até aquele tempo, poderia sonhare desejar mais: comunicações consistentes e tempestivas além do horizonte.Dessa forma, Napoleão passou a contar com a capacidade de coordenar oamplo movimento de seus exércitos e de conhecer, com considerávelantecipação em relação a seus oponentes, as alterações no quadro militarnos níveis operacional e tático, de forma a poder emitir e disseminar ordensatualizadas que contribuiriam para a manutenção do controle e da iniciativa.Assim, em condições de alterar substancialmente a manobra de suas forçasno decorrer da ação, Napoleão podia melhor aproveitar o êxito ou reagir aosucesso do inimigo.

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 53: Revista da Escola de Guerra Naval

55

Pelo aumento da rapidez do processo decisório, propiciada pelo trabalhocompetente, diuturno e incansável de seu Chefe de Estado-Maior, Napoleãofoi capaz de superar pela manobra os generais de seu tempo e conquistarpara a França o que nenhum outro general conseguira até então: o domínioabsoluto sobre toda a Europa continental. Claro está que este não foi o motivoisolado do sucesso de Bonaparte, mas por meio de comunicações bem feitaso controle se ampliara e o Comando fora fortalecido. Estabelecia-se a tríadeComando, Controle e Comunicações, C3, como modernamente a conhecemos.

O estado-maior sob Berthier era organizado em quatro seções,semelhante a um estado-maior moderno, com seis generais, oito coronéis(HITTLE, 1944, p. 228) e um sistema de comunicações robustecido, incluindoum comando tático postal diretamente subordinado a Napoleão compostopor tropa de elite e um esquadrão de cavalaria dedicado. Havia uma regulare intensa troca de mensagens, com a obrigação de cada comandante de divisãoou destacamento de reportar sua situação pelo menos duas vezes por dia aoEstado-Maior Geral. Informações importantes deviam ser enviadas por doisdistintos mensageiros, para aumentar a probabilidade que alcançassem odestino, enquanto informações urgentes e partes de contato deviam serenviadas por oito mensageiros no mínimo (MELLO, 1998, p. 3).

Apesar de todos os cargos que exerceu no Império, foi como Chefe deEstado-Maior que Berthier mais se realçou. Não é de surpreender toda aestima e consideração que Napoleão tinha por seu mais fiel e importantesubordinado, a quem concedeu as mais elevadas honrarias, inúmeros títulose riqueza. Contudo, apesar de seu sucesso, o enorme ego e vaidade de Berthiernão lhe permitiam aceitar a menor das críticas, por mais justas que fossem.Um de seus desafetos declarados, a quem perseguiu ostensivamente a pontode bloquear sua promoção a General-de-Divisão, foi exatamente Jomini,também possuidor de caráter genioso. Assim, é possível que, justamente portal desavença, Jomini não tenha reconhecido o mérito do Marechal em suaobra, com grande perda para ambos e para o estudo militar como um todo.

Ao final da era napoleônica, o cansaço advindo dos longos anos deserviço e de responsabilidades colossais passou a ofuscar o esplendor deoutrora e, após a queda de Napoleão, em 1814, Berthier foi um dos muitosque passou para o lado da realeza. No retomo do Imperador, em 1815, apesarde perdoado e re-convocado, Berthier não mais retornou e faleceu poucodepois. Ao final de tudo, que fique de Berthier o julgamento de seu chefe, emSanta Helena: “seus talentos e seus méritos eram especiais e técnicos. Eleexpedia minhas ordens com uma regularidade e uma precisão admiráveis!A infatigabilidade era o mérito especial de Berthier e para mim tal coisaconstituía-se em fator dos mais preciosos... Se eu tivesse Berthier em Waterloonão teria sido tão infeliz...” (VASCONCELOS, 1981, p. 25).

Márcio Leite Teixeira

Page 54: Revista da Escola de Guerra Naval

56

Manobra

O conceito de manobra é elementar e básico e sua abrangência não sópermeia por todos os níveis de condução da guerra, como transcende aatividade militar e habita o cotidiano das pessoas. Para alguns países aManobra constitui um Princípio de Guerra, mas não são todos que aconsideram assim. Independente de como seja classificado, o conceito daManobra é bastante disseminado e serve para orientar o pensamento militare coordenar o movimento das forças. Quanto melhor a coordenação, melhoro resultado e maior a economia de meios. No passado, contudo, não haviauma fórmula definida para realizar tal coordenação, em virtude da falta deuma teoria que permitisse a transmissão dos ensinamentos. Assim, muitoainda dependia da arte do comandante em bem interpretar todos os parâmetrosque compunham o seu problema militar. Era necessário, porém, teorizar taisfeitos, de forma a permitir a continuidade do aprendizado.

Alguns autores e escolas, na tentativa de solucionar este problema,preferiram tratar o assunto sem se importar com o nível de condução daguerra no qual sua teoria seria aplicada. Apesar da confusão queaparentemente isto pode gerar, alguns resultados dignos de nota foramobtidos, como no caso da “aproximação indireta” de Liddel Hart.

Apesar de ser imemorial a concepção de um ataque que contornasse osprincipais obstáculos, fossem naturais ou organizados pelo inimigo, de formaa atingir um objetivo com menos esforço, coube a Liddel Hart o mérito deordenar tal pensamento e descrever seus principais pontos. Em realidade,Liddel Hart pretendia, inicialmente, escrever uma teoria da guerra distintada de Clausewitz, mas que ele mesmo acabou por chamar, ao final, deEstratégia da Aproximação Indireta, em virtude da especificidade do tema ede seu vínculo com a manobra.

Por outro lado, uma “aproximação indireta” pressupõe a existência deuma “aproximação direta”, cuja concepção permanece ainda hoje relacionadacom a guerra de atrito ou guerra de desgaste, que Liddel HarI tencionavaevitar. Contudo, a aproximação direta possui méritos que não devem ficarobscurecidos pela imagem negativa herdada da 1ª Guerra Mundial, visto queé mais fácil de coordenar e produz resultados mais rápidos. De uma formageral, o risco que apresenta de um elevado número de baixas pode ser minoradopela simples superioridade da força atacante, o que a torna indicada para assituações de grande assimetria de forças. Com relação aos aspectos logísticos,a aproximação direta facilita bastante os problemas de abastecimento, o quecontribui para a manutenção de ininterrupta pressão sobre o inimigo.

Voltemos, então, à aproximação indireta. Para fundamentar sua análise,Liddel Hart recorreu ao estudo das batalhas da Antigüidade, no qual percebeu

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 55: Revista da Escola de Guerra Naval

57

que era possível obter vantagem militar sobre um inimigo sem combate direto,pelo deslocamento da própria força para uma posição que criasse uma ameaçainesperada, geralmente nos flancos do eixo esperado do ataque. Os exemploshistóricos ratificaram sua observação e ele, então, tratou de teorizá-las. Oresultado final pode ser considerado uma apologia à manobra, e da economiade meios que um bem executado envolvimento indireto pode propiciar emcomparação com a aproximação direta.

Contudo, Liddel Hart nunca pretendeu que sua teoria descesse aosdetalhes da execução, e seus conceitos são bastante genéricos, com caráteraxiomático. Deveras, a aproximação indireta é atemporal e independe dosmeios empregados e da velocidade do movimento. Não importa se falamosde Hanibal ou de Swarzkopf, seu conceito é imutável. É essa transcendênciaque empresta à aproximação indireta seu caráter estratégico, sendo esse onível em que melhor se enquadra.

Como sabemos que elefantes não enfrentam carros-de-combate, podemosconcluir com bastante segurança que a tecnologia e o movimento,independente do brilhantismo do Comandante, tem influência determinanteno resultado da manobra. Com isso, para obter resultados favoráveis nosníveis operacional e tático, que é onde a tecnologia desponta maisintensamente, é necessário desenvolver doutrinas adequadas que,naturalmente, mudam com o tempo e com as novas tecnologias. Assim, ficamais fácil perceber a influência que o estudo da Manobra pode ter sobre odesenvolvimento de táticas e doutrinas ou vice-versa, e cujo advento daBlitzkrieg é um excelente exemplo.

A gênese da Blitzkrieg também remonta à 1ª Guerra Mundial, erepresentou a tentativa dos alemãs de quebrar o impasse da guerra detrincheiras e restabelecer o movimento nas ações. Na tentativa de resolver oproblema bélico, e estimulados pela existência do bloqueio britânico, quelhes encurtava o tempo e a capacidade para se manter em guerra, os alemãesimplantaram inovações brilhantes que surpreenderam os aliados e quaseganharam a guerra, quando aplicados em larga escala na ofensiva daprimavera de 1918. Tais inovações consistiam, entre outras coisas, nautilização de tropas de assalto (“sturmtrüppen”), unidades especialmenteconstituídas para buscar e explorar brechas na frente inimiga, como pontade lança para a penetração das unidades principais, que se moveriam para oponto de ruptura tão logo estabelecido, O sucesso operacional e tático dosalemães só não se converteu em vitória estratégica por absoluta falta demobilidade, visto que a infantaria alemã tinha que avançar a pé enquanto osaliados podiam movimentar suas reservas com maior rapidez por linhasférreas, o que resultou em eventual equilíbrio e contenção da ofensiva. Contudo

Márcio Leite Teixeira

Page 56: Revista da Escola de Guerra Naval

58

a semente fora lançada e, no futuro, com o advento da mecanização, osalemães obteriam a necessária mobilidade para conseguir, por fim, superarpela manobra os mesmos adversários de outrora.

Foi William Lind um dos primeiros a teorizar o que se convencionouchamar de a Escola Alemã da manobra (LIND, 1985, p. 48). Em seu livro“Maneuver Warfare Handbook”, Lind deu substância ao debate queconduziria a formulação da filosofia de Guerra de Manobra (“ManeuverWarfare”) e a implementação da “Airland Battle”, a nova doutrina de combateterrestre do exército dos E.U.A. adotada no início da década de 1980. Um dospontos primordiais desse debate era a idéia de que a vitória poderia serobtida não pela destruição física do inimigo, que era o conceito vigente atéentão, mas pelo colapso do comando e conseqüente desestruturação de suasforças, devido à perda do controle que um envolvimento rápido e coordenadopoderia causar.

Originalmente, essa idéia foi apresentada pelo Coronel John Boyd, daForça Aérea norte-americana, autor de uma ampla teoria sobre os princípiosda guerra de manobra apropriadamente conhecida como a “Teoria de Boyd”(LEONHARD, 1994, p. 90). Um dos pontos cruciais de sua teoria consistia naredução do processo decisório, individual ou organizacional, a um ciclocomposto por quatro tarefas básicas: observação, orientação, decisão, ação,que ele convencionou chamar de “ciclo OODA” (também conhecido como“ciclo de Boyd”). Seu argumento era que toda ação era fruto de uma decisãobaseada em orientação provinda de observação, em um processo cíclico e re-alimentado. Em qualquer confronto, aquele que conseguisse completar seusciclos com maior velocidade estaria em vantagem, até o ponto em que oadversário perderia o contato com o presente e passaria a reagirinapropriadamente a ações passadas, situação em que seu ciclo se quebrariae ele perderia. Para o combate aéreo isso consubstanciaria o abate.

Posteriormente, Boyd se utilizou desse mesmo princípio, porém de formamais elaborada, ao discernir sobre a manobra. Em sua abordagem os aspectospsicológicos e temporais tinham realce sobre os físicos e espaciais, e o objetivomilitar de uma ação deveria ser “quebrar o espírito e a vontade do comandoinimigo ao criar situações operacionais ou estratégicas surpreendentes eperigosas” (CORAM, 2002). A chave para obter tal efeito seria o ritmo (outempo) das operações. Quanto mais intenso o ritmo menos tempo sobrariapara o inimigo se adaptar e acompanhar as ações em rápido desdobramento,até o momento em que, ao perceber seu total descontrole, fosse acometidopelo estado mental da derrota e perdesse a vontade de lutar. A vitória, assim,seria conseqüência não do confronto direto de forças, mas da intrínsecaincapacidade do inimigo em responder coerentemente ao conjunto deameaças que deveria enfrentar.

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 57: Revista da Escola de Guerra Naval

59

A partir da Teoria de Boyd, William Lind efetuou uma análisecomparativa com os sucessos militares alemães do início da 2ª GuerraMundial e identificou três princípios importantes, que deveriam servir deesteio na formulação do pensamento e elaboração de uma doutrina comenfoque na manobra (LEONHARD, 1994, p. 94).

O primeiro princípio valorizava as tarefas com base no efeito desejado(“mission-type orders”) em detrimento das com base em ações a empreender.Também conhecida como “Auftragstaktik” (LIND, 1985, p. 50), a idéia eraconceder o máximo de iniciativa para os subordinados, dado que fosse doconhecimento geral a intenção do comandante e o resultado esperado. Oenfoque da diretiva residiria no conceito da operação e não no detalhamentodas ações. Confiante na habilidade de seus subordinados em conduzir suasunidades dentro do arcabouço da operação por ele elaborado, o Comandantesupervisionaria as ações e interviria com a reserva onde fosse necessáriopara acudir ou explorar o êxito. Isto permitiria uma adaptação dinâmica àsconstantes mudanças do campo de batalha, com aumento da eficácia daresposta pela redução do ciclo do processo decisório. Claro está que haviadois requisitos básicos para tal conceito funcionar: o primeiro eracomunicações confiáveis; o segundo era a existência de uma relação deconfiança mútua em todos os níveis da força armada, visto que umcomandante, por mais que reconhecesse a capacidade de seus subordinados,não se sentiria seguro em delegar-lhes competência para as ações se nãotivesse o respaldo de seus superiores, algo que as Forças Armadas alemãstinham o privilégio de contar durante a 2ª Guerra Mundial.

O segundo princípio consistia na busca por superfícies e brechas,entendendo-se superfície como as linhas de contato com o inimigo, quedelimitariam as áreas ocupadas. A idéia da manobra seria evitar os pontosfortes do inimigo (superfícies) e aplicar o máximo de força nos pontos fracosda linha, ou brechas. O resultado de um movimento bem feito seria, então, oenvolvimento e isolamento a custo reduzido das unidades de frente inimigas,com a conseqüente deterioração de sua capacidade de combate pelo cortedas linhas de abastecimento. Em última análise, tal envolvimento poderianeutralizar Grandes Unidades a ponto de extirpá-las do combate, comoocorreu na campanha da França, em 1940.

O terceiro princípio era o da concentração de esforços, ou “Schwerpunkt”(ponto pesado), que versava sobre a importância da ação conjugada ecoordenada entre as unidades sob um mesmo Comando, de forma aeconomizar meios e obter o melhor efeito do conjunto. Este princípio eracorrelato ao da “Auftragstaktik”, por servir de baliza para a iniciativa dasações das unidades subordinadas. Assim, o comandante da unidade Bdeveria estar ciente das ações das unidades A e C em seus flancos, de forma

Márcio Leite Teixeira

Page 58: Revista da Escola de Guerra Naval

60

a cooperarem entre si na busca dos objetivos de seu superior. Para obter aconcentração de esforços não é necessário que todos trabalhem em um mesmoponto, mas que todos trabalhem ao mesmo tempo em prol da causa comum.Desta forma, em um dado instante, mesmo que diferentes unidades executemdiferentes tarefas, haverá concentração de esforços se a soma abreviar aobtenção do efeito desejado pelo Comandante.

Apesar de Jomini, em linhas gerais, ter delineado alguns conceitos daEscola Alemã, o que, por extensão, faz supor que Napoleão tenha empregadoalgo semelhante, devemos ter em mente que a evolução das técnicas alterousignificativamente as relações de comando e o pensamento doutrinário.Assim, o que mudou não foi o cerne da questão, mas a maneira de se obter osmesmos resultados por meio de novos métodos. Dessa forma, os esforços deBoyd e Lind permitiram expandir a filosofia da Guerra de Manobra e orientara evolução doutrinária, ao indicar o “quê” e “como” fazer dentro de umenfoque moderno, que foi aproveitado pelo exército norte-americano ao re-formular sua doutrina de combate terrestre.

Por seu lado, os soviéticos adotaram a chamada Escola Soviética damanobra (LIND, 1985, p. 48) dava uma grande ênfase na preparação dasoperações (“Befehlstaktik”), com um detalhamento muito grande das ações ecom tarefas enunciadas com base em ações a empreender, em lugar das combase no efeito desejado. O resultado era que os comandantes subordinadostinham pouca flexibilidade e deveriam buscar seus objetivos com determinação,na tentativa de evitar descontinuidade na frente. Dessa forma, o controledependeria menos das comunicações, na medida que houvesse uniformidadedo movimento. A idéia era impedir que o inimigo tomasse a iniciativa ouorganizasse uma defesa ativa pela implementação de um ritmo intenso deoperações (tempo), com manutenção da pressão e do choque, efeito de umgrande poder de fogo aliado a um grande impulso. A aplicação de conceitos daFísica na descrição de fenômenos do campo de batalha já fora utilizada porClausewitz, ao explicar os efeitos do atrito no movimento das forças militares.A analogia com o impulso (produto da massa pela velocidade) pretendiadenotar a grande força necessária para parar uma unidade mecanizada degrande massa (carros de combate e viaturas blindadas de transporte de pessoal)movendo a grande velocidade (SIMPKIN, 1985, p.57 e p. 79).

Poder Aéreo

A capacidade do Poder Aéreo de causar grande destruição em poucotempo e em profundidade, sempre captou a imaginação das pessoas e dospensadores militares desde seus primórdios. Mesmo quando o avião aindaera uma incógnita, no final da primeira década dos anos 1900, havia aqueles

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 59: Revista da Escola de Guerra Naval

61

que creditavam ao dirigível tal capacidade, aliada a invulnerabilidadeconferida pelas alturas. Contudo, foi Giulio Douhet, Oficial da arma deartilharia do Exército italiano, o primeiro a teorizar o emprego do PoderAéreo em seu tratado O Domínio do Ar, publicado em 1921. Com base em suaexperiência na lª Guerra Mundial, e provavelmente influenciado pelopreponderante papel que a artilharia teve naquele conflito, sintetizado nopensamento francês de que “a artilharia conquista, a infantaria ocupa”(LEONHARD, 1994, p. 91), Douhet imaginou uma aviação capaz de umpoder de projeção tal que, por si só, seria capaz de subjugar o inimigo e, dessaforma, tornar subsidiárias as demais forças armadas. Numa antecipação desuas idéias, ainda no ano de 1910, Douhet proferiu “o céu se tomará umcampo de batalha tão importante quanto a terra e o mar” (PROENÇA, 1999,p. 145). Na formulação dos conceitos e princípios que permitiriam a realizaçãodesse ideal, Douhet acabou por constituir as bases para uma teoria que, nosdias presentes, está mais atual que nunca.

Apesar de amplamente estudada e empregada ao longo do últimoséculo, principalmente nas campanhas de bombardeio destinadas aaterrorizar as populações do inimigo, durante a 2ª Guerra Mundial, a teoriado poder aéreo de Douhet atraiu muitas críticas e antagonismos, grandeparte pelo caráter secundário que atribuiu às forças de superfície, navais eterrestres. A falta de precedente histórico para tal papel coadjuvante semprefoi argumento forte, mas o advento da Guerra do Kosovo trouxe novo alentoà discussão, visto que muitos consideram esta como a primeira guerra ganhaexclusivamente pelo poder aéreo. Mais ainda, sua contestada conjetura sobreo poder de destruição de um único bombardeiro foi redimida pelo adventodas armas inteligentes, em adição a conceitos firmados como o do “avião debatalha” (os atuais caça-bombardeiros) e da intrínseca relação da indústriaaeronáutica civil e militar. Mesmo o nome da campanha aérea lançada pelacoalizão contra Bagdá, na Guerra do Iraque, “Shock and Awe” (Choque ePavor), tem a marca de Douhet, pelos aspectos psicológicos e o medo que asações deveriam supostamente gerar na população iraquiana, mesmo sem sero alvo do ataque. O fato é que, independente de teorias, o poder aéreo moderno,por meio de avançada tecnologia, adquiriu precisão, letalidade, velocidade,alcance, coordenação e impunidade jamais vistas. Hoje, pelo menos no quediz respeito à Força Aérea norte-americana, o Domínio do Ar concebido porDouhet foi obtido. Transformar tal domínio em resultados práticos é umoutro problema.

Uma questão é o caráter estratégico do bombardeio aéreo. Apesar doataque ao solo ter aplicação em todos os níveis de condução da guerra, nosníveis operacional e tático a relação sistêmica com as forças de superfície nãoconcede a mesma independência que no nível estratégico, onde reside a

Márcio Leite Teixeira

Page 60: Revista da Escola de Guerra Naval

62

possibilidade de vitória total pelo exclusivo emprego da aviação. O problemaé que, contra adversários que não possuam uma infra-estrutura estratégicade valor, a punição causada somente pelo poder aéreo é melhor tolerada emenos custosa para o defensor. Mais ainda, mesmo contra infra-estruturasestratégicas compensadoras os resultados levam tempo para se fazerem sentir,enquanto o adversário avalia seus custos contra o beneficio que a continuaçãodo conflito pode trazer. Assim, contra adversários muito fracos oudesestruturados o emprego do poder aéreo isolado pode não render osresultados desejados pela simples pulverização do nível estratégico, comono caso de organizações terroristas em geral. Em concomitância, a tendênciade redução dos conflitos para os níveis operacional e tático parece se firmarcada vez mais com os novos desafios surgidos a partir da década de 1990,como os conflitos de baixa intensidade, a guerra assimétrica e as “operaçõesoutras que não as de guerra” (mormente as operações de paz), onde osrequisitos operativos são outros, os objetivos são limitados e há restrição aoemprego da força.

Tal tendência, aliada a uma necessidade crescente de economizar meiose dinheiro, torna premente a necessidade de integração entre as forçasarmadas e esvazia a teoria da precedência do poder aéreo. A necessidade daconjunção entre os poderes militares é inerente à filosofia da guerra demanobra e os soviéticos também professavam tal conjunção, mas sob aspectosdoutrinários diversos e com maior subordinação da Força Aérea à missão doExército.

As características do poder aéreo ampliaram as perspectivas da guerrade manobra, principalmente pela possibilidade de aumento do ritmo e davelocidade das ações, tema que Richard Simpkin enfocou com grandepropriedade em seu livro “Race to lhe Swift”, cujo próprio título já denota aimportância de ser veloz. Com relação à mobilidade, Simpkin aborda compertinência a importância da manutenção de forças prontas para rápidoposicionamento, principalmente diante da possibilidade de um confrontoassimétrico, quando as ameaças podem surgir inesperadamente, com formadiversificada e em terreno variado, o que requer a existência de uma efetivacapacidade de transporte aéreo estratégico (SIMPKIN, 1985, p. 251).

Assim, o efetivo domínio do ar permite grande flexibilidade no empregodo poder militar, com ampla aplicação em todos os níveis de condução daguerra. A maior eficácia, por certo, reside na capacidade de promover ataquesaéreos simultâneos e coordenados em todos os níveis, bem como à capacidadede deslocar e manter grandes forças com rapidez pelo ar. O resultado é acriação de um ambiente violento e fluido, com agressões repetidas econsistentes, que contribuem para a quebra da coesão e da coerência doinimigo e para o desarranjo total do controle.

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 61: Revista da Escola de Guerra Naval

63

O Poder da Informação

A necessidade e importância de obter conhecimento sobre o inimigonão são uma novidade. No prefácio de “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu,James ClavelI aponta oportunamente que o livro termina com uma clara alusãosobre o valor da inteligência:

“... Dessa maneira, apenas o governante esclarecido e o general criteriosousarão as mais dotadas inteligências do exército para a espionagem, obtendo,dessa forma, grandes resultados”.

“Os espiões são os elementos mais importantes de uma guerra, porqueneles repousa a capacidade de movimentação de um exército” (SUN, 1983, p.7; e p. 111).

Produzir conhecimento útil e tempestivo, contudo, não é tarefacorriqueira. Produzir tal conhecimento em quantidade e com regularidadesuficiente, para influenciar a preparação e condução de largas operações oucampanhas militares, requer atributos e organização muito especiais. Apesarda consciência coletiva da importância da atividade de inteligência, não éfácil obter os resultados pregados por Sun Tzu,

Apesar do caráter milenar da espionagem, talvez o exemplo históricomais dramático da influência em larga escala da inteligência nas atividadesde comando e controle seja bem recente, oriundo da 2ª Guerra Mundial edo, agora, famoso caso Enigma/ULTRA, tão bem relatado por FrederickWinterbotham em seu livro Enigma — o segredo de Hitler (WINTERBOTHAM,1978).

O evento ULTRA foi um marco do envolvimento da inteligência noplanejamento estratégico-militar de alto nível, bem como no continuadoprocesso de tomada de decisões das operações militares em geral. Apesar denão haver um rigor classificatório, não seria demais considerar que, a partirdesse evento, a inteligência tenha conquistado seu lugar no acrônimo C3, quepassou a escrever C3I.

Contudo, desenvolver um sistema de inteligência amplo e consistenterequer grande investimento em recursos e pessoal, sem contar os custos paraselecionar e desenvolver as capacidades militares que atendam aos interessesnacionais, baseado nas tecnologias existentes e nos estudos para a elaboraçãode um projeto de forças adequado. Uma proposição séria de conhecer umadversário necessariamente conduzirá a levantamentos minuciosos emdiversos setores, que acabarão por produzir uma enorme massa de dados.Filtrar esses dados a fim de separar o importante do supérfluo também exigecritério rigoroso e cuidado especial, para que haja tempestividade econfiabilidade sem desperdício de informações, principalmente se houver

Márcio Leite Teixeira

Page 62: Revista da Escola de Guerra Naval

64

criptografia envolvida. Os dados selecionados serão então processados paracatalogação e distribuição para análise, processo que requer mentespreparadas e especialmente treinadas para dar sentido aos fragmentos deinformação e montar um quadro coerente do país escrutinado.

Felizmente para os serviços de inteligência, assim como para ahumanidade em geral, também durante a 2ª Guerra Mundial surgiram oscomputadores, máquinas cuja habilidade de calcular com rapidez logo seriaampliada pela capacidade de executar instruções pré- programadas eprocessar, comparar e armazenar dados com a mesma rapidez. O alcancedesse poder de processamento ainda demoraria a se fazer sentir em toda suaplenitude, devido ao preço e operação complexa das máquinas, até que, emmeados da década de 1970, uma revolução começou a se processar com osurgimento do computador pessoal, compacto, ágil, comparativamente maispoderoso que os computadores de grande porte de seu tempo e barato. Esseconjunto de vantagens popularizou a informática de uma forma semprecedentes e se tornou a base para um processo de mudança muito maisamplo, com impacto profundo em todos os campos do conhecimento humano.

Em seu livro Á Estrada do Futuro, Bill Gates afirma que “agora que ainformática atingiu preços incrivelmente baixos e se acha presente em todosos segmentos da vida, estamos à beira de uma nova revolução” (GATES III1995, p. 14), primórdios do que se costuma chamar de a Era da Informação.Sempre otimista com relação a uma era da qual é testemunha e artífice, Gatessegue dizendo que “estamos vendo algo histórico acontecer, e isso vai afetaro mundo de forma devastadora, abalando-nos tanto quanto a descoberta dométodo científico, a invenção da imprensa e o advento da Era Industrial”(GATES III 1995, p. 335). O que caracteriza esse processo revolucionário é asignificativa alteração nas relações humanas em geral, sejam interpessoais,no trabalho, nos estudos ou no lazer, a partir do uso intenso dos computadores.Em nossos dias, qualquer pessoa que viva em uma sociedade moderna já terátido um contato qualquer com algum computador, apesar de que muitosainda não sejam usuários habituais, nem tenham contato usual com amáquina quer no trabalho quer em casa.

Contudo, é perceptível a velocidade com que o processo nos envolve. Ainformática para fins administrativos contribuiu para aumentar aprodutividade e ampliou as possibilidades de negócios para a indústria e ocomércio. Hoje, as pessoas têm consciência da necessidade de se atualizarpara permanecer no mercado de trabalho. Mais ainda, o fenômeno dascomunicações modernas é produto direto do maciço emprego da informáticaneste setor de serviços. A popularização do processamento matemático abriuuma nova fronteira para a eletrônica e permitiu criar máquinas “inteligentes”,capazes de executar ou gerenciar atividades rotineiras à perfeição, do que

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 63: Revista da Escola de Guerra Naval

65

outras ciências se aproveitaram para avançar, em um amplo, profundo erápido processo evolutivo.

Estimulados pela visão da Terceira Onda exposta por Alvim Toffler, osmilitares norte-americanos começaram a estudar, no início dos anos 1980,uma forma de utilizar as mesmas forças que começavam a transformar aeconomia e a sociedade norte-americana para criar um poder militarrevolucionário no futuro (TOFFLER, 1980, p. 8). A idéia era aproveitar asnovas ferramentas da informática para forjar uma nova forma de combater,completamente diversa dos padrões desenvolvidos até então. Segundo Toffler,as sociedades combatem de forma semelhante de como conduzem suaatividade econômica. Ao longo do século XX, as nações industrializadasdesenvolveram doutrinas e armamento que coadunasse com a cultura daprodução em massa, quando o poder militar era medido pela quantidade detropas e o resultado de um embate medido pela quantidade de equipamentodestruído de ambas as partes. Mesmo nações menos desenvolvidas adotaramsemelhantes critérios, visto que seu crônico atraso em pesquisa edesenvolvimento acabou por fazer com que comprassem ou copiassemmétodos e doutrinas alheias, por não terem condições de criar os seus. Emlinhas gerais, assim eram conduzidas as guerras da Era Industrial, ou daSegunda Onda, quando o critério da massa e dos números vastos erapreponderante.

O que os militares norte-americanos desejavam era trazer para a estruturade C3I as facilidades e rapidez que os computadores pessoais conferiam para otrâmite administrativo e estendê-la para o trâmite operativo, com alcance amploem todos os níveis da estrutura militar. A idéia era criar uma rede por meio daqual uma informação pudesse permear com segurança, e alcançartempestivamente todos que dela necessitassem para instruir suas ações. Emconcomitância, medidas e equipamentos deveriam ser desenvolvidos de formaa impedir que o inimigo usufruísse semelhante facilidade, O resultado esperadoseria um aumento na velocidade do processo decisório com conseqüenteaumento do ritmo e da velocidade das operações, contra um adversárioinformática e eletronicamente cego, surdo e mudo. Dessa forma, forças menorespoderiam subjugar forças muito superiores em números, mas incapazes decoordenar suas ações e de atuar coerentemente. Tal multiplicador anunciariao final de um tempo e o início de uma revolução nos assuntos militares, vistosuas implicações em todo o espectro do poder militar.

O novo papel dos computadores poderia ser comparado ao papel deBerthier, cuja inovação e dinâmica de processos também conseguiu, a seumodo e ao seu tempo, uma decisiva redução no ciclo decisório do estado-maior napoleônico. Novos meios para se atingir velhos objetivos. Mas amudança no processo inserida pela nova máquina, “regular, precisa e

Márcio Leite Teixeira

Page 64: Revista da Escola de Guerra Naval

66

infatigável”, como Berthier, foi radical. Em breve, sem nenhum eventomarcante, apenas fruto da nova era, os computadores também conquistaramseu lugar no acrônimo C3I, que passou a escrever C4I, para Comando, Controle,Comunicações, Computação e Inteligência.

Revolução nos Assuntos Militares

Prelúdio

Qualquer premissa revolucionária deve envolver uma proposta demudança profunda, que não seja parte de mera etapa evolutiva e com alteraçõesconceituais e físicas significativas, nas bases e estrutura do processomodificado. Assim, concluída a revolução, algo novo emergirá, com novasformas e novas maneiras de se relacionar com as pessoas e o mundo, fruto deum novo pensamento, de uma nova visão.

Ao longo da história militar ocorreram vários processos ditosrevolucionários, cuja principal característica foi a completa reformulação daforma de combater que os seguiu. Contudo, apesar de tais mudançasperceptíveis, há disputa com relação a que parâmetros permitiriam umadefinição mais precisa de uma revolução militar. Alvin e Heidi Tofflerargumentam que uma “verdadeira revolução... muda o jogo em si, inclusosuas regras, seus equipamentos, o tamanho e organização das equipes, seutreinamento, doutrina, tática e todo o resto... Ainda mais importante, ela altera[a revolução] as relações do jogo com a sociedade em si” (TOFFLER, 1995).Com isso, Toffler orienta a discussão para sua obra anterior e afirma que,com tais características, somente duas revoluções militares ocorreram antesna história, quais sejam as da primeira e segunda onda, e que a atual, a daterceira, seria a mais profunda de todas, devido ao desenvolvimento extremodo que ele considera os parâmetros- chave do combate: alcance, letalidade evelocidade.

Na busca deste mister, Doutrina é um fator fundamental. Ao estabelecero conjunto de princípios básicos e normas necessárias para a atividade militar,uma doutrina será a principal referência a partir da qual serão organizadosos serviços, distribuídos os papéis, estipuladas as missões, montadas asorganizações de combate, estruturado o ensino e efetuado o treinamento deuma força. Não é por menos que o seu desenvolvimento seja tarefa da altaadministração militar, o que, por seu lado, toma os processos de modificaçãopenosos e burocráticos. Estimulados pelas lições aprendidas durante aGuerra do Golfo e atentos ao ensinamento do professor Paul Strassmann,renomado cientista de informação, quando disse que “a história da guerra éa história da doutrina... o que falta é uma doutrina para informação” (OWENS,

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 65: Revista da Escola de Guerra Naval

67

2000), os militares norte-americanos, a partir de 1993, começaram a pensar edesenvolver uma doutrina específica para o assunto.

Contudo, até o momento ainda há superposição e confusão entre umadoutrina de informação pura e alguns aspectos relacionados com a GuerraEletrônica e as clássicas operações de inteligência, ou Guerra Psicológica,em função da falta de um conceito definido para “conhecimento estratégico”.As ações desses dois tipos de guerra concorrem para o mesmo propósito dedesorientar e confundir o inimigo, mas apesar da Guerra Eletrônica tratarexclusivamente do ataque aos sistemas de radar, comunicações, computadorese demais sensores correlatos, e da Guerra Psicológica ser direcionada paraalterar o comportamento e a percepção do adversário em favor do atacante,ainda é difícil pensar exclusivamente em termos de uma doutrina deinformação independente, que englobe e unifique esses conceitos, o que fazas discussões com relação ao emprego de meios e métodos recaírem, boaparte das vezes, nesses tipos de guerra anteriores. Numa tentativa deestabelecer uma definição mais abrangente, surgiu primariamente o conceitode “Guerra do Conhecimento” cujo propósito seria “moldar a ação do inimigopela manipulação do fluxo de dados de inteligência e informações” (OWENS,2000), mas que acabou por se mostrar também muito limitado.

Na seqüência, como forma de ampliar a noção sobre o assunto, oPentágono formulou um novo conceito denominado “Guerra de Comando eControle” com a seguinte definição:

“uso integrado de operações de segurança... despistamento militar,operações psicológicas... guerra eletrônica.., e destruição física, com o apoioda inteligência, para negar informação, influenciar, degradar ou destruir acapacidade de C2 do adversário, enquanto protege sua própria capacidadede C2 de semelhantes ações” (OWENS, 2000).

A intenção era a de aplicar um duro golpe no comando e controle inimigo,preferencialmente colocando-o fora de ação, antes do início dos embatespropriamente ditos. Esta definição, contudo, não satisfez os pensadores dacomunidade de defesa, e outra abordagem mais ampla acabou por surgir, comorigem na RAND Corporation, que clamava por uma “guerra no ciberespaço”ou Ciberguerra, com o escopo de “tentar conhecer tudo sobre um adversário eevitar que tal adversário conheça muito sobre nós” (OWENS, 2000), o quesignificaria fazer pender a balança do conhecimento em favor do agressor,com resultante economia de meios no momento da aplicação da força.

Mas foi a Guerra do Golfo o grande campo de provas que fomentou essasevoluções conceituais e permitiu que as emergentes proposições da RAMpudessem ser experimentadas e avaliadas em um confronto real. É importanteter consciência que esse foi um evento de transição, situado a meio caminho

Márcio Leite Teixeira

Page 66: Revista da Escola de Guerra Naval

68

entre as guerras das segunda e terceira ondas, e cujos acertos e deficiênciascontribuíram para a melhoria do processo, mas não para o seu fim.

A meio caminho do que seria uma guerra do século XXI esteve a ordemde grandeza dos números envolvidos. A coalizão deslocou para o golfo cercade 500.000 homens e seu equipamento, com 40.000 containeres de material,100.000 veículos sobre rodas, 10.000 veículos mecanizados e peças de artilhariae 1.900 helicópteros (OWENS, 2000). Apesar do notável esforço de organizaçãopara colocar tal força em condições de combate, que demandou muitoselementos modernos de gerenciamento e controle, tais quantidades aindadenotam o uso de força bruta. Uma das proposições da RAM é justamentereduzir a quantidade e aumentar a qualidade das unidades de combate, deforma que forças menores projetem ainda mais poder que as atualmenteexistentes. No futuro, de posse de adequados multiplicadores de força, espera-se que o serviço de uma divisão possa ser feito por uma brigada, ou menos, oque aumentará a flexibilidade e o poder das forças de resposta rápida.

Não obstante, quando tal exército teve de se movimentar o fez comvelocidade e impulso inauditos. Apesar das tentativas de despistamentoconduzidas no litoral, era óbvio, pela disposição das forças, que haveriauma tentativa de envolvimento através do deserto, a partir da fronteira com aArábia Saudita. O que causou surpresa geral, mormente aos iraquianos, foi ataxa de avanço histórica obtida pela força terrestre (OWENS, 2000), cujarápida progressão colocou as unidades da Guarda Republicana no Kuwaitsob séria ameaça de cerco e se tornou um exemplo clássico do que prega afilosofia da guerra de manobra, cuja moderna definição versa a “... destruiçãoda coesão do inimigo por meio de ações velozes, violentas e inesperadas, quecriam turbulenta e rápida degradação da situação que o adversário não podesuportar ou administrar” (IBRÚGOER, 2003). Coordenar um movimentoassim veloz de uma força com tal envergadura, acompanhada por toda alogística necessária para mantê-la em funcionamento, requereu amploemprego da tecnologia de informação, principalmente pelo uso de satélites.Nesse ponto, contudo, é onde começaram a surgir as deficiências.

Um dos problemas foi a incompatibilidade entre alguns sistemas decomunicações. Para a Força Aérea os serviços de telecomunicações montaramuma vasta interligação de linhas que permitiu, inclusive, o acesso a redeslocalizadas a milhares de quilômetros de distância. Como exemplo, durantea fase da guerra aérea essa estrutura foi responsável por estabelecer cerca de700.000 chamadas telefônicas e transmitir 152.000 mensagens por dia, com autilização de 30.000 freqüências de rádio (OWENS, 2000), para distribuirmissões para os mais de 1.200 aviões de ataque disponíveis. Somente adiretiva diária responsável pela designação dos alvos e das unidadesencarregadas de batê-los tinha mais de trezentas páginas, a serem transmitidas

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 67: Revista da Escola de Guerra Naval

69

para todos os envolvidos. Essa tarefa era bastante complexa, mesmo paraaqueles que possuíssem canais eletrônicos seguros para a transmissão dosdados. Porém, devido a uma incompatibilidade com os sistemas decomunicação da Força Aérea, as ordens para a Marinha tinham que serdistribuídas diariamente por avião, para os seis porta- aviões entre o MarVermelho e o Golfo Pérsico, o que acabou por resultar em insatisfatóriacoordenação e menor aproveitamento da capacidade aeronaval.

A centralização das operações aéreas foi necessária para otimizar oprocesso de seleção de alvos, a fim de evitar duplicidades e interferências, epermitir o efetivo controle do espaço aéreo sobre a região, a fim de exercer odomínio do ar. A Força Aérea, incumbida de coordenar o emprego de todosos aviões de ataque, conseguiu obter um elevado grau de cooperação entre osserviços, apesar de percalços como os citados anteriormente. Não obstante,as forças singulares continuaram operando sob suas doutrinas individuais,o que conduziu a uma intensa disputa entre o Exército e a Força Aéreajustamente com relação a que critérios adotar para a atribuição da prioridadepara os alvos. A Força Aérea, dentro de sua orientação estratégica e princípios“douhetianos”, desejava bater os alvos em profundidade, de forma a abalara estrutura militar e civil e reduzir a capacidade de combate iraquiana comoum todo. Já o Exército, preocupado com a ofensiva terrestre, consideravaprioritários os alvos táticos ao longo de sua planejada linha de avanço, dentrodo seu conceito operacional de moldar o campo de batalha. Apesar de ambasas partes terem sido razoavelmente aquinhoadas, a controvérsia perduroupor todo o conflito.

Por fim, mesmo com uma razoável variedade de armas inteligentes emseu arsenal, esse tipo de armamento ainda não existia em número suficientepara suprir as necessidades da guerra. Assim, cerca de 91% da muniçãoempregada na campanha aérea foi do tipo convencional, utilizando métodosde saturação de área semelhantes aos da 2ª Guerra Mundial. Essa falta deprecisão acabou por gerar uma acirrada disputa nos bastidores norte-americanos, referente à estimativa de danos causados ao inimigo. O motivo foio método empregado por cada parte no momento de fazer a sua avaliação.Tanto a Agência Central de Inteligência (CIA) quanto o Escritório Nacional deReconhecimento empregaram fórmulas mais conservadoras, com base emimagem satélite, em contraste com o Comando Central, responsável pelacampanha, que se valeu das imagens de vídeo registradas pelas aeronaves edas fotos obtidas em vôos de reconhecimento. Em um dado ponto, as estimativasdefasavam de tal forma a ponto de serem desconcertantes e criarem um genuínomal estar entre os serviços, Como o planejamento da campanha terrestre e acontinuação da campanha aérea dependiam das estimativas de danos, houvealgum prejuízo em decorrência da ineficácia das avaliações.

Márcio Leite Teixeira

Page 68: Revista da Escola de Guerra Naval

70

Tudo somado, a Guerra do Golfo foi um campo de experimentos fértil e umcatalisador para diversos processos relacionados à RAM. Muitas discussõesteóricas foram abreviadas por suas lições e alguns de seus efeitos ainda sãoperceptíveis nos dias atuais. Uma de suas conseqüências indiretas foi o fim daGuerra Fria e a dissolução da União Soviética, incapaz de manter a corridaarmamentista diante da comprovada superioridade tecnológica norte-americana.Tal evento, de conseqüências mundiais, acabou por disparar um novo processodiretamente relacionado com a RAM, que foi a generalizada redução dos efetivosmilitares das potências ocidentais em face do desaparecimento do antigo inimigo.

Apesar da RAM não ser um processo exclusivamente dependente detecnologia, claro está que boa parte de suas proposições só pode ser alcançadapor meio de novos métodos de resolver velhos problemas com novas ferramentas.Adquirir as “novas ferramentas”, contudo, não será barato. No momento emque as forças armadas norte-americanas conseguirem cruzar o rubicãotecnológico, para as demais forças armadas do mundo as opções serão drásticas:realizar o colossal esforço de transpor a fenda tecnológica, com todo o seucusto, ou minguar ante inexorável obsolescência. Para os E.U.A. esse é o prêmioem questão: grande vantagem na guerra econômica, com o comprometimentodo orçamento dos adversários por tempo indeterminado em gastos militares,ou vantagem militar decisiva em qualquer confronto. Uma opção política,também vantajosa para os E.U.A., é a aceitação da liderança militar norte-americana por meio de alianças ou tratados de assistência recíproca.

Estado da Arte

A Revolução nos Assuntos Militares é composta por três conceitosbásicos, que servem como balizas para orientar a evolução do pensamento edos processos: battlespace awareness (“consciência do espaço de batalha”, emtradução livre, onde “espaço de batalha” representa o campo de batalha esua envoltória, que pode se estender até a órbita terrestre); C4I; e uso precisoda força (OWENS, 2000). Em princípio, qualquer discussão com relação àRAM tem de estar relacionada com um destes três conceitos.

Consciência do espaço de batalha significa a capacidade do Comandantede “enxergar” a totalidade do campo de batalha e conhecer em tempo real asituação e distribuição das suas forças, das forças amigas, das forças do inimigo,da população civil, das condições meteorológicas, das emissõeseletromagnéticas, das características do terreno (obstáculos, pontes, elevações)e quaisquer outros fatores que possam influenciar no combate, de forma queseu controle e seu ciclo decisório esteja o mais ajustado possível com a realidadee com as ações efetivamente em curso. Este é o “Santo Graal” para qualquercomandante militar. Obter tal condição vai depender, certamente, da existência

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 69: Revista da Escola de Guerra Naval

71

de uma vasta gama de sensores modernos, tecnologia avançada paratransmissão de dados e ampliada capacidade de processamento e análise, oque é imensamente mais fácil de falar do que de fazer. Manter um fluxoininterrupto, seguro e confiável de dados, em condições de combate, é umserviço nada trivial, que depende de ações coordenadas dentro da concepçãomaior da “coleta de dados de inteligência, vigilância e reconhecimento” — ISR(do inglês intelligence colection, Surveillance and Reconaisssanse).

As fontes, que incluem radares, satélites, veículos aéreos não tripuladose operações de inteligência, esclarecimento e especiais, podem variar emgênero e quantidade de maneira aleatória durante todo o período, o que nãopermite a comodidade de se estabelecer fontes preferenciais e requer amanutenção de uma ampla e constante capacidade de coleta. Processar eanalisar os dados assim obtidos, disseminar as informações correlatas comoportunidade e preparar as ações necessárias, é uma tarefa que exige muitodos sistemas de inteligência e das seções do estado-maior. Sob certo aspecto,é até possível traçar um paralelo com o atarefado estado maior de Berthier,apesar da abismal diferença do volume de dados.

O segundo conceito, C4I, não é propriamente uma novidade, e osignificado do acrônimo já foi apresentado mais acima. Nova é a velocidadecom que atuam os sistemas dedicados ao C4I, com conseqüente impacto navelocidade do ciclo decisório e dos processos que permitem ao Comandantese inteirar da situação e exercer sua liderança. Há uma boa relação entre aconsciência do espaço de batalha e C4I, mas enquanto o primeiro depende dosegundo a recíproca não é verdadeira. Este conceito incorpora um conjuntode sistemas que, unidos, representam o sistema nervoso central e a chave dosucesso em qualquer operação militar, relacionado com a necessidade deconhecer. Atualmente, tal necessidade está relacionada com um conceitomais amplo, não exclusivamente militar, que é o da superioridade deinformações, cujo escopo é propiciar as condições de subjugar um oponentepela aplicação de conhecimento qualificado.

De posse do conhecimento necessário caberia então ao Comandantedisseminar suas ordens e conduzir as ações por meio de avançados sistemasde controle e comunicações, que facultam constante e seguro intercâmbio demensagens para atualização do quadro e ajuste do emprego da força, demaneira a contrapor oportunamente qualquer reação por parte do inimigo.Tudo isso, é claro, com o apoio de avançados sistemas de computação quepermitem imprimir a necessária velocidade ao processo e gerenciar o turbilhãode informações gerado pelo início dos combates.

Por fim, o conceito de uso preciso da força está relacionado com a economiade meios para se conquistar um dado objetivo, ao mesmo tempo em que se

Márcio Leite Teixeira

Page 70: Revista da Escola de Guerra Naval

72

evitam danos desnecessários à população, à propriedade e à infra-estruturaestratégica do adversário. Hoje uma única incursão de um F-117, com umaúnica bomba, pode realizar tanto quanto 4.500 incursões de B-17, com 9.000bombas, na 2ª Guerra Mundial, ou 95 incursões de caças-bombardeiro, com190 bombas, na Guerra do Vietnã (OWENS, 2000). O desenvolvimento dasarmas inteligentes não foi só um requisito operativo, mas também umanecessidade de se limitar os danos a alvos legitimamente militares, em atençãoao preceituado nas convenções sobre o direito da guerra com relação à proteçãoda população civil e do patrimônio nacional e da humanidade, bem como emrespeito à opinião pública própria e internacional, extremamente sensível àsimagens de sofrimento humano cada vez mais difundidas em qualquer conflitoarmado. É importante notar que o uso preciso da força não está relacionadosomente a utilização do armamento inteligente, mas também a aplicação daforça militar como um todo e ao emprego de unidades de combate de tamanhoadequado à missão, de forma a causar mínimo impacto ao ambiente da batalha.

Como cada conceito básico é servido por uma multiplicidade de sistemas— de detecção, de navegação, de telecomunicações, de informática, etc. —, oPentágono adotou a ampla filosofia do Sistema de Sistemas (figura 1) parailustrar a correspondência de cada um desses três conjuntos com as trêsfunções tradicionais de um comandante militar: “ver”, “reconhecer” e “agir”,que irão propiciar as três condições para a vitória em combate: “conhecimentodominante do espaço de batalha”; “quase perfeita designação de missões”; e“imediata e completa estimativa do espaço de batalha” (OWENS, 2000).

Neste ponto cabe realçar a importância da ISR dentro do conceito deconsciência do espaço de batalha, cujo papel é de tal forma significativo queo próprio acrônimo C4I foi modificado e ampliado para C4ISR (C4IVR, naversão portuguesa, com “V” para vigilância), quando aplicado dentro docontexto maior da superioridade de informações.

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Figura 1 –Sistema deS i s t e m a s( O W E N S ,2000)

“ver”ISR

Imediata ecompletaestimativa doespaço de

batalhaConhecimentodominante doespaço de batalha

“agir”uso precisoda força

“reconhecer”C4I avançado

Quase perfeitadesignação de missões

Page 71: Revista da Escola de Guerra Naval

73

Assim, da interação de ISR (“ver”) com avançados sistemas de C4I(“reconhecer’) obtém-se o conhecimento dominante do espaço de batalha,que é a faculdade do Comandante em transformar o conjunto de conhecimentoque compõem sua consciência do espaço de batalha em instrumento dedomínio sobre o inimigo, por meio de controle, comunicações e inteligênciasuperiores, que permitem reter a iniciativa e impor um acelerado ritmo paraas ações, com conseqüente quebra de coesão, perda de coerência e paralisaçãofinal do adversário.

Da interação de ISR (“ver”) com uso preciso da força (“agir”) obtém-sea imediata e completa estimativa do espaço de batalha, que é a faculdade doComandante em conhecer tempestivamente o resultado dos ataquesdesfechados sobre o inimigo e concluir se novo ataque é ou não necessário, afim de negar ao adversário tempo para se recompor ou reagir. Isso significasaturar a área do alvo com o maior número de sensores possível (satélites,aeronaves de esclarecimento, veículos aéreos não tripulados e outros), deforma a obter a informação desejada com intervalo de tempo mínimo, o querequer uma superior integração dos sistemas de inteligência.

Por fim, da interação de uso preciso da força (“agir”) com avançadossistemas de C4I (“reconhecer”) obtém-se a quase perfeita designação demissões, que é a faculdade do Comandante de distribuir o maisadequadamente possível os alvos a bater entre os meios que dispõe, de formaa obter o máximo efeito do armamento e uma seqüência de destruiçãocorrespondente à lista de prioridades. Para melhor aproveitamento dadisponibilidade das plataformas, a designação de alvos seguirácontinuamente no menor intervalo de tempo possível, observada a tempestivaevolução na situação dos referidos alvos e os ajustes que se fizerem necessáriospara batê-los.

Um dos aspectos chave da RAM é emergir da “névoa da guerra” parauma visão total do campo de batalha (OWENS, 2000). Esta é a proposta doSistema de Sistemas e da base conceitual que o sustenta, que constituemgrandes balizas para a pesquisa tecnológica e para a concepção dos novossistemas de combate e de apoio ao combate.

O Futuro

Procedendo-se uma análise retrospectiva, percebe-se que revoluçõesnos assuntos militares anteriores ensejaram o aparecimento de novas formasde combater ou “tipos” de guerra específicos, com técnicas, doutrinas esistemas próprios, como a Guerra Aérea, a Guerra Submarina, a GuerraEletrônica, a Guerra de Blindados e a Guerra Nuclear, entre outras. Dentro

Márcio Leite Teixeira

Page 72: Revista da Escola de Guerra Naval

74

desse enfoque, para a atual RAM já pode ser creditado o surgimento da Guerrade Informações, além de terem sido identificadas mais três áreas com o potencialde desenvolver novos “tipos” de guerra, que são: ataques precisos a longadistância, manobra dominante e Guerra Espacial (ALBERTS, 2003).

Guerra de Informações é, segundo a Força Aérea norte-americana,“qualquer ação para negar, explorar, corromper ou destruir a informação doinimigo, ao mesmo tempo em que protege e utiliza nossa própria informação”.Esta ampla definição engloba as definições da Guerra do Conhecimento, Guerrade Comando e Controle e Ciberguerra, e caracteriza a influência da tecnologiade informações no combate moderno, difusa que é nos diversos sistemas dearmas, comunicações e inteligência. Contudo, a Guerra de informações não éexclusivamente militar, visto que sua grande abrangência faculta sua aplicaçãoem níveis superiores de condução da guerra, como o nível político, ou emoutros campos de interesse nacional, como o campo econômico.

Outro aspecto a considerar, também resultado da abrangência do termo,é a característica não exclusivamente tecnológica da Guerra de Informações,visto que suas ações podem ocorrer tanto como intrusões em computadores einterferências em equipamentos de telecomunicações, quanto como peladestruição fisica de antenas e camuflagem de unidades e instalações. Isto posto,e a fim de permitir um melhor enquadramento dos tipos de ação tratados,admite-se algumas subdivisões na guerra de informações, sem perda daidentidade coletiva. Assim, para o domínio da computação e dos computadoresmelhor se aplica o termo Ciberguerra; para o domínio das emissõeseletromagnéticas utiliza-se o conceito ampliado da Guerra Eletrônica; para odomínio clássico da dissimulação e da camuflagem, com o propósito de iludiros sistemas de detecção com alvos falsos, os russos criaram a apurada técnicada Maskirovka; e para o domínio militar foi criado o novo conceito da “Guerracentrada na rede de comunicações” (NCW, de Network Centric Warfare).

Em sua essência, a NCW transforma superioridade de informações empoder de combate, pela interligação de todas as entidades que detêm algumtipo de conhecimento relevante no espaço de batalha. Em linhas gerais, a NCWintegra os sensores e plataformas disponíveis no espaço de batalha em umtodo unificado, capaz de confrontar de forma sistêmica qualquer ameaça, noque seria a incorporação do sistema de sistemas. Assim, uma força que operedentro do contexto da NCW poderá dispor de um alarme antecipado melhor,ser comandada mais rapidamente, operar em ritmo mais alto, ser mais letal eter uma probabilidade de sobrevivência maior.

O grande potencial da NCW está no nível operacional, onde suascaracterísticas operativas podem propiciar uma superior manobra. Nãoobstante, ainda há muitos desafios a superar para que se desenvolva uma real

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 73: Revista da Escola de Guerra Naval

75

capacidade de NCW, com destaque para a consolidação da tecnologia deintercâmbio eletrônico de dados, por meio de canais seguros e confiáveis, quepermitirá a coordenação e sincronização necessária para o sucesso das ações.

Ataques precisos a longa distância, segundo pesquisadores daCorporação Internacional de Aplicações para a Ciência (SAIC, ScienceApplications International Corporation), seria “a capacidade de localizar alvoscujo alto valor varia com o tempo e atacá-los com elevada probabilidade dedestruição, dentro de um intervalo de tempo estratégico e operacionalmentesignificativo” (ALBERTS, 2003). Tal capacidade está baseada na existência dedois tipos chave de armamentos inteligentes que são as Munições Conjuntaspara Ataque Direto guiadas por satélite (JDAM, de Joint Direct AttackMunitions) e os Mísseis de Cruzeiro Convencionais Lançados do Ar (CALCM,de Conventional Air Launched Cruise Missile). Este armamento utiliza o SistemaGlobal de Posicionamento para navegar e localizar com precisão os seus alvosem qualquer condição de tempo e permite agredir o inimigo sem aviso prévio,evitar expor os pilotos a risco desnecessário e reduzir a probabilidade deocorrerem danos colaterais a alvos civis circunjacentes.

O seguinte exemplo pode ilustrar esse tipo de guerra: “Em 1943, a 8ªForça Aérea norte-americana procedeu a ataques somente contra 50 alvosestratégicos durante todo o ano. Nas primeiras 24 horas da operaçãoTempestade no Deserto as forças aéreas da coalizão procederam a ataquescontra 150 alvos estratégicos — mil vezes mais que a capacidade de 1943.Por volta de 2020, será possível que até 500 alvos estrategicamenteimportantes sejam batidos no primeiro minuto de uma campanha — o querepresenta um incremento de 5.000 vezes sobre a capacidade da Tempestadeno Deserto” (ALBERTS, 2003).

Manobra Dominante é a capacidade de obter os efeitos da Guerra deManobras em escala global, em um intervalo de tempo menor e com forçasmuito reduzidas. Isso requer uma grande conjunção com as operações daGuerra de Informações, da Guerra Espacial e de Ataques precisos a longadistância, de forma a obter um correto posicionamento das forças para atacarpontos decisivos, desestabilizar e derrotar os “centros de gravidade” doinimigo e conquistar os objetivos designados, onde “centros de gravidade”significam os pontos chave de comando, controle, comunicações, organização,logística, transportes, etc., cuja perda comprometeria seriamente a capacidadedo inimigo em conduzir a guerra (ALBERTS, 2003). O que difere a ManobraDominante dos conceitos tradicionais da manobra é a escala. Enquanto amanobra clássica trata da combinação de movimento e fogos para criar umasituação vantajosa para o combate, a Manobra Dominante trata doposicionamento de todas as forças com capacidade de atuar em umdeterminado teatro de operações, de forma a estar em condições de empregar

Márcio Leite Teixeira

Page 74: Revista da Escola de Guerra Naval

76

todos os meios simultaneamente contra os pontos críticos do inimigo. A idéiacentral é saturar os sistemas de defesa do inimigo e corromper sua capacidadede reação, tomando-a desconexa e com tendência à paralisação.

Como exemplo de Manobra Dominante podemos considerar a novadoutrina de operações anfíbias do Corpo de Fuzileiros Navais norte-americano,chamada Manobra Operacional Desde o Mar (OMFTS, de OperationalManeauvre From lhe Sea). Ao invés da força-tarefa anfíbia efetuar a clássicaaproximação da costa para lançar o assalto, o que torna os navios vulneráveisa sistemas de armas baseados em terra, campos minados e outros inconvenientesda Guerra Litorânea, o assalto é lançado de além do horizonte, de uma distânciaentre 25 e 50 milhas mar adentro, diretamente contra o objetivo anfíbio. Dentroda concepção da OMFTS, estabelecer uma cabeça-de-praia e uma base logísticaem terra é uma tarefa secundária, o que apresenta um contraste radical comtoda a doutrina para desembarques anfíbios existente.

Um desembarque clássico possui duas fases distintas, a do assaltopropriamente dito, que requer uma organização específica da tropa a bordodos navios para permitir a correta seqüência de chegada das unidades nazona de desembarque (ZD), e a da campanha terrestre, na qual as unidadesassumem a sua real formação de combate e iniciam a progressão em direçãoa seus objetivos. O momento crítico, no qual a força de desembarque encontra-se mais vulnerável a um contra-ataque inimigo, é justamente na transição daprimeira para a segunda fase, visto que o processo de organização está emandamento, a mobilidade é reduzida, o terreno é geralmente descoberto (apraia e seus arredores), as dimensões da ZD são limitadas e o mar está àretaguarda. O processo como um todo é naturalmente lento e de difícildissimulação, com elevadíssima probabilidade de encontrar o inimigo alertae preparado para o confronto, o que toma qualquer desembarque anfíbiouma operação muito arriscada.

Para superar esses problemas, a proposta da OMFTS é lançar um assaltosimultâneo diretamente contra os pontos críticos do inimigo, a até 200 milhasterra adentro, em um movimento veloz que cause surpresa e choque máximossobre a defesa, algo bem mais amplo que o “envolvimento vertical” de umaoperação clássica, que é o lançamento de tropas em profundidade para ocuparposições chave para a segurança da ZD e para o acesso à praia. Em umaOMFTS o movimento para o interior é em força, não há previsão de se estabelecerligação com tropas que avançam por terra, a logística é toda proveniente dosnavios em alto-mar e cada unidade atua independentemente. Qualquertentativa de reação por parte do adversário, com deslocamentos ouconcentração de tropas, será prontamente obstada por maciço apoio de fogonaval e aéreo, o que contribuirá para a quebra da coesão, a perda do controle ea criação de um estado mental propenso à derrota, pela sobrecarga de

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 75: Revista da Escola de Guerra Naval

77

dificuldades para se montar uma defesa coerente. Por fim, ao invés dodesembarque de uma força-tarefa completa, muitas das funções principaispoderão continuar a ser exercidas do mar, como o comando e controle, a parteadministrativa, a coordenação de apoio de fogo, a própria logística e os serviçosde saúde, com conseqüente redução do tamanho total da força e dos meios deapoio necessários para condução dessas atividades a partir de terra.

Guerra Espacial é a capacidade de colocar e utilizar sistemas para finsmilitares no espaço, que proporcionem projeção de poder sobre a Terra ouque facilitem a obtenção da consciência do espaço de batalha, ao mesmotempo em que nega ao inimigo semelhantes recursos. Apesar da existênciade grandes projetos, como o sistema de defesa Guerra nas Estrelas criado naadministração Ronald Reagan e revivido na administração George W. Bush,o principal papel militar do espaço nos últimos 40 anos foi e continua sendoo do reconhecimento. Até o ano 2000, dos 1.679 satélites e outras cargascolocadas na órbita terrestre, 431 foram satélites destinados à vigilância ou acoleta de dados de inteligência, o que confere grande vantagem sobre qualqueradversário, sem os riscos de inconvenientes incidentes diplomáticos. O espaçoé o ambiente estratégico chave para vencer a RAM contra qualquer inimigo(COLLINS, 1989). Nas palavras de um ex-chefe do Comando Espacial norte-americano “em um futuro de forças reduzidas e economicamente restritas,iremos depender ainda mais do espaço. Sistemas espaciais serão sempre osprimeiros em cena”, uma ênfase que mudará todo o equilíbrio do poder militar(COLLINS, 1989).

Dentro desse enfoque, o Departamento de Defesa atribuiu alta prioridadepara as operações espaciais norte-americanas, o que levou o Pentágono adesenvolver um novo sistema de satélites que utilizará sensores de detecçãoinfravermelhos em órbitas variadas denominado Sistema InfravermelhoBaseado no Espaço (SBIRS, de Space-based Infrared Sysiem). Este sistemaampliará significativamente a capacidade militar norte-americana e constituiráum sistema de sistemas em si próprio, com aplicações em alarme antimíssil,defesa antimíssil e inteligência. Sua operação contará com satélites na altaórbita geosincronizada (SBIRS-Alto), que atuarão em conjunto com umaconstelação de até 24 satélites em órbitas mais baixas (SBIRS-Baixo) comcobertura constante de todo o globo terrestre. Conforme orientação doDepartamento de Defesa, o Pentágono encara o espaço como área de grandeimportância estratégica a ser guardada e defendida e cujo acesso e uso devemser garantidos em contribuição para a segurança nacional e para os interesseseconômicos norte-americanos (COLLINS, 1989). É interessante lembrar aspalavras do Presidente John Kennedy quando declarou: “ninguém pode prevercom certeza qual o significado final de se obter a mestria do espaço”, mas podeser que no espaço “esteja a chave de nosso futuro na Terra” (COLLINS, 1989).

Márcio Leite Teixeira

Page 76: Revista da Escola de Guerra Naval

78

A evolução vivida pela humanidade a partir da segunda metade doséculo XX foi investida de uma velocidade sem precedentes. Nunca antes nahistória tanto avanço foi obtido em tão pouco tempo e em tantas áreas diversasda ciência. Hoje somos testemunhas e participes de uma nova era que aflora, aEra da Informação, que traz embutida uma revolução social comparável àsmaiores revoluções que o Homem já viveu e faz despontar o surgimento deuma nova sociedade e uma nova economia. Como Alvin e Heidi Toffler apontam,mesmo enquanto muitas nações no mundo ainda tentam industrializar-se,novas civilizações começam a despontar entre as nações mais avançadas(TOFFLER, 1995), o que abre perspectivas de muitas mudanças e de um novomundo, com novos desafios e novas necessidades de sobrevivência para osEstados. Como não poderia deixar de ser, esse notável conjunto de modificaçõesexerceu indelével influência no ser militar e na própria natureza da guerra,com significativa alteração na forma de combater, cuja tendência é aumentarainda mais na próxima década. Nos dias atuais, um Comandante pode disporde recursos e facilidades que, até recentemente, apenas existiam nos devaneiose no imaginário militar, capazes de oferecer vantagem desproporcional edecisiva contra qualquer força convencional da virada do século. É isso o quetoma o presente processo em uma real Revolução nos Assuntos Militares,potencializada ainda mais pela transformação da sociedade como um todo.As Forças Armadas em geral, e a norte-americana em particular, estão diantede forçosas mudanças tecnológicas, culturais, organizacionais, estratégicas,táticas, doutrinais, de treinamento e logísticas que, uma vez concluídas, irãoalterar significativamente o equilíbrio militar mundial.

Uma revolução assim profunda é algo muito raro na história(TOFFLER, 1995).

Conclusão

Uma revolução é um acontecimento inovador que traz mudançasprofundas nos sistemas e processos de um determinado meio ou ambiente. Aprincipal característica das anteriores revoluções nos assuntos militares é,justamente, a completa e generalizada modificação da forma de combater queas seguiu. Este é o propósito da atual RAM, a partir da aplicação dos seus trêsconceitos básicos: consciência do espaço de batalha, C4I e uso preciso da força.

Apesar do processo não ter uma origem específica, é certo que a evoluçãodo conceito da manobra, a partir dos estudos de Boyd e Lind, teve influênciamarcante. Com a formulação da doutrina da Airland Battle e, posteriormente,da moderna filosofia da Guerra de Manobra, houve uma real modificação naforma de combater, com destaque para a urgência de se obter velocidaderealçada por Simpkin.

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 77: Revista da Escola de Guerra Naval

79

Mas foi o irromper da Era da Informação que deu o ponto marcante daRAM, a partir do uso difuso da computação e da multiplicação geométricados processos informatizados. A notável influência dos computadores emtodos os níveis da atividade social teria, necessariamente, reflexos naatividade militar. A facilidade de armazenar, acessar e distribuir dadosatingiu um nível jamais alcançado anteriormente, o que conferiu uma novadimensão á noção de que conhecimento gera poder e fez surgir a concepçãoda superioridade de informações. Assim, foi com razoável naturalidade queo acrônimo C3I expandiu-se para C4I, de forma a representar a união dacomputação às consagradas atividades básicas de comando, controle,comunicações e inteligência.

A Guerra do Golfo foi a primeira oportunidade prática de aplicar osnovos processos e doutrinas surgidas do uso da informática para finsoperativos, sem representar, todavia, a essência da RAM. Apesar dos avançosverificados e de testes bem sucedidos, muito faltou realizar para satisfazer aconcepção dos três conceitos básicos. No golfo a “névoa da guerra” ainda foielevada, houve deficiências de comando e controle e a quantidade dearmamento “inteligente” disponível foi bastante reduzida, o que resultouque a maior parte da campanha aérea fosse realizada em moldes semelhantesao da 2ª Guerra Mundial, consideradas as naturais evoluções técnicas.

Não obstante, o conflito produziu muitos ensinamentos. Com base naslições assimiladas, o Pentágono uniu a concepção dos três conceitos básicoscom as três tradicionais funções de um comandante militar (“ver”,“reconhecer” e “agir”) para formular a ampla filosofia do Sistema de Sistemas,que representa a integração sinérgica dos variados sistemas de detecção,comunicações, navegação, coleta de dados, etc, que atendem o serviço militar.Dessa combinação emergem as três condições para vitória em combate:“conhecimento dominante do espaço de batalha”; “quase perfeita designaçãode missões”; e “imediata e completa estimativa do espaço de batalha”, asquais permitirão obter um dos aspectos chave da RAM, que é emergir da“névoa da guerra” para uma visão total do campo de batalha.

Em concomitância, a generalizada ampliação do nível do conhecimentohumano fez surgir um novo tipo de conflito, não violento, sem sangue, masigualmente competitivo e feroz que é a Guerra de Informações, com alcanceem praticamente todos os principais ramos da atividade social. Da aplicaçãomilitar da Guerra de Informações destacam-se a Ciberguerra, travada nodomínio da computação e dos computadores, e a Guerra centrada na rede decomunicações, que transforma superioridade de informações em poder decombate, pela interligação de todas as entidades que detêm algum tipo deconhecimento relevante no espaço de batalha. Mas não é só isso, visto que a

Márcio Leite Teixeira

Page 78: Revista da Escola de Guerra Naval

80

difusão do conhecimento fez surgir três novas áreas com o potencial dedesenvolver novos tipos de guerra, que são: ataques precisos a longadistância, manobra dominante e Guerra Espacial. Estas novas áreas deconflito já começam a gerar novas tecnologias e novos processos que, porsua vez, irão gerar novos projetos de forças, novas concepções estratégicas,novas doutrinas e táticas, nova formação e treinamento de soldados e novalogística, com um incremento ainda maior no atual processo revolucionário.

No limiar do século XXI, e diante das restrições orçamentárias comque se defrontam os governos de todos os países, são muito poucas, se é quealguma, as forças armadas que podem tentar acompanhar o ritmo da RAMimposta pelos Estados Unidos da América. Este não é um processo que visesimplesmente otimizar a atividade militar, mas que pretende transformá-laa ponto de colocar fora de condições de combate todos os que nãoconseguirem transpor o rubicão tecnológico. A sociedade e as forçasarmadas norte-americanas se esforçam diligentemente para garantir a maiorvantagem possível para seus soldados e, mesmo a meio caminho decompletar a RAM que se propuseram, é difícil contestar que, atualmente, jáhaja vantagem decisiva contra qualquer adversário efetivo ou potencialcom que possam se confrontar.

Referências:

ALBERTS, David. et al. Network Centric Warfare developing and leveraginginformation superiority: CCRP (Command and Control Research Program).Disponível em: <http://www.dodccrp.orgfNCWfintro.htm>. Acesso em: 25 abr.2003.

COLLINS, John. Military space forces: the next 50 years. Washington, DC:Pergamon-Brassey’ s, 1989.

CORAM, Robert. BOYD: the fighter pilot who changed the Ad of war. Nova York:Little Brown and Company, 2002.

GATES III, William H. A estrada do futuro. São Paulo: Schwarcz, 1995.

HITTLE, J. D. The military staff. Harrisburg: The Military Service PublishingCompany, 1944.

IBRÚGOER, Lothar. The revolution in military affairs. Comitê de Ciência eTecnologia da OTAN, 1998. Relatório Especial. Disponível em: <http://www.naa.be/publications lcomrep/1998/ar299stc-e.html>. Acesso em: 25 abr. 2003.

LANNING, Michae Lee. Chefes, líderes e pensadores militares. Rio de Janeiro:Bibliex, 1999.

Por que Revolução nos Assuntos Militares?

Page 79: Revista da Escola de Guerra Naval

81

LEONHARD, Robert R. The art of maneuvre. Novato, Califórnia: Presidio Press,1994.

LIND, William. Maneuver warfare handbook. Boulder, Colorado: Westview Press,1985.

MELLO Jr., Celso Washington. O papel de Berthier, chefe do Estado -Maior deNapoleão, nas Campanhas Napoleônicas. 1998. Ensaio - Escola de Guerra Naval,Rio de Janeiro, 1998.

OWENS, William A. Lifting the fog of war. Nova York: Fanar, 2000.

PROENÇA Jr., Domício; DINIZ, Eugênio; RAZA, Salvador G. Guia de estudos deestratégia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

SIMPKIN, Richard E. Race to the swift. Londres: Brassey‘s Publisher, 1985.

SUN, Tzu. A Arte da Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1983.

TOFFLER, Alvin. A terceira onda. Rio de Janeiro: Record, 1980.

______. War and anti-war. Nova York: Wamer Books 1995.

VASCONCELOS, Argos. Marechais de Napoleão. Fortaleza: [s.n], 1981.

WINTERBOTHAM, Frederick W. Enigma: o segredo de Hitler. Rio de Janeiro:Bibliex, 1978.

Márcio Leite Teixeira

Page 80: Revista da Escola de Guerra Naval

83

Estratégias do Brasil e dos Eua:Uma Reflexão

Cláudio Rogério de Andrade Flôr*

Resumo

Em outubro de 2003, o Pentágono apresentou um relatório sobreas implicações das mudanças climáticas na Segurança Nacionaldos EUA. Uma menor disponibilidade de alimentos, água eenergia no mundo pode acarretar a formação de “aliançasimprováveis, à medida que as prioridades de defesa mudam”. Deforma coerente, parece que as Estratégias de Segurança dos EUAa partir de 2006 incorporaram essa leitura, adequando os seusobjetivos a uma nova realidade prospectiva. Nesse mesmoperíodo, cresceu a presença da China na América do Sul/Caribe,ávida por recursos naturais para atender seus objetivos políticos.Considerando-se a Estratégia de Cooperação dos EUA no SéculoXXI (2007) e a Estratégia Nacional de Defesa do Brasil (2008),conclui-se que existe a possibilidade de cooperação Brasil-EUA,mas fora das águas jurisdicionais brasileiras.Palavras-chave : Estratégia - Defesa - Segurança

Abstract

In October 2003 the Pentagon submitted a report on theimplications of weather change on U.S. National Security. A loweravailability of food, water and energy in the world can lead tothe formation of unlikely alliances, as a result of changingpriorities of defense. In a coherent way, it seems that the U.S.Security Strategy from 2006 have incorporated this reading,adjusting their goals to a new reality. During the same period,the presence of China in South America / Caribbean has increased,urging for natural resources to meet its political objectives.Considering the U.S. Cooperative Strategy for 21st CenturySeapower (2007) and National Defense Strategy of Brazil (2008),concluded that there is the possibility of cooperation betweenBrazil and the U.S., but outside of Brazilian waters.Keywords: Strategy - Defense - Security.

Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 83-100.

* Capitão-de-Mar-e-Guerra (RM1), docente da EGN e Mestre em Ciência Políticapela UFF.

Page 81: Revista da Escola de Guerra Naval

84

Introdução

A queda do muro de Berlin em 1989 foi o prenúncio de uma nova era noconfronto pelo poder no mundo. Com o último arriamento da bandeira daUnião das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no dia 25 de dezembrode 1991 no palácio do Kremlin, foi confirmado que os EUA tinham se tornadoa única e maior potência econômica e militar do globo. A derrocada desseinimigo primaz tornou os estadunidenses senhores de todos os mares, devidoà ausência de meios adequados que pudessem negar esse status no campomilitar1. Cientes desse vazio de poder, os formuladores estratégicos lançamvárias iniciativas no sentido de capacitar e habilitar o poder naval norte-americano de lançar ataques a partir de bases2 posicionadas no marinternacional (SPELLER, 2008, pp. 166 e 167).

Enquanto isso, o Brasil adentrava os anos 90 vulnerável tanto no campoeconômico como no militar. Fragilizado pela crise da dívida oriunda dadécada anterior, o Estado brasileiro abandonou o ideário nacional-desenvolvimentista iniciado no período Vargas dos anos 30 e assumiu aideologia de livre mercado apresentada e defendida no Consenso deWashington.3 As repercussões para a indústria militar-naval em estaleirosnacionais foram imediatas. Iniciou-se um declínio que só não colapsou,devido à iniciativa da Marinha do Brasil (MB) de alongamento dos prazos deconstrução de alguns navios e submarinos previstos no seu Programa deReaparelhamento4. Paralelamente, houve uma sensível redução dasatividades de manutenção e reparo de seus meios.

No entanto, no alvorecer do novo século XXI surgiram oponentes não-estatais que ameaçaram e causaram danos aos EUA, desafiando suasupremacia. O evento do 11 de Setembro mostrou que a guerra, como fenômenosocial, não estava restrita às possibilidades conhecidas e reconhecidas peloSistema Internacional (SI) anárquico, devido a ausência de um poder central.A hegemonia econômica e militar de um Estado não o torna imune às ameaçasque o ser humano é capaz de planejar e executar.

Estratégias do Brasil e dos EUA

1 Estamos nos referindo aos submarinos soviéticos que podiam ameaçar as esquadrasnorte-americanas.2 Trata-se da capacidade denominada sea basing que possibilita as forças navais desfecharemataques contra objetivos terrestres e marítimos. A preparação e a manutenção do esforçomilitar é praticamente independente. No campo político, a principal vantagem é o fatodos EUA ficam livres de negociação com Estados que têm bases norte-americanas emseus territórios.3 Conjunto de crenças neoliberais defendido pelo inglês John Williamson em uma conferênciarealizada em Washington em 1989. Continha dez recomendações visando à estabilizaçãomonetária. Previa a necessidade de redução do controle pelo Estado.4 Esses submarinos denominados da classe Tupi foram construídos em um estaleiro daMarinha do Brasil denominado Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro.

Page 82: Revista da Escola de Guerra Naval

85

Este trabalho tem por objetivo analisar comparativamente documentosde defesa no campo militar-naval de dois Estados: a Estratégia Marítima deCooperação para o Século XXI dos EUA e a Estratégia Nacional de Defesa doBrasil. O propósito maior é identificarmos pontos convergentes e divergentesde forma melhor respondermos a seguinte pergunta: o Brasil deve cooperar?

Para tal, abordaremos alguns aspectos políticos e estratégicos a partirdo início dos anos 90, passando pelo 11 de Setembro com suas implicaçõesdecorrentes, até a publicação das duas estratégias 2006 e 2008,respectivamente, dos EUA e do Brasil. Como entendemos que a teoria étributária da filosofia, utilizaremos como referencial teórico John Gray, filósofoinglês que expõe a utopia da idéias iluministas, assim como, Thomas Hobbese John Locke. Pressentimos, também, a necessidade de apoio de Barry Buzannas dimensões de segurança nacional e Eric Grove que atualizou a trindadede Kent Booth a respeito das funções atribuídas às marinhas de guerra(SPELLER, pp.169 e 170)5.

Análise

O fim da história que Francis Fukuyama procurou retratar foi umacrença. Na realidade, o término do confronto ideológico de quarenta anos deuma Guerra Fria não eliminou as principais fontes de outros conflitos entreEstados. Como sempre ocorreu antes e depois dessa guerra peculiar, asprincipais motivações foram e tudo indica que continuarão a ser, por razõesterritoriais, étnicas, religiosas e interesses econômicos divergentes entreEstados. A visão de Fukuyama, assim como, a tese Samuel Huntington têmos EUA como referência central, dentro de uma leitura sobre o mundo nãocompartilhada pela maioria dos europeus, asiáticos (GRAY, 1999, pp.157 a159) e acrescentaremos por latino-americanos.

Essas fontes de conflitos incessantes logicamente geram insegurança,uma sensação que tem sua origem no instinto de sobrevivência. Num mundoem mutação acelerada e persistente que gera impactos nos Estados, osignificado dessa sensação se expandiu em diversas dimensões. Ficaremoscom as dimensões política, militar, econômica, social e ambiental6, conscientesde que elas permeiam os níveis individual, de grupo, nacional, regional einternacional (TILL, 2007, pp. 113 a 124).

Dissecando essa sensação de segurança identificamos três fatoresimportantes que podem ser extraídos do aforismo de Thomas Hobbes no

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

5 Spelle, Ian. Naval warfare. In: Jordan, David e all. Understanding modern warfare.Cambridge: Cambridge University Press, 2008,6 A leitura da Constituição Federal de 1988 nos sugere essas cinco dimensões.

Page 83: Revista da Escola de Guerra Naval

86

qual o “homem é o lobo do homem”. Se acreditamos nessa máxima, é válidodizer que o homem é uma ameaça, é vulnerável a essa ameaça e que ela tem apropriedade de poder causar danos ao homem. O foco no instinto dasobrevivência por parte de Hobbes foi em parte amenizado pelo discípulodele John Locke que observou a predominância do instinto da solidariedadeem determinadas situações. Locke imaginou que a partir de um consenso,uma regra acordada entre os atores, haveria a possibilidade de se contrapora ameaça de um homem ou grupo de homens, capaz de causar dano àpropriedade, liberdade e igualdade de outros homens que são vulneráveis àsações dos primeiros. Sumariando, os dois filósofos associados àpredominância de diferentes instintos convergem nos fatores: ameaça,vulnerabilidade e dano, assim como, na importância do soberano (Estado)regulamentar o convívio humano a fim de reduzir a sensação de insegurança.

Buzan mostrou as vulnerabilidades e ameaças a que estão sujeitos osprincipais atores do SI, a partir de duas variáveis: coesão sócio-política epoder.

Estratégias do Brasil e dos EUA

7 O poder é relativo a outros Estados em função da capacidade econômica e militar decada um (BUZAN, 1991, p. 97).

Os Estados são fracos ou fortes em relação à coesão sócio–política emfunção da idéia de Estado, sua base física e da expressão institucional dele.Esses fatores vão influenciar a percepção que esse ator tem, por exemplo,quanto à sua segurança nacional. Para o Estado com forte coesão sócio-política a segurança nacional se relaciona às ameaças e interferênciasexternas. No Estado fraco a idéia de Estado e suas instituições são contestadasinternamente com violência, por isso a segurança nacional se volta paradentro de suas fronteiras. São Estados onde há ausência de consenso político,

Tipo de Estado Quanto à coesão sócio-política.

Fraco ForteQuanto ao seupoder.7

Altamente vulnerávelà maioria dos tipos deameaças

Particularmentevulnerável àsameaças militares

Forte Par t i cu larmentevulnerável àsameaças políticas

Relat ivamenteinvulnerável àmaioria dos tiposde ameaças

Fonte: BUZAN, 1991, p. 114.

Fraco

Page 84: Revista da Escola de Guerra Naval

87

com grupos controlando seus próprios territórios, contestando o governocentral e os outros grupos com o emprego da força (Buzan, 1991, pp. 97 a101). No que tange a poder, esse é relativo a outros Estados em função dacapacidade econômica e militar de cada um deles.

Assim, a melhor situação ocorre quando o Estado é forte tanto na coesãosócio-política quanto no seu poder, tornando-o relativamente invulnerável àmaioria das ameaças. O Estado fraco nessas duas variáveis é consideradoaltamente vulnerável a maioria das ameaças. Quando a coesão sócio-políticaprevalece, o Estado é particularmente vulnerável às ameaças militares. Coma primazia do poder e da coesão, a vulnerabilidade se apresenta em relaçãoàs ameaças políticas (BUZAN, 1991, p. 114).

Entendida as dimensões, os níveis e os fatores que influenciam asegurança, vamos ao nosso segundo ponto que auxiliará a investigação dessasensação no mundo atual. No século XIX, Carl von Clausewitz apresentou,dentre outros, dois conceitos o de centro de gravidade (CG) e da “trindade”povo, exército e governo8. O CG é entendido como o centro formadovoluntariamente de que tudo depende e, por essa razão, é contra ele que deveser desferido o golpe9. Naquela época, o CG dogmático era o exército e estedeveria ser vencido.

Com foco nesses elementos, vejamos a possibilidade que oferece o marna comunicação entre os Estados. Sabemos que cerca de 90% do comérciomundial é transportado pelos oceanos que, cobrindo três quartos do planeta,permitem que as necessidades vitais ou não dos Estados trafeguem em naviosmercantes que por eles se deslocam. Toda essa troca comercial possibilitaque os Estados prosperem, assegurando um padrão de vida melhor para oshabitantes de um país. Numa conclusão preliminar, demandas vitais nãoatendidas podem, de forma indireta, gerar uma insatisfação que atue noelemento povo do CG.

Pelo mar navegam os navios mercantes e de guerra. As marinhas deguerra pelas suas características peculiares utilizam os oceanos para trêstarefas estratégicas10 ou propósitos (SPELLER, 2008, p. 170). Primeiramente,em tarefas militares diplomáticas nas quais mostram as bandeiras dos seusEstados ou adotam a “diplomacia das canhoneiras” quando existe ma

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

8 O povo está associado à violência original desse elemento, à paixão e à cegueira doimpulso natural. O exército e o seu comando reflete a amplitude do confronto, a importânciado domínio do jogo das probabilidades e do acaso, e a livre atividade humana. O governose apresenta como o emprego da razão pura visando seus objetivos políticos (Clausewitz,1976, p. 89).9 Ibidem, p. 726.10 A END nomeia esses propósitos como tarefas estratégicas (Brasil, 2008, p. 12).

Page 85: Revista da Escola de Guerra Naval

88

probabilidade maior do emprego da força militar, mesmo em períodos depaz. A segunda tarefa é a constabulary,11 que consiste no emprego da marinhana manutenção da soberania e da ordem, na salvaguarda dos recursosnaturais marinhos da nação e de sua explotação ou exploração, assim como,em operações de manutenção de paz sob a égide da ONU. A terceira e últimaé militar clássica no sentido de negar, controlar o uso do mar, assim como,projetar o poder sobre terra a partir do mar.

EUA: vulnerabilidades e iniciativas estratégias

Para entender Estratégia de Cooperação Marítima dos EUA para o SéculoXXI vamos comparar duas iniciativas ocorridas em séculos diferentes contraos EUA e os efeitos no campo estratégico da última. A primeira iniciativa foio ataque japonês a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941. Esse ataquecontra o CG dogmático tinha como alvo a base militar e os navios de guerranorte-americanos. Fazendo uso de uma força aeronaval na qual participavamcerca de 15.000 militares japoneses distribuídos em, aproximadamente, 30navios e 400 aeronaves, os danos alcançados somaram 2.413 vítimas, sendoa maioria de militares. A iniciativa terrorista do 11 de Setembro atingiu umnúmero de maior de vítimas, calculado em 2.973 (ALVES, 2007, pp. 246 a360), principalmente civis. Os meios operacionais empregados e as perdasforam 12 terroristas que usaram como armas letais aeronaves comerciais,bem inferiores em número e tipo se comparados aos meios nipônicos. Osalvos foram os símbolos do poder econômico, militar e político dos EUA.

As duas iniciativas tiveram como semelhança a iniciativa, a surpresa ea liberdade de ação, importantes princípios de guerra utilizados porcombatentes em suas ações de emprego da força contra inimigos. Asdiferenças marcantes podem ser retiradas do objetivo de cada ataque, voltadopara atingir a crença do CG de cada época. Enquanto os japoneses focaramalvos militares, os terroristas conseguiram atingir o povo, causaram algumdano ao Pentágono e tentaram atingir a sede do governo dos EUA, ou seja,buscaram causar impacto nos três elementos do CG identificado porClausewitz12.

Estratégias do Brasil e dos EUA

11 Há várias definições para esse termo. Entendemos que é um tipo de força militartreinada para tarefas de polícia. Para a MB essa tarefa está incorporada a uma de suasatividades subsidiárias. No caso específico dos EUA, essa tarefa é exercida pela GuardaCosteira.12 Outro ponto a observar é o custo dos empreendimentos japonês e terrorista. Em termosde vidas humanas e bens materiais, podemos afirmar que o segundo foi extremamentemenor que o primeiro para um resultado 23% maior em número de vítimas. Ou seja, arelação custo/benefício foi extremamente favorável no caso da iniciativa terrorista secomparada com a japonesa sessenta anos antes.

Page 86: Revista da Escola de Guerra Naval

89

Podemos ainda associar essas duas tristes experiências sofridas pelopovo estadunidense à teoria de Buzan. No 11 de Setembro, os EUA estavamfortes quanto à coesão sócio-política e eram a maior potência econômico-militar,o que não os imunizou ao ataque terrorista. Essa combinação de variáveisfavoráveis de Buzan, sugerindo uma relativa invulnerabilidade a quase todasas ameaças, não acarretou a redução no número de vítimas. O maior aparatomilitar do planeta foi incapaz de proteger o seu povo e o seu território.

O fenômeno social ocorrido nº11 de Setembro mostrou a um mundomais globalizado13 a possibilidade de atores não-estatais causarem danosmaiores do que as forças empregadas em guerras convencionais. A primeiraresposta norte-americana para esse desafio foi a invasão do Afeganistãonuma investida militar, usufruindo do seu direito de autodefesa com amplaaprovação mundial, com o propósito de eliminar Osama Bin Laden e suaorganização terrorista Al Qaeda. Dois anos depois, num segundo momento,os EUA decidiram por invadir o Iraque sob alegação da existência de armasde destruição em massa, o que nunca ficou comprovado, e do apoio dogoverno do ditador Sadam Hussein a grupos terroristas. Neste caso houveuma clara violação da soberania de um Estado do SI. A falta de um consensointernacional quanto às duras medidas da proposta estadunidense nãoimpediu a intervenção militar.

Vários documentos estratégicos norte-americanos foram e continuamsendo lançados buscando orientar o enfretamento adequado de modo aeliminar a ameaça terrorista. No pós-11 de Setembro, o governo do PresidenteGeorge W. Bush aprovou os documentos National Strategy for Homeland Security(NSHS) e a National Security Strategy (NSS) publicadas em julho de 2002 e ade março de 2006, respectivamente.14 Os objetivos estratégicos apontados naNSHS são:15

a) prevenir ataques terroristas dentro dos EUA;b) reduzir a vulnerabilidade norte-americana ao terrorismo; ec) minimizar os danos e sua recuperação após um ataque.Além disso, a NSHS apresenta quatro fundamentos visando atingir a

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

13 Entendemos globalização como um processo histórico iniciado no século XVI. Aglobalização “refere-se à crescente interconexão da vida econômica e cultural em partesdistantes do mundo”, no qual a principal força propulsora é “rápida difusão das tecnologiasde informação” (GRAY, 1999, p. 276).14 Outras estratégias derivadas são: National Strategy to Combat Weapons of MassDestruction (dez/2002), National Strategy for Combat Terrorism (fev/2003), The NationalMilitary Strategy of the USA (2004) e National Defense Strategy of the USA (mar.2005).(USA, 2002, p. vii).15 Notamos aqui a presença dos três fatores apontados inicialmente: ameaça, vulnerabilidadeà ameaça e dano.

Page 87: Revista da Escola de Guerra Naval

90

melhor situação do país em termos de segurança. São eles: lei, ciência etecnologia (C&T), compartilhamento de informações e sistemas, e cooperaçãointernacional16. Este último fundamento sinaliza a necessidade de um tipo desolidariedade para atingir os objetivos estratégicos apontados na mesmapublicação. Essa visão possivelmente utópica não se coaduna com a tradiçãoda política externa estadunidense. No entanto, a NSS é transparente quanto àmaneira de pensar estadunidense: “nossa [EUA] abordagem é idealista emrelação aos nossos objetivos nacionais, e realista na forma de alcançá-los”(USA, 2006, p. ii).

Essa concepção de auto-interesse se manifesta claramente no documentoA Cooperative Strategy for 21st Century Seapower (USA, 2007) ao verificarmos adescrição de como o Poder Naval norte-americano, integrado a outros elementosdo poder interno e externo dos EUA, será aplicado para garantir o tipo de vidaestadunidense e a manutenção de um sistema global interconectado por meiodo qual os EUA prosperam. Esse é, naturalmente, um dos porquês da existênciado maior aparato bélico conhecido no mundo atual, sendo a garantia do estilode vida norte-americano uma extensão da missão primária de qualquer forçaarmada, qual seja, a defesa do povo e do território de seu país.

A integração de elementos do poder externo compreende parceiros cominteresses comuns para conter ameaças. A estratégia de cooperação expressaque esses elementos são: governos e organizações internacionais, não-governamentais e do setor privado17 que, cooperando entre si, podem secontrapor às ameaças não-tradicionais como terroristas e extremistas,proliferadores de armas de destruição em massa, traficantes – de armas, drogase pessoas – e outros ilícitos. Especificamente quanto à cooperação nas operaçõesmarítimas, esse documento aponta as possibilidade de alianças formais –Organização do Tratado do Atlântico Norte -, assim como, de alianças informaisa serem criadas a partir da iniciativa de Parceria Marítima Global18.

A identificação de novas ameaças logicamente não prescreve as ameaçastradicionais de outros Estados. No início do século XX, os EUA também seutilizaram de segurança cooperativa, denominada “naval consortium”, paramanter suas linhas de comunicação oceânicas abertas. Entretanto, Mahanadvertiu que seu país poderia necessitar de um “grande porrete” para garantir

Estratégias do Brasil e dos EUA

16 Em outubro de 2007, foi apresentada a atual NSHS que apresenta quatro objetivossendo os três primeiros semelhantes à estratégia anterior. São eles: impedir e interromperataques terroristas; proteger o povo americano, a infra-estrutura crítica e os recursoschaves; responder e recuperar-se dos incidentes que venham a ocorrer; e continuar areforçar os fundamentos para assegurar o sucesso no longo prazo. (The White, 2007, p.1).17 Várias são as organizações privadas que trabalham para o governo norte-americano.Uma delas é a Blackwater Security Consulting (SCAHILL, 2008).18 Global Maritime Partnership.

Page 88: Revista da Escola de Guerra Naval

91

o livre uso do mar para seu auto-interesse (WAILLING, 2008, pp. 130 a 139).Hoje, como no passado, as demandas por segurança nos EUA associadas àiniciativa de parceria global denotam a necessidade de se reduzirvulnerabilidades estadunidenses que podem ser ameaçadas por atorestradicionais ou não. Ou seja, o país de maior poder econômico-militar não estáimune ao tráfico de drogas, p. ex., que gera um impacto à economia de mais deUSD 240 bilhões por ano, com um crescimento anual da ordem de 5%(STAVRIDIS, 2007, p. 19).

Esse desperdício poderia estar sendo canalizado para atendernecessidades com foco para o padrão de vida norte-americano. Oquestionamento interno parece ser simples. A maior potência econômico-militar de todos os tempos está capacitada a garantir o tipo de vida do seupovo e garantir a manutenção de um sistema global interconectado por meiodo qual os EUA prosperam? A resposta tende a ser negativa. Então, para queseja mantido o auto-interesse estadunidense só restou a cooperação. Ou seja,apelar para a solidariedade com um “grande porrete” para garantir asobrevivência dos EUA. Afinal, a sobrevivência e a cooperação são as faces deuma mesma moeda, pois só os que sobrevivem podem cooperar.

A vulnerabilidade norte-americana nos parece muito clara. Os EUA comodetentores do maior PIB estão inseridos em um mundo interconectado no qual90% do comércio internacional e 2/3 do petróleo trafegam por linhas decomunicação oceânicas (USA, 2007). O controle dessas linhas é vital para sereduzir as vulnerabilidades que se apresentam como sendo as demandasnecessárias a manter o padrão de vida norte-americano e a manutenção dosistema de prosperidade crescente19.

Para fazer frente às ameaças tradicionais ou não que possam causar danosao padrão de vida e prosperidades estadunidenses, os EUA estabeleceram seistarefas básicas para o seu poder marítimo20 dividido em termos regionais e globais.Os primeiros focam locais de elevada tensão ou procuram demonstrar o podermarítimo, ou seja, mostrar a pretensos desafiadores que a esquadra é capaz deser severa. As tarefas dessas esquadras regionais são:21

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

19 Não atendidas essas demandas, o governo enfrentará dificuldades no campo social emface de uma possível redução do padrão de vida e/ou da prosperidade. Nesse caso, osCG que podem ser atingidos são governo (razão) e povo (paixão).20 Entendido como a integração da Marinha, dos Fuzileiros Navais e da Guarda Costeirados EUA.21 Uma análise desse ponto seria a disposição para uma seqüência lógica de escalada deuma crise/conflito que pudesse vir a ameaçar os interesses vitais. Seria, p. ex., mostrar o“porrete” para não ter que limitar os conflitos, limitá-los para não ter que dissuadi-los,dissuadi-los para não necessitar vencê-los, e finalmente vencê-los, pois o auto-interesseestadunidense deverá ser atendido. Especificamente no caso de dissuasão, pressupõe-seo emprego de três modos de guerra: convencional, não-convencional e nuclear.

Page 89: Revista da Escola de Guerra Naval

92

a) limitar os conflitos da região;b) dissuadir guerras maiores; ec) vencer guerras ou cooperar para vencer guerras em uma campanhamilitar.As esquadras globais são configuradas conforme as necessidades. Suastarefas são:d) contribuir para a defesa em profundidade da pátria estadunidense;e) fomentar e apoiar a relação de cooperação com parceirosinternacionais;f) prevenir e mitigar desordens e crises.

Dois pontos devem ser realçados. Inicialmente que as esquadras globaissão montadas em função da necessidade de emprego ou demonstração de força– política das canhoneiras - para atender missões específicas. Em outras palavras,o número e os tipos de navios com as suas tripulações e seus armamentos sãodefinidos em função do objetivo a atingir e da razão maior que o definiu. Emsegundo lugar, a tarefa de prevenir e mitigar desordens e crises expressa o novoconceito para enfrentar novas ameaças, qual seja o compromisso que a estratégiaassume com a guerra preventiva. Há uma crença declarada de que prevenirguerras é tão importante quanto vencê-las (NAVY, 2007, p. 4)22.

De todas essas capacitações, a que nos chama mais atenção é a projeçãode poder de combate sobre terra a partir do mar. Essa tarefa estratégica foiamplamente empregada em 200423. As forças norte-americanas atacaram aAl Qaeda onde se acreditava que seus militantes operassem ou se abrigassem.Esses fatos estão amparados na decisão unilateral estadunidense.

Para antecipar ou prevenir (grifo nosso) atos hostis de nossosadversários, os Estados Unidos irão, se necessário, agir preemptivamente noexercício do nosso inerente direito de autodefesa. (USA, 2006, p.18)

Estratégias do Brasil e dos EUA

22 Para atender essa preferência e construir sua integração, a Estratégia Cooperativa parao século XXI estabelece também seis capacitações. Primeiro as forças navais devem estarna vanguarda, operando nos ambientes onde possam ser militarmente empregadas econhecendo os potenciais inimigos. A segunda é a deterrência no sentido global, regionale transnacional por meio de forças convencionais, não-convencionais e nucleares, jámencionadas. A terceira se apresenta como o controle do mar com o seu domínio, assimcomo, do espaço sobrejacente e do espaço cibernético. A quarta refere-se à capacitação desua força marítima projetar e manter um poder combatente sobre um território. A quintaé criar e manter a segurança nos mares, considerada como essencial para mitigar pequenasameaças tradicionais ou novas que possam acarretar guerras. Finalmente, assistênciahumanitária e resposta a desastres naturais como forma de construir um bomrelacionamento entre países.23 O presidente George W. Bush aprovou ataques à rede terrorista em vários países. Cercade 15 Estados sofreram ataques dos EUA, entre eles: Síria, Paquistão, Iêmem e ArábiaSaudita. (Mazzetti, 2008).

Page 90: Revista da Escola de Guerra Naval

93

Esse significado da expressão “prevenir” torna-se claro. Porém, os EUAvão mais além, o país divulga suas estratégias, mostra o “porrete” e alerta. Apartir de uma visão unilateral, o governo norte-americano poderá determinara invasão de qualquer território caso acredite na existência de uma rede da AlQaeda atuando ou se abrigando nele. Na realidade, não é bem assim. A maiorpotência econômico-militar não parece disposta a atuar em países como Chinae Rússia, p. ex.. Ousar militarmente contra esses países acarretará danos queirão comprometer o padrão de vida e a prosperidade nos EUA. A recompensacomo resultado de um ato militar preemptivo, nesse caso, não será satisfatóriaem termos racionais (Clausewitz) e só resta estabelecer regras, buscando umasensação de segurança maior que a da insegurança, ou seja, cooperar.

Brasil: vulnerabilidades e iniciativas estratégicas

A partir da classificação buzaniana quanto às vulnerabilidades a queestá sujeito o Estado brasileiro, podemos dizer que o Brasil está tendendo asair de uma situação fraco/fraco para a situação forte quanto ao poder.

Três pontos fortalecem essa assertiva quanto à continuidade da frágilcoesão sócio-política. Primeiramente, a Constituição Federal (CF) de 1988,considerada a de maior participação popular na sua elaboração eamplamente democrática e liberal, previu a necessidade do emprego dasForças Armadas (FA) para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Essapossibilidade é um sinal inequívoco da insegurança nacional em termos deameaças internas, ou seja, voltada para dentro de suas fronteiras. Em segundolugar, numa abordagem clausewitziana, há um contrassenso na utilizaçãode um dos elementos do CG contra o povo – outro elemento -, que deveria serou se sentir protegido pelas FA. Por último, o emprego das FA nessas situaçõestem de fato ocorrido, em que pese os obstáculos jurídicos existentes. Noentanto, a END determina ação no sentido de compatibilizar o empregoepisódico das FA na GLO com a CF24.

Quanto ao deslocamento da relatividade do poder no campointernacional em termos econômico e militar temos três justificativas. Aprimeira é a própria END, por ter sido elaborada a partir da iniciativa de doisórgãos ministeriais chefiados por civis, Ministério da Defesa e Secretaria deAssuntos Estratégicos. Esse fato expressa claramente uma sensação deinsegurança de políticos na dimensão militar, com ações estratégicas claras

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

24 O terceiro eixo estruturante aponta para um fortalecimento da nacionalidade republicanados efetivos das FA o que poderá corroborar para um incremento dessa coesão.25 Trata-se do segundo eixo estruturante que prevê a reorganização da indústria nacionalde defesa (Brasil, 2008, p.3).

Page 91: Revista da Escola de Guerra Naval

94

para enfrentar esse problema. A segunda justificativa é o reforço que a ENDdá ao aspecto econômico ao se considerar como parte integrante da estratégianacional de desenvolvimento26. A última e mais interessante, proveniente deuma visão externa do Brasil, prende-se ao fato do país estar incorporado aosBRIC e, recentemente, estar indicado para se integrar ao um grupo,denominado G14 ou G20, visto como uma “nova diretoria informal” domundo. Segundo o presidente Barack Obama, o propósito desse Grupo é“contribuir para fortalecer a governança global e conjuntamente moldar ofuturo” (ROSSI, 2009).

Em suma, conclui-se que, a partir de uma leitura buzaniana, o Brasilestá vulnerável à maioria dos tipos de ameaça e com tendência de, em futurodistante, se tornar num Estado particularmente vulnerável às ameaçaspolíticas26.

Paradoxalmente, ao que consideramos como insegurança na dimensãomilitar, a END declara que o “Brasil não tem inimigos no presente”. Noentanto, aponta preocupações quanto ao futuro nas direções norte, oeste e oAtlântico Sul, priorizando a região Amazônica. A capacidade operacional edissuasória está intimamente relacionada com a mobilização nacional e suaelasticidade (BRASIL, 2008, pp 6 a.10). Esse conceito de elasticidade significao atendimento das necessidades de pessoal e material a tempo de se conduziras operações militares defensivas com eficácia.

As ameaças vislumbradas são estatais e não-estatais. A incerteza que asenvolve tem sua solução na inteligência (Brasil, 2008, p.47). No que tange aMarinha, o foco está voltado para quatro tarefas estratégicas. Três militaresclássicas que estão na seguinte ordem de prioridade: de negação do uso domar, de projeção de poder e de controle de áreas marítimas; e a do tipoconstabulary. A primeira é voltada para negar “qualquer concentração de forçasinimigas no mar” dentro das ordens hierárquicas de defesa: região Amazônica,plataformas petrolíferas e linhas de comunicação. De forma coerente, determinaespecial atenção para duas áreas estratégicas de acesso marítimo que são aárea em torno da foz do rio Amazonas e a faixa de Santos a Vitória (Brasil,2008, p.12), faixa essa situada nas Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB). Emtermos práticos, as AJB retratam a soma do Mar Territorial (12 milhas náuticas)com a Zona Econômica Exclusiva (200 milhas náuticas). Essa regulamentaçãojurídica internacional entrou em vigor em 16 de dezembro de 2004 com aratificação do sexagésimo Estado, como consequência da Convenção dasNações Unidas sobre o Direito do Mar, concluída em 10 de dezembro de 1982,

Estratégias do Brasil e dos EUA

26 Trata-se de uma visão otimista na dimensão militar, fruto da crença de que a ENDproporcionará planos militares decorrentes que serão efetivamente executados.

Page 92: Revista da Escola de Guerra Naval

95

em Montego Bay, Jamaica (BRASIL, 2009). Esse ponto merece destaque pelofato de 156 países terem ratificado essa Convenção. Os EUA foram um dos quenão a ratificaram. A importância dos recursos naturais já levantados e agrandeza das AJB induziram a denominação de “Amazônia Azul” atribuídapela Marinha, numa coerente alusão à Amazônia por suas riquezas naturaisque transcendem a fauna e flora da superfície terrestre.

Quanto às ameaças vizinhas, a END apresenta um esforço mais ousadono campo da solidariedade, sob um ideário de paz regional. Trata-se da mençãoque o documento faz em relação ao mecanismo consultivo denominado Conselhode Defesa Sul-Americano. Esse mecanismo tem como propósito a prevenção deconflitos na região, a cooperação militar e a integração das bases industriais dedefesa sem a possibilidade de participação de “país alheio à região”. Todavia,não é afastada a possibilidade de cooperação com todos os Estados do SI quandose trata de missões de manutenção paz sob a égide da ONU. Há umreconhecimento tácito de que “o fortalecimento do sistema de segurança coletivaé benéfico à paz mundial e à defesa nacional” (BRASIL, 2008, p.9).

A ‘Águia’, o ‘Dragão’ e o ‘Jaguar’27

Em outubro de 2003, um relatório do Pentágono denominado “UmCenário de Mudança Abrupta do Clima e Suas Implicações na SegurançaNacional dos EUA” apresentou uma análise das conseqüências dessamudança climática. A escassez de alimentos, uma menor disponibilidade equalidade de água potável em regiões-chave e perturbação no acesso à energiaexpressam uma redução da população humana que o planeta pode suportar.

À medida que se reduz a capacidade biótica máxima global e local,podem aumentar as tensões no mundo, levando a duas estratégiasfundamentais: ofensiva e defensiva. As nações com recursos para o fazerpodem construir fortalezas virtuais à volta de seus países, preservandorecursos para si próprias. As nações menos afortunadas, especialmente asque têm inimizades antigas com os vizinhos, podem desencadear lutas peloacesso aos alimentos, a água limpa ou a energia. Podem formar-se aliançasimprováveis, à medida que as prioridades de defesa mudam e que a meta sãoos recursos para a sobrevivência em vez de religião, ideologia ou da honranacional. (GRAY, 2008, pp. 266 e 267)

É dentro desse cenário que a China emerge. Em 1989, esse país sinalizoude modo simbólico suas intenções quando da visita oficial de um navio de

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

27 São respectivamente os EUA, a China e o Brasil. Os dois últimos foram retirados de umartigo de um periódico de grande penetração nos meios de inteligência dos EUA (Stratfor,2009)

Page 93: Revista da Escola de Guerra Naval

96

treinamento chinês aos EUA. O nome desse navio era Zhang He, almiranteeunuco que comandou uma esquadra no século XV (ZAJEK, 2008).

Os governantes chineses estão cientes de que a “escassez de recursospode conduzir a uma catástrofe ecológica e a uma crise política” (GRAY,1999, p. 246). O desenvolvimento acelerado do país determina uma demandacomercial que, com a América Latina (AL), cresceu dez vezes desde 2000.Seus maiores parceiros são Brasil, México, Chile e Argentina (LORES, 2008).Em entrevista a um jornal em Lima, o presidente Hu Jintao declarou que “asrelações da China com a América Latina e Caribe nunca foram tão próximas”(Sá, 2008). Corroborando essa iniciativa, o presidente do conselho do Bancode Desenvolvimento da China declarou o foco do “investimento internacionaldo país se aceleraria, mas deveria concentrar sua atenções nas economiasricas em recursos naturais” (ANDERLINI, 2009)28.

Concomitantemente, o relacionamento comercial dos EUA com a ALdemonstra uma expressiva dependência que pode aumentar em função dosproblemas e distâncias envolvidas quando o assunto é Oriente Médio. Cercade 40% das exportações norte-americanas são endereçadas à AL que importamcerca de 15% dos EUA. Além disso, mais de 30% das necessidades energéticasdos EUA são atendidas pela AL. No período 2004 a 2006 as relações comerciaisentre os dois cresceu da ordem de 23%. No entanto, essas transações vemacompanhadas de desafios como: terrorismo internacional, contrabando dedrogas, tráfico ilícito, crime internacional, pobreza, desigualdade, corrupção,gangs urbanas, movimentos radicais, grupos armados ilegalmente, massamigratória, desastres naturais e crises humanitárias (Stavridis, 2007, p.18).

Concordamos com Gray (2008, p.266) no que tange a necessidade de sereconhecer e aceitar que “a guerra deixou de ser uma prerrogativa dos estadose se tornou privilégio de Toda a Gente”. Temos ainda que concordar comStavridis (2007, p.19) quando diz que os ilícitos penais florescem onde há“espaços sem governo” sendo um dos maiores desafios o tráfico de drogas29.Porém, ameaças estatais não podem ser descartadas no futuro, conformepreconiza a END.

Conclusão

Os desafios para o Brasil e EUA neste século podem atingir asnecessidades vitais de seu povo. Nesse aspecto, as duas estratégias

Estratégias do Brasil e dos EUA

28 O China Investment vem adquirindo participações de empresas internacionais de recursosnaturais.29 Para Stavridis, o impacto do tráfico de drogas à economia dos EUA é maior que USD240,0 bilhões e o crescimento é de 5% ao ano.

Page 94: Revista da Escola de Guerra Naval

97

demonstram a natural sensação de insegurança a nível estatal e prospectivo,ou seja, a tensão no mundo deve aumentar em função do limite da capacidadebiótica da terra.

No caso da Estratégia estadunidense, persiste a tendência do centrismonorte-americano no trato do problema dentro de um cenário mais global comdesafios transnacionais. Há um reconhecimento do declínio do poder dosEUA gerando a necessidade de integração interna, assim como, cooperaçãocom aliados e parceiros internacionais. As experiências do 11 de Setembrosinalizaram ao povo e aos políticos as ameaças que “Toda a Gente” representa.O futuro se apresenta com possibilidade de carência de recursos naturaispara atender o padrão de vida do povo estadunidense.

A END, como ela mesma se classifica, é uma proposta de transformação.Trata-se de mais instrumento político destinado a atuar principalmente nasáreas econômica e militar, que contribui para reduzir as vulnerabilidadesbrasileiras, colocando-o numa posição menos insegura no campointernacional. O Brasil considera a importância da América do Sul paraamenizar essa sensação de insegurança percebida pela classe política,trabalhando com o ideário de integração regional no futuro, no campo políticoe de base industrial, e de cooperação no campo militar. Há uma preocupaçãoexplícita com os abundantes recursos naturais existentes nas duasAmazônias que serão alvo de disputa por, pelo menos, uma das duaspotências nucleares, a ‘Águia’ ou o ‘Dragão’.

As tarefas estratégicas da Marinha dos EUA são as descritas porGroove. No entanto três aspectos merecem destaque. Inicialmente, aimportância das linhas de comunicação marítima para atender o padrãode consumo do país, que parece legitimar as atividades militares no mar.Em segundo lugar, o poder naval tem como prioridade maior a projeção deseu poder a partir do mar, de forma mais integrada com os Marines e aGuarda Costeira (GCEUA). Esta com nítida capacidade e habilitada a operar,como o próprio nome indica, na região limítrofe da costa americana. Anovidade é que a partir da integração com a Marinha norte-americana quepode, mediante autorização, operar em águas costeiras de outros países, aGCEUA se habilitará também nessas águas. O terceiro aspecto, bem maissutil, é que essa autorização pode vir dos parceiros internacionais. Sendomais explícito, sob o título de realizar uma tarefa constabulary aderente aum idealismo de paz no campo internacional, seus parceiros na empreitadapodem estar, na realidade, habilitando a GCEUA a operar em seus mares.Sumariando, a parceria fortalece a capacidade de projeção de poder militardos EUA a partir do mar, pois operando com Marines e a GCEUA em águascosteiras do país alvo estarão se habilitando nessas regiões.

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

Page 95: Revista da Escola de Guerra Naval

98

As tarefas estratégicas da Marinha Brasileira também são as tradicionaisde Grove. No entanto, há direção clara para a priorização da tarefa de negaçãodo uso do mar para enfrentar “qualquer concentração de forças inimigas nomar”. Normalmente, uma projeção de poder a partir do mar requer algumaconcentração de forças navais. Outro ponto que merece destaque é o decooperação militar e integração das bases industriais de defesa sem apossibilidade de participação de outros Estados que não os da América doSul. Sumariando, para a END, os potenciais inimigos no futuro não devemser sul-americanos.

Por fim, conclui-se que a postura estratégica dos dois países é diferente.Enquanto os EUA se posicionam de forma ofensiva, o Brasil adota a defensiva.O ator interveniente China, único país que existe há mais de três mil anos,está mostrando ao mundo sua disposição de continuar sobrevivendo. Seuspolíticos desejam atender as demandas do povo chinês. Se os chineses estãovindo do outro lado do planeta parece que, diferentemente da época doalmirante eunuco Zhang He, os recursos naturais necessários existentes nasproximidades da China já são insuficientes. Os políticos brasileiros parecemter entendido algo nesse sentido. As décadas perdidas geraram essa percepçãode insegurança na dimensão econômica, militar e principalmente social. OBrasil “celeiro do mundo” com recursos hídricos e naturais em abundânciaestá longe de ser um problema para esses Estados. Ao que tudo indica é umadas soluções.

Quanto à pergunta se o Brasil deve cooperar, a resposta é sim sob aégide da ONU, todavia, fora das AJB. A idéia do Estado brasileiro participarde uma “nova diretoria informal” junto à “governança global” não deixa deser sedutora para o País. Todavia, ela se repousa sobre um poder central eunilateral estadunidense que sugere uma cooperação também informal nocampo militar, com forte tendência hobbesiana. A outra opção retrata umalinha de ação mais subjetiva, na qual a segurança coletiva repousa numaexpectativa de governança apoiada em mecanismos das Nações Unidas.

A cooperação existindo viria com os riscos acima apontados, mas estariatambém possibilitando oportunidades. O futuro é permeado de incertezas,talvez o Brasil tenha de cooperar de uma forma ou de outra para sobreviver.O instinto de solidariedade de Locke só foi identificado após o instinto desobrevivência de Hobbes ter prevalecido num contexto no qual os doisviveram. Muitas regras de coexistência pacífica não perduram em um conflito,pois, como todos sabemos, só cooperam os que sobrevivem.

Estratégias do Brasil e dos EUA

Page 96: Revista da Escola de Guerra Naval

99

Referências:

ANDERLINI, Jamil. China usará reservas para expansão no exterior. Folha de S.Paulo, 22 jul. 2009, p. B7.

ALVES, Vágner C. Política externa dos Estados Unidos: evolução e perspectivas.In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICAINTERNACIONAL, 2., 2007, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.funag.gov.br/>. Acesso em: 18 dez. 2008.

BRASIL. Ministério da Defesa. Estratégia Nacional de Defesa (END). Disponívelem: https://www.defesa.gov.br/eventos.../estratégia/. Acesso em: 17 dez. 2008.

______. Centro de Comunicação Social da Marinha. Amazônia Azul. Disponívelem: <https://www.mar.mil.br/menu_v/amazonia_azul/direito_do_mar.htm>.Acesso em: 23 ago. 2009.

BUZAN, Barry. People, states and fear: an agenda for international security studiesin the post-cold war era. 2. ed. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1991.

GRAY, John. Falso amanhecer: os equívocos do capitalismo global. Tradução deMax Altman. Rio de Janeiro: Record, 1999.

GRAY, John. A morte da utopia e o regresso das relações apocalípticas. Lisboa:Guerra e Paz, 2008.

LORES, Raul Just. Comércio sobe, mas promessas chinesas de investimento custama sair do papel. Folha de S. Paulo, 19 nov. 2008, p. A10.

MAZZETTI, Eric S. Ordem de 2004 autoriza ataques secretos dos EUA. Folha de S.Paulo, 11 nov. 2008, p. A10.

ROSSI, Clóvis. O G14 entra em cena nas cúpulas globais. Folha de S. Paulo, 11 jul.2009, p. B3.

SÁ, Nelson de. Ambições. Folha de S. Paulo, 19 nov. 2008, p. A8.

SCAHILL, Jeremy. Blackwater: a ascenção do exército mercenário mais poderosodo mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SPELEER, Ian. Naval Warfare. In: JORDAN, David [et al.]. Understanding ModernWarfare. Cambridge: University Press, 2008.

STAVRIDIS, James. Sailing in southern Waters: a new wind. Proceedings, p. 16-21,maio. 2007.

STRATFORD Global Intelligence. Geopolitical Diary: A ‘Dragon-Jaguar’ Alliance?Disponível em: http:<www.stratfor.com/geopoliticaldiary/20090520_ geopolitical_diary-. Acesso em: 21 maio 2009.

UNITED OF THE STATES. Navy. A Cooperative Strategy for 21st CenturySeapower. Outubro de 2007. Disponível em: <http://www.navy.mil/maritime/MaritimeStrategy.pdf>. Acesso em: 24 de jul. 2008.

UNITED OF THE STATES. The White House. National Strategy for HomelandSecurity. Jul. 2002. Disponível em: <http://www.whitehouse.gov/ homeland/book/>. Acesso em: 17 abr. 2007.

Cláudio Rogério de Andrade Flôr

Page 97: Revista da Escola de Guerra Naval

100

______. The National Security Strategy. Mar. 2006. Disponível em: <http://www.white house.gov/nsc/nss/2006/ >. Acesso em: 24 jul. 2008.

______. National Strategy for Homeland Security. Out. 2007. Disponível em: <http:// www.whitehouse.gov/homeland/book/> . Acesso em: 24 jul. 2008.

ZAJEK, Olivier. A China quer os mares. Le monde Diplomatique. Disponível em:<http://diplo.uol.com.br/2008-09,a2602>. Acesso em: 10 de nov. 2008.

Estratégias do Brasil e dos EUA

Page 98: Revista da Escola de Guerra Naval

101

Pirataria Marítima Moderna:História, Situação Atual e Desafios1

Osvaldo Peçanha Caninas*

Resumo

Este artigo analisa a evolução da pirataria marítima notadamentena Inglaterra dos séculos XV e XVI. Além disso, mostra asdificuldades em torno de uma única definição abrangente e aceita.A pirataria marítima que, apesar de sua semelhança com osepisódios do passado, tem causas diferentes e complexas. Oprincipal propósito deste trabalho é, a partir desta aparentesemelhança, realçar que os eventos são diferentes, especialmenteno tratamento dado na atualidade que não deve pretender reviversoluções do passado.Neste artigo discutimos três tópicos. O primeiro deles é adificuldade em definir o crime de pirataria no DireitoInternacional. No segundo, apresentamos a maneira como apirataria influencia o sistema de transporte de mercadorias deum mundo cada vez mais globalizado usando a definição de“boa ordem no mar” de Geoffrey Till. A última parte abordaassuntos que estão a merecer tratamento por parte dos Estadostendo em vista as implicações na segurança do tráfego marítimo(caso do Sistema de identificação automática, AIS), direitoshumanos (pedidos de asilo por piratas) e a difícil tipificação docrime de pirataria.Palavras-chave: Pirataria - Direito Internacional.

Abstract

The main purpose of the paper is to analyse how piracy has evolvedthrough time and that, although it has similar “forms ofexpression”, its causes are multiple and diverse, showing that themodern day attacks despite being similar to the old ones performedin the sixteenth century Britain have different causes and forms.

Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 101-122

1 Este artigo é fruto de pesquisas preliminares sobre o assunto. Para uma abordagem umpouco mais elaborada, sugiro o artigo Modern Maritime Piracy: Challenges to InternationalLaw, Peace, and Security, que foi apresentado na ISSS/ISAC Annual Conference 2009,Insecurity and Durable Disorder: Challenges to the State in an Age of Anxiety na cidade deMonterey, California, EUA em 16 out. 2009.* Capitão-de-Fragata, Mestrando em Estudos Estratégicos pela Universidade FederalFluminense do Rio de Janeiro.

Page 99: Revista da Escola de Guerra Naval

102

Another topic discussed is the difficulty in defining the crime ofpiracy in international law. Secondly we present the intertwinedaspects of globalization and maritime piracy using the definitionof good order at sea contained in Geoffrey Till´s book “Sea Power:a guide for the twenty first century”. Finally, we discuss someissues that require the attention of state authorities such as theAutomatic Identification System and the fear of pirates seekingasylum.Keywords: Piracy - International Law.

Introdução

A pirataria marítima sempre esteve envolta em uma atmosfera de mitoe glamour, fruto da maneira romantizada por que Hollywood apresenta ofenômeno. As aventuras do Capitão Jack Sparrow ou de Long John Silver2 (AIlha do Tesouro) não nos deixa perceber o quanto o fenômeno permanecepresente e atuante.

No imaginário popular, a pirataria está intimamente associada à erada navegação a vela e estórias de aventuras. Nas últimas décadas, no entanto,vimos crescer o número de ataques, trazendo o assunto novamente aos forosinternacionais3. Entretanto, a pirataria atual guarda, em certo sentido, poucassemelhanças com os eventos do passado, pois passou por mudanças em seupadrão geográfico de ocorrência, finalidades e motivações. Nascida sob osauspícios do Estado, a pirataria lentamente se emancipou deste e passou apercorrer um caminho próprio, com fins privados e, alguns afirmam, comconexões terroristas4.

Por isso, chamar todos os atos de “pirataria” é deixar de notar adiversidade de eventos que o termo retrata. Os ataques piratas na Somália sãodiferentes dos perpetrados no Estreito de Malaca que, por sua vez, são diferentesdos pequenos furtos dos portos de Santos e da área do Golfo da Guiné.

A primeira parte deste trabalho apresenta um pequeno esboço históricodos primórdios da atividade. Nossa intenção é mostrar as continuidades dofenômeno, ou seja, até que ponto ele é uma atualização de atos do passado eem que medida temos situações totalmente novas.

2 Personagem do romance a Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson e que foi interpretadono cinema por diversos atores, entre eles, Charlton Heston, Orson Welles e Anthony Quinn.3 Ver LICHE. La piraterie – Grande criminalité en mer. Artigo publicado pelo Capitão-de-Corveta Liche da Marinha Alemã na Revista La Tribune do Collège Interarmées de Défense(CID), número de abril, 2007.4 PLANT, Glen. The Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safetyof Maritime Navigation. The International and Comparative Law Quarterly, v. 39, n. 1, Jan.1990, p. 27- 56. LUFT, Gal; KORIN, Anne. Terrorism Goes to Sea. Foreign Affairs, v. 83,n. 6, Nov.- Dec. 2004, p. 61.

Pirataria Marítima Moderna

Page 100: Revista da Escola de Guerra Naval

103

A segunda parte do artigo aborda as dificuldades de se estabelecer umconsenso em torno do conceito de pirataria. Este consenso é mais complexopois envolve questões econômicas, de soberania territorial e de direitoshumanos.

A terceira parte apresenta o conceito de “boa ordem no mar” e como osataques piratas podem prejudicar o comércio mundial.

Finalmente, analisamos alguns assuntos que necessitam atenção dasautoridades, dada as implicações na segurança do tráfego marítimo (o casodo AIS), a difícil tipificação do crime de pirataria e no tocante aos direitoshumanos (pedidos de asilo por piratas).

A Pirataria na História

A pirataria sempre esteve presente no sistema internacional5 epermanece tendo alcance global. Podemos assumir, provisoriamente,pirataria como sendo a atividade de ataque a navios para fins privados, demodo a capturar a carga, o navio, ou ambos. Essa definição permitir-nos-áestabelecer um ponto inicial de entendimento para explorar o conceito queserá visto, com rigor, mais adiante.

O marco fundador do fenômeno (na Europa6) foi a instituição das Cartasde Marca. A primeira carta de marca de que se tem conhecimento foi emitidaem 1354, durante o reinado de Eduardo III (1327-1377), da Inglaterra. Nestesdocumentos o monarca autorizava particulares (os chamados privateers7) afazer uso da força para fustigar e pilhar nações inimigas8. Nelas constava onome da pessoa autorizada, a área, o período e contra que Estado diziarespeito. Estes particulares possuíam autorização para vingar atos hostis

5 Entendo Sistema internacional como definido por Hedley Bull “Um sistema de estados(ou sistema internacional) se forma quando dois ou mais estados têm suficiente contatoentre si, com suficiente impacto recíproco nas suas decisões, de tal forma que se conduzam,pelo menso até certo ponto, como partes de um todo.”. BULL, Hedley. A sociedadeanárquica. Tradução Sérgio Bath. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,2002, p. 15.6 A abordagem histórica restringe-se ao mundo europeu. Para uma excelente análise dadistinção dos conceitos de pirataria no ocidente e no oriente nos séculos XIV e XV, comexcelente material sobre o uso que os portugueses fizeram da pirataria para enfraquecero governo da cidade de Malaca (ou Melaka) e expandir seu império, ver CHENOWETH,Gene M. Melaka, “Piracy” and the Modern World System. Journal of Law and Religion, v. 13,n. 1, 1996 – 1999, p. 107-125.7 Na língua inglesa a atividade é conhecida como Privateering, ainda sem tradução emnossa língua.8 SIDAK, J. Gregory. The quasi war cases - and their relevance to whether “letters ofmarque and reprisal” constrain presidential war powers. Harvard Journal of Law & PublicPolicy, v. 28, n. 2, spring 2005, p. 468.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 101: Revista da Escola de Guerra Naval

104

contra o monarca em troca dos espólios (presa) do inimigo dentro de regrasestritas da época. A inexistência de uma marinha regular fez com que estabem sucedida união de interesses particulares e estatais desse fruto eperdurasse por muito tempo.

Para Henrique IV (1399-1413), no entanto, o problema adquiriuproporções desagradáveis, pois

[...] embora alguns crimes no alto mar fossematos de criminosos cujo único objetivo era o ganhopessoal, grande parte da pirataria era trabalho deimportantes súditos do reino que navegavam como‘unlicenced privateers’ mas que também serviam aosinteresses do rei. O rei lutava contra a espinhosaquestão de punir ou não tais violadores da trégua, osquais normalmente recusavam restituir os bensapresados sabedores que seus navios e homens eramvitais para a defesa do país em tempos perigosos,quando um conflito aberto com os franceses poderiaacontecer a qualquer momento.9"

Portanto, aproveitando-se da incapacidade do Estado em proversegurança ao tráfego marítimo, estabeleceu-se uma rede, tendo a piratariacomo atividade central e incluindo portos protegidos, fiscais da coroacomprados, grandes proprietários de terras, comerciantes e especuladores.As mercadorias roubadas eram escoadas para as cidades costeiras e o interiorpor um conjunto de pessoas que ganhava uma porcentagem do valor, sejaservindo de intermediários, seja provendo segurança por meio da corrupção10.Havia refúgios seguros em Dorset, Cornwall, Irlanda e Gales, sendo que amaioria nunca era usada para o escoamento legal de mercadorias11. O piratarecebia um quinto do valor do butim (carga apresada) e o receptador em terra,que assumia grande parte do risco, o restante. A ausência de navios de guerra,especialmente na costa da Irlanda, tornava a atividade bem segura. Até mesmoautoridades, como o Vice-Almirante comandante de Bristol, estavamenvolvidas nas transações12.

9 PISTONO, Stephen P. Henry IV and the English Privateers. The English HistoricalReview, v. 90, n. 355, apr. 1975, p. 322.10 É interessante notar que a Somália adota estrutura muito semelhante, especialmenteem torno da cidade de Eyl. Ver MIDDLETON, Roger. Piracy in Somália. Threateningglobal trade, feeding local wars. Briefing paper. Chatham House. October, 2008.Dsiponível em: < http://www.chathamhouse.org.uk/publications/papers/view/-/id/665/ >. Acesso em 15 dez. 2008.11 MATHEW, David The Cornish and Welsh Pirates in the Reign of Elizabeth. TheEnglish Historical Review, v. 39, n. 155, Jul. 1924, p. 337.12 Ibidem, p. 338.

Pirataria Marítima Moderna

Page 102: Revista da Escola de Guerra Naval

105

Os Killigrew, uma das famílias mais importantes de Cornwall, eramresponsáveis pelo controle de todo o escoamento de mercadoriasprovenientes da pirataria na região. Os Killigrew eram governadoreshereditários do castelo de Pendennis e John Killigrew, Vice-Almirante daregião de Cornwall. Somente para se ter uma idéia do grau de envolvimentodesta família com a pirataria, em 1597, um pirata adentrou o porto deFalmouth com sua carga e o Capitão Killigrew foi a bordo. Na inspeção,acertou com o comandante, Capitão Jonas, que “por 100 libras não osprenderia, e iria escoltá-los até o interior onde os deixaria ir [emsegurança]13”.

Os ganhos com a atividade eram tão grandes que, em 1612, quando seestava planejando o retorno do embaixador inglês na Pérsia, Sir RobertShirley, afirmou-se que não poderiam ser usados marinheiros ingleses, pormedo de que nestas regiões remotas, estes se tornassem piratas14. Finalmente,em 1856, as cartas de marca foram oficialmente abolidas pela Declaraçãode Paris, parte do Tratado de mesmo nome (1856), cuja função foi terminarcom a Guerra da Criméia15.

Tais episódios históricos nos mostram que a associação de pessoaspara cometer crimes no mar, com fins econômicos, não é fato recente.Também não nos deve surpreender, portanto, a existência de uma redeorganizada de criminosos a apoiar tais atividades, visto que a história estárepleta de fatos como esses.

A Definição do Crime e sua Imprecisão

A pirataria é o mais antigo e talvez o único crime sobre o qual hajauma jurisdição universal reconhecida nos termos do direito internacionalconsuetudinário16 (customary international law). A Convenção das NaçõesUnidas sobre o Direito do Mar17 (1982), conhecida como Convenção da

13 Ibidem, p. 340.14 CRAVEN, Frank. The Earl of Warwick, a Speculator in Piracy. The Hispanic AmericanHistorical Review, v. 10, n. 4, Nov. 1930, pp. 458.15 Na verdade a Declaração de Paris aboliu as cartas de marca somente entre os paísessignatários. O texto afirma que “The present Declaration is not and shall not be binding, exceptbetween those Powers who have acceded, or shall accede, to it”. Dessa maneira, afirmar que aDeclaração de Paris acabou com a pirataria não é de todo correto. Para ser mais preciso,a Declaração aboliu, especificamente, a atividade de privateering, ainda sem tradução emnossa língua.16 HALBERSTAM, Malvina. Terrorism on the High Seas: The Achille Lauro, Piracy and theIMO Convention on Maritime Safety. The American Journal of International Law, v. 82, n. 2,Apr. 1988, p. 272.17 Conhecida pela sigla CNUDM (português) ou UNCLOS (inglês).

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 103: Revista da Escola de Guerra Naval

106

Jamaica18, em seu artigo 101 define pirataria como sendo:Atos ilegais de violência e detenção ou atos de depredação cometidos

para fins privados pela tripulação ou passageiros de um navio privado ouaeronave dirigidos contra:

- No alto mar contra outro navio, aeronave, contra pessoas oupropriedade a bordo deste navio ou aeronave.

- Contra navio, aeronave, pessoas ou propriedade em lugar em que nãohaja a jurisdição de um estado.

Qualquer ato de participação voluntária na operação de navio ouaeronave de que se saiba praticar atos de pirataria.

Qualquer ato que incite ou facilite os atos definidos anteriormente (Grifonosso)

De acordo com esta definição, para tipificar os atos de pirataria hánecessidade que os crimes tenham três critérios: objeto, localização geográficae finalidade.

O objeto do ato deve ser um navio, aeronave ou passageiros/tripulantesdestes veículos. O critério geográfico, por sua vez, estipula que o crime tem queser perpetrado em alto mar ou em lugar onde não haja a jurisdição de umestado. Por este critério, deixariam de ser considerados todos os atos cometidosnas águas interiores19, mar territorial20 e zona econômica exclusiva (ZEE) 21.

Os dois primeiros critérios — objeto e localização — são objetivos.Entretanto, a finalidade é subjetiva por natureza, podendo comportardiferentes interpretações. Por exemplo, não há consenso entre os juristas se oanimus furandi, a intenção de roubar, é elemento necessário ou se atos deinsurgentes procurando derrubar seu governo devem ficar fora da definição22.A jurisprudência das cortes nos Estados Unidos da América e Reino Unidotêm adotado que qualquer ato não autorizado de violência cometido no altomar é pirataria23.

18 Para saber mais sobre a Convenção e sua situação atual ver a página da ONU em <http://www.un.org/Depts/los/convention_agreements/convention_overview_convention.htm >. Cabe ressaltar que, até a presente data, vários países não ratificaram aConvenção tais como EUA, Irã, Israel, Líbia, Nigéria, Síria, Turquia, Peru, Colômbia,Equador e Venezuela.19 Abrangem tanto as águas doces dos rios, lagos e poços existentes no território do país,como as águas marinhas situadas entre a costa e o marco de início do mar territorial.20 O mar territorial estende-se a partir das linhas de base da costa até o limite de 12 milhasnáuticas (uma milha náutica equivale a 1.852 metros).21 A zona econômica exclusiva se estende por 200 milhas a partir da linha de base. Elapode chegar até 350 milhas de acordo com o artigo 76 da Convenção da Jamaica.22 HALBERSTAM, op. cit., p. 272.23 Ibidem., p. 273.

Pirataria Marítima Moderna

Page 104: Revista da Escola de Guerra Naval

107

A definição da Organização Marítima Internacional (IMO)24

A fim de evitar as imprecisões conceituais, a IMO utiliza, para finspráticos, uma definição que inclui, além dos atos compreendidos pelo artigo10125, os atos de roubo armado (armed robbery), ainda que praticados em águasque não o alto mar, incluindo aí as águas interiores, mar territorial e ZEE.

A IMO define26 “armed robbery” como “qualquer ato ilegal cometido comviolência ou detenção ou qualquer ato de depredação ou ameaça, que não sejaclassificado como pirataria, dirigido contra embarcação ou pessoas oupropriedade a bordo desta embarcação na área de jurisdição de um estado27”.Com isso, a IMO evita os problemas de especificar uma definição abrangente e,ao mesmo tempo, acentua a gravidade dos problemas, devido à quantidade deatos informados28. A definição mais abrangente da IMO faz com que muitosataques, que seriam considerados como crimes comuns, perpetrados em águaque não as internacionais, sejam computados como atos de pirataria. Aimprensa, por vezes, se utiliza desta definição informando que este ou aqueleataque foi de piratas o que contribui para a confusão em torno do termo.

A imprecisão conceitual apresenta alguns óbices quanto à extensão dejurisdição para crimes de pirataria cometidos em águas territoriais. O primeiroóbice é a inviolabilidade da soberania no mar territorial e águas interiores(absoluta) e a da ZEE (relativa). A criação de um conceito abrangentecertamente feriria o princípio de soberania dos estados estipulado naCNUDM. Além disso, chocar-se-ia frontalmente contra os interesses de paísescentrais que não concordariam em ter marinhas estrangeiras perseguindoembarcações piratas em suas águas. Nessa linha, a declaração do governodo Reino Unido é paradigmática ao afirmar que

It would be unacceptable to the UK for the navyof a foreign state to be able to claim jurisdiction over

24 A Organização Marítima Internacional (IMO) foi criada em 1948 e é uma agênciaespecializada das Nações Unidas que tem por propósito instituir um sistema de colaboraçãoentre governos no que tange a questões técnicas da navegação comercial internacional esegurança do tráfego marítimo.25 Da CNUDM.26 Resolução A.922(22), anexo, parágrafo 2.2 do Code of Practice for the Investigation of theCrimes of Piracy and Armed Robbery Against Ships.27 No original: “Armed robbery against ships means any unlawful act of violence or detention orany act of depredation, or threat thereof, other than an act of “piracy”, directed against a ship oragainst persons or property on board such ship, within a State’s jurisdiction over such offences”.28 Para mais informações sobre o número de ataques e outras definições, recomenda-se apágina da Organização Marítima Internacional em http://www.imo.org, especialmentea do Maritime Safety Committee.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 105: Revista da Escola de Guerra Naval

108

an act of maritime armed robbery within the UK’sterritorial waters. This would be the unfortunateconsequence of wrapping an act of piracy and an actof maritime armed robbery into one definition29(Grifonosso).

Cabe ressaltar que a inviolabilidade de embarcações no alto-mar é abase da Convenção da Jamaica, por extensão do princípio daextraterritorialidade além de ser visto por analistas como fundamental à“mobilidade global dos Estados Unidos da América”30. Byers afirma que

[...] U. S. Merchant vessels, whether flagged athome or abroad, depend on the protection affordedby the requirement of flag state consent, as do foreignvessels carrying goods to or from the United States31.

Apesar de concordar com grande parte do contido na CNUDM, até opresente momento, os EUA não aderiram à Convenção; o país assinou masnunca a ratificou32. Embora não o tenham feito de direito, o fizeram de facto,pois obedecem à maioria de seus princípios, além de terem grande participaçãona discussão de todos os seus assuntos, especialmente na Comissão deLimites da Plataforma Continental33.

O testemunho do então Assessor para assuntos legais do Departamentode Estado, William Howard Taft IV é claro a respeito das implicações para osEUA em não ratificar a CNUDM:

Joining the Convention will advance theinterests of the U.S. military. As the world’s leadingmaritime power, the United States benefits more thanany other nation from the navigational provisions ofthe Convention. […] Beyond those affirmative reasonsfor joining the Convention, there are downside risksof not acceding to the Convention. U.S. mobility andaccess have been preserved and enjoyed over the pasttwenty years largely due to the Convention’s stable,

29 REINO UNIDO. HOUSE OF COMMONS- Transport committee- Piracy- GovernmentResponse to the Committee´s Eighth Report of Session 2005-06. HC 1690. London: The StationaryOffice Limited, 2006, p. 4.30 BYERS, Michael. Policing the High Seas: The Proliferation Security Initiative. The AmericanJournal of International Law, v. 98, n. 3, Jul. 2004, p. 527.31 Ibidem., p. 527-528.32 Para uma visão crítica da adesão dos EUA ver BANDOW, Doug. Don´t ressurect theLaw of the sea treaty. Journal of International Affairs. V. 59, n. 1, Fall/winter 2005, p. 25-41.33 Ver a página da Comissão em: < http://www.un.org/Depts/los/clcs_new/clcs_home.htm >.

Pirataria Marítima Moderna

Page 106: Revista da Escola de Guerra Naval

109

widely accepted legal framework. It would be riskyto assume that it is possible to preserve indefinitelythe stable situation that the United States currentlyenjoys. Customary international law may be changedby the practice of States over time and therefore doesnot offer the future stability that comes with being aparty to the Convention (grifo nosso)34.

A Convenção para a repressão de atos ilícitos contra a segurança danavegação35, mais conhecida pela sigla SUA, é outro documento que trata deatos de pirataria. Esta convenção foi fruto do incidente ocorrido a bordo doAchille Lauro, um navio de cruzeiro de bandeira italiana, seqüestrado notrajeto de Alexandria para Port Said em outubro de 1985. Os seqüestradores,membros da Frente de Libertação da Palestina, uma facção da Organizaçãopela Libertação da Palestina (OLP), ameaçavam matar os passageiros a menosque Israel libertasse cinqüenta prisioneiros palestinos. Além disso, afirmavamque explodiriam o navio em caso de tentativa de resgate. Na tarde seguinte,ao não terem suas demandas atendidas, os seqüestradores executaram LeonKlinghoffer, um judeu de nacionalidade americana, com um tiro e lançaramseu corpo junto com sua cadeira de rodas ao mar36. Em conseqüência doincidente, em novembro de 1986, ocorre um movimento para elaborar umalegislação que protegesse o tráfego marítimo, à semelhança da convençãopara reprimir seqüestros de aeronaves. A IMO criou, então, um comitêpreparatório Ad Hoc para dar início ao processo de elaboração da convenção.

O principal propósito da convenção é garantir as ações adequadas emcaso de atos ilegais contra navios, incluindo sua captura pela força, atos deviolência contra pessoas a bordo e introdução de dispositivos que podemdestruir ou danificar os navios. A despeito da obrigação dos governos emextraditar e instaurar um processo contra os acusados, isto está longe de seruma tarefa fácil. Não obstante, a Convenção serviu para diminuir o vácuolegal em casos como o do Achille Lauro, em que se tornou difícil provar amotivação para “fins privados”, contido na definição de pirataria.

34 UNITED STATES SENATE. Testimony on the accession to the 1982 Law of the SeaConvention and ratification of the 1994 agreement amending part XI of the Law of the SeaConvention before Senate Armed Services Committee on April 8, 2004. Senate TreatyDocument 103-39. Senate Executive Report 108-10. Disponível em: < http://www.senate.gov/~armed_services/statemnt/2004/April/Taft.pdf >. Acesso em: 20 abr.2008, p. 3 e 8.35 Convention for the Suppression of Unlawful Acts Against the Safety of Maritime Navigation.Entrou em vigor em março de 1992. Disponível em:<http://www.imo.org/Conventions/mainframe.asp?topic_id=259&doc _id=686 >.Acesso em: 14 mai. 2009.36 HALBERSTAM, op. cit. p. 269.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 107: Revista da Escola de Guerra Naval

110

Entretanto, a SUA lida com um crime que ainda não tem uma definiçãoaceita no Direito Internacional: o terrorismo marítimo, cuja tipificação tambémnão é amplamente aceita pelas legislações internas de vários países. Se por umlado a pirataria é um crime que, junto com a escravidão e o genocídio, é tratadocomo jure gentium (de jurisdição universal), por outro, os crimes definidos pelaSUA têm um tratamento controverso nas legislações nacionais, causandoproblemas de interpretação quando surge a ocasião de aplicá-las37.

Desde então, os assuntos de pirataria e terrorismo no mar têm encontradoabrigo neste documento cada vez mais inclusivo e abrangente.

Globalização e Pirataria

Desde o século XIX, ocorre um crescimento incessante das trocaseconômicas mundiais. O surgimento de tecnologias como o rádio, a televisãoe a internet, faz com que transações comerciais que, antes levavam meses,hoje sejam feitas em segundos. Apesar da rapidez com que é concluído, otransporte de mercadorias, mesmo com os imensos avanços da aviação edos navios, segue um ritmo bem mais lento. Ritmo este que ainda está sujeitoa intempéries, acidentes, problemas de descarregamento, impostos,terminais sobrecarregados e roubos. É exatamente sobre esse semprecrescente volume de trocas que a pirataria vem atuando. Desta maneira, seas trocas não cessam de aumentar em volume e valor, é previsível que osataques também aumente em número e, por que não, audácia, visto as presasse tornarem mais valiosas.

Geoffrey Till38, professor da cátedra de Maritime Studies no DefenceStudies Department do King´s College da Universidade de Londres, e analistados reflexos da globalização na atividade marítima, em obra recente39,introduz o conceito de “boa ordem no mar” (good order at sea). Para ele, omar possuiria quatro atributos que teriam sido usados para odesenvolvimento humano: o mar como recurso, como meio de transporte ecomércio, como meio de troca de informações e fonte de poder e domínio40.

37 Uma fonte excelente a respeito dos problemas da jurisdição universal aplicada aos atosde pirataria é GOODWIN, Joshua Michael. Universal jurisdiction and the pirate: time foran old couple to part. Vanderbilt Journal of Transnational Law, v. 39, n. 3, May 2006, p. 973-1011.38 Para saber mais sobre as obras e o perfil do Professor Dr. Till, ver a página da Universidadede Londres em http://www.kcl.ac.uk/schools/sspp/defence/staff/acad/gtill.39 TILL, Geoffrey. Seapower. A guide for the twenty-first century. London: Frank Cass publishers,2004.40 Ibidem, p. 310.

Pirataria Marítima Moderna

Page 108: Revista da Escola de Guerra Naval

111

Tais atributos estão interligados e interdependentes e a pirataria estariainserida no mar como meio de transporte.

As atividades no mar estariam interligadas dessa maneira:

41 Ibidem. p. 17.

Osvaldo Peçanha Caninas

Fonte: TILL, Geoffrey. Seapower. A guide for the twenty-first century. London: FrankCass publishers, 2004, p. 20.

Recursos do mar

Comércio marítimo Poder navalde um país

Supremacia no mar

Este ciclo virtuoso não deveria sofrer rompimentos sob pena deprovocar um profundo choque em toda a estrutura. Sir Walter Raleigh jáafirmava que “aquele que comanda o mar, comando o comércio e aqueleque é o senhor do comércio mundial é o senhor da riqueza do mundo41”. Seesta afirmativa era correta no século XVI, nos dias atuais ela se aplica aindamais devido ao fenômeno da globalização do comércio internacional. Apirataria poderia causar aumento do preço do seguro, em cuja composiçãoo preço do frete é significativo. Dependendo do número de ataques, poderiahaver um movimento para que os mercantes fossem escoltados por naviosde guerra, gerando uma forte demanda sobre as marinhas do mundo emdesenvolvimento.

É importante notar que a pirataria não é privilégio de locais semmovimento, pois um dos estreitos mais movimentados do mundo, com médiade 50.000 navios por ano — o estreito de Malaca —, é um dos principais emataques piratas, junto com o Mar da China meridional (South China Sea),Golfo da Guiné e a Indonésia. A figura abaixo apresenta a distribuiçãogeográfica dos ataques, com predominância para a Ásia e África Oriental(especialmente Somália).

Page 109: Revista da Escola de Guerra Naval

112

Figura 2: Estatística anual de atos de pirataria e roubo armado por área (2008)42.

Fonte: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ORGANIZAÇÃO MARÍTIMAINTERNACIONAL. MSC.4/Circ.133. Reports on acts of piracy and armed robberyagainst ships. 2008 Annual report. London: Maritime Safety Committee, p. 17.

Algumas Iniciativas Contra a Pirataria

A IMO vem se esforçando para estabelecer um projeto mundialantipirataria. No entanto, as iniciativas esbarram nas dificuldades empadronizar as legislações nacionais, aumentar a interoperabilidade doscentros de coordenação e até mesmo resistências políticas.

Com este fim, foi assinado, em novembro de 2004, por 16 países daÁsia, o Regional Co-operation Agreement on Combating Piracy and Armed Robberyagainst ships in Asia (RECAAP) tendo como órgão de coordenação o RECAAPInformation Sharing Centre (ISC) a fim de permitir o compartilhamento deinformações entre os participantes.

Também estão sendo conduzidas reuniões regionais nas áreas afetadaspela pirataria. A primeira delas teve lugar em Sanaa, no Iêmen, em abril de2005 (para países lindeiros ao Mar Vermelho e Golfo de Aden) e a segundaem Omã em janeiro de 2006. Em setembro de 2005, foi a vez do Meeting on theStraits of Malacca and Singapore: Enhancing Safety, Security and EnvironmentalProtection, em Jacarta, Indonésia.

42 Caso seja difícil a leitura, as barras significam, da esquerda para a direita: ataques emáguas internacionais, em águas nacionais e no porto.

Pirataria Marítima Moderna

Page 110: Revista da Escola de Guerra Naval

113

Till afirma que uma das grandes armas contra a pirataria é criar umaconsciência da importância do mar, a que ele denomina de “maritimeawareness”. Dentro deste conceito, a divulgação dos ataques de maneira rápidafacilitaria a coordenação entre os países e a ação imediata por parte dosenvolvidos. Nesse sentido, a IMO divulga relatórios com atos de pirataria eroubo armado informados pelos Estados-membros. Os relatórios contêmnome e descrição das embarcações, posição, dia da ocorrência, conseqüênciaspara a tripulação, navio ou carga e as ações tomadas pela tripulação eautoridades costeiras43.

Atualmente as regiões da costa da Somália e do Golfo de Aden têm sidopalco de grandes e espetaculares 44 ataques. Logo, em janeiro de 2009, noDjibuti, houve uma reuniçao de alto-nível liderada pela IMO. Nesta reuniãofoi estabelecido um Código de conduta para a repressão da pirataria e rouboarmado em navios no Oceano Índico Ocidental e Golfo de Aden (Code ofConduct concerning the Repression of Piracy and Armed Robbery against Ships inthe Western Indian Ocean and the Gulf of Aden). O Código reconhece o problemae declara sua intenção de compartilhar informações por meio de um sistemade pontos focais e centros de informação, além de interditar navios suspeitosde pirataria.

As ações que cada estado deve tomar para incrementar a segurança deseu tráfego marítimo também são um fator importante para evitar os atos depirataria. Para tal, a IMO emitiu, recentemente, as circulares MSC.1/Circ.1333-Recommendations to Governments for preventing and suppressing piracy and armedrobbery against ships suggests possible counter-measures e MSC.1/Circ.1334-Guidance to shipowners and ship operators, shipmasters and crews on preventingand suppressing acts of piracy and armed robbery against ships45. Estas, são umatentativa de codificar boas práticas a fim de padronizar procedimentos.

Tais iniciativas são bem vindas, mas não suficientes, tendo em vistaque o comércio marítimo se faz entre diversos países, sujeitos, pois, a umavariedade de legislações e visões sobre o assunto. É importante que haja oefetivo envolvimento e integração dos órgãos, não somente das marinhas,mas dos ministérios da defesa, transportes, comércio e indústria, polícias,guarda portuária, etc. A seguir, veremos alguns assuntos que estãonecessitando de maior atenção por parte da comunidade internacional.

43 Para uma relação mensal dos ataques e estatísticas anuais ver: < http://www.imo.org/Circulars/mainframe.asp?topic_id=334 >.44 Espetaculares no sentido de atraírem a atenção da mídia mundial.45 Ambas aprovadas pelo The Maritime Safety Committee, em sua 86º sessão (27 mai-5jun. 2009). Disponível em < http://www.imo.org/Circulars/mainframe.asp?topic_id=327>. Acesso em: 12 ago. 2009. Estas circulares revogam as antigas MSC/Circ.622/Rev.1 and MSC/Circ.623/Rev.3 (2002), respectivamente.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 111: Revista da Escola de Guerra Naval

114

Assuntos a Requerer Atenção

Este artigo pretende levantar algumas questões importantes, sem ter apretensão de esgotar a discussão.

A primeira delas é o sistema identificador automático (automaticidentification system ou AIS). O AIS, criado pela Convenção para salvaguardada vida humana no mar46 (SOLAS), consiste de um conjunto transmissor-receptor em que são transmitidas informações sobre a embarcação como nome,tipo, posição, velocidade, situação da navegação e outras informações desegurança47. Além de apresentar estas informações em uma tela, o AISpretende auxiliar os oficiais de serviço dos navios e permitir que asautoridades marítimas acompanhem o movimento dos navios. O AIS trabalhaintegrando um transceptor de VHF padrão com um sistema de navegaçãoeletrônica como o LORAN- C (LOng RAnge Navigation versão C) ou o Sistemade Posicionamento Global (GPS) além de outros sensores dos navios comobússolas, indicador de rate de guinada48, etc. Dessa maneira, qualquertripulante de posse deste equipamento, teria acesso à uma série de informaçõessobre o tráfego mercante da área. Da mesma forma, bastaria que um piratativesse um destes receptores, para que pudesse “escolher” a presa que maislhe aprouvesse, tendo, inclusive, dados como posição, velocidade, nome donavio e carga.

Quaisquer navios, ou aeronaves, dotados de um receptor, teriam acessoa tais informações a fim de evitar colisões no mar. John Grubb, doDepartamento de Transportes do Reino Unido49, protesta dizendo que “osmovimentos dos navios são públicos demais”; e continua, “It is easy to track[ships] even if you tried not to make this too well known because you can work outexactly where a ship is going to be. I do not think you can actually minimise theinformation you give to criminals, they can get what is publicly available” 50 (grifonosso). Para completar, um relatório do Parlamento Inglês afirma que “seoperado por piratas, o AIS permitirá que eles acompanhem o movimento dedeterminados navios baseado, por exemplo, no valor de sua carga51”. Como

46 Capítulo V da convenção, revisado em 2000.47 O regulamento se aplica a todos os navios construídos a partir de 1 de julho de 2002 enavios engajados em viagens internacionais de acordo com as seguintes datas: navios depassageiros, até 1 julho de 2003, navios-tanque até a primeira vistoria de segurança; osdemais navios acima de 50.000 toneladas brutas até 1 de julho de 2004.48 Equipamento que informa a velocidade com que o navio muda de rumo.49 REINO UNIDO, HOUSE OF COMMONS- Transport committee- Piracy- eighth report onsession 2005-2006. HC 1026. London: The Stationary Office Limited, 2006, p. 24.50 Ibidem, p. 24.51 Ibidem, p. 24.

Pirataria Marítima Moderna

Page 112: Revista da Escola de Guerra Naval

115

se já não fosse suficientemente problemática a divulgação dos movimentosdos navios, há pelo menos dezesseis empresas que, por meio da internet,veiculam dados de posicionamento e tipo de carga de navios ao redor domundo. Entre elas, temos a MarineTraffic.com52 (especialmente da região daGrécia) e a ShipAIS.com53, especializada em navios do Reino Unido. Cientesdo perigo que estes dados publicados na internet podem causar, a IMO, nasua 79ª sessão, em dezembro de 2004, reprovou a divulgação destasinformações e solicitou aos estados-membros que desencorajassem suaexibição pública54, determinação ainda sem nenhum efeito prático.

O governo do Reino Unido alertou mestres de embarcações de naviosde bandeira inglesa e do Red Ensign group55 para que cessemtemporariamente as transmissões do AIS quando em alto mar (especialmenteem águas onde se sabe da presença de piratas), se assim julgarem que asegurança do navio não é comprometida56.

52 Ver o site em http://www.marinetraffic.com/ais/.53 Ver em http://www.shipais.com.54 Disponível em: < http://www.imo.org/Safety/mainframe.asp?topic_id=754 >. Acessoem: 10 junho 2008.55 O Red Ensign Group é composto de pelos navios registrados no Reino Unido, UK CrownDependencies (Isle of Man, Guernsey e Jersey) e os territórios de ultramar (Anguilla,Bermuda, British Virgin Islands, Cayman Islands, Falkland Islands, Gibraltar, Montserrat,St Helena e as Turks & Caicos Islands).56 REINO UNIDO. HOUSE OF COMMONS- Transport committee- Piracy- GovernmentResponse to the Committee´s Eighth Report of Session 2005-06. op. cit, p. 9.

Fonte: http://www.marinetraffic.com/ais/.

Osvaldo Peçanha Caninas

Figura 3: Amostra de informações do AIS disponíveis na Internet nasproximidades do porto do Rio de Janeiro

Page 113: Revista da Escola de Guerra Naval

116

Outra questão é a perseguição e apreensão de embarcações piratas, cujasrepercussões são grandes sobre o direito e as relações internacionais. Ajurisprudência sobre o assunto é extensa, porém há um caso que ilustra bem acomplexidade do relacionamento entre o Direito Internacional e as legislaçõesinternas. Em 1933, durante o julgamento de um ataque pirata, o Privy Council57

foi instado a responder se o roubo, propriamente dito, era parte fundamentalda tipificação do ato de pirataria e se a tentativa já seria suficiente para tipificá-lo58. O Conselho esquivou-se em dar uma definição de pirataria, contudo, omais interessante é comentar as circunstâncias que motivaram a consulta.Duas pequenas embarcações chinesas foram atacadas por outro barco chinêsem alto mar. Os piratas foram interceptados, levados a Hong Kong por umnavio de guerra britânico e acusados de pirataria. Posteriormente, foramjulgados culpados pelo júri, ainda que o roubo propriamente dito não houvessesido perpetrado. No entanto, a Corte Superior (Full Court of Hong Kong) teveoutra interpretação, afirmando que o roubo, propriamente dito, era necessáriopara tipificar a pirataria. Os acusados foram então soltos, deixando uma lacunae levando o comitê instituído (Judicial Committee) para assessorar sobre a questãoa afirmar, na mais fina ironia britânica, que

When [...] armed men sailing the seas on board avessel, without any comission from any State, could attackand kill everybody on board another vessel, sailing under anational flag, without committing the crime of piracy unlessthey stole [...] their Lordships are almost tempted to say thata little common sense is a valuable quality in the interpretationof international Law59.

O fato de o crime de pirataria ter uma vertente que depende das leis decada Estado, quando cometido em área distinta da estipulada pela Convençãoda Jamaica, aumenta em muito a complexidade do assunto e o tratamentodisperso dado a ele.

A terceira, e última questão que abordaremos, é que a pirataria tambémpode ter desdobramentos no terreno dos direitos humanos. A marinha britânica

57 Comitê composto pelos conselheiros mais próximos ao monarca inglês. Fazem partedele o gabinetes dos ministros, além de ex-ministros designados pelo soberano.58 JOHNSON, D. H. N. Piracy in Modern International Law. Transactions of the GrotiusSociety, v. 43, Problems of Public and Private International Law, Transactions for the Year1957, p. 69-70.59 Piracy Jure Gentium, 1934. In: JOHNSON, D. H. N. Piracy in Modern International Law.Transactions of the Grotius Society, v. 43, Problems of Public and Private International Law,Transactions for the Year 1957, p. 70.

Pirataria Marítima Moderna

Page 114: Revista da Escola de Guerra Naval

117

(Royal Navy) vem envidando grandes esforços para coibir a pirataria em altomar, especialmente na região da Somália e Caribe. Recentemente, o Ministériodas Relações Exteriores Britânico (Foreign Office- FCO) advertiu a marinha deque os piratas mandados para julgamento na Somália poderiam ter seus direitoshumanos afetados visto que, pela Lei Islâmica, estariam sujeitos à decapitação(em caso de homicídio) ou a ter suas mãos cortadas, em caso de roubo. Nestecaso, o Ministério afirma que os acusados poderiam via a solicitar asilo aoReino Unido. A advertência do ministério foi duramente criticada peloparlamentar Julian Brazier que afirmou que

These people commit horrendous offences. The solutionis not to turn a blind eye but to turn them over to the localauthorities. The convention on human rights quite rightlydoesn’t cover the high seas. It’s a pathetic indictment ofwhat our legal system has come to60.

O medo das conseqüências de uma grande quantidade de pedidos deasilo provavelmente motivou as autoridades dos Estados unidos e UniãoEuropéia a entrar em entendimentos com um terceiro país, o Quênia, conformemostram os documentos a seguir.

Em 2 de junho de 2008, o Conselho de Segurança das Nações Unidas(CSNU) adotou a resolução 1816 (2008) pedindo a todos os Estados quecooperem na investigação e promoção da ação penal correspondente para osresponsáveis por atos de pirataria e roubo armado nas costas da Somália. Aseguir, o CSNU promoveu uma ação conjunta (2008/851/CFSP) com a UniãoEuropéia para perseguir piratas nesta região (Operação Atalanta).

Esta ação conjunta previa que os capturados pela Operação Atalantapudessem ser transferidos para um terceiro país a fim de que este exercessejurisdição. Para que isto acontecesse, deveria existir um acordo com esteestado e este deveria se comprometer a respeitar os direitos humanos e nãosubmetê-los à pena de morte.

Finalmente, pelo artigo 24 do Tratado da União Européia, uma troca decartas de intenções61 com o governo do Quênia estabeleceu as condições e

60 WOOLF, Marie. Pirates can claim UK asylum. The Sunday Times. London, 13 abril2008. Disponível em < http://www.timesonline.co.uk/tol/news/uk/article3736239.ece>. Acesso em 1 junho 2008.61 UNIÃO EUROPÉIA. Official Journal of the European Union. 25 march, 2009. Exchangeof Letters between the European Union and the Government of Kenya on the conditionsand modalities for the transfer of persons suspected of having committed acts of piracyand detained by the European Union-led naval force (EUNAVFOR), and seized propertyin the possession of EUNAVFOR, from EUNAVFOR to Kenya and for their treatment aftersuch transfer. L 79, p. 49- 59. Disponível em < http://eur-lex.europa.eu/Notice.do?val=491702:cs&lang=en&pos=1&phwords=piracy~&checktexte=checkbox >.Acesso em 20 mai. 2009.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 115: Revista da Escola de Guerra Naval

118

modalidades de transferência dos capturados pela força naval européia(EUNAVFOR). É interessante notar que o acordo requer que haja

full respect of United Nations Security CouncilResolutions62, the 1982 United Nations Convention on theLaw of the Sea (UNCLOS) (in particular Articles 100 to107) and International Human Rights Law, including the1966 International Covenant on Civil and political Rights,and the 1984 Convention against Torture and Other Cruel,Inhuman or Degrading Treatment or Punishment (grifonosso)63.

A preocupação do Reino Unido é clara, como se pode ver em declaraçõesdo governo como esta:

These persons cannot be transferred to a thirdState, including Somalia, if the conditions of transferhave not been agreed with the third State in conformitywith the applicable international law, notablyinternational human rights law, in order to guaranteethat no one is submitted to the death penalty, tortureor any other cruel, inhuman or degrading treatment64.

O receio de que a prisão de piratas pudesse se tornar um “salvo-conduto” para o território dos países fica evidente pela resposta de BobAinsworth, Ministro da Defesa em um debate da Câmara dos Comuns

We have no intention of providing a taxi servicefor asylum seekers through the Royal Navy. We havereceived the co-operation of countries in the area -Kenya, in particular, as I have said - in bringing thesepeople to justice65.

Da mesma maneira, os EUA assinaram um Memorando deEntendimentos com o Quênia. O receio de que os piratas pudessem pedirasilo também preocupava o país como se nota no discurso de Stephen D.Mull, assistente sênior do Subsecretário para Assuntos Políticos doDepartamento de Estado.

62 Resoluções (UNSCR) 1814 (2008), 1838 (2008), 1846 (2008), 1851 (2008) e as que seseguirem sobre o assunto.63 UNIÃO EUROPÉIA, op. cit.64 UNITED KINGDOM. HOUSE OF COMMONS LIBRARY. BUTCHER, Louise. Standardnote SN/BT/3794. Shipping: Piracy. 31 march 2009.65 REINO UNIDO, HOUSE OF COMMONS DEBATES. 1 june 2009. Volume 493, part 82,columns 5-6. Disponível em: < http://www.publications.parliament.uk/pa/cm200809/cmhansrd/cm090601/debindx/90601-x.htm >.

Pirataria Marítima Moderna

Page 116: Revista da Escola de Guerra Naval

119

A big problem, as we can talk about later, isfiguring out what to do with the pirates once weapprehend them. And so we have worked to secure anagreement with Kenya that Kenya will gladly take thepirates that we apprehend and prosecute them. We alsohave a number of other discussions going on with otherstates in the region to do the same thing. It is partlyfunny, but it also illustrates that, for many people, ifyou arrest them and then take them into custody, theremay be national laws that prevent their return if they arefound not guilty. They will say that they face persecution orterrible living conditions in Somalia, they would like asylum.Or they will just remain there in the country and then becomea problem for that particular nation (grifo nosso)66.

Até o presente momento (dados de 30 de abril de 2009) os EstadosUnidos já haviam transferido 52 piratas para o Quênia que se encontramaguardando julgamento67.

Conclusão

Norbert Elias afirmou68 que os conceitos matemáticos podem serexpressos sem referência ao contexto histórico. Os conceitos sociais, aocontrário, adquirem diferentes nuances com o correr do tempo. Uma palavra,que antes designava algo, muda seu significado, sem apagar seu passado.Da mesma maneira, a palavra pirataria evoca pensamentos que estãoenraizados no processo histórico de sua construção. Neste artigo pudemosver que ela teve uma evolução em seu significado e importância ao longo dotempo. Mas devemos compreender as limitações do termo ao chamar depirataria eventos tão díspares como os piratas de Henrique IV, os eventosrecentes na Somália e a atividade de roubo de comida em diversos portos. Alinguagem é limitada e há necessidade de estudar caso a caso. Querer criaruma solução para o problema e que atenda todos os fenômenos é perder adimensão de sua complexidade.

As atividades de privateering dos séculos foram, em grande medida,

66 UNITED STATES HOUSE OF REPRESENTATIVES. International efforts to combatmaritime piracy. Hearing before the subcommittee on international organizations, humanrights and oversight of the Committee on Foreign Affairs. House of Representatives. Onehundred eleventh congress. First Session. April 30, 2009. Serial no. 111-113. Disponívelem: < http://www.foreignaffairs.house.gov/ >. Acesso em: 12 jun. 2009.67 Idem.68 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1994, vol I, p. 26.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 117: Revista da Escola de Guerra Naval

120

fruto da fraqueza do Estado e da necessidade de um pacto com interessesprivados. Modernamente, o intenso comércio de riquezas pelo transportemarítimo desperta a atenção de criminosos que exercem uma atividadeparasita ao atacar parte deste mesmo comércio. No entanto, o uso da jurisdiçãouniversal para julgar e enforcar piratas, já não se aplica mais. Há outrosfatores a considerar como a legislação de direitos humanos, o direito do mar,somente para mencionar alguns.

A tendência de igualar pirataria com terrorismo marítimo também nãopode ser levada a sério. Nem mesmo aqueles que alegam que os piratas seriaminimigos da humanidade e deveriam ser sumariamente executados. Asecuritização69 do assunto, isto é, retirá-lo da esfera normal da política, paratratá-lo com medidas de emergência mediante alegações de prioridade deação e sobrevivência do estado é inadmissível.

Mesmo com o crescimento dos atos na região da Somália, cabe procuraras causas de cada fenômeno em vez de imaginá-lo igual a outras ocorrênciasdo passado. Se a análise histórica pode nos ensinar algo, sem ingênuasrelativizações, é que não há um ato de pirataria igual a outro, mas tantosquantos forem perpetrados. Deixar de analisar cada caso, enquadrá-lo emuma moldura pré-concebida séculos atrás, criar respostas pré-planejadaspara todo e qualquer ataque, onde quer que ocorra, não resolverá o problemae tenderá a agravá-lo ainda mais.

Referências

BANDOW, Doug. Don´t ressurect the Law of the sea treaty. Journal of InternationalAffairs. V. 59, n. 1, Fall/winter 2005, p. 25-41.

BULL, Hedley. A sociedade anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo:Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

BYERS, Michael. Policing the High Seas: The Proliferation Security Initiative. TheAmerican Journal of International Law, v. 98, n. 3, Jul. 2004, p. 526-545.

CHENOWETH, Gene M. Melaka, “Piracy” and the Modern World System. Journalof Law and Religion, v. 13, n. 1, 1996 - 1999, p. 107-125.

CRAVEN, Frank. The Earl of Warwick, a Speculator in Piracy. The HispanicAmerican Historical Review, v. 10, n. 4, Nov. 1930, p. 457-479.

69 Uso o termo Securitização conforme proposto por BUZAN, Barry; WAEVER, Ole eWILDE, Jaap. Security. A new framework of analysis.Lynne Rienner, 1998, p. 26.

Pirataria Marítima Moderna

Page 118: Revista da Escola de Guerra Naval

121

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1994, vol I, p. 26.

GOODWIN, Joshua Michael. Universal jurisdiction and the pirate: time for an oldcouple to part. Vanderbilt Journal of Transnational Law, v. 39, n. 3, May 2006, p.973- 1011.

HALBERSTAM, Malvina. Terrorism on the High Seas: The Achille Lauro, Piracyand the IMO Convention on Maritime Safety. The American Journal ofInternational Law, v. 82, n. 2, Apr. 1988, p. 269-310.

JOHNSON, D. H. N. Piracy in Modern International Law. Transactions of theGrotius Society, v. 43, Problems of Public and Private International Law,Transactions for the Year 1957, p. 63-85. Publicado pela Oxford University Press apedido do British Institute of International and Comparative Law.

LICHE. La piraterie – Grande criminalité en mer. La Tribune. Paris: CollègeInterarmées de Défense (CID), 2007. Disponível em: < http://www.college.interarmees. defense.gouv.fr/spip.php?article687 >. Acesso em: 15junho 2008.

LUFT, Gal; KORIN, Anne. Terrorism Goes to Sea. Foreign Affairs, v. 83, n. 6, Nov.-Dec. 2004.

MATHEW, David The Cornish and Welsh Pirates in the Reign of Elizabeth. TheEnglish Historical Review, v. 39, n. 155, Jul. 1924, p. 337-348.

MIDDLETON, Roger. Piracy in Somalia. Threatening global trade, feeding localwars. Briefing paper. London: Chatham House. October, 2008. Disponível em: <http://www.chathamhouse.org.uk/publications/papers/view/-/id/665/ >.Acesso em: 15 dez. 2008

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização Marítima Internacional.MSC.4/Circ.133. Reports on acts of piracy and armed robbery against ships. 2008Annual report. London: Maritime Safety Committee, p. 17.

______. MSC.1/Circ.1333. PIRACY AND ARMED ROBBERY AGAINST SHIPS.Recommendations to Governments for preventing and suppressing piracy andarmed robbery against ships. 26 June 2009. Disponível em: < http://www.imo.org/includes/blastData.asp /doc_id=11564/1333.pdf >.

______. MSC.1/Circ.1334. PIRACY AND ARMED ROBBERY AGAINST SHIPS.Guidance to shipowners and ship operators, shipmasters and crews on preventingand suppressing acts of piracy and armed robbery against ships. 23 June 2009.Disponível em: < http://www.imo.org/includes/blastData.asp/doc_id=11565/1334.pdf >.

______. Resolução A.922(22), anexo, parágrafo 2.2 do Code of Practice for theInvestigation of the Crimes of Piracy and Armed Robbery Against Ships.

PISTONO, Stephen P. Henry IV and the English Privateers. The English HistoricalReview, v. 90, n. 355, apr. 1975, p. 322-330.

PLANT, Glen. The Convention for the Suppression of Unlawful Acts against theSafety of Maritime Navigation. The International and Comparative Law Quarterly,v. 39, n. 1, Jan. 1990, p. 27- 56.

Osvaldo Peçanha Caninas

Page 119: Revista da Escola de Guerra Naval

122

REINO UNIDO. House of commons debates, 2009, v. 493, part 82, columns 5-6.Disponível em: < http://www.publications.parliament.uk/pa/cm200809/cmhansrd/cm090601 /debindx/90601-x.htm >.

REINO UNIDO. House of commons debates: transport committee- Piracy- eighthreport on session 2005-2006. HC 1026. London: The Stationary Office Limited,2006.

REINO UNIDO. House of commons debates: transport committee- Piracy-Government Response to the Committee´s Eighth Report of Session 2005-06. HC1690. London: The Stationary Office Limited, 2006.

SIDAK, J. Gregory. The quasi war cases - and their relevance to whether “letters ofmarque and reprisal” constrain presidential war powers. Harvard Journal of Law& Public Policy, v. 28, n. 2, spring 2005, p. 465-499.

TILL, Geoffrey. Seapower. A guide for the twenty-first century. London: FrankCass publishers, 2004.

UNIÃO EUROPÉIA. Official Journal of the European Union. 25 march, 2009.Exchange of Letters between the European Union and the Government of Kenyaon the conditions and modalities for the transfer of persons suspected of havingcommitted acts of piracy and detained by the European Union-led naval force(EUNAVFOR), and seized property in the possession of EUNAVFOR, fromEUNAVFOR to Kenya and for their treatment after such transfer. L 79, p. 49- 59.Disponível em: < http://eur-lex.europa.eu/Notice.do?val= 491702:cs&lang=en&pos=1&phwords=piracy~&checktexte=checkbox >. Acesso em: 20 mai.2009.

UNITED STATES. House of Representatives. International efforts to combatmaritime piracy. Hearing before the subcommittee on international organizations,human rights and oversight of the Committee on Foreign Affairs. House ofRepresentatives. One hundred eleventh congress. First Session. April 30, 2009.Serial no. 111-113. Disponível em: < http://www.foreignaffairs.house.gov/ >.

Pirataria Marítima Moderna

Page 120: Revista da Escola de Guerra Naval

123

A Competição no Oceano Índicoà Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Deepak Kumar*

Resumo

O Oceano Índico, localizado em uma região extremamente ricaem recursos energéticos, com destaque para o petróleo e o gásnatural, tem importância ímpar no cenário mundial. Por suaságuas flui intenso tráfego marítimo de riquezas e de derivadosdo petróleo que, em seu caminho entre o Golfo Pérsico e o OceanoÍndico, demonstra a dependência da estabilidade política e da pazna região para a segurança mundial. O Oceano Índico, cujos acessosocorrem por meio de zonas de estrangulamento representadaspelos estreitos de Málaca, Ormuz e pelo Cabo da Boa Esperança,pode ter seu comércio marítimo seriamente impedido ou mesmobloqueado, caso uma potência naval domine tais pontos focais. Aestabilidade e a política na região pendem entre três potências,sendo duas emergentes e mundiais, a Índia e a China, e asuperpotência global, os Estados Unidos da América. As distintasvisões políticas conduzem as ações destes atores do sistemainternacional ante o domínio da região e posturas estratégicasnecessárias para manutenção dos respectivos interesses nacionaise segurança energética.Palavras-chave: Oceano Índico - Índia - China - Estados Unidos daAmérica.

Abstract

The Indian Ocean, located in a extremely rich strategic naturalresources region, specially oil and natural gás, has a distinct worldimportance. An intense maritime commerce flows in a path fromthe Persian Gulf to the Indic Ocean, showing a dependence onpolitical stability and peace of the region to the world security.The Indian Ocean, in which the choke points flow thru Malaca,Ormuz Straits and Cape of Good Hope, can have its maritimecommerce blocked by a country that controls those points. Thepolitical stability in the region balances between two emergingpowers India and China and a superpower, United States ofAmerica. The distinct political views of those countries aim to

1 Capitão-de-Mar-e-Guerra da Marinha de Guerra da Índia. Aluno do Curso deEstado-Maior para Oficiais Superiores - Turma 2009, da EGN.

Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 123-153.

Page 121: Revista da Escola de Guerra Naval

124

control that region and their respective interests govern theiractions in strategic and economic bias.Keywords: Indic Ocean, India, United States of America.

Introdução

Aquele que controla o Oceano Índico domina aÁsia. Este oceano é a chave para os sete mares. No séculoXXI, o destino do mundo será decidido em suas águas.

Alfred Mahan

Com aproximadamente 74 milhões de quilômetros quadrados e com cercade 20 por cento do total das águas oceânicas mundiais, o Oceano Índico é oterceiro maior, atrás do Pacífico e do Atlântico (FIG 1). Geograficamente localiza-se entre os dois maiores oceanos e, assim, serve como uma via natural de trânsitopara a maioria do tráfego oriundo do Atlântico para o Pacífico e vice versa. Duasprincipais características marcam o Oceano Índico: primeiramente, oitenta porcento do comércio no Oceano Índico é extra-regional. Segundo, ele só pode seracessado a partir de alguns pontos de estrangulamento: vindo do oeste via Caboda Boa Esperança; vindo do norte via Bab El-Mandeb no final do Mar Vermelhoe via os Estreitos de Hormuz na saida do Golfo Pérsico; vindo do leste, via osEstreitos de Málaca, Estreitos de Sunda e Lombok e Estreitos de Ombai-Wetar.1

Região do Oceano Índico

1DEV, Atul. The Indian Ocean: current security environment. In: Mauritius Times, 25 maio2007. Ilhas Maurício.

Figura 1: mapa da Região do Oceano Índico - ROIFonte: <http://www.tamilnation.org/images/intframe/indian_ocean/IndianOcean.jpg.>

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 122: Revista da Escola de Guerra Naval

125

A Região do Oceano Índico – ROI encontra-se entre as mais ricas regiõesem petróleo, gás e recursos naturais. Mesmo na era da globalização, otransporte marítimo permanece como o mais econômico meio de comércio. Alocalização do Oceano Índico lhe provê uma significante estratégia em relaçãoao comércio mundial. A importância do Oceano Índico é conhecida atravésdas eras. Referências históricas mostram que a humanidade navegouintensamente por suas águas por vários períodos, e permanece até hoje comosendo uma das vias econômicas vitais, por onde as riquezas do mundo sãotransportadas.

A ROI foi considerada como uma área livre para as nações européiasindustrialmente ricas, durante o período colonial. Com o início dadescolonização em 1946, a euforia da independência foi substituída pordestrutivos conflitos, seguindo-se guerras entre os Estados.2 Durante a GuerraFria, as duas superpotências reforçaram sua influência marítima, direta ouindiretamente, por meio de um grande arranjo de facilidades portuárias naregião. Pelas últimas quatro décadas, o Oceano Índico presenciou umaintensa rivalidade entre as superpotências, novas equações da economia,uso do poder marítimo para neutralizar poderes em terra e o epicentro deuma tensão mundial. Entretanto, assim como os contornos do poder estãomudando no mundo, as mudanças também são visíveis no ROI.

Com a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas -URSS, os Estados Unidos da América – EUA, anunciaram o surgimento deuma nova ordem mundial. O presidente estadunidense George Bushproclamou, no dia 11 de setembro de 1990, o início de uma nova era “livre daameaça do terror, forte na busca da justiça e mais segura na questão da paz,uma era em que as nações do mundo podem prosperar e viver em paz”(BUSH, 1990, tradução nossa). Não foi abandonada a questão do confronto,mas um novo conflito surgiu no mundo, mais complicado, mais volátil emuito menos previsível. Os EUA tornaram-se os virtuais líderes militares domundo. Entretanto suas decisões são questionadas e sofrem oposição demuitos Estados. Atualmente, os EUA não conseguem se impôr como apotência mais importante em vários assuntos. Todavia, os outros centros depoder desafirão sua predominância regional e setorialmente.

A ROI é significante devido à sua geografia, demografia, a situaçãoatinente à segurança e sua política petrolífera. Para controlar a situação desegurança na área, que é entremeada com o terrorismo e a pirataria, os EUA

2 GHOSH, PK. Maritime security challenges in South Asia and the Indian Ocean: responsestrategies. In:Conference On Maritime Security In Asia. 18 a 20 de Janeiro de 2004.Honolulu.

Deepak Kumar

Page 123: Revista da Escola de Guerra Naval

126

lideram uma força multinacional com uma forte presença na região. Enquantoas situações de segurança e do comércio permanecem como fator básico deinteresse de potências extra-regionais na região, a ROI presencia a ascensãoda Índia e o aumento do foco na República Popular da China – RPC. Osdiferentes contornos de segurança, na base da política energética mundial,fazem essa região ser extremamente volátil. Nesta visão, a competiçãoestratégica entre EUA, China e Índia demanda atenção.

O objetivo deste trabalho é apresentar a emergente rivalidade estratégicaentre os três maiores poderes - EUA, China e Índia – na região do OceanoÍndico.

Este trabalho analisa a geopolítica da ROI, com sua importânciaestratégica e econômica como focos do primeiro capítulo. Abordandoimperativos geopolíticos da região, as políticas marítimas das três potênciasna região são discutidas no segundo capítulo. Então, no terceiro capítulo, otrabalho analisa o espectro da estratégia disponível e as possibilidades deconflito e cooperação.

O estudo assume relevância em razão da sua temática contemporânea.A geopolítica e os jogos de poder na região têm a habilidade de moldar oscontornos da segurança mundial e, assim, merecem uma análise.

Essa discussão trabalha com o fato de que o comércio é inseparável dodomínio naval, forjando as bases de um grande poder ascendente. O conteúdodo estudo está coerente com as políticas marítimas e o desenvolvimento naval.Em razão da relevância da segurança energética, primordialmente seráabordado o transporte de petróleo para em seguida apresentar o comércio eos negócios.

Apesar do Japão e Austrália possuírem consideráveis interesses naregião, eles não são considerados suficientemente fortes para alterar oscontornos geopolíticos do Índico. As políticas desses Estados permanecemessencialmente em sincronismo com a política estadunidense. Similarmente,a presença de poderes extra-regionais, como a França, não se encontra noescopo deste trabalho. O desenvolvimento da situação de conflito com o Irãe os efeitos decorrentes caso a situação deteriore para um conflito armado,podem alterar os contornos de segurança na região e isto também está alémdo escopo dessa discussão.

A pesquisa deste assunto foi baseada em livros, periódicos e artigos,que trazem aspectos das atividades, desenvolvimento marítimo edeterminadas políticas dos países interessados. Os aspectos atinentes à Chinaforam obtidos por meio de reportes do Congresso dos EUA, documentos doDepartamento de Defesa dos EUA, e artigos de autores ocidentais e indianos,em razão da escassez de citações originais disponíveis no domínio público.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 124: Revista da Escola de Guerra Naval

127

A Região do Oceano Índico: O Contorno Estratégico

O Oceano Índico tem sua importância estratégica baseada principalmenteno seu posicionamento em relação às rotas comerciais. Aproximadamente 3.500navios carregando 80% do comércio do Oceano Índico transitam pelos estreitosde Málaca, Bab-el-Mandeb e pelo Cabo da Boa Esperança, principalmente paraas potências extra-regionais3. Essas embarcações estão carregadas comsuprimentos vitais de petróleo e materiais estratégicos e, assim, são objeto desérias preocupações para as potências interessadas. Mesmo atualmente, na erados jatos e da informação, 90% do comércio global e 65% de toda produçãopetrolífera são transportados pelo mar. A globalização tornou possível umaredução de custos e maiores facilidades, por meio da utilização de containers emnavios-tanque, e o Oceano Índico representa cerca da metade do tráfego mundialde containers. Cerca de 70 % do total de tráfego de derivados de petróleo passampelo Oceano Índico, em seu percurso do Oriente Médio para o Oceano Pacífico.Enquanto tais produtos trafegam por esta rota, eles passam pelas principaislinhas mundiais de transporte marítimo de óleo e alguns dos principais pontosfocais do comércio mundial: Bab-el-Mandeb e os Estreitos de Hormuz e Málaca.Aproximadamente 40 % dos negócios mundiais passam pelo Estreito de Málaca;40% de todo o petróleo bruto passam pelo Estreito de Hormuz. 4 (FIG. 2).

3 JAMWAL, S.S. Sea Power in the Indian Ocean and India’s Role in the Region. In: CombatJournal, p.1, 20024 KAPLAN, Robert D. Power Plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.16, 2009.

Figura 2: ROI- SLOCs, e diversas áreasFonte:<http://www.tamilnation.org/images/intframe/indian_ocean/indian_ocean_sea_lanes.gif>

Deepak Kumar

Page 125: Revista da Escola de Guerra Naval

128

Qualquer interrupção na fluidez do tráfego nos referidos pontos, podeacarretar consequências desastrosas. Desde que a energia é fator primordialem influenciar geopolíticas nacionais, qualquer turbulência no seusuprimento energético tem sérias consequências na segurança. A importânciaestratégica do Oceano Índico foi revelada durante a Crise do Petróleo de1973-1974, quando foi demonstrado como era vital o suprimento de óleo peloOceano Índico para os países ocidentais industrializados, e como o Ocidenteera vulnerável às pressões do petróleo.

Através da história, a região consolidou sua importância para ocomércio no mundo. “Aquele que for o senhor de Málaca, tem suas mãos nocoração de Veneza,” (tradução nossa) era um provérbio dito durante o séculoXV; “se o mundo fosse um ovo, Hormuz seria sua gema” (tradução nossa),dizia outro provérbio. 5

As economias dos Estados banhados pelo Oceano Índico são orientadasprincipalmente para o suprimento de matérias-primas para os paísesdesenvolvidos. Em termos de petróleo e gás natural, enquanto os dadosprecisos alteram a cada ano, a situação é relativamente clara: os países aoredor do Golfo Pérsico, coletivamente, detêm aproximadamente 62% do totaldas reservas mundiais de petróleo, enquanto que outros três países (Rússia,Casaquistão e Venezuela), possuem outros 20%. Mesmo levando emconsideração questões como a exatidão de algumas estatísticas e a viabilidadede alguns campos de óleo, o Golfo Pérsico é claramente dominante nasavaliações geopolíticas globais. Além disso, os gigantescos campos marítimosde gás natural, descobertos no subsolo marinho do Golfo Pérsico, significamque Irã e Qatar possuem agora, respectivamente, a segunda e terceira maioresreservas mundiais de gás natural, atrás apenas da Rússia. 6

A era pós-Guerra Fria trouxe um novo pensamento político-estratégico.A globalização, especialmente em termos econômicos, domina hoje asconsiderações estratégicas. Isto permite aprimorar a atenção com a segurançamarítima, posto que a maior parte das relações comerciais regionais émarítima.

Os EUA eram praticamente auto-suficientes em petróleo durante adécada de 1960, entretanto, atualmente, importam a maioria de sua demanda;a China igualmente não consegue suprir internamente sua demanda porpetróleo, necessitando importar cerca de metade de suas necessidades. AÍndia importa aproximadamente 70 % do petróleo bruto de que necessita7.

5 ibid, p.19.6 ROGERS, Paul. America in the Persian Gulf: a choice of futures.7 ibid.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 126: Revista da Escola de Guerra Naval

129

Nessa década testemunhamos duas grandes agressões externas naregião, envolvendo invasões territoriais – no Iraque e no Afeganistão, resultandoem um contínuo posicionamento estratégico marítimo de forças multi-nacionaislideradas pelos EUA. Todavia, os custos de segurança para a coalisão lideradapelos EUA são cada vez maiores. Está provado que agressões gratuitas nãosão rentáveis e que não se consegue manter o território capturado sob controlesem grandes perdas. Invasões de territórios devem tornar-se uma coisa dopassado. Isto implica em que as confrontações possivelmente devam ocorrerprincipalmente longe dos territórios terrestres, possibilitando conflitosmarítimos. O poder naval foi menos ameaçador que o poder terrestre; conformeé dito, “Armadas visitam portos, exércitos, invadem” (tradução nossa). Osnavios necessitam de um longo tempo para atingir a área de combate,permitindo a diplomacia trabalhar e, então, tornam-se uma ferramentapreferencial para a projeção de poder das nações.8 Donald L Berlin sustentaque “O Oceano Índico está aumentando sua importância estratégica porque éo lar da maior concentração mundial de muçulmanos. Hoje, a civilizaçãoislâmica encontra-se em conflito com o ocidente - incluindo Israel e Índia, efrequentemente influencia o contexto na ROI.” (BERLIN, 2002, tradução nossa).Em consequência, pode ser um fator perturbador afetando a segurança daregião, como pode ser visto com o ataque terrorista em Mumbai, em novembrode 2008, que resultou na mudança do foco marítimo da Índia.

Os tempos recentes testemunharam um surpreendente aumento de casosde pirataria na região. Com a crescente ameaça da pirataria, surgiram, emdecorrência, operações para combatê-las, conduzidas pelas principaismarinhas, como as das forças multi-nacionais lideradas pelos EUA, e naviosde guerra indianos e chineses. Não obstante haver operações anti-piratariaconduzidas por forças navais internacionais no Golfo de Aden, piratas somalisexpandem suas ações no Oceano Índico. À medida que as ameaças aumentam,as marinhas mais poderosas adotam posicionamentos estratégicos maisvigorosos, incluindo a implementação de operações conjuntas.

Mais do que apenas um acidente geográfico, o Oceano Índico é tambémuma arena onde a política mundial é delineada. Ele combina a centralidadedo Islã com a política energética global, e o crescimento da Índia e da Chinapara revelar um mundo multipolar e variado. O crescimento econômico daChina propiciará sua renda per capita atingir elevados patamares até o anode 2025. Por esta época, seu Produto Interno Bruto – PIB, será comparávelapenas ao estadunidense. Sua força militar está entre as maiores do mundo

8 KAPLAN, Robert D. Power Plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.16, 2009.

Deepak Kumar

Page 127: Revista da Escola de Guerra Naval

130

e seu arsenal nuclear é significativo9. Similarmente, a Índia paulatinamentesurge como uma importante potência nuclear e regional, que tem comovantagem seu posicionamento geográfico. A Índia adota um posicionamentodireto e sério e está, economica, estratégica e militarmente adotando umapostura para o domínio da região. Os surpreendentes crescimentoseconômicos da Índia e da China foram pontualmente notados, mas as suasigualmente surpreendentes ramificações militares decorrentes destedesenvolvimento não foram. As aspirações de poder da Índia e da China,assim como suas questões atinentes à segurança energética, forçaram estesdois países “a redirecionar seus focos da terra para os mares” (HOLMES;YOSHIHARA, 2008, tradução nossa). Em seu artigo, Robert Kaplan observaque “O Oceano Índico ainda é um ambiente onde os EUA terão para mantera paz e ajudar a resguardar os recursos globais – banindo terroristas, piratase contrabandistas; provendo assitência humanitária; gerenciando acompetição entre a Índia e a China” (KAPLAN, 2009, tradução nossa).

A Geometria Triangular

Aquele que domina os mares, brevementedominará também a terra.

Barbarossa10

Os Estados Unidos da América

Mesmo sendo um ator extra-regional, os EUA são uma formidável forçano Oceano Índico. Os EUA estão há décadas estabelecidos na região e, duranteeste período, suas instalações assim como suas forças se multiplicaram. “ Osestrategistas estadunidenses consideram o Oceano Índico como a área compotencial para produzir as maiores mudanças futuras no balanço do podermundial. Este é o motivo pelo qual a política externa dos EUA visa manter ahabilidade de influenciar eventos naquela área (ROGERS, 2009, traduçãonossa).

Os EUA dependem consideravelmente do petróleo do Golfo Pérsico.Aproximadamente 22% de suas necessidades, o percentual máximo oriundode qualquer outra região, são obtidos desta área (FIG. 3). Os militaresestadunidenses reconheceram há tempos a importância estratégica do petróleodo Golfo Pérsico. Com a crise do petróleo de 1973-1974, houve uma grande

9 BANNERJEE, D. Emerging International Order: conflict or cooperation. In:StrategicAnalysis, p.149, 1993.10 LEWIS, Charles Lee. Famous old-world sea fighters. Londres, 1969.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 128: Revista da Escola de Guerra Naval

131

determinação em estabelecer, em março de 1980, uma força-tarefa combinada,a Rapid Deployment Joint Task Force – RDJTF que foi expandida para oComando Central dos EUA em janeiro de 1983. É importante enfatizar que,enquanto os EUA possuem atualmente alternativas para o óleo do GolfoPérsico, sua estratégia e orientação são baseadas em uma duradoura crençade que a preservação do seu domínio militar na região é a chave para amanutenção do seu super-poder mundial11.

Figura 3: importação de petróleo pelos EUA, por região mundial

Fonte: <www.eia.doe.gov>

Presença na ROI

No Oceano Índico ocidental, os EUA mantêm um considerável númerode bases militares e navais vitais, estrategicamente localizadas em paísesbanhados pelo Golfo Pérsico e pelo Mar das Arábias, especialmente osEstados-membros do Conselho de Cooperação do Golfo – CCG – Baihren,Kuwait, Omã, Qatar, Arábia Saudita, e os Emirados Árabes Unidos – EAU. Alocalização geoestratégica da ilha de Diego Garcia, no Oceano Índico central,proporciona uma importante base de apoio para a US Navy12- USN, em suapresença avançada na ROI. Presentemente, uma ampla e abrangente estrutura

11 ROGERS, Paul. America in the Persian Gulf: a choice of futures. Março 2009. Disponívelem: < http://www.opendemocracy.net>. Acesso em: 25 abr. 2009.12 US Navy: em idioma inglês significa Marinha dos Estados Unidos da América.

Deepak Kumar

Page 129: Revista da Escola de Guerra Naval

132

de apoio naval, militar e de instalações de comunicações, está localizada emDiego Garcia. Entre os países banhados pelo Oceano Índico oriental, osmaiores aliados dos EUA são Singapura, Thailândia e Austrália. O Paquistão,que atualmente serve de passagem para os suprimentos logísticos para suastropas no Afeganistão, foi um leal aliado estadunidense durante a GuerraFria. Sua importância como “aliado-chave”, cresceu com as operações dosEUA em sua guerra contra o terror.

As Atividades da USN

Desde a década de 1980, ao menos um grupo de batalhaestadunidense, capitaneado por porta-aviões, invariavelmente seposiciona ao norte do Mar das Arábias e no oceano Índico. A força-tarefade rápido posicionamento estratégico iniciou suas operações em marçode 1980, subordinada ao Comando Central. A Quinta Frota,recomissionada em 1º de julho de 1995, foi a primeira esquadraestadunidense constituída em cinquenta anos. 13

Após agosto de 1990, a USN com todos os componentes da Força Tarefa,em associação com forças multi-nacionais, conduziram operações deinterceptação no Golfo Pérsico e no Mar das Arábias. Sua competência foiexpandida do controle do terrorismo para a proteção da navegação contra apirataria.

Desde o término da Guerra Fria e da desintegração da antiga URSS, adoutrina naval estadunidense passou por uma profunda transformação. Ofoco em uma ameaça global durante os anos da Guerra Fria foram alteradospara um foco em oportunidades e desafios regionais. Consequentemente, adoutrina embasada em conflitos oceânicos contra as forças navais e nuclearesda ex-URSS, está progressivamente mudando para a projeção de poder e noemprego de forças navais, capazes de influenciar em eventos nas regiõeslitorâneas do mundo14.

Conscientes de como a economia mundial depende do tráfego marítimo,integrantes da cúpula da USN pensam, além das batalhas e vitórias em guerras,nas responsabilidades com a fiscalização do comércio global. Eles tambémestão atentos com os possíveis efeitos que um ataque militar dos EUA ao Irã,teriam sobre o comércio marítimo e sobre o preço do petróleo, como na crise de1973. Com tais preocupações, a USN passou décadas auxiliando a segurança

13 ROY-CHAUDHURY, Rahul.US Naval policy in the Indian Ocean. In: Strategic Analysis.p.1315, 1998.14 ibid.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 130: Revista da Escola de Guerra Naval

133

de vitais pontos de estrangulamento no Oceano Índico.15

Observando a política da USN e seu efeito no Oceano Índico, o “ConceitoOperacional da Marinha”, de 1997 enfatiza a importância e a necessidadede uma presença avançada16. Esta foi a continuidade de políticas para oestabelecimento e operação da Quinta Frota para o Oceano Índico, assimcomo a localização de estruturas de apoio navais e militares nas regiõesoeste e leste do Oeano Índico e em Diego Garcia. Como continuação de suapolítica, em outubro de 2007, a USN deixou explícito de que procurava umapresença avançada e sustentável no Oceano Índico e no Pacífico ocidental, enão mais no Atlântico – uma importante e abrangente alteração na estratégiamarítima estadunidense. A estratégia maritima de 2007 dos EUA, a“Estratégia Cooperativa do Poder Naval para o Século XXI”, proclama que“possíveis combates podem ocorrer no Pacífico Ocidental e no Golfo Arábico/Oceano Índico”, enquanto o documento “Visão e Estratégia do Corpo deFuzileiros Navais dos EUA – 2025”, também conclui que o Oceano Índico esuas águas adjacentes serão os teatros centrais dos conflitos e competiçõesglobais neste século17. O desenvolvimento da doutrina naval dos EUA éincrementado pela espectativa de tensão na projeção de poder e de influênciana região. Esperam-se alterações na natureza e na extensão das forças navaise militares estadunidenses na ROI.

Conforme os desafios para os EUA no alto-mar se multiplicam, o níveldas forças da USN decresce. No fim da Guerra Fria, a USN possuía cerca de600 vasos de guerra; agora reduziu para 279. Este número deve aumentarpara 313 nos próximos anos com o comissionamento de novos navios-patrulhapara emprego em atividades litorâneas, mas pode também cair para abaixode 200 devido a custos excedentes em 34% do previsto e à morosidade dosserviços dos estaleiros18. Apesar disso, a USN permanece como a maior forçano Oceano Índico. A USN possui atualmente onze porta-aviões, permitindoa ela compor de dois a três grupos de porta-aviões de ataque, posicionados aqualquer tempo. A USN demonstrou sua habilidade em aumentarrepentinamente seis dos seus onze grupos de ataque em reação a uma situaçãode crise podendo, assim, controlar o campo de batalhas no Oceano Índico 19.

15 KAPLAN, Robert D. Power plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.25, 2009.16 ROY-CHAUDHURY, Rahul.US Naval policy in the Indian Ocean. In: Strategic Analysis,p.1315, 1998.17 KAPLAN, Robert D. Power plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.25, 2009.18 ibid.19 JOHNSTON, Corey S. Transnational Pipelines and Naval Expansion. p.62, 2008.

Deepak Kumar

Page 131: Revista da Escola de Guerra Naval

134

China

Os imperativos da política chinesa para o Oceano Índico são baseadosem sua ambição de consolidar sua posição no mundo. A principalpreocupação que move os interesses chineses no Oceano Índico é a segurançaenergética, um imperativo que é amplamente debatido na imprensa e emestudos acadêmicos. A dependência de recursos marinhos e fontes de energia,especialmente petróleo e gás natural, está moldando a política estratégicachinesa.

Apesar de ser a sexta maior produtora de petróleo no mundo, a Chinatornou-se importadora de óleo desde 1994. A crescente demanda por energiafoi uma das principais motivações para as iniciativas políticas chinesas noOceano Índico. Atualmente a China consome cerca de 7,85 milhões de barrisde petróleo por dia. Em 2015, o consumo de petróleo chinês pode atingir de10 a 12 milhões de barris de petróleo por dia. Em maio de 2008, a Chinatornou-se o segundo maior importador mundial de petróleo bruto,ultrapassando o Japão. A China atualmente importa mais de 53% do petróleoconsumido no país (aproximadamente 4,04 milhões de barris de petróleo pordia em 2007). Cerca de 46% das importações chinesas provêm do OrienteMédio, 32% da África e 5% da Ásia Oriental. A maioria do óleo importado étransportada em navios que transitam pelos estreitos de Málaca ou deLombok. Além disso, 85% de todas as importações chinesas são baseadas notransporte marítimo20.

As principais preocupações estratégicas da China são, inexoravelmente,relacionadas à economia. A maior força da China e, paradoxalmente, suamaior vulnerabilidade, é a economia, que, assim, é o foco da política e estratégiachinesas. A política econômica da China depende do sucesso de sua políticaenergética. Para sustentar seu crescimento econômico, a China deve confiarnas crescentes fontes externas de energia e matérias primas. As LCM sãomuito importantes porque a maioria do comércio internacional da Chinarealiza-se pelo mar. Enquanto a energia mantém as bases da economia, aproteção das LCM também constitui um importante elo da política energéticachinesa.

A China concentra seus interesses no transporte maritimo de petróleopelo Oceano Índico, baseada em três estratégias de segurança energética. Aprimeira estratégia centra-se na diversificação de rotas de importação deenergia, por meio do desenvolvimento de oleodutos transnacionais quecruzam o Paquistão e a Birmânia. A segunda estratégia considera o emprego

20 EUA. Military power of PRC. Departamento de Defesa dos EUA, 2009.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 132: Revista da Escola de Guerra Naval

135

da força militar do Exército e Marinha de Libertação Popular - EMLP, emuma operação de emprego de força militar capaz de proteger o sistema defornecimento de energia para a China pelas LCM no Oceano Índico21. Aterceira política refere-se à consolidação de sua presença ao longo das rotasde fornecimento energético, que a China alcunha de “cordão de pérolas.” 22

As Vulnerabilidades dos Navios-Tanque e Diversificação deOleodutos

A dependência chinesa no petróleo importado continuará crescendoconforme previsões, com pouca expectativa de alteração nos volumesoriundos da África e do Golfo Arábico (FIG 4). Conforme condicionanteslogísticos, a importação petrolífera com origem na África e no Golfo Arábicopara a RPC requer uma significante frota de navios-tanque, para sustentarum fornecimento constante. Atualmente, os navios-tanque proveem o únicomecanismo disponível para o transporte na referida rota de importação. Essagrande rede de navios-tanque, cuja maioria não possui bandeira chinesa,transita pelas LCM do Oceano Índico e pelo Estreito de Málaca antes deatracar em diversos portos da costa oriental chinesa.

Figura 4: produção e consumo de petróleo pela China - 1986 -2020

Fonte: JOHNSTON, Corey: Transnational Pipelines and Naval Expansion. 2008.

21 JOHNSTON Corey S. Transnational Pipelines and Naval Expansion. 2008. p. resumo.22 PEHRSON, Christopher J. String of pearls: meeting the challenge of China’s rising power.2006.

Deepak Kumar

Page 133: Revista da Escola de Guerra Naval

136

Atualmente, a China importa 2.1 milhões de barris de petróleo por diada África e do Golfo Arábico (FIG 5). Espera-se um crescimento nesse volumepara 4.8 milhões de barris de petróleo por dia em 2020 (FIG 6). Embasado nosatuais volumes de importação, a China necessita um total de 49 navios-tanque para o transporte de óleo. Para o ano de 2020, a projeção é de que anecessidade da frota aumente para mais que o dobro da atual, para um totalde 111 navios-tanque. 23

23 JOHNSTON Corey S. Transnational Pipelines and Naval Expansion. p.23, 2008.

Fonte: JOHNSTON, Corey. Transnational Pipelines and NavalExpansion. 2008.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Figura 5: China: importações petrolíferas oriundas da África e doGolfo Arábico - 2006

Figura 6: China: projeção de importações petrolíferas oriundas daÁfrica e do Golfo Arábico em 2020

Fonte: JOHNSTON, Corey. Transnational Pipelines and NavalExpansion. 2008.

Page 134: Revista da Escola de Guerra Naval

137

Em termos de vulnerabilidades perceptíveis, entretanto, essa grandelogística baseada em navios-tanque pode ser um pesadelo em termos desegurança para a RPC. Devido à sua dependência de importações através dooceano, qualquer bloqueio naval pode tornar a China vulnerável. Conformea maioria dos estudiosos, o mais arriscado cenário para as importaçõeschinesas de óleo ocorre com a interdição do Oceano Índico nas proximidadesdo estreito de Málaca, situação conhecida na China como “O Dilema deMálaca”.24

Assim, a China pretende diversificar seu mecanismo de importaçãopor intermédio de oleodutos terrestres que se originem no porto de Gwadar,no Paquistão, e no porto de Kyaukphyu, em Miamar. Há notícias de que ooleduto Miamar – China terá suas obras iniciadas em setembro de 2009 25.Ambos os oleodutos podem facilitar a redução da dependência das rotasmarítimas. Entretanto, conforme cálculos, cada oleoduto responderá por cercade 19% das atuais necessidades de importação, mas tal estimativa podedeclinar para apenas 8% em 2020, conforme cresça a demanda por óleo.Enquanto os oleodutos amenizam as vulnerabilidades chinesas quanto àsegurança energética, dificilmente pode haver um total provimento desegurança contra uma interdição marítima. 26

Com relação ao impacto dos oleodutos no tráfego de navios-tanque,com o atual volume importado, há uma redução de 49 para 39 navios. Oimpacto é menor em se considerando a demanda esperada para 2020. Casoambos os oleodutos estejam operacionais em 2020, a redução de meios seráde 111 para 101, o que representa que 91% dos navios-tanque oriundos daÁfrica e do Golfo Arábico podem permanecer em perigo, conforme as possíveisvulnerabilidades associadas ao transporte marítimo. 27

O Desenvolvimento Naval

Na seção anterior, discutimos que a segurança energética da Chinanão pode ser baseada apenas no transporte terrestre de petróleo. Umaalternativa segura para o provimento de petróleo para a China, é o empregodas forças militares do EMLP, em proteção das referidas rotas vitais denavegação. O Presidente da República Popular da China, Hu Jintao, chamouseu país de “potência naval” e avocou uma “poderosa marinha do povo”,

24 ibid. p 4.25DASGUPTA, Saibal. China to build oil and gas pipeline to Myanmar The Times of India. 16jun. 2009.26JOHNSTON Corey S. Transnational Pipelines and Naval Expansion. p.38, 2008.27Ibid. p.51.

Deepak Kumar

Page 135: Revista da Escola de Guerra Naval

138

para “sustentar nossos direitos e interesses marítimos”, durante um discursoem 2006. 28 Outros líderes chineses, oficiais da EMLP, escritores do governo eimprensa, arguíram que o poder econômico e político da China decorre doacesso e do uso do mar, e que uma marinha forte é necessária para garantirtal acesso.

Apesar de possuir 75 navios de combate e mais de 60 submarinos, aChina atualmente carece de um forte efetivo naval, para proteger suasimportantes rotas navais no Oceano Índico. Segundo relatório do Pentágonode 2007 para o Congresso dos EUA, “a China não consegue proteger seufornecimento externo de recursos energéticos, nem as rotas marítimas pelasquais tais recursos são transportados, incluindo os Estreitos de Málaca.”(JOHNSTON, 2008, p.6, tradução nossa).

Os planos da força naval chinesa consideram a construção de múltiplosporta-aviões e navios escolta até 2020. Analistas de dentro e de fora do projetodizem que a China, antes de 2015, não possuirá porta-aviões nem naviosescolta operativos e construídos no próprio país29. Certos estudos sugeremque a modernização naval chinesa provê o cumprimento de missões,incluindo a proteção das rotas marítimas a “oeste de Málaca”. 30

A busca chinesa por uma maior presença no Oceano Índico foievidenciada em 2005, durante as comemorações pelo 600º aniversário daprimeira experiência chinesa como uma potência marítima. Naquele ano, aChina iniciou uma grande celebração a Zheng He, o explorador e Almiranteda Dinastia Ming, que navegou os mares da China ao Golfo Pérsico e à regiãodo “Chifre da África”. Tal fato sinaliza que a China acredita que tais águaspermanecem como parte de sua zona de influência. 31 Mais tarde, em suacontínua busca por operações distantes, em dezembro de 2008, o EMLPescalou dois contra-torpedeiros e um navio de apoio logístico, para operaçõesde patrulha e de escolta contra a pirataria no Golfo de Aden. Além de visitasocasionais, esta operação representa o primeiro posicionamento estratégiconaval chinês além da sua região adjacente do Pacífico Ocidental, e um possívelobjetivo em águas azuis. 32

Entretanto, para tornar-se uma razoável força na ROI, a China devepossuir uma força naval capaz de defender suas LCM por meio de condução

28 EUA. Military power of PRC. Departamento de Defesa dos EUA, p.17, 2009.29 EUA. Military power of PRC. Departamento de Defesa dos EUA, p.40, 2009.30JOHNSTON,Corey S. Transnational pipelines and naval expansion. p.7, 2008.31 PEHRSON, Christopher J. String of pearls: meeting the challenge of China’s rising power.p.1, 2006.32 EUA. Military power of PRC. Departamento de Defesa dos EUA, p.46, 2009.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 136: Revista da Escola de Guerra Naval

139

de operações distantes de suas bases. Para um grupo-tarefa ser eficiente emoperações típicas de águas azuis em locais distantes, será necessária umacapacidade de apoio aeronaval, baseado em porta-aviões. Devido à falta detransparência que envolve a modernização naval da China, é difícildeterminar a natureza e as aspirações do programa de desenvolvimento deporta-aviões das suas Forças Armadas. Algumas fontes, entretanto, indicamque o ex-Varyag, um porta-aviões russo, pode tornar-se operacional até ofinal da presente década, como uma possível plataforma de treinamento.Subsequentemente o porta-aviões pode tornar-se parte da esquadra chinesaentre 2015 e 202033. Em poucos anos a China pode adquirir a capacidade dedisponibilizar forças na ROI. A Estratégia Marítima Militar da Índia por suavez ressalta que, “A Marinha da China está no caminho de tornar-se umaforça de águas azuis. Ela possui um ambicioso programa de modernização[...] com os quais a força naval sina pretende estabelecer uma posição vantajosana ROI” (INDIA, 2007, p. 41, tradução nossa).

Segundo Robert Kaplan, há a previsão de que, em algum tempo napróxima década “A Marinha da China possuirá mais vasos de combate doque a Marinha dos EUA [...] O objetivo chinês é a “negação do uso do mar,”ou dissuadindo o grupo de ataque de navios-aeródromos estadunidenses dese aproximar do continente asiático” (KAPLAN, 2009, p. 26, tradução nossa).

A Estratégia do “Colar de Pérolas”

A China sabe que as estratégias acima abordadas necessitam de tempopara surtirem efeitos. Desta forma, ela iniciou uma estratégia concorrente noestabelecimento de bases de segurança ao longo de suas rotas marítimas desuprimento (FIG. 7). O crescente interesse e influência chinesa, desde o Marda China Meridional até o Oceano Índico e o Golfo da Arábia, pode serdescrito como semelhante a um “Colar de Pérolas”. Cada “pérola” no “cordãode pérolas” é um nexo da influência geopolítica chinesa ou da sua presençamilitar. As “pérolas” importantes são: - Ilhas Hainã, com instalações militaresrecentemente aprimoradas; Ilhas Woody, localizadas no arquipélago Paracela cerca de 300 milhas náuticas a leste do Vietnã; porto de Chittagong, emBangladesh; o porto de águas profundas em Sittwe, Miamar; e o porto deGwadar no Paquistão, que é estrategicamente localizado nas proximidadesdo Golfo Pérsico34. Enquanto a possibilidade de uma guerra étnica assombrao almirantado estadunidense ao considerar o estabelecimento de uma base

33JOHNSTON,Corey S. Transnational pipelines and naval expansion. p.60, 2008.34 PEHRSON, Christopher J. String of pearls: meeting the challenge of China’s rising power.p.3, 2006.

Deepak Kumar

Page 137: Revista da Escola de Guerra Naval

140

no Sri Lanka, que é estrategicamente localizada na confluência do Mar daArábia com a Baía de Bengala, os chineses estão construindo o porto deHambantota, no Sri Lanka, que estrategicamente se posiciona próximo aotráfego marítimo no Oceano Índico central. Ele deve se tornar uma importante“pérola” para o controle das LCM. 35

Figura 7 : “Colar de Pérolas” da China

35 KAPLAN, Robert D. Power plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.26, 2009.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Fonte: <http://www.marinebuzz.com/marinebuzzuploads/WeekendViewUpdatedChineseStringof Pearls_AC3/Chinese_string_of_pearls.jpg>

Projetos de construção de portos e campos de pouso, relaçõesdiplomáticas e a modernização da força naval, formam a essência do “Colarde Pérolas” chinês. A segurança das LCM de matérias primas e energia,suporta a política energética da China e é a principal motivação por trás do“Colar de Pérolas”. Então, percebe-se que essa política está relacionada coma principal Estratégia Nacional da China.

A China também possui uma ambiciosa proposta, orçada em vintebilhões de dólares, para a construção de um canal através do istmo tailandêsde Kra, o que permitiria a seus navios um caminho alternativo ao Estreito deMálaca, e ligaria o Oceano Índico à costa pacífica da China – um projeto nonível de importância do Canal do Panamá, e que futuramente pode fazer comque a balança de poder na Ásia penda a favor da China, dando à sua Marinha

Page 138: Revista da Escola de Guerra Naval

141

e à sua forta mercante, um acesso fácil para um vasto e contínuo oceano,expandindo as ligações marítimas do leste da África ao Japão e à penínsulacoreana. 36

A Índia

A Índia ocupa uma posição central na região do Oceano Índico. Apenínsula indiana (a região ao sul de Deccan) adentra 1.240 milhas náuticasno Oceano Índico. Cerca de 50% da bacia do Oceano Índico situa-se dentrode um raio de até mil milhas náuticas da Índia, uma realidade geográfica quetraz implicações estratégicas. 37

Escrevendo na década de 1940, K. M. Pannikar arguiu que, “enquantoque para outros países o Oceano Índico é apenas uma das importantesáreas oceânicas, para a Índia ele é um mar vital. Suas linhas desobrevivência são concentradas naquela área, sua liberdade é dependenteda liberdade da superfície daquelas águas.”(BERLIN, 2006, p.59, traduçãonossa).

A Estratégia Marítima Militar da Índia lembra ainda que “ogovernador português Dom Afonso de Albuquerque, no início do séculoXVI, afirmou que o controle dos principais pontos de estrangulamento [...]e ao Estreito de Málaca, era essencial para prevenir um poder hostil deadentrar o Oceano Índico.” (INDIA, 2007, p. 59, tradução nossa).

Pela perspectiva indiana, as considerações chave incluem aacessabilidade ao Oceano Índico de esquadras dos mais poderosos Estadosdo mundo; a grande população islâmica que habita os litorais e o interiorde terras banhadas por este oceano; a riqueza petrolífera do Golfo Pérsico;a proliferação de poderes militares convencionais e armas nucleares entreos países da região; e a importância dos estreitos para a segurança marítimada Índia. 38

A Índia – próxima de tornar-se a quarta maior consumidora mundialde energia, atrás somente dos EUA, China e Japão – é dependente do petróleopara cerca de 33% de suas necessidades energéticas, 65% das quais sãoimportadas (FIG. 8). E 90% das suas importações petrolíferas podem embreve vir do Golfo Pérsico (FIG. 9, Anexo E). A Índia necessita sustentaruma população que deverá ser, em 2030, maior do que a de qualquer país

36 KAPLAN, Robert D. Power plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.22, 2009.37 SATYENDRA. Indian Ocean Region- A Story told with Pictures.38 BERLIN, Donald L. India in the Indian Ocean. In: revista da Naval War College, p.60,2006.

Deepak Kumar

Page 139: Revista da Escola de Guerra Naval

142

do mundo. Além disso, a Índia possui uma grande rede de importação decarvão oriunda de Moçambique, África do Sul, Indonésia e Austrália. Nofuturo, navios indianos estarão também carregando cerscentes quantidadesde gás natural liquefeito – GNL, cruzando os mares da África meridional,Qatar, Malásia e Indonésia. 39

Aproximadamente quarenta navios mercantes navegam pelas “águasde interesse” da Índia todos os dias. 40 Para proteger este comércio, a Índiadeve possuir uma capacidade naval considerável. Em 2004, a India emitiusua primeira análise pública do seu entorno oceânico, e como arcar com osdesafios na sua área de interesse. A Doutrina Marítima da Índia descrevesua estratégia marítima amplamente em função do desenvolvimentoeconômico e da declarada prosperidade que, “desde que o comércio seja vitalpara a Índia, manter nossas LCM abertas em tempos de paz, tensão ouhostilidades, é o principal interesse marítimo nacional” (HOLMES;YOSHIHARA, 2008, p. 44, tradução nossa).

Figura 8 : importações de petróleo da Índia

Fonte: <www.eia.doe.gov.>

39 KAPLAN, Robert D. Power Plays in the Indian Ocean. In: Foreign Affairs, p.20, 2009.40 HOLMES;YOSHIHARA. China and United States in Indian Ocean. In: revista da NavalWar College, p.44, 2008.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 140: Revista da Escola de Guerra Naval

143

Desde o fim da década de 1990, a Índia vem tentando estabelecer umpredomínio marítimo intenso. Isto envolve o direcionamento em setransformar em uma formidável marinha de “águas azuis”. Este fato se refleteno slogan de 2003 da Marinha da Índia, de mudar de direção rumo às águasazuis. O atual Comandante da Marinha - CNS, Almirante Sureesh Mehta, aoassumir seu cargo declarou, em uma conceitualização amplamentereconhecida do que sejam “águas azuis”, que, “nós queremos nossa Marinhaoperando em águas distantes de nossas bases. Nossos navios devem serposicionados em lugares distantes. Caso nossos navios estejam presentesem locais distantes de nossas bases, estaremos fazendo algo para aumentaro prestígio de nossa nação” (MEHTA, 2008, tradução nossa).

A Estratégia Marítima Militar da Índia define a principal área em foco,que se estende do Mar da Arábia e da Baía de Bengala, aos pontos deestrangulamento que ligam o Oceano Índico ao Golfo Pérsico, que é a origemda maioria dos suprimentos de petróleo para a Índia, e a principal LCM quecruza a ROI. 41

Conforme o Almirante Metha, CNS, afirma, “A Marinha da Índia deveaumentar suas capacidades na região. A direção parece amplamente clara –uma Marinha compacta, mas capaz.” (MEHTA, 2008, tradução nossa). Com

Fonte: <www.eia.doe.gov>

41INDIA. Estratégia Militar Marítima. Ministério da Defesa. Quartel-General Integrado,p.62, 2007.

Deepak Kumar

Figura 9: importação de petróleo pela Índia, dividido por fontes.

Page 141: Revista da Escola de Guerra Naval

144

seus 155 navios de guerra, que inclui um porta-aviões e dezesseis submarinos,a Marinha da Índia é uma formidável força na região do Oceano Índico. Elainiciou com um rápido acréscimo na força, e espera acrescentar às suasesquadras, quatro submarinos nucleares e dois porta-aviões até 2015. 42

A Luta Por Espaço Estratégico

Em uma perspectiva histórica, a relação entre o poder naval e o podereconômico é óbvia. O poder naval promove o poder econômico, e a procurapor poder econômico é, reciprocamente, um motivador para odesenvolvimento do poder naval.

Na seção anterior mostramos a importância que o Oceano Índico tempara a geopolítica, assim como para a economia global. Qualquer turbulêncianesta região terá ramificações mundo afora. EUA e China têm consideráveisapostas na região, para a sustentação de seus respectivos poderes nacionais.A Índia permanece como um poder residente na região, com a geografia a seulado. Os três poderes, entretanto, têm áreas de interesse sobrepostas. Aspolíticas marítimas dos EUA e da China têm uma interseção com ênfase noOceano Índico, que geograficamente é a área operacional da Marinha daÍndia. Estas zonas podem conduzir para o conflito e cooperação.

Conflito

A Globalização trouxe a crença de que os conflitos interestatais seriamimprováveis nos tempos atuais, em razão, principalmente, dainterdependência econômica. Entretanto, à luz do atual ambiente geopolíticoe das perspectivas históricas, esta suposição permanece improvável. Em seulivro “Globalização e Conflito Armado”, os autores Gerald Schneider,Katherine Barbieri e Nils Petter Gleditsch, destacam que crescentes laçoscomerciais entre Estados pacificam alguns, mas não necessariamente todosos relacionamentos políticos. Assim, o conflito permanece uma possibilidade.

Há muitas citações para indicar que a ROI pode ser o palco para umpossível conflito futuro. James R Homes diz que “hoje, os mares da Ásiatestemunham uma anomalia histórica intrigante – o crescimento simultâneode duas potências marítimas autóctones, em oposição ao domínio global dosEUA” (Holmes; Yoshihara, 2008, p. 41, tradução nossa).

A Doutrina Marítima dos EUA declara que:

42 KAPLAN, Robert D: Power plays in the Indian Ocean: In: Foreign Affairs, p.21, 2009.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 142: Revista da Escola de Guerra Naval

145

Há muitos desafios para nossa habilidade noexercício do controle do mar [...]. Nós nãopermitiremos condições sob as quais nossas forçasnavais sejam impedidas de liberdade de manobra eliberdade de acesso, nem permitiremos a um poderadversário interromper a rede de suprimento global,pela tentativa de bloquear linhas marítimas vitais decomunicações e comércio (EUA, 2007, p. 13, traduçãonossa).

A rápida ascensão da China como um poder político e econômicoregional, com crescente influência global, tem significantes implicações paraas regiões da Ásia, do Oceano Pacífico e para o mundo. A limitadatransparência nos assuntos militares e de segurança chineses coloca em riscoa estabilidade, criando uma atmosfera de incertezas e elevando o potencialpara equivocados entendimentos e estimativas. 43

A Defesa Nacional da China, em 2008, apresentou a visão de que “apaz e o desenvolvimento mundiais estão confrontados com múltiplasdificuldades e desafios. A luta por recursos estratégicos, pontos estratégicose domínio estratégico, se intensificou.” 44

O Relatório do Congresso dos EUA em 2005, sobre a Comissão EUA-China, sustenta que “globalmente, a China vem aumentando com empenhoas atividades na área da segurança energética, em um direcionamento quetraz um prognóstico de competição por recursos energéticos com os EUA.Este cenário produz uma possibilidade de conflito entre as duas nações”(EUA, 2009, p.1, tradução nossa).

Em seu depoimento à Comissão de Revisão Econômica e de SegurançaEUA-China, o Professor James Holmes apresenta a teoria da “geometriatriangular”, que pode ocorrer na região do Oceano Índico:

Em todas as possibilidades, com uma crescente mentalidade de podernaval, a China não irá passivamente abrigar-se nas águas costeiras, nem irálançar-se à competição com os EUA no Oceano Pacífico. Preferencialmente, aChina direcionará suas energias em direção às regiões sul e sudeste da Ásia,onde as linhas de fornecimento de petróleo, gás natural e outros comodities,extremamente necessários ao desenvolvimento econômico da China, devempassar. Lá, a China encontrará uma mentalidade de poder naval semelhanteà da Índia, que possui vantagens geoestratégicas definidas. (HOLMES, 2007,p.1, tradução nossa).

43 EUA. Military power of PRC. Departamento de Defesa, p.I, 2009.44 ibid.p 3.

Deepak Kumar

Page 143: Revista da Escola de Guerra Naval

146

Os chineses devotaram especial atenção ao dilemma de segurançadecorrente do domínio, estabelecido pela USN, do alto-mar, estendendo-sedo Golfo Pérsico ao Oceano Índico e ao Mar da China Meridional. Eles temem,compreensivelmente, que a presença naval estadunidense possa manter aeconomia da China, que é dependente do mar, refém em tempos deacirramento de crises. 45

O Oceano Índico é claramente uma expansão maritima na qual os EUApodem, hipoteticamente, interromper os fornecimento de óleo para a China.Um editorial no jornal chinês Ming Pao, aponta as recentes aproximações dosEUA em direção à Índia, como uma parte da estratégia diplomática estimuladapela estimativa de que “qualquer país que controlar o Oceano Índico, controlao leste da Ásia” (EUA, 2009, p.1, tradução nossa). Posteriormente, algunsestrategistas chineses sustentam que enquanto a China expande seus interessesno Oceano índico, utilizando uma vigorosa diplomacia soft-power e trazendopreocupações marítimas com o poder material, ela encontrará uma outrapotência emergente—Índia—que nutre suas próprias ambições náuticas. Assimcomo a China, a Índia indica os seus reais interesses no Oceano Indico, epossui uma venerável tradição marinheira, que lhe garante uma grande reservade soft Power (EUA, 2009, p.1).

Entretanto, isto não implica automaticamente que a Índia vá a tornar-se uma natural aliada estratégica dos EUA. “Há uma pequena perspectivade que a Índia possa se aliar aos EUA para conter as ambições chinesas noOceano Indico, assim como o Japão aliou-se aos EUA para conter as ambiçõessoviéticas. A conduta independente indiana [...] predispõe Nova Deli contratal arranjo.” (Holmes; Yoshihara, 2008, p.56, tradução nossa).

A grande presença estadunidense no Oceano Índico na costa ocidentalda Índia, no Mar da Arábia e no Golfo Pérsico, não é um vínculo da Índia. ADoutrina Marítima da Índia observa que:

Os inesperados eventos decorrentes da guerrano Afeganistão, trouxeram as ameaças emanadas emnossa costa oeste, para o foco principal. As crescentespresenças dos EUA e de potências ocidentais e osdeslocamentos de forças navais, a luta pelo controledo petróleo, do litoral e do interior [...] são fatoresque parecem ter um grande impacto em todo oambiente de segurança na ROI” (Holmes; Yoshihara,2008, p.56, tradução nossa).

45 ibid.p2.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 144: Revista da Escola de Guerra Naval

147

O “colar de pérolas” da China também é visto por muitos estrategistasindianos, como uma “Estratégia Envoltória” da Índia pela China46. Emsituações de conflito, estas bases podem ser utilizadas pela China para exercerpressão militar sobre a Índia. Similarmente, a China permanece cautelosacom a grande cadeia de ilhas indianas próximas ao Estreito de Málaca. Elasempre compara a península indiana a um enorme porta-aviõespermanentemente fundeado, apontando o dilema chinês quanto aos navios-aeródromos.

Cooperação

Enquanto não puder ser evitado e permanecer a possibilidade deocorrência de um conflito, os três lados expressam uma posição contrária aoconfronto.

O CNS, na Estratégia Militar Marítima indiana, sustenta que:Felizmente, os conflitos armados são

ocorrências raras, e para assegurar que continuem aser raros, durante os longos anos de paz, a Marinha daÍndia necessita projetar poder; catalizar parcerias;angariar confiança e criar interoperabilidade; [...]Nossa estratégia reconhece que as LCM que cruzamnossa região são muito importantes para nossocrescimento econômico e para a comunidade global[...]. Esta tarefa irá requerer um aumento decapacidades, cooperação e interoperabilidade comMarinhas desta e de outras regiões” (INDIA, 2007, p.IV, tradução nossa).

Posteriormente, a Estratégia Marítima Militar indiana indica que, emrazão da grande dependência do suprimento de óleo do Oriente Médio,marinhas extra-regionais percebem a importância da localização marítimada Índia e do papel que a Marinha da Índia pode exercer para garantir a paze a estabilidade na região. 47

A Doutrina Marítima dos EUA estabelece que:As forças navais estadunidenses serão

empregadas para construir confiança entre nações pormeio de esforços coletivos de segurança, focados emameaças comuns e interesses mútuos em um mundo

46 KANWAL, G: China-India strategic relationship: set for an uneven course. p.1, 2008.47INDIA. Maritime Military Strategy , Ministério da Defesa – Marinha – Quartel-GeneralIntegrado, p 41, 2007.

Deepak Kumar

Page 145: Revista da Escola de Guerra Naval

148

aberto e multi-polarizado. Para tal, será necessárioum nível de integração sem precedentes entre nossasforças navais e aumento de cooperação com os outroselementos do poder nacional, assim como ascapacidades de nossos parceiros internacionais. Opoder naval será uma força unificadora para aconstrução de um futuro melhor (EUA, 2007, p.2,tradução nossa).

O antigo embaixador Chinês na Índia, Cheng Ruisheng, argui que osautores das políticas na China e na Índia vêm abandonando suasultrapassadas perspectivas de “soma-zero” para a segurança. Ele demonstraconfiança de que o desenvolvimento dos laços entre EUA e Índia e as relaçõessino-indianas não são mutualmente exclusivas e, assim, tem a esperança deum uma estratégica trangular balanceada e estável para a região. 48

Estas diretrizes políticas significam que, se corretamente sustentadas,haverá uma arena de cooperação entre as três potências.

Direcionamento Futuro

Em virtude de que a grande rivalidade de poder não necessita se exaurire que os três lados necessitam de cada um para um benéfico relacionamentomútuo, há uma perspectiva de mútua cooperação no ambiente marítimo.

Em seu depoimento à Comissão de Revisão Econômica e de SegurançaEUA-China, o Professor James Homes afirmou que caso a China reúna seuhard power—incorporado nas forças expedicionárias das Forças Armadasda China, estacionadas ao longo do “colar de pérolas” – na região do OceanoÍndico, ela irá encontrar uma Índia acostumada à hegemonia em suavizinhança, e determinada a sustentar sua predominância contra todosaqueles que chegarem. Apesar das grandes dificuldades, a Marinha da Índiacontinuará a gozar de superioridade local, acima de seu competidor chinês,ainda por algum tempo. Em termos de hard-power, a China não será capaz,por si mesma, ainda por algum tempo de ser a potência líder no Mar daChina Meridional e no Oceano Índico. Para controlar as LCM que cruzam osul e o sudeste da Ásia, o EMLP necessita acrescentar certas plataformas emsua capacidade operacional. Essa é precisamente a mais prolongada carênciachinesa de material naval ao longo dos tempos, o que pode permitir aos EUAe à Índia, proporem uma parceria em assuntos marítimos com a China. Ageopolítica da citada região apresenta a existência de uma cooperação

48 HOLMES;YOSHIHARA. China and United States in Indian Ocean. In: revista da NavalWar College, p.54, 2008.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 146: Revista da Escola de Guerra Naval

149

marítima em várias frentes. A cooperação em áreas como o controle dapirataria, auxílios em disastres naturais, controle do ambiente marítimo,contraterrorismo, ou mesmo contra-proliferação, podem deixar a base parauma duradoura parceria em assuntos marítimos na Ásia, aliviando aspreocupações sobre a segurança no mar, o que pode estimular a China emuma direção mais ameaçadora.

Similarmente, como apresentado em um estudo, caso diminua nospróximos anos a dependência estadunidense de petróleo do Golfo Pérsico, adisputa pelo poder na área pode ser reduzida. 49

A Índia, com sua localização geográfica, com robusto poder marítimo esensata política de não confrontação, como descrito na Doutrina marítima ena Estratégia Marítima da Índia, pode exercer o papel de um mediador nobalanço total do poder e na paz da área. A importância geoestratégica daÍndia, como um poder estabilizador no Oceano Índico, vem crescendo e sendomundialmente aceito. Assim, tanto para Holmes e Yoshihara, professores daEscola de Guerra Naval dos EUA, “é nosso pensamento de que a estabilidadeno Oceano Índico dependerá enormemente de como a Índia gerenciará seucrescimento marítimo” (Holmes; Yoshihara, 2008, p.42, tradução nossa). AÍndia necessitará agregar todos os litorais, assim como os poderes externos,no processo de “Engajamento Construtivo”. A coexistência, ao invés doconflito, deve ser o objetivo deste “Engajamento Construtivo”.

Conclusão

O Oceano Índico é, mundialmente, o mais rico em reservas petrolíferase possui substanciais quantidades de gás e recursos naturais. Ele possuiimportância estratégica devido à sua relevância com respeito à segurançaenergética do mundo. Em termos de mercado, o Oceano Índico responde pelametade do tráfego mundial de containers. Cerca de 70 % do transporte mundialde derivados de petróleo cruzam suas águas. Qualquer interrupção nas rotasmarítimas na ROI poderá ter seus efeitos sentidos ao redor de todo o mundo.Isto foi amplamente observado durante a Crise do Petróleo ocorrida entre1973 e 1974.

O contorno estratégico na ROI é extremamente complexo em razão dapresença de uma grande população islâmica, terrorismo e pirataria. A regiãotambém presencia um crescente interesse por parte dos EUA, China e Índia,formando um triângulo estratégico em uma competição entre cada um destesatores.

49 ROGERS, Paul. America in the Persian Gulf: a choice of futures.

Deepak Kumar

Page 147: Revista da Escola de Guerra Naval

150

Por décadas os EUA mantiveram seu foco na ROI, de modo a exercersua influência como a maior potência mundial. Apesar dos EUA possuíremmuitas fontes de suprimento para suas necessidades de petróleo, o GolfoPérsico continua a ser a principal fonte de obtenção de sua demandaenergética. Aprendida a lição decorrente da Crise do Petróleo (1973-1974), osEUA consolidaram a sua presença na região. A política marítimaestadunidense está em consonância com seus objetivos na ROI. A EstratégiaMarítima dos EUA – Uma Estratégia Cooperativa para o Poder Naval noSéculo XXI – indica a continuação do seu posicionamento na região.Posteriormente, o documento “Visão e Estratégia do Corpo de FuzileirosNavais dos EUA”, também posiciona a ROI como principal teatro dacompetição e de conflito global neste século. Parece que, ao mesmo tempo emque a USN permanece sendo uma das mais poderosas marinhas do mundo,sua força está diminuindo.

A crescente atenção da China para com a região pode ser observada emsuas declarações políticas, bem como em suas atividades. Para tornar-se umagrande potência, a China deve fortalecer sua economia, que é a sua maior forçae sua maior vulnerabilidade. Para manter o crescimento de sua economia, devegarantir a segurança de suas LCM, pois a maioria de suas necessidades deóleo é suprida pelo tráfego de navios-tanque que cruza a ROI. Em razão disso,a China adotou a estratégia de transferência de óleo por terra, por meio dasbases de força e segurança elaboradas pelo EMLP, conhecidas como “Cordãode Pérolas”. Apesar de atualmente o EMLP não possuir capacidade paraproteger as LCM, elas podem exceder as forças estadunidenses entre os anosde 2015 e 2020, ocasião em que deverão iniciar, também, operações com porta-aviões. Acrescentamos que a China também considera a construção de umcanal pelo ístmo de Kra, o que permitirá a este país exercer poder desde aÁfrica oriental, não transitando pelo Estreito de Málaca.

Para a Índia, sua localização geográfica traz implicações estratégicas.Ela tem acesso às rotas marítimas cruzando a área e tem a capacidade deintenferir no fluxo do tráfego. Desde a última década, os esforços da Índia emreforçar sua força marítima adquiriram velocidade com o objetivo de acrescentarmais porta-aviões e submarinos nucleares durante a próxima década.

A análise da ROI, assim, demonstra um crescimento na intersecção deinteresses entre os três poderes, o que leva ao conflito e cooperação. Os trêslados demonstram a possibilidade de tal conflito. Estrategistas nos EUAestão preocupados com o crescimento da China, que por sua vez permanencepreocupada com o domínio estadunidense na área, que pode conduzir paraa interrupção do seu fornecimento de energia em caso de conflito. A Chinapossui preocupações semelhantes sobre o crescimento da Índia. O “Colar de

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 148: Revista da Escola de Guerra Naval

151

Pérolas” da China é visto pela Índia como uma “Estratégia Envoltória”,entretanto, devido à histórica postura independente indiana de não-alinhamento, a Índia pode não se tornar um natural aliado dos EUA. Ocenário de conflito pode se agravar entre 2015 e 2020, quando pode ocorrerum declínio das forças marítimas dos EUA, bem como o crescimento dospoderes navais indianos e chineses na ROI.

Entretanto, os três lados postularam cooperação. Ambas as doutrinasmarítimas, indiana e estadunidense, abordam a necessidade de manterrelações no mar com a cooperação de todas as partes interessadas.Similarmente, a doutrina chinesa também indica a previsão de umrelacionamento estratégico balanceado e estável com os EUA e a Índia naROI. Dado que a cooperação manteria a política dos três atores, há muitasáreas em que essa cooperação poderia ocorrer. Dentre tais áreas, destacamoscomo principal o combate ao terrorismo e pirataria, que afeta o domíniomarítimo na região. A cooperação nestes assuntos pode formar a base paraum relacionamento duradouro.

Uma vez que a Índia possui uma vantagem geográfica e populacional,robusto poder maritimo e políticas de não-confrontação com raízes históricas,ela surge como um fator estabilizador na região, aceito internacionalmente.Estudiosos ocidentais ressaltam que a segurança maritima na ROI podedepender de “como a Índia gerencia sua ascensão marítima”. A Índia podeser facilitadora de uma “Coexistência Pacificadora” entre todas as partesinteressadas, permitindo o equilíbrio na estratégia triangular na região doOceano Índico.

Referências

BANNERJEE, D. Emerging international order: conflict or cooperation. Strategicanalysis. Nova Deli, 1993.

BERLIN. Donald, L. India in the Indian Ocean. Naval War College Review. Newport:Naval War College, 2006.

______. Donald, L. Indian Ocean Redux: arms, bases and reemergence of strategicrivalry. Journal of Indian Ocean Studies. Nova Deli, 2002.

BUSH, George, H.W. Speech toward a new world order. US Congress. WashingtonD.C., 1990.

DASGUPTA, Saibal. China to build oil and gas pipeline to Myanmar. The Timesof India, Mumbai, 16 jun. 2009. Disponível em: <http//www.timesofindia.com>.Acesso em 17 jun. 2009.

Deepak Kumar

Page 149: Revista da Escola de Guerra Naval

152

DEV, Atul. The Indian Ocean – current security environment. Ilhas Maurício, 2007.In: Mauritius Times, 25 maio 2007. Disponível em: <http://www.tamilnation.org/intframe/ indian_ocean/070525atul_dev.htm>. Acesso em 5 jul. 2009.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Annual report to Congress: military powerof the People’s Republic of China – 2009. Disponível em: <http://www.defenselink. mil/pubs/pdfs/China_ Military_ Power_Report_2009.pdf >.Acesso em: 5 jul. 2009.

______. Cooperative Strategy for 21st Century Sea Power. Washington:Departamento de Defesa dos EUA, 2007. Disponível em <http://www.au.af.mil/au/awc/awcgate/maritime/ maritime_strat_oct07.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2009.

GHOSH, PK. Maritime security challenges in South Asia and the Indian Ocean:response strategies. In: a paper prepared for the center for strategic and internationalstudies – american-pacific sealanes security institute conference on maritimesecurity in Asia. Honolulu, 2004. Disponível em: <http://www.tamilnation.org/intframe/indian_ocean/ pk_gosh.htm>. Acesso em 5 jul. 2009.

HOLMES, James. Testimony before the U.S.-China Economic and Security ReviewCommission - China’s Energy Consumption and Opportunities for U.S.-ChinaCooperation to Address the Effects of China’s Energy Use. Newport : Naval WarCollege, 2007. Disponível em : <http://www.uscc.gov/hearings/2007hearings/transcripts/june_14_15/holmes_prepared_ remarks.pdf>. Acesso em: 5 jul. 2009.

______; YOSHIHARA, Toshi. China and the United States in the Indian Ocean: anemerging strategic triangle. Naval War College Review, Newport: Naval WarCollege, 2008.

INDIA. Indian Maritime Military Strategy: freedom to use the Seas. Nova Deli:Ministério da Defesa – Marinha – Quartel-General Integrado, 2007.

______. Indian Maritime Doctrine. Nova Deli: Ministério da Defesa – Marinha –Quartel-General Integrado, 2009.

INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE - ICC. International MaritimeBureau Piracy Reporting Centre. Londres, 2009. Disponível em: <http://www.icc-ccs.org/index.php? option=com_fabrik&view=table&tableid =70&calculations=0&Itemid=82> Acesso em: 7 jul. 2009.

JAMWAL, S. S. Sea Power in the Indian Ocean and India’s Role in the Region.Combat Journal, Nova Deli, 2002.

JOHNSTON, Corey S. Transnational pipelines and naval expansion: examiningChina’s oil insecurities in the Indian Ocean. Washington, 2008.

KANWAL, G. China-India strategic relationship: set for an uneven course.Disponível em: <http://opinionasia.org/ChinaIndiaStrategicRelationship>.Acesso em 8 jul. 2009.

KAPILA, Subhash. Asia’s challenging strategic calculus. Nova Deli, 2009. Disponívelem : <http:// www.southasiaanalysis.org/%5Cpapers28%5Cpaper 2746.html>.Acesso em:15 jul. 2009.

KAPLAN, Robert D. Power plays in the Indian Ocean. Foreign Affairs. Washington,2009.

A Competição no Oceano Índico à Luz do Emergente Triângulo Estratégico

Page 150: Revista da Escola de Guerra Naval

153

LEWIS, Charles Lee. Famous old-world sea fighters. Londres, 1969. Disponível em<http://books.google.co.in/books?id=et9hAmd3PBYC&source =gbs_navlinks_s>.Acesso em 5 jul. 2009.

MEHTA, Mandavi e SCHAFFER, Teresita C. India And The United States: securityinterests. The South Asia Monitor, Nova Deli, 2001. Disponível em: <http://csis.org/files/media/csis/pubs/sam34.pdf>. Acesso em: 20 maio 2009.

MOOSARI, Syed Sadrodin. Indian Ocean in emerging world order: strategicanalysis. Nova Iorque: Universidade de Columbia, 1994.

NADESAN, Satyendra. Indian Ocean Region: a story told with pictures. Disponívelem: <http://www.tamilnation.org/intframe/indian_ocean/index.htm>. Acessoem 7 jul. 2009.

PANDA, Snehalata. Sino indian relations in a new perspective: strategic analysis.Nova Iorque: Universidade de Columbia, 2003.

PEHRSON, Christopher J. String of pearls: meeting the challenge of China’s risingpower across the asian littoral. Washington: US Department of Defence, 2006.Disponível em: <http://www.tamilnation.org/intframe/indian_ocean/string_of_pearls.pdf>. Acesso em15 maio 2009.

PORTER, Ian W. The Indian Ocean rim. African Security Review, v. 6, n. 6, 1997Disponível em: <http://www.iss.co.za/Pubs/ASR/6.6/Porter.html>. Acesso em:5 jul. 2009.

ROGERS, Paul. America in the Persian Gulf: a choice of futures. Nova Iorque, 2009.Disponível em: <http://www.opendemocracy.net/article/america-in-the-persian-gulf-a-choice-of-futures>. Acesso em: 25 abr. 2009.

ROY- CHAUDHURY, Rahul. US Naval policy in the Indian Ocean: strategicanalysis. Nova Deli, 1998.

SAKHUJA, Vijay. From Malacca to Hormuz: chinese energy sea lane security.Nova Deli, 2003. Disponível em: <http://wwww.peaceforum.org. tw/onweb.jsp?webno=3333333101&webitem_no=475>. Acesso em: 30 abr. 2009.

________. Indian Ocean and the safety of sea lines of communication. Strategicanalysis. Nova Deli, 2001.

SCOTT, David. India’s Drive For A ‘Blue Water’ Navy. Journal of Military andStrategic Studies. Nova Deli, 2007.

SHETH, V.S. Indian Ocean in the globalizing world. Turkish Journal ofInternational Relations, v.1, n.4, Ancara, 2002. Disponível em : <http://www.alternativesjournal .net/volume1/number4/sheth.htm>. Acesso em: 15 maio 2009.

Deepak Kumar

Page 151: Revista da Escola de Guerra Naval

155Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, no 14 (2009), p. 155-172

Integração das Indústrias de Defesana América Do Sul

Fernando de Sousa Vilela*

* Capitão-de-Corveta, Oficial-Aluno do Curso de Estado-Maior para OficiaisSuperiores da EGN - Turma 2008.

Resumo

A integração das indústrias de defesa sul-americanas é um processocomplexo, pois deve atender aos interesses do Estado e dasempresas. Discute-se os benefícios que essa integração podeproporcionar à Marinha do Brasil e às Forças Armadas brasileiras.Apresenta-se a seguir as potencialidades das indústrias de defesae as parcerias já existentes que servem de embrião a uma futuraintegração. Em seguida analisa-se as razões políticas que podemmotivar a integração dessas indústrias e procura-se discutir deque maneira essa integração poderia contribuir para odesenvolvimento econômico regional. Conclui-se por fim queessa integração poderá se transformar em um instrumento dealavancagem de poder político, econômico e militar.Palavras-chave: Indústria de Defesa - Forças Armadas.

Abstract

The south american defense industries integration is a complexprocess because it has to fulfill the State and enterprise interests.One discusses the benefits that such integration can bring to theNavy and the brazilian armed forces as well. One shows thedefense industries potential and the existing partnerships thatcan be an embryo of a future integration. One examines thepolitical reasons that can motivate the industry integration andin what way this integration could contribute to the regionaleconomic development. One concludes that this integration canbe transformed in an important instrument to develop political,economic and military powers.Keywords: Industry of Defense - Armed Forces

Introdução

Diante do fracasso da Rodada de Doha, na qual ainda não se logrouchegar a um acordo de livre comércio mundial que estabeleça os limites justos

Page 152: Revista da Escola de Guerra Naval

156

para os subsídios cedidos pelos Estados às suas indústrias e aos seusagricultores, torna-se fundamental aos Estados em desenvolvimento naAmérica do Sul perseverar na concretização da integração econômica docontinente. Dessa forma, os Estados sul-americanos podem emergir comouma das forças geoeconômicas do planeta e atuar de forma conjunta paradefender seus interesses no Sistema Internacional frente a outros grandesblocos já consolidados, como a União Européia, a NAFTA1 e a ComunidadeAsiática. Selando um feito histórico marcante no sentido de se constituir umúnico bloco capaz de influenciar os movimentos políticos do tabuleiro depoder mundial, os líderes dos 12 Estados sul-americanos se reuniram emBrasília no dia 23 de maio deste ano para criar a União das Nações Sul-Americanas - UNASUL.

Paralelamente à idéia de consolidação de um único bloco econômicosul-americano, os Estados-membros discutiram também sobre a possibilidadede criação de um Conselho Sul-Americano de Defesa para dar maior respaldoà integração regional. Além de buscar a elaboração conjunta de políticas dedefesa, esse conselho tem como objetivo também a integração das BasesIndustriais de Defesa - BID do continente.

A integração das indústrias sul-americanas, sem dúvida, é um processocomplexo, pois deve atender aos interesses não só dos Estados, mas tambémdas empresas. Nesse ensejo, é natural que se questione a existência real derazões políticas e econômicas favoráveis à integração das indústrias do setorde defesa.

Para Vidigal (2004), a inexistência de uma indústria militar de defesadeixa qualquer Estado sujeito a boicotes em momentos de crise e, embora sejadifícil e delicada, é imperativo que se consolide a integração das indústriasde defesa da América do Sul, explorando-se ao máximo o desenvolvimentode projetos conjuntos.

Esta monografia, justificada pelos presumidos benefícios que aintegração das indústrias de defesa sul-americanas possa proporcionar nãosó à Marinha do Brasil, mas também às demais Forças Armadas, tem comopropósito evidenciar as razões políticas e econômicas favoráveis à integraçãodas Bases Industriais de Defesa (BID) na América do Sul.

Em busca da consecução desse propósito, esta monografia foi divididaem três seções. Na primeira seção, antes de se avaliar quaisquer aspectospolíticos e econômicos, buscou-se fazer uma análise das potencialidadesdas indústrias de defesa sul-americanas, procurando-se identificar as

1 Tratado Norte-Americano de Livre Comércio entre Estados Unidos, Canadá e México.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 153: Revista da Escola de Guerra Naval

157

parcerias já existentes entre as empresas, que pudessem servir de embriõespara uma futura integração. Com respeito às potencialidades dessasempresas, o trabalho limitou-se a abordar as indústrias produtoras deveículos blindados, sistemas de artilharia, navios, submarinos e aeronaves,por julgar serem estas indústrias suficientemente representativas para atenderao seu propósito e não torná-lo demasiadamente extenso.

Em seguida, na segunda seção, buscou-se determinar as razões políticasque motivam a integração das indústrias de defesa do continente, com basenas transformações políticas decorrentes do fim da Guerra Fria (1989).

Por fim, na terceira seção, primeiramente se analisou a conjunturaeconômica do continente para verificar se os fundamentos macro-econômicosdos seus Estados são favoráveis a que se incentive a integração regional daBID. Em seguida, procurou-se investigar de que forma a integração dasindústrias de defesa contribuirão para o desenvolvimento econômico regional.

Para a produção do presente trabalho acadêmico, foram utilizadastécnicas de pesquisa científica do tipo bibliográfica, documental eexploratória, onde a coleta de dados de autores e instituições de notóriareputação foi realizada através do processo de documentação indireta.

Potencialidades das Indústrias de Defesa Sul-americanas

Fruto de rivalidades históricas fomentadas pelos desejos de projeçãode poder regional, o desenvolvimento da indústria de defesa sul-americanase concentrou principalmente nos três maiores Estados do cone sul docontinente americano: Argentina, Brasil e Chile. Particularmente, a indústriade defesa brasileira, graças à visão estratégica dos governos militares e comoconseqüência de suas políticas consistentes de pesquisa e desenvolvimento(P&D), teve notório desempenho na década de 80, logrando atingir a condiçãode quinto exportador mundial de material bélico, segundo Cruz (2006).

No entanto, as continuadas reduções orçamentárias ao longo dos anosque se seguiram ao colapso da ex-URSS, decorrente da queda do Muro deBerlim (1989), provocaram a diminuição da demanda mundial porequipamentos militares e o acirramento da competição das indústrias dedefesa no mercado internacional. Essa drástica redução de demanda, somadaà diminuição das tarifas alfandegárias resultante das pressões neoliberais eà falta de incentivo dos governos, levou muitas indústrias de defesa sul-americanas à falência ou a diversificarem suas produções para diminuir adependência das vendas de produtos militares.

Em 2006, de acordo com o Stockholm International Peace Research Institute– SIPRI Yearbook (2008), nenhuma empresa sul-americana constava entre as

Fernando de Sousa Vilela

Page 154: Revista da Escola de Guerra Naval

158

100 maiores indústrias de defesa, no que tange ao volume de vendas emdólares. Isto se justifica em parte pelo fato de que, cada vez mais, estãoocorrendo fusões no setor de defesa, principalmente nos Estados que sãolíderes em exportação de armas, com o objetivo de se criar melhores condiçõespara competir no mercado internacional. Segundo o SIPRI Yearbook (2008),só em 2007, houve 53 fusões e aquisições significantes de indústrias de defesana América do Norte e na Europa Ocidental.

Acompanhando essa tendência mundial, serão apresentadas, a seguir,as potencialidades das indústrias de defesa sul-americanas em cada ambiente– terrestre, naval e aéreo – de guerra, e as parcerias existentes ou que játenham ocorrido entre essas empresas.

A Indústria de Defesa Terrestre

Do estudo realizado por Bastos2 e Bastos Júnior3 (2004) em relação aosblindados sul-americanos, depreende-se que apenas três empresasproduziram e lograram vender veículos blindados para as Forças Armadasna América do Sul: o grupo Engenheiros Especializados S.A.- ENGESA, aTanque Argentino Mediano Sociedad del Estado – TAMSE e a empresa chilenaFábricas y Maestranzas del Ejército – FAMAE.

Com a falência do grupo ENGESA, que chegou a ser o maior fabricantemundial de veículos blindados do planeta (BITZINGER, 1999), e da empresaTAMSE na década de 1990, Argentina e Brasil perderam a capacidade deprodução desses tanques. A FAMAE ainda está em atividade, mas hoje estácertificada apenas para realizar manutenção em veículos blindados(FAMAE, 2008).

Em termos de artilharia de campanha, pode-se destacar a empresaAVIBRÁS pela produção do sistema de artilharia de foguetes Astros Hawk,com alcance de 12 km, e do sistema de saturação de foguetes Astros II, comalcance entre 9 e 90 km, provado em combate durante as duas guerras noGolfo Pérsico nas décadas de 80 (Irã e Iraque) e 90 (Kuwait). O contínuoaperfeiçoamento do sistema Astros II impulsionou o sucesso desse sistemaque já foi exportado para 14 Estados (GODOY, 2007). Nos últimos anos, aAVIBRAS vem desenvolvendo a plataforma de lançamento Astros III quepoderá ser utilizada para lançamento do míssil tático de cruzeiro solo-solo

2 Bastos é pesquisador de assuntos militares e coordenador do site UFJF/Defesa, daUniversidade Federal de Juiz de Fora (MG).3 Bastos Júnior é analistas de sistemas e pesquisador na área de blindados e veículosmilitares latino-americanos.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 155: Revista da Escola de Guerra Naval

159

TM, com alcance de até 300 km, e do míssil FOG-MPM, guiado por fibra óticae imune a medidas de ataque eletrônico, com alcance de até 60 km.

Durante o governo do General Pinochet, a empresa chilena FAMAEtambém desenvolveu um sistema de artilharia de foguetes, denominado Rayo,mas nem o exército chileno teve interesse em comprá-lo (SOHR, 2003).

Da análise acima, pode-se depreender que a produção de blindadosna América do Sul para as Forças Armadas é inexistente e que a indústria desistemas de artilharia é pouco expressiva, destacando-se apenas a empresaAVIBRÁS.

A Indústria Naval de Defesa

Na América do Sul, a indústria naval de defesa é representada porestaleiros localizados no Brasil, Argentina, Chile e Peru.

No Brasil, a Empresa Gerencial de Projetos Navais - EMGEPRON,empresa pública vinculada à Marinha do Brasil - MB, tem capacidade paradesenvolver e gerenciar projetos de construção e modernização deembarcações militares, inclusive de submarinos convencionais. AEMGEPRON mantém parceria de cooperação com estaleiros da Armada daRepública Argentina – ARA, tendo já realizado o reparo de meia-vida dosubmarino ARA Santa Cruz, no qual foi realizado o corte do seu casco parareduzir o seu tempo de reparo (CICALESI; DEL GAIZO, 2005).

Além das capacidades supracitadas, a EMGEPRON destaca-se tambémpor ter logrado obter o domínio da tecnologia de produção em escala deurânio enriquecido, a despeito do contingenciamento de investimentos dogoverno brasileiro (ORDOÑEZ, 2006), para ser utilizado na propulsão dotão sonhado submarino nuclear brasileiro.

O Arsenal da Marinha do Rio de Janeiro - AMRJ, onde são executadosos projetos realizados pela EMGEPRON, dispõe do maior dique de reparo daAmérica do Sul, com capacidade para permitir a docagem do Navio-Aeródromo São Paulo (BRASIL, 2008). Com o auxílio deste dique, de umabalsa e de duas carretas, o AMRJ tem capacidade também para realizar asmanobras de load-in4 e load-out5 de submarinos, permitindo que se possadispor de todas as facilidades no interior da oficina de reparos, reduzindoassim a quantidade de homem-hora necessária ao seu reparo e,conseqüentemente, os custos envolvidos (BRASIL, 2007).

4 Manobra de deslocamento do submarino do dique para o interior da oficina de reparos.5 Manobra de remoção do submarino do interior da oficina de reparos e de deslocamentopara o dique.

Fernando de Sousa Vilela

Page 156: Revista da Escola de Guerra Naval

160

O estaleiro argentino Domecq García foi especialmente concebido, nadécada de 80, para a construção de dois submarinos da classe TR-1700,contudo, com a falta de investimentos no início da década de 90, estes doissubmarinos não lograram terminar sua construção (NAVARRO; MANTILLA,1994). Atualmente, o Domecq García realiza a modernização de meia-vida dossubmarinos da ARA e é gerenciado pelo estaleiro Talleres Navales DársenaNorte - TANDANOR, que retornou ao controle do Estado argentino no anopassado (ROSSI, 2007). O TANDANOR tem capacidade para construção,modernização e reparação não só de navios de guerra, mas também de naviosmercantes, e dispõe de um moderno sistema de elevação de navios de até55.000 toneladas denominado Synchrolift (TANDANOR, 2008).

A empresa Astilleros Rio Santiago é outro estaleiro pertencente ao governoargentino que se destaca na construção, modernização e reparação de naviosde guerra da ARA. Este estaleiro foi responsável pela construção das 6 corvetasMEKO 140 em operação na ARA, está capacitado a construircontratorpedeiros e também constrói navios mercantes de atéaproximadamente 60.000 toneladas (CICALESI; DEL GAIZO, 2005).

No Chile, o único estaleiro que constrói e repara embarcações militaresé o da empresa estatal Astilleros y Maestranzas de la Armada – ASMAR. Dentreos seus projetos de maior relevância, merecem destaque os relativos àconstrução de 3 navios de desembarque da classe Batral, à construção doprimeiro de 2 navios-patrulha oceânicos da classe Piloto Pardo e aos demodernização de contratorpedeiros e fragatas da Armada do Chile (ASMAR,2008).

No Peru, a empresa estatal peruana Servicios Industriales de la Marina –SIMA, presta serviços de construção e reparação naval tanto para a Armadado Peru, quanto para armadores, merecendo destaque, no ramo de defesa, aconstrução de duas fragatas classe Lupo em meados da década de 80 (SIMA,2008).

Segundo o Centro de Estúdios Nueva Mayoría (2004), apesar de nãopossuírem capacidade para construção de submarinos, os estaleiros ASMARe SIMA estão capacitados a realizar reparos em submarinos do tipo 209. Nosentido de ampliar suas capacidades, o estaleiro ASMAR firmou doiscontratos de cooperação com o estaleiro francês DCNS, para que este presteassistência na modernização de dois submarinos do tipo 209 equatorianos eno corte do casco daqueles submarinos, a fim de permitir a revisão geral deseus motores diesel e geradores (TRAN, 2008).

Com isso, verifica-se que as empresas da indústria naval de defesa sul-americana são na sua maioria estatais e contam com tecnologias relevantes,principalmente no que diz respeito à construção, modernização e reparação

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 157: Revista da Escola de Guerra Naval

161

de submarinos. Em termos de parcerias entre estaleiros, ressalta-se apenas acooperação entre estaleiros da MB e da ARA. Alguns estaleiros sul-americanos, como o TANDANOR, o ASMAR e o SIMA, em função da baixademanda de construções navais solicitadas pelas marinhas de seus Estados,buscam também diversificar as suas atividades no segmento de construção ereparação de navios mercantes.

A indústria aeronáutica de defesa

As empresas sul-americanas de maior relevância na produção deaeronaves militares estão concentradas no cone sul do continente, destacando-se a Empresa Brasileira de Aeronáutica - EMBRAER e a Helicópteros doBrasil S/A - HELIBRAS; a Empresa Nacional de Aeronáutica – ENAER no Chile;e a Lockheed Martin Aircraft Argentina S/A – LMAASA, antiga Fabrica Militar deAviones – FMA.

Na fase inicial de produção de aeronaves, a EMBRAER foi beneficiadapor políticas governamentais de financiamento e de investimentos em pesquisa(GOLDSTEIN, 2002), que impulsionaram a produção em série de aeronavesoriginárias de projetos nacionais como os do Bandeirante, Xingu e Tucano.

O acordo firmado com a empresa Aermacchi para construção sob licençada aeronave Xavante, destinada ao treinamento avançado de pilotos e ataqueao solo, a partir do início da década de 70, e a parceria firmada com asempresas Aeritalia e Aermacchi em 1980 para o desenvolvimento de protótipoe produção da aeronave AMX, para emprego em ataques ao solo e missões dereconhecimento, conferiram à EMBRAER o acesso a tecnologias de avançadasde produção em série (GOLDSTEIN, 2002).

Atualmente, a empresa produz as aeronaves de treinamento e ataqueleve Super Tucano que, além de terem sido adquiridas pela Força AéreaBrasileira - FAB e pela Força Aérea Colombiana - FAC, foram recentementeselecionadas pelo Chile e Equador para comporem as suas forças aéreas(RIVAS, 2008).

Fruto do seu sucesso na produção de jatos regionais para a aviaçãocomercial que a tornou uma das maiores fabricantes de aeronaves comerciaisdo mundo, a EMBRAER desenvolveu, a partir da plataforma bem sucedidado jato regional ERJ-145, três versões militares equipadas com sensores deúltima geração para emprego em missões de controle e alarme aéreoantecipado; sensoriamento remoto, vigilância e inteligência; e patrulhamarítima (EMBRAER, 2008).

A empresa estuda a possibilidade de desenvolvimento de uma aeronavede transporte militar, o EMBRAER C-390, com capacidade para transportar

Fernando de Sousa Vilela

Page 158: Revista da Escola de Guerra Naval

162

até 19 toneladas, que incorporará soluções tecnológicas compatíveis com asjá instaladas na aeronave comercial EMB-190 (BERTAZZO, 2007).

Além de construção de aeronaves, a EMBRAER é responsável pelamodernização das aeronaves F-5BR e AMX da FAB.

A HELIBRAS é uma empresa brasileira com capital estrangeiro quefabrica helicópteros projetados pela empresa francesa EUROCOPTER e quetambém presta assistência técnica aos seus operadores. A HELIBRAS é aúnica fabricante de helicópteros na América do Sul, tendo já produzido eentregue cerca de 500 helicópteros, dos quais 10% foram exportados parapaíses latino-americanos (HELIBRAS, 2008a).

A HELIBRAS é líder no mercado brasileiro de helicópteros à turbina emoperação, tanto no segmento militar, onde detém 66% de participação, comotambém nos segmentos governamental6 e civil (HELIBRAS, 2008b). Os modelosoperados pelas Forças Armadas brasileiras são o Esquilo (Fennec), a aeronavePantera (Dauphin) e o Super Puma (Cougar), porém apenas os primeiros foramproduzidos pela HELIBRAS. No entanto, no dia 30 de junho de 2008, opresidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o lançamento do PóloAeronáutico Brasileiro de Helicópteros de Grande Porte, projeto deinvestimento da ordem de 350 milhões de dólares para ampliação dasinstalações da HELIBRAS, que permitirá a produção de helicópteros SuperCougar, mediante transferência de tecnologia francesa, destinados às forçasarmadas brasileiras e a setores estratégicos da economia como o petrolífero(MILESKI, 2008).

A ENAER é uma empresa com alta capacitação tecnológica que, alémde ter capacidade para produção das aeronaves de treinamento básico T-35Tillán e de ataque A-36 Halcón, presta serviços de manutenção e modernizaçãodos sistemas de aeronaves da Força Aérea do Chile – FACH, tais como F-5E/F Tigre III , Mirage M-50 e C-130 Hercules, além das aeronaves citadasanteriormente. Cabe ressaltar que essa empresa também realiza manutençãoem aeronaves BOEING 707, 737 e MD 80, além de fabricar partes de fuselagense empenagens, destacando-se a parte posterior da fuselagem da aeronave detransporte de carga CN-235, produzida para a empresa espanhola CASA, eo conjunto de empenagem das aeronaves ERJ-145, para a EMBRAER (ENAER,2008).

A LMAASA mantém com a Força Aérea Argentina – FAA contratos deconstrução e modernização das aeronaves de treinamento e ataque leve AT-63Pampa. Ademais, presta serviços manutenção e modernização de aeronavespertencentes à FAA, entre elas: o A4-AR Fighting Hawk, o C-130 Hercules e o IA-

6 Inclui todos os operadores pertencentes aos órgãos públicos, exceto as Forças Armadas.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 159: Revista da Escola de Guerra Naval

163

58 Pucará. Nos últimos anos, a empresa prestou também serviços de manutençãonas aeronaves C-130 da Força Aérea da Colômbia (FAC) e nas aeronaves AF-1/1A da MB. Além dos serviços em aeronaves, a empresa também realizarevisões gerais dos motores das aeronaves C-130, A4-AR e AT-63.

Sintetizando, verifica-se que há empresas no continente sul-americanoque desenvolveram significativas capacidades tecnológicas para produçãode aeronaves. Merecem ser salientados os incentivos financeiros e fiscais dogoverno brasileiro que permitiram que a EMBRAER logo se tornasse umaempresa exportadora de aeronaves. Nota-se também que as empresasaeronáuticas sul-americanas têm buscado diversificar suas atividades, sejavoltando-se para os segmentos da aviação comercial ou para contratos demanutenção e modernização de aeronaves militares. Assim, elas têm semantido atuantes no mercado, pois, salvo as aeronaves Super Tucano, asvendas de aeronaves militares produzidas na América do Sul são destinadasbasicamente às suas forças aéreas que, por sua vez, têm sido submetidas arestrições orçamentárias. Percebe-se também que ainda não há parcerias entreessas empresas para construção de aeronaves militares.

Razões Políticas para Integração das Bases Industriais de DefesaSul-americanas

Com o fim do conflito ideológico no eixo Leste-Oeste, que perdurou durantetoda a Guerra Fria (1947-1989), as razões das tensões políticas que tomam contado cenário mundial passaram a se concentrar no alargamento das diferençasdos níveis de desenvolvimento econômico entre os Estados ricos e pobres,orientados agora no eixo Norte-Sul. Esta mudança de eixo se deve às vantagensusufruídas pelos Estados desenvolvidos, que detêm o domínio sobre o capitalmundial e tecnológico, no contexto competitivo da globalização.

Guimarães7 (2007, p.170) argumenta que o cenário político internacionalse caracteriza “[...] pela concentração de poder político, militar, econômico,tecnológico e ideológico nos países altamente desenvolvidos; [...] [e] pelodesrespeito aos princípios de não-intervenção e de autodeterminação de partedas Grandes Potências [...]”.

Para inibir essas intervenções e se contrapor à ameaça militar dasgrandes potências, Vidigal (1996) defende que o principal objetivo estratégicodos Estados subdesenvolvidos deve ser a dissuasão, que será tão eficiente

7 Samuel Pinheiro Guimarães é diplomata e atual Secretário-Geral do Ministério dasRelações Exteriores do Brasil.Nota do Editor: Por ocasião da publicação deste artigo, Samuel Pinheiro Guimarães nãomais ocupa o cargo supra-mencionado.

Fernando de Sousa Vilela

Page 160: Revista da Escola de Guerra Naval

164

quanto mais consistente for o Poder Nacional, não só no campo militar, mastambém no político e no econômico.

Em consonância com o objetivo estratégico acima, o governo brasileiropropôs recentemente a criação de um Conselho Sul-Americano de Defesa,no sentido de incrementar a cooperação dos Estados sul-americanos noreferido setor. Dentre os objetivos desse conselho, destaca-se a integraçãodas Bases Industriais de Defesa da América do Sul. Tomando-se como basea visão de Neuman8 (2006) de que a indústria defesa constitui um importanteindicador da distribuição de poder no sistema internacional, pode-sepredizer que a integração em pauta permitirá expandir o poder sul-americano e, com isso, contribuir expressivamente para dissuasão deameaças aos Estados sul-americanos.

Outra importante razão para a integração das BID sul-americanasreside na sua contribuição para a superação de diferenças e aumento daconfiança mútua entre os Estados. Consoante com essa idéia, Guimarães(2007, p.188) sustenta que “A estratégia brasileira de defesa vê o continentesul–americano de forma integrada e considera a cooperação militar entreas Forças Armadas, inclusive em termos de indústria bélica, como um fatorde estabilidade e de equilíbrio regional através da construção de confiança.”.

Pode-se estimar que, diante da complexidade envolvida nesse processode integração, surjam divergências de interesses governamentais eempresariais. No entanto, a despeito do desacordo de opiniões, é defundamental importância que os governos dos Estados estejamcomprometidos com o objetivo maior, qual seja a consolidação da defesa naAmérica do Sul. Em realidade, a integração dos Estados sul-americanosdeve se tornar não só uma política de governo, mas sim, uma política deEstado (SILVA, 2008). Nesse ensejo, Vidigal (1996) também estabelece queos governantes sul-americanos devem estreitar seus laços de cooperaçãono setor militar e manifestarem vontade política no sentido de superar osobstáculos que possam surgir no processo de integração, a fim de dissuadirqualquer pretensão de intervenção armada no continente sul-americano.

Da análise realizada neste capítulo, pode-se sumariar três razõespolíticas que motivam a integração em tela: o aumento do poder sul-americano, a dissuasão de ameaças ao continente e o aumento da confiançamútua entre os Estados. Após ter identificado as motivações políticas, cabeagora verificar se a conjuntura econômica favorece a integração das BIDsul-americanas.

8 Stephanie G. Neuman é pesquisadora sênior do Saltzman Institute of War and Peace naUniversidade de Columbia.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 161: Revista da Escola de Guerra Naval

165

Motivações Econômicas para Integração das Indústrias de DefesaSul-americanas

Para se determinar as razões de natureza econômica para integraçãodas indústrias de defesa na América do Sul, analisar-se-á a situação macro-econômica da região nos últimos anos e os benefícios econômicos que possamadvir da própria integração.

Condições macro-econômicas favoráveis

Analisando-se o Anuário Estatístico de 2007 da Comisión EconómicaPara América Latina y El Caribe – CEPAL (2008), verifica-se que, totalizando-seo Produto interno Bruto – PIB a preços correntes de mercado dos Estados daAmérica do Sul, a economia sul-americana registrou um crescimento superiora 7% entre os anos de 2003 e 2006. Este crescimento foi impulsionado, nesseperíodo, pela escalada de preços das commodities, motivada pelo aumento dademanda mundial, mormente de Estados emergentes como a China e a Índia.Essa elevação dos preços e da demanda por recursos naturais contribuírampositivamente para o saldo das transações correntes nas economias da região.

Ademais, o ingresso de divisas decorrente da melhoria das transaçõescorrentes e de capital estrangeiro na forma de investimentos diretos favoreceuo aumento das reservas internacionais e a redução do endividamento externoem relação ao PIB. Apesar da desaceleração econômica mundial e da reduçãodos preços das commodities, segundo Garcez (2007), o Fundo MonetárioInternacional – FMI estima que os sólidos fundamentos macro-econômicosda região propiciaram uma maior capacidade de resistência dessas economiasa crises internacionais, diferentemente do que ocorria nas décadas anteriores.

Há que se recordar também que, acompanhando a tendência mundialde integração em blocos econômicos, os governos sul-americanos vêmbuscando integrar de forma mais profunda as suas economias. Afinal, essebloco, composto por 12 Estados, reúne cerca de 380 milhões de habitantes ealcançou um PIB total de aproximadamente US$ 1,8 trilhões em 2006, segundoos dados apresentados pelo Anuário Estatístico de 2007 da CEPAL (2008).Além de ser um dos principais centros produtores de alimentos e rica emrecursos minerais, essa região dispõe, segundo Garcia (2008), do maior emais diversificado potencial energético do planeta.

Apesar de tantas potencialidades, o comércio entre os Estados na regiãoainda pode se incrementar significativamente e consolidar ainda mais osfundamentos macro-econômicos da região. A comparação da evolução docomércio sul-americano com a do comércio realizado entre os Estadospertencentes à União Européia – EU comprova o que foi exposto acima.

Fernando de Sousa Vilela

Page 162: Revista da Escola de Guerra Naval

166

Segundo Guimarães (2007), o comércio entre os seis Estados fundadores daComunidade Econômica Européia - CEE passou de aproximadamente 40%do seu comércio total em 1958 para um valor superior a 80% do totalcomercializado pela UE nos dias atuais. Praticamente no mesmo período, aparcela do comércio exterior da América do Sul, representativa das trocascomerciais realizadas entre os seus Estados, avançou apenas de 10% em1960 para 17% em 2006 (GUIMARÃES, 2007). Se foi possível à União Européiafortalecer a sua economia como um todo através da intensificação dos laçoscomerciais entre seus membros, é válido pensar que ainda há muito espaçopara fortalecimento das economias sul-americanas através das trocascomerciais com os seus vizinhos.

Considerando-se a realidade atual dos indicadores macro-econômicosda região e as perspectivas de maior integração econômica do continente,pode-se deduzir que há hoje melhores condições, principalmente no que dizrespeito ao acúmulo de reservas, para que os governos sul-americanos possamfavorecer o desenvolvimento das suas indústrias de defesa. A solidez daeconomia regional pode servir de estímulo aos governos sul-americanos paraque busquem a integração das suas BID. Visto que os fundamentos macro-econômicos sul-americanos são favoráveis a que se incentive a integraçãodas indústrias de defesa da região, cabe agora verificar quais são os benefíciosgerados por ela.

Os Benefícios Econômicos da Integração

Os armamentos modernos são complexos, pois dependem de umavariada gama de tecnologias. Sendo assim, os custos e os prazos paradesenvolvimento e produção de armamentos tendem a se dilatar, gerandoincertezas quanto ao sucesso do projeto (GOLD, 1999). Por freqüentementeenvolverem inovações tecnológicas, esses projetos requerem pesadosinvestimentos que, normalmente, Estados emergentes como Argentina, Brasile Chile têm limitações para fazer. Sendo assim, a cooperação das indústriasdo setor de defesa, associada à integração do mercado sul-americano, podetornar exeqüíveis os programas que requerem elevados investimentos.

Flamm (1999) esclarece que a cooperação internacional pode permitirque se dividam os custos de P&D e que haja um aumento do volume de produçãoem função da demanda consolidada pelos Estados aos quais se destinam,baixando assim os custos unitários de produção. Esta redução de custos éjustificada pela melhor utilização da capacidade científica e tecnológica desuas bases industriais. Os menores custos de produção não só beneficiam asindústrias, como também as Forças Armadas sul-americanas, pois poderãocontar com equipamentos com preços mais acessíveis no mercado regional e

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 163: Revista da Escola de Guerra Naval

167

incrementar a demanda por armamentos. O aumento da demanda porequipamentos gera uma necessidade maior por insumos e sobressalentes, oque pode justificar a criação de novas empresas na região, contribuindo para oaumento da própria base industrial e tecnológica da região.

A integração de indústrias de defesa aeronáuticas sul-americanas, porexemplo, poderia reduzir os custos e os riscos do projeto do C-390, que estáem estudos na EMBRAER. Neste caso, a ENAER e a LMAASA poderiamarcar com parte dos custos de pesquisa e desenvolvimento e construir partesda fuselagem e da empenagem para que fossem montadas na EMBRAER,como já faz hoje a ENAER em relação às empenagens do ERJ-145.

Com a integração da BID sul-americana, as relações comerciais entre asempresas e outros mercados tenderão a se intensificar. Tendo em conta queos produtos e serviços de defesa, por serem dotados de alta complexidadetecnológica, possuem um alto valor agregado, as exportações desses produtose serviços proporcionarão um efeito positivo no saldo da balança depagamentos e no crescimento do nível de emprego (GOLD, 1999). Outrossim,a elevação do nível de emprego pode beneficiar o acúmulo de capitalintelectual dentro da região, pois evitará que profissionais altamentequalificados emigrem para países desenvolvidos em busca de empregos nosquais possam aplicar seus conhecimentos.

A integração das indústrias de defesa pode estimular também aprodução de meios comuns aos operadores sul-americanos, o que além degerar uma economia de escala, poderá contribuir para o desenvolvimento deuma doutrina comum, facilitando a interoperabilidade das Forças Armadasdo continente e alcançando assim o objetivo maior da integração que é aconsolidação da defesa, conforme já mencionado.

A fusão de empresas do setor de defesa na América do Sul,acompanhando uma tendência mundial, pode ser ainda mais benéfica, pois,através da formação de um conglomerado de empresas no continente, pode-se incrementar a participação das indústrias sul-americanas do setor nomercado internacional. Esse foi o caminho escolhido por empresasestadunidenses e européias na década de 90, que resultou na formação doconglomerado de empresas da BOEING, LOCKHEED MARTIN e BAESYSTEMS, que de acordo com o SIPRI Yearbook (2008), são as três maioresindústrias de defesa do mundo.

Poucos Estados dominam tecnologias críticas. Apesar das significativaspotencialidades verificadas na seção 2, as indústrias de defesa sul-americanas ainda são muito dependentes tecnologicamente de indústriaseuropéias e estadunidenses no que diz respeito a desenho, desenvolvimentoe integração de sistemas.

Fernando de Sousa Vilela

Page 164: Revista da Escola de Guerra Naval

168

Governos e indústrias de defesa que se recusam a globalizar suasatividades de desenvolvimento e produção de armas podem não conseguiracesso a tecnologias críticas e a mercados estrangeiros (BITZINGER, 1999).

A formação de um conglomerado sul-americano, que pudesse reunirinclusive empresas de diferentes setores, como foi o caso da BAE SYSTEMS,formada por empresas tanto do setor aéreo quanto do setor naval, podepermitir que as empresas sul-americanas possam participar de joint ventures9

com empresas estadunidenses e européias líderes de mercado. Dessa forma,esse conglomerado poderia beneficiar-se de transferências de tecnologiasque lhe pudessem gerar novas capacidades, como ocorreu com a EMBRAERno caso das aeronaves AMX. Adicionalmente, poderia usufruir também deuma maior participação no mercado internacional.

Sumariando-se o que foi exposto nesta seção, a integração das indústriasde defesa sul-americanas pode beneficiar o desenvolvimento econômico daregião, influenciando positivamente as balanças de pagamentos dos Estadossul-americanos, gerando empregos, incrementando a interoperabilidade dasForças Armadas e desenvolvendo as potencialidades tecnológicas dasempresas do setor de defesa na região.

Conclusão

A análise das potencialidades das indústrias sul-americanas tornapossível depreender que existe uma concentração dos parques industriaisde defesa no Cone Sul, especificamente no Brasil, na Argentina e no Chile.

A indústria de veículos blindados na América do Sul, que chegou acontar com uma empresa líder no mercado mundial, hoje presta apenasserviços de manutenção àqueles veículos. A expressividade da indústria desistemas de artilharia também não é muito maior, destacando-se apenas aempresa brasileira AVIBRÁS.

A indústria naval, constituída na sua maior parte por empresas estatais,conta com tecnologias relevantes, especialmente as de construção,modernização e reparação de submarinos, porém algumas dessas indústrias,para se sustentarem no mercado, são forçadas a ampliarem suas atividadespara o segmento de construção e reparação de navios mercantes, devido àreduzida demanda por navios de guerra.

Problema similar vivem as empresas do setor aeronáutico no continente.Mesmo a EMBRAER, que tem exportado as aeronaves Super Tucano para

9 Segundo o Dicionário Michaelis (2008), joint venture significa um empreendimento conjuntocom fins lucrativos do qual participam duas pessoas físicas ou jurídicas.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 165: Revista da Escola de Guerra Naval

169

outros Estados sul-americanos, busca diversificar suas atividades para aaviação comercial a fim de aumentar a sua participação no mercado, pois osrecursos orçamentários das forças aéreas sul-americanas ainda não sãosuficientes para garantir um fluxo de demanda consistente para produçãode aeronaves pelas empresas do continente.

Diante desse quadro, as parcerias de empresas do setor de defesa,praticamente inexistentes hoje no continente, tornam-se fundamentais parao desenvolvimento dessas indústrias. Essas parcerias, consolidadas atravésde uma integração sinérgica da BID sul-americana, podem propiciarbenefícios políticos e econômicos inestimáveis que se traduzem nas motivaçõespara que se persiga essa integração.

As motivações políticas para a integração das indústrias de defesa nocontinente estão relacionadas à ampliação do poder sul-americano, tãoimportante para influenciar a relação de forças políticas no SistemaInternacional; à sua contribuição para a ampliação da confiança mútua entreos Estados, permitindo assim que estes encontrem um denominador comumpara as suas divergências de interesses; e à sua colaboração para a dissuasãode ameaças aos seus Estados.

No que tange às motivações econômicas para a integração da BID nocontinente, destaca-se a solidez atual dos fundamentos macro-econômicosda região, caracterizados pelo aumento das reservas internacionais e pelaredução do endividamento externo em relação ao PIB. Além disso, são notóriosos benefícios que podem advir dessa integração. Os mais importantes são oimpacto positivo na balança de pagamentos, a redução do nível dedesemprego, o incremento da interoperabilidade das Forças Armadas docontinente e a ampliação das capacidades tecnológicas das empresas dosetor de defesa na região.

Diante das motivações políticas e econômicas evidenciadas nestetrabalho, é possível concluir-se que a integração das indústrias de defesasul-americanas, caso se torne realidade, pode se transformar num eficazinstrumento de alavancagem de poder, seja ele político, econômico ou militar.

Referências

ANUÁRIO estadístico de américa latina y el caribe 2007. Santiago: ComisiónEconómica Para América Latina y el Caribe – CEPAL, 2008a. Disponível em: <http://websie.eclac.cl/ anuario_estadistico/anuario_2007>. Acesso em: 22 jun. 2008.

ASTILLEROS Y MAESTRANZAS DE LA ARMADA – ASMAR. Disponível em: <www.asmar.cl>. Acesso em: 19 maio. 2008.

Fernando de Sousa Vilela

Page 166: Revista da Escola de Guerra Naval

170

______. Santiago: Comisión Económica Para América Latina y el Caribe – CEPAL,2008b. ISSN 1684-1379. Disponível em: <http://websie.eclac.cl/anuario_estadistico/anuario_2007/ esp/index.asp>. Acesso em: 22 jun. 2008.

BASTOS, Expedito Carlos Stephani; BASTOS JÚNIOR, Paulo Roberto da Silva.Blindados da América do Sul 2004. Tecnologia & Defesa, São Paulo, v.100, p.42-56,out/dez. 2004.

BERTAZZO, Roberto Portella. EMBRAER C-390: um substituto brasileiro para oHércules? , 2007. Juiz de Fora. Disponível em: <www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/ EMBC390.pdf

BITZINGER, Richard A. Globalization in the Post-Cold War Defense Industry:Challenges and Opportunities. In: MARKUSEN, Ann S.; COSTIGAN, Sean S. (Ed.).Arming the Future: a defense industry for the 21st century. New York: Council onForeign Relations Press, 1999, 12, p.305-333.

BRASIL. Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro - AMRJ. Disponível em: <http://www.mar. mil.br/amrj/>. Acesso em: 29 mai. 2008.

______. Centro de Comunicação Social da Marinha. Arsenal de Marinha do Rio deJaneiro realiza load-out do Submarino Timbira. Nomar, Brasília, n.778, p.5, 2007.Disponível em: <www.mar.mil.br/menu_v/ccsm/nomar/atuais/778/778.pdf>.Acesso em: 29 mai. 2008.

CICALESI, Juan Carlos; DEL GAIZO, César. A indústria de defesa argentina.Segurança & Defesa, Rio de Janeiro, v.82, 2005. Disponível em:<www.segurancaedefesa.com/Industria_ Argentina.htm>. Acesso em: 23 maio2008.

CRUZ, Eduardo Lucas de Vasconcelos. Tecnologia militar e indústria bélica noBrasil. Security and Defense Studies Review, Washington, v.6, n.3, p.359-416, 2006.Disponível em: <www.ndu.edu/chds/Journal/PDF/2006/Lucas_article-edited.pdf>. Acesso em: 19 maio 2008.

EMPRESA BRASILEIRA DE AERONÁUTICA – EMBRAER. Disponível em: <www.embraer.com.br>. Acesso em: 18 mai. 2008.

EMPRESA NACIONAL DE AERONÁUTICA – ENAER. Disponível em:<www.enaer. com.br> . Acesso em: 18 mai. 2008.

FÁBRICAS Y MAESTRANZAS DEL EJÉRCITO – FAMAE. Disponível em:<www.famae .cl/content/index/view/idcont/57>. Acesso em: 27 mai. 2008.

FLAMM, Kenneth. Redesigning the Defense Industrial Base. In: MARKUSEN, AnnS.; COSTIGAN, Sean S. (Ed.). Arming the Future: a defense industry for the 21st

century. New York: Council on Foreign Relations Press, 1999, 12, p.224-246.

FRANÇA, Júnia Lessa; VASCONCELLOS, Ana Cristina de. Manual paranormalização de publicações técnico-científicas. 8. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG,2007. 255 p.

GARCEZ, Bruno. América Latina seguirá bem, mas vulnerável, prevê FMI.BBCBrasil. Com, São Paulo, 2007. Disponível em: <www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/04/070412_fmirelatorioamericasbg.shtml>.Acesso em: 27mai.2008.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 167: Revista da Escola de Guerra Naval

171

GARCIA, Marco Aurélio. A Opção Sul-Americana. Interesse Nacional. São Paulo,n.1, p.22-28, abr/jun. 2008.

GODOY, Roberto. País pode ganhar • 4 bi com armas. O Estado de São Paulo, SãoPaulo, 18 nov. 2007. Disponível em: <www.estado.com.br/editorias/2007/11/18/eco-1.93.4.20071118.18.1.xml>. Acesso em: 20 mai.2008.

GOLD, David. The Changing Economics of the Arms Trade. In: MARKUSEN, AnnS.; COSTIGAN, Sean S. (Ed.). Arming the Future: a defense industry for the 21st

century. New York: Council on Foreign Relations Press, 1999, 12, p.224-246.

GOLDSTEIN, Andrea. EMBRAER: from national champion to global player. CEPALReview, Santiago, n.77, p.97-115, 2002. Disponível em: <www.eclac.org/publicaciones/ xml/5/19965/lcg2180i-Goldstein.pdf>. Acesso em: 18 mai. 2008.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. O mundo multipolar e a integração sul-americana.Comunicação & Política. Rio de Janeiro, v.25, n.3, p.169-189, set/dez. 2007.

JOINT VENTURE. In: DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol. com.br/escolar/ingles/index.php?languageText=portugues-ingles>. Acesso em: 10 ago. 2008.

HELIBRAS. 2008a. Disponível em: <www.helibras.com.br/historico.asp>. Acessoem: 28 mai. 2008.

______. 2008b. Disponível em: <www.helibras.com.br/mercado.asp>. Acesso em:28 maio 2008.

MILESKI, André M. Projeto de construção do Super Cougar no Brasil é lançado nacomemoração dos 30 anos da criação da Helibras. Tecnologia & Defesa, São Paulo,v.113. jan/mar. 2008. Disponível em: <www.tecnodefesa.com.br/materias6.html>.Acesso em: 28 maio 2008.

NAVARRO, Louis; MANTILLA, Diego. The American Arms Industries: its presentand future. 1994. Monografia (National Defense Superior Course) - Inter AmericanDefense College, Washington. Disponível em: <http://library.jid.org/en/mono33/navarro%20mantilla. pdf>. Acesso em: 29 maio 2008.

NEUMAN, Stephanie. Defense Industries and Global Dependency. Orbis,Philadelphia, v.50, n.3, p.429-451, 2006. Disponível em: <http://www.columbia.edu/cu/siwps/publication_ files/neuman/Defense%20Industries%20and%20Global%20Dependency%20-%20Neuman. pdf>. Acesso em:12 jun. 2008.

NUEVA MAYORIA.COM. Apresenta informações e análises sócio-políticas daAmérica Latina. Buenos Aires: Centro de Estudios Nueva Mayoría, 2004. Disponívelem: <www.nuevamayoria.com/ES/INVESTIGACIONES/?id=defensa&file=040910>. Acesso em: 25 maio 2008.

ORDOÑEZ, Ramona. Brasil domina tecnologia nuclear. A Defesa Nacional, Riode Janeiro, n. 804, p.66-68, Jan/Abr. 2006.

RIVAS, Santiago. Chile e Equador selecionam o Super Tucano para equipar as suasforças aéreas. Asas, São Paulo, n.44, 2008. Disponível em: <www.revistaasas.com.br/index.php? ASA=show_news&id=508&LE=atual>. Acesso em: 04 jun. 2008.

Fernando de Sousa Vilela

Page 168: Revista da Escola de Guerra Naval

172

ROSSI, Antonio. El Gobierno reestatizó El astillero Tandanor privatizado porMenem. Clarín. Buenos Aires, 2007. Disponível em: <www.clarin.com/diario/2007/03/31/ elpais/p-02001.htm>. Acesso em: 24 maio 2008.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Rio de Janeiro, 2008. Entrevista concedida a JoséDirceu. Disponível em: <www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&task=view&id=3639&Itemid=124>. Acesso em: 17 jun. 2008.

SERVICIOS INDUSTRIALES DE LA MARINA – SIMA. Disponível em: <www.sima.com.pe>. Acesso em: 19 maio 2008.

SIPRI YEARBOOK 2008. Estocolmo: Stockholm International Peace ResearchInstitute, 2008. Disponível em: <http://yearbook2008.sipri.org/files/SIPRIYB08summary.pdf>. Acesso em: 21 maio 2008.

SOHR, Raúl. El fiasco más caro del Ejército. La Nación, 2003. Disponível em: <www.lanacion.cl/p4_lanacion/antialone.html?page=http://www.lanacion.cl/p4_lanacion/site/artic/20030816/pags/20030816185859.html>. Acesso em: 23mai.2008.

TALLERES NAVALES DÁRSENA NORTE – TANDANOR. Disponível em: <www.tandanor.com.ar/Espanol/MenuSp.htm>. Acesso em: 22 mai. 2008.

TRAN, Pierre. DCNS to modernize two Ecuadorian subs. Defense News,Springfield, v.23, n.8, 2008. Disponível em: <www.defensenews.com/story.php?i=3390283&c=EUR&s=SEA >. Acesso em: 18 mai. 2008.

VIDIGAL, Armando Amorim Ferreira. A missão das Forças Armadas para o séculoXXI.

Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v.124, n.10/12, p.101-115, out/dez.2004.

______. Integração sul-americana: segurança regional e defesa nacional. CadernoPremissas, n.14, p. 103-138, 1996. Disponível em: <http://brasil.indymedia.org/media/ 2008/06/421375.doc>. Acesso em: 6 jun.2008.

Integração das Indústrias de Defesa na América do Sul

Page 169: Revista da Escola de Guerra Naval

173

Resenha

War Made New: Technology, Warfare, AndThe Course Of History

BOOT, Max. War made new: technology, warfare, and the course ofhistory, 1500 to today. New York; Boston: Gotham Books, 2006.

Reginaldo Gomes Garcia dos Reis*

O Autor busca a explicação de como a guerra foi modificada no decorrerdo tempo. Ao tentar estabelecer uma linha de continuidade da sua análiseleva o leitor a fazer uma viagem por eventos históricos marcantes que nutrema base da argumentação da evolução percebida. Sem ater-se à discussãosuperficial da Revolução dos Assuntos Militares, ele aprofunda o conceito ecom base em sólida argumentação sobre o passado leva o leitor a prospectarsobre o futuro da guerra. Aborda por novos ângulos batalhas do passado eilustra como aspectos sociais, políticos, militares e tecnológicas estãomesclados nas diversas concepções estratégicas e táticas que dominaramdeterminados períodos da história das guerras desde 1500.

Ao tratar do papel da tecnologia mostra a sua outra face que deve serevitada: o determinismo tecnológico. Ela tem o seu papel adequadointeragindo com as demais forças que compõe o conflito. Para isso, divide osúltimos 500 anos em períodos de grandes mudanças nos assuntos militaresestabelecendo quatro principais períodos, aos quais denominou: TheGunpowder Revolution, The First Industrial Revolution, The ScienceIndustrial Revolution e The Information Revolution.

Para cada um desses períodos selecionou algumas ações de guerra,uma abordagem histórica, mas analisando o porquê dos eventos marcantesque ocorreram e de que modo contribuíram para a ascensão na queda dasnações e dos impérios. As transformações dos cenários com a passagem daliderança do poder mundial tendo como pano de fundo as inovações dosarmamentos e das táticas para o emprego deles.

Uma leitura indispensável para os que refletem sobre os assuntosmilitares e buscam pensar de forma crítica como as inovações tecnológicasinteragem com a ousadia, gerada pelas paixões dos corações e mentes paradepreender como eles se combinam na conquista do êxito nas ações da guerra.

* Contra-Almirante, Chefe do Departamento de Ensino da Escola de Guerra Naval.

Page 170: Revista da Escola de Guerra Naval

174

Resenha

Guerra No Mar: Batalhas e Campanhas NavaisQue Mudaram A História.

VIDIGAL, Armando; ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de (Org.).Guerra no mar: batalhas e campanhas navais que mudaram a História.

Rio de Janeiro: Record, 2009. 541 p.

André Figueiredo Rodrigues*

Você pode me baterAi, ai, aie até me provocarAi, ai, aimas não manche as minhas águase se rouba a minha terraÉ guerra no mar, é guerraguerreira, guerra é guerra no marse eu não ganho nessa, eu percomas na outra eu vou ganhar.

Estes versos da música Guerra no mar, de Maria Bethânia, ilustram aimportância do mar ao longo da história da humanidade: facilitador demigrações e descobrimentos, veículo das revoluções econômicas, fonte deriquezas e desafio para a defesa dos países. Este último ponto, aliás, cantadopela intérprete, demonstra a ligação antiga entre guerra e a existência e lutados homens pela sobrevivência. A necessidade e, muitas vezes, a cobiça levamvizinhos a duelar por espaços e poder.

A máxima – quem pode mais, manda mais – não deixa de ser correta.Independente de suas várias explicações sociológicas, políticas e históricas,poder nada mais é do que a capacidade de força que alguém tem de mandar emoutro. Só manda quem tem a capacidade de impor a própria vontade, seja peloviés econômico, político, religioso ou militar.

* Doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo (FFLCH-USP) e Professor das Faculdades Guarulhos e doCentro Universitário Ibero-Americano (Unibero)/Anhanguera Educacional.

Page 171: Revista da Escola de Guerra Naval

175

Muitas nações, ao longo de suas trajetórias, utilizaram o poderio militarpara impor suas vontades e dominação sobre outros povos. É assim que desdea Antiguidade clássica, autores como Heródoto – considerado o pai da História– e Tucídides, por exemplo, narram as aventuras e as guerras empreendidaspelos gregos para se sobreporem aos povos vizinhos e se tornarem o primeiro“império” a sobrepujar um território e o mar aos seus interesses.

Com o intuito de mostrar as batalhas navais que definiram e ajudarama moldar os rumos da História do mundo, nas diversas etapas de suaevolução, desde os tempos antigos até os nossos dias, do mar Mediterrâneoàs ilhas do Pacífico ou até o extremo sul do Atlântico, é que se organizou olivro Guerra no mar: batalhas e campanhas navais que mudaram a História,coordenado pelo Almirante Armando Vidigal e pelo Comandante FranciscoEduardo Alves de Almeida.

A obra é um compêndio de quinze artigos, escritos por sete oficiais daMarinha que se uniram a sete professores universitários para produzir umtexto empolgante e múltiplo, que nos fazia falta nos estudos da história navalmilitar.

Ao leitor é possível perceber, ao longo dos capítulos, cinco grandeseixos de análise. O primeiro compreende os dois capítulos iniciais e se reportaao ambiente da História Antiga ocidental. André Leonardo Chevitarese,professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escreve sobre abatalha naval ocorrida na ilha de Salamina, em 479 a.C., quando os ateniensesestabeleceram a supremacia grega do mar. As águas do Mediterrâneo viramas trirremes gregas dominarem suas ondas. Domínio rivalizado pelosromanos, dois séculos depois, que tornaram o mar Mediterrâneo o mare nostrum(nosso mar), expressão cunhada por eles próprios para demonstrar suahegemonia naquela vasta região. A origem do expansionismo romano pelomar, a configuração de suas forças e as três guerras púnicas que se envolveramcontra Cartago são contados pela professora Regina Maria da CunhaBustamante, da UFRJ, em capítulo sobre a batalha naval de Mylae, em 260a.C., numa importante etapa para a constituição de Roma como domina mundi(senhora do mundo).

Ainda no eixo gravitacional do Mediterrâneo e no texto do professorMárcio Antônio Scalércio, da Universidade Cândido Mendes, chegamos àHistória Moderna e a narração da batalha de Lepanto, na Grécia, quandouma esquadra da Santa Liga (com contingentes de Veneza, da Espanha, daItália, de mercenários alemães e de forças do Papa) venceu o Império Otomano,em outubro de 1571, representando o fim da expansão islâmica noMediterrâneo.

A partir deste ponto do livro e nos três capítulos seguintes entramos embatalhas que envolveram a Inglaterra: a guerra contra os espanhóis e atentativa de Felipe II, da Espanha, se impor mundialmente no domínio dos

Page 172: Revista da Escola de Guerra Naval

176

mares – escrito pelo almirante Reginaldo Garcia Gomes dos Reis; a guerracontra os holandeses pelo domínio marítimo comercial pelo transporte debens na Europa – de autoria do comandante Francisco Eduardo Alves deAlmeida; e a batalha de Trafalgar contra a França e a Espanha, narrada peloprofessor Kenneth Light.

Em todos os capítulos desse segundo bloco vê-se o surgimento daInglaterra como a grande força naval dos séculos XVI ao XIX. Os ingleses,graças a sua Marinha, garantiram a ampliação e a manutenção de seucomércio no exterior. Aos espanhóis coube a perda de boa parte da suamarinha de guerra e, com ela, a condição de poder imperial – obtido graças asua participação no descobrimento e na posse de terras na América; aosholandeses a perca de rotas de comércio marítimo e, aos franceses, suaspretensões expansionistas.

No adentrar ao século XIX, em um terceiro bloco de textos, aparecemnovos atores no cenário naval mundial: os Estados Unidos, o Japão, a Chinae a Rússia. O professor Ricardo Pereira Cabral, da Universidade Gama Filho,escreve sobre a batalha naval de Hampton Roads, ocorrida durante a GuerraCivil Norte-Americana. Em um de seus episódios, as forças da Confederaçãocapturaram a cidade de Portsmouth. As tropas da União, na fuga, deixaramao controle dos confederados o porto e o estaleiro Gosport, ambos situadosàs margens do rio Elizabeth. Em Norfolk, Virgínia, no lado sul de HamptonRoads, as forças unionistas, ao se retirarem, destruíram nove navios emconstrução e a fragata USS Merrimack, que estava em reparo. Este barco foirecuperado pelos confederados e rebatizado como CSS Virgínia e recobertocom placas de ferro fundido, transformando-se no primeiro navio de guerracouraçado dos Estados Unidos. Este fato foi um marco para a história naval:daquele instante em diante, os navios, que eram construídos de madeira,passaram a ser montados de ferro e, também, a utilizar motor a vapor nolugar de mastros e velas. Assim, com os Estados Unidos deu-se início ao usoda tecnologia em detrimento da tática naval.

O Japão e a China seguiram a rota dessas inovações tecnológicas e, comsonhos de grandeza, rivalizavam pela supremacia no extremo oriente. OAlmirante Afonso Barbosa, em seu capítulo sobre a batalha naval de Yalu, em1894, reconstrói o panorama político-estratégico que levou à vitória japonesa eseus interesses imperialistas no Oriente, por conta do alto valor do comérciodesenvolvido na região. Este expansionismo, no início do século XX, levou aocombate japoneses e russos na batalha de Tsushima (1904-1905), estudadapelo professor e comandante Antonio Luiz Porto e Albuquerque.

No avançar rumo ao século XX, chegamos ao quarto bloco temático daobra – as guerras mundiais e o advento da supremacia militar norte-americana.O primeiro destes textos, escrito pelo Almirante Armando Amorim Ferreira

Page 173: Revista da Escola de Guerra Naval

177

Vidigal, narra a batalha da Jutlândia, o maior conflito naval da PrimeiraGuerra Mundial e o único embate – em grande escala – entre couraçados queteve lugar naquela guerra. A Batalha do Atlântico, o mais importante eventobélico da Segunda Guerra Mundial, foi descrita pelo professor FranciscoCarlos Teixeira da Silva, da UFRJ.

Entre esses dois grandes conflitos do século XX, o couraçado, que atéentão reinava absoluto, cedeu espaço para o porta-aviões como a grandearma de guerra. O submarino, em ambos os momentos, também foi armafundamental no aniquilamento do inimigo. Com aparato tecnológico, apoiologístico e operações anfíbias, os Estados Unidos emergem como a maiorpotência do século XX. A batalha naval de Midway, comentada pelo professorWilliams Gonçalves, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, serve deexemplo e comprova essas informações. Com poderio naval e humano inferioraos japoneses, os norte-americanos conseguiram derrotá-los na estratégia.

Com pretensão de dominar o oceano Pacífico, o Japão – aindainfluenciado pela vitória na batalha de Tsushima – empreende batalha contraos Estados Unidos pelo domínio daqueles mares.

Na última grande batalha naval da Segunda Grande Guerra, o Japãoentra em conflito com as forças aliadas, lideradas pelos norte-americanos,nas campanhas navais do golfo de Leyte, em 1944. O Almirante Hélio LeôncioMartins conta-nos essa história. O fracasso japonês no domínio das águasdo Pacífico determinou sua derrota e, também, sua consequente rendição.Nesse cenário, a vitória norte-americana redefiniu o sistema internacionalde poder.

O último bloco que se pode imaginar no livro é composto por doisensaios que tratam da história militar sul-americana e a marinha brasileira.No primeiro deles, o Almirante Armando de Senna Bittencourt analisa abatalha naval do Riachuelo, em momento decisivo da Guerra do Paraguai.No segundo, o Almirante Armando Vidigal escreveu sobre o conflito peloarquipélago das Falklands ou Malvinas, entre a Inglaterra e a Argentina.Deste evento, para a marinha brasileira ficou a lição da importância daestratégia e do uso do submarino nuclear no conflito.

Como diz o excerto da música de Maria Bethânia, em epígrafe, guerra éguerra no mar. Guerreia-se pelo domínio de rotas comerciais e pelo espaçomarítimo dos adversários – enfim, pelo poder naval de uma área. No livro,que leva o mesmo título da música, seus autores atualizaram o debateacadêmico-militar sobre as principais batalhas que moldaram a história dahumanidade. Sem caírem na simples narração das guerras, eles traçam densospainéis políticos, estratégicos e sociais que determinaram aqueles conflitosao longo dos séculos e o que resultou deles, justificando assim a suaimportância e obrigatoriedade de leitura aos interessados na história naval.